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4 Conhecimento e fundacionalismo
Descartes pensava ser possível responder ao desafio dos céticos e
mostrar que existe conhecimento. Para o fazer, ele vai defender duas
teses fundamentais.
A primeira é a tese de que só as crenças de cuja verdade não é possível duvidar são
conhecimento. Por exemplo, a afirmação «Ou o Porto ou o Sporting, ou o Benfica ganham a
Liga na próxima época» não constitui conhecimento. Embora a probabilidade de esta
afirmação ser verdadeira seja muito elevada — uma vez que são geralmente estes clubes que
ganham a Liga —, é sempre possível que seja falsa. E se é sempre possível que seja falsa, não
podemos estar absolutamente seguros da sua verdade, e, portanto, não constitui um
conhecimento.4 E, obviamente, afirmações falsas também não constituem conhecimento. Só
as afirmações cuja verdade é indubitável são conhecimento.
3. A dúvida metódica
3.1 Começar de novo desde os primeiros fundamentos
Como vai Descartes proceder para encontrar as verdades indubitáveis
de que necessita para justificar as suas teorias científicas?
Temos muitas crenças, umas triviais, outras importantes, umas
verdadeiras, outras falsas e estamos habituados a rever e a abandonar
as nossas crenças à medida que descobrimos que são por alguma razão
insatisfatórias. Talvez já tenhamos acreditado que o Sol se move no céu
de este para oeste todos os dias, mas quando nos mostraram que isso
não corresponde à realidade abandonámos essa crença. Fizemos o
mesmo com muitas outras crenças. E estamos dispostos a voltar a fazê-
lo se, e quando, soubermos que uma crença é falsa. Esta forma de
proceder é apropriada aos nossos objetivos. Estamos, em geral,
satisfeitos com as nossas opiniões, porque elas permitem-nos
responder adequadamente à maior parte das solicitações do dia a dia e,
por isso, só as revemos em caso de estrita necessidade.
Esta estratégia, no entanto, não serve o propósito de Descartes de
fundar as ciências em bases completamente sólidas e seguras. Para
realizar este objetivo, ele precisa de encontrar verdades absolutamente
indubitáveis a partir das quais possa, ordenadamente, deduzir outras
verdades, que, por isso, ficamos a saber serem também indubitáveis.
Ora, para encontrar estas verdades, pensa Descartes, é necessário
investigar metodicamente todas as crenças, começando pelas mais
básicas ou fundamentais, usando como princípio só aceitar como
verdadeiras as opiniões de que não haja a mínima razão para duvidar.
Só deste modo, é possível eliminar as opiniões que se revelem
incapazes de resistir à dúvida, quer porque sejam falsas quer porque a
sua verdade não é indubitável.
Descartes não pensa, portanto, que todas as nossas opiniões sejam
falsas. Ele admite que muitas das nossas crenças de que é possível
duvidar sejam verdadeiras. Mas como o seu objetivo é encontrar
verdades indubitáveis, qualquer opinião da qual haja razões para
duvidar, por insignificantes que sejam, pode ser abandonada como se
fosse falsa. Também não pensa que seja necessário percorrer todas as
opiniões uma a uma e mostrar que são duvidosas ou falsas, o que seria,
evidentemente, impossível de fazer. Ele pensa que basta atacar os
fundamentos ou princípios dos quais as nossas opiniões derivam para
pôr em questão todas essas opiniões. Se esses princípios se revelarem
duvidosos ou falsos, então é óbvio que todas as opiniões que deles
dependem são também duvidosas ou falsas. 6 As crenças que se revelem
capazes de superar este teste indubitabilidade — isto é, das quais seja
absolutamente impossível duvidar — constituem as bases sólidas nas
quais todo o conhecimento vai ser fundado. É nisto que consiste o
método cartesiano da dúvida.
DÚVIDA METÓDICA
4. O cogito
4.1 Eu penso, logo existo
Como acabámos de ver, a dúvida põe em questão as crenças que têm
por base seja os sentidos seja a razão. Nem a razão nem os sentidos,
portanto, são capazes de fornecer verdades indubitáveis. A conclusão a
tirar parece ser óbvia: o conhecimento não é possível. O projeto de
investigação das nossas crenças, aparentemente, em vez de descobrir
verdades indubitáveis que fundem as nossas convicções acerca do
mundo e garantam a sua verdade, mergulha-nos no mais profundo
ceticismo. Descartes — parece daí resultar — não é apenas um cético,
mas o mais extremo e radical dos céticos.
Mas é Descartes, de facto, um cético? Não. O objetivo dos céticos é
mostrar que não existe conhecimento. O objetivo de Descartes é o
oposto: provar que existe conhecimento, isto é, crenças de cuja verdade
estamos completamente seguros. O ceticismo é, portanto, apenas
aparente, o resultado provisório da estratégia de Descartes para
mostrar que existem verdades indubitáveis. Descartes descreve a forma
como chega à primeira verdade deste tipo a partir da dúvida do
seguinte modo:
[N]otei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era de todo necessário
que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade: eu penso, logo
existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não
eram capazes de a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro
princípio da filosofia que procurava. (Discurso do Método, pp. 50–51.)
O raciocínio de Descartes é o seguinte: mesmo que tudo aquilo em que
acredita seja duvidoso ou falso, como a dúvida sugere, há pelo menos
uma coisa que tem de ser verdadeira para que possa duvidar, a saber, a
sua própria existência e, portanto, a sua existência é uma verdade
indubitável. Isto é, Descartes está convencido de que o pensamento não
pode existir por si só, e como o pensamento existe — uma vez que a
dúvida é uma forma de pensamento —, tem de existir necessariamente
uma entidade em que o pensamento ocorra. Essa entidade é o «eu»,
cuja existência é, portanto, uma verdade indubitável. É por isso que
Descartes pode afirmar «Eu penso, logo, existo». Descartes não é,
portanto, um cético. Ao contrário dos céticos, que, como vimos
anteriormente, constroem argumentos com o objetivo de mostrar que
não é possível justificar racionalmente nenhuma das nossas crenças,
Descartes usa a dúvida com o objetivo contrário, isto é, como um meio
para certeza. Ao levar a dúvida ao extremo, tornando-a hiperbólica, a
impossibilidade da dúvida torna-se evidente, pois no próprio ato da
dúvida descobrimos a verdade indubitável da nossa existência. Esta
descoberta vai ser usada por Descartes como o ponto de partida do seu
projeto filosófico-científico.
A mente, diretamente e
sem qualquer raciocínio,
Eu existo; eu penso; um
Intuição percebe claramente e
triângulo tem apenas três lados.
distintamente algo como
verdadeiro.
COGITO
5. Deus
A descoberta do cogito permite a Descartes fundar em bases sólidas o
que foi posto em causa pela dúvida metódica e, por extensão, a sua
ciência mecanicista. Mas, em si mesmo, o cogito não constitui um
grande avanço. Tudo o que Descartes provou até agora foi que uma
substância que consiste unicamente no pensamento existe. Tanto
quanto sabemos nesta altura, é perfeitamente possível que para além
do cogito e dos seus pensamentos nada mais exista, uma posição
hipotética a que os filósofos chamam solipsismo. 12 Para avançar e
superar o solipsismo, Descartes precisa de provar que existem outras
entidades para além do cogito.
A sua estratégia para atingir este fim vai ter três partes. Na primeira,
Descartes vai provar que Deus existe. Descartes precisa de o fazer não
apenas para afastar o solipsismo mas sobretudo para poder provar que
aquilo que conhecemos com clareza e distinção é verdade. Na segunda,
vai mostrar que dessa existência se segue a fiabilidade da razão e,
portanto, que aquilo que conhecemos clara e distintamente é
indubitável. Por último, Descartes vai mostrar que o mundo físico
existe. Comecemos pela primeira.
Descartes pensa que cada uma das premissas deste argumento é uma
verdade clara e distinta e que, portanto, demonstrou — no sentido
matemático, isto é, indubitavelmente — que Deus existe. O primeiro
passo do cogito para fora de si próprio está assim dado. O cogito não
está sozinho. A análise que fez das suas ideias revelou a existência
indubitável de Deus.
TIPOS DE IDEIAS
6.2 O erro
Para já, porém, temos de lidar com outro problema. Se Deus é perfeito
— e, portanto, não é enganador — e fomos criados por Deus, como se
explica o erro, isto é, como se explica que façamos juízos falsos? Como
se explica que o erro seja possível num universo criado por um Deus,
que é sumamente bom, sábio e poderoso?14
Descartes explica o erro distinguindo dois tipos de pensamentos, os
que dependem do entendimento e os que dependem da vontade ou
livre-arbítrio. Embora aquilo que conhecemos pelo entendimento seja
indubitavelmente verdade, o nosso entendimento é limitado, pois há
muita coisa que é incapaz de compreender, ao contrário do intelecto
divino, que compreende tudo. Por outro lado, a nossa vontade tem uma
capacidade infinita e pode escolher afirmar ou negar algo que o nosso
entendimento não compreende completamente e levar-nos assim ao
erro:
Então, de onde nascem os meus erros? Apenas e unicamente de que, como a vontade
tem um campo mais lato que o entendimento, não a contenho dentro dos mesmos
limites, mas também a estendo às coisas que não compreendo: por ser indiferente a
elas, a vontade deflete facilmente do bom e do bem e, deste modo, não só erro como
também peco. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, pp. 173.)
Os erros resultam desta assimetria entre o nosso entendimento e a
nossa vontade. Os erros acontecem quando a vontade afirma ou nega
uma proposição que o entendimento não compreende completamente
e resultam, assim, do nosso livre-arbítrio. Isto explica, por um lado, por
que erramos e, por outro, mostra que Deus, embora nos tenha criado,
não é o responsável por esses erros.
6.4 O mundo
Descartes pensa que é possível provar que a crença na existência do
mundo é verdadeira. Para o fazer, ele usa um procedimento
semelhante ao que utilizou para provar a existência de Deus: constatar
que temos certas ideias e perguntar quais as suas causas. Ele raciocina
do seguinte modo:
O cogito tem em si ideias que associa com objetos físicos. Qual é a
causa dessas ideias? Uma resposta possível a esta pergunta é que estas
ideias têm origem no cogito. Mas, diz Descartes, o cogito não pode ser a
causa destas ideias, porque elas são produzidas sem a sua cooperação e
frequentemente contra a sua vontade (temos perceções de objetos
físicos mesmo quando não queremos). No entanto, temos uma grande
propensão para acreditar que a causa das ideias que temos, por
exemplo, de uma certa casa ou árvore, é uma dada casa ou árvore, que
existe exterior e independentemente de nós. Ora, se as causas destas
ideias não fossem estes corpos físicos, Deus seria enganador, dado que
nos teria criado com a propensão a crer que estas nossas ideias têm
como causa os objetos físicos e não seria isso o que aconteceria. Mas,
como já vimos, Deus é perfeito e, por isso, não pode ser enganador.
Portanto, termos esta propensão pode apenas significar que são os
corpos físicos a causa destas ideias e, consequentemente, que os corpos
físicos existem:
Ora, não sendo Deus enganador, é absolutamente manifesto que ele não introduz em
mim essas ideias, nem imediatamente por si próprio, nem também por meio de outra
criatura […] Porque, não me tendo Deus dado absolutamente nenhuma faculdade para
conhecer isto, mas, pelo contrário, uma grande propensão para crer que elas são
emitidas pelas coisas corpóreas, não vejo por que se possa compreender que ele não é
enganador, se estas ideias fossem emitidas por outras que não as coisas corpóreas. E,
portanto, as coisas corpóreas existem. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, pp.
209.)
Em resumo, Deus é o nosso criador e não é enganador. Temos uma
grande propensão para atribuir a objetos físicos a causa das nossas
ideias de objetos físicos. Portanto, os objetos físicos são a causa dessas
ideias e, claro, existem objetos físicos.
Descartes conseguiu, assim, recuperar todas as crenças que a dúvida
colocou em suspenso. E embora os nossos sentidos não sejam nunca de
inteira confiança, é possível provar a verdade das nossas crenças mais
fundamentais se, em vez de darmos primazia aos sentidos, como
normalmente fazemos, nos guiarmos pela razão.
Poderemos pensar que ganhámos muito pouco ao fazermos este
trajeto. Afinal, já acreditávamos que as proposições das Matemáticas
são verdadeiras e que o mundo exterior existe. Contudo, há uma
diferença substancial entre a posição em que nos encontrávamos no
começo e a atual. Na altura, acreditávamos que essas crenças eram
verdadeiras, mas não sabíamos efetivamente que o eram. Agora, com a
garantia divina, não apenas acreditamos mas sabemos que as nossas
crenças são verdadeiras. Passámos da mera crença para o
conhecimento e isso, para Descartes, é uma diferença substancial
porque passámos a ter a certeza da verdade daquilo em que
acreditamos.
7. Críticas
Ao iniciarmos o estudo de Descartes, vimos que o seu objetivo era
formular uma teoria do conhecimento que só aceitasse como tal as
crenças que fossem indubitáveis. Se Descartes, como pretende, tiver
sido bem sucedido, ele provou que as proposições fundamentais da
metafísica — o cogito, Deus e o mundo — são verdades indubitáveis, e
está agora em condições de deduzir delas os princípios fundamentais
da sua física mecanicista.
Mas terá Descartes sido bem sucedido? Desde o início, os seus
críticos chamaram a atenção para dificuldades importantes no seu
pensamento. A mais famosa é, sem dúvida, o chamado Círculo
Cartesiano. As outras objeções são de David Hume.