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ISSN 2316-266X, nº 5
ISSN 2316-266X, nº 5
Anais do 5º CONINTER - Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidade
Brasília-DF, UnB
23 a 26 de novembro 2016
1958 p. : il ; color. ; texto em português.
Tipo de Suporte: Publicação digital
V CONINTER - Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades, Brasília-DF, UnB - 23 a 25 de novembro 2016
ISSN 2316-266X, nº 5
Sumário
GT: 1 - Ciências Sociais, Literaturas e Artes 17
Coordenadores: Dostoiewski Champangnatte e Marcus Fabiano Gonçalves
A TRANSLITERATURA NA REDE SOCIAL FACEBOOK: REFLEXÃO E ANALISE DE UMA ESCRITA DIGITAL 18
Autores: DE OLIVEIRA, Ocinei Trindade; BARRETO, Simone Rodrigues; MARTINS, Analice de Oliveira
DIREITO, SUBJETIVIDADE E ARTESANIA NA PROPOSTA PEDAGÓGICA DE LUÍS ALBERTO WARAT 31
Autores: BAHIENSE, Ursula; BARRETO, Ana Carolina; ARRUDA, Camila
ESTÉTICA E ENGENHARIA: UMA DISCUSSÃO DAS POSSIBILIDADES PARA ALÉM DA RACIONALIDADE
TECNOLÓGICA 42
Autores: AUZANI, ADRIANA; RODRIGUES , JOÃO BARTOLOMEU;DA SILVA, LEVI LEONIDO FERNANDES
KOBRA E SRUR: OBRAS PARA UMA ARTICULAÇÃO ENTRE ARTE E ATIVISMO 51
Autores: PEREIRA, Daniele Prates; MORAES, Denise Rosana da Silva
O DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA RETRATADO NO CONTO “AS MÃOS DOS
PRETOS” 61
Autores: FERREIRA, Paula Helena Nacif Pereira Pimentel; ALMEIDA, Veronica de Andrade Martins de
O PROGRAMA MORAR FELIZ NOS DISTRITOS MUNICIPAIS DE CAMPOS DOS GOYTACAZES/RJ: IMPACTOS
AMBIENTAIS E CONFLITOS SOCIAIS 455
Autoras: Maria Alice Ribeiro de Oliveira Pohlmann; Teresa de Jesus Peixoto Faria
CONCEPÇÃO DE MEDIAÇÃO NA LEI Nº 13.140/2015: UMA ANÁLISE EM FACE DAS ESCOLAS DE MEDIAÇÃO
FRANCESA E NORTE-AMERICANA 1217
Autoras: REBOUÇAS, Gabriela Maia; MARQUES, Verônica Teixeira; CERULLO, Daniela Campos
MODELOS DE MEDIAÇÃO E TRATAMENTO DE QUESTÕES FAMILIARES 1226
Autores: NASCIMENTO, Verônica Batista; BORGES, Camilla Gerarde Barbosa; SANTOS, Ricardo Fonseca
MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA COMO VIA DE ACESSO À JUSTIÇA. ANÁLISES COMPARATIVO
CUBA VS BRASIL 1239
Autores: LEGRÁ FLEITAS, Mirel; ESTEVES VENTURA, Rafael; SOARES MEIRELLES, Delton Ricardo
MEDIAÇÃO PENAL: UMA VIA DE ACESSO À JUSTIÇA CRIMINAL HUMANIZADA 1254
Autora: ANA PAULA FARIA FELIPE
LEGISLAÇÃO versus PRÁTICA: O PODER JUDICIÁRIO ESTÁ PRONTO PARA
RECEBER A MEDIAÇÃO? 1265
Autores: ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende; NUNES, Thais Borzino Cordeiro
EXPERIÊNCIA DA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS NO CENTRO DE ASSISTÊNCIA JURÍDICA DA UNIVERSIDADE
FEDERAL FLUMINENSE 1278
Autores: YAGODNIK, Esther Benayon; MEIRELLES, Delton Ricardo Soares; PIMENTEL, Fernanda Pontes
A UTILIZAÇÃO DE MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E
A EXPERIÊNCIA DA CÂMARA DE CONCILIAÇÃO E ARBITRAGEM DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA FEDERAL 1288
Autor: FACCI, Lucio Picanço
MEDIAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO E O EXEMPLO DO SISTEMA INTERNACIONAL DE SOLUÇÃO PACÍFICA DE
CONTROVÉRSIAS: A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI Nº 13.140/2015 COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO 1302
Autora: LARANJA, Lara Silva
DIREITO PENAL E REFORMA PSIQUIÁTRICA: UMA CONCILIAÇÃO POSSÍVEL? 1318
Autores: BRUM, André Luiz de Oliveira; CEDARO, José Juliano; NASCIMENTO, Verônica Batista;
BORGES, Camilla Gerarde Barbosa
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa se propõe analisar e refletir sobre o papel da escrita pessoal no Facebook,
suas possíveis conexões literárias e transliterárias, observando alguns conceitos
teóricos e filosóficos da literatura. Investigam-se supostas influências e transformações
por meio do Facebook sobre a literatura canônica, a importância do livro em tempos de
Internet, o interesse por narrativas ficcionais, biográficas e autobiográficas, além de
observar o comportamento de autores que integram a sociedade em rede. A escrita na
rede social seria também literatura?
Um dos pioneiros da Informática, o americano Ted Nelson adotou a expressão
“transliteratura” para se referir à uma prática de escrita de documentos não
hierarquizados, compartilhados de modo livre e associados a todos os tipos de
links possíveis em rede. Nelson o criador dos termos hipermídia, hipertexto, hiperlink,
transclusão, transcopyright, virtualidade, entre outros. A transliteratura envolve a
literatura eletrônica ou literatura digital e outras mídias na web. Ela está presente
diariamente no Facebook, onde se mescla escritura íntima e pessoal com qualquer outra
referência de escrita, além de utilizar e reutilizar textos com recursos audiovisuais, em
constantes links que evidenciam o hipertexto na rede.
A metodologia se constitui por pesquisa bibliográfica e por estudo de caso de timelines
de alguns usuários da rede que se dedicam também às práticas literárias. Buscou-se
averiguar se há manifestação transliterária em algumas postagens na rede Facebook.
O trabalho se justifica pela escassa fortuna crítica sobre o objeto deste estudo e pela
contribuição acadêmica para o tema abordado.
Em pleno século XXI, ainda se pergunta: o que é e para que serve a literatura? A
ensaísta e pesquisadora da Universidade de Campinas, Marisa Lajolo, faz esses
questionamentos no pequeno livro O que é literatura (1982), mas não oferece resposta
fácil e pronta. Cabe ao leitor descobrir e desvendar a resposta. Entre várias observações
conceituais da obra, é citada a opinião do canadense Marshall McLuhan, teórico da
comunicação que cunhou a expressão “aldeia global” e que previu a Internet trinta
anos antes de sua criação. A um grupo de escritores renomados, certa vez, McLuhan
teria dito que eles se tornariam extintos: “Já não serve para nada escrever e publicar
livros” (LAJOLO apud McLUHAN, 1982, p.7), afirmou. A literatura canônica na era
digital estaria adaptada aos novos tempos? Não podemos afirmar se McLuhan estaria
desconfortável diante das infinitas possibilidades de escrita e leitura na Internet, já
que o número de escritores aumentou significativamente em escala mundial. Em
1985, Italo Calvino arriscou prever a literatura no século XXI que, segundo ele, seria
marcada pela leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência.
As análises e reflexões do escritor italiano estão na obra Seis propostas para o próximo
milênio: lições americanas (1990), e as observações publicadas servem para especularmos
ainda sobre a escrita presente no Facebook e nas redes digitais que aparentam possuir
tais características.
O sociólogo espanhol Manuel Castells é um pioneiro quando se trata de pesquisar
os reflexos da sociedade em rede, na economia e na convivência social em todo o
mundo, a partir do fenômeno da Internet. Desde 1979, na Universidade da Califórnia,
é um tradutor sofisticado das transformações proporcionadas pela web. A “Sociedade
em Rede”, termo empregado por ele, caracteriza uma sociabilidade apoiada numa
exemplo, Twitter, Google Plus e Instagram. Em 20131, de acordo com dados do Netview,
do IBOPE Media, 53,5 milhões de usuários ativos da internet no Brasil tinham conta
em redes sociais como Facebook, Twitter, MySpace, H15, Beebo e Friendster. Essas
páginas e outras agrupadas na subcategoria comunidades, que inclui também blogs,
microblogs e fóruns, atingiram o equivalente a 86% dos internautas ativos da internet
no período. No mesmo mês do ano passado, esse total era de 40,6 milhões de usuários,
um crescimento de aproximadamente 15%.
No Brasil, a febre das redes sociais não para de crescer. De acordo com pesquisa do
Instituto Nielsen2, feita em julho de 2010 em nove países, os brasileiros são os que
têm maior presença nas mídias de relacionamento virtual. Praticamente nove em cada
dez pesquisados por aqui têm contas no Facebook e no Twitter, entre outras mídias. O
Brasil supera com folga países altamente conectados, como Japão e Estados Unidos.
Embora o Facebook continue ganhando usuários, há muito deixou de ser a rede social
que mais cresce. Segundo uma pesquisa feita com 170 mil pessoas em 32 países pela
consultoria GlobalWebIndex,3 o número de usuários ativos do Facebook diminuiu 3% em
2013. No mesmo ano, o Pinterest (um site de compartilhamento de imagens) cresceu
6%. O LinkedIn (rede de relacionamento profissional) aumentou 9%. E o Instagram (de
imagens), 23%. O WhatsApp (rede de mensagens comprada pelo Facebook) ultrapassou
os 400 milhões de usuários em quatro anos. O Facebook juntou apenas 145 milhões no
mesmo período. O número de fotos publicadas todos os dias na rede Snapchat (400
milhões) já é maior que no Facebook (350 milhões).
Com a proposta de compartilhar o que se desejar, o Facebook é um site e serviço de rede
social digital lançado em 4 de fevereiro de 2004 nos Estados Unidos. Em 4 de outubro
de 2012, o Facebook atingiu a marca de 1 bilhão de usuários ativos, sendo por isso a
maior rede social em todo o mundo. Em média, 316.455 pessoas cadastraram-se nele,
por dia. Os usuários devem se registrar antes de utilizar o site, e logo após, podem
criar um perfil pessoal, adicionar outros usuários como amigos e trocar mensagens,
incluindo notificações automáticas quando atualizarem o seu perfil. Além disso, os
usuários podem participar de grupos de interesses comuns de outros utilizadores,
organizados por escola, trabalho ou faculdade e outras características; categorizar
seus amigos em listas como “as pessoas do trabalho” ou “amigos íntimos”. O nome
do serviço foi inspirado no nome do livro dado aos alunos no início do ano letivo por
algumas administrações universitárias nos Estados Unidos. O objetivo do livro era
ajudar os alunos a conhecerem a comunidade estudantil. De acordo com o regulamento
do próprio site, o Facebook permite que qualquer usuário que declare ter pelo menos 13
anos de idade possa se tornar usuário registrado do site.
O Facebook foi fundado por Mark Zuckerberg e por seus colegas de quarto da faculdade
Eduardo Saverin, Dustin Moskovitz e Chris Hughes. A criação do site foi inicialmente
limitada pelos fundadores aos estudantes da Universidade de Harvard, mas foi
expandida para outras faculdades na área de Boston, da Ivy League e da Universidade
de Stanford. O site gradualmente adicionou suporte para alunos em várias outras
universidades antes de abrir para estudantes do ensino médio e, mais tarde, para
1 http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/paginas/numero-de-usuarios-de-redes-sociais-ultrapassa-46-milhoes-de-brasileiros.aspx
2 http://exame.abril.com.br/revista-voce-sa/edicoes/153/noticias/sucesso-nas-redes-sociais, acessado em 05/01/2016
3 http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/03/bcansou-do-facebookb-50-outras-redes-sociais-que-estao-bombando.html,
acessado em 05/01/2016
Se há um espaço onde pode-se escrever de tudo, ler, ver e ser de tudo um pouco, tal
ambiente é a rede mundial de computadores, uma espécie de Olimpo ou Oásis para
aqueles que priorizam o comunicar-se. No território conectado a qualquer destino,
direção e imagens, os internautas ocupam posições distintas ou semelhantes, navegam
em um oceano líquido e fluido inspirado na concepção de Bauman (2005), ultrapassam
fronteiras que parecem sem limites. A rede social é um desses lugares que sugerem
liberdade de expressão e algum empoderamento discursivo. Vários estudiosos de
tecnologias da informação e comunicação social afirmam que nunca escrevemos e lemos
tanto se compararmos esta era a qualquer período histórico passado. Em Marcuschi e
Xavier encontramos uma citação de Chartier que representa um pouco dessa literatura
que transcorre sem compromisso com linearidades no ambiente virtual: “Do rolo ao
códice medieval, do livro impresso ao texto eletrônico, várias rupturas menores dividem
a longa história das maneiras de ler (MARCUSCHI&XAVIER apud CHARTIER, 2010,
p.207). Trata-se do diálogo das interfaces semióticas com o hipertexto, um protocolo
oficial da tecnocracia, apontada pelos autores como a interpretação de uma nova
ordem mundial.
Nestes movimentos tecnocráticos, as redes sociais digitais vêm ocupando posição
de destaque e de grande adesão. Recentemente, realizamos uma pesquisa com trinta
estudantes de ensino médio de uma escola pública da cidade de Campos dos Goytacazes
a respeito do uso de redes sociais digitais (2016). Queríamos saber se nesses ambientes
de redes eles identificavam algum tipo de consumo literário ou interesse por literatura.
A maioria respondeu que considerava literatura tudo o que é postado na rede social
como frases pessoais, comentários, citações de alguém famoso, músicas, fotos, vídeos,
desenhos ou pintura. Ainda se pergunta o que pode ser considerado literatura neste
século. Não deixa de ser pertinente mencionar o prêmio Nobel de Literatura concedido
ao cantor americano Bob Dylan pela Academia Sueca em 2016, fato que repercutiu na
imprensa mundial eque gerou debates nas redes sociais digitais como o Facebook.
Dylan foi laureado não pelos dois livros que publicou, obras inclusive consideradas
inexpressivas por setores da crítica literária. A premiação máxima para o artista se
deveu às suas composições musicais. As letras de Dylan o consagraram como escritor.
Seria uma demonstração de que a literatura ultrapassou os limites da oralidade e
da escrita no século XXI, confirmando os aspectos transliterários que a web ajuda a
propagar? De acordo com Eagleton, analisar uma obra e seu suposto valor literário
exige algumas ponderações e considerações:
Assim como uma obra pode ser considerada como filosofia num século, e como
literatura no século seguinte, ou vice-versa, também pode variar o conceito do
público sobre o tipo de escrita considerado como digno de valor. Até as razões
que determinam a formação e o critério de valioso podem se modificar. Isso,
como disse, não significa necessariamente que venha a ser recusado o título de
literatura a uma obra considerada menor: ela ainda pode ser chamada assim,
no sentido de pertencer ao tipo de escrita geralmente considerada como de
valor. Mas não significa que o chamado “cânone literário”, a “grande tradição”
inquestionada da “literatura nacional”, tenha de ser reconhecida como um
construto, modelado por determinadas pessoas, por motivos particulares, e num
determinado momento. Não existe uma obra ou uma tradição literária que seja
valiosa em si, a despeito do que se tenha dito, ou se venha a dizer, sobre isso”
(EAGLETON, 2001, p.16).
A obra de Bob Dylan pode ser vista, lida ou escutada e sua importância literária pode se
manifestar perante o público de diferentes maneiras, assim como os escritos de alguém
que não alcançou tamanha fama ou reconhecimento, mas que pode tentar se mostrar
em redes sociais digitais como o Youtube ou Facebook, por exemplo. Para a crítica
literária norte-americana N.Katherine Hayles, quase toda literatura contemporânea
já é digital, com exceção de poucos livros produzidos por editoras de belas-letras,
“a literatura impressa consiste de arquivos digitais ao longo da maior parte de sua
existência”(HAYLES, 2009, p.163). Ela considera a literatura digital como componente
importante do cânone do século XXI. Hayles chama a atenção sobre a literatura
digital em vigor na web, onde a textualidade impressa e a eletrônica se interpenetram
profundamente.
3.1. O FACEBOOK FEITO POR ESCRITORES E HIPERTEXTOS
No ano de 2014, a escritora Nélida Piñon participou do programa de entrevistas Roda
Viva da TV Cultura. A autora de Sala de Armas e outras obras, divulgou que tinha
acabado de entrar para o Facebook. Confessou que não sabia como funcionava, mas
que ouviu falar que a rede social era uma maravilha, e que seus assessores cuidariam
de sua participação e publicações na página registrada em seu nome. Ela e outros
membros da Academia Brasileira de Letras integram a rede Facebook e realizam
registros de textos, fotografias, vídeos, links, agendas de trabalho, eventos, assim
como qualquer outro usuário. A entrevista de Nélida Piñon feita em uma emissora
de televisão foi transformada em vídeo e postada no canal Youtube; recebeu diversos
comentários de internautas e admiradores da escritora; e em seguida, o mesmo vídeo
foi parar na página pessoal da escritora no Facebook e compartilhado centenas de
vezes por usuários da rede e de outras mídias digitais.
Na ocasião, toda a fala de Nélida Piñon e de seus entrevistadores, além dos comentários
do Youtube e do Facebook, tudo poderia ser transcrito e transformado em vários textos
ou subtextos, além de edições e reedições das imagens transmitidas originalmente ao
vivo no canal de televisão. A web abrigou um programa de entrevistas que pode ser
retransmitido por meio de diversos recursos tecnológicos e redes sociais. O Facebook,
de algum modo, fez com que Nélida Piñon alcançasse mais projeção, além de suas
obras e suas opiniões, mesmo entre aqueles que nunca leram um de seus livros, ou nem
mesmo conhecia a escritora de nome ou de feições. Todo este trânsito de informações
textuais nas redes assume um aspecto transliterário, e também publicitário, indo
além da palavra escrita ou dita oralmente, possibilitando a promoção de conteúdos
audiovisuais que se interconectam de alguma maneira a partir do interesse de usuários
reunidos em rede. A transliteratura se espalha no ambiente virtual em velocidade
vertiginosa, o que pode causar impactos em seus usuários e leitores.
É sabido que, desde o fim do século XX, surgiram novos conceitos de literatura, leitura
e crítica. Em Teoria da Literatura: uma introdução (2001), Eagleton comenta sobre estas
alterações e das mudanças conceituais que não teriam sido percebidas pela maioria
dos estudantes de literatura, nem por leitores em geral. O filósofo e crítico literário
britânico demonstra não se preocupar em distinguir “fato e ficção” quando se tenta
definir o que vem a ser literatura:
Talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou “imaginativa”,
mas porque emprega a linguagem de forma peculiar. Segundo essa teoria,
a literatura é a escrita que, nas palavras do crítico russo Roman Jakobson,
representa uma “violência organizada contra a fala comum”. A literatura
transforma e intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da
fala cotidiana (EAGLETON, 2001, p.2).
Apesar desse ponto de vista de Eagleton, verificamos que a fala cotidiana e a oralidade
passaram a ocupar cada vez mais espaço na web, especialmente em redes sociais
digitais como é o caso do Facebook. Em certa entrevista, o pensador italiano Umberto
Eco chegou a declarar de modo contundente uma crítica à Internet que, segundo ele,
oferece o mesmo espaço para imbecis e um Prêmio Nobel poderem se expressar.
Conceitos ou preconceitos à parte, é visível e popularização da escrita na web, e como
as redes sociais digitais ajudam a promover literaturas e leituras.
O jornalista e escritor Edney Silvestre, autor de alguns romances como Vidas Provisórias
(2013), é outro integrante assíduo do Facebook que faz uso da rede para promover direta
ou indiretamente suas obras, além de textos ou gêneros literários de outros autores.
Apresentador do programa de televisão GloboNews Literatura, é comum encontrar em
sua página pessoal na rede trechos de entrevistas ou links sobre livros, eventos, reflexões
e abordagens literárias, além de relatos pessoais e algumas intimidades. Se o livro faz
rizoma com o mundo, segundo a constatação delleuziana, Silvestre não se priva desta
oportunidade de enaltecer seu afeto pelas letras e narrativas. Qualquer palavra ou
imagem pode fazer referência uma obra literária, filmes ou outras expressões artísticas
e filosóficas. Em uma determinada postagem no Facebook, Silvestre exibe uma
fotografia sua em Estocolmo, cidade que é usada como cenário para contar a história
do personagem Paulo, um dos protagonistas de Vidas Provisórias. Na legenda da foto,
ele destaca a inspiração que a cidade sueca proporcionou para contar a desventura de
um exilado político durante a ditadura militar brasileira. Coincidentemente, as páginas
deste livro de Edney Silvestre têm as mesmas cores básicas do Facebook: azul e branco.
A literatura é capaz de provocar todos os tipos de reações e associações, parecendo
desconhecer limites imaginários ou imagéticos.
Vários escritores que têm se dedicado a publicar livros se valem do Facebook para
tornar suas obras acessíveis e conhecidas do público. O autor capixaba Fábio Bottrel
escreveu três livros em versões impressa e eletrônica, entre eles, Platônico (2016).
Bottrel escreve ainda um folhetim que tem sido publicado semanalmente como
outrora, no jornal Folha da Manhã, da cidade fluminense Campos dos Goytacazes. Ele
costuma publicar também na versão digital do jornal, uma vez por semana, crônicas
e impressões sobre a cidade, quase sempre acrescentando reproduções de quadros,
vídeos ou trilhas sonoras musicais, sugerindo aos seus leitores que associem outras
linguagens e expressões para serem vistos, lidos ou ouvidos juntamente com seus
textos de modo híbrido e transliterário. As publicações são compartilhadas em todas
as redes sociais digitais possíveis, com destaque para o Facebook que serve de ponte
ou abrigo para os sítios onde seus escritos estão hospedados.
O leitor-internauta pode encontrar algum dos textos de Bottrel na web de diversas
maneiras desde que conectados à rede. São estratégias que o mercado editorial
também se utiliza, pois grandes e pequenas editoras de todo o mundo também estão
no Facebook para promoverem a venda de livros. O escritor Adriano Moura, autor de
A escrita não linear e hipertextual típica da Internet pode influenciar a forma tradicional
de publicar ou editar livros? Não se deve generalizar, mas já são identificadas algumas
publicações impressas que reproduzem parte do ambiente virtual. Intencionalmente
ou não, livros como É duro ser na cara na Etiópia (2013) e Todo Vícios (2014) escritos
por Maitê Proença, apresentam algumas características da web. Na primeira obra
citada, a autora reuniu mais de 100 pessoas que a seguiam em redes sociais digitais
para escreverem juntos um livro coletivo. Maitê interfere em vários textos que foram
enviados por internautas, lingando-os de algum modo, ilustrando-os de maneira
atraente e colorida, mas sem nenhuma obrigatoriedade com a leitura linear. O leitor
pode abrir em qualquer página e ler sem compromissos maiores, como se estivesse
navegando pela rede. Já no segundo livro, a escritora se concentra nas mensagens
de textos abreviadas e enviadas por telefone celular, além de emoticons utilizados em
chats e em comentários de redes digitais, utilizando-os dentro da narrativa que aborda
um casal em crise amorosa e conjugal. Poderíamos associar essas práticas ao que
Hayles identifica na literatura digital que vigora e transita pela web, onde textualidade
impressa e eletrônica se interpenetram de modo profundo:
À medida que as tecnologias literárias mudam, as subjetividades que elas
representam e informam também mudam. Como a marca do digital se relaciona
com as subjetividades representadas e evocadas pelos romances impressos
experimentais de hoje? (HAYLES, 2009, p.165).
BAHIENSE, Ursula
Doutoranda em Direito pela Universidade Veiga de Almeida
ursulabahiense@gmail.com
BARRETO, Ana Carolina
Mestra em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense. Professora
Auxiliar da Universidade Veiga de Almeida
advogada.anacarolinacb@gmail.com
ARRUDA, Camila
Mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Veiga de Almeida
Professora Auxiliar da Universidade Veiga de Almeida
camilapmbr@ig.com.br
RESUMO
O presente trabalho tem por escopo investigar as interlocuções entre o Direito, Arte e
Sociedade a partir da proposta pedagógica elaborada pelo emérito e falecido professor
Luís Alberto Warat e o seu potencial emancipatório do ser humano, sobretudo do
acadêmico de direito. A pesquisa tem por objetivo destacar a importância da crítica e
do saber na constituição de um sujeito autônomo e político enquanto trajetória para a
concretude dos direitos humanos. Para tanto, utilizar-se-á de pesquisa bibliográfica,
buscando-se em um primeiro momento discorrer sobre a necessidade de reformulação
do ensino jurídico no Brasil, introduzida pela Portaria 1886/94 do MEC, para em
seguida, refletir acerca da contribuição da proposta pedagógico-filosófica de Luís
Alberto Warat enquanto ferramenta de conscientização, efetivação e democratização
dos direitos humanos.
ABSTRACT
The present work aims to investigate the interlocutions between Law, Art and Society
from the pedagogical proposal elaborated by the emeritus and deceased professor
Luís Alberto Warat and his emancipatory potential of the human being, especially of
the academic of law. The research aims to highlight the importance of criticism and
knowledge in the constitution of an autonomous and political subject as a trajectory for
the concreteness of human rights. In order to do so, it will use a bibliographical research,
seeking in a first moment to discuss the need for reformulation of legal education in
Brazil, introduced by Administrative Rule 1886/94 of the MEC, to then reflect on the
contribution of the proposal Pedagogical-philosophical approach of Luís Alberto Warat
as a tool for raising awareness, effecting and democratizing human rights.
Michel Foucault sinaliza para o fato deste preceito filosófico ter sido obscurecido pela
conhecida prescrição délfica do “gnôthi seautón” (“conhece-te a ti mesmo”). Ensina-
nos que a noção do “conhece-te a ti mesmo” encontrava-se inicialmente vinculada ao
princípio do “cuidado de si” por uma relação de subordinação. Constituía, pois, um
dos meios para a aplicação deste princípio geral.
Ao longo do tempo, o conceito “epiméleia heautoû” foi adquirindo novos sentidos,
passando a designar uma postura diante da vida, diante do outro, diante do mundo;
uma certa forma de atenção, uma mudança de perspectiva capaz de converter o olhar
do sujeito para si mesmo, uma certa vigilância sobre suas atitudes e pensamentos; a
atuação de um conjunto de procedimentos exercidos sobre si mesmo que permitissem
ao sujeito uma transformação ética, que promovessem em sua vida a apreensão de
certos valores estéticos, constituindo-a como um obra de arte.
Em seu artigo “Nietzsche e Foucault – A vida como obra de arte”, a professora Rosa Maria
Dias põe frente a frente o pensamento de ambos os filósofos no âmbito da estética da
existência. Dias nos dá a ver a ficção entre arte e vida constantes tanto na concepção
de Nietzsche quanto na de Foucault na formulação de novos modos de existência e
elaboração de outras possibilidades de vida. Nietzsche e Foucault propõem novas
formas de se pensar a constituição da subjetividade. Nas palavras de Dias:
Assim, para Nietzsche, esse tornar-se o que se é não é uma volta ao eu verdadeiro,
nem o desmascaramento dos obstáculos fictícios que entravam a cultura do eu.
O “eu” uma criação, uma construção, um cultivo de si permanente. Para ousar
ser um si mesmo é preciso antes de tudo de uma tarefa: dar estilo ao próprio
caráter, acomodando os vários aspectos de sua própria natureza, inclusive as
fraquezas, colocando-as em uma totalidade aprazível de acordo com um plano
artístico.
Nessa tarefa de se tornar sem cessar o que se é, de ser mestre e escultor de si
mesmo para enfrentar o sofrimento do mundo sem Deus, as técnicas do artista
e principalmente as do poeta e do romancista podem ser de grande valia, já
que elas mostram como é possível escrever para nós um novo papel, um outro
personagem com novo caráter. (DIAS, 2008, p. 49) É imperioso enfatizar que o
cuidado de si e a estética da existência, são apresentados por Foucault enquanto
um mecanismo de resistência ao poder político e as relações e jogos de poder
que procuram instaurar estados de dominação em suas linhas de atuação, como
foi o caso do fascismo e do stalinismo. Foucault ressalta que a transformação
ética de si mesmo implica necessariamente numa transformação do mundo.
De acordo com esta perspectiva, a estética da existência pressupõe uma ética, uma
certa atitude diante da vida que se desvincula das estruturas sociais, econômicas e
políticas que nos são impostas. A relação de si para consigo mesmo perpassa e está
conectada às relações de si para com o Outro que, para Foucault, se apresenta como
uma instância indefinida e ao mesmo tempo um parceiro indispensável ao seu proprio
processo de subjetivação.
Ao propor a ética do cuidado de si como prática de liberdade, Foucault enfatiza as
diversas formas de subjetivação presentes na contemporaneidade e nos explica
que é no dominio da relação de si para consigo mesmo que o indivíduo poderá se
autoconstituir enquanto sujeito moral de suas próprias ações.
3.1 A Rua Grita Dionisio: ensaios para uma nova filosofia e perspectiva de vida e
ensino
A proposta pedagógica de Luis Alberto Warat e direcionada para a transposição e
transgressão ao positivismo jurídico. Enquanto metodologia alternativa do ensino do
Direito, a pedagogia waratiana consubstancia-se na valorização do pensamento crítico,
no refinamento das capacidades de empatia e sensibilização humanas, na contestação
de padrões normalizantes tradicionalmente instituídos tanto no ensino quanto nas
demais esferas da vida.
Como mortos que falam da vida, o saber tradicional do Direito nos mostra
suas fantasias perfeitas na cumplicidade cega de uma linguagem sem ousadias,
enganosamente cristalina, que escamoteia a presenca subterranea de uma
“tecnologia da alienação”. Utopias fantasiadas de si mesmas que explicam
com razões consumidas pela história, novas formas de legitimação das práticas
ilícitas do Estado. (WARAT, 1997, p. 42)
De acordo com Warat, o ensino do Direito deve ter como fundamento ético a
solidariedade e a dignidade. Para ele, o ensino tradicional do Direito pode ser nocivo
a formação do jurista. A construção da sua pedagogia do direito propoe a indagação,
a problematização e exploração de caminhos desconhecidos, através de práticas
multidisciplinares que permitam ao acadêmico a desconstrução de conceitos pré
estabelecidos e a formulação de outros, a partir de uma nova perspectiva e visão de
mundo.
Tomando por base o pensamento de Baudrillard, o professor Warat faz uma analogia
temerosa da condição do estudante de direito, equiparando-o a condição de um refém,
dado o estado de alienação que lhe e imposto ao lhe ser negado a reflexão crítica,
autonomia de pensamento e protagonismo acadêmico.
Em referência a Freud, Warat equipara o papel dos docentes a figura da Gradiva de
Jansen, que representa o poder curativo do amor face a fantasia. De acordo com sua
pedagogia do direito, ao professor cumpre a tarefa de resgatar e salvar o aluno de seu
estado de alienação, removendo o véu da ignorância. No que tange a corporeidade
do aluno, Warat ousa propor a criação de um ambiente acadêmico impregnado por
práticas teatrais:
[...] um mágico, um ilusionista, um vendedor de sonhos, de ilusões e fantasias.
Quando eu entro numa sala proponho, imediatamente, a substituição do giz
por uma cartola. Dela sairão mil verdades transformadas em borboletas... com
meu comportamento docente, procuro a utopia, falsifico a possibilidade de
produção de um mundo, de/e pelo desejo. Ministro sempre uma lição de amor,
provoco e teatralizo um território de carências. Quando invado uma sala de
aula se amalgamam ludicamente todas as ausências afetivas. O aprendizado
é sempre um jogo de carências. De diferentes maneiras, sempre me preocupo
em expor a crítica à vontade de verdade, partir da vontade do desejo, como
bom alquimista que sou, transformo o espaço de uma sala de aula em um
circo mágico. Assim é que executo a função pedagógica da loucura. (WARAT,
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AUZANI, ADRIANA
Doutoranda do curso em Ciências da Educação
na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
Correio eletrônico: auzani.coinf@gmail.com.
RODRIGUES , JOÃO BARTOLOMEU,
Professor da Escola das Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Trás-os-Montes e
Alto Douro. Direção do Doutoramento em Ciências da Educação. Centro de Investigação:
Instituto de Filosofia da Universidade do Porto.
Correio eletrónico: jbarto@utad.pt.
DA SILVA, LEVI LEONIDO FERNANDES
Professor Escola das Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Trás-os-Montes e Alto
Douro. Diretor da Revista Europeia de Estudos Artísticos. Direção do
Doutoramento em Ciências da Educação. Centro de Investigação em Ciências e Tecnologias
das Artes. Universidade Católica Portuguesa - Porto. Portugal.
Correio eletrónico: levileon@utad.pt.
RESUMO
O objetivo deste artigo é apreender a racionalidade tecnológica no contexto da
Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Única no país com esta denominação, ela
tem a maioria dos seus cursos voltados à formação de engenheiros no Brasil. Junto a essa
formação, incluímos o estudo da estética, como discussão alternativa, por entendê-la
significativa na formação social do sujeito enquanto dimensão emancipatória gerada
no movimento de criação e de inovação tecnológica e que hoje é deixada em segundo
plano nesse contexto. Este artigo constituiu-se a partir da revisão das ideias de Herbert
Marcuse, Adorno, Habermas e Horkheimer, Rancière, os quais abordam a presente
temática sob a perspectiva da autonomia do sujeito em oposição às interpretações
normativas e tecnocráticas da sociedade.
ABSTRACT
The purpose of this article is to understand the technological rationality in the context
of the Federal Technological University of Paraná. Unique in the country for its name,
the majority of its courses are aimed at training engineers in Brazil. Along with such
training, the study of aesthetics has been included, as an alternative argument, by
understanding its significance in the social formation of the subject as an emancipatory
dimension generated in the movement of creation and technological innovation which
has today been third-stringed in this context. This article arose from the review of
Herbert Marcuse, Adorno, Horkheimer and Habermas’ ideas, Rancière, which address
the present theme in the perspective of the individual’s autonomy as opposed to the
normative and technocratic interpretations of society.
Key-words: aesthetics, theater, engineering.
INTRODUÇÃO
A formação do profissional, ética e cultural para antecipar o desenvolvimento científico
e tecnológico, requisitado na sociedade mundial, traz preocupações sobre a formação
do sujeito da ação que atua na sociedade.
Nesse contexto de formação tecnológica, está a Universidade Tecnológica Federal do
Paraná- UTFPR a qual nasce como uma escola de Aprendizes e artífices em 1909, no
Paraná, Brasil, com o objetivo de qualificar mão-de-obra para a indústria nascente
daquela época e que, desde então, ocupa-se em formar, com padrão de excelência,
vários profissionais em nível técnico e acadêmico em diversas áreas do conhecimento.
A discussão aqui circunscreve-se aos cursos de engenharia da UTFPR.
Dentre os teóricos buscados estão Herbert Marcuse, Theodor W. Adorno, Jungen
Habermas e Max Horkheimer, os quais abordam a presente temática sob a perspetiva
da autonomia do sujeito em oposição às interpretações normativas e tecnocráticas da
sociedade.
Neles, busca-se o entendimento da formação do engenheiro pautada num indivíduo
ativo e crítico potencializada pela via estética, por ela proporcionar o habitar e o
construir contextos sociais, políticos e culturais os mais diversos possíveis; compreender
a função dela encontrar a universalidade que a arte contém em si, ciência, história e
humanidade, ou seja, pela via da Estética conjugam-se, com efeito, o sensível e a ideia,
um elo que, do mundo das perceções, vai direto à alma do universo. Para tanto, a
linguagem escolhida, a arte dramática, é o teatro, pelo fato de essa arte traçar um modelo
global de racionalidade, onde a forma de constituição estética “é uma assembleia, na
qual agentes do povo tomam consciência da sua situação e discutem seus interesses
(...) é o ritual purificador onde uma coletividade é posta na plena posse das energias
que lhe são próprias”( RANCIÈRE, 2010, pp. 11,13).
O objetivo deste artigo é compreender a racionalidade tecnológica no contexto da
UTFPR. Única no país com esta denominação, ela tem a maioria dos seus cursos voltados
à formação de engenheiros no Brasil. Junto à formação tecnológica, incluímos o estudo
da estética, como discussão alternativa, por entendê-la significativa na formação social
do sujeito enquanto dimensão emancipatória gerada no movimento de criação e de
inovação tecnológica.
Este estudo da racionalidade tecnológica com estética traz uma discussão sobre a
importância de se estabelecer um o diálogo entre a objetividade e a subjetividade que
envolve processo de formação do engenheiro na UTFPR.
Assim, a discussão da proposição intelectual da estética vir junto à formação do
engenheiro, mediada pelo teatro, é a possibilidade de por em diálogo a razão
tecnológica, ontológica, com a razão estética, subjetiva resultando em uma formação
do saber-fazer-para quê da tecnologia, ou seja, um engenheiro dotado de um saber e
de uma formação que vai do olhar à ação de forma emancipada.
1. ESTÉTICA, UM CONTRAPONTO NA FORMAÇÃO TECNOLÓGICA
A discussão das instâncias, por vezes antagônicas, da razão estética e da razão
tecnológica exigem, neste momento, um entendimento de conceitos que permeiam a
formação tecnológica.
ABSTRACT
The research aims to articulate the academic debate about activism and art with two
pieces of Brazilian artists: from Eduardo Kobra, “Free Ana” and from Eduardo Srur,
“The Dead “. The research will count with a bibliographic data base to discuss art
and activism, and also the art-activismo or artivism. To demonstrate activist actions
through art the nominated pieces will be analised and their political sense will be
shown from their creator artists meaning and also an approach of this sense with the
discussions of Rancière (2009).
INTRODUÇÃO
A pesquisa proposta tem como tema o ativismo. Percebem-se atualmente várias formas
de atuação dos sujeitos por mais voz e visibilidade as suas demandas. Mais ainda, é
perceptível a utilização das mais variadas formas de atuação dos sujeitos na tentativa
de divulgar suas lutas, desde manifestações, ocupações, até a utilização da arte. Este
último é o cerne da pesquisa, que questiona se a utilização da arte como transgressão
e discurso de demandas políticas e sociais pode ser visto como ativismo.
Com base na pesquisa realizada, a arte, além de estética e poética, pode trazer consigo
um sentido político, uma mensagem carregada de ativismo. Para estabelecer uma
articulação entre a arte e o ativismo, a pesquisa analisará duas obras: uma de Eduardo
Kobra, chamada “Free Ana” e uma de Eduardo Srur, chamada “O aquário morto”,
ambos artistas brasileiros. Será apresentado o sentido político das obras, a partir da
proposta dos artistas, possibilitando o diálogo entre tais obras e o debate acadêmico
sobre ativismo, arte e o movimento denominado arte ativismo (ou artivismo).
1. MOVIMENTOS SOCIAIS E ATIVISMO
Para compreender o ativismo, antes é importante considerarmos os movimentos sociais
como palco de atuação do ativista. Contudo, movimento social não é um fenômeno
social de fácil conceituação. Utilizaremos para este debate as teorias de Gohn (2002),
que expõem os diferentes modelos de pensamento acerca dos movimentos sociais.
Existe certo consenso em definir como clássico o paradigma construído pela Escola de
Chicago, tendo iniciado suas produções a partir de 1892 com W. I. Thomas. (GOHN,
2002, p.23). De acordo com a autora, a escola via os movimentos sociais “[...] como
ações advindas de comportamentos coletivos conflituosos” (GOHN, 2002, p. 29). Para
este modelo, os líderes dos movimentos eram fundamentais, portadores de grande
carisma e deveriam ser apaziguadores.
Sobre as vertentes marxistas, Gohn (2002, p. 171) as vê como um outro modelo, que
leva em consideração a luta histórica das classes e camadas sociais subordinadas: “O
marxismo não é apenas uma teoria explicativa, mas é também uma teoria orientadora
para os próprios movimentos. Por isto muitas vezes suas análises se assemelham a um
guia de ação[...]” (GOHN, 2002, p. 173).
O panorama teórico dos novos movimentos sociais iniciou na Europa após os anos 60,
principalmente porque muitos teóricos marxistas passaram a perceber transformações
nas demandas populares, não mais referentes apenas às classes, mas também culturais
e identitárias. Com essa nova forma de pensar os movimentos sociais, a partir das
demandas, tornou-se complexa inclusive a classificação dos mesmos entre Marxistas,
Neomarxistas e dos Novos Movimentos Sociais – um campo adentra no outro.
Em pesquisa publicada anteriormente, Alli, Mussoi e Pereira (2014), com base em
Gohn (2002), assim discorreram: um dos autores mais representativos deste período
o teórico espanhol Castells, que, como já apontado, transitou entre vertentes iniciais
marxistas e, posteriormente direcionou-se para análises mais contemporâneas das
práticas de mobilizações sociais. Para o autor, a movimentação social é a mediadora
da transformação, já que estabelece um diálogo entre os grupos sociais e o Estado: Os
movimentos sociais não são agentes de transformação social. Eles possuem limites
políticos e técnicos. Estão sujeitos ao jogo do clientelismo político, em troca de demandas
Assis (2006), expressa que a definição de ativista não foi enfrentada pela academia, e
cita Jordan para tratar sobre o tema: “o que é essencial ao ativismo não é simplesmente
haver mais do que uma pessoa, como em um cinema, mas um sentido de solidariedade
em busca da transgressão. Deve haver um sentido de identidade compartilhada, que
pode ser entendido nesta etapa como pessoas reconhecendo, umas nas outras a raiva,
o medo, a esperança ou outras emoções que sintam quanto a uma transgressão”
(Jordan e Assis, 2006, p.13). Sendo assim, quando se fala em movimento social, pensa-
se em ações possíveis pelas demandas sociais que permitem a organização de uma
coletividade, direcionando-a a solução/transformação de uma situação real.
2. ARTE E ATIVISMO = ARTIVISMO
Os novos movimentos sociais como novo modelo de luta demonstraram também
novas estratégias de ação, dentre elas, o uso da mídia e da arte como instrumentos de
comunicação, como forma de dar voz a suas demandas.
A arte foi desenvolvendo ao longo do tempo um papel social, um espaço de
questionamento da realidade, do sujeito ou do próprio artista – ou de todos estes
elementos unidos.
As técnicas, os artifícios, os dispositivos de que se utiliza o artista para conceber,
construir e exibir seus trabalhos não são apenas ferramentas inertes, nem
O artista se utiliza da tecnologia a seu dispor, contudo, não para o fim a que foi criada,
mas como uma apropriação do artista e uma ressignificação.
Existem diferentes maneiras de se lidar com as máquinas semióticas
crescentemente disponíveis no mercado da eletrônica. A perspectiva artística
é certamente a mais desviante de todas, uma vez que ela se afasta em tal
intensidade do projeto tecnológico originalmente imprimido às máquinas e
programas que equivale a uma completa reinvenção dos meios. (MACHADO,
2004, p. 04).
O autor ainda se preocupa com o fato de que a arte não é um conceito fechado e
simples, mas o que é arte também se transforma historicamente. Assim, no mundo
contemporâneo, permeado de mídias comunicacionais, estas mídias, por mais que
tenham sido criadas dentro da lógica da produção e lucro, podem ser utilizadas pelos
artistas dentro desta mesma lógica:
Por mais severa que possa ser a nossa crítica à indústria do entretenimento
de massa, não se pode esquecer que essa indústria não é um monolito. Por
ser complexa, ela está repleta de contradições internas e é nessas suas brechas
que o artista pode penetrar para propor alternativas qualitativas. Assim, não há
nenhuma razão porque, no interior da indústria do entretenimento, não possam
despontar produtos – como programas de televisão, videoclipes, música pop
etc – que em termos de qualidade, originalidade e densidade significante
rivalizem com a melhor arte “séria”de nosso tempo. Não há também nenhuma
razão porque esses produtos qualitativos da comunicação de massa não
possam ser considerados verdadeiras obras criativas do nosso tempo, sejam
elas consideradas arte ou não. (MACHADO, 2004, p.11).
Pois bem, se podemos aceitar que a arte pode acontecer mesmo dentro da lógica
capitalista das mídias, dando novos significados para os produtos culturais, precisamos
discutir a possibilidade de significar estes produtos culturais como ativistas.
No Brasil, artistas e ativistas possuem em comum o desejo de contribuir para
a construção de discursos e de práticas que dialoguem de forma crítica com os
problemas de nosso tempo. [...] É o que permite o aparecimento da noção de
“artista-ativista”, termo criado pelo coletivo americano Critical Art Ensemble
(1996) para definir aqueles que, sendo ou não reconhecidamente artistas, se
apropriam das mídias e tecnologias para produzir novas formas de intervenção
cultural que seriam “artísticas” em seus modos de desenvolvimento e
operacionalização (GONÇALVES, 2012, p. 181).
O arte ativismo então surge dentro da perspectiva das ações coletivas, utilizando a arte
como instrumento de expressão de demandas sociais.
Vilas Boas (1973, p. 48), aponta que a arte engajada ou ativista se torna política, indo
seu significado além de seus atributos estéticos e escolhas técnicas: “O engajamento
com uma causa que tenha em sua gênese uma divergência com os sistemas de controle
se torna, sob este entendimento, algo já político. Nasce política”.
Artivismo é um neologismo conceptual ainda de instável consensualidade
quer no campo das ciências sociais, quer no campo das artes. Apela a ligações,
tão clássicas como prolixas e polémicas entre arte e política, e estimula os
Raposo resume em seus estudos o panorama do artivismo: nome dado a ações sociais e
políticas, por iniciativas de grupos de pessoas ou coletivos institucionalizados ou não,
utilizando de estratégias artísticas, estéticas ou simbólicas para atingir a sociedade
em relação a suas causas e reivindicações sociais. O movimento encontra na arte sua
voz, podendo expressar-se nas mais variadas linguagens, estabelecendo assim uma
conexão sensível com os interlocutores.
3. EDUARDOS AMBIENTALISTAS: ARTIVISMO DE KOBRA E SRUR
A imagem abaixo retrata a obra “O aquário Morto” de Eduardo Srur, artista brasileiro,
dentre suas obras estão variadas intervenções urbanas. Esta foi montada no aquário
de Guarujá, litoral do Estado de São Paulo. A sala principal do Acqua Mundo, com
visão de 360 graus, foi dividida ao meio, mantendo de um lado as espécies marinhas
e do outro uma composição visual com o lixo sólido recolhido das praias da região,
formando imagens impactantes para os visitantes do aquário. O artista reforça “a
importância do simbolismo da obra em que cada um escolhe o que quer para o futuro
do mar: um oceano de vidas ou um oceano morto.” (SRUR, 2014, online).
os sujeitos de forma mais profunda do que as campanhas regulares pelo cuidado com
as praias e meio ambiente em geral.
Também a obra de Eduardo Kobra possui relações com a luta ambiental. Eduardo
Kobra é um grafiteiro brasileiro reconhecido internacionalmente. Foi convidado
pela prefeitura de Moscou para pintar um mural em homenagem à bailarina Maya
Plisetskaya, e, após encerrar seu compromisso, com dicas de grafiteiros russos, se
arriscou para deixar uma mensagem pedindo liberdade para a compatriota Ana Paula
Maciel, presa na cidade de Murmansk com outros ativistas do Greenpeace após um
protesto contra a exploração de petróleo no Mar de Pechora, no Ártico, realizando
uma obra na estação de metrô Mendeleevskaya.
De acordo com ZERO HORA (2013b), Kobra denuncia em muitos de seus trabalhos
a questão da pesca predatória, do aquecimento global e dos maus tratos a animais, e
a detenção dos tripulantes do Arctic Sunrise (nome do barco em que encontravam-se
os manifestantes do Greenpeace) lhe inspirou a deixar seu recado em apoio à luta
pelo Ártico. A obra retratou um urso polar, isolado em uma placa de gelo e erguendo
uma placa onde se lê “Free Ana!” (“Libertem Ana”, nome da manifestante brasileira
também presa naquela oportunidade).
Entenda o caso:
[...] ativistas se aproximaram de uma plataforma de petróleo no Mar de
Pechora, no Ártico, e dois alpinistas começam a escalar a estrutura. Segundo a
organização, o intuito seria pendurar faixas contra a exploração de petróleo no
Ártico. Logo chega a guarda costeira russa, que atinge os alpinistas com jatos
de água e os prende.
As obras analisadas de Srur e Kobra, bem como outras obras dos referidos artistas,
demonstram como a arte possibilita o encontro entre estética e política, e uma se
favorece da outra. A arte favorece a política por dar voz aos sujeitos, em nossa análise,
à luta dos sujeitos pela preservação ambiental – isto porque a arte é mais sensível aos
sujeitos, como afirma Rancière. A política favorece a arte, por atribuir-lhe sentidos
além da estética, sentidos relacionados ao artista e aos sujeitos que apreciarão as obras,
contribuindo para a reflexão sobre nosso mundo e sobre nós mesmos.
4. CONCLUSÕES
O que a pesquisa apresenta como contribuição é a possibilidade de um novo modelo de
atuação dos sujeitos como ativistas, por meio da arte, o que muitos autores denominam
como artivismo ou arte ativismo. De qualquer forma, estas manifestações ainda geram
discussões, pois para muitos a própria essência da arte é por si só ser transgressora, e
tende a desafiar os padrões do sistema social.
A pesquisa apresenta, mesmo que de forma breve, como resultado a constatação de
uma nova significação tanto para ao ativismo como para a arte. Aproxima os novos
movimentos sociais de cooperações com artistas, tendo em vista que a arte pode
gerar maior identificação dos sujeitos com a luta do que campanhas e discursos
institucionalizados. Lembrando o que Vieira Pinto (2005) expressa a arte como a
produção humana mais perfeita que tem como significado expressar essa humanidade
e fazer surgir o novo, que de certa forma, revela a sociedade tal como ela é em cada
tempo histórico.
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ABSTRACT
This article analyzes the literary work of Luís Bernardo Honwana: “The Hands of
the Blacks” (1986), where the prejudice and racism of Mozambique are presented
in a lyrical way in the “unpretentious” speeches of the characters, in a social reality,
cultural, historical and religious intertwined in a symbolic game. From this perspective,
an analysis will be made of how this literary work is present in the approach to texts:
“Literature and Social Life” by Antônio Candido, “History and Literature: an old-
new story” by Sandra Pesavento and Jacques LeGoff : “History and Memory”. In the
story, Louis Honwana uses the short story to show the prevailing reality in society and
how religion marks the social thought of an era. Trapped in Mozambican history and
memory, the speeches portray cruelty to reaffirm ethnic differences and empowerment.
INTRODUÇÃO
Este artigo está dividido em quatro eixos que abordam pontos importantes da história
e identidade moçambicana, o escritor Luís Honwana, a obra literária comentada e o
diálogo interdisciplinar da História e da Literatura na obra literária. Em cada eixo
foi realizado uma reflexão sobre as questões culturais e identitárias de Moçambique,
dentro da pesquisa bibliográfica e revisão literária efetivada.
Luís Honwana, em sua obra literária, traz para o conhecimento do seu leitor o
preconceito da sociedade moçambicana que foi marcada por uma guerra civil que
perdurou por aproximadamente dezesseis anos e está entranhada na memória e
história de seu povo e 2 no próprio autor que agiu efetivamente nesse período tão
difícil da história moçambicana.
Nas obras de literaturas africanas de língua portuguesa, desde seus primórdios,
tem uma organização voltada para a construção de um ideal nacional empenhado
com anticolonialíssimo, dando enfoque nas temáticas próprias da “nação”, mesmo
sem ainda a tê-la. Logo, com a independência desses países africanos, vai existir a
necessidade de “recriar” a tradição devastada pelo colonizador, no propósito de “criar”,
efetivamente, a nação. Nessa perspectiva de reconstrução, aparece Luís Honwana com
uma narrativa comprometida em mostrar os aspectos sociais e concepções religiosas
do povo moçambicano.
Moçambique foi uma colônia portuguesa que, como toda colônia, sofreu com as vontades
impostas pelos seus colonizadores. Portugal explorou suas riquezas naturais e impôs
sua cultura aos moçambicanos durante anos. Moçambique se tornou independente em
1975 e em 1977 teve início a guerra civil que deixou cicatrizes na população. Milhões
de mortos e uma realidade social com rastros da guerra de preconceito e de miséria.
O conto “As mãos dos pretos”, aborda opiniões e respostas ao questionamento de
uma criança que não entende o motivo das mãos dos pretos não serem do mesmo tom
de pele que o resto do corpo. São, ao todo, sete suposições, baseadas na história oral
ouvida e passada de geração em geração, mas sem a cientificidade.
Cientificamente, hoje, sabe-se que o motivo real motivo de tal questionamento é que
o ser humano não possui as células de pigmentação, melanócitos, nas palmas das
mãos e nas plantas dos pés. Entretanto, no conto, muitas são as repostas. Respostas
preconceituosas, marcadas por um discurso do poder do branco sobre o negro daquela
sociedade, respaldadas no discurso religioso da religião católica apostólica romana.
No conto, o personagem representado por supostamente um menino, escuta várias
respostas para seu questionamento da diferença das cores das palmas das mãos dos
negros, respostas de vários indivíduos diferentes, de gêneros diferentes e posições
sociais diversas. Respostas que não conseguiram aquietar o coração da criança,
respostas que demonstram o racismo, a segregação e o preconceito vivenciado por
aquela sociedade.
Para ratificar o poder do branco e a subalternidade do negro, o conto mostra como
a religião favoreceu esse domínio racial ao longo dos séculos em Moçambique e em
diversos países que foram colônias europeias como o Brasil.
5 Esta organização representa a fusão de três movimentos: UDENAMO (União Nacional Democrática de Moçambique), MANU
(Mozambique African National Union) e a UNAMI (União Nacional de Moçambique Independente).
6 Foi um cientista político estadunidense, professor emérito na Universidade Cornell e irmão do historiador marxista Perry Anderson.
7 Recebeu os prêmios Amalfi (1989, por sua obra Modernidade e Holocausto) e Adorno (1998, pelo conjunto de sua obra). É professor
emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.
8 Foi um dos fundadores e primeiro presidente da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), a organização que lutou pela
independência de Moçambique do domínio colonial português. O dia da sua morte, assassinado por uma encomenda-bomba, é celebrado
em Moçambique como Dia dos Heróis Moçambicanos.
Stuart Hall (2000) no texto “Quem precisa de identidade?” questiona para que a
identidade no sentido da construção dessa identidade ser o fator das formas de
relacionamento de poder dentro da sociedade.
[...] as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós
precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais
específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas, por
estratégias e iniciativas específicas. Além disso, elas emergem no interior do
jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da
marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica,
naturalmente constituída, de uma ‘identidade’ em seu significado tradicional –
isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça,
sem diferenciação interna (HALL. 2000, p.109).
Hall (2000) aponta a questão da identidade e para além dela. Reflete sobre o conceito
de identificação no campo psicanalítico e discursivo sem limitar-se a eles, definindo
a como “um processo de articulação, uma saturação, uma sobre determinação, e não
uma subsunção”. Dentro desta perspectiva, não há uma totalidade e está sujeita ao
“jogo” da différance.
E uma vez que, como um processo, a identificação opera por meio da différance,
ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento, e a marcação de fronteiras
simbólicas, a produção de “efeitos de fronteiras”. Para consolidar o processo ela
requer aquilo que é deixado de fora – o exterior que a constitui (Hall, 2000 p. 106).
lugar, ele utiliza a obra, assim marcada pela sociedade, como veículo das suas
aspirações individuais mais profundas.
são antigos e ao mesmo tempo atuais e também como eles são uma realidade não só
moçambicana, mas uma realidade de diversos países como o Brasil.
Os esclarecimentos dados à pergunta tão intrigante para aquela criança: “Por que as
mãos dos pretos são brancas? ” Descritas abaixo, seguindo a ordem do conto, de forma
resumida:
1. Senhor Professor: porque seus avós andavam com as mãos apoiadas no chão como
“bichos do mato” e por isso não eram expostas ao sol.
2. Senhor Padre: porque viviam com as mãos juntas postas a rezar e por isso não as
queimavam.
3. Dona Dores: Deus fez as mãos dos negros brancas para que não sujassem a comida
dos seus patrões ou quaisquer outras coisas que os mandassem fazer.
4. Senhor Antunes da Coca-Cola: Deus, Jesus Cristo, Virgem Maria, outros Santos
e pessoas que morreram se reuniram e decidiram usar o barro das criaturas para
fazer os negros que se seguraram na chaminé enquanto o barro cozinhava e por
isso as mãos ficaram brancas.
5. Senhor Frias: Deus fez os homens todos iguais, pretos que ao se lavarem saíam
brancos, os que foram feitos de madrugada só molharam as plantas dos pés e das
mãos porque a água estava fria.
6. Livro citado pelo narrador: os negros tinham a pele escura porque viviam
encurvados pegando muito sol quando colhiam algodão.
7. Dona Estefânia: As mãos ficaram brancas porque foram muito lavadas.
1. Mãe: porque Deus fez as mãos dos homens iguais para mostrar que os homens são
iguais, independentemente da cor de sua pele.
É possível perceber o preconceito e o racismo nas explicações de alguns personagens
baseadas principalmente vinculadas a religião, no mito da Criação. O uso do barro usado
para fazerem as criaturas e aí reutilizados para fazerem os negros é impressionante.
O conto é marcado por diferentes falas preconceituosas que apontam a questão da
cor da pele como se fosse sujeira como no relato da Dona Estefânia, Dona Dores e,
principalmente o Senhor Frias.
Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do
céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram
feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham
molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem
para o mundo (HONWANA, 1980).
O narrador, surpreendido pelo choro de sua mãe ao lhe dar a explicação, compreende
ao final o que lhe parece “verdadeiro” na explicação enunciada por ela.
Honwana alcançou o leitor passando toda crueldade inventiva do pensamento humano,
revelando todo o preconceito que está contido de forma clara, mas maquiado, como se
não existisse, nos discursos proferidos pelos personagens nas histórias narradas.
4. A REFLEXÃO DIALÓGICA ENTRE A HISTÓRIA E A LITERATURA NO
CONTO “AS MÃOS DOS PRETOS”
Uma das especificidades da História é a sua preocupação em estabelecer a “verdade”,
já a Literatura não tem esse mesmo compromisso.
Dentro do conto “As mãos dos pretos”, são possíveis perceber pontos de diálogo entre
a história e a literatura.
Estas formas de percepção podem ser vistas de várias maneiras: como no
resgate da sensibilidade de um determinado período, nos motivos que levaram
um romancista/poeta a produzir tal texto ou mesmo no interesse de romancear
a História em um dado momento (DONATO, 2007).
9 Pesavento (2006, p. 12) O imaginário é sistema produtor de idéias e imagens, que suporta, na sua feitura, as duas formas de apreensão
do mundo: a racional e a conceitual que formam o conhecimento científico, e das sensibilidades e emoções, que correspondem ao
conhecimento sensível.
Portanto, é possível verificar no discurso literário a realidade social que interage com
o leitor, proporcionando uma leitura ficcional que remete a um tempo histórico real.
De acordo com Donato (2007, p. 6-7):
A literatura é um saber privilegiado que nos permite acompanhar o processo de
criação de uma consciência de país; ela se encontra no limiar do inconsciente,
na formação das estruturas cognitivas e ficcionais dos homens. O vínculo com
a História se estabelece no fato de que ambas são produtos do gênio humano.
O conto denuncia a realidade histórica de uma sociedade colonizada que foi fortemente
marcada pela escravidão, exploração e ruptura com sua cultura em função do seu
colonizador, perdendo assim sua identidade, reproduzindo a ideia de seu dominador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo abordou a questão do preconceito e racismo em Moçambique. Foi abordada
a história e a construção identitária de Moçambique, sendo possível entender os
conflitos pela luta contra o colonizador e pela independência vivenciada ao longo de
sua história, percebendo as cicatrizes deixadas.
Na obra literária, as explicações dadas como respostas para a indagação das cores das
palmas das mãos dos negros mostraram a forte influência da religião do dominador
nas vidas e nos discursos dos personagens, registrados claramente no conto “As mãos
dos pretos” de Luis Honwana.
Foi realizada uma interpretação da obra, vinculando à Literatura com a História em
um diálogo interdisciplinar.
Honwana abordou questões conflitantes na sociedade moçambicana e que levam os
seus leitores a uma reflexão crítica para a manipulação da palavra e do empoderamento
da classe dominante que articula de forma subliminar a sequência das divisões de
classes economicamente.
Sua obra é de grande relevância social não só no seu tempo histórico como nas
sociedades contemporâneas, principalmente no que tange a discriminação e preconceito.
O discurso proferido pela mãe da criança na obra deve ser divulgado e levado como
um lema ou bordão onde as palmas das mãos nos caminham a uma só conclusão:
SOMOS TODOS IGUAIS!
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Introdução
Embora faça parte do envelhecimento feminino, pouco se tem falado sobre climatério
e não existem incentivos educativos nessa área, nem no que abrange tanto na saúde
física, quanto na mental. Haja visto que envelhecer com qualidade se tornou um
objetivo para muitos, ainda sabe-se muito pouco sobre a fase climatérica, cujo início
marca na existência da mulher, a transição da vida reprodutiva para a não reprodutiva.
O climatério e a pós-menopausa, podem ser considerados assuntos novos, visto pelo
percurso histórico, pois, por muitos séculos era um assunto inexistente devido à
baixa esperança de longevidade. Nos dias atuais, a expectativa de vida ao nascer é
de aproximadamente 75 anos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) a terceira idade no Brasil cresceu cerca de 11 vezes nos últimos 60
anos, passando de 1,7 milhões para 18,5 milhões de pessoas nesta faixa etária, em
2025 serão 63 milhões e em 2050, um em cada três brasileiros será idoso. Dessa forma,
diante das estimativas, o Brasil vem se mostrando um país com grande concentração
de idosos.
Quanto ao conceito de climatério, parece não haver desacordo, porém, há uma grande
disparidade quanto a sua duração, o que causa desordem quanto às nomenclaturas
usadas para este período. A Organização Mundial da Saúde considera o climatério
como sendo o período compreendido entre a perimenopausa (dois a cinco anos
antes da última menstruação) até um ano após o término dos ciclos menstruais. Já a
International Menopause Society (IMS) estende este período até o início da terceira
idade (65 anos).
Assim, como a definição do termo climatério ainda não apresenta consenso, a abordagem
deste processo também é cercada de controvérsias. Dessa forma, o presente artigo
apresenta como principal objetivo conhecer os possíveis efeitos físicos e psicossociais
que envolvem a fase pós-menopausa.
A estratégia para adquirir essas informações foi direcionada através de questionários e
palestras, conhecendo por meio tanto da escuta como dos quantitativos apresentados, se
de fato ocorrem efeitos no envelhecimento da mulher, no que tange a pós-menopausa.
Desenvolvimento
Expectativa de vida: mudanças na pirâmide etária, envelhecendo em um Brasil mais
velho.
O envelhecimento é amplamente discutido na sociedade e nos locais de formação
acadêmica, isso porque a atenção mundial tem se dirigido ao aumento progressivo
da população idosa. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) a terceira idade no Brasil cresceu cerca de 11 vezes nos últimos 60 anos,
passando de 1,7 milhões para 18,5 milhões de pessoas nesta faixa etária, em 2025 serão
63 milhões e em 2050, um em cada três brasileiros será idoso.
A expectativa de vida ao nascer no Brasil subiu para 74,9 anos em 2013, para ambos
os sexos, em 2012 essa probabilidade era de 74,6 anos, gerando um aumento de três
meses e 25 dias. Mas, se comparada com a de dez anos atrás, a expectativa de vida do
brasileiro aumentou mais de três anos. Em 2003, era de 71,3 anos (IBGE – 2014).
Embora a maioria das mulheres que participaram do estudo afirmarem estar passando
por mudanças em suas vidas, como alterações no corpo e nas suas relações sociais,
as mesmas não associaram ao climatério, coincidindo assim com o que nos diz Silva
(2002), quando afirma que a palavra climatério não tem significado conhecido pela
maioria das mulheres.
No que tange os aspectos psicossociais, podemos observar que a grande maioria das
mulheres sentem-se ansiosas, representadas aqui por vinte três. O que já sinalizava
Adashi & Hillard (1998), quando se reportaram sobre as queixas mais frequentes do
climatério, ansiedade e irritabilidade, consequências da deficiência do estrogênio, mas
claramente associada a fatores psicossociais.
Quanto às alterações nos relacionamentos sociais, não ficou evidente que haja, o que
nos leva a explorar essa perspectiva quanto a uma segunda abordagem, nesse caso
comparativa, direcionando a pesquisa para as mulheres de um ciclo social que propicia
interação diária, com outro que não tenha a mesma intensidade.
Considerações finais
Percebemos que as mulheres pesquisadas possuem pouco conhecimento acerca do
climatério, no entanto, a maioria expõe dificuldades em relação aos aspectos ligados
à emoção. No que tange vivenciar sua sexualidade, analisamos que a maior parte
apresenta dificuldades quanto aos fatores fisiológicos inerentes à idade, como também
a maneira como essa mulher lida com as dificuldades encontradas a posteriori.
Em vista dos achados, sugerem-se pesquisas com maior número de indivíduos,
além de estudos que favoreçam a atenção prestada ao climatério e a pós-menopausa,
principalmente no que se refere aos sintomas e efeitos ligados a essas fases.
Considerando que o climatério é uma etapa da vida da mulher cercada de tabus,
permeada muitas vezes por preconceitos, podendo trazer dificuldade quanto a
compreensão de si mesma e das suas relações sociais, entende-se que os efeitos desta
etapa atuam de forma parcial, e que tanto a sintomatologia climatérica quanto os
aspectos que tangem a qualidade de vida, estão intimamente ligados as atitudes e
percepções das próprias mulheres em relação à etapa de transição e ao prolongamento
dela por todo envelhecer.
Anexo 01:
QUESTIONÁRIO 1:
SIM NÃO
SIM NÃO
SIM NÃO
Sugestões:
_____________________________________________________________________
_____________________________________________________________________
Referências
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ABSTRACT
This research studies the reconciliation of work in public hospital emergencies with
maternity by health professionals, who have small children. The area of health, and in
particular, hospitals, integrates greater female presence in the professional framework,
with unequal gender relations, diuturnas scales, heavy days, low wages, among others,
which constitute challenges. The woman still is the main responsible for the care of
children and domestic tasks. In this context, the objective, examine the dynamics of
reconciliation of work in health with motherhood among emergency professionals of
public hospitals in Bahia. The health professionals were interviewed about how they
bring together the work in emergencies and the care of their minor children.
INTRODUÇÃO
Ao longo da história o trabalho feminino tem sido majoritário na área da saúde. A
escolha pende, sobretudo, pela natureza dos cuidados dispensados na saúde. São
considerados semelhantes aos cuidados dispensados em casa, na família, considerados
eminentemente femininos na divisão sexual do trabalho doméstico e extra doméstico.
Considerando a desvalorização do trabalho da mulher em sociedades de características
patriarcais e machistas como a brasileira, tendendo a precarizá-lo com os mais baixos
salários, contratos e condições de exercício desfavoráveis, entende-se que seja o
trabalho em saúde desvalorizado por sua forte característica feminina (ANTUNES,
2010; NOGUEIRA, 2010).
Em todas as profissões atuantes na saúde, tais como enfermagem, serviço social,
nutrição, fisioterapia, entre outras, observa-se uma presença majoritária de mulheres
com exceção da profissão médica. Embora seja crescente a feminização da medicina,
tendem a se concentrar em especialidades não tão valorizadas como pediatria,
ginecologia, obstetrícia, dermatologia, por exemplo, se comparadas a cirurgia,
neurologia, cardiologia, nas quais são os homens ainda a dominar (BRUSCHINI, 2007).
Diante desse contexto de uma mão de obra essencialmente feminina, sendo a área da
saúde e os hospitais, em especial, organizações de elevada demanda com precárias
condições de trabalho, escalas diuturnas, plantões, rígidas estruturas hierárquicas,
baixos salários, entre outras características (REIS et al, 2003) provocou-nos a intenção
de investigar como as trabalhadoras de saúde, quando mães de filhos pequenos,
estariam conciliando o exercício de suas funções nas emergências de grandes hospitais
públicos com a maternidade.
E a maternidade, mesmo na contemporaneidade, continua a ser tratada como algo
natural da vida mulher. Não se vê uma dissociada da outra, não se concebe que a
mulher não queira ser mãe, como se cobra dedicação integral das mães a seus filhos
(CHODOROW, 2002; BANDINTER, 2011).
Diante do exposto, esse estudo indaga como a trabalhadora de saúde concilia o trabalho
em emergências hospitalares com a maternidade? O objetivo, analisar a dinâmica
de conciliação do trabalho em saúde com a maternidade entre as profissionais de
emergência de hospitais públicos baianos.
Para tanto, esta pesquisa se desenvolveu por meio de abordagem qualitativa, que
conforme ressalta Minayo (2012, p.21-22), “responde a questões muito particulares.
[...] trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças,
dos valores e das atitudes”, por entrevistas semiestruturadas com trabalhadoras de
saúde mães de filhos menores e atuantes há pelo menos um ano nas emergências de
dois grandes hospitais públicos da Bahia, um do interior e outro da capital, após as
devidas autorizações do CEP (CAAE: 52547715.7.0000.5628), das Instituições e das
próprias mulheres.
Portanto, a coleta, além da revisão de literatura, ocorreu por fonte direta com as
trabalhadoras de saúde e mães de filhos menores que aceitaram participar livre e
voluntariamente do estudo, sendo suas falas analisadas pela análise de conteúdo.
Conforme Franco (2012) constitui-se esta análise em “um procedimento de pesquisa
que se situa em um delineamento mais amplo da teoria da comunicação e tem como
Estão investindo nas suas carreiras com crescente participação no mercado de trabalho
(SANTOS; BRITO, 2014; SILVA; RIBEIRO, 2014), além de serem maioria nos cursos
do ensino superior brasileiro como a possuir o diploma universitário (INEP, 2013;
BRASIL, 2014).
Vieira e Amaral (2013) reafirmam discussão de que nem mesmo a expressiva e crescente
participação da mulher no mercado de trabalho diminui a responsabilidade destas
com o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos.
2. TRABALHO EM SAÚDE & MATERNIDADE: COMO CONCLIAR
Para preservar o sigilo e anonimato das suas identidades, as trabalhadoras do interior
serão chamadas por nomes que indicam atributos identificados como significativos no
trabalho, enquanto as da capital por nomes de pedras preciosas como rubi, jade, etc.
2.1 Quem são essas mulheres?
As 22 trabalhadoras de saúde atuantes nas emergências dos hospitais públicos
apresentavam idades menores que 40 anos, entre 15 das pesquisadas (maioria na faixa
etária dos 30 anos) e 07 delas com idades igual ou superior aos 40 anos.
Em relação aos status de relacionamento, 12 são casadas, 04 em união estável, 05
solteiras e 01 separada. Quanto ao número de filhos, 11 têm apenas 01 filho e 10 com
dois filhos, apenas 01 com 03 filhos, deles 01 biológico e 02 do ex-marido que assumiu.
Em relação às idades dos filhos, 30 têm idades iguais e menores a 11 anos e apenas 04
com idades iguais e maiores a 12 anos.
Quanto à escolaridade, 09 têm nível médio de ensino e 04 têm nível superior e 09 são
especialistas. Nem todas com nível superior atuam nas unidades em funções a exigir
essa titularidade.
Também convém destacar que entre as 09 especialistas, 08 delas são do hospital do
interior, apenas 01 da unidade da capital. Das trabalhadoras pesquisadas 09 são técnicas
de enfermagem, 04 assistentes sociais, 06 enfermeiras, 02 técnicas de laboratório e 01
fisioterapeuta.
2.2 Os conflitos da conciliação do trabalhado em saúde com a maternidade
Para estas mulheres as dificuldades de conciliar o trabalho da emergência com a
maternidade estão, especialmente, associadas aos baixos salários, aos plantões de 12
e 24h e inflexibilidade nos horários de entrada e saída. O trabalho e sua rigidez de
horário impõem limites no contexto familiar, quanto ao tempo que estas mulheres
gostariam de dedicar às suas famílias.
Estar difícil de encontrar satisfação viu, tem assim uma carga horária que é
puxada né, a gente tem que se dividir com outro vínculo para poder completar a
remuneração da gente né, para ter uma melhor qualidade de vida, então a gente
não tem um tempo livre, a folga de um emprego é para trabalhar em outro.
Então eu não vejo assim nenhum lado positivo, eu encontro não (PACIÊNCIA).
Wagner et al (2005) atestam da pouca participação dos pais na educação dos filhos
e das mulheres ainda com as maiores responsabilidades, destacando o descompasso
entre as transformações contemporâneas, como crescente e contínua inserção feminina
no mercado de trabalho com a divisão das tarefas domésticas.
Mas, de modo geral, entre as mulheres aqui estudadas, têm as que contam com uma
boa rede de apoio de avós, irmãs e babás, outras que contam com os esposos, as que
não contam muito com esposos ou parentes e as que só contam com babás porque
sozinhas. Assim, tanto a trabalhadora do hospital do interior como da capital relatou
ter apoio para cuidado com os filhos.
Minha filha fica pela manhã na escola e a tarde vai para a casa dos avós, onde
fica revezando, geralmente um dia na casa da avó materna e outro dia na casa
da avó paterna. Na verdade, meu esposo ajuda muito, porque meu horário é
as sete da manhã às dezenove, o horário da escola é oito horas da manhã, ele
é autônomo né[...] é ele que dar banho na filha, é ele que arruma para ir para
escola e é ele quem leva e quem paga na escola, porque eu não posso né estar
fazendo esse trajeto (PERSEVERANÇA).
Teixeira et al (2015) destacam que o suporte social deve ser estendido para além da
família e do companheiro, incluindo amigos, grupos da comunidade, instituições
sociais e de saúde. Mas as babás, secretárias, empregadas domésticas apareceram
como importante suporte dessas mulheres.
Eu tenho uma pessoa que me ajuda, uma secretária né (PACIÊNCIA).
Eu tenho pessoas que compartilham. A avó e a secretária (JADE).
CONCLUSÕES
As trabalhadoras de saúde atuantes em emergências públicas hospitalares sofrem,
igualmente, tanto da injusta divisão do trabalho, quanto dos limites para exercício
da maternidade, tal como aspiram.
Esta condição advém seja porque a saúde detém maior número de trabalhadores do
sexo feminino e continua a oferecer trabalhos precários e baixos salários, forçando
para algumas na busca do segundo vínculo, seja porque somada à jornada do trabalho
remunerado agrega-se o trabalho doméstico primordialmente sob sua responsabilidade,
a despeito de seu cansaço e de dividir seus rendimentos para sustento da família,
quando não a única responsável pelo sustento.
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INTRODUÇÃO
O Brasil vivenciou, até a década de 1990, a ideia de que não se deveria fazer qualquer
tipo de diferenciação com respeito ao tratamento da violência, pois havia o juízo
consolidado de que o arbítrio exercido contra criança, idoso ou contra a mulher, por
exemplo, deveria ser tratado da mesma forma como qualquer outro tipo de violência.
Entretanto, com o passar dos anos e a necessidade de se proteger grupos determinados
que eram mais afligidos por abusos e descaso, em face de suas vulnerabilidades, iniciou-
se no sistema legalista brasileiro a chamada especialização no combate à violência.
De início, esse caminho foi percorrido com a edição da Lei nº 8.069/90, isto é, o Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA), revogando as Leis nº 4.513, de 1º de dezembro de
1964 e a 6.697, de 10 de outubro de 1979 (Código de Menores). A finalidade do ECA
era a proteção integral à criança e ao adolescente, contra toda e qualquer prática de
violência e maus tratos.
Neste caminho, outras leis foram editadas como a Lei nº 8.078/90 que protegia o
consumidor contra os abusos comerciais; a Lei nº 9.099/95 que particularizou, por sua
vez, a violência de menor potencial ofensivo e a Lei nº 9.503/97 que individualizou a
violência no trânsito, retirando da seara comum o tratamento para esse tipo de infração.
E, dentre as mais recentes, tem-se a Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/06), criada com
o objetivo de tentar coibir e prevenir a violência de gênero contra a mulher, um grave
problema social e de saúde pública.
1. LEI MARIA DA PENHA NO CONTEXTO DA ESPECIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA
É necessário salientar que essas especializações denotam a insuficiência do tratamento
genérico, sendo necessário o adequado e específico tratamento a determinados tipos
de violência, que, segundo Dias (2013, p. 11), “criar microssistemas é a moderna técnica
de atender os segmentos alvos da vulnerabilidade social.” Diante disso, necessário se
faz observar que a Lei nº 11.340/06, conhecida como “Lei Maria da Penha”, é também
uma forma desse tipo especialização. Não se trata, ademais, de uma lei essencialmente
penal, mas multidisciplinar, que converge em seus artigos disposições de natureza
civil, processual civil, trabalhista e previdenciária.
Em homenagem a uma mulher vitimada pela violência doméstica, a qual fez da dor
alento para o ativismo, a referida lei encontra-se em vigor desde o dia 22 de setembro
de 2006 com a missão de proporcionar ferramentas adequadas para encarar um
problema que agoniza grande parte das mulheres, no Brasil e no mundo, que é a
violência de gênero.
Maria da Penha Maia Fernandes foi protagonista de um caso simbólico de violência
doméstica e familiar, um marco para a história: farmacêutica, mulher guerreira, 71
anos, mãe de três filhas. Em 1983, seu ex-marido, professor universitário, tentou
matá-la por duas vezes, sendo que em uma vez a tiros, numa simulação de assalto,
e, na outra, houve tentativa de eletrocutamento. Hermann (2008, p. 18) afirma que
“as marcas e sequelas das agressões não atingiram apenas seu espírito. Marcaram-na
irreversivelmente na integridade de suas funções vitais: Penha ficou tetraplégica”.
Daí em diante, Maria da Penha passou a lutar por uma proteção mais ativa às vítimas
de violência doméstica e familiar, representando outras tantas Marias. Sua batalha
culminou na condenação de seu “executor” a oito anos de prisão.
A trajetória desta vítima não se manteve no âmbito interno, mas foi denunciado em
territórios internacionais, pela omissão do Estado brasileiro em implementar medidas
investigativas e punitivas do agressor. Essa omissão levou o Brasil a uma condenação
pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão da Organização dos Estados
Americanos (OEA) (MELLO, 2009), sendo a primeira vez que este órgão atendeu uma
denúncia por prática de violência doméstica.
No entanto, essa lei, embora sancionada em 7 de agosto de 2006, foi recebida “da mesma
forma que são tratadas as vítimas a quem protege: com desprezo e desconfiança.”
Contudo, “esta legislação é uma afirmativa em favor da mulher vítima de violência
doméstica e familiar, cuja necessidade era imperiosa” (MELLO, 2009, p. 2).
Basicamente, a referida lei, que protege a mulher vítima de abuso, tem como escopo
quatro garantias, quais sejam: a) prevenir e coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher; b) criar Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher; c) estabelecer medidas de assistência; e d) estabelecer de medidas de proteção.
Segundo Dias (2013), até o advento da Lei Maria da Penha, a violência doméstica nunca
teve a devida atenção da sociedade, nem do legislador e muito menos do judiciário.
A ideia sacralizada e a inviolabilidade do domicílio sempre serviram de pretexto para
barrar qualquer tentativa de conter o que acontecia entre quatro paredes. Como eram
situações que ocorriam no interior do lar, ninguém interferia, por parecer “não afrontar
a segurança social (...) condenando à invisibilidade o crime de maior incidência no
país” (DIAS, 2013, p. 11).
Antes, a violência contra as mulheres, inclusive homicídios, eram justificados pela
“legitima defesa da honra”, pois era a defesa do réu quando cometia um crime passional,
geralmente em caso de adultério, ciúmes ou outros que justificasse tal argumento de
defesa. Entretanto, essa tese “está sendo repudiada na maioria dos Tribunais do Júri
de nosso País” (ZACARIAS, 2015, p. 37).
Para agravar ainda mais a situação, um grande número de mulheres em cujo
pensamento há arraigada a ideia de que elas devem ser submissas ao marido, além do
medo de denunciar a violência doméstica e familiar ainda ser muito grande.
2. REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA
A MULHER
Em reportagem exibida pelo Jornal “Folha de São Paulo”, de 9 de julho de 2016,
verificou-se que 49% das mulheres sofrem agressões físicas e que a grande maioria
(49,2%)2 volta a sofrer violências de todo tipo (CANCIAN; HAUBERT, 2016).
Neste ano de 2016, a lei em comento completa 10 anos, mas o quadro de “violência
contra mulher ainda atinge níveis assustadores” (DIAS, 2013, p. 190). Ao que se parece,
esse panorama se mantem, excetuando quando da vigência da lei, que, segundo dados
do “Mapa da Violência 2015”, houve uma queda em homicídios de mulheres de 4,2
(2003) para 3,9 (2007) por cada 100 mil mulheres. No entanto, rapidamente a violência
homicida aumentou a níveis significativos, ultrapassando a taxa do ano de 2003.
Em 2013, foram registados 4,8 homicídios por cada mil mulheres. “A maior taxa de
2 Esses números foram baseados nos atendimentos de mulheres pelo Sistema Único de Saúde de 2014.
Ao que parece, todas as medidas anunciadas pela Lei Maria da Penha, como também
pela “Lei do Feminicídio”, não têm sido capazes de reduzir a violência contra mulher,
pelo contrário, os índices têm aumentado ou mantidos constantes, especialmente, as
agressões nos domicílios, independentemente de classe social, raça e credo.
Para ampliar a proteção das mulheres pela referida Lei, um projeto está em curso no
Congresso Nacional com a possibilidade de alterá-la, mas as propostas estão dividindo
opiniões. O trecho mais polêmico e que tem causado impasse refere-se à autorização
conferida aos delegados de polícia a concederem medidas protetivas às vítimas,
proibindo os agressores de se aproximarem delas. Vale ressaltar que tal prerrogativa
cabe apenas aos juízes (CANCIAN; HAUBERT, 2016).
Qualquer agressão física, psicológica, moral, sexual ou patrimonial seja contra mulher ou
filhas, no âmbito do domicílio ou em ambiente doméstico, deve ser punida e tratada como
tal. E, uma vez que os delegados conduzem os inquéritos, porque não lhes concederem a
prerrogativa de também determinar medidas protetivas, principalmente o afastamento
do agressor, uma vez que resta provado que a maioria das mulheres, vitimadas por
maridos, companheiros e outros, correm risco iminente de suas próprias vidas.
Mesmo com alguns impasses em relação à possibilidade de os delegados emitirem ou
não medidas protetivas às vítimas agredidas no domicílio, na primeira semana do mês
de julho de 2016, o projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do
Senado e está em pauta no Plenário desta Casa, mas ainda não tem data definida para
votação (CANCIAN; HAUBERT, 2016).
Cabe enfatizar que a violência doméstica e familiar não acontece apenas contra
a mulher, tendo em vista que as crianças também são vitimadas, agredidas não só
pelos homens, mas também por mulheres. Essa é uma questão que tem despertado
discussões sobre uma suposta inconstitucionalidade dessa lei, no que se refere ao
princípio da igualdade, um dos fundamentos da CRFB/88.
3. INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI: PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Com o advento da Constituição Federal de 1988, as camadas populacionais mais
vulneráveis mereceram particular proteção, considerando, por exemplo, as condições
econômico-sociais, violação frequente de seus direitos fundamentais, violência física,
psicológica, sexual, moral e patrimonial. Por essas razões, “o constituinte impôs a
igualdade de todos no que se refere à sua qualidade de seres humanos, à dignidade
humana, aos direitos fundamentais e às restantes garantias legalmente vigentes de
proteção” (ABREU, 2001, p. 265).
Não obstante a lei ter revolucionado o tratamento da violência imposta à mulher, o ponto
crucial de discussão a seu respeito é exatamente sua suposta inconstitucionalidade, uma
vez que o próprio texto constitucional assegura a igualdade entre homens e mulheres.
Assim, apesar de essa lei ser considerada um avanço no ordenamento jurídico brasileiro,
ainda paira sobre ela algumas críticas no que diz respeito à inconstitucionalidade por
violação do princípio de igualdade formal.
Nesse sentido, Canotilho et al. (2014) leciona que:
O engano de fundo dessa crítica se traduz no fato de que a lei espelha justamente
a concretização do princípio da igualdade, mas da igualdade substancial,
aquele princípio que de forma mais completa realiza o ditado constitucional
da dignidade da pessoa humana. O respeito à dignidade não impõe somente
a tutela da ‘igualdade de todos perante a lei’, mas exige que seja concretizada
a igualdade substancial, isto é, que se trate desigualmente os desiguais, na
medida de suas desigualdades (CANOTILHO et al., 2014, p. 2123).
Ainda, segundo José Afonso da Silva (2008, p. 76), a igualdade não é apenas no
confronto marido/mulher, nem se trata apenas de igualdade no lar e na família.
Abrange também essa situação, que, no entanto, recebeu reformulação
específica no art. 226, §5º: ‘os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal
são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher’. Vale dizer: nenhum pode
mais ser considerado cabeça-de-casal, ficando revogados todos os dispositivos
da legislação contrários à disposição constitucional (SILVA, 2008, p. 76).
Além disso, um assunto que tem gerado alguns impasses é quanto à pessoa que possa
figurar como autor dos crimes (polo ativo) em que trata a referida Lei, uma vez que
versa sobre crime de gênero e dispõe sobre proteção à mulher vítima de violência
doméstica e familiar (polo passivo). No entanto, há entendimentos, como os de Luiz
Flávio Gomes e Sérgio Ricardo de Souza, que mencionam “que a Lei objetiva coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher, sem importar o gênero do agressor,
que tanto pode ser homem ou mulher, desde que esteja caracterizado o vínculo de
relação familiar ou afetividade” (MELLO, 2009, p. 43).
Como nesse caso, discussões calorosas não se findam quando o assunto é a adequação
da lei no ordenamento jurídico nacional. Nesta discussão é que emergem as chamadas
ações afirmativas.
Na página “Notícias STF” do Supremo Tribunal Federal, em 26 de abril de 2012,
Joaquim Barbosa define as ações afirmativas quão políticas públicas voltadas à
materialização do princípio constitucional da igualdade formal e à neutralização das
implicações perversas da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional
e de compleição física. A igualdade deixa de ser simplesmente um princípio jurídico a
ser respeitado por todos, e passa a ser um objetivo constitucional a ser alcançado pelo
Estado e pela sociedade.3
A herança de costumes, onde a mulher ocupava lugar secundário e coadjuvante, não
pode se manter presente e não há nenhum argumento que a justifique. Em consequência,
a lei nº 11.340/06 se mantém firme neste propósito de ser uma ação afirmativa, com o
fim de igualar homens e mulheres.
A lei é ainda, deveras, importante na medida em que não resguarda apenas a violência
física, mas todas as formas da mesma. Não se olvida que a violência física seja uma
forma drástica de violação dos direitos femininos, no entanto as violências psicológica,
moral, patrimonial e sexual se mostram como uma face nefasta dessa mesma prática.
E são todos os tipos de violência abarcados pela lei que fazem dela um marco histórico
de empoderamento e uma vitória efusiva de mulheres que, durante anos, foram
vítimas de todo o tipo de violação de seus direitos. É notório que a mulher sempre
sofreu calada, sem ter como acalento qualquer tipo de proteção por parte Poder Público
quando vitimada por maus tratos, abusos e violência.
Sem embargo de todo o avanço traduzido no texto da lei, ainda se mostra notório que
a mesma não é absolutamente eficaz. Mulheres, vítimas de violência, por vezes não
querem denunciar o agressor, temendo por sua própria vida ou por vergonha de se
expor como lesada. Como bem diz Hermann (2008):
Referências
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ZACARIAS, André Eduardo de Carvalho; FERNANDES, Débora Fernanda C. Z.
Alarcon; OLIVEIRA, Ettiene A. Duarte Ferro; MORAES, Patrícia Rangel de. Maria
da Penha: Comentários à Lei nº 11.340/06 – Aspectos biológicos, criminais, históricos e
psicológicos. São Paulo: Anhanguera Editora, 2015.
RESUMO
Na vida social, poder significa a capacidade de agir ou determinar o comportamento
de outra(s) pessoa(s), já as relações de poder perpassam por todas as relações sociais,
dentre as quais destacamos a política, que pode ser compreendida, de forma geral,
como um meio para resolver os conflitos na esfera pública, ou seja, no âmbito do
Estado. Entrelaçando tais afirmativas, o presente trabalho tem como pretensão
analisar a participação das mulheres na política da Região dos Lagos, delineada pelos
municípios de Arraial do Cabo, Armação dos Búzios, Cabo Frio, Iguaba Grande, Maricá,
Saquarema e São Pedro da Aldeia, todos no Estado do Rio de Janeiro. Inicialmente
iremos destacar seus resultados nas eleições proporcionais de 2016, uma preocupação
que surgiu a partir da verificação que a maioria dos candidatos que receberam 0 (zero)
ou 1 (um) voto eram mulheres.
Palavras-chave: Mulher. Política. Democracia.
ABSTRACT
In social life, power means the ability to act or determine the other behavior (s) person
(s), as the power relations permeate all social relations, among which we highlight the
politics, which can be understood, so Overall, as a means to resolve conflicts in the public
sphere, ie in the state. Interlacing such statements, this work has the intention to analyze
the participation of women in politics in the Lakes Region, outlined the municipalities
of Arraial do Cabo, Armacao dos Buzios, Cabo Frio, Iguaba Grande, Maricá, Saquarema
and São Pedro da Aldeia, all in Rio state from January. Initially we will highlight results
in proportional elections in 2016, a concern that has emerged from the verification that
most candidates who received 0 (zero) or 1 (one) vote were women.
Keywords: Woman. Politics. Democracy.
INTRODUÇÃO
É fato a sociedade brasileira foi moldada por um pensamento repleto de racismo,
preconceitos e estigmas os quais são mantidos até hoje. O caráter patriarcal e
hierarquizado que ainda permeia a sociedade, é fator que influencia o contexto
político, econômico, cultural, social e legal, que resulta em tratamento preconceituoso
contra as mulheres e reflete no cotidiano dos diferentes grupos sociais que passam por
processos de exclusão social.
Partindo desse fato, é durante a modernidade, que temos a marca do movimento pela
emancipação da mulher, o qual é traz em seu bojo três grandes momentos. Segundo
TOLEDO (2001) o primeiro grande momento foi no final do século XIX e início do
século XX com o movimento conhecido como sufragista e a luta por outros direitos
democráticos. O segundo momento, por sua vez, foi no final da década de 60 e início dos
anos 70, com os movimentos feministas que levantaram bandeiras para que houvesse,
basicamente, a liberação sexual. Já o terceiro momento no final dos 70 e início dos anos
80, traz o caráter, sobretudo, sindical e é marcado também pela mulher trabalhadora,
já inserida no espaço público. Nos anos seguintes novas questões surgiram referentes
à situação da mulher em diferentes espaços, entre eles, na política.
Assim, são diferentes os enfrentamentos e dificuldades, que percorrem o desafio
para efetivação de políticas públicas que refaçam, ressignifiquem a história da
sociedade brasileira, tendo como base a Constituição Federal de 1988, em que
se trabalha para uma sociedade democrática, garantindo a cidadania a partir da
equidade racial e de gênero.
Neste contexto, o presente trabalho fundamentado em uma perspectiva interdisciplinar
visa analisar a participação das mulheres na política da Região dos Lagos, delineada
pelos municípios de Arraial do Cabo, Armação dos Búzios, Cabo Frio, Iguaba Grande,
Maricá, Saquarema e São Pedro da Aldeia, todos no Estado do Rio de Janeiro, nas suas
mais diversas transformações e contradições culturais, sociais, políticas e ideológicas.
As autoras iniciaram a pesquisa sobre o exercício político e o papel da mulher na
sociedade a partir de três eventos: (i) a participação no Pré Encontro de Mulheres
Estudantes (EME) e da União Nacional dos Estudantes (UNE); (ii) a realização do
Curso de Empoderamento e Participação Política para as Mulheres ministrado na 20ª
Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil de Cabo Frio e Arraial do Cabo por meio
da Comissão da OAB Mulher e Igualdade Racial e (iii) entrevista para a Rede InterTV
sobre candidatos que recebem 0 (zero) ou apenas 1 (um) voto.
Para preparação do encontro EME, que é considerado um dos maiores eventos
feministas do país por discutir pautas relacionadas às mulheres estudantes de todo
o Brasil, foram realizados pré-encontros EME. O pré-encontro da Região dos Lagos
aconteceu no dia 23 de março de 2016, no Instituto Federal Fluminense (IFF), campus
Cabo Frio, debateu sobre a representação feminina na política e sociedade, a situação
da mulher negra, a violência contra a Mulher e os 10 (dez) anos da Lei Maria da Penha.
O curso de Empoderamento e Participação Política para as Mulheres aconteceu no mês
de junho de 2016 e se propôs a discutir o protagonismo eleitoral da Mulher, bem como
a profilaxia dos velhos hábitos das relações políticas, advindos do sexismo, machismo,
preconceitos, discriminações, intolerâncias, desrespeito, exclusões, assédio, rejeições e
a imperiosa necessidade de ocupação desses espaços.
Desse modo, a marca das distinções pela atribuição de papéis sexuais fomentou
a desigualdade no gênero e nas identidades formadas, sendo definidores para os
espaços: privado e público e caracterizando e definindo a mulher como o sexo frágil
e dependente das ações masculinas. Diante disso foi na Europa e nos Estados Unidos
onde o movimento feminista, da década de 60, tomou fôlego e se difundiu pelo mundo
inteiro. Assim depois de longos anos marcados pela submissão e o espaço privado, as
mulheres norte-americanas, em particular da classe média, começaram a despertar e
se unir a outro movimento contestatório e reivindicatório: movimento negro, lutando
pelos seus direitos. São mulheres de vanguarda que segundo TOLEDO (op. Cit.) que
lutavam para que a mulher deixasse de ser considerada: “segundo sexo”.
Dessa forma o espaço público moderno podemos dizer que foi definido como espaço
essencialmente masculino, de maneira que as mulheres seriam apenas coadjuvantes,
sendo auxiliares, assistentes, enfermeiras, secretárias, ou seja, desempenhando funções
consideradas menos importantes nos campos produtivos, tendo como argumento a
sua constituição biológica, o que acabou fomentando um paradigma no meio social de
que a mulher seria incompatível a vida pública.
Diante dessa constatação, um dos motivos da disputa eleitoral é poder estar e
influenciar neste espaço de decisões, no caso a esfera legislativa municipal. Utilizar-se
da esfera legal não tem o condão de resolver questão alguma, porque somente um lado
do problema será visto, gerando, portanto, soluções incompletas, mas é importante
lembrar que a Lei n.º 9.100/95 estabeleceu as normas para a realização do pleito
eleitoral municipal de 03 de outubro de 1996, e, em um de seus artigos propôs pela
primeira vez no Brasil, cotas para mulheres nos cargos legislativos na proporção de
20% (vinte por cento) das vagas de cada partido ou coligação (art. 10, § 3º).
Em 1997, a Lei 9.504 elevou esta cota para 25%, para as eleições de 1998, e 30%, a
partir das eleições seguintes em eleições proporcionais (Câmara dos Deputados,
Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais) para o sexo minoritário (na prática,
para as mulheres). Porém, as cotas só foram cumpridas nas eleições municipais de
2012, quando, pela primeira vez, os partidos respeitaram a lei 12.034 que promoveu
uma “minirreforma eleitoral” em 2009, porque a Justiça Eleitoral ameaçou impugnar
candidaturas masculinas com vistas a manter a proporção no mínimo 30% e máximo
70% exigida por lei.
Na lei 9.100/1995 os partidos deveriam reservar 20% das candidaturas para
mulheres a na lei 9.504/1997 a obrigatoriedade de reserva aumentou para 30% das
candidaturas, era a obrigatoriedade de reserva de candidatura e não a obrigatoriedade
de candidatar mulheres.
Isso só foi modificado na Lei 12.034/2009, já que os partidos foram obrigados a
preencher no mínimo de 30% e no máximo 70% de cada sexo, devendo ser observados
os percentuais de candidatos para cada sexo no momento do registro e no eventual
preenchimento de vagas remanescentes ou nas substituições. Esta obrigatoriedade
legal fez com que em 2012 tivesse 30,3% de candidatas a todos os cargos, percentual
semelhante ao de 2016, mas o número de eleitas permanece irrisório. Por isso, é possível
adiantar que não foi suficiente para superar a exclusão das mulheres nos espaços de
poder e garantir a paridade.
(http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais-2016/resultados)
Foram poucas mulheres eleitas: na cidade de Cabo Frio de 15 homens foram eleitos e
apenas 2 mulheres, na cidade de Arraial do Cabo foram 9 homens eleitos e nenhuma
mulher, em Armação de Búzios foram 7 homens eleitos e 2 mulheres, em Araruama
foram 15 homens e 2 mulheres eleitas, em São Pedro da Aldeia foram 10 homens e 3
mulheres eleitas, em Iguaba Grande foram 11 homens eleitos e nenhuma mulher, em
Maricá foram 8 homens eleitos e nenhuma mulher e em Saquarema foram 10 homens
eleitos e 3 mulheres.
Além do pequeno número de mulheres eleitas, o que mais chamou atenção nas eleições
proporcionais municipais de 2016 foi que os candidatos que receberam 0 ou 1 voto são
predominantemente mulheres. Em Cabo Frio, 2 mulheres não receberam nenhum voto,
3 mulheres receberam apenas 1 voto e 3 mulheres receberam 2 votos, enquanto não
foram identificados candidatos homens com um número tão inexpressivo de votos.
Na cidade de Arraial do Cabo foram 9 mulheres com 0 votos e 3 homens com 0 votos.
Em Araruama, 9 mulheres com 0 voto e 3 homens com 0 voto, 5 mulheres com 1 voto e
nenhum homem com apenas 1 voto. Em São Pedro da Aldeia, 12 mulheres com 0 voto
e 9 homens com 0 voto. Na cidade de Iguaba grande, foram 5 mulheres com 0 voto. Na
cidade de Maricá 13 mulheres com 0 voto e 4 mulheres com 1 voto e nenhum homem.
Como foi possível verificar, os candidatos que receberam 0 ou 1 voto são principalmente
mulheres, por isso é válido supor que possivelmente tem uma estreita relação com a
obrigação dos partidos preencherem o mínimo de 30% e o máximo de 70% de cada
sexo. Logo, nossa hipótese é se tais mulheres que não conseguiram nem um voto
refletem a manipulação do preenchimento de cotas por mulheres que não estão ali
para ocuparem o espaço político de direito, e, em uma análise comparada a história
apresentada, são mulheres que ainda se encontram sob o julgo masculino e não
encontraram sua emancipação cidadã.
O que nos provoca a reflexão é quando contextualizamos a história da emancipação
feminina, que traz mulheres buscando a legitimação feminina na esfera pública, no
poder legislativo. Como exemplos, podemos citar Eugênia Moreira, considerada, a
primeira repórter mulher do país. Nos anos 20, participou ativamente do movimento
feminista, na campanha em prol do sufrágio feminino, assim como do movimento
modernista. Eugênia participou em maio de 1935, da União Feminista do Brasil,
promovida por mulheres simpatizantes ou filiadas ao Partido Comunista do Brasil
(PCB). É considerada uma figura emblemática da mulher liberada. Fumava com
piteiras e também charutos, em público, desafiando costumes da época. Nas eleições
de 1945, candidatou-se a deputada federal constituinte, mas nenhuma mulher foi
eleita para representar os interesses femininos durante a elaboração da Constituição
Federal de 1946(SCHUMAHER & BRAZIL: 2000:209-210). Tal exemplo, dessa mulher
excepcional, nos faz questionar que, mais de meio século se passou, e ainda, estamos
buscando estar no espaço público como legitimas para representar a nossa sociedade.
O caminho é árduo, lento e, mesmo tendo Leis que confiram o mínimo de legitimidade,
não vislumbramos o reconhecimento social para que haja representação feminina no
poder legislativo. O que temos ainda é uma reprodução simbólica que define a mulher
e suas atribuições, hoje na vida profissional (limitado), no espaço privado, mas não na
esfera política democrática.
Conclusões
Podemos concluir que embora o movimento feminista tenha se dado em diferentes
momentos históricos, sempre se buscou a emancipação feminina, logo, hoje, temos
uma nova onda, uma reorganização do movimento feminista que levanta diferentes
questões urgentes para que sejam redefinidas as atribuições de homens e mulheres de
maneira equitária, assim como a emancipação plena da mulher nos diferentes espaços.
No que se refere ao espaço público e político, temos a necessidade de um ato político
para que a mulher senha reconhecida como par e mais, para que realmente se efetive
no poder legislativo, sem isso, sem esse reconhecimento social, ainda estaremos à
margem do processo político democrático e estaremos reproduzindo a distinção entre
os gêneros assim como de uma visão limitada sobre a mulher.
A democracia vivenciada no Brasil não é efetiva, ao analisar os números oficiais das
eleições de 2016, o que se vislumbrou foram mulheres que não possuem incentivos de
seus partidos para enfrentarem uma campanha eleitoral consciente e séria, apenas estão
ali para compor a cota imposta. Embora haja leis que determinem a obrigatoriedade de
mulheres na vida política legislativa, a participação é pequena, sendo a igualdade de
gênero na política ainda um sonho.
Não se pretende neste artigo esgotar todas as questões relacionadas ao tema proposto,
mas pensar, teorizar e debater questões como o exercício político e o papel da mulher
na sociedade já é um ato político, uma tomada de decisão fundamental para pensar
um novo modelo de sociedade sem hierarquia de gênero. Um novo modelo na qual o
gênero não seja utilizado para legitimar opressões e exclusões.
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TRALDI, Flavia L.
Psicóloga e mestranda do curso Interdisciplinar
em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas
FCA/UNICAMP. E-mail: flaviatraldi@hotmail.com
LOSCO, Luiza N.
Geógrafa, Mestre em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas
e doutoranda do curso de Demografia IFCH/ UNICAMP.
E-mail: luizalosco@gmail.com
CARDILLO, Viviane H.
Nutricionista e mestranda do curso Interdisciplinar
em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas FCA/UNICAMP.
E-mail: vivianecardillo28@gmail.com
GEMMA, Sandra B.
Ergonomista e Professora Doutora da Faculdade
de Ciências Aplicadas FCA/UNICAMP.
E-mail: sandra.gemma@fca.unicamp.br
RESUMO
Embora a realidade atual demonstre um cenário participativo crescente, a existência
de distâncias materiais e simbólicas entre homens e mulheres ainda é uma realidade
bastante presente. Frente a tais considerações, neste artigo discute-se como o trabalho
feminino insere-se/está inserido nas relações de poder e representações dominantes,
que impõem às mulheres modos de ser e fazer. Para isso realizou-se uma revisão
bibliográfica que apontou como as regras da dominação de gênero perpassam várias
esferas da atividade social, refletindo não apenas na dimensão laboral, como baixos
salários, funções desqualificadas, falta de autonomia, reconhecimento e opções
profissionais, mas também em preconceitos e estereótipos às quais são submetidas,
de modo que a marginalização da força de trabalho feminina na concepção capitalista
retoma a ideia de marginalização social das mulheres, reproduzida na vida cotidiana.
Palavras-chave: divisão sexual do trabalho, trabalho feminino, gênero.
ABSTRACT
Although the actual reality shows a growing participatory scenario, the existence of
materials and symbolic distances between men and women it is still a very present
reality. Front this considerations, the article has a purpose to discuss how the female
work is inserted in power relations and dominants representations, that impose for
women ways to be and to do. For this, was realized a bibliographic revision not only
on the work dimension, such as low wages, disqualified functions, lack of autonomy,
recognition and professionals options, but also in preconceptions and stereotypes
to which they are subjected, so that the marginalization of the female labor force in
capitalist industrialization resumes the idea of the social marginalization of women,
reproduced in everyday life.
Palavras-chave: sexual division of labor, female work, genre.
INTRODUÇÃO
Em relação ao trabalho feminino pode-se dizer que desde a transição do colonato para
o assalariamento na agricultura brasileira, houve uma transformação na condição
feminina inserida na organização familiar e no mercado de trabalho. Esteve presente
uma mudança da unidade familiar para forças de trabalho individuais, no qual
à mulher não caberia mais somente o cuidado com os filhos, tarefas domésticas, e
afazeres no campo (OLIVEIRA, 1989).
Cada vez mais intensa, a pressão familiar passou a contribuir para uma maior
participação da mulher no mercado de trabalho. No Brasil, a partir de 1975, a
discussão sobre a emergência do movimento de mulheres insere-se como contribuição
das feministas acadêmicas e dos ecos do feminismo internacional. Entre 1970 e 1980,
dados revelam que a participação das mulheres na força de trabalho do setor industrial
brasileiro passou por mudanças quantitativas e qualitativas, que se traduziram no
aumento global da porcentagem das operárias e na modificação de sua distribuição
entre os diferentes ramos industriais. Concentradas anteriormente em setores
tradicionalmente femininos como o têxtil, o de vestuário e o de calçados, as mulheres
passaram, pouco a pouco, a participar de outros ramos industriais, principalmente
determinados segmentos da indústria metalúrgica.
Com o fortalecimento do neoliberalismo, a produção toyotista-flexível embora tenham
sido criada visando uma adequação às novas tendências sociais e econômicas do
mundo global, na prática, provocaram implicações para a organização e os indivíduos,
sobretudo a mulher; visto que, com a precarização do trabalho intensificou-se também
a exploração do trabalho feminino (HIRATA, 2002). Essa realidade corrobora com
vários estudos realizados no Brasil, os quais indicam a existência de discriminação,
superexploração, repressão, humilhação e desrespeito para com a mulher no trabalho
(SELIGMANN-SILVA, 2011).
Embora a realidade atual demonstre um cenário participativo crescente, a existência
de distâncias materiais e simbólicas entre homens e mulheres ainda é uma realidade
bastante presente. Diante disso, busca-se discutir como o trabalho feminino insere-
se/está inserido nas relações de poder e representações dominantes, que impõem às
mulheres modos de ser e fazer. A fim de recuperar a evolução do tema e dos conceitos
referentes ao assunto, neste artigo aborda-se primeiramente o conceito de divisão sexual
do trabalho e as estatísticas que demonstram os espaços ocupados pelas mulheres em
relação à região em que vivem, renda que possuem e as profissões que ocupam. No
texto descreve-se ainda a relação existente entre o trabalho feminino e as instâncias de
dominação que envolvem o contexto, sobretudo chamando a atenção para as formas
de assédio no trabalho.
1.FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1.1 TRABALHO E DIVISÃO SEXUAL
O trabalho é o desafio das relações sociais de sexo. Não se trata aqui apenas do
trabalho assalariado ou mesmo profissional, mas de trabalho enquanto “produção de
vivência” (KERGOAT, 2002). Para a autora, o trabalho possui um estatuto coletivo e
individual. No plano coletivo, temos o trabalho profissional (quer seja assalariado ou
não, comercial ou não, formal ou não) como também o trabalho doméstico (que além
das tarefas domésticas, inclui os cuidados corporais e afetivos para com os filhos, o
No gráfico 3, observa-se que em 2010, com relação aos tipos de atividades dentre as
pessoas ocupadas, pode-se verificar que existe uma clara distinção entre sexos, sendo
que a presença das mulheres é predominante nas atividades relacionadas à educação,
saúde e serviços sociais, estas, as quais muitas vezes são desvalorizadas e classificadas
historicamente como profissões femininas (LOPES, 1988; MOLINIER, 2012).
Gráfico 4. Valor do rendimento nominal médio mensal e mediano mensal, das pessoas
de 10 anos ou mais de idade, total e com rendimento, segundo o sexo e a cor ou raça,
2010, em reais.
Além do bloqueio à expressão dos próprios sentimentos ser considerada uma das mais
duras formas de autorrepressão, exteriorizar irritação, raiva ou revolta constitui um
risco para a manutenção do emprego ou para a progressão da carreira (SELIGMANN-
SILVA, 2011).
Diante do exposto fica evidente que as relações que se estabelecem entre homens
e mulheres, seja no exemplo das fábricas de semijoias ou em qualquer outro tipo
de trabalho, não são puro reflexo das relações econômicas, mas se traduzem em
representações e símbolos com que homens e mulheres enfrentam sua vida cotidiana.
Como apresenta Souza-Lobo (2011, p. 173), “são relações também assimétricas porque
são assimétricas suas relações com a sociedade”; visto que as representações externas
ao trabalho são incorporadas pela dimensão laboral, atualizando os processos de
exclusão e subordinação de mulheres no espaço social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da discussão apresentada, nota-se que diferenças constatadas entre as
práticas dos homens e das mulheres são socialmente construídas e, portanto, não
revelam qualquer causalidade biológica. Esse constructo social é aplicado graças à
legitimação ideológica naturalista, a qual empurra o gênero para o sexo biológico,
reduz as práticas sociais a “papéis sociais” sexuados, os quais remetem ao destino
natural da espécie. Desse modo, observa-se que marginalização da força de trabalho
feminina na industrialização capitalista além de refletir nas dimensões laborais, como
baixos salários, funções desqualificadas, falta de autonomia, reconhecimento e opções
profissionais, reflete também em preconceitos e estereótipos aos quais são submetidas.
Percebe-se que tais situações, além de atualizar processos de exclusão e subordinação,
podem revelar sérias implicações em termos de saúde mental às trabalhadoras quando
provocadas por diferentes tipos de violência psicológica.
Por todos esses vieses, torna-se fundamental não remeter a divisão sexual do trabalho
enquanto um pensamento determinista, mas pensá-la de forma múltipla e dialética
frente suas variáveis, realidades e reproduções sociais; pois tal debate também
é histórico, engloba relações de classe, de raça e de gênero. É um debate de ordem
política, que implica em questionar as configurações que determinam e estabelecem
esta divisão. Assim, a resistência frente a esta luta histórica não deve acabar. Sobretudo,
torna-se necessária a responsabilidade de dar voz às mulheres nos diversos espaços
onde são minoria e, não somente dar a palavra às mulheres, mas oferecer escuta atenta
às opressões que sofrem cotidianamente, a fim de que se construa uma sociedade mais
igualitária dentro e fora do trabalho.
REFERÊNCIAS
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Brasília: Paralelo 15, 2013.
OLIVEIRA, M. C. Trabalho, família e condição feminina: considerações sobre a
demanda por filhos. Revista Brasileira de Estudos de População, 6 (1), 1989.
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia, Bolsista FAPESB. (rhanna.roberto@
gmail.com)
2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense. (ana.miria.scc@gmail.com)
3 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. (liviascani@gmail.com)
1. INTRODUÇÃO
“O povo diz que é um dinheiro amaldiçoado...
Quero ver aguentar o que a gente aguenta”4
Desenvolveremos o presente trabalho a partir da contextualização histórica e legal da
prostituição no Brasil. A análise da prostituição diretamente ligada à figura feminina
não significa a desconsideração da existência da prostituição masculina, entre outras.
No entanto, a compreensão da condição da mulher nas sociedades patriarcais e
escravagistas, como no Brasil, e a forma como a construção do feminino esteve atrelada
à noção de subalternidade e submissão à figura do patriarca (pai, marido, irmão),
exigem uma atenção especial no que concerne ao recorte específico para a leitura deste
sujeito, que é a mulher em situação de prostituição. Todavia, não pretendemos, por
outro lado, imprimir uma autoridade ao discurso acadêmico, tampouco ao discurso
parlamentar, que ignore a fala dos sujeitos e movimentos sociais em questão.
Falar de prostituição significa visibilizar um universo simbólico/moral que diz
respeito a todas as mulheres, que exercem a atividade em suas diversas condições, e
sobretudo às que são marginalizadas pelo silenciamento e invizibilização do exercício
da atividade nos becos invisíveis da história oficial. Falar da prostituição frente à
possibilidade de regulamentação é sair da zona de conforto e entrar nos pontos de
encontro (e desencontro) dos discursos políticos, morais e jurídicos que fundamentam
e reproduzem a repressão e controle do cotidiano de todas as mulheres.
Esta investigação deriva de uma proposta mais ampla de categorização de diferentes
discursos acerca do tema da regulamentação e encontra-se no trabalho intitulado
“Entrando na Zona: a devassa dos discursos acerca regulamentação da prostituição
no Brasil, 2015”.
Para este artigo, no entanto, objetivamos estabelecer uma discussão pautada
essencialmente no conteúdo do discurso proferido pelo deputado Antônio Bulhões
(PRB –SP) em março de 2013, disponibilizado integralmente no site da Câmara dos
Deputados5 durante as discussões sobre a tramitação do texto do Projeto de Lei “
Gabriela Leite”6, PL 4211/2012, proposto pelo deputado Jean Wyllys (PSOL – RJ) com
o objetivo de regulamentar a atividade da prostituição no Brasil.7
A relevância desta análise se apresenta na medida em que o debate público acerca do
tema ganha projeção em face da possibilidade de alteração significativa do Código
Penal no que se refere à prostituição e a regulamentação da prostituição, esta que tem
como principal alteração a: descriminalização das casas de prostituição; a diferenciação
entre a prostituição e exploração sexual; e a previsão de aposentadoria especial.
O Projeto de Lei justifica-se com o fundamento de que o Estado, enquanto garantidor
de direitos, deva aprovar uma proposta que objetiva mitigar tanto as violências
institucionais quanto as violências simbólicas que são promovidas contra as pessoas em
4 Trecho de entrevista de uma das prostitutas, ocorridas no Beco da Energia, em Feira de Santana (BA), 2014.
5 BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD14MAR2013.
pdf#page=152>. Acesso em 10/10/2016
6 Gabriela Leite foi ativista da ONG DAVIDA e dona da grife DASPU e a principal referência na defesa da regulamentação da prostituição
no Brasil.
7 Antônio Carlos Martins de Bulhões é um bispo neopentecostal e político brasileiro filiado ao Partido Republicano Brasileiro (PRB). Foi
também, durante nove anos, apresentador do programa de televisão “Fala que Eu Te Escuto”.
As mulheres negras, por sua vez, ocupavam tanto uma função dentro do sistema
produtivo de bens e serviços quanto um papel sexual. Neste sentido, a utilização da
mulher negra escravizada como mero instrumento do prazer do seu senhor gerava
a reificação desta mulher e o fruto destas relações criou um foco de tensões sociais e
culturais no Brasil, pois os filhos extraconjugais nasciam mulatos (DELPRIORI, 2004).
Verifica-se, com isto, que existia uma objetivação material das mulheres negras com
relação aos senhores, e, por outro lado, as funções de esposa e mãe dos filhos legítimos
cabiam à mulher branca. Essa afirmação das funções diferentes destinadas às mulheres
negras e às mulheres brancas dizem respeito ao modo patriarcal e racista com que
famílias se constituíram no Brasil e que conferia graus de liberdade distintos a homens
e mulheres; e a mulheres negras e mulheres brancas. A estas últimas, o casamento
era a única carreira. E é evidente que a manutenção da castidade destas mulheres da
camada senhorial só foi possível diante do comércio do corpo de tantas outras.
Para Delpriori (2004), ainda hoje, nas grandes cidades, assim como antigamente, é
na camada de economia mais instável que encontramos o maior recrutamento para
a prostituição. É evidente, ainda, que, se num primeiro momento, a exploração da
mulher negra decorria da sua condição de escrava, a partir do fim do século XIX, tem-
se a prostituição como um dos resultados deste processo marginalizador, que, neste
novo marco da mão de obra livre, revela tanto a natureza comercial desta exploração
de um gênero sobre o outro, mas, principalmente, como a exploração de uma classe
sobre a outra. Destacamos aqui a imbricação entre os conceitos de raça e classe no
Brasil e consideramos a importância da utilização desses marcadores sociais como
categorias analíticas.
Com o desenvolvimento urbano-industrial no Brasil, embora as famílias não tenham
perdido o caráter nuclear, a família urbana ajusta novos papeis, principalmente às
mulheres brancas, agora também envolvidas com a socialização e instrução nas escolas.
A Igreja ainda funcionava como reguladora do comportamento social feminino. A
mulher-mãe-esposa, arquétipo de Maria, foi totalmente dessexualizada e purificada e
aparece em oposição à Eva, a mulher sensual, pecadora, razão da perdição do homem.
Além da instituição Igreja, destaca-se o modo como a lógica médico-higienista,
segregacionista das “mulheres públicas”, invade o submundo da prostituição para
classificar as mulheres como degeneradas e alheias à zona da normalidade sexual e
social. Sob a justificativa do combate às doenças venéreas é que se estuda e medicaliza
a sexualidade da mulher, e se aborda o problema da prostituição e que se instituem e
distinguem os padrões de comportamento da “mulher honesta” e “casta”, e também
da “vagabunda”.
Em 1890, através dos artigos 277 e 278 do Código Penal, o lenocínio passou a ser
criminalizado pelo grande número de denúncias contra a exploração de mulheres por
bandos organizados (DELPRIORE, 1997). Apesar da ofensiva legal, a conivência das
autoridades políticas, o silêncio e a cumplicidade das próprias “meretrizes” traficadas
tornava ineficaz a punição dos rufiões (RAGO, 1991).
Com a plena instauração da ordem burguesa na Belle Époque (1890-1920), o rompimento
com o modelo escravista, a modernização e a higienização do país - sob os moldes de
“civilização” parisiense - foi preciso adequar o comportamento dos homens e mulheres
das camadas populares através da disciplinarização não só do tempo e do trabalho,
devido à nova configuração do trabalho como sendo livre, mas também de regramento
das outras esferas da vida (SANTANA, 2012).
A implantação dos moldes da família burguesa era essencial para o regime capitalista
na medida em que se passou a calcular o custo da reprodução do trabalho através da
“contribuição invisível” e não remunerada do trabalho doméstico das mulheres. Além
disso, a honra e o casamento para as mulheres pobres, muitas delas chefes femininas
de família e com relações afetivas informais, eram representados como atentados à
moralidade desta nova sociedade que se conformava.
Desta maneira, o reforço da ordem privada como lugar destinado às mulheres
“honestas” era um pressuposto. A rua, portanto, simbolizava o espaço do desvio, das
tentações, devendo as mães pobres, segundo médicos e juristas, exercer a vigilância
constante sobre as filhas, já que a ideia de moralidade indicava progresso e civilização.
No entanto, a necessidade de sobrevivência não permitiu que tal orientação fosse
seguida, já que estas mulheres pobres precisavam trabalhar e transitar pelas ruas, o
que implicava uma maior criminalização delas (DELPRIORE, 1997).
É de se notar que a liberdade sexual das mulheres populares parece confirmar a
ideia de que o controle intenso da sexualidade feminina se ligava com o regime de
propriedade privada. Ademais, as mulheres pobres no Brasil viviam muito mais como
autônomas do que como assalariadas. Era a arte do improviso da sobrevivência através
da lavagem de roupas, do trabalho doméstico, da feitura de doces, ou da prostituição.
(DELPRIORE, 1997).
No contexto da Ditadura do Estado Novo no Brasil, por volta de 1940, houve uma
política de confinamento da prostituição. Alessandra Teixeira (2012, p. 72) afirma que:
os dispositivos de controle social destacaram-se, no interior desse novo modelo
de ordem social, como instrumental ideal para dar suporte prático a arcabouço
ideológico que o sustentava, com o que as detenções correcionais não apenas são
colocadas no centro deste projeto, mas ganham, também no âmbito discursivo, um
maior grau de oficialidade e o estatuto instrumentalizador e profilático do regime.
Na TDF, a análise é composta por três etapas interdependentes, não lineares, uma vez
que o movimento é circular. São denominadas de codificação aberta, codificação axial e
codificação seletiva. O processo de codificação visa a redução dos dados em categorias
de análise, as quais, permeadas pelo processo de codificação, são fundamentais para
se chegar a uma futura “teoria fundamentada nos dados”.
Os dados desta pesquisa decorrem do pronunciamento do deputado estadual Antônio
Bulhões (PRB), no dia 14 de março de 2013, em plenária na Câmara dos deputados
(período de tramitação do Projeto de Lei na Câmara). Após a leitura do texto, publicado
no site da câmara, e encontrado a partir da pesquisa em área de busca do seu site através
das palavra-chave: regulamentação da prostituição; PL 4211/2012, identificamos
diferentes argumentos utilizados contra a regulamentação da prostituição.
Destaca-se, ainda, que tal recurso/resultado de análise foi construído a partir de
múltiplas categorias analíticas extraídas: I) dos diferentes e representativos discursos
e pareceres publicados na Câmara acerca do Projeto de Lei; e II) da análise do
pronunciamento do movimento nacional de organização das mulheres trabalhadoras
da CUT, em decorrência da repercussão midiática emblemática no que tange à questão
da regulamentação da prostituição10.
A relevante comparação entre os diferentes discursos não é, contudo, a finalidade
principal do presente trabalho. O nosso objetivo, por outro lado, é a análise dos
fundamentos do discurso do deputado Antônio Bulhões e das suas possíveis tensões,
no âmbito da moralidade, frente à iminência de um projeto regulamentador que invoca
uma atitude garantista do Estado face a uma atividade como a prostituição.
4. ANÁLISE DISCURSIVA
Após ter apresentado os paradigmas morais e sexuais que cercam a construção da
mulher sob o “fantasma da prostituta” e ter observado como a prostituição tem sido
concebida em nossa sociedade é que pretendemos desconstruir alguns dos padrões
morais, lastreados num fundamento religioso, capazes de reforçar estigmas e o
controle dos corpos das mulheres. Para isso, com vistas a problematizar a trajetória
argumentativa e as possíveis contradições de uma representação social acerca da
regulamentação da prostituição; da representação da prostituição atualmente; da
percepção sobre a figura da prostituta; e da concepção sobre a regulamentação da
atividade, analisaremos o pronunciamento do deputado Antônio Bulhões acerca do
Projeto de lei 4211/2012, a partir das categorias discursivas elencadas a seguir:
10 Tamanha repercussão foi dada devido ao fato de autor do Projeto de Lei, o deputado, Jean Wyllys ter acusado de conservador o
posicionamento desta entidade, que se propõe a defender os direitos das mulheres trabalhadoras, acerca do tema da regulamentação da
prostituição.
11 Vide nota 8.
4.1 MORALIDADE
O contexto invocado pelo próprio deputado para a feitura do pronunciamento dá-se
nas proximidades do dia Internacional da Mulher. Tal informação apresenta-se como
relevante, desde o início, por já revelar o modo como a mulher e a própria História é
representada no discurso do parlamentar. Neste sentido, segundo Bulhões (2013, p. 152):
(...) temos a responsabilidade e o dever de louvar todo o trabalho que a mulher
fez e faz, porque ela foi a responsável pela formação da nossa civilização. Foi ela
quem transformou um bando de errantes, nas primeiras comunidades, quando
sentiu a necessidade de se fixar no território para criar a família.
não pode ser substituído por outra equivalente tem dignidade. Como cada
ser humano é único, então ele tem dignidade. Por ter dignidade, não pode
ser reconhecido no ordenamento jurídico como um produto que tem preço
(BULHÕES, 2013, p. 153).
e decisão política ser igualmente disputados por outros sujeitos. Não significa, no
entanto, que o Projeto, nos moldes em que foi proposto, não deva ser discutido e não
mereça relativizações, críticas.
O que não podemos admitir é que fundamentações rasas e lacunosas, em nome da
ordem e da manutenção da moral e dos bons costumes, sejam os principais argumentos
para a discussão, votação e análise das pautas políticas de condutas
consideradas “desviantes”, ignorando – inclusive- as demandas dos próprios movimentos
sociais. Não se pode reduzir o debate ao binômio favorável ou contrário à prostituição
no ambiente de decisão política. É preciso, pois, complexificar e problematizar o modo
como as fundamentações são construídas para que as interferências legislativas não
sejam ponte para a criação e manutenção de invisibilidades ou reforço de estigmas de
pessoas marginalizadas.
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estudo sobre gestão de ilegalismos na cidade de São Paulo. [tese de doutorado]- São
Paulo, USP, 2012.
RESUMO
Este artigo tem o propósito de trazer uma breve apresentação sobre a trajetória da
mulher na sociedade e como as relações de trabalho se estabelecem em uma comunidade
Quilombola. As abordagens utilizadas na pesquisa foram de cunho quantitativo e
qualitativo. Assim, a pesquisa de campo foi realizada em dois momentos considerando
que a aplicação dos questionários ocorreu de forma aleatória e as entrevistas foram
realizadas em conjunto com as mulheres que outrora trabalhavam em uma fazenda
da região. Em relação à abordagem quantitativa o processo de seleção das famílias
foi realizado por conveniência, isto é, foram escolhidas as casas cuja acessibilidade
fosse mais facilitada. No que diz respeito a abordagem qualitativa foram feitas
observações do cotidiano das mulheres durante a colheita do melão e na quebra do
milho. Em seguida, foram entrevistadas individualmente algumas mulheres que mais
se destacaram durante o processo de observação.
Palavras-chave: Mulher; Quilombola; Trabalho.
ABSTRACT
Is article aims to provide a brief presentation on the trajectory of women in society and
how labor relations are established in a Quilombola community. The approaches used
in the research were quantitative and qualitative. Thus, the field research was carried
out in two moments considering that the questionnaires were applied randomly and
the interviews were carried out together with the women who once worked on a farm
in the region. In relation to the quantitative approach, the selection process of the
families was carried out for convenience, that is, the houses whose accessibility was
facilitated were chosen. Regarding the qualitative approach, observations were made
on the daily life of the women during the harvest of the melon and on the breaking of
the corn. Then, a few women were interviewed individually who stood out the most
during the observation process.
Keywords: Woman; Quilombola; Job.
INTRODUÇÃO
Este artigo discute as relações de trabalho, as transformações no universo feminino,
além das visões acerca de gênero, estratificação social e ainda como a sociedade acolhe
as mulheres principalmente no que diz respeito ao mercado de trabalho. Debate-se
ainda, além da situação das mulheres negras, sobretudo como as relações de trabalho
se estabelecem em uma comunidade Quilombola.
No primeiro momento realizou-se uma revisão bibliográfica que nos permitiu uma
melhor compreensão da situação vivenciada pela mulher nos dias de hoje haja vista que
a origem do problema ainda reflete em vários aspectos da vida social inclusive, como
é o caso, nas relações de trabalho. Essa situação se agrava quando se fala da mulher
negra, que sofre um preconceito duplo já que além de ser mulher é estigmatizada
também em função da cor da pele.
Assim, a comunidade Quilombola de Vereda Viana foi relevante para a pesquisa,
considerando que as atividades desenvolvidas pelas mulheres na comunidade
despertam atenção pelo caráter tradicional do trabalho, além da atuação das mulheres
em espaços teoricamente masculinos. Nesse sentido, além da revisão bibliográfica,
houve a coleta de dados através da aplicação de questionários fechados e realização
de entrevistas semi-estruturadas onde foi possível concluir que, ao contrário do
que normalmente acontece, em Vereda Viana de forma geral, as mulheres vêm
desempenhando atividades consideradas masculinas na “colheita do melão”, quebra
do milho, corte de lenha, etc.
A abordagem inicial das mulheres foi realizada a partir de observações durante o
trabalho de campo realizado em setembro de 2011 onde as mulheres desempenhavam
suas atividades em fazendas da região. Na ocasião foram feitas entrevistas com seis
mulheres que mais se destacaram durante o processo de observação, além da aplicação
de 26 questionários nas casas de mulheres cuja acessibilidade fosse mais facilitada.
Entende-se, portanto, que foram utilizadas as abordagens qualitativa e quantitativa
que, por sua vez, contribuíram para uma maior compreensão do processo de trabalho
vivenciado por estas mulheres na comunidade.
A estrutura deste artigo é proposta inicialmente pela introdução, já apresentada, além
da apresentação de um recorte no tema em que as principais especificidades da pesquisa
serão elucidadas e alusão a alguns dados sobre a situação da mulher negra no mercado
de trabalho e por fim é apresentada a comunidade onde foi realizada a pesquisa. A
terceira sessão discute elementos de caráter histórico acerca do sexo feminino, além
de dados estatísticos sobre a mulher no mercado de trabalho. Posteriormente serão
apresentados os resultados da pesquisa na comunidade Quilombola de Vereda Viana.
Nesse momento será exibido o trabalho das mulheres assim como as principais
atividades desenvolvidas e finalmente o desfecho do trabalho se dará com as
considerações finais.
1. AS RELAÇÕES DE TRABALHO EM UMA COMUNIDADE QUILOMBOLA
A escolha do tema: “A mulher na sociedade e suas perspectivas para o futuro: um estudo
em uma comunidade Quilombola” aconteceu em função de uma pesquisa realizada
no ano de 2011 vinculada ao departamento de Ciências Sociais da Universidade
Estadual de Montes Claros. A definição do tema ocorreu no primeiro contato com a
comunidade, ocasião em que a pesquisa foi apresentada às mulheres.
bastante significativa do desemprego para tais mulheres, mas uma redução tanto ou
mais significativa ocorreu também em todos os outros grupos, o que quer dizer que
há uma permanência da desigualdade. Nesse contexto a interseccionalidade, que
seria a intersecção dos estudos entre classe, raça e sexo, discutidos por Hirata (2014), é
fundamental e contribui positivamente para um maior entendimento da problemática
abordada:
A partir dos dados da PNAD 1989 e 1999, Nadya Araujo Guimarães mostra que,
considerando sexo e raça, os homens brancos possuem os salários mais altos; em
seguida, os homens negros e as mulheres brancas; e, por último, as mulheres
negras têm salários significativamente inferiores. (HIRATA, 2014 p.63).
acolhedoras, e de maneira geral, as famílias são constituídas por poucas pessoas. Além
disso, nota-se um contraste: a paisagem seca se mescla com a existência de plantas
ornamentais. O clima é bastante seco, as temperaturas são extremamente altas, mas
ainda é possível perceber variações na vegetação, além da abundância em recursos
hídricos.
Durante a pesquisa foram aplicados 26 questionários socioeconômicos às mulheres
de Vereda Viana com idades entre 25 e 62 anos, além de entrevistas a seis mulheres
em suas atividades em uma fazenda da região onde as mesmas são contratadas
temporariamente para a colheita do melão e a quebra do milho.
A tabela seguinte demonstra que a faixa etária da maioria das mulheres entrevistadas
na comunidade varia de 25 a 35 anos, totalizando um percentual de 42,3%. As
mulheres com faixa etária dos 36 aos 45 anos, 46 a 55 anos e mais de 55 anos totalizam
percentuais de 19,2%, 23,1% e 15,4%, respectivamente. Isso significa que a maior
parte das entrevistadas são mulheres mais jovens (42,3%), enquanto as mais velhas
obtiveram o menor percentual (15,4%). A tabela n° 1 ilustra bem essa realidade:
25 a 35 anos 11 42,3
36 a 45 anos 5 19,2
46 a 55 anos 6 23,1
Total 26 100,0
O trecho remete ao mito do éden em que a mulher seria vista como um elemento do
mal por ter impulsionado o homem ao pecado. Desde então a mulher seria projetada
como um sexo frágil e incapaz de desempenhar certas atividades que só ao homem
poderiam ser realizadas por ser considerado o sexo oposto, sendo assim, o mais forte e
viril. Tais atribuições refletem ainda hoje no universo feminino embora a mulher esteja
conquistando aos poucos espaços antes inexplorados.
Por outro lado, vale lembrar a partir da visão de Del Priori (2000, p. 241) que: “A
elas certos comportamentos, posturas, atitudes e até pensamentos foram impostos,
mas também viveram o seu tempo e o carregaram dentro delas.”, ou seja, por mais
que a mulher alcance êxitos significativos em direção a igualdade de direitos, alguns
costumes permanecem e são aceitos até pelas próprias mulheres porque já estão
enraizados e estabelecidos em toda e qualquer sociedade. Nesse contexto Touraine
(2006) discute a individualidade onde à mulher foram confiadas certas posturas que
operam como um diferencial entre os sexos:
As mulheres, mais do que os homens, passam por esse individualismo,
pelos cuidados do corpo, pela escolha do vestuário, etc., para construir a sua
“personalidade” singular, para inventar uma imagem de si mesmas. E é esse
individualismo que dá a sua força principal a reivindicações coletivas e à resistência
ao mundo da mercancia e às suas estimulações. (TOURAINE, 2006: p.62).
Touraine (2006) assegura que a mulher continua lutando contra as novas formas de
dominação, isto é, a opressão feminina permanece em certa medida, mas começa a ser
modelada a partir de outros meios. Rosaldo (1979) lembra que existiam comunidades
em que as mulheres eram extremamente influentes. A autora faz referência ao gueto
judaico da Europa Oriental em que as mulheres se mostravam demasiadamente
corajosas. A administração da casa, os assuntos políticos, o trabalho fora do lar, o
sustento da família, as questões financeiras, eram esferas de domínio feminino. Mas
ainda nesse caso é possível encontrar determinada esfera de atuação em que o homem
exerce algum tipo de autoridade sobre a mulher.
A referida autora atribui os espaços relativos ao homem e a mulher como espaços
públicos e domésticos respectivamente, onde a mulher atuaria em um espaço mais
fechado, mais reservado preservando assim sua moral. Em contrapartida, ao homem
competiriam os ambientes públicos em que ficariam mais expostos, poderiam revelar
suas opiniões e não necessariamente teriam que resguardar sua moral. Ainda nesse
sentido, Beauvoir (1908) ilustra como se iniciou o processo que teria estimulado a
mulher a se rebaixar perante o homem. A autora revela que se trata mais de diferenças
e não inferioridade:
A sorte da menina é muito diferente. Nem mães nem amas têm reverência e
ternura por suas partes genitais; não chamam a atenção para esse órgão secreto
de que só se vê o invólucro e não se deixa pegar; em certo sentido a menina não
tem sexo. Não sente essa ausência como uma falha; seu corpo é evidentemente
uma plenitude para ela, mas ela se acha situada no mundo de um modo diferente
do menino e um conjunto de fatores pode transformar a seus olhos a diferença
em inferioridade. (BEAUVOIR, 1908, p. 14)
A apreciação do homem desde pequeno, a partir de seu órgão sexual seria observado
como uma atribuição de honra ou de certo poder. Isso teria gerado desconfiança por
parte das mulheres que preferiam esconder seu corpo e poupar seu órgão genital. Por
outro lado, algumas mudanças significativas têm ocorrido nos últimos anos no que diz
respeito às disparidades entre homens e mulheres. Por exemplo, de acordo com Scalon
(2009) ocorre um enfraquecimento do patriarcado, ou seja, o poder já não está tão
centrado nas mãos do homem. A visão da mulher como a ‘cuidadora’ e o homem como
o ‘provedor’, conforme discutido pela autora tem sofrido modificações. Tais mudanças
impactam diretamente no mercado de trabalho, por exemplo, conforme será discutido
mais adiante. No entanto, é importante lembrar que a divisão de tarefas no ambiente
doméstico continua seguindo o padrão tradicional tanto entre os homens quanto para
as mulheres.
Nesse sentido, Scalon (2009) discute que atividades tais como lavar, cozinhar e passar
são percebidos como tipicamente feminina e consequentemente são quase inexploradas
pelo sexo masculino. Estes realizam apenas pequenas atividades como, por exemplo,
levar os filhos à escola. Vale notar, que nos finais de semana o laser das crianças é uma
atividade mais desenvolvida pelas mulheres, além da visita a parentes e a realização
do serviço doméstico.
A autora supracitada assegura ainda que o homem tem mais autonomia que a mulher
principalmente em aspectos relacionados ao mercado e a família onde a mulher é mais
dependente. A respeito da lida com pessoas doentes a autora afirma que se trata de
uma ocupação que a sociedade ainda compreende como fundamentalmente feminina.
Segundo estudos realizados pela mesma autora à mulher seriam atribuídos serviços
relacionados a esfera doméstica por serem as mesmas consideradas mais cuidadosas.
Assim poderiam ficar com os filhos ou se trabalhassem, deveriam fazê-lo de preferência
apenas parte do dia para que pudessem dedicar aos filhos o restante do dia. A ausência
da mulher no ambiente doméstico poderia gerar ausência de afeto sendo que o mesmo
poderia estar associado ao tempo e não necessariamente a qualidade.
Por outro lado e lembrando-se das expressões utilizadas por Rosaldo (1979) a respeito
das esferas ‘público’ e ‘doméstico’, o que Scalon (2009) questiona é se de fato ocorre
uma migração das mulheres para uma direção contrária ao ambiente doméstico, isto
é, o espaço público estaria cada vez mais disputado pelas mesmas. No que diz respeito
a tradicional divisão de papéis ela afirma que a maioria dos homens concorda com a
manutenção de tal divisão. Entre as mulheres o resultado não muda muito.
Em relação à percepção que os homens têm sobre o trabalho feminino, por exemplo,
segundo a mesma pesquisa, tais atividades são concebidas apenas como ‘auxiliares’
concordando com os estudos realizados por Heredia (1979) onde ela constata que os
homens concebem o trabalho feminino apenas como uma ajuda a eles. Assim, mesmo
que a mulher desenvolvesse atividades no roçado que, de acordo com a autora, seria o
espaço masculino, tais atividades não seriam reconhecidas.
A abordagem sobre estratificação abrange várias esferas da vida social. Assim, devem-
se considerar vários fatores como, por exemplo, o gênero. Mesmo entre grupos de
pessoas posicionadas em uma mesma classe social, os homens são mais privilegiados
em relação às mulheres. Mas essa abordagem deve abranger as três esferas propostas
por Hirata (2014) como pilares para a compreensão da problemática sugerida, ou seja,
uma vez que se discutem as relações de trabalho para a mulher negra, deve haver uma
correlação entre as categorias gênero, raça e classe.
No que diz respeito à educação Ribeiro (2009) revela que “Não completar o segundo
grau na classe alta representa um risco de cair para as classes média e baixa...”
(RIBEIRO, 2009, p. 159). Assim, a situação se agrava para os homens se os mesmos
não concluírem sequer o segundo grau conforme já discutido inicialmente por Ribeiro
(2009). A abordagem anterior é uma questão dialética quando se observa a seguinte
passagem proposta pelo autor (2009, p. 172):
Para ocupar certas posições de prestígio, é essencial que se tenha qualificação
educacional, não bastando ser filho de alguém que é qualificado. Por exemplo,
para se tornar médico ou juiz não qualifica ninguém como médico ou juiz, o que
faz são as escolas de medicina e de direito. No entanto, é um fato amplamente
discutido o de que filhos de profissionais qualificados tem chances maiores do
que filhos de trabalhadores não-qualificados de alcançarem níveis educacionais
mais altos.
A respeito do trabalho informal, para Neves (2009) os homens tem cerca de 162,2% de
oportunidades a mais que as mulheres de estarem ocupados. A situação é ainda mais
grave para as mulheres no setor formal onde os homens têm em torno de 394,8% de
chances a mais que as mulheres de estarem empregados.
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
O trabalho de campo em Vereda Viana possibilitou, entre outros fatores, a visualização
das principais atividades desenvolvidas na comunidade. Durante a pesquisa foi
possível presenciar a colheita do melão, que acontece comumente entre os meses de
Junho e setembro. A fabricação de farinha e a quebra do milho ocorrem normalmente
no mês de setembro. No entanto, a atividade mais frequente observada nas fazendas,
no período considerado, trata-se da colheita do melão.
3.1. O trabalho das mulheres
Durante o período de dez dias foi possível observar o cotidiano das mulheres em
atividades de caráter doméstico tais como algumas mulheres carregando feixes de
lenha para prover o consumo da família, o corte de lenha para o abastecimento da casa,
foram observadas ainda mulheres lavando roupas e algumas durante a fabricação de
farinha.
No que diz respeito às atividades exercidas fora do ambiente doméstico, predominam
o trabalho temporário em fazendas da região na temporada referente a colheita do
melão, onde as mulheres são contratadas recebendo uma remuneração pelo serviço
prestado, além da quebra do milho que, na ocasião estava sendo realizada apenas
nas propriedades dos próprios Quilombolas e nesse caso, sem remuneração já que o
serviço geralmente é feito pelos próprios membros da família.
3.2. A colheita do melão
O plantio do melão é realizado cerca de cinco a seis quilômetros da casa de uma das
quilombolas, onde permaneci hospedada durante o trabalho de campo. Acompanhada
de uma de suas filhas, fui de bicicleta até o local. Chegando lá, em um primeiro momento
abordei uma das trabalhadoras, com quem já havia conversado no dia anterior. A
informante de 40 anos discorreu a respeito do trabalho que desenvolve: “Eu gosto. Ah,
eu gosto muito de trabalhar e agente precisa né das coisa.”
Quando perguntada a respeito do que julga ser mais difícil no trabalho que desempenha,
ela responde que “O mais difícil é bater o melão, bater... ter que encher o tambor pra
bater e jogar na máquina (...)”. A partir do relato foi possível identificar que a colheita
do melão é vista como uma das atividades mais árduas desenvolvidas pelas mulheres.
De acordo com a maioria das entrevistadas, a dificuldade mais freqüente no trabalho
com o melão, diz respeito ao dia de bater a fruta, visto que, neste dia, o trabalho exige
mais rapidez por parte dos trabalhadores.
É nessas ocasiões, conforme o depoimento de algumas mulheres, que seus companheiros
de trabalho, por vezes, as intitulam de “preguiçosas” ou incapazes de realizar o
serviço. Apesar disso, e através de outros relatos, o trabalho feminino é reconhecido
pelos homens e mulheres da comunidade segundo o depoimento dessas entrevistadas.
A fala anterior revela, não somente no caso específico, que as mulheres da comunidade,
no geral, preferem a lida com o trabalho fora do lar mesmo que isso signifique trabalhar
em serviços relacionados ao roçado. A partir dos relatos fica evidente que as mulheres
anseiam por melhores condições de vida ainda que muitas admitam que não consigam
mais realizar seus sonhos em função das circunstâncias, isto é, muitas mulheres se
casaram, tem filhos por isso não conseguiram concretizar seus objetivos, mas isso
não implica dizer que se encontram acomodadas e ocupadas apenas com os afazeres
domésticos, mas justamente porque possuem uma família, se mostram corajosas a
ponto de enfrentar o serviço penoso da roça a fim de sustentar seus familiares.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para não concluir, mas explicitar alguns pontos percebeu-se neste trabalho que a
mulher hoje é mais bem acolhida pela sociedade tendo em vista que a mesma alcançou
vitórias como o direito ao voto e o ingresso em profissões como Engenharia e Direito,
além de sua atuação ainda que em menor grau em outras profissões “masculinas” tais
como motoristas e frentistas. Apesar das melhorias, a situação da mulher continua
inferior ao homem uma vez que melhoram alguns indicadores, mas a desigualdade
entre os sexos permanece.
No caso específico os objetivos da pesquisa foram alcançados, tendo em vista que
as mulheres de Vereda Viana exercem atividades tradicionalmente atribuídas aos
homens como, por exemplo, o trabalho na colheita do melão e a quebra do milho. No
que diz respeito ao reconhecimento do trabalho feminino, durante todo o período de
coleta de dados foram detectadas informações relevantes: A primeira delas é o caso em
que a informante idealiza o seu trabalho como uma ajuda ao esposo, ou seja, para ela o
trabalho no melão não é seu por excelência, mas é uma atividade tipicamente masculina.
Outro caso detectado, durante informações fornecidas por uma das informantes, foi
aquele em que ela revela que em algumas circunstâncias os seus companheiros de
trabalho as denominam de “preguiçosas” ou incapazes de realizar o serviço.
Com exceção do primeiro caso, no qual aparentemente o trabalho feminino se restringe
às atividades relativas ao ambiente doméstico, as demais entrevistadas concebem
que as atividades que realizam são, de fato, trabalho. De acordo com as informações
das entrevistadas e resultados obtidos, não há uma delimitação ou um limite entre
as atividades concernentes ao universo feminino e o espaço masculino. E por fim,
as mulheres quilombolas têm procurado desbravar novos rumos de vida, novas
possibilidades, novos sonhos.
REFERÊNCIAS:
BEAUVOIR, Simone de. (1949). O segundo sexo – 2. A experiência vivida. São Paulo:
Difusão européia do livro.
BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. (2007) Trabalho e gênero no Brasil nos últimos
dez anos. Cad. Pesqui. [online], vol.37, n.132, pp. 537-572. ISSN 0100-1574. Disponível
em: www.scielo.br. Acesso em 20 de novembro de 2016.
COSTA FILHO, Aderval e outros (2005). Laudo de Identificação e Delimitação Territorial
do Quilombo Gurutubano (Norte de Minas). Brasília: UNB.
DEL PRIORE, Mary (2000). História das mulheres no Brasil.3° ed. São Paulo: Contexto.
HEREDIA, Beatriz Maria Alásia de. (1979) A morada da vida: trabalho familiar de
pequenos produtores do nordeste do Brasil.Rio de Janeiro: Paz e Terra.
HIRATA, Helena.(2014) Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade
das relações sociais. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em 27 de novembro
de 2016.
NEVES, Jorge Alexandre; FERNANDES, Danielle Cireno; HELAL, Diogo Henrique.
(Orgs) (2009) Educação, trabalho e desigualdade social. Belo Horizonte: ARGVMETVM.
O’DWYER, Eliane Cantarino. (2002) Quilombos: identidade étnica e territorialidade. Rio de
Janeiro: Editora FGV.
RIBEIRO, Carlos Antônio. (2009) Desigualdades de oportunidades no Brasil. Belo
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ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise (1979). A mulher, a cultura, a
sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
SCALON, Celi. (2009) Ensaios de estratificação. Belo Horizonte: Argvmentvm.
TOURAINE, Alain. (2006) A construção de si, Em: CRUZ, Antônio Oliveira (org.) O
mundo das mulheres. Joana Chaves. Lisboa: Epistemologia e Sociedade.
INTRODUÇÃO
Os estudos sobre mulheres tornaram-se crescentes a partir da década de 1970 no Brasil,
neste período as teorias feministas passam a desenvolver-se em nível epistemológico.
Segundo Rago (1998) não se tem clareza sobre a teoria feminista do conhecimento,
bem como a mesma tem sido pouco debatida no país. Epistemologia é a teoria do
conhecimento científico, Greco; Sosa (2008) compreendem que a epistemologia pode ser
norteada por duas questões: “O que é 2 conhecimento?” e “O que podemos conhecer?”
E se conhecemos algo, surge ainda uma terceira questão “como conhecemos o que
conhecemos?” Grande parte do que foi escrito na epistemologia abordaram uma
dessas questões. Longino (2008), salienta que este campo “[...] investiga o significado
das afirmações e atribuições de conhecimento, as condições de possibilidade de
conhecimento, a natureza da verdade e da justificação, e assim por diante.”
A teoria do conhecimento é um dos domínios da filosofia, o qual estuda as relações entre
objeto e o sujeito. No século XIX, os filósofos Kierkegaard e Nietzche estabeleceram
uma crítica ao racionalismo2. “Para eles o conhecimento não passa de uma atribuição
de sentidos, ou seja, não é possível uma explicação da realidade.” (CALVELLI; LOPES,
2012, p.350). Posteriormente, Foucault, Derrida entre outros ressaltam que o saber é
construído temporalmente, portanto o conhecimento não é permanente e universal.
Essas ideias trazem uma crise da razão e/ou ciência moderna, estabelecendo críticas ao
modo dominante de produção de conhecimento e com isso emergem novas tendências
epistemológicas, dentre as contribuições críticas, a feminista.
Diante disso, o objetivo deste estudo é realizar um levantamento dos artigos publicados
nos periódicos brasileiros, especificamente sobre epistemologia feminista, ou seja, o
modo que o produtor do conhecimento percebe as relações entre o objeto e o sujeito.
O presente estudo trata-se de uma pesquisa exploratória, que Gil (2008, p.27), define
como aquela que “têm como principal finalidade desenvolver, esclarecere modificar
conceitos e ideias, tendo em vista a formulação de problemas mais precisos ou hipóteses
pesquisáveis para estudos posteriores.”. Pode utilizar estudos de caso, levantamentos
bibliográficos e documentais, e aplicação de entrevistas.
Para desenvolver a pesquisa, optou-se por um levantamento de dados, buscando uma
aproximação inicial com a temática, pois como salienta Gil (2008, p.27) “Muitas vezes
as pesquisas exploratórias constituem a primeira etapa de uma investigação mais
ampla.” Para tal, utilizaram-se artigos científicos obtidos via bases de dados específicas.
As bases de dados podem ser entendidas como fontes formais e secundárias, bem
como, biografias, catálogos, dicionários, livros, manuais, entre outros. Optou-se pela
utilização de Bases de Dados, pela grande quantidade de dados reunidos e disponíveis
em um só ambiente. Entre eles, há artigos de periódicos, livros e produções dos
programas de Pós-Graduação.
Para a busca estratégica, intentando perceber quanto tem sido produzido, e onde
está sendo publicado, optamos por três bases de dados: Portal de Periódicos da
2 Racionalismo foi elaborado por René Descartes, o qual compreendia que “[...] a verdade está enraizada no bom uso da razão.”
(CALVALLI; LOPES, 2012).
Capes3; Scielo4 e Scopus5. A3 busca foi feita através do conceito chave “Epistemologia
Feminista”, sendo pesquisadas em conjunto as palavras “epistemologia e feminista”.
A presente pesquisa delimitou apenas artigos publicados em periódicos brasileiros.
A opção apenas por artigos, se deu pela especificidade desse tipo de publicações,
que dissipam informações de maneira mais dinâmica e rápida, se comparados com
livros, teses e dissertações que levam muito tempo para serem publicados, assim, os
artigos tornam-se a fonte mais atualizada sobre o objeto de estudo. A delimitação a
estudos publicados em periódicos nacionais, se deu intentando perceber quanto tem
sido produzido de conhecimento diretamente relacionado ao termo “Epistemologia
Feminista” no cenário nacional.
Com a busca, emergiram cento e dez resultados, destes foram selecionados dezessete
artigos, os quais em algum momento tratavam especificamente sobre “Epistemologia
Feminista”. Os critérios de seleção foram: primeiramente observamos se os artigos
eram publicados em periódicos brasileiros ou não; na sequência foi lido o título,
resumo e palavras-chave, com o intuito de identificar se havia o termo “epistemologia
feminista”. Na sequência os artigos foram lidos na integra.
1. O QUE É EPISTEMOLOGIA FEMINISTA?
Este campo não pretende ser a única forma de produção de conhecimento ou
buscar uma teoria universal, mas aponta para discussões de novas temáticas como
sexualidade, gênero, emoções, prostituição, entre outros. Deve-se considerar que
o sujeito do conhecimento está imerso no complexo contexto de relações sociais e é
influenciado por determinações culturais. Calvelli, Lopes (2012, p. 351) compreendem
que se modifica a tradicional ideia do:
[...] cientista isolado em seu gabinete, testando seu método acabado na realidade
empírica, livre das emoções desviantes do contato social, mas um processo de
conhecimento construído por indivíduos em interação, em diálogo pontos de
vista, alterando suas observações, teorias e hipóteses, sem um método pronto,
reafirma-se a ideia de que o caminho se constrói caminhando e interagindo.
Percebe-se que existe uma ruptura teórica e prática da maneira que se produz conhecimento,
a qual era embasada na razão, objetivando encontrar a verdade e o universalismo. Rago
(1984) considera que se a teoria feminista rompe com modelos dominantes é necessário
reconhecer que existem também permanências dessa tradição científica.
Questões feministas foram incorporadas em diferentes campos de conhecimento
científico. Os temas sobre mulher e gênero foram trabalhados pela historiografia
marxista, mas sofreu dificuldades em seu interior, pois foi secundarizado em relação as
3 Segundo a Capes o “O Portal de Periódicos da Capes oferece acesso a textos completos disponíveis em mais de 37 mil publicações
periódicas, internacionais e nacionais, e à a diversas bases de dados que reúnem desde referências e resumos de trabalhos acadêmicos e
científicos até normas técnicas, patentes, teses e dissertações dentre outros tipos de materiais, cobrindo todas as áreas do conhecimento.
Inclui também uma seleção de importantes fontes de informação científica e tecnológica de acesso gratuito na web.” Disponível em:
<https://www.periodicos.capes.gov.br/index.php?option=com_pcollection&Itemid=104>. Acesso em: 02 dez. 2016. O Portal de
Periódicos da Capes está disponível em: <http://www.periodicos.capes.gov.br/>. Acesso em: 19 out. 2016.
4 A ScientificElectronic Library Online (SCIELO), ou Biblioteca Científica Eletrônica em Linha, é uma biblioteca eletrônica que disponibiliza
uma coleção selecionada de periódicos científicos brasileiros. Disponível em: <http://www.scielo.br/>. Acesso em: 19 out. 2016.
5 Segundo informações disponíveis no site da Editora Elsevir o Scopus é“a maior base de dados de resumos e citações de literatura
científica revisada por pares, conta com ferramentas inteligentes para acompanhar, analisar e visualizar a pesquisa. O Scopus oferece
a visão mais abrangente sobre a produção de pesquisa do mundo nas áreas de ciência, tecnologia, medicina, ciências sociais e Artes e
Humanidades.”. Disponível em: <http://www.americalatina.elsevier.com/sul/pt-br/scopus.php>. Acesso em: 02 dez. 2016. A base de
dados Scopus está disponível em: <https://www.scopus.com/>. Acesso em: 19 out. 2016.
lutas de classe. Além disso, essa entrada foi possível porque o marxismo estava sendo
criticado pelos sinais de esgotamento em conceitos que se mostravam insuficientes.
Nota-se que temas feministas ao serem incorporados no campo epistemológico
dominantemente masculino, geram instabilidade e rupturas em questões tidas
como permanentes. Na inserção da mulher em um mundo masculino, onde ela não
é dominante da linguagem, a mesma luta para criar uma. Neste sentido a teoria
feminista constitui novos significados e categorias para interpretação dos fenômenos
que ocorrem.
A epistemologia feminista incorpora a subjetividade como forma de conhecimento que
é completamente contrária ao conhecimento objetivo das Ciências Naturais para a as
Ciências Humanas. (LONGINO, 2008). Defende o relativismo cultural, questiona que
o conhecimento visa atingir uma verdade pura e não pretende ser a única forma de
interpretação. Ressalta a historicização dos conceitos e as múltiplas descontinuidades
existentes.
Os principais pontos de crítica da teoria feminista são em relação aos conceitos do
saber ocidental que se volta para o interior da lógica da identidade, trazendo uma
reflexão incapaz de pensar a diferença e, portanto, caracterizando-se como excludente.
Baseando-se em conceitos universais de homem, branco, heterossexual, civilizado e
desenvolvido excluindo aqueles que não estão no padrão mencionado. Além disso, as
características masculinas são mais valoradas em detrimento às femininas, construindo
um imaginário em que a mulher pertence ao universo privado que é inferior à esfera
pública, a qual o homem deve fazer parte. (RAGO, 1984).
Percebe-se que esta produção de conhecimento constitui relações de poder e neste
sentido Rago (1984, p.5), lembra Foucault, que fundamentalmente questiona essas
concepções dominantes da cultural ocidental. Salientando que “[...] a produção
da verdade se daria pela coincidência entre o conceito e a coisa, no movimento de
superação da distância entre a palavra e a coisa, entre aparência e a essência. ”
Várias intelectuais observaram uma direção em comum entre a crítica feminista e as
teorias de filósofos como Foucault, trazendo a descrição das dispersões, que propõem
um novo modo de operar no processo de produzir conhecimento. A definição de
desconstrução de Derrida que sugere a decomposição “das sínteses, das unidades e das
identidades ditas naturais, ao contrário da busca de totalização as multiplicidades.”
(RAGO, 1984, p. 5). Scott (1990) vai dizer que a noção de desconstrução significa
investigar no contexto a forma que se exerce qualquer oposição binária, desconstruindo
a posição hierárquica, ao passo de aceitá-la como real, correta ou torna - lá naturalizada.
O ponto de partida da epistemologia feminista é o sujeito e para, além disso, consideram
que o mesmo encontra-se em um estado dinâmico, o qual é determinado culturalmente
e está presente em um complexo de relações sociais, sexuais e étnicas. Sendo assim,
compreende Rago (1984, p.6) que o sujeito:
[...] não deveria ser pensada como uma essência biológica pré-determinada,
anterior à história, mas como uma identidade construída social e culturalmente
no jogo das relações sociais e sexuais, pelas práticas disciplinadoras e pelos
discursos/saberes instituintes.
interativos. Assim, na medida em que o campo é percebido ele pode resultar em novos
conhecimentos e novos modos de controle exercidos sobre os componentes do campo.
Martin (2012 p. 501) percebe que “Um claro desafio feminista é acordar metáforas
adormecidas nas ciências, particularmente aquelas envolvidas em descrições do óvulo
e do esperma.” Acordar essas metáforas, faz com que o sujeito torne-se consciente
sobre as projeções culturais do que se está estudando, bem como das suas implicações.
Em decorrência disso, retira-se o poder de tratar práticas sociais sobre o gênero como
naturalizadas.
Neste sentido vale lembrar Scott, ela mostra que a diferença sexual das práticas e dos
fenômenos sociais foram construídos com base nos discursos que testemunham a favor
e, portanto, legitimam-na. A autora não concorda com a tese que a divisão sexual do
trabalho foi determinada por relações econômicas e pela industrialização ou que o
patriarcado modifica-se em função das relações de produção. Mas compreende que o
efeito da divisão sexual das práticas, a qual inferioriza a mulher física e mentalmente;
que leva a mulher ao trabalho doméstico e o homem ao trabalho das fabricas e
assalariado, é determinada por um discurso masculino.
Para falar em epistemologia feminista é necessário compreender que no cerne desta
teoria existe uma pluralidade de perspectivas diferentes, que advém de um movimento
social não consensual. Mesmo que exista em comum a luta por um saber que contemple
as mulheres e a busca por melhorias nas condições de vida das mesmas. Por isso, a partir
da década de 1970 fala-se em feminismos, ou seja, percebem-se as descontinuidades
existentes de uma história que resultou em diferentes pontos de vista: feminismo da
mulher branca, heterossexual, homossexual, negra, indígena, rica e pobre, portanto
existe uma multiplicidade de interesses e lutas envolvidas no interior do feminismo.
Ainda neste sentido é importante ter certo cuidado com a “reafirmação do sujeito
“mulher” e de todas as cargas constitutivas dessa identidade no imaginário social”.
(RAGO, 1989, p. 7). Pois, a partir de embates pela emancipação, pela visibilidade
feminina, por conquistas e expansão dos direitos da mulher, pelo fortalecimento de
sua identidade, que emergem manifestações feministas, as quais vão constituir um
campo do conhecimento. Mas esse campo teórico sofre algumas
transformações, como o descentramento do sujeito mulher, tendo em vista a
incorporação das relações de gênero nos estudos feministas. Ele retira a preocupação
de fortalecimento da identidade da mulher, portanto, na medida em que temos em um
primeiro momento o conhecimento sobre mulheres, temos em um segundo a categoria
relacional de gênero, o que faz emergir uma grande dificuldade em conceituar o campo
da epistemologia feminista.
2. RESULTADOS ALCANÇADOS
A partir do levantamento realizado emergiram dezessete artigos, os quais estão
apresentados no Quadro 01 a seguir.
Fonte: Os autores
Dos dezessete artigos encontrados, foi possível perceber que estes estão distribuídos
em dez periódicos brasileiros. Dentre eles, sete na Revista Estudos Feministas (41,1%),
dois na Revista Àrtemis (11,7%), e nos demais periódicos foram encontrados um
artigo, sendo eles: Revista Brasileira de Ciências Sociais (5,9%); Cadernos Pagu (5,9%);
Revista Brasileira de Direito (5,9%); Texto& Contexto Enfermagem (5,9%); Revista Pro-
posições (5,9%); Revista Sequência (5,9%); GEO UERJ (5,9%); e Revista Famecos (5,9%).
Segundo dados consultados na Plataforma Sucupira7, na área Interdisciplinar, os
periódicos são classificados no Qualis da seguinte forma: Revista Estudos Feministas,
A1; Cadernos Pagu, A1; Texto & Contexto Enfermagem, B2 e na versão impressa A2;
Revista Sequência, B2; Revista Àrtemis, B4; e Revista Famecos, B1. A Revista Brasileira
de Ciências Sociais, não está classificada na área Interdisciplinar, mas é A1 em
Antropologia/Arqueologia e também em Ciência Política e Relações Internacionais, o
mesmo ocorre com a Revista Pro-posições, que é A1 em Educação, A2 em Ensino e B2
em Antropologia/Arqueologia. Sobre a Revista Brasileira de Direito, não foi possível
concluir a busca na Plataforma Sucupira, porém no site da Revista8, consta que a
mesma é A1. Foram encontrados artigos no período entre 2004 a 2016, vale destacar
que em 2008 foi o ano que teve maior número (6) de publicações e em outros foram
encontrados somente dois ou nenhum artigo.
Intentando identificar em quais áreas do país está centrada a discussão sobre
Epistemologia Feminista, optamos por verificar qual a região das instituições a que
estão vinculados os autores dos dezessete artigos encontrados.
Gráfico 1. Região das Instituições de Ensino que os pesquisadores dos dezessete artigos
estão vinculados.
Fonte: Os autores
Dos dezessete artigos encontrados em periódicos brasileiros, quatorze são vinculados a
Instituições de Ensino (IES) brasileiras e três a IES internacionais. Dos quatorze artigos
brasileiros, apenas um está vinculado a IES da rede privada de Ensino, que é um a
artigo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Além desse, estão
alocadas na região Sul outros cinco artigos, os quais estão vinculados às seguintes
IES: Universidade Federal de Santa Catarina, dois artigos; e Universidade Estadual de
Ponta Grossa, Universidade Estadual de Maringá e Universidade Federal do Paraná,
um artigo. Nas demais regiões brasileiras, todas as IES são públicas, seja em nível
federal ou estadual e são as seguintes, cada uma responsável por um artigo: na região
Sudeste, Universidade de São Paulo, Universidade de São Paulo em parceria com
a Universidade Federal de Minas Gerais, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio
Arouca Fundação Oswaldo Cruz, Universidade Federal de São Paulo e Universidade
Federal de Minas Gerais; na região Nordeste, Universidade Federal de Pernambuco e
Universidade Estadual da Bahia; e região Centro-oeste, Universidade de Brasília.
Através do levantamento foram encontrados também três artigos publicados em
periódicos brasileiros, mas que seus autores estão vinculados a IES de fora do Brasil.
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar os entendimentos sobre os processos de
formação de identidade nas sociedades modernas pela visão de dois autores, o britânico
Anthony Giddens, especialmente em sua obra Modernidade e Identidade, e a americana
Nancy Fraser, em seu trabalho intitulado Repensando o Reconhecimento, para verificar
os pontos de proximidade e distanciamento entre eles. Num primeiro momento se
apresenta, ainda que de forma breve, a evolução teórica do conceito de identidade.
Após, os entendimentos e conceitos de ambos os autores sobre o processo de formação
da identidade nas sociedades modernas. Finalmente, se faz uma analise dos pontos de
congruência ou não entre ambos, sem ter qualquer pretensão de identificar qual dos
entendimentos estaria mais ou menos correto.
Abstract
This article aims to analyze the understandings of the identity formation processes in
modern societies by the sight of two authors, Anthony Giddens, especially in his work
Modernity and Identity, and Nancy Fraser, in her work named Rethinking Recognition,
to check the points of proximity and distance between them. At a first moment is
presented, albeit briefly , the theoretic understanding of the concept of identity. After,
the understandings and concepts of both authors on the process of identity formation
in modern societies. Finally, it´s made an analysis of congruence or not points between
them without any pretense of identifying with of the understandings is more or less
correct.
1 Doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense – UFF. E-mail: naty.alfaya@gmail.com
Introdução
As mudanças na vida dos indivíduos com a modernização, após o final do feudalismo
europeu, especialmente após o começo do século XX, alteraram profundamente os
mecanismos de formação de identidades individuais e as formas de relações sociais.
A ampliação de oportunidades, conhecimentos, tecnologia assim como o direcionamento
da vida para o aumento da produção, acúmulo de capital e necessidades cada vez
maiores de consumo, levaram os indivíduos a construir suas identidades de formas
distintas e a ver os outros indivíduos também de novas maneiras. O aumento da
competitividade e o enfraquecimento dos Estados nação a partir da aceleração da
globalização também influenciaram nestes processos.
O objetivo do presente artigo é verificar as posições de Anthony Giddens, especialmente
em sua obra Modernidade e Identidade, e de Nancy Fraser, focando prioritariamente
em seu trabalho intitulado Rethinking Recognition, em tradução de Edna Velloso de
Luna, a respeito do processo de formação das identidades individuais no contexto
das sociedades modernas, tentando compreender em quais pontos estes autores se
aproximam ou se afastam.
A metodologia eleita para a busca deste objetivo é uma revisão literária de alguns dos
autores que representam pesquisas relevantes na temática da identidade, com seus
distintos entendimentos, dando especial atenção aos dois textos base já referidos de
Giddens e Fraser para compreender a visão destes dois autores sobre a temática.
Este trabalho começa por uma visão geral e breve da evolução do conceito de identidade
ao longo da história, passando por alguns autores, entre os inúmeros que poderiam ser
analisados, apenas para apresentar uma visão geral da ideia de identidade.
Após isso, são analisados mais detidamente os entendimentos sobre a questão da
formação da identidade nas sociedades modernas nos dois autores objeto deste
trabalho, quais sejam, Giddens e Fraser, nesta ordem.
Finalmente, a título de considerações finais, é feita uma comparação entre os
entendimentos dos autores acima citados, destacando o que os aproxima e o que os
afasta nesta seara.
1. Breve trajetória teórica do conceito de identidade
As discussões a respeito da ideia de identidade parecem ser tão antigas quanto
a própria capacidade da espécie humana de pensar e se expressar. Questões como
“quem somos?” tem povoado as pesquisas, filosofia, literatura e até imaginário de
todos os povos ao longo da história.
Exemplo disso é termo uma das primeiros noções estruturadas de identidade já nas
lições de Aristóteles, para quem “identidade” era compreendida como uma unidade
de substância. Isso é, que as coisas são idênticas quando são apenas uma ou quando,
embora sejam coisas separadas, possuam uma só matéria.
“Costumamos falar de ‘mesmo’ com respeito ao número ou com respeito à espécie (...).
Com respeito ao número, são um aquelas coisas cuja matéria é uma única (...). Com
respeito à espécie, são o mesmo coisas que são muitas sendo contudo indiferenciáveis
quanto à espécie, como por exemplo, homem e homem, cavalo e cavalo.” (ARISTÓTELES,
apud TUGENDHAT e WOLF, 1996, p. 131)
Passando para a filosofia clássica, podemos localizar algumas bases para a concepção
moderna de identidade em autores como Lock, para quem o indivíduo era definido
em termos de sameness (“mesmidade”) e continuidade de um ser racional e consciente
(HALL, 1999, p. 27); ou Descartes, para quem a identidade era constituída da capacidade
de raciocinar e pensar.
Nota-se que neste momento a identidade é vinculada intensamente com as
ideias de racionalidade e consciência de si mesmo, sendo assim uma concepção
fundamentalmente baseada em uma essencial estável, fixa, sempre coerente e que
não se altera com o tempo ou sob influência de quaisquer fatores, sejam eles internos
ou externos.
Essa visão foi alvo de intensas críticas nos âmbitos da sociologia e antropologia.
Autores como Stuart Hall esclarecem:
“(...) a sociologia (...) forneceu uma crítica do ‘individualismo racional’ do sujeito
cartesiano. Localizou o indivíduo em processos de grupo e nas normas coletivas as
quais, argumentava, subjaziam a qualquer contato entre sujeitos individuais. Em
consequência, desenvolveu uma explicação alternativa do modo como os indivíduos
são formados subjetivamente através de sua participação em relações mais amplas.”(
HALL, 1999, p. 31)
Embora Weber não tenha essa intenção, ele acaba por criar uma hierarquia entre os
tipos de ação, na qual a racional referente a fins é colocada acima das demais. Por conta
desta valoração, Weber dá grande importância ao papel da racionalidade no mundo
moderno.
Dentro deste contexto, onde o ator racional e a lógica de custo-benefício têm papel
central, sobra pouco espaço para o desenvolvimento de sentimentos de pertencimento
e identidades coletivas.
Weber tenta trabalhar as identidades coletivas quando desenvolve a ideia de ação
comunitária, definindo-a como aquela que é “orientada pelo sentimento dos agentes que
pertencem a um todo.” (WEBER In:GERTH e MILLS. 1982, p. 215). Entretanto, este autor
não aborda questões como de que forma este todo é formado, quais sentimentos são
estes ou qual é a natureza do vínculo estabelecido entre os atores e o todo.
Por conta dessas questões não abordadas não é possível avançar muito no entendimento
sobre o conceito de identidade a partir dos estudos weberianos.
Durkeim, especialmente em sua obra A divisão do trabalho social, trabalha questões que
se envolvem com o desenvolvimento de um conceito de identidade, como a ideia de
solidariedade.
“Todo mundo sabe que gostamos de quem conosco se parece, de quem pensa e sente
como nós. Mas o fenômeno contrário não é menos frequentemente encontrado. É muito
frequente nos sentirmos atraídos por pessoas que não se parecem conosco, precisamente
por não se parecerem conosco.”(DURKHEIM, 1995, p. 20)
Por “não parecer conosco”, Durkheim não se refere a qualquer tipo de diferença, mas
aquela que complementa as deficiências de um determinado indivíduo, não aquela
que causa repulsa os afastamento. Dentro desta ideia, o autor entende a divisão social
do trabalho como esta diferença complementar que gera a solidariedade entre os
indivíduos. Na medida que em, nas sociedades modernas e complexas, não é mais
possível ao indivíduo viver isoladamente e produzir tudo que necessita para sua
sobrevivência, é criado um elo entre as pessoas, que, dependendo umas das outras,
passam a agir de forma solidária entre si.
Para o autor, esta ideia é tão evidente que sequer é necessário que seja investigada com
mais profundidade, entretanto, alguns questionamentos surgem dela que ficam sem
resposta. Como, por exemplo, se a divisão social do trabalho é condição impulsionadora
da solidariedade entre os indivíduos, porque a intensificação desta divisão com o
avanço da globalização e maior complexidade das sociedades modernas não se reflete
num aumento igual da solidariedade entre as pessoas? O que se observa na realidade
é o oposto, um aumento do individualismo e esgarçamento do tecido social, levando a
uma sobreposição dos interesses individuais aos coletivos.
Avançando para estudos contemporâneos, as posições essencialistas e cognitivo-
racionais são fortemente questionadas. Em oposição à estas, passam a ser destacadas
as dimensões culturais, relacionais e intersubjetivas da identidade, que passam a ser
vistas como construções, não como algo dado a priore.
Outro autor que pode ser destacado neste entendimento de identidade é Charles
Taylor, que tem como perspectiva que as identidades são construídas pelas relações
entre indivíduos que acontecem tendo a linguagem como ferramenta.
“Só sou um ‘self’ em relação a certos interlocutores: de um lado, em relação aos parceiros
de conversação que foram essenciais para que eu alcançasse minha autodefinição; de
outro, em relação aos que hoje são cruciais para a continuidade da minha apreensão de
linguagens de autocompreensão...”(TAYLOR, 1997, P. 55)
indivíduo ou grupo, mas sim o status dos indivíduos de determinado grupo identitário
como membros iguais dentro da sociedade, com espaço e possibilidade de participarem
da vida social plenamente.
Assim, quando os indivíduos são vistos pelo corpo social como igualmente membros,
independente de suas identidades, então é possível dizer que existe reciprocidade e
reconhecimento entre os distintos grupos identitários dentro daquela sociedade. Ao
contrário, quando membros de um determinado grupo identitário são vistos pelo corpo
social como inferiores, menores ou mesmo quando são invisibilizados, não contando
assim com espaços e oportunidades iguais para participar da vida social, neste caso se
verifica o não-reconhecimento e a subordinação.
Dentro do modelo de status estruturado por Fraser “o não-reconhecimento não é nem uma
deformação psíquica, nem um dano cultural independente, mas uma relação institucionalizada
de subordinação social.” (FRASER, 2010, p. 121.)
O não-reconhecimento aqui não é algo no âmbito do discurso, mas sim práticas
institucionalizadas de segregação e dominação social de alguns grupos frente a outros.
Neste contexto são as próprias instituições sociais, legais, governamentais que criam,
reforçam e garantem estas subordinações, impedindo a igualdade entre os membros
da sociedade.
Em algumas situações a subordinação pode estar firmada na legislação, como a não
paridade de casamento entre casais heterossexuais e homossexuais, ou pode ser gerada
por políticas governamentais ou práticas profissionais, como os chamados perfis
raciais da criminalidade, ou ainda em costumes de longa data, em tradições. Em todos
os casos a injustiça é a mesma na medida em que padrões institucionalizados fazem
com que alguns membros sejam tratados como menos do que membros integrais da
sociedade, como menos iguais.
Conclusão
A questão de como as identidades são formadas nas sociedades pós-tradicionais, e
como estas identidades se relacionam entre si é uma temática que recebe muita atenção
de diversos estudiosos de diferentes formações, no entanto, permanecem muitas
questões ainda polêmicas ou conflituosas.
Cada autor, ou grupo de autores, enxerga as questões sobre identidade por um viés
específico, fazendo com que algumas posições se tornem opostas, ou ao menos,
divergentes. Este é o caso dos autores aos quais este trabalho se dedicou, Anthony
Giddens e Nancy Fraser.
Giddens analisa a formação de identidades por uma perspectiva histórica e
individualista, usando, inclusive, a expressão auto-identidade. Este autor compara as
identidades estagmentadas das sociedades tradicionais, onde cada membro já nascia
com seu papel social determinado, com um destino quase inescapável, com o complexo
processo de formação de identidades nas sociedades modernas, que envolvem fatores
diversos como relações de confiança e familiares, relações como meio ao redor, com as
experiências de vida e até a personalidade própria. Embora todas estas relações sejam
importantes para o processo, Giddens enxerga a identidade como sendo individual,
formada e mantida pelo processo que tem como agente central o próprio indivíduo.
Fraser possui uma leitura diferente deste fenômeno. A autora analisa as identidades
nas sociedades modernas através de suas relações umas com as outras, ou seja, não
considera, como Giddens, que o processo de formação de identidades acontece
centrado no indivíduo, mas sim que as identidades são formadas umas em relação
com as outras, numa forma de escalas de reconhecimento, onde as considerações,
positivas e negativas, das características de determinado grupo identitário conferem
maior ou menor reconhecimento como membros iguais na sociedade aos indivíduos
que pertencem a ele.
Isso quer dizer que, para Fraser, as sociedades modernas hierarquizam os grupos
identitários, considerando que os indivíduos pertencentes a um determinado grupo
são mais merecedores de consideração, respeito e reconhecimento como membros
valiosos da sociedade que outros. Essa hierarquização é feita por padrões culturais e
históricos de cada sociedade gerando grupos privilegiados, aquelas cujas identidades
são melhor vistas, e grupos oprimidos, cujas identidades são consideradas menos
relevantes.
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ROYER, Nathalya
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito (PPGSD) Universidade Federal Fluminense (UFF)
nah_royer@hotmail.com
RESUMO
O reconhecimento do direito à educação infantil pública e gratuita, primeira etapa
da Educação Básica, consistiu em uma conquista histórica para as mulheres e suas
famílias. A partir da Constituição de 1988 e posteriormente pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente (1990) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), o tema
deixou de ser tratado como uma política de assistencialismo focada nos setores mais
pauperizados da classe trabalhadora para ser visto como um direito fundamental de
caráter público, gratuito e universal, logo exigível por todos. Neste sentido, o trabalho
em questão teve o intuito de tentar compreender se as creches são políticas públicas
que acentuam ou atenuam a divisão sexual do trabalho. Para tal, buscou-se analisar,
através de uma perspectiva histórica, como foi o reconhecimento do direito à educação
infantil pública, qual a sua importância na vida das famílias brasileiras e em especial
das mulheres.
ABSTRACT
The recognition of the right to free public and early childhood education, the first stage
of Basic Education, consisted of a historical achievement for women and their families.
From the 1988 Constitution and later on by the Statute of the Child and the Adolescent
(1990) and the Law of Directives and Bases of Education (1996), the issue ceased to be
treated as a welfare policy focused on the most impoverished sectors of the working
class to be seen as a fundamental right of public character, free and universal, soon
demandable by all. In this sense, the work in question had the intention of trying to
understand if day care centers are public policies that accentuate or attenuate the
sexual division of labor. In order to do so, we sought to analyze, through a historical
perspective, how the recognition of the right to public early childhood education was
and how important it was in the lives of Brazilian families, especially women.
Keywords: Child education, sexual division of labor, women’s work.
INTRODUÇÃO
O reconhecimento do direito à educação infantil pública e gratuita, primeira etapa
da Educação Básica, consistiu em uma conquista histórica para as mulheres e suas
famílias. A partir da Constituição de 1988 e posteriormente pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente (1990) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), o tema
deixou de ser tratado como uma política de assistencialismo focada nos setores mais
pauperizados da classe trabalhadora para ser visto como um direito fundamental de
caráter público, gratuito e universal, logo exigível por todos.
Nesse sentido, o trabalho em questão teve o intuito de tentar compreender se as creches
são políticas públicas que acentuam ou atenuam a divisão sexual do trabalho? Para tal,
buscou-se analisar em uma perspectiva histórica como foi o reconhecimento do direito
à educação infantil pública, qual a sua importância na vida das famílias brasileiras, em
especial das mulheres.
1. BREVE HISTÓRICO DO SURGIMENTO DAS CRECHES NO BRASIL
Estudos sobre a maternidade no período da escravidão revelam que a atividadematernal
possuía pouca relevância social. As escravas possuíam em média apenas três dias de
descanso após o parto, em seguida, eram obrigadas a retornar ao trabalho forçado. A
criança escrava era imediatamente incorporada à rotina de exploração imposta pelo
modelo de produção escravocrata, sendo carregada, recém nascida, às costas da mãe
durante o trabalho.
Percebe-se assim que havia uma desvalorização do papel da mulher-mãe, em
especial sendo ela negra. As escravas eram as que mais sofriam, tendo em vista a sua
própria condição de “coisa”. Em regra, as crianças da época pouco valor simbolizavam,
tanto por conta dos altos índices de mortalidade infantil, tanto pela não definição
exata do que seria a infância. As crianças eram vistas como pequenos adultos que só
precisavam sobreviver para serem integradas no sistema produtivo.
Na primeira infância, até os seis anos, a criança branca era geralmente entregue à
ama-de-leite. O pequeno escravo sobrevivia com grande dificuldade, precisando
para isso adaptar-se ao ritmo de trabalho materno. Após esse período, brancos
e negros começavam a participar das atividades de seus respectivos grupos.
Os primeiros, dedicando-se ao aprimoramento das funções intelectuais, e os
segundos iniciando-se no mundo do trabalho ou no aprendizado dos ofícios.
(CIVILETTI, 1988, p.65)1
As mulheres escravas trabalhavam tanto quanto os escravos homens, mas, além disso,
sofriam constantemente abusos sexuais e estupros pelos seus senhores. Os filhos
recém nascidos fossem ou não fruto dessa relação de violência eram constantemente
afastados de suas mães. As escravas que eram usadas ou alugadas como amas de leite
dos filhos dos senhores eram separadas de seus próprios filhos. Esses recém nascidos
escravos eram deixados na Roda dos Expostos.2
CIVILETTI (1988) aponta que em um período pós-escravidão, a Casa dos Expostos
teria se transformado na precursora da creche no Brasil. De acordo com a autora, a
Lei do Ventre Livre fez diminuir o número de crianças deixadas na Roda e com a
1 CIVILETTI, Maria Vittoria Pardal. A Creche e o Surgimento da Nova Maternidade, 1988. Dissertação. Centro de Pós- Graduação
em Psicologia, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1988, p.65.
2 A Roda dos Expostos era um mecanismo presente nas Casas de Misericórdia pelo qual uma criança era depositada em um
cilindro giratório que a entregava do lado oposto, sem que as identidades de quem a deixou e quem acolheu a criança fossem
reveladas.
abolição da escravatura essa prática teria entrado em declínio. Por volta do ano de
1880 começou a surgir no Brasil o discurso sobre creche para as crianças pobres. A
partir disso, a Casa dos Expostos teria sido usada como local de guarda das crianças
enquanto suas mães trabalhavam3.
Inicialmente, as creches foram sendo implantadas sob uma perspectiva assistencialista
como forma de vigilância e guarda dos filhos das mulheres pobres da classe
trabalhadora. As indústrias, a partir de 1920, passaram a reservar espaços físicos em
seus estabelecimentos destinados aos cuidados dos filhos de suas operárias. Importante
perceber, que não se pode conceber as creches daquela época aos olhares atuais. O
objetivo central a ser alcançado com essas creches era a criação de um espaço que
permitisse ao capital a exploração da mão de obra feminina, sem prejuízo de sua prole.
Em 1943, estabeleceu-se, através do Decreto - lei 5.452, que aprovou a Consolidação
das Leis do Trabalho, a obrigatoriedade das empresas com mais de 30 mulheres a
promoverem o atendimento em creche para os filhos de suas funcionárias.
Até a década de 1950 a creche era restrita a função de guarda, na medida em
que o trabalho feminino era visto como exceção, pois predominava a idéia
de que caberia à mulher garantir a organização da casa e a criação dos filhos.
(PICANÇO, 1996, p.35)4
Essas creches por local de trabalho e/ou instituídas pela filantropia, funcionavam
como verdadeiros depósitos de crianças, com pouquíssimos recursos pedagógicos e
uma concepção médico-higienista. Sobre o assunto CIVILETTI (1988) aponta que entre
o período de 1942 a 1946 o departamento Nacional da Criança realizou um inquérito
em 29 creches em todo o país
[...] percebe-se a inexistência de elementos psicopedagógicos no atendimento.
Em 55% das creches não se separavam as crianças segundo sua faixa etária.
Embora 50% das creches acusassem a existência de jardim de infância, apenas
10% possuíam materiais pedagógicos disponíveis. Prevalece portanto a creche
de depósito e suas preocupações médico-higiênistas. 86% das creches contam
com algum tipo de acompanhamento médico e 72,4% dão banho nas crianças
imediatamente após a chegada ... 79,3% das creches são de particulares ou de
congregações religiosas e contam com escassa subvenção pública [....] 10,3% são
da LBA, e outros 10,3 são de fábricas. (CIVILETTI, 1988, pág. 100)
A inexistência de creches públicas neste período revela a não percepção desse espaço
enquanto direito. É importante salientar que todas as Constituições anteriores a de
1988 silenciaram em relação à educação infantil.
Isto porque, prevaleciam também as concepções muito conservadoras sobre a
maternidade. A boa mãe era aquela que se dedicava integralmente aos filhos, sem
precisar trabalhar. O bom pai era aquele que obtinha recursos financeiros suficientes
para sustentar sozinho, sua esposa e seus filhos. Sob essa lógica, reservavasse à mulher
o espaço privado da casa e do lar, enquanto os homens saiam às ruas à procura de
trabalho e autonomia financeira. Obviamente, os setores mais pauperizados da classe
trabalhadora não se enquadravam nesse modelo de família.
3 Ibid., p.67
4 PICANÇO, Mônica Bezerra de Menezes. A Creche na Rede Pública Municipal de Niterói (1978-1996), 1996. Dissertação. Curso
de Pós Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 1996, p.35.
Como desfecho dessa luta, anos depois, com a abertura política e o fim da ditadura
militar, a Assembléia Constituinte votou a inclusão do direito à creche no texto da
Constituição de 1988. Reconhecida à categoria de direito fundamental, a educação
passou a integrar o grupo de direitos que asseguram a sobrevivência e a formação
digna do ser humano e, por esse motivo, direitos universais. Desta forma, foi incluído,
pela primeira vez na história das Constituições brasileiras o direito à creche pública e
pré-escola para todas as crianças.
Art. 208- O dever do Estado com a Educação será efetivado mediante a garantia
de: ...
IV- atendimento em creche e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade
(BRASIL, Constituição, 1988, cap. III, art. 208, inciso IV)7
Destaca-se que a emenda constitucional n° 53, de 2006 alterou a letra desse artigo,
dando-lhe a seguinte redação: “Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado
mediante a garantia de: ..... IV. educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5
(cinco) anos de idade”. (Grifo Nosso)
A introdução desse dispositivo constitucional significou a concretização de uma
conquista democrática e social, como conseqüência da luta promovida pelos
movimentos sociais, gerando novos desdobramentos para as políticas públicas. A creche
finalmente havia sido reconhecida enquanto direito e mais do que isso, reconheceu-se
a creche como uma instituição de caráter educativo voltada para as crianças, isto é,
formalmente foi excluído o caráter assistencialista das políticas de creche.
5 ROSEMBERG, Fúlvia. (Org.). Creche – Coleção Temas em Destaque. 1ªedição. São Paulo: Cortez, 1989.
6 Ibid., p.45.
7 BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, Senado, 1988, cap. III, art. 208, inciso IV
na obtenção de um trabalho menos precarizado para a mulher. Por outro lado, pode-
se justificar a luta das mulheres por mais creches públicas como um instrumento de
superação dos padrões de dominação homem/mulher bem como exploradores/
explorados.
Nesse sentido, quebrar os padrões estabelecidos pelas relações sociais de sexo significa,
em um primeiro momento, reconhecer que historicamente as mulheres são vistas como
as responsáveis pelos cuidados e educação das crianças. A concepção de maternidade
abnegada e dedicada é vista como algo natural, inerente à mulher. A mulher seria
assim dotada de um instinto maternal desde o seu nascimento. O instinto maternal é
percebido como um dom e parte das características biológicas e fisiológicas da mulher.
Assim, quando se trata do cuidado, da educação e das responsabilidades com os filhos,
a maternidade e a paternidade não tem o mesmo peso, pois, a suposta aptidão para tal
está vinculada a mulher-mãe, como uma obrigação inerente a ela10.
A construção social da maternidade é parte integrante das desigualdades de gênero.
De acordo com SCOTT (1990)11 a palavra gênero indica uma rejeição ao determinismo
biológico, implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”12. O seu uso
rejeita explicitamente as justificativas biológicas. O gênero se torna uma maneira de
indicar as construções sociais - a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis
sociais destinados aos homens e às mulheres. Nesse mesmo sentido, BOURDIEU
(2009) aponta:
A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo
feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais,
pode assim ser vista como uma justificativa natural da diferença socialmente
construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho.
(BOURDIEU, 2009, p.20)13
10 “Na Sociologia e Antropologia dos sexos, masculinidade e feminilidade designam as características e qualidades atribuídas
social e culturalmente aos homens e às mulheres. Masculinidade e feminilidade existem e se definem em sua relação e por meio
dela. São relações sociais de sexo, marcadas pela dominação masculina, que determinam o que é considerado “normal” – e em
geral interpretado como “natural” – para mulheres e homens. A virilidade se reveste de um duplo sentido: 1) os atributos sociais
associados aos homens e ao masculine: a força, a coragem, a capacidade de combater, o “direito” à violência e aos privilégios
associados à dominação daquelas e daqueles que não são – e não podem ser – viris: mulheres e crianças; 2) a forma erétil e
penetrante da sexualidade masculina. A virilidade, nas duas acepções do termo, é aprendida e imposta aos meninos pelo grupo dos
homens durante sua socialização, para que eles se distingam hierarquicamente das mulheres. A virilidade é a expressão coletiva
e individualizada da dominação masculina”. MOLINIER, Pascale; LANG, Daniel Welzer. Feminilidade, masculinidade, virilidade.
In: HIRATA, Helena; LABORIE, Françoise; DOARÉ; Hélène Le; SENOTIER, Danièle (orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São
Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 101-102.
11 SOTT, Joan. Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica. Traduzido pela SOS: Corpo e Cidadania. Recife, 1990.
12 “De modo geral, opomos o sexo, que é biológico, ao gênero (gender, em inglês), que é social. Na Biologia, diferenciação é a
aquisição de propriedades funcionais diferentes por células semelhantes. A diferença é o resultado de uma diferenciação. O estudo
das sociedades dos animais, incluindo a dos nossos primos primatas, revela uma grande variedade (indo do maior contraste até a
quase similitude) de “diferenças” – a assimetria entre fêmeas e machos – características sexuais secundárias e comportamentos que
asseguram a reprodução, a criação dos filhos e a obtenção de alimento […] As sociedades humanas, com uma notável monotonia,
sobrevalorizam a diferenciação biológica, atribuindo aos dois sexos funções diferentes (divididas, separadas e geralmente
hierarquizadas) no corpo social como um todo. Elas aplicam uma “gramática”: um gênero (um tipo) “feminino” é culturalmente
imposto à fêmea para que se torne uma mulher social, e um gênero “masculino” ao macho, para que se torne um macho social. O
gênero se manifesta materialmente em duas áreas fundamentais: 1) na divisão sociossexual do trabalho e dos meios de produção;
2) na organização social do trabalho de procriação, em que as capacidades reprodutivas das mulheres são transformadas e mais
frequentemente exacerbadas por diversas intervenções sociais (Tabet, 1985/1998). Outros aspectos do gênero – diferenciação da
vestimenta, dos comportamentos e atitudes físicas e psicológicas, desigualdade de acesso aos recursos materiais (Tabet, 1979/1998)
e mentais (Mathieu, 1985b/1991a) etc. – são marcas ou consequências dessa diferenciação social elementar”. MATHIEU, Nicole
Claude. Sexo e gênero. In: HIRATA, Helena; LABORIE, Françoise; DOARÉ; Hélène Le; SENOTIER, Danièle (orgs.). Dicionário crítico
do feminismo. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 222 -223.
13 BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2009, p.20.
Desta forma, na construção das relações sociais de sexo foi destinado às mulheres
o cuidado e a educação com os filhos. Sendo assim, na divisão sexual do trabalho14,
a maternidade cumpre também um papel de atenuar as conseqüências e efeitos da
não efetivação do direito à educação infantil. O Estado pode então negligenciar esse
direito, na medida em as mulheres são responsabilizadas pela educação das crianças,
preservando assim, a reprodução e manutenção da espécie. Os papéis de gênero
aparecem como uma determinante socialmente imposta não só pela família e pela
relação de dominação homem-mulher, mas pelo próprio Estado.
No entanto, é possível ainda notar que existe uma cobrança maior em relação ao
enquadramento das mulheres em uma maternidade abnegada, quando se observa de
forma consubstanciada a questão de gênero e classe. As mulheres trabalhadoras, mais
pauperizadas, por não disporem de recursos para pagar por uma creche particular
são mais expostas e cobradas em relação aos cuidados com os filhos. Sofrem assim,
com maior intensidade o peso das desigualdades de gênero, por ser uma opressão
combinada com o fator exploração. O oprimido tem seu campo de opções reduzido,
sendo objeto de um processo de dominação-exploração (SAFFIOTI, 1994, p.277)15
Nesse sentido, é importante se fazer uma diferenciação entre uma política de gênero
e uma política voltada para as mulheres. De acordo com FARAH (2004) políticas de
gênero são políticas públicas que têm como objetivo contribuir para a erradicação da
desigualdade entre as mulheres e os homens. Já as políticas públicas que tenham como
alvo as mulheres, se voltam mais para a sobrevivência de mulheres pobres e dos seus
filhos, não conduzindo a mulher a uma superação dos padrões de dominação.
Há programas que, embora focalizem as mulheres ou a elas dirijam módulos
específicos, acabam por reiterar desigualdades de gênero, reafirmando uma posição
tutelada e subordinada da mulher tanto no espaço público como no privado. (FARAH,
2004, p.65)16
O direito à creche pode ser sustentado como uma política de gênero na medida em
que contribui para que as mulheres rompam com a ordem de dominação masculina
imposta socialmente e que vincula a prática da maternidade ao desenvolvimento
da criança. A creche cria a oportunidade das mulheres saírem da esfera privada do
lar e desconstruam a idéia de “instinto maternal”. A efetivação da política de creche
significa a responsabilização do Estado pela educação das crianças.
Dentre os diferentes elementos apresentados, a creche deve ser compreendida através
de um olhar que vislumbra não somente a questão de gênero, mas também de classe.
14 A divisão sexual do trabalho, categoria utilizada para indicar a determinação e a execução de tarefas destinadas a homens ou a
mulheres, contribui para a manutenção das desigualdades no campo doméstico e profissional, gerando assim “uma diferenciação
de funções, com distribuição assimétrica do controle, da hierarquia, da qualificação, da carreia e do salário” nas relações de trabalho
(CRUZ, 2008). O alicerce da divisão sexual do trabalho pauta-se em dois princípios organizadores : “o princípio de separaçaõ
(existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem “vale” mais que um
trabalho de mulher)”. Tais princípios saõ concebidos como válidos para todas as sociedades, no tempo e no espaço. Estão sujeitos a
um processo específico de legitimaçaõ a ideologia naturalista, que diminui o gênero ao sexo biológico e limitam as práticas sociais a
“papéis sociais” sexuados que remetem ao destino natural da espécie (HIRATA; KERGOAT; 2007: 595 ss).Embora ambos princípios
estejam presentes em todas as sociedades e sejam legitimados pela naturalização, não significa que a divisão sexual do trabalho seja
algo imutável. Longe disso, a divisão sexual do trabalho tem uma capacidade de se modelar, já que suas modalidades variam no
tempo e no espaço. O que são sólidas, não são as situações, que evoluem sempre, mas a distância entre os grupos de sexo (HIRATA;
KERGOAT; 2007: 595 ss).
15 SAFFIOTI, Heleieth B. “Pósfácio: Conceituando Gênero”. In: Saffioti, H., Munhoz-Vargas, M. (orgs). Mulher Brasileira é assim.
Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasília: UNICEF, 1994, p.277.
16 FARAH, Marta Ferreira Santos. Gênero e políticas públicas. Florianópolis: Revista Estudos Feministas, 2004, p.65.
GT: 4 - Antirracismo
e sociedade
Coordenadores: Roberto Carlos da Silva Borges
e Glenda Cristina Valim de Melo
RESUMO
Nesse artigo, retomamos a questão da autoidentificação racial das para observar, após
a implementação da Lei nº 10.639/03, como em um Centro Municipal de Educação
Infantil da rede do Recife como vinte e seis crianças pequenas do Grupo IV, entre 4 e 5
anos, fazem a sua identificação racial num contexto escolar que as incentiva a reeducação
das relações étnico-raciais. Reconhecendo que as crianças são protagonistas sociais,
bem como sujeitos de direitos, propusemos que elas fizessem seu autorretrato e a partir
dele expressassem a sua cor. Nesse contexto, visibilizamos que as crianças estão aptas
para se nomearem racialmente, pois apesar de não fazerem uso dos termos utilizados
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, nem dos termos empregados no
Censo Escolar proposto pelo Ministério da Educação, elas se aproximam bastante das
categorias comumente utilizadas pela população brasileira. Logo, defendemos que
sejam propostas metodologias que oportunizem as vozes das crianças sobre as suas
percepções raciais.
ABSTRACT
In this article, we retake the question of the racial self-identification of children to
observe, after the implementation of Law 10.639 / 03, as in a Municipal Infant Education
Center of the Recife network as twenty six small children of Group IV, between 4 and
5 years , Make their racial identification in a school context that encourages them to
re-educate ethnic-racial relations. Recognizing that children are social protagonists, as
well as subjects of rights, we proposed that they make their self-portrait and from it
express their color. In this context, we see that children are able to name themselves
racially, because although they do not use the terms used by the Brazilian Institute of
Geography and Statistics, nor the terms used in the School Census proposed by the
Ministry of Education, they are very close to the categories Commonly used by the
Brazilian population. Therefore, we advocate that methodologies be proposed that
give the voices of children about their racial perceptions.
1. INTRODUÇÃO
A inclusão da cor da pele como elemento para distinguir a raça humana foi proposta
pelo fisiologista e antropólogo alemão Blumenbach (1752-1840) e utilizada a partir do
século XVIII. Ele utilizava a relação entre a cor da pele e a região geográfica de origem
para classificá-las em: branca ou casuarina; negra ou etiópica; amarela ou mongol;
parda ou malaia; e vermelha ou americana. Assim, essa classificação se tornou operante
no Brasil e em outros países. De acordo com Rocha e Rosemberg (2007), a utilização da
expressão racial baseada na “cor da pele” é utilizada no Brasil desde o período colonial
e permanece até a atualidade.
Cor é um tipo de carisma baseado na aparência física de um indivíduo, e dá a
medida, em geral, da sua distância ou proximidade dos grupos raciais. Não se
trata, apenas, de uma escala de valores estéticos, mas também de uma escala de
valor intelectual e moral. […] No Brasil, opera no plano individual e coletivo
[…] e é a forma dominante para demarcar fronteiras, tanto entre grupos, quanto
no interior destes. O carisma de raça, no Brasil, raramente é evocado de modo
direto pelos brancos, que preferem utilizar a cor ou etnia, sendo evocado via de
regra, pelos negros (GUIMARÃES, 2005, p. 44).
É importante destacar que alguém só pode ter cor e ser classificado num grupo de
cor se existir uma ideologia em que a cor das pessoas tenha algum significado. Isto é,
“as pessoas têm cor apenas no interior das ideologias racistas”, conforme reconhece
Guimarães (2005, p. 44). De acordo com Osório (2003), enquanto no Brasil consideramos
a cor/raça para dados censitários, em outros países, os critérios utilizados são outros.
Assim, como exemplo, temos: a Índia, onde o que qualifica os indivíduos etnicamente
é a orientação religiosa; na Inglaterra, quem fala galês.
Nesse estudo, retomo essa questão para observar, após a implementação da Lei nº
10.639/03, como as crianças pequenas fazem a sua identificação racial num contexto
escolar que as incentiva a reeducação das relações étnico-raciais. De acordo com Osório
(2003, p. 7), um método de identificação racial é “um procedimento estabelecido para
a decisão do enquadramento dos indivíduos em grupos definidos pelas categorias de
uma classificação, sejam estas manifestas ou latentes”, podendo acontecer através da
autoatribuição e da heteroatribuição de pertença racial.
Reconhecendo que as crianças são protagonistas sociais, bem como sujeitos de
direitos, propusemos que elas fizessem seu autorretrato e a partir dele expressassem
a sua cor, uma vez que parto do princípio de que “cor não é uma categoria objetiva é
uma categoria racial, pois quando se classificam as pessoas como negros, mulatos ou
pardos é a ideia de raça que orienta essa forma de classificação” (GUIMARÃES, 2003,
p. 103-104). Nesse contexto, o que se pretendeu no presente estudo foi visibilizar a
percepção das crianças sobre a questão racial, tendo em vista que até os 16 anos de
idade a identificação racial da criança é realizada pelos pais nas pesquisas nacionais.
É compreensível, portanto, que a escola tem um papel importante na construção da
identidade da criança como criança e negra, pois desde a tenra idade elas percebem
a diferença racial e a utilizam para julgar, categorizar e atribuir valor umas às outras
como as pesquisas citadas anteriormente evidenciam. Assim, das 15 crianças que se
propuseram a fazer o desenho, cinco se declararam pretas; três brancas; duas marrons;
uma mel; uma caramelo; duas cor da pele e outra bege, demonstrando a outros sujeitos
de diferentes idades, a dificuldade que é definir a sua cor no Brasil.
Infantil, uma vez que acreditamos que a escola tem um papel importante para cumprir
nesse debate, pois a diversidade étnico-racial perpassa a nossa sociedade e invade as
creches e pré-escolas através de “modelos estético-corpóreos e culturais, elementos
constitutivos da identidade de bebês e crianças pequenas que sob nenhuma hipótese
podem ser ignorados, subestimados ou negligenciados pela política educacional”
(SILVA JÚNIOR, 2012, p. 69).
Sabemos que a nossa colonização resultou em um conjunto de elementos que gerou
profundas desigualdades sociais, étnicas e raciais que permanecem pulsantes até os
dias atuais. Quijano (2005) enfatiza que a América se consolidou como o primeiro
espaço/tempo da modernidade tendo como elementos pulsantes dessa constituição: a
codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados em raça e a articulação
das formas de controle do trabalho, de seus recursos e também produtos em volta do
capital e do mercado mundial. Nesse contexto, ao conceber as diferenças a partir da
ideia de raça, assentavam-se uns num plano superior aos outros.
Essa construção sobre a questão racial no Brasil tem fortes repercussões no campo
educacional. De acordo com Souza (1983), a construção de uma identidade negra, bem
como a da política exigem a contestação das primeiras figuras que ensinam ao sujeito a
ser uma caricatura do branco. Tal contestação se inicia, pois, desde a Educação Infantil.
Nesse sentido, explicitamos que assim como Abramowicz, Oliveira e Rodrigues
(2010), consideramos legítimo discutir a criança negra não como uma categoria
essencializada, que legitima uma visão que não apenas “pensa a criança”, precisamos
organizar nossos esforços numa abordagem que “vê uma criança”, considerando-a
não mais a partir de uma perspectiva universal, mas numa perspectiva singular. “Uma
criança e negra é um esforço de tornar compossível pensar raça, gênero, sexualidade e
classe social, como categorias minoritárias” (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2012, p. 51).
Assim, precisamos evidenciar a criança como sujeito social que, ao mesmo tempo em
que se forma, é também formado na trama das relações sociais, constituindo-se a partir
dessas relações uma criança e negra.
De acordo com Hédio Silva Júnior (2012), embora haja um aumento da preocupação
com as orientações para professores e gestores sobre a diversidade étnico-racial na
educação infantil, as ações desenvolvidas discorrem em um erro, pois estão centradas
na perspectiva da adoção de uma postura reativa, repressiva da discriminação e do
preconceito, quando a educação infantil pode fazer mais do que isso. Ela pode preparar
as crianças para a valorização da diferença étnico-racial e para a construção de uma
sociedade igualitária. Nessa direção, fundamentado pela Convenção sobre os Direitos
da Criança (BRASIL, 1990), superando a visão reducionista de pensar o racismo apenas
no âmbito escolar, Hédio Silva Júnior (2012) discorre sobre as formas de otimização
das práticas educativas de maneira que os valores e atitudes tenham como orientação
a formação de cidadãos aptos a conviverem naturalmente com a diferença humana.
Para a realização desse feito, desde a educação infantil, ele aponta dois ângulos:
O primeiro como espaço dentro do qual deve ser assegurada a interação
respeitosa e positiva com a diversidade humana, adequando-se os espaços
físicos, materiais didáticos e paradidáticos e preparando-se educadoras e
funcionários para serem agentes de promoção da diversidade; o segundo ângulo
situa a educação infantil como instrumento de transformação social no sentido
em que prepara a infância para valorar positivamente a diferença, dissociando
Nesse cenário, temos que organizar nas escolas desde a educação infantil práticas
pedagógicas de emancipação e solidariedade, nas quais as políticas para a infância
encarnem a viabilidade de oportunizar que as garantias legais possam se efetivar
como direitos, garantindo o acesso a práticas de cidadania, de respeito à cultura e ao
conhecimento, pois tal acesso articula-se intimamente com a circulação do poder. Mas
precisamos trabalhar no caminho da justiça social que almejamos.
As práticas vivenciadas na Educação infantil podem possibilitar a criança e negra, a
descoberta do seu pertencimento étnico-racial de uma maneira positiva, bem como
podem auxiliar as não negras a se relacionarem bem com a diferença. Entretanto,
segundo Cavalleiro (2010), o processo de socialização vivenciado nas escolas brasileiras
colabora para que as práticas do racismo e seus derivados sejam utilizados como armas
para estabelecer diferenças nas relações. Assim, as escolas se constituem em mais uma
instituição social em que as características raciais negras são usadas para depreciar,
humilhar e excluir. Assim, as crianças têm sua energia, que deveria estar voltada para o
seu desenvolvimento e para a construção de conhecimento e socialização, pulverizada
em repetidos e inócuos esforços para se sentirem aceitos no cotidiano escolar.
Logo, os espaços educativos como um todo e, particularmente, a Educação Infantil
precisam constituir-se como territórios qualificados onde são incorporados a educação
em/para os direitos humanos, a partir da interculturalidade, bem como os desejos e
valores de uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária. Neste sentido, precisam
assegurar uma prática intencional e planejada para a socialização das crianças. Para
caminharmos no sentido de reconhecermos o outro como outro, trazendo-o para a
centralidade da prática pedagógica, torna-se imprescindível reconhecer o papel da Lei
nº 10.639/03 que tornou obrigatório o ensino da História da África e dos africanos no
currículo escolar do ensino fundamental e médio, pois, além de resgatar historicamente
a contribuição dos negros na construção e formação da sociedade brasileira, essa lei
possibilita que a criança e negra seja visibilizada, respeitada e tenha a sua diferença
incluída na Educação Básica. Digo isso porque o que as pesquisam vêm evidenciando
trata-se de um grande descaso com essa população. Mas “mesmo quando explicitamente
ignorado e reprimido, a volta do outro, do diferente, é inevitável, explodindo em
conflitos, confrontos, hostilidades e até mesmo em violência” (SILVA, 2000, p. 97).
Essa não é, pois, a presença que almejamos para a criança e negra.
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
A entrevista com as crianças que se identificaram como brancas apresentou perspectivas
diferentes de ver-se como branco. Desta forma, ao refletirmos sobre a perspectiva
apresentada por essas crianças, as seguintes questões surgiram: como as crianças que
se reconhecem como brancas olham para si e para os outros? O que elas evidenciam:
a branquitude ou a branquidade? Estão felizes com a sua cor? Ou querem ser mais
clara ou mais escura? Cardoso (2010) destaca que os brancos são diversos e que a
branquidade pode se constituir como sendo crítica e acrítica. Sendo que a primeira
desaprova publicamente o racismo, enquanto que a segunda destaca que ser branco é
uma condição especial, um privilégio. Piza (2005)1 diferencia os termos branquitude e
branquidade, salientando que:
Ainda que necessite amadurecer em muito esta proposta, sugere-se aqui que
a branquitude seja pensada como uma identidade branca negativa, ou seja,
um movimento de negação da supremacia branca enquanto expressão de
humanidade. Em oposição à branquidade (termo que está ligado também
à negridade, no que se refere aos negros), branquitude é um movimento de
reflexão a partir e para fora de nossa própria experiência enquanto brancos. É o
questionamento consciente do preconceito e da discriminação que pode levar a
uma ação política antirracista.
identificar-se como branca, mesmo que não possua brancura” (CARDOSO, 2010, p.
51). Considerando-se branco e identificando os membros do seu grupo, a criança
demonstra ainda anseio de ser mais branca e de agregar à sua aparência elementos
que o caracterizem sem a menor sombra de dúvida como integrante dos brancos.
Reconhecemos que assumir-se branco está associado a prestígio, privilégios que,
desde cedo, são demarcados no cotidiano.
O depoimento de Jomo avança um pouco na discussão da branquidade. Reconhecendo-
se branco, reconhece também que são poucos os brancos da sua turma, mas destaca
que a cor não é importante para selecionar os colegas na hora de brincar.
as observações, foi possível atentar para o fato de que ele é uma criança de uma
família de classe média, bem diferente da maioria predominante na escola. Embora,
a princípio, a postura dele pareça refletir a incorporação positiva da diferença, pois,
para ele, o outro existe e a sua existência é importante. Jomo também apresenta o
olhar do homem branco que a partir de si, da sua posição de poder, vê-se a si mesmo
e aos outros. “Ele tem a cor da pele”. A cor dos protagonistas, demonstrando no seu
depoimento a incorporação do legado ocidental. O que se pode inferir é que embora a
necessidade da desconstrução da nomeação de um dos lápis de cor, como cor da pele,
tenha sido apresentada variadas vezes, na fala da equipe do CMEI, as crianças também
se envolvem fora da escola com situações onde há um reforço da naturalização da
superioridade branca, e esse lápis é socialmente utilizado como tal, assim as crianças
brancas fazem referência a ele para se autoidentificarem. A incorporação do lápis cor
da pele nos produtos que circulam socialmente, a sua nomeação como cor da pele e o
seu uso como representação de tal consolidam falsas verdades.
3.1 A minha cor é marrom, marronzinha, caramelo: a composição de um degradê Piza
e Rosemberg (2014) destacam que as coletas de dados sobre a cor no Brasil têm como
ponto bastante complexo a existência de uma variedade de cores no grupo dos pardos.
Os pardos podem ser compreendidos como resultantes como aqueles que estão no
entremeio, que transitam mais confortavelmente entre afirmarem-se ou não brancos
ou negros. “Este se constitui como o grupo em que a variação do pertencimento parece
ser maior e mais influenciada pelos significados sociais da cor” (PIZA; ROSEMBERG,
2014, p. 100). Isso também foi evidenciado na conversa com as crianças. Mas, por que a
identificação racial é tão complexa para as crianças e adultos que estão entre os pardos?
Dessa forma, desde pequena, ela vive de acordo com Munanga (2004a, p. 96), a maior
parte da população afro-brasileira, numa zona vaga e flutuante, esperando o dia de
fazer o “passing”. Para Gina, possuir características que a assemelhem mais aos grupos
menos hegemônicos, no caso, a população negra, é uma desvantagem. Entretanto,
mesmo que a menina tente negar ou branquear-se, os traços da sua cor negra estão nela.
Por conseguinte, se essa assertiva não fosse verdadeira, a menina teria se identificado
como branca. O que a menina pode já estar evidenciando é que a compleição desses
traços a seleciona como possível alvo de discriminações.
3.2 Eu queria ser laranja, cor de todo mundo: os meninos e negros e o ideal do
branqueamento “A minha negridão estava aí, densa e indiscutível. E atormentava-
me, perseguia-me, inquietava-me, exasperava-me” (FANON, 2005, p. 149). Esse
pensamento inicial sintetiza o incômodo dos meninos ao necessitarem declarar a sua
cor e dialogar sobre essa questão. Essa conversa foi permeada por silêncios, pausas,
ausências, fugas. O que faz com que para os meninos a cor pese tanto? Essa pergunta
ainda inquieta-me. Eles não se orgulham da cor, desejam ser mais claros ou mesmo
fogem dela. Os depoimentos explicitam isso.
A frase “Eu queria ser laranja, cor de todo mundo” nos revela a branquidade como
norma, a dificuldade que enfrenta a criança desde pequena sendo criança e negra. Esse
cenário que se reproduz desde o início do processo colonizador ainda repercute na
imagem da população negra. “Assim, o homem europeu ganhou, em força e identidade,
uma espécie de identidade substituta, clandestina, subterrânea, colocando-se como
“homem universal, em comparação com os não europeus” (BENTO, 2014, p. 31).
“No mundo branco, o homem negro encontra dificuldade na elaboração de seu
esquema corporal. O conhecimento do seu corpo é unicamente uma atividade de
negação. É um conhecimento em terceira pessoa” (FANON 2008, p. 104). Dessarte, para
os não brancos, nesse caso, para as crianças negras entrevistadas, poucos privilégios e
atenção. O menino enxerga um mundo branco o qual está distante do seu, certamente
cheio de benefícios não por ele desfrutados. Esse “todo mundo” a que ele se refere
perpassa o universo das crianças da sua sala que, não são na sua maioria brancas, mas
se faz presente nas propagandas, nos filmes, nos rótulos dos produtos, nas histórias
ouvidas. Preto como ele não são os bonecos, os super-heróis.
A criança reconhece que vive numa sociedade marcada pelas diferenças, e a diferença
que traz no seu corpo, a sua cor, marca a desigualdade de tratamento a ela destinado.
D’Adeski (2009, p. 137) nos explica que a caracterização cromática evidencia mais do
que a cor, explicitando também desejos e valores. Nesse sentido, o desejo de ser branco,
de não ser negro, de parecer-se com o branco, representa valores e ideais de poder
e também de beleza. Ele nos incita ainda a refletir sobre o ideal do branqueamento
como um fator de classificação decisivo, pois a hegemonia da referência estética do
branco produz uma identidade negra conflituosa, onde submetido a esse ideal, o
negro absorve a sua própria imagem vendo-se a partir deste universo branco. Logo, é
incitado a incorporar os valores deste a si, inclusive as características físicas.
Dessa forma, estabelece-se uma relação hierarquizada entre brancos e negros nas suas
variadas nuances de cor, permitindo ao negro posicionar-se estrategicamente na rota
de fuga desse lugar, buscando acomodar-se no modelo superior, isto é, no branco.
Para Piza (2005)2, o ideal de branquidade assimila elementos do racismo, mesmo que
isso ocorra de forma inconsciente ou não expressa. “Para negros apresenta-se como
uma barreira para a construção de uma identidade racial positiva (a negritude), já
que os modelos de humanidade positiva são brancos”. É importante observar que os
meninos e negros ainda têm uma beleza negada. Enquanto as meninas são incentivadas
socialmente e, também na escola, a desenvolverem uma variedade de penteados e a
usarem artefatos para o enriquecimento da sua imagem, aos meninos resta o cabelo
raspado, com máquina, bem baixinho, fato também evidenciado nas pesquisas de
Dias (2007) e Amaral (2013, p. 175-176) “[...] com o intuito de discipliná-los e/ou
moldá-los de modo mais similar ao pertencimento racial do grupo branco, os meninos
perdem os cabelos, resolvendo assim de modo mais fácil a necessidade de aceitação e
assimilação da norma branca”. É a brancura dos outros que atrai o menino. Brancura
que representa o puro, o bom, o bonito, o amável, o inteligente, representando o desejo
latente de negar-se a si mesmo. Octavio Ianni (1972) já destacava que o branqueamento
apresenta-se como um desejo universal, representando o desejo dos morenos claros,
escuros e negros.
3.3 Eu sou preta, preta, pretinha
Para Steven Biko (1990, p. 65), “ser negro não é uma questão de pigmentação, ser
negro é reflexo de uma atitude mental”. O que se observa no depoimento das meninas,
diferentemente dos meninos, é que elas demonstraram segurança e orgulho quanto
à sua autoidentificação de criança e negra. O que está interferindo positivamente
na construção da autoestima dessas meninas? Elas falam sobre isso e nos ajudam a
entender a construção da sua negritude. Para D’Adeski (2009) a negritude é bem mais
do que a identificação racial. “Ela não somente é uma busca de identidade enquanto
forma positiva de afirmação da personalidade negra, mas também um argumento
político diante da relação de dominação” (D’ADESKI, 2009, p. 141). Concordamos então
com Gomes (2003), que é um grande desafio a construção de uma identidade positiva
negra na nossa sociedade, pois há vários séculos é enfatizado para essa população que
para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo. Assim, afirmar-se preta, pretinha, desde
pequena é uma grande conquista para a infância dessas meninas.
firma durante uma conversa que deixa o cabelo solto, enquanto todo mundo deixa
preso salientando também que a criança já reconhece que há uma diferenciação entre a
sua postura e a dos outros; assim, a criança resiste. Ela não se importa, não faz questão
de se enquadrar, tem contracondutas que, de acordo com Foucault (2008, p. 257),
[...] são movimentos que têm como objetivo outra conduta, isto é: querem
ser conduzidos de outro modo, por outros condutores e por outros pastores,
para outros objetivos e para outras formas de salvação, por meio de outros
procedimentos e outros métodos. São movimentos que também procuram,
eventualmente em todo o caso, escapar da conduta dos outros, que procuram
definir para cada um a maneira de se conduzir.
Reconhecemos também que é nas famílias que as crianças negras podem aprender a
lidar positivamente com o cabelo. Para Petronilha Silva (2015), as famílias, a comunidade
negra e o Movimento Negro precisam incentivar as crianças a terem orgulho do seu
pertencimento racial, do seu corpo e cabelo. Especialmente preparar suas crianças para
fazer face à educação escolar, à sociedade que se vê e se quer predominantemente branca
(SILVA, 2015, p. 166). Escapando da discussão “cabelo bom/cabelo ruim”, as meninas
deixam transparecer uma postura que fortalece o convívio numa sociedade onde as
diferenças existem e são necessárias. Esse também é um reflexo do cabelo proposto
no CMEI. As crianças são estimuladas a reconhecer as diferenças sem hierarquizá-las.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando essas percepções, destacamos que as crianças e brancas observam
as diferenças como algo natural, mas desejam ainda possuir mais traços que as
caracterizem como crianças e brancas. As crianças, que integrariam a categoria dos
pardos, utilizaram um verdadeiro degradê para se autoidentificarem, comprovando
a dificuldade do que é se definir como pardo no Brasil. Elas também evidenciaram o
desejo de possuir traços mais ligados ao fenótipo branco. Destarte, é preciso reconhecer
e fortalecer a compreensão de que as crianças que se autoidentificam como marrons,
marronzinhas, caramelos, também são crianças e negras, e que essa identidade precisa
de referências que as ajudem a compor o entendimento desse lugar de criança e parda,
como de também criança e negra.
Na autoidentificação dos meninos e das meninas que se reconheceram como pretos/
as, houve uma variação de gênero, pois os meninos apresentaram um mal-estar
com a sua condição de criança e negra, em contrapartida, as meninas demonstraram
orgulho e prazer. O que é um ganho imensurável para a questão, tendo em vista que a
população negra foi destituída dos lugares e formas de serem vistos positivamente. As
considerações sobre essa diferença de gênero pode ser compreendidas pela intensificação
das estratégias pedagógicas centradas nas meninas, e da não percepção ainda que
ser menina e negra é diferente de ser menino e negro. Ambos exigem tratamentos
diferenciados. Assim, ao valorizar a beleza negra, considerando prioritariamente as
meninas, não se avultam mudanças na percepção racial dos meninos.
Por fim, destacamos que a estratégia de desenho juntamente com a autoidentificação
revelou que as crianças estão aptas para se nomearem racialmente, pois apesar de
não fazerem uso dos termos utilizados pelo IBGE, nem dos termos empregados no
Censo Escolar proposto pelo MEC/INEP, elas se aproximam bastante das categorias
comumente utilizadas pela população brasileira. Logo, defendemos que sejam propostas
metodologias que oportunizem as vozes das crianças sobre as suas percepções raciais.
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Paulo, 2011.
Cristina Gomes,
Doutorado El Colegio de México, revalidado pela UNICAMP.
Email: cristinagomesmx@gmail.com
Juliana Magalhães
Direito (concluindo)
Universidade Católica do Salvador
Bolsista ITI CNPq
Email:julianamagalhaes1996@gmail.com
Introdução
O SUS garante acesso aos serviços de saúde para todos, mas persistem desigualdades
raciais e todos os indicadores de saúde, como as taxas de mortalidade infantil e por
causas externas, por diabetes, hipertensão arterial e doença falciforme são maiores na
população negra; o número de exames pré-natais, são piores para a população negra.
A Bahia tem a maior concentração de população negra no país e as maiores taxas de
doença falciforme. Diversos estudos realizados em outros estados do país indicam
que, apesar dos avanços na cobertura do quesito raça-cor nos registros de saúde,
como sistema de mortalidade e de nascidos vivos, os registros de morbidade e acesso
aos serviços carecem ainda de ampliar a cobertura e qualidade da informação racial.
Os trabalhadores da saúde necessitam de capacitações permanentes para garantir o
acesso e uma abordagem que garantam a equidade racial na saúde, de acordo com os
objetivos da Política Nacional de Saúde da População Negra.
Esta pesquisa combina uma articulação com os gestores da saúde a nível municipal e
om o PCRI para ampliação da cobertura e qualidade do quesito raça-cor nos registros de
saúde e a aplicação de um questionário a uma mostra representativa dos trabalhadores
da saúde (setores público e privado) de Camaçari, que inclui dados sobre família,
condições de trabalho, preenchimento de formulários, conhecimento de doenças
frequentes na população negra, opinião, atitudes e práticas em relação às doenças mais
frequentes da população negra, inclusive a anemia falciforme, e sua receptividade para
mudança de comportamentos para aumentar o acesso e qualidade da abordagem da
população negra nos serviços. Foram aplicados 634 questionários sobre características
sociodemográficas e familiares; condições de trabalho; preenchimento do quesito raça-
cor; conhecimento e atitudes e práticas em relação ao racismo; e capacitações.
1. Fundamentação teórica
No ano de 2001 foi realizada a III Conferência Mundial contra o Racismo Discriminação
Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, África do Sul que
teve como produto uma Declaração e Plano de Ação a qual apresentava uma serie de
medidas para combater o racismo em todos os setores da vida social incluindo a saúde.
Seguindo o recorte temporal destacamos também a criação, em 2003, da Secretaria
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) os movimentos sociais que
ANEXOS
Tabela 1
Unidades
PERGUNTAS OPÇÕES Hospital Emergências Especialidades Total
Básicas
Algum formulário Não 56,2 87,4 79,3 61,7 65,7
pergunta se o paciente Sim 25,6 2,0 2,3 21,7 17,9
tem anemia Não sabe 18,2 10,6 18,4 16,6 16,4
Não 6,1 1,2 1,1
Sabe o que é ou já ouviu
Sim 100,0 100,0 93,9 98,8 98,9
falar em anemia
Sim 33,2 18,1 11,5 35,4 29,4
falciforme?
Não sabe 19,4 4,8 18,4 12,0 14,2
Já recebeu capacitação Não 70,3 70,1 88,8 5 65,9
sobre Anemia Falciforme? Sim 29,7 29,9 11,2 45,9 34,1
Conhece as doenças Não 12,7 18,1 25,9 22,1 18,5
relacionadas com negros? Sim 87,3 81,9 74,1 77,9 81,5
Nunca 11,1 9,0 8,5 11,2 10,5
Algumas vezes 1,5 2,3 0,4 7,4 3,8
O Sr./a lê as opções de
Na maioria das vezes 1,7 0,8 5,0 2,6
cores para o paciente?
Sempre 3,5 6,6 10,9 44,5 20,5
Não se aplica 82,2 82,1 79,5 31,8 62,6
Nunca 3,8 9,2 26,4 49,3 24,5
Alguma vez preencheu a
Algumas vezes 1,1 5,6 10,9 14,6 8,0
cor-raça sem perguntar
Na maioria das vezes 2,3 3,1 2,5 1,6
para o paciente?
Sempre 12,9 1,3 3,1 6,2 7,5
Não tem dificuldade 34,0 26,3 19,8 29,8 29,6
Uma minoria 23,8 18,3 11,5 15,6 18,5
Em geral, na sua opinião,
Mais ou menos a
os pacientes teriam ou 18,5 19,6 23,3 20,6 20,0
metade
têm dificuldades para
Muitos 9,1 23,5 32,4 20,0 18,0
responder
Quase a totalidade 14,6 12,4 13,0 14,0 13,9
Sim 39,9 37,5 33,5 48,6 42,1
Como reage o paciente?
Naturalidade Sim 39,9 37,5 33,5 48,6 42,1
Surpresa Sim 24,0 30,7 30,4 24,4 25,9
Desconfiança Sim 24,7 32,4 22,7 16,5 22,6
Questiona/Não entende Sim 24,7 37,3 21,5 29,1 28,0
Incômodo Sim 23,4 29,0 31,4 20,1 23,9
Nega responder Sim 19,7 14,4 15,0 6,7 13,4
Irritação Sim 11,0 17,3 4,2 6,0 9,4
Nega assumir raça Sim 24,1 26,2 35,8 39,6 31,5
Outro Sim 4,5 3,8 8,5 7,7 6,0
RESUMO
A cidade de Armação dos Búzios é um dos destinos turísticos mais procurados no
Brasil, especialmente pela beleza de suas praias e por sua natureza preservada. O bairro
da Rasa, localizado na periferia da cidade, foi certificado pela Fundação Palmares
no ano de 2005 como comunidade quilombola, tendo, na memória coletiva de seus
moradores, narrativas sobre disputas pela exploração e contrabando de escravos, do
pau-brasil e mais recentemente, do próprio território. O presente trabalho apresenta
um recorte de uma pesquisa que teve como objetivo conhecer a visão dos jovens que
moram no bairro da Rasa, sobre a localidade em que vivem, analisando que elementos
identitários fazem parte da sua formação social e cultural. A metodologia utilizada é
de natureza qualitativa, através de revisão bibliográfica, questionário e observações.
ABSTRACT
The city of Armação dos Búzios is one of the most sought tourist destinations in Brazil,
especially for the beauty of its beaches and its preserved nature. The neighborhood
of Rasa, located on the outskirts of the city, was certified by the Palmares Foundation
in 2005 as a quilombola community, having, in the collective memory of its residents,
narratives about disputes for the exploitation and smuggling of slaves, pau-brazil and
more recently, of the territory itself. The present work presents a research that aimed to
know the vision of the young people who live in the neighborhood of Rasa, about the
locality in which they live, analyzing that identity elements are part of their social and
cultural formation. The methodology used is of a qualitative, through bibliographical
review, questionnaires and observations.
INTRODUÇÃO
A cidade de Armação dos Búzios é um dos destinos turísticos mais procurados no
Brasil, especialmente pela beleza de suas praias e por sua natureza preservada. O bairro
da Rasa, localizado na periferia da cidade, foi certificado pela Fundação Palmares
no ano de 2005 como comunidade quilombola, tendo, na memória coletiva de seus
moradores, narrativas sobre disputas pela exploração e contrabando de escravos, do
pau-brasil e mais recentemente, do próprio território.
O presente trabalho apresenta um recorte de uma pesquisa que teve como objetivo
conhecer a visão dos jovens que moram no bairro da Rasa, sobre a localidade em que
vivem, analisando que elementos identitários fazem parte da sua formação social
e cultural. A metodologia utilizada é de natureza qualitativa, através de revisão
bibliográfica, redação escrita pelos jovens, questionário e observações.
As observações, redações e aplicações de questionários ocorreram em três turmas de
9º ano de uma escola pública municipal localizada no bairro da Rasa. Participaram da
pesquisa 68 alunos. Foram feitas observações durante os meses de abril, maio e junho
de 2014.
A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE E O SENTIMENTO DE PERTENCIMENTO
DE JOVENS
Cercados, a todo tempo, pelas concepções neoliberais e de globalização, os jovens
percebem, nos mais variados ambientes, situações, comportamentos, publicações,
produções e exibições intelectuais e na mídia, que vivemos na era do global, do mundial
e do internacional, o que lhes impõe novas referências. Este mundo globalizado onde
impera um consumo exacerbado de informações, várias delas, descartáveis, distorce
percepções de tempo e espaço. Estas percepções se referem à significação da sua
cultura, de seus costumes e crenças e de suas origens como indivíduo.
Fruto desse ambiente, o jovem, muitas das vezes, perde suas raízes e, como consequência,
iniciam-se vários ciclos de incessante busca por reconstruir os seus significados.
Podemos inferir também que, diante destas questões, suas concepções se deslocam
permanentemente de um patamar para outro, perfazendo confusos caminhos para o
processo de reflexão.
Podemos perceber assim que as vivências atuais fazem com que os indivíduos se
deparem com uma grande multiplicidade de escolhas, e na juventude, principalmente,
uma dessas se refere ao que Giddens (2002) chama de estilos de vida:
(...) nas condições da alta modernidade, não só seguimos estilos de vida, mas
num importante sentido somos obrigados a fazê-lo – não temos escolha senão
escolher. Um estilo de vida pode ser definido como um conjunto mais ou menos
integrado de práticas que um indivíduo abraça, não só porque essas práticas
preenchem necessidades utilitárias, mas porque forma material a uma narrativa
particular da auto identidade (Giddens, 2002, p. 79).
sociológico: seria constituído através das relações sociais, mantidas pela relação do
sujeito com a sociedade; O sujeito pós-moderno, que na perspectiva de Hall (2003),
assume diferentes identidades em diferentes momentos, ou seja, no mesmo indivíduo
coexistem identidades contrapostas que são impulsionadas em diversas direções,
ocasionando contínuos deslocamentos.
Destacamos ainda que Hall não é adepto da teoria essencialista, aquela que pressupõe
que a identidade cultural é estabelecida ao nascer, naturalmente, como consequência
da herança genética familiar. Para esta teoria, a identidade não se permite afetar por
aspectos econômicos, políticos, sociais ou culturais.
Em relação ao sujeito do Iluminismo, onde o autor pontua considerar que este
permaneceria o mesmo ao longo de sua vida, ressaltamos que nesse momento histórico
não haviam a multiplicidade de escolhas que encontramos atualmente. Deste modo,
compreendemos que a identidade desse sujeito não seria considerada fixa e sim, uma
identidade que apresentava menos possibilidades de fragmentações e com mudanças
mais lentas do que as ocorridas no século XXI.
Assim como Hall, o teórico Castells (1996) cita a identidade como “o processo de
construção de significado com base em um atributo cultural, ou ainda, um conjunto de
atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(is) prevalece(m) sobre outras fontes de
significados”. (Castells, 1996) E, significado, como “a identificação simbólica, por parte
de um ator social, da finalidade da ação praticada por tal ator” (Castells, 1996).
Verificamos, na perspectiva de Castells (1996), que as identidades se ligam às atividades,
à história de vida, ao futuro, aos sonhos e fantasias de cada sujeito. Para o autor,
as identidades permitem, de um lado, sua percepção como sujeito único, tomando
posse de sua realidade individual e, portanto, da consciência de si mesmo. De outro,
permitem a diferenciação entre o eu e o outro, termo de comparação que possibilita o
destaque das características identitárias de cada um. Ou seja, a identidade refere-se a
um conjunto de atributos culturais, os quais se constituem fontes de significados para
os próprios atores.
Podemos perceber a construção da identidade através das interações com os diferentes
sujeitos e espaços sociais, nos quais buscam, a todo tempo, construir significados para
si mesmos. Moita Lopes (2002) pontua que “é na presença do outro com o qual nos
engajamos no discurso” que, em última análise, “conforme o que dizemos, o que
fazemos e como nos vemos à luz do que o outro significa para nós”. “O que somos,
nossas identidades sociais, portanto, são construídas por meio de nossas práticas
discursivas com o outro” (Moita Lopes, 2002, p. 32). Em relação aos espaços sociais
que são ocupados pelos jovens, Silva (2013) aponta que:
Diferentes contextos sociais fazem com que nos envolvamos em diferentes
significados sociais. Consideremos as diferentes “identidades” envolvidas em
diferentes ocasiões, tais como participar de uma entrevista de emprego ou de
uma reunião de pais na escola, ir a uma festa ou a um jogo de futebol, ou ir a um
centro comercial. Em todas essas situações, podemos nos sentir, literalmente,
como sendo a mesma pessoa, mas nós somos, na verdade, diferentemente
posicionados pelas diferentes expectativas e restrições sociais envolvidas em
cada uma dessas diferentes situações, representando-nos, diante dos outros, de
forma diferente em cada um desses contextos. (Silva, 2013, p. 31)
Para a Bauman (2008), esse caráter flexível da identidade humana não está relacionado
a “como obter as identidades de sua escolha e tê-las reconhecidas pelas pessoas à sua
volta” e sim a “que identidade escolher e como ficar alerta para que outra escolha possa
ser feita em caso de a identidade antes escolhida ser retirada do mercado ou despida
de seu poder de sedução” (Bauman, 2008, p. 187). Para o autor, os sujeitos devem
estar atentos a que espaço e momentos utilizar cada identidade que possui, fazendo
referência a multiplicidade de identidades que o contexto histórico atual exige.
Dessa maneira, também podemos destacar a força que as tecnologias digitais tem
imbricado na construção da identidade humana, que vem sendo cada vez mais
influenciada pelos estereótipos veiculados. A cada novo modelo apresentado, os
sujeitos procuram se adaptar para que possam fazer parte dele, como relata Hall (2011):
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos,
lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos
sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se
tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições
específicos e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados por uma gama
de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo
apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma
escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho,
que contribuiu para esse efeito de “supermercado cultural” (Hall, 2011, p.75).
Além das influências das relações e dos espaços sociais, os sujeitos ainda são afetados
por modelos e estereótipos apresentados a todo momento. Esse caráter de mudança de
identidade caracteriza o que Louro (2007) chama de identidades plurais e múltiplas:
Essas múltiplas e distintas identidades constituem o sujeito, na medida em
que esses são interpelados a partir de diferentes situações, instituições ou
agrupamentos sociais. Reconhecer-se numa identidade supõe, pois, responder
afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido de pertencimento
a um grupo social de referência (Louro, 2007, p. 12).
Para esta análise, trabalhou-se com a pesquisa qualitativa, tendo em vista que esta
forma de abordagem, que encontra eco na perspectiva de Lüdke e André (1986),
deverá priorizar os seguintes aspectos: a pesquisadora permanecerá em contato direto
com os sujeitos da pesquisa, levantando dados em seu ambiente natural, neste caso, na
escola municipal selecionada e no bairro em que os jovens vivem. Para os autores, na
pesquisa qualitativa destaca-se, principalmente, a pesquisa etnográfica e o estudo de
caso. Instrumentos estes que vêm ganhando muita aceitação e credibilidade no que diz
respeito a análises de questões relacionadas com ao ambiente escolar.
Foram feitas observações durante os meses de abril, maio e junho de 2014, nas três
turmas pesquisadas. Para que pudesse conhecer os jovens e a dinâmica da turma, fui
apresentada aos alunos como estagiária.
Essas primeiras observações foram importantes para perceber como os alunos se
comportavam em situações em que eram citadas questões em relação as localidades
em que vivem.
Em seguida, foi solicitado aos jovens que escrevessem uma redação. O objetivo da
redação era o de coletar as informações sobre a vivências dos alunos em relação à
cidade de Búzios, o bairro em que vivem e a escola em que estudam, podendo assim,
orientar a construção das perguntas dos questionários.
Ressaltamos aos alunos que a atividade não era avaliativa e que poderiam fazê-la
com liberdade e criatividade, assim, deixamos que levassem a atividade para casa,
combinando de devolvê-las três dias após. Infelizmente a maioria dos alunos não se
comprometeu suficientemente e foi necessário solicitar a direção da escola um momento
para que a realizassem durante o horário de aula. Após explicar a importância da
pesquisa para as três turmas, somente 27 alunos desejaram realizá-la.
Podemos observar na análise das redações que vinte e dois alunos escreveram em
sua redação a respeito de momentos de lazer e de ócio. Na maioria dessas redações,
foram pontuadas críticas como: “na minha cidade e/ou no meu bairro não tem nada
para fazer.”
Como apresentamos nos exemplos:
“Há 2 anos me mudei para Búzios. Já morei nesse bairro da Rasa antes, mas foi a muito tempo.
Me mudei para o Rio de Janeiro mas voltei a morar aqui. Moro na Vila Verde (onde também
não há nada). Apesar de ter espaços para eventos, a Rasa sempre foi assim, desatualizada. Por
isso é conhecida como “cidade turística”, mas isso não é boa coisa para os moradores da região.
Búzios, a Rasa, está sempre abrigando turistas em eventos mundiais como a Copa do Mundo,
mas quando esses eventos se vão, nós moradores ficamos na mesma rotina.” (ALUNO 1R)
“Sou de São Paulo e moro aqui em Búzios uns 5 anos. Assim que cheguei de São Paulo morei
em Manguinhos uns 2 anos. Atualmente eu moro no bairro da Rasa e sinceramente não gosto
muito! Aqui na Rasa não tem nada de interessante, se você quer se divertir tem que ir pro centro
ou pra Cabo Frio.” (ALUNO 2R)
[...] “Minha em vida em Búzios não é muito boa porque não tem muitas coisas para aproveitar.
Faltam muitas coisas e muitas coisas são muito caras.” (ALUNO 3R)
“Até que gosto de Búzios, sou apaixonada pelas praias, vou sempre que posso. Costumo sair
com os amigos e conversar com meus primos. Búzios não tem um lugar que reúna vários
adolescentes para fazer uma atividade maneira, pelo menos não no meu bairro. Moro aqui na
Rasa e não tem nada de bom para fazer!” (ALUNO 4R)
Através dos relatos dos alunos podemos observar que os jovens apresentam certa
insatisfação em morar no bairro da Rasa, tanto pela falta de opções de lazer, como pela
pouca atenção que os próprios moradores recebem em comparação com os turistas
que visitam a região. Ressaltamos, mais uma vez, que a utilização de espaços públicos
para manifestações de cultura e para socialização é uma prática comum na juventude.
Esses espaços permitem a sociabilidade que é tão importante e necessária nesta fase
da vida. Por isso, quando o ambiente não se torna propício para a utilização e visitação
desses jovens, é comum percebermos reações como as relatadas pelos alunos.
A convivência entre os jovens, assim como outras atividades, pode ser um importante
instrumento de formação, principalmente em bairros de periferia, onde os jovens
se encontram em grande número em praças, parques, etc. Isso porque é através da
troca de experiências, de sentimentos, de realizações e de inquietações, que os jovens
conseguem compartilhar sua visão do mundo, serem vistos e ouvidos pelos outros,
estreitando seus laços de amizade, familiar e de vizinhança. Reconhecendo assim a
importância da vida comunitária, que pode acentuar o sentimento de pertencimento
pelo bairro e pela cidade.
Percebemos ainda que onze alunos pontuaram questões relacionadas à cursos e
projetos.
Na maioria dessas redações, os alunos relataram o desejo em realizar alguma atividade
que não é oferecida na cidade em que vivem. Ainda que alguns jovens gostem do bairro
e dacidade em que vivem, necessariamente, para realização de aspirações futuras, terão
que se deslocar para outras localidades em busca de cursos, que poderiam também
fazer parte da ocupação do tempo livre.
Nos chama a atenção o pouco acesso desses jovens à cursos e projetos nas proximidades
das localidades em que vivem, principalmente, por considerarmos que os jovens das
camadas mais populares, necessitariam ser os sujeitos privilegiados dessas ações.
Observamos ainda que, o aluno 8R pontua que “Búzios é só pra rico, o que pobre faz
em Búzios?”, assim como o Aluno 3R, que destacou que, em Búzios, “muitas coisas
são muito caras“. Estes relatos são fortes e muito significativos como marcadores de
identidade. Refletimos sobre como vem sendo a construção da identidade destes
alunos que se sentem excluídos da cidade em que vivem por apresentar uma condição
financeira menos favorecida do que os turistas e investidores que frequentam a cidade.
Estas visões que os alunos apresentam demonstram claramente um sentimento de
pertencimento negativo em relação a cidade de Armação dos Búzios, considerando
que não podem fazer parte dela por não se considerarem “ricos”.
Nesse sentido, demonstrando insatisfação com a localidade em que vivem, nove
alunos relataram situações relacionadas ao consumo de drogas, sendo o segundo tema
mais pontuado. Na maioria dessas redações, os alunos relataram preocupação com o
envolvimento dos jovens com as drogas.
Ainda, sete alunos discorreram sobre a violência que tem acontecido no bairro em
que vivem e sobre educação e sobre a escola em que estudam; Oito alunos relataram
insatisfação com a estrutura física da cidade e/ou com o bairro em que vivem; Já sobre
as aspirações futuras, três alunos escreveram sobre o que desejam fazer nos próximos
anos; Três alunos pontuaram ainda a respeito de suas relações familiares.
A partir das observações realizadas nas turmas e análises das redações, elaboramos
um questionário em que os alunos que participaram da coleta de dados apresentaram
idade entre 13 e 17 anos. Destes, 62% informaram ser do sexo feminino e 38% masculino.
Em relação a “Como você se considera?”, 34% relataram se considerar amarelo (a), 32%
pardo (a), 19% preto (a), 10% outro (a), 3% branco (a) e 2% se consideram indígena.
Dos alunos que marcaram a opção outro (a), dois relataram que se consideram negro
e quatro relataram ser “morenos”.
Já em relação a cidade em que os alunos nasceram, 91% dos alunos relataram que
nasceram em outra cidade e apenas 2% nasceram na cidade de Armação dos Búzios,
7% não respondeu. A maioria, 26% dos alunos, informou ter nascido na cidade de
Cabo Frio.
Quanto ao bairro em que residem, a maioria, 41% dos alunos, informou que mora na
Rasa, seguidos de 26% de alunos que moram no bairro da Maria Joaquina, vizinho
e que pertencente ao município de Cabo Frio, o restante reside em outros bairros
próximos a Rasa.
Destes, 43% moram neste bairro de 11 a 15 anos, 35% de 6 a 10 anos, 18% de 1 a 5
anos e 4% moram neste bairro há menos de 1 ano.
A maioria dos alunos, 82%, consideram a cidade de Armação dos Búzios boa, 12%
ruim e 6% a consideram ótima. Já 55% dos jovens consideram o bairro em que vivem
bom, 34% consideram ruim, 9% consideram ótimo e 2% relatou outra resposta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desta pesquisa pudemos perceber que diante do fenômeno da globalização
as identidades têm sofrido modificações, principalmente no que diz respeito as suas
(re)significações. Observamos marcas de uma identidade que está a todo o momento
sendo construída e reconstruída.
Constatamos que a maioria dos alunos pesquisados é moradores do bairro da Rasa,
que fica inserido na periferia do município de Armação dos Búzios e que é constituído,
em grande parte, de famílias de classe econômica baixa, negros, remanescentes de
quilombolas.
Durante a análise das respostas, percebemos uma juventude com baixa autoestima ao
se expressar sobre sua vivência na cidade de Armação dos Búzios, considerando que
não fazem parte desse ambiente. Verificamos que esses jovens apresentam um maior
sentimento de pertencimento em relação ao bairro em que vivem do que em relação à
cidade de Armação dos Búzios.
Essa dura realidade, que incrementa a desigualdade entre as classes e desloca os
pobres para a periferia é o principal componente para que os jovens, nestas situações,
se sintam marginalizados. Nos centros urbanos e nos bairros de classe média ou alta,
eles sentem-se indesejáveis, por sua condição social e/ou cor de pele, bases de um
preconceito velado e dissimulado pela sociedade. Esses jovens sentem que a eles tem
sido negado o espaço, os bens materiais e as oportunidades.
REFERÊNCIAS
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GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade / Anthony Giddens; tradução, Plínio
Dentzien - Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
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Zygmund Bauman; tradução José Gradel - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
LOURO, Guacira. Gênero, sexualidade e educação. Uma abordagem pós-estruturalista.
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raça, gênero e sexualidade em sala de aula. Campinas: Mercado de Letras, 2002.
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/ Tomaz Tadeu da Silva (org.). Stuart Hall, Kathryn Woodward. 13. ed. Petrópolis/
RJ. Vozes, 2013. LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. - Pesquisa em educação: abordagens
qualitativas. São Paulo, E.P.U., 1986. 99p.
RESUMO
O município de Armação dos Búzios, no estado do Rio de Janeiro, oferece aos visitantes
uma geografia paradisíaca, belas praias e abundância da caça submarina, sendo um
atrativo roteiro turístico. O bairro da Rasa, localizado na periferia de Armação dos
Búzios, foi certificado pela Fundação Palmares no ano de 2005 como comunidade
quilombola, tendo na memória coletiva de seus moradores narrativas sobre disputas
pela exploração e contrabando de escravos, do pau-brasil e mais recentemente, do
próprio território. A presente comunicação visa descrever e analisar a política de
Educação Escolar Quilombola e sua implementação na comunidade de remanescente
de quilombo da Rasa, em Armação dos Búzios/RJ. Para desenvolver este trabalho, a
metodologia utilizada será de natureza qualitativa por meio de revisão bibliográfica e
análise documental.
ABSTRACT
The municipality of Armação dos Búzios, in the state of Rio de Janeiro, offers visitors a
paradisiacal geography, beautiful beaches and plenty of underwater hunting, being an
attractive tourist route. The neighborhood of Rasa, located on the outskirts of Armação
dos Búzios, was certified by the Fundação Palmares in 2005 as a quilombola community,
having in the collective memory of its residents narratives about disputes for the
exploitation and smuggling of slaves, pau-brasil and more recently , Of the territory
itself. This paper aims to describe and analyze the School Education Quilombola
and its implementation in the Rasa quilombo remnant community, in Armação dos
Búzios/RJ. To develop this work, the methodology used will be qualitative through
bibliographic review and documentary analysis.
INTRODUÇÃO
Quilombo da Rasa em Armação dos Búzios/RJ
A partir da promulgação da Constituição Brasileira de 1988, o conceito de quilombo,
inscrito no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) desde
1986 passou a conferir direitos territoriais aos remanescentes de quilombos, garantindo-
lhes a titulação definitiva de posse e uso de seus territórios tradicionais pelo Estado
brasileiro. Desde então, as Comunidades Remanescentes de Quilombos puderam
acessar via política pública o direito ao autorreconhecimento como demarcação de
pertencimento e identidade ligados a territórios étnico-raciais, e passaram também a
ser denominados como Povos e Comunidades Tradicionais.
A Comunidade Remanescente de Quilombo da Rasa está localizada em um bairro
periférico da cidade de Armação dos Búzios, na zona costeira do interior do estado do
Rio de Janeiro. Esse município se projeta no imaginário nacional a partir do oferecimento
de bens e serviços ligados à indústria do turismo, tendo como principal atrativo uma
geografia costeira tida como paradisíaca, belas praias e abundância da caça submarina,
o que lhe confere a procura por brasileiros e estrangeiros. Armação dos Búzios tornou-se
município autônomo apenas em 1995, através da Lei Estadual nº 2498, de 28 de dezembro
de 1995, sendo então desmembrado do município de Cabo Frio.
Como outros municípios costeiros do Sudeste, a pressão imobiliária, a falta de
reconhecimento e políticas públicas voltadas para a agricultura familiar e pesca
artesanal que são as atividades econômicas de esteio da maior parte da população,
imprimiu a marca da desigualdade social traduzida em bairros luxuosos preparados
para a recepção de fluxos turísticos, construídos a beira mar e nos morros rodeados
pelos últimos vestígios de Mata Atlântica. Esses locais muitas vezes testemunham a
expulsão dos moradores tradicionais a partir de pressão imobiliária de redes globais
de construtoras e hotelaria.
Até 2005 a localidade da Rasa era tida somente como mais um bairro pobre, distante
e em sua maior parte povoado por negros de renda familiar baixa. Foi a partir da
organização local que os membros da comunidade construíram documento de
autorreconhecimento pleiteando junto à Fundação Palmares sua certificação enquanto
Comunidade Remanescente de Quilombo.
Os moradores da Rasa expressam, a partir de narrativas, representações que se
remetem à memória social do passado escravocrata pautada por disputas pela
exploração e contrabando de escravos e do pau-brasil. Já sobre o período mais recente,
as trajetórias de vida das famílias são narradas a partir do desenrolar de conflitos
ligados ao território. Historicamente a cidade de Armação dos Búzios foi um porto de
desembarque de escravos, que passou a clandestino quando a campanha abolicionista
tomou o Brasil no final do século XIX.
No presente, o bairro da Rasa tem sido alvo da intensa especulação imobiliária,
processo que também se espraia por toda a cidade de Armação dos Búzios, alvo da
ação predatória e não sustentável social/econômica/ecológica de grupos empresariais
ligados à indústria imobiliária, turismo, comércio que, com apoio velado de políticos
locais, investem na construção de casas, condomínios de alto padrão e resorts.
Deste modo, cabe a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios
implementar, ajustar, adaptar e acrescentar o que julgam ser necessário de acordo com
as especificidades da comunidade quilombola local.
O currículo a ser implementado nas escolas quilombolas deverá ser baseado nas
orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica,
seguindo os eixos orientadores gerais da educação brasileira incluindo os valores
das comunidades quilombolas (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Básica, p. 462):
[...] a organização do tempo curricular deve se realizar em função das
peculiaridades de seu meio e das características próprias dos seus estudantes,
não se restringindo às aulas das várias disciplinas. Dessa forma, o percurso
formativo dos estudantes deve ser aberto e contextualizado, incluindo não só
os componentes curriculares centrais obrigatórios, previstos na legislação e
nas normas educacionais, mas também, conforme cada projeto escolar, outros
componentes flexíveis e variáveis que possibilitem percursos formativos que
atendam aos inúmeros interesses, necessidades e características dos educandos
(Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, p. 22).
O currículo da Educação Escolar Quilombola deverá “incluir nos seus princípios, nas
suas práticas curriculares e no seu projeto político-pedagógico o direito e o respeito
à diversidade étnico-racial, religiosa e sexual, bem como a superação do racismo, da
discriminação e do preconceito racial” (Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação
Básica, 2013, p. 463).
O material didático e de apoio pedagógico para a Educação Escolar Quilombola deverá
ser disponibilizado pelos sistemas de ensino e pelos estabelecimentos de Educação
Básica que deverão providenciar:
- Registro da história não contada dos negros brasileiros, tais como em
remanescentes de quilombos, comunidades e territórios negros urbanos e rurais
(p. 23) [...]
- Edição de livros e de materiais didáticos, para diferentes níveis e modalidades
de ensino, que atendem ao disposto neste parecer, em cumprimento ao disposto
no Art. 26A da LDB, e para tanto abordem a pluralidade cultural e a diversidade
étnico-racial da nação brasileira, corrijam distorções e equívocos em obras já
publicadas sobre a história, a cultura, a identidade dos afrodescentes, sob o
incentivo e supervisão dos programas de difusão de livros educacionais do MEC
– Programa Nacional do Livro Didático e Programa Nacional de Bibliotecas
Escolas (PNBE)
MEIRELLES, Delton R. S.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) e do
Departamento de Direito Processual da Universidade Federal Fluminense
deltonmeirelles@id.uff.com
RESUMO
O presente trabalho visa analisar o direito, considerando-o como fruto de fenômeno
histórico, cultural ou social, juntamente com sua relação com a sociedade. Além de
se estruturar a conexão existente entre o Estado e o Direito, pensando pela lente do
pluralismo jurídico, e como tal questão atua na problemática racial.
ABSTRACT
The present work aims at analyzing the law, considering it as a result of historical,
cultural or social phenomena, along with its relation with society. In addition to
structuring the existing connection between the State and the Right, thinking about
the lens of legal pluralism, and how such an issue acts in the racial problematic.
INTRODUÇÃO
Na relação entre direito e sociedade, depreende-se que o direito é a derivação de um
fato histórico-cultural ou um fato social. É o fruto de relações intersubjetivas, dando-se
na exigibilidade de um grupamento humano. A sociedade, por sua vez, é um conjunto
absoluto de diversos grupamentos, sendo assim, a noção de que o direito perpassa um
grupamento humano transmite a ideia de que existem Direitos que se submetem ao
Ordenamento Jurídico. Trata-se, pois, de um pluralismo jurídico.
Se concebemos a ideia de um pluralismo é necessário que se tenha a noção da diferença
entre os estados “Uni-nacionais” e os Estados Multinacionais e Pluriculturais. Se
trabalhamos em um Estado “Uni-nacional” não há o reconhecimento desse pluralismo,
pois todos os indivíduos formam, juntos, uma só nação. Fala-se, pois, de um único
grupamento absoluto, sociedade, que remete a um único direito. Nessa situação, são
reconhecidos apenas o direito do grupamento dominante, que, por sua vez, assume
o papel de titular da sociedade, ditando seus valores, princípios e costumes, fazendo,
assim, com que outros grupos sejam marginalizados e seus Direitos – pois também são
grupamentos humanos – não sejam reconhecidos.
Em Estados Multinacionais e Pluriculturais os Direitos são reconhecidos, logo, são
positivados e podem ser acionados pelos respectivos grupamentos, isto é, diversas
nações e culturas, que, juntas, em caráter absoluto, compõe a sociedade, podendo
formar a norma superior de todo o Ordenamento Jurídico, fazendo com que a realidade
social, cultural e histórica de cada grupamento seja reconhecida.
As formas de preconceitos derivam de um não reconhecimento. Se o direito é o
mecanismo de controle e regulação social é necessário que ele se adeque a real
necessidade dos indivíduos que compõe o limite territorial de sua atuação. O direito
quando não reconhece tais divergências, passa a ser fonte, instrumento, instituição que
ajuda de maneira direita ou indireta para as discriminações e preconceitos. No caso
brasileiro, há de se levar em consideração o racismo.
I. O RACISMO PELA LENTE DO DIREITO. COMO O FENÔMENO JURÍDICO
ATUA FRENTE À PROBLEMÁTICA RACIAL.
O racismo é uma lógica opressora, sendo assim, se dá na relação entre dominantes e
dominados. Aqueles são o grupo étnico branco, que oprimem estes: o grupo étnico
negro. Quando o Ordenamento Jurídico não aceita o pluralismo, o Estado não aceita a
pluriculturalidade e a multinacionalidade existe a colaboração para uma lógica racista.
Um domina e outro é dominado, fazendo, pois, que o Ordenamento jurídico seja, por
diversas vezes, fonte da problemática racial
Para colaborar no entendimento, trabalhou-se e pensou-se juntamente com a análise
produzida na Faculdade de Direito, situação em que se analisa a política de ação
afirmativa, a qual, por sua vez, é uma lei que visa a inclusão de parcelas marginalizadas
da sociedade. Tenta trabalhar com a noção da pluralidade e da diversidade.
II. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1. Pluralismo jurídico
Na significação dada pelo dicionário, a palavra pluralismo é considerada como:
“Qualidade do que não é único ou do que admite mais de uma coisa, categoria,
multiplicidade” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008 – 2013). Sendo assim,
a que existe entre direito e Estado é inegável. Aceita-se sem grandes questionamentos
que o Estado usa o direito de forma coercitiva, que o direito é o mecanismo de regulação
do Estado e da sociedade, e além disso, ambos, isto é, Direito e Estado, são perpassados
pela noção de grupamento humano. Todavia, para que tal Estado seja concebido é
necessário que certas mudanças ocorram dentro do Estado Mono-nacional.
Necessitamos inventar la democracia em el sentido intercultural y el Estado em
el sentido plurinacional, porque el Estado liberal moderno no va a volver. Su
crisis es irreversible y, por eso, lo peor que puede pasarmos nosotros no seamos
capaces de vivir este período con gran intensidad democrática y con un sentido
más profundo, más inclusivo de lo que es la bolivianidad. (SANTOS: 2007)
Para Frantz Fanon o mundo funciona sob a lógica eurocêntrica e os europeus, por sua
vez, são narcisistas e definem a humanidade sempre pelo ponto de vista da Europa,
logo, ser humano é ser branco. Quem não é branco não é humano, sendo assim, o
processo de humanização é um processo de embraquecimento. Tal concepção vai ao
encontro da concepção iluminista de considerar o homem a razão, todavia, ao se fazer
o recorte racial percebe-se que o homem branco é a razão, enquanto o homem negro é
a emoção, que, por sua vez, deve sempre ser contida, afinal, pela lógica iluminista tudo
é sempre um processo racional, a emoção pouco importa.
O negro tenta por diversas vezes passar pelo processo de embranquecimento, porque
assim galga mais um passo para a real humanidade. Sendo assim, tenta “apropriar-
se” da cultura branca, da roupa branca, relacionar-se afetivamente com brancos, para
sempre ter a emoção contida pela razão.
Da parte mais negra de minha alma, através da zona de meias-tintas, me vem
este desejo repentino de ser branco. Não quero ser reconhecido como negro, e
sim como branco. Ora — e nisto há um reconhecimento que Hegel não descreveu
— quem pode proporcioná-lo, senão a branca? Amando-me ela me prova que
sou digno de um amor branco. Sou amado como um branco. Sou um branco.
Seu amor abre-me o ilustre corredor que conduz à plenitude... Esposo a cultura
branca, a beleza branca, a brancura branca. Nestes seios brancos que minhas
mãos onipresentes acariciam, é da civilização branca, da dignidade branca que
me aproprio. (Fanon: 2008, p. 69)
Embora queira ser branco, o homem negro continuará sendo visto como negro. Alguns
percebem que não conseguem ser branco e que o processo de embraquecimento não
gera reais resultados e podem empregar o ódio nessa relação com a mesma intenção
que a desejava antes. Tal situação é dúbia: seu aspecto positivo é a quebra da hegemonia
branca, enquanto seu lado negativo é o ódio como motivador de uma motivação. Por
mais que Frantz pregue uma luta prática e não teórica, não se deve lutar pelo ódio,
vez que ela atua como uma cegueira, impedindo que o negro se veja como sujeito e
fazendo com que a culpa de tudo seja sempre do branco.
Ao trabalhar com o negro se constituindo como sujeito, Fanon, trabalha com o conceito
de alienação colonial, ou seja, a impossibilidade do indivíduo se constituir como sujeito
histórico. Dessa forma, a luta para Fanon é uma luta prática e não apenas teórica,
porque apenas a teoria não quebra a impossibilidade.
III. Resultados alcançados
Ao se observar a questão do Estado “Uni-nacional” em confronto com o Estado
Plurinacional e Multicultural; o pluralismo e o monismo jurídico; e a questão racial
apontada pelo filósofo Frantz Fanon, quando aplicados no caso brasileiro demonstram
que o Ordenamento Jurídico passa a ser fonte, meio e/ou instrumento que contribui
e/ou institucionaliza, de maneira direta ou indireta, o racismo.
Parece extremamente contraditório, ainda mais quando o texto constitucional assegura
diversos princípios e valores, os quais assumem o papel de norma pública, como, por
exemplo, o princípio da dignidade da pessoa humana, a punição do racismo como
crime inafiançável, a promoção do bem de todos, entre outros. Há a necessidade de se
compreender que tal principiologia é assegurada por uma mera questão de necessidade
moral do tempo contemporâneo e não pela realidade social do grupamento humano.
constitua sempre como sujeito histórico, pois a sua constituição está sempre sob o
filtro de um poder hegemônico e dominante que é branco, ou seja, fala-se também
sobre um racismo. Logo o negro é sempre marginalizado nessa estrutura em que o
direito é monista e o Estado é Uni-nacional, porque suas demandas não são realmente
incluídas, suas necessidades não são consideradas e ele precisa atuar sempre em duas
dimensões, como disse Frantz Fanon.
REFERÊNCIAS
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bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/ osal/osal22/D22SousaSantos.pdf>.
INTRODUÇÃO
O direito em seu âmbito formal conforme preconizado na Constituição Federal de
1988, estabelece a garantia de direitos a todos. Não obstante, é sabido que a igualdade
para todos, na realidade concreta, não ocorre conforme estabelecido na legislação,
especificamente quando o assunto é garantia de direitos a grupos que historicamente
constituem as minorias sociais no País, a saber, negros, índios, mulheres, homossexuais,
pessoas com deficiências, dentre outros.
Nas sociedades de forma geral, os negros são tidos como minorias, no entanto,
minorias no sentido simbólico e não quantitativo do termo, pois de acordo com dados
divulgados pelo Censo realizado pelo IBGE no ano de 2010 mais de 50% da população
se autodeclarou como negra. Dados esses, que só tendem a aumentar, pois de acordo
com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2014 realizada pelo IBGE
53% dos brasileiros se declararam negros, diante de 45,5% que se consideram brancos
(IBGE, 2015).
No que concerne à educação ofertada a este segmento populacional negro, os resultados
das pesquisas ainda continuam apontando grandes desvantagens quando realizados
exames contrastivos e comparados os resultados sobre a população negra em relação à
branca. Percebe-se mediante os dados analisados, que ocorreu um aumento gradativo
de anos de estudo na população brasileira, mas as diferenças entre brancos e negros
se mantiveram, especialmente no âmbito da educação superior. Consoante dados do
Ministério da Educação, em 1997 o percentual de jovens negros, entre 18 e 24 anos, que
cursavam ou haviam concluído o ensino superior era de 1,8% e o de pardos, 2,2%. Em
2013 esses percentuais já haviam subido para 8,8% e 11%, respectivamente. Contudo,
os números constituem-se ainda ínfimos.
Nessa perspectiva, o sonho de muitos jovens brasileiros, especialmente os oriundos
das classes menos abastadas, os de origem popular é ingressar no ensino superior
e concluir a graduação, todavia, as barreira que interferem no trajeto são diversas,
muitas delas até intransponíveis, haja vista que nos espaços acadêmicos, os atos
preconceituosos e discriminatórios se consolidam por meio de piadas, no que se refere
aos aspectos fenotípicos dos estudantes negros, como o formato do cabelo, a cor de
pele, dentre outros. Porém, se o negro na sociedade é vítima dessas situações, o que
podemos esperar para os negros que são homossexuais? Como lidar com o preconceito
do preconceito?
Em face dessas considerações, constitui como objetivo do presente trabalho delinear
uma discussão acerca da problemática do racismo e da homofobia nas universidades
brasileiras. Para tanto, serão levados em consideração os diversos discursos utilizados
nas reportagens de um caso concreto envolvendo o assassinato de um estudante de
graduação da UFRJ, vítima de racismo e homofobia, que recebeu bastante repercussão
na mídia de forma geral.
Por um desenho da metodologia da pesquisa, trata-se de uma pesquisa qualitativa,
por meio de estudo de caso, cujo instrumento de coleta de dados consistiu na análise
dos discursos empregados por pessoas ligadas à vítima, bem como do delegado
responsável pela investigação do crime e que exprimem a realidade da problemática
aqui em exposição.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
As discussões acadêmicas a respeito da discriminação racial, do racismo e do lugar
do negro na sociedade brasileira passaram por transformações ao longo dos anos, e
atualmente aponta para uma visão crítica da sociedade brasileira, especialmente, no
que tange à igualdade de oportunidades, em que o discurso de que o Brasil é um país
que conseguiu transcender a questão racial não se sustenta.
Dentre os principais teóricos que atém a essa temática podemos elencar os estudos
de Goffman (1988), destacando que a sociedade designa como as pessoas devem ser
situando esse dever como natural e normal. Nessa perspectiva, o diferente passa a
assumir a categoria de “nocivo”, “incapaz”, fora do parâmetro adotado como normal
por parte do que fora estabelecido pela sociedade, que padroniza as relações. Quem
não se enquadra ou “foge” ao padrão estabelecido é estigmatizado e para esses, são
reduzidas as oportunidades, esforços e movimentos, não atribuindo valor, impondo a
perda da identidade social e determinando uma imagem deteriorada, nos termos do
modelo que convém à sociedade.
Consoante Nascimento (2015), no Brasil é histórica a relação que o racismo se apresenta
seja pessoalmente ou por meio das práticas institucionais incidindo principalmente
sobre as pessoas, as formas de vida, bem como as diversas manifestações culturais.
O emprego do termo “raça” para fazer referência ao segmento populacional negro
sempre causou uma longa discussão no âmbito das Ciências Sociais de forma geral, em
especial, na vida cotidiana do povo brasileiro. Nessa vertente, o termo raça é designado
para discutir a complexidade existente nas relações entre negros e brancos no Brasil,
não fazendo referência ao conceito biológico de raças humanas usado em contextos de
dominação, mas é utilizado pelo Movimento Negro e alguns sociólogos com uma nova
interpretação, que tem como fundamentação a dimensão social e política do referido
termo (GOMES, 2012).
Fazzi (2008) ressalta que raças são categorias instituídas pelos seres humanos e não
descobertas por eles, sendo componentes da cultura humana. Para Júnior e Lima (2013), a
terminologia raça constitui-se como uma categoria socialmente construída, cujo objetivo
consiste em justificar-se, na maioria das situações, em termos de alguma teoria implícita
ou explicitamente biológica, como suporte principalmente para designar a cor da pele.
As categorias raciais dividem a população em cinco grupos, a saber, negros1, brancos,
amarelos, pardos e indígenas, sendo que racismo, por sua vez, refere-se às práticas
discriminatórias associadas ao uso dessas categorias para produzir formas de estigma a
alguém ou grupos sociais. As práticas racistas se presentam de forma bem contundente
na história e nas instituições brasileiras (GUIMARÃES, 1999), constatáveis não apenas
pelos indicadores e estatísticas sociais que lhes são correlatos, mas também notáveis de
forma direta na esfera das relações sociais cotidianas (FAZZI, 2004).
No mundo contemporâneo, um dos assuntos que também tem angariado bastante
repercussão é a questão da homofobia, que tornou-se um dos últimos preconceitos
ainda tolerados. Entende por homofobia, toda forma de rejeição, aversão, medo
ou ódio irracional aos homossexuais, com extensão a todos os que demonstrem
orientação sexual ou identidade de gênero diferente dos padrões heterossexuais
1 Denomina-se por negras no presente trabalho, as pessoas classificadas como pretas e pardas nos censos demográficos realizados
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (GOMES, 2012).
2 Grupo de pesquisa que estuda e realiza o levantamento de notícias relacionadas a homicídios cometidos contra a população
LGBT, no sentido de denunciar a homofobia no Brasil, bem como de divulgar todas as formas de violências contra lésbicas, gays,
travestis e transgêneros. Fernandes ( 2012, p.100) ressalta que é o Grupo Gay da Bahia (GGB) que visibiliza massivamente esta
categoria, particularmente a partir de 1991, com seu trabalho de denúncia da violência letal através das estatísticas de “assassinatos
de homossexuais”, amplamente conhecidas no campo LGBTTT brasileiro.
Pérola Gonçalves, amiga de Diego e aluna da UFRJ, acredita que o crime foi motivado
por ódio, resultado de homofobia e racismo.
“Ele era o meu melhor amigo. A gente se conhecia há menos de um ano, mas nos
falávamos toda hora, durante todo o dia. Nós estávamos sempre juntos. Acho que possa
ter sido um crime de ódio, homofobia e racismo. Ele era negro e tinha uma sexualidade
ampla, se relacionava com homens”.
Essa fala ratifica o que Louro (2000) expõem, ao ressaltar que as instituições acadêmicas
constituem como um dos espaços mais difíceis para que alguém “assuma” sua condição
de homossexual ou bissexual.
Ainda segundo Pérola, Diego foi alvo de outros preconceitos, com destaque também
para o preconceito linguístico de caráter regional. Ressaltando também que mais de
um elemento participou do crime, pois Diego era alto e forte, inclusive lutador de artes
marciais, e na ocasião em que fora encontrado, constatou-se marcas de luta, em que as
calças do estudante foram retiradas, no sentido de provocar uma situação humilhante.
“Ele sabia se defender e não acredito que tenha sido um crime de uma pessoa só. Ele
lutou judô pela UFRJ e treinava kung fu. Ele já havia sofrido ameaças, dentro e fora do
alojamento. Já foi zoado por ser nortista. Chamavam ele de Paraíba”
RESUMO
O tema apresentado integra a pesquisa de mestrado em políticas sociais, da
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, em andamento, que traz
por objetivo a análise das políticas de democratização do acesso ao ensino superior
público federal, em que as ações afirmativas se inserem, e as condições de permanência
possibilitadas por estas, a partir da realidade do Instituto de Ciências da Sociedade e
Desenvolvimento Regional da Universidade Federal Fluminense (ESR/UFF). Como
recorte metodológico, a pesquisa terá como foco os anos de 2013-2016, onde o público
alvo são os alunos que ingressaram nesta universidade através das cotas sociais.
Assim, o presente trabalho envolve as dimensões qualitativa e quantitativa do objeto
em análise, em que num primeiro momento, a luz de fontes bibliográficas, apresenta
uma breve discussão acerca do acesso e permanência no ensino superior, e a posteriori
analisa dados parciais acerca da pesquisa desenvolvida no ESR/UFF.
Palavras-chave: Ações afirmativas, Acesso ao ensino superior, inclusão social
ABSTRACT
The theme presented is part of the research in master’s degree in social policies, from
the State University of North Fluminense Darcy Ribeiro, which aims to analyze the
democratization policies of access to higher education in the federal public, where
affirmative actions are inserted, And the conditions to remain made possible by these,
from the reality of the Institute of Sciences of the Society and Regional Development
of the Fluminense Federal University (ESR / UFF). As a methodological cut, the
research will focus on the years 2013-2016, where the target audience are the students
who entered this university through social quotas. Thus, the present work involves
the qualitative and quantitative dimensions of the object under analysis, in which at
first, the light of bibliographic sources, presents a brief discussion about access and
permanence in higher education, and a posteriori analyzes partial data about the
research Developed in the ESR / UFF.
Key-words: Affirmative action, Access to higher education, social inclusion
INTRODUÇÃO
As ações afirmativas têm uma conotação de destaque no presente artigo, haja vista
ser o foco analítico da pesquisa. Para tanto, se funda em John Rawls e seu princípio
de igualdade equitativa de oportunidades, procurando evidenciar que: “A sociedade
também tem que estabelecer, entre outras coisas, oportunidades iguais de educação para todos
independentemente da renda familiar” (2003,p.62). Para discussão das atuais configurações
das ações afirmativas no ensino superior, traduzidas sobremaneira na política de cotas,
traz para o debate Joaquim Barbosa Gomes, Thomas Sowel, Sabrina Moehlecke, dentre
outros.
A partir de Pierre Bourdieu busca mostrar o papel da educação na reprodução e
legitimação das desigualdades sociais, pois a nossa hipótese fundamental é que os
alunos ingressantes, via cotas sociais, estão submersos ao binômio inclusão-exclusão,
pois estamos possibilitando aos grupos marginalizados a inserção na universidade,
mas ao mesmo tempo não estão sendo viabilizadas condições efetivas de permanência
deste alunado, seja por falta de condições de infra estrutura das IFES, por ausência de
condições sócio econômicas do aluno ou ainda pelo baixo desempenho acadêmico.
Para elucidar a questão da permanência na universidade, analisaremos o Programa
Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), seus objetivos e diretrizes, e suas atuais
formas de implementação nas IFES. Aqui far-se-á necessário a discussão entre políticas
focais e universais, entre políticas de Estado e de governo, perpassando ainda pela
“assistencialização” da educação.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1.1 AÇÕES AFIRMATIVAS E POLÍTICA DE COTAS NAS UNIVERSIDADES
FEDERAIS BRASILEIRAS
O termo Ação Afirmativa surge a partir das discussões sobre a efetivação dos direitos
humanos e do reconhecimento do direito à diferença, inserindo-se no contexto
do entendimento da ineficiência das políticas universalistas no enfrentamento às
marcantes desigualdades ainda presentes na sociedade contemporânea.
Conforme Thomas Sowell (2004) a Índia teve políticas semelhantes a ações afirmativas
há mais tempo que qualquer outra nação, começando nos tempos coloniais ingleses
e, depois, incorporadas à constituição, após o país se tornar independente, em 1947,
época em que foi inserido um dispositivo na sua Constituição, que permitia a adoção de
medidas destinadas à eliminação, diminuição das disparidades oriundas do tradicional
regime indiano de divisão da sociedade em castas (dalits), conforme a origem étnica e
socioeconômica dos indivíduos.
Já Daniel Bell (1973) fazendo menção à União Soviética afirma que foi constatada na
década de 60, um número pequeno de estudantes do campo inseridos na universidade,
referendando uma iniciativa para inclusão dessas minorias no ensino superior público:
Durante a época de Khrushchev, empreendeu-se um esforço para inverter essa
tendência, tendo sido concedida prioridade especial aos filhos de operários e
de camponeses para ocuparem lugar nas universidades, e exigindo-se dos que
pretendiam continuar ali um ano de trabalho manual. Em 1964, as reformas já
haviam sido abandonadas e desprezadas as idéias de educação igualitária em
benefício de uma nova meritocracia. (BELL, 1973, p.124)
Para Joaquim Barbosa Gomes, o país pioneiro na adoção das políticas sociais
denominadas «Ações Afirmativas» foram, os Estados Unidos da América. Na
sociedade americana, tais políticas foram concebidas inicialmente como mecanismos
tendentes a solucionar a marginalização social e econômica do negro. Posteriormente,
elas foram estendidas às mulheres, a outras minorias étnicas e nacionais, aos índios e
aos deficientes físicos.
Gomes (2001) acrescenta:
Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de
políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário,
concebidas com vistas ao combate da discriminação racial, de gênero e de origem
nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada
no passado, tendo por objetivo a constituição do ideal de efetiva igualdade de
acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. (2001, p.40)
Até meados dos anos 90, a adoção de políticas de ação afirmativa no Brasil era objeto
de controvérsias, tanto no movimento negro quanto entre cientistas sociais. Todavia, o
tema adentra na agenda política do governo Fernando Henrique Cardoso, por decreto
em 1995, ao instituir o GT Interministerial para a Valorização da População Negra.
Tal iniciativa veio no bojo do Programa Nacional de Direitos Humanos. Em junho de
1996, o Ministério da Justiça promove o Seminário Internacional Multiculturalismo e
Racismo: o papel da ação afirmativa nos estados democráticos –com o intuito de colher
subsídios para a formulação de políticas voltadas para a população negra (MAIO e
SANTOS, 2005,p.187).
A grande guinada no rumo das ações afirmativas no Brasil adveio em setembro de
2001, com a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia
e Formas Correlatas de Intolerância, sob os auspícios da ONU, realizada em Durban,
África do Sul.
Os efeitos de Durban se fizeram sentir no Brasil de imediato. O governo estava
atento a demonstrar, no plano internacional, seu interesse em cumprir resoluções
elaboradas em fóruns multilaterais em nome dos princípios da igualdade,
inclusive racial, sob o signo dos direitos humanos. (MAIO e SANTOS, 2005, p.188)
o branco pobre, entre outros. Consideramos que tais argumentos estão restritos ao
campo do senso comum, ou ainda impulsionados pela classe dominante, segundo
Santos (2003,p. 90):
O senso comum é interdisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática
especificamente orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no
suceder quotidiano da vida. O senso comum, aceita o que existe tal como existe;
privilegia a ação que não produza rupturas significativas no real. Por último, o
senso comum é retórico e metafórico; não ensina, persuade.
Ressalta-se aqui que buscamos romper com este conhecimento comum acerca das ações
afirmativas, onde a luz de do diálogo interautores pretendemos uma interpretação
científica que justifique a adoção das mesmas, pois consideramos que “ o senso comum
é conservador e pode legitimar prepotências, mas interpenetrado pelo conhecimento científico
pode estar na origem de uma nova racionalidade”. (SANTOS, 2003, p. 90)
Quando menciona-se a resistência das classes dominantes na adoção da política de cotas
no ensino superior destacamos Richta apud Bell (1973, p. 132) quando afirma que:
Nada lucraremos fechando os olhos para o fato de que um dos graves problemas
de nossa era consistirá em encobrir a profunda separação existente na civilização
industrial, separação que, como tão bem compreendeu Einsten e com tamanho
alarme, coloca o destino das massas indefesas nas mãos de uma elite erudita,
detentora do poder da ciência e da tecnologia. Será este , provavelmente, um
dos mais complexos empreendimentos com que se defrontará o socialismo.
Sendo a ciência e a tecnologia essenciais ao bem comum, seu progresso fica
entregue, pelas circunstâncias. sobretudo aos agentes conscientes e progressistas
desse movimento - aos profissionais, cientistas, técnicos, organizadores e
trabalhadores qualificados. E, mesmo no socialismo, poderemos encontrar
tendências a um elitismo, ao monopólio das oportunidades educacionais, a
diante; esses grupos poderão esquecer que a emancipação de uma parte está
sempre ligada a emancipação do todo.
De acordo com a Portaria Normativa nº 18, de 11 de Outubro de 2012, que dispõe sobre
a implementação das reservas de vagas em instituições federais de ensino e em seu
artigo 10 prevê:
O número mínimo de vagas reservadas em cada instituição federal de ensino
que trata esta Portaria será fixado no edital de cada concurso seletivo e calculado
de acordo com o seguinte procedimento: I - define-se o total de vagas por curso
e turno a ser ofertado no concurso seletivo; II - reserva-se o percentual de 50%
(cinquenta por cento) do total de vagas definido no inciso I, por curso e turno,
para os estudantes que tenham cursado integralmente o ensino fundamental
ou médio, conforme o caso, em escolas públicas; III - reserva-se o percentual
de 50% (cinquenta por cento) do total de vagas apurado após a aplicação da
regra do inciso II, por curso e turno, para os estudantes com renda familiar
bruta igual ou inferior a 1,5 (um vírgula cinco) salário-mínimo per capita;
IV - reservam-se as vagas aos estudantes autodeclarados pretos, pardos e
indígenas com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 (um vírgula cinco)
salário-mínimo per capita, da seguinte forma: a) identifica-se, no último Censo
Demográfico divulgado pelo IBGE, o percentual correspondente ao da soma de
pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação do local de
oferta de vagas da instituição.
Remete-se à Oliveira (2011), quando afirma que o vínculo entre educação e desigualdade
social é inegável e tem consequências importantes na política educacional. Não se pode
pretender responder aos desafios de acesso e permanência sem levar em consideração a
questão social mais ampla. Cabe aqui até questionar se as políticas de inclusão social no
ensino superior podem ser consideradas políticas de redistribuição de oportunidades.
A educação tem sido apresentada, na América latina como em outras partes,
como o principal instrumento para solucionar os problemas de pobreza,
desigualdade e falta de oportunidade que afetam os segmentos mais pobres da
região. Primeiro, acredita-se que a educação, como capital humano, aumenta a
produtividade e gera riqueza. Depois, a ampliação do acesso à educação daria
mais oportunidades a todos, reduzindo a desigualdade social. Terceiro, ao
difundir os valores de convivência social e comportamento ético, a educação
fortaleceria o capital social, gerando mais confiança, honestidade e credibilidade
nas transações econômicas, fortalecendo os mercados e criando um ambiente
mais favorável para os investimentos. (SCHWARTZMAN, 2004,p.481)
Vale ressaltar nesse contexto, que as formas para efetivação do acesso às universidades,
nos casos das cotas sociais, ou seja , associadas à renda, dependem da comprovação
vexatória de sua condição de subalternidade, haja vista que além da entrevista com
profissional de Serviço Social, devem apresentar uma gama de documentos para
atestar seu grau de pobreza. Esping- Andersen (1991,p. 104) analisando os sistemas de
estratificação social incrustados nos Welfare States salienta que:
Salienta-se ainda que, a desigualdade social hoje, não é determinada tão somente pela
posição econômica, a estratificação da sociedade é dada ainda por aspectos de gênero,
idade, renda e capital cultural. Sendo assim, as ações afirmativas tornam-se importante
mecanismo para minimização das diferenças entre as classes dominantes e dominadas.
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
3.1. A EXPERIÊNCIA DO ESR/UFF COM AS COTAS SOCIAIS
Foi debruçando sobre a análise dos dados de perfil dos alunos do ESR/UFF, que
verificamos que no ano de 2015, 43% dos alunos tiveram acesso à instituição através da
política de cotas, dessa forma, algumas perguntas permearam o presente trabalho : os
alunos matriculados através das cotas sociais estão sendo contemplados/alcançados
pelo PNAES?
Estão conseguindo concluir seus cursos? Quais os impactos sobre o processo de
ensino-aprendizagem? Desta forma, no presente subitem apresentar-se-ão dados
parcias acerca da pesquisa ainda em andamento, bem como outros que subsidiaram o
presente trabalho.
Gráfico 1. Modalidade de acesso - ESR/UFF.
Salientamos ainda que a PNAES tal como vêm sendo executada na maioria das
universidades federais, centrada sobremaneira no repasse de recursos financeiros aos
alunos através das bolsas e auxílios estudantis, não têm sido suficiente para manutenção
do discente, ao passo que principalmente nos campis do interior carecemos de
infraestrutura, tais como: restaurantes universitários, moradias estudantis, entre outras.
Desta forma, faz se necessário a articulação de políticas focais a políticas estruturais, que
viabilizem a permanência destes discentes na universidade. Concordamos com Fábio
Waltenberg (2013,p. 67), quando afirma que no Brasil, nem acesso, nem permanência
são assuntos resolvidos.
No Ensino Superior, medidas recentes caminham no sentido de ampliar o acesso
à universidade para um conjunto mais heterogêneo de jovens, porém, todas
requererão mais recursos para garantir ainda mais acesso ao Ensino Superior,
mas também permanência dos alunos e qualidade dos cursos. A consolidação
da expansão via Reuni exigirá recursos adequados para, nos novos campi,
sanar carências infraestruturais e reduzir carga docente; o Prouni poderá ser
expandido para aumentar a matrícula, mas isto também tem custos; a ampliação
das cotas demandará recursos para acolhimento e acompanhamento do corpo
discente. (WALTEMBERG,2013, p.83)
Situação da matrícula
Total Ativa Cancelada/Trancada
Matriculados com acesso a PNAES 29,40% 90,00% 10,00%
Matriculados sem acesso a PNAES 70,60% 8,70% 91,30%
A tabela acima revela, que do total de alunos que têm acesso a PNAES, mesmo que
seja, somente sob a formatação de transferência de renda obtêm uma elevada taxa de
permanência (90%), ao passo que aqueles que não foram alcançados pelo programa
têm um índice de (91,3%) de interrupção de seus estudos. Tais dados revelam a
importância deste programa na viabilização da permanência do alunado, e ao mesmo
tempo a necessidade de sua ampliação. Contudo, a atual crise financeira do país vem
trazendo rebatimentos importantes às políticas sociais e o PNAES não fica a reboque
destas consequências como pode ser observado nos dados que se seguem:
A tabela supra referida mostra as verbas destinadas a PNAES para a UFF, percebe-se a
partir dela uma queda acentuada nos gastos com assistência estudantil, sobretudo no
ano de 2015 e ainda, uma prevalência dos recursos destinados à auxílio financeiro aos
estudantes, ou seja, as chamadas bolsas e auxílios estudantis, o que remete a focalização
das políticas de assistência estudantil em detrimento das políticas universais.
Conforme Pierre Bourdieu (2014) a educação exerce um papel preponderante na
reprodução e legitimação das desigualdades sociais, revelando como as condições
sociais prévias dos estudantes e suas famílias têm impacto na educação. Desta
EUZEBIO, Umberto
Professor no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Sociedade e Cooperação Internacional da Universidade de Brasília
E-mail: umbertoeuz@gmail.com
FRANÇA, Rayanne Cristine Máximo
Estudante de Enfermagem da Universidade de Brasília E-mail: rayannecrist@gmail.com
REBOUÇAS, Eduardo Melo
Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Linguística da Universidade de Brasília
E-mail: eduardomelo.reb@gmail.com
RESUMO
Neste trabalho são levantadas discussões e questionamentos sobre desafios e demandas
postas à universidade pública pela inclusão e permanência de estudantes ingressantes
pelo convênio FUB/FUNAI. Com abordagens da pesquisa-ação, pesquisa participante
e escuta sensível, foram avaliados os aspectos qualitativos envolvendo os fenômenos
socioculturais e educacionais dos estudantes durante quatro anos. São necessárias
relações de trocas e diálogos contínuos para a construção da identidade acadêmica
indígena a partir de um ambiente político, pedagógico e metodológico que garanta
as especificidades indígenas assegurando melhoria dessa política. Os processos
de construção da universidade pública verdadeiramente inclusiva demandam a
participação direta de entidades e sujeitos sociais nas frentes de elaboração das políticas
públicas, essas ações afetam diretamente os grupos aos quais são direcionadas.
ABSTRACT
In this paper, discussions and questions about challenges and demands placed on the
public university by reason of the inclusion and permanence of incoming students of
the FUB / FUNAI agreement are raised. With approaches of action research, participant
observation and sensitive listening, the qualitative aspects involving the sociocultural
and educational phenomena of students during four years were evaluated. There is
a need for continuous exchange and dialogue for the construction of the indigenous
academic identity, based on a political, pedagogical and methodological environment
that assure indigenous specificities, guaranteeing the improvement of this policy. The
processes of construction of the truly inclusive public university demand the direct
participation of entities and social subjects in the fronts of elaboration of public policies,
these actions directly affect the groups to which they are directed.
Keywords: Inclusion. Indigenous. Education.
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, com a implantação de políticas públicas de inclusão e ações
afirmativas, as universidades públicas brasileiras vêm aos poucos inserindo estudantes
indígenas em sua comunidade acadêmica. Nesse sentido, a Fundação Nacional do
Índio – FUNAI, firmou convênios com algumas Instituições de Ensino Superior, dentre
eles com a Fundação Universidade de Brasília - FUB, em 2004, possibilitando o acesso
e permanência dos indígenas no ensino superior.
Historicamente, a Educação Superior no Brasil sempre esteve restrita às elites, e a
inclusão dos povos indígenas nas Universidades representa um fenômeno recente, que
apesar de quase 20 anos de ação, se encontra em fase de construção de mecanismos
de acesso, permanência e da própria formação intercultural. Estes segmentos dos
povos originários passaram a ocupar gradativamente os espaços acadêmicos, não
mais como objetos de pesquisa ou como sujeitos pesquisados, mas como estudantes e
pesquisadores dos cursos regulares oferecidos pelas Instituições de Ensino Superior.
As demandas sociais por educação superior indígena são desafios condicionantes
para que a maioria desses povos desenvolva políticas para suas comunidades. As
universidades públicas brasileiras têm manifestado interesse político de incluir
minorias no ambiente acadêmico como forma de superar a histórica exclusão do
acesso ao ensino superior vivenciada por esses grupos, evidenciando o caráter diverso
e inclusivo (BANIWA, 2012).
O movimento indígena brasileiro inicia e incentiva a inclusão de seus jovens nesse
processo como forma de “fortalecimento das lutas de mais de 220 etnias do território
nacional” (BANIWA, 2006). Essa necessidade é justificada para além da questão
inclusiva, pois segundo Jacobi (2005) não existem representantes indígenas para
defender suas causas, uma vez que entre eles não há formação de profissionais
capacitados que venham a ocupar cargos em que há necessidade de formação
acadêmica específica.
Apesar de haver esforços para se levar o indígena para o interior das universidades, ao
ingressar, enfrenta outros tipos de problemas, não previsto nas etapas anteriores, que
são os processos adaptativos. Portanto, somente a garantia de acesso não concretiza
a Política Pública de inclusão, pois estes estudantes enfrentam as mais variadas
dificuldades de integração não apenas ao ambiente acadêmico como também no novo
espaço urbano.
Dessa forma, devido aos problemas vivenciados e enfrentados por eles, são necessários
programas específicos de acolhimento que vão desde políticas especificas e diferenciadas
de acompanhamento acadêmico, considerando a realidade sociocultural de origem,
até o suporte financeiro, incluindo moradia, transporte e alimentação.
O objetivo deste trabalho foi levantar discussões e questionamentos sobre desafios
e demandas postas à universidade pela inclusão e permanência de estudantes
ingressantes pelo convênio FUB/FUNAI a partir de 2004. Com abordagens da
pesquisa-ação, pesquisa participante e escuta sensível, foram avaliados os aspectos
qualitativos envolvendo os fenômenos socioculturais e educacionais em que estavam
inseridos, envolvendo estudantes, FUB e FUNAI durante os últimos quatro anos.
Este artigo está estruturado nos tópicos: o estudante indígena do convênio FUB/
FUNAI, fundamentação teórica, resultados alcançados e considerações finais.
1. O ESTUDANTE INDÍGENA DO CONVÊNIO FUB/FUNAI
O convênio de Cooperação FUB/FUNAI Nº 001/2004 tem como objetivo o
estabelecimento de condições técnico-científica, pedagógica, administrativa, e
operacional, entre as duas Fundações, para formar 200 profissionais indígenas de nível
superior em dez anos. (UNIVERSIDADE, 2004)
A primeira seleção de estudantes indígenas para a Universidade de Brasília - UnB
ocorreu em 2004 mediante transferência de 12 estudantes de Instituições de Ensino
do DF e Entorno. Esses estudantes ingressaram nos cursos de Administração, Direito,
Serviço Social, Engenharia Florestal, Comunicação Social, Relações Internacionais e
Ciências Sociais. Desse grupo, cinco optaram pela não continuidade do curso na UnB,
dois por retornar às suas Instituições de origem, um por ser servidor público se transferiu
para outra Instituição e outros dois deixaram o curso por motivos familiares. Dos sete
restantes, apenas dois estão graduados em Comunicação Social e em Serviço Social, os
outros três permanecem na universidade nos cursos de Administração, Ciências Sociais
e Engenharia Florestal, porém em 2013, o último deles desistiu após longo e sucessivo
processo de desligamento e reintegração com diferentes reincidências. Somente em
2006 houve novos ingressos, com a implementação do vestibular indígena apenas
para os cursos de Ciências Biológicas, Enfermagem, Farmácia, Medicina e Nutrição
com a oferta de três vagas para cada curso. Após este período foram realizados novos
vestibulares com a inclusão de vagas para os cursos de Agronomia, Ciências Sociais e
Engenharia Florestal. Quanto ao número de vagas, a partir de 2008 passam para dez
quando também se exclui do processo o curso de Farmácia.
No período de dez anos foram ofertadas apenas 107 vagas, todas ocupadas; atualmente
permanecem regularmente matriculados na universidade 43 estudantes de graduação
e 24 estão graduados.
Durante esse percurso na universidade, ingressaram estudantes indígenas das cinco
regiões do país com predominância do norte e nordeste, distribuídos em mais de 30
etnias. Alguns, inclusive, com formação na educação básica totalmente em língua
materna, outros parcialmente e outra parcela em português. Ao longo dos anos,
os estudantes têm enfrentando inúmeros problemas acadêmicos que não estão
relacionados apenas ao aprendizado, dificuldades de interação, aceitação e diminuição
da autoestima. Além desses, há também aqueles relacionados à falta dos familiares,
dificuldades financeiras, de moradia, de alimentação e de adaptação à vida no Distrito
Federal.
Dentre as principais dificuldades acadêmicas enfrentadas estão àquelas referentes
ao baixo rendimento acadêmico, frequentes entradas em condição, desligamentos e
reintegração. Essas situações não se apresentam apenas como uma desmotivação do
estudo, mas também comprometem a manutenção do auxilio financeiro por parte da
FUNAI inicialmente ou a bolsa permanência do MEC a partir de 2013, que substitui o
auxílio da FUNAI.
As relações de trocas e diálogos necessários para que ocorra a melhoria dessa política
ainda se encontra em fase de construção contínua. Diante deste impacto sociocultural,
os estudantes indígenas, buscaram organizar-se, a fim de reivindicar seus direitos e
superar a resistência cultural existente dentro do universo acadêmico.
Apesar da proposta inovadora e acolhedora na UnB, na prática tem se revelado um
descompasso entre as condições necessárias e as condições de fato asseguradas para a
permanência qualificada e humanizada dos estudantes indígenas no espaço acadêmico.
Durante os 10 anos de vigência do Convênio houve diversas dificuldades institucionais
de ambas as partes mantedoras do processo, o que dificultava o avanço no processo de
acesso e permanência, de maneira direta e indireta.
As principais queixas dos estudantes durante o processo de adaptação e
acompanhamento, sempre foram que as decisões tomadas por instâncias superiores,
sejam elas FUNAI ou Universidade, que aconteciam de forma verticalizada, de
modo impositivo e nunca dialogado ou utilizando-se de alternativas de metodologia
participativa, na qual esse processo se inicia a partir da experiência e do conhecimento
dos próprios participantes.
Durante o período, passaram pela FUNAI seis presidentes e vários coordenadores,
assim como na UnB, com mudanças de reitores com propostas e práticas diferentes
quanto à questão inclusiva. Dentre as propostas da gestão UnB 2013-2016, esteve a
criação da Diretoria da Diversidade – DIV, no Decanato de Assuntos Comunitários,
porém os indígenas nunca se sentiram incluídos em todo o processo, pois se extinguiu
o sistema de acompanhamento pedagógico até então vigente. É possível observar a
instabilidade de Decanatos/ Diretorias para coordenar as questões indígenas, fazendo
com que mudanças políticas afetem o aparato político pedagógico do lado mais
vulnerável. Ao longo dos dez anos, foram ofertadas apenas 107 vagas com 107 ingressos,
24 formados, 43 ativos e 40 desistentes. As desistências são causadas por diferentes
fatores, porém de acordo com depoimentos do grupo, ocorrem principalmente por
motivos psicossociais.
Durante a vigência do Convênio nº001/2004, havia um Comitê Gestor, na cláusula
terceira, subcláusula primeira se diz “A relação dos cursos e dos respectivos números de
vagas destinados a candidatos indígena deverá ser definida anualmente, por um Comitê Gestor,
formado por representantes da FUB, MEC, e FUNAI, acrescida de um representante indígena”.
Porém, eram raras as vezes em que havia a participação indígena nesse espaço,
por omissão da própria Universidade. A partir de diversas tentativas de diálogo
com a Universidade e sem êxito, os estudantes passam a resistir diante da pressão
da Universidade em exclui-los das decisões, passam a se integrar forçadamente em
espaços de decisão, como o Comitê Gestor, a criação do Fórum Permanente, passam
a se fortalecer enquanto Associação dos Acadêmicos Indígenas do DF (AAIDF,
atualmente AAIUnB) para que suas vozes fossem ouvidas e atendidas, de acordo com
suas demandas.
Em 2010, houve maior pressão sobre a participação indígena no Comitê Gestor, os
estudantes se organizaram e escolheram seu representante e vice, para que pudesse ter
como sua responsabilidade participar das reuniões e nos processos de decisões. A partir
daí conseguiu-se o vestibular diferenciado, não em questões de conhecimentos gerais
devem ser melhores avaliadas e incentivadas. Com relação aos desafios, é necessário
ampliar a quantidade e a qualidade dos programas de acesso e permanência nas
universidades e dos cursos específicos.
A principal importância dessa preparação e formação na universidade é o
empoderamento maior dos indígenas, fortalecido pelas experiências universitárias.
Ademais, sabe-se que a construção de novas práticas interculturais, sobretudo
quando se refere à educação formal de indígenas nas universidades brasileiras, exige
necessariamente novas práticas de formação, as quais constituem também subsídios
para o aprofundamento das práticas do trabalho em equipe multiprofissional,
interdisciplinar e intercultural. O papel do acadêmico indígena é voltado para sua
comunidade indígena, em adquirir os conhecimentos universais, mas não deixar
sua identidade, sua cultura e tradições, e principalmente não abandonar o seu povo,
valorizar a própria cultura e não abandonar o conhecimento tradicional.
REFERÊNCIAS
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de Siqueira; ALMEIDA, Fernanda Alexandrina de. Ação afirmativa e inclusão étnico-
racial: estudo preliminar das políticas de acesso e permanência na Universidade
Federal da Grande Dourados entre 2011 e 2013. O social em questão, v. 17, n. 32, 2014,
p. 101-126
BANÍWA, Edílson Martins. Educación superior y pueblos indígenas: avances y
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conmemoración o reflexión?. ISEES: Inclusión Social y Equidad en la Educación Superior,
n. 10, p. 115-130, 2012.
BANIWA, Gersem. Educação escolar indígena. Revista FAEEBA – Educação e
Contemporaneidade. v. 19, n. 33, p. 35-49, 2010.
BARBIER, René. A pesquisa-ação. Tradutor: Lucie Didio. Brasília: Líber Livro, 2007.
BARBOSA, Joaquim Gonçalves; HESS, Remi. O diário de pesquisa: o estudante
universitário e seu processo formativo. Brasília: Líber Livro, 2010.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Pesquisa participante. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1999
BRASIL, Presidência da República. Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre
o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de
nível médio e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em: 03 Out. 2016.
EUZEBIO, Umberto; Cardia, Felipe Mendes do Santos; LEAL, André Hugo Homem;
MOREIRA, André Luiz da Costa; SARAIVA, Ana Lívia Rolim. Realidade e desafios
para a educação superior indígena na Universidade de Brasília. In: XVIII ENCONTRO
NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS 2012, 2012, Águas de Lindoia - SP.
Encontro Nacional de Estudos Populacionais: transformações na população brasileira:
complexidades, incertezas e perspectivas (18.: 2012 : Águas de Lindóia, SP). Águas de
Lindoia - SP: ABEP - Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2012.
GUEDES, Luciana
Mestranda do Programa de Pós Graduação em
Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional da Universidade de Brasília
lucianaguedess@gmail.com
ALVES, Cecília
Professora do Programa de Pós Graduação em
Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional
da Universidade de Brasília
cecilia.brito.alves@gmail.com
SOARES, Joaquim
Professor do Programa de Pós Graduação em
Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional da
Universidade de Brasília
jjsoaresneto@gmail.com
LOZZI, Silene
Professora do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília
silozzi@gmail.com@gmail.com
RESUMO
Este trabalho é motivado pela necessidade de uma maior compreensão das possíveis
contribuições da Instituição de Ensino Superior (IES) na permanência do aluno no
curso superior. Os altos índices de evasão observados, mesmo após transpostas
as dificuldades para a entrada na graduação, revelam a necessidade de pensar em
políticas públicas que visem minimizar as diversas perdas envolvidas no abandono
acadêmico. Dessa forma, verificou-se através de uma regressão linear a contribuição
do efeito instituição na evasão no ensino superior.
ABSTRACT
This work is motivated by the requirement for a greater understanding of the possible
contributions of the Higher Education’s Institutions in the permanence of the higher
education student. The high evasion rates observed, even after being transposed as
difficulties for graduation, reveal a need to think about public policies that aim to
minimize as many losses involved in academic desertion. In this way, a contribution
of the effect of brazilian higher education’s institutions was verified through a linear
regression.
Key-words: Higher education, dropout, linear regression analysis, public policies.
INTRODUÇÃO
A recente ascensão dos países chamados “emergentes” intensificou as discussões
acerca das perspectivas de desenvolvimento e seus projetos, no intuito de voltar os
investimentos aos aspectos que trariam melhor posição econômica e social a tais países
no cenário globalizado. Os países que se tornaram referência mundial de riqueza
guardam em comum a característica de terem investido na melhoria da escolaridade
de sua população (DIAS SOBRINHO, 2005), aumentando as preocupações sobre o
tema em países que buscam alcançar índices semelhantes de desenvolvimento.
Se para a educação básica a ordem é de erradicação do analfabetismo e ampliação
das matrículas, para o ensino superior restou a pressão de dar conta das demandas
(cada vez maiores) de mercado, que abarcam não somente a reposição da força de
trabalho, como também ser fonte geradora de inovação técnico-científica e ainda de
formar os profissionais educadores, que atuarão na nas mudanças necessárias – como
a qualificação – nos níveis mais baixos de ensino.
Cunha (1983) apresenta o conceito de Educação para o Desenvolvimento como
“Educação para a construção de uma Sociedade Justa”, instituída pela corrente de
pensamento liberal, idealizada na Revolução Francesa. Essa corrente determina que
a educação não age como fator de eliminação de diferenças entre indivíduos, mas
sim como elemento para construção de uma sociedade em que “todas as posições da
estrutura ocupacional, mesmo as mais elevadas, estão disponíveis para os indivíduos
de quaisquer origens, desde que adequadamente dotados e suficientemente motivados
para competir por elas” (CUNHA, 1983, p.21).
Reconhecendo o grande valor do ensino superior, a evasão de estudantes se torna
uma questão importante a ser debatida e controlada. Para tanto, faz-se necessário
compreender de que forma as Instituições de Ensino Superior (IES) podem ou não
contribuir para a permanência do aluno, ou seja, quais são as principais características
e políticas institucionais de uma IES que podem influenciar a decisão do estudante por
concluir ou não sua graduação. O presente trabalho é motivado pela necessidade de
explorar esse fenômeno e fomentar o debate sobre evasão na educação superior.
1. A EDUCAÇÃO NA AGENDA POLÍTICA BRASILEIRA
1.1 Políticas educacionais no Brasil e o diálogo com organismos internacionais
Para Boaventura de Sousa Santos (2011), o final do século XX trouxe junto com suas
crises econômicas um mercado competitivo quanto à formação de mão de obra
qualificada. Se, por um lado, a crise implicava na restrição dos investimentos públicos
em educação superior, de outro, a concorrência entre as empresas clamava por níveis
de conhecimento e formação cada vez mais altos.
As estratégias apresentadas pelo Banco Mundial são firmes quanto aos seus objetivos
de desenvolvimento e apresenta ainda em seu prefácio:
Em suma, os investimentos em educação de qualidade produzem crescimento
econômico e desenvolvimento mais rápidos e sustentáveis. Indivíduos instruídos
têm mais possibilidade de conseguir emprego, de receber salários mais altos e
ter filhos mais saudáveis. [...] Aprendizagem para Todos significa a garantia de
que todas as crianças e jovens – não apenas os mais privilegiados ou os mais
inteligentes – possam não só ir à escola, mas também adquiram o conhecimento
e as habilidades de que necessitam para terem vidas mais saudáveis, produtivas
e obterem um emprego significativo. (MUNDIAL, 2011, p. 1)
4 O Ministério da Educação, em Nota técnica (201-), demonstra que além dos subgrupos citados na descrição da meta, ainda existem
as diferentes combinações entre eles.
5 As metas 8 e 12 possuem particular harmonia com o documento “Aprendizagem para Todos”, do BIRD, que tem como um de seus
indicadores de impacto a redução das lacunas em escolaridade ou aprendizagem para populações desfavorecidas.
6.000.000
5.000.000
4.000.000
3.000.000
2.000.000
1.000.000
-
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Fonte: MEC/Inep.
6 Durkheim (1986) chama a isso de suicídio egoísta, pois não guarda “significado especial” em sua morte, como os mártires religiosos
ou políticos.
7 Embora demonstre que é a interação dos sistemas social e acadêmico que mais influenciam na continuidade do estudo, Tinto
pontua que a TIE não limita o fenômeno a essas variáveis, considerando a existência de fatores externos não observados no modelo.
anualmente pelo INEP para enriquecer a discussão sobre evasão no ensino superior,
e incluir as instituições responsáveis pelas políticas públicas educacionais no debate.
Assim, para os fins de investigação da influência da IES, que é objeto do presente estudo,
o modelo de Tinto se mostra adequado, além de largamente discutido, por levar em
conta em sua sistematização o construto relacionado à IES. Esta pesquisa se diferencia
nesse sentido, pois pretende se situar essencialmente no construto “comprometimento
institucional com a meta” do modelo TIE. Além disso, os estudos desenvolvidos por
Tinto, por serem mais abrangentes, utilizam variáveis comuns a toda Instituição, que
são facilmente encontradas nos bancos de dados disponíveis, o que torna o estudo
viável longitudinalmente e, ainda, valoriza os esforços já realizados pelas Instituições
de Pesquisa brasileiras.
2.3 Fatores associados à evasão – Comprometimento institucional
O comprometimento institucional com a diplomação não é necessariamente uma
variável, mas entende-se como um construto e, portanto, possui certo nível de abstração.
Temos ainda que a qualidade do ensino está intimamente ligada a esse construto, mas
não necessariamente incluso nele (REFERENCIAR). Apesar disso, é possível esboçar
uma tentativa de definição a partir da idéia de que a retenção ou evasão dos estudantes
não é, definitivamente, o interesse da IES – conforme já abordado nos capítulos
anteriores, as perdas financeiras somam cifras substanciais – tampouco do Estado e
da sociedade, que investe econômica e socialmente no setor. Dessa maneira, alguns
esforços mensuráveis funcionam como variáveis proxys do comprometimento da IES.
Conforme apontam Tontini e Walter (2014): “Embora tenha menor impacto do que
a vida pessoal, a vocação e a colocação profissional, esse resultado [significância das
questões relacionadas à qualidade] indica que a qualidade do curso e a percepção
dos alunos sobre essa qualidade podem ajudar a reduzir a evasão”. No estudo em
questão, o componente “Qualidade do curso” obteve o terceiro maior coeficiente de
contribuição para permanência, seguido de “Conservação da infraestrutura” (0,17 e
0,12 respectivamente). Embora os autores tenham definido essas dimensões com base
em um questionário específico e a partir da percepção e avaliação dos estudantes,
investimentos em pesquisa, acesso a periódicos e corpo docente qualificado são outros
exemplos de medidas que podem ser adotadas pela IES no intuito de melhorar a
qualidade do ensino ofertado.
Numa outra perspectiva, John Bean (1979) realizou uma das primeiras análises
de regressão para seu Modelo de Atrito do Estudante, utilizando 28 variáveis
independentes buscando explicar a evasão em uma Universidade. Bean reconheceu
que o construto “comprometimento institucional”, que já havia sido destacado
anteriormente por Tinto e Cullen (1973), era um fator chave para a evasão.
Com base em revisão bibliográfica e considerando as variáveis disponíveis no Censo
da Educação Superior de 2013/2014 realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), as principais características da IES que
possuem influência sobre a evasão estudantil são mostradas no quadro abaixo:
Quadro 1.Variáveis institucionais e referências que indicam sua relação com evasão.
Variável Referência
3. ASPECTOS METODOLÓGICOS
Para tornar possível verificar se a influência da IES sobre a decisão de evasão do aluno
utilizaremos os dados do Censo da Educação Superior, realizado anualmente pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Será
necessário utilizar os dados do banco de alunos, cursos e IES de dois anos consecutivos,
para verificar a evasão de um ano para o outro. Dessa forma, será possível verificar se,
e com qual dimensão, a IES pode afetar a desistência do estudante. Esses dados serão
utilizados com o intuito de construir um modelo multivariado que, considerando as
variáveis da IES, explique a evasão escolar.
A utilização de somente um período de transição traz alguma restrição aos resultados
apresentados, de modo que o mais indicado seria um acompanhamento longitudinal do
fenômeno. Porém, levando em conta que os maiores índices de evasão são observados
nos primeiros anos de ingresso, é possível detectar uma associação significativa dos
fatores aqui considerados.
Apesar de as técnicas estatísticas multivariadas desenvolvidas para comprovar ou
testar as relações entre variáveis sejam consideradas relativamente novas, rapidamente
ganharam espaço nas mais diversas áreas, com ampla aplicação nos estudos sociais
pelo seu forte potencial explicativo. Por análise multivariada, neste trabalho, entende-
se o conjunto de técnicas estatísticas que buscam medir, explicar e prever o grau de
relação entre as variáveis (HAIR et al., 2009)
O modelo utilizado nesse trabalho foi concebido a partir dos seis estágios descritos por
Hair et al. (2009): definição do problema de pesquisa e os objetivos; desenvolvimento
de um plano de análise; avaliação das suposições inerentes à técnica multivariada;
estimação do modelo e avaliação do ajuste geral; e interpretação das variáveis
estatísticas e validação do modelo.
Com base nos objetivos propostos, o problema de pesquisa é identificar os fatores
institucionais associados a evasão no ensino superior. Sendo assim, a variável resposta
(que depende das demais) é a continuidade da matrícula de um ano para o outro, ou
seja, a [não] evasão do aluno. Essa variável é do tipo dicotômica no nível do aluno,
pois só pode assumir dois valores de resultado: evadiu ou não evadiu. Uma regressão
linear nos dará os primeiros resultados necessários para o desenvolvimento de estudos
que identifiquem o risco de evasão da IES.
A regressão múltipla é a técnica estatística desenvolvida para comprovar a relação
indivíduo-meio em geral, com ampla aplicação nos estudos sociais pelo seu forte
potencial explicativo. Uma das vantagens de se utilizar a regressão múltipla é que
além de indicar os efeitos das variáveis de interesse no resultado (variável resposta),
ela permite que comparemos os impactos de cada variável através dos coeficientes.
Ainda, uma análise de regressão múltipla retorna uma avaliação da influência total do
modelo para a variável dependente através do R² - uma medida que expressa o poder
do modelo, ou seja, o quanto as variáveis juntas explicam o fenômeno.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Ao compararmos as médias de evasão para os cursos brasileiros no período, alguns
perfis de Instituições de Ensino Superior parecem estar mais suscetíveis a altos índices
de abandono, conforme mostra a tabela 1 a seguir.
%Evasão
Média D.P.
Vale ressaltar que as análises exploratórias não captam integralmente todas as relações
envolvidas no fenômeno, por isso a investigação se aprofunda com a utilização de
uma análise de regressão multivariada.
Tendo o índice de evasão como variável dependente, a categoria administrativa foi
modificada para uma variável dicotômica, assumindo valor 1 quando a IES é pública
e 0 em outros casos. As variáveis que ajustaram para o modelo de regressão linear
foram: categoria administrativa (pública ou não), grande área da classificação OCDE e
localização (capital ou não).
A partir da tabela acima, obtida como resultado da regressão, temos que IES com
administração pública contribuem negativamente para a evasão. Isto é, tendem a ter
um índice menor de evasão. Já para a localização, temos um coeficiente positivo, o
que leva a crer que IES localizadas nas capitais tendem a possuir um maior índice de
evasão.
Quanto à área de classificação OCDE do curso, a regressão retornou um valor negativo
e portanto, os cursos das áreas com maiores numerações atribuídas pela OCDE
(Ciências, Matemática e Computação; Engenharia, Produção e Construção; Agricultura
e Veterinária; Saúde e bem-estar social; e Serviços) estariam mais propensos aos altos
índices de evasão. Esse é um dado que deve ser analisado com cautela, pois a variável
é qualitativa e os cursos a que se referem esses códigos possuem dinâmicas peculiares.
O curso de medicina, por exemplo, tradicionalmente apresenta alta concorrência e
exige uma dedicação intensa, o que provavelmente reduz a taxa de abandono. Esse
curso recebe o código 7 na classificação e sua evasão média foi de 5%. Por outro lado, o
curso de Enfermagem, que está na mesma categoria e, portanto, recebe o mesmo valor
na regressão, apresentou evasão média de 21%. Essas variações provocam conclusões
imprecisas para análises que se pretendem ótimas.
O modelo proposto retornou um R² de 0,087, um valor semelhante aos levantados por
Bean (1979) em outros estudos sobre o processo de evasão no ensino superior que traziam
as variáveis socioeconômicas como elemento substancial: “Esses achados podem ser
comparados com os estudos de atrito de Panos e Astin (1968) (R² =0,09), Bayer (1968)
(R²12, Mehra (1973) (R²=0,05) e Wegner e Sewell (1970) (R²=0,09).” (BEAN, 1979).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme apontam Baggi e Lopes (2011), a discussão sobre evasão no ensino superior é
centrada nos aspectos relativos aos seus consumidores (os alunos), tal como os modelos
de Integração do Estudante e de Atrito do Estudante e carece de uma maior atenção
pelo ponto de vista da avaliação institucional. As autoras identificaram a necessidade
de se explorar melhor os dados do Censo da Educação Superior disponibilizados
anualmente pelo INEP para enriquecer a discussão sobre evasão no ensino superior,
e incluir as instituições responsáveis pelas políticas públicas educacionais no debate.
Os achados aqui expostos se apresentam como embriões para uma predição sobre
a evasão escolar, e não esgotam-se nos resultados encontrados, mas enfatizam a
necessidade de exploração dos dados disponíveis mais profundamente.
Embora o modelo proposto tenha se ajustado com um R² razoável, considerando
apenas o efeito IES e as poucas variáveis significativas, os resultados demonstram
que o abandono no ensino superior tem se revelado complexo e amplo, exigindo
uma dedicação na pesquisa não somente da mensuração de índices, mas também nas
definições terminológicas, avaliações qualitativas e padronizações, com a finalidade
de entende-lo e atenuar as perdas envolvidas no processo.
6. REFERÊNCIAS
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BRASIL, Ministério da Educação. O Plano de Desenvolvimento da Educação:
razões, princípios e programas. Brasília, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira 2008.
RESUMO
As pessoas que se encontram na última fase do ciclo vital neste milênio têm enfrentado
muitas discriminações e desvalorizações por parte da sociedade, tornando o
envelhecimento uma questão merecedora de atenção e estudos por parte da academia.
O objetivo deste artigo é estabelecer uma abordagem sociocultural da realidade do
processo de envelhecimento na tentativa de se entender os fatores que originam e
sustentam os preconceitos e as discriminações que as pessoas idosas suportam na
sociedade, procurando reafirma a educação como instrumento transformador dessa
realidade. Essa temática se justifica por sua relevância social e pela influência que a
educação exerce sobre a sociedade e, em última análise, na conduta de cada um dos
cidadãos frente ao desafio de se superar os estereótipos construídos culturalmente
sobre a idade senil. A metodologia é qualitativa baseada em autores estudiosos do
tema. Concluiu-se que a conscientização a respeito da educação pode se tornar um
fator libertador do idoso, capaz de transformar sua vida, sua autoestima e as atitudes
da sociedade em relação às pessoas idosas.
Introdução
Na sociedade contemporânea tem-se uma rede de convivência bastante complexa,
realidade que demanda uma análise sociocultural do fenômeno do envelhecimento
para se buscar entender os fatores que originam e sustentam o preconceito e as
discriminações pelas quais passam as pessoas idosas. Registra-se inicialmente que os
idosos frequentemente são ignorados e afastados dos ambientes sociais exclusivamente
por serem vistos como alguém pertencente a um remoto passado, ao qual a sociedade
atribui pouco valor às relações do presente momento. A expressão “envelhecimento”
tem assumido na sociedade caráter pejorativo, significando passividade e, em última
análise, dependência, acarretando desprestígio à pessoa do idoso, manifestado em
diversas situações de vida – um desprezo promovido por pessoas de todas as idades
– até mesmo pelos próprios idosos, que se sentem em algumas localidades em que
as pessoas idosas são vistas como seres menosprezados, pelas marcas de expressão
deixadas pelo tempo que fez desgastou sua imagem. As fragilidades são entendidas
como barreiras intransponíveis, porém, percebe-se que o olhar negativista em relação
ao idoso desconsidera suas experiências de vida, sua historicidade, que foram
gradualmente construídas por meio das múltiplas relações no âmbito familiar e em
muitos outros ambientes, não se restringindo apenas ao aspecto cronológico da vida.
Assim, o conhecimento sobre o valor que se deve atribuir aos idosos é relativizado
quando a sociedade não compreende o que significa, de fato, a existência humana
e a contribuição que uma vivência de sabedoria pode acrescentar ao legado de uma
determinada cultura.
A sociedade tem repensado a postura em relação ao idoso, talvez até mesmo por
imposição da lei, percebendo que não há mais se falar em passividade da pessoa
idosa, eis que, mesmo em idade avançada, as pessoas podem mudar e, até mesmo,
conduzir o seu sistema vital de aperfeiçoamento enquanto ser humano. Ratifica essa
noção o fato de também serem os idosos sujeitos ativos, com plena capacidade para
raciocinar, se emocionar, aprender, abrindo-lhes um leque de possibilidades capazes
de lhes proporcionar a interação em todos os ambientes da vida social. Dessa forma,
constata-se que ainda é longo o caminho para se erradicar o preconceito criador de
atitudes que minimizam a possibilidade da pessoa idosa ser feliz quando é chegado o
envelhecimento. Por isso, faz-se exigível preparar a sociedade para viver a idade senil,
buscando a cada dia dar novo sentido à existência, ante a realidade preconceituosa
que envolve o atual contexto social, e que reclama por respostas por meio de condutas
positivas, para se enfrentar os estereótipos construídos.
Nessa linha de intelecção, o presente artigo busca abordar a temática atinente aos
idosos e respeito à sua dignidade na ótica do Estado Democrático de Direito e dos
direitos sociais e individuais consagrados pela Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988.
A realidade sociocultural e a educação do idoso
O termo cultura abrange o conjunto de ideias, valores, princípios e práticas sociais que
caracterizam uma determinada sociedade e as múltiplas formas de sua organização,
alcançando, assim, os consensos, divergências e conflitos. O contexto cultural é
construído sob diferentes ambientes sociais em que se vive, e as pessoas idosas
representam importante segmento nesse processo.
quanto ao próprio modo de viver a idade senil. Ainda com relação à educação da
pessoa idosa, Salgado explica:
[...] A disponibilidade para aprender nem sempre é uma característica dos
idosos, cabendo aos profissionais a responsabilidade de estimularem essa
atitude, buscando métodos pedagógicos adequados e diminuindo o estigma
preconceituoso de que na velhice é muito difícil aprender [...] ( SALGADO,
2007, p. 76).
Referências
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em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm,
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sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
RESUMO
As relações conflituosas que as igrejas evangélicas mantêm com as questões de gênero
são uma característica saliente do Brasil contemporâneo. Considerando a relevância
do protestantismo evangélico para 25% da população e a sua visibilidade no jogo
democrático, a politização dos fiéis e a atuação de parlamentares evangélicos tornam-se
relevantes para compreender esse vínculo problemático. Nesta perspectiva, propõe-se
tratar do autoritarismo e das discriminações evangélicas dirigidas contra as populações
Lésbicas Gays Bissexuais Transexuais Transgênero Intersexuais e Queer (LGBTTIQ).
Partindo do estudo do imaginário pentecostal, este trabalho se baseia em entrevistas
com pastores e fiéis da Assembleia de Deus (2015-2016) e na análise de projetos de
lei de deputados da Bancada Evangélica. Portanto, a presente comunicação pretende,
em primeiro lugar, identificar os argumentos “em nome de Deus” que fundamentam
esta intolerância, e, em segundo lugar, estudar a tese da institucionalização destes
princípios discriminatórios, permitida pela inserção política dos atores evangélicos.
1 Parte deste trabalho se baseia no artigo da mesma autora: “O milagre pentecostal na política: Da socialização política à expressão
democrática dos fiéis da Assembleia de Deus” apresentado no Simpósio Internacional Religiões, Política e Mídias na América Latina,
realizado São Paulo Paulo-SP, dia 06 de Outubro de 2016.
2 Dissertação de mestrado sobre a socialização política dos fiéis da Assembleia de Deus no estado de São Paulo.
modelos de pensamento e ação (...) já preparados e fornecidos (...) [e que] agem por sua
vez no sentido de influenciar essa cultura como se fossem as ideias do próprio povo
» (Horkheimer, 2010, 158). A Igreja evangélica pode constituir este meio específico
descrito por Adorno, onde são praticados « processos de socialização e fenômenos
psicológicos inconscientes » que podem levar a atitudes discriminatórias contra certas
minorias assim como derivas autoritárias (BORDIER, 2008:2). O indivíduo encerrado na
sua realidade esquece o uso das suas funções intelectuais para imitar (HORKHEIMER,
2010:145; 146) e aderir cegamente aos valores oferecidos pela Igreja, que legitimam a
reprodução de discriminações contra populações LGBTTIQ.
Deste modo, esta pesquisa então pretende observar e analisar a reprodução do
discurso institucional acerca de assuntos políticos e cidadãos e, mas particularmente,
das questões de gênero.
2.2 A entrada dos evangélicos na esfera política
Ao longo do século XX, o processo de secularização, que coloca em questão a centralidade
do catolicismo, leva a uma fragmentação e pluralização do campo religioso.
Com a secularização, o fim do monopólio [católico] e a garantia estatal da
liberdade e tolerância religiosas, ocorrem o aumento do número de agentes e
grupos religiosos e a diversificação da oferta de produtos e serviços religiosos.
Nesse contexto pluralista, as agremiações religiosas, para sobreviver e crescer,
são compelidas a concorrer, disputar mercado (...) reforçar seu proselitismo,
estimulando o ativismo do clero e a militância dos leigos (...). (MARIANO,
2003:114)
chegou a afirmar um pastor de uma igreja do bairro Ipiranga de São Paulo (Pastor
Paulo, São Paulo, 04/06/2016). O mesmo confirma que existe uma diferença entre
Igrejas sérias e as não sérias: « Mas tem Igreja evangélica que leva as coisas de qualquer
maneira. Essas Igrejas não cumprem com as determinações bíblicas. Eles colocam uma
filosofia dentro da Igreja que não é de acordo com a Bíblia ».
A distinção entre as igrejas assim como os princípios enunciados pelos fiéis e pastores
reforçam a validade da escala de avaliação das potencialidades fascistas (escala F)
de Theodor Adorno para estudar a relação que o pentecostalismo mantém com as
populações LGBTTIQ. Ao afirmar que « a igreja moderna, com todas suas regras e
suas hipocrisias, não recorre ao que a pessoa tem de profundamente religioso (...) »,
que « cada um deveria ter uma fé profunda em uma força superior e sobrenatural,
à qual se submeteria totalmente e da qual não discutiria as decisões », e que « a
homossexualidade é uma forma particularmente repugnante de delinquência e deveria
ser severamente punida » 4 (Adorno, 2008) ; os discípulos do Evangelho respondem
aos critérios de conformismo, submissão autoritarista e de agressividade autoritarista,
como elaborados por Adorno.
3.2 A luta para a institucionalização dos princípios cristãos
Diante do discurso e das práticas autoritários e discriminatórios em relação às
populações LGBTTIQ, a segunda principal conclusão revela que a entrada de atores
pentecostais ou neopentecostais na política resulta em um processo de inscrição dos
valores intolerantes na legalidade. Para isso, baseia-se em um corpus de projetos de lei,
de nível federal, relacionados à família, a orientação sexual e a identidade de gênero.
Formulamos a hipótese que a institucionalização é possibilitada por dois motivos. Por
um lado, mesmo se certos fiéis – sobre tudo os mais jovens – não se opõem ao casamento
de pessoas do mesmo sexo por exemplo, a população evangélica é pouco politizada.
De maneira geral, o voto é o única manifestação política dos fiéis (APUBLICA, 2015
(2):1): a confiança é atribuída a um candidato evangélico pela sua crença religiosa, no
momento do voto, e não se exerce controle durante o mandato. Por outro lado, a maioria
dos fiéis entrevistados se opõem de maneira formal ao casamento homossexual. O voto
para candidatos evangélicos constitui, portanto, em um gesto para a preservação da
moral, a qual é traduzida nas leis. Nesta perspectiva, propomos o estudo de dois tipos
de projetos de leis: os projetos barrados por motivos religiosos e os projetos propostos
por atores evangélicos.
Em primeiro lugar, existe uma variedade de projetos, a nível federal que encontram
a oposição de membros da bancada evangélica. O PLC 122/2006 e da rejeição do kit
“Escola Sem Homofobia” mostram que os evangélicos organizam-se em um lobby
para rejeitar o reconhecimento dos direitos das minorias LGBTTIQ e lutam contra
a criminalização das discriminações praticadas contra aqueles. O projeto mirava
modificar a lei de 1989, que define os « crimes resultantes [de discriminação ou] de
preconceito de raça ou de cor », adicionando os resultantes « de gênero, sexo, orientação
sexual e identidade de gênero »5. Aprovado pela Câmara dos Deputados em 2006 e
pela Comissão dos Assuntos Sociais do Senado em 2009, o projeto de lei nunca foi
votado pela Comissão dos Direitos Humanos – da qual o pastor Marco Feliciano foi
4 Tradução livre.
5 http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/79604
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Levando em consideração o estudo do imaginário dos fiéis evangélicos e a análise dos
projetos de lei mencionados, o cenário político atual nos leva a um questionamento e
hipóteses sobre a virada que tomou o Governo com a chegada à presidência pelo ex
vice-presidente interino Michel Temer.
Ao longo dos mandatos do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva e
Dilma Rousseff contaram com o apoio das igrejas evangélicas e de seus pastores. Para
garantir este apoio, o partido abandonou vários projetos de defesa das minorias, como
vimos ao longo deste estudo. No entanto, a postura de Michel Temer, ao assumir o
cargo de presidente interino revela uma aproximação com a Frente Parlamentar
Evangélica, por duas razões. O novo presidente recebeu oficialmente membros da
bancada evangélica, os quais oraram por ele. Ademais, a remodelação ministerial
parece confirmar a aproximação já mencionada. Com efeito, a nomeação do presidente
do Partido Republicano Brasileiro e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Marcos
Pereira, ao cargo de ministro de Desenvolvimento, Indústria e Comércio assim como a
do deputado federal do Rio Grande do Sul e pastor da Assembleia de Deus, Ronaldo
Nogueira (RUFFATO, 2016), indicam um rumo nunca tomado antes. Apesar de não
poder concluir de maneira certa, diante do recente Governo de Michel Temer, essas
decisões podem sugerir um avanço em termos de programas políticos e projetos de lei
que dão a voz aos líderes religiosos evangélicos e confirmar a nossa hipótese de uma
institucionalização dos princípios cristãos discriminatórios.
REFERÊNCIAS
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HORKHEIMER, Max (1946). O Eclipse da Razão. 7a edição 2010, São Paulo : Centauro
Editora.
eletivas que são criadas para dar a escusa devida a determinadas ações e relações sociais
que usam a religião como pano de fundo para suas devidas justificativas. 2
No caso do cenário plural evangélico brasileiro – que ora se enfrenta, ora se une para
combater pautas pontuais e fortalecer objetivos metaestratégicos de poder eclesiástico
– desenvolvimento contemporâneo do capitalismo tupiniquim, pautado no consumo
familiar dos últimos treze anos, e a expansão eclesiástica de doxas religiosas pautadas
na Teologia da Prosperidade dão um tom especial aos conflitos sociorreligiosos que,
por sua vez, ganham expressões no campo dos direitos políticos, sociais e individuais.
A pretensão do texto é fazer uma reflexão a respeito dos interesses intrínsecos e
institucionais atrelados ao exercício da liberdade política por parte dos neopentecostais
no Brasil – e os possíveis elementos que podem dar azo a pensar no exercício de uma
influência transcendental na consciência política cujos resultados são a reprodução
de um voto de cajado derivado de um baixíssimo accountability eleitoral no sufrágio
brasileiro.
Longe de representar temores panfletários ou inclinações espetaculosas a cercear os
direitos políticos de quem professa qualquer tipo de fé, as expectativas guardadas–
sobre qualquer político eleito a qualquer cargo eletivo de natureza pública – estão
não só na expectativa do cumprimento da pauta dos seus eleitores, mas, sobretudo,
no respeito às minorias sociais (e nos seus não-eleitores) e a renúncia a toda forma de
totalitarismo minando, por conseguinte, conquistas sociais dentro de um Estado (que
se diz) laico.
O texto está estruturado em dois pontos essenciais: a) a contextualização do segmento
religioso neopentecostal brasileiro e a construção de um doxa eclesiástico pautado no
ascetismo intramundano materialista; e b) o trato dado nas afinidades eletivas, que, em
nome da fé, criam uma espécie de “voto de cajado” - e as estratégias de enfrentamento a
este possível cenário. Acreditamos que a reflexão – já emergente a partir de pensadores
brasileiros na esteira da Sociologia da Religião – pode ser aprofundada a partir do
fenômeno do crescimento da representatividade política evangélica nos estratos do
poder nacional e do cenário da conjuntura política, econômica e social.
Contextualizando o ascetismo intramundano e o neopentecostalismo brasileiro.
A compreensão do cenário evangélico no Brasil exige o entendimento da sua presença
e expansão enquanto organismo social. Presentes há pouco mais de um século no país,
suas derivações contemporâneas são tão múltiplas que, para os fins deste trabalho,
os neopentecostais serão nosso objeto de análise – e a visão ascetista diferenciada da
tratada na teoria de Max Weber, dando uma análise especial neste segmento religioso.
O “ascetismo intramundano” está ligado, em teoria e segundo a observação de
Weber, a um processo de desencantamento do mundo. O processo de racionalização
empregado, a princípio, pela Igreja Católica, desenvolveu esta dialética teológica do
qual tanto no espectro extramundano (com a renúncia da própria vida social, v.g.,
o enclausuramento) quanto intramundano (com a ação dentro do mundo, através –
principalmente – do trabalho edificado para a “glória de Deus”) o desapego ao físico
em nome de um curso de salvação em outro plano (espiritual).
2 Atualmente o sistema de afinidades com base teológica justifica, de forma comum, a toda e qualquer ordem de prática pública ou
privada com base religiosa, indistintamente a qualquer designação eclesiástica – quer no campo da propriedade, quer na seara da
dignidade humana e no atentado a direitos das minorias sociais.
Quando o ascetismo foi trazido das celas monásticas para a vida cotidiana
e passou a dominar a moralidade terrena, ele desempenhou um papel na
construção do tremendo cosmos da ordem econômica moderna. Uma vez que
o ascetismo propôs-se a modificar o mundo, os bens materiais ganharam um
poder crescente e finalmente inexorável sobre as vidas humanas como em
nenhum outro período anterior da História. O fulgor de seu herdeiro risonho, o
iluminismo, parece também apagar-se irremediavelmente e a ideia do dever na
vocação do indivíduo que ronda nossas existências como o fantasma de crenças
religiosas mortas. (WEBER, 2005: 86).
Faz-se necessário dizer de que não é simplesmente estar neste mundo e, ao mesmo
tempo, não estar nele; a noção do ascetismo intramundano implica o acolhimento de
uma categoria, qual seja: “a rejeição do mundo” para “amoldar o mundo” por meio da
ética religiosa – permitindo-se agir no mundo em nome da fé. Nas palavras de Weber:
Este ascetismo secular do protestantismo opunha-se assim, poderosamente,
ao espontâneo usufruir das riquezas e, restringia o consumo, especialmente o
consumo do luxo. Em compensação, libertava psicologicamente a aquisição dos
bens das inibições da ética tradicional, rompendo os grilhões da ânsia do lucro,
com o que não apenas a legalizou, como também a considerou diretamente
desejada por Deus. A luta contra as tentações da carne e a dependência dos
bens materiais era não uma campanha contra o enriquecimento, mas contra o
uso irracional da riqueza (WEBER, 2005: 81)
como demonstração cabal da graça divina. No Brasil (assim como em outros países
subdesenvolvidos ou em desenvolvimento do globo) encontrou-se um campo fértil
diante dos desafios teológicos já desgastados com outros movimentos eclesiais que
tinham como temática a luta de classes e a injustiça social – com base na assistência aos
mais pobres, primeiro, por meio de diversas correntes teológicas dentro e fora da Igreja
Católica Apostólica Romana. Neste aspecto – e, dentre outros fatores, diante de um
cenário de liberdade religiosa propiciada pela redemocratização do Estado brasileiro
pós 1988 – o catolicismo vem decrescendo no Brasil. Segundo dados do IBGE, dos
mais de treze milhões em 1991 chegou-se, em 2000, para mais de vinte e seis milhões e,
nos anos 2010, em mais de quarenta e dois milhões de fiéis evangélicos – de múltiplas
orientações pentecostais e neopentecostais (IBGE, 2010).
Pierucci, ao aprofundar a análise sobre o protestantismo como fenômeno religioso em
terras brasileiras, disseca o movimento religioso em seus estratos sociais e esclarece
que cada ramo protestante deve ser analisado à parte. Se, por um lado, observa-se o
recrudescimento dos luteranos e a estagnação dos batistas, os assemblessitas (Assembleia
de Deus) e os iurdianos (derivado da sigla IURD – Igreja Universal do Reino de Deus)
são as denominações não-católicas que mais crescem no país (PIERUCCI, 2004: 07-08).
Dentro dos mergulhos teológicos pautados na incorporação, em níveis extremamente
flexíveis, dos valores da pós-modernidade e da sociedade líquida (BAUMANN, 2010),
pode-se mencionar o fenômeno brasileiro do neopentecostalismo, movimento religioso
cuja origem brasileira deu-se no Rio de Janeiro, por meio (principalmente) da Igreja
Universal do Reino de Deus (1977) – sua maior representante –, da Igreja Internacional
da Graça de Deus (1980) e do “Cristo Vive” (1986) (MARIANO, 2004: 123).
O prefixo neo mostra-se apropriado para designá-la tanto por remeter à sua
formação recente como ao caráter inovador do neopentecostalismo.
Embora recente entre nós, o termo neopentecostal foi cunhado há vários anos nos
EUA. Lá, na década de 1970, ele designou as dissidências pentecostais das Igrejas
protestantes, movimento que posteriormente foi nomeado de carismático. Como
deixou de ser empregado nas tipologias norte-americanas, não confunde nem
atrapalha nossa tarefa de classificação.
(...)
Nos meios acadêmicos, Ari Pedro Oro (1992: 7,9), antropólogo da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, emprega o termo neopentecostalismo e o identifica
à expressão “Pentecostalismo autônomo” (Mendonça fez o mesmo em 1992),
cunhada por Bittencourt, para nomear as Igrejas formadas a partir da década
de 1950, como Brasil para Cristo, Deus é Amor, Casa da Bênção, Universal do
Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus e Evangélica Pentecostal Cristã.
Oro, porém, inclui a Igreja Quadrangular entre as “pentecostais tradicionais”.
Também para José R. L. Jardilino (1994), anglicano e recém-doutor em Sociologia
na PUC/SP, o neopentecostalismo “surge por volta dos anos 50” (MARIANO,
1999: 33).
Esta é, sem dúvidas, uma das essências do pensamento neopentecostal, que mistura
misticismo e materialismo e propõe que a troca de sacrifícios financeiros enseja,
misticamente, a retribuição por meio do “livramento do mal” e da prosperidade
material, a qual se reflete fatalmente em consumo privado – com fortes doses de
sincretismo e as afinidades eletivas que praticam, de forma utilitária, práticas religiosas
afrobrasileiras e amerídias (MARIANO, 2004: 128). Nas searas neopentecostais, o ter é
tão importante quanto o ser e é frequente a apologia ao luxo que faz com que a prática
da construção de mega templos – para a maximização do exemplo público de sucesso
da própria religião em reforço à própria doxa religiosa praticada por seus fiéis.
Outra questão – tão fatal quanto a prosperidade material – é a prosperidade no poder.
Como um dos reflexos diretos deste sucesso, de forma assente e consciente no coletivo
religioso nas práticas do ascetismo intramundano neopentecostal, está a estratégia da
ocupação política de seus líderes em cargos eletivos nos espaços públicos (eleitos em
escala cada vez mais ascendente a cada sufrágio interfederativo).
As afinidades eletivas e as estratégias políticas do neopentecostalismo brasileiro.
A presença de uma bancada religiosa no esteio legislativo é a expressão, conforme os
próprios líderes denotam, de sua liberdade de expressão religiosa na arena pública
– in casu, nos parlamentos brasileiros. A ocupação, em si, não é um amálgama da
democracia distributiva – mas há que se respeitar, como princípio de ação pública, a
laicidade estatal. Aliados a estratégias dos meios de comunicação de massa – dentre
No entanto – indiferente aos fatos que levam os líderes religiosos a ocuparem cargos de
poder (pela graça divina, pelos eleitores ou por uma conjuntura política favorável em
cenários de crise institucional) – há, segundo Mariano, o risco das parcerias evangélicas
ameaçarem a laicidade do estado quando certas políticas públicas são canalizadas
(em coordenação) para fins religiosos. Como mencionado acima, as áreas de saúde,
assistência social, emprego e renda são as pautas mais disputadas entre o segmento
religioso que possui bancada legislativa ou mandato executivo. Não representa, em si,
uma ameaça à democracia, segundo Mariano, mas reforça o papel proselitista adotado
pelos neopentecostais em limitar o acesso aos direitos sociais pelo perfil de seu público
preferencial ou, de modo mais enérgico, combater avanços em direitos individuais –
como as questões de gênero e sexualidade, por exemplo, (EL PAÍS, 2016).
No sentido do esclarecimento sobre o programa de ação do candidato religioso surgiu,
nos últimos anos, um movimento chamado “Rede Fale” – que conta com intelectuais
cristãos que denunciam o chamado “voto de cajado” (em acepção ao “voto de cabresto”,
sob manipulação teológica do eleitor evangélico ao tratá-lo como ovelha dócil, cega e
caminhando “na fila do pastor”) (FORUM, 2012). Confiando na inteligência de quem
escolhe o candidato-representante de sua igreja a ONG orienta, em cartilha, uma série
de práticas que visam coibir o “mercado do voto religioso”. Dentre estas práticas,
situam-se:
O uso do poder pastoral para guiar a consciência dos fiéis, como um curral
eleitoral, em benefício de qualquer candidato;
O uso das Sagradas Escrituras ou de imagens bíblicas de forma capciosa, a fim
de legitimar a candidatura de uns e demonizar a candidatura de outros;
A venda da consciência e dos votos dos membros da Igreja a algum candidato,
em troca de recompensas materiais concedidas, “a liderança, congregação ou
denominação”;
A permissão do uso do púlpito como plataforma de propaganda partidária e
eleitoreira, ou de apresentação de quaisquer candidatos para fins eleitorais;
A coação ou ameaça aos subordinados ou membros da Igreja para que
manifestem inclinações políticas iguais às de seus líderes para eleger candidatos
de fora ou de dentro da Igreja;
A transferência da imagem de pastores ou líderes religiosos para candidatos
escolhidos por Deus ou demonizando seus concorrentes;
Lideranças evangélicas que demonstram opções políticas diferentes das suas,
caluniando-as, em vez de ajudar a fazer o debate sobre as propostas dos
candidatos. (UAI, 2014).
4 A grande mídia – apoiada, principalmente, pelas Organizações Globo, Rede Bandeirantes de Comunicação e o Grupo Civita –
engendrou, por todos os meios lícitos possíveis, enfraquecer a campanha de Marcelo Crivella à prefeitura carioca (com uma sorte
imensa de biografias suspeitas sobre o caráter laico do candidato e suas pretensões reais no poder municipal). O resultado não foi
favorável e, mesmo assim – somada à conjuntura de desestímulo do eleitor carioca – o mesmo foi eleito com expressivo percentual.
De toda sorte, o futuro lançado não é de uma “república evangélica” ou uma “nação
neopentecostal” – como se alarmam as opiniões emitidas na conjuntura política
atual (RUFFATO, 2016; MARTÍN, 2016). Embora sob um lastro político cada vez
mais ascendente – vide a composição ministerial do governo Temer neste ano – a
bancada evangélica aproveita um momento (quase) único que permite ao segmento
uma perspectiva de possuir o poder de transnacionalizar a fé neopentecostal (como já
ocorria nos governos de centro-esquerda do PT, sem a necessidade direta da ocupação
do mais alto cargo político do país). Mas, num momento presente, acreditamos que o
sucesso dos neopentecostais na seara política entre os não-religiosos / religiosos não-
evangélicos exija uma costura ética com a pluralidade e com a diversidade separando
o “joio do trigo” no campo teológico e posicionando o lugar da ética religiosa no
templo e no espaço onde ele, socialmente, interage sem constranger outras minorias e
segmentos sociais.
Referências
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disponível Brasília DF: UnB, 23 a 25 de novembro de 2016, ISSN 2316-266X, n.5 em 18
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disponível em http://www.diariodocentrodomundo.com.br/trump-e-a-nossa-cara-
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Disponível em: Estudos Avançados. 18 (52), 2004.
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______. Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo:
Loyola, 2002.
INTRODUÇÃO
As mudanças climáticas e as implicações socioeconômicas de sua incidência nas
mais distintas regiões do Planeta hoje são tema das mais prosaicas conversas; elas
ingressaram no discurso jurídico ainda na década de 70 do século passado, mas
somente com a divulgação dos relatórios do Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas (IPCC), em meados da década de 90, é que definitivamente
emergiram das pesquisas científicas como um dos graves problemas da humanidade.
As informações e a publicidade em torno da questão foram eficientes, pois conseguiram
produzir um gradual interesse pelo tema. Mas tudo isso estaria relegado a mais um
dos compartimentos da história da civilização humana se as constantes catástrofes não
estivessem atingindo áreas cada vez maiores do globo.
Há uma dimensão global, por evidente, das mudanças climáticas; mas esquece-se
que em nível local elas também já vêm atingindo a todos. Temporais, inundações,
enchentes, longos períodos de estiagem, tudo isso já existia, contudo não com tanta
frequência, nem com tanta intensidade. Isso torna mais perceptível que se está sim
diante de um novo cenário climático e que o risco de desastres ambientais faz parte do
dia a dia de todos.
A importância do estudo e análise do fenômeno do aquecimento global e as mudanças
climáticas já foram reconhecidos por organizações transdisciplinares como o Climate
Institute, dos Estados Unidos e o Institute Des Hautes Études pour la Science et la
Technologie, da França. Partindo-se da ideia de que as mudanças climáticas já estão
em andamento, embora as consequências mais nefastas estejam previstas para as
próximas décadas, e de que não se pode ficar indiferente diante de um quadro que
coloca em risco não só a geração atual, mas principalmente as gerações que virão,
reveste-se de fundamental importância o estudo de estratégias jurídico-ambientais no
enfrentamento das mudanças climáticas, e que o Direito, a Política e a Ciência têm o
dever de trazer à tona.
Sob a perspectiva jurídica, a proteção ambiental insculpida no artigo 225 da
Constituição Federal há de ser compreendida em uma dupla funcionalidade: 1) como
um direito (dever) fundamental do indivíduo e da coletividade; 2) como um objetivo e
tarefa estatal (SARLET, 2010, p.92). Nesse último viés, e conectado com as tendências
contemporâneas do Direito Internacional Ambiental, o ordenamento jurídico nacional
consagrou os princípios que traduzem a disposição do Brasil em trilhar um caminho
de mitigação e prevenção às mudanças climáticas, o que efetivamente o fez com a
aprovação da Lei 12.187/2009 (Política Nacional sobre Mudança Climática). O artigo
3º dessa Lei expressa os princípios da precaução, prevenção, do desenvolvimento
sustentável, da responsabilidade comum e da participação cidadã (popular).
É a participação popular, ainda ausente ou deficiente, nos grandes temas nacionais,
em particular os que tratam dos problemas da degradação ambiental, da exploração
desenfreada dos recursos naturais e das alterações climáticas decorrentes do
aquecimento global o que originou o presente trabalho. Pretende-se, portanto,
visualizá-la no âmbito da legislação das políticas públicas sobre mudança do clima,
em nível nacional e estadual, por meio da análise do princípio da participação cidadã,
seja 1) na implementação do princípio, quando da defesa neste lócus de um novo
instrumento jurídico-processual – a audiência judicial participativa; 2) na investigação de
uma consulta pública realizada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), quando da
realização da mesma no final do ano de 2015, sobre o Plano Nacional de Adaptação à
Mudança Climática (PNA).
Como as mudanças climáticas constituem, por si só, um grande campo de investigação
de áreas conexas (as Ciências da Terra e as Ciências do, por exemplo) e mesmo as
não conexas (a Meteorologia e o Direito, outro exemplo), a delimitação não foi tarefa
fácil neste artigo, contudo se busca contribuir à questão da interação entre cidadania
ambiental e as mudanças climáticas, mas mais que isso, descortinam-se novas
possibilidades no caminho (v.g. audiência pública participativa), antes desconsideradas,
interpretados instrumentos os quais os formuladores e executores da política pública
de prevenção e mitigação das mudanças climáticas estão utilizando.
1 AS MUDANÇAS CLIMÁTICAS E O ESTADO DA ARTE
Em fins do século XIX, o físico britânico John Tyndall investigou e diagnosticou que
os gases que se depreendiam das fábricas da Grã-Bretanha não estariam se dissipando
como outrora: era o início do estudo sobre o efeito estufa e o aquecimento global
(KOLBERT, 2007, p.40). Contudo, somente na década de 60 do século XX a preocupação
com o acúmulo desses gases na atmosfera passou a fazer parte das preocupações da
academia. Esse aumento excessivo do dióxido de carbono e de outros gases lançados
na atmosfera – denominados gases de efeito estufa (GEEs) – é o resultado da passagem
da sociedade industrial para a pós-industrial e do processo de acirramento da crise
ambiental na última metade do século XX. Tal passagem teve seu ápice nas décadas
de 60-70 do século XX, não obstante a crise do petróleo de 1973, que obrigou à busca
de alternativas energéticas a esse combustível fóssil, a produção anual do mesmo não
recuou, ao contrário, cresceu (GIDDENS, 2010, pp.60-66).
Sendo assim, as mudanças climáticas e as projeções de sua incidência e efeitos sob
uma perspectiva científica decorrem principalmente dos fatores antropogênicos,
é dizer, de uma ação antrópica: a atividade humana é a maior responsável pelo
aumento desmedido da emissão de gases de efeito estufa (GEEs). Ao contrário da
opinião de vários “céticos” quanto à fundamental participação dos seres humanos no
aquecimento do Planeta Terra, as mudanças climáticas têm causas antropogênicas e,
portanto, fazem parte da categoria de riscos transtemporais e globais, aos quais Ulrich
Beck fazia referência.
A partir das projeções do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas),1
inúmeros institutos e grupos de pesquisas passaram a estudar aquele problema
ambiental de segunda geração. No âmbito nacional, os estudos do INPE (Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais); da Embrapa; do COPPE-UFRJ (Instituto de Pós-
Graduação e Pesquisa do Departamento de Ciências da UFRJ) são referência. Os
ecossistemas, a biodiversidade, o mundo natural, do qual o ser humano faz parte,
encontram-se em perigo; as emissões de gases de efeito estufa por causas antrópicas,
conforme as últimas declarações do IPCC, estão acelerando a destruição da camada de
Ozônio e o aquecimento global é uma realidade.
1 Segundo o 5º (Quinto) Relatório de Avaliação do IPCC há a estimativa de aquecimento global em uma possível variação entre 2,4º
e 6,4º C, dando origem ao câmbio climático, com maior número de enchentes e secas; frequência de eventos extremos; disseminação
de doenças letais, além da elevação dos mares. In: IPCC, 2014: Cambio climático 2014: Informe de síntesis. Contribución de los Grupos de
trabajo I, II e III al Informe de evaluacióndel Grupo Intergubernamental de Expertos sobre Cambio Climático. IPCC.
acrescidos da Alemanha e Reino Unido têm leis específicas sobre alterações do clima,
conforme relata Anthony Giddens:
Tomando um vasto conjunto de indicadores de critérios ambientais, todos os
países de melhor desempenho são democráticos. Segundo a classificação do
Índice de Desempenho Ambiental elaborados pelas universidades de Yale e
Columbia, os cinco melhores países do mundo são Suécia, Noruega, Finlândia,
Suíça e, curiosamente, uma sociedade em desenvolvimento, a Costa Rica
(GIDDENS, 2010, p. 101).
Já as diretrizes são previstas no art. 7º e entre elas devem ser citadas as seguintes: I –
adotar ações de educação ambiental e a conscientização social acerca das mudanças
climáticas; II – formular, implementar, publicar e atualizar regularmente programas
regionais que incluam medidas para mitigar a mudança do clima, enfrentar as
mudanças antrópicas por fontes e remoções por sumidouros de todos os gases de efeito
estufa não controlados pelo Protocolo de Montreal em todos os setores pertinentes,
inclusive nos setores de energia, transportes, indústria, agropecuária, silvicultura e
administração de resíduos.
Em uma análise conjunta das duas leis, verifica-se que ambas consagram a participação
popular como princípio, mesmo que os termos não sejam os mesmos; na lei federal, a
expressão utilizada é participação cidadã, enquanto na lei estadual, é participação pública.
Portanto, o intuito do legislador era o de reconhecer que o público, a coletividade tem,
aqui, um direito fundamental.
Em tempos de crise ambiental, em que as mudanças climáticas são consideradas um dos
maiores desafios à humanidade, os dois planos de combate e prevenção às alterações
do clima em estudo – Lei federal nº 12.187/09 e Lei estadual (do Rio Grande do Sul) nº
13.594/10 - tratam da participação popular no rol dos princípios, o que significa dizer
que a opção do legislador vai ao encontro do que documentos internacionais já haviam
expresso – v.g., Declaração do Rio de 1992 em seu art. 10.
Contudo, embora albergada pela lei federal e estadual, a participação popular
continua ínfima em se tratando de questões ambientais. No que tange particularmente
às mudanças climáticas e suas consequências desastrosas, a pouca participação parece
ser fruto do não reconhecimento da gravidade do problema pela população em geral,
como se o mesmo estivesse distante do nosso dia a dia.
Não se trata mais de alterações climáticas e seus efeitos nefastos em um futuro remoto,
mas de graves alterações em andamento: o regime de chuvas em algumas regiões do
Brasil já foi modificado e entre seus efeitos as enchentes e inundações são exemplos
enquanto há secas mais severas em outras regiões.
Logo, o debate público sobre os novos cenários climáticos e como as repercussões
daqueles afetarão a vida dos habitantes do Planeta Terra é imprescindível que se
realize. As consequências nefastas das mudanças climáticas transcendem inclusive
às outras questões ambientais. Não obstante se concorde com o sociólogo britânico
Anthony Giddens acerca do paradoxo que existe na sociedade contemporânea, é mister,
então, que os setores da sociedade que têm acesso ao conhecimento e ao saber sejam
os indutores de um debate público sobre a necessidade da mitigação e/ou adaptação
à nova realidade climática; além disso, as decisões políticas ou jurídicas no campo
ambiental se legitimam adequadamente quando há uma efetiva participação popular.
Defende-se, neste espaço, um novo olhar, sob o viés jurídico-processual, que leva
em consideração a necessidade do cidadão participar ativamente nas decisões que
envolvam o meio ambiente, o que vai ao encontro de uma democracia participativa.
Por isso, a adoção de uma audiência judicial participativa pode se constituir em uma
tentativa de estabelecer uma decisão mais equânime e justa tratando-se de casos
envolvendo o ambiente e as alterações climáticas.
Esse terceiro modo de participação popular citado (ainda) está longe de ser
implementado no que se refere aos planos sobre mudanças climáticas, tanto em nível
federal como estadual. A consagração de um princípio da participação cidadã revela que
o Estado não pode (nem deve) assumir sozinho o ônus do combate e prevenção às
alterações climáticas. Ele ainda é o ator mais importante, na medida em que induz
e assegura a construção de um novo modelo socioambiental, mas a participação
efetiva da população nas decisões ambientais é indispensável; não é possível mais se
aceitar que a população permaneça alheia ao debate e escolhas sobre as mais variadas
questões ambientais, desde a biotecnologia e as nanotecnologias até um (novo) modelo
energético para o país.
4 O PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO CIDADÃ (POPULAR) NAS POLÍTICAS
NACIONAL E ESTADUAL SOBRE MUDANÇA DO CLIMA
O princípio da participação cidadã expresso no art. 3º da Lei federal sobre as Mudanças
Climáticas tem feição semelhante a do princípio da participação popular insculpido
na Lei 9.985/2000 (Lei do SNUC) e demais leis ambientais. No âmbito da Lei estadual
ele está expresso no art. 6º, IV, colocando ao lado da participação, a cooperação pública.
Há doutrina afirmando que o princípio da participação popular não deve ser dissociado
dos princípios da informação e da educação (FARIAS, 2008, p.32), pois os três princípios
devem andar lado a lado; somente um cidadão bem-informado (e, por óbvio, educado
“ambientalmente”) terá maior possibilidade de participar efetivamente de processos
decisórios em âmbito administrativo ou expressando sua opinião em âmbito judicial.
Quanto ao tipo de opinião expressa nas contribuições, 58% correspondem à visão pessoal
do respondente e 48% a uma visão institucional (setor empresarial, governamental,
academia e sociedade civil organizada).
Esses números e percentuais foram divulgados no site do próprio Ministério do Meio
Ambiente e denotam que houve baixíssima participação popular nessa consulta pública.
Tão-somente 134 formulários eletrônicos foram aceitos para integrar a referida
consulta. É um número insuficiente para estabelecer uma efetiva participação popular
na confecção de um plano tão importante como é o PNA. Não obstante tenha sido
aberto à população em geral, o maior número de formulários eletrônicos foi respondido
por instituições de atuação na seara climático-ambiental. Em um universo de mais
de 200 milhões de habitantes no Brasil, esse número de 134 definitivamente não é
representativo do que deseja ou sugere a população.
Se o Ministério do Meio Ambiente tem todos os canais e instrumentos para publicizar
uma consulta pública, por que estabelecer um prazo tão curto para eventuais
contribuições e sugestões? E mais, qual o critério utilizado – não ficou claro na
divulgação dos dados – para escolher aqueles 134 formulários? Acaso, nessa escolha,
teve preferência o formulário que nada sugeriu ou que nada contestou sobre a minuta?
Em documento produzido na 28ª Reunião do Grupo de Trabalho sobre Adaptação, as
considerações acerca da consulta pública são mínimas, in verbis:
PORTO, Philippe
Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Direito
da Universidade Federal Fluminense - PPGSD/UFF 3 Bolsista CAPES
E-mail: philippe_porto@hotmail.com
Resumo
A partir da perspectiva da Ecologia Política, o trabalho apresenta conflitos ambientais
relacionados ao tema da água como bem comum no Brasil a partir do Mapa de
Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil (Fiocruz e ONG Fase).
Os casos que envolveram denúncias ou reivindicações relacionadas ao tema da água
foram classificados em sete tipos de conflitos que retratam, de forma abrangente, as
diferentes formas como o tema da água faz parte dos conflitos socioambientais no
Brasil.
Abstract
From the perspective of political ecology, this work presents environmental conflicts
related to water as a common good in Brazil, based on the Map of Conflicts Involving
Environmental Injustice and Health in Brazil (by Fiocruz and the NGO Fase). The cases
involving complaints or claims related to the water issue were classified in seven types
of conflicts that portray, in a comprehensive way, the different forms of how this issue
is part of socioenvironmental conflicts in Brazil.
Introdução
A partir da perspectiva da ecologia política, o presente trabalho se propõe a refletir
sobre conflitos ambientais relacionados ao tema da água como bem comum no Brasil
e do movimento por justiça ambiental1. A fonte de informação dos casos selecionados
provém do Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil2.
Embora não possua o devido destaque, cada vez mais o tema dos bens comuns se revela
associado ao debate sobre (in)justiça ambiental. Atualmente, o discurso dominante
sustenta a extensão da mercantilização ao que era considerado como bens comuns.
A privatização conexa dos territórios, direta ou indiretamente, aparece como o único
caminho de desenvolviment(ism)o e, em consequência, de “saída da pobreza”. Nesse
contexto de imposição de uma fala hegemônica, os grupos populacionais pobres com
frequência ou são atropelados ou se acomodam, frente ao argumento de que a atividade
produtiva que os atinge é intrínseca ao desenvolvimento do qual se beneficiarão no
futuro.
Para a construção deste trabalho foi utilizada a ferramenta de busca por palavra
chave existente no Mapa. A consulta da palavra chave “água” resultou em mais de
60 conflitos3. Na maior parte dos conflitos ambientais, a questão da água surge em
sua relação direta com os processos de extração de recursos naturais, produção de
commodities e de energia, no caso particular das barragens e hidrelétricas. Os conflitos
ocorrem pelas disputas quanto ao uso, mas também pela contaminação hídrica
decorrente da produção de rejeitos presentes no agronegócio, na mineração e em
atividades industriais.
Ecologia Política, (In)Justiça Ambiental e Água como Bem Comum no Brasil
A emergência de conflitos socioambientais decorrentes do desenvolvimento econômico
está frequentemente presente em qualquer território inserido em sociedades
produtivistas e consumistas. Tais conflitos, contudo, podem ser compreendidos de
inúmeras formas. Por exemplo, podemos analisá-los a partir das contradições existentes
do comércio desigual e injusto entre países do atual capitalismo globalizado, conforme
faz Alier (2007) ao articular a economia ecológica com a ecologia política em sua análise
do metabolismo social. Porém, tais conflitos tendem a se radicalizar em situações
de injustiça presentes em sociedades marcadas por fortes desigualdades sociais,
discriminações étnicas e assimetrias de informação e poder. Nestes casos, conflitos
ambientais, saúde, proteção ambiental e direitos humanos se colocam como bandeiras
de luta das populações atingidas e movimentos sociais diversos, articulados em torno
do movimento por justiça ambiental. A origem da justiça ambiental está relacionada
à luta contra a discriminação racial e étnica presente nos movimentos pelos direitos
civis da sociedade norte-americana nos anos 70 (BULLARD, 1994). Inicialmente o foco
foi o racismo ambiental, mas depois o movimento se ampliou e adotou o conceito
1 A origem da justiça ambiental está relacionada à luta contra a discriminação racial e étnica presente nos movimentos pelos direitos
civis da sociedade norte-americana nos anos 70. Inicialmente o foco foi o racismo ambiental, mas depois o movimento se ampliou e
adotou o conceito abrangente de justiça ambiental, articulando-se com a defesa pelos direitos humanos universais e incorporando
outras formas de discriminação além da racial, como classe social, etnia e gênero (BULLARD, 1994).
2 Trata-se de projeto iniciado pela Fundação Oswaldo Cruz e pela ONG Fase, que durante anos sediou a secretaria executiva da
Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), criada em 2001. O referido Mapa, lançado em 2010 e disponível na internet, possui
atualmente cerca de 550 conflitos ambientais espalhados por todo o território brasileiro (PACHECO, 2010).
3 Após uma análise preliminar de cada conflito, foi desenvolvida uma classificação através de tipologia contendo sete grupos
de conflitos relacionados à água, que são: 1) Conflitos envolvendo indústrias e poluentes industriais; 2) Conflitos relacionados à
expansão do agronegócio; 3) Conflitos envolvendo a construção de barragens e hidrelétricas; 4) Outros conflitos em espaços urbanos;
5) Conflitos ligados à mineração; 6) Conflitos por demarcação de terras de povos tradicionais; 7) Outros conflitos ambientais
específicos.
4 Lawrence Summers, então economista chefe da referida instituição, assinou o documento que afirmava que a racionalidade
econômica justificava que os países periféricos fossem o destino dos ramos industriais mais danosos ao meio ambiente. Dois
argumentos eram apresentados. O primeiro, de que os mais pobres, em sua maioria, não viveriam o mesmo o tempo necessário
para sofrer os efeitos da poluição ambiental. O segundo, de que de acordo com a “lógica econômica”, se poderia considerar que as
mortes em países pobres têm custo mais baixo do que nos ricos, pois os moradores dos países mais pobres receberiam, em média,
salários mais baixos.
Ao afirmar que somos parte do mundo natural, o bem viver se opõe ao modelo de
produção e de consumo dominantes, e rompe com o conceito cartesiano que dominou
o pensamento ocidental de que a natureza serviria à dominação pelo homem. Embora,
por advirem de outro contexto o conceito e a vivência que o Buen Vivir expressa, não
podemos importar diretamente para a realidade brasileira (WOLKMER, AUGUSTIN,
WOLKMER, 2012), mas ele pode nos inspirar num diálogo intercultural e de ecologia
de saberes para superar a dicotomia sociedade e natureza que marca a visão moderna,
ocidental e produtivista (SANTOS, 2009).
Água e metabolismo social: uso, contaminação e acesso desigual
Ainda na perspectiva da Ecologia Política, uma questão central para o entendimento
das origens dos conflitos ambientais diz respeito ao conceito de metabolismo social.
Ele pode ser expresso em perguntas como: quando uma tonelada de soja, carne
bovina, ferro, aço ou alumínio é exportada, quanto de energia, materiais e recursos
naturais como a água foi consumido indiretamente? Como os processos de dissipação
e desintegração produziram impactos ambientais em função do uso de recursos,
agrotóxicos e irrigação? Este mesmo raciocínio pode ser aplicado para o trabalho
humano: quantas vidas humanas foram afetadas por doenças, mortes e condições
de vida precárias pelos sistemas produtivos que geraram tais produtos? A economia
neoclássica e sua resposta às questões ambientais - sua versão denominada de economia
verde – em suas vertentes voltadas à poluição e aos recursos ambientais, não parece
estar interessada em lidar com perguntas como essas, que se relacionam ao debate
sobre desenvolvimento econômico e desigualdades sociais entre e dentro dos países.
Do ponto de vista da água, podemos compreender questões de ecologia política e do
metabolismo social de várias formas. De um lado há um incremento de entropias pela
forma de uso da água para produção de energia. De outro, a poluição hídrica provoca
a perda de qualidade (“água cinza”) por vários processos, como a falta de saneamento
básico e a contaminação por atividades agrícolas (como os agrotóxicos e fertilizantes) e
industriais. A poluição hídrica implica na necessidade de serem utilizados processos de
recuperação da qualidade com custos diversos em termos de energia, uso de químicos,
dentre outros. Por outro lado, o acesso desigual ao uso da água pode expressar os
embates entre a água enquanto valor econômico e mercadoria e enquanto direito
humano fundamental para a sobrevivência e a qualidade de vida. Por fim, o comércio
desigual e injusto pode ser analisado a partir do conceito de água virtual exportada.
Para uma análise adequada da água como bem comum, é fundamental situá-la no
contexto sócio-espacial que antecede e acompanha sua trajetória. A demanda de água
no Brasil encontra-se concentrada na agricultura, na produção de energia, nos usos
industriais e no consumo humano. Segundo a Agência Nacional das Águas, o perfil de
consumo de água doce no país encontra-se distribuído da seguinte forma: 72% para
agricultura, 11 % pecuária e dessedentação de animais, 9% para o consumo humano
nas cidades, e 7% para atividades industriais indústrias. Este dado, contudo, não
aprofunda o uso e apropriação da água para outras atividades (como a produção de
energia elétrica pelas hidrelétricas), nem informa o quanto setores como a agricultura,
a mineração e indústrias diversas contribuem para a contaminação da água por meio
dos agroquímicos – agrotóxicos e fertilizantes -, dos efluentes e dejetos industriais. Há
também uma discussão fundamental no país que diz respeito à falta de esgotamento
sanitário e coleta adequada de lixo que é responsável por uma enorme carga de
poluição hídrica no país. Portanto, a veiculação pela mídia hegemônica que foca a
principal estratégia de enfrentamento da crise hídrica no país no desperdício de água
pelo consumidor individual precisa ser devidamente criticada e contextualizada, tal
como vem sendo construído por redes e articulações como o recentemente criado
Coletivo de Luta pela Água de SP.
A desigualdade no acesso à água e a escassez de serviços adequados de saneamento
continua a ser um problema fundamental no mundo e que tende a se agravar. Segundo
a UNESCO (2012), cerca de um bilhão de pessoas não têm acesso a fontes tratadas de
água potável, e 2,6 bilhões de pessoas não dispõem de serviços de saneamento de
qualidade. Além disso, a falta de qualidade da água potável é a principal responsável
pelas chamadas doenças de veiculação hídrica que matam cerca de 1,5 milhões de
crianças por ano no mundo6. Este documento chega a prever o aumento das disparidades
econômicas entre países, regiões e setores em função da escassez das águas (SANTOS,
MORAES E ROSSI, 2013).
Mercantilização da água: a falsa solução da economia neoclássica
Os processos de mercantilização da natureza em geral, e da água em particular, são
uma resposta da economia neoclássica, dos países capitalistas centrais e de grandes
corporações diante da crise ambiental e da crescente escassez de água em várias regiões
do planeta. Baseia-se em alguns pressupostos da economia neoclássica aplicada aos
problemas ambientais referenciando-se em autores clássicos como Coase (1960) em
seu livro “The problem of social cost” que aprofunda o conceito de externalidade, e
Hardin (1968) no clássico “The Tragedy of the Commons”, que assume ser a grande causa
dos problemas ambientais atuais o fato da natureza e dos recursos naturais serem
“de todos”, e por isso não serem de ninguém – argumento mobilizado para justificar,
frequentemente, privatizações. Ou seja, no caso de recursos como a água, por “não
terem dono, propriedade e mercados”, seria necessário, para criar as condições
institucionais e políticas de internalização das externalidades negativas, a criação de
mercados dos recursos naturais e políticas de mercantilização de tais recursos.
Especificamente no caso dos bens públicos, a apropriação privada tem levado à
liquidação das florestas e dos recursos pesqueiros oceânicos, à contaminação dos rios
e dos lençóis freáticos, entre outras tragédias. Aqui a competição de grupos privados
associada à falta de regulação leva a uma corrida por quem arranca o pedaço maior,
processo que é acelerado com as novas tecnologias e o crescimento do consumo no
mundo (DOWBOR, 2012).
Hilary Wainwright (2014) defende a reorientação das parcerias público-privadas do
seu sentido Estado-Empresa para uma visão de articulação mais rica entre o Estado e as
diversas formas de organização de usuários e de sindicatos. Intitulado “The Tragedy of
the Private: the Potential of the Public” (A tragédia do privado: o potencial do público),
o estudo vai no contrapé do antes referido trabalho de Hardin (1968). Pesquisando os
mecanismos de mudança guiada pelos objetivos de serviços públicos democráticos
mais do que pelo lucro, Wainwright analisa como funcionam, em diversas partes do
mundo, as administrações municipais onde confluíram o interesse dos funcionários e
da administração em geral em serem mais produtivos e valorizados e o interesse dos
6 WORLD WATER ASSESSMENT PROGRAMME. The United Nations world water development report 4: managing water under
uncertainty and risk. Paris: UNESCO. 2012. p. 95.
7 WAINWRIGHT, Hilary. The Tragedy of the Private: the potential of the public – Public Services International. Transnational
Institute, 2014. Disponível em http://www.world-psi.org/sites/default/files/documents/research/alternatives_to_privatization_
en_booklet_web_april.pdf. Acesso em 28. 11.2016. p. 9.
Segundo Castro (2007, apud Santos, Moraes e Perry, 2013), a privatização dos serviços
públicos de distribuição de água e esgotos na Europa – de onde se importam modelos
– gerou altos índices de inadimplência e de corte do serviço, tornando-se necessário
rever os mecanismos de cobrança e de regulação. As iniciativas de privatização dos
serviços públicos de abastecimento de água, a utilização de instrumentos econômicos
e a constituição de mercados das águas ainda mais profundos, tendo levado a uma
maior ênfase na recuperação dos custos e menor ênfase nos serviços públicos de
saneamento ambiental.
Wainwright (2014) apresenta como exemplo de alternativa para reverter esse processo
o ocorrido na cidade de Paris, França. Lá, após desastrosa gestão decorrente da
privatização, a administração pública retomou o controle da gestão da água de forma
a incluir representantes sindicais e populares. Os resultados foram surpreendentes:
“Water in Paris is now run by a board that includes representatives of workers and the
public, independently supervised by scientists and public representatives. Moreover,
while prices continuously rose under privatisation, they fell by 8% after the first year
of returning to public ownership. Prices are now 40% lower than in the outskirts of the
city where water is still run by a private company.”8
Nesse sentido, a Lei das Águas descentraliza (parcialmente), mas não democratiza a
sua gestão, o que, do ponto de vista ambiental e social, contribui para a manutenção
de realidades marcadamente pobres e com fortes desigualdades sociais. A referida lei
estabelece em seu artigo 1º, II, a água como um bem dotado de valor econômico, e, mais
adiante, aponta como objetivo da cobrança o reconhecimento desse valor e a indicação
do mesmo ao usuário (artigo 19, I) – o que claramente representa a incorporação de
lógicas de mercantilização, conduzindo ao enfraquecimento da garantia constitucional
do acesso à água a todos os cidadãos.
Torna-se mais agudo o conflito entre o direito à água e a sua constituição como bem
econômico. Por exemplo: quanto vale a água bruta, a que chega para o agronegócio e
para o produtor familiar no semiárido, que chega à torneira dos domicílios e o esgoto
tratado, na Pituba e em Massaranduba, em Salvador? Quem pode e deve pagar por
isso? Essas são questões fundamentais que precisam ser discutidas coletivamente e
de forma participativa. No que toca eventuais reconfigurações da gestão privatizada
de recursos hídricos, é fundamental que esses processos estejam atrelados a uma
democratização cada vez mais intensa. A democracia puramente representativa não
basta, e a situação demanda uma maior presença dos cidadãos nos processos decisórios.
E se a participação efetiva é, de um lado, condição, de outro, ela é desafio. Pois se o
que se busca é a inclusão dos potencialmente afetados por decisões administrativas
envolvendo a gestão dos recursos hídricos, muitas vezes os mecanismos para
implementar inviabilizam a participação adequada e efetiva, acabando, às vezes, por
“invisibilizar o outro” (GERHARDT, 2007).
E é exatamente no caso dos bens comuns que há maior necessidade de pensar
novas formas de regulação e novos mecanismos de participação, de modo a tornar
realidade a universalização do direito à água. As formas de organização instituídas,
particularmente os Comitês de Bacias Hidrográficas que aglutinam usuários e
interessados pelas águas e sua gestão, constituíram-se em um avanço em relação ao
modelo anteriormente existente. Entretanto, essas estruturas estão prematuramente
envelhecidas e não conseguem representar interesses coletivos e difusos, uma vez que
reproduzem relações de poder assimétricas, amparadas por um estado que, embora
redemocratizado, mantém uma estrutura de poder centralizada, particularmente,
quando implicam e envolvem interesses de grupos econômicos hegemônicos.
Conflitos Ambientais e Água no Brasil
Neste item são apresentados e analisados conflitos ambientais relacionados ao tema
da água no Brasil. A fonte de informação dos aproximadamente 60 casos analisados
provém do Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, uma
iniciativa originalmente da Fundação Oswaldo Cruz e da ONG Fase, que durante
anos sediou a secretaria executiva da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA),
criada em 2001. O referido Mapa, lançado em 2010 e disponível na internet, possui
atualmente 416 conflitos ambientais espalhados por todo o território brasileiro (PORTO,
PACHECO, LEROY, 2013). O foco do mapeamento é a visão das populações atingidas,
suas demandas, estratégias de resistência e propostas de encaminhamento. As fontes
de informação privilegiadas e sistematizadas nos casos apresentados seguiram essa
orientação. Consistem principalmente de documentos disponibilizados publicamente
por entidades próprias e instituições solidariamente parceiras daqueles que enfrentam
situações de injustiça ambiental: reportagens, artigos e relatórios acadêmicos, ou ainda
que haja conflitos entre estes e os grandes produtores nos períodos de estiagem. Tais
conflitos são numerosos especialmente no norte de Minas Gerais e nos estados do
nordeste. De outro lado, corpos hídricos diversos têm sido afetados pela poluição
produzida pelos agroquímicos, principalmente agrotóxicos, já que o Brasil tornou-se
desde 2008 o principal consumidor mundial, fato diretamente relacionado à expansão
da soja de exportação nas últimas duas décadas.
O terceiro grupo envolve a construção de barragens para usinas hidrelétricas, sejam
as de grande porte como Belo Monte, Girau e Santo Antonio na região norte do país,
como também as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), consideradas de menor
impacto socioambiental. Contudo, a flexibilização da legislação ambiental nestes casos
tem revelado o grande potencial de impactos e geração de conflitos nas regiões Sul,
Sudeste e Centro-Oeste. Na região norte, muitas populações indígenas e ribeirinhas são
afetadas pela mudança do regime hídrico que afeta modos tradicionais de vida, como
a pesca artesanal e a agricultura ribeirinha. No caso de Belo Monte, o aproveitamento
hidrelétrico da bacia do Xingu está, há mais de 30 anos, na pauta da agenda energética
do país, e em 1989 as etnias da região criaram, no “Encontro dos Povos Indígenas do
Xingu”, um movimento contra a instalação das usinas previstas. Em junho de 2007 cerca
de 150 caciques e lideranças indígenas do Xingu reuniram-se e declararam oposição à
construção da hidrelétrica de Belo Monte. Segundo denunciam membros da sociedade
civil, pesquisadores e lideranças indígenas e populares locais, os projetos estão sendo
desenvolvidos sem o devido dimensionamento dos impactos dos represamentos,
incluindo o trecho monumental do Xingu (100 km), com seis cachoeiras, arquipélagos,
grandes lajes de pedra, ilhas florestadas, corredeiras e sítios arqueológicos.
O quarto grupo decorre de situações tipicamente urbanas com maior nível de
mobilização social e relacionadas ao fornecimento de água potável e falta de
saneamento básico em áreas como favelas. Outro problema deste grupo refere-se aos
impactos decorrentes dos resíduos urbanos em “lixões” e aterros sanitários, que se
concentram em territórios denominados pelo teórico Robert Bullard de “zonas de
sacrifício”. É curioso observar que as tragédias associadas às enchentes e inundações,
um problema do ciclo da água típico do planejamento urbano caótico em inúmeras
metrópoles latino-americanas e que mataram milhares de pessoas no Brasil nos últimos
anos nas regiões sul, sudeste e nordeste, até o momento não produziram mobilizações
e organizações ativistas no campo da justiça ambiental. Isso apesar de ser um claro
problema de desigualdade socioespacial diretamente associado à falta de políticas
públicas de moradia e saneamento para as camadas populares, além de possivelmente
associado às mudanças climáticas globais.
O quinto grupo corresponde aos conflitos por água relacionados à mineração, com três
grupos de minerais envolvidos, o minério de ferro, a bauxita e o urânio. Apesar do
número relativamente reduzido de conflitos que a palavra água surge, principalmente
a exploração de minério de ferro e da bauxita envolve uma grande extensão territorial,
atingindo inúmeros municípios e populações. De grande importância para o Brasil,
o minério de ferro surge num exemplo de conflito por água no estado da Bahia,
entre Caetité e Ilhéus, no Complexo Minerário Pedra de Ferro. O projeto envolve a
captação de água no rio São Francisco, com previsão de produzir mais de 15 milhões
de toneladas de concentrado de minério de ferro por ano durante um período de 15
anos. Também está prevista a geração de uma enorme pilha de estéril - ou seja, de
PORTO, Marcelo Firpo; PACHECO, Tania; LEROY, Jean Pierre. Injustiça ambiental e
saúde no Brasil: o mapa de conflitos. In: Injustiça ambiental e saúde no Brasil: o mapa
de conflitos. Editora Fiocruz, 2013.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e apolítica
na transição paradigmática. 7ª edição. São Paulo: Cortez, 2009.
WAINWRIGHT, Hilary. The Tragedy of the Private: the potential of the public. Public Services
International, Transnational Institute, 2014. Disponível em http://www.world-psi.
org/sites/default/files/documents/research/alternatives_to_privatization_en_
booklet_web_apri l.pdf. Acesso em 28.11.2016.
WOLKMER, Antonio Carlos; AUGUSTIN, Sérgio; WOLKMER, Maria de Fátima. O
“Novo” Direito À Àgua No Constitucionalismo Da América Latina. R. Inter. Interdisc.
INTERthesis, Florianópolis, v.9, n.1, p. 51-69, Jan./Jul. 2012.
WORLD WATER ASSESSMENT PROGRAMME. The United Nations world water
RESUMO
Os megaeventos esportivos representam oportunidades para que as cidades-sede
se revitalizem mudando sua configuração. Os preparativos para os jogos esportivos
cumprem uma dupla agenda em que ao mesmo tempo se moderniza a infraestrutura
urbana e se melhora a aparência das cidades. As desapropriações e remoções são
inevitáveis neste processo, uma vez que é necessário abrir novos espaços urbanizados.
Este artigo discute o deslocamento de moradores da cidade do Rio de Janeiro em função
das obras de preparação para os Jogos Olímpicos de 2016 e aponta as incongruências da
política estatal, sugerindo sua vinculação com interesses econômicos. A desocupação
de áreas anteriormente habitadas por moradores de baixa renda, sem correspondente
contrapartida contribui para a desigualdade e privilegia grupos econômicos que
passam a deter os direitos sobre os espaços subtraídos dos antigos moradores.
ABSTRACT
The sports mega-events are opportunities for the host cities to revitalize themselves
changing the urban configuration. Preparations for the sports games serve a dual
agenda at the same time, first modernizing the urban infrastructure and second
improving the appearance of cities. Expropriation and removal are inevitable in this
process due the aperture of new urbanized areas. This paper discusses the movement
of low-income residents of the city of Rio de Janeiro due to the preparation works for
the Olympic Games in 2016. It points out the inconsistencies of state policy, suggesting
its connection with economic interests. The cleared areas formerly inhabited by low-
income residents, without due indemnification, contributes to inequality and favors
economic groups that now hold the rights to the subtracted spaces that belonged to
the former inhabitants.
INTRODUÇÃO
O instituto da desapropriação, a violência da remoção e a sutileza da gentrificação
expulsaram muitos de suas casas como consequências diretas ou reflexos de políticas
públicas municipais adotadas para cumprimento das metas de reurbanização da
Cidade do Rio de Janeiro, inicialmente pelas obras da Copa do Mundo de Futebol de
2014, culminando com as dos Jogos Olímpicos de 2016.
Como parte de um projeto de dissertação, a ser desenvolvido por um dos autores,
pretendemos discutir a utilização do instituto da desapropriação e os processos de
remoção, na região portuária carioca, tendo como recorte temporal o período que se
iniciou em 2009 e termina com os Jogos Olímpicos de 2016.
A nossa proposta é inicialmente apresentar fatos sobre a situação dos habitantes que
foram desalojados de seu habitat e que tiveram suas moradias expropriadas e/ou
removidas dentro da política de revitalização da região portuária do Rio de Janeiro.
O que aconteceu com as famílias de baixa renda que ocupavam aqueles espaços? Esta
é a pergunta para a qual queremos apresentar pistas para uma pesquisa que está em
desenvolvimento.
A resposta passa pelos resultados de fontes oficiais, como por exemplo, os coletados
pelo Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos do Município do Rio de Janeiro.
Estas fontes apresentam parte de uma história. A outra parte deve ser ouvida dos
moradores expropriados ou removidos. A relevância de um olhar sociológico voltado
para as desapropriações e remoções ajudará a traduzir o que a mudança na cartografia
urbana representou para a Cidade do Rio de Janeiro e seus habitantes em tempos de
Copa e de Jogos Olímpicos.
Como método de trabalho, os autores planejam continuar realizando levantamento
de dados referentes às desapropriações para fins urbanísticos realizadas na cidade do
Rio de Janeiro, em conformidade com o Plano Estratégico traçado, dentro do recorte
temporal estabelecido. Pretendemos com isso identificar quais as áreas e imóveis
atingidos; a destinação das comunidades que ocupavam esses territórios; bem como
analisar os impactos provocados pelas alterações promovidas, principalmente no
urbanismo da cidade, considerando-se fatores como a mobilidade urbana, a ocorrência
de especulação imobiliária e a gentrificação derivada da valorização urbana.
A natureza deste trabalho é exploratória, e é preliminar para uma pesquisa em que
serão coletados dados junto a órgãos públicos oficiais, incluindo a Prefeitura da
Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Obras, o Instituto Municipal de
Urbanismo Pereira Passos, a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do
Porto do Rio de Janeiro, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o Núcleo de
Terras e Habitação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e o Ministério Público do
Rio de Janeiro. São utilizadas evidências empíricas retiradas de notícias divulgadas
nas mídias para exemplificar o roteiro da pesquisa.
1. OS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS E A REVITALIZAÇÃO URBANA
Para revitalizar uma cidade muitas vezes é preciso que o Poder Público lance mão de
sua supremacia em busca do bem da coletividade e que se utilize do drástico instituto da
desapropriação, retirando as propriedades e seus moradores para a execução de novo
projeto de cidade. A Constituição Federal tem esta previsão expressa (art. 5º, XXIV). A
expectativa é que depois que os inevitáveis incômodos que acompanham projetos com este
radicalismo passem, os moradores tenham meios para, mesmo deslocados de seu habitat
original, estarem alojados em moradias no mínimo de mesmo padrão de suas antigas casas.
Megaeventos esportivos representam oportunidades para as cidades e suas populações.
Ao implementar uma dupla agenda, modernizando a infraestrutura e promovendo
uma nova imagem pública da cidade traduzida em arquitetura inovadora de nível
internacional, os governos em associação com o empresariado modificam a face das
cidades. Estas revitalizam e dão saltos urbanísticos difíceis de atingir em ritmos normais.
O que se espera das obras de megaeventos esportivos é que a vida das pessoas fique
melhor depois que os jogos terminarem e forem apagadas as luzes dos espetáculos.
Os visitantes e turistas se vão e restará para os que ficam uma cidade com maior
mobilidade, com habitações modernas para aqueles que foram desalojados de seus
espaços. É isso que se espera.
1.1 A desapropriação e a remoção como elementos de revitalização urbana
No centro da ideia de reabilitação urbana, em que urbanismo pode ser entendido “como
uma das tendências dominantes da modernidade” (GUIDDENS; SUTTON, 2016), a
redefinição territorial necessariamente implicará remoções ou desapropriações. Estas
expropriações são o ponto de partida para a atuação estatal, e requerem dele eficácia
para atuar em áreas de risco e outras essenciais para a recuperação urbanística, como as
encostas e locais de preservação. A discussão central não se limita, portanto, somente
em urbanizar, mas como urbanizar convivendo ao mesmo tempo com a questão social
do desalojamento de pessoas. É necessário considerar estes componentes para se
justificar a excepcionalidade da intervenção estatal na vida das pessoas e superar os
efeitos negativos.
Um elemento essencial a ser considerado nas desapropriações e remoções é o das
populações afetadas. Como as obras visam revitalização de espaços, os efeitos geralmente
se concentram em áreas degradadas, cuja população é, em geral, de baixa renda.
Muitas das moradias afetadas são irregulares, geralmente comunidades ou favelas. O
habitante desalojado, por viver em moradia desregulamentada, não recebe a necessária
compensação pela sua remoção, aumentando o prejuízo das populações desalojadas.
A região portuária em sua área central é predominantemente residencial e ocupada
por moradias populares. Conforme dados da ONG FASE1, o Projeto Porto Maravilha
e o Programa Morar Carioca, responsáveis por delinear as transformações estruturais
urbanísticas nas áreas centrais da cidade, removeram cerca de 605 famílias distribuídas
entre o Morro da Providência (140 famílias); Ocupação Machado de Assis (150 famílias);
Ocupação Flor do Asfalto (30 famílias), Ocupação Boa Vista (35 famílias); Ocupação
Zumbi dos Palmares (133 famílias); Ocupação Carlos Marighela (47 famílias); Ocupação
Casarão Azul (70 famílias). Isso de um total de 3.099 famílias removidas em toda a cidade.
Acrescentando ainda as Ocupações na Rua do Livramento em que é desconhecido o
número exato de famílias que residiam nestas ocupações, mas de acordo com o Fórum
Comunitário do Porto2 estima-se que mais de 400 famílias ocupavam a área.
1 Disponível em: <https://issuu.com/ongfase/docs/fase_we>. Acesso em 10/05/2015.
2 Disponível em: <https://comitepopulario.files.wordpress.com/2016/03/dossiecomiterio2015.pdf>. Acesso em 29/11/2015.
3 O Índice FipeZap de Preços de Imóveis Anunciados é desenvolvido em conjunto pela FIPE (Fundação Instituto de Pesquisas
Econômicas Aplicadas, uma organização de direito privado, sem fins lucrativos, que presta apoio ao Departamento de Economia da
Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo) e pelo portal ZAP Imóveis, é calculado pela
Fipe e acompanha o preço médio do m2 de apartamentos prontos em 16 municípios brasileiros com base em anúncios da internet,
formando uma base de dado com mais de quinhentos mil anúncios válidos por mês. A metodologia utilizada para o cálculo do
Índice FipeZap está disponível em < http://www.fipe.org.br>.
e 2014, com uma baixa de preço no ano de 20154, fazendo com que o preço médio do
metro quadrado tivesse uma queda real de 8,48%, em comparação ao ano anterior,
dentre as cidades avaliadas pelo FipeZap (Rio de Janeiro, São Paulo, Distrito Federal,
Niterói, Florianópolis, Recife, Fortaleza, São Caetano do Sul, Belo Horizonte, Vitória,
Porto Alegre, Curitiba, Campinas, Santo André, Santos, São Bernardo do Campo,
Salvador, Vila Velha, Goiânia, Contagem). Porém, a cidade do Rio de Janeiro continua,
até agosto de 2016, com a metragem (m²) mais cara do país (R$ 10.223,00).
No cenário atual, sete comunidades tradicionais que ocupavam a região portuária da
cidade (Morro da Providência; Ocupações Machado de Assis, Flor do Asfalto, Boa
Vista, Zumbi dos Palmares, Carlos Marighela e Casarão Azul) foram removidas pelo
Poder Público municipal para conjuntos habitacionais localizados em sua maioria na
zona oeste, na periferia da cidade, em áreas longínquas do centro da cidade, carentes de
infraestrutura urbana e serviços públicos, onde em certos locais ocorrerá a precarização
dos serviços públicos ocasionada pelo aumento de demanda massiva na área sem uma
correspondente ampliação da rede de serviços.
Previsível consequência do deslocamento das comunidades para áreas em muito
distantes de seus locais de trabalho é a ocorrência de degradação socioeconômica
para muitas pessoas, na medida em que perderão seu meio de sustento pelo alto custo
com o deslocamento, sem falar em perda de qualidade de vida em dispender horas
intermináveis no percurso casa-trabalho-casa diariamente.
O último censo demográfico do IBGE demonstra que dos dezesseis milhões de
habitantes do Estado do Rio de Janeiro, quase doze milhões (74%) residem em sua
região metropolitana e cerca de 62% da população, com idade economicamente ativa
entre quinze a setenta anos, ocupam postos de trabalho na capital do estado. Se a
maior parte dessa população ocupava postos de trabalho nas áreas centrais da cidade,
exatamente onde há maior oferta de emprego, com as remoções forçadas em função
dos preparativos para os megaeventos, essas pessoas tiveram considerável prejuízo
quanto à mobilidade, tanto no acesso aos bens e serviços urbanos quanto ao próprio
mercado de trabalho.
O mesmo censo indica que a região metropolitana do Rio de Janeiro tem o maior
tempo médio gasto em deslocamento da população no percurso de casa ao trabalho,
o que pode ser considerado um elemento indicador de exclusão social, mormente de
segregação socioespacial (ABREU, 2006).
O resultado é que a política urbana do município promove um deslocamento da
população pobre que habita territórios degradados, liberando o espaço para que as
intervenções e investimentos sejam aproveitados pelas classes sociais mais abastadas.
Esta política eterniza um ciclo de desenvolvimento desigual, produtor de apartheid
social, em que a parcela dos citadinos que vivencia uma realidade social mais
privilegiada é bonificada com melhorias em detrimento da população de baixa renda. A
consequência é a manutenção dos mesmos problemas básicos de habitação, educação,
4 Cenário em muito impactado pela Caixa Econômica Federal, principal instituição financeira nos financiamentos imobiliários,
que reviu sua política para concessão de novos empréstimos em 2015. Até abril daquele ano, a família que quisesse adquirir um
imóvel no mercado secundário podia financiar até 80% do valor da aquisição. Atualmente, esse percentual não pode ultrapassar
50% quando a compra é de um imóvel usado. Além disso, a taxa de juros média dos financiamentos (considerando todos os bancos)
vem subindo desde 2013, o leva a concluir que modelo de crédito habitacional do Brasil terá dificuldades sérias para se sustentar em
cenários como o atual, com altas taxas de juros reais. Disponível em: <http://www.fipe.org.br/pt-br/indices/fipezap/>. Acesso
em 10/09/2015.
saúde e emprego que existiam antes dos eventos esportivos. Desta forma o município
deixa de garantir aos desalojados o mínimo existencial constitucionalmente previsto e
geralmente não concede indenização que permita ao morador adquirir outra habitação
de mesmo padrão.
O marketing urbano utilizado pelos governos municipais tornou-se mecanismo
gerador de lucro e dissimulador de conflitos sociais, embasados numa falsa retórica de
participação popular e unificação da cidade em torno de alguns consensos (VAINER,
2011) como a ideia de que gastos concentrados em políticas de revitalização urbana,
que seriam menores do que o manejo de políticas sociais em larga escala, contribuiriam
para gerar uma “imagem positiva” da cidade, atraindo investimentos de um novo
capital financeiro (FERREIRA, 2014).
As políticas de recuperação, na contramão de uma finalidade social inclusiva, destinam-
se a criação de novas áreas de centralidade econômica urbana, impactando direta e
negativamente no cotidiano de parcela expressiva da população, a exemplo do aspecto
da mobilidade urbana.
Conforme Orlando Santos Junior (IPPUR/UFRJ) no projeto de reurbanização das
cidades-sede notam-se três direções não excludentes entre si: “(i) no fortalecimento de
centralidades já existentes das cidades; (ii) na renovação ou revitalização de centralidades
decadentes no interior das cidades-sede; (iii) na criação de novas centralidades, através
de grandes investimentos em áreas específicas das cidades-sede”.
“Pegando o caso do Rio de Janeiro, percebe-se que as intervenções vinculadas
à preparação da cidade para receber a Copa do Mundo e as Olimpíadas
vêm ocorrendo prioritariamente em três áreas, a Zona Sul, confirmando o
fortalecimento da centralidade que já caracteriza este espaço; a Área Portuária,
refletindo o investimento na renovação e revitalização de uma centralidade
considerada decadente; e Barra da Tijuca, que expressa a construção de uma
nova centralidade” (SANTOS JUNIOR, 2015). 5
Dados do censo demográfico do IBGE de 2010 foram utilizados pelo Instituto Municipal
Pereira Passos (IPP) do Rio de Janeiro, para demonstrar que dos mais de seis milhões
de habitantes do Município do Rio de Janeiro, 22% - 1,4 milhão - mora em favelas, com
76% destes domicílios sendo próprios. Estes números indicam que os moradores de
favelas representam a maior parte dos potenciais sujeitos passivos de expropriações.
David Harvey afirma que moradia não pode ser vista como commodity e que
precisamos descobrir primeiro se queremos a cidade para as pessoas ou para o lucro
(HARVEY, 2013).
Carlos Vainer (IPPUR/UFRJ) alerta para a ocorrência de uma “progressiva destruição
da cidade, porque a heterogeneidade densa passa a ser eliminada do espaço urbano
através de sucessivos processos de segregação”, resultando numa “cidade muito mais
desigual” (VAINER, 2014).
Raquel Rolnik, relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU Organização
das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada (2008-2014) contesta em vários
trabalhos publicados a visão idealizada da função social da propriedade e de estratégias
urbanísticas que acompanhem cânones do bem estar da coletividade, denunciando
como estas ocorrem na realidade brasileira, no caso das remoções dos moradores em
função das obras voltadas aos megaeventos.
Ermínia Maricato já alertava que se estavam produzindo modelos de urbanização
sem urbanidade para a população, devido em grande parte a uma produção ilegal de
moradias associado a um urbanismo segregador (MARICATO, 1996).
Ainda conforme observa Boaventura de Sousa Santos, em sua análise do direito das
populações oprimidas, como no caso das comunidades removidas e desde sempre
consideradas à margem dos direitos de cidadania no interior das grandes cidades do
mundo capitalista, com a sua sobrevivência constantemente ameaçada pelos poderosos
interesses dos especuladores dos solos urbanos (SANTOS, 2014).
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
A gestão associada entre as esferas de Poder Público e as parcerias com a iniciativa privada
em função dos megaeventos esportivos trazem a oportunidade de se concretizarem
vultosos investimentos em reurbanização e revitalização da cidade do Rio de Janeiro,
trazendo a oportunidade de crescimento e desenvolvimento para a cidade, acompanhada
da expectativa de solução de muitos problemas urbanos crônicos.
As políticas urbanísticas são previstas em matriz constitucional sempre fundadas no
interesse público e justificadas ao atendimento da função social da propriedade. De
forma que em última análise possam proporcionar melhorias sociais para a população
através da promoção de uma cidade inclusiva, com melhoria de qualidade de vida
para todos.
Em função dos prazos limitados para as obras em função dos megaeventos que
culminaram com os Jogos Olímpicos e Paralímpicos no ano corrente, utilizou o governo
municipal das desapropriações e remoções na cidade, sempre com a promessa de que
o legado final dos megaeventos traria muito mais aspectos positivos aos cidadãos do
que as agruras dos sacrifícios impostos para sua produção.
Há, entretanto, obstáculos no caminho destes ideais. O capital empregado nas obras
urge por lucros e somente se põe em movimento quando sabe que será multiplicado
e remunerará regiamente aqueles que o disponibilizam. Nesta esteira, surgem as
injustiças e aumentam as desigualdades.
O que se viu em tempos de Copa do Mundo e em 2016 nos Jogos Olímpicos do Rio de
Janeiro são estas injustiças e desigualdades. Remoções, desapropriações indenizadas
com valores que não atendem as necessidades de uma nova moradia no padrão anterior.
Especulação imobiliária desenfreada, com desapropriações de áreas que sequer foram
utilizadas para as obras.
Gentrificação das áreas centrais da cidade e expulsão dos antigos moradores por
meios diretos e indiretos, seja por políticas de remoção das comunidades para áreas
longínquas, seja por não promoção de mecanismos facilitadores de permanência da
população de baixa renda nas áreas revitalizadas.
Os incômodos decorrentes da preparação da cidade para a realização dos megaeventos
afetam a todos. Para os habitantes que sofreram a violência das remoções, certamente
os incômodos foram bem mais impactantes.
O olhar sociológico sobre as obras de megaeventos tem relevância para a sociedade e
precisa ser lançado. O olhar crítico facilita a sistematização do cenário e a sugerir soluções,
ajudando as ciências sociais a cumprir seu papel de melhorar a vida em sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os Jogos Olímpicos terminaram mas ainda permanecem seus efeitos nos conflitos
urbanos de diversas ordens como mobilidade, moradia, revitalização de espaços
e outros. Situações que ora enaltecem e justificam o manejo da desapropriação, ora
caminham em sentido oposto ao da integração social e promoção da dignidade humana.
As intervenções urbanísticas em sua maioria representam processos de exclusão e
injustiça social, não justificando sua excepcionalidade devido seus impactos e pelas
profundas transformações que provoca na dinâmica urbana da sociedade carioca, As
intervenções urbanísticas, ao invés de concretizar a união entre os moradores do Rio
de Janeiro, bipartiu a cidade e segregou sua população.
REFERÊNCIAS
ABREU, Maurício de Almeida. (2006). Evolução urbana no Rio de Janeiro. 4ª ed. Rio de
Janeiro: IPP.
FERREIRA, João Sette Whitaker. (2014). Um teatro milionário. In: Raquel Rolnik,
Andrew Jennings et alii., Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas? São
Paulo: Boitempo, 2014, 7-15.
GALIZA, Helena. O porto maravilha e a política de reabilitação de áreas centrais. In:
Blog da Raquel Rolnik. 16.05.2015. Disponível em: <https://raquelrolnik.wordpress.
com/2015/07/16/o-porto-maravilha-e-a-politica-de-reabilitacao-de-areas-
centrais/>. Acesso em: 18/09/2015
GUIDDENS, Anthony; SUTTON, Philip W. (2016). Conceitos essenciais da Sociologia.
Tradução Claudia Freire. São Paulo: Editora UNESP.
INTRODUÇÃO 1
A pesquisa proposta consiste em realizar uma análise do Estado em ação (JOBERT E
MULLER, 1987) no âmbito do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas,
vinculado à Divisão de Ordenamento da Estrutura Fundiária do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em sua Superintendência Regional (SR-07),
correspondente ao estado do Rio de Janeiro, no interior da qual, entre outras ações
e atribuições, é forjada a “política quilombola”, compreendida aqui no universo das
políticas públicas que reconfiguram realidades sociais rurais.2
Neste sentido, partimos da problemática de que a produção da política quilombola,
isto é, os processos e relações sociais que lhe configuram, são marcadas por diferentes
interações (ocorridas em diversos contextos), conflitos, distinções, e concepções
que informam cotidianamente a prática dos atores que constrõem a política a partir
da instância estatal, contrariamente a concepções mais abstratas e gerais acerca das
políticas públicas ou do Estado. Com este trabalho, pretendemos compreender o
processo de produção da política pública, de modo a considerar sua dimensão cognitiva,
fatores sociais, bem como o contexto de produção.3 Como os servidores (antropólogos,
agrônomos, cartógrafos e outros atores, inclusive os próprios quilombolas) produzem
a política quilombola no interior do INCRA?
A política quilombola consiste normativamente em identificar - delimitar - titular
territórios em nome de grupos sociais que passaram a ser reconhecidos pelo Estado
como comunidades quilombolas, compreendidas como grupos étnicos, “que existem ou
persistem ao longo da história como um ‘tipo organizacional’, segundo processos de exclusão
e inclusão que possibilitam definir os limites entre os considerados de dentro ou de fora”
(O’DWYER, 2002, p. 14). 4
A política pública que motiva o presente estudo está regulada pelo Decreto nº
4.887/2003 e pelo artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT), bem como por normas internacionais. 5 A esfera do Direito informa a prática
dos servidores públicos, mas esta transcende aquela, desafiando a pesquisa a conhecer
a referida política em seus detalhes, nas controvérsias cotidianas e nos processos de
decisão marcados por relações e as práticas envolvidas em sua produção.
Afirma-se, portanto que o Estado se trata de um processo de longa duração (Elias,
2006) marcado por continuidades e descontinuidades no que tange à relação que
estabelece com os grupos sociais para os quais se volta a política analisada; pelos
sentidos atribuídos pelos agentes às práticas que operam em seu cotidiano; e, também,
1 O presente trabalho consiste em uma apresentação preliminar de aspectos constantes da pesquisa de mestrado que se encontra
em andamento.
2 Neste sentido, importante coletânea organizada por Grisa e Schneider abarcou um conjunto de políticas públicas de
desenvolvimento rural, universo no qual também está compreendida a política quilombola. GRISA, Catia, SCHNEIDER, Sergio
(Orgs). Políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2015. pp.13-14.
3 LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Tradução de Angela Ramalho
Vianna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.pp. 12-20.
4 Note-se que o conceito analítico de grupos étnicos passou a ser mobilizado no cotidiano pelos atores que produzem a política
pública analisada. Veremos que a incorporação do conceito se relaciona com a interação constante entre o Serviço de Regularização
de Territórios Quilombolas, as Universidades, pesquisadores de longa data e com a Associação Brasileira de Antropologia (ABA).
Fundamento da categoria jurídica de Comunidades de Remanescentes de Quilombos, grupos étnicos são definidos pela “fronteira
étnica que definem o grupo e não o conteúdo cultural por ela delimitado. As fronteiras sobre as quais devemos concentrar nossa
atenção são evidentemente fronteiras sociais, ainda que possam ter contrapartida territorial”. BARTH, Fredrik. 2000. O Guru, o
Iniciador e Outras Variações Antropológicas (organização de Tomke Lask). Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria. p. 34.
5 Notadamente, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho de 27 de junho de 1989, ratificada pelo Estado
brasileiro em 19 de julho de 2002 através do Decreto Legislativo nº 143 que entrou em vigor em 20 de junho de 2002.
por sua heterogeneidade interna, tendo em vista que apresenta um quadro complexo
de organização e tensões entre diversos imaginários e representações acerca do que
deve ser a “ação do Estado”.
O artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), se não
inaugurou uma relação entre o Estado e os grupos sociais que pleiteavam seus direitos
sobre o território, ao menos apresentou um conjunto de novas interações, e portanto,
novos desafios, colocados para aquele no sentido de produzir respostas ou promover
ações relacionadas com a demanda contemporaneamente inscrita em seu universo
formal.6 Com a emergência destes novos direitos, direitos diferenciados, decorrentes de
processos decisórios marcados por grandes tensões e debates entre diversos grupos
com interesses conflitantes, tanto na Assembléia Nacional Constituinte de 1987 quanto
no decorrer das regulamentações posteriores, o Estado passou a gestar um campo
burocrático voltado para a criação e a implementação da política quilombola. 7
O INCRA, portanto, constitui a realidade empírica desta pesquisa, como contexto
no qual ingressamos, no sentido de observar agentes, práticas e relações sociais que
produzem a política pública quilombola, e, conectados, podem permitir formular
explicações sobre aquilo que é realizado. Neste sentido, a presente pesquisa constitui
um esforço descritivo-analítico da política quilombola em ação naquele contexto social
específico, que impõe uma série de dificuldades, pois envolve realizar uma pesquisa
em um ambiente e com agentes que possuem inúmeros mecanismos de proteção face
ao olhar do pesquisador (TEIXEIRA, 2014).
Além disso, procuramos não deixar as questões prementes à sociologia do direito
fora de nosso universo de questões. Constatamos em leituras clássicas que há uma
separação entre os espaços estritamente jurídicos e aqueles reservados a uma produção
política de decisões.8 No entanto, tais diferenciações já não cabem em uma chave mais
contemporânea da disciplina, voltada aos estudos da administração pública. Nesta
perspectiva, trata-se de uma sociologia em que tanto a produção de decisões pelos
agentes autorizados do mundo jurídico foi dessacralizada pela teoria crítica, revelando
seus aspectos políticos e sociais, quanto outros espaços de produção e conformação
do direito passam a ser observados como lócus de produção de decisões. Se em uma
chave mais clássica eram objetos autorizados de outras especialidades e aplicações das
ciências sociais, atualmente cabe no universo de preocupações de uma sociologia do
direito.9 Dito de outro modo, a ação dos agentes públicos e da administração pública
passam a ser objeto de estudo da sociologia do direito.
Assim, em se tratando de uma pesquisa com caráter empírico e interdisciplinar,
buscamos desenvolver uma abordagem descritivo-analítica a partir de quatro meses
de inserção no interior do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do
INCRA. A experiência de acompanhamento desse setor da instância estatal nos
6 “Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos.”
7 Contribuições sobre as disputas constituintes na ANC (1987), ver: LOPES, Aline Caldeira; QUINTANS, Mariana Trotta Dallalana.
Judiciário e Constituição Federal de 1988: interpretações sobre o direito à propriedade privada face à reforma agrária e ao direito ao
território quilombola. Revista IDeAs - Interfaces em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Rio de Janeiro - RJ, v. 4, n. 1, pp.
63-102, jun./jul. 2010.
8 Por exemplo, na abordagem sistêmica sobre o direito em LUHMANN, Niklas. (1983), Sociologia do direito. Rio de Janeiro, Edições
Tempo Brasileiro, v. I e II.
9 Como por exemplo, em Antropologia, a Antropologia do Estado ou a Antropologia da Política, ou, contemporaneamente da
Administração e Governança, ou mesmo a Ciência Política.
10 Entramos em contato com Miguel Pedro Cardoso, coordenador do Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas, para
fins de realização da pesquisa poucas semanas antes da visita relatada e o mesmo foi receptivo à proposta da pesquisa.
Mas a política quilombola não era feita apenas de etapas previstas e regulações,
conhecê-las era indispensável para explicar o que aqueles atores faziam, mas em cada
uma destas etapas e entre elas havia ainda todo o contexto em que se passavam aqueles
procedimentos.
Naquele momento, o serviço quilombola era uma série de caixas e móveis desmontados,
cada qual com os nomes dos funcionários aos quais se destinavam. Perguntamo-nos
por que todo aquele tempo e desgaste em identificar qual a mesa de cada um, uma
vez que todas pareciam iguais. Mais tarde, compreendemos que há uma grande
importância conferida às mesas - e não à toa - cada uma delas estava com o nome de seu
usuário. Os funcionários do serviço quilombola (e quiçá grande parte dos funcionários
do Instituto) passam a maior parte de seu tempo de trabalho rodeados por uma mesa
no interior do INCRA. Lentamente formava-se novamente o “serviço quilombola”.11
Naquele momento, o INCRA não passava por transformações apenas de sua sede no
estado, a política ganhava novos contornos institucionais que longe de reorganizarem
apenas uma “burocracia” (ou como preferem alguns em uma chave mais contemporânea,
tecnocracia), passava a constituir novos desafios e novas relações que informavam
aquelas práticas cotidianas.
Os servidores costumam organizar sua atuação de modo a considerar como um fator
relevante o “quem” está ocupando posições dirigentes (ocupando funções de direção,
chefias, coordenação entre outras) da instituição, pois isto determinará, em muitos
momentos, os limites e as possibilidades de suas ações, bem como os motivos utilizados
para fundamentar a necessidade de determinada ação, visando sua aprovação pela
instância superior. Lançando mão de termos usados pelos atores, o “quem” ocupa
determinará a “gestão” mais ou menos eficiente da política e da autarquia.
11 Perguntados sobre o porquê da não contratação de uma empresa de mudança para montar o espaço, como é sabido que outras
instituições o fazem, os funcionários não hesitavam em responder que o INCRA estava “quebrado”.
do artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), mas estes
títulos não conseguiam ser registrados pela ausência de desapropriação do proprietário
atual do imóvel.
Figura 3. A disposição das mesas de trabalho II. Fonte: (Arquivo pessoal, 2016)
18 Apesar dos limites da pesquisa, entendemos que conceito alargado de administração proposto pelos antropólogos, permitem
inclusive abarcar aspectos das relações historicamente estabelecidas pelo Estado brasileiro em relação aos grupos sociais para os
quais se volta a política analisada, que embora, reconheçamos tal problemática não é possível abordá-la no espaço deste trabalho.
19 De acordo com os autores esses estudos em antropologia estiveram referenciados a uma Antropologia do Estado, das Políticas
Públicas ou do Poder no cenário internacional, possuindo diferenças com relação a chamada Antropologia Política.
INTRODUÇÃO
As práticas agrícolas historicamente estabelecidas em Macaé, apesar de serem dotadas
de relevância econômica e social, vivem um processo crescente de invisibilização
impostas por representações dominantes sobre as feições urbanas e industriais,
destacadamente a do petróleo, e inexistência de atividade referente à agricultura
familiar estimulada pelo setor chaves de produção do agronegócio.
As famílias que dependem da renda das atividades agrícolas estão nesta região há
mais de uma década e vem sofrendo com a expansão urbana, com as transformações
nas relações de produção e de mercado, e em alguns casos, com as restrições de órgãos
ambientais, orientados por uma perspectiva de incompatibilidade entre a presença
humana e a conservação da natureza.
Além das dificuldades dos produtores para a renovação de seus quadros, de
mobilização de novos membros e equacionamento de conflitos internos e de gestão
que são comuns às associações e grupos comunitários, há também um público ainda
mais vulnerabilizado nessas regiões que não pode ser qualificado de agricultor,
apresentando atividades extrativistas ou de trabalhadores rurais, desenvolvendo
trabalhos temporários precários. Outras famílias, contudo, passaram ou estão passando
por um processo de descampesinamento, e em diversos casos, vivem em condições
precárias de moradia e saúde, entre outros indicadores.
A partir desse cenário, a proposta de realização deste artigo, voltado ao desenvolvimento
rural a partir da integração entre práticas de agricultura com a economia solidária
foi entendido pelos articulistas como uma oportunidade de equacionar as múltiplas
questões que se apresentam nesses territórios, com base nas diretrizes instituidoras do
Programa de Desenvolvimento Sustentável Osvaldo Oliveira (PDS), sob a perspectiva
na crença no papel das instituições (FREY, 2004), sobretudo voltadas ao ensino e a
pesquisa, que exercem uma função reguladora, relacional e cultural e fornecem
parâmetros para que grupos comunitários possam se engajar em questões públicas.
Assim, temas tais como agricultura familiar, agrobiodiversidade e desenvolvimento
local devem estar articulados em uma abordagem territorial (SANTOS; SOUZA;
SILVEIRA, 1994). Este ensaio, portanto, orientado por novas perspectivas sobre as
relações entre rural e urbano e sobre as possibilidades de associações da agricultura,
se propõe a atuar sobre estes espaços tidos como vulneráveis, a partir da narrativa
de ações de pesquisa e extensão já desenvolvidas, que fortalecem os sistemas
agroalimentares da região macaense, em especial, do grupo de agricultores familiares
residentes no espaço hoje destinado a criação do Programa de Desenvolvimento
Sustentável Osvaldo Oliveira pelo INCRA, em sua dimensão pública e de organização
da sociedade civil, fortalecendo as redes de cooperação técnicas já existentes nesses
territórios, como componente da cultura alimentar, além de fortalecer os vínculos já
construídos, baseados na categoria central da economia solidária.
Desse modo, pretende-se analisar as organizações ligadas à produção que envolvem
agricultura familiar, bem como aquelas que atuam no campo da Economia Solidária,
necessitando, assim, de aprofundamentos teóricos que tratem do campo de atuação e
dos diversos debates a respeito do sistema de produção capitalista1.
1 Conforme acentua Oliveira (1991, p. 111) o capital ao realizar a expropriação do trabalhador cria as condições sociais para mostrar
a outra face do seu processo de reprodução, a exploração do trabalhador que já foi expropriado.
3 O papel desempenhado pelos movimentos sociais nas sociedades industriais e pós-industriais os colocou no centro da discussão
científica social. Touraine (1997) afirmava que a ação coletiva e movimentos sociais são conceitos centrais da teoria sociológica.
Embora na revisão de literatura, as expressões apresentem um uso bastante impreciso, devendo ser compreendida restritivamente
para evidenciar um modo específico de construir a realidade social.
4 Os autores clássicos examinam os movimentos sociais a partir da noção de ciclos evolutivos nos quais seu surgimento,
amadurecimento e difusão se dariam através de um processo de comunicação decorrente de rumores, conversas, propagação de
ideias, ativação de redes de conhecimentos etc. Essa comunicação estabelecida eclodiria a insatisfação com as questões postas e
geraria a adesão aos movimentos sociais como uma resposta psicológica às crises vividas durante a vigência da sociedade industrial.
Esses componentes, vinculados aos princípios homogêneos impostos eram o estopim para a emergência de movimentos sociais
(GOHN, 2000).
5 Blumer divide os movimentos sociais em três categorias: genéricos, específicos e expressivos. Os primeiros não apresentam
uma organização estrutural clara em seu processo de formação e apresentam objetivos vagos, os principais segmentos seriam os
movimentos operários, dos jovens, de mulheres e pela paz. As lideranças dos movimentos genéricos destacam-se como pioneiros na
defesa de suas bandeiras e na ruptura de paradigmas. Já os movimentos sociais específicos representam o descontentamento com o
status quo. Apresentam metas e objetivos claros e definidos e as lideranças externalizam o sentimento coletivo, advindo de tradições
e valores enraizados nos grupos. A ideologia é o elemento aglutinador nessa espécie de movimento, que apresenta como ferramentas
a adesão, manutenção e construção de objetivos de acordo com a bandeira do movimento, como no caso do MST. Enquanto os
movimentos expressivos são aqueles cujo comportamento dominante são passageiros, isto é, apesar de marcar a personalidade de
seus componentes e a sociedade em geral tem efeitos sensacionalistas, em geral, vinculados a áreas da literatura, filosofia, artes etc.,
tal fato levou Blumer a classificá-los como “movimentos da moda” (GOHN, 2000, p. 30-35).
6 O papel da identidade na construção dos movimentos sociais foi abordada pelos interacionistas simbólicos e por Turner (1969),
mesmo sem apresentar a preocupação com a identidade coletiva, mas a formação de uma identidade pessoal e a autotransformação
do indivíduo como temas bastante difundidos dentre grupos integrantes de movimentos, caracterizados pela informalidade em suas
estruturas organizativas.
CONSIDERAÇÔES FINAIS
Deve-se destacar que a atuação em rede é a metodologia que estrutura as ações
do Projeto, e que buscam dar continuidade a um trabalho de interação social entre
produtores, grupos comunitários, pesquisadores, atores institucionais, consumidores,
etc. A percepção sobre a importância das redes ampliou-se com o surgimento das redes
informatizadas em grande escala, mas na verdade, o entendimento sobre estas deve
partir de sua concepção mais básica: como eixos de comunicação, sociabilidade, trocas
e informações sobre os quais se estruturam a sociedade, as atividades econômicas e de
desenvolvimento tecnológico7.
O que é interessante nesta perspectiva é que ao considerar as redes sociais, o técnico
deixa de ser visto como externo e independente do grupo social sobre o qual atua,
mas como um elemento que precisa se adequar ou lidar com os condicionantes
socioculturais, formados por diferentes atores com diferentes interesses, normas,
regras, conhecimentos tácitos (ANDRADE, 2005).
Esses novos formatos de produção, processamento e consumo de alimentos questionam
as estruturas de poder que hoje governam o sistema agroalimentar. Neste sentido, os
movimentos sociais reunidos em torno da agroecologia apresentam uma ampla agenda
de lutas que envolvem os direitos territoriais, os povos e conhecimentos tradicionais,
a reforma agrária, o combate ao agronegócio e o uso de agrotóxicos, a segurança
alimentar, o direito à cidade, o feminismo, etc.
A relação mantida entre os associados com a forma de produção e consumo solidário,
onde ocorre uma transformação na forma de pensar das pessoas envolvidas, passando
gradativamente do individualismo para as formas coletivas de organização.
Por outro lado, observa-se a crescente apropriação ideológica do termo orgânico e
mesmo agroecológico, e o crescimento do mercado mundial de produtos orgânicos. No
Brasil, o mercado de produtos orgânicos cresce de 30% a 40% ao ano, movimentando
mais de R$ 2 bilhões em 2014, segundo dados do projeto Organics Brasil, desenvolvido
pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil).
Diante do quadro de crescente apropriação capitalista do nicho de mercado de
produtos orgânicos, a questão que se coloca é como dar visibilidade às vantagens de
uma economia de base agroecológica, não apenas baseada na produção mercantil e na
conversão de troca e dinheiro nos mercados, mas calcada em indicadores múltiplos
do valor trabalho, do trabalho doméstico, de intensificação ecológica, dentre outros, e
como os coletivos organizados – em especial o TaCAP e o PDS Osvaldo de Oliveira –
lidarão com tais mudanças na relação de consumo, produção, propaganda etc.
7 Redes sociais são vistas aqui como o conjunto de relações transformadoras entre sujeitos públicos, privados, individuais ou
coletivos que mantêm sua autonomia ao mesmo tempo em que sustentam um projeto comum.
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Resumo
A questão dos refugiados vem ganhando cada vez mais espaço no debate acadêmico
bem como no cenário político nacional e internacional. Dentre os pontos relevantes
para esta discussão, destaca-se a questão da busca pelo reconhecimento dos refugiados
ambientais. Esse grupo, ao encontrar-se em situação de vulnerabilidade, passa a
apresentar necessidades que possuem em geral caráter de urgência ficando aberta a
discussão acerca dos cuidados e mediação da situação à medida que ela se apresenta.
Assim, o presente trabalho busca trazer à tona elementos fundamentais para a
discussão acerca da situação dos refugiados ambientais buscando compreender de
que forma a sociedade poderia se organizar e quais as possibilidades para amparar e
respaldar juridicamente esse grupo em específico. Para tanto, a compreensão histórica
do processo em questão bem como do instituto do refúgio tornam-se elementos
relevantes a serem levados em conta.
Abstract
The issue of refugees has been gaining more and more space in the academic debate as
well as in the national and international political scenario. Among the relevant points
to this discussion, the question of the search for recognition of environmental refugees
stands out. This group, when they find themselves in a situation of vulnerability, starts
to present needs that are generally urgent, leaving open the discussion about the care
and mediation of the situation as it presents itself. Thus, the present work seeks to
bring up fundamental elements for the discussion about the situation of environmental
refugees in an attempt to understand how society could organize and what possibilities
to support and legally support this specific group. For this, the historical understanding
of the process in question as well as the refuge institute become relevant elements to
be taken into account.
Introdução
Nas últimas décadas o mundo contemporâneo foi marcado por inúmeros
acontecimentos, dentre eles, o aumento do fluxo migratório, que chamou atenção
da comunidade internacional em relação às questões que permeavam e seguem
permeando a lógica globalizante – através da qual começaram a ser discutidas a figura
do refugiado e seu reconhecimento. Uma vez que o mundo encontra-se em constante
transformação, torna-se necessário revisar e definir novos conceitos para que se possa
contemplar os elementos protetivos em relação aos refugiados tanto no sentido micro
quanto no macro.
Nesta direção, o presente trabalho visa observar o Instituto do Refúgio – seu
arcabouço conceitual bem com os seus reflexos diante do refugiado ambiental - o seu
estabelecimento no tempo e espaço, buscando adentrar o debate de como e quem se
constitui como refugiado, especificamente do reconhecimento do refugiado ambiental.
Torna-se importante, neste sentido, desconstruir elementos previamente estabelecidos
para que se possa alcançar um novo formato conceitual para além da uma concepção
meramente normativa.
A busca pelo reconhecimento do refugiado ambiental e a compreensão de sua
conceituação por parte de analistas ambientais, se faz necessário, visto que ainda não
há amparo jurídico devidamente delimitado para este expresso reconhecimento. Para
trilhar este caminhada, torne-se pertinente a compressão histórica do instituto do
refúgio para respaldar e garantir a busca não só do reconhecimento, como também da
proteção e criação de tratados em específico.
Sendo assim, salienta-se que este presente trabalho é fruto de uma pesquisa ainda
em andamento e surge de uma investigação que busca analisar o instituto do refúgio
no espaço e no tempo, a partir de um olhar jurídico, histórico, sociológico e político –
considerando a relevância do tema e tendo em conta que este ainda não foi contemplado
juridicamente pela esfera do Direito Internacional.
1. Fundamentação Teórica
O mundo é marcado por interações sociais que podem se desdobrar em concordâncias
ou divergências. Nos casos de divergências, eventuais conflitos podem surgir e se
estabelecer, inclusive, de maneira duradoura. Conflitos não devem ser confundidos
com os casos de guerras, ainda que possam corroborar para o início destas.
É por esta perspectiva que se busca examinar a questão do refugiado a partir de dois
marcos específicos no tempo histórico, ou seja, as duas guerras mundiais que marcaram
o século XX.
No contexto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) é possível olhar para o ser
humano que está inserido em um contexto de guerra e que busca sair desta realidade.
A partir disto, constitui-se o primeiro imagético da condição de refugiado, que passa
a ser também alvo de preocupação por parte da comunidade internacional no sentido
de construção de um arcabouço protetivo do mesmo. Por sua vez, já no contexto na
Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o seu pós-guerra, a imagem do refugiado
passa a ser algo presente e a preocupação vai se direcionando ao aumento do fluxo
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi um marco para se pensar nos direitos
humanos em um âmbito universalista, dentro da perspectiva do Direito Internacional,
onde a dignidade humana se constituiu como um princípio basilar, visto que os seres
humanos eram tidos como supérfluos e descartáveis – no contexto do pós-Segunda
Guerra-, onde segundo Piovesan (2015b), a partir do momento em que o ser humano
é interpretado desta forma, havia a necessidade emergencial de reconstrução dos
direitos humanos para que houvesse uma aproximação do direito e da moral.
Neste contexto histórico, de afirmação dos direitos humanos, observa-se pela primeira
vez o sujeito que está inserido em uma situação de violência, como um sujeito que
sofre fundado temor de perseguição, e no ano de 1951, com a Convenção de Genebra,
o refugiado passa então a ser reconhecido de forma oficial como o indivíduo que sofre
fundado temor de perseguição.
No entanto, havia um tema em aberto, dado que a Convenção trouxe consigo limitações
geográficas e temporais. Neste sentido, o Instituto do Refúgio passa por uma etapa de
construção de conceitos, perpassando desde Convenções de Genebra (1951), Unidade
Africana (1969), Cartagena (1984) a Protocolos - de Nova York (1967) - bem como o
surgimento de leis. Segundo autores tais como Antônio Augusto Cançado Trindade
(2002), André de Carvalho Ramos (2015) e Celso de Albuquerque Mello (2002), a
convenção que melhor conseguiu definir o status de refugiado, foi a Convenção da
Unidade Africana de 1969.
O artigo 1º da Convenção de Genebra, defini o refugiado como:
Art. 1º - Definição do termo “refugiado”
A. Para os fins da presente Convenção, o termo “refugiado” se aplicará a
qualquer pessoa: Que, em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de
1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua
nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da
proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país
no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos,
não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.
lugar da residência habitual para procurar refúgio noutro lugar fora do seu país
de origem ou de nacionalidade.
3- No caso de uma pessoa com várias nacionalidades, a expressão do país da
sua nacionalidade refere-se a cada um dos países de que essa pessoa tem a
nacionalidade; não será considerada privada da proteção do país da sua
nacionalidade qualquer pessoa que, sem razão válida, baseada num receio
fundado, não tenha pedido a proteção de um dos países da sua nacionalidade.
relevante, uma vez que nos últimos anos o aumento no fluxo migratório devido a
questões ambientais cresceu e vem crescendo consideravelmente. Nesta direção, o autor
Norman Myers (1997), já antecipava que os migrantes ambientais seriam responsáveis
diretos pelo aumento do fluxo migratório no decorrer do século XXI.
Luciana Diniz Durães Pereira (2011) conceitua o refugiado ambiental como:
o indivíduo ou o grupo humano que compõe ondas migratórias internacionais
em decorrência de eventos provocados pela natureza, urge salientar e
discorrer sobre quais são estes eventos e, segundo a melhor doutrina, destacar
os principais fenômenos ambientais responsáveis, na atualidade, por estas
migrações forçadas (PEREIRA, 2011, p.225-226).
Contudo, este conceito foi originado na década de 1970 através do trabalho do analista
ambiental Lester Brown, porém, este conceito só a ser passa a ser reconhecido e debatido
mais amplamente a partir dos anos de 1980 (PEREIRA, 2011). Com a preocupação acerca
da temática, passa-se a observar a definição por meio de categorias, às quais PEREIRA
(2011) cita autores como Essam El-Hinnawi e Jodi Jacbobson compartilhando que
os mesmos conceituaram os refugiados a partir da ideia de deslocados temporários,
deslocados permanentes e deslocados temporários ou permanentes.
Afinal como se constitui a compreensão destas categorias? Segundo Pereira (2011),
entende-se que os deslocados temporários seriam os inseridos em um contexto de
degradação temporária do meio ambiente, sendo assim, os refugiados ambientais
teriam a possibilidade de um dia retornarem ao seu lugar de origem; por sua vez,
os deslocados permanentes estariam relacionados a questões de mudança do clima;
e os deslocados temporários ou permanentes estariam envolvidos em situação de
degradação dos recursos ambientais do lugar de origem destes refugiados ambientais.
Norman Myers (1995) elucidava que havia de 25 milhões de “refugiados ambientais”,
e que até o ano de 2010, haveria em média 50 milhões de pessoas que se tornariam
refugiadas por fatores ambientais. Esses sujeitos que se constituiriam como refugiados,
não estariam fugindo de conflitos por fundado temor de perseguição, mas de desastres
naturais em ocasionadas pelas alterações climáticas, tendo, por exemplo, a elevação
do nível do mar, as secas, os furacões, tsunamis1 dentre inúmeros outros fatores que
poderiam ser caracterizar a alteração do meio ambiente, seja por questões meramente
naturais ou por influencia do próprio homem.
Segundo Pereira (2011), a autora Astri Suhrke elucida pontos principais para conceituar
os refugiados ambientais, sendo estes os sujeitos que deslocaram-se por questões
ambientais:
Inicialmente, Astri Suhrke aponta seis eventos da natureza que podem ocasionar
a necessidade de indivíduos ou grupamentos humanos deslocarem-se de seu
lugar de origem ou residência habitual para irem viver em outro local, sendo
estas: o desmatamento, o aumento do nível do mar, a desertificação e ocorrência
de secas, a degradação do solo, tornando-o inutilizável, a degradação do ar
e a degradação da água. Nota-se que, para a autora, a maioria dos eventos
motivadores de deslocamentos desta natureza são indiretamente provocados
pelo homem, visto ser este o principal agente poluidor e degradante dos
1 LEÃO. M. B. C. Direitos humanos e meio ambiente: mudanças climáticas, “refugiados” ambientais e direito internacional.
Referências neste trabalho.
Esses seis eventos da natureza são importantes para compreender que não se pode
mais atentar somente para limitações de fundado temor de perseguição, calcado
somente no espaço de não violência, e propagação da paz, pois a partir do instante
em que fatores naturais são em sua significativa participação provocados pelo próprio
homem, de fato, há uma violência simbólica (BOURDIEU, 1996).
De acordo com Zarpeoin, Alencastro e Marchesini (2010):
A ONU reconhece a gravidade do problema, mas há uma clara resistência à
ampliação do regime internacional convencional existente aos refugiados
ambientais, pois não reconhece os fatores ambientais como motivação, por si
só, para a concessão do status de refugiado. Muitos pesquisadores defendem
a tese de que os refugiados ambientais podem ser encontrados mesmo sem a
necessidade deles em cruzarem fronteiras nacionais. Isso ocorre especialmente
em grandes países, onde um grupo de pessoas é obrigado a se dirigir para as
outras regiões dentro do próprio território, como por exemplo, no Brasil quanto
às inundações na região do Pantanal e secas no sertão nordestino; ou como
quando do desastre provocado pelo furacão Katrina nos Estados Unidos, onde
muitas pessoas foram forçadas a deixar suas casas, mas permaneceram no país
onde vivem (ZARPEION; ALENCASTRO; MARCHESINI, 2010. p. 166-167).
No mais, pode-se dizer que o debate sobre refugiados encontra-se cada vez mais
presente na comunidade internacional. No entanto, verifica-se que ainda não há uma
ação efetiva para que haja a inclusão dos refugiados ambientais e seu reconhecimento
como tal. Nesse sentido, dado o elevado grau de vulnerabilidade que atinge esse grupo,
não existe mais a possibilidade de se permanecer inerte, pois a degradação do meio
ambiente é evidente e recorrente, e a parcela de participação humana para que isso se
consolidasse continua a ocorrer de forma progressiva no mundo contemporâneo.
Considerações Finais
O presente trabalho busca discutir a condição do refugiado como um sujeito que
está inserido em uma sociedade e sofre fundado temor de perseguição. Porém, esta
condição não se constitui como um estado unicamente de guerra, perseguição política
e afins – mas sim como o individuo que se encontra em vulnerabilidade no país ao qual
reside em função dos impactos ambientais.
Desse modo, é possível observar diante do debate crescente em relação ao tema, que o
refugiado ambiental apresenta-se, em função da própria situação de vulnerabilidade,
como o indivíduo que carece de proteção e amparo jurídico no contexto internacional.
O tema em aberto relaciona-se ao fato de ainda não haver o reconhecimento e
contemplação, por parte do Direito Internacional, bem como uma conceituação com
amparo jurídico amplamente difundida no tocante a esse grupo.
Assim, cabe ressaltar, que a busca pelo reconhecimento do refugiado ambiental
ultrapassa as barreiras das conceituações elucidadas por normas outrora previstas
e acordadas em Convenções e Protocolos. Desta forma, para que se possa enfrentar
o tema em sua complexidade, nota-se a necessidade de dar um passo para além da
lógica estritamente normativa. Nessa direção, o debate em relação a esse tema, propõe
a pertinência da ampliação do conceito nos dias atuais, dado que torna-se relevante
pensar o sujeito e suas condições em si, de forma ampliada, e não somente a definição
imposta por normas preexistentes.
Embora a reflexão e os debates acerca do refugiados ambientais estejam se ampliando,
alguns pontos ainda estão em aberto, tais como: as dificuldades que se encontra para
sua definição; os entraves ainda existentes para que seja delimitado um amparo
jurídico e econômico, bem como seu reconhecimento como tal. Destaca-se, nesse
momento, o papel relevante do instituto do refúgio, que propõe uma abordagem
mais ampla e completa da realidade concreta desse grupo, ficando claro que revisões
e desconstruções são necessárias para que se possa acomodar a realidade dos fatos -
incorporando tanto o quesito urgência que permeia as necessidades do grupo, como
despertando o senso de humanidade envolvido na temática em questão.
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INTRODUÇÃO
Neste trabalho discute-se como a presença das duas maiores indústrias de celulose
do mundo no entorno da cidade de Três Lagoas/MS trouxe consigo situações de
conflitualidade, isto é, conflitos latentes e, mesmo, conflitos socioambientais para o local.
A ideia motriz dessa análise foi ancorá-la em duas perspectivas teóricas e trabalhá-las
complementarmente. Assim, buscou-se apresentar as situações conflitivas sob o ponto
de vista da dominação weberiana e, a partir daí, imergir na análise da acumulação
por expropriação capitalista de Marx, para se tentar alcançar determinadas conclusões
sobre como essas duas indústrias operam e de que forma as situações conflitivas são
administradas pelo capital agroindustrial na região. Utilizou-se de visitas ao campo
e aplicação de questionários estrturados/semiestruturados com o objetivo de se
tentar colher o máximo de fatores de conflitualidade para a identificação de conflitos
socioambientais.
1. CATIVEIROS DE PAPEL
Uma situação de conflitualidade se apresentou pelo relato de uma determinada
associação de produtores de um assentamento de reforma agrária. Esse assentamento se
iniciou em 2009, com a ocupação da fazenda que veio a ser desapropriada pelo INCRA,
posteriormente, e é composto por 181 (cento e oitenta e um) lotes. Está localizado à
margem da Rodovia MS112, km 56, Anexo Fazenda, Zona Rural de Selvíria/MS.
Segundo relatou o entrevistado, o assentamento enfrenta muitos problemas, que ele
classifica, em seu linguajar próprio de não-alfabetizado, como “falta liberá arias pra
faze o desmate minimu. Sem isso não dá pros assentado produzi”. Queixou-se que “o
INCRA mal-e-má comprô e entrego us lote aos assentado e não arrumô nenhuma ajuda
prá começá a plantá”. Isso significa que não houve qualquer tipo de apoio, segundo o
assentado, seja fundiário (documentação), seja técnico e mesmo financeiro, para que os
assentados pudessem dar início a qualquer espécie de produção ali.
A AGRAER, agência estadual responsável pela estrutura fundiária do Estado de MS e
que deveria prestar a assistência técnica rural ali é um verdadeiro “fantasma”, segundo
me foi relatado naquele momento. Com isso, o assentamento, aparentemente, caiu nas
mãos das papeleiras (parece, na verdade, ter sido jogado...).
Pouco tempo depois, enquanto ainda conversávamos sobre o questionário que era
aplicado, o local recebeu a visita de uma assistente social, empregada da indústria
Eldorado Brasil, que penetrou o local sem pedir licença, sequer, e anunciou que tinha
vindo para “fiscalizar o andamento dos projetos financiados pela Eldorado”.
Ato contínuo, tendo interrompido a entrevista, deixou a sala da casa em companhia de
outro assentado, rumo aos fundos da propriedade. Fiquei atônito com o comportamento
da jovem, ao que o entrevistado, dirigindo-se a mim, diz: “liga, não, seu moço. Esse
povo das indústria acha que comprou a gente só porque financia us projeto”.
Naquele momento confirmou-se a hipótese de que nenhum órgão público financiou
ou financiava qualquer projeto de produção agrícola, ou, para melhoria da qualidade
1 Entende-se por Injustiça Ambiental o mecanismo pelo qual sociedades desiguais destinam a maior carga dos danos ambientais
do desenvolvimento a grupos sociais de trabalhadores, populações de baixa renda, grupos raciais discriminados, populações
marginalizadas e mais vulneráveis” (HERCULANO, 2013, 388).
de vida dos assentados e que “a AGRAER ia lá muito mais prá fiscalizá pro INCRA do
que prá atendê us assentado”.
Quem assumira esse papel? As indústrias de celulose, Fibria e Eldorado Brasil, a partir
de 2010 e 2013, respectivamente, tendo o entrevistado deixando muito claro que “todos
us assentado sabia muito bem que não era por bondade que issu era feito, mais, que as
indústria precisava ter esses projeto prá mantê u sêlo e consegui vendê pros exterior a
celulose”.
Entende-se restar evidenciada ali, por isso, uma condição de injustiça ambiental1, fator
de aprisionamento dos assentados ao cativeiro do assistencialismo que, da forma como
opera a simbiose capital/Estado – Estado/capital, os assentados acabam, mesmo,
numa relação completa de subserviência às indústrias, únicas a oferecer algum tipo
de auxílio, inclusive, financeiro para projetos ali, o que provoca, por um lado, o acesso
a pequena fonte de recursos e, por outro, a contenção das potencialidades produtivas
da renda fundiária pelos assentados aos limites e ao tempo social impostos pelas
papeleiras financiadoras dos projetos.
Não à toa e nem sem interesse explícito, a empresa Fibria tratou de colher o seguinte
depoimento de um outro assentado, lançando-o em seu Relatório 2014:
Antes de a Fibria chegar, não conseguíamos produzir nada. Hoje estão todos
entusiasmados, plantando e cuidando do seu gado. A administração e aceitação
dos projetos e do programa PDRT estão sendo ótimas e fizeram com que a
associação crescesse, passando de 14 para mais de 120 associados. Isso mostra
que as pessoas têm interesse em crescer e melhorar de vida. Algo que só aumenta
nossa expectativa em relação ao apoio da Fibria para o desenvolvimento de
nossa comunidade. (OLIVEIRA et alii, 2015, 139)
Notem: até pelo vernáculo utilizado parece-me claro que o texto jamais foi produzido
por um assentado. Não digo que não seja verossímil o seu conteúdo, mas, é bastante
provável que essa fala esteja completamente mediada e comprometida, segundo os
interesses do capital ali presentes.
O conflito que aflige os agricultores familiares do assentamento pesquisado se espraia
da seguinte forma: em princípio, pela falta de condições de produzir (recursos, etc.),
uma vez que nem todos os lotes foram contemplados com o certificado de cessão de
uso - CCU, documento sem o qual, nenhum assentado consegue obter financiamento
ou crédito agrícola e nem mesmo assessoria extensionista agrária. O jogo-de-empurra
entre INCRA e AGRAER mantém assentados numa condição extremamente delicada,
pois, ao não produzirem, correm o risco de ter suas posses deslegitimadas e regressas
à União.
Por outro lado, mesmo para os assentados da reforma agrária que, aparentemente,
conseguiram, às suas expensas, realizar os atos necessários a obter o certificado de
cessão de uso, há dificuldades para se obter crédito agrícola e, diante da ausência de
recursos por parte do INCRA e de acesso a recursos via AGRAER para tal desiderato,
os agricultores familiares acabaram se tornando “clientes preferenciais” das indústrias
que compõem o complexo agroindustrial territorial eucalipto-celulose-papel.
Criou-se, então, ao que parece, uma relação assistencialista que não visa a romper com
a condição de dominação dos assentados pelo capital industrial, muito ao contrário,
2 Entende-se por cativeiro capitalista, no caso, a relação a que foram submetidos os assentados, sujeitos da pesquisa, os quais
esperavam, com a posse da terra, libertar-se do jugo proletário com base na renda da terra, mas, impossibilitados de produzir,
sem amparo estatal e subjugados pelo assistencialismo das papeleiras, estão presos ao regime e limites de produção impostos pelo
complexo agroindustrial territorial eucalipto-celulose-papel.
seu Relatório publicizado, informa 343.318 hectares de plantio no MS, sendo 277.546
hectares desse total em área certificada, deixando claro que os 65.772 hectares restantes
“abrange novas terras adquiridas e arrendadas para a formação de florestas que
poderão abastecer de madeira o projeto de expansão para Três Lagoas anunciado em
maio de 2015” (FIBRIA, 2015, 107).
Juntas, ambas as indústrias produzem 35 milhões de mudas de clones de eucalipto/
ano (http://www.fibria.com.br/web/pt/negocios/floresta/matogrosso.htm;http://
www.eldoradobrasil.com.br/PaginaInterna.aspx?idPage=7). No Mato Grosso do Sul,
a FIEMS divulgou que 2014 “fechava” com 820 mil hectares de “florestas” plantadas
(MININI, 2015, p. 52). Em termos regionais, para 2014, tem-se as informações da Fibria
de que ocupou cerca de 225 mil hectares com “florestas” plantadas, apenas no MS
(http://www.fibria.com.br/negocios/floresta/mato-grosso-do-sul/), ou, 343 mil
hectares acrescendo novos plantios em áreas recém adquiridas ou arrendadas; já, a
Eldorado Brasil informa ocupação de 187 mil hectares com “florestas” plantadas ao
final de 2014. Algumas informações referentes a 2015 atestam pouca alteração no Mato
Grosso do Sul, com acréscimo por parte da segunda: Fibria, com 224.790 hectares e
Eldorado Brasil com 187.850 hectares. Há, aqui, discrepância entre o que a indústria
Fibria divulga no Resumo do Manejo Florestal 2014 e o que ela própria torna público
no Relatório 2014. A diferença é da ordem de 52.756 hectares, apenas no que tange às
chamadas “florestas plantadas” e certificadas, o que é alarmante.
Informam, ainda, as referidas indústrias de ceulose investimentos da ordem de 15,7
bilhões de reais para ampliação de ambas as plantas de produção (MININI, 2015, p. 46).
Isso significa necessidade maior de ocupação territorial para ampliar a produção dos
clones de eucalipto, com ampliação dos usos de água, do solo e subsolo, além da água
extraída, sem qualquer ônus, do Rio Paraná, para abastecer as plantas industriais que
foram construídas em suas margens, elevação nos níveis e concentração de efluentes
que são despejados no leito desse que é um dos mais relevantes, volumoso e extenso
curso d´água para o país, para os Estados de SP e MS e, fundamentalmente, para a
cidade e região de Três Lagoas/MS, bem como, para outros países sul-americanos.
O que ocorre no Mato Grosso do Sul parece estar na ordem do dia do plano capitalista
para o Brasil. Em 2014, as informações foram ainda mais espantosas: em “florestas”
plantadas, divulgou-se 7,6 milhões de hectares, sendo 72% composto por eucalipto, no
país (CIRILLO, 2015, p. 33).
Atualmente, este conflito socioambiental se encontra judicializado, porém, o pedido
feito sob forma liminar pelo MPF, no ato de ingresso da ação – e replicado no aditamento
da petição inicial, com a inclusão do IMASUL como réu na ação – visando à proteção
jurídico-ambiental foi negado em primeira instância, tendo havido a interposição de
recurso (agravo), pelo qual se visa alcançar determinados efeitos que poderiam, em
tese, minimizar alguns impactos ambientais já sensíveis na região. Esse recurso não foi
conhecido pelo TRF da 3ª Região, sediado na cidade de São Paulo/SP. Assim, aguarda-
se a tramitação da ação civil pública em 1ª Instância, junto à Justiça Federal na cidade
de Três Lagoas/MS.
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A análise que propusemos assenta-se sobre o trabalho de Max Weber, quando o autor
descreve os tipos ideais de dominação (WEBER, 2009, 187). Seja a forma em que se
dá por uma constelação de interesses, ou, aquela em que se evidenciam relações de
autoridade, até culminar com um modelo híbrido em que coexistem ambas as formas de
dominação, o que se pode perceber, a partir dos trabalhos de campo, é que prepondera
na região a terceira forma, isto é, o tipo ideal, em que se encontram presentes tanto a
constelação de interesses, como, as relações de autoridade, principalmente, fruto do
mandonismo politico-econômico existente no Bolsão sul-matogrossense, herdeiro do
coronelismo das primeiras décadas do Século XX.
A pesquisa encontrou certas relações simbióticas entre o capital e politicos, com o
financiamento privado de campanhas eleitorais, municipais, estaduais e federais, mas,
também, um mote muito bem propagandeado, explorado pelo marketing agroindustrial
na região, no sentido de que o complexo agroindustrial territorial eucalipto-celulose-
papel seria responsável pelo boom industrializante na região e, nessa perspectiva, fonte
inesgotável de desenvolvimento, sustentatibilidade e progresso, imagens às quais o
capital agroindustrial e parte considerável da sociedade (incluindo, principalmente,
políticos e outras autoridades) atrelam a empregabilidade.
No caso do campo estabelecido pelo objeto do trabalho, essas relações da ação social
entre poder-dominação e estrutura-interesses econômicos parecem restar bastante
nítidas. A pesquisa aponta como o movimento ditatorial-empresarial-militar levou a
expansão econômico-empresarial-industrial ao Centro-Oeste brasileiro, notadamente,
ao atual Mato Grosso do Sul.
Seja por meio de incentivos fiscais e creditícios que operam desde a década de
1970, fomentados via BNDES e FCO, por uma classe política comprometida com a
manutenção dessa estrutura, que era imposta ditatorialmentre, em princípio e, após
a abertura democrática de meados da década de 1980, via sistema eleitoral em que
se observa, claramente, o nível de investimento feito pelo setor de celulose-papel por
meio de doações a campanhas eleitorais de vários políticos, por um modelo fundiário
concentrador e expropriatório que dizimou a então grande comunidade indígena nos
Estados do Centro-Oeste, em especial no Mato Grosso do Sul e pela oferta de mão-de-
obra pouco ou nada valorizada, fato é que o ressurgimento do complexo territorial
agroindustrial eucalipto-celulose-papel se fez e faz presente na região do Bolsão
diante das garantias estatais e privatísticas, sociais, econômicas, ambientais e naturais
permanentes ali. No dizer de Marini Perpétua:
[...] o discurso de que o Estado deve assegurar garantias e benefícios
(econômicos e políticos) ao setor de celulose e papel e a toda a sua cadeia, devido
ao seu comprovado dinamismo, eficiência e competitividade no mercado mundial
parece estar virado “de cabeça para baixo! Na medida em que é exatamente o
contrário que se evidencia, ou seja, o setor é atualmente dinâmico, eficiente e
competitivo em função de todas as garantias e benefícios de que o Estado lançou
mão no intento de desenvolvê-lo. (PERPÉTUA, 2013, 163)
Por outro lado, partindo-se de uma visão marxista, que não se contrapõe à dinâmica
weberiana no aspecto investigado, a acumulação primitiva, que cria as condições de
existência e manutenção do processo de produção capitalista, com efeito, deriva, na
REFERÊNCIAS
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reimpr. Brasília: Editora UnB, 1999, 2009 (reimpressão).
INTRODUÇÃO
Este artigo pretende analisar o planejamento urbano e regional no Brasil, a partir da
segunda metade do século XX, buscando relacioná-lo às transformações econômicas
e políticas ocorridas no período. Pretendemos também refletir sobre as políticas de
planejamento a partir das tentativas do capital financeiro subordinar o espaço às
esferas da produção e da mercadoria, em um contexto de mundialização, precarização
trabalhista e redução de investimentos nos programas sociais.
Nesse contexto, pudemos observar que o planejamento urbano baseado na
regionalização, da segunda metade do século XX, teria dado lugar ao que se
convencionou chamar de planejamento estratégico, uma adequação das políticas
urbanas à reestruturação produtiva neoliberal, onde a gestão local assume um
papel preponderante que será consolidado na Constituição de 1988, através da
municipalização das políticas urbanas. Entidades de fomento ao desenvolvimento
econômico e parcerias público-privadas também assumiriam papel preponderante
nesse processo, visando retirar do planejamento estatal sua influência e poder de
intervenção através da disseminação do discurso da sustentabilidade e do ecologismo.
1. ESPAÇO URBANO E FINANCEIRIZAÇÃO
O discurso do estímulo ao desenvolvimento urbano teria assumido grande
importância nas últimas décadas, tanto para os defensores quanto para os detratores
da atuação das agências internacionais de fomento aparentemente tão díspares como
o Fundo Monetário Internacional-FMI, o Banco Interamericano de Desenvolvimento-
BID e o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento-BIRD. Porém,
o desenvolvimento das metrópoles estando determinado por condições materiais e
históricas específicas a cada uma delas, através de relações em diferentes níveis de
desenvolvimento, justapostas de maneiras contraditórias e peculiares, teria tornado
os conflitos sociais inerentes, a despeito de tais políticas, às sociedades menos
desenvolvidas, ao impelirem estas a superar as disparidades do seu desenvolvimento
em relação às outras com as quais se relacionam, passando também a encarar suas
metrópoles como unidades especiais detentoras dos meios de produção e reprodução
da força de trabalho com alto valor agregado_ abundância de equipamentos científicos,
de transporte, culturais, de produção (LOJKINE, 1981).
Nesse processo, embora esse espaço urbano seja considerado restrito à função de
reprodução do capital, “a importância do espaço geográfico como meio de produção pode ser
exemplificada concretamente (...) no processo de construção das forças produtivas no ambiente
que o espaço é produzido, de acordo com as propriedades espaciais desse conjunto de forças
produtivas” (SMITH, 1988, p134).
O desenvolvimento espacial estaria também determinado por forças duais, desiguais
e irreconciliáveis, resultantes da combinação dos elementos que o disputam. Diversos
processos resultantes desse confronto_ renovação, reforma, redesenho ou requalificação
urbanas_ constituiriam expressão das tendências à diferenciação e à universalização
do capital no território.
Diante do que se convencionou chamar de desenvolvimento, seja sustentável ou
dependente, seria consolidada pelas agências financeiras a assertiva de que a estagnação
econômica deveria ser combatida com investimentos em infraestrutura, máquinas e
crédito, desde que dentro dos marcos de um sistema que pudesse ser conduzido por
instituições privadas que canalizassem as forças sociais e produtivas na construção
de um ambiente favorável à divisão internacional do trabalho. A necessidade de uma
classificação menos discriminatória e de uma perspectiva de ascensão para os países
subdesenvolvidos levaria as agências a forjarem uma denominação alternativa para os
países dependentes: ‘países em vias de desenvolvimento’.
E, embora o desenvolvimento econômico e social sejam apresentados como processos
interdependentes nos documentos e cartilhas produzidos por tais agências e que
visavam estabelecer um receituário aos países em desenvolvimento, a intervenção
estatal ou aumento das verbas públicas estaria descartada1.
Partindo desse pressuposto, faz-se necessário abordarmos alguns antecedentes à
gênese e consolidação da influência da agências financiadoras do desenvolvimento nas
políticas urbanas dos países dependentes, e que lhes são tomadores de empréstimos.
2. GESTÃO URBANA, DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE
A partir do século XX, os processos de integração regional seriam acentuados no
Brasil como resposta à crise de 1929. BAUMANN (1996) aponta que estes processos
estariam pautados pela necessidade crescente de acesso a insumos e mão-de-obra
mais baratos, ampliação de mercados e desenvolvimento tecnológico. O planejamento
governamental da primeira metade do século vinte ainda estaria também instruído a
partir da necessidade do desenvolvimento e fortalecimento de uma base capitalista e
urbana da sociedade brasileira.
Durante a ditadura, foram criados organismos governamentais como a Secretaria
Federal de Habitação e de Urbanismo (SERFHAU, 1964), o Banco Nacional da
Habitação (BNH-1964), a Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste
(SUDENE, 1959), entre outros, visando a possibilitado do Estado intervir diretamente
no meio urbano e rural, através do planejamento e do financiamento:
Por meio desses planos, o governo, de um lado, procurou desenvolver sua
política urbana voltada para o equacionamento dos transportes, saneamento
e habitação. Por outro lado, buscou promover a descentralização econômica
frente a uma realidade que apresentava extrema concentração das atividades
industriais no Sudeste (...). Os principais órgãos do governo do país traçaram
objetivos e ações buscando orientar o desenvolvimento urbano e regional.
(LENCIONI, 2008, p.46).
Em 1973, seriam instituídas nove regiões metropolitanas2: São Paulo, Rio de Janeiro,
Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife e Salvador, que
passariam a constituir polos irradiadores de desenvolvimento. A ligação viária
1 O Estado burguês nada mais seria que a reafirmação da própria propriedade privada: “Além do mais, divisão do trabalho e
propriedade privada são expressões idênticas_ numa é dito com relação à própria atividade aquilo que, noutra, é dito com relação
ao produto da atividade (...). Além disso, com a divisão do trabalho, dá-se ao mesmo tempo a contradição entre o interesse dos
indivíduos e o interesse coletivo de todos os indivíduos que se relacionam mutuamente (...) é precisamente dessa contradição que o
interesse coletivo assume, como Estado, uma forma autônoma, separada dos reais interesses singulares e gerais e, ao mesmo tempo,
como comunidade ilusória, mas sempre fundada sobre a base real dos laços existentes em cada conglomerado... Daí se segue que
todas as lutas no interior do Estado, a luta entre democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito de voto, etc., não são mais
do que formas ilusórias em geral, a forma ilusória da comunidade_ nas quais são travadas as lutas reais entre as diferentes classes”.
(MARX, 2007, p.37).
2 Para ANDRADE (1973, p. 69), a organização do território brasileiro estaria intimamente vinculada aos ciclos que constituíram a
história econômica do Brasil_ ciclo do pau-brasil, da cana-de-açúcar, do couro, do ouro, do algodão, etc. Estes ciclos, por sua vez,
teriam sido fundados para atender às necessidades imperativas do mercado externo, com os países centrais, e acabaram dando
origem às regiões de especulação e, posteriormente, de regiões organizadas na forma de polos de desenvolvimento.
3 Os motivos dessa falência constituem objeto de análise de diversos autores que abordaram a estrutura de classe da sociedade
brasileira e os esforços da classe dominante na manutenção do status quo. Cf. ANTUNES, 2003; FIX, 2007; MARTINS, 2004;
OLIVEIRA, 2008; SANTOS, 2003.
4 Ainda segundo LENCIONI, a intenção do governo militar, ao instituir nove regiões metropolitanas no período de 1973-74, seria
atenuar a concentração de renda e estimular o desenvolvimento das demais regiões para além do Sudeste, superando, assim, as
mazelas de uma urbanização avassaladora. (LENCIONI, 2008, p.44).
5 BAUMANN, 1996, p.47.
6 Descentralização, no sentido de decidir localmente as políticas públicas a serem aplicadas com um possível envolvimento da
sociedade e visando eliminar o clientelismo até então observado; participação, tocante à formulação e aplicação de políticas de
desenvolvimento local, embora esta não reflita um avanço real no sentido da emancipação da população rumo à construção de um
modelo decisório mais democrático. (THEIS; BUTZKE, 2007, p.1).
7 Plano Brady é o nome dado ao plano de reestruturação da dívida externa de alguns países, que foi lançado no final da década de
1980. O nome do plano tem sua origem no nome do Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Nicholas F. Brady.
8 Cf. LENCIONI, 2008; HARVEY, 2005; ANTUNES, 2003.
9 Cf. SMITH, 1988; LOJKINE, 1981; HARVEY, 2005.
Nenhuma das matrizes referidas, contudo, dará conta do fator financeiro como
desarticulador de políticas desenvolvimentistas que se queiram sustentáveis. O
paradoxo implícito do capital financeiro consistiria na ênfase em treinamento e
educação ao mesmo tempo em que pressionaria constantemente a redução dos custos,
através da repressão salarial, como forma de manter a competitividade no mercado
internacional12 (BAUMANN, 1996). A desregulamentação, através da redução do grau
de intervenção nos mercados, teria produzido discrepâncias entre os dois processos
que só poderiam ser superadas através da redução do poder de atuação do Estado,
tanto na questão regional_ valorização do local, fragmentação dos mercados e
autodeterminação política, quanto na internacional_ valorização de modelos globais,
mercados homogeneizados, desregulamentação e flexibilização do trabalho
O dado novo que a globalização traz é a ênfase no fato de que toda a orientação
da ação do Estado e dos demais agentes deve estar orientada para tornar
possível o alcance e manutenção de níveis internacionais de competitividade em
termos sistêmicos, isto é, por parte dos diversos setores da economia. De fato,
a globalização exerce pressão crescente sobre os governos para que liberalizem
suas políticas relativas às transações internacionais e, para tal, alinhem suas
políticas em cada vez mais áreas, mesmo aquelas não diretamente vinculadas
ao setor externo. (BAUMANN, 1996, p.44).
não pode deixar de ser um ator de primeira linha, especialmente para melhorar
a qualidade de seus gastos, que libere recursos para investimentos na área social
e em infraestrutura. (FERNANDES JR., 2005, p.18).
13 Os países citados, mais a Itália, foram, durante a crise de 2008-2009, apelidados pela imprensa européia de PIIGS (Portugal,
Irlanda, Itália, Grécia e eSpanha), acrônimo, em inglês, da palavra ‘porcos’, animais usados algumas vezes em caricaturas para
representar o mau desempenho econômico dos cinco países. No entanto, a crise e o alto grau de risco que estes países vieram
a apresentar teriam sido causados pelos ajustes econômicos recomendados pelos agentes financeiros no seu anterior padrão de
desenvolvimento.
14 GASQUES; VERDE. A sustentabilidade financeira da reforma agrária no Brasil. In: LEITE, Pedro Sisnando et alii (orgs): Reforma
agrária e desenvolvimento sustentável. Ministério do desenvolvimento agrário. Brasília: Paralelo 15/Núcleo de Estudos Agrários e
Desenvolvimento/Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2000.
RESUMO
A construção de um sistema interfederativo intersetorial na promoção da soberania
alimentar no Brasil, nos últimos treze anos, é o resultado de décadas de estratégias
públicas de enfrentamento ao combate à fome e às causas de desigualdade social
oriundas do acesso ao alimento – nutricional e sustentável. Em Minas Gerais – unidade
da Federação protagonista no assunto – a trajetória em SANS (Segurança Alimentar e
Nutricional Sustentável) conferiu diversos resultados positivos. No entanto, tal qual
em outras unidades regionais, a expansão vertical do SISAN – Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional – está incompleta com a baixa adesão dos municípios
mineiros ao sistema. Para aditar este quadro a conjuntura política nacional – com o
afastamento da Presidenta da República em agosto de 2016 – traz incertezas sobre a
continuidade do sistema em detrimento do avanço do agronegócio e da agroindústria
colocando, ao lado da grande mídia, o seu conceito de alimentação adequada. O
trabalho se propõe a fazer um panorama histórico, institucional e conjuntural da
situação de Minas Gerais frente ao SANS estabelecendo os principais desafios e o que
tem sido percebido, através do Projeto SISAN/MDS/UFF, no campo da pesquisa –
através de observação participante e elucidando, através de documentos públicos e
elementos empíricos o cenário presente e futuro para a segurança alimentar no Estado
diante de tempos atuais de “crise”.
Figura 1. Quadros das CRSANS existentes no Estado de Minas Gerais. Fonte: CONSEA-
MG, 2015.
Além destes dados, foram informados outros elementos que demonstram uma
diagnose do cenário de SANS em Minas, considerando os equipamentos existentes
(ações de incentivo à feira livre em 34 municípios; armazéns e pontos de distribuição
dos produtos da agricultura familiar em 19; bancos de alimentos em 15; unidades de
agroindústrias em 11; restaurantes populares em 09 e cozinhas comunitárias em 06
municípios), organizações associativas e representações da sociedade civil, povos e
comunidades tradicionais e demais segmentos sociais ligadas a SANS (associações de
agricultores familiares em 32; hortas comunitárias e escolares em 21; cooperativas de
agricultores em 14; assentamentos da reforma agrária em 07; comunidades quilombolas
com atividades ligadas a SANS em 05; comunidades indígenas com atividades ligadas
a SANS em 02 e escola agrícola em um município) e menção a percentuais de compras
institucionais em SANS via PNAE (100% de compras em 02; 99% a 55% em 03; 50% a
30% em 05; e abaixo de 30% entre 09 municípios). (CONSEA, 2016).
A resposta prévia aos dados acima abre o leque para uma série de especulações a respeito
da expansão do SISAN nos municípios mineiros. Reconhecido o esforço institucional
do CONSEA estadual – e da conjuntura política mais favorável somente a partir de
2014 – quando o (atual) governador do Estado faz um alinhamento institucional com
o governo federal, desde então – a estruturação orçamentária e os recursos humanos
disponíveis se encontram no esforço máximo, mas, inexoravelmente, precisam ser
ampliados para uma resposta mais rápida à adesão dos municípios ao SISAN.
Por outro lado, a criação de territórios de SANS – as CRSANS – tornou-se um elemento
político estratégico entre a realidade local e a realidade estadual (contexto em que
se poderia garantir, por si só, uma arena particular de debate, deliberação e luta das
demandas de SANS no eixo interior-capital-interior), embora os seus conselheiros –
com as mesmas razões de recursos financeiros e humanos – não fossem suficientes para
alcançar, num curto prazo, os mesmos resultados buscados. O quadro de desigualdade
social e econômica é discrepante e segrega regiões inteiras do Estado quando o assunto
é o desenvolvimento humano e socioeconômico no meio rural. Neste sentido, de acordo
com a Carta Política apresentada pela 6ª Conferência Estadual de SANS (CESANS) e
encaminhada à 5ª Conferência Nacional de SAN, segue a autocrítica:
Como todas as ações em SANS são consideradas, para o Estado de Minas Gerais,
programas sociais (SEPLAG/MG, 2016: 08), há que se considerar que o fato de ter
ocorrido uma profunda reestruturação orgânica na administração pública estadual
mineira, tratando a nova lei estadual de uma série de extinções, cisões, repartições de
competências e alterações de vinculação entre os órgãos e entidades do poder público
mineiro, pode ter influenciado no destino inicial dos recursos. Isto, na concepção do
relatório, contribui sobremaneira para compreender porque muitos gastos ainda não
foram executados na sua totalidade – levando-se, em consideração, o tempo restante
para a exeqüibilidade dos recursos.
Além disto, a territorialização das políticas públicas em Minas Gerais permitiu um
olhar mais atencioso sobre a distribuição dos recursos por todo o Estado, de acordo
com as necessidades de cada região. Analisando a ação Segurança Alimentar e Nutricional
(SAN) em Minas Gerais (item “c” acima), dos 3,52% de recursos executados entre
janeiro e agosto de 2016 para o desenvolvimento de eventos de articulação em SANS
(“reuniões, seminários e oficinas para os gestores e servidores das secretarias que
compõem a CAISAN e para os municípios mineiros para formar, orientar, capacitar
e desenvolver nas etapas de adesão ao SISAN” – SEPLAG, 2016: 505) todos estavam
centralizados no Território Metropolitano e, com a realização das Plenárias Regionais,
estes foram descentralizados em 08 dos 11 territórios previstos para a ação – e que,
ainda, segue em curso de implementação orçamentária.
Contudo, o momento atual – de revisão, em participação popular, das ações do SISAN
do Estado (junto com todo o restante das ações orçamentárias previstas do PPAG)
pode ser um motivo institucional que justifique, por exemplo, a diminuição da dotação
orçamentária geral diante dos gastos insipientes desenvolvidos no período – razão pela
qual uma das ações do CONSEA e CAISAN estaduais é a defesa, nas arenas públicas,
de suas ações e valores até o final do período.
Considerações finais
O presente trabalho – para além de um relato do campo e de uma breve análise da
conjuntura política, econômica e social a respeito da temática da segurança alimentar
e nutricional sustentável em Minas Gerais – busca provocar reflexões sobre o papel do
Estado na indução, promoção e articulação do direito à alimentação adequada como
estratégia não apenas de manter a sociedade brasileira em condições de viver fora do
mapa global da fome, mas de provocar o apoderamento socioeconômico dos maiores
protagonistas do processo da cadeia agroalimentar de todo o país: a agricultura
familiar, de base coletiva e/ou oriundo de povos e comunidades tradicionais, com
reflexos diretos nos valores alimentares e na cultura brasileira do que se põe à mesa.
Obviamente não se trata de somente promover o acesso ao alimento – mas, sobretudo,
conferir o acesso às técnicas socioambientalmente difusas de produção, distribuição,
acesso e consumo a alimentos que possam produzir saúde, bem-estar e dignidade
social a todos os cidadãos – reduzindo as desigualdades socioeconômicas e os conflitos
socioambientais associados ao tema. Uma vez que ações voltadas ao fortalecimento do
SISAN estejam estagnadas – por uma série de motivos e circunstâncias conjunturais
– é a própria viabilidade do sistema que se encontra ameaçado (vez que o Estado é o
protagonista paralelo à sociedade e aos movimentos sociais na realização do direito à
alimentação adequada).
MOCAIBER, Tainá
Estudante de Mestrado do Programa de
Pós Graduação em Direito e Sociologia da UFF
tainamocaiber@hotmail.com
RESUMO
O rompimento da barragem de rejeitos da Samarco em novembro de 2015-que destruiu
o distrito mineiro de Bento Rodrigues- é o maior desastre do gênero da história mundial
nos últimos 100 anos. Não foram somente 50 a 60 milhões de metros cúbicos (m³) de
rejeitos despejados. Foram sonhos e vidas interrompidas . Foram meios e modos de
sobrevivência destruídos. Foi uma comunidade que começou com o minério de ouro
e termina sua existência com o minério de ferro. O Rio Doce morreu. Urge a discussão
sobre a atividade minerária no país e o papel do estado Brasileiro. Urge compreender
o porque da inércia dos grupos institucionais. Este artigo tem a intenção de fazer uma
reflexão sobre o licenciamento ambiental que precedeu Mariana, a flexibilização da
legislação minerária no Brasil e os injustiçados ambientais.
ABSTRACT
The rupture of Samarco’s tailings dam in November 2015 – which destroyed Bento
Rodrigues, a district in Minas Gerais State – has been the largest disaster of the kind
in the world history for the last 100 years. It was not only 50 to 60 million cubic meters
(m3) of rejects dumped. It is about the interruption of dreams and lives. Means and
ways of survival were destroyed. It is about a community which started with gold
mining and ended its existence with iron mining. Rio Doce (Doce River) died. It urges
a discussion about the mining activity in the country as well as the role of the Brazilian
state. It urges to understand why the inertia of the institutional groups. This article
is aimed at making a reflection about the environmental licensing which preceded
Mariana, the flexibility of the mining legislation in Brazil and the people who suffered
environmental injustice.
INTRODUÇÃO
O ano de 2015 foi marcado pelo pior desastre ambiental já ocorrido no Brasil, que foi o
desabamento da barragem da Samarco (cujo capital é controlado paritariamente pela
Vale S.A e a BHP Billiton Brasil Ltda) em Mariana, Minas Gerais. O presente artigo
buscou analisar o ocorrido no município de Mariana/MG. O rompimento não mudará
em nada o controle ambiental ineficaz adotado no Brasil e a situação decadente dos
vulneráveis ambientais vítimas desse ocorrido e de outras tantas tragédias ambientais.
O Congresso Nacional está para aprovar o novo Marco Regulatório da Mineração,
que, assim como ocorreu com o Código Florestal, vai diminuir as exigências no
licenciamento ambiental, diminuir a taxação da atividade e ainda permitir a mineração
em parques nacionais e reservas indígenas e com isso colaborando para um maior
número de injustiças ambientais. O licenciamento ambiental é um dos mecanismos
estatais mais eficaz mas está na iminência de não ser. Sendo assim, este artigo tem como
objeto estudar o licenciamento ambiental enquanto instrumento de concretização da
responsabilidade empresarial, e refletir a questão dos vulneráveis ambientais, tendo
como cenário o acidente ocorrido em Minas Gerais.
Num primeiro momento, a metodologia empregada consistiu na leitura dos livros,
meios de comunicação das mídias sociais, acompanhamento da atuação do Ministério
Público de MG, acompanhamento do Movimento dos Atingidos por Barragens,
artigos científicos, notícia oriundos de periódico, sites de pesquisa selecionados após
revisão bibliográfica, acompanhamento de decisões dos tribunais, visando construir
um referencial teórico e informativos para a compreensão da questão que tocam no
estudo do caso.
De outro lado, não se pretende ficar adstrito à teoria, até por que a construção de um
objeto científico não se faz tão somente com esta, sendo necessário um olhar sobre o
objeto sob um ângulo imprevisto, sendo o cerne de sua arte a conversão dos problemas
abstratos em operações científicas inteiramente práticas (BOURDIEU, 2004). No estudo
de caso pretendido, o maior desafio será exercitar – a todo o momento – aquilo que
Bourdieu (2004) denomina de objetivação participante, apurando todas as perspectivas
sobre o objeto de modo mais ou menos afastado, a fim de perceber a realidade e
vulnerabilidade do caso.
1. O LICENCIAMENTO AMBIENTAL EM MARIANA/MG E SUAS IMPLICAÇÕES
O Licenciamento Ambiental é um instrumento de fundamental importância. Como
exposto abaixo:
O licenciamento ambiental tem-se destacado como o mais importante mecanismo
estatal de defesa e preservação do meio ambiente, já que é por meio dele que a
Administração Pública impõe condições e limites para o exercício de cada uma
das atividades econômicas potencial ou efetivamente causadoras de impacto no
meio ambiente. A função de controlar as atividades potencialmente causadoras
de impactos no meio ambiente está expressamente estabelecida no inciso V
do § 1º do art. 225 da Constituição Federal, o qual reza que, para assegurar a
efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, incumbe
ao Poder Público “controlar a produção, a comercialização e o emprego de
técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade
de vida e o meio ambiente”. O sistema de licenciamento ambiental tem por
finalidade assegurar que o meio ambiente seja devidamente respeitado, quando
O presente artigo tem num primeiro momento a intenção de trazer à tona a grave
perspectiva que se encontra o licenciamento ambiental no Brasil. A flexibilização desse
instrumento tem colocado muitas vidas em risco. E trás a tona a seguinte questão:
Porque os grupos institucionais envolvidos permitem a frouxidão da lei ¿
Em 2013, o COPAM ((colegiado onda a sociedade civil participa) avaliou a revalidação
da licença ambiental da barragem de Fundão e no Parecer Único Nº 257/2013 da
SUPRAM, por solicitação do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, o Instituto
Prístino apresentou o Laudo Técnico alertando que: “Outro ponto a ser destacado é que
a barragem do Fundão e a pilha de estéril União da Mina de Fábrica Nova da Vale (LP+LI)
fazem limite entre si, caracterizando sobreposição de áreas de influência direta, com sinergia de
impactos (...). Notam-se áreas de contato entre a pilha e a barragem. Esta situação é inadequada
para o contexto de ambas estruturas, devido a possibilidade de desestabilização do maciço da
pilha e da potencialização de processos erosivos. Embora todos os programas atuem na prevenção
dos riscos, o contato entre elas não é recomendado pela sua própria natureza física. A pilha de
estéril requer baixa umidade e boa drenagem; a barragem de rejeitos tem alta umidade, pois é
reservatório de água”.
Diante da seriedade da questão processo foi aprovado pela SUPRAM, com exceção do
voto do Ministério Público e o representante de uma ONG. Ao final foram aprovados
condicionantes entre eles: “Recomenda-se a apresentação de um plano de contingência em
caso de riscos ou acidentes (...) dada à presença de população na comunidade de Bento Rodrigues,
distrito do município de Mariana-MG”.
No momento do desastre descobriu-se que não havia plano de emergência contrariando
a legislação em vigor.
Diante disso, projetos de lei flexibilizando o licenciamento ambiental estão a todo
vapor pelo país. No artigo, cito três projetos de leis afinados, que estão a causar um
grave retrocesso no país. A saber:
O PL 2946 (projeto de lei de autoria do governador de Minas Gerais Fernando Pimentel),
por alguns, apelidado de “AI-5 ambiental” (um cheque em branco com força de lei),
propõe a centralização do licenciamento, mediante a criação de um setor específico de
“projetos considerados prioritários” no âmbito do comando da Secretaria de Estado
de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). Tem caráter econômico
desenvolvimentista e pretende agilizar licenciamentos, colocando o Governo e a Secretaria
de Estado de Meio Ambiente Sustentável (Semad) acima das instâncias do Conselho
Estadual de Meio Ambiente – Copam (colegiado onda a sociedade civil participa) e dar
ao Estado a competência de priorizar empreendimentos e, assim, interferir nos seus
licenciamentos. A tentativa é de diminuir o controle social dos processos de licenciamento
e aumentar o poder do executivo nesses processos, sem contrapartida no que se refere à
fiscalização, controle e gestão. A Nota Pública da frente contra a PL 2946/2015 acentua
que ese projeto possui um “caráter centralizador no poder executivo e a redução do
poder do Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM)”.
Não por acaso, este PL está afinado com outro que tramita no Senado Federal, por
iniciativa do senador Romero Jucá (PMDB/RO) – de número 654/2015. Segundo o
artigo 1º deste PL, regras excepcionais serão criadas “para o licenciamento ambiental
especial de empreendimentos de infraestrutura estratégicos para o desenvolvimento
nacional sustentável”, tais como: “sistemas viário, hidroviário, ferroviário”, “portos”,
“energia” e “exploração de recursos naturais”, que “serão considerados de utilidade
pública” – em consonância com o também disposto na proposta do Código de
Mineração (PL 5803/2013)-defendido por alguns deputados federais mineiros - em
tramitação na Câmara dos Deputados, que não consta mudanças necessárias para a
proteção das comunidades, dos seus territórios e dos(as) trabalhadores(as). O desastre
ocorrido no dia 05 de novembro último expõe de uma forma alarmante e cruel, as
consequências irreversíveis do não cumprimento da garantia desses direitos.
1.1.O Movimento de Justiça Ambiental
Segundo Asceral um dos principais desafios do Movimemto de Justiça Ambiental tem
sido definitivamente, o de alterar a “cultura’ das entidades públicas responsáveis pela
intervenção estatal sobre o meio ambiente, que se caracterizam por terem um padrão
de intervenção tecnicista e a posteriori, pouco sensível às variáveis sociais e culturais
do gerenciamento do risco ambiental.
1.2.Mineradora, População e Direitos Violados
A atual legislação de licenciamento também deixa transparecer um longo caminho
ainda a ser percorrido para a efetivação dos direitos humanos socioambientais,
garantidos na Constituição de 1988 e em diversos tratados internacionais, dos quais
o Brasil é parte. A luta dos(as) trabalhadores(as), movimentos socioambientais e das
comunidades impactadas por grandes empreendimentos requer que esses novos
direitos sejam incorporados ao Direito Minerário.
Há uma sistemática violação de direitos humanos ocorridos no Brasil em decorrência da
mineração. E a iminência ameaça de retrocesso no Brasil em razão dessa flexibilização ou
tentativa de flexibilização da legislação minerária. O marco legal da mineração no país
e as relações de trabalho que decorrem compromete gravemente os direitos humanos.
Urge uma denúncia na parceria do Estado Brasileiro com as empresas mineradoras desse
modelo de mineração que não atende o nosso povo. Isso se justifica em grande medida
pelas estratégias das empresas mineradoras de financiar as campanhas eleitorais, fazendo
com que as mineradoras ganhem as eleições independente do resultado eleitoral tendo
representantes em todas as esferas municipais, estaduais e federais.
As empresas mineradoras atuam no Brasil ao arrepio dos tratados internacionais de
direitos humanos dos quais o Brasil é parte inclusive o Pacto de São Jose da Costa
Rica. O modelo de mineração praticado pela empresa Samarco (Vale) tem provocado
impactos sociais e ambientais q são irreversíveis. O seu modo de mineração provoca
alto índice de contaminação por resíduos tóxicos.
A população de Bento Rodrigues hoje é de oitenta porcento negra ou parda. São
descendentes de escravos que há 300 anos estavam sendo explorados e assassinados
pela mineração de ouro.
2. FUNDAMENTAÇÂO TEÓRICA
Para investigar a nossa hipótese, após uma breve introdução do tema e demonstração
da metodologia utilizada no presente trabalho, o artigo foi dividido em dois momentos
teóricos.
O primeiro pretende desvelar os fatores que contribuíram para o desastre, incluindo os
arranjos institucionais em torno do licenciamento e monitoramento ambiental, tomando
como referência o processo de “reprimarização” da economia latino-americana. Em
um segundo momento apresentará a questão dos injustiçados ambientais e suas
consequências exibindo os direitos violados.
Na primeira parte em que tratamos do licenciamento ambiental, utilizamos renomados
doutrinadores jurídicos e todo o arcabouço de notícias que envolve a questão da
tragédia em Mariana.
Na segunda parte em que tratamos do caso de injustiça ambiental utilizamos Henri
Ascerald e alguns de seus conceitos. Ressalto aqui a gênese de seu entendimento:
“A noção de justiça ambiental implica, pois, o direito a um meio ambiente
seguro, sadio e produtivo para todos, onde o “meio ambiente” é considerado
em sua totalidade, incluindo suas dimensões ecológicas, físicas, construídas,
sociais, políticas, estéticas e econômicas...
Afirma também o direito dos moradores de estaremos livres, em suas casa,
dos perigos ambientais provenientes das ações físico-químicas das atividades
produtivas.”
direitos dos atingidos por barragens é histórica. Diante dessa situação o artigo busca
exibir os direitos violados. Denunciando as violações dos direitos humanos e defender
os sujeitos históricos oprimidos para que sigam lutando para proteger seus direitos em
defesa da vida.
CONCLUSÕES OU CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo faz parte de uma agenda de trabalho que busca investigar os índices que
poderiam servir para provar a vulnerabilidade do Município de Mariana e pretende
dar prosseguimento a pesquisa em prol de contribuir com o movimento dos atingidos
por barragens. Também pretendeu analisar o imbróglio que envolve as mudanças
no licenciamento ambiental que está seriamente ameaçado por uma série de pautas
ameaça esse instrumento jurídico fazendo do Brasil uma fábrica de “Marianas”.
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MPMG.0400.15.000342-6.
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-mariana-conheca-os-bastidores-da-tragedia. Acesso em 10 nov. 2016.
Legislação: Brasil, PROJETO DE LEI Nº 2.946/2015 Dispõe sobre o Sistema Estadual
do Meio Ambiente – SISEMA – e dá outras providências.( http://www.almg.gov.br/)
RESUMO
As terras indígenas brasileiras protagonizam o cenário de intensas disputas sobre
a distribuição do poder no território nacional. O Supremo Tribunal não consegue
responder adequadamente as demandas envolvendo as questões indígenas, sobretudo,
pela dificuldade em se ter um olhar interdisciplinar. Ao mesmo tempo, a corte amplia
cada vez mais a sua esfera de competência com fenômeno da “judicialização” da política
e das relações sociais. Este quadro implica em discussões sobre conceitos basilares na
configuração do Estado brasileiro: a soberania e a territorialização. Trata-se de um
fenômeno complexo, pois, aponta na direção de novos papéis para os poderes estatais
relativizados no contexto geral da globalização. Por esta via, as técnicas pretendidas
no estudo partem de dois eixos conectados, a análise de jurisprudência e a revisão
bibliográfica para de delinear o quadro geral de análise pretendido na pesquisa. O
trabalho problematizará, assim, a alteridade e jusdiversidade, como desafio para se
pensar o Direito além das deficiências do monismo estatal.
ABSTRACT
Brazilian indigenous lands are the scene of intense disputes over the distribution of
power in the national territory. The Supreme Court can not adequately respond to
the demands of indigenous issues, especially because of the difficulty in having an
interdisciplinary look. At the same time, the court increasingly extends its sphere of
competence to the phenomenon of “judicialization” of politics and social relations.
This framework implies in discussions about basic concepts in the configuration of
the Brazilian state: sovereignty and territorialization. It is a complex phenomenon,
therefore, points in the direction of new roles for the state powers relativized in the
general context of globalization. In this way, the techniques sought in the study start
from two connected axes, the analysis of jurisprudence and the bibliographical review
to delineate the general framework of analysis intended in the research. The work will
thus problematize alterity and jus- diversity, as a challenge to think the law beyond the
deficiencies of state monism.
INTRODUÇÃO
A realidade é múltipla, variável e incontrolável... Entretanto, o pesquisador se esforça
para permear parte da trama que tece o mundo. É preciso puxar fio a fio para desvendar
o enredo, ainda que só seja possível entender apenas uma parte pelo olhar daquele
que investiga, por mais que se tenha alteridade na abertura cognitiva em relação ao
outro que faz parte da investigação. A complexidade do caminho significa reconhecer
a totalidade de significados como algo inalcançável e o esforço da pesquisa é dar conta
de desenvolver com acuidade um recorte bem delineado.
Analisar as decisões judiciais significa perceber como o Direito se comporta diante
das demandas que são levadas ao Judiciário. Se o mundo da vida tem múltiplas
manifestações, a jurisdição pode ser percebida sendo captada como parte desse cenário
que se abre como lente plúrima. Trata-se de uma difícil construção essa de buscar
explicar da realidade...
Interpretar significa, sobretudo, extrair sentido. Interpretar em sentido jurídico, como
na leitura corrente feita pelo Judiciário, significa dar sentido às normas jurídicas (em
sentido amplo) na solução dos litígios sociais postos. É apenas isso? Dizer o direito
não se esgota apenas em uma leitura legislativa, por mais que isso envolva questões
de subsunção e segurança jurídica. Villares aponta que os sentidos produzidos pelo
mesmo texto, e aqui está o trabalho do jurista, são dados tanto pelas realidades diversas
como pela cominação das diversas normas que compõem o ordenamento jurídico
(VILLARES, 2009, p. 18).
Muitas vezes, o Direito em sentido positivo não dá conta dos fatos que pretende
abarcar. Trata-se de uma tensão permanente que implica embates e contradições. E
ainda, o movimento de transformação que envolve a dinâmica da produção jurídica
mostra-se, em muitos casos, mais lento do que as demandas sociais que o cercam. Lobão
apresenta a ideia de que as culturas jurídico-econômico-políticas movimentam-se dos
centros de poder em direção às periferias, assumindo “diversas articulações do global
ao local” (LOBÃO, 2012, p. 71). Por isso, há fatores de legitimidade e de representação
que devem ser pensados na construção de um sentido jurídico-legislativo. Essa leitura
problematiza a questão da conjuntura maioria/minoria em torno da configuração
do poder. Pois, no embate do jogo político pautado em uma suposta democracia,
há que destacar os problemas oriundos de uma valorização excessiva de interesses
majoritários, quando estes aniquilam as necessidades das minorias que também
devem ser percebidas (na lógica do esquema cada cabeça, um voto). Assim, trata-se
de um esforço de valorização daquela mesma realidade múltipla em patamares de
dimensionar, no espaço público, os diversos grupos que compõem o espaço nacional,
tal qual o ocorre no Brasil.
O reconhecimento das especificidades de populações tradicionais envolve desse modo,
noções peculiares que não se amoldam nas configurações jurídicas formais e demanda
o direito à diferença, o que representa uma grande dificuldade no campo jurídico
estruturado. O fato de se tratar de minorias não pode significar o aniquilamento de
vontades pelo interesse de uma maioria que objetiva se expandir a passos largos.
É preciso identificar o esforço contra hegemônico de se fazer valer neste embate de
forças. A democracia não deve significar uma ferramenta de colonização, o que, na
realidade, muitas vezes ocorre.
Tais garantias trazidas pelo texto constitucional representam uma nova leitura
dos direitos reservados aos povos indígenas, nos fornecendo novos patamares
interpretativos. Esses dispositivos simbolizam o resultado da luta social travada
no reconhecimento indígena, mas, é necessário que represente, ao mesmo tempo,
a efetividade dessas conquistas. Até que ponto, na prática, esses direitos são
salvaguardados? Baniwa destaca que:
(...) Entre e letra das leis e a prática há uma enorme distância, ou lacunas
institucionais e conceituais intransponíveis que dificultam ou anulam as
possibilidades de maior efetividade desses direitos, conquistados com muita luta,
sofrimento, dor, sangue e morte de lideranças e povos indígenas inteiros. Por que
os direitos coletivos, os sistemas jurídicos, socioculturais, econômicos e políticos
dos povos indígenas continuam sendo desconsiderados, ignorados e negados?
Por que as organizações sociais tradicionais continuam sendo desqualificadas no
âmbito das relações políticas, jurídicas e administrativas com o Estado? Afinal
de contas, não foram os índios que a provaram e adotaram essas leis, mas os
próprios agentes e operadores do Estado brasileiro. (BANIWA, 2012, p. 216)
1 O sopesamento dessa balança é feito pelos movimentos indígenas na busca por reconhecimento dos direitos indígenas.
realizada a escolha de alguns casos, a nosso ver emblemáticos, para se traçar o adequado
delineamento da questão. Trazemos, então, quatro casos específicos a seguir.
2.I. Recurso extraordinário 351487-3 Roraima
O Recurso extraordinário 351487-3 Roraima, cuja relatoria competiu ao Ministro
Cesar Peluso - com sessão no dia 03/08/20062, é um dos mais importantes da esquisa
em matéria penal. Inicialmente, verifica-se a morosidade do Judiciário brasileiro
para apreciar as demandas judiciais, notadamente na esfera penal. O fato ocorreu no
ano 1993 e só foi julgado 13 anos depois.
O processo judicial foi considerado como a primeira condenação a partir da lei brasileira
sobre genocídio – Lei 2889/56 – conforme salientado em memorial. No entanto, não
houve grande discussão entre os ministros na configuração da decisão, pois somente
o relator proferiu voto mais extenso de modo escrito, sendo que os demais ministros o
acompanharam. Os debates restringiram-se a falas mais curtas para discutir os limites
desse primeiro voto.
O recurso extraordinário foi interposto com fundamento no art. 102, III, a, da CRFB/883,
contra acórdão do STJ que conheceu e proveu recurso especial do Ministério Público
Federal (MPF), sob o entendimento de ser o juiz singular (federal) competente para
processar e julgar os crimes pelos quais foram condenados os réus.
A denúncia apontou a prática de crime de genocídio (art. 1º, “a”, “b” e “c” da Lei
2889/56), em concurso material com os crimes de lavra garimpeira, dano
qualificado, ocultação de cadáver, contrabando e formação de quadrilha. Esse é o caso:
Em 1993, 22 garimpeiros foram acusados de executar 12 índios ianomâmis da
comunidade Haximu, na serra Parima (próxima à fronteira com a Venezuela),
Roraima. A chacina, conhecida como Massacre de Haximu, foi confirmada
como crime de genocídio pelo STF na semana passada (9), pondo final à uma
disputa jurídica que ameaçava pôr em liberdade os quatro únicos garimpeiros
que estão presos pelo crime. (SUZUKI, 2006, s/p.)
2 Ainda hoje, os ianomâmis dessa área ainda sofrem com as consequências do garimpo ilegal, ainda que em menores proporções
do que na época da chacina.
3 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...)
III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:
a) contrariar dispositivo desta Constituição; (...) BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF, 05 de
outubro de 1988.
se haveria a possibilidade de se ter por válidos atos jurídicos formados por particulares
com o Estado da Bahia.
O Governo do Estado da Bahia adotou, inclusive, uma postura contraditória, pois,
em 1926, antes do procedimento federal citado, determinou a delimitação da área de
ocupação dos indígenas. No entanto, como os índios já usufruíam da área
imemorialmente, tal domínio pertenceria à União. Ademais, mesmo o Estado tendo
reconhecido a ocupação indígena, posteriormente, veio a permitir a emissão de títulos
em favor dos não-indígenas.
A Funai sustentou que a lei baiana de 1926 operou a doação da área aos índios, ficando
ela posteriormente abrangida pela proteção da legislação federal, sendo assim, o Estado
da Bahia perdeu a possibilidade de dispor sobre as terras. Nessa linha de argumentação:
Daí ainda a ilegalidade e inconstitucionalidade dos atos do Governo do Estado
da Bahia, fazendo expedir, abusiva e desrespeitosamente, títulos definitivos
de propriedade em nome de invasores, posseiros, arrendatários e grileiros,
incidentes sobre a área da Reserva Indígena Caramuru-Catarina-Paraguaçu. Os
títulos expedidos pelo Estado seriam nulos de pleno direito, vez que decorrentes
de aquisição a non domino. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação cível
originária 312 Bahia. Tribunal Pleno. D. J. 21/03/2013. Acórdão p. 09)
10 Na aplicação para se configurar a terra indígena a partir do requisito da ocupação ao tempo da CRFB/88, no dia 05 de outubro de 1988.
11 O ministro Eros Grau apontou que não há títulos de domínio anterior à vigência da Constituição de 1967. Assim, vinte seis anos após o
ajuizamento da demanda, o que parecia complexo de início, restou-se simples na visão do relator: não há títulos de propriedade válidos na
área.
Como visto, o ministro Marco Aurélio foi o único a divergir sobre a resultado na Ação
Cível Originária (ACO) 312 – no sentido da improcedência da ação e pela validade dos
títulos de propriedade concedidos. Em seu entendimento, ao tempo de ajuizamento
da ação, a área reclamada para os índios só era intermitentemente ocupada por índios
12 A ministra Carmén Lúcia destacou que o ministro Eros Grau não esse apontamento, mas, que no final a conclusão é a mesma: 54.000
(cinquenta e quatro mil) hectares.
Na pesquisa conclusiva, serão discutidos um a um dos itens, bem como, os motivos que
justificaram a adoção das citadas condicionantes que foram aqui apenas enunciadas.
Apesar de estarem condensados ao final do voto do Ministro Menezes Direito, é
possível verificar a fundamentação anterior para subsidiar o resultado. Ademais,
foram ajustadas pelos votos dos Ministros Cesar Peluso e Gilmar Mendes para chegar
à redação final, confirmada pelos demais integrantes da Corte.
É preciso perquirir o entendimento revelado voto a voto por cada um dos ministros,
tecer em minúcias as bases argumentativas, apesar de termos feito isso de modo
generalizado nesse texto inicial. Então, reconhece-se a insuficiência da análise
generalista preliminar, sem maiores pormenores.
2.IV. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo 803462 Mato Grosso
do Sul
O caso diz respeito a agravo contra decisão que inadmitiu recurso extraordinário
interposto em ação declaratória, esta última proposta no Tribunal Federal da 3ª região,
no sentido de se discutir a natureza jurídica da área de terras situada no Município de
Aquidauana – Estado do Mato Grosso do Sul, denominada Fazenda Santa Bárbara – e
reclamada como integrante da Terra Indígena Limão Verde.
O Tribunal de origem deu provimento ao pedido nos seguintes termos:
(a) “ainda que os índios tenham perdido a posse por longos anos, têm indiscutível
direito de postular sua restituição, desde que ela decorra de Mtradicional
(antiga, imemorial) ocupação” (fl. 2824);
(b) “a perícia encontrou elementos materiais e imateriais que caracterizam
a área como de ocupação Terena, desde período anterior ao requerimento/
titulação dessas terras por particulares” (fl. 2830 - verso);
(c) inaplicável a Súmula 650/STF ao caso, visto que “não consta que a área
objeto desta ação seja área de extinto aldeamento indígena, ou seja, não consta
Assim, diante da decisão, foi interposto recurso extraordinário no STF, com base
no art. 102, III, a, da CRFB/88, com a alegação de que i. a posse indígena deve ser
verificada na data da promulgação da Carta Magna; ii. não houve renitente esbulho;
iii. a conclusão pela eventual prática de esbulho foi consubstanciada apenas com base
em três reclamações genéricas elaboradas pelos índios Terena em 1982, 1984 e 1989.
Os recorridos apresentaram contrarrazões com base em preliminares processuais
(ausência de prequestionamento, fundamentação deficiente, ofensa constitucional
reflexa, não demonstração de repercussão geral da matéria e necessidade de reexame
probatório) e, no mérito, pelo desprovimento do recurso.
A Procuradoria-Geral da República emitiu manifestação ministerial pelo desprovimento
do agravo, sob a alegação de que o provimento do recurso extraordinário demandaria
o revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos – com vedação pela Súmula
279/STF.
Nas decisões veiculadas no STF, muitas vezes, há um apego excessivo aos aspectos
processuais/procedimentais, inclusive, revelado pelo modo como apresentado as
petições das partes envolvidas no processo, na preocupação com os requisitos processuais
(como a existência de prequestionamento, repercussão geral e vedação ao reexame
probatório), do que com a situação concretamente levada ao Judiciário – na resolução
dos conflitos. A maior parte das questões são resolvidas por essa via e, somente em
um pequeno número de casos, quase considerados paradigmáticos, é que se adentra no
mérito da causa. Esse é um deles, em que o STF enfrentou o mérito da causa e suplantou
as preliminares processuais, e, nesse sentido, reafirmou o entendimento aplicado ao
julgar a Petição 3388, o caso Raposa Serra do Sol anteriormente tratado no texto.
Para tanto, o relator do processo, ministro Teori Zavascki, destacou que resta assentado
que o art. 231, §1º da CRFB/88 estabeleceu como marco temporal para reconhecimento
à demarcação a data da promulgação da Carta Constitucional. Então, seriam de
natureza indígena as “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” nesse marco
temporal, não se incluindo as terras ocupadas no passado nem as que venham a ser
ocupadas no futuro. Na argumentação, é retomado o julgamento anterior (Petição
3388), para se inferir:
I – o marco temporal da ocupação. Aqui, é preciso ver que a nossa Lei Maior
trabalhou com data certa: a data da promulgação dela própria (5 de outubro
de 1988) como insubstituível referencial para o reconhecimento, aos índios,
“dos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Terras que
tradicionalmente ocupam, atente-se, e não aquelas que venham a ocupar.
Tampouco as terras já ocupadas em outras épocas, mas sem continuidade
suficiente para alcançar o marco objetivo do dia 5 de outubro de 1988. Marco
objetivo que reflete o decidido propósito constitucional de colocar uma pá
de cal nas intermináveis discussões sobre qualquer outra referência temporal
O STF reconheceu a maciça violação aos direitos indígenas, e ainda considerou-os como
originários, no entanto, inferiu que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
não abrangem aquelas ocupadas no passado. Essa constatação ainda que os índios
tenham deixado a terra devido às pressões de fazendeiros (como no julgamento do
RMS 29.087, evidenciado no voto do ministro Gilmar Mendes). E o que se visualizou
no caso:
Com relação às terras da fazenda Santa Bárbara, podemos indicar que existiu
ocupação indígena (no sentido de uso para habitação) até o ano de 1953, quando
em meio ao processo de demarcação houve a expulsão dos índios da área, mas
a ocupação (como uso de recursos naturais e ambientais) permanece até os dias
de hoje, uma vez que os índios praticam a caça e coleta na serra.” (fls. 1100 TRF
3ª região) (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso
Extraordinário com Agravo 803462 Mato Grosso do Sul. Tribunal Pleno. D. J.
21/03/2013. Acórdão p. 14)
por circunstância de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória
jurisdicionalizada, o seguinte quadro:
(...) Os índios Terena pleitearam junto a órgãos públicos, desde o começo do
Século XX, a demarcação das terras do chamado Limão Verde, nas quais se inclui
a Fazenda Santa Bárbara. Destacou-se, nesse propósito, (a) a missiva enviada
em 1966 ao Serviço de Proteção ao Índio; (b) o requerimento apresentado
em 1970 por um vereador Terena à Câmara Municipal, cuja aprovação foi
comunicada ao Presidente da Funai, através de ofício, naquele mesmo ano; e (c)
cartas enviadas em 1982 e 1984, pelo Cacique Amâncio Gabriel, à Presidência
da Funai. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso
Extraordinário com Agravo 803462 Mato Grosso do Sul. Tribunal Pleno. D. J.
21/03/2013. Acórdão p.15)
O Tribunal entendeu, mais uma vez, em estreita via interpretativa, que tais reclamações
eram manifestações formais esparsas, realizadas ao longo de várias décadas,
não sendo aptas para o reconhecimento da situação de esbulho possessório atual,
quando muito o anseio de uma futura demarcação ou ocupação da área, pretensão
essa rechaçada pelo STF.
Caso houvesse uma controvérsia possessória judicializada, tal qual exposto no voto,
o entendimento poderia ser diferente. Essa leitura valoriza de sobremodo o papel do
Judiciário e esvazia o papel do Poder Executivo na execução das políticas públicas
direcionadas aos povos indígenas, em especial, à demarcação de terras. Em verdade,
tal atribuição é originariamente do Executivo, a quem cabe realizar a homologação
do procedimento demarcatório e, na prática, o que se visualiza é que o Judiciário,
cada vez mais, toma para si a tarefa de resolver essa questão. Por isso, é necessário
problematizar tal quadro e perceber de que modo o STF vem enfrentando a temática.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As terras indígenas brasileiras protagonizam o cenário de intensas disputas sobre a
distribuição do poder no território nacional. Os processos judiciais presentes no STF
implicam em discussões sobre conceitos basilares na configuração do Estado brasileiro:
a soberania e a territorialização, em um processo de demarcação que apresenta a
cultura como norte. Trata-se de um fenômeno complexo, pois, aponta na direção de
novos papéis para os poderes estatais relativizados no contexto geral da globalização.
O Judiciário tem dificuldade de lidar com as questões indígenas, por serem revestidas
de noções sociais e políticas, em perspectiva mais ampla. É necessária a articulação
com outros campos do conhecimento, por um olhar inter e multidisciplinar, no
sentindo de angariar esforços na compreensão das demandas envolvendo os povos
indígenas. Diante da complexidade em entender a cultura indígena e a construção de
seus sistemas normativos, é necessário o diálogo com outros saberes que permitam
“uma melhor compreensão do nosso lugar e do ‘outro’, da condição do homem e sua
relação entre si, com a natureza e o Estado” (MOREIRA, 2010, p. 8659). É o que se
demonstra:
Sempre que estejam em causa interesses de grupos étnicos, a aplicação do
Direito pelo juiz se sujeita ao mesmo postulado da inteligibilidade. A despeito
de já abandonada a orientação positivista e compreendidas as situações de fatos
e normas como esferas axiológicas que não se resolvem em um sistema lógico-
formal do tipo indutivo-dedutivo, vê-se o julgador diante de premissas, valores
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PACHECO DE OLIVEIRA, João. Indigenismo e Territorialização: poderes, rotinas e
saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998.
RESUMO
O estudo terá como objeto a análise da atuação da Rede de Acompanhamento
Socioambiental (REASA), criada por iniciativa do Ministério Público de Minas Gerais
(MPMG), em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e Defensoria Pública de
Minas Gerais (DPMG), com o escopo de propor uma atuação negociada dos conflitos
socioambientais que surgiram a partir do empreendimento minerário conhecido como
Projeto Minas-Rio. O trabalho identifica não só que a Rede de Acompanhamento
Socioambiental (REASA) se transforma em verdadeira arena de lutas e reivindicações
dos atingidos pelo empreendimento minerário, como também que a forma negocial de
tratamento dos conflitos proposta pelo Ministério Público não apresentou os resultados
esperados.
ABSTRACT
The purpose of this study is to analyze the performance of the Social Environmental
Monitoring Network, created by an initiative of the Public Prosecutor’s Office of
Minas Gerais, in partnership with the Federal Public Prosecutor’s Office and the
Public Defender’s Office of Minas Gerais, With the purpose of proposing a negotiated
action of the socio-environmental conflicts that arose from the mining project known
as the Minas-Rio Project. The work identifies not only that the Social Environmental
Monitoring Network is transformed into a real arena of struggles and claims of those
affected by the mining enterprise, but also that the negotiating way of dealing with
conflicts proposed by the Public Prosecution Service did not present the expected
results.
INTRODUÇÃO
O estudo terá como objeto a análise da atuação da Rede de Acompanhamento
Socioambiental (REASA), criada por iniciativa do Ministério Público de Minas Gerais
(MPMG), em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e Defensoria Pública de
Minas Gerais (DPMG), com o escopo de propor uma atuação negociada dos conflitos
socioambientais que surgiram a partir do empreendimento minerário conhecido como
Projeto Minas-Rio.
O Projeto Minas-Rio é um empreendimento minerário composto por três elementos: a
mina, de onde está sendo extraído o minério, situada no Município de Conceição do Mato
Dentro/MG; o mineroduto propriamente dito, com 525 km de extensão, que começa em
território mineiro e termina em território fluminense; e o porto de Açu, construído e
utilizado para viabilizar a exportação do produto, em São João da Barra/RJ.
Pretende-se abordar como a Rede de Acompanhamento Socioambiental (REASA)
organizou as comunidades atingidas a ponto de se transformar em uma verdadeira
arena de lutas e reivindicações dos atingidos pelo empreendimento minerário.
1. Da transformação dos problemas socioambientais em conflitos socioambientais pela
atuação da rede de acompanhamento socioambiental (REASA) No caso de Conceição
do Mato Dentro/MG
A Rede de Acompanhamento Socioambiental (REASA) foi criada por iniciativa do
Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), em parceria com o Ministério Público
Federal (MPF) e Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG), com o escopo de
propor uma solução negociada dos conflitos socioambientais que surgiram a partir do
empreendimento minerário conhecido como Projeto Minas-Rio.
Foram realizadas reuniões mensais itinerantes com comunidades rurais atingidas, com
espaço de interação de diferentes grupos e atores sociais, como atingidos, representantes
do empreendedor, empresa de assistência técnica e extensão rural do Estado de Minas
Gerais (EMATER), políticos locais, promotores, procuradores, defensores públicos,
sociedade civil, pesquisadores de universidades e demais interessados.
A REASA está ligada ao Ministério Público do Estado de Minas Gerais através da
Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Social (CIMOS).
Por oportuno, transcrevo a definição da CIMOS:
A Coordenadoria de Inclusão e Mobilização Sociais (CIMOS), órgão auxiliar
da atividade funcional do Ministério Público, vinculada à Procuradoria-Geral
de Justiça, tem por finalidade promover a interlocução e a articulação entre os
Promotores de Justiça, instituições públicas e a sociedade civil organizada, visando
garantir a efetivação da participação social nas políticas públicas e institucionais.
Para tanto, atua na mobilização de movimentos sociais, organizações não
governamentais (ONGs) e grupos em situação de vulnerabilidade, tais como
pessoas em situação de rua; catadores de materiais recicláveis; povos e
comunidades tradicionais; agricultores familiares; populações concentradas em
regiões com baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH); entre outros,
buscando estabelecer cooperações e parcerias que garantam, ampliem e efetivem
os direitos fundamentais, numa perspectiva de transformação social pelo
empoderamento. Nesse sentido, promove espaços dialógicos com os diversos
Quanto ao espaço físico das reuniões da REASA, tornou-se muito comum a utilização
de associações, escolas ou mesmo estruturas de madeira rústica com lonas.
Acerca da organização das reuniões e os assuntos debatidos, mostra-se interessante
apontar trechos da ata da 1º reunião pública da REASA, realizada em 11 de junho
de 2012, na Escola Municipal São José do Arruda, localizada às margens da MG-10,
na comunidade de São José do Arruda, zona rural do município de Alvorada de
Minas/MG, para se constatar como os diversos problemas socioambientais se tornam
complexos conflitos socioambientais com as diversas comunidades se organizando em
torno de lideranças e dos demais atores que participaram da REASA:
a Reasa foi criada como numa tentativa de ter a participação de todas as
comunidades atingidas, destacando a importância da organização dessas
comunidades. Lembrou que a criação da Reasa foi definida na Reunião Pública
de 17 maio, realizada no Jassém; que também ficou definida uma reunião
mensal, na segunda segunda-feira do mês.
(…)
A comunidade teceu vários comentários sobre o assunto, a saber: “a gente mora
na roça, aqui tem é poeira.”, “Tem que agir é no cara a cara, se não fica tudo
arquivado e nada se resolve.”
(…)
O Sr. Carlos Frederico de Abreu ponderou que divulgar o que está acontecendo
na região ajuda a ganhar a solidariedade de quem não conhece o drama. Lembrou
que a região viveu 200 anos de mineração de ouro e diamante, entretanto foi-se
o diamante, o ouro e as riquezas e ficaram para a região a miséria e os buracos
na terra. O Sr. Benigno Carvalho falou dos problemas da estrada do Serro (MG-
10), com congestionamento e transito intenso de carretas, que não respeitam os
carros da comunidade, e causam barro e atoleiro na época das chuvas e poeira
na época da seca. A Sra. Dalva Maria dos Santos complementou, dizendo que
a umectação das vias não é suficiente e que o serviço não ocorre nos finas de
semana. A Sra. Flavia Lílian afirmou que a estrada não é compatível com o
trânsito trazido pela empresa. O Sr. Sandro, Secretário de Meio Ambiente de
Conceição do Mato Dentro, sugeriu o estabelecimento de uma rede de difusão
das informações da internet e a criação de uma rede social de monitoramento
dos programas ambientais da empresa e das condicionantes do licenciamento.
O Sr. Leandro Aguiar, Secretário de Meio Ambiente de Alvorada de Minas,
complementou sugerindo que as secretarias municipais apóiem a construção
dessas redes. O Sr. Élcio Pacheco disse que a comunidade tem que agir frente
à empresa que não respeita a comunidade. Deu o exemplo da comunidade do
Gondó, que só foi respeitada pela empresa e teve seus mata-burros consertados
depois que bloqueou a estrada. Lembrou que a Desobediência Civil é um direito
das comunidades agredidas (aplausos). O
Sr. José Pepino falou sobre a poluição das águas causada pela empresa, reclamando
que a poluição inviabiliza o cultivo das hortas e a criação de animais. Disse que
a água não era poluída antes da chegada da Anglo. Asseverou que continuam
cristalinos outros córregos da região em que a empresa não atua nas cabeceiras.
Falou que a Anglo promete e não cumpre. Relatou que a empresa ofereceu-lhe
um terreno com tantas pedras que daria para criar apenas lagartixas ( risos e
aplausos). Enfatizou que deseja apenas um terreno onde possa plantar sua horta
e irrigar com água sem poluição, criar seus animais e levar a vida como sempre
levou. Neste momento passaram duas carretas de grande porte em direção à
a) aprovação da última ata; b) discussão das questões mais amplas e das questões
estruturais c) manifestação de integrantes da comunidade local e outros que
desejarem, inclusive com informes; d) fala do representante da empresa de acordo
com a pauta já definida e com as regras já estabelecidas na reunião anterior (15
minutos para manifestação; compromisso em executar o que for dito dentro do
respectivo prazo firmado e a réplica da comunidade, sem tréplica da empresa); e)
definição do local da pauta e do local da próxima reunião.
1. Introdução
No Brasil, segundo o IBGE, toda sede de município é considerada cidade e a sede de
distrito é classificada como vila. São cidades e vilas, muitas delas com características
rurais, classificadas, entretanto, como espaços urbanos, do ponto de vista legal e
administrativo, como definiu o Decreto Lei 311, de 1938, instituído durante a vigência
do Estado Novo. Segundo os estudos de Monastirsky (2009), a discussão a respeito da
definição de distritos municipais ainda não está consolidada, pois há pouca produção
científica sobre o tema.
No Brasil, basicamente, o estudo sobre os distritos é bem restrito, ficando, apenas,
no campo da geografia urbana e agrária. Mas, embora a definição não esteja bem
consolidada, pode-se compreender esse espaço a partir da definição e da relação
dialética do rural e do urbano. Já Bauchrowtiz (2009) analisa os distritos na atualidade
como sendo uma divisão territorial, com características predominantemente rurais,
mas com indícios de urbanidade, pois a população rural do distrito passa a conviver
com alguns serviços e produtos da vida urbana.
Mas, para entender esse processo de avanço urbano nas áreas rurais faz-se necessário
saber como se estabelece a diferenciação entre o campo e a cidade e entre rural e urbano.
Na abordagem clássica, o rural é definido como um espaço associado às atividades que
mantém relações diretas com a natureza. Quanto à forma, sua organização apresenta
a dispersão da população. O urbano, ao contrário, se caracteriza por uma complexa
organização, tendo na concentração populacional sua principal marca. É visto, ainda,
como locus da divisão do trabalho e da concentração do capital.
Historicamente os pares, rural-urbano e campo-cidade não podem ser compreendidos
separadamente, já que não existiriam isoladamente, pois embora “apresentem um
conteúdo social e histórico específico, só podem ser compreendidos enquanto uma
totalidade concreta do modo de produção capitalista” (Souza, 2010, p. 195 apud
Lopes; Wendel, 2010). Harvey (1980) pautado na dialética marxista discute a teoria do
excedente obtido na economia agrária para explicar os pressupostos da formação da
cidade e do urbano como lócus da acumulação.
Campo e cidade são formas concretas, materializam-se e compõem o ambiente
produzido pelo homem; já o urbano e o rural são representações sociais, conteúdos
das práticas de cada sujeito, cada instituição, cada agente na sociedade (Biazzo, 2009).
No Brasil, de uma sociedade essencialmente rural nos anos 1950, teve seu perfil
demográfico invertido e, na atualidade, segundo o censo de 2010 a sociedade é
predominantemente urbana. Essa mudança do perfil demográfico brasileiro foi o
resultado do intenso processo de migração campo-cidade que levou parcela expressiva
da população para os centros urbanos e provocou a redução significativa da população
rural. Como resultado desse intenso processo de migração campo-cidade, houve o
crescimento desordenado das grandes cidades e a formação de extensas periferias
urbanas. Muitas dessas periferias têm se expandido, mesmo que de forma irregular,
em áreas que oficialmente ainda são definidas como rurais (CAIADO; SANTOS, 2003).
A partir da década de 1970 até meados de 1980, a discussão centro e periferia aplicada
à escala intra-urbana marcaram de forma significativa a produção acadêmica sobre a
temática urbana. Entre meados da década de 1980, e o início da década de 1990, surgiu
uma nova abordagem que podia ser observada como nova tendência nas periferias
urbanas, especialmente nas áreas metropolitanas, a de uma “heterogeneização sócio-
espacial da periferia”, ou seja, a periferia que antes dava uma visão de ser um local
para a população de baixa renda, ganha agora uma nova visão, pois a classe média
passa a se instalar também nessas regiões.
A partir do século XXI, novas idéias a respeito das periferias estariam surgindo, visto
a implantação de condomínios fechados destinados às classes com poder aquisitivo
mais elevado, uma nova noção de periferia estaria começando a ser aceita, Segundo
Santos (2007), a periferia passa a ser entendida não só como lócus da segregação
imposta às classes pobres, mas também da auto-segregação de classes abastadas em
‘fuga’ do núcleo metropolitano devido aos fatores de aglomeração. Desta forma ao
mesmo tempo, cria-se uma expansão da periferia, que avança em direção a área rural,
provocando sérios impactos na paisagem e no modo de viver.
2. Breve Histórico do Processo da Expansão Urbana de Campos dos Goytacazes
A cidade de Campos dos Goytacazes, historicamente, é cercada por canaviais e
usinas de açúcar, devido à sua principal atividade econômica ser a agroindústria
sucroalcooleira. Desta forma a expansão urbana da cidade ocorreu a partir da
“liberação” de antigas propriedades rurais, transformando gradativamente os usos e
a paisagem das áreas do seu entorno. A partir da segunda metade do século XX, com
a decadência da atividade sucroalcooleira, seguida da descoberta e exploração de
petróleo e a recente instalação do Complexo Logístico Industrial do Porto do Açu e
o Complexo da Barra do Furado, a cidade se expande transformando as terras rurais
contíguas à periferia, em solo urbano.
Campos dos Goytacazes é uma cidade de porte médio, e sempre atuou na região
como um grande centro para a região norte e noroeste fluminense, como é a região
metropolitana do Rio de Janeiro. Foi um grande centro produtor de açúcar e álcool,
mas na atualidade, devido a sua grande estrutura de serviços, a cidade recebe esses
imigrantes que vem para trabalhar nos grandes investimentos industriais e empresariais.
Desde então, existe a necessidade de expandir a malha urbana adentrando nas áreas
rurais, para atender a demanda do mercado imobiliário e seus grandes investimentos.
A expansão urbana da cidade de Campos dos Goytacazes ocorre segundo Faria
(2000; 2005), no sentido centro periferia. O Plano Urbanístico de 1944, concebido pela
empresa Coimbra Bueno no governo municipal de Salo Brand, orientou o sentido
de expansão da cidade em direção às áreas periféricas e definiu o centro como zona
comercial, financeira e administrativa e como o “centro histórico”. O plano consolidou
a importância da área central e adjacências e suas representações de área privilegiada
e hierarquizada, impulsionando o processo de divisão e diferenciação dos espaços, e,
conseqüentemente, de segregação urbana (Faria 2001).
Com o Golpe Militar (1964) iniciou-se um processo de “modernização tecnocrática”
difundida pelos diversos setores do regime militar, os quais repercutiram sobre o
espaço urbano, culminando com a proposta de elaboração de planos urbanísticos e
diretrizes técnicas para normatizar as condutas na ocupação do espaço das cidades
brasileiras (Moreira, 2010).
Neste contexto, em 1978, uma equipe técnica juntamente com o Prefeito e arquiteto
Raul David Linhares elaboram o Plano de Desenvolvimento Físico-Territorial Urbano
de Campos (PDUC)1, que foi o instrumento urbanístico que impulsionou o processo de
expansão urbana sobre as áreas rurais, ao publicar leis de mudanças de uso do solo e de
conversão de terras rurais em urbanas, constituindo-se também, em uma ferramenta
importante para entender a relação que se coloca entre o Estado e os proprietários de
terras do entorno da cidade (Zacchi, 2012).
Em 1991, de acordo com a Lei nº 5.251, de 27/12/1991, institui-se o Plano Diretor
do Município de Campos dos Goytacazes, na gestão do prefeito Anthony Garotinho.
O processo de expansão urbana da cidade de Campos dos Goytacazes, a partir das
diretrizes previstas no art. 14º, aponta três vetores como áreas de expansão urbana.
Como primeiro vetor, temos os núcleos de Barra do Furado, Cabo de São Tomé e Açú,
cujos núcleos se localizam na Baixada Campista e em seu entorno. Outro seguimento
de expansão é ao longo da orla da Lagoa de Cima, sentido BR-101Sul e o último em
direção a Travessão BR-101 Norte.
Já no Plano Diretor do Município de Campos dos Goytacazes, de 2008, elaborado
segundo as exigências do Ministério das Cidades, são definidas novas áreas de
expansão, tendo como base a lei de uso e ocupação do solo e de zoneamento do
PDUC (1978). Este plano regula, através dos instrumentos definidos no Estatuto da
Cidade, a ocupação dos espaços vazios para que exerçam a função social, criando
áreas especiais de interesse social (AEIS) destinadas à produção de novas moradias
populares. Porém, para Conti (2013) a falta de vontade política na aplicação dos
instrumentos escolhidos, demonstra a existência de um Estado omisso, em relação à
aplicação das normas aos proprietários de vazios urbanos, e desidiosos, em relação
à cidadania de sua população, adotando políticas pontuais que não integram os
espaços vazios ao contexto social e contribuindo para a manutenção de processos de
periferização da população de baixa renda.
Desta forma podemos dizer que a expansão de Campos dos Goytacazes, nas
últimas décadas, se assemelha ao descrito por Sposito (2010): pela associação entre
proprietários de terras localizadas no entorno das cidades e incorporadores urbanos,
os quais elaboram o projeto de parcelamento das terras localizadas no limite rural/
urbano, conforme demonstram Zacchi (2012; Zacchi, etall. 2013).
À essa periferia, o poder público municipal de Campos dos Goytacazes, para o bem
e para o mal, acrescenta, a partir de 2010, condomínios habitacionais do Morar Feliz
que, inclusive, já apresentam vários problemas de infraestrutura e violência (Faria e
Pohlmann, 2013; Arruda etall. 2014). A partir de 2014 esses conjuntos são expandidos
para os distritos e localidades rurais do município, seguindo o mesmo padrão de
construção, mas sendo edificados em áreas rurais. Segundo Alentejano (2003), devido
às mazelas das grandes cidades, cada vez mais marcadas pela violência, a miséria
e a poluição, na atualidade, presenciamos discursos que ressaltam a qualidade de
vida possível, num meio rural dotado de infraestrutura básica, mas com preservação
1 O PDUC (1979) foi desenvolvido através do convênio FNDU nº 13/78, celebrado entre a Comissão Nacional de Regiões
Metropolitanas e Políticas Urbanas – CNPU, outros órgãos do governo federal, o governo do Estado do Rio de Janeiro, através da
Secretária de Planejamento e Coordenação Geral da Governadoria do Estado. O referido convênio atribui ao Município de Campos
a execução do PDUC com recursos próprios e do Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano. Assim, a prefeitura, através da
Fundação Norte Fluminense de Desenvolvimento Regional – FUNDENOR – contratou e realizou os trabalhos com bases nos termos
de referência elaborados pela Secretaria de Planejamento e Coordenação Geral da Governadoria do Estado – SECPLAN. (O plano
foi atualizado em 2002)
ambiental e da boa qualidade de vida, recuperando, de certa forma, uma visão idílica
perdida do rural.
No entanto, não há acordo acerca do significado desta revalorização do rural. Para
uns, ela deve, necessariamente, implicar na revisão completa e absoluta do modelo
de desenvolvimento agropecuário, historicamente dominante no país, associando-se,
portanto, à reforma da estrutura fundiária e da política agrícola que, historicamente,
garantiram o domínio do grande capital e da grande propriedade sobre o meio
rural brasileiro. Para outros, ela é mais uma possibilidade de aproveitamento das
potencialidades deste modelo, ou seja, uma espécie de “valorização conservadora do
rural” à semelhança da modernização conservadora da agricultura brasileira dos anos
1960/1970, pois, ao contrário de estar apoiada na reforma agrária, permitiria nova
sobrevida para o latifúndio. A incorporação do turismo rural pelo agronegócio pode
ser apontada como uma destas potencialidades, expressa em alguns empreendimentos
como os hotéis-fazenda e os museus-fazenda. A especulação imobiliária, pelo interesse
de grandes áreas de terra barata para seus grandes empreendimentos imobiliários,
com condomínios grandes e luxuosos, proporciona bem viver para seus moradores,
uma vida sem as mazelas da metrópole ou da cidade média.
3. A Expansão Imobiliária de Campos dos Goytacazes: novos rumos
Campos dos Goytacazes, cidade de porte médio, que sempre atuou como um grande
centro para a região norte e noroeste fluminense, assim como a cidade do Rio é a
região metropolitana do Rio de Janeiro. Campos dos Goytacazes teve como principal
atividade econômica a agroindústria sucroalcooleira que a partir da segunda metade
do século XX entra em profunda crise e decadência, seguida da descoberta e exploração
de petróleo e a recente instalação do Complexo Logístico Industrial do Porto do Açu e
o Complexo da Barra do Furado, a cidade se expande transformando as terras rurais
contíguas à periferia, em solo urbano.
O crescimento imobiliário fora do eixo central é um fenômeno que vem acontecendo
em Campos, em direção às áreas de canaviais, a partir da segunda metade da década
de 90, devido à grande falência da atividade sucroalcooleira e à intensa atividade
petrolífera. Apesar do fato de que as instalações da Petrobras e das empresas Off-
shore terem se estabelecido na cidade de Macaé, a cidade de Campos, por possuir
uma grande estrutura de serviços na região Norte e Noroeste do Estado do Rio de
Janeiro, como hospitais públicos, particulares e conveniados; shoppings centers; um
polo universitário, possui constantes investimentos em infraestrutura. Desta forma se
inicia o crescimento dos investimentos imobiliários em direção a essa área rural, no
entorno da malha urbana.
Entre 2008 e 2010 esse crescimento imobiliário ganhou força, tanto que o município de
Campos dos Goytacazes ocupa a 43ª posição no ranking entre as 100 melhores cidades
do país para investir em imóveis, segundo a matéria publicada na Revista Infomoney
de referido mês. Em relação ao Estado do Rio de Janeiro, a mesma revista informa na
mesma matéria que este município, ocupa a 5ª posição entre as melhores cidades para
se investir em imóveis.
Para atender aos interesses dos investimentos empresariais, a cidade, como aborda
Vainer (2012, p.78), é uma mercadoria e seu processo de planejamento entra num
2 Empresa mineira – MRV, que se instalou n a cidade de Campos dos Goytacazes em 2011.
tem área edificada de 43,08 m², em lote de 140 m². Cada casa possui dois quartos,
uma sala, um banheiro e uma cozinha. Além de área de serviço; não possuem muro.
Esse modelo de moradia rompe com a tipologia das moradias que observamos nas
localidades rurais dos distritos.
4. Resultados Alcançados
4.1. Os Conflitos Sociais e os Impactos Ambientais presentes nos conjuntos do PMF
e no seu entorno.
Os conjuntos do PMF, tanto na periferia urbana quanto nas localidades rurais, trazem
conflitos sociais e ambientais. Segundo Acselrad (2009), o crescimento urbano não é
acompanhado por investimentos em infraestrutura e sim pela falta de investimentos e
manutenção dos equipamentos urbanos para a cidade, como um todo. Na realidade,
temos uma desigualdade social no acesso aos serviços urbanos, que acabam
demonstrando os conflitos que essa desigualdade vai gerar no espaço urbano e, agora,
no caso de Campos dos Goytacazes, observamos isso no espaço rural.
Os problemas ambientais e sociais são diversos vão desde a questão de muitos estarem
totalmente isolados no meio de canaviais, perto de canais e em localidade rural bem
distante da sede do distrito e mais distante da área central da cidade, problemas de
infraestrutura até o controle do lugar pelo tráfico de drogas que demarca e domina
tanto a área do conjunto como a localidade rural em si com barricadas, olheiros,
cultivando a sensação de medo e terror nas pessoas.
O problema da mobilidade é muito sério em todos os conjuntos entregues, tanto na
periferia urbana quanto nas localidades rurais. Às vezes, os moradores têm que andar
uns 500 m até chegar a um ponto de ônibus, que passa em um intervalo de duas ou
de três horas. No domingo, principalmente nas localidades rurais, a frota é retirada
de circulação, enquanto na periferia urbana esta é reduzida. Tudo no entorno é muito
caro e no conjunto não pode ter comércio, mas os moradores acabam transformando a
sala em armazém, quitanda, bar ou, então, fazem um puxadinho na frente da moradia.
Mas, mesmo assim, muitos moradores preferem comprar no centro, no mercado
municipal, devido aos preços serem mais baratos lá.
O programa habitacional é mal visto e repudiado por grande parte dos moradores dos
bairros, assim como pela população das localidades, gerando um conflito eterno entre a
população local e os moradores dos conjuntos. Isso se deve muito à presença e ação do
tráfico de drogas. Além disso, o bairro tem carência de serviços de infraestrutura básica
como, por exemplo, abastecimento de água e esgoto, asfaltamento, etc., “conquistas”
essas já implementadas na área do conjunto habitacional, gerando conflitos, pois estes
serviços já eram reivindicados pelos moradores do bairro e das localidades, não tendo
sido atendidos pela prefeitura.
Figura 4. Barricadas feitas pelo tráfico nas ruas do conjunto do PMF na localidade rural
de Ponta Grossa dos Fidalgos. (POHLMANN, out/2016 LEEA/CCH/UENF
Indicamos que essas relações podem, ainda, se tornar problemáticas, pois além de
impactarem a paisagem e o modo de vida, os conjuntos do PMF estariam levando para
os distritos rurais as mazelas da cidade como segregação, tráfico de drogas, violência
e problemas ambientais.
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RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo estudar o uso aparentemente sustentável do
fogo na comunidade Kayapó Mẽtyktire da Terra Indígena Capoto Jarina, Mato Grosso,
Brasil. A pesquisa qualitativa se desenvolverá através do método etnográfico conduzido
ora pela antropologia “interpretativista” de Clifford Geertz ora pela antropologia
“estrutural histórica” de Marshall Sahlins. Espera-se que a relação simbólica entre
estrutura convencional, estrutura de conjuntura e evento possa ser evidenciada não
somente no cotidiano, durante narrativas e práticas correlatas, mas também durante
a luta socioambiental pela defesa do território e do planeta, aqui compreendida por
Enrique Leff como “movimento de protesto”.
ABSTRACT
The present work aims to study the use apparently sustainable fire in the Kayapo
Mẽtyktire community of the Capoto Jarina Indigenous Land, Mato Grosso, Brazil. The
qualitative research will be developed through the ethnographic method led either by
the “interpretativist” anthropology of Clifford Geertz or by the “historical structural”
anthropology of Marshall Sahlins. It is hoped that the symbolic relationship between
conventional structure, conjunctural structure and event can be evidenced not only
in daily life, during narratives and related practices, but also during the socio-
environmental struggle for the defense of the territory and the planet, here understood
by Enrique Leff as a “protest movement”.
1 INTRODUÇÃO
Estudos contemporâneos sugerem que o momento da transformação que deu origem ao
gênero Homo, uma das grandes transições na história da vida, brotou do controle do fogo
e da relação simbólica “entre natureza e cultura e entre cru e cozido” (LÉVI-STRAUSS,
2010, p. 383). O cozimento aumentou o valor da comida, despertou a humanidade para
novas dimensões. “Ele mudou nossos corpos, nosso cérebro, nosso uso do tempo e
nossas vidas sociais. Transformou-nos em consumidores de energia externa e assim
criou um organismo com uma nova relação com a natureza” (WRANGHAM, 2010, p.
07). Como nenhuma outra criatura deste planeta, conseguimos converter a nosso favor
um fenômeno natural e assim prevalecer sobre as demais espécies aqui estabelecidas,
tornando-nos predadores por excelência - inclusive de nós mesmos.
Não é de hoje que a predação com fogo interfere no modo de vida dos povos indígenas.
Aqui no Brasil, desde o início da colonização europeia, ele tem precedido ações
antrópicas de ocupação e exploração territorial e descaminho de riquezas,1 e agora, sob a
égide positivista do progresso e do mercado de capital, avança em direção a Amazônia,
confinando a sociobiodiversidade em espaços insulares cada vez menores. Infelizmente,
o preconceito, a apatia política, a resignação social e o descaso de autoridades em
relação ao fogo, enquanto tipo penal qualificado, e ao indígena, enquanto portador do
direito de ser diferente, têm gerado graves impactos de ordem (socio) ambiental, cujas
consequências podemos abaixo observar:
No caso do Brasil, a principal fonte de emissão de CO2 é a destruição da
vegetação natural, com destaque para o desmatamento na Amazônia e as
queimadas no cerrado, englobadas na atividade ‘mudança no uso da terra e
florestas’. Esta atividade responde por mais de 75% das emissões brasileiras de
CO2, sendo a responsável por colocar o Brasil entre os dez maiores emissores de
gases de efeito estufa para a atmosfera. As queimadas constituem, também, um
sério problema de saúde pública, por comprometerem severamente a qualidade
do ar durante a estação seca em boa parte do Norte e Centro-Oeste do País, com
reflexos no número de internações por problemas respiratórios, especialmente
de crianças e idosos
[...]. As UCs [Unidades de Conservação] e TIs [Terras Indígenas] também sofrem
com o problema das queimadas, embora em menor intensidade que as áreas no
seu entorno. [...] O fogo em UCs e TIs quase sempre se origina em propriedades
rurais fora de seus limites, atingindo, principalmente, as bordas daquelas áreas
(IBGE, 2012, p. 74).
A presente citação traz à tona a triste realidade do país que, esculpida pela epistemologia
materialista e inspirada na visão mecanicista cartesiana, insiste em não dialogar com a
diversidade, desrespeitar direitos humanos e descartar saberes seculares. É nesse campo
de pouca solidariedade e profundas demarcações teóricas que o projeto em epígrafe ora
se inscreve. Pretende-se aqui descrever, interpretar e compreender, através do “ponto
de vista dos nativos” (GEERTZ, 1997, p. 85-107), o uso do fogo na bacia do Xingu e sua
ação simbólica constituída “por um passado inescapável e por um futuro irredutível”
(SAHLINS, 2003, p. 189), e apresentar, por derradeiro, “uma outra concepção de meio
1 Exemplo dessa interferência ardilosa, foi a expedição contra os aruaques em 1664, que, segundo Annaes Berredo (apud Hemming,
1995, p.591), “culminou no incêndio de trezentas aldeias, além da morte de setecentos homens e quatrocentos cativos”. Recentemente,
a Terra Indígena Araribóia foi atingida por um incêndio criminoso onde consumiu 45% do seu território. Disponível em:<http://
g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2015/10/incendio-ja-consumiu-45-dareserva-arariboia-no-maranhao-diz-ibama.html>.
Acesso em: 22 nov. 2016.
Indígena Capoto Jarina (quer pela monocultura de grãos quer pela pecuária extensiva
praticadas no seu entorno), que de 1998 a 2009 acumulou apenas 389 focos de calor,
enquanto municípios contíguos como Peixoto de Azevedo, São José do Xingu e Santa
Cruz do Xingu, no Mato Grosso, acumularam 11.976. Com efeito, sabe-se que para o
latifundiário o fogo desempenha a função de expandir sua área agricultável e assim
produzir commodities para alimentar o mercado; mas para o Kayapó, qual a finalidade
do fogo? O que o leva a agir diferente tendo em mãos a mesma ferramenta? Diante do
exposto, pergunta-se: Qual o significado do fogo para o Mẽbêngôkre Mẽtyktire?
Nota-se no cotidiano Mẽtyktire uma relação aparentemente indissociável entre o uso do
fogo e as narrativas míticas sobre esse fenômeno. Banner (1952), Métraux (1960), Lévi-
Strauss (1964) e Lukesch (1976) apresentam quatro versões sobre a origem e o uso do
fogo entre os Mẽbêngôkre. Em três delas ele é um bem precioso, uma ferramenta geradora
de artefatos, atos simbólicos e vínculos sociais, uma dádiva de outros seres agora não
humanos, demiurgos que em outras épocas eram portadores de humanidades. Em
uma outra é roubado
por um ser maléfico que provoca um incêndio no mundo e faz perecer toda humanidade
- exceto a família de um poderoso xamã. Com efeito, as três primeiras evidenciam
técnicas preciosas de manejo e normas de conduta social, e a última, dentro de uma
“estrutura de conjuntura”4 mais contemporânea, gera topônimos de responsabilidade
socioambiental e preocupação constante com esse fenômeno físico-químico-simbólico,
quer dentro do seu território quer para além dele, pois para o não índio que está no
entorno a serviço do agro(negócio), o fogo é ferramenta de baixo custo com capacidade
de desflorestar a terra e empobrecê-la com a paisagem homogênea da pecuária extensiva
e o vazio ontológico dos transgênicos. Pois bem, é justamente esse modo de (vi) ver e
(con) viver, essa atitude de predar sem (de) predar, desenvolvida pelo Mẽtyktire ao longo
de sua história, que motiva esta pesquisa a seguir seu curso.
O objetivo é investigar como as narrativas Mẽtyktire sobre a origem e o uso do fogo
incidem sobre as práticas de manejo e de intervenção socioambiental desse subgrupo
Kayapó, quer no cotidiano da Terra Indígena Capoto Jarina quer no seu entorno
próximo ou distante. Espera-se elucidar a questão como um todo complexo, saltando
“continuamente de uma visão da totalidade através das várias partes que a compõem,
para uma visão das partes através da totalidade que é a causa de sua existência, e
vice-versa” (GEERTZ, 1997, p. 105). O problema será referenciado empiricamente pela
pesquisa de campo, por meio de uma descrição densa, de referência simbólica, cotejada
pela literatura especializada e a narrativa científica, “onde os fatores biológicos,
psicológicos, sociológicos e culturais serão aqui tratados como variáveis dentro de um
sistema unitário de análise” (GEERTZ, 2008, p. 32); e cada evento específico, “como uma
síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia”
(Sahlins 2003, p. 180). A aldeia Piaraçú,5 no entroncamento entre o rio Xingu e a rodovia
MT 322, bem como as propriedades rurais do seu entorno, em sua totalidade latifúndios
a perder de vista, serão os lócus da observação etnográfica.
4 “[...] ‘estrutura de conjuntura: um conjunto de relações históricas que, enquanto reproduzem as categorias culturais, lhes dão
novos valores retirados do contexto pragmático” (SAHLINS, 2003, p. 160).
5 Piaraçú é uma aldeia indígena habitada pelo povo Kayapó Mẽtyktire. Criada no começo da década de 1980 como um Posto
Indígena de Vigilância passou, com o tempo e a aquisição de novos moradores, a ser uma aldeia indígena. Localiza-se logo após
a travessia do rio Xingu, via balsa, na Terra Indígena Capoto Jarina. É ladeada pela MT-322 que a atravessa e faz divisa entre a TI
mencionada e a TI Parque do Xingu.
2 METODOLOGIA
A pesquisa qualitativa proposta pelo projeto em epígrafe buscará investigar,
minuciosamente, o fenômeno do fogo entre os Mẽbêngôkre Mẽtyktire e desenvolver-se-á
através do método etnográfico, conduzido, ora pela antropologia “interpretativista”
de Geertz (2008, p.15-17), definida como um esforço intelectual para a elaboração de
uma “descrição densa”, pormenorizada, “microscópica”, que busca desvendar, com
riquezas de detalhes, as diversas “teias de significados” de uma determinada cultura,
compreendendo experiências individuais que podem ser cientificamente generalizadas
na forma de relações simbólicas de ordem cultural; ora pela antropologia “estrutural
histórica” de Sahlins (2003, p.7-93), definida como um ordenamento cultural da
história de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os “esquemas de
significação das coisas”, sendo seu contrário também verdadeiro: “esquemas culturais
são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são
reavaliados quando realizados na prática”. Com efeito, a síntese desses contrários
desdobra-se nas ações criativas dos sujeitos envolvidos, fazendo da estrutura um
“objeto histórico”.
Segundo Malinowski, a base do trabalho etnográfico é viver, efetivamente, entre os
nativos, pois, dessa maneira, é possível uma maior familiaridade com o cotidiano do
observado. O autor também afirma a importância dos teóricos levados a campo, pois
“o etnógrafo tem de inspirar-se nos resultados mais recentes da pesquisa científica,
nos seus princípios e objetivos” (MALINOWSKI, 1978, p. 21). Numa pesquisa
etnográfica, teoria e prática são inseparáveis, pois a teoria perpassa todo o estudo,
desde a preparação, coleta dos dados até a análise propriamente dita. As fontes de
informação serão documentais, incluindo a bibliografia, documentos oficiais, mapas e
outros; depoimentais, através de entrevistas com membros da comunidade indígena e
iconográficas, através de fotografias e filmagens.
Os dados serão coletados através da “observação participante” (MALINOWSKI, 1978, p.
21) com a permanência em campo por um período de três meses, conforme cronograma
anexo, o suficiente para a obtenção dos dados evidenciados pelo fogo. Tal estratégia
permitirá a este pesquisador viver entre o grupo e participar da vida local, com o
objetivo de obter informações sobre a realidade material e simbólica da comunidade
que respondam às questões que motivam esta pesquisa. Nessa etapa, e já descrevendo
a principal medida para a minimização de riscos envolvendo esta pesquisa, “deve-
se observar e saber que também está sendo observado e que o simples fato de estar
presente pode alterar a rotina do grupo ou o desenrolar de um ritual” (DUARTE;
BARROS, 2006, p. 103).
O principal instrumento de trabalho será o próprio pesquisador e seus sentidos (nada
de planilhas e softwares ultrassofisticados; a relação será objetivada em humanidades
e racionalidades livres do demagogismo homogeneizador cartesiano), pois os fatos
mostram-se primeiramente à pessoa, para depois serem descritos metodologicamente.
Para a coleta dos dados será utilizado o tradicional caderno de campo, que “funcionará
como um registro descritivo de tudo o que ele vir a presenciar” (DUARTE; BARROS,
2006, p. 101), fotografias e vídeos com imagens e depoimentos. Pretende-se, ainda,
realizar entrevistas abertas, semiestruturadas, com uma amostra significativa da
população, cujos critérios de inclusão e exclusão dos participantes serão previamente
definidos pelas lideranças locais através de reuniões que mostrem a intenção deste
projeto enquanto agente propagador de alteridades e pontos de vista. Com efeito, o
mesmo procedimento participativo será utilizado para a divulgação dos resultados
obtidos.
Trabalho de campo realizado, buscar-se-á, em seguida, interpretar as narrativas sobre
a origem e o uso do fogo através da análise dos processos simbólicos nelas contidas
e assim desvelar o todo semiótico (e complexo) existente em cada um deles, na forma
de estrutura prescrita. Na sequência, sem esquecer que toda “estrutura possui uma
diacronia interna” (SAHLINS, 2003, p.16), averiguar-se-á o movimento objetivado pelo
fogo através da relação entre “estrutura e evento”, interpondo um terceiro termo: “a
síntese situacional dos dois em uma ‘estrutura de conjuntura’” (SAHLINS, 2003, p.15),
que nada mais é que a realização prática das categorias culturais em um contexto
histórico específico, elegendo-se, para isso, três eventos relevantes, a saber: a tomada
da balsa do Xingu, em 1984; o incêndio florestal de Roraima, em 1998; e os movimentos
de protesto (como um todo), a partir de Altamira, em 1989.
3. DESENVOLVIMENTO
É ao redor da “chama sagrada”6 onde o Mẽtyktire constrói a “matricasa”,7 organiza a
sociedade e extrapola a dimensão biológica. Quando Nyobog-ti é descoberta no interior
deuma cabaça pela mãe de seu marido, fica toda envergonhada e encolhida. No entanto,
a mulher a traz para fora, corta seu cabelo, pinta seu corpo, de acordo com a tradição,
e diz: “Agora ela ficou bonita, como uma das nossas. Agora é nossa parente e ninguém
pode bater nela ou fazer-lhe mal” (LUKESCH, 1976, p. 95). Por meio desta realização
cultural, preparada no fogo do kikré,8 “a mulher que era filha da chuva se torna membro
daquele povo e, consequentemente, um ser humano” (LUKESCH, 1970, p. 99). Entre os
Jê,9 o corpo parece ser dividido em “aspectos internos, ligados ao sangue e ao sêmen,
à reprodução física e aspectos externos, ligados ao nome, aos papéis públicos, ao
cerimonial – ao mundo social, enfim (expressos na pintura, ornamentação corporal,
canções)” (SEEGER; DAMATTA; VIVEIROS DE CASTRO, 1972, p. 11). O feto é formado
pelo acúmulo do sêmen, e embora a mulher não compartilhe seu corpo orgânico com o
nascituro, o nutre10 com o seu leite. Ao nascer, a criança do sexo masculino, por exemplo,
tem as orelhas perfuradas e esticadas com batoques de madeira e seus lábios inferiores
transpassados com fio de algodão e enfeitados com miçangas. Quando aprendem
a andar ingressam na categoria mẽprire, e daí em diante já podem ser honradas em
cerimônias de nominação e receber, inclusive, um nekretx.11 Por volta dos dez anos de
6 “A religião do fogo sagrado provém, pois, de época remota e obscura, quando ainda não havia gregos, nem italianos, nem hindus,
havendo apenas os árias. Quando as tribos se apartaram umas das outras, trouxeram consigo esse culto comum, levando-o, umas,
até as margens do Ganges e trazendo-o, outras, para as costas do Mediterrâneo” (COULANGE, 1975, p. 24).
7 Lea, usando o conceito “sociedade de Casas”, de Lévi-Strauss, estabelece o de “matricasas” como “pessoas morais, detentoras
de um patrimônio de bens simbólicos: nomes pessoais e prerrogativas” (1999, p. 180). A matricasa, composta por uma ou mais
habitações, pertence a mulher e ocupa um espaço, físico e cosmológico, no círculo da aldeia, determinado pela posição da trajetória
solar leste/oeste. Cada matricasa é uma unidade exogâmica que possui em seu patrimônio nomes próprios e prerrogativas herdadas,
como papéis cerimoniais e enfeites que remetem à uma ancestralidade mitológica.
8 Kikré (ki: fogão/fogo, kré: buraco/toca) significa tanto o fogão tradicional quanto habitação, neste sentido: a toca do fogão.
9 Pertencem ao tronco linguístico Macro-Jê, família Jê: os Timbira Orientais, que se subdividem em Apãniekra e Ramkokamekra
(Canela), Krahó, Parkatêjê ou Gavião, Pukobje, Krĩkati e Krenje, os Apinayé conhecidos também como Timbira Ocidentais, os Suyá,
os Tapayuna, os Panará, os Mẽbêngôkre, que por sua vez se subdividem em Gorotire, Mẽkrãgnõti, Mẽtyktire, Kararaô e Xicrín, os
Akwén, que se subdividem em Xavante, Xerente e Xabriabá, os Kaingáng e os Xokleng.
10 “ [...] os homens às vezes (ou mesmo frequentemente) são compelidos a infligir uma derrota ao deus para garantir sua existência,
através da apropriação do poder feminino - a terra que sustenta e nutre” (Sahlins 2003, p. 147).
11 É uma categoria caracterizada como tudo que pode ser acumulado, incluindo tanto os bens materiais industrializados quanto os
adornos que pertencem exclusivamente à matricasa, cuja prerrogativa pode ser mitológica.
idade, o menino (mẽôkre) tem seus cabelos cortados e já pode frequentar oficialmente a
“casa dos homens”.12
Os mẽôkre ficam à disposição na casa dos homens para pegar água, lenha e comida
(tarefas essencialmente femininas, enfatizando sua posição ambivalente, em transição
no universo masculino). Atuam também como mensageiros (análogos às crianças na
casa materna), transmitindo informações entre a casa dos homens, as casas familiares
e o posto. Durante as caçadas que duram mais do que um dia – õntomõrõ (dormir/
andar), quando monta-se um novo acampamento diariamente, são os mẽôkre que
abrem o caminho na floresta e que cozinham se não houver nenhuma mulher para
fazer isso (LEA, 2012, p. 163).
12 No centro da aldeia, correspondendo ao zênite solar, fica a casa dos homens, ngà (lago, água), lugar exclusivamente masculino. Para
Lea (1994, p. 96), a “a casa dos homens, situada no centro, direciona o olhar para além da aldeia, e os homens são os responsáveis por
aquilo que diz respeito ao mundo exterior”. “O estudo de Vernant a respeito da praça (ágora) na Grécia antiga pode ajudar a compreender
o modelo espacial das aldeias mẽbêngôkre [...]. As analogias entre as cidades da Grécia antiga e as aldeias Jê me surpreenderam. A casa
(oikos) designa tanto a habitação quanto o grupo humano que nele reside (1973, p. 119). Segundo Vernant, a ágora surgiu do costume
indo-europeu de ter uma classe de guerreiros que se reuniam em formação militar, formando um círculo (1973, p. 163). Em grego
antigo, uma expressão sinônima de ‘tornar público’ é ‘colocar no centro’ (1973, p. 164)” (LEA, 2012, p. 396-397).
13 Guerreiro que se enfurece e ascende ao céu após ser enganado por companheiros de caça durante a partilha de um tapir abatido.
Lá de cima, onde pisar, a chuva cai torrencialmente, e ao agitar sua clava raios terríveis cortam o ar enquanto o trovão faz estremecer
a terra. “Tendo [Prometeu] oferecido ao deus as porções não comestíveis do boi enquanto reservavam o delicioso alimento para
si próprios, os homens foram fadados a partir daí, e para sempre, a se exaurir enchendo suas barrigas. Na Polinésia, o roubo da
terra produtiva (mulher) tornou os homens eternamente dependentes dos poderes antigos, transcendentes e divinos da procriação”
(Sahlins 2001, p.38). “É o mau tempo que prepara o plantio da bata-doce, uma outra forma de Lono, em áreas secas. As nuvens
escuras de chuva, o trovão, o negro, os ventos de Kona, sotavento, as Plêiades (da estação chuvosa) são todos Kino [corpo] de Lono.
Os sucedâneos terrestres do relâmpago e das nuvens escuras, o fogo e a fumaça, são ainda associados a Lono sob a forma do deus-
vulcão, Lonopele” (SAHLINS, 2001, p.194).
expressão ‘morte do corpo’ coadunar-se-ia com essa idéia, pois o ritual significa o fim
do homem velho e fraco e a ressurreição para a vida plena do homem e guerreiro”
(LUKESCH, 1970, p. 277). A cerimônia assinala ainda a maturidade sexual do jovem,
habilitando-o para o casamento. Contudo, a participação não é obrigatória, nem para
o ingresso em uma classe mais elevada, nem para estabelecer relações sexuais. “Aí,
novamente, torna a revelar-se a influência da mulher nos assuntos de família, pois de
direito, ela pode exigir: ‘Quem quiser casar com minha filha, deve ter passado pelo
meitükre’” (LUKESCH, 1970, p. 277).
O pai do mẽôkre, então, empenha-se em conseguir um padrinho para o filho, cujo
parentesco fictício chega a transformar-se em uma relação verdadeiramente estreita
e vital. O krabdjwỳ é o “amigo formal”,14 uma categoria de amizade dentro do sistema
de parentesco, uma herança paterna, que durante a cerimônia de iniciação, torna-se
educador, guia e mestre do jovem. A instrução pode durar uma estiagem, estação em
que o fogo é adquirido com maior facilidade, e “ao longo desse período, o padrinho vive
única e exclusivamente para seu tutelado, fato registrado com grato reconhecimento por
toda a comunidade” (LUKESCH, 1970, p. 280). O mẽnõrõnyre costuma deixar a aldeia de
madrugada rumo à floresta, onde se dedica a conhecer as “coisas de índio” (LUKESCH,
1970, p. 281). A noite regressa trazendo seu feixe de folhas de palmeira e acampa, ao
calor do fogo, em frente à casa dos homens, mergulhado em profundo silêncio.
O abrigo provisório representa, ao mesmo tempo, proteção e clausura, e simboliza
a transição entre a matricasa e a casa dos homens, entre “os domínios domésticos e
político-jural” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 333). O ngà-káe remete ao “mito dos
dois grandes ancestrais”,15 uma armação feita de cortiça de jatobá, calafetada com
resina e fogo, mormente utilizada para mergulhá-los em água, “de modo a ficarem de
fora apenas seus rostos” (Lukesch, 1970, p. 55). Os gêmeos, criados pelo pai e nutridos
regularmente pela mãe, crescem e se fortalecem, matam a “águia-gigante” (megafauna?)
e vingam a morte de sua tia, irmã de seu pai (talvez isto justifique a ausência da
cerâmica entre os Mẽbêngôkre...). Na aldeia, em comemoração, o pai constrói uma casa
de troncos de buriti (que na lógica indígena do concreto evoca algumas qualidades do
guerreiro, entre elas, a manifestação de força e virilidade) para eles, onde, labutando
diariamente, confeccionam armas pesadas com o auxílio, mais uma vez, do fogo, tais
como as bordunas de hoje em dia, as primeiras lanças com ponta de ossos de jaguar e
os “grandes arcos”.16
14 Manuela Carneiro da Cunha, em referência ao Krahó escreve que pode haver uma noção de pessoa, um princípio de autonomia,
de dinâmica própria, princípio tal que deve ser procurado e não postulado. Disso que trata a amizade formal. “1) a amizade formal
entre os Krahó devia ser entendida como consistindo essencialmente em uma relação de evitação e solidariedade entre duas pessoas,
conjugada com relações prazenteiras assimétricas de cada qual com os pais de seus parceiros: insistia, então, que essas duas relações
eram ‘pensadas como um todo, e não isoladamente, e como tal deviam ser analisadas em conjunto; e implicava, além disso, que a
ligação da instituição de amizade formal com os nomes próprios era secundária, ou seja; era a modalidade Krahó do tema jê mais amplo
da amizade formal: 2) analisando os contextos em que intervêm os amigos formais, distinguia dois tipos de situações: o primeiro tipo
diz respeito a danos físicos, como queimaduras, picadas de marimbondos ou de formigões, em que o amigo formal é chamado para
sofrer na pele precisamente a mesma agressão física de que foi vitima seu parceiro; enquanto o outro tipo se refere aos ritos de iniciação
e fim de resguardo do assassino, quando os amigos formais permitem a reintegração de um Krahó segregado do convívio social e,
eventualmente, sua instauração em uma nova condição social” (CUNHA, 1986, p. 53-62).
15 “No princípio, o povo Kayapó, representando toda a humanidade, era fraco, pequeno e indefeso e era constantemente atormentado
por um terrível monstro, a águia gigante devoradora de carne humana, que devorou a irmã do pai dos gêmeos heróis. Motivado por
vingança, o pai tem a ideia de criar os filhos dentro da água, fazendo-os crescer em tamanho, força e valentia. Para isto, confecciona
uma casa de troncos de madeira, amarrada com cipó, com o qual o pai puxa a casa para fora da água. Na versão de Banner, a casa é feita
de casca de jatobá, calafetada com resinas. Os gêmeos tornam-se adultos extremamente grandes e fortes, retornam para a comunidade
onde o pai lhes constrói uma casa no centro aldeia, local em que eles fabricam artefatos como a primeira lança com ponta de osso, o
machado Kayapó e o grande arco Kayapó. Os gêmeos, então, partem em busca da águia gigante para vingar a morte da tia, encontram-
na em seu ninho e matam o terrível animal, flagelo da humanidade, livrando a todos do terrível medo que o monstro despertava”
(LUKESCH, 1976, p. 55-57).
16 Roque de Barros Laraia, em comunicação a mim dirigida, atribui a Willian Crocker a afirmação de que a envergadura do arco Jê
evidencia, em tese, a relação histórica desse povo com o cerrado.
Aí, a filha da chuva falou para o esposo: Lá em cima, no Céu onde estão meu pai e minha
irmãs, há coisas gostosas. Lá crescem batata-doce, mandioca, macaxeira; nas florestas
há muita caça e também há tartarugas terrestres em quantidade. Há ainda banana e
as frutas mais gostosas; aliás para comer, há de tudo que se possa imaginar. Está bem,
respondeu o marido, então vá lá em cima buscar algumas dessas coisas gostosas para
termos o que comer. De volta, e acompanhada de sua família celestial, traz batata-doce,
macaxeira, banana e ainda muitas outras coisas saborosas (LUKESCH, 1976, p. 95).
Bepkororoti traz o fogo, e com dois pedaços de pau e um punhado de folhas secas o
ensina como obtê-lo por ficção. Nyobog-ti, por sua vez, instrui o marido a fazer a uma
coivara e, com ajuda de um pau de cavar, faz a primeira plantação. “Contudo, a limpeza
do terreno para a agricultura obriga o homem a queimar a madeira viva, a fim de
obter as plantas cultivadas que ele se permitirá cozinhar apenas num fogo de madeira
morta” (LÉVI-STRAUSS, 2010, p. 182). Daquele momento em diante, mesmo carregado
“de um obscuro sentimento de culpa [...] relacionado a uma técnica agrícola que faz de
uma certa forma de canibalismo a condição preliminar de uma alimentação civilizada”
(LÉVI-STRAUSS, 2010, p. 182), o homem encarregou-se da derrubada da mata e da
queima da vegetação, enquanto a mulher coube o plantio e o cuidado com as plantas
celestiais. Apenas durante a colheita ela é auxiliada pelo homem nos trabalhos mais
pesados. Em casa, seu comportamento é bem mais conservador do que do homem e
está arraigado aos costumes tradicionais revelando profunda desconfiança de tudo que
é novo, em especial de pessoas estranhas, o que nos remete ao mito do fogo de cozinha.
17 É uma das cerimônias principais dos Mẽbêngôkre. É composta de uma série de cantos e ritos específicos e dura vários dias. “Na Bemp,
crianças são honradas com a confirmação de nomes e os meninos são iniciados na mẽ’i ῖtyk” (LEA, 2012, pp. 323-326).
18 O “corpo físico não é a totalidade do corpo, e nem o corpo a totalidade da pessoa; a dialética básica entre corpo e nome parecem
indicar que a pessoa, nas sociedades indígenas, se define em uma pluralidade de níveis, estruturados inteiramente” (Seeger et al, 1972,
p. 13).
Na narrativa acima, o jaguar é o dono do fogo: “era ele que possuía o fogo, antes de
os humanos o despossuírem, tornando-se então os donos do fogo” (LÉVI-STRAUSS,
2010, p. 13). A noção de ter sido o grande felino o primeiro a possuir o fogo condiz com
a mentalidade e a concepção de mundo Kayapó inspiradas pelo poderoso caçador. No
mito o animal fala a língua do homem, e como divindade bondosa permite ao indígena
comer carne moqueada
pela primeira vez. Não obstante, sua aparência oscila entre a de homem e de animal,
parecendo-se com este quando o convida o jovem a montá-lo e com aquele quando
maneja o arco e a flecha. Com efeito, as imagens aqui narradas sobrepõem-se a ponto de
se confundirem: é o perspectivismo ameríndio enxergando humanidades para além de
nós, seres humanos esculpidos pelo racionalismo moderno e burguês. Para o Mẽtyktire,
o ideal de força masculino é o do caçador ofegante e suado, voltando para sua aldeia
trazendo todos os tipos de caça. “O jaguar da era primitiva, também ofegante, leva para
a sua toca, de uma só vez, as diversas variedades de caça” (LUKESCH, 1976, p. 176). Tal
passagem objetiva-se (concretiza-se) na “caçada cerimoniosa”,19 geralmente associada
a uma festa ou ritual, onde o guerreiro serve-se novamente do fogo para encurralar
grande quantidade de caça, que amarrada em paus ou envolta em folhas de bananeira,
traz consigo sobre as costas, entrando solenemente na aldeia.
Tanto a casa quanto a roça pertencem à mulher. Para Hirsch (1995), lugares como esses
podem representar paisagens contidas nas narrativas mitológicas, processos culturais
localizados entre o lugar e o espaço, uma idealização humana entre o primeiro
plano e o fundo em potencialidade. Para Basso (1996), podem estar intimamente
ligados ao conhecimento de si mesmo, como um esquema maior para entender sua
posição enquanto pessoa. Sendo assim, topônimos e cronotopos permanecem como
monumentos à própria comunidade e jamais atingem o clímax da diversidade e da
19 Para Lukesch (1976, p. 168), tal empreitada faz parte da festa máxima dos Mẽbêngôkre: a Bemp. Seu nome é de peixe, mas também
do grande ancestral Bepkororoti que, na era primitiva, se tornou divindade. Os protagonistas da festa representam diversos papéis,
dispensando cuidado maior à caracterização do jaguar que, no mito, se eleva à dignidade de um deus poderoso e “benevolente”, e que
doa o fogo ao homem bem estilo Prometeu – o que não é uma regra entre os Jê (talvez isto explique a ausência da corrida de tora entre
os Mẽtyktire ...).
Figura 4. Mulheres Mẽbêngôkre numa roça de Moikarakô. Fonte: (Pascale de Robert, 2005).
Para Balée (2013), as roças Kayapó são também “florestas culturais” que, alteradas
constantemente pelo “uso do fogo”,20 refletem estratégias de tempos remotos
estampados em espaços contemporâneos capazes de entrelaçar “linguagem, cultura
e meio ambiente”. São “meta-adaptações à cultura, ou a um resultado histórico de
uma transformação cultural da natureza” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 326; grifo
meu), mas que nem por isso são menos empobrecidas do que aquelas com vegetação
endêmica, com pouca ou nenhuma ação antrópica. “Ao contrário do que se imaginaria,
aliás, as florestas antropogênicas apresentam maior biodiversidade que as florestas
não-pertubadas” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 326) e são “duas vezes mais ricas
em espécies silvestres úteis do que as porções vizinhas de floresta primária, da qual no
entanto não se [distinguem] à primeira vista” (DESCOLA, 1999, p. 115).
Uma roça será bonita (puru mex kumrex) quando apresentar, na sua organização
e composição florística, evidências de trocas, de viagens, de troféus de guerras
e presentes de aliados, de fartura de festas passadas, presentes e futuras.
Dessa maneira, a diversidade agrícola é portadora de sentido e de referências
essenciais para os Kayapó, que fazem dela um patrimônio suscetível de se
20 De acordo com Balée, a “terra preta de índio” (ou apêtê para os Mẽbêngôkre) é resultado de muitos anos de queima da biomassa e
corresponde a 11,8% de toda terra firme da Amazônia. O pH é bem mais ácido que a média local, os níveis de alumínio e carbono são
excelentes e cada centímetro acumulado equivale a 10 anos de ocupação humana. “A essa experimentação biotecnológica constante sobre
o vivente somou-se a aplicação de técnicas agronômicas sofisticadas. A mais simples, em aparência, a cultura itinerante sobre queimadas, é
também a mais adequada à fragilidade dos solos tropicais, na medida em que permite tirar proveito da fina camada de húmus beneficiadas
pelas cinzas das queimadas. Além disso, a plantação em policultura, na qual são misturadas plantas de diferentes alturas, protege por
algum tempo os solos dos efeitos destruidores do clima, de maneira análoga aos diferentes estratos arborescentes da floresta. Ao cabo de
três ou quatro anos, todavia, as fortes chuvas e a radiação solar eliminam todos os elementos nutritivos do solo e a plantação é abandonada.
A floresta coloniza a clareira e se reconstitui naturalmente ao cabo de uns trinta anos” (DESCOLA, 1999, p. 116).
Cabe à comunidade, portanto, preservar tais monumentos e defender seu modo de vida
dentro de uma constante “homeostase produtiva” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 343).
A luta pela demarcação da Terra Indígena Capoto Jarina, iniciada na segunda metade do
século passado, surge como resposta às constantes invasões do “kubẽ punure”21 e suas
máquinas canibais devoradoras de florestas. Após o “confronto direto”22 com estes seres
estranhos, abre-se espaço para a dialética (dialógica) como parte de uma estratégia de
luta contra o desflorestamento e o fogo, não como “um processo de identificação ou um
lugar de coincidência de saberes, mas um princípio de dissidência, de divergência e
dispersão dos discursos científicos, que tende de preencher a falta ‘impreenchível’ do
conhecimento” (LEFF, 2007, p. 173).
Nos anos 1980, as lutas dos Mebêngôkre pela defesa do seu território permitiram
acelerar os processos de homologação das terras indígenas e marcaram o início
de experiências socioambientais apoiadas por cientistas e por organizações
não governamentais (ONGs). Essa aliança, também reforçada pelo apoio de
personalidades, permitiu mobilizar a atenção da mídia internacional sobre os
problemas dos Kayapó, em particular, e dos povos da floresta em geral (ROBERT
et al 2012, p. 342; grifo meu).
21 “Os kuben-punure ou possuem natureza dual (homem e animal, por exemplo), homem-cachorro; homem-planta, como, por exemplo
homem-capim-lanceta, ou são indivíduos humanos e aparência extremamente repugnante, considerados letais, caracteristicamente
desumanos, tal como o horrível barba comprida = kuben-amaó-toit. O elemento desumano pode também consistir de um atributo
horrendo e maléfico, como a antropofagia, entre os antropófagos = kuben-kokre” (LUKESCH, 1976, p. 242).
22 Em 1984, o Mẽtyktire toma a balsa de travessia do rio Xingu administrada pelo governo de Mato Grosso e reivindica celeridade nos
processos demarcatórios de suas terras. No local, à margem esquerda do rio, o órgão indigenista cria o Posto Indígena de Vigilância (PIV)
Piaraçú.
dos focos de incêndios em Roraima. Na mata, os bombeiros que até então debelavam
labaredas tiveram de recorrer a baldes para salvar suas barracas da inundação” (VEJA,
1998, p. 31); e absorvesse “a diferença do estrangeiro objetivada em sua cultura material, seu
conhecimento, seus saberes, sua expressividade técnica e estética” (GORDON, 2006, p. 98).
A diferença em relação ao outro foi codificada em uma forma simbólica de “predação
[preensão] ontológica” (VIVEIROS DE CASTRO apud GORDON [2001] 2006, p. 95), que
incorporada a valores e capacidades essenciais para a constituição da pessoa e do grupo,
vem sendo colocada em circulação, neste momento, através de técnicas (e tecnologias)
de prevenção e combate a incêndios florestais com o intuito de monitorar e combater
o fogo no entorno da Terra Indígena Capoto Jarina e assim prevenir-se de eventuais
sinistros potencializados pelo agronegócio ali instalado (um monstro que, na forma de
uma Quimera, uma besta mitológica com a capacidade de lançar fogo e veneno, tem
trazido caos ao que era, até então, sustentável e plural) e pelo aquecimento global, já
que para o Kayapó o “sol é um antigo perseguidor da humanidade” (BANNER, 1957, p.
49). Para ele, o “fogo celeste não deve entrar em conjunção com a terra, pois seu contato
resultaria um incêndio generalizado, de que a seca constitui o pródromo modesto, mas
empiricamente verificável” (LÉVI-STRAUSS, 2010, p.135).
Entretanto, o sol nasce e brilha para todos e o aquecimento é global - não local. É
preciso alcançar novos entornos em prol da sustentabilidade do planeta. A jornada
por terras desconhecidas alcança novas dimensões e transforma a dialética do fogo
em “movimento de protesto”.23 O discurso diante das mazelas da globalização passa a
encorajar outros povos, indígenas ou não, e a luta pela alteridade se intensifica fazendo
emergir o “saber ambiental” enquanto conceito epistemológico de “um processo de
revalorização das identidades culturais, das práticas tradicionais e dos processos
23 “Neste contexto surgem os movimentos de protesto pela deterioração ambiental e destruição dos recursos naturais, pelo desmatamento
desenfreado, pelos efeitos ambientais e sociais gerados pelos processos de pecuarização, pela agricultura altamente tecnologizada, pela
hiperconcentração urbana e pelos megaprojetos de desenvolvimento regional, pelos perigos das usinas nucleares, bem como a favor da
conservação dos recursos naturais, da diversidade genética, e da melhoria do ambiente, do desenvolvimento de novas tecnologias e a
promoção de processos de autogestão e de participação na tomada de decisões” (LEFF, 2007, p. 150).
4 CONCLUSÃO
Do exposto, acredita-se que os mitos sobre a origem do “fogo de cozinha”, das “plantas
cultivadas”, da “chuva e da tempestade” (LÉVI-STRAUSS, 2010, p. 91-247) e do “ser
maléfico de forma animal, um bicho-preguiça, que roubara para si o fogo [ateando]
um incêndio no mundo” (LUKESCH, 1976, p. 197), indicam, respectivamente: 1) o
surgimento da vida civilizada, concebida mais como cultural (conquista dos bens do
jaguar); 2) o surgimento da vida civilizada, concebida mais como sociedade (conquista
da agricultura); 3) o surgimento da chuva e da tempestade, concebida mais como
“antifogo” (LÉVI-STRAUSS, 2010, p. 328) ; 4) a “distinção entre um fogo ‘bom’ e um fogo
‘mau’” (LÉVI-STRAUSS, 2010, p. 333), sendo este resultante da ação demasiado direta do
sol sobre a terra, e o surgimento de regras de conduta, cronotopos de responsabilidade
(socio)ambiental com a capacidade, segundo Keith Basso (1996), de impulsionar pessoas
inadimplentes, após um período de autoexame crítico, para uma vida direita.
Com efeito, as narrativas e as práticas Mẽtyktire relacionadas com a origem e o uso do
fogo no cotidiano da Terra Indígena Capoto Jarina formam um todo (socio) ambiental
complexo, capaz de transcender a antinomia estabelecida entre natureza e cultura e manter
a estrutura tradicional longe do “produtivismo, do despotismo e do progressivismo”
(viveiros de Castro 2013, p. 344), vícios de um racionalismo econômico avassalador.
Mesmo durante as expedições além-terra e as lutas socioambientais pela defesa do seu
território, aqui compreendidas como “movimentos de protesto” (LEFF, 2007, p. 150),
“estruturas de conjuntura” e “eventos” (SAHLINS, 2001, p. 86), bem como seus “valores
contextuais,” são capazes de retroagir, ou seja, agir de volta sobre a estrutura tradicional
e seus “valores convencionais”, e se conformar, ao final, mesmo que “minimamente”,
dentro de um “sistema de inteligibilidade” (SAHLINS, 2001, p. 274).
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ROCCO, Rogério G.
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito (PPGSD)
Universidade Federal Fluminense (UFF)
rogerio.rocco2009@gmail.com
RESUMO
Neste artigo, analisaremos as transformações de tratamento na história da legislação
ambiental brasileira, relacionando-a com a questão agrária. A partir da identificação
de normas que tratam da conservação dos elementos naturais, foi elaborada a seleção
e o recorte temporal na forma de fases da legislação, o que nos permite associá-las às
estratégias do desenvolvimento nacional e suas estratégias de apropriação da natureza
e da terra. Esse artigo procura elaborar um conjunto de reflexões a partir da hipótese de
que há uma falsa polêmica, estimulada por setores que dependem de um fracionamento
entre a ecologia e a economia, para omitir a busca recorrente e persistente em classificar
a propriedade como um direito absoluto, um eterno retorno do liberalismo que toma
forma de “novas” legislações.
ABSTRACT
In this article we will analyze how transformations of the treatment of the history of
the Brazilian environmental legislation, relating it to an agrarian question. Based on
the identification of norms that deal with the conservation of natural elements. This
article looks at a set of reflections based on hypotheses that there is a false polemic
between the ecology and the rural develpment, estimulated by sectors that depend on
a instable balance between ecology and economy, we try to understend a persistence
in classifying the property as an absolute right, an eternal return of liberalism taking
the form of “new” laws.
A reflexão entre os fisiocratas tem como norte o combate a uma concepção de natureza
como um monopólio, um privilégio feudal sobre o acesso e renda nela produzida, ou,
melhor, um privilégio de classe. Em resumo, a renda da terra não era compreendida
enquanto um produto da interação entre o homem e a natureza, mas um direito
natural, e, por que não dizer, um direito divino?! Ainda estávamos em um período em
que floresciam as contradições entre as instituições da Idade Média e uma economia e
moral capitalistas em germinação.
No Brasil temos alguns exemplos de normas sintomáticas dessa percepção da natureza
como direito monopolístico. Por exemplo: um decreto regulamentando a pesca da baleia
(1602), ou sobre as condições para exploração do Pau-brasil (1605). Havia, ainda, outras
normas desse período, como o decreto que proibia o corte de árvores de mangue, de
1760, e o que declarava como propriedade da Coroa Portuguesa a vegetação marginal
ao mar e aos rios que desembocavam no mar – considerada na atualidade como Áreas
de Preservação Permanente – APP, conforme disposto desde o Novo Código Florestal
Brasileiro (Lei nº 4.771/65), reformado recentemente pela Lei nº 12.651/12 – Lei de
Proteção da Vegetação Nativa.
Para a especificidade da formação do direito de propriedade no Brasil, faz-se necessário
destacar a Lei de Terras (1850), que regulamentou diretamente a forma de aquisição de
propriedade imóvel. Em suma, esta Lei estabelecia que o único modo de aquisição das
terras devolutas2 seria a compra e a venda, o que, na prática, extinguia com o modo
secular de aquisição de terra por meio da posse.
Diversas foram as iniciativas da Colônia desde o século XVII para ordenar a questão
territorial em terras brasileiras, mas que não resultavam bem sucedidas. E diversas
delas asseguravam a proteção à posse. Entretanto, em fins do século seguinte, as
tendências se reverteriam contrárias a este instituto, como apresentado por Zenha, ao
se referir a alvará editado em 1795, em artigo publicado em 1951 com a finalidade de
celebrar o centenário da Lei de Terras:
Embora fossem proibidas as concessões de novas sesmarias, e talvez por isso
mesmo, o certo é que a confusão estabelecida pelas posses tinha tomado um
tal vulto que reclamava providências imediatas. As demandas resultantes
eram inúmeras. ‘Um outro fim tem o projeto: é evitar as contestações que entre
nós existem e continuarão a existir se não passar alguma providência sobre
o modo de apropriarem as terras; contestações a que dão lugar posses feitas
pelo modo por que se tem até agora praticado’, isto é, indiscriminadamente
e com um desembaraço positivamente lesivo. Este sistema era prejudicial à
coletividade. Além do apossamento irregular de terras públicas, tinha ele, entre
outras, uma consequência funesta: dispersava a população, uma vez que cada
um procurava localizar-se em tratos separados por grandes distâncias, já que a
clandestinidade era a regra.3
Nesse sentido, a Lei de Terras criou as condições de expansão dos territórios de uma
aristocracia agrária; além de antecipar, de modo planejado, o processo gradual e lento
de extinção da escravidão sem afetar a estrutura fundiária pré-estabelecida. É o que
nos afirma Martins:
A renda capitalizada no escravo transformava-se em renda territorial
capitalizada: num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo; num
regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa.4
7. Considerações Finais: Século XXI, uma fase retrô para o meio ambiente e para a
questão agrária ou um eterno retorno?
O debate em torno do conceito de propriedade no Brasil tem como marco o Código Civil
Brasileiro (1916) que, entretanto, encarnava um conceito quase ilimitado da propriedade
privada. A Fase Retrô, identificada na passagem para o século XXI, caracteriza-se por
uma reestruturação da economia política do agronegócio, “absolutamente antinômica
e esterilizante de quaisquer outros valores socioambientais que se possam atribuir à
natureza como bem intergeracional” (Delgado, 2014: 34). A possibilidade de limitar
a ação do capital esbarra na reedição do conceito de propriedade, idêntico daquele
elaborado no século XIX (em projeto de lei), que fora aprovado na forma de nosso antigo
Código Civil (século XX), e, finalmente, copiado em pleno século XXI (Novo Código
Civil). O text de 1916 acompanhou o Código Napoleônico, no seu artigo 524, quando
afirma que “a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus
bens e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua”. O texto dá a
ideia de poderes ilimitados sobre a propriedade, não se estendendo mais do que isso
para falar da propriedade. Já o Código Civil de 2002 limita o direito de propriedade,
apontando para o dever de cuidado no uso dos bens naturais.
Pode-se afirmar que no código de 1916 o que valia era o que estava expresso no caput
do artigo, concedendo poderes quase ilimitados ao proprietário. O código atual
mantêm o caput, mas acrescenta parágrafos que limitam o uso da propriedade sem
correspondentes no código anterior. Dessa forma, a aliança entre o capital e o Estado,
para direcionar os processos de desenvolvimento nacional, permite a reprodução de
flexibilizações, desigualdades, conflitos e injustiças ambientais.
Há uma produção “artificial” da terra e das florestas, que se combinou à própria
reprodução “artificial” do tempo. Enquanto o período de reprodução do camponês/
agricultor familiar é o tempo da natureza, o período de reprodução do capital possui
uma lógica temporal própria, intensificando continuamente a produção em menor
tempo10, transformando, dessa forma, a natureza à sua própria imagem e semelhança
9 ALIER, 2007: 34-5.
10 “A importância da quimificação da agricultura não advém somente da possibilidade concreta que ela representa de reduzir a duração
do ciclo produtivo, ou melhor, de reduzir a determinação da Natureza sobre a duração do período de produção.” (GRAZIANO, 1981: 31).
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Introdução
A segregação de espaços naturais de grande valor para determinadas sociedades ao
longo dos séculos se constituíram em uma conduta pública recorrente gerando um
modelo público de conservação da natureza que a partir de determinados valores e
crenças universais e consensuais consolidou-se em quase todos os países do mundo
independente dos sistemas políticos, econômicos, religiosos ou das diferentes culturas
nacionais (Simon, 2010 p.17).
Não se tem registro completo de todas as iniciativas de proteção de áreas de natureza no
mundo desde os tempos remotos. Mas se supõe que essa prática tenha sido perseguida
por milhares de anos, por quase todos os povos do planeta.
A sociedade contemporânea tem vivenciado conflitos relacionados às distintas formas
de relacionamento com a natureza no processo de produção e reprodução do espaço
geográfico, trazendo para o debate os distintos conceitos de natureza subjacentes e os
respectivos modelos de proteção, o qual perpassa pelo modo de vida das sociedades,
o pensamento e as ações. Simon, (2010, p. 22). Portanto, pensar a natureza hoje, e as
relações sociedade natureza, nos remete ao passado, para compreender as mudanças
que se processaram no modo da sociedade pensar, interagir e produzir a natureza. Para
Fernandez (2009, P. 27) determinadas concepções sobre a relação homem-natureza, ao
longo do tempo, elegeram-se como universais, científicas e consensuais e passaram a
exercer seus efeitos sobre circunstâncias locais.
A noção de conservação do mundo natural baseada no mito da natureza desabitada e
nas relações hostis e endêmicas da espécie humana junto à natureza ao longo de sua
existência auxilia na elaboração de um “senso comum” ecológico, onde a natureza é
mitologizada. (Simon, 2010 p. 40). A criação de áreas naturais protegidas e, sobretudo,
a institucionalização do modelo de Parque Natural, que tem origem no século XVIII se
constituiu em prática símbolo e sinônimo de conservação.
Para além de uma ferramenta estratégica para a conservação de recursos biológicos e
da biodiversidade, os Parques Naturais se tornaram manifestos físicos contra o projeto
civilizatório, como antítese do desenvolvimento, possibilitando ações consideradas
concretas de conservação “in situ”, ou seja “no próprio lugar” possibilitando o usufruto
público das paisagens em detrimento de uso e apropriação “privado” que é diferente
do consenso de proteção, instituindo dessa forma um “não uso” ou um “uso indireto”
representado por atividades que permitam experiências “formativas do caráter
coletivo” e possibilitem “impressões duradouras” em nome de um “nosso futuro
comum” tais como a prática do turismo, lazer, pesquisa e educação ambiental, tais
avatares simbólicos, se contrapõe dessa forma, a lógica de uso e apropriação do espaço
e de recursos naturais em espaços sociais, produtivos e tradicionais (Simon, 2010 p. 50).
Para Fernadez, o poder simbólico dos Parques Naturais, consiste justamente na sua
capacidade de combinar e integrar valores, produzindo uma visão na qual a conservação
das espécies e a possibilidade de convivência humana é possível. Ao recriar de forma
idealizada, sob regras específicas e racionalmente planejadas, a interação lúdica do
homem com a natureza, através da visitação, os parques têm a capacidade de produzir
a perspectiva utópica de um mundo mais harmônico e integrado à natureza. Fora
desses espaços, o modelo econômico dominante pode ser perpetuado, compensado
pela existência dessas áreas de natureza ‘intocada”, no entanto, podem ser igualmente
de lazer e contemplação humana. Fernadez, (2009, pp. 37 e 38)
A autora acredita que tais valores correspondem a uma dimensão afetiva resultante
de experiências de infância, de família ou outras formas de socialização em contato
com a natureza, vividas ou apreendidas de representações coletivas. Estes, de
formas variadas, se combinam com o discurso técnico-científico da conservação, que
valoriza esses espaços como áreas isoladas e reservadas para a vida silvestre e que, se
desprovidos desta avaliação científica, não seriam fortes o suficiente para justificar a
indicação legal nem as práticas de intimidação, criminalização e restrições exercidas
sobre as populações residentes.
Para Redclift e Woodgate (apud Diegues, 2000, p.2) a noção de conservação do
mundo natural entendida como o manejo científico de ambientes naturais e de seus
recursos, cujo objetivo se pauta na maximização dos benefícios estéticos, educacionais,
recreacionais e econômicos para a sociedade como um todo, é mais corrente entre os
conservacionistas/preservacionistas da América do Norte.
Neste sentido, uma análise mais dedicada se faz necessário junto a politica americana
de conservação da natureza pelo potencial de difusão da concepção de conservação
da natureza implícita em um modelo, como se constata com o Parque Nacional de
Yelowstone considerado primeiro parque natural do mundo cujo modelo se difundiu
mundialmente com o propósito de reservar grandes áreas naturais a disposição das
populações urbanas para fins de recreação. Nesse caso, o sentido de parque nacional
veio acompanhado da noção de “wilderness” mundo selvagem, indômito.
Com isso, o presente artigo visa fazer uma reflexão sobre os aspectos constitutivos do
processo de criação e institucionalização de uma Trilha de longo percurso denominada
Trilha Transcarioca, situada na cidade do Rio de Janeiro, uma vez que, para além
da concepção de uma trilha/ corredor verde que liga o Parque Nacional da Tijuca
ao Parque Estadual da Pedra Branca nos parece constituir em mais um projeto de
cunho conservacionista que pressupõe a institucionalização territorial a partir de
determinados códigos éticos políticos, com forte apelo moral, ideológico e de grande
alcance político. Tal projeto é idealizado por atores articulados com atuação engajada
no campo das políticas públicas de conservação da natureza, que transitam por diversas
instâncias públicas e privadas em níveis local, nacional e Internacional e, a partir de
um determinado discurso que mistura, ciência, moral, ética e fé, mobilizam centenas
de voluntários e “adotantes”, categorias criadas para um engajamento mais orgânico
no projeto, fazendo do Movimento/ Trilha Transcarioca um modelo de conservação
e ao mesmo tempo uma estratégia de mobilização baseado num sistema de valores,
práticas e ideias nos moldes da concepção de Parque Natural que implicou em adoção
e explicitação de estratégias específicas que tiveram suas consequências reverberando
na vida social.
O processo de criação e consolidação da Trilha Transcarioca tem como referência
as trilhas de longo percurso americana e europeia; aqui destacamos o Appalachian
National Scenic Trail, geralmente conhecido como o Appalachian Trail ou simplesmente
o (AT) pensada por Benton Mackaye, em 1921, com 3.600 quilômetros contínuos,
ligando os Estados Unidos de norte a sul. Com início na Geórgia e término no Maine,
o Appalachian Trail foi idealizada para dar à maioria da população americana uma
chance de caminhar na natureza, sua sinalização completa só foi possível pela primeira
vez, em 1937, o percurso compreendia basicamente estradas de terra e ao longo de
propriedades privadas.
Já a Rota Vicentina, se constitui em uma rede de percursos pedestres no Sw de Portugal,
totalizando 400 km reservado para caminhada , ao longo de belas paisagens e bem
preservadas zonas costeiras do sul da Europa. Segundo informações do site oficial1, a
proposta da trilha é fornecer uma vivência entre uma cultura rural viva e autêntica e
uma costa surpreendentemente selvagem – integralmente dentro do Parque Natural do
Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Formada pelo Caminho Histórico, Trilho dos
Pescadores e vários Percursos Circulares. O caminho histórico (230 km em 12 etapas),
certificado em 2016 com o selo Europeu “ leading Quality Trails- Beste of Europe”
pela sua elevada qualidade enquanto percurso pedestre, percorre as principais vilas
e aldeias. Constituído majoritariamente por caminhos rurais, trata-se de uma clássica
Grande Rota(GR), totalmente percorrível a pé e de bicicleta. Destaca-se o trilho dos
pescadores com 120 km (percorrido em 4 etapas), seguindo os caminhos usados pelos
locais para acesso às praias e pesqueiros. Em termos de gestão, a Rota Vicentina
se aproxima mais do projeto Trilha Transcarioca, especificamente no processo de
institucionalização do território com práticas de governança, mobilização e gestão de
voluntariado, manejo de trilhas, sinalização, e, sobretudo , empreendedorismo.2
A constituição de voluntários e adotantes é uma das características mais marcantes
do processo de implantação da Transcarioca. Essa constatação foi possível a partir da
pesquisa de campo acompanhando voluntários, adotantes e idealizadores tanto nas
trilhas como em reuniões ocorridas no âmbito do mosaico carioca, junto ao conselho do
Parque Nacional da Tijuca, junto a câmara técnica de uso público do Parque Estadual
da Pedra Branca, em debates, audiências, dentre outros eventos. Além da pesquisa
de campo, levantou-se documentação, textos técnicos, artigos publicados, conversas e
debates entre os atores citados no facebook dentre outros. Nesse sentido, foi possível
traçar alguns caminhos que levassem a entender o processo de construção da MTT,
de que forma alcançaram legitimidade política, visibilidade, junto a mídia, como
mobilizaram voluntários e adotantes e como se dá o processo de institucionalização.
A partir da constatação de que a inspiração da MTT baseia-se em um modelo americano
de trilha, especificamente na Appalachain trail(USA) conforme já mencionado, que tem
em seu histórico de criação os mesmos princípios ideológicos dos Parques Americanos,
buscou-se fazer uma análise sobre como a ideia do contato com a Wilderness (terras
selvagens, terras idômitas) subjacente a concepção dos primeiros parques americanos
também está presente na instituição da Trilha Transcarioca que ao mesmo tempo
aposta no caráter coletivo dos espaços de conservação ambiental. Apesar da Trilha
Transcarioca não estar associada diretamente a um propósito religioso, percebeu-
se aspectos da sacralidade da natureza nos dicursos e no projeto, a ideia de fazer o
percurso todo da trilha como uma missão, como uma ação simbólica que expressa
um valor entender o processo de institucionalização da Trilha Transcarioca através da
criação de uma ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL MUNICIPAL, - APA nos trechos
que “ não estão preeenchidos por áreas protegidas” nos pareceu também uma forte
associação com os ideais presentes nos primeiros parques nacionais americanos uma
1 Ver mais : http://pt.rotavicentina.com/ir.html > acessado em 30 de outubro de 2016.
2 Ver mais http://www.conservation.org/global/brasil/noticias/Pages/expedicao-rota-vicentina.aspx> axcessado em 30 de outubro
de 2016.
14 Segundo informações desse grupo fechado, a presença de Papera mostrou o engajamento da Prefeitura no projeto. Papera
parabenizou esforço pela criação do corredor, que considerou um ganho ambiental para a cidade, mas solicitou que o andamento
da discussão da criação da APA fosse suspenso por alguns dias para que a Secretaria possa analisá-lo por um prisma técnico. Nesse
sentido, anunciou que será criado um Grupo e Trabalho na Prefeitura para deliberar o tema e propor seu encaminhamento.
15 Secretário executivo do Mosaico Carioca.
O trecho acima citado destaca a necessidade da mobilização ativa dos voluntários para
não inviabilizar o projeto. O destaque dado a necessidade de mobilização humana para
implementação desse corredor ecológico, essa passagem que tem por objetivo trazer “
qualidade ambiental em uma área em franca expansão urbana” reflete a proposta de
produzir um “padrão diferenciado de ocupação do solo”. Esse padrão, em se tratando
de trilha de longo percurso, aponta para turismo compatibilizado com a conservação
ambiental e a ramificações econômicas e ecológicas desse traçado que se estendem por
onde ele passa. O texto original se encontra em uma convocação de reunião para a
próxima reunião16. “Convidamos a todos os Transcarioqueiros a comparecer”.
Recentemente participamos17 de uma reunião na sede da Organização Não
governamental “Conservação Internacional” (CI) no centro do Rio que tratou da
necessidade de institucionalziar a Trilha a partir da criação de uma instância e ou orgão
jurídico. Nesse caso, os particioantes entenderam que a criação de um movimento
“Movimento Trilha da Transcarioca” seria o ponta-pé inicial para identificar os
“transcarioqueiros” comprometidos com o processo de implantação da TTC e ao
mesmo tempo respondem pela sua organziação e gestão.
Atualmente quem responde juridicamente é a FEMERJ. A ideia de criação de uma APA
Municipal surgiu em função da necessidade de regulamentar o acesso e o controle
da TCC nos trechos que não estejam nos limites das Unidades de Conservação. O
andamento dessa frente parlamentar18 em prol da APA Transcarioca (Área de Proteção
Ambiental) foi também pauta da reunião. O nome oficial do Movimento também foi
votado nessa reunião, que antes figurava como Trilha Transcarioca (TT). Os nomes
apresentados para votação foram: Movimento Trilha Transcarioca (MTT), Movimento
Pró-Trilha Transcarioca (MPTT) e Amigos da Transcarioca (AT). Por votação unânime
foi escolhido Movimento Trilha Transcarioca. Um dos argumentos para não ser
“Amigos da TT conforme atesta um dos presentes na reunião, 19 foi a possibilidade de
descrendenciar os atores como representantes legítmos da TCC uma vez que “a palavra
“amigo” não impõe respeito, vamos estar fazendo sinalização e aí vão perguntar: quem
são vocês? Movimento fica muito mais imponente”.
Identificamos que as instituições ligadas ao Montanhismo, FEMERJ e o CEB são, de
fato, as principais lideranças. Segundo Fernandez (2016) o escotismo, o excursionismo
ou montanhismo podem ser destacados como atividades lúdico-esportivas que
desenvolveram regras específicas de convivência com a natureza e que são exaltadas
por suas virtudes formadoras da cidadania. Essas atividades ganharam impulso com
a progressiva criação de áreas protegidas, e suas práticas estão associadas ao que se
16 Texto escrito na página fechada do facebook, já anunciada, cujo objetivo fora convocar “ Transcarioqueiros” para a próxima reunião
da Frente Parlamentar, realizada em 07 de abril no auditório da Câmara Municipal.
17 Dados orais a partir da participação do grupo de pesquisa “Dinâmicas sociais em áreas de proteção ambiental”, na reunião em
Agosto de 2016.
18 Essa frente está sendo presidida pelo vereador Celso Luparelli (reeleito nas eleições 2016). A principio, as instituições interessadas
na consolidação desse processo são a Federação de Esportes de Montanha do Rio de Janeiro (FEMERJ), Conservação Internacional (CI),
Comando de Policiamento Ambiental da Polícia Militar, do Parque Nacional da Tijuca, do Parque Estadual da Pedra Branca, Parque
Natural Municipal Paisagem Carioca, Mosaico Carioca de Unidades de Conservação, da Secretaria Estadual de Turismo e de entidades
voluntárias adotantes de trechos da Trilha Transcarioca. Segundo o assessor do Vereador Rhian Soares, presente na reunião, o projeto
está sendo fomentado por um grupo de trabalho e deve sair ainda no final de 2016. No entanto, não seria necessariamente decretar APA
Transcarioca, mas outorgar um decreto que viabiliza a gestão do presidido corredor ecológico.
19 Nessa reunião, estavam presentes representantes de grupos e instituições adotantes: Femerj (Federação de Esportes de Montanha
do Estado do Rio de Janeiro), Essati (Empresa de Engenharia ambiental), ACTA (Associação Carioca de Turismo de Aventura), WWF
(World Wide Fund For Nature), Amigos da Zona Oeste, Trilhas quase secretas , CI- Brasil (Conservação Internacional), Terralimpa, CEL
(Clube Excursionista Light) , AVEC Trilhas, Representantes do Parque Estadual da Pedra Branca, Mosaico Carioca, (o Eco) (Empresa de
Jornalismo ambiental), Fome de Trilha, Gesef (Gerência de Serviços Florestais) e CEB ( Centro Excursionista brasileiro).
entende por uso público em parques. Além dos aspectos civilizacionais já mencionados,
o caminhar como uma prática estética (Fernandez apud Careri, 2009) de apreensão e
construção da paisagem tem a capacidade de produzir a perspectiva utópica de um
mundo mais harmônico e integrado à natureza.
5. Conexão entre o Parque Nacional da Tijuca e o Parque Estadual da Pedra Branca
Segundo consta, a Trilha Transcarioca tem como objetivo ser um equipamento de uso
público, com a pretensão de materializar uma ferramenta de conservação.20
Sua implantação representa um marco para o verdadeiro turismo ecológico na
cidade do Rio de Janeiro e contribui para a criação de uma cultura profissional
de manejo coordenado entre as diversas unidades de conservação por ela
atravessada. Também assegura, pelo uso, a consolidação de um corredor
ecológico entre os Parques Nacional da Tijuca (PNT) e Estadual da Pedra Branca
(PEPB). Do ponto de vista da educação ambiental, ao servir de espinha dorsal
de um mosaico, chama a atenção da população em geral para a necessidade
imperiosa da gestão ecossistêmica. Por fim, ao estimular o uso mais espaçado da
visitação pelas diversas Unidades de Conservação do Mosaico Carioca gerando
emprego e renda ao longo do processo, a Trilha Transcarioca tem o potencial de
aumentar o apoio da população ao Mosaico como um todo, mudando assim a
percepção de que apenas pontos de maior afluxo como o Cristo Redentor ou o
Pão de Açúcar têm algum valor para a cidade. (Wikiparques, 2011)
O traçado, conectado por trilhas entre PNT e o PEPB, se faz necessário para a consolidação
de um corredor ecológico.21 Segundo informações oficiais do Ministério do Meio
Ambiente22, os corredores ecológicos não são unidades políticas ou administrativas, são
áreas onde se destacam ações coordenadas com o objetivo de proteger a diversidade
biológica na escala de biomas. Essas ações envolvem o fortalecimento, a expansão e a
conexão de áreas protegidas dentro do corredor, incentivando usos de baixo impacto,
como o manejo florestal e os sistemas agroflorestais; além do desencorajamento
de uso de alto impacto, como o desmatamento em larga escala. A implementação
de corredores ecológicos demanda alto grau de envolvimento e cooperação de
instituições e de interessados de diversos setores. Em suma, o conceito de corredor
ecológico simboliza abordagem alternativa às formas convencionais de conservação
da diversidade biológica que é, a um só tempo, mais abrangente, descentralizada e
participativa. Em entrevista ao Jornal online ((o eco)) Pedro Menezes fala mais sobre
as trilhas de longo curso:
Nos países que já tem solidificado o conceito de trilhas de longo de curso. Eles veem
que ela cria uma fidelização do usuário muito grande. Porque o sujeito começando
ele quer terminar. Porque ele continua voltando a cidade e gastando ali na sua
restauração, na sua hospedagem, no seu equipamento, para terminar a trilha a
longo curso. Ele não diz eu conheci o Parque Nacional da Tijuca ou Parque Estadual
da Pedra Branca. Ele diz: “Eu percorri a Trilha da Transcarioca inteira”. (Entrevista
ao Pedro da Cunha e Menezes ao jornal online (o eco)2015, grifos nossos).
20 http://www.wikiparques.org/wiki/Trilha_Transcarioca
21 Identificamos o diploma legal de criação: O corredor ecológico formado pela trilha transcarioca não é ainda formalmente reconhecido
pelo Ministério do Meio Ambiente, mas tem sido utilizado como estratégia de conservação pelo Mosaico Carioca de Áreas protegidas,
que foi criado pela PORTARIA MMA Nº 245, de 11 de julho de 2011
22 http://www.mma.gov.br/areas-protegidas/programas-e-projetos/projeto-corredores-ecologicos/conceitos
viagens sagradas para Palestina ou Roma atos de devoção desnecessários, uma espécie
de glacê s bre o bolo da piedade. Porém um forte elemento obrigatório entrou em
cena com a organização dos sistemas de penitência da igreja católica. Quando isto
foi organizado e autorizadas legalmente , as peregrinações foram estabelecidas como
punições adequadas para certos tipos de crimes. Conforme escreve Turner apud
Bede Jarett (1911,p85). “As dificuldades da viagem, a vestimenta penintencial e a
mendicância que ela acarreta fizeram da peregrinação um verdadeiro castigo”. Assim,
quando se começa com a obrigatoriedade, surge a voluntariedade, a obrigação tende
a entrar em cena. Para Turner (2008) esta ambiguidade é em parte consequência da
liminaridade da própria situação peregrinatória. As peregrinações representam, de
acordo com o autor, um símbolo amplificado do dilema de escolha versus obrigação
meio a uma ordem social onde o status prevalece.
Considerações Finais
A Trilha Transcarioca é um projeto de cunho conservacionista de forte apelo moral
que pressupõe a institucionalização territorial como forma de torna-la um projeto
duradouro e perene. A institucionalização territorial implica na criação de um sistema
de mobilização que produz um contingente de voluntários fieis e ao mesmo tempo
afinados com os pressupostos ideológicos da Trilha. Tal projeto é idealizado por atores
articulados com atuação engajada no campo das políticas públicas de conservação
da natureza, que transitam por diversas instâncias públicas e privadas em níveis
local, nacional e Internacional e, a partir de um determinado discurso que mistura,
ciência, moral, ética e fé, mobilizam centenas de voluntários e “adotantes”, categorias
criadas para um engajamento mais orgânico no projeto, fazendo do Movimento/
Trilha Transcarioca um modelo de conservação e ao mesmo tempo uma estratégia
de mobilização baseado num sistema de valores, práticas e ideias nos moldes da
concepção de Parque Natural. A peregrinação como obrigação ou ato voluntário no
processo social da transcarioca nos remete a ideia de:
“Nós organizamos os nossos voluntários para as atividades de sinalização dos trechos
da Transcarioca assim: Eles podem escolher uma manhã por mês pra fazer o serviço.
Quem não tem uma manhã para cuidar do parque? O bem que faz você saber a sua
contribuição para o bem da natureza não tem preço. É muito tranquilo, nem cansa,
não tem como recusar.” (representante da ACTA-instituição que adota trechos da
Transcarioca em reunião ocorrida para debater a institucionalização do MTT)
Destaca-se no trecho acima, sentimentos de cuidado e apreço relacionados ao “ bem
comum”, o retorno para as “ futuras gerações”. A ideia de um retorno simbólico a partir
desse ato é latente, a transformação por meio da caminhada, faz o “transcarioqueiro”
um peregrino da conservação.
Referencias Bibliográficas
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SIMON, Alba
Pós-Doc no Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito (PPGSD) da
Universidade Federal Fluminense (UFF)
albasimon7@gmail.com
VILHENA, Rodrigo
Mestrando do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Direito (PPGSD) da
UniversidadeFederal Fluminense (UFF)
rodrigovilhena@id.uff.br
AGUIAR, Camila
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Direito (PPGSD) da
Universidade FederalFluminense (UFF)
RESUMO
O presente trabalho pretende analisar o Termo de Compromisso (TC) previsto no
Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) como instrumento
de pactuação entre a permanência de populações tradicionais e os objetivos de Unidades
de Conservação (UCs) de proteção integral que não admitem nem o uso direto dos
recursos naturais nem e a presença humana. Para tanto, analisa o caso concreto do
Parque Estadual da Lagoa do Açu - RJ e a previsão de um Termo de Compromisso
específico em seu instrumento de criação, na perspectiva da garantia dos direitos
multiculturais das populações tradicionais inseridas no contexto do Parque. O trabalho
demonstra, ao final, contradições entre o TC do PELAG e o TC previsto no SNUC.
Palavras-chave: parques naturais; termo de compromisso; comunidades tradicionais
ABSTRACT
The present work intends to analyze the Term of Commitment (TC) foreseen in
the National System of Conservation Units of Nature (SNUC) as an instrument of
agreement between the permanence of traditional populations and the objectives of
Conservation Units (CUs) of integral protection that do not They admit neither the
direct use of natural resources nor the human presence. In order to do so, it analyzes
the concrete case of the State Park of Açu Lagoon and the prediction of a specific Term
of Commitment in its instrument of creation, in the perspective of the guarantee of
the multicultural rights of the traditional populations inserted in the context of the
Park. The work shows, in the end, contradictions between PELAG CT and the SNUC
predicted CT.
Key-words: natural parks; statement of commitment; traditional communities
INTRODUÇÃO
A categoria “Parque Natural” foi idealizada como um espaço de natureza público
voltado à pesquisa, lazer, turismo e educação ambiental, a partir da criação do
Yellowstone Nacional Park (EUA) em 1872. Como categoria de manejo do grupo de
proteção integral, tornou-se símbolo e sinônimo de conservação da natureza no Brasil
e no mundo, evidenciando conflitos socioambientais em situações de sobreposição
com territórios de uso tradicional por populações locais.
A lógica subjacente de “não uso” dos recursos biológicos inerentes a esta categoria,
baseado em um suposto “uso indireto” com atividades como turismo e lazer, se
contrapôs a lógica de uso e apropriação do espaço e de recursos naturais em espaços
sociais, produtivos e tradicionais, onde os indivíduos continuam a fazer e viver de
formas particulares, em um contexto marcado por alta diversidade cultural, étnica e
de diversidade biológica.
Essa concepção histórica de conservação se pauta no distanciamento entre natureza e
sociedade, e na crença de uma suposta hostilidade endêmica da espécie humana frente
ao uso equilibrado, ou mesmo o não uso, dos recursos biológicos necessários para “um
futuro comum” (Simon, 2010).
Há um consenso sobre a necessidade de pressupostos técnicos e científicos para seleção,
criação, implantação e gestão das unidades de conservação de proteção integral,
entendidos como orientadores fundamentais os quais deverão prevalecer sobre outras
considerações. Outrossim, assevera-se que, se a participação e a cooperação das
comunidades locais e dos demais cidadãos na defesa das unidades de conservação de
proteção integral são desejáveis e necessárias, [...] tais ações não podem ser confundidas
com os processos decisórios em relação à seleção das áreas, sua implantação e gestão,
que devem se pautar por critérios técnicos e científicos (Rede 1997; apud Barreto 2001
p.34). Para Barreto Filho, (2001 p. 33) tudo se passa como se, para um contingente
expressivo de formuladores e executores, as ações conservacionistas por meio de
Unidades de Conservação - UCs de proteção integral fossem – ou devessem ser –
resultado de um processo administrativo tecnocientífico.
Assim, a institucionalização do território a partir da criação de Unidades de
Conservação de Proteção Integral parece ser resultante de duas lógicas contraditórias,
a lógica publicista e a lógica de territorialização privada do Estado. (Simon, 2010 pg.13)
O fato é que a partir do ato legal que legitima a criação de um Parque Natural, os
residentes em seus limites passam a estar em inconformidade com o ordenamento
jurídico brasileiro, mesmo antes de terem seus direitos de desapropriação ou
reassentamento atendidos.
Na lógica de uma territorialização “privada” do Estado, esses residentes sofrem
frequentemente constrangimentos por parte de agentes de fiscalização ou dos próprios
gestores das Unidades de Conservação, além do congelamento da atividade econômica
pela necessidade de sessar os usos tradicionais anteriores e pelas dificuldades em
acessar políticas públicas básicas tendo em vista sua situação, agora, irregular. Em
outras palavras há um cerceamento dos direitos constitucionais amplificando a
condição de vulnerabilidade socioambiental, na qual muitos já se encontravam antes
da criação da UC.
alagada importante, com destaque biológico especial para o Banhado da Boa Vista e
a Lagoa do Açu, utilizada como referencial migratório por determinadas espécies de
aves e refúgio para outros animais e plantas nativos, raros, endêmicos ou vulneráveis
(INEA, 2013).
Muito embora o histórico de criação do Parque Estadual da Lagoa do Açu não seja
objeto de análise deste artigo, e sim de outro artigo em vias de finalização, não se pode
deixar de registrar o contexto em que a Unidade de Conservação se estabeleceu.
A criação do PELAG está associada ao licenciamento do Complexo Logístico,
Industrial e Portuário do Açu – CLIPA, pelo Instituto Estadual do Ambiente – Inea -
ERJ. O Complexo está localizado no município de São João da Barra, imediatamente ao
Norte do Parque, o megaempreendimento de 90 Km² une a ideia de um condomínio
industrial a um superporto, projetado para ser o maior do Brasil. O projeto foi lançado
pela iniciativa privada em parceria com o governo estadual e federal em 2006, tendo
iniciado suas obras em 2007. O Plano Diretor de São João da Barra prevê um distrito
industrial imediatamente à Oeste do CLIPA denominado Distrito Industrial de São
João da Barra – DISJB, abrangendo uma área de 72 Km², mirando os investimentos
que o Porto pode atrair para a região. Desta forma, o porto e o distrito industrial estão
intrinsecamente relacionados. O local escolhido para instalação do CLIPA e do DISJB,
estrategicamente entre as cidades do Rio de Janeiro e Vitória, constituía extensa área
de restinga, na região norte do Estado, que o PELAG objetiva preservar.
Na área do CLIPA estão instaladas diversas indústrias voltadas para o apoio de
operações offshore, tais como a National Oilwell Varco, que fornece componentes
mecânicos para sondas de perfuração e tubos flexíveis de óleo e gás, a Technip Brasil,
que oferece serviços e tecnologia para campos de desenvolvimento em águas profundas,
a Wärtsilä Brasil, que produz motores de navio e geradores para termelétricas, a BP
Prumo, que distribui combustíveis marítimos, a Anglo American, que embarca minério
de ferro no porto, dentre outras. Os investimentos feitos por estas empresas, somados,
passam dos 2 bilhões de dólares e geram mais de seis mil empregos diretos, além
dos R$ 13 bilhões investidos pela Prumo Logística desde 2008 (PRUMO, 2016). Nesse
sentido, o PELAG se insere em uma região de alto investimento econômico e relações
globalizadas.
O processo de licenciamento do Complexo do Porto do Açu pelos órgãos ambientais
não foi isenta de críticas formuladas por ambientalistas da região norte do Estado que
sempre almejaram a conservação da região das lagoas do Açu e dos remanescentes
de restinga de São João da Barra, região norte fluminense através da criação de uma
Unidade de Conservação de Proteção Integral uma vez que área era considerada
referencial de espécies de aves migratórias e refúgio para outros animais e plantas
nativos, raros, endêmicos ou vulneráveis.
A implantação e operação de um empreendimento altamente impactante como é o
CLIPA obrigou, no âmbito do licenciamento ambiental aprovado, cumprir alguns
critérios legais de compensação ambiental. A partir desta constatação a ideia de proteção
da região através de Unidade de Conservação de proteção integral ganhou força junto
aos dirigentes do extinto Instituto Estadual do Ambiente – IEF atual Inea, responsável
pela criação e gestão das Unidades de Conservação do Estado. Apesar do esforço, a
pressão dos empresários do CLIPA pela criação de uma RPPN - Reserva Particular
Referencias Bibliográficas
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MAZUR, Monica
Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Desenvolvimento Comunitário da
Universidade do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO)
E-mail: monicamazur1986@gmail.com
SCHORNER, Ancelmo
Doutor-Coordenador do Programa de
Pós-graduação em História-UNICENTRO
E-mail: ancelmo.schorner13@gmail.com
FUJINAGA, Cristina Ide
Doutora-Professora Associada do Departamento
de Fonoaudiologia e do Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar
Desenvolvimento Comunitário-UNICENTRO
E-mail: cifujinaga@gmail.com
Resumo:
O presente estudo tem como objetivo descrever as transformações da paisagem rural,
ao longo do processo de desagregação da comunidade tradicional de Capanema,
no município de Prudentópolis-PR, com base em um estudo de caso. O intuito do
trabalho consiste em compreender o modo de vida faxinalense a forma pela qual seus
costumes e tradições são representados, estão inseridos e modificam-se no decorrer do
tempo, a maneira pela qual seu território se (re)organiza, bem como as transformações
econômicas, sociais e culturais no contexto da sociedade contemporânea. No que
diz respeito aos métodos de estudo, pretende-se realizar levantamento de registros
fotográficos, antigos e recentes, enquanto documentos históricos, bem como narrativas
de moradores, com apoio da história oral.
Palavras Chave: Sistema Faxinal, Desagregação, Paisagem.
TRANSFORMATIONS IN THE RURAL LANDSCAPE IN THE COMMUNITY OF
CAPANEMA IN PRUDENTÓPOLIS-PR: MEMORIES AND PHOTOGRAPHS
Summary:
The present study has as objective to describe the transformations of the rural landscape,
along the process of disaggregation of the traditional community of Capanema, in
the city of Prudentópolis-PR. based on a case study. The purpose of the study is to
understand the way of life in the faxinal and the way how customs and traditions are
represented, where it is inserted and how it has modified in the course of time, the
way in which its territory is (re) organized, as well the economic, social and cultural
transformations in the contexts of the contemporary society. With regards to the study
methods, it is intended to survey ancient and recent photographic records as historical
documents, as well the narratives of residents, with the support of oral history.
Keywords: Faxinal System, Disaggregation, Landscape.
INTRODUÇÃO
Sistema Faxinal é uma forma de organização camponesa tradicional em processo
O
de desagregação no centro-sul do estado do Paraná e que apresenta entre as
principais características o uso coletivo da terra para criação de animais de forma
“solta”, nos chamados criadouros comunitários; produção agrícola para subsistência
e comercialização, bem como coleta da erva-mate nativa dentro do criadouro e
extrativismo florestal de baixo impacto de araucárias e outras espécies nativas.
Muitos são os estudos que abordam e questionam a sobrevivência deste sistema nos
dias de hoje, em meio a um processo de “desagregação” e risco de desaparecimento,
motivado principalmente, pelos avanços da agricultura moderna, desestímulo dos
agricultores e abandono de práticas coletivas, saída de muitas famílias do campo e
a venda das respectivas propriedades para chacareiros, entre uma série de outros
conflitos presentes nestas comunidades tradicionais.
Em Prudentópolis/PR, somente oito faxinais mantém conservadas todas as
características do sistema, no entanto, há muitos outros em processos e etapas diferentes
de desagregação. Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo descrever as
transformações da paisagem rural faxinalense, ao longo do processo de desagregação
da comunidade tradicional de Capanema, com base em um estudo de caso. No que
diz respeito aos métodos de estudo, pretende-se realizar levantamento de registros
fotográficos, antigos e recentes, enquanto documentos históricos, bem como narrativas
de moradores, com apoio da história oral.
O intuito do trabalho consiste em compreender o modo de vida faxinalense a forma
pela qual seus costumes e tradições são representados estão inseridos e modificam-se
no decorrer do tempo; o processo de desenvolvimento rural da comunidade, a maneira
pela qual seu território se (re)organiza, bem como as transformações econômicas,
sociais e culturais no contexto da sociedade contemporânea.
ara facilitar a leitura e compreensão, o estudo está dividido em três capítulos. No
P
primeiro são descritas algumas definições e interpretações a respeito dos conceitos de
“sistema faxinal” e “paisagem” utilizados para embasar o trabalho. Em um segundo
momento serão abordados os aspectos relacionados à metodologia utilizada para a
realização da pesquisa. Por fim, serão apresentados alguns aspectos históricos do
município, bem como análise e interpretação das informações coletadas.
1. CONCEITOS DE SISTEMA FAXINAL E PAISAGEM
O chamado sistema faxinal é uma forma de organização camponesa tradicional que
predomina no centro-sul do estado do Paraná e que consiste em um sistema de produção
familiar que apresenta entre as principais características o uso coletivo da terra para
produção animal, de forma “solta”, nos chamados criadouros comunitários; a produção
agrícola para comercialização e consumo próprio e extração da erva-mate, trata-se de
um sistema de produção que contribui significativamente na conservação ambiental.
Para efeito de compreensão do tema, considerou-se a definição utilizada pelo Decreto
Estadual 3.446/97, tendo em vista que o documento é referência oficial, responsável
pelo reconhecimento dos faxinais enquanto comunidades tradicionais, que ocorreu
no ano de 1997 e teve por objetivo “criar condições para a melhoria da qualidade de
Nessa perspectiva, os faxinais não devem ser interpretados enquanto modalidade única
e estática de uso comum da terra, conforme descrita pela literatura, mas enquanto forma
de organização dinâmica com estágios diferenciados de desenvolvimento, onde cada
comunidade possui características internas distintas. Para facilitar tal compreensão,
ALMEIDA (2009) organizou o sistema faxinal em quatro categorias situacionais
distintas, a partir de estágios diferentes de desagregação e perda das características
típicas do sistema, sendo:
1) Faxinais com uso comum – “criador comum aberto”: [...] grandes extensões
territoriais (acima de 1000 há) livremente acessados por “criações altas e baixas”
para uso comum das pastagens naturais e recursos hídricos [...] 2) Faxinais
com uso comum – “criador comum cercado”: Se caracterizam pela presença
do uso comum dos recursos essenciais em “criadores comuns” de extensões
variáveis onde circulam livremente “criações baixas” (cabritos, ovelhas, porcos
e galinhas) e “altas” (gado bovino e cavalar) sendo delimitadas fisicamente
por cercas de uso comum, “mata-burros”, portões, valos e rios [...]. 3) Faxinais
com uso comum – “criador com criação grossa ou alta”: Se caracterizam
pelo “fechamento”, com cercas de 4 fios de arame nas divisas de algumas ou
todas propriedades, antes destinadas para o uso do “criador comum”, ficam
disponíveis apenas algumas áreas privadas, além das áreas públicas (beiras de
estradas, campos de futebol, pátio de igrejas,...) [...]. 4) Faxinais sem uso comum
– “mangueirões” e “potreiros”: Representam situações em que o uso comum da
criação animal (“baixa” ou “alta”) ocorre somente pelo grupo familiar ou ao
grupo doméstico. [...]. (ALMEIDA, 2009 p. 49-51).
Para tanto, será realizado um estudo de caso, tendo em vista que o mesmo é
caracterizado pelo estudo exaustivo de um ou de pouco objetos, de tal forma a
permitir o seu conhecimento amplo e detalhado, a investigação de um fenômeno em
sua singularidade, a partir do seu contexto real e a complexidade de um caso concreto,
utilizando-se, para tanto, de diferentes fontes de investigação YIN (2001).
Quanto a natureza, a abordagem do estudo será qualitativa buscando analisar e
interpretar os dados a partir de reflexão e exploração do tema de forma profunda e
completa, uma vez que “os estudos denominados qualitativos têm como preocupação
fundamental o estudo e a análise do mundo empírico em seu ambiente natural. Nessa
abordagem valoriza-se o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente
e a situação que está sendo estudada” (GODOY, 1995 p. 62).
No que diz respeito aos métodos de coleta de dados, pretende-se realizar levantamento
de registros fotográficos, antigos e recentes, enquanto documentos históricos, bem
como narrativas de moradores, com apoio da história oral. O processo de coleta de
dados foi realizado no período de Junho a Agosto de 2016. A seleção do faxinal de
Capanema deu-se a partir de critérios de conveniência e acessibilidade do pesquisador,
por tratar-se de uma comunidade faxinalense em processo de desagregação do modo
de vida tradicional e também pelo fato de não ter sido encontrado nenhum outro
estudo sobre tal faxinal.
Por fim, será realizada a análise e interpretação das informações coletadas e respectivo
relatório.
3. ESTUDO DE CASO
Neste capítulo, para maior compreensão acerca da origem e desenvolvimento da
comunidade em estudo, serão apresentados alguns dados históricos do município de
Prudentópolis-PR e a imigração ucraniana, bem como apresentação dos dados obtidos
e respectiva análise.
3.1. Aspectos Históricos do Município de Prudentópolis e a imigração ucraniana
O distrito de São João do Capanema, onde futuramente seria estabelecido o município
de Prudentópolis era habitado, inicialmente, por índios coroados, que após longo
período de sucessivas lutas com desbravadores paulistas, desde o final do século
XVIII, foram praticamente extintos, durante o processo de conquista e desbravamento
dos Campos de Guarapuava (SENIUK E SKAVRONSKI, 2014).
As trilhas abertas pelos desbravadores tornaram-se caminho das tropas pela
qual transportava-se gado e derivados, na beira dos caminhos muitos tropeiros
construíram suas casas, passando a viver da agropecuária. No ano de 1883
Chegou a região Firmo Mendes de Queiróz, que visando maior estabilidade e
segurança para os moradores locais, doou parte de suas terras para a fundação
de um povoado, por este motivo, Firmo é considerado o fundador, do município
que foi oficialmente “criado”, somente em 1906, sob o nome de Prudentópolis
em homenagem ao presidente da república Prudente José de Morais Barros
(SENIUK E SKAVRONSKI, 2014, p. 87).
Assim sendo, a propaganda feita do Brasil no velho continente era enorme, tido como
a “terra prometida” e local de vida fácil. O governo brasileiro financiava a passagem
das famílias que tinham interesse, bem como, oferecia uma quantia de terras, para que
o pagamento fosse realizado com trabalho e até mesmo abertura de estradas no local
da colonização. Conforme Boruszenko (1995) apud SENIUK E SKAVRONSKI(2014):
[...] A partir de 1895, teve início uma verdadeira debandada de camponeses da
Ucrânia para o Brasil, às custas do governo republicano. No decurso de dois
anos, mais de cinco mil famílias abandonaram suas aldeias e, na grande maioria,
fixaram-se no Paraná; entre 1897 e 1907, mais de mil emigraram às próprias
custas. Com a renovação do transporte gratuito em 1907, novas grandes levas
de emigrantes dirigiram-se ao Paraná (SENIUK E SKAVRONSKI, 2014, p. 83.
distribuísse entre os imigrantes, o que foi realizado e dessa forma João Lech “tornou-se
o administrador e encarregado da venda de lotes coloniais. Estavam sob suas ordens a
construção de estradas e pontes”, conforme citado por GUIL (2015, p. 19).
De início, a colônia foi dividida em 29 núcleos ou linhas rurais, sendo que cada família
recebeu um lote com cerca de 10 alqueires de terra. Ainda de acordo com GUIL (2015)
“A demarcação dos lotes destinados aos colonos foi traçada inicialmente à
margem esquerda do Rio dos Patos. Segundo relatos, o trabalho de medição
era feito com correntes. Em algumas colônias os lotes foram separados por
valetas profundas, escavadas pelos colonos. Além de fazer as divisas essas
valas impediam a passagem de animais de uma propriedade a outra” (GUIL
2015, p. 19)
Os imigrantes não receberam nenhum apoio e nenhuma estrutura, não possuíam casas,
roupas, alimentos, acesso a hospital ou igrejas, transporte, o início na nova pátria foi
muito difícil em terras ainda não desbravadas o que custou muitas vidas, tanto que na
época se ouvia dizer que “havia mais imigrantes no cemitério do que vivos” (SENIUK
E SKAVRONSKI (2014, p. 88), algo muito distante das promessas propagadas pela
Europa de “ruas pavimentadas com esmeraldas” (MORSKI, 200, p. III apud SENIUK E
SKAVRONSKI (2014, p. 83).
A dificuldade era tanta, que “não era aconselhado sair sozinho na floresta, de forma
alguma sair à noite. Desbravar em grupos era uma estratégia que ajudava”, tal
conforme aponta (SENIUK E SKAVRONSKI, 2014, p. 88), o que nos remete a pensar
na forma de organização em núcleos próximos e com fortes laços de coletividade que
permanecem vivos até hoje.
3.2. Análise e Discussão dos resultados
A comunidade de Linha Capanema, nome dado em homenagem à Guilherme Schüch,
o Barão de Capanema está situada no centro-oeste do município, há aproximadamente
20 km do centro. A comunidade foi fundada no início do século XX, por imigrantes
ucraniano que receberam lotes de terras do governo, entre as famílias fundadoras
Sem sombra de dúvidas a igreja é centro da vida social da comunidade, é onde as pessoas
se reúnem para rezar, celebrar, comemorar, trocar informações e até mesmo conversar
nos finais de semana e nos “dias santos”. Os moradores do Capanema bem como
demais comunidades vizinhas fazem parte da igreja “Natividade de Nossa Senhora”,
na comunidade vizinha de Eduardo Chaves, todos participam dos compromissos e
deveres, desde a limpeza do local, organização das festas e celebrações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, A. W. B. et al. (2009), Terras de Faxinais. Manaus: Edições da Universidade
do Estado do Amazonas – UEA.
GODOY, Arilda Schmidt. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades.
RAE Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 35, n. 2, p. 57-63, mar./abr.
1995.
GUIL, Luiz Francisco.As Linhas de Prudentópolis. Curitiba. Arte Editora. 2015.
KOSSOY, Boris. R
ealidades e Ficções na Trama Fotográfica. Cotia – SP: Ateliê Editorial,
1999.
LÖWEN SAHR, Cicilian Luiza; CUNHA, Luiz Alexandre Gonçalves. O significado
social e ecológico dos Faxinais: reflexões acerca de uma política agrária sustentável
para a região da mata com araucária no Paraná. In: Revista Emancipação, Ponta
Grossa, v. 5, n.1, p. 89-104. 2005.
MARQUES, Claúdio L. Guimarães. Levantamento preliminar sobre o sistema faxinal
no Paraná. Curitiba. 2005 (Relatório de Consultoria Técnica) - Instituto Ambiental do
Paraná - IAP.
PARANÁ, Decreto Estadual, nº 3446 de 14/08/1997. Cria as áreas especiais de uso
regulamentado. ARESUR no Estado do Paraná e dá outras providências. Diário Oficial
do Estado, Curitiba, nº 5.067 de 14/08/1997.
SENIUK, T. SKAVRONSKI, M.I.A. Imigração Ucraniana e Colonização em
Prudentópolis (1895 - 1945) Ateliê de História UEPG. Disponível em: http://www.
revistas2.uepg.br/index.php/ahu/article/view/6566. Acesso em: 23/08/2016 às
16:17h.
YIN, R. K. Estudo de Caso: Planejamento e método. Porto Alegre: Bookman, 2001.
highlighting a clipping of that culture and how it came about. The photography will
be used as a creative mode of intervention. For that, Visual Anthropology and Way of
Life of Extractive Population will be used as theoretical contribution. The method used
is Phenomenological where the description of the experience during the photography
achievement is shared. The results where interpreted in light of Ethnological Research.
Key words: Way of Life of Extractive Population. Extractive Reserve of Cazumbá-
Iracema. Photographs.
INTRODUÇÃO
A Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema está localizada no estado do Acre. Possui
uma área de 751 mil hectares, estritamente de bioma amazônico. Vivem nela cerca
de 1,3 mil pessoas que procuram manter seu modo de vida tradicional e sua história
carregadas de lutas e conquistas sociais.
As Reservas Extrativistas são áreas de domínio público, pertencentes aos Sistema
Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e utilizadas por populações tradicionais.
Essa categoria de Unidade de Conservação (UC) têm como objetivos básicos proteger
os meios de vida e a cultura dessas populações e assegurar o uso sustentável dos
recursos naturais desse lugar.
A Reserva Extrativista, ou simplesmente Resex, simboliza o resultado de uma luta
coletiva de uma categoria social marginalizada ou mesmo sem visibilidade por muito
tempo no âmbito nacional. Dessa forma, o aporte teórico na condução desse artigo
será a partir das ideias da Antropologia Visual, Educação Social e Comunidades
Tradicionais.
O Plano de Manejo da Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema (ICMBIO, 2007)
enfatizou que: “serão priorizadas ações que visem desenvolver a percepção da
importância da conservação dos recursos naturais, o fortalecimento comunitário,
desenvolvimento do senso de pertencimento e a postura crítica e emancipatória
dos envolvidos utilizando, para isso, a percepção dos moradores da comunidade”.
Diante disso, como forma criativa, foi pensada a fotografia, para que a população da
comunidade pudesse contar sua historia e sua vida, revelando características de sua
identidade cultural e a sua percepção.
Essa ideia surgiu em 2012, no aniversário dos dez anos da Resex do Cazumbá-
Iracema, quando foi realizada uma exposição fotográfica com imagens dessa UC.
Foi impressionante o olhar com que as pessoas olhavam as fotografias. Muitos
perguntavam: esse lugar é aqui mesmo?
As perguntas despertaram reflexões: por que é importante enquadrar um pequeno
espaço para poder despertar tanta curiosidade? Por que uma simples imagem
proporciona tanto encantamento?
A Antropologia Visual vem, nesse estudo, enfatizar e abordar os benefícios que a
fotografia pode trazer para os estudos sobre os povos tradicionais presentes na Resex
do Cazumbá-Iracema. Elas podem revelar o modo de vida, o cenário, as problemáticas
e suas belezas.
com sua realidade imediata. Segundo Gustsack (2016, p.216), “ao vincular a identidade
à cultura”, Paulo Freire aponta para seu “caráter fluido, para a constante mutável e
mutante da humanidade, para uma concepção de sujeito” que cria sua história e se faz
um ser histórico-social.
O educador e sociólogo Souza Neto (2010, p. 39), destaca que essa sustentação teórica
“está ligada às conquistas dos direitos humanos”. A Educação Social aborda as
ideias de Paulo Freire que valoriza e resgata a identidade humana, com o objetivo da
libertação da opressão e as transformações sociais. A luta por permanecer na floresta
e dela se sustentar foi e é constante no estado do Acre, onde se destacou o seringueiro
e líder sindical Francisco Alves Mendes Filho, mais conhecido como Chico Mendes.
As ideias da Educação Social reforçam o sentido da relação social que essas pessoas
vivem, trazendo a dimensão de seus valores e de sua identidade cultural.
Segundo o Plano de Manejo da Resex do Cazumbá-Iracema (2007, p.84):
“Destaca-se, também, a grande importância de se investir no resgate e
manutenção dos valores culturais tradicionais, de forma que as iniciativas
de melhoria de qualidade de vida não impliquem no distanciamento ou
rompimento das relações culturais dos moradores com a floresta, com
consequente desestímulo à organização comunitária, que servirá de base de
sustentação para sua conservação e uso racional.”
Diante disso, a forma de resistência e de luta pelas comunidades tradicionais por suas
terras no Acre incorporou elementos transversais que não podem ser separados do
ecológico, pois sem a Floresta não há o Extrativismo. Em relação ao campo econômico,
permanecer na terra é garantir a sobrevivência das presentes e futuras gerações. E no
campo sociocultural, o saber ser seringueiro é também um direito à identidade de grupo.
Breve resgate histórico da cultura extrativista
A história dos extrativistas no Acre é carregada de conflitos, onde podemos nos
apoiar nas ideias do campo da Educação Social para dialogar com os processos de
mudanças sociais que a população extrativista vem enfrentando nas últimas décadas.
SOUZA NETO (2010, p.29) nos faz refletir que esse cenário se trata de uma “realidade
multiforme, contraditória e desafiadora” que, no caso desse recorte histórico, inicia
a partir de 1860, onde o potencial de riqueza natural dos rios acreanos despertou a
cobiça dos exploradores pela borracha da seringueira.
No final do século XIX (1870/1890), nordestinos fugindo da seca começam a chegar
ao Acre e eram colocados como seringueiros para a extração do látex das seringueiras
(figura 2). A grande maioria se constituía de homens, jovens ou adultos que vinham
como força de trabalho despojada de qualquer condição ou instrumento de produção
para se engajar na empresa extrativa da borracha. Até 1970, mais da metade da
população vivia nesse meio, na condição de seringueiro, ribeirinho e indígena, o que
inspirou a denominação de povos da floresta.
Entre os anos de 1880 a 1910 o ritmo da exploração da borracha foi intenso. Mas, em
1912, seringais de cultivo da Malásia ultrapassam a produção brasileira de borracha.
Com isso, surge uma grande crise na produção da borracha brasileira. Muitos
seringalistas (proprietários) acabam por abandonar seus seringais. Os seringueiros
que permaneceram nas colocações1 começam a cultivar roçados, a caçar e a pescar,
baseando-se na cultura indígena para sua sobrevivência.
Na Segunda Guerra (1940/1945) o Japão ocupa a Malásia e corta o fornecimento
de borracha para os Aliados. A eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939
possibilitou um novo alento a economia extrativa da borracha em decorrência da
Batalha da Borracha, quando a Amazônia se tornou novamente a grande fornecedora
de látex para os países aliados (França, Inglaterra e EUA) em conflito com os países
do Eixo (Alemanha, Itália e Japão).
Os EUA então financiam um ambicioso programa de reativação dos seringais
amazônicos. Frente ao contexto da época, os governos brasileiro e norte-americano
uniram-se para a mobilização da Batalha da Borracha e os nordestinos com apoio
nacional e norte-americano foram para o Acre, mais uma vez, produzir borracha.
Foi realizado um grande recrutamento de nordestinos, que ficaram conhecidos como
Soldados da Borracha. Os nordestinos poderiam escolher entre ir para a produção da
borracha ou ir para a guerra. Ou seja, aqueles que fossem para a produção da borracha
não iriam para a guerra.
Pelo exposto fica evidente que para a economia extrativa da borracha, o período de
euforia econômica foi decorrente da Batalha da Borracha, que iniciou um novo capítulo
da história do nordestino na Amazônia.
1 O termo origina-se da palavra “colocar”, já que quando chegavam para cortar seringa eram “colocados” em uma determinada área.
(PONTES, 2014, p. 117).
A acentuada queda nos preços internacionais da borracha fez com que ficasse cada
vez mais difícil trazer nordestinos para o corte de seringa, o que por sua vez gerou a
necessidade cada vez maior do aproveitamento dos índios como mão de obra, tornando
comum a prática dos patrões-seringalistas de reunirem grupos dispersos de diversas
etnias para trabalharem em seus seringais. Alguns desses patrões notabilizaram-se
como amigos dos índios.
E os povos nativos do Acre, como ficaram neste período? Desde o estabelecimento
da empresa extrativista da borracha até, praticamente, a década de 1980, os índios do
Acre passaram por uma longa fase de degradação de suas culturas tradicionais. Além
dos preconceitos social e historicamente construídos pelos não índios, a expropriação
de suas terras ancestrais e a carência de políticas públicas voltadas para esses povos,
mormente nos campos da educação e da saúde gerou uma grave condição econômica
e social. Transformados compulsoriamente em seringueiros ficaram a margem de
qualquer legislação que os amparasse.
Os anos 1970 e 1980 desenharam outro contexto para o Acre. Muito embora seringueiros
e ribeirinhos acreanos não fizessem uma pressão direta e aberta, à medida que
o excedente de mão de obra ia sendo dispensado das áreas rurais, um contingente
de desempregados se formava nos bairros e no entorno das cidades acreanas ainda
despreparadas para recebê-los. Diante desse fato, o governo do Estado do Acre
sentia-se pressionado a viabilizar alguma alternativa socioeconômica para resolver tal
situação. De acordo com Souza Neto (2010, p.32), faz-se necessário “oferecer respostas
positivas a milhares de pessoas vítimas de processos de injustiça social, especialmente
de violações de direitos”.
As tensões sociais de meados de 70 fizeram com que trabalhadores rurais do Acre
se organizassem na defesa de seus interesses. Os seringueiros passaram a exercer
fortes pressões junto aos grandes fazendeiros e ao governo do Estado do Acre através
dos movimentos denominados de empates, que consistiam em reunir um grande
número de seringueiros que impediam (empatavam) sem o uso de armas que áreas
de florestas fossem derrubadas. Essas pressões dos seringueiros se explicam por seu
amadurecimento político ao perceber a necessidade de uma tomada de posição frente
à expropriação que sofriam de suas posses.
Os grupos organizados instituíram o 1º Sindicato para lutar pelos seus interesses:
o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, no ano de 1976. Em seguida, no
ano de 1977 foi criado o de Xapuri. Nessas organizações podemos ver muito forte a
presença da Educação social, que tem como objetivo, segundo Souza Neto (2010, p.
32) de “ajudar a realidade social e humana, melhorar a qualidade de vida, por meio
do compromisso com os processos de libertação e de transformação social nos quais
vivem ou sofrem as pessoas”. Foram desses sindicatos que saíram líderes como Aldeci
Cerqueira (Nenzinho), que lutou pela criação da Resex do Cazumbá-Iracema e Chico
Mendes que lutou pela criação da Resex Chico Mendes, ambas são as maiores do
território acreano.
Parte da história do movimento ecológico é proveniente da histórica luta dos
seringueiros no Acre. Segundo Souza Neto (2010, p. 51) “o homem não pode
desvendar a si mesmo e ao mundo senão por meio de conflitos e de resistências que
as circunstâncias lhe impõem”.
Foram então criadas as Reservas Extrativistas, considerada por muitos como a Reforma
Agrária dos seringueiros. Este reconhecimento de áreas tradicionalmente ocupadas
por eles só foi possível através de intenso fortalecimento político tais como a formação
do Conselho Nacional de Seringueiros e da aliança dos povos da floresta.
A Reserva Extrativista geralmente é gerida por um Conselho Deliberativo, presidido
pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de
órgãos públicos, de organizações da sociedade civil e das comunidades de populações
tradicionais residentes na área, conforme se dispuser em regulamento e no ato de
criação da unidade. Segundo Gadotti (p.16) é importante que uma comunidade se
organize e tenha uma “educação comunitária para a participação e a autogestão, uma
educação integrada ao trabalho produtivo e uma educação comunitária para trabalhar
associativamente”.
A visitação pública é permitida, desde que compatível com os interesses locais
e de acordo com o disposto no Plano de Manejo da área. A pesquisa científica é
permitida e incentivada, sujeitando-se à prévia autorização do órgão responsável pela
administração da unidade, às condições e restrições por este estabelecidas e às normas
previstas em regulamento.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Nas Reservas Extrativistas existem políticas federal e estadual para o fortalecimento
das áreas protegidas de uso sustentável, além da política de fortalecimento de cadeias
de valor para produtos da sociobiodiversidade.
Os moradores da Resex do Cazumbá-Iracema, geralmente, exercem mais de uma
atividade de extrativismo. Trabalham no seringal, na coleta e quebra de castanhas
do Brasil, na pesca, no roçado, na produção de artesanatos, na extração do óleo da
copaíba, na produção do vinho (polpa) do açaí; exercem também papéis sociais como
participação na associação da comunidade, no futebol diário e nas festas e eventos
culturais.
Retirada de látex da seringueira
É a atividade produtiva tradicionalmente exercida pelas famílias, tendo como principal
produto a borracha. Essa atividade (figura 2), até hoje, vem sendo passada de pais para
filhos. Ela também é realizada por mulheres. Uma cultura forte e muito presente na
vida dos extrativistas.
Para realização dessa atividade, os seringueiros realizam longas caminhadas pela
floresta. Utilizam instrumentos específicos para realizar o corte da seringueira, que
consiste em abrir os vasos laticíferos situados na casca da árvore, ato que requer técnica
e cuidado. Trata-se de uma atividade de grande relevância na comunidade extrativista
e que representa fortemente a sua identidade cultural.
Figura 3. Foto: Quebra da castanha – Autor: Rubens Matsushita. Local: Resex Cazumbá-
Iracema – Ano: 2015.
As castanhas, após sua quebra, são ensacadas. No fim do dia, os homens carregam
sacas de castanha nas costas, geralmente, entre 50 e 60 kg. Eles caminham entre uma e
quatro horas todos os dias durante a temporada de coleta.
Hoje existem cooperativas que compram a castanha e incentivos do governo que oferece
um subsídio financeiro que garante o preço justo do produto. Segundo Souza Neto (2010
p. 57) “isso é essencialmente importante, pois a exploração desumaniza opressores e
oprimidos, impede a expansão da capacidade de amar e de ser amado, de sonhar, de
desejar e ser desejado, de formular projetos, de desenvolver potencialidades”.
Sobre a castanheira, Ranzi (2007, p.21) nos alerta que “embora seu corte esteja
protegido por lei, quando a mata de seu entorno é derrubada ela não sobrevive,
deixando inclusive, de produzir frutos, por falta de polinizador e aos poucos seca, vai
definhando e morre”.
Pesca Artesanal
Na comunidade a pesca é uma atividade que ocorre durante o ano inteiro, com mais
ênfase durante o verão, que é o período de estiagem. Além das tarrafas (figura 4),
também utilizam malhadeiras. Existe, ainda, uma forma bem exclusiva e característica
de pesca, que é o visgo ou bicheiro. Consiste no uso de um aparato formado por um
grande anzol preso em um pedaço de madeira e amarrado em uma corda. O pescador
mergulha com esse instrumento e tateia os peixes que estão sob balseiros (troncos e
galhos flutuantes) que se encontram nas águas turvas do rio. Ao perceber o peixe, ele
o fisga, que é o ato de enfiar o visgo ou bicheiro. Com isso, o peixe tenta escapar mas
acaba sendo puxado à superfície pela pela corda.
Roçado
O roçado é a área destinado para o plantio de produtos de subsistência tais como
arroz (figura 5), mandioca, macaxeira, milho, banana e feijão. A escolha do que será
plantado é realizado de acordo com as estações do ano, respeitando os alimentos que
são mais resistentes ao período de chuvas e/ou seca.
Essa atividade, geralmente, é realizada de forma coletiva. Segundo GADOTTI (p.15)
“Produzir é gerar relações sociais de produção. A produção não é só um fenômeno
econômico. Ela está associada a um modelo de desenvolvimento social e pessoal”. Cada
família cultiva seu próprio roçado e é muito comum a troca de alimentos cultivados
entre outras famílias. As crianças e as mulheres participam ativamente, juntamente
com os homens, tanto do plantio como da colheita.
Figura 6. Foto: Casa de farinha – Autor: Rubens Matsushita. Local: Resex Cazumbá-
Iracema – Ano: 2016.
Açaí
A coleta do açaí se destaca como uma atividade muito praticada nas Reservas
Extrativistas. O colhedor escala o estipe (caule) da palmeira com auxílio de uma peconha
(pano amarrado nos pés) e corta o cacho com um tessado (facão) na sua base. Essa
prática requer muita habilidade. Essa atividade é de grande referência cultural, por
se constituir em elementos criadores, vivos, atrelados a um passado, mas ao mesmo
tempo, vivo e presente na realidade da comunidade extrativista (figura 8).
Figura 8. Foto: Coleta de açaí – Autor: Rubens Matsushita. Local: Resex Cazumbá-
Iracema – Ano: 2016.
O açaizeiro se destaca, entre os diversos recursos vegetais, pela sua abundância e por
produzir importante alimento para as populações locais. Dos seus frutos é extraído o
vinho, polpa ou simplesmente açaí, como é conhecido. É habitualmente consumido
com farinha de mandioca, associado ao peixe, camarão ou carne, podendo ser
considerado como alimento básico para as populações tradicionais ribeirinhas. Por
seu teor energético, nutritivo e sabor, a produção e comercialização do açaí alcançou
as grandes capitais em todo o Brasil e países como os Estados Unidos e o Japão.
Podemos considerar a atividade de coleta do açaí como um patrimônio imaterial, pois
é transmitido de geração a geração, constantemente recriado pelas comunidades e
grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história,
gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover o
respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.
Outras fontes de alimentação
Os hábitos de alimentação fazem parte da riqueza extraída da cultura dos povos
tradicionais. O tipo de alimentação varia de acordo com disponibilidade dos recursos
da caça, pesca e da produção agrícola. As famílias também têm o hábito de se
alimentarem de produtos florestais.
Figura 9. Foto: Caça de jabuti – Autora: Aurelice Vasconcelos. Local: Resex Cazumbá-
Iracema – Ano: 2012.
Atividades culturais
São muitas as atividades culturais presentes na comunidade tradicional da Resex do
Cazumbá-Iracema. As manifestações culturais envolvem a compreensão de diferentes
identidades, surgidas e reproduzidas no tempo e no espaço.
Na Resex do Cazumbá-Iracema, as Festas Juninas, principalmente as danças (Figura 10),
ocorrem em eventos comemorativos como o aniversário da Associação dos moradores
(agosto), o aniversário de criação da Resex (setembro) e nos campeonatos de futebol.
Figura 10. Foto: Festa dos 10 anos da Resex – Autor: Rubens Matsushita. Local: Resex
Cazumbá-Iracema – Ano: 2012.
Figura 11. Foto: Artesanatos de látex – Autor: Rubens Matsushita. Local: Resex
Cazumbá-Iracema – Ano: 2012.
Barcos e canoas como transporte
As famílias utilizam barcos e canoas como transporte (figura 12), principalmente,
na estação do inverno (novembro a maio), meses de maior ocorrência de chuvas.
Os extrativistas se deslocam pelo Rio Caeté (rio principal) e igarapés (afluentes) em
embarcações que variam de tamanho conforme a necessidade dos moradores.
As embarcações são construídas por eles próprios. Como diz SOUZA NETO (2010,
p. 44) “a vida inteira é aprendizagem”. As técnicas são passadas de geração em
geração, inclusive, o melhor tipo de madeira que deverá ser usado. Essas embarcações
refletem na identificação do que podemos chamar de bens culturais representativos da
comunidade extrativista.
Figura 12. Foto: Barcos e canos como transporte – Autora: Aurelice Vasconcelos. Local:
Resex Cazumbá-Iracema – Ano: 2016.
Habitações
De maneira geral as habitações são rudimentares e seguem o mesmo padrão utilizados
em toda a Amazônia e outros povos no mundo conhecidos como palafitas (Figura 13).
São construções de madeira com coberturas de palha ou telhas de fibrocimento. As
comunidades extrativistas se reconhecem nessas moradias, valorizam, identificam e
preservam a sua forma de moradia. Suas casas representam a identidade cultural.
Figura 13. Foto: Habitação tradicional – Autor: Rubens Matsushita. Local: Resex
Cazumbá-Iracema – Ano: 2012.
RESULTADOS ALCANÇADOS
Essa pesquisa possibilitou conhecer um pouco mais do modo de vida extrativista.
Segundo Ranzi (2007, p.67), “o elemento humano nativo, que constitui o povo
tradicional da floresta, apesar de sua contribuição fundamental e decisiva no processo
de formação socioeconômica e cultural da Amazônia, foi no seu desenvolver histórico
exaltado por uns e desprezado por outros”.
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Introdução
A partir do trabalho de campo que se desenvolve no acampamento de reforma
agrária Sebastião Lan (RJ) pretendemos apresentar “pistas”, “sinais” ou “indícios”
sobre a influência da cultura religiosa na organização de uma comunidade rural (que
completará em 2017 vinte anos de existência). Nesse sentido, utilizamos o paradigma
indiciário (GINZBURG, 1989) como caminho de investigação sobre uma verdade
provável, a “afinidade eletiva” entre a religião evangélica e a postura passiva do Estado
em relegar suas funções de promotor da política de reforma agrária.
Dando continuidade à prática do Observatório Fundiário Fluminense, vinculado à
Universidade Federal Fluminense, acompanhamos, observamos e interferimos no
processo institucional que busca integrar os imperativos de conservação da natureza
com as necessidades de sobrevivência das comunidades de pequenos agricultores no
entorno da Reserva Biológica (Rebio) de Poço das Antas (RJ).
Durante o longo tempo de espera, várias situações contraditórias emergiram: venda
de lotes por alguns que não suportaram financeira ou emocionalmente a longa espera;
alteração na direção política da comunidade; mudanças no Governo Federal e na
política de reforma agrária; ingresso de novos ocupantes/reocupação, ocasionando
o surgimento de novos interesses, entre eles, a forte presença de igrejas evangélicas.
Assim, o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Sebastião Lan II se desenvolve
numa área que tem mais de duas décadas de presença humana.
Neste artigo, pretendemos, portanto, relacionar a luta pela terra em Sebastião Lan com
a literatura sobre conflitos socioambientais e o denominado ecologismo dos pobres
para compreender o surgimento de um novo discurso religioso na comunidade. Nesse
contexto, acreditamos que a tensão entre meio ambiente, produção rural e agentes
públicos encobrem o conflito real, que se dá em relação à questão fundiária, e as
diferentes visões de mundo dos sujeitos envolvidos.
O conceito weberiano Wahlverwandtschaft (afinidade eletiva), desenvolvido em
“Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, demonstra a existência de elementos
convergentes e análogos entre a ética religiosa e um comportamento econômico. Nesse
sentido, Michael Löwy (2014) chama atenção para uma possibilidade de “simbiose
cultural”1, conceito que nos apropriamos para compreender as pistas levantadas entre
um perfil de agricultor presente no imaginário do agente do Estado e promotor de
políticas públicas para reforma agrária, e uma ética evangélica que passa a organizar
a vida comunitária.
Partindo do acompanhamento do caso de Sebastião Lan II ao longo do tempo, nos
remetemos ao paradigma proposto por Ginzburg para compreender os elementos
da realidade, ou observar as “zonas privilegiadas - sinais, indícios - que permitem
decifrá-la” (GINZBURG,1989:177). Em paralelo, o debate proposto por Alier (2007) nos
oferecerá um espaço de análise complementar ao classificar os tipos de discursos sobre
a natureza, que são operacionalizados no caso de Sebastião Lan II, ora para justificar
1 “Enfim, a articulação, a combinação ou a união entre essas duas configurações pode resultar numa espécie de ‘simbiose cultural’, em
que cada uma permanece distinta da outra, mas ambas estão organicamente associadas. É em algum ponto entre esses dois últimos
níveis que se situa a Wahlverwandtschaft entre ética protestante e espírito do capitalismo, abordada no grande clássico de 1920”
(LÖWY, 2014: 72).
Fotos da esquerda para a direita da Associação dos Trabalhadores Rurais de Sebastião Lan II:
anos de 2003, 2005 e 2014
3 “Disputando espaço com o avanço da urbanização, como é o caso do Rio de Janeiro; [...] A reapropriação de espaços pouco explorados,
onde as atividades agrícolas dos assentados para além de proporciona-lhes os meios de vida também adquire funções políticas de
delimitação de território, [...] (MEDEIROS, 1999: 14).
há o aproveitamento do solo nos meses de seca (com culturas que produzem entre
3 e 6 meses) e, também, com culturas resistentes à água nos meses de maior índice
pluviométrico4. A área encontra-se dividida por órgãos públicos em 82 lotes, que
variam entre 8 a 12 ha cada, dos quais 61 encontram-se ocupados, 15 estão vazios e 1
lote está em uso coletivo da Associação citada.
Sobre os discursos de sacralidade da natureza
A complexidade do estudo de caso de Sebastião Lan II exige, necessariamente, o
esforço de compreender a superposição de dois “constrangimentos” ambientais
necessários para a instalação do projeto de assentamento: o fato da comunidade estar
inserida numa Área de Proteção Ambiental (APA) e na zona de amortecimento de
uma “Reserva Biológica”. Através de uma rápida leitura do SNUC identificamos a
APA como uma unidade de uso sustentável, ou seja, uma área com ocupação humana
e dotada de atributos importantes para a vida e o bem-estar das populações humanas,
dotada de objetivos claros para a proteção da diversidade biológica.
A importância da APA no âmbito do SNUC pode ser evidenciada, principalmente,
na análise de que esta Unidade de Conservação (UC) contribui para a manutenção da
diversidade biológica, recuperação de áreas degradadas e promoção de atividades de
pesquisa científica, e educação ambiental. Nesta lei também encontramos a Reserva
Biológica definida como uma unidade de proteção integral, em que em seu artigo 10
estabelece como objetivo: “a preservação integral da biota e demais atributos naturais
existentes em seus limites, sem interferência humana direta ou modificações ambientais”.
Esses dois modelos de proteção ambiental podem ser interpretados também como
expressão de um intenso debate de consolidação do próprio SNUC. Como demonstra
Doralice Barros Pereira que, até a década de 60, a criação de UCs era vinculada a razões
estéticas ou políticas, portanto as criações anteriores das UC foram sobretudo aleatórias.
A autora observa que ainda em 1992, enquanto o SNUC restringia-se a um projeto de
Lei, convivíamos com dois formatos de unidades de conservação: o de uso direto e de
uso indireto. Ou seja, daqueles que possibilitavam um uso sustentável de seus recursos
naturais e daqueles destinados à conservação da biodiversidade e pesquisa. A APA
estava classificada como de uso direto. Para Esterci e Fernandez, o SNUC é considerada
uma lei “híbrida porque abriga as tensões entre dois modelos polares”5.
O desenvolvido por Esterci e Fernandez, há uma nítida compreensão de como no
Estado do Rio de Janeiro, apesar das tensões, as áreas de proteção integrais continuam
a ser criadas, ou, podemos dizer, ampliadas. A análise das autoras identifica a presença
e consolidação do projeto conservacionista na antiga capital federal (Rio de Janeiro)
nos anos 30. E, nos anos 40, uma segunda geração conservacionista protagoniza a
criação de parques a partir de brechas do desenvolvimentismo ainda germinal. Esse
desenvolvimentismo se consolidará entre 1950 e 1980: “A criação de áreas intocadas seria
o salvo-conduto para o desenvolvimento acelerado, funcionando como medida compensatória
para o impacto das grandes obras de infraestrutura, frente às agências internacionais.”6
4 Faz-se necessário destacar que o primeiro “pluviômetro” de todo o Vale do Rio São João foi produzido artesanalmente pelo agricultor
conhecido como “Gaúcho”, que ocupa seu lote desde o início da ocupação, em 1997, e serve de referência e consulta para diversos
órgãos de assistência técnica rural.
5 ESTERCI; FERNANDEZ, 2009: 25.
6 ESTERCI; FERNANDEZ, 2009: 21.
7 “A modernização ecológica caminha sobre duas pernas: uma econômica, com ecoimpostos e mercados de licenças de emissões; a
outra, tecnológica, apoiando medidas voltadas para a economia de energia e de matérias-prima.” (ALIER, 2007: 27-8)
na agricultura, mas, pela primeira vez na história, ela ganha escala industrial sob as
regras do capitalismo.
No início de 2015, numa reunião dentro da sede do INCRA, diante de um clima de
tensão sobre a impossibilidade de aproveitamento de uma grande área do Sebastião
Lan II por risco de inundação, ouvimos dos agricultores que havia sim formas
de contornar esse problema com o aproveitamento de culturas que convivem bem
com essa característica climática. Vivíamos, nessa época, um período de grande
seca afetando o abastecimento de água de toda a população do Sudeste e Nordeste
do Brasil, com reservatórios de água operando no volume morto. O que seria um
argumento a favor dos pré-assentados transformação em lição de vida para técnicos
ambientais e pesquisadores na reunião. No momento em que se falava sobre a crise
hídrica, motivo pelo qual deveríamos rever a licença ambiental, um dos trabalhadores
rurais, o Gaúcho, intervém:
Não é bem assim. Não é todo ano que tem cheia e inundação. Pelos cálculos
com meu pluviômetro tem uma tendência de chuvas fortes de dez em dez anos,
então no final desse ano ou ano que vem teremos chuvas fortes.
Diante da inundação provocada pelas chuvas em março de 2016, que culminou com a
morte de um lavrador afogado, e na dor pela perda da produção e dos bens materiais,
a referência à ajuda divina passa a organizar os sofrimentos para uma nova relação
com a terra, como uma missão.
Imagens do alagamento em Sebastião Lan produzidas para arredar doações pela “Servir
Produções Independentes”.
Nesse ponto, há uma convocação geral para uma comunhão com Deus, mas também uma
comunhão com a natureza através de uma nova sacralidade, de uma ligação triangular
entre “a palavra de Deus”, o trabalho e a terra. O pousio, o cuidado com a natureza,
para além do discurso técnico e científico, ganha contornos religiosos. Ensinamentos
esses que reinterpretam a tragédia ocorrida, não mais como um problema da represa
de Juturnaíba, das chuvas cíclicas, da interferência do homem sobre o meio ambiente
mas, principalmente, da vontade de Deus.
E continua:
Neemias trabalhava no palácio do rei Artaxerxes, nesse período que Neemias
trabalhava no palácio sempre alguém vinha e trazia notícias para ele de como
estava a cidade, e, um belo dia, Ananias chegou até Neemias, e Neemias
perguntou: “Vai tudo bem lá em Jerusalém, com a nossa cidade?” E Ananias:
“Não, não vai tudo bem.” E ele perguntou: “Por que?”. “Porque a nossa cidade
foi devastada. Acabaram com tudo, destruíram tudo”. Por isso Jerusalém foi
saqueada, por permissão de Deus Neemias começou a pregoar um jejum para
poder restaurar a cidade de volta. E ele começou a jejuar e orar porque ele
precisava ficar na presença do rei. E todos nós sabemos que naquela época não
era de costume que nenhum sacerdote ou nenhuma pessoas que era a serviço
do rei, ele não podia descair seu semblante e nem demonstrar tristeza diante do
rei, porque ele corria um risco muito grande, além de ser preso ou passar por
algumas punições que poderiam ser severas. E Neemias entendia isso, e quando
foi um belo dia ele não conseguiu conter as lágrimas e nem conter também o seu
sofrimento. Quando ele se apareceu diante do rei e Artaxerxes: “o que é isso que
está acontecendo com você, por que você descaiu seu semblante?”. “Porque,
na verdade, eu não tenho como sorrir, meu rei, se os sepulcros dos meus pais,
toda a minha cidade foi destruída e não sobrou nada. E eu estou aqui vendo
minha cidade sendo destruída, e eu, a minha vontade, é reconstruir de novo”.
E aí a Bíblia fala que Artaxerxes, ele deu autorização a Neemias, enviou uma
carta para o rei de Jerusalém, para que liberasse Neemias que trabalhasse em
prol da construção do muros e restituir a cidade. Irmão, o que eu quero dizer
com isso? Nós sabemos que a luta de vocês, desse povo aqui do varjão é muito
grande, muitas vezes vocês planeja tudo, faz a plantação de vocês e de repente
vocês passa por uma devassa muito grande como aconteceu há poucos meses
atrás. E hoje vocês tão plantando a terra de novo, num cultivo de plantar, e
sabemos da destruição que teve aqui nesse lugar. Aonde vocês perderam tudo,
muitos aqui estão começando do zero, né?! E hoje vocês estão aqui na condição
de propor essa festa. Agradecer a Deus por essa oportunidade, que hoje é o
aniversário aqui da Comunidade aqui. E eu louvo a Deus, irmão, porque vocês
não esqueceram realmente que o Senhor Ele pode mudar a história desse lugar.
Nós sabemos que vocês são bem acolhidos pela Secretaria, pela... por.. pelo
pessoal do MST, que tem ajudado, tem apoiado, nós sabemos que a Secretaria
também daqui do município tem investido, tem ajudado um pouco, mas é bem
verdade quem tem o cultivo da terra, quem tem o poder sobre a terra é Deus.
MADEIRA FILHO, Wilson; RIBEIRO, Ana Maria Motta; PEREIRA, Mônica Cox de
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INTRODUÇÃO
O Brasil como colônia portuguesa serviu para fornecer e produzir as principais e mais
valorizadas mercadorias em diferentes épocas a partir do século XVI e XVII. Sejam
cultivos exógenos que se adaptaram bem ao clima tropical como o açúcar e o café,
ou naturais da terra, como tabaco, erva-mate e cacau, estes artigos já citados como
“alimentos-droga”1 não tiveram influência somente nas mudanças sociais do Velho
Continente como também, a partir da reprodução e comercialização destes, auxiliaram
no estabelecimento das bases da civilização brasileira.
Existem estudos de como a cannabis se expandiu do continente asiático, de onde
seria originária, até outras partes do globo através de processos migratórios e sua
importância para cada civilização e Império que a adotou. Não cabe ficar ressaltando
estes exemplos neste enxuto artigo, mas cabe destacar sua utilidade para expansão dos
impérios europeus além-mar e na tentativa de adoção por distintos meios pelos povos
que ocuparam o território americano e a colônia lusitana.
A intenção deste artigo tem por finalidade elucidar que sua proibição, tanto em nível
internacional como no caso nacional, teve interesses e projetos civilizacionais dos quais
os distintos usos da maconha não faziam parte. Após a exposição dos diferentes usos
apresentados no Brasil, para ajudar a entender como o paradigma médico-jurídico
sustentou uma nova organização social nacional é utilizado do auxílio da reflexão
de Neder (2012) sobre a construção de uma ordem burguesa brasileira através da
disciplinarização da população trabalhadora sob égide da lei e de Silva (2015) relatando
com interpretações nacionais de teorias e politicas europeias formaram um modelo
de disciplinar e punitivo de práticas que não convinham a um novo ideal de nação
que estava em construção. Mesmo sem se aprofundar, recorreremos a Carvalho (2013)
para compreender o processo de criação da CNFE.
1. O USO DA MACONHA EM TERRITÓRIO NACIONAL
Brandão (2014), relacionando no que Hutchinson (1975) considerou como tres ciclos de
atenção à maconha no Brasil e adicionando mais um, sugere que estes ciclos envolveram
interesses econômicos, de envolvimento científico nas determinações proibitivas, na
justificativa da perseguição à planta para aprimoramento das instituições fiscalizadoras
e repressivas, e de contestação e demanda por reconhecimento da diversidade de usos e
pela liberdade de se manisfestar a favor do consumo. No caso deste texto, abordaremos
os dois primeiros ciclos e finalizando sem se aprofundar no terceiro.
1.1. A tentativa de exploração econômica da fibra da cannabis
No Brasil colônia, o uso da fibra de cânhamo somente era conhecido em portos
e estaleiros por conta das velas, cordas e provisões das naus vindas da Europa e
especificamente da metrópole. De acordo com Brandão (2014), existiram iniciativas
de cultivar a cannabis em território nacional em Santa Catarina (1747), Rio Grande de
São Pedro (durante a década de sessenta do mesmo século), e Rio de Janeiro (1772).
O estímulo ao plantio pela Coroa Portuguesa viria somente em finais do século XVIII,
que enviou ao sul da colônia um especialista no cultivo para incentivar sua cultura
pela região. Por conta da dificuldade na obtenção de sementes, a má qualidade delas
entre outros. Seu uso ia desde ingredientes de misturas e elixires surgidos da interação
entre os saberes das matrizes étnicas brasileiras, da qual a maior parte da população
com condições de algum tipo de tratamento tinham acesso, até a profusão de remédios
vendidos em “pharmacias” e buticas como por exemplo as cigarrilhas Grimault e Cia,
recomendadas como medicamento para variados males por anúncios encontrados em
periódicos até 1929.7
A utilidade da planta como remédio parecia considerada pelo difícil acesso aos
medicamentos importados e por conta de estratégias de tratamento locais que alguns
médicos, mesmo a contragosto adotavam. Nos fins do século XIX sua utilidade como
remédio começou a ser questionada pela dificuldade em se encontrar uma dose exata
para tratamento de pacientes, devido a grande diversidade de cepas e qualidade da
cannabis, que poderia ocasionar variados efeitos colaterais, dependendo do tipo da
planta ou a sensibilidade do paciente. Outro fator a ser considerado foi a impossibilidade
pela ascendente química da época em isolar um princípio ativo da cannabis conforme
conseguiam com o ópio (morfina, heroína), além do aparecimento de medicamentos
mais modernos no início do século XX.8
Práticas homeopáticas, apesar de defendidas por uma parcela de médicos durante o
século XIX, não eram bem-vistas no circuito médico e frequentemente sofriam ataques
de alopatas e figuras importantes comparando-as com delitos da profissão, sexuais e
penais. Este processo estigmatizador não foi referente somente à homeopatia, mas à
praticas que não condiziam com um projeto higienizador de nação.
Boa parcela da intelectualidade brasileira embasava a teoria da chegada de sementes de
maconha vinda com as mínimas posses dos escravos africanos para cá, desde a primeira
leva 1549, e não considerava os interesses econômicos e terapêuticos que existiam. Mas
como atesta Henman (XXX). Com finalidades ritualísticas, terapêuticas e recreativas a
utilização da planta se expandiu para além da senzala, sendo incorporada por tribos
indígenas no lugar do nativo tabaco, encontradas em certos rituais em quilombos e
tribos, espalhados e isoladas pelo interior de difícil acesso.
Entre as tribos que tiverem identificadas o cultivo de maconha aparece grupos identificados
no Baixo e Médio São Francisco, Guajajaras/Tenetehara, no Maranhão; Mura, no baixo
Madeira; Fulniô de Águas Belas, no Pernambuco; Saterê-mauê, no Amazonas; Krahô,
no Tocantins, entre outras9. De acordo com Freire (1989), citando Iglesias, a planta servia
também como um fator de diferenciação social na colônia açucareira: enquanto os
senhores faziam o uso do tabaco, os escravos optavam pela maconha10.
Luiz Mott (1985) questiona esta interpretação da introdução a partir de escravos no
século XVI, pois justifica que eles eram presos e trazidos nus nos primeiros anos de
tráfico e dificilmente teriam condições de carregar algo consigo. Somente com as idas
e vindas de alguns que foi possível trazer não só pertences como sementes e plantas
exógenas à fauna americana. Mott também suspeita se já não existiria uma variedade
adaptada às condições locais, conforme existem registros na parte norte-americana11
Mas foi seu discípulo José Rodrigues da Costa Dória (1857-1938) que ganhou fama com
sua cruzada contra a maconha e seus usuários, divulgando internacionalmente um estudo
considerado como o primeiro de caráter científico para analisar os efeitos sobre a saúde
humana, “Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício”. Nele, enfatizou a necessidade
proibitiva e associou à prática de fumar a planta com traços culturais africanos e indígenas.
Daí começaram a surgir conceitos como “maconhismo” e “canabismo”, estigmatizando
o uso da planta com degeneração social e mental, mal contagioso e criminalidade, que
combinados com as características culturais de ex-escravos e índios num embate onde
traços modernizantes da expansão urbana desordenada se confrontava com práticas e
hábitos de comunidades e grupos colocados à margem da sociedade então idealizada
por certos intelectuais e a elite econômica da época.
A discriminação desenvolvida desde o século XIX por razões raciais e sociais foram
perpetuadas durante o início do século XX até pelo menos a década de 60 através do
discurso médico-sanitarista-religioso em que o uso recreativo da planta acabaria com
a saúde mental do indivíduo, corromperia sua personalidade, prejudicaria toda sua
família e a sociedade. Esta preocupação moralista travestida como “científica” buscava
reconhecimento internacional em um contexto de perseguição a outras substâncias.
A maconha a partir do século XX passou a integrar, juntamente de outras plantas
consideradas sagradas e seus princípios ativos isolados, uma lista internacional
de substâncias proibidas em que sua produção, venda e consumo passaram a ser
progressivamente mais reprimidos de forma violenta e militarizada. No Brasil, a
associação do vício em maconha com degeneração social havia se tornado quase um
senso comum. Profissionais da área médica como José Rodrigues da Costa Dória,
Pedro Pernambuco Filho, Adauto Botelho, Francisco de Assis Iglésias, entre outros,
debatiam e divulgavam de forma alarmista os males oriundos do diambismo,
estabelecido nos canaviais nordestinos importadores de escravos africanos e
expandido entre a população mais pobre de norte ao sul do país. Ou seja, negros,
índios e caboclos, “raças” consideradas mais suscetíveis a desenvolverem algum
tipo de dependência química.
O uso da maconha pelas classes mais pobres das capitais e zonas rurais do nordeste
do país, reconhecido como vício que se espalhava no sentido norte-sul, foi equiparado
aos níveis de discriminação socialmente determinados e por conseguinte aplicados
como “reconhecidos e aceitos” a partir de convenções internacionais gerenciadas pelos
países mais ricos, ou os que almejavam a serem reconhecidos como tal, relativamente
considerados e sustentados para a criminalização de substâncias e as plantas
fornecedoras (ópio, cocaína, cannabis) utilizadas sem o devido controle por práticas
terapêuticas e medicinais, quando se indicava uma monopolização econômica de suas
utilizações e comercializações.22
Conforme estimulado pelo Dr. Pedro Pernambuco Filho, discípulo de Rodrigues
Dória, na II Conferência Internacional do Ópio em 1924, realizada em Genebra, neste
encontro que inicialmente seria para discutir os males do uso do ópio e cocaína, passa
por certas interferências. O representante do Egito apresentou dados que enfatizavam
sua preocupação acerca dos graves males advindos do consumo de haxixe, requerendo
que o mesmo fosse incluído na lista de substâncias proscritas. Foi criada então uma
22 Ver Ribeiro, 2008
Carlini (2006), citando Lucena (1934), relata a existência no Brasil de uma lei que fazia
alusão à contravenção, contrabando e consumo de substâncias consideradas tóxicas.
Seria a Lei nº 4.296 de 1921, que previa a prisão de quem traficasse substâncias de
qualidades entorpecentes como ópio, cocaína e seus derivados, de forma que inspirava
entrar em conformidade com o discutido na convenção de Haia de 1912, já que no
Brasil não havia problemas de saúde pública relacionadas a estas substâncias24. Até
então, apesar das iniciativas proibicionistas e repressivas, não existia de fato uma
política estatal de repressão às drogas, mesmo que a partir do início do século XX, a
associação entre o saber científico e forças armadas fizesse com que as detenções se
multiplicassem.
A corrente proibicionista reproduzida no Brasil não era unanimidade também. A
atuação e afirmações de Pernambuco Filho na Conferencia chegaram a ser questionadas
em documento oficial do governo brasileiro por assemelhar o uso da maconha, seus
efeitos e dependência com outras drogas mais pesadas como opiáceos e cocaína, já
que sua posição confrontava pesquisas feitas desde 1915 que não demonstravam esse
resultado tão trágico conforme visto em outros países.25 Com toda movimentação
contra a prática de se fumar maconha ou utilizá-la pelos praticantes de religiões
afrodescendentes, a partir dos anos 30, o Estado brasileiro começa a se organizar e
aprimorar sua legislação para a proibição da cannabis. Através do decreto nº 20.930 de
1932 foi estabelecida a penalização para o usuário de substancia entorpecente, no qual
a maconha foi incluída baseada nos estudos desenvolvidos por Rodrigues Dória, em
sua militância e de seus seguidores. Em 1936, através do Decreto 780 do Presidente da
República, é criada a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE). O
Decreto-lei de 891/38 estabeleceu a toxicomania como doença compulsória, tratando
de internação civil e interdição dos toxicômanos, institucionalizando uma prática que
ocorria desde o século XIX.26
23 França, 2015, p. 62 e 63
24 Torcato, 2013, p.122
25 Carlini, 2006, p. 316
26 Barros e Peres, 2011, p.14
27 Silva, 2011
28 Ribeiro, 2008
29 http://www.pe-az.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=67:convenio-da-maconha&catid=58&Itemid=192
A autora coloca que num primeiro momento a procupação era reorganização do aparato
do Estado afim de atender uma maior diversificação e complexidade da sociedade.
Logo com a vinda da República, se dispos uma série de revisão de leis, civis e criminais,
e a decretação de reformas e disposições complementares. Com o avanço inicial do século
XX, a preocupação com o ordenamento social passa a envolver a disciplinarização
da sociedade conforme era construído o ideal de trabalho pelas elites economicas
e políticas, que envolviam valores como honestidade, bem-estar e dgnidade em
contraposição à ociosidade, depravação e suspeita.
Nisto inclui-se a herança racista em conformidade com teorias científicas que vão de
encontro a idealização de contrução de um novo aparato social e burocrático. Práticas
consideradas ociosas e naturais de negros e mestiços passam a ser perseguidas e
reprimidas pois eram reconhecidas como um atraso para a construção de um Brasil
moderno e ordenado.
Em outro campo intelectual nacional, o da ascendente medicina, teorias eugenicas eram
influentes no entendimento sobre a mistura genetica brasileira, quando era divulgado
que nossa mestiçagem contribuía acintosamente para nosso atraso social e economico,
pois comportamentos e hábitos típicos de “raças” inferiores contaminavam a população
em geral. Na medida que o interesse era introduzir o Brasil na industrialização
e incorporação de instituições modernas conforme ocorria no centro do mundo,
a Europa, e tendo o exemplo do ex-colonia britanica ao norte, a grande parcela da
população compreendida por ex-escravos negros e mestiços, parecia não fazer parte
do projeto nacional de modernização. Silva (2015), relata como se estruturou este
paradigma médico-jurídico para disciplinarização da população conforme interesses
da intelectualidade política da época, com foco na Capital Federal.
Esta autora esclarece como a classe médica, em pleno processo de institucionalização
de seu saber científico frente outras formas terapeuticas, também teve participação
essencial na elaboração dos ideais de nação no inicio do século XX, diagnosticando
em hábitos populares indesejados males e novas doenças que causavam todo tipo
incivilidade e atraso brasileiro frente às nações com o capitalismo mais estabelecido.
No Brasil, o contexto de elaboração legislativa para os entorpecentes foi
dominado pela Antropologia Criminal e pela Psiquiatria, disciplinas incipientes
na Europa do século XIX e que aqui chegaram na segunda metade daquele
século, vigendo, até as primeiras décadas dos século XX, sob os mesmos
alicerces teóricos articuladores da associação entre o uso de drogas, a violência
e a criminalidade31
Se a lei republicana de 1890 o foco estava muito mais no abuso do álcool e a proibição
da comercialização de produtos considerados venenosos, somente no decreto de 1921
o termo de “substancia entorpecente” aparece em termos legais, já demonstrando
uma influencia de conferencias internacionais sobre o assunto, e ampliando o foco
de repressão para comerciantes de variados tipos que não passavam pelo crivo do
conhecimento médico como buticas, feiras e vendas populares.
30 Neder, 2012, p; 76
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some facts about these conflicts that involve the idea of human agency and the way
in which it is built a sense of (in)justice that contrasts with the terms of state justice.
As such, the mystical and religious aspects of these conflicts appear as a force, as an
aggregating domain of the popular struggle and not exactly as a conservative attitude
toward the world, since they are constitutive of the very legitimacy of the struggles for
land. One speaks, in other words, of the coincidence between the strategies of defense
and the signification of life itself.
Key-words: Religiosity, Experience, Agrarian Conflicts.
INTRODUÇÃO
A paróquia de Andorinha abriu suas portas e janelas, carinhosamente, para
acolher os romeiros e romeiras da terra e celebrar o fortalecimento das lutas
dos fundos de pastos, bem como um momento profético forte de denúncia
dos impactos negativos sobre as comunidades tradicionais causados pela
concentração da terra, pela dificuldade de acesso à água de qualidade, pela
mineração e especulação fundiária, além de outros projetos que ameaçam
a vida do povo que vem anunciando alternativas concretas de bem viver
no semiárido, mantendo os olhos fixos em Jesus, o Senhor do Bonfim, e que
chegamos as pastagens verdejantes que somente ele nos pode oferecer (Nota
pública – Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada).
É nesse contexto de violência e ameaças à posse da terra e à vida dos posseiros, que a
área ocupada pelas comunidades passa a ser objeto de uma ação judicial. Ao longo de,
pelo menos, cinco anos, o processo judicial se tornou um dos componentes centrais do
conflito de Jabuticaba, com desdobramentos distintos, conforme o juiz que conduzia
o feito, chegando a se apresentar também como “a fase mais dramática da disputa
pela posse da terra travada com o fazendeiro” (Comunidades de fundos de pasto
de Jabuticaba, Juíza decidirá destino de mais de 300 famílias da Fazenda Jabuticaba,
Senhor do Bonfim, 30 de dezembro de 1994). Nesse contexto, diante da iminência de
serem desalojados da área em virtude de uma decisão judicial contrária à permanência,
o sentimento era de que:
Foi um tempo de agonia, muito bem expresso pelo poeta popular da Jabuticaba,
Antônio Lino: “Meu Deus peço que ouça o meu grito/ lá do alto do infinito/ veja
quanto já sofri. Meu Deus por favor me ouça agora, /joga a violência fora, /quero viver
em paz aqui.” (CPT, Carta aos amigos, maio de 1995).
Uma das frases mais simbólicas sobre a sentença proferida está registrada na carta
de um pároco, que colaborou com a luta das comunidades de Jabuticaba. De uma
forma metafórica diz que “a terra pareceu sumir debaixo dos pés dos trabalhadores
e de todas as entidades que acompanhavam o caso” (CPT, Carta aos amigos, maio
de 1995). Diante disso, embora tenham recorrido da sentença através do Recurso de
Apelação dirigido ao TJ/BA, não havia expectativas de reverter essa decisão em seu
favor, pelo que decidiram adotar providências administrativas para que a área fosse
desapropriada. Assim, através do Decreto de 16 de outubro de 1996, da Presidência
da República (Diário Oficial, Seção I, 21381, 16 de outubro de 1996), o INCRA fora
autorizado a promover a desapropriação da Fazenda Jabuticaba, de interesse social
para fins de reforma agrária. Essa decisão administrativa garantiu a permanência das
comunidades de fundos de pasto de Jabuticaba na posse da área de uso comum.
Essa sucinta apresentação sobre a judicialização do conflito de Jabuticaba requer
uma análise mais pormenorizada sobre as decisões judiciais proferidas, bem como
a respeito da maneira como as comunidades, junto com as assessorias jurídicas,
buscaram uma saída para o problema a partir de uma reflexão, que levou em conta a
importância da decisão judicial, mas também o sentimento de injustiça frente à decisão
ao manifestarem, por exemplo, que: “A sociedade acusou o golpe. ‘É um absurdo uma
sentença dessa!’ Era o comentário da maioria. Enquanto uns poucos soltaram fogos”
(CPT, Carta aos amigos, maio de 1995).
‘Temos intensão de morrer por nossa terra que é nossa mãe” (Comunidades de Fundos
de Pasto de Areia Grande, Carta ao INTERBA e ao INCRA, Riacho Grande, 26
de março de 1980).
“Só saem dali arrastados pelos pés”2.
Na disputa pela posse da terra, para permanecerem nas áreas, as comunidades, com
a colaboração de assessorias jurídicas populares e com o apoio da Igreja Católica,
pleitearam junto ao Estado - frente ao Instituto de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA) e ao extinto Instituto de Terras da Bahia (INTERBA) -– a demarcação das
terras ocupadas para posterior regularização em nome dos posseiros dos fundo de
pasto. Ao tempo em que disputavam a permanência nas áreas junto às instituições
estatais, os posseiros de Areia Grande também se voltaram para a mobilização de um
conjunto de forças sociais, que colaboraram para a formação de uma opinião pública
a respeito do conflito, inclusive, a partir de um processo pedagógico de construção do
sentido da resistência face à gravidade do problema social. Dentre outras manifestações,
conclamavam para que outros trabalhadores rurais também se sentissem parte daquela
luta: “é hora de todo trabalhador rural da região mostrar concretamente seu gesto de
compromisso com esses companheiros. Ninguém melhor que um trabalhador rural
pode entender o que significa ficar sem terra” (Jornal A Tarde, Projeto da Camaragibe
é recusado, 11 de julho de 1980). Ou ainda: “[...] queremos nos solidarizar com todos os
outros trabalhadores oprimidos desse Brasil. Somente podemos confiar na consciência,
responsabilidade e honestidade dos companheiros trabalhadores”. (Comunidade de
Riacho Grande, Prezados companheiros, Juazeiro, 29 de setembro de 1980).
Passados 27 anos de compromissos firmados outrora e não concretizados, em 2006,
inicia-se mais uma disputa judicial pelas áreas, dessa vez, com uma sentença favorável
a dois pretensos proprietários que não figuraram no processo da década de 1980. Na
execução da sentença, as comunidades tentaram resistir para não serem expulsas
das áreas, mas não conseguiram impedir uma ação institucional violenta que deixou
prejuízos sociais, materiais e simbólicos, que não foram reparados.
Segundo informações obtidas nos arquivos da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da
Associação de Advogados e Advogadas dos Trabalhadores Rurais (AATR), a Empresa
Camaragibe decretou falência e o Banco do Brasil se tornou o principal credor da
dívida de oito cédulas hipotecárias dos supostos bens da empresa. A partir de uma
negociação com o Banco do Brasil de Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, dois empresários
passaram a ser credores dos direitos da Camaragibe, conforme os autos do processo,
e passaram a ser proprietários de uma área com mais de 25 mil hectares, local onde se
encontram as comunidades de fundos de pasto (Brasil de Fato, Jagunços e empresários
oprimem famílias no Semi-Árido da Bahia, 02 de abril de 2008).
Embora exercessem a posse da área há cerca de 200 anos, os posseiros dos fundos de
pasto tiveram que vivenciar a situação de despejo da área sem a oportunidade de se
pronunciar a respeito. Segundo um posseiro dos fundos de pasto, “eles chegaram já
com a ordem determinada pelo juiz. Esperava que pelo menos nós fôssemos ouvidos
pela justiça”3 (Brasil de Fato, Jagunços e empresários oprimem famílias no Semi-Árido
da Bahia, 02 de abril de 2008).
Nesse processo de luta e resistência, precisaram acionar órgãos estatais relacionados
à questão agrária, como forma de denunciar as ilegalidades cometidas no ato de
desocupação através do mandado de imissão na posse, bem como para requerer
3 É interessante observar que um depoimento muito parecido está registrado em uma carta escrita pelos posseiros de Areia Grande,
na década de 1980, no conflito com a Empresa Camaragibe, quando questionam: “Como foi vendida essa terra sem consultar a gente,
sem respeitar o nosso direito que já vem de geração a geração há mais de cem anos? A gente não entrega porque não vendemos, não
demos e nem emprestamos [...]”(Comunidades de Fundos de Pasto de Areia Grande, Carta ao INTERBA e ao INCRA, Riacho Grande,
26 de março de 1980).
uma ação discriminatória para averiguar a legalidade dos títulos apresentados pelos
pretensos proprietários. Com a participação de outros órgãos estaduais relacionados
direta ou indiretamente à questão agrária, a disputa judicial passou a contar com
novos atores e novos elementos para definição da ocupação das áreas. Assim,
independente das decisões judiciais até então proferidas, as comunidades passaram a
lutar pela concretização de um processo de regularização fundiária, que garantisse sua
permanência na posse das áreas de uso comum. Foi assim que,
Como desdobramento da mobilização dos trabalhadores, uma ação
discriminatória administrativa de terras públicas foi elaborada pela Coordenação
de Desenvolvimento Agrário, órgão estadual de terras, e, posteriormente,
foi ajuizada pelo Estado da Bahia uma ação discriminatória judicial, com o
objetivo de arrecadar o patrimônio público que foi ilegalmente incorporado ao
patrimônio particular […] (AATR. Um breve relato, março de 2010).
coletiva está relacionado a uma série de fatores não restritos às recompensas pessoais
ou mesmo aos interesses (MCADAM; TARROW; TILLY, 2009, p. 30). Considerar essa
dimensão é partir do pressuposto de que:
as formas de reconhecimento do direito e da estima social já representam um
quadro moral de conflitos sociais, porque dependem de critérios socialmente
generalizados, segundo o seu modo funcional inteiro; à luz de normas como
as que constituem o princípio da imputabilidade moral ou as representações
axiológicas sociais, as experiências pessoais de desrespeito podem ser
interpretadas e apresentadas como algo capaz de afetar potencialmente também
outros sujeitos (HONNETH, 2003, p. 256).
Desse modo, um olhar sobre a ação coletiva das comunidades de fundos de pasto de
Jabuticaba e Areia Grande para permanecerem na terra frente às decisões judiciais
contrárias, não pode negligenciar experiências morais que atravessam e constituem
a identidade coletiva dessas comunidades, a começar pela simultaneidade entre
defender a posse coletiva da terra e um modo de vida específico. Com isso, importa
levar em linha de conta aspectos relacionados aos laços de parentesco e solidariedade,
bem como os sentidos religiosos que configuram o horizonte dessas lutas.
A análise da documentação a respeito dos conflitos envolvendo as comunidades de
Jabuticaba e Areia Grande indicou que “fé e política” caminham juntas. A definição de
estratégias passa por encaminhamentos objetivos, mas também por pedidos às “forças
sobrenaturais”. São muitas expressões que apontam para uma dimensão subjetiva
na configuração das lutas cotidianas, que escapa à ação deliberada e calculada. Para
pensar a realidade das comunidades de fundos de pasto de Jabuticaba e Areia Grande
importa interpretar esses elementos religiosos e culturais não como obstáculos à ação
política; pelo contrário, como impulsionadores das lutas. Nessa conjunção de elementos
religiosos e políticos, presente nas lutas dos fundos de pasto da Bahia, aparece, por
exemplo, como elemento para análise, a atuação da Comissão Pastoral da Terra (CPT),
vinculada à Igreja Católica.
Obviamente que, tanto na cultura, no seu sentido amplo, quanto na religião, existem
muitas contradições e elementos desagregadores que, ao invés de favorecer uma
consciência crítica e coerente, levam à passividade e à conformação diante da realidade.
Mas, justamente por comportarem diversas contradições, a cultura e a religião também
assumem outra face. É assim que pode ser entendida a ação da Comissão Pastoral da
Terra (CPT), que desde a sua criação se tornou uma parceira fundamental na luta
contra as injustiças sociais no campo, no Brasil. Nos processos judiciais de Jabuticaba
e Areia Grande, a CPT cumpriu um papel fundamental na garantia da permanência
das comunidades, entendendo-se como um setor avançado da Igreja Católica, que luta
pela democratização do acesso à terra e pela reforma agrária.
Conforme Durkheim (1989) já havia apontado em seu clássico estudo sobre “As
formas elementares de vida religiosa”, um dos princípios básicos da crença religiosa
é “nos fazer agir” e ajudar a viver. “O fiel que comungou com seu deus não é apenas
homem que vê verdades novas que o incrédulo ignora: é homem que pode mais. Ele
sente em si força maior para suportar as dificuldades da existência e para vencê-las”
(Durkheim, 1989, p. 493). No conflito de Areia Grande, em um documento da CPT há
uma descrição sobre a reocupação da área que indica a importância dos elementos
religiosos na integração do grupo no processo de resistência e luta:
A reocupação da área se deu com muitos fogos durante todo o percurso da viagem
e na chegada ao redor de uma fogueira uma longa celebração onde com cantos,
orações e reflexões bíblicas agradeceram a Deus pelos 28 dias de luta e de resistência
e pediram forças para a continuidade na luta” (CPT, 19 de abril de 2008).
Nesse ponto, poderíamos refletir sobre o processo de luta das comunidades de fundos de
pasto de Jabuticaba e Areia Grande, apontando para elementos materiais de comunhão
com a luta de outras comunidades tradicionais, sobretudo o direito à terra e, afinal, à
própria sobrevivência. Mas esses elementos não dão conta de abranger a totalidade
das expressões dessas lutas porque está em jogo a mediação que os sujeitos fazem da
sua própria experiência, inclusive, na maneira como se relacionam com os obstáculos,
institucionais ou não, para permanecerem na terra. Nos conflitos analisados, mesmo
com o assassinato de lideranças e ameaças à vida dos integrantes, as comunidades de
Jabuticaba e Areia Grande, a partir de suas experiências de luta, não se intimidaram
em resistir na posse da terra como se verifica pelas suas afirmações:
A morte do Zé não nos enfraqueceu, pelo contrário nos motiva a continuar
lutando. Porque é isso que os grandes querem: que fiquemos esmorecidos.
Mas continuaremos resistindo, porque a luta não pára enquanto a justiça não
triunfar” (Comunidades de Fundos de Pasto exigem investigação de assassinato
de trabalhador rural, 02 de fevereiro de 2010).
Mas, apesar do assassinato de Carlinhos, a luta e a esperança resistem. (CPT,
Nota de esclarecimento à população, 02 de julho de 1990).
Em outros termos, é considerar que nas disputas pela posse da terra, as subjetivações
e as maneira como o sujeitos vivenciam suas experiências de luta têm um lugar
preponderante, uma vez que não são simples autômatos de uma luta coletiva, que se
orientam pelos termos da lei e dos comandos institucionais, de uma maneira sempre
deliberada.
Nesse sentido, cabe reconhecer e valorar metodologica e teoricamente que o processo de
constituição e conscientização dos sujeitos coletivos indica uma relação muito orgânica
- e diferenciada - com a cultura popular e a religião. Com base no conceito de ideologia
em Gramsci, podemos perceber que, desta forma, não caberia somente afirmar que a
religião é “ópio do povo”. É preciso interligá-la à filosofia, como concepção de mundo
compartilhada por todos:
Mas, nesse ponto, coloca-se o problema fundamental de toda concepção de
mundo, de toda filosofia que se transformou em um movimento cultural, em
uma “religião”, em uma “fé”, ou seja, que produziu uma atividade prática e
uma vontade nas quais ela esteja contida como “premissa” teórica implícita
(uma “ideologia”, pode-se dizer, desde que se dê ao termo “ideologia” o significado mais
alto de uma concepção de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na
atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas) - isto é,
o problema de conservar a unidade ideológica em todo o bloco social que está
cimentado e unificado justamente por aquela determinada ideologia (grifos
nossos). (GRAMSCI, 2011, p. 98-99).
do marxismo (stalinismo como “fé”) quanto à atuação católica (no seu papel mais
tradicional ligado à Companhia de Jesus, por exemplo). Vale perceber a importância
dada ao papel dos intelectuais orgânicos na constituição de um bloco histórico:
A posição da filosofia da práxis é antitética a esta posição católica: a filosofia da
práxis não busca manter os “simples” na sua filosofia primitiva do senso comum,
mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela
afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os simples não é para limitar
a atividade científica e para manter uma unidade no nível inferior das massas,
mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral que torne politicamente
possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos
intelectuais (GRAMSCI, 2011, p. 103).
nem dá forma à perspectiva de vida de cada um” (ibidem, p.19). Isso importa para
considerarmos não somente o que os processos institucionais e legais podem provocar
na conformação da vida das pessoas, mas também a maneira como são apreendidos,
em certos casos passando ao largo da maneira como os sujeitos vivem e concebem a
sua existência.
A perspectiva thompsoniana colabora para resgatarmos a importância da
experiência nas lutas sociais e os motivos pelos quais as pessoas se mobilizam,
pois nem sempre dizem respeito a escolhas racionais e individuais, considerando
que o engajamento numa ação coletiva mobiliza estruturas da subjetividade
inexprimíveis pela lógica da racionalidade, integrantes, ao contrário, da ordem do
místico, do sentimento, da emoção.
Desse modo, um olhar sobre a ação coletiva das comunidades de fundos de pasto da
Bahia, particularmente as de Jabuticaba e Areia Grande, para permanecerem na terra
frente às decisões institucionais contrárias, não pode negligenciar experiências morais
que atravessam e constituem a identidade coletiva dessas comunidades, a começar pela
simultaneidade entre defender a posse coletiva da terra e um modo de vida específico.
Com isso, deve-se levar em conta os sentidos religiosos que configuram o horizonte
dessas lutas. Em tempos temerários, relembrarmos a reflexão de Benjamin na sua tão
conhecida VI Tese sobre a história, em pleno nazi-fascismo:
Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo “tal como ele
propriamente foi”. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela
lampeja num instante de perigo. Importa ao materialismo histórico capturar
uma imagem do passado como ela inesperadamente se coloca para o sujeito
histórico no instante do perigo. O perigo ameaça tanto o conteúdo dado da
tradição quanto os seus destinatários. Para ambos o perigo é único e o mesmo:
deixar-se transformar em instrumento da classe dominante. Em cada época é
preciso tentar arrancar a transmissão ao conformismo que está na iminência
de subjugá-la. Pois o Messias não vem somente como redentor; ele vem como
vencedor do Anticristo. O dom de atear ao passado a centelha da esperança
pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que
também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E
esse inimigo não tem cessado de vencer (BENJAMIN, 2005, p. 65).
CONCLUSÕES
Nesse trabalho, procuramos oferecer uma leitura sobre os sentidos religiosos e os
sentimento de (in)justiça nas lutas pela terra e os territórios a partir da análise dos
conflitos agrários envolvendo comunidades tradicionais de fundos de pasto de
Jabuticaba, Andorinha, e Areia Grande, Casa Nova, Bahia. Com isso, vimos que mesmo
nas situações em que os magistrados expressamente não reconheceram a ocupação
tradicional da posse da terra pelas comunidades, as razões judiciais não prevaleceram
diante de outras versões e entendimentos sobre os conflitos.
Ao imprimir uma renovada abordagem dentro do materialismo histórico-dialético,
Thompson aponta para a importância dos conceitos de cultura e experiência para a
compreensão da luta de classes, assim como Gramsci valoriza e problematiza a noção
de ideologia como concepção de mundo interligando economia, política e religião.
6 Em suas próprias palavras, “a analogia entre o processo civilizatório e o caminho do desenvolvimento individual é passível de ser
ampliada sob um aspecto importante. Pode-se afirmar que também a comunidade desenvolve um superego sub cuja influência se
produz a evolução cultural” (1997, p. 106). Propõe, assim, que, da mesma forma que o indivíduo, o espaço social parece ser “produto da
interação entre duas premências, a premência no sentido da felicidade, que geralmente chamamos de ‘egoísta’, e a premência no sentido
da união com os outros da comunidade, que chamamos de ‘altruísta’.” (p. 105)
7 Em uma nota de rodapé acrescentada em uma das reedições da obra, Freud revela a identidade do amigo: o escritor francês, Romain
Rolland.
8 Em tempos cada vez mais estranhos como os de agora, parece importante destacar neste último parágrafo do livro lê-se uma nota do
editor esclarecendo que “a frase final foi acrescentada em 1931, quando a ameação de Hitler já começava a se evidenciar”.
INTRODUÇÃO
A música sempre ocupou um lugar de destaque em toda a antiguidade (Granja,
2010, p.103). “Existem registros de prática musical em civilizações já extintas, como
a Egípcia, a Babilônica e a Assíria, e em civilizações milenares, como a Hindu e a
Chinesa” (Granja, 2010, p.21). Hoje a música influencia a vontade do consumidor nas
compras, a paciência das pessoas para aguardar uma fila, a dinâmica na ingestão de
comidas e até a diligência no trabalho (Granja 2010, p.68). Martenot (1970) defende que
a música precisa estar presente em todas as etapas do desenvolvimento da criança,
desde o nascimento. A músicaé um recurso didático, dinâmico e contextualizado
que está próximo ao gosto dos jovens, permitindo o diálogo entre docente e discente
favorecendo a interdisciplinaridade (Gilio, 2000, p.14 apud Barros et al., 2013). A música
mexe com nossas emoções e níveis de energia, sendo completamente distinto assistir
um filme de ação sem a trilha sonora, ao assisti-lo com a música.
Em âmbito educacional (Oliveira et al., 2008 apud Barros et al., 2013) afirma que muitos
conceitos biológicos podem ser apresentados em letras de música com diferentes
estilos musicais. Matos (2006) relata que a análise das letras de canções populares com
temas científicos, usadas em sala de aula transformam-se em estratégia motivadora
e interdisciplinar e segundo Silveira e Kiouranis (2008) as músicas realizam um
percurso diferente da aula expositiva e aumenta a sensibilidade e criatividade ao fazer
relações entre o conteúdo da música por meio da letra que a compõe. Propõe-se com
esta pesquisa investigar se as paródias musicalizadas afirmam-se como estratégia
promotora de aprendizagem de conceitos de Ciências.
Dados apontam que os estudantes brasileiros são ineficientes se comparados a
estudantes de outros países em pesquisas internacionais (INEP, 2012). Atualmente
compreender fundamentos científicos é indispensável para que o alunato realize
tarefas simples e triviais e amplie sua capacidade de compreensão do mundo em
que vivemos (Bizzo, 2009). Uma pessoa com domínio de conceitos biológicos pode
estabelecer inter-relações com o mundo sendo capaz de preservar sua saúde, evitar
doenças, comportar-se de forma que mantenha a preservação do ambiente.
Para conduzir esta pesquisa experimental, adotou-se a abordagem quantitativa. A
investigação experimental manipula uma ou mais variáveis, portanto optou-se pela
utilização de pré-teste e pós-teste, aplicados a grupo experimental e controle, para
colher informações com os sujeitos da pesquisa. A pesquisa foi aplicada em duas
escolas públicas estaduais de Bom Jesus do Itabapoana, RJ e Bom Jesus do Norte, ES
em turmas de 8º e 9º anos do ensino fundamental.
1. PARÓDIAS MUSICALIZADAS
Desde o século XVI os jesuítas no Brasil já utilizavam a música como forma de atração
para os seus ideais de catequizar (Boleiz Júnior, 2008 apud Barros et al., 2013). Para
este autor a música serve de transporte para o aprendizado cultural e pode permitir
ensinamentos de história, geografia, moral, entre outros, isto porque a música é capaz
de aproximar o discente do conteúdo a ser estudado de forma lúdica no processo
educativo e favorecendo a interdisciplinaridade.
Porém os relatos históricos da importância da música constam na cultura grega nos
tempos de Homero (séc.VII a.C.) quando a lira e o canto faziam parte da educação
aristocrática [...] ou na educação do cidadão tal que Platão afirmou: “aquele que não
sabe conservar seu lugar num coro, não é verdadeiramente educado” (As Leis, II),
(Granja, 2010, p.22). Ainda sobre a música e sua importância, Granja (2010) descreve:
A música é uma das manifestações humanas mais antigas. Inscrições e desenhos
de instrumentos musicais nas cavernas, flautas feitas de ossos e outros indícios
mostram que a música é praticada pelo homem há muito tempo. Existem registros
da prática musical em civilizações extintas como a egípcia, a babilônica e a assíria,
e em civilizações milenares, como a hindu e a chinesa (Granja, 2010, p. 21).
A música é uma linguagem que pode favorecer aproximação entre educação e cultura
(Granja, 2010, p. 114). “A aproximação entre a música e a palavra é tão antiga quanto
a própria música. A canção popular é resultado de uma sofisticada articulação entre
as irregularidades da língua falada e as regularidades da música” (Granja, 2010, p.
92). Para Sekeff (2007) a música não é apenas a combinação de ruídos, sons e silêncios,
mas recurso de expressão (sentimentos, ideias, valores, cultura, ideologia), recurso
de comunicação (consigo mesmo e com o meio), de gratificação (psíquica, emocional,
artística), de mobilização (física, motora, afetiva, intelectual) e autorrealização. A
música também é recurso de expurgo, catarse, maturação, onde através de sua prática
organiza-se o pensamento, o conhecimento e habilita movimento pulsional que se
dirige para um determinado fim. Para Snyders (2008):
Parece-me, assim, que música e palavra podem enriquecer-se mutuamente
sem procurar exprimir-se uma através da outra. Nossa alegria provém do fato
de que dois tipos de significações, dois modos de abordagem do mundo, tão
frequentemente diferentes, separados e até opostos, se associem na música; nesta
primeira aproximação, poderemos ajudar os alunos a perceber que a espera é a
de uma mensagem que será ao mesmo tempo ideia e emoção, que vai fortalecer a
emoção com a associação e a ordenação da ideia (Snyders, 2008, p. 102).
Berk (2008) afirma que quando a música com letras é introduzida, ambos os hemisférios
cerebrais relacionam-se favorecendo ao maior potencial de aprendizagem. A letra
adicionada à familiaridade da música, tem significado e impacto profundo para o
receptor. Elas podem aumentar a memória por associação com o conteúdo ou pode
ser reescrita para se tornar o conteúdo mais absorvido. Palavras sincronizadas com a
música são mais fáceis de aprender do que palavras sozinhas sem a música (Berk, 2008).
Paródias musicalizadas têm sido destacadas como eficientes na aquisição, retenção
e recuperação de conceitos das disciplinas em diversas pesquisas internacionais e
nacionais. Snyders (2008) revela como a música pode nos mover:
[...] a música irrompe em meio a gritos, ruídos; agitação, clamores, tumulto,
em todos os sentidos desta palavra; tentação, tentativa de experimentar
coisas da natureza e do homem de forma descomedida, desenfreada; uma
superabundância, transbordamentos. [...] Com a música despertam dentro de
nós forças desordenadas, indistintas, indeterminadas – e temos a impressão de
que elas explodem a partir do fundo de nossa alma (Snyders, 2008, p.83).
Constata-se que a música pode afetar nossos sentimentos e níveis de energia (Brewer,
1995) e com isto, surge a necessidade de explorá-la como um recurso benéfico a favor do
processo ensino-aprendizagem. Para Martenot (1970) a música não pode ser reservada
a uma parcela da sociedade [...] mas para todos os que “veem nela uma oportunidade
de se expressar”. Barros et al. (2013) em sua pesquisa concluem que o uso da música
como “instrumento facilitador do processo ensino-aprendizagem por professores de
Ciências Naturais e Biologia deve ter o seu uso possibilitado e incentivado em sala de
aula”. Pode-se perceber a música como um recurso didático que possui caráter lúdico.
As paródias musicalizadas unem todos os benefícios da música à letra e conteúdo e
por isto permite um elo forte e promotor do conhecimento científico.
2. ENSINO DE CIÊNCIAS
O Brasil tem estado em evidência internacionalmente como um dos países que possuem
estudantes ineficientes. O Programme for International Student Assessment – PISA,
pesquisou 65 países em 2012 e o Brasil ficou em 59º lugar em conhecimento de Ciências.
Segundo Bizzo (2009) o ensino de Ciências para a maioria dos alunos apresenta-se
como um “placebo pedagógico” ao constituir-se em uma gama de conhecimentos que
os alunos não entendem a utilidade. Para Krasilchik (2006) o trabalho escolar acontece
distante do cotidiano do aluno e é insuficiente para a educação científica e, por isto,
necessita de novas estratégias para a aprendizagem.
Para Delval (2001) a dificuldade para compreender Ciências provavelmente esteja
relacionado a não compreensão de sua natureza, pois não foi transmitida de forma
adequada. Há necessidade de relacionar o conteúdo apresentado em sala de aula
com o cotidiano deste aluno e necessidade de novas estratégias que possibilitem uma
aprendizagem eficaz e permanente, dentre elas o uso das paródias musicalizadas.
“Para que um país esteja em condições de atender as necessidades fundamentais
de sua população, o ensino de ciências e tecnologia é um imperativo estratégico
[...]. Hoje, mais do que nunca é necessário fomentar e difundir a alfabetização
científica em todas as culturas e em todos os setores da sociedade” (Declaração
de Budapeste, 1999).
jovens um ensino mais eficiente, em que o professor trabalhe temas que estreitem
sua relação com a comunidade. É neste propósito que o ensino de Ciências precisa
ser reestruturado para possibilitar ao alunato a promoção de estímulos, curiosidade,
raciocínio, reflexão e a capacidade de interpretar e intervir no meio ambiente como um
cidadão consciente e capaz.
3. ESTRATÉGIA DE APRENDIZAGEM
Estratégias de aprendizagem de acordo com Nisbett e Shucksmith (1987) e Dansereau
(1985), citados por Pozo (1996) são sequências integradas de procedimentos ou atividades
que são selecionadas com a intenção de propiciar aquisição, armazenamento e/ou a
utilização da informação. As paródias musicalizadas são estratégias de aprendizagem,
pois possibilitam transportar informações quando se usa uma música popular (Berk,
2008) e coloca-se a letra de um conteúdo de Ciências que se queira utilizar para fins de
retenção de aprendizagem.
As estratégias de aprendizagem segundo Flavell (apud Silva; Sá, 1997, p.19), “podem
ser definidas a um nível mais complexo, como processos conscientes delineados pelos
estudantes para atingirem objetivos de aprendizagem e a um nível mais específico,
como qualquer procedimento adotado para a realização de uma tarefa”. Conforme
Pozo (2002):
As estratégias requerem planejamento e controle da execução. Oaprendiz deve
compreender o que está fazendo, e por que por sua vez exigirá uma reflexão
consciente, um metaconhecimento sobre os procedimentos empregados.
Além disso, implicariam um uso seletivo dos próprios recursos e capacidades
disponíveis. Para que um aprendiz ponha em andamento uma determinada
estratégia, deve dispor de recursos alternativos, entre os quais devem ser
utilizados aqueles que considerar mais adequados, em função das demandas
da tarefa que lhe seja apresentada (Pozo, 2002, p.235).
ano, denominadas de 800 A e 800 B e duas turmas de 9º ano, 900 A e 900 B. Uma turma
do 8º e 9º anos foi separada para grupo experimental (800 A e 900 A) e as outras duas
para o grupo controle (800 B e 900 B) e a escola de Bom Jesus do Norte, ES com uma
turma de 9º ano (900 C), onde dividiu-se aleatoriamente, metade dos alunos para grupo
experimental e a outra metade para grupo controle. A identificação da pessoa jurídica
e/ou de pessoa física foi sigilosamente guardada após a aplicação do questionário.
A escolha dos sujeitos obedeceu o critério da escolha de turmas do ensino fundamental
das duas escolas selecionadas, dos dois estados participantes da pesquisa. Por se
tratar de um grupo heterogêneo e as escolas funcionarem em três turnos, optou-se por
trabalhar no turno vespertino na escola do estado do RJ e no turno matutino na escola
do estado do ES.
As músicas populares onde foram inseridos (paródia) os conteúdos selecionados
foi escolhida pelos alunos e sob orientação dos professores antes da aplicação da
pesquisa. As duas turmas de 8º ano escolheram a música popular ”Malandramente”
(Dennis e Mc’s Nandinho & Nego Bam) e a três turmas do 9º ano chegaram à escolha
da música“Balada Boa TchêTchêRere” (Gustavo Lima). As paródias musicalizadas dos
conteúdos foram preparadas pelos pesquisadores utilizando as músicas escolhidas
pelas turmas.
Os conteúdos que constam no currículo mínimo no RJ e no currículo básico no ES foram
selecionados. Nas turmas do 8º ano foi escolhido o conteúdo ‘Sistema Reprodutor’ e
nas turmas do 9º ano, o conteúdo ‘Fontes Renováveis e Não-Renováveis de Energia’.
As etapas da pesquisa constaram de aplicação do pré-teste como forma de conhecer o
conhecimento prévio que os alunos tinham sobre o determinado conteúdo. Na semana
seguinte aplicou-se a aula expositiva orientada por apostila e a paródia musicalizada
dos conteúdos selecionados para o grupo experimental e para o grupo controle,
aplicou-se a aula expositiva orientada por apostila dos conteúdos selecionados. Na
terceira semana aplicou-se o pós-teste para ambos os grupos. A pesquisa foi realizada
nos meses de agosto e setembro de 2016 para ambas escolas.
6. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Na pesquisa participaram 101 alunos, sendo assim distribuídos: turma 800 A, 21
alunos; 800 B, 20 alunos; 900 A, 19 alunos; 900 B, 23 alunos e 900 C, 18 alunos. O
questionário pré-teste e pós-teste foi elaborado com 10 perguntas fechadas sobre o
conteúdo selecionado.
A figura 1 expressa os resultados do pré-teste e pós-teste aplicados à turma 900 A,
grupo experimental.
Figura 1. Porcentagem de alunos pelo número de questões acertadas nos testes (10
questões)do pré-teste (azul) e pós-teste (vermelho) aplicados à turma 900 A - grupo
experimental.
Figura 2. Porcentagem de alunos pelo número de questões acertadas nos testes (10 questões)
do pré-teste (azul) e pós-teste (vermelho) aplicados à turma 900 B - grupo controle.
Na figura 2, percebe-se que na turma 900 B, o pós-teste não expressa valores significativos
de acertos se comparados ao pré-teste, mas ao comparar-se as figuras 1(900 A) e 2 (900
B), percebe-se que o pós-teste do grupo experimental (figura 1, 900 A) obteve mais
acertos que o pós-teste do grupo controle (figura 2, 900 B).
A figura 3 expressa os resultados do pré-teste e pós-teste aplicados à turma 800 A,
grupo experimental:
Figura 3. Porcentagem de alunos pelo número de questões acertadas nos testes (10
questões) do pré-teste (azul) e pós-teste (vermelho) aplicados à turma 800 A - grupo
experimental.
Figura 4. Porcentagem de alunos pelo número de questões acertadas nos testes (10
questões) do pré-teste (azul) e pós-teste (vermelho) aplicados à turma 800 B - grupo
controle.
A análise da figura 4 demonstra que o pós-teste obteve resultados bem inferiores com
relação a número de acertos se compararmos com o pós-teste do grupo experimental
(figura 3).
Abaixo a figura 5, grupo experimental da turma 900 C:
Figura 5. Porcentagem de alunos pelo número de questões acertadas nos testes (10
questões) do pré-teste (azul) e pós-teste (vermelho) aplicados à turma 900 C - grupo
experimental.
Figura 6. Porcentagem de alunos pelo número de questões acertadas nos testes (10
questões) do pré-teste (azul) e pós-teste (vermelho) aplicado à turma 900 C - grupo
controle.
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INTRODUÇÃO
Visando a valorização do ensino da matemática e a melhoria do processo de ensino-
aprendizagem dos alunos, desenvolvemos este trabalho como proposta de intervenção
pedagógica na “EEEFM Ewerton Montenegro Guimarães”, localizada em Viana – ES.
As grandes dificuldades que os nossos discentes têm em interpretar um texto, os
impossibilitam de resolver problemas simples e compreender os conteúdos matemáticos
da última série do ensino fundamental. É fato que eles têm limitações e trabalhamos
neste projeto suas especificidades, de acordo com a pedagogia de projetos de Paulo
Freire, onde devemos aproveitar os conhecimentos que os alunos trazem para escola.
Enquanto educador preocupava-se bastante com aprendizagem de seus alunos, e não
menosprezava o conhecimento que já possuíam, pelo contrário, trazia para a sala de
aula este conhecimento, a fim de aprimorar os conhecimentos dos educandos e dar
sentido aos conhecimentos a serem adquiridos.
É inegável que somos imigrantes digitais, na época atual, e que os nossos discentes,
como nativos digitais, se enfadam com o método tradicional de ensino. Segundo
Santaella (2003):
A era digital vem sendo também chamada de cultura do acesso, uma formação
cultural está nos colocando não só no seio de uma revolução técnica, mas
também de uma sublevação cultural cuja propensão é se alastrar tendo em vista
que a tecnologia dos computadores tende a ficar cada vez mais barata. (p. 27)
Hoje uma notícia pode ser facilmente acessada em redes socais como o Twitter ou
Facebook antes mesmo de sair na imprensa. Empresas como o GOOGLE já planejam
fazer entregas via drones nas grandes cidades em 2017. A SONY registrou recentemente
uma patente de lente capaz de fotografar com uma piscadinha voluntária, ou seja,
muitas coisas que há dez anos faziam parte de filmes de ficção hoje já são reais. No site
Tecnomundo encontramos vários exemplos como estes acima.
Já é uma realidade comprar ou pagar contas sem sair de casa utilizando apenas um
smartphone. As indústrias de automóveis possuem produção predominantemente
automatizada, sem falar do empacotamento de alimentos que é totalmente automático.
Segundo Castells “a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode ser entendida ou
representada sem suas ferramentas tecnológicas.” (1999, p.43). Vemos com isto, que uso
da tecnologia é inevitável e essencial. Esta demanda pode auxiliar na educação, e as
escolas devem se adequar para polir os instrumentos tecnológicos, a fim de filtrar esta
avalanche de informações que chegam sobre os nossos discentes.
Numa sociedade globalizada, onde a tecnologia avança em passos largos, há
necessidade de lidar com alguma familiaridade com as principais ferramentas
tecnológicas disponíveis. Neste contexto, a escola insere-se como uma das
principais responsáveis para a inclusão do indivíduo neste contexto. (MENEZES,
et al.; 2006)
Devemos inserir os discentes neste contexto, porque mais tarde ele poderá enfrentar
dificuldades ao manusear alguns destes equipamentos tecnológicos. Todas as pessoas
devem ter uma mínima noção de tecnologia, pois ela está presente em nosso cotidiano
desde o caixa do supermercado, passando pelos caixas dos bancos, está presente nos
hospitais, nos cinemas, nos estacionamentos dos shoppings ou de lojas em geral, nos
brinquedos, nos jogos, enfim é presença constante no nosso cotidiano.
As ferramentas tecnológicas não param de multiplicar. O projetor multimídia com
computador embutido é um recurso que pode auxiliar o trabalho do professor, isto
sem falar no quadro digital e outros recursos didáticos tecnológicos que já fazem parte
do cotidiano de algumas escolas.
O professor de matemática deve ter um olhar especial para este assunto, pois os alunos
da rede de ensino básico enfrentam muitas dificuldades com esta disciplina. Segundo
Menezes:
O acesso à informática deve ser ampliado para as diversas áreas da educação,
principalmente na matemática, pois esta disciplina tem sido um dos pontos críticos
do ensino básico, causa dos mais altos índices de evasão escolar e repetência,
interferindo de modo negativo na formação da cidadania. Desta forma, faz-se
necessárias modificações com contribuições na melhoria deste quadro, e uma
destas contribuições está relacionada com a utilização da informática no processo
de ensino e aprendizagem desta disciplina. (MENEZES, et al.; 2006)
A sociedade não pode ser representada sem suas ferramentas, assim como o celular,
ou os computadores, ou os tabletes devem ser incorporados ao cotidiano escolar.
Sabemos que este processo é lento e que talvez seja necessário mais um tempo para
que a tecnologia seja o recurso didático principal em todas as aulas da educação básica.
Ainda existem muitos entraves para colocar em prática todas estas novas tecnologias, é
fato que não faltam ferramentas para os docentes atuais trabalharem, mas na maioria
das vezes falta suporte técnico para colocar todas estas ações em prática, principalmente
nos laboratórios de informática. Outro entrave é que nem todas as escolas da rede
estadual do Espírito Santo possuem um link de internet que atenda satisfatoriamente
aos professores, quanto mais se este link for liberado para os alunos. Isto não significa
que o projeto não tem seu valor, pelo contrário, ele é um ponto de partida para uma
educação mais democrática.
Tendo em vista a estrutura das escolas da rede, a SEDU enviou um comunicado para
estas solicitarem um link de internet com até 15Mb, mas nem todas as regiões do estado
possuem cobertura para um link que seja satisfatório. Existe a dificuldade para acessar
todas estas ferramentas na escola, mas isto não impede que os alunos o façam em casa
O professor deve utilizar todas estas ferramentas sem desviar o foco dos conteúdos,
todas as atividades devem ser bem planejadas para que ocorra o objetivo principal:
a aprendizagem. Para tanto, os profissionais da educação precisam de um mínimo
conhecimento de informática para trabalhar conceitos matemáticos, haja vista que
os algoritmos não podem ser escritos da forma que são, e sim numa linguagem
matemática computacional básica. Mas dependendo do assunto que estiver em foco
serão necessários apenas de conceitos básicos de informática.
O docente também pode utilizar softwares para facilitar o processo. Um bom exemplo
de software que auxilia na compreensão de múltiplos e divisores é o TUX MATH,
disponível para LINUX, nele o educando usa uma arma que dispara sobre a operação
matemática, quando este digita no teclado do computador o resultado da operação, que
aparece no visor. No software é possível o aluno treinar seu desempenho em operações
aritméticas básicas, bem como fazer operações diversas envolvendo múltiplos e
divisores. O discente pode fazer um duelo e jogar em duplo, tudo visando o treino
em operações algébricas. O programa também cria um ranking que registra recordes.
Também é possível jogar online se o professor assim preferir e tiver um link de internet
satisfatório.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO DA ESCOLA
A escola Ewerton Montenegro Guimarães foi inaugurada no dia 30 de novembro de
2007, tem como Ato de Criação a Portaria 3211 de 29/02/1996, publicado no Diário Oficial
de 05/03/1996 e Ato de Aprovação a Resolução CEE/ES nº 1495/2007 de 22/05/2007.
Ofertando assim os seguintes níveis de ensino: Ensino Fundamental – Ato de Criação
Portaria Nº 141R de 3/12/2011 – Ato de Aprovação EF – Res. CEE nº 3139/2012 de
16/05/2012, Ensino Médio - Portaria Nº 072 de 05/12/2000 e Educação Profissional
Técnica em Logística integrada ao Ensino Médio - Parecer CEE nº 2.587/2010 da
Resolução CEE nº 2.277/2010, publicado no Diário Oficial de 05/07/2010 e Educação
Profissional Técnica em Administração Parecer CEE nº 2.729/2010 da Resolução CEE nº
2.417/2010, publicado no Diário Oficial de 03/08/2010. A Escola atende nos três turnos,
sendo o fundamental II (7° e 8° séries) apenas no vespertino, apesar de ter capacidade
de matrícula em 2015 de 895 alunos, trabalha com 720 discentes.
Segundo Oliveira (2004) Júlio César de Melo possui diversas obras com heterônimo de
Malba Tahan:
De acordo com o autor citado anteriormente Malba Tahan, mesmo escolhendo um
heterônimo árabe, jamais visitou o oriente. Ele é famoso no Brasil e no exterior por seus
livros de recreação matemática e fábulas e lendas passadas no Oriente, muitas delas
publicadas sob esse heterônimo/pseudônimo.
O fato de usar um pseudônimo estrangeiro ocorreu porque os escritores brasileiros não
eram valorizados em seu tempo. Este fato foi confirmado por Shinkawa (2010) quando
escreveu:
Como o mercado literário daquela época dava grande valor à escrita estrangeira
Mello e Souza trocou seu nome por R S Slady (ou R S Slade, como citam outros
autores), que acabara de inventar, e levou seu texto novamente para o diretor,
dizendo que seu trabalho era mesmo muito ruim, mas ele havia descoberto um
autor americano denominado R S Slady que escrevia bem e era desconhecido
no Brasil. (p.5)
A autora aponta que no dia seguinte, o Jornal “O Imparcial” trazia em sua primeira
página o conto A Vingança do Judeu de R S Slady, e posteriormente mais quatro seriam
publicados. Ela aponta inclusive a data do nascimento de Malba Tahan:
06 de maio de 1885 é a data que marca o nascimento de Ali Iezid (ou Yezzid, como
citam outros autores) Izz-Edim Ibn Salim Hank Malba Tahan, um famoso escritor
árabe descendente de uma família muçulmana que nasceu na aldeia de Muzalit,
próxima à antiga cidade de Meca. Começou seus estudos no Cairo, depois foi para
Constantinopla, onde concluiu o curso de ciências sociais. Foi também durante
esse período que começou a escrever trabalhos literários que seriam publicados
em diversos jornais e revistas, em turco. SHINKAWA(p. 5, 2010).
Vale ressaltar que a data de nascimento de Malba Tahan coincide com o dia Nacional da
Matemática no Brasil, e este fato não é coincidência, isto ocorre, porque, em 05 de maio
de 2004, a então deputada Raquel Teixeira foi a responsável por apresentar um projeto
de lei, para instituir o Dia Nacional da Matemática. O objetivo era que o Ministério
da Educação e da Cultura incentivasse atividades culturais e educativas nessa data. A
proposta de Raquel determinava um momento para refletir a educação matemática,
incentivando os professores e estudantes a cultivar a cultura e o saber. Apenas em 26
de junho de 2013 a Presidenta da República, Dilma Rousseff, sancionou a lei n° 12.835,
que instituiu, oficialmente, o Dia Nacional da Matemática, que deve ser comemorado
anualmente em todo o território nacional em 06 de maio. A data foi escolhida para
homenagear o brilhante escritor.
O livro mais conhecido de Júlio César de Mello e Souza foi: O Homem que Calculava,
é uma coleção de problemas e curiosidades matemáticas apresentada sob a forma de
narrativa das aventuras de um calculista persa à maneira dos contos de Mil e Uma
Noites. Monteiro Lobato classificou-a como: “… obra que ficará a salvo das vassouradas
do Tempo como a melhor expressão do binômio ‘ciência-imaginação.’”
4. A PESQUISA
Depois das considerações iniciais, em planejamento com a equipe pedagógica da escola,
utilizamos a sala de vídeo para a leitura do livro. Nossa escolha não foi por acaso,
pensando em utilizar espaços diferenciados da escola, queríamos utilizar a biblioteca
com o objetivo de incentivá-los a este tão belo hábito, contudo ficamos frustrados ao
perceber que esta não comportaria 30 alunos simultaneamente. Também pensamos
em levá-los em dois grupos menores com 15 alunos cada, mas à logística para tal
ato se tornaria inviável, pois o tempo de uma aula não seria suficiente para leitura
de um capítulo. Enfim escolhemos o espaço da sala de vídeo por ser um ambiente
mais agradável, sendo climatizado, e também por ter lotação suficiente para atender a
demanda.
Os capítulos do livro não são muito densos, este fato facilitou a leitura, evitando que se
tornasse cansativa, e nos permitiu fazer um resumo-comentário ao final de cada um,
a fim de auxiliar àqueles com maior dificuldade de interpretação. Nosso objetivo neste
momento era criar nos discentes empatia pelo texto, haja vista, que os alunos ainda
tinham como tarefa de cada aula, produzir um texto resumo do capítulo.
6. POWTOON
Nesta parte mostraremos alguns pontos apresentados nas aulas expositivas no
laboratório de informática. No primeiro momento procurei mostrar uma animação que
havia feito para exemplificar o trabalho. Não foi nada complexo, apenas um vídeo que
durou cerca de um minuto, mas o foi o suficiente para instigá-los a produzir. Alguns
se mostraram céticos, primeiro quanto a mim, duvidavam que eu mesmo fizera aquela
animação, mas à medida que o vídeo foi passando eles ficaram convencidos disto.
Depois quanto à capacidade deles produzirem algo semelhante. A figura 1 mostra um
print da página da produção.
Um dos problemas apresentados pelos alunos foi o fato do site ser todo em inglês,
mas foi facilmente superado por ser um inglês que está muito próximo daquele que
eles veem em smartphones, aparelhos de DVD e vídeo games. Um inconveniente que
chega a ser mais problemático principalmente quando se dispõe de poucos recursos, é
descrito por Melgar:
Sólo presenta dos pequeños inconvenientes: que se encuentra aún en fase Beta y
que sólo podremos disponer de ella de forma gratuita durante los 30 primeros
días. Aunque si optamos por su versión de pago, en la Sección de Educación
comprobaremos que sus precios son bastante asequibles. (MELGAR, p.3, 2013)
Traduzido diretamente:
O site também dispõe de uma versão Beta que só pode ser utilizada por 30 dias, muito
embora se optarmos por sua versão educacional, poderemos dispor dela com preços
acessíveis. “Tradução nossa”
O login no site pode ser feito via Facebook, GOOGLE+ ou Linkedin, mas apesar disto
instruímos o aluno a criar uma conta gratuita no site utilizando uma conta do Google.
Esta escolha foi intencional haja vista que nossa pretensão, é fazer postagens no Youtube
posteriormente.
Após criada a conta, o site manda um e-mail para o endereço eletrônico registrado
nele. Este servirá de via de comunicação entre o animador e o recurso tecnológico.
O usuário deverá fazer a validação da conta e somente depois poderá utilizá-la. Feito
este processo, o usuário poderá começar a produzir quando bem desejar. Logo em
seguida, o animador deve escolher que produto deseja trabalhar: vídeo de animação ou
slides de apresentação. No nosso caso, seria o vídeo de animação. Mas esta foi uma ótima
oportunidade de mostrar ao aluno esta potencialidade do site, que é possível criar slides
para a apresentação de algum trabalho escolar e deixá-lo disponível na rede.Além disto, é
possível o animador reutilizar imagens que já trabalhou em algum momento. O site salva
todas as imagens que você importar, através do botão upload image..
Terminadas as aulas expositivas, cada grupo começou produzir sua animação no site
PowToon, cujo tema foi uma das estórias do livro O Homem que Calculava. A escolha
da estória ficou a critério de cada grupo, não havendo nenhuma objeção por parte do
professor coordenador do projeto, a menos que a estória já tenha sido escolhida por
algum outro grupo.
Após a produção das animações, as mesmas foram postadas no Youtube, sendo seu
link distribuído entre os colegas da turma e para o professor via redes sociais e e-mail,
respectivamente, com o intuito de que cada um deixe sua colaboração nos comentários,
que também fazem parte da avaliação. Os links dos trabalhos realizados, bem como as
fotos das aulas expositivas e de orientação estão disponíveis nos anexos.
A próxima etapa do projeto foi à avaliação. Esta foi a parte mais difícil do projeto, haja
vista que todos os alunos eram incipientes nesta metodologia, muitos sequer haviam
feito uma apresentação em Power Point, quanto mais produzir vídeos e postar numa
rede social. Mesmo numa avaliação tradicional, na qual é solicitada ao aluno apenas a
resolução de exercícios, é possível avançar para além da resposta final, considerando:
• o modo como o aluno interpretou sua resolução para dar a resposta;
• as escolhas feitas por ele para desincumbir-se de sua tarefa;
• os conhecimentos matemáticos que utilizou;
• se utilizou ou não a matemática apresentada nas aulas; e
• sua capacidade de comunicar-se matematicamente, oralmente ou por escrito.
(Buriasco, p. 503, 2004)
CONCLUSÃO
Inicialmente os alunos ficaram um pouco assustados, porque para eles tudo aquilo
era novidade, mas com o tempo, o medo foi passando e a maioria gostou do trabalho.
Perceberam que trabalhar animações era melhor do que aulas expositivas cansativas.
Reclamaram que não sabiam fazer, mas quando colocaram “a mão na massa” acharam
fácil e motivador. Quando assistiram a seus vídeos no Youtube, ficaram maravilhados
com seus próprios trabalhos.
Com o desenvolvimento desse trabalho, pudemos constatar que o projeto contribuiu para
a melhoria da qualidade da educação e ampliação do espaço/tempo de aprendizagem dos
alunos da unidade escolar. É bem verdade que as atividades desenvolvidas promoveram
a interação, a participação nas aulas e a desinibição dos alunos. Também houve melhoria
na interpretação e produção textual. Outro fato importante é que o projeto aumentou as
possibilidades para os alunos mostrarem e aperfeiçoarem sua criatividade.
Tendo como base a avaliação diagnóstica feita no início do processo houve melhora
significativa no que diz respeito aos objetivos pedagógicos, pois boa parte dos alunos
puderam melhorar o seu rendimento com o projeto.
Concluímos que não devemos ter receio de trabalhar novidades com os nossos alunos,
porque é muito provável que nós iremos nos surpreender com os resultados. A internet
e redes sociais são ferramentas que fazem parte do cotidiano dos discentes, e nós
como professores, devemos ensinar nossos alunos a usarem de maneira produtiva,
construtiva e correta.
REFERÊNCIAS
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escondido. In: ROMANOWSKI, J. P.; MARTINS, P. L. O.; JUNQUEIRA, S. R. A. (orgs.)
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YOUTUBE. URL: disponível em: <www.youtube.com.br.> Acesso em: 05/05/2016.
INTRODUÇÃO
As tecnologias digitais trouxeram mudanças positivas para a educação devido ao
aumento dos recursos disponíveis que podem transformar o modelo de aula tradicional
freqüente nas escolas. Porém, apesar das tecnologias estarem incorporadas ao cotidiano
dos estudantes, elas não podem ser utilizadas na sala de aula como simplesmente
recursos atrativos. Neste sentido, é necessário utilizá-las buscando desenvolver
habilidades e competências no aluno.
Partindo deste enfoque, busca-se uma reflexão sobre o uso das multimídias no contexto
educacional. Estas também não podem ser utilizadas como um recurso que não favoreça
a construção do conhecimento. Neste contexto, o presente trabalho possui como objetivo
discutir sobre o uso dos recursos multimídia na educação, trazendo como perspectiva
teórica a Teoria da Aprendizagem Multimídia para construção destes recursos. Trata-
se de uma pesquisa bibliográfica e que contemplará seções sobre tecnologia e educação,
Teoria da Carga Cognitiva e Teoria da Aprendizagem Multimídia. Por fim, serão tecidas
algumas considerações sobre a pesquisa.
1. TECNOLOGIA E EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA PESQUISA
Thoaldo (2010, p.12) aponta um grande desafio na educação. Segundo o autor, este
desafio consiste em “estimular os alunos a pensarem, pois é bem mais fácil o professor
passar vários exercícios repetitivos, do que desenvolver atividades que realmente
estimulem e despertem o interesse dos alunos no decorrer das aulas”.
Assim, diante do avanço e exigências da sociedade, se torna “necessário criar um
ambiente de aprendizagem do século XXI e preparar os alunos para se tornarem
cidadãos competentes nas sociedades baseadas no conhecimento que é proporcionado
por estas tecnologias” (PATRÃO; SAMPAIO, 2016, p. 54).
Este ambiente de aprendizagem pode ser criado pelo uso adequado das tecnologias. A
tecnologia deve ser utilizada a partir de “critérios claramente definidos que atendam
os objetivos educacionais de ensino. Não se pode esquecer que o valor pedagógico
pela utilização de um recurso em geral, depende da forma como a tecnologia é usada”
(KLEIM, OLIVEIRA, ALMEIDA, SCHERER, 2013, p. 2)
Em relação ao computador, este não deve ser utilizado nas escolas para desenvolver
trabalhos mecânicos, desta forma, o aluno não estará construindo conhecimento
(THOALDO, 2010). De acordo com Fernandes et al. (2013) “devemos saber que nos dias
de hoje quando o computador é usado para transmitir informação para o aluno, ele
não pode assumir um papel de máquina de ensinar”. Desta forma, é necessário que o
professor não apenas crie condições para que os alunos dominem o computador, mas
que desenvolva conhecimento sobre a maneira que o computador pode auxiliá-lo na
criação de novas metodologias de ensino.
Este fato ainda é confirmado por Valente (1999) quando menciona que “a informática na
educação que estamos tratando, enfatiza o fato de o professor da disciplina curricular ter
conhecimento sobre os potenciais educacionais do computador...” (VALENTE, 1999, p.1).
Mesmo diante de tantas contribuições das tecnologias digitais, muitos dos softwares
e recursos ainda são utilizados na educação de forma tradicional. Neste contexto,
apresenta-se a Teoria da Carga Cognitiva, que embasa a Teoria da Aprendizagem
Multimídia, como uma teoria que considera aspectos cognitivos importantes para o
uso dos recursos multimídia na aprendizagem. Salienta-se, desta forma, a necessidade
de priorizar fundamentos da cognição durante a elaboração e uso de recursos de
aprendizagem.
2. A TEORIA DA CARGA COGNITIVA
Segundo Sweller (2005), a carga cognitiva inclui a complexidade do conteúdo a ser
estudado, as atividades de ensino e aspectos irrelevantes. Estes últimos precisam ser
eliminados, a fim de não criar uma sobrecarga cognitiva durante o processamento da
informação na memória.
Apenas um número limitado de informações pode ser processado pelo sistema cognitivo
humano, sem gerar sobrecarga cognitiva. As memórias sensorial e de trabalho são de
curto prazo, portanto, limitadas. Já a memória de longo prazo é ilimitada. De acordo com
a Figura 1, com a verificação de um recurso multimídia, o sentido da audição percebe
as palavras, e a visão, as palavras e imagens. A memória sensorial atua percebendo
e selecionando as palavras e imagens. A partir desta etapa, os sons e imagens são
organizados em modelos na memória de trabalho, até que ocorra a integração entre estes
modelos, verbal e pictórico, com o conhecimento prévio na memória de longo prazo.
3. APRENDIZAGEM MULTIMÍDIA
A palavra multimídia como substantivo quer dizer tecnologia multimídia para
apresentação de materiais com formas visuais e verbais. O termo também pode ser
utilizado como adjetivo, neste caso, pode ser usado nos seguintes contextos:
• Aprendizagem multimídia: aprendizagem com uso de palavras e imagens;
• Mensagem multimídia ou apresentação multimídia: apresentações envolvendo
palavras e imagens;
• Instrução multimídia: apresentações com palavras e imagens que possuem a
intenção de promover a aprendizagem (MAYER, 2001).
Segundo Ribeiro (2012, p. 5), a multimídia “significa vários intermediários entre as fontes
e o destino da informação ou vários meios pelos quais a informação é armazenada,
transmitida, apresentada ou percebida”. Porém, em um sentido mais específico, o autor
relaciona o conceito de multimídia com o tratamento e processamento da informação
digital, sendo, portanto interpretado como um conceito de multimídia digital.
A multimídia digital pode ser conceituada segundo Ribeiro (2012).
Multimédia digital é a área relacionada com a combinação, controlada por
computador, de texto, gráficos, imagens paradas e em movimento, animações,
sons e qualquer outro meio pelo qual a informação possa ser representada,
armazenada, transmitida e processada sob a forma digital (p. 5).
Após esta definição de multimídia digital, Ribeiro (2012) define a multimídia como:
Multimédia designa a combinação, controlada por computador, de texto, gráficos,
imagens, vídeo, áudio, animação e qualquer outro meio pelo qual a informação
possa ser representada, armazenada, transmitida e processada sob a forma
digital, em que existe pelo menos um tipo de media estático (texto, gráficos ou
imagens) e um tipo de media dinâmico (vídeo, áudio ou animação) (p.10).
3.6 Modalidade
O princípio da modalidade refere-se a um efeito de aprendizagem da carga cognitiva
que ocorre quando uma apresentação de informações, que utiliza os modos visual e
o auditivo combinados, é mais eficaz do que uma simples apresentação que utiliza os
modos visual e auditivo separadamente.
A literatura sobre o desempenho de tarefas mostra que um modo dual de apresentação,
onde o texto é narrado e as imagens são expostas, pode resultar em aumento de
desempenho em ambas as tarefas de memória e tarefas de monitoramento. Existem
recursos de processamento específicos de modalidade que ocorrem de forma mais
eficaz quando apresentações utilizam duas modalidades distintas (auditiva e visual).
Desta forma, a aprendizagem é favorecida quando animação e narração são combinados
do que com animação e texto escrito. O trabalho da memória que busca integrar
mentalmente as diferentes fontes de informações interfere com a aprendizagem.
3.7 Sinalização
O princípio de sinalização refere-se à constatação de que as pessoas aprendem mais
profundamente a partir de uma mensagem multimídia, quando sinalizadores são
apresentados a fim de guiar a atenção para os elementos relevantes do material ou
destacar a sua organização. Os sinais podem consistir, por exemplo, em setas, cores
distintas, aumento no tamanho das palavras, zoom, etc.
Neste princípio basta fornecer pistas sobre como processar um determinado conteúdo
a fim de reduzir o processamento de conteúdo menos importante, como adicionar os
sinais que mostram ao aluno a melhor forma de organizar um conhecimento.
3.8 Segmentação
Os alunos aprendem melhor a partir de um recurso multimídia apresentado em
segmentos. A divisão em partes de um conteúdo apresentado em um recurso multimídia
possibilita tempo para que a informação seja processada, além de permitir controle.
Desta forma, em uma animação, por exemplo, é possível incluir funções de controle
para avançar ou retroceder as partes.
Um recurso elaborado como uma unidade contínua pode não permitir o tempo
necessário para o processamento da informação pelo aluno e, assim, criar a sobrecarga
cognitiva.
3.9 Pré-formação
Este princípio diz que alunos aprendem melhor conteúdos complexos quando os principais
conceitos relacionados e suas características são trabalhados inicialmente. Neste contexto,
a orientação é de que uma formação sobre os principais conceitos apresentados em um
recurso multimídia seja fornecida antes da apresentação deste recurso.
3.10 Personalização
O princípio da personalização mostra que a utilização do estilo formal de conversação
em um recurso não favorece a aprendizagem. Neste sentido, o princípio demonstra
que a utilização de comentários em primeira e segunda pessoas colabora com o
processamento da informação.
MAYER, R. E (Ed.). The Cambridge Handbook of Multimedia Learning. 2 ed. New York:
Cambridge University Press, 2014.
PATRÃO, I; SAMPAIO, D. Dependências on line: o poder das tecnologias. 1ed. FCA –
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RIBEIRO, N. Multimédia e Tecnologias Interativas. 5ed. FCA – Editora de Informática. 2012.
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UNICAMP/NIED, 1999.
THOALDO, D. L. P. B. O uso da tecnologia na sala de aula. 2010. 35 f. Trabalho de Conclusão
de Curso (Especialização em gestão pedagógica: educação infantil e séries iniciais)
- Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Tuiuti do Paraná,
Curitiba. Disponível em: <http://tcconline.utp.br/wp-content/uploads/2012/04/O-
USO-DA-TECNOLO GIA-EM-SALA-DE-AULA.pdf>. Acesso em: 18 nov. 2016.
in the family interactional context. This article is based on literature, using works by
Castells (2010), Trivinho (2007, 2016), Calil (1987), Andolfi et alli. (1989). In conclusion, the
new digital technologies collaborate to modify the identities in the context of the families.
Keywords: Digital culture. Cyberspace. Belonging and separation.
INTRODUÇÃO
As tecnologias, inegavelmente, têm transformado muitos aspectos da vida humana. Elas
estão presentes no cotidiano das pessoas e das famílias de muitas formas. As tecnologias
digitais também. Elas convocam uma pessoa a aderir a elas de modo sedutor, por
necessidade ou por apenas por curiosidade, mas elas podem também provocar repulsa,
estranhamento, receio, que se desdobrem em evitação, conflitos interpessoais e até
dificuldades de operacionalização de atividades corriqueiras do cotidiano, para alguns.
Os membros de uma família, uma vez enredados pela atrativa rede de computadores
ou por ela segregados, novas respostas formulam para a pergunta “quem sou eu no
contexto sociocultural mediado pelas novas mídias?”. Então, este artigo se dedica a
analisar a constituição das identidades no contexto das famílias pelo uso das novas
tecnologias digitais. A questão que se problematiza neste texto é: de que modo o uso das
tecnologias digitais contribui para conformar novas identidades no contexto familiar?
Desse modo, procura-se definir constituição de identidade na perspectiva sistêmica
de família, dissertar sobre a participação das tecnologias digitais na constituição das
identidades e discutir como as referidas tecnologias interferem na constituição da
identidade no contexto interacional familiar. A hipótese é a de que há uma relação
entre as tecnologias digitais e as identidades no contexto das famílias de modo que o
uso das primeiras colabora para modificar as segundas, na medida em que os avanços
tecnológicos, historicamente, articulam-se às mudanças no contexto social, econômico,
político, cultural mais amplo, sendo a família subsistema da sociedade. Justifica-se,
assim, este estudo, uma vez que, se, de fato, novas identidades vão se constituindo
no contexto das famílias em virtude da utilização das mídias digitais, esta pesquisa
identificará quais são os fatores que favorecem esse fenômeno e evidenciará de que
modo isso acontece.
Assim, este trabalho se mostra relevante para a comunidade acadêmico-científica, bem
como para as relações familiares e sociais mais amplas. A metodologia utilizada é a
pesquisa bibliográfica, baseada nas obras de autores como Castells (2010), Trivinho
(2007, 2016), Calil (1987), Andolfi e colaboradores (1989).
1 TECNOLOGIAS DIGITAIS E IDENTIDADE
O uso das tecnologias digitais cresce a cada dia mais. Através de ferramentas de
comunicação, como e-mails, Facebook, Instagram, chats, as tecnologias digitais potencializam
as conexões e as interações sociais, proporcionando múltiplas dinâmicas interacionais.
Isto é possibilitado pela Internet. Na concepção de Souza (2003), trata-se uma rede
para mim, é o nome da época como fase contemporânea do capitalismo tecnológico, articulado
por tecnologias digitais e redes interativas”. A dromoaptidão implica, assim, aptidão
para lidar no desempenho com as “senhas infotécnicas de acesso” da cibercultura,
como o computador, o laptop, o tablet e o celular, o capital cognitivo (conhecimentos),
a linguagem que se precisa incorporar, bem como a capacidade de acompanhar com
capital econômico as “reciclagens estruturais” de hardware, software e netware e a
possibilidade de acesso à rede.
Dromoaptidão é, então, “a capacidade de ser veloz no trato com os equipamentos e elementos
técnico-culturais que envolvem esses equipamentos, no trato com as senhas infotécnicas de acesso
a um lugar ao sol na cibercultura” (TRIVINHO, 2016). Trata-se, na opinião do autor, de
uma convocação ameaçadora à habilidade de utilizar os dispositivos infotécnicos em
uma velocidade eficiente, uma espécie de “violência invisível”, uma vez que aquele
que não acede a ela está fadado à segregação e exclusão do processo social majoritário
que exige dromoaptidão e que necessariamente passa pela apropriação e utilização de
softwares, netwares, tecnologias digitais, redes interativas. Essa demanda violenta vai
delineando identidades na cultura digital.
Tu deves seguir o ritmo: ser dromoapto, em sentido múltiplo, em todas as práticas
recomendadas, em todas as operações exigidas, em todos os conhecimentos
demandados; tu deves, se possível, antecipar-se ao funcionamento do sistema
tecnológico e da (respectiva) cultura midiática que financiam a tua identidade
(TRIVINHO, 2007, p. 98).
Em geral, então, as famílias convivem e se organizam a partir de suas regras e leis que
unem todos em torno do alcance de seus propósitos e expectativas.
Cada família, no entanto, possui organização e estrutura específicas
dependendo da forma como seus subsistemas interagem entre si e com os
sistemas comunitários. As interações que ocorrem entre os subsistemas, seja no
interior da família, seja entre a família e o meio ambiente, dão-se, contudo, nos
limites ou fronteiras de cada subsistema. Considera-se que cada subsistema da
família tem características específicas quanto a sua natureza e funções, as quais
estão vinculadas aos valores de nossa sociedade e cultura (CALIL, 1987, p. 22).
identidade sem superidentificação” (DAY, 2010, p. 104, tradução nossa). Cabe às famílias
o papel de permitir a seus filhos pertencer e se diferenciar, a fim de conformar sua
própria identidade.
Em todas as culturas, a família dá a seus membros o cunho da individualidade.
A experiência humana de identidade tem dois elementos: um sentido de
pertencimento e um sentido de ser separado. O laboratório em que esses
ingredientes são misturados e administrados é a família, a matriz da identidade
(MINUCHIN, 1996, p. 79).
É nesse grupo social, conforme Andolfi et alli. (1989), que os filhos têm a chance de fazerem
seu processo de separação-individuação, ou seja, de se diferenciarem, constituírem a
própria identidade, de terem liberdade de autoexpressão, de conformarem seu espaço
pessoal e adquirirem autonomia.
Teoricamente, o indivíduo é membro garantido em um grupo familiar que
seja suficientemente coeso e do qual ele possa se diferenciar progressiva e
individualmente, tornando-se cada vez menos dependente, em seu funcionamento,
do sistema familiar original, até poder separar-se e instituir, por si mesmo, com
funções diferentes, um novo sistema (ANDOLFI et alli., 1989, p.18).
Caso a família não permita isso, os filhos têm a constituição de sua identidade
comprometida, consoante a concepção sistêmica de família. Assim, a família pode ser
chamada pelos imperativos da “cultura digital” a rever seus hábitos e valores, suas
regras de convívio, seus padrões de interação e de comunicação, (re)construídos ao
longo de (muitas) gerações, uma vez que ela navega, de algum modo, no ciberespaço,
participando da cibercultura.
Assim como as identidades dos atores sociais se (re)definem no contexto social mais
amplo, as identidades deles se (re)constituem no contexto interacional das famílias,
influenciadas, também, pelo avanço tecnológico.
3 TECNOLOGIAS E IDENTIDADES NO CONTEXTO FAMILIAR
Os filhos e pais, netos e avós desta geração experimentam muitas mudanças
implementadas pelas novas mídias digitais, ou seja, pelas novas tecnologias da
informação e comunicação. Segundo Livingstone e Haddon (2009), o número de pais e
crianças que usam a Internet se equipara e segue crescendo, em especial, entre as mais
novas (6 a 10 anos). Na verdade, os pais alcançaram os adolescentes e ultrapassaram
as crianças mais novas, que deixam de ser “nativos digitais”, modificando-se, assim, o
“perfil da criança on-line”.
Para Tavares (2014), as crianças e adolescentes ainda pequenos argumentam acerca de
sua privacidade como direito e, apesar de seus direitos serem garantidos por lei, não se
sabe se elas estão aptas a responderem por seus deveres, por liberdade e privacidade
nem até que ponto esses direitos podem justificar a omissão de pais e responsáveis.
Por sua vez, é verdade, nesse universo de direitos e privacidade, algumas
crianças e jovens – incitados, em uníssono, pela escola, família, mídia e
mercado de trabalho, a serem perfeitos e mais ainda criativos, autônomos e
solidários – encontram, nas redes sociais, no uso contínuo e ininterrupto das
tecnologias móveis, formas interessantes e positivas de se comunicar, entreter,
ganhar dinheiro e, novamente, reivindicar seus direitos. Os exemplos positivos
de uso das tecnologias por esses jovens são rapidamente socializados pela
grande imprensa, que ajuda a criar uma representação social positiva, junto
à sociedade, dos benefícios de tal relação. Reforçando, assim, uma imagem de
que as crianças e jovens sabem – como ninguém – dominar as novas linguagens
(TAVARES, 2014, p. 82).
Segundo Ponte (2014), com base em dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil 2012, a
construção de gênero pode ser influenciada desde a infância; embora os estudos sejam
inconclusos ainda, já permitem observar mediações familiares, da sociedade e da
cultura brasileira em relação a meninos e meninas quanto aos equipamentos por eles
utilizados para acesso à Internet, sobretudo entre os mais novos, na construção da sua
identidade. Consoante Volpi (2014), essa mesma pesquisa indica que o universo virtual
reproduz alguns aspectos das desigualdades sociais do mundo não virtual.
O ciberespaço se mostra, assim, lugar e momento de (re)definição de identidades
e identificações. Um ambiente que as famílias precisam conhecer melhor, a fim de
favorecer o desenvolvimento de seus membros, que são, constantemente, chamados
para transitar nele. Um espaço que oferece tanto riscos como oportunidades para todos
aqueles que nele navegam e que vem propondo novos modos de relação para os atores
sociais/membros das famílias, novos modos de eles se perceberem, novas identidades
no âmbito das famílias e da sociedade.
CONCLUSÃO
O uso das tecnologias digitais, aliado às transformações sociais, culturais, políticas e
econômicas, contribui para conformar muitas mudanças no contexto familiar, na medida
em que, tomando-se por base um olhar sistêmico, o contexto sociocultural conclama
todos, filhos, pais, avós, netos, ao uso das novas tecnologias informação e comunicação.
Os filhos na escola ou universidade, os pais no trabalho, os avós no convívio familiar e
social, enfim, todos os familiares seguem se esforçando para se ajustarem à demanda
da “cultura digital”, buscando dar respostas adequadas à pergunta “quem sou eu?”,
“quem sou eu na família?”, “quem sou eu na sociedade?”, ou seja, “quem sou eu no
contexto sociocultural mediado pelas novas mídias?” nesse novo cenário da “fase
contemporânea do capitalismo tecnológico”.
Desse modo, as tecnologias digitais colaboram para promover alterações nas gerações
familiares, nas reconfigurações familiares, nas próprias formas de uso das novas
mídias, que requerem dromoaptidão no uso das “senhas infotécnicas de acesso à
cibercultura”, modificando, também, as identidades no contexto das famílias, na medida
em que os avanços tecnológicos, historicamente, articulam-se às mudanças no contexto
sociocultural mais amplo, em que, também, fatores de ordem social, econômica, política
e cultural, interferem nesse processo que impacta a sociedade e as famílias, já que a
família é um subsistema da sociedade.
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1. Apresentação
As atuais tecnologias digitais e suas aplicações possibilitam novos arranjos sociais e
psíquicos, mudando paulatinamente o comportamento individual e coletivo. O uso de
tecnologias digitais propicia mais que uma simples ferramenta, convertendo-se em um
prolongamento de nossas relações sociais e gerando enorme fascínio sobre o processo
psíquico, estabelecendo uma relação de possibilidades, inclusive de dependência.
A pesquisa apresentada possui como justificativa a constatação de que, atualmente, as
novas tecnologias produzem forte impacto sobre a vida, seja ela privada ou pública,
como instrumento integrador dentro da conjectura social, provocando, assim, novas
tendências e interferindo direta e indiretamente nos processos de construção de
identidades e proporcionando riscos de desenvolver comportamentos e personalidades
patológicos pelo uso abusivo. A referente pesquisa propõe ainda a responder a seguinte
questão-problema: como a dependência psicológica da internet e redes sociais digitais
influenciam a estruturação do psiquismo humano e suas interações sociais?
No âmbito de investigação científica para a realização desta pesquisa, foram utilizadas
abordagens qualitativas e quantitativas. De acordo com Souza, Manhães e Kauark (2010
p. 26), a qualitativa enfatiza o campo fenomenológico, “(...) isto é, um vínculo indissociável
entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em
números”, enquanto o quantitativo delimita o que é mensurável, “(...) o que significa
traduzir em números opiniões e informações para classificá-las e analisá-las.”
2 – Processos, construções e formações.
Turkle (1997), em seu livro intitulado A vida no ecrã, caracteriza uma crescente
fragmentação da sociedade pós-moderna e uma descentralização contínua das
instituições que eram polos agregadores de pessoas. Este contexto possibilitaria,
assim, que as tecnologias digitais passassem a desempenhar um importante papel nas
comunicações e interações humanas, pois absorvem grande tempo de nosso dia a dia.
Observa, ainda, que
Sob a bandeira de um regresso a Freud, Lacan insistia que o ego é uma ilusão.
Com isto, ele estabelece a ponte entre psicanálise e a tentativa pós-moderna
de retratar o eu como um domínio discursivo, e não uma coisa real ou uma
estrutura permanente da mente humana. (p.263)
Para Bauman (2005), definir identidade é complexo devido a suas diversas variáveis.
Ele diz que.
Numa sociedade que tornou incertas e transitórias as identidades sociais,
culturais e sexuais, qualquer tentativa de ‘solidificar’ o que se tornou líquido
por meio de uma política de identidade levaria inevitavelmente o pensamento
crítico a um beco sem saída. (p.12).
Bauman (2005) refere-se também aos processos ideológicos que permitiam o sentimento
de segurança e referencial social, porém as ideologias se tornaram líquidas e, com a
globalização, os aspectos culturais se fragmentaram.
Em nossa época líquido-moderna, o mundo em nossa volta está repartido em
fragmentos mal-coordenados, enquanto as nossas existências individuais são
fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados. Poucos de nós, se
é que alguém, são capazes de evitar a passagem por mais de uma “comunidade
de ideias e princípios”, seja genuína ou supostas, bem-integradas ou efêmeras,
de modo que a maioria tem problemas em resolver (...) a questão da la mêmete
(a coerência daquilo que nos distingue como pessoas, o que quer que
seja). (p.19)
A globalização, aliada ao uso da internet, desterritorializa as concepções culturais e
influenciam direta e indiretamente as formações identitárias e estabelece um sentido
de pertencimento universal, além do que
(...) podemos afirmar com segurança que a globalização, ou melhor, a
“modernidade líquida”, não é um quebra-cabeça que se possa resolver com base
num modelo preestabelecido. Pelo contrário, deve ser vista como um processo,
tal como sua compreensão e análise – da mesma forma que a identidade que
se afirma na crise do multiculturalismo, ou no fundamentalismo islâmico,
ou quando a internet facilita a expressão de identidades prontas para serem
usadas. (…) A política de identidade, portanto, fala a linguagem dos que foram
marginalizados pela globalização. Mas muitos dos envolvidos nos estudos pós-
coloniais enfatizam que o recurso à identidade deveria ser considerado um
processo contínuo de redefinir-se e de inventar e reinventar a sua própria história.
É quando descobrimos a ambivalência da identidade: a nostalgia do passado
conjugada à total concordância com a “modernidade líquida”. (…) Qualquer
que seja o campo de investigação em que se possa testar a ambivalência da
identidade, é sempre fundamental distinguir os polos gêmeos que esta impõe à
existência social: a opressão e a libertação”. (BAUMAN, 2005 p.10-13).
Os efeitos da pós modernidade sobre a formação de identidade são bem descritos por
Stuart Hall (2005) em seu livro “A Identidade Cultural na Pós-Modernidade”, além de
destacar o processo de mudança do indivíduo no final do século XX, o que afeta os
processos de formação de identidade individual. Hall enfatiza que
(...) algumas vezes, como nosso mundo pós-moderno, nós somos também “pós”
relativamente a qualquer concepção essencialista ou fixa de identidade – algo
Os fatores dinâmicos expostos por Hall (2005) trazem características essenciais para a
relação entre as diversas conexões existentes na pós modernidade e seus entrelaçamentos
para a formação de identidade. Diz que
(...) internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”,
contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos
que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura (ou,
para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura
(...) Argumenta-se, entretanto, que são essas coisas que agora estão “mudando”.
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável,
está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias
identidades. (p.12).
Castells (2002) faz referência a nós como o ponto de interseção entre interlocutores,
propiciando comunicação e interatividade como uma raiz proporciona intercomunicação
dentro de um sistema complexo, um rizoma por assim dizer.
Recuero (2009, p 26) define rede social como um “(...) conjunto de dois elementos: atores
(pessoas, instituições, ou grupos, os nós das redes) e suas conexões (interações ou laços
sociais)”
A dinâmica deste processo oferece uma enorme mudança em relação aos processos
anteriores devido a sua velocidade, quantidade de informações e acessibilidade, além,
é claro, da interatividade. O sujeito não é um mero telespectador, ouvinte ou leitor; ele
sai de uma figura passiva de receptor e passa a ser emissor-receptor.
Neste processo interativo, deve-se salientar que o desenvolvimento tecnológico vivido
nos últimos anos - principalmente no final do século XX, tendo como catalisador a
Globalização - possibilitou as enormes mudanças nas concepções de comunicação e
formação de subjetividade. Entretanto, estas alterações da subjetividade, seja como
causa ou consequência, modifica e transforma a estrutura social e suas relações de
poder, além de possibilitar o surgimento de uma nova cultura baseada na informação
e permiti o avanço crescente das redes sociais.
O termo rede social não é oriundo dos novos processos informacionais; entretanto, com
os avanços tecnológicos, novas vertentes possibilitaram a integração e a interligação
entre redes separadas pelo espaço geográfico e pelo tempo. O fator preponderante
para esta catalisação comunicacional se dá através das estruturas científicas que
possibilitaram tais arranjos físicos para o desenvolvimento da internet e a globalização
que rompeu as fronteiras econômicas e sociais, originando novos paradigmas. Este
novo contexto da comunicação trouxe impactos para a estruturação psíquica devido a
velocidade em que tais processos de desenvolvem, propiciando novas referências.
Apesar da liquidez ou fragmentação existe pontos ou polos concentradores que
massificam comportamentos e possibilitam novos arranjos sócias e podem se denominar
de rizomas.
O termo rizoma, empregado para descrever o processo dialógico nas redes sociais
digitais, advém da botânica. Segundo Raven (1996),
Rizoma é a extensão do caule que une sucessivos brotos. Nas epífitas é a parte
rasteira que cresce horizontalmente no substrato. Ele pode ser bem extenso e
semelhante a um arame ou bem curto, quase invisível. Dele partem o caule,
pseudobulbos e raízes. Na espécie de Zygopetalum maxillare, quase sempre
associada a uma samambaiaçu, o comprimento do rizoma entre os pseudobulbos
pode variar. Elas produzem pequenos pseudobulbos seguidos por um longo
trecho de rizomas e em seguida outro pequeno pseudobulbo, até alcançar a
coroa da samambaiaçu na qual forma feixes e a floração aparece. Nas espécies
terrestres o rizoma pode estar no subsolo ou na superfície do solo. (p, 728)
Deleuze e Guattari (1995, p. 42) afirmam que “qualquer ponto de um rizoma pode ser
conectado a qualquer outro e deve sê-lo” e que o sistema rizomático é não linear, aberto,
sofrendo influências externas e internas.
Consideram ainda que
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre
as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança,
unicamente aliança. A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma tem como
tecido a conjunção “e... e... e...” Há nesta conjunção força suficiente para sacudir
e desenraizar o verbo ser.
Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para
outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento
transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas
duas margens e adquire velocidade no meio.” (Contra Capa)
Os nós descritos por Castells seriam os pontos de interseção, porém, existem nos
rizomas núcleos que convergem e formam um corpo fixador de nitrogênio (um
Para a Young (2011), existe um uso compensatório para alguns sujeitos no mundo virtual
em estabelecer novas identidades, mesmo que sejam distais daquelas vivenciadas
no mundo real, não virtual, transformando hábitos e proporcionando formações de
identificações que tragam reconhecimento ou prazer, mesmo momentâneo, durante sua
vida virtual, podendo ocorrer, em relação ao gênero, maneiras distintas de demonstrar
tais comportamentos.
Nesta caracterização de uso, é importante distinguir o que é normal ou patológico.
De acordo com Canguilhem (2009), em O Normal e o patológico, existe uma relação
quantitativa entre os fenômenos psicológicos e/ou fisiológicos, porém sem nos
prendermos nas questões relativas a excesso ou falta.
A partir do final do século XX e início do século XXI, alguns autores classificam a compulsão
pelo uso excessivo da internet ou tecnologia como Transtorno de Adição a Internet.
Para Young (2011),
(...) a adicção à Internet é uma dificuldade no controle de seu uso, que corresponde
ao que já conhecemos como dificuldade no controle dos impulsos, e que se
manifesta como um conjunto de sintomas cognitivos e de conduta. Tais sintomas
são consequentes ao uso excessivo da Internet, o que pode acabar gerando uma
distorção de seus objetivos pessoais, familiares ou profissionais. (p 36)
Para Young (2011, p 320), a dependência da tecnologia traz novos paradigmas sociais e
comportamentais pois, ao mesmo tempo em que disponibiliza uma gama de ferramentas
e informações e rompe fronteiras geográficas, carrega consigo o desconforto do uso
excessivo, trazendo problemas na vida real, ao encontro face a face, aos trabalhos em
equipe e ao convívio social de uma forma geral. Para a autora Young (2011),
Como vivemos em um mundo em que dependemos cada vez mais da tecnologia
é difícil determinar a diferença entre necessidade e dependência. Há momentos
em que é necessário usar a tecnologia de forma significativa e produtiva.
Além disso, vivemos em uma fase da história em que o conhecimento já não
é passivamente absorvido pelo indivíduo; isto é, hoje em dia podemos agir e
interagir com a informação, de modo a estabelecê-la como uma nova expressão
da nossa realidade pessoal e social. Isso nos transforma em testemunhas de uma
das maiores mudanças na história da ciência: a possibilidade de interagir em
tempo real com pessoas e informações. Embora sejam muitas as descrições do
impacto da internet na vida moderna, um dos maiores impactos que podem ser
citados é a progressiva mudança dos mores (do latim, costumes) que regulam e
governam o comportamento humano (p. 317)
escolar e a dependência de internet e que as notas destes são menores, possuindo mais
absenteísmo e maior ansiedade em relação ao colégio.
Para a Young (2011), existe um uso compensatório para alguns sujeitos no mundo virtual
em estabelecer novas identidades, mesmo que sejam distais daquelas vivenciadas
no mundo real, não virtual, transformando hábitos e proporcionando formações de
identificações que tragam reconhecimento ou prazer, mesmo momentâneo, durante
sua vida virtual.
Outro fator importante é a relação de contágio, pela qual o comportamento individual
é diretamente influenciado, como no “efeito manada”: o discernimento e a vontade
própria desaparecem por completo, passando, assim, a assumir uma identidade grupal.
Mais do que encantar, as tecnologias digitais interferem nos processos de comunicação
face a face. Verifica-se diferenças peculiares na comunicação interpessoal presencial,
onde os interlocutores podem se observar diretamente no decorrer da comunicação,
o que não ocorre na comunicação interpessoal mediada pelas tecnologias digitais.
Os indivíduos, usando a interface das tecnologias digitais, diminuem a exposição a
estímulos não verbais da comunicação, sendo filtrada a expressão emocional, eliminando
aspectos importantes como a variação de: expressão facial, postura corporal, entonação
vocal, dilatação e contração da pupila, sudação cutânea, batimento cardíaco, entre
outros. A comunicação não verbal é importante para o estabelecimento das relações
interpessoais e para o sucesso e manutenção destas.
Para a teoria do processamento de informação social descrita por Walter (1996),
o principal aspecto que define a diferença entre a comunicação face a face e pelo
intermédio das redes sociais digitais não está associado à quantidade de informação
social. Não é apenas a falta do conteúdo da comunicação não verbal que representa um
fator essencial para a interação humana, mas o ritmo, a velocidade de entendimento do
processo. Walter e Parks (2002) relatam ainda, em seus experimentos, que os usuários
da comunicação virtual necessitam de mais tempo para efetuar uma comunicação bem
sucedida, pois estão desprovidos de todo processo de comunicação, passando mais
tempo conectados, reforçando o comportamento de dependência.
4. Considerações Finais
O referido artigo baseia-se em pesquisa e, através das investigações interdisciplinares,
levantou os aspectos relativos à estruturação psíquica e à influência tecnológica sobre
sua formação. Entretanto, dentro de uma concepção biopsicossocial, é necessário um
distanciamento temporal dos fenômenos estudados para que o processo cultural possa
se cristalizar e formar novos paradigmas.
Para possibilitar uma maior credibilidade ao processo metodológico, foi utilizado um
instrumento (Internt Addction Test) já reconhecido por conselhos de psicologia de
17 países e validado pela Universidade de São Paulo no Brasil e manuais estatísticos
de transtornos mentais desenvolvidos por cientistas da área de psicopatologia de
diversos países.
Os comunicacionais não verbais representam papel importante no processo de
interação social e nas interações virtuais existe uma perda significativa da expressões
emocionais expostas da linguagem corporal e facial.
Granovetter ponderou sobre o potencial dos laços fracos, defendendo que tais laços
são de suma importância na difusão de informações e no acesso ao contemporâneo,
havendo um papel relevante na vida social da população (GRANOVETTER, 2011).
As redes sociais digitais conquistaram um amplo espaço dentro da sociedade,
principalmente entre os jovens, que a utilizam como principal mecanismo de pesquisa,
interatividade e entretenimento, explorando-as com uma frequência exorbitante,
limitando o convívio social e expondo suas vidas de forma desordenada, influenciados
pela imagem que criam de si mesmos, ficando altamente vulneráveis a doenças
psicológicas, como por exemplo, a depressão.
Por outro lado, na busca por mais praticidade, qualidade, economia e máxima produção,
as empresas estão investindo em inovações tecnológicas, através da implantação dos
sistemas de softwares, além de estarem mais criteriosas, selecionando os funcionários
após uma pesquisa virtual, acompanhando as publicações dos candidatos em seus
perfis, a maneira como se comportam nela e até mesmo avaliando a escrita dos possíveis
contratados. Nesse sentido Pierre Lévy dispõe que:
Tornemos o caso, muito contemporâneo, da “virtualização” de uma empresa.
A organização clássica reúne seus empregados em um mesmo prédio ou num
conjunto de departamentos. Cada empregado ocupa um posto de trabalho.
Uma empresa virtual, em troca, serve-se principalmente do teletrabalho; tende
a substituir a presença física de seus empregados nos mesmos locais pela
participação numa rede de comunicação eletrônica e pelo uso de recursos e
programas que favoreçam a cooperação. Assim, a virtualização da empresa
consiste sobretudo em fazer das coordenadas espaço-temporais do trabalho um
problema sempre repensando e não uma solução estável (LÉVY, 1996).
Inclusive, as pessoas idosas também estão adotando essas novas ferramentas, procurando
vencer as dificuldades e encontrando nelas uma oportunidade de aprenderem esses
recursos hodiernos, continuando, portanto, a buscarem novos meios de interação,
além, é claro, de se manterem conectadas com os amigos, inclusive aqueles que moram
em outras localidades. Por trás de todo esse desenvolvimento e interação existe um
marketing por parte dos proprietários das empresas das redes sociais digitais, tal como
o Twitter, Facebook, Google, Whatsapp, dentre outras, que buscam estratégias para
atraírem patrocinadores e o máximo de navegações diárias, a fim de obterem lucros e
serem potências mundiais cada vez maiores. Para que se atinjam tais metas, investem
em inovações, quase diariamente, e proporcionam atividades que despertem o interesse
do público e o torne cada vez mais viciado e dependente desses progressos inovadores.
Lévy discorre acerca disso desse progresso, ao dispor que:
O desenvolvimento da comunicação assistida por computador e das redes
digitais planetárias aparece como a realização de um projeto mais ou menos
bem formulado, o da constituição deliberada de novas formas de inteligência
coletiva, mais flexíveis, mais democráticas, fundadas sobre a reciprocidade e o
respeito da singularidade ( Lévy, 1996).
Essa abreviação da vida acarretada pelas inúmeras omissões faz com que a sociedade
se sinta impotente frente a esse dilema, além colocar sob análise a questão da efetivação
dos princípios éticos e morais que norteiam a atuação do Poder Público no que diz
respeito à proteção e efetivação dos direitos sociais e fundamentais previstos no
ordenamento jurídico, visto que a deficiência do sistema de saúde é ampla e abundante
é o número de pessoas que vivem em situações miseráveis, passando por humilhações,
dores, descasos e se tornando vulneráveis a vários tipos de doenças. É necessário
denunciar as mazelas da administração pública e cobrar a materialização dos serviços
que é de direitos dos cidadãos, a fim de que sejam legitimamente assegurados para que
na hora da premência não venham ser surpreendidos pela deficiência das instituições
hospitalares públicas.
Assim, a Mistanásia é o mal do século e sua prática precisa ser abolida da realidade
brasileira, devolvendo aos cidadãos a dignidade no que diz respeito ao acesso
igualitário e eficiente ao sistema de saúde público, evitando que muitas vidas sejam
abreviadas, pois por mais que o mecanismo que vem sendo utilizado seja um projeto
brilhante, ainda não está desempenhando o papel necessário nem atendendo a toda a
demanda. Enfim, o Estado precisa agir com mais eficiência, moralidade e celeridade,
superando a burocracia, a péssima administração e extinguindo com a corrupção,
afinal os cidadãos dependem disso para preservarem sua saúde, como corolário da
dignidade da pessoa humana.
Proposta uma reflexão sobre a saúde pública brasileira, especialmente sobre a prática
da Mistanásia, torna-se imprescindível, em um primeiro momento, conceituar saúde.
Neste passo, vislumbra-se uma inevitável dificuldade, pois no decorrer da história
muitos dos estudiosos conceituaram-na. A influência de contundentes fatores políticos
foi, sobremodo, o marco último do debate sobre o conceito de saúde. Neste contexto,
destaca-se como importante a experiência que as grandes guerras, de 1914-1918 e
1939-1945, proporcionaram no sentido de impulsionar a comunidade internacional,
atual contexto social, impregnou nas pessoas o temor originado pelas ameaças, riscos
e sinais de moléstias ou tão somente vulnerabilidades imunológicas, o que modificou
consideravelmente a relação dos sujeitos-pacientes com a saúde – acentuando a
utilização da tecnologia na aquisição de conhecimentos.
Em relação às redes sociais, cuja criação foi possibilitada graças aos grandes avanços
tecnológicos iniciados especialmente quando da Primeira Revolução Industrial, pode-
se afirmar que a internet modificou a forma como o ser humano se comunicava até
então, tendo, inclusive, como uma de suas características, o fato de ser considerada
fonte de informações disponíveis a todo instante a e proporcionar uma postura ativa
de todos aqueles que dela se utilizam.
A internet possibilita ao usuário saber a qualquer instante e lugar do globo terrestre,
informações sobre eventos, pessoas, coisas, e, principalmente, fazer com que a pessoa
humana seja agente do seu próprio sistema de aquisição de conhecimentos. Neste
diapasão, pode-se afirmar que a internet é o empoderamento, ou seja, em última
análise, o impulso a toda sociedade ou apenas uma determinada comunidade, cujo
fim é a busca de sérias e efetivas formas de melhoria da existência, através da aquisição
da autonomia e percepção crítica para com a realidade social. Corolário lógico, a
internet por meio das redes sociais digitais possibilita a todos saberem não só assuntos
atinentes à saúde, mas de igual modo, dos direitos que titularizam, especialmente o
direito social fundamental ao acesso igualitário à saúde.
E, como consequência direta, gera para o Poder Público o dever de efetivar o quanto
antes todas as disposições neste sentido previstas no ordenamento jurídico pátrio,
posto que, por estar cada vez mais informado quanto aos seus direitos, o cidadão-
paciente, por exemplo, quando busca atendimento patrocinado pelo sistema de saúde
público já sabe do que deve conter nas instalações hospitalares, a forma e o tempo de
atendimento, se recusando em se submeter a tratamentos demorados e inúteis ao ver-
se infringido em seu direito fundamental.
Vê-se que, o conhecimento quanto à tutela básica que deve ser assegurada pela
administração pública fez com que o cidadão se tornasse inconformado com a precário
serviço de saúde ofertado pelo sistema único. Em perspectiva mais aprofundada,
ainda que desconhecedor dos termos técnicos utilizados, o cidadão tem ressignificado
a própria existência, e não aceitado as práticas omissivas perpetradas pelo Estado.
Ou seja, a conscientização operada em grande parte pelas redes sociais digitais
tem feito com que a pratica da Mistanásia ainda que não extinta, tenha diminuído
significativamente do contexto social brasileiro.
Há que se registrar, ainda, que não cabe à administração pública alegar a reserva do
possível, visto a Constituição da República Federativa do Brasil dispor que compete
ao Poder Público proporcionar o mínimo existencial a todos os cidadãos. Dessa forma,
não há espaço para arguição da referida teoria, muito menos escassez de recursos,
ante o fato de o mínimo ter que ser assegurado e materializado em programas,
atendimentos e medicamentos ofertados gratuitamente pelo sistema único de saúde
pública (PARANHOS, 2007, p. 158).
É importante salientar que a saúde é uma das áreas que contém mais informações
disponíveis e acessadas por um número cada vez maior de pessoas. Essa perspectiva
torna-se real quando se analisa o exorbitante número de ações ajuizadas contra a
GT: 11 - Interdisciplinaridade,
educação, inclusão social e
tecnologias assistivas
Coordenadores: Haydéa Maria Marino de Sant’Anna
Reis e Edicléa Mascarenhas Fernandes
INTRODUÇÃO
O estudo trata dos serviços informacionais disponibilizados pela biblioteca escolar e
a sua importância para a aprendizagem dos alunos com autismo, buscando suscitar
discussões sobre a acessibilidade à informação nesse espaço, uma vez que o letramento
informacional é ferramenta pedagógica essencial aos processos de aprendizagem.
Analisaremos se os serviços informacionais disponibilizados pela biblioteca escolar
possibilitam o acesso a informação para os alunos com autismo. Tendo em vista que
esta pesquisa investigou as necessidades informacionais dos usuários com Transtorno
de Espectro Autista (TEA) e; a possibilidade de discussões sobre informação e
conhecimento acessíveis na biblioteca escolar através de ferramentas pedagógicas
essenciais nos processos de aquisição de conteúdo e conhecimento por estes usuários.
A investigação originou-se da observação de que, em muitos casos, os serviços da
biblioteca escolar não atendem às necessidades dos usuários com autismo, o que ensejou
a questão de se pesquisar sobre a razão de tal situação, se ocorria devido a não disporem
de funcionários capacitados e/ou de infraestrutura adequada para atendê-los.
A metodologia adotada é a de estudo de caso, sendo enfocada a biblioteca escolar da
Escola Municipal Tabelião Murilo Costa, localizada no município de Nova Iguaçu, no
Estado do Rio de Janeiro, no período de julho a outubro de 2016. Como objeto da pesquisa
considerou-se os serviços informacionais acessíveis aos alunos autistas da instituição
destacada. Quanto aos meios, a pesquisa foi bibliográfica, documental e de campo.
Os procedimentos investigativos são constituídos em três etapas na coleta de dados:
a) levantamento quantitativo dos alunos autistas que frequentam o turno regular; b)
elaboração de um questionário semiestruturado e sua aplicação em entrevistas com
os profissionais que atuam na biblioteca; c) pesquisa documental nos documentos da
biblioteca e pesquisa bibliográfica centrada na análise da literatura especializada sobre
acessibilidade, letramento informacional, biblioteca escolar e autismo.
Essas leituras subsidiaram o trabalho ao longo da pesquisa de campo na escola municipal
de Nova Iguaçu. O referencial teórico utilizado neste estudo foram (BRAMAN, 2006;
CAMPELLO 2009; GASQUE, 2012; FARMER, 2013; KLIPPER, 2014, MAROTO, 2012).
1. USUÁRIO COM AUTISMO
A disponibilização do letramento informacional para usuário autista, perpassa em
conhecer as singularidades de cada aluno na unidade escolar. Antes de comentarmos
sobre esta ferramenta de tecnologia assistiva, é fundamental, conhecer, mesmo que
breve, sobre a legislação brasileira atual sobre os direitos das pessoas com autismo.
Antes de ofertar serviços acessíveis na biblioteca para usuários com autismo, é
fundamental conhecer a legislação brasileira que ampara as pessoas com autismo.
De acordo com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva (BRASIL, 2008), existem três grupos de pessoas com deficiência que são
atendidos pelo setor da educação especial. Eis o público-alvo: pessoas com deficiência
Figura 1. Criança com TEA: atividades pedagógicas com PECS. Fonte: ASSOCIATION
FOR LIBRARY SERVICE TO CHILDREN (2004)
Através do PECS, o usuário autista poderá ter a fala estimulada ou desenvolver através
deste sistema de comunicação, a interação com outras pessoas.
Para Farmer (2013, p.69) os profissionais da biblioteca devem selecionar livros acessíveis
que possibilitem a leitura em razão da dificuldade comunicacional do aluno.
“Estes alunos têm dificuldade significativa de compreender e usar a linguagem
verbal ou uma deficiência significativa de aprendizagem não-verbal, e eles
têm dificuldade em interações recíprocas; em outras palavras, eles têm a
capacidade para descodificar palavras e texto em níveis muito avançados sem
a capacidade de compreender os significados de aquelas palavras que estão
a ser decodificado. Bibliotecários precisam selecionar livros que apelam para
crianças autistas: repetitivo/elementos previsíveis, sequências familiares,
rima, pergunta/resposta, formato, cadeia ou uma história circular. Lá várias
técnicas para fazer livros mais acessíveis: páginas de laminação, enriquecendo
a textura, compra de livros com fotografias reais, localizar livros que são sobre
crianças autistas, incluindo opinião do aluno autista em aquisições de livros da
biblioteca.” (FARMER, 2013, p.69)
Para Dretske3 (1991, apud CAPURRO; HJORLAND, 2007, p.169) a informação não
requer um processo interpretativo, embora seja uma condição necessária à aquisição
de conhecimento.
Partindo do pressuposto que informação é um conceito essencial para obtenção do
conhecimento, a disponibilização de conteúdos informacionais direcionados aos
interesses dos usuários contribui para o processo de aprendizagem.
“Uma característica chave da “informação-como-conhecimento” é de que é
intangível: não se pode tocá-la ou medi-la, de modo algum. Conhecimento,
convicção e opinião são atributos individuais, subjetivos e conceituais.
Entretanto, para comunica-los, eles têm que ser expressos, descritos ou
representados, de alguma maneira física, como um sinal, texto ou comunicação.
Qualquer expressão, descrição ou representação séria “informação-como-
coisa”. (BUCKLAND, 1991, p.352)
Em relação ao gráfico 2, foi perguntado aos dois profissionais de ensino que atuam na
biblioteca escolar, se o espaço oferecia acessibilidade e letramento informacional para
os usuários com autismo.
2,5
1,5
0,5
0
Profissionais da Biblioteca Acessibilidade Letramento informacional
Introdução
Pensando historicamente, o culto à perfeição física e mental, o ideal de perfeição em
saúde e beleza vem passando de geração em geração, potencializando, ainda que de
forma implícita, uma aversão à deficiência. Nos dias atuais, muitas vezes, essa aversão
fica no que conhecemos como zona muda1, mas ainda permeia nossa sociedade.
Se na Antiguidade Clássica, a deficiência era vista como uma punição, um castigo
que se estendia às gerações futuras de uma família; a partir da consolidação do
Cristianismo, o deficiente foi tomado como um projeto divino, imortalizado pela alma.
A tolerância e a aceitação da deficiência deveriam ser as posturas de todos os cristãos
dispostos a aceitar a provação enviada por Deus, enquanto desígnio. Estabelecido um
novo paradigma, o olhar sobre o deficiente passou a ser de tolerância, piedade e muita
caridade.
Na medida em que houve mudanças nas relações de trabalho e dependência econômica
entre os homens e com o avançar dos sistemas de produção, evoluindo do feudalismo
ao capitalismo, um novo perfil de homem se delineou, rompendo com o paradigma
anterior, onde:
“... as representações até então produzidas com base na exegese da revelação:
o natural, e não mais o divino passa a ser critério de norma e valor, sendo,
portanto, valorizado ou (des) valorizado tudo aquilo que é conforme a
natureza...” (GUHUR, 1994. p.80).
Nessa identificação, penso que parte desta preocupação pode ser creditada a uma série
de pré-conceitos e desconhecimento quanto às suas potencialidades, visto o estigma
de incapacidade e a representação social da sociedade em relação aos mesmos. A
desqualificação imposta pelo imaginário social em relação à deficiência envolve o
aluno numa aura de incapacidade geral, produzindo um alijamento completo deste
face ao descrédito que lhe é atribuído. Nessa concepção, entende-se que tanto no que
diz respeito à deficiência, quanto na área intelectual, amplia-se, nas concepções de
muitas pessoas, o conceito de inoperância do sujeito com deficiência, levando para a
sociedade e para a escola, a visão de que o deficiente é incapaz e inoperante.
Tendo como base o aluno com deficiência intelectual, cabe ressaltar, o conceito de
deficiência intelectual cunhado pela AAIDD (American Associationon Intellectual
and Developmental Disabilities) caracteriza-se por um funcionamento intelectual
inferior à média, associado a limitações adaptativas em pelo menos duas destas áreas
de habilidades (comunicação, autocuidado, vida no lar, adaptação social, saúde e
segurança, uso de recursos da comunidade, determinação, funções acadêmicas, lazer
e trabalho), que ocorrem antes dos 18 anos de idade.
Tendo por base este conceito, podemos entender que a deficiência intelectual não é uma
condição estática dos sujeitos, mas que, dependendo dos estímulos e apoios recebidos
da parte do Estado, da família, da escola e da materialização de diferentes políticas
e aportes legais, esses estudantes podem apresentar diferentes comportamentos,
respostas e aprendizagens significativas que os possibilitem a realização dos seus
objetivos e sonhos.
Desprezar potencialidades e evidenciar deficiências com a intenção de culpabilizar o
aluno pela sua não inserção social, não cabe mais como possibilidade dentro do atual
conceito e nem na estrutura de sociedade hoje concebida.
Temos consciência de que a efetivação de uma prática educacional inclusiva não
será garantida por meio de leis, decretos ou portarias, mas sim que através de ações
que preparem a escola e sociedade para atuar com os alunos que chegam até ela,
independentemente de suas diferenças ou características individuais.
O mercado de trabalho voltado para pessoas com deficiência torna-se, a cada dia,
mais exigente, buscando pessoas mais qualificadas e competentes para atuarem.
Paralelamente, a escola tem procurado ver educação profissional de pessoas com
deficiência intelectual com uma visão holística, uma vez que tem reafirmado a
compreensão da sua importância para o contínuo desenvolvimento desses alunos. A
inclusão laboral desse público vem sendo muito discutida tanto no meio acadêmico,
quanto na esfera das políticas públicas.
No atual contexto de transformação, levando em consideração as legislações
e a demanda da sociedade como um todo, torna se imprescindível capacitar
profissionalmente pessoas com deficiência intelectual, preparando-as e auxiliando-as
em sua inserção laboral, sendo um desafio constante na educação a busca de novas
práticas educativas que contemplem tanto as novas demandas do mercado de trabalho
quanto às particularidades do alunado com deficiência intelectual.
Existe uma série de características gerais que deve contemplar a formação profissional
de uma pessoa com deficiência intelectual, entendida desde um sentido amplo e geral,
Para Wehmeyer, Sads et all (1996 apud VERDUGO, 2005, tradução nossa), um dos
objetivos educativos deveria ser formar cidadãos responsáveis e autossuficientes,
indivíduos com alta autoestima, com iniciativa, habilidades e desejos de seguir
aprendendo. As práticas educativas direcionadas para pessoas com deficiência
intelectual devem favorecer que os mesmos sejam capazes de alcançar maiores cotas
de autonomia e controle de suas vidas.
Na política pública educacional encontramos questões relacionadas à profissionalização
de pessoas com deficiência, o que demanda a discussão sobre prováveis caminhos que
favoreçam o desvelamento das problemáticas inerentes a esse processo, no atual contexto
educacional. Sobre esta questão, a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), referência
para nossas políticas públicas educacionais, entre suas proposições, coloca que:
Jovens com necessidades educacionais especiais deveriam ser auxiliados no
sentido de realizarem uma transição efetiva da escola para o trabalho. Escolas
deveriam auxiliá-los a se tornarem economicamente ativos e provê-los com
as habilidades necessárias ao cotidiano da vida, oferecendo treinamento em
habilidades que correspondam às demandas sociais e de comunicação e às
expectativas da vida adulta. [...] O currículo para estudantes mais maduros e
com necessidade educacionais especiais deveria incluir programas específicos
de transição, apoio de entrada para a educação superior sempre que
possível e consequente treinamento vocacional que os prepare a funcionar
independentemente enquanto membros contribuintes em suas comunidades e
após o término da escolarização. Tais atividades deveriam ser levadas a cabo
com o envolvimento ativo de aconselhadores vocacionais, oficinas de trabalho,
associações de profissionais, autoridades locais e seus respectivos serviços e
agências (UNESCO, 1994).
Nos marcos legais encontramos a preocupação com a inclusão da pessoa com deficiência
no trabalho. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 assegura o
direito à educação profissional visando integrar socialmente o adolescente e o adulto
com deficiência (BRASIL, 1988). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei
Federal nº 9394/96) – que no seu inciso artigo 59º, inciso IV coloca:
Educação especial para o trabalho, visando a sua efetiva integração na vida
em sociedade, inclusive condições adequadas para os que não revelarem
capacidade de inserção no trabalho competitivo, mediante articulação com os
órgãos oficiais afins, bem como para aqueles que apresentam uma habilidade
superior nas áreas artística, intelectual ou psicomotora (BRASIL, 1996).
Não podemos deixar de destacar que o Decreto nº 3298 de 20/12/99 (BRASIL, 1999)
sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, que, em seu
artigo 28 – parágrafo 1, coloca que a educação profissional da pessoa com deficiência
deverá ser oferecida nos níveis básico, técnico e tecnológico, em escola regular, em
instituições especializadas e no ambiente de trabalho.
Objetivos
• A vivência da prática laboral para pessoas com deficiência intelectual;
• Possibilitar o aperfeiçoamento das competências básicas necessárias ao mundo do
trabalho, tais como: autonomia, iniciativa, criatividade, capacidade de julgamento
e crítica
• Monitorar os alunos egressos do Programa para subsidiar as ações de avaliação da
eficácia do mesmo.
Metodologia
A Escola Especial Favo de Mel, especializada no atendimento de alunos com
necessidades educacionais especiais na área da deficiência intelectual, é uma escola
pública, pertencente à rede de ensino Faetec. Com enfoque na preparação para a
Educação Profissional oferece cursos na modalidade de formação inicial continuada
(FIC) nas áreas de Auxiliar de Serviços Gerais, Auxiliar de Garçom – Cumim, Auxiliar
de Escritório – Contínuo, Auxiliar de Aderecista e Auxiliar de Cozinha.Possui carga
horária de 2400 (duas mil e quatrocentas) horas em seis MÓDULOS ofertados 5 (cinco)
vezes por semana, 4 (quatro) horas por dia, 20 (vinte) horas semanais, articulando-se
entre a teoria e a prática.
Através desses cursos,a Escola Especial Favo de Mel, objetiva potencializar a inclusão
no mundo do trabalho, dos alunos com deficiência intelectual, uma vez que mudanças
ocorrem a todo o momento, e a formação de jovens e adultos precisa estar alinhada
neste processo de busca sistemática de qualidade, de habilidades, de aptidões e de
talentos diferenciados para suprir as exigências do mundo do trabalho (FOGLI, 2010).
Para que essa inclusão laboral aconteça de uma forma efetiva, responsável e com
qualidade a escola conta o Núcleo de Inclusão Laboral (NIL). Este núcleo é responsável
por viabilizar convênio e parcerias em empresas e instituições para propiciar o
treinamento, a inclusão e o acompanhamento dos alunos com deficiência intelectual
em atividades laborais e a inserção no mercado de trabalho.
Período Nº de Treinandos
1º Sem. 2013 14
2º Sem. 2013 17
1º Sem. 2014 25
2º Sem. 2014 24
1º Sem. 2015 18
2º Sem. 2015 18
Total 116
30 25 24
17
25 24 18 18
30
20 14
17 18 18
20 14
10
10 0
0 1º Sem. 2º Sem. 1º Sem. 2º Sem. 1º Sem. 2º Sem.
20131º Sem.
1º Sem. 2º Sem. 2013 2014
2º Sem. 1º Sem.2014
2º Sem. 2015 2015
2013 2013 2014 2014 2015 2015
Período Renovados
Período
2º Sem. 2013 Renovados 1
2º Sem. 2013
1º Sem. 2014 1 13
1º Sem. 2014
2º Sem. 2014 13 11
2º Sem. 2014
1º Sem. 2015 11 11
1º Sem. 2015
2º Sem. 2015 11 4
2º Sem. 2015Total 4 40
Total 40
Renovados
15 13
11 11
10
5
4
1
0 2º Sem. 20131º Sem. 20142º Sem. 2014 1º Sem. 20152º Sem.
2015
Conclusões
Ao ser encaminhado para a prática laboral, percebemos que a princípio, que o aluno
com deficiência ainda não é visto como um profissional e que sua entrada no setor ainda
é entendida como uma “ajuda” na sua formação. Ao pesquisarmos os locais nos quais
eles iniciam sua prática constamos que em 90% dos setores ainda não disponibilizam
um local de trabalho adequado ao um profissional que atuaria naquela função para
os alunos. Entretanto, com o decorrer do período esta visão vai se modificando e a o
aluno começa a ser visto como um profissional, sendo na maioria dos casos, solicitado
a renovação de seu período.
A FAETEC, ao criar o Programa Vivenciando a Prática Profissional — um programa
que vai além da qualificação, uma vez que investe também em estratégias educacionais
que conduzem os estudantes dos cursos de Formação Inicial e Continuada ou
Qualificação Profissional à reinserção social através da experiência profissional, deu
Referencias
BADESA, S.M.; MARTIN, M.R.C. (Coord). Formacion para La inclusion de personas
com discapacidad intelectual.Piramide, 2010. Madri.
BRASIL, L. RESOLUÇÃO 9394, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Diário Oficial da
União, 1996.
LUECKING, R. (2001). Preparar os jovens com deficiência para um local de trabalho
cada vez mais técnica, resumo do Fórum, 26 de janeiro de 2001.
MENDES, E. G.; NUNES L. R. D’O. de P.; FERREIRA, J. R.. et al. Estado da arte das
pesquisas sobre profissionalização do portador de deficiência. Temas em psicologia
da SBP, v.12, n° 2, 2004.
OLIVEIRA, M. H. A. Formando pessoas com deficiência mental e múltipla para o
mundo do trabalho. In: Oliveira, Maria Helena Alcântara (Org.). Trabalho e deficiência
mental: perspectivas atuais. Brasília, DF: Dupligráfica editora, 2003.
RIBAS, J. Pessoas com deficiência nas empresas. Rede SACI, 2007. Disponível em
http://www.saci.org.br/index.php?modulo=akemi¶metro= 19167. Acesso em:
13.08. 2015.
INTRODUÇÃO
No Brasil, de acordo com os dados do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, há um grande número de pessoas com
deficiência. O Censo de 2010 investigou quatro tipos de deficiência: visual, auditiva,
motora e intelectual. Como resultado, o IBGE obteve que dos 23,9% da população
brasileira com algum tipo de deficiência, apenas 8,3% apresentam deficiência severa
(categorias grande dificuldade e não consegue de modo algum). As pessoas com
deficiência visual representam 3,46% (6.562.910), os sujeitos com deficiência motora
2,33% (4.433.350), a deficiência mental foi encontrada em 1,4% (2.611.536) e deficiência
auditiva declarada por 1,12% (2.143.173).
Mesmo considerando-se que os dados do censo são autodeclarados ou declarados a
partir do julgamento de um morador do domicílio, chama a atenção o número de
pessoas com deficiência intelectual no Brasil. Pode-se pensar que esse público irá
se deparar com importantes barreiras que dificultam sua participação na escola, no
trabalho e na comunidade. A participação social dessas pessoas constitui, assim, uma
preocupação para quem formula política pública, para os gestores de serviços de
atendimento a essa população (geralmente restritos à saúde e à educação), e, para a
sociedade, de um modo geral.
O trabalho ora apresentado pretende abordar a noção de participação social, bem como os
direitos das pessoas com deficiência e os modos e condições de participação desse público.
A Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2006) cita três esferas de
participação: a econômica, a social e a cultural. A econômica se refere à participação no
mercado de trabalho, constituição de renda e benefícios da pessoa com deficiência. A
social se refere à participação familiar, comunitária e em espaços de lazer, bem como
o protagonismo social da pessoa com deficiência intelectual. A cultural se refere à
participação escolar e acesso à cultura.
O presente estudo estará centrado na análise das condições de educação e trabalho.
Serão analisados alguns indicadores do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), Censo Escolar divulgados pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP), Benefício de Prestação Continuada do
município de Campinas, fornecidos pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) -
sede Campinas e Secretaria Municipal de Mercado e Renda de Campinas. Espera-se que
esses dados permitam traçar um panorama de participação das pessoas com deficiência
intelectual no município de Campinas, no que se refere à educação e trabalho.
A justificativa da pesquisa reside na consideração de que os avanços no campo da
deficiência se dão por meio de discussões e ações que refletem em políticas públicas
destinadas a essa população, e consequentemente, na vida diária dessas pessoas.
Apesar dos avanços observados no marco legal que garantem os direitos dessas
pessoas, a realidade, no que se refere aos modos de participação social é bastante
diversa, conforme a deficiência, faixa etária, condição socioeconômica e outros fatores.
Existem políticas e equipamentos sociais que se destinam ao atendimento de pessoas
com deficiência intelectual já na primeira infância. Contudo, as oportunidades
diminuem à medida que essas pessoas se tornam adolescentes, adultos e idosos.
Portanto, é necessário conhecer mais profundamente os termos dessa participação de
modo a colaborar para equacionar os problemas existentes.
2. Resultados alcançados
No Brasil, de acordo com o censo demográfico de 2010, 23,9% da população declara
possuir algum tipo de deficiência. A deficiência intelectual representa 1,12% do total.
No município de Campinas, 6,99% dos residentes possuem deficiência e entre esses, os
que declaram deficiência intelectual somam 1,05%.
A maioria das pessoas com deficiência intelectual (53,84%), assim como acontece no
caso de todas as deficiências, tem entre 15 e 64 anos de idade. Esse quadro ocorre em
todas as regiões do Brasil, assim como no estado de São Paulo. Se considerarmos a
faixa-etária, podemos inferir que essa população poderia estar na escola ou no mercado
de trabalho, como geralmente ocorre com a população em geral. Considerando a
faixa-etária da população com deficiência intelectual na cidade de Campinas, 8,49% se
encontra entre 0 e 14 anos, o que indica que esse grupo pode necessitar de equipamentos
de estimulação precoce e educação, o que implica na inclusão escolar e acesso à serviços
de saúde. Entre a população de 15 a 64 anos, uma parcela ainda está em idade escolar
e a outra se encontra no momento de atuar em espaços ou atividades laborais. Já o
grupo acima de 65 anos (25,18%), que constitui a população idosa, se depara com uma
dupla exclusão: por causa da deficiência e por ser idoso, pois a população idosa pode
ser vista como incapaz e, portanto, demanda cuidados.
As pessoas com deficiência intelectual, independente da faixa-etária, necessitam
de políticas públicas e serviços específicos para que possam ser atendidas em sua
especificidade. Reconhecer essa população como sujeito de direitos também implica
na disponibilização de equipamentos para o atendimento a esse público.
Em relação ao sexo, pouco mais da metade das pessoas com pelo menos uma deficiência
declarada é do sexo feminino (56,08%), enquanto que no sexo masculino o percentual
é de 43,93%. No que concerne à deficiência intelectual, no Brasil existem 1.409.597
(53,97%) sujeitos do sexo masculino e 1.201.938 (46,02%) pessoas do sexo feminino.
No que se refere ao sexo, em Campinas há 42.984 (56,96%) pessoas do sexo feminino com
pelo menos uma deficiência autodeclarada enquanto no sexo masculino a população
é 32.477 (43,03%). Especificamente no caso da deficiência intelectual são encontrados,
respectivamente, 5.650 (49,74%) e 5.708 (50,25%) sujeitos.
Na esfera educacional, o percentual de matrículas de alunos com deficiência intelectual
entre os anos de 2010 e 2014 apresentou um aumento de mais de 50% no Brasil. Se
comparada à frequência das matriculas de alunos com deficiência observa-se que as
matrículas de alunos com deficiência intelectual predominam no sistema educacional
brasileiro, já que representa mais de 60% do número de alunos com necessidades
educacionais especiais. A publicação da Nota Técnica nº 4 pode ter acarretado no
aumento do número de matrículas desse público, já que não há necessidade de um
laudo médico para que a escola declare um aluno com deficiência intelectual. No
município de Campinas, a variação percentual das matrículas entre os anos de 2010
e 2014 teve um incremento de 3,49%. Esse alunado chegou a configurar quase 60%
dos alunos com necessidades educacionais especiais em todos os anos selecionados. A
proporção guarda relação de semelhança com os demais dados.
No que se refere à dependência administrativa, no Brasil é a esfera pública que detém
um número maior de matrículas de alunos com deficiência e a taxa de crescimento
INTRODUÇÃO
A educação de pessoas com algum tipo de desenvolvimento anômalo ainda é um
grande desafio. Para os professores em formação pode ser um dos maiores desafios
ao exercício de sua profissão se estes não forem devidamente instruídos a buscarem
mecanismos de atuação frente a este público tão multifacetado. O objetivo geral deste
trabalho consiste em apresentar diferentes Recursos de Tecnologias Assistivas como
Braille a alunos de diferentes licenciaturas para que os mesmos se utilizem de tais
estratégias em suas práticas docentes.
Esse projeto é vinculado ao Núcleo de Educação Especial e Inclusiva (NEEI) da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)/Campus Maracanã, que através
do Projetos Iniciação a Docência “Recursos Adaptações e Tecnologias Assistivas para
educando com necessidades especiais” e Monitoria da Disciplina “Práticas Pedagógicas
em Educação Inclusiva” que tem como finalidade oferecer Oficinas de Recursos
de Tecnologias Assistivas (ORTAS) para os alunos dos Cursos de Graduação na
habilitação de Licenciatura plena que participam das disciplinas: Práticas Pedagógicas
em Educação Inclusiva e Educação Inclusiva: Cotidiano Escolar cursadas no período
letivo de 2016.1.Sua finalidade é o dialogo entre oembaseamento teórico com
o saber prático com intencionalidade de atender a recente demanda da inclusão de
alunos público-alvo da educação especial no ensino regular em concordância com a
Lei Nº13.146/95 em que seu Art. 28 nos incisos X e XIV declara que haja programa de
formação inicial e continuada aos professores desta área e que a inserção de conteúdos
curriculares sobre a educação inclusiva nos cursos de educação de nível superior.
É de conhecimento a todos o crescente número de alunos com necessidades especiais
em escolas regulares que ingressam, porém muitos são deixados de lado em um
canto na sala de aula, realizando atividades fora dos conteúdos programáticos sem
interagir com outros alunos, isso deve-se está relacionado também a formação dos
professores por não compreender essa novo arranjo das salas de aula, em parte o curso
de formação docente tem uma culpabilização (mas não somente o curso) a essa falta
conteúdo acerca dessa temática.
Nos cursos de formação de professores teoriza-se sobre a Educação Inclusiva, em
aulas comumente esvaziadas do “tom” e do teor didático prático e político que é
necessário, e não se “mergulha” seriamente no assunto. Ao lidar diretamente com
os alunos, no cotidiano da escola, docentes são invadidos por sentimentos que vão
da perplexidade à frustração, da exaustão à impotência. Não sabem o que fazer
nem como ensinar a esses alunos. (OLIVEIRA & MACHADO, 2007, pg. 38).
RESULTADOS ALCANÇADOS
Através da analise inicial das respostas objetivas do questionário,feitas de forma
quantitativa, respondido por futuros docentes em formação após assistirem a uma
oficina com a temática de tecnologia assistiva na faculdade de Educação da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro constatou-se uma insegurança por parte dos discentes das
múltiplas licenciaturas. Foram analisados 38 questionários que podemos verificar as
idades , os cursos, e periodo que os licenciandos particiapntes.
28 1 3%
31 1 3%
68 1 3%
Fonte: NEEI/UERJ
3º 5 14%
5º 6 16%
6º 5 14%
7º 9 24%
8º 1 3%
9º 1 3%
10º 3 8%
Fonte: NEEI/UERJ
Fonte: NEEI/UERJ
Essas mostraram que mais da metade dos discentes nos questionários analisados
relataram que antes da Oficina de tecnologias assistivas nunca tinham tido contato com
os recursos de tecnologia assistiva e a acessibilidade do currículo que convertendo para
números são 29 alunos, ou 76% não conhecem a tecnologias assistivas e 9 alunos ou
24% conhecem ou conhecem um pouco. Essa pequena analise nos mostra um numero
alarmante, haja visto, que a maioria dos licenciados não tinham tido contato algum
com recursos de tecnologia assistiva.
O questionário foi preparado com 5 perguntas: O que você pensa sobre a inclusão de
alunos com necessidades educacionais especiais nas classes regulares de ensino? O que
você entende por recursos de tecnologia assistiva no contexto educacional? Você já tinha
conhecimento sobre os recursos de tecnologia assistiva e acessibilidade ao Currículo
antes da Oficina de Recursos de tecnologia assistiva?Você já lecionou em uma classe
regular ou teve contato com aluno com necessidade educacional especial na escola?
Em caso afirmativo, você já utilizou algum desses recursos de tecnologia assistiva
durante as suas aulas para acompanhar os alunos com necessidades educacionais
especiais? O que você achou das oficinas de recursos de tecnologia assistiva? Apos a
oficina, você saberia buscar formas e usos das tecnologias assistivas no seu campo de
docência no sentido de atender educandos com necessidades educacionais especiais?
A partir da análise dos questionários foram destacados 2 perguntas principais: Você já
tinha conhecimentos sobre os Recursos de Tecnologias Assistivas e acessibilidade ao
currículo antes das oficinas de recursos e tecnologias assistivas? O que você achou das
Oficinas de Recursos Tecnologias Assistivas?
O primeiro ponto a destacar é pouca participação das oficinas dos alunos pedagogia,
com média de 30 aluno na sala apenas 6 responderam o questionários, outra ressalva
é que somente um participante tinha um pouco de conhecimento sobre a tecnologia
assistivas os demais participantes não tinha contato ou não sabia sobre a tecnologias.
Em outro curso de Licenciatura a participação foi maior, mas também poucos sabiam
Dentro desta perspectiva, esses dados preliminares nos mostram que as Oficinas de
recursos de tecnologia assistiva são importantes para um contato inicial desses discentes
com recursos que facilitem a aprendizagem do aluno publico alvo da educação especial.
Para os alunos, a utilização de tecnologias Assistivas contribuirá para a qualidade do
trabalho desempenhado, mas muitos ainda têm dúvidas e se sentem hesitantes.
Ainda que tenham considerada a realização das oficinas essenciais a sua formação,
os professores em formação assumem um certo desconforto no que se refere ao seu
preparo para lidar com as mais diversas situações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a Política Nacional da Educação Especial na perspectiva inclusiva (2008)
muitas redes precisaram se adequar legislativamente e ideologicamente ao fato de
conviverem com alunos com algum especificidade. Isto não foi gradual e não veio
seguido de uma política de formação continuada nem de formação de base. Neste
sentido, busca-se com a realização de oficinas temáticas de Tecnologias Assistivas
minimizar os impactos causados pela falta de recursos inexistentes nas distintas redes.
Inúmeras metodologias e estratégias foram apresentadas a fim de instrumentalizarem
estes sujeitos corroborando para a mudança de paradigmas cognitivos e atitudinais
dos mesmos em sala de aula junto ao público alvo da educação especial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
BRASIL. Lei nº 9394 de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Brasileira. Brasília: 1996.
BRASIL, Lei nº 13146 de 6 de julho de 2015. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília: 2015.
BRASIL. Portaria Ministerial nº 1793 SEESP/MEC, de dezembro de 1994. Recomenda
a inclusão da disciplina aspectos ético-político-educacionais da normalização e
integração da pessoa portadora de necessidades especiais.
BERSCH, Rita. Introdução à Tecnologia Assistiva. POA: 2013. Disponível em: http://
www.assistiva.com.br/Introducao_Tecnologia_Assistiva.pdf Acesso em: 30/06/2015.
CORTELAZZO, Iolanda Bueno de Camargo. (2012) Formação de professores para uma
Educação Inclusiva mediada pelas tecnologias, Em: OMOTE Sadao (org.), As tecnologias
nas praticas pedagógicas inclusivas. 1 Edição. Marilia: Editora Cultura acadêmica,
2012, páginas 93-120.
OLIVEIRA, DE E. & MACHADO, K. S. Adaptações curriculares: caminho para uma
Educação Inclusiva. In: GLAT, R. (Org.). Educação Inclusiva: cultura e cotidiano escolar.
Rio deJaneiro: Editora Sette Letras, 2007, 36-52.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo descrever o modelo das funcionalidades dos
adultos com deficiência intelectual frente às relações das políticas públicas como
garantia de direitos. O conceito de Deficiência Intelectual (DI) passou por algumas
mudanças ao longo dos anos, apresentando uma evolução epistemológica.
A proposta toma por base o conceito abordado pela (AAIDD) Associação de Deficiência
Intelectual e de Desenvolvimento (2010), pois compreende de forma atualizada
a reflexão sobre o comprometimento e funcionamento. Tal estudo é relevante em
decorrência da realidade enfrentada pela pessoa com deficiência e das dificuldades
para usufruir seus direitos, que por vezes são ceifados.
A metodologia de nosso trabalho é pautada na investigação exploratória de artigos,
em consonância com a legislação, visando também estabelecer não só o conceito de
(DI) como também o diálogo entre as políticas públicas que objetivam assegurar e
garantir os direitos da pessoa com deficiência.
1. UM BREVE HISTÓRICO DA DEFINIÇÃO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA.
Na Antiguidade, segundo Carvalho (1992), mulheres que tinham filhos que
apresentavam alguma anomalia ou deformidade eram descartados, jogados fora e
mortos, pois o interessante para a sociedade eram crianças que futuramente pudessem
se tornar guerreiros fortes e viris.
Aranha (2001) afirma, também, que crianças “[...] deformadas e indesejadas eram
abandonadas em esgotos localizados no lado externo do Templo da Piedade” (p.160).
A partir dos estudos feitos pelo autor, essas crianças não tinham a oportunidade de
terem uma vida digna, tão pouco de viverem em sociedade como as demais.
A sociedade nesse viés era totalmente excludente ao que tange às pessoas com
deficiência e aos menos favorecidos financeiramente, bem como, aos desajustados
frente aos preceitos dessa sociedade.
Segundo, Maranhão (2005, p. 25):
[...] casos de doenças e de deformações começaram a receber mais atenção e isto
ficou demonstrado com a criação de hospitais e abrigos para doentes e pessoas
portadoras de deficiências, por senhores feudais e por governantes com a ajuda
da Igreja.
A partir da exposição realizada pela autora, entendemos que mesmo ao longo dos
anos, as questões da discriminação e dos preconceitos sempre estiveram presentes na
vida da pessoa com deficiência. Também eram tidas como doentes e/ou incapazes,
logo sem condições de se manterem. Em virtude dessa situação era comum ficarem
internadas em hospitais e internatos, por apresentarem alguma deformidade.
De acordo com os estudos realizados sobre a definição de pessoa com deficiência,
encontramos autores que partem do princípio que a mesma estaria voltada ao caráter
físico, mental ou intelectual. Segundo Pastore (2000), do ponto de vista médico,
deficiência refere-se à incapacidade de uma ou mais funções das pessoas. Ela era
entendida como uma pessoa com algum tipo de “deformidade”, que possuía anomalias
perceptíveis ou não.
O diálogo que os autores fazem nos remete para além da mera definição do que
seriam as políticas públicas, em que as idealizações acerca da definição poderiam ser
7 efetivamente ações que realmente surtissem efeitos, pois disponibilizar tais serviços
não necessariamente quer dizer que aconteçam na íntegra.
A Câmara dos Deputados formalizou a Legislação Brasileira Sobre Pessoas Com
Deficiência 7ª edição, 2013, com a seguinte apresentação:
“Para facultar ao maior número possível de cidadãos o acesso às normas jurídicas
vigentes no País, a Câmara dos Deputados apresenta, neste volume, a 7ª edição
da Legislação brasileira sobre pessoas com deficiência. Trata-se da compilação
atualizada de dispositivos constitucionais, leis, decretos-leis, decretos e outras
normas voltadas a garantir os direitos de tão expressivo contingente de
brasileiros. Esses quase 25 milhões de compatriotas dependem de uma série
de políticas públicas de inclusão, especialmente nas áreas de educação, saúde
e trabalho, para que possam exercer sua cidadania em plenitude. O foco de
tais políticas deve ser a eliminação ou a redução das dificuldades por eles
enfrentadas no cotidiano. Ressaltam-se obstáculos ao ingresso em edifícios e
meios de transporte, carência de material de leitura em braile, bem como de
pessoal capacitado a usar a linguagem Libras, e número insuficiente de escolas
e programas de saúde adequados às suas necessidades. Desde a promulgação
da Constituição Federal e a aprovação de legislação decorrente, houve muitos
avanços no plano institucional, no sentido de criar condições para que os
portadores de deficiência possam conduzir as próprias vidas de modo autônomo.
Cada vez mais, tais avanços materializam-se em ações da sociedade em prol
desses brasileiros tão merecedores de solidariedade e respeito. É a ampliação
do conhecimento das leis, lado a lado com a multiplicação de ações desse tipo,
que a Câmara dos Deputados pretende estimular com esta publicação.”
“Henrique Eduardo Alves Presidente da Câmara dos Deputados”
De acordo com o Ministério da Saúde (2009:43) existe uma série de Leis, Decretos e uma
Portaria que os defendem e dão suporte. Por meio desses, o artigo seguirá uma ordem
cronológica de alguns regimentos a fim de detalhar quanto à garantia de suas políticas
públicas registradas no Legislativo, preferencialmente à deficiência intelectual.
Segundo o mesmo Ministério, essa população está amparada com seus direitos
garantidos, conforme a Constituição Federal de 1988 tem por ordem manter a
integridade da população em sua totalidade, notadamente a pessoa com deficiência,
levando em conta fatores como: saúde, assistência pública, segurança e a garantia
continuada desses.
É exposto nesta lei o dispositivo de assegurar um direito aos indivíduos, sendo uma
ação de o Estado promover a garantia de direitos a essa massa.
A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, também conhecida como Lei Orgânica da
Saúde, define as diretrizes para organização e funcionamento do Sistema Único de
Saúde brasileiro, abordando como temas principais: Vigilância em saúde, Princípios
e Diretrizes do SUS, Políticas para populações específicas, Responsabilidades das três
esferas de Governo, Estrutura de governança do SUS, Política de recursos humanos
e participação complementar do privado. Em que se resume como: “Dispõe sobre
as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”.
A Lei nº10.048, de 8 de novembro de 2000, promulgada por Fernando Henrique
Cardoso garante o atendimento prioritário à mulheres com crianças no colo ou
grávidas, deficientes físicos e idosos (com idade superior a 60 anos) em todas as filas
e tem direito à caixas especiais. Ela também garante ao público de Transtorno do
Espectro Autista, a Lei 12.764/12, denominado por lei Berenice Piana, segurança dos
mesmos direitos dados deficientes físicos, portanto, pais e mães de autistas, quando
acompanhados de seus filhos, têm preferência de atendimento.
A Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, também decretada por Fernando Henrique
Cardoso, propõe normas, regras e critérios básicos, que auxiliem na promoção da
garantia de direitos ao público em questão, conforme o Artigo 1:
“Esta Lei estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da
acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade
reduzida, mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços
públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios
de transporte e de comunicação.”
Por fim, a última Lei selecionada para demonstrar a garantia das pessoas é a Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) - Lei nº 13.146, de 6 de julho de
2015, já regida durante a presidência de Dilma Roussef, que institui a Lei Brasileira de
Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência).
De acordo com a entrevista realizada com Teresa Costa D’Amaral, Superintendente do
Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD), ela dá sua opinião
referente à Lei vigente:
“A nova legislação considera a pessoa com deficiência aquela que tem
impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial,
o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação
plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
“(...) Essa definição foi modificada com a nova lei, no sentido de ampliar quem
são as pessoas com deficiência”.
A pesquisa foi realizada em 2008 e ela retrata como é a autoestima, a ambição, o apreço
pelo próximo, a garantia dos direitos, a relação entre as pessoas e o desenvolvimento
profissional. O modelo selecionado foi formado por um quadro de 20 adultos,
representado por onze mulheres e nove homens, de faixa etária produtiva, variando
de 19 a 35 anos, na qual 95% deles estão ocupados na função de empacotador.
A investigação se concentrou em torno de vinte e duas perguntas sobre o período
acadêmico, profissional, relação entre colegas e familiares e expectação por um futuro.
Por meio de questionamentos obteve-se uma reflexão quanto ao fato dos testados
serem pessoas que sentem certa diferença quanto às demais, já que sempre foram
vítimas de comparações, seja por frequentarem escolas com salas de aula distintas, e
pior ainda é o fato deles se autodeclararem mais capazes quando que há outros colegas
que possuem um grau de deficiência mais preponderante, que os impossibilita que as
escolas possam realizar indicações para atuar na vida profissional.
Uma situação curiosa é o fato deles não notarem qualquer diferença ou algo que façam
destoar das demais pessoas, sendo que a possível falta de acolhimento social por parte
das instituições de ensino, os deficientes criem um sentimento de diferença seja entre
eles ou às outras pessoas por notarem alguma dificuldade física, ou seja, algo que possa
ser observado de forma direta, uma questão morfológica, e não, psicológica ou mental.
O questionamento feito ao redor do período em que frequentavam escolas regulares
demonstrou a realidade e um dos pontos primordiais que os fazem serem notados
como inferiores e até diferentes, é o fato de não conseguirem estudar e aprender no
mesmo ritmo que os outros alunos. Assim, tendem a sofrer o drama de serem tachados
de lerdos, incompetentes e preguiçosos, e que por causa de tais, serão punidos com
mais lição e exercícios ainda, como que isso fosse resolver em algo.
SCHMIDT e ANGONESE (2009) traz um dado muito coerente que demonstra de
maneira nua e crua a situação da deficiência no Brasil. Segue o trecho:
“O Censo Escolar realizado anualmente pelo Ministério da Educação aponta
que as matrículas na modalidade “Educação especial” no ano de 2007,
incluindo escolas especiais, classes especiais, ensino de jovens e adultos e
classes regulares, atingiu 646.663 pessoas. Destes, 300.112 tinham diagnóstico
de deficiência mental, sendo que 156.184 (mais da metade, portanto), estavam
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar o Projeto de Extensão “Inclusão e
Diversidade Humana: Vivenciando Linguagens” desenvolvido no Núcleo de Educação
Especial e Inclusiva (NEEI) da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ), que possuí como objetivo auxiliar os estudantes dos cursos de
licenciaturas da disciplina Prática Pedagógica em Educação Inclusiva em seu processo
de formação, oferecendo a eles a Oficina de Currículo e Adaptação (OCA), a qual
possui, como proposta, sensibilizar os licenciandos acerca da utilização e importância
das adaptações curriculares de pequeno porte (que são modificações que o professor
faz no currículo, favorecendo a participação do aluno com necessidades educacionais
especiais no processo de ensino/aprendizagem na sala de aula, elas podem ser
realizadas na acessibilidade, nos objetivos, nos conteúdos, nas metodologias e na
organização didática). Esses recursos facilitam a aprendizagem não somente de alunos
com deficiência, como também dos demais estudantes.
Vale ressaltar que essas adaptações de pequeno porte produzidas pelo professor
no cotidiano de sua tarefa docente, em sua maioria são produzidas com materiais
reaproveitadas visando o desenvolvimento psíquico, motor, sensorial e afetivo.
A metodologia baseia-se na pesquisa qualitativa participante onde será analisado por
meio de um questionário a importância dos recursos de acessibilidade apresentados na
Oficina de Currículo e Adaptação (OCA) como uma formação inicial aos graduandos
de diferentes licenciaturas da UERJ, assim como abordar os aspectos positivos do
projeto de Extensão a comunidade. No primeiro semestre de 2015 nas oficinas, já foram
atendidos aproximadamente 300 alunos, inscritos em 3 turmas no período da manhã e
3 turmas no período noturno.
Cabe destacar que o projeto como atividade de extensão, os recursos de adaptação
curricular, através do seu uso e exposição foram desenvolvidas atividades no Hospital
Infantil Ismélia da Silveira, no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense-
Rj para atender as crianças hospitalizadas promovendo o seu desenvolvimento e
aprendizagem. Na Fiocruz através de contação de histórias para crianças. Esses
materiais foram expostos, também no evento, ocorrido na UERJ da Associação de
pacientes que colabora na busca de informação e tratamento de doenças degenerativas,
Retina Rio.
Ao final do curso é solicitado como forma de avaliação aos alunos da disciplina
prática Pedagógica em Educação Inclusiva que façam um memorial sobre as oficinas
de adaptação e currículo e, também que confeccionem uma adaptação curricular
interdisciplinar que relacione diversas áreas do conhecimento (linguagens, ciências
humanas, físicas, biológicas e exatas) que abranja um público-alvo da educação especial.
Em que esses recursos de acessibilidade são devidamente fotografados, catalogados e
arquivados pela bolsista do projeto, passando a fazer parte do acervo do Núcleo de
Educação Especial e Inclusiva.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Atualmente, para se obter uma real inclusão dentro das escolas, faz-se necessária a
discussão acerca dos recursos de acessibilidade, pois eles, sem dúvida, colaboram para
o desenvolvimento da aprendizagem de crianças, jovens e adultos com necessidades
INTRODUÇÃO
O homem é um ser social, ele se forma na alteridade. Por esta razão, comunicar-se é
fundamental para a formação humana. Por meio de diferentes linguagens, o indivíduo
acessa o outro e vive em sociedade. Entretanto, no processo de comunicação social,
o homem, muitas vezes – visa persuadir. O texto que tem como característica a
persuasão é importante, pois provoca encantamento e interesse pela leitura. Porém, se
as estratégias retóricas foram utilizadas para convencer a qualquer custo, o texto pode
se tornar perigoso, pois ganha o potencial de anular o papel do leitor na construção de
sentido.
Em relação aos textos publicitários, é importante que o consumidor tenha a capacidade
de analisar os discursos para que não fique vulnerável às tentativas de persuasão a
qualquer custo. A presente pesquisa visa desvelar as intenções persuasivas de discursos
publicitários de três escolas de idiomas: CNA, Cultura Inglesa e SKILL. A fim de
alcançar o objetivo proposto, adotou-se, como metodologia, pesquisa bibliográfica. A
análise dos discursos dos comerciais dos cursos foi realizada à luz da Análise Crítica
do Discurso – ACD.
1. O DISCURSO COMO FORMA DE PERSUASÃO
Toda expressão do ser humano é uma forma de persuasão, quer-se sempre comunicar
algo a alguém. É a partir deste processo de comunicação que se dá a sociedade. As
palavras, signos que remetem à realidade, são utilizadas na comunicação humana.
Entretanto, há um espaço entre a palavra e a realidade. A tal espaço Focault (2000)
denomina discurso. Segundo o professor francês Dominique Maingueneau (2002,
p.51), existem diferentes formas de se conceber o discurso. As concepções explicadas
pelo professor são referentes à forma de compreensão do discurso: orientado, forma
de ação, interativo, contextualizado, etc. Partindo da ideia de Orlandi de discurso
como “palavra em movimento” (ORLANDI, 2009, p.15), verifica-se como necessário
o entendimento de como se dá o movimento da palavra, como são formulados os
discursos e suas estratégias de convencimento. Para Citelli (2000, p.7), falar em
persuasão implica em retornar à tradição clássica, ressaltando os estudos de Aristóteles
sobre retórica:
O exercício do poder, via palavra, era ao mesmo tempo uma ciência e uma arte,
louvado como instância de extrema sabedoria; portanto não causa estranheza
que surgissem aí as primeiras sistematizações e reflexões acerca da linguagem.
Os pensadores gregos de Sócrates a Platão escreveram sobre o assunto, porém é
com Aristóteles que o discurso será dissecado em sua estrutura e funcionamento.
(CITELLI, 2000, p.9).
Estratégias retóricas, como explica Citelli (2000), foram utilizadas na tradição clássica
e são utilizadas até a contemporaneidade. A ideia de verossimilhança, por exemplo,
faz-se presente em inúmeras peças publicitárias que fazem uso da repetição e do
convencimento.
Outra chave fundamental do discurso persuasivo é o ethos, que para Amosy (2008)
mostra-se como a imagem de si no discurso ou o retrato pessoal no discurso persuasivo
que apresenta como objetivo a alteração do ponto de vista do destinatário. A eficaz
utilização do ethos é uma relevante estratégia do discurso publicitário. Maingueneau
(apud. AMOSY, 2008, p16) afirma que além da persuasão por argumentos, a noção de
ethos permite refletir sobre o processo mais geral da adesão do sujeito a uma posição.
Um texto que tem como característica a persuasão é importante, pois provoca
encantamento e interesse pela leitura. Entretanto, se as estratégias retóricas forem
utilizadas para persuadir – convencer a qualquer custo – o texto pode se tornar
perigoso, pois pode anular a importância do leitor na construção de sentido.
2. A INDÚSTRIA CULTURAL
Teixeira Coelho (1989) fez um estudo sobre a indústria cultural, que é a utilização
dos bens culturais para fins lucrativos. Para análise sobre indústria, pode-se utilizar a
ideia produção em alta escala. A cultura utilizada pela indústria cultural é a de massa
– aquela que é igual para diferentes tipos de pessoas. A cultura de massa difere da
cultura popular. A cultura popular é feita pelo povo e para o povo. É o que Marilena
Chauí (1994) chama de cultura de “resistência”. Já a cultura de massa é aquela feita por
grupos menores para uma grande quantidade de pessoas. Chauí (1994) explica que
quando a população passa a aceitar a cultura de massa em detrimento da sua ela passa
a ter uma postura “conformista” em relação aos poderes hegemônicos.
Para Teixeira Coelho (1989), a indústria cultural precisa da cultura de massa, pois
necessita – em prol da lucratividade – oferecer um mesmo produto para uma grande
quantidade de pessoas. A indústria da cultura, muitas vezes, faz uso de manifestações
culturais e as transforma em objetos de lucratividade.
Ainda sobre a cultura de massa, Teixeira Coelho (1989) afirma que este tipo de cultura
pode alienar porque ela tem por objetivo convencer por meio da oferta de diversão.
Entretanto, o autor adverte que a cultura de massa pode exercer também outra função.
Os produtos da indústria cultural podem exercer a função da imprensa como discutida
por Morin (1998), ou seja, normatizar no homem questões colocadas na infância.
Teixeira Coelho assinala que:
Com seus produtos a indústria cultural pratica o reforço das normas sociais,
repetidas até a exaustão e sem discussão. Em consequência, uma outra função: a
de promover o continuísmo social. E a esses aspectos centrais do funcionamento
da indústria cultural viriam somar-se outros, consequência ou subprodutos
dos primeiros: a indústria cultural fabrica produtos cuja finalidade é a de
serem trocados por moeda; promove a deturpação e a degradação do gosto
popular; simplifica ao máximo seus produtos, de modo a obter uma atitude
sempre passiva do consumidor; assume uma atitude paternalista, dirigindo o
consumidor ao invés de colocar-se à sua disposição. (COELHO, 1980, p12).
são as paixões de seu receptor. Sabendo o que chama atenção do público consumidor,
fica mais fácil produzir mensagens que o alcance e o seduza comprar os produtos
anunciados.
3. OS DISCURSOS AUTORITÁRIOS E PERSUASIVOS DOS TEXTOS
PUBLICITÁRIOS
Eni Orlandi (2009) explica que existem diferentes tipos de discursos. Dentre os
discursos ressaltados pela autora e explicados por Citelli (2000), faz-se necessário
destacar o autoritário. No discurso autoritário, emissor e receptor ocupam posições
estáticas. Desta forma, um fala continuamente e o outro ouve. Neste tipo de discurso
não há troca, não há ludicidade.
Os textos publicitários, em geral, têm um caráter autoritário. Vale ressaltar que
o autoritarismo dos textos não está exclusivamente relacionado ao meio de
comunicação. É possível, por exemplo, redigir uma novela oferecendo lacunas para
que o leitor entre. Desta forma, o texto só seria concluído após a leitura, em coautoria
com o leitor. Entretanto, muitos textos publicitários não oferecem lacunas e inibem
o pensamento do receptor.
Para que o consumidor faça da peça publicitária a leitura previamente aspirada pelo
publicitário, estratégias – muitas vezes – são utilizadas. Dentre elas, as paixões de
quem vai receber a mensagem. Existem também outras estratégias como o uso de
figuras de linguagem e métodos psicanalíticos. Segundo Citelli (2000, p.43): “O texto
publicitário nasce na conjunção de vários fatores, quer psico-sociais-econômicos, quer
do uso daquele enorme conjunto de efeitos retóricos aos quais não faltam as figuras
de linguagem, as técnicas argumentativas, os raciocínios”. O slogan, por exemplo, é
uma estratégia que têm o intuito de fixar a ideia do produto que a empresa quer que
seja assimilada.
4. A HEGEMONIA DA LÍNGUA INGLESA
Semelhante a empresas de outras áreas, os cursos de inglês fazem uso de estratégias
publicitárias para ampliar o número de alunos. O que distingue os cursos de inglês
é o fato de eles terem como importante fator de persuasão a hegemonia da língua
inglesa que, segundo Philipson (2002), deve-se ao sucesso americano. O autor ainda
explica que outros eventos favorecem a hegemonia da língua inglesa. O “Basic English
- British American Scientific International Commercial”, traduzindo, Inglês Básico:
Comércio científico internacional entre ingleses e americanos, e o “The diffusion of
English culture outside England”, difusão da cultura inglesa fora da Inglaterra. O
primeiro correspondia à estratégia engenhosa arquitetada no período entre as duas
grandes guerras mundiais. Este “Basic English” foi criado para auxiliar na comunicação
entre os países. Havia ainda o intuito de deslegitimar outras línguas, que passaram a
ser consideradas “menores”. O segundo plano relacionava-se à expansão da língua
inglesa fora da Inglaterra. Philipson (1992) explica que esta organização foi fundada
nos anos de 1930 para difundir o inglês e se opor à difusão das línguas de governos
considerados fascistas.
A partir dos fatos relatados, houve a necessidade de criar um esquema de formação
rápida e eficiente de professores de inglês, tomando forma no início dos anos de 1950. Tal
esquema vem sendo difundido nos quatro cantos do mundo. O projeto inglês ampliou
e aperfeiçoadas com base nos efeitos antecipados. Mesmo nos mais apurados
detalhes de escolhas linguísticas no vocabulário, na gramática, na entonação e na
organização do diálogo são previamente pensados. Também são considerados meios
de comunicação a expressão facial, o gesto, a postura e os movimentos corporais.
As tecnologias discursivas são capazes de produzir mudanças discursivas por meio
de um planejamento consciente. Esta tecnologização está ligada a uma expansão do
discurso estratégico para novos domínios.
Ainda segundo Fairclough (2001, p.272), a democratização e a comodificação podem,
aparentemente, parecer termos que com significados opostos: a primeira seria um
enfraquecimento de controle e a segunda um fortalecimento de controle. Entretanto,
os estudos da ACD feitos por Fairclough (2001) esclarecem que fenômenos como
a personalização sintética mostram que o relacionamento entre democratização
e comodificação possui uma diferente complexidade. Outra razão pela qual as
tendências não podem ser consideradas como simples opostos é que a comodificação
de fato implica a democratização. Fairclough (2001, p.255) explica que a comodificação:
“é o processo pelo qual os domínios e as instituições sociais, cujo propósito não seja
produzir mercadorias no sentido econômico restrito de artigos para venda, vêm não
obstante a ser organizados e definidos em termos de produção, distribuição e consumo
de mercadorias”.
5.1. Leitura de materiais publicitários de cursos de inglês à luz da ACD
Ao analisarmos a imagem visual, consideramos necessária a percepção de quem e
para quem. Ou seja, do emissário para o destinatário, pois toda imagem constitui
sempre uma mensagem para o outro. Percebemos que qualquer mensagem exige, em
primeiro lugar, um contexto chamado referente, ao qual remete; em seguida, exige um
código pelo menos em parte comum ao emissário e ao destinatário; também precisa
de um contato, canal físico entre os protagonistas, que permita estabelecer e manter
a comunicação. Este canal pode ser a mídia ou a publicidade, ou seja, um meio por
onde se estabeleça este relacionamento.Antes de começarmos a descrição é necessário
destacarmos os tipos de mensagem que constituem a mensagem visual. Esta é composta
por mensagem plástica, mensagem icônica e mensagem linguística. Analisando cada
uma delas e o estudo de sua imperatividade, é possível detectar a mensagem geral e
implícita da propaganda.
Foram analisadas propagandas das escolas de idiomas CNA, Cultura Inglesa e SKILL
à luz, principalmente, da teoria de Fairclough (1989). Vale salientar que o caso dos
cursos de inglês difere de outros tipos de comerciais, pois o ensino da língua inglesa
não tem genuinamente um caráter mercadológico, mas se transforma em meio de
obtenção de lucratividade. Neste caso, a educação é comodificada pelos cursos de
inglês para servir à lucratividade.
No ano de 2010, a agência Makplan criou a peça publicitária da escola de idiomas Skill.
Na propaganda,1o nadador campeão olímpico César Cielo aparecia defendo o slogan
“Inglês campeão”. A peça publicitária da escola de idiomas SKILL é um importante
exemplo de comodificação, pois trabalha com o slogan “Inglês campeão”, associada
1 Disponível em: http://www.suafranquia.com/noticias/educacao-e-treinamento/2009/11/skill-idiomas-contrata-cesar-cielo-
como-o-novo-garoto-propaganda-da-rede.html
à figura do campeão olímpico César Cielo O intuito da escola foi fazer com que seu
público alvo acredite que, se fizesse inglês na Skill, seria campeão.
A ideia proposta pela peça publicitária divulgada pelo Cultural Norte Americano
(CNA)2 também buscava trabalhar com a paixão humana referente à ascensão social. O
slogan: “CNA, pra quem é apaixonado por sucesso” vendia a ideia de que a específica
escola de idiomas era própria para os que aspiravam ao sucesso. Vale ressaltar que o
desejo de obtenção de sucesso é transtemporal, inerente ao ser humano. Entretanto, a
ideia que a escola queria vender é que, apesar de todos quererem o sucesso, só quem
estudasse CNA teria. A ideia proposta pela peça publicitária divulgada pelo CNA não
é muito distinta da SKILL, pois também trabalha com a paixão humana referente à
ascensão social.
Para Fairclough (2001), essa visão da relação entre sujeito e enunciado é elaborada
por meio de uma caracterização de formação discursiva, constituída por configurações
particulares de modalidades enunciativas. Estas são tipos de atividades discursivas,
como descrição, formação de hipóteses, formulação de regulações, ensino, entre outros,
cada uma das quais tem associadas suas próprias posições do sujeito.
Segundo o autor supracitado, o discurso é determinado de fora: a posição
predominantemente tomada sobre a relação entre a prática discursiva e não discursiva
sugere, ao contrário, que a primeira tem primazia sobre a última. Segundo Foucault
(1972 apud FAIRCLOUGH, 2001, p. 68), refere-se primeiro à função do discurso
num campo de práticas não discursivas, tais como “a função exercida pelo discurso
econômico na prática do capitalismo emergente”; segundo, para as “regras e processos
de apropriação” do discurso, no sentido de que o “direito de falar” e a “habilidade
para entender”, tanto quanto o direito de recorrer ao “corpus de enunciados já
formulados”, são desigualmente distribuídos entre grupos sociais; e terceiro, para as
posições passíveis de desejo em relação ao discurso: o discurso pode de fato ser o
lugar para uma representação ilusória, um elemento de simbolização, uma forma do
proibido, um instrumento de satisfação derivada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta da ACD é estudar a linguagem como prática social e, por esta razão,
ressalta a importância do contexto no entendimento dos interesses existentes na relação
entre a linguagem e o poder. A ACD pode viabilizar a contraposição dos sujeitos aos
sistemas dominantes, oferecendo ao indivíduo, moldado pelas práticas discursivas, a
possibilidade de transgressão, de efetiva fala.
Com a análise crítica dos discursos publicitários das escolas de idiomas, pode-se
desvelar as tentativas de promoção de necessidades no público para que estes se
sentissem tentados a fazer a matrícula nos cursos de inglês, que vendem a ideia de que
aquele que não sabe falar inglês está à margem da sociedade e não consegue ter os seus
objetivos alcançados.
A importância do domínio da língua inglesa em na contemporaneidade de 2016
é evidente. Em um mundo globalizado, saber falar Inglês (idioma entendido como
forte comercialmente) é fundamental para muitas profissões. As escolas de idiomas
analisadas podem oferecer ótimas aulas de inglês. Entretanto, é importante que o
propenso aluno compreenda que o domínio da língua inglesa não é garantia de
sucesso e vitória profissional. Vários outros estudos e características são necessários
ao profissional do século XXI.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
AMOSY, R. (Org). Imagens de si no discuso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto,
2008.
CITELLI, A. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 2002.
CHAUÍ, M. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: UnB, 2001.
INTRODUÇÃO
O Brasil é um país plural por abranger várias etnias, sendo visado devido as suas relações
pacíficas com demais países, clima tropical, estrutura geográfica e miscigenação. O
movimento migratório da população ocorre por diferentes facetas, dentre elas a busca
por melhores oportunidades profissionais, sociais, fuga de guerras e outros tipos
de perseguições e, nessa mobilidade, as pessoas carregam consigo sua identidade,
mantida pela cultura e idioma.
Após a segunda guerra mundial, houve a entrada de europeus no Brasil e, passado
esse período, um declínio, voltando esse número a se elevar a partir dos anos 1990
(CUNHA, 2005; PATARRA, 2005), sendo os principais estrangeiros provenientes do
MERCOSUL, seguidos por imigrantes da Europa, Ásia e América do Norte.
A tendência é que a primeira geração de imigrantes não se desligue culturalmente
de sua região de origem, buscando meios de recriar algumas expressões culturais
originais (CUNHA, 2005; BOUCHER & O’DOWD, 2011), o que tende a não ocorrer
com as gerações posteriores por se socializarem em outros centros. Vale destacar,
porém, que estar em outro território, que não possui os mesmos valores culturais ou
até mesmo produtos característicos como roupas, alimentos, temperos e festas dificulta
a transmissão dos valores culturais, sendo uma dessas perdas o idioma.
Em contrapartida, a globalização tem demandado especialização das pessoas não
somente em termos acadêmicos, mas em desenvolvimento de uma segunda língua,
o que tem aumentado o número de bilíngües, que necessitam desenvolver o outro
idioma tardiamente na vida.
Estudos vêm demonstrando a existência de vantagens cognitivas em falantes de dois
idiomas ou mais, inclusive indicando que esse fato contribui para reserva cognitiva e
parece ser um dos fatores de prevenção para o aparecimento de desordens do sistema
nervoso, dentre elas as demências. As pesquisas apontam que os bilíngues possuem
melhor controle linguístico em tarefas que requerem o monitoramento ou manipulação
verbal de estímulos, o que sugere um desempenho diferenciado quando comparados
aos monolíngues de forma a considerar que a relação entre a linguagem e sistemas
cognitivos é de grande importância (BIALYSTOK et al., 2009).
Busca-se então, no presente trabalho, realizar uma revisão bibliográfica acerca do
bilingüismo, identificando as repercussões nas funções cognitivas apontadas pelos
principais estudiosos da área.
1. O BILINGÜISMO E SUAS INFLUÊNCIAS
De acordo com Durham (2004), comunidade abrange o espaço coletivo no qual
os participantes possuem interesses comuns, se identificam com os outros, há
compartilhamento de estilos de vida e vinculação afetiva. A autora complementa que
a união entre os membros gera uma identidade e a língua é fundamental nas relações,
pois possibilita a incorporação da cultura dentre os membros da comunidade. Com
isso, manter a língua materna quando se migra para outra localidade é uma maneira
de manter a identidade de seu povo e sua riqueza etnográfica.
maior índice de inteligência e ambição, o que não ocorreu com os monolíngues, não se
pode negar a importância dessas descobertas para o desenvolvimento de habilidades
cognitivas, pois pelo fato dos bilíngues precisarem desenvolver dois sistemas de
linguagem, começou-se a relacionar a idéia de gerenciamento mental para aspectos da
atenção, resolução de conflitos e controle cognitivo (BIALYSTOK et al., 2009).
Para um desempenho efetivo, o cérebro bilíngue requer várias funções frontais para
a seleção do idioma alvo. Porém ainda não se tem clareza de quais funções realmente
estão envolvidas nesse processo, o que favorece falsas indagações. As pesquisas sobre
o papel do bilinguismo no funcionamento executivo abrangem diferentes métodos
e populações, devendo cuidar com a interpretação de dados para buscar uma
aproximação com a realidade.
Bialystok et al. (2009) aponta modificações em algumas funções cognitivas nos
bilíngues pela necessidade de alternância entre diferentes idiomas pois com repetidos
estímulos o sistema nervoso central pode modificar a sua organização estrutural
(MARZARI, SANTOS & ZIMMER, 2012). Porém as pesquisas são discordantes quanto
aos reflexos do bilingüismo na cognição pois, enquanto algumas encontram benefícios
nesses falantes, para outras as diferenças não são representativas (BIALYSTOK et al.,
2009). Sobretudo, a autora aponta pesquisas que indicam que bilíngues que fazem uso
de cada língua em contextos específicos (utilizam de um idioma em casa e outro no
trabalho) raramente precisam monitorar a mudança entre os idiomas, não precisando
desenvolver habilidade de monitoramento e, consequentemente, tendem a não
apresentar vantagens (BIALYSTOK et al., 2009).
Ao fazer pesquisa, é importante utilizar-se de critérios para a seleção da amostra, que no
caso de estudos com bilíngues, torna-se difícil obter amostras homogêneas representativas
devido às dificuldades já expressas anteriormente quanto aos critérios de classificação
para o bilinguismo. Bialystok (in press) faz uma crítica aos estudos conduzidos sem
método, que refletem em resultados equivocados. Outros resultados divergentes podem
emergir de má interpretação dos dados pois, para a autora, não encontrar diferenças
significativas em pesquisas não significa que elas não existam, mas sim que podem ser
reflexos de manipulação de dados na análise estatística ou de questões metodológicas.
Diante disso, ela cita os estudos de Paap e cols., que afirmam que mais de 80% dos estudos
desde 2011 não encontraram diferenças entre de monolíngues e bilíngues, concluindo
não haver vantagens no segundo grupo para as funções executivas.
Os procedimentos estatísticos contribuem para a definição de grupos, possibilitando
análise e redução de interferências e permitindo a comparações a partir de diferentes
critérios. Mesmo com toda a divergência entre os teóricos da área, tais estudos
possibilitam uma maior clareza a respeito de como a mente humana se adapta ao uso
de mais de uma língua.
3. OS ACHADOS SOBRE O BILINGUISMO
Estudos iniciais acreditavam que o biliguismo gerava prejuízos cognitivos às pessoas.
Porém no início da década de 1980 Bialystok iniciou uma nova linha de pesquisa
mostrando que crianças bilíngues poderiam apresentar vantagens sobre as monolíngues
em seu sistema de linguagem, pois foi identificada melhor performance em tarefas
envolvendo funções executivas, especialmente as relacionadas com a inibição de
informações e alternância de regras (FILIPPI et al., 2015). Assim, o aspecto que parece
Bialystok et al. (2009) Crianças Vantagens bilíngues na atenção seletiva e controle inibitório.
Bialystok, in press Idosos Menor tempo de reação em tarefas incongruentes.
Hernández, Costa, Fuentes, Pouca interferência em estímulos incongruentes refletindo em maior
Vivas e Sebastian-Gallés Adultos controle executivo na ativação e processamento da percepção e melhores
(2010)** índices do processo top-down da memória de trabalho.
Mayo, Florentine & Buus Resposta mais lenta à estimulação, porém com vantagens quando as
(1997)*; Shi (2010)* informações distraidoras podiam ser suprimidas.
Criança, adulto e
Bialystok et al., 2009 Vocabulário com menos palavras
idoso
Bialystok, Luk, Peets e Yang
Crianças Menor desempenho na avaliação do vocabulário receptivo.
(2010)**
A estrutura das palavras fonológicas são percebidas de forma diferente
Kovacs e Mehler (2009)** Crianças
por crianças bilingues.
Grogan, Green, Ali, Crinion Adultos Maior densidade de massa cinzenta nas regiões medial frontal e temporal
e Price (2009)** inferior esquerdo, relacionadas à performance semântica.
Capacidade de inibição para o idioma que não é alvo, que possibilita o
Bialystok et al. (2009) Adultos jovens desenvolvimento de funções atencionais e contribuem para a seleção de
aspectos relevantes.
Avaliação da tendência de inibição de resposta preponderante pela
Bialystok, Craik, Klein e Adultos, jovens e
aplicação do Simon Task com melhor desempenho de bilíngues, com foco
Viswanathan (2004)** idosos
para os idosos.
Inibição para estímulos conflituosos pode ser desenvolvida com a prática,
Bialystok, 2004** Adultos
porém a aprendizagem ocorre mais rapidamente nos bilíngues.
Prior e MacWhinney
Maior rapidez em tarefas que envolviam mudanças de instrução, que
(2010)**
sugerem vantagens quanto à flexibilidade mental e controle inibitório.
Replicaram as vantagens de mudança em bilíngues que necessitavam
alternar o idioma em uso frequente concluindo que
Prior e Gollan (2010)**
múltiplos aspectos do bilinguismo podem influenciar a alternância de
tarefas.
Desempenho variado conforme o material em questão em tarefas de
Bialystok et al. (2009) avaliação de memória episódica, não sendo claras vantagens bilíngues
nesse aspecto.
Avaliação da memória operacional com o Simon Task, encontrando
Bialystok et al. (2004)**
vantagens bilíngues quando demandado maior custo atencional.
Bialystok, Craik e Luk Falta de clareza quanto as vantagens em tarefas de memória operacional,
Adultos e idosos
(2008)** pois para algumas tarefas um grupo apresentou vantagens e o outro não.
Crianças e Vantagens relacionadas à memória operacional no domínio da memória
Feng (2008)**
adultos espacial operacional frente à apresentação aleatória de itens.
Vantagens frente tarefas de alto grau de dificuldade, porém com efeito
Bialystok (2006) Adultos jovens
mais expressivo em adultos de meia idade e idosos.
Adultos
Melhor desempenho nas tarefas de planejamento, automonitoramento e
Zimmer e cols (2008) imigrantes na
inibição que os monolíngues.
Serra gaúcha
Crianças de Uso constante de duas línguas refletiu em melhor desempenho no
Brentano (2011)***
escola bilingue controle inibitório.
A menor frequencia no uso de cada língua pode justificar resultados de
Alberty (2012)
pior desempenho tarefas de nomeação.
Bandeira (2010); Kramer,
Adultos de meia Resultados contrários aos estudos de Bialystok, não havendo vantagem
(2011); Martins (2010); Pinto
ANINTER/SH idade ao controle inibitório.
(2009)*** - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR EM SOCIAIS E HUMANIDADES 745
Sugestão de que para identificar vantagens bilíngues em tarefas de
controle inibitório é necessário que duas ou mais tarefas mostrem
significância em seus efeitos de interferência e que esses sejam
Revisão da
Paap e Greenberg (2013)*** correlacionados, para haver generalização. Referenciam alguns estudos
Crianças e Vantagens relacionadas à memória operacional no domínio da memória
Feng (2008)**
adultos espacial operacional frente à apresentação aleatória de itens.
Vantagens frente tarefas de alto grau de dificuldade, porém com efeito
Bialystok (2006) Adultos jovens
mais expressivo em adultos de meia idade e idosos.
Adultos
V CONINTER - Congresso Internacional Interdisciplinar em Sociais e Humanidades, Brasília-DF, UnB - 23 a 25 de novembro 2016
Melhor desempenho nas tarefas de planejamento, automonitoramento e
Zimmer e cols (2008) imigrantes na
inibição que os monolíngues. ISSN 2316-266X, nº 5
Serra gaúcha
Crianças de Uso constante de duas línguas refletiu em melhor desempenho no
Brentano (2011)***
escola bilingue controle inibitório.
A menor frequencia no uso de cada língua pode justificar resultados de
Alberty (2012)
pior desempenho tarefas de nomeação.
Bandeira (2010); Kramer,
Adultos de meia Resultados contrários aos estudos de Bialystok, não havendo vantagem
(2011); Martins (2010); Pinto
idade ao controle inibitório.
(2009)***
Sugestão de que para identificar vantagens bilíngues em tarefas de
controle inibitório é necessário que duas ou mais tarefas mostrem
significância em seus efeitos de interferência e que esses sejam
Revisão da
Paap e Greenberg (2013)*** correlacionados, para haver generalização. Referenciam alguns estudos
literatura
que não encontraram vantagens bilíngues em múltiplas tarefas não
verbais e nem relacionadas ao tempo de reação, tendo inclusive
monolíngues obtido resultado superior em algumas tarefas.
Melhor desempenho de bilíngues em tarefas do controle inibitório da
Mindt et al. (2009) atenção, porém ressaltando a necessidade de replicar o mesmo estudo
com outras populações.
Desenvolvimento das habilidades das funções executivas cerca de um a
Midnt et al. (2009) dois anos antes que as monolíngues, principalmente no controle
Crianças
inibitório e atenção, refletindo no melhor desempenho em tarefas não
verbais que acessam essas funções.
Colzano et al (2008)** Vantagem bilíngue não se deve à inibição da língua não usada
que o fazia, não foi indicado se houve diferenciação com o restante da amostra em
termos de melhor desempenho para memória. Cabe destacar ainda que houve queixa
de memória por parte dos participantes, mas não foi realizado o comparativo com
grupo normativo a fim de entender se essa perda seria representativa. Outro ponto
de destaque envolveu o uso por parte de medicamentos neurológicos, no qual 40% da
amostra não fazia uso, um utilizava Lexapro, medicamento utilizado para tratamento
de ansiedade e depressão, psicopatologias que podem contribuir para o declínio
de funções cognitivas como atenção e memória. Os demais 50% não foram citados,
podendo inferir que esses fazem uso de medicamento neurológico. Essa pesquisa não
pode ser generalizada devido às condições na qual foi conduzida, não havendo critério
metodológico. Assim como Bialystok (in press) cita, muitas das divergências acerca
do desempenho de bilíngues se dá por dificuldades metodológicas e os resultados
provém de pesquisas tendenciosas.
Outro estudo brasileiro também conduzido no Rio Grande do Sul pesquisou adultos
de meia idade com alto nível educacional e o critério para definir os indivíduos
bilíngues se pautava no uso regular de duas línguas. A avaliação foi realizada com
Simon Task para identificar se havia vantagens em profissionais que executam um
alto gerenciamento de tarefas, resolução e problemas e atenção, aliadas a alto nível
educacional e o grupo monolíngue demonstrou maior acurácia nos estímulos centrais
e congruentes e vantagens bi/multilíngues foram encontradas no tempo de reação em
todas as condições. Porém ao realizar análise estatística independente para condição
incongruente, não houve diferença significativa entre os grupos, que tem como
demanda profissional diária o uso da atenção e controle inibitório para ignorarem
estímulos irrelevantes, tendo também a necessidade de tomar decisões de maneira
imediata (RODRIGUES & ZIMMER, 2015).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda não se sabe se na mente bilíngue a linguagem é representada nos mesmo
sistemas ou em sobrepostos, se os conceitos são compartilhados ou duplicados, se a
interação entre as línguas facilitam ou impedem a reprodução da linguagem e como
se dá a seleção e inibição do idioma alvo/não-alvo. Sabe-se apenas que há ativação
conjunta dos dois idiomas no bilíngues, que precisam selecionar a linguagem alvo de
acordo com o contexto, sugerindo ser possível pela influência do sistema de controle
executivo que sofre modificações ao longo do tempo. Contudo, mesmo sem a certeza
de vantagens é possível afirmar que desvantagens em falantes de dois idiomas não são
encontradas.
Muitas das pesquisas relacionadas com o desempenho executivo utilizam tarefas que
compõe conflitos, pois são nesses momentos que os bilíngues parecem se prevalecer
sobre o grupo de monolíngues. Diferentes visões sobre o bilinguismo ainda permeiam
os pesquisadores da área e poucos bilíngues possuem as mesmas competências em
ambas as línguas, pois as estimulações recebidas ao longo do desenvolvimento são
diferentes. Considerando a visão holística, o bilinguismo abrange um todo complexo,
podendo haver diferente nível de proficiência entre as línguas nas habilidades de
leitura, escrita, compreensão auditiva e expressão verbal. Ter clareza sobre essa
diferença faz-se indispensável para a definição da amostra utilizada para o estudo,
bem como a forma que esta será comparada.
Aline Hamdan
Advogada e Mestranda em
Teoria e Filosofia do Direito pela UERJ
RESUMO
Este artigo analisará a estrutura do discurso no gênero Notícia de jornal no contexto
político situado nas jornadas de junho de 2013 no Brasil. O objetivo é tratar das relações
entre o uso da palavra vândalo a partir da ideologia neoliberal subjacente da grande
mídia conservadora e seu papel na criação de estereótipos dos movimentos sociais
durante este período. Para este objetivo, haverá um debate epistemológico sobre a
análise crítica do discurso por suas categorias analíticas. Neste sentido, visará apurar
a transformação semântico- social dos signos linguísticos que foram utilizados nas
principais manchetes com o objetivo de influenciar o comportamento dos indivíduos
enquanto sujeitos sociais, na medida em que as ações se estruturam a partir da leitura
que fazem da realidade noticiada.
Palavras-chave: Análise Crítica do Discurso.Jornadas de Junho. Vandalismo.
ABSTRACT
This paper will examine the structure of discourse in the News source in the political
context located from the days of June in 2013. The aim is to address the relationship
between the use of the word vandal from the underlying neo-liberal ideology of the
great conservative media and its role in creating stereotypes of social movements
during this period. For this purpose, there will be an epistemological debate on
the critical discourse analysis for its analytical categories. In this sense, will aim to
ascertain the social semantic- transformation of linguistic signs that were used in the
main headlines in order to influence the behavior of individuals as social subjects, the
extent to which the actions are structured from reading that make the reported reality.
Key words: Critical discourse analysis. June Days.Vandalism.
INTRODUÇÃO
Neste trabalho será utilizada a concepção do discurso como uma prática social e um
modo de ação historicamente situado nas jornadas de junho de 2013. Esta reflexão
sociodiscursiva decorrerá através dos pressupostos teóricos-metodológicos da Análise
Crítica do Discurso desenvolvida por Norman Fairclough e das relações de poder
e intersubjetividade presentes nos movimentos sociais. Da mesma forma, alguns
conceitos correlatos do gênero discursivo presentes na personificação ou na figura
do protagonista em detrimento à responsabilização da ação coletiva serão expostos
através da análise da linguagem apresentada por Bakhtin.
Na primeira parte será apresentada uma breve introdução sobre as Jornadas de Junho
e os desdobramentos midiáticos através do uso da ideologia neoliberal com o fim de
influenciar a opinião pública sobre os protestos. O contexto do capitalismo neoliberal
é fundamental para analisar o discurso hegemônico como uma prática com natureza
constitutiva dos objetos e sujeitos sociais mas também como relações de poder que
interferem nas mudanças sociais (Fairclough, 2001)1. A análise destas relações é
importante pois a representação da ideologia em determinadas situações específicas
deve ser observada através da investigação socialmente orientada do discurso. Nesta
perspectiva, a dialética adotada como método de observação permite centralizar o foco
na ação dos sujeitos históricos.
Na segunda parte é realizada a análise da palavra vandalismo como uma categoria
análitica do discurso através do uso da metáfora estruturalmente construída na
linguagem jornalística sobre as manifestações a partir deste período. O objetivo é a
abordagem teórico-metodológica de tal categoria através de textos que representam
o corpus que reproduziu a conotação negativa do uso do vocábulo assim como a
repetição retórica dos termos similares tais como baderneiros, inimigos e black bloc. O
material apresentado é constituído de excertos da mídia hegemônica, principalmente
do canal de notícias globo.com e algumas revistas de grande circulação. Para fim de
contextualização, a análise crítica tomou como recorte as manchetes veiculadas entre
junho de 2013 até junho de 2016.
Na terceira parte é apresentada a contestação destas estruturas organizativas do
discurso através das vozes subalternas dos próprios manifestantes. A ação discursiva
com base na autoapresentação positiva dos movimentos, categoria analítica do
discurso, é analisada através de excertos extraídos das redes sociais com o intuito de
evidenciar a materialidade do sujeito na construção de sua identidade social. Esta
autoapresentação foi evidenciada como uma resposta alternativa numa contrarrede de
práticas sociais emergentes2 que radicalizam o caráter subalterno da marginalização
no discurso hegemônico da grande mídia.
1 Estes aspectos estão relacionados com a crítica ao trabalho genealógico de Foucault na Arqueologia do Saber e no qual Fairclough
caracteriza como análise do discurso textualmente orientada.
2 FAIRCLOUGH, Norman. Análise Crítica do Discurso como método em Pesquisa Social Científica. Método da Análise Crítica do
Discurso organizada por Wodak e Meyer. 2 ° ed. Londres: sage, 2005. p. 323
causados à sociedade em nome das fraudes bancárias que desviaram bilhões, causaram
danos ao erário e ainda reduzem verbas públicas . 14
Quando se trata de violência, não se pode deixar de configurar que a forma política
do estado moderno se impõe com um aparato coercitivo para pacificar os modos
subversivos de contestação. Neste sentido, as manifestações também têm resultados
práticos, não é demasiado lembrar que a contestação da tarifa começou em 2004, na
qual a Revolta da Catraca impede o aumento da tarifa na cidade de Florianópolis, a lei
do passe livre estudantil é aprovada e em São Paulo é articulado o Comitê do Passe
Livre. Em 2006, houve um encontro nacional pelo Passe Livre em São Paulo.
Não só a mídia corporativa criminalizava a figura do manifestante assim como atiçava
o imaginário público criando uma campanha contra o vandalismo. Em algumas
notícias havia mensagens muito claras para o recrudescimento de ações estatais que
culminavam na detenção e na violência policial. No dia 13 de junho, por exemplo,
ocorreu em algumas cidades, o levante que ficou conhecido como a Revolta do Vinagre
porque as pessoas estavam sendo detidas por porte de vinagre que era usado para
amenizar o efeito da bomba de gás lacrimogênio. Durante tal período, havia muita
repressão com uso indiscriminado de armas “não letais”, causando “apenas”
sufocamento e lesões como cegueira parcial e deformação estética.
Houve uma tragédia na manifestação do dia 20 de junho, 1 milhão de pessoas nas
ruas, manifestantes foram feridos e culminou com a morte do cineasta conhecido
como Fernandão que fundou o Cinema Guerilha de Baixada, no Rio de Janeiro. No
dia 24 de junho houve a Chacina da Maré que envolveu moradores que protestavam
na Avenida Brasil, um conflito com policiais e 10 pessoas foram assassinadas no dia
seguinte mas até hoje não houve uma resposta por parte do estado.15 No dia 26 de
junho, em Belo Horizonte, um manifestante caiu do viaduto e ficou gravemente ferido.
Na segunda leva de atos, a partir de julho, caracterizado pela convocação online, tem-se
um melhor uso da mídia alternativa como arma contra a violência institucional e portanto
como prova do abuso cometido pela polícia militar. Com o aumento da repressão ,
como por exemplo, nas detenções do Ocupa Câmara, em outubro de 2013, no Rio de
janeiro, cerca de 190 manifestantes foram detidos com tentativa de enquadramento
pela Nova lei de Organização Criminosa. Esta lei surgiu posteriormente à que proibia
máscaras e outros objetos encobrindo rostos de manifestantes em atos públicos no Rio
de Janeiro.
Até o final de dezembro de 2013, a violência estatal também causou arbitrariedades
contra os profissionais da própria imprensa. Conforme dados levantados pela ABRAJI
(Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo ), neste período, mais de 100
jornalistas sofreram algum tipo de violação durante as coberturas nas ruas incluindo
os que não faziam parte da mídia corporativa16. Também de acordo com o Sindicato
dos Jornalistas de São Paulo, repórteres foram presos por alguns dias, a maioria sofreu
agressões com balas de borracha, gás de pimenta, golpes de cassetetes e outros ficarão
14 Operação Zelotes envolve bancos.Disponível em http://www.cartacapital.com.br/blogs/parlatorio/operacao-zelotes-envolve-
bancos-grandes-empresas-e-afiliada-da-globo-6208.html. Consultada em junho de 2016.
15 O Luto da Maré. Disponível em http://redesdamare.org.br/blog/noticias/o-luto-da-mare/. Consultada em junho de 2016.
com lesão permanente como no caso do fotógrafo Sérgio Silva que terá poucas chances
de recuperar a visão atingida.17
Ainda assim, as manifestações avançam até o ano de 2016 com pautas setorizadas
nas greves, nas favelas, no antirracismo, contra as olímpiadas. É aprovada a lei
antiterrorismo para ser utilizada na repressão de movimentos sociais que contestam os
megaeventos responsáveis por remoções, militarização e gastos públicos em detrimento
da falta de verba para a saúde e educação, por exemplo. Toda criminalização com
apoio da mídia que formalizou a figura do vândalo, do black bloc ou até mesmo do
uso da palavra “terrorismo” com o intuito de legitimar a punição através do estigma.
ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO MIDIÁTICO NAS MANIFESTAÇÕES
Vandalismo
Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos ...
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!18
Augusto dos Anjos
A palavra vandalismo vem sendo retomada algumas vezes ao longo dos tempos,
ora para tratar de tribos bárbaras, ora para evidenciar um determinado simbolismo
ou ainda como uma retórica. No Império Romano, os atos de vandalismo eram
caracterizados por destruir tudo o que simbolicamente representava a dominação do
opressor. No caso do poema citado, o vandalismo, para o temor dos iconoclastas, seria
a ruptura como romantismo, com a sacralidade e a revelação de uma realidade mais
crua do desejo que seria o poder da ruptura dogmática.
O trabalho realiza a pesquisa sobre as notícias veiculadas pelo jornal online Globo.com,
durante o período de junho de 2013 até junho de 2016. Por fim, é tomado como exemplo
para análise de discurso, as notícias e editoriais por se tratar de um portal do maior
conglomerado de mídia do Brasil, além de algumas revistas que serão citadas. Neste
sentido, o método de coleta e análise de dados foi utilizado para entender o processo
17 Sindicato contabiliza jornalistas presos e feridos. Disponível em https://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/sp-sindicato-
contabiliza-2-jornalistas-presos-e-12-feridos. Consultada em junho de 2016.
18 Poeta brasileiro do período pré-modernista.
de estigmatização dos manifestantes iniciado nas jornadas até três anos depois, no
período das Olimpíadas com sede no Rio de Janeiro.
A notícia não é um gênero textual com imparcialidade, é um meio de comunicação
de massa no qual o emissor segue um determinado padrão que inclui o interesse de
comercialização. As imagens e manchetes que veiculam fatos relacionados à violência
sempre constituem um produto bastante atrativo, é uma mercadoria. Numa sociedade
classista, o discurso torna-se uma disputa ideológica entre a informação hegemônica
e a contra-hegemônica, a primeira predomina nos grandes meios de comunicação e a
outra a partir da produção do conhecimento por outras fontes.
Em outras palavras, esta estrutura material reflete a luta ideológica na qual não há
passividade do sujeito histórico, a transmissão de um discurso pode ser contestada.
Nas palavras de Fairclough:
Entender o uso da linguagem como prática social implica compreendê-lo como
um modo de ação historicamente situado, que tanto é constituído socialmente
como também é constitutivo de identidades sociais, relações sociais e sistemas
de conhecimento e crença. Nisso consiste a dialética entre discurso e sociedade:
o discurso é moldado pela estrutura social, Ciência social crítica mas é também
constitutivo da estrutura social. Não há, portanto, uma relação externa entre
linguagem e sociedade, mas uma relação interna e dialética (Fairclough, 1989)19.
Sendo então o jornalismo uma forma social de cognição, através da informação, que se
utiliza de valores orientados por visões de mundo, é preciso contextualizar em quais
estruturas do discurso pode-se apreender uma possibilidade política de contestação.
Neste sentido, a análise de Bakhtin sobre o conteúdo do discurso na análise da narrativa
e decodificação do enunciado pelo outro:
Toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem, tudo o que
pode ser ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior.
Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado
da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua
atividade mental, o que se pode chamar o “fundo perceptivo”, é mediatizado
para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção com o discurso
apreendido do exterior. A palavra vai à palavra.20
Nos noticiários durante este período, o termo era predominantemente usado como
uma metáfora. Segundo Lakoff e Turner:
A metáfora é uma ponte que liga domínios semânticos diferentes fazendo, assim, com
que novos caminhos surjam para a compreensão do sujeito. A metáfora é uma maneira
de expandir os significados de palavras além do literal ao abstrato e uma maneira de
expressar o pensamento abstrato em termos simbólicos21.
Assim, o vandalismo foi utilizado como uma expressão usual dos noticiários da época,
sendo ideologicamente construído como uma identidade negativa dos manifestantes.
Tal conceito metafórico foi introduzido na linguagem cotidiana para tal propósito.
Uma outra estratégia discursiva era o uso habitual da palavra em diversas manchetes
19 RESENDE, Viviane de melo.RAMALHO, Viviane.Análise do Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2006.
20 BAKHTIN. Mikhail. Marxismo E Filosofia da Linguagem. 12 Ed. São Paulo:Hucitec, 2006.
21 CARVALHO, Sergio N. Metáfora Conceitual: Uma Visão cognitivista. Disponível em http://www.filologia.org.br/viicnlf/
anais/caderno12-04.html
para que a repetição se tornasse uma estrutura retórica e o poder persuasivo mudasse
a opinião do receptor do conteúdo jornalístico. Da mesma forma a canalização do
termo Black Bloc era utilizado para fomentar o discurso do ódio, não há alteridade
neste gênero de discurso pois não é construído para gerar uma discussão política.
A configuração desta linguagem é permeada por uma manipulação a fim de exercer
uma influência negativa, uma prática comunicativa e interacional com o propósíto
de exercer controle sobre outras pessoas.22 Quando se fala de vandalismo na mídia
hegemônica, há uma tentativa de esvaziar o conteúdo ideológico dos atos dos
manifestantes, porém, ao longo da História das Revoluções, a contestação contra os
símbolos de poder sempre ocorreram, afinal trata-se de uma denúncia política sobre o
imobilismo do estado e a manutenção de um status quo.
Por outro lado, ao tratar do discurso midiático, remete-se ao fenômeno das ideologias
alternativas, disseminadas pelos novos meios de comunicação que são uma alternativa
ao controle das classes dominantes e será discutido no capítulo adiante.O termo
ideologia foi utilizado pela primeira vez por Destutt de Tracey na França do século
XVIII. Qualquer estudo sobre a ideologia explora a natureza de certas idéias e crenças
e sua organização em sistemas de significado, criando assim uma “ciência” de idéias23.
A problemática do conceito é quando a homogeneização da ideia é utilizada para
reproduzir o universalismo de conceitos como gênero e raça, os quais são utilizados
em discursos sexistas ou racializados, por exemplo.
Neste trabalho, a ideologia também é compreendida como o sistema de crenças e
ideias produzidas numa determinada comunidade epistêmica contra-hegemônica.
Neste sentido, tem uma dinâmica de interação e pode ser uma forma de cultura ativa,
uma perspectiva com informações táticas coletivas e objetivos da ação, um apoio aos
movimentos e está estrategicamente empregada na mobilização24. Pode se utilizar
como exemplo os movimentos da rede que surgiram com as jornadas ou tomaram
maiores proporções a partir delas. Apresenta-se a seguir um fragmento da postagem
do grupo Anonymous com a autoapresentação positiva do coletivo, uma das categorias
de Análise do discurso :
Nós somos uma idéia. Uma idéia que não pode ser contida, perseguida nem aprisionada.
Somos uma idéia que surgiu em 2004 e sempre seguiu uma linguagem de
memética e muitas sátiras. Hoje, Anonymous é uma idéia de mudança, um
desejo de renovação. Somos uma idéia de um mundo onde a corrupcão não
exista, onde a liberdade de expressão não seja apenas uma promessa, e onde as
pessoas não tenham que morrer lutando por seus direitos. Não somos um grupo.
Somos uma idéia de revolução. Acreditamos que cada geração encontra sua
forma de lutar contra as injustiças que encontra. Temos em mãos pela primeira
vez o poder de produzir, distribuir e trocar informações. Uma oportunidade
nunca vista antes na história para colaboração e construção de um mundo onde
a esperança, a dignidade e a justiça sejam princípios a serem respeitados.25
No caso específico das redes sociais, pode-se contestar o uso passivo da informação
pela mídia hegemônica, ainda que a tecnologia influencie uma mudança social, como
no caso da expansão da contrainformação pela internet. No entanto, é preciso levar
em consideração, não só o avanço da comunicação através da tecnologia mas também
considerar as desigualdades sociais que representam um menor acesso na distribuição
de tais recursos.
É interessante também fazer uma analogia com notícias sobre manifestações publicadas
em ooutros grandes meios de comunicação tais como Folha de São Paulo e Veja,
exemplo. Enquanto no Brasil houve a tendência de tornar toda manifestação como um
ato de vândalos, quando as notícias eram sobre a Turquia e a França, por exemplo,
eram utilizados termos usais como manifestantes e ativistas. Um trecho d revista Veja
publicado no dia 12 de maio de 2016:
MANIFESTANTES PROTESTAM CONTRA REFFORMA TRABALHISTA NA
FRANÇA
De acordo com a rede BBC, sindicatos e estudantes tomaram as ruas de Paris
e fizeram barricadas nas cidades de Nantes e Rennes. Também aconteceram
passeatas em Lille, Tours e Marseille. Na capital, a polícia teria utilizado gás
lacrimogênio para dispersar manifestantes que jogavam bombas de gasolina,
segundo relatos nas redes sociais. Os protestos expõe o governo ao risco de
uma rejeição popular e de episódios de violência cada vez maiores em reação
à reforma, rejeitada por três de cada quatro pessoas, segundo pesquisas de
opinião.26
Nesta linha de análise, em outros momentos históricos, a palavra “ação”, usada de forma
reiterada, tornou-se uma similitude de depredação, incorrendo um reducionismo do
vocábulo. Há uma resistência global que luta contra uma violência institucional e esta
sempre se manifesta de maneira desproporcional nos protestos, esta é uma conclusão
alicerçada na quantidade de vítimas das armas “não-letais” de contenção das massas,
nos protestos.
Vandalismo
Donizette garantiu que as ações de vandalismo serão investigadas pela
Polícia Civil. “Esse tipo de coisa deve ter o repúdio de todos nós, sorte que
ninguém perdeu a vida”, afirmou. A Polícia Militar informou que, pelo menos,
sete pessoas foram detidas suspeitas de praticar saques em comércios. Dois
mercados na Avenida Doutor Quirino e na Avenida Anchieta foram invadidos
e tiveram produtos levados. Duas agências bancárias foram depredadas. O
balanço final dos estragos causados pelos vândalos infiltrados na manifestação
deve ser apresentado pela PM ainda nesta sexta.34
Em algumas notícias também foi utilizada a ironia ao tratar das ações de vandalismo.
Quando no excerto acima há referência à expressão, há o uso de tal recurso linguístico. A
mensagem transcrita pelo entrevistado,quando ele diz que “sorte que ninguém perdeu
a vida”, ele trata de uma inversão, pois as evidências estão no fato de que o monópolio
da violência é um exercício do estado. No Brasil, por exemplo, existe um genocídio da
população negra e das favelas, há uma alta letalidade policial através dos denominados
“autos de resistência”. De acordo com dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, 1.647 homens e mulheres foram mortos em confronto com policiais militares e
civis em serviço 35 . Neste sentido, Vera Malagutti 36 afirma que as operações letais de alta
intensidade (como os dezenove mortos num só dia no morro do Alemão) não precisam
mais ter sentido técnico, de resultados: o sucesso é o enfrentamento em si.
No capítulo seguinte, será analisada a formação de novas vozes a partir da
intertextualidade entre o gênero textual notícia e a construção de uma autoapresentação
positiva dos manifestantes com a contestação dos fatos noticiosos na mídia hegemônica.
A atitude é interpretada como uma forma de cognição social de determinado grupo
ideológico e a figura do vândalo, na análise crítica do discurso, é vista como a do
sujeito histórico com possibilidade de resistência nas relações desiguais de poder. De
um modo geral, as redes sociais se configuraram como sede de uma potente forma
comunicativa que evidenciou uma nova leitura dos fatos, apresentando narrativas
independentes e questionadoras.
A RESPOSTA DAS REDES COMO ZONAS ALTERNATIVAS DE COMUNICAÇÃO
E CONTRAINFORMAÇÃO
O reconhecimento da mídia como uma rede de significações na qual se formulam
visões sobre a abordagem dos manifestantes através das notícias, torna necessário o
reconhecimento de vozes alternativas ao discurso hegemônico. Existe um discurso
ordenado que está em voga nas manchetes e também há outras ordens do discurso que
34 Premeditadas, diz Jonas sobre ações de Vândalos na Prefeitura. Disponível em http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/
noticia/2013/06/premeditados-diz-jonas-sobre-vandalos-que-atacaram-prefeitura.html. Consultada em junho de 2016
35 Polícias federal e civil abolem o termo “autos de resistência”. Disponível em http://oglobo.globo.com/brasil/policias-federal-
civil-abolem-termo-auto-de-resistencia-18416779. Consultada em junho de 2016
36 BATISTA, Vera Malagutti. Adesão Subjetiva à Barbárie. Disponível em http://comunicacao.fflch.usp.br/sites/comunicacao.
fflch.usp.br/files/Adesaosubjetivaabarbarie.pdf
são contrapostas àquela dominante e que serão apresentadas nesta seção. As articulações
nas redes foram realizadas através de uma interdiscursividade que proporcionou uma
identidade social diferente daquela da formação discursiva do jornal.
O conceito de vândalo representa a sustentação de uma visão de mundo ligada a
um discurso que envolve uma relação de poder expressa nos principais meios de
comunicação embora o trabalho tenha analisado o canal de notícias “globo. com”.
Esta formação discursiva foi fundamental para a criminalização dos movimentos
sociais e para intermediar a violência institucional através do aparato policial nos
protestos. Durante o período de 2013 a 2016, a repetição retórica do vocábulo tinha
o poder disciplinador de conter os atos políticos e criar o medo no imaginário social.
A construção do vandalismo como um comportamento do “inimigo” representou
a estigmatização de uma identidade social. A ênfase dada pelo noticiário sobre a
forma política da desobediência civil nos protestos determinou alguns aspectos que
fragmentaram a opinião pública sobre a ação dos sujeitos na manifestação.
Na análise dialética do discurso, há a necessidade de reconhecer a alteridade e
o momento histórico em que aqueles que estão assujeitados no processo midiático
podem impor um discurso de resistência37. Para Thompson, a legitimação é uma das
relações de dominação da ideologia pois estabelece os vínculos de dominação pelo
fato de serem apresentadas como justas e dignas de apoio.38 Então nas redes sociais, é
iniciado o discurso de resistência através da denúncia social que expôs uma violência
do estado e por isso era necessária a ação coletiva da ordem dos discursos subalternos
como no seguinte excerto:
PROFESSORES À PALMATÓRIA - AQUILO QUE A TELEVISÃO NÃO
MOSTROU
Após Ato em solidariedade aos professores do Estado e Município do Rio
de Janeiro, a polícia reprime de forma desumana as manifestações, deixando
vários feridos.
O povo reagiu bravamente à violência da Polícia, numa batalha de proporções
desiguais diante o forte aparato de armas ditas “não letais” e a covardia das
Forças de segurança. Contudo, mesmo com a alta rejeição popular, o plano de
carreira para os professores é aprovado pela Câmara Municipal. 39
Um valor das vozes das ruas expressas nas redes justamente é o empenho na
construção de uma solidariedade comunicativa. Isto resultou na união de diversos
movimentos que se empenharam para a realização de uma relação de alteridade entre
os indivíduos marginalizados na manifestação e o discurso é um modo de ação que traz
transformações para além do campo textual. Há uma variação dialética que contribui
para a mudança de estruturas sociais. Neste sentido, o vandalismo foi inovado de
um discurso universal como o midiático, alicerçado no neoliberalismo, para uma
construção social em seu sentido mais concreto. Através de uma prática discursiva
na rede, houve diversas manifestações nas quais se passou a atribuir a violência
institucional ao próprio sistema capitalista.
Na análise do discurso sobre as notícias, entre 2013 a 2016, foi denotado que a repetição
da palavra deslocou-se do âmbito das manifestações para o uso menos habitual em
outras situações esporádicas da vida cotidiana. O último registro no Globo em junho
trata de uma reportagem sobre uma escola no Espírito Santo, cujos autores não foram
localizados e a matéria apenas utiliza uma manchete com o uso de “vândalos” no
mesmo senso comum do espetáculo midiático.42
A evidência da contestação do vândalo como o inimigo ocorre a partir do momento em
que há uma inversão no uso do conceito nas redes: “vândalo é o estado” porque explora
as pessoas e destrói vidas ou o “vândalo veste farda”, afinal é a violência policial que
fere e mata nas favelas, por exemplo. Este discurso de resistência dos movimentos
sociais muda o sentido veiculado pelo caráter ideológico da grande mídia. Além disso,
tem um impacto na construção de uma intersubjetividade na ação coletiva que refuta
o poder hegemônico do discurso neoliberal que criminaliza as lutas anticapitalistas.
40 MORAES, Dênis. Vozes Abertas da América Latina.:Estado, Políticas Públicas e Democratização da Comunicação. Rio de Janeiro:
Mauad X: Faperj, 2011.
41 Trecho Extraído da Página Black Bloc São Paulo. Disponível em https://www.facebook.com/bbSaoPaulo/photos/
a.262441890617598.1073741828.262320310629756/2657 35343621586/?type=3&theater. Consultada em junho de 2016.
42 Vândalos quebram computadores de Escola na Serra, ES. Disponível em http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2016/06/
vandalos-quebram-computadores-de-escola-na-serra-es.html. Consultado em junho de 2016
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A necessidade desse estudo decorre das próprias questões relacionadas ao contexto
sociohistórico atual dos movimentos sociais. Os processos comunicacionais estão
comprometidos com a batalha pela hegemonia na conjuntura político-econômica
neoliberal. Há um grupo majoritário que detém o poder da comunicação e
consequentemente propaga sua ideologia de dominação.
O capitalismo transforma a informação em mercadoria, portanto, a mídia comercial
reverbera o ideário das instituições hegemônicas. Nessa perspectiva, foi utilizada
a análise crítica do discurso para dissecar a relação entre a linguagem e as práticas
sociais nas jornadas de junho de 2013. O discurso hegemônico midiático foi utilizado
para silenciar a revolta contra o sistema nas manifestações e unificar o pensamento em
torno de um consenso, no qual a figura do vândalo não poderia ser admitida a não ser
pela industrialização do medo, produto almejado na cultura do espetáculo.
A partir da ação histórica dos sujeitos envolvidos na estrutura das formas sociais, o
discurso se desenvolve como uma prática social. Os manifestantes envolvidos não se
sujeitam passivamente ao pensamento hegemônico e a disputa por uma linguagem
que represente mas também constitua uma identidade social resulta na expansão
dos meios comunicativos. A prática das ruas na qual se desenvolve a ação reflete o
discurso midiático e tem como resposta uma outra prática discursiva que é o uso das
vozes subalternas nos meios de comunicação. Esta relação dialética é que condiciona o
discurso como representativo mas também constitutivo das práticas sociais.
BIBLIOGRAFIA
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Científica. Método da Análise Crítica do Discurso organizada por Wodak e Meyer. 2 °
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www.marxists.org/portugues/marini/1973/mes/dialetica.htm
INTRODUÇÃO
Este trabalho é parte integrante da dissertação de mestrado intitulada “Educação
Inclusiva: A Trajetória entre a Formação Docente e o Cotidiano Escolar” em processo de
construção que tem como objetivo analisar os aspectos legais que envolvem a formação
do professor, a partir do paradigma da inclusão.
Os marcos referenciais são: a Declaração de Salamanca (1994); a LDBEN n.º 9394/96; a
Resolução CNE/CEB n.º 2/2001 (BRASIL, MEC, CNE, 2001), que estabelece as Diretrizes
Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, fixa dois tipos de docentes
quanto à formação: os capacitados e os especializados, denominadas por Bueno (1999)
como generalistas e especialistas; a Portaria Normativa n.º 13 de 24 de abril de 2007
que versa sobre 2 o Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais, a
Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (MEC/
SEESP, 2008), a Resolução n.º 4/2009 (BRASIL, MEC/CNE, 2009) e o Decreto n.º 7611/2011
(BRASIL, Presidência, 2011).
Esses documentos foram analisados à luz das entrevistas realizadas com 11 (onze)
docentes dos anos iniciais do Ensino Fundamental, sendo 10 (dez) regentes das salas
comuns do ensino regular que têm alunos com deficiência nessas salas e 1 (um) da Sala
de Recurso Multifuncional. Se constituiu em um Estudo de Caso, apresentando como
lócus uma escola dos anos iniciais do Ensino Fundamental da Prefeitura Municipal de
Duque de Caxias.
A tipologia descritiva em forma de Estudo de Caso, conforme Rizzini, Castro e Sartor
(1999, p. 29) consiste no “interesse no Caso, é justamente que ele possui de particular e
único, mesmo que posteriormente, apresente certas semelhanças com outros casos”. O
embasamento teórico voltou-se para os autores que estudam sobre a temática, dentre os
quais destacam-se: Baptista (2002), Beyer (2006), Borowsky (2010), Bueno (1999), Bürkle
(2010), Carvalho e Soares (2012), Dorziat (2011) Garcia (2013), Mantoan (2003), Prieto
(2006), Vaz e Garcia (2015).
A estrutura do artigo encontra-se dividida em 3 (três) eixos norteadores, conforme
descrito a seguir: O primeiro norteou-se sobre a formação docente na construção de
uma escola inclusiva, enfatizou as legislações elaboradas no sentido de prepará-los
para os atendimentos dos alunos com deficiência nas classes comuns do ensino regular.
Definiu-se a diferença entre o professor generalista e o especialista (Bueno, 1999).
O segundo tópico descreveu sobre a formação de professores voltados para a Sala de
Recurso Multifuncional e o Atendimento Educacional Especializado (AEE), foram
elencados os seguintes documentos: Portaria Normativa n.º 13 de 24 de abril de 2007,
que cria o Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais. Política
Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008), a Resolução
n.º 4/2009, Decreto n.º 7.611/2011.
O próximo ponto consistiu na análise dos dados das entrevistas, a referida análise teve
como foco duas questões que compõem o roteiro de entrevista da citada dissertação,
são elas: Já fez algum curso sobre Educação Inclusiva? Sente-se preparado para atuar
frente aos alunos com deficiência nas classes comuns do ensino regular?
Nesse cenário, é elaborada a Declaração de Salamanca (1994) que tem como princípio
fundamental:
[...] As escolas devem acolher todas as crianças, independentemente de suas
condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas ou outras. Devem
acolher, crianças com deficiência que vivem nas ruas e que trabalham, crianças
de minorias lingüísticas, étnicas ou culturais e crianças de outros grupos ou
zonas desfavorecidas ou marginalizadas.
Desta forma, tanto a conjuntura mundial, como os documentos oficiais que embasaram
a terceira LDBEN n.º 9394/96 do país trazendo uma reforma geral na concepção da
educação nacional, incluindo nessas mudanças a formação docente, que foi instituída
através da elaboração de 7 (sete) artigos que versam sobre essa formação: Em seu Artigo
62 que teve algumas modificações em seu texto original, devido às novas exigências de
um sistema educacional comprometido com o processo inclusivo encontramos:
1 Essa conceituação foi elaborada pelo Banco Mundial no ano de 1992, e citada por Figueiredo em (2006).
2 Bueno (1999) destacou sobre a formação do professor generalista ou especialista, que essa dicotomia é uma falsa questão, à medida
que: “O problema não reside na oposição entre os especialistas ou generalistas. Se por um lado a educação inclusiva exige que o
professor do ensino regular adquira algum tipo de especialização para fazer frente a uma população que possui características
peculiares, por outro, exige que o professor de Educação Especial amplie suas perspectivas, tradicionalmente centradas nessas
características. Se construirmos uma trajetória de formação de professores que coloquem em prática esses princípios, com certeza
estaremos contribuindo, dentro do nosso âmbito de ação, para a ampliação efetiva das oportunidades educacionais a toda e qualquer
criança, com necessidades educativas especiais ou não (BUENO, 1999, p. 24)”.
Nessa perspectiva, a formação do professor, para uma escola inclusiva estaria vinculada
a dois tipos de profissionais:
1) os “professores generalistas”, que seriam responsáveis pelas classes
regulares e capacitados com um mínimo de conhecimento e prática sobre a
diversidade do aluno e 2) os “professores especialistas”, formados para lidar
com diferentes necessidades educacionais especiais e responsáveis por dar
suporte, orientação e capacitação aos professores do ensino regular ou para
atuar diretamente com alunos em classes especiais, sala de recursos, etc.
(BUENO, 1999 e 2001; GLAT, 2000; GLAT e PLETSCH, 2004, apud ANTUNES;
GLAT, 2011, p. 188 - aspas das autoras).
No entanto, para Prieto (2006) e Michels (2006), essa divisão proposta na Resolução
CNE/CEB n.º 2/2001, tem um ponto negativo, posto que a Educação Inclusiva exige o
conhecimento de toda a comunidade escolar, e não só dos professores especializados. A
fragmentação fixada no documento gera fragmentação na formação docente, dentro do
espaço escolar. Enfatizando a Resolução do CNE/CEB n.º 02/2001, no que concerne às
duas categorias de professores, Michels (2006) descreveu que esse documento também
determinou que:
as competências necessárias para cada tipo de professor. Aos professores
denominados capacitados cabe a tarefa de perceber quais são os possíveis alunos
com necessidades educacionais especiais e desenvolver com eles atividades ou
ações pedagógicas em sala de aula. Aos professores especializados compete
identificar esses alunos e definir estratégias que os professores capacitados
deverão utilizar com eles em sala de aula (MICHELS, 2006, p. 416 e 417).
No que se refere a esse curso oferecido pelo Ministério da Educação (MEC), Carvalho
e Soares (2012, p. 45 e 46) enfatizaram que:
Verifica-se, em primeiro lugar, que a perspectiva básica foi a de que um
professor se responsabilizava pelo atendimento educacional especializado para
qualquer tipo de deficiência, já que o curso englobava as quatro mais incidentes:
intelectual, auditiva, física e visual.
Em segundo lugar destaca-se o reduzidíssimo número de horas dedicadas a
cada uma das deficiências: 34 horas para oferecer preparação básica para que o
professor ofereça atendimento educacional especializado a aluno determinado
tipo de deficiência.
A perspectiva de formação de um único profissional que ofereça apoio ao
trabalho realizado pelo ensino regular com alunos com deficiências distintas
não leva em consideração que elas redundam em diferentes consequências em
relação à aprendizagem do conteúdo escolar.
Em 34 horas de curso, o professor deve adquirir competência para trabalhar
com Braille, e soroban com alunos cegos; em outras 34, para trabalhar com
língua de sinais e adaptações didáticas da Língua Portuguesa com alunos
surdos; em outras tantas, para trabalhar com comunicação alternativa com
alunos com paralisia cerebral; e por fim, com mais 34 horas para trabalhar
comas adaptações curriculares necessárias para o melhor aproveitamento de
alunos com deficiência intelectual.
Para atuar na educação especial, o professor deve ter como base da sua formação,
inicial e continuada, conhecimentos gerais para o exercício da docência e
conhecimentos específicos da área. Essa formação possibilita a sua atuação
no atendimento educacional especializado, aprofunda o caráter interativo e
interdisciplinar da atuação nas salas comuns do ensino regular, nas salas de
recursos, nos centros de atendimento educacional especializado, nos núcleos de
acessibilidade das instituições de educação superior, nas classes hospitalares e
nos ambientes domiciliares, para a oferta dos serviços e recursos de educação
especial (BRASIL, MEC, SEESP, 2008).
Sobre essa questão que envolveu a formação docente para o AEE, no referido documento,
Carvalho e Soares (2012) indagaram: “Ora, se as atividades desenvolvidas no AEE não
podem se confundir com as realizadas nas salas de aula, qual é a razão para que se
exija ‘conhecimentos gerais para o exercício da docência’ (p. 42 - aspas das autoras)”. O
questionamento das autoras apresentou grande pertinência, à medida que a trajetória
da formação de professores no Brasil teve um cunho de ambiguidade e indefinição.
Ainda sobre essa Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva (BRASIL, MEC/ SEESP, 2008), que tem por objetivo a construção de um sistema
educacional inclusivo, Garcia (2013) enfatizou que a formação docente para atingir esse
objetivo levou uma dupla reconversão dos professores. Desta forma, a autora pontuou
elementos essenciais, a fim de compreender como se estruturou essa formação:
[...] Primeiro, em relação aos professores regentes das turmas de educação
infantil e do ensino fundamental, que passaram a ter com regularidade
em suas classes alunos da educação especial. Segundo, na mudança de ação
docente dos professores de educação especial, a qual também se desdobra em
duas possibilidades: 1) em relação ao lócus de atuação, mudando de diferentes
serviços (instituições especializadas, classes especiais, salas de recursos) para
ocorrer prioritariamente na SRM; e 2) no que se refere ao tipo de atendimento
propriamente, que passou de mais especializado, com cada professor
atuando com alunos com características comuns relacionadas à deficiência
(cegueira, surdez, deficiência física, mental, múltipla), para uma atuação mais
abrangente, na qual um mesmo professor atua com alunos com as mais diversas
características (GARCIA, 2013, p. 115).
Em 2009, foi criada a Resolução n.º 4, de 2 de outubro de 2009 (BRASIL, MEC/ CNE,
2009a) que instituiu as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional
Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial estabeleceu
competência na construção do plano de AEE, demonstrando a importância do PPP
nesse processo, sendo assim:
Art. 9º A elaboração e a execução do plano de AEE são de competência dos
professores que atuam na sala de recursos multifuncionais ou centros de
AEE, em articulação com os demais professores do ensino regular, com a
participação das famílias e em interface com os demais serviços setoriais da
saúde, da assistência social, entre outros necessários ao atendimento (BRASIL,
MEC, CNE, Resolução n.º 4/2009a, p. 2).
Em 2011 foi elaborado o Decreto n.º 7.611, de 17 de novembro de 2011, que dispõe sobre
a Educação Especial, o Atendimento Educacional Especializado (BRASIL, Previdência,
2011), fixou sobre a formação docente para o AEE, no Artigo 5º, § 2º, Inciso III – “formação
continuada de professores inclusive para o desenvolvimento da educação bilíngue para
estudantes surdos ou com deficiência auditiva e do ensino do Braille para estudantes
cegos ou com baixa visão (BRASIL, Decreto n.º 7611/2011)”. Nesse documento,
encontram-se presentes, o alargamento da formação de professores. Diante do exposto,
para Sala de Recursos Multifuncional e o AEE, faz-se fundamental observar que:
Entre as mudanças ocorridas em relação à modalidade de educação especial ao
longo da década, podemos destacar: [...] a definição do professor especializado
como professor do AEE, retirando do profissional e da formação o caráter de
aprofundamento de estudos em um campo de conhecimento e deslocando para
a tarefa– AEE – a marca de uma multifuncionalidade (GARCIA, 2013, p. 116).
Diante desse cenário o professor do AEE recebe várias denominações, devido as suas
inúmeras atribuições, dentre elas: “superespecialista”, “polivalente”, “multifuncional”,
“gestor dos recursos de aprendizagem dos alunos”, “eclético”, “proativo”.
3. REFLETINDO SOBRE OS DADOS OBTIDOS
Inicialmente, antes de entrar especificamente na análise das entrevistas, cabe pontuar
que todos os 11 (onze) docentes entrevistados concluíram suas formações no novo
milênio, quando várias políticas públicas voltadas aos processos inclusivos já haviam
sido elaboradas. A proposta de Educação Inclusiva, conforme Baptista consiste em:
[...] um movimento e um paradigma. Um movimento, porque podem ser
reconhecidas ações que se transformam e que propõem novas transformações.
Tais ações associam-se a práticas diferentes e diferenciadas, as quais rompem
com verdades estabelecidas e determinam a falência de critérios de classificação
que resistiram durante décadas. Um paradigma, porque lança uma perspectiva
que tem propostas que imprimem uma direção ao trabalho educativo e à
reflexão em educação.
[...] A educação inclusiva introduziu intensas mudanças na discussão pedagógica
relativa aos locais de atendimento educativo e às propostas de intervenção.
Tais mudanças atingem mais diretamente a educação especial, pois há uma
proposição que altera a estruturação do atendimento que a caracteriza, ou seja,
que transforma os serviços especializados (BAPTISTA, 2002, p. 162 e 163).
É esse processo dinâmico do projeto de inclusão que exige uma (re) construção de
todo o espaço escolar, inclusive da formação de professores. Dessa forma, a primeira
indagação feita aos docentes buscou saber se os mesmos já fizeram algum curso sobre
Educação Inclusiva? Dos respondentes, 7 (sete) professores narraram que não fizeram,
nesse universo citado, 3 (três), apesar de efetivamente não terem participado de curso,
tiveram acesso a alguma informação sobre inclusão no contexto escolar, seja através de
disciplina, seja assistindo palestras na faculdade sobre o tema, como podemos observar
a seguir:
“[...] Só na faculdade um disciplina de Educação Inclusiva. Não me recordo o nome,
somente uma disciplina (P. 3)”.
“[...] participei de algumas palestras sobre o assunto (P. 4)”.
“[...] Participei das capacitações oferecidas pela Secretaria Municipal de Educação em
Duque de Caxias (P. 6)”.
Dos entrevistados, somente 4 (quatro) relataram que fizeram curso de Educação Inclusiva,
destaca-se o professor da Sala de Recurso Multifuncional que disse ter realizado em
2014, o Curso de Extensão pela Universidade de Santa Maria na modalidade EAD, como
também, todos os cursos oferecidos pela Secretaria Municipal de Educação de Duque
de Caxias sobre o assunto. Os outros 3 (três) professores ressaltaram terem feito curso
referente à temática:
“[...] Era um curso voltado para portador de necessidades educacionais especiais no ano
de 2000 (P. 2)”.
“Quando fiz faculdade de Pedagogia (P. 8)”.
“[...] Estudo sobre síndromes, dificuldades de aprendizagem, adaptação curricular e
técnicas de ensino para estudantes com necessidades especiais (P. 9)”.
Sendo assim, pode-se verificar o elevado número de docentes, que apesar da construção
de políticas públicas sobre a formação desses profissionais para a inclusão escolar,
ainda está à margem de todo esse processo proferido nos documentos nacionais e
internacionais que propõem à inclusão. A partir da LDBEN n.º 9394/96 a formação
continuada é citada em várias legislações que envolvem à docência com o objetivo
dessa formação voltar-se para o processo inclusivo, entretanto constata-se que:
[...] a formação de professores para a educação especial que tendo como foco a
inclusão, indica a formação docente como elemento-chave, para a mudança na
escola. Porém, como observado, a formação desse profissional mantém como
suas bases teóricas aquelas que explicam o fracasso escolar pelas diferenças
individuais (MICHELS, 2006, p. 421).
Reis (2006), também observou sobre a formação docente, seja em nível médio ou em
graduação:
[...] quando muito, tem se limitado à oferta de uma carga horária mínima em
disciplinas oferecidas nos cursos de formação de professores/ licenciaturas
para estudo de questões sobre Altas Habilidades/ Superdotação em abordagens
suplementares para uma proposta inclusiva de educação atendendo aos aspectos
legais vigentes. Desta forma, será que atende? (REIS, 2006, p.25).
A segunda questão feita aos docentes foi: Sente-se preparado para atuar frente aos
alunos com deficiência nas classes comuns da rede regular de ensino? Dez professores
afirmaram que não, somente o professor da Sala de Recurso Multifuncional relatou,
“[...] Porque eu sempre busco me especializar. Assistir palestras, ler sobre o aluno. Busco
sempre me reciclar, isto é, formação continuada (P. 11)”.
Ao analisar o discurso desse docente, observa-se que o mesmo busca sempre se “reciclar”,
essa preocupação deve-se diretamente ao fato de atuar no Atendimento Educacional
Especializado, o que exige a partir da Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva Inclusiva (2008), um alargamento na formação desse profissional, passando
a ser um docente “multifuncional” (GARCIA, 2013).
Retomando o significativo “não” das respostas dadas pelos professores, quanto ao
estar preparado para atuar em relação aos alunos com deficiência, foram pontuados
como motivos: “falta de formação”, “precariedade e ausência de recursos materiais e
humanos”, “necessidades de suporte e orientação”. Abaixo foram descritos 5 (cinco)
relatos de professores, pelos apontamentos realizados e sua importância para esse
trabalho:
“[...] Porque nenhuma escolarização que tive, nem na graduação, e nem na especialização,
tive preparo para lidar com essa questão Em nenhuma mesmo, na sala de aula é
diferente (P. 2)”.
“[...] Porque requer muitas especificações, tem que saber qual a deficiência e muitas vezes,
não se sabe. Não somos formados para isso. Não somos preparados nem para lidar com os
alunos ditos ‘normais’. Necessita de um planejamento próprio (P. 3)”.
“[...] Porque não tenho formação (suficiente) para sentir-me segura em atuar com alunos
com deficiência (P. 4)”.
“[...] O aluno com necessidades especiais precisa de mais atenção e instrumentos que, na
rede municipal, nem sempre estão disponíveis. Não tenho formação para trabalhar com
alunos com deficiência auditiva, surdos e cegos. O que procuro fazer são adaptações e dar
o máximo de atenção possível dentro da realidade de sala de aula (P. 9)”.
“[...] Pela falta de formação, porque a área de atuação é imensa. A cada ano você tem uma
síndrome diferente em sala de aula. Tenho muitas experiências... Com os alunos autistas,
o que fiz foi estudar, pesquisar... Buscar muito (sozinho, sem suporte do profissional de
saúde) (P. 10)”.
Ao analisar essas respostas dos docentes, foi possível constatar a falta de informação
para atender as necessidades dos alunos com deficiência. O discurso de um professor
que enfatizou que não teve nem formação inicial e nem continuada para desenvolver
esse trabalho “[...] Porque nenhuma escolarização que teve, nem na graduação, e nem
na especialização (p. 2)”. Nessa perspectiva a formação docente voltada para inclusão
conforme Prieto (2006) deve ter como preocupação:
No âmbito das instituições de ensino superior, a formação inicial deve, no
mínimo, assegurar aos futuros profissionais: domínio teórico para sustentar
ações compromissadas com a construção de outras bases sociais, aquelas em
que, ao menos, a desigualdade não possa ser justificada sob nenhuma condição;
e conhecimento para elaborar propostas de enfrentamento à realidade escolar
brasileira, marcada por tantos desajustes que exigem dos profissionais a definição
do que defendem enquanto papel social da educação escolar e, com isso, quais
princípios devem reger suas ações.
No âmbito da formação dos profissionais já engajados em sistemas de ensino, é
preciso ultrapassar o que vem sendo promovido, ou seja, a realização de encontros
formativos que se encerram na mera defesa da educação como direito de todos,
ou que informam os princípios filosóficos e políticos da inclusão escolar e suas
prerrogativas legais. É preciso promover sua continuidade, com aprofundamento
das reflexões e da formulação de proposições para construir alternativas de
escolarização para todos (PRIETO, 2006, apud ARANTES, 2006, p. 103).
Como também no relato desse docente foi possível verificar a permanência da questão da
normalidade/anormalidade que perpassou a construção da Educação no Brasil, e deixou
ranços até os dias atuais. Ao rotular o aluno com deficiência como “anormal” deixa-
se de criar várias possibilidades na construção de seu processo ensino-aprendizagem.
Dorziat (2011) pontuou que esse ranço deixado pela trajetória da Educação Especial
tem como objetivo, “[...] pôr em prática um mecanismo de disciplinamento, controle e
regulação dos indivíduos (DORZIAT, 2011, p. 153)”.
Nesse sentido, Mantoan (2003) reitera que a proposta de uma escola inclusiva, não
deve basear-se nessa categorização e seletividade, “[...] O aluno da escola inclusiva é
outro sujeito, que não tem uma identidade fixada em modelos ideais, permanentes,
essenciais (MANTOAN, 2003, p. 20)”. Desta forma, diante do exposto, constata-se que
“foram elaboradas leis e decretos, porém não se preparou escolas, comunidade escolar
e professores para inclusão (BÜRKLE, 2010, p. 109)”. Sendo assim, a construção de um
projeto inclusivo ainda é um desafio no sistema educacional brasileiro, posto que a
criação de legislações não garantiu a sua concretização.
CONCLUSÕES
Esse trabalho ao abordar a questão da formação docente para construção de uma escola
inclusiva baseada nos aspectos legislativos, constatou-se que apesar da elaboração dos
documentos norteadores desse processo, persiste um hiato entre as leis vigentes, e o
cotidiano escolar na realidade estudada, deixando no ar indagações acerca da realidade
no Brasil, à medida que é visível o pouco investimento em recursos materiais e
humanos, bem como a precarização da formação docente, para atender a complexidade
da dinâmica que envolve o dia-a-dia das unidades escolares.
Dessa forma, verificou-se durante as entrevistas o desconhecimento de alguns docentes
sobre as políticas públicas de inclusão, bem como a permanência do falso conceito de
que a inclusão é somente socialização dos alunos com deficiência, o que compromete
significativamente o seu processo de aprendizagem.
Diante dessa complexa realidade que envolve a construção de um projeto inclusivo,
conclui-se que a elaboração das legislações não se constitui em garantia de implementação
da Educação Inclusiva, sendo assim, faz-se urgente a ressignificação da educação
contemporânea no compromisso ético-político e legislativo de uma escola para todos.
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João Ramos
Enfermeiro Obstetra especialista em ginecologia e obstetrícia.
jramos.juan@gmail.com
Maria Adélia da Costa
Doutoramento em Educação. Professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de
Minas Gerais – CEFET-MG
adelia.cefetmg@gmail.com
Vanusa Fernandes Morais Ramos
Enfermeira especialista em saúde da mulher e da criança.
vanusafmramos@gmail.com
RESUMO
Este texto resulta de inquietações oriundas das experiências e vivências profissionais
dos autores que investigaram a síndrome da estafa profissional Burnout, em servidores
de uma unidade de terapia intensiva (UTI) neonatal. Trata-se de uma temática que
perpassa as vertentes multidisciplinares e, portanto, adentra na organização educacional
dos cursos de formação profissional de enfermeiros e técnicos de enfermagem. Tem por
objetivo avaliar a incidência da síndrome de Burnout em uma equipe de enfermagem da
unidade de terapia intensiva neonatal bem como apreender formas de problematização
da síndrome nos cursos de formação profissional. Entende-se que os estudos em torno
do tema são relevantes para que se possa evidenciar e possibilitar a promoção de
soluções preventivas aos danos causados à saúde dos profissionais da saúde.
Palavras-chave: Síndrome de Burnout. Profissionais da saúde. Formação profissional.
Unidade de terapia intensiva.
ABSTRACT
This text results of concerns from authors´Professionals expiriences that investigated the
Burnout´s Professional syndrome in servers from (UTI) Intensive care Unit Neonatal.
It` s a theme thatrunning through the multidisciplinary aspects and, therefore, enters
in educational organization of vocational training courses for nurses and nurse
technicians. Its objective is to evaluate the incidence of the Burnout professional
syndrome in a nursing team of the neonatal intensive care unit, as well as to learn
another ways of questionaing about the syndrome in professional training courses. It is
understood that the studies around the theme are relevant so that it can be evidenced
and enable the promotion of preventive solutions to the damages caused to the health
of health professionals.
Key-words: burnout´s Syndrome . Health professionals. Training Professional. Intensive
care Unit.
INTRODUÇÃO
O século XXI é reconhecido como a sociedade da informação ou sociedade em rede
alicerçada no poder da informação (CASTELLS, 2003). Apresenta, pois, diversos
desafios e paradoxos para a comunidade acadêmica, sobretudo, para a prática social,
didático-pedagógica dos docentes que atuam nas instituições de educação formal, em
todos os níveis e modalidades de ensino. Com efeito, cabe ressaltar o paradoxo que
vem desafiando os cursos de formação docente no que tange à exaltação da sociedade
do conhecimento em contraste com o desprestígio de políticas de formação inicial e
de desenvolvimento profissional dos professores. A sociedade do conhecimento e de
inovações tecnológicas, num modo capitalista de organização social, por vezes, coloca
os indivíduos em estreita relação com processos antagônicos de relações de trabalho.
Nesse sentido, a pressão capitalista e os modos de produção e trabalho, têm agravado
índices de adoecimento aos profissionais, em decorrência dessa peculiaridade laboral.
Não obstante, destaca-se o caso dos profissionais da saúde como uma profissão que
está sujeita ao desenvolvimento da síndrome de burnout, conhecida como a doença do
esgotamento emocional. No Brasil, a primeira publicação a esse respeito foi no ano
de 1987, quando França (1987), na Revista Brasileira de Medicina, discorreu sobre A
síndrome de “burnout”. A rigor, foi no final da década de 1990, que começaram a serem
publicadas as primeiras teses sobre essa síndrome. Benevides-Pereira, (2002) assevera
que em “1996 houve a Regulamentação da Previdência Social, na qual esta síndrome foi
incluída no Anexo II no que se referem aos Agentes Patogênicos causadores de Doenças
Profissionais”.
Apesar de datar quase 30 anos das primeiras publicações cientificas a respeito da
síndrome de burnout no Brasil, ainda não foram evidenciadas políticas e ações
incisivas para a conscientização e prevenção desta doença do esgotamento emocional.
Considerando as experiências profissionais dos pesquisadores que versam sobre as
áreas da saúde e da educação, este trabalho tem duas finalidades: 1). apreender como
ocorrem as ações efetivas nas práticas docentes, em cursos de formação profissional
para a enfermagem ou técnico de enfermagem, no que se refere ao debate, discussão e
problematização do desenvolvimento desta síndrome nos profissionais da saúde e; 2).
verificar a presença, ou não, da síndrome de burnout em uma equipe de saúde que atua
em uma UTI neonatal. Cabe salientar que os profissionais da saúde são considerados
grupo de risco favorável, pela especificidade do trabalho, a desenvolver burnout. E
sob essa perspectiva, questiona-se a função social dos docentes formadores destes
profissionais.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O médico brasileiro, Dráuzio Varella (2016), informa que a síndrome de Burnout, ou
síndrome do esgotamento profissional, é:
um distúrbio psíquico descrito em 1974 por Freudenberger, um médico americano.
O transtorno está registrado no Grupo V da Classificação Estatística Internacional
de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10). Sua principal característica
é o estado de tensão emocional e estresse crônico provocado por condições de
trabalho físicas, emocionais e psicológicas desgastantes. A síndrome se manifesta
especialmente em pessoas cuja profissão exige envolvimento interpessoal
direto e intenso. Profissionais das áreas de educação, saúde, assistência social,
recursos humanos, agentes penitenciários, bombeiros, policiais e mulheres
O presente estudo é balizado pela assertiva deste médico quando associa a síndrome
de Burnout especialmente aos profissionais das áreas de saúde e educação. Alguns dos
sintomas associados a esta síndrome são a sensação de esgotamento físico e emocional
que se reflete em atitudes negativas, como ausências no trabalho, agressividade,
isolamento, mudanças bruscas de humor, irritabilidade, dificuldade de concentração,
lapsos de memória, ansiedade, depressão, pessimismo, baixa autoestima (VARELLA.
2016, s/p). Corroborando com estas ideias, Harrison (1999), assevera que o burnout
é um tipo de estresse de caráter duradouro vinculado às situações de trabalho,
sendo resultante da constante e repetitiva pressão emocional associada ao intenso
envolvimento com pessoas por longos períodos de tempo.
Frente a este contexto, entende-se que a atuação de professores em escolas de formação
destes profissionais, tem um papel fundamental para a problematização e divulgação
desta síndrome. O conhecimento das causa e consequências de burnout poderá ajuda o
profissional a ficar atento aos sintomas e buscar atenção médica ainda no início de seu
desenvolvimento. Segundo os estudos do professor Nóvoa (2001, apud VEIGA, 2014),
a formação de professores deve estar marcada pelo princípio da responsabilidade
social o que é corroborado pelo professor Frigotto quando afirma que “a educação e a
formação humana serão determinadas pelas necessidades e as demandas do processo
de acumulação de capital sob as diferentes formas históricas de sociabilidade que
assumem” (FRIGOTTO, 1999, p. 30). Desse modo, entende-se que os sistemas de ensino
têm a função social de dialogar com a sociedade a fim de estabelecer conexões entre a
educação e o trabalho. Ou seja, as instituições de formação de profissionais da saúde,
neste caso especificamente a de formação de enfermeiros e técnicos, devem sempre
que possível, interagir/problematizar as relações que se estabelecem entre o mundo
acadêmico-científico e a sociedade do trabalho.
De acordo com estudos de Rissardo e Gasparino (2013), a Enfermagem foi classificada,
pela Health Education Authority, como a 4ª profissão mais estressante no setor público,
devido ao constante contato com doenças, o que expõe os profissionais a fatores de risco
de natureza física, química, biológica e psíquica. Lidar com o afetivo e o emocional, dos
pacientes e de seus familiares tem sido um desafio constante para os profissionais da
saúde. Por vezes, estes desafios acabam por interferir no psíquico dos profissionais o
que, por conseguinte, pode desenvolver a síndrome de Burnout.
Trabalhar em um ambiente onde o risco de morte dos pacientes é uma possibilidade
real, torna as relações interpessoais mais volúveis a interferências psicoemocionais.
Castro e Zanelli (2007) corroboram com esse pressuposto quando afirmam que, além
das relações psicoemocionais, os profissionais da saúde ainda agregam um número
exorbitante de procedimentos complexos, bem como lidam com a falta de recursos
humanos e materiais, o que acaba por acarretar estresse laboral, que caso venha se
prolongar pode desencadear a síndrome de Burnout.
Considerando as possibilidades de prevenção do desenvolvimento desta síndrome,
pressupõe-se que a formação dos profissionais da saúde requer uma constante
problematização dos fatores que favorecem esse adoecimento dos profissionais.
Para analisar a incidência da síndrome no seu conjunto (as três dimensões agrupadas)
foram seguidos os critérios apresentados por Moreira et al. (2009, p. 1561) citando
Ramirez et al. (1996) e Grunfeld et al. (2000) que definem o acometimento pelo Burnout
quando se encontram altas pontuações em cansaço emocional e despersonalização e
baixas pontuações na subescala realização pessoal. Apresenta-se na Tabela 1 o padrão
de pontuação para diagnóstico das dimensões da síndrome de Burnout realizado por
meio do instrumento MBI.
2. Os resultados alcançados
2.1 Os sujeitos pesquisado da equipe de saúde
Apresenta-se na Tabela 1 os dados oriundos da aplicação do questionário para a equipe
de enfermagem, composta por enfermeiros, técnicos e auxiliares, dos 3 plantões
distintos ocorridos no diurno e no noturno da UTI neonatal. Importa registrar que
todos os profissionais participantes da pesquisa eram do sexo feminino.
Pelo exposto na Tabela 1 apreende-se que a maioria (61%) das profissionais é casada. Em
segundo lugar está o grupo das mulheres solteiras (20%) seguidas das divorciadas (11%).
Apenas 2 mulheres se declararam viúvas, o que representa um percentual de 3,7% do
total das servidoras. Dentre estas profissionais, a incidência para o Burnout foi observada
em duas dimensões diferenciadas, sendo a primeira referente ao percentual de 52,63%
das casadas que apresentavam a incidência em Burnout, predominando o aspecto do
Cansaço Emocional (CE), a segunda dimensão diz respeito a 62,5% das profissionais
solteiras, viúvas e divorciadas que em Burnout, estavam com incidência elevada em
Realização Pessoal (RP). Magnabosco et al (2009) assevera que relacionamentos estáveis
somados à presença de filhos contribuem para o equilíbrio da vida profissional e na
busca de estratégias de enfrentamento de situações de conflito e dos agentes estressores
ocupacionais. Desse modo, entende-se que uma situação civil estável pode dificultar
e/ou impedir a manifestação da síndrome. Por outro lado, as viúvas ou solteiras são
mais suscetíveis ao acometimento de Burnout. Contudo, ressalta-se que as dimensões
de burnout se apresentam de forma diferenciada em ambos os grupos. Ou seja, nas
casadas predominam o Cansaço Emocional e nas demais o acometimento refere-se
à dimensão da Realização Pessoal. Com efeito, registra-se que esses dados não são
universais e referem-se aos sujeitos desta pesquisa.
A maioria (59,76%) destas mulheres encontra-se na faixa etária de 31 a 40 anos. A incidência
da síndrome de Burnout neste estudo aponta que todas 05 profissionais de faixa etária
entre 20 a 30 anos de idade, estão acometidas pela síndrome com ênfase nos aspectos
relacionados às dimensões de Realização Pessoal (60%) e Despersonalização (40%).
O desencadeamento da síndrome está proporcionalmente relacionado ao tempo
de trabalho em horas de trabalho semanal, quanto maior a jornada de trabalho do
profissional maior a incidência da síndrome; neste determinado grupo o público com
carga horária de 42 horas semanais apresentou incidência para a síndrome de 83%; 48
horas de jornada de trabalho 100%; e acima de 60 horas 80%.
Em relação aos cuidados com a saúde física, a incidência de acometimento pela síndrome
foi mais elevada no grupo (66%) das profissionais que não realizam atividade física,
destacando a incidência para a dimensão cansaço emocional. Embora 21 profissionais
informassem realizar atividade física, 12 (57%) estão com incidência elevada para a
dimensão realização pessoal. Para Machado et al. (2011) a realização de atividade física por
parte do profissional comporta como um fator de proteção em relação ao desenvolvimento
da Síndrome, sobretudo, em relação à Despersonalização e Realização Pessoal.
Em relação ao tempo de serviço desempenhado na função pelas profissionais e a
incidência do burnout, apreende-se que a proporção é inversa, quanto menor o tempo
de serviço desempenhado na função, maior a incidência da síndrome. Profissionais
com tempo de serviço dentre 1 a 5 anos a incidência é de 60,71%; profissionais com
tempo de serviço dentre 5 a 10 anos a incidência é de 57,14%; profissionais com tempo
de serviço superior a 10 anos a incidência é de 33,33%. Para Rosa e Carlotto; (2012)
as pessoas ainda em formação profissional com menor tempo de serviço no setor e
jovens tem maior propensão à Síndrome, o público pesquisado comprova o que afirma
a literatura.
A equipe investigada é composta de 19 profissionais com curso superior, sendo que
12 destes são enfermeiros supervisores, graduação necessária para atuar na função.
As outras 7 profissionais que possuem curso superior atuam como técnicas em
enfermagem. Dentre as 7 técnicas que possuem graduação 5 possuem uma incidência
para a Síndrome de Burnout. A atuação profissional divergente com a formação
Tais depoimentos foram seguidos de comentários como: “Olá! Trabalho há 20 anos na área
e sei muito bem como é esta situação, é deplorável”; “A mais pura verdade. Eu trabalhei 20 anos
e sei tudo que passa uma auxiliar de enfermagem”; “Estão precisando fazer estudo pra constatar
isso? E o resultado deve ser 4 exaustos para um que trabalha bem”; “Eu me encontro bem assim
desestimulada a cada dia q passa, sofrida, doente cobrança atrás de cobrança sem salário, sem vida.
Assim me sinto”; “São mal pagos, tratados com desrespeito por alguns pacientes e as vezes são
demitidos por uma simples bobagem porque não são reconhecidos pelos seus próprios esforços”;
“Enfermagem profissão de risco”.
INTRODUÇÃO
Na perspectiva de refletir criticamente sobre o cenário político, social e econômico do
Brasil, este trabalho busca analisar os impactos da PEC1 241 no que tange o processo
de formação dos professores da rede pública para implementação e efetivação da
Lei 10.639/2003, que mesmo completando 13 anos, ainda tem muitos desafios para se
materializar de fato.
Vale destacar que a PEC 241/2016 é uma proposta do atual Presidente Michel Temer que
tem como foco o “Novo Regime Fiscal”, buscando com tal medida o controle de despesas,
definindo normas que limitam o aumento de gastos públicos. Conforme destaca o art. 2º
da referida PEC: “Será fixado, para cada exercício, limite individualizado para a despesa
primária total do Poder Executivo, do Poder Judiciário, do Poder Legislativo, inclusive
o Tribunal de Contas da União, do Ministério Público da União e da Defensoria Pública
da União”.
Segundo a Proposta de Emenda à Constituição:
Um desafio que se precisa enfrentar é que, para sair do viés procíclico da
despesa pública, é essencial alterarmos a regra de fixação do gasto mínimo
em algumas áreas. Isso porque a Constituição estabelece que as despesas com
saúde e educação devem ter um piso, fixado como proporção da receita fiscal.
É preciso alterar esse sistema, justamente para evitar que nos momentos de
forte expansão econômica seja obrigatório o aumento de gastos nessas áreas
e, quando da reversão do ciclo econômico, os gastos tenham que desacelerar
bruscamente. Esse tipo de vinculação cria problemas fiscais e é fonte de
ineficiência na aplicação de recursos públicos. Note-se que estamos tratando
aqui de limite mínimo de gastos, o que não impede a sociedade, por meio de
seus representantes, de definir despesa mais elevada para saúde e educação;
desde que consistentes com o limite total de gastos.
Como podemos observar, o governo entende os gastos públicos com saúde, educação
(assim, como outros), como um dispêndio de capital, não considerando tais medidas
como investimento para o desenvolvimento socioeconômico brasileiro.
Para discutirmos mais detalhadamente sobre os impactos da PEC 241 no que tange a
Lei 10.639/2003 temos como aparato metodológico a pesquisa bibliográfica, assim como
a pesquisa documental junto às fontes on line disponibilizados via os sites oficiais.
Com o intuito de realizar uma discussão simples e didática, esse estudo foi dividido
na seguinte estrutura: 1) Uma breve apresentação sobre a o desenho Político da Lei
10.639/2003; 2) Análise sobre a PEC 241 e seus possíveis reflexos no que tange educação
brasileira, em especial a efetivação da supracitada lei. Por fim, teceremos algumas
considerações relacionadas a conjuntura política brasileira e o desmantelamento dos
direitos sociais adquiridos com a luta da classe trabalhadora, acadêmica e militante de
diferentes movimentos sociais.
1 PEC – Proposta de Emenda à Constituição. Embora não seja o objetivo deste trabalho discorrer sobre o processo legislativo previsto
a partir do artigo 59 da Constituição da República Federativa do Brasil, é importante esclarecer que as emendas à Constituição
consistem nas reformas do próprio texto constitucional, de grande ou pequeno alcance, promovendo-lhe adições, supressões ou
mesmo modificações.
2 Guimarães (2002, p. 165) anota que esse mito se esgota como discurso acadêmico, ainda que, como discurso político, sobreviva
com alguma eficiência. O autor constrói sua abordagem sobre o tema da democracia racial numa tríplice perspectiva: o ideal, o pacto
e o mito.
3 O artigo “Caloura Chica da Silva” está disponível em http://www.editorajc.com.br/2013/08/caloura-chica-da-silva/ Acesso em
02 de dezembro de 2016.
4 No seu art. 1º, o Projeto de Lei fixava que nos estabelecimentos de ensino de 1º e 2º graus, oficiais e particulares, se tornava
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. No § 1º determinava que o conteúdo programático relacionado ao
art. 1º incluiria o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
História do Brasil. No § 2º determinava que os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira seriam ministrados no
âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e de História Brasileiras. No § 3º fixava
que as disciplinas História do Brasil e Educação Artística, no ensino de 2º grau, deveriam dedicar pelo menos 10% de seu conteúdo
programático anual ou semestral à temática referida naquela lei então proposta. No seu art. 2º, o Projeto de Lei fixava que os cursos
de capacitação para professores deveriam contar com a participação de entidades do movimento afrobrasileiro, das universidades e
de outras instituições de pesquisa pertinentes à matéria. No seu art. 3º, o Projeto de Lei fixava que o calendário escolar deveria incluir
o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. O art. 4º do projeto fixava que a lei entraria em vigor na data da
sua publicação e o art. 5º fixava a revogação das disposições em contrário.
utilizado pelos alunos. Segundo a visão dos congressistas5, o sistema oficial de ensino,
cada vez mais, apresenta-se como um dos principais veículos de sustentação do racismo.
Para o relator, em boa hora surgia a iniciativa do legislador ordinário, que certamente
servirá para que num futuro próximo, nas suas palavras, a civilização negra deixe de
ser discriminada, permitindo-lhe usufruir seus direitos, em igualdade de condições
com outras raças. Do seu voto, destaca-se:
Em boa hora surgiu esta iniciativa do legislador ordinário que certamente servirá
para que num futuro próximo, a civilização negra deixe de ser discriminada,
permitindo-lhe usufruir seus direitos, em igualdade de condições com
outras raças. Só assim, creio que o negro possa vir a ter maior integração na
sociedade brasileira, buscando oportunidades de ascender com desenvoltura
a cargos importantes no contexto político, destinado ao exercício dos poderes
governamentais federal, estadual e municipal.
Para a concretização desse ideal, antes de tudo, urge que se resgate a cidadania
do negro.
O projeto em tela, indubitavelmente, persegue esse objetivo.
O “Dia Nacional da Consciência Negra”, convencionado na data de 20 de
novembro, retrata a luta incessante do negro, na busca da igualdade, da
liberdade e da cidadania.
No dizer do ilustre sociólogo e ex-Deputado Federal Florestan Fernandes,
“portanto, trata-se de uma consciência que os psicólogos e sociólogos chamariam
de diferenciada, porque ela é diferente da consciência indígena, da consciência
daqueles pobres que não carregam a marca visível da estigmatização negra. E
ela traduz a disposição do negro de ser ele próprio e não o branco o autor de sua
auto-emancipação coletiva...”
Mais adiante, acrescenta o inesquecível mestre, “a igualdade e a liberdade
não são tributos apenas dos privilegiados. A Constituição não institui esses
princípios para uma categoria restrita de pessoas, mas para todos os cidadãos
brasileiros. Entendo que está em jogo a cidadania do negro, como também a
do indígena e de todos aqueles que são excluídos, humilhados e ofendidos. E,
arremata: trata-se de dizer que o negro, como membro de classe, como membro
da raça, precisa dispor na sociedade brasileira de um espaço intelectual para se
desenvolver e para ter os seus talentos aprovados e chegar ao lugar de vultos
5 Do Diário da Câmara dos Deputados, datado de 20 de março de 1999, é extraída a justificativa oficial: Este projeto de lei,
originalmente de autoria do Deputado Humberto Costa procura criar condições para implantação de um currículo na rede oficial de
ensino que inclua o ensino de História da Cultura afro-brasileira, visando a restauração da verdadeira contribuição do povo negro
no desenvolvimento do país, ressalvando o fato de que a sociedade dominante discrimina e inferioriza o povo negro em relação ao
chamado SABER UNIVERSAL. É urgente e necessário desmistificar o eurocentrísmo, neste momento em que se quer repensar um
novo modelo de sociedade em que todos não somos apenas brancos, como quer fazer crer o livro didático imposto aos estudantes
nas escolas. Podemos captar, compreender os mecanismos de funcionamento que excluem a verdadeira história do povo negro,
discriminado e excluído nas escolas e nos livros, alertando os responsáveis pela produção de livros didáticos, bem como professores
e alunos vítimas destas distorções e omissões das instituições de ensino. A educação é um dos principais instrumentos de garantia do
direito de cidadania. Por isso torna-se imprescindível que o Estado assuma o compromisso político de reconstrução dos currículos
escolares, adequando-os à realidade étnica brasileira para responder aos anseios dos diferentes segmentos da população. O que se
vê, porém, é que o sistema oficial de ensino, cada vez mais, apresenta-se como um dos principais veículos de sustentação do racismo,
distorcendo o passado cultural e histórico do povo negro. Assim, torna-se imperioso e de fundamental importância que se resgate
a história do povo negro, reformulando o currículo escolar nas suas deformações mais evidentes, que impedem a aproximação
do negro da sua identidade étnica. E também que se desenvolvam programas de conscientização de todos os agentes envolvidos
no processo de educação, para que a escola promova uma educação sem complexos, enriquecida de um senso antropológico,
contribuindo para a criação de uma sociedade em que todos tenham direitos e possam gozar das mesmas oportunidades, seja no
plano social, econômico e político na Nação. A discriminação racial nas escolas públicas manifesta-se no momento em que os agentes
pedagógicos não reconhecem o direito à diferença e acabam mutilando a particularidade cultural de um importante segmento da
população brasileira que é discriminado nas salas de aula, nos locais de trabalho e na rua, não apenas por aquilo que é dito, mas,
acima de tudo, pelo que é silenciado. O Brasil é, fundamentalmente, um país de formação pluriétnica e multicultural. Mas o povo
negro ocupa posições subalternas em relação à classe dominante, que considera a cultura afro-brasileira inferior e primitiva, sob a
ótica e os parâmetros da cultura branca, que exclui dos currículos escolares e dos livros didáticos a verdadeira contribuição do povo
negro na história e no desenvolvimento da cultura do país.
O relatório foi publicado no dia 16 de agosto de 1999 e o Projeto de Lei nº 259/99 foi
aprovado por unanimidade pela Comissão de Educação e Cultura (CEC) na reunião
realizada no dia 17 de agosto de 1999, nos termos do voto do relator. Em 19 de agosto
de 1999 o referido projeto foi encaminhado para a Comissão de Constituição e Justiça
e Cidadania (CCJC), tendo sido designado relator, em 24 de abril do ano seguinte, o
Deputado Federal André Benassi.
Entendeu o relator que no que se referia à constitucionalidade estavam obedecidos
os preceitos constitucionais pertinentes à competência da União para legislar sobre o
assunto nele tratado, consoante o disposto no art. 22, inciso XXIV6, 24, inciso IX7, 48,
caput8, e 215, § 2º9, da Constituição Federal. Quanto aos demais aspectos, entendeu
que nada obstava a tramitação do projeto, devendo-se, apenas, proceder à supressão
da cláusula de revogação genérica, por via de emenda, a fim de adequar o projeto aos
termos da Lei Complementar nº 95, de 199810. O relator concluiu seu voto no sentido da
constitucionalidade, juridicidade e boa técnica legislativa do Projeto de Lei 259-A, de
1999, nos termos da emenda supressiva apresentada.
A Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, em reunião ordinária no dia 8
de novembro de 2001, opinou unanimemente pela constitucionalidade, juridicidade e
técnica legislativa, com emenda, do Projeto de Lei n° 259-A/99, nos termos do parecer
do Relator, Deputado André Benassi. Nesta mesma data, ocorreu movimentação
no âmbito da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, sendo realizada a leitura e
publicação dos pareceres exarados pelas comissões já mencionadas. Transcorridos os
prazos recursais, o projeto foi encaminhado para a redação final, novamente sob a
responsabilidade da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Foram
acolhidas emendas de redação visando à substituição no caput do art. 1º a expressão
“ensino de 1º e 2º graus” por “ensino fundamental e médio” e a substituição no § 3º do
art. 1º do projeto a expressão “ensino de 2º grau” por “ensino médio”, ambas adequando
os dispositivos à Lei 9394/96 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
A redação final foi aprovada em 12 de março de 2002, sendo então o projeto remetido
ao Senado Federal no dia 5 de abril do mesmo ano. Em 10 de janeiro de 2003, o projeto
é transformado na Lei 10.639/2003.
6 Compete privativamente à União legislar sobre: diretrizes e bases da educação nacional, conforme o art. 22, inciso XXIV, da
CRFB/88.
7 Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: educação, cultura, ensino e desporto,
conforme o art. 24, inciso IX, da CRFB/88.
8 Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52,
dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:, conforme o art. 48, caput, da CRFB/88.
9 A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais, conforme
o art. 215, § 2º, da CRFB/88.
10 Segundo o art. 9º da referida lei indicada pelo relator, a cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou
disposições legais revogadas, o que não havia ocorrido no Projeto de Lei.
É neste contexto político que a Lei 10.639/03 altera a LDB 9.394/1996 em seu art.
26, que passa a vigorar acrescida dos Artigos 26-A e 79-B. Esses artigos se referem,
respectivamente, à obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira,
em especial nas áreas de Educação Artística, Literatura e História, nas escolas do ensino
fundamental e médio, públicas e particulares, e à inclusão do dia 20 de Novembro no
calendário escolar. O conteúdo a ser ministrado envolve o estudo da História da África
e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na
formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil. (BRASIL, 2003).
Com o propósito de dar suporte à implementação da Lei 10.639/2003 as “Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”11 aponta aspectos e princípios que
orientam ações voltadas para (a) a valorização da história e cultura dos afro-brasileiros
e dos africanos, e para (b) a educação de relações étnico-raciais positivas.
De forma simples e objetiva, esses aspectos e princípios são: (a) a História da África; o
papel dos anciãos e griots na preservação da memória histórica; a religiosidade africana;
as grandes civilizações e suas contribuições para o desenvolvimento da humanidade; o
tráfico e a escravidão do ponto de vista dos escravizados; o colonialismo na perspectiva
dos africanos; as lutas pela independência política dos países africanos; as relações entre
a história e a cultura dos povos do continente africano e os da diáspora; a participação
dos africanos e de seus descendentes na construção econômica, social e cultural da nação
brasileira; a participação dos negros em diferentes áreas do conhecimento, de atuação
profissional, artística e de luta social; a história dos quilombos e de remanescentes de
quilombos; as manifestações culturais, etc.; (b) a desconstrução de conceitos, ideias,
comportamentos, mentalidades racistas e discriminatórias; a superação da indiferença,
injustiça e desqualificação com que os negros são comumente tratados, etc. (BRASIL, 2005).
A formação de professores mostra-se, portanto, imprescindível para a abordagem
da história e cultura afro-brasileira, para a elaboração de estratégias pedagógicas
que viabilizem as práticas educativas antirracistas e para a promoção da reeducação
de posturas e valores no sentido de relações positivas entre sujeitos de diferentes
pertencimentos étnico-raciais.
2. A LEI Nº 10.639 e uma análise reflexiva sobre a PEC 241
Para proporcionar uma reflexão sobre a dimensão da importância e das dificuldades
enfrentadas no processo de implementação e efetivação das propostas da Lei nº 10.639
é importante enfatizar que a emergência de políticas sociais afirmativas orientadas
para a raça, especialmente no campo da educação, é provavelmente a causa principal
da crescente importância dada aos estudos que unem os temas raça e educação nas
Ciências Sociais brasileiras nas últimas décadas, tanto no ponto de vista político quanto
social (BARBOSA, 2005). Na concepção de alguns autores, tais políticas, originárias
de terras estrangeiras, teriam o efeito de ferir a singularidade das relações raciais no
Brasil. Para outros, tais medidas sinalizam para a possibilidade de reversão do quadro
histórico de desigualdades entre os grupos raciais no país (SILVA, A.P. et al, 2009, p.23).
11 Parecer CNE/CP 3/2004, aprovado em 10/03/2004.
1. INTRODUÇÃO
A transparência Fiscal é um princípio contemporâneo da administração pública
que tem gerado debates sobre seu conceito e atraído muita atenção, tanto nos meios
acadêmicos quanto da opinião pública.
O conceito de transparência está associado à divulgação de informações por parte dos
governos para atores internos e externos e sua consequente utilização como instrumento
de responsabilização (accountability) dos agentes públicos quando estes adotam algum
procedimento inadequado ao bom uso dos recursos públicos (LOUREIRO, TEIXEIRA
E PRADO, 2008).
Dessa forma, a transparência na administração pública pode ser entendida como a
gestão dos assuntos públicos para o público, de maneira que se tenha acesso às decisões,
que se saiba o que elas representam, como são tomadas e o que se ganha ou se perde
com elas (BIRKINSHAW, 2006).
A transparência cumpre a função de aproximar o Estado brasileiro e a sociedade,
ampliando o nível de acesso do cidadão às informações sobre a gestão pública,
independente de iniciativa por parte da sociedade civil, devendo abranger todas as
áreas de atuação do Estado.
Nesse sentido, quanto maior os recursos disponibilizados a uma área de atuação, maior
a responsabilização dos gestores em efetivar a transparência dos atos praticados por
eles (BAIRRAL, SILVA e ALVES, 2015). Isso porque o direito do cidadão não se limita a
fiscalizar a regularidade na gestão pública, mas também verificar se a destinação dos
recursos, além de lícita, tem sido adequada, razoável, moral e eficiente.
Esta pesquisa objetivou analisar a Transparência Fiscal e Controle Social na aplicação
dos recursos do Programa Dinheiro Direto na Escola-PDDE na Escola Estadual de
Caraí, localizada no município de Caraí-MG.
A Escola Estadual de Caraí, recebe alunos do 5º ao 9º ano, bem como do ensino médio,
além de implementar diversos programas voltados para a educação de jovens e adultos,
atividades esportivas e culturais, utilizando, como uma das principais fontes de
financiamento, os recursos repassados pelo PDDE, sendo este um programa criado em
1995 com finalidade prestar assistência financeira, em caráter suplementar, às escolas
públicas da educação básica das redes estaduais, municipais e do Distrito Federal, e
às escolas privadas de educação especial mantidas por entidades sem fins lucrativos,
registradas no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) como beneficentes de
assistência social, ou outras similares de atendimento direto e gratuito ao público.
A coleta de dados se deu pela aplicação de entrevista estruturada à comunidade escolar
da E.E. de Caraí. Entrevistou-se ao todo 47 pessoas, sendo: 34 professores, 5 ocupantes
de cargos de direção, 3 gestores das Caixa Escolar, 3 membros do Colegiado/Conselho
Fiscal e 2 pais que participam dos conselhos.
O roteiro de entrevista foi dividido em duas partes. A primeira contendo questões em
escala Likert como apresentado no Quadro 1:
A segunda parte foi composta por questões abertas que permitiram maior liberdade de
resposta aos entrevistados.
2. A TRANSPARÊNCIA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
A transparência surgiu, inicialmente como uma forma de complementação ao princípio
constitucional da Publicidade, que foi conceituado na Constituição Federal de 1988,
principalmente no inciso XXXIII do parágrafo 5º.
Entretanto, a transparência vai além dos atos de publicidade, ultrapassando os limites
da linha legal e fiscal, abrangendo desempenho, controles internos, documentos
públicos, as ações dos agentes públicos, bem como os instrumentos que possibilitam
essa transparência de maneira clara e facilitada aos interessados, principalmente ao
cidadão, seja via relatórios fiscais, portais eletrônicos de transparência, relatórios de
gestão anuais, etc. (SILVA, 2009).
O tema da transparência da informação pública ganhou maior relevância, no Brasil, a
partir da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal — transparência
na gestão fiscal) e, desde então, outras leis como a Lei Complementar no 131/2009 — Lei
da Transparência, que obriga a disponibilização, em tempo real, de informações públicas
como: receita, despesa, salário dos servidores públicos, convênios e outros, nos portais
eletrônicos nas várias esferas governamentais, foram sendo elaboradas no intuito de
garantir e otimizar o acesso às informações (BAIRRAL; SILVA e ALVES, 2015).
Nesse contexto, foi sancionada em 2011 a Lei de Acesso a Informação (LAI) - (lei nº
12.527, de 18 de novembro de 2011), que trouxe atualizações significantes quanto à
disponibilização de informações por parte dos órgãos públicos aos cidadãos.
Já em seu §3º, essa lei deixa claro qual o seu objetivo e contribuição no que se refere à
transparência das informações públicas:
Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito
fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade
com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:
I. observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção;
II. divulgação de informações de interesse público, independentemente de
solicitações;
III. utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da
informação; IV fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na
administração pública;
V. desenvolvimento do controle social da administração pública (BRASIL, 2011).
Nesse sentido, cabe aos Órgãos Públicos e entidades do poder público: assegurar a gestão
transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação; a proteção
da informação, garantindo sua disponibilidade, autenticidade e integridade; a proteção
da informação sigilosa e da informação pessoal, observada a sua disponibilidade,
autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso (BRASIL, 2011).
Para Bairral, Silva e Alves (2015), essas leis regulamentaram e garantiram o direito do
cidadão à informação pública, iniciando um ciclo de mudanças na relação cidadão/
gestor público, pois determinaram a divulgação (ativa ou via solicitação), e não o sigilo,
como norma geral para a informação pública, envolvendo o fornecimento de dados em
uma linguagem acessível e sem barreiras técnicas.
Dessa forma, uma gestão transparente baseia-se no fornecimento adequado de
informações compreensíveis aos cidadãos, facilitando o acesso e a efetiva participação
no governo.
O Art. 8º da Lei de Acesso a Informação - LAI (2011), veio garantir esse direito ao
enfatizar que “é dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de
requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências,
de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas”.
Os mecanismos ou instrumentos de transparência são essenciais para garantir a
qualidade e tempestividade dessas informações.
Conforme a Lei de Responsabilidade Fiscal- LC 101/00:
Art. 48. São instrumentos de transparência da gestão fiscal, aos quais será
dada ampla divulgação, inclusive em meios eletrônicos de acesso público: os
planos, orçamentos e leis de diretrizes orçamentárias; as prestações de contas e
o respectivo parecer prévio; o Relatório Resumido da Execução Orçamentária
e o Relatório de Gestão Fiscal; e as versões simplificadas desses documentos.
Parágrafo único. A transparência será assegurada também mediante incentivo
à participação popular e realização de audiências públicas, durante os processos
de elaboração e de discussão dos planos, lei de diretrizes orçamentárias e
orçamentos (BRASIL, 2000).
Classificação Modalidade
Jornais, revistas, outdoors, cartazes, folhetos, murais,
Meios impressos cartilhas e Diário Oficial.
Página do município, Links e banners em páginas de
Via Internet interesse social do município, e-mails para cidadãos que se
cadastrarem e formação de grupos de discussão.
Meios Presenciais Reuniões comunitárias e audiências públicas.
Televisão e Rádio Horário eleitoral, publicidade e pronunciamentos oficiais.
Painéis eletrônicos na rua e em prédios públicos, cartilhas de
Meios Inovadores cidadania nas escolas (em todos os níveis de ensino).
Fonte: adaptado de Ensslin, et al 2007.
Rausch e Soares (2010) explicam que, ao considerar o sentido mais simples do que vem a
ser participar, ou seja, tomar parte, pode-se afirmar que os gestores públicos participam
na Administração Pública porque tomam parte nas ações relativas às suas funções
administrativas tais como: planejar, organizar, dirigir e executar. Quando a sociedade
toma parte em qualquer atividade ela auxilia o Poder Público no cumprimento de
sua missão constitucional de legislar, fiscalizar e administrar, ela está participando e
controlando.
Esse direito de participação do cidadão nos atos públicos vem desde a Constituição
Federal de 1988 que, elaborada sob forte influência da sociedade civil por meio de
emendas populares, definiu a descentralização e a participação popular como marcos
no processo de elaboração das políticas públicas, especialmente nas áreas de políticas
sociais e urbanas (CGU, 2012)
Nesse sentido, o controle social torna-se uma atividade de fiscalização da gestão
pública exercida pelo povo que tem ganhado espaço nas arenas parlamentares, fazendo
incidir o anseio popular na tomada de decisões políticas, exigindo planos de metas dos
governantes, influenciando os marcos regulatórios e a prática do controle institucional,
profissionalizando-o e pressionando-o politicamente (LOUREIRO e TEIXEIRA., 2008).
Cunha (2013) salienta que o efetivo Controle Social depende muito mais de variáveis
culturais e comportamentais que derivam de condições econômicas, sociais e,
principalmente, educacionais. Afirmam, ainda, que o exercício do Controle Social,
por parte do cidadão, acontece através de vários mecanismos, como as instituições
do terceiro setor criadas para fiscalizar os gestores públicos e também com o uso da
internet, um importante instrumento de Transparência nos atos públicos por conferir
velocidade e atualidade no tráfego das informações. O cidadão assume um papel
característico referente ao exercício inibidor de ações irregulares na gestão pública.
Cardoso (2009, p. 220) afirmam que “o controle do aparelho de Estado pelos cidadãos,
dessa forma, seria viabilizado por meio da mensuração de resultados dos serviços e/
ou produtos ofertados pelas instituições públicas em relação à qualidade esperada pela
sociedade”.
Desse modo, para que se exerça o Controle Social, é necessário que se tenha a real
transparência na prestação dos serviços públicos, possibilitando o controle antes, durante
e após a execução dos atos administrativos realizados por cidadãos mais informados,
que conhecem seus direitos e deveres e utilizam as ferramentas disponíveis, podem,
inclusive, desenvolver outras ferramentas que garantam a efetividade dos gastos e
serviços públicos.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
4.1. Transparência na Gestão do PDDE da EE de Caraí
Inicialmente, buscou-se levantar o conhecimento da comunidade escolar quanto ao
conceito de Transparência Pública para analisar a capacidade de entendimento e de
resposta às questões apresentadas nessa pesquisa. Estes resultados são apresentados
na Tabela 1.
In R Rg Bm O Ex
Descrição Total
Professores
Transp arência 2 6 10 12 3 1 34
Direção Total
Transp arência 4 1 5
Caixa Escolar Total
Transp arência 1 1 1 3
Colegiado e Conselho Fiscal Total
Transp arência 1 2 3
Pais Total
Transp arência 2 2
Total Geral 2 9 16 16 3 1 47
Inicialmente, já ocorre uma situação preocupante pois a maioria dos gestores, composta
pelos grupos dos ocupantes de cargo de direção, gestores da caixa escolar como os pais
que participam dos conselhos, classificaram seu conhecimento sobre a transparência
pública como regular ou ruim. Sendo os gestores públicos os principais responsáveis
por promover a transparência, não ter conhecimento sobre essa ferramenta é o primeiro
indício de má qualidade em sua utilização.
Em complemento, apenas 47% do grupo dos professores classificaram seu conhecimento
sobre transparência pública entre bom e excelente. Nesse caso, embora não sejam
agentes públicos gestores dos recursos, não demonstrar conhecimento sobre essa
ferramenta impossibilita, muitas vezes, a cobrança por sua efetivação, assim como a
realização do controle social.
A principal exceção pode ser observada nos membros do colegiado e conselho fiscal,
cujo dois, dos três respondentes, classificaram como bom o seu conhecimento sobre a
transparência pública, enquanto o outro membro o classificou como regular.
Na tabela 2 classificou-se a transparência e análise como o nível de conhecimento
apresentado pela comunidade escolar da EE de Caraí, relacionando-se com a utilização
dessa transparência por essa unidade de ensino em relação aos recursos do PDDE.
Cabe salientar que, durante a entrevista, o diretor afirmou não fazer uso da internet,
televisão e rádio e nem mesmo do E-SIC como instrumento de transparência. Tal
situação foi comprovada pela maioria dos professores, em que a classificação dos
instrumentos eletrônicos de transparência foi apontada como inexistente por 27,6% das
respostas auferidas, além da classificação ruim ou regular apresentada por 18,8% das
respostas deste grupo.
Dessa forma, os gestores da EE de Caraí ficam, ainda, restritos aos meios mais obsoletos
de comunicação como os meios impressos, principalmente aos avisos em murais e aos
presenciais, efetivados nos comunicados realizados nas reuniões.
Todavia, os meios que envolvem qualquer sistema eletrônico de comunicação têm
sido pouco aproveitados. Welsh e Hinnant (2003) concluem que os meios eletrônicos,
principalmente o uso da internet são positivos quando associados com a transparência.
Nesse sentido, a EE de Caraí poderia utilizar esses instrumentos tanto para convidar
a comunidade escolar a participar dos eventos que realiza quanto para exercer a
transparência das informações.
1 O número entre parênteses representa a quantidade de entrevistados do grupo não respondeu à questão.
Por outro lado, é importante que se mantenha a utilização dos meios impressos
e presenciais pois demonstram um outro tipo de contribuição à transparência: a
interatividade entre os gestores e a comunidade escolar.
Os meios eletrônicos são insatisfatórios quando associados com a interatividade,
enquanto os meios presenciais se mostram mais eficazes nesse sentido, aparecendo
como importantes instrumentos de transparência, pois tanto a interatividade quanto a
transparência estão associadas positivamente com a confiança do cidadão nos gestores
(WELSH e HINNANT, 2003).
Entretanto, se atribui a responsabilidade pela inexistência de transparência somente
aos entes públicos, sendo que o cidadão também tem papel importante nesse processo.
Matos, Silva e Magalhães (2015) enfatizam que o cidadão espera sempre por
transparência, mas se mantém inerte, quando também é seu dever mostrar interesse,
buscar as informações e participar da gestão pública.
Tal situação se aplica à comunidade escolar da EE de Caraí, por isso, buscou-se levantar
informações quanto ao interesse que essa comunidade escolar demonstra em buscar as
informações e participar do processo de gestão do PDDE.
In R Rg Bm O Ex
Descrição
Professores Total
Interesse 1 12 11 6 4 34
Cargos Direção Total
Interesse 1 1 1 2 5
Caixa Escolar Total
Interesse 3 3
Colegiado e Conselho Fiscal Total
Interesse 1 2 3
Pais Total
Interesse 2 2
Total Geral 1 16 11 12 5 2 47
In R Rg Bm O Ex
Descrição Total
Professores (1)
Conhecimento 4 8 8 13 33
Cargos Direção Total
Conhecimento 1 2 2 5
Caixa Escolar Total
Conhecimento 1 2 3
Colegiado e Conselho Fiscal Total
Conhecimento 1 1 1 3
Pais Total
Conhecimento 2 2
Total Geral 6 11 11 18 0 0 46
dos professores optaram pelas escalas inexistente, ruim ou regular, sendo este, o grupo
que não tem como função do seu cargo o dever de gerir os recursos recebidos.
Entretanto, é importante que a escola não espere sempre que a comunidade escolar
tome as iniciativas de exercer o controle social. É necessário que os gestores tomem
medidas que venham a incentivar o controle social nesta unidade de ensino.
Nesse sentido, na Tabela 8 buscou-se apresentar as iniciativas, para promover o controle
social, realizadas pela EE de Caraí, bem como, analisar a classificação que a comunidade
escolar atribui a essas iniciativas.
A exceção pode ser percebida na maioria dos gestores da caixa escolar e da classe dos
pais, que classificaram como boas as ferramentas apresentadas.
Conclui-se que o Controle Social na EE de Caraí é exercido, praticamente pelo conselho
fiscal e colegiado. Nesse sentido, torna-se necessário maiores iniciativas por parte da
escola em utilizar novos mecanismos que incentivem o Controle Social. Entretanto,
cabe aos demais membros da comunidade escolar buscar as informações e demonstrar
maior interesse em participar das ações realizadas na EE de Caraí.
5. CONSIDERAÇÔES FINAIS
Este trabalho buscou analisar a transparência fiscal da aplicação dos recursos do PDDE
na Escola Estadual de Caraí/MG. Nesse contexto, observou-se que a rotatividade dos
servidores nos conselhos, cargos de gestão e direção é fator importante na disseminação
das informações sobre o PDDE nesta unidade de ensino, por possibilitar interação e
maior conhecimento sobre o programa.
A transparência na utilização dos recursos do PDDE é a primeira e mais importante
ação a ser realizada pela administração pois, esta, se apresenta como a principal fonte
de informação, no sentido de instrumentalizar o controle social a ser exercido pela
comunidade escolar, fortalecendo o processo democrático na unidade escolar.
Considera-se, entretanto, que existe a necessidade de aperfeiçoamento por parte dos
gestores quanto ao conceito de transparência e instrumentos disponíveis para utilização
e aplicação desse princípio na unidade escolar.
A existência de pouco conhecimento sobre a transparência além de dificultar a
sua efetivação, limita a capacidade dos gestores de identificar as necessidades
de aperfeiçoamento na utilização dos instrumentos para promovê-la, a seleção
eficiente de informações que necessitam ser disponibilizadas, além de aumentar a
probabilidade de confusão entre os princípios da transparência e da publicidade na
administração pública.
Observa-se que a utilização de variados instrumentos de transparência pode trazer
maior confiabilidade nos atos da administração, sendo os meios eletrônicos mais
eficientes quanto a abrangência e alcance geral das informações disponibilizadas
enquanto os meios presenciais apresentam maior contribuição no que se refere à
interatividade entre os gestores e os membros da comunidade escolar.
Nesse sentido, a utilização de ferramentas como os canais de rádio e televisão, a internet
e a criação de um Sistema Eletrônico de Informação ao Cidadão (eSIC) contribuiria
para uma maior participação da comunidade escolar nas etapas de gestão do PDDE na
EE de Caraí, evitando que a transparência seja percebida apenas por partes isoladas
dentro da unidade de ensino.
É importante acrescentar que, embora a responsabilidade dos gestores promova a
efetivação da transparência, o interesse apresentado pela comunidade escolar tem
papel decisivo na eficácia deste princípio, pois cabe aos demais membros da escola
fazer uso das informações disponibilizadas para exercer o Controle Social sobre os atos
praticados pelos gestores.
Salienta-se que a EE de Caraí pode promover mais ações que incentivem o controle
social na unidade escolar, mas que a transparência e o interesse da comunidade
escolar em conhecer e colocar em prática essa ferramenta são os principais fatores que
permitem sua concretização.
É importante salientar que a efetivação ou não da Transparência depende da gestão
que a realiza. Desta forma, sendo a gestão atual da EE de Caraí ainda recente, a
transparência na unidade escolar encontra-se em fase de implementação, necessitando,
portanto, de futuras adequações.
REFERÊNCIAS
BAIRRAL, Maria Amália da Costa; SILVA, Adolfo Henrique Coutinho e; ALVES,
Francisco José dos Santos. Transparência no setor público: uma análise dos relatórios de
gestão anuais de entidades públicas federais no ano de 2010. Anais. XXXVII Encontro
da ANPAD - EnANPAD — Rio de Janeiro, 7 A 11 setembro de 2013.
BIRKINSHAW, P. (2006). Freedom of information and openness: fundamental human
rights. Administrative Law Review, 58 (1), 177-218.
BRASIL. Lei de Acesso à Informação – LAI. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011.
Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º
do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de
dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no
8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.
______. Lei de Responsabilidade Fiscal. Lei Complementar Federal nº 101 de 04 de
maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade
fiscal e dá outras providências.
CARDOSO, José Carlos Martins. O PDDE como instrumento de democratização da
gestão escolar no Pará _ 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade
Federal do Pará, Instituto de Ciências da Educação, Programa de Pós-Graduação em
Educação, Belém, 2009.
CGU. Cartilha Olho Vivo no Dinheiro Público: um guia para o cidadão garantir os
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CUNHA, Sheila Santos. O Controle Social e seus Instrumentos. Salvador, 2013. Disponível
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Acesso em: 02 mar. 2016.
DEMO, Pedro. Participação é conquista. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1999.
MATOS, Ervânio Fernandes; SILVA, Simão Pereira da; MAGALHÃES, Elizete Aparecida
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uma síntese em Minas Gerais. Anais. XXXIX Encontro da ANPAD, Belo Horizonte, 2015.
MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO DE JANEIRO-MPRJ. Controle Social na Educação:
Gestão Democrática e Conselhos. Centro de Apoio Operacional às Promotorias de
Justiça de Tutela Coletiva de Proteção à Educação – CAO Educação: Rio de Janeiro, 2013.
INTRODUÇÃO
Bullying é um termo que significa intimidar alguém. Em outras palavras, perseguir,
incomodar ou prejudicar outra pessoa, causando dano e medo de forma repetida ao
longo do tempo. Tem origem na palavra inglesa bully, que significa valentão, brigão.
Mesmo sem uma denominação em português, é entendido como ameaça, tirania,
opressão, intimidação, humilhação e maltrato. Pode acontecer em qualquer contexto,
como escolas, universidades, famílias, vizinhança, meios de transporte, locais de
trabalho, uso da tecnologia e da Web. Seja onde for, este tipo de conduta não deve ser
tolerada. O bullying é um problema grave, principalmente nas escolas, e precisa ser
combatido. É importante que a família e a escola conheçam as causas e as consequências
deste fenômeno para preveni-lo e detê-lo.
Este trabalho objetiva analisar como uma escola situada em Nova Iguaçu, cidade do
Rio de Janeiro, lida com a violência e com os problemas que surgem dela bem como
verificar se existem ações, nesta escola, voltadas para o combate ao bullying. A pesquisa
baseou-se em um levantamento de dados que passou por três momentos: pesquisa
bibliográfica, observação em campo e coleta de dados através de entrevista.
A presente pesquisa está dividida em cinco seções, em que a primeira apresenta uma
breve introdução sobre o bullying, com destaque para a descrição sobre o envolvimento
de estudantes nessas interações como agressores, vítimas, vítimas-agressoras ou
espectadores. A segunda seção aponta para as dificuldades encontradas em se criar um
projeto contra o bullying na escola pesquisada. A terceira verifica se os docentes dessa
escola estão atentos, com olhares críticos e positivos nas perspectivas étnico-raciais, nas
culturais, religiosas e demais diversidades existentes que os permitiriam romper com
padrões estabelecidos e cristalizados.
A quarta seção revela a convivência dos estudantes na escola – entre eles e com os
membros da comunidade escolar - com base na disciplina, no bullying, nas normas
existentes, na autoridade, nas sanções, nos problemas mais comuns. E a quinta seção
visa problematizar a dimensão de vigilância exercida pelas sanções disciplinares
da escola pesquisada, articulando-a com certo tipo de tradição pedagógica, ainda
fortemente localizável no cotidiano escolar.
Com respeito ao bullying e, em especial, aquele apresentado na escola iguaçuana
pesquisada, tema que será abordado em todas as seções, serão analisados os textos de
Abramovay (2003), Fante (2007), Sposito (2001) e Lopes Neto; Saavedra (2003).
1. BULLYING NA ESCOLA
A percepção da violência no ambiente escolar modifica-se de acordo com o olhar pelo
qual esse meio é abordado. Antigamente, havia ênfase na pesquisa sobre a violência
do sistema escolar, especialmente a violência dos professores contra os alunos
(punições e castigos físicos) (Abramovay, 2003). Na literatura contemporânea, diversos
especialistas privilegiam a análise da violência praticada entre alunos ou de alunos
contra a propriedade (vandalismo, por exemplo) e, em menor proporção, de alunos
contra professores e de professores contra alunos.
Nesses primeiros anos da década de 80, observa-se certo consenso em torno
da ideia de que as unidades escolares precisariam ser protegidas [...] tratava-
se assim de uma concepção de violência expressa nas ações de depredação do
De acordo com Fante (2015), o termo bullying surgiu e passou a ser considerado no
campo de estudos sobre a violência na década de 1990. Sem um termo equivalente
em português, é um fenômeno que ocorre na relação entre pares, acontecendo com
mais frequência entre os estudantes no contexto escolar. Ainda segundo Fante (2015), o
fenômeno bullying é tão antigo quanto a escola, embora não tenha sido pesquisado até
o início da década de 1970.
Sobre tal fenômeno, Fante (2015, p.84) declara que “Universalmente, o bullying é
conceituado como sendo um conjunto de comportamentos, intencionais e repetitivos,
adotado por um ou mais estudantes, sem motivação evidente, causando dor e sofrimento,
dentro de uma relação desigual de poder, o que possibilita a intimidação”.
Diversos autores (Batsche; Knoff, 1994; Ramírez, 2002; Anton et al. 2002) afirmaram
que há diferentes características (individuais e familiares) de acordo com o papel
desempenhado pelo estudante na situação de bullying, papel este que pode ser de
vítima, agressor, vítima/agressor ou testemunha.
Geralmente, os agressores são pessoas com pouca empatia, do sexo masculino, que
acreditam que serão prejudicadas, têm colegas que apoiam os comportamentos
agressivos, que podem evadir da escola, ter histórico de reprovações, portar armas e
abusar de drogas. (Boxer et al., 2005; Guerra, 2003; Maldonado, Williams, 2005; Pinheiro,
Williams, 2010; Welsh, 2003). É comum que não tenham um bom relacionamento afetivo
com suas famílias, podendo inclusive sofrer maus-tratos. (Maldonado; Williams, 2005;
Reese et al., 2000; Rigoni; Swenson, 2000).
As vítimas do bullying se caracterizam por serem, geralmente, pessoas de aspecto físico
mais frágil que o de seus pares, mais jovens que os autores de violência, frequentemente
sem amigos na escola e com pouca habilidade para lidar com as situações de conflito
com os colegas. Podem mudar muitas vezes de escola, confiam em poucas pessoas,
não gostam de ir à escola, costumam ser depressivos e ansiosos, têm dificuldade de
aprendizado. (Khoury-Kassabri et al., 2004; Schreck, Miller, Gilbson, 2003; Warner,
Weist, Krulak, 1999). As vítimas-agressoras são alunos que têm dificuldades em avaliar
a situação em que se encontram e de controlar a impulsividade, chegando a agredir
outros alunos, mesmo quando se encontram em pior situação para se defender. São os
alunos menos populares e mais associados com transtornos depressivos e de ansiedade
(SCHWARTZ et al., 2005).
As testemunhas são aqueles que apenas presenciam as situações de violência e que
geralmente se calam para não se transformarem em um novo alvo para o agressor.
Podem se sentir culpados por nada terem feito para impedir uma agressão ou, ainda,
desenvolver comportamentos agressivos para se sentirem pertencentes ao grupo de
alunos agressores. (STUEVE et al., 2006). Amigos de estudantes que cometem atos de
bullying evitam que professores separem alunos que brigam ou encorajam a continuação
quinze minutos ou com nossas ‘fugas da sala de aula’ – algo que é arriscado, pois
os alunos são muito agitados e indisciplinados. Brigas, confusões e acidentes podem
acontecer e eu posso ser processada por isso”.
Outra dificuldade para pôr em prática tal empreitada na escola, segundo os professores
entrevistados, é a falta de recursos. O local não dispõe de rádio e nem de Internet para a
comunidade escolar utilizar. Também não tem condições de fazer cópias das atividades
para os alunos. Dispõe de aparelhos de TV e DVD, porém, muitas das vezes, falta
cabo ou extensões o que impede o uso de tais recursos, “Utilizamos nossos próprios
recursos para elaborar nossas aulas: nossos próprios celulares e nossos próprios planos
de Internet para nossas pesquisas; nossa impressora, nossa tinta e nossas folhas para
levarmos atividades mais lúdicas e evitar que a turma fique apenas copiando do
quadro” (Professor de Geografia).
Além disso, os profissionais da educação revelaram uma preocupação com o
excesso de atribuições dos professores. Acusaram algumas famílias de não darem
noções adequadas de socialização às crianças, baseadas em princípios e valores que
assegurem sua capacidade de conviver respeitando os demais. Acusaram-nas também
de projetar para os docentes a responsabilidade pela educação total dos filhos abrindo
mão de um papel que caberia a elas. “Tudo sobra pra gente”(Professora do 4º ano 2).
O desabafo da professora revela que ao professor têm sido colocadas demandas de
naturezas bastante distintas.
No que se refere à valorização dos professores, o estabelecimento de ensino aqui
abordado não investe em ações capazes de gerar um clima de satisfação entre os
docentes, caracterizado por apoio, suporte e condições para que desenvolvam seu
trabalho. A desvalorização dos profissionais de ensino impede o aprimoramento dos
projetos existentes, bem como a criação de novos projetos.
Uma das orientadoras pedagógicas da escola, ao notar a dificuldade dos docentes
para lidar com um número de demandas muito grande e o descontentamento desses
profissionais com as diversas limitações que eles encontram para realizar o seu trabalho,
afirmou que eles já haviam criado um projeto contra o bullying e que este já estava
sendo executado.
Chamou-lhes a atenção para o fato de que trabalham práticas de cidadania em sala de
aula. Valores como o respeito, o amor, a solidariedade, a compaixão e ações como escutar
dialogar, levar em consideração o sentimento do outro eram sempre apontados como
práticas importantes para cultivarmos. Embora fosse uma atitude simples, trabalhar
práticas de cidadania era uma forma válida de prevenir e combater a violência. Escutar,
acolher, apoiar e buscar solucionar conflitos entre alunos também eram atitudes válidas.
Para finalizar o projeto bastaria conversar com os alunos sobre o tema e enfatizar que
a escola não iria tolerar tal atitude de violência.
Contou que o caso no qual uma aluna do 5º ano estava sendo alvo de zombaria de alguns
alunos, durante o recreio, por aparentemente ter problemas mentais, ter incontinência
urinária e ter mau cheiro em decorrência desta estava resolvido. Uma conversa com os
agressores sobre os valores e as ações abordadas nas aulas aliada a reflexão sobre as
consequências das atitudes por eles tomadas – uma dessas consequências seria chamar
o conselheiro tutelar - ajudaram a orientadora a solucionar o problema.
lembrá-los de que o mau comportamento irá deixá-los sem recreio. Os casos mais graves
de indisciplina são levados para a direção ou orientação pedagógica. No refeitório, o
comportamento também não é muito diferente do comportamento no pátio. Brincadeiras
brutas, tentativas de furar fila para pegar a merenda e guerra de comida são frequentes.
Por sermos adultos e estarmos observando seus recreios, os estudantes não se sentiam
constrangidos de nos relatar casos de indisciplina e nos pedir ajuda para resolvê-los.
Muitos deduravam os colegas com mau comportamento, os que ficavam trancados no
banheiro para ficar jogando água nos outros ou que tentavam entrar no banheiro
das meninas para vê-las. Relataram também que havia algum aluno entrando na
sala escondido durante o recreio para destruir murais ou estragar o material dos
estudantes. Ouvíamos com atenção, pois alguns desses casos de indisciplina poderiam
se tratar de bullying.
As turmas do 2º segmento que observamos frequentam as aulas, mas não se importam
com os conteúdos que os professores estão ensinando. Existem turmas que são apáticas
e ficam durante a aula usando seus aparelhos de telefone celular e outras, mais agitadas,
em que os alunos pedem para sair de sala ou saem sem a permissão dos professores e
falam durante a aula inteira ( inclusive durante a explicação dos professores). Estes são
obrigados a gritar e a brigar com os alunos para poderem ministrar sua aula,
O recreio dessas turmas, assim como o recreio dos mais novos, é bem confuso e
barulhento. Também conta com um dirigente de turno que chama atenção pelo
microfone e leva os casos mais sérios para a direção. Os jovens falam alto e gritam.
Observamos as habituais “zoações” de adolescentes, brincadeiras brutas, atitudes
de grosserias e também brigas. Também existe implicância entre alguns alunos e
alunas: eles se olham com cara feia ou com olhar zombeteiro para provocar. Chegou
ao nosso conhecimento de que alguns combinavam brigar fora da escola para resolver
suas diferenças, entretanto nem tudo é briga e confusão. Para muitos alunos, a escola
é um espaço de socialização na qual eles convivem com seus amigos. Destacamos
também que, para muitos, estar em sala de aula não lhes parece aproveitável. Como
eles não podem estar fora de sala aproveitando a companhia dos amigos, apresentam
comportamentos indesejáveis perturbando, assim o bom andamento da aula.
Fizemos a entrevista com os jovens que, indagados sobre bullying, não sabiam do que
se tratava: “Nunca ouvi falar” (Aluna X da Turma 802). Expliquei no que consistia esse
fenômeno e muitos começaram a relatar o que se passava com eles e outros alunos da
escola: “Então X faz bullying comigo. Tenta pegar minha pregadeira toda hora” (Aluna
Y da Turma 802). Foi necessário dizer-lhes que o que relatavam não era bullying. As
brincadeiras brutas e as grosserias esporádicas que relatavam não eram consideradas
assédio escolar. Até que um jovem lembrou-se de que a diretora já havia estado na
sala para falar sobre brincadeiras cruéis ou agressões que eram feitas todos os dias e
faziam o alvo dessas brincadeiras sofrer muito. “Ela disse que quem fizesse bullying na
escola ia arrumar um problema sério com o Conselho Tutelar” (Aluno X da Turma 801).
Atitude a qual achava correta.
Por sua vez, os alunos do 1º segmento quando indagados sobre o que era bullying
também não sabiam do que se tratava com exceção de uma estudante que me falou
sobre um filme que havia assistido no qual um menino “sofria tanto com as maldades
que um outro garoto fazia com ele que, no final do filme, ele se matou” (Aluna X do 4º
Ano 1). Citou também o caso de bullying que estava acontecendo, na escola, com a aluna
do 5º ano.
Um estudante do 5º ano, ao ser indagado sobre o que sabia sobre bullying, apontou a série
de TV Todo Mundo Odeia o Chris como um exemplo de “programa que mostra alguém
sofrendo bullying” (Aluno X do 5º Ano 2). Ainda segundo o aluno “ Chris apanha do
Caruso todos os dias. Esse é um bom exemplo de bullying”. Uma aluna relatou um caso
de bullying que acontece em sua rua: “uma menina que mora na minha rua é sempre
chamada de neguinha feia pelos garotos. Eu sei que ela fica triste por causa disso” (Aluna
X do 5º Ano 2). “Se isso acontecesse aqui na escola eu falaria para a professora e para
a diretora. Gente que faz isso com as pessoas têm que ‘tomar esporro’ e ir parar no
Conselho Tutelar” (Aluno X do 5º Ano 1). Os estudantes deixaram claro que o assédio
escolar é algo que não deve acontecer na escola e que os professores e a direção devem
tomar providências quanto a isso.
5. RESULTADOS ALCANÇADOS
Vivenciando o cotidiano do estabelecimento de ensino analisado, observamos desde
o descumprimento das normas mais simples de convivência por parte dos alunos
como não jogar lixo no chão mantendo a escola limpa para todos, ter atenção ao subir
e descer escadas para não causar acidentes, não ter atitudes grosseiras com os colegas
até práticas que agridem a dignidade humana como ofender professores e colegas, ter
atitudes racistas e praticar bullying, objeto do presente trabalho.
Verificamos também a necessidade de se criar um projeto para prevenir e combater o
bullying, iniciativa esta que partiu da Secretaria Municipal de Educação de Nova Iguaçu,
que foi vista como útil pela escola, pois já tinha sido diagnosticado pelo menos um caso
de bullying em suas dependências. No entanto, a ideia de se criar um projeto antibullying
não agradou aos professores. Estes afirmaram que a situação na qual se encontravam
impedia a criação de um projeto sendo informados, após as entrevistas, que o ensino
baseado em atitudes de cidadania representava um projeto.
No entanto, a questão disciplinar, a capacidade que a escola tem de ensinar o que é
certo e o que é errado pode prejudicar o bom andamento do projeto antibullying.
Foucault (1987), define disciplina como uma técnica, um mecanismo, um instrumento
de poder, ou seja, “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo
(seu modo de agir, sua postura, sua sexualidade, assegurando a sujeição constante de
suas forças e lhes impondo uma relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 1987,
p.119). A partir daí a escola não somente torna-se um espaço de aprendizado, mas
também de hierarquizações e vigilância constante, funcionando como um processo
mecânico, evidenciando ferramentas para o controle dos comportamentos dos escolares.
Na instituição escolar analisada, onde os sujeitos se encontram e mantêm relações, os
estudantes estão sendo observados com severidade. Nada pode passar despercebido,
pois os estudantes são considerados muito indisciplinados e capazes de cometer muita
confusão. Conforme Foucault, (1987, p.202-203) “O poder na vigilância hierarquizada
das disciplinas [...] funciona como uma máquina. [...] O que permite ao poder
disciplinar ser absolutamente indiscreto, pois está em toda parte e sempre alerta [...]”.
Os professores devem estar sempre na sala vigiando os alunos. Não podem sair nem
um minuto para resolver algo relacionado ao projeto antibullying, pois isso pode trazer
sérias consequências não só para os alunos como para os educadores também.
O recreio também é outro momento da escola no qual a vigilância dos alunos é feita. É
um momento complicado da escola por unir várias turmas em um mesmo local. Dessa
forma precisa ser tão observado ou mais do que as aulas. O dirigente de turno deve
estar sempre alerta e se acaso algum aluno apresente um comportamento indesejável
deve ser lembrado sobre as normas de conduta da escola, porém lembrar normas
muitas vezes não funciona e, quando isso acontece, “[...] é utilizada, a título de punição,
toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e
a pequenas humilhações. Trata-se ao mesmo tempo de tornar penalizáveis as frações
mais tênues da conduta [...]” (FOUCAULT, 1987, p.203) e o dirigente, assim como os
professores, parte para as sanções: gritos, ameaças e castigos.
Os estudantes que não agem de acordo com o esperado são punidos. Por sua vez, os
autores de bullying podem sofrer a sanção mais grave: ser encaminhado para o Conselho
Tutelar – atitude que não ajudaria a combater o problema, pois conforme Fante (2011,
p.208) “[...] O aluno abusivo ou violento, assim como aquele que figura como vítima, de
igual maneira precisa de cuidados específicos, pois também está adoecido e precisa
ser tratado [...]”. Ainda segundo Fante (2011), ignorar o agressor seria uma forma de
violência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensando que o conflito, a negação, a resistência são inerentes ao exercício do poder,
que não é possível, nem desejável, pensar uma relação da qual estejam banidos e se na
escola frequentemente os alunos insistem em desrespeitar as regras e desconsiderar os
valores que estão sendo trabalhados estamos diante de sinais de resistência a certo tipo
de poder e é preciso “ouvir o que essa voz quer dizer”.
Estimular a educação baseada em valores como o amor, a amizade, a bondade, a
solidariedade, entre outros e transformá-la em um projeto contra o bullying é válido,
mas não é suficiente, principalmente porque a educação baseada em valores foi decisão
de apenas um grupo de pessoas. Não levou em conta a totalidade da comunidade
escolar. Quando todos são envolvidos na criação das regras há um interesse maior em
defendê-las.
Também não está levando em conta a pobreza da visão de mundo dos educadores
entrevistados, que não são capazes de valorizar o convívio com aqueles que são diferentes
deles, que não reconhecem que o Brasil é um país que tem preconceito em relação a
etnias, a gênero e a orientação sexual. Tal preconceito estabelece relações perversas
entre seres humanos, porque excluem pessoas afrontando a ética da convivência.
Esses educadores podem não interpretar uma atitude como bullying baseado em seu
julgamento moral sobre uma aluna que já namorou diversos rapazes, achar piadas
e xingamentos racistas como algo normal ou não se importar com as intimidações e
humilhações sofridas por algum aluno homossexual. Além de transmitirem visões de
mundo errôneas sobre as pessoas em geral. Portanto, cursos de formação devem ser
oferecidos aos docentes para sensibilizá-los sobre o direito de ser diferente e sobre a
gravidade do bullying.
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FERRARO, Cristiane
Doutoranda do Programa Sociedade, Cultura e
Fronteiras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
cristianeferraro@gmail.com
RESUMO
Esse artigo trata do desafio da interdisciplinaridade na produção do conhecimento,
tema relevante para os programas de pós-graduação interdisciplinares. A questão
norteadora do estudo foi: quais são os entendimentos sobre o significado, teorias e
práticas interdisciplinares? A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica. O
objetivo geral foi explicitar as diversas definições de interdisciplinaridade a fim de
se chegar aos pontos principais de controvérsias visando um direcionamento para a
produção do conhecimento nessa área. As conclusões indicam o caráter polissêmico do
termo interdisciplinaridade, a polarização em dois pontos de vistas opostos a respeito
da interdisciplinaridade no contexto brasileiro: a chamada filosofia do sujeito e a
concepção histórica, além de algumas tendências, por exemplo: a não separação entre
sujeito e objeto do conhecimento; a relação de continuidade entre interdisciplinaridade
e as disciplinas; a interdisciplinaridade como princípio direcionador de trocas teórico-
metodológicas.
Palavras-chave: Interdisciplinaridade. Ciência. Epistemologia.
ABSTRACT
This article deals with the challenge of interdisciplinarity in the production of knowledge,
a relevant topic for interdisciplinary graduate programs. The guiding question of the
study was: what are the understandings about interdisciplinary meaning, theories, and
practices? The methodology used was the bibliographical research. The general objective
was to explicit the different definitions of interdisciplinarity in order to reach the main
points of controversy aiming at a direction for the production of knowledge in this
area. The conclusions indicate the polysemic character of the term interdisciplinarity,
the polarization in two opposing points of view regarding interdisciplinarity in the
Brazilian context: the so-called philosophy of the subject and the historical conception,
besides some tendencies, for example: the non-separation between subject and object
of knowledge; the continuity relationship between interdisciplinarity and disciplines;
interdisciplinarity as the guiding principle of theoretical-methodological exchanges.
Key-words: Interdisciplinarity. Science. Epistemology.
INTRODUÇÃO
A interdisciplinaridade é uma ideia que representa uma multiplicidade de facetas, de
modo que práticas muito distintas podem ser aplicadas em seu nome. Segundo Pombo
(2008), há um desgaste e banalização da palavra interdisciplinaridade, conforme se
observa seu uso em múltiplos contextos: epistemológico; pedagógico; midiático;
empresarial e tecnológico.
Esse assunto é de suma importância para produção do conhecimento, especialmente
para os cursos de pós-graduação, nível de mestrado e doutorado, que se propõem a
tal desafio, tal qual esta autora vem realizado no âmbito da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná (UNIOESTE).
A problemática é a seguinte: quais são os entendimentos sobre o significado, teorias e
práticas interdisciplinares? O interesse por tal tema nasceu dos debates realizados nas
disciplinas Estudos de Pesquisas Interdisciplinares (EPI) e Totalidade e Interdisciplinaridade,
componentes do programa de pós-graduação em Sociedade, Cultura e Fronteiras, da
UNIOESTE, campus de 1 Foz do Iguaçu (PR).
A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica, procurando levantar as diferentes
concepções à respeito da interdisciplinaridade, desde aqueles mais centrados na
ação do sujeito sobre o objeto até as concepções históricas de interdisciplinaridade.
Este levantamento não foi exaustivo, porém procurou trazer à discussão os pontos
principais controversos acerca do tema, de acordo com os seguintes autores: Olga
Pombo (2008), Carlos Pimenta (2008), Ubiratan D’Ambrosio (2008), Divanir Eulália N.
Munhoz (2008), Ivani Fazenda (1994; 2008), Maria de Fátima Gomes da Silva (2008),
Augusta Thereza de Alvarenga (2011), Gaudêncio Frigotto (2008; 2011), Ari Jantsch e
Lucídio Bianchetti (2011), Roberto Follari (2011), José Henrique de Faria (2015), Claude
Raynaut (2011) e outros.
1. INTERDISCIPLINARIDADE: MÚLTIPLOS ENTENDIMENTOS
Os diversos autores mencionados trazem contribuições ora no âmbito da pesquisa
ora no âmbito da educação. A proposta é explicitar as diversas definições sobre
interdisciplinaridade a fim de se chegar às questões principais de discussão sobre a
interdisciplinaridade.
O termo interdisciplinaridade é definido pela pesquisadora Olga Pombo (2008), da
Universidade de Lisboa, como complementariedade de disciplinas, sob ponto de vista
de convergência. Pombo diferencia esse conceito de termos afins, tais como: pluri
ou multidisciplinaridade, que seria aquela praticada pela cooperação de disciplinas
(ciências), atuando sob ponto de vista paralelo e transdisciplinaridade, aquela exercida
através da fusão de disciplinas, sob o ângulo da perspectiva holística.
Pombo (2008), em seu artigo Epistemologia da Interdisciplinaridade, evidencia a
inversão do modelo disciplinar em quatro frentes: 1) discursos; 2) reordenamento
de disciplinas; 3) práticas; 4) teorias. Quanto aos discursos, observa-se uma poética
da interdisciplinaridade por meio das seguintes formas discursivas: a) a fecundação
recíproca entre disciplinas; b) a possibilidade de aprofundamento do campo do
cognoscível; c) a criação de novos objetos de conhecimento e consequentemente de
novas ciências.
sendo necessário criar uma situação-problema no sentido de Paulo Freire, “onde a ideia
do projeto nasça da consciência comum, da fé dos investigadores no reconhecimento
da complexidade do mesmo e na disponibilidade destes em redefinir o projeto a cada
dúvida ou a cada resposta encontrada” (FAZENDA, 2008, p. 98).
As discussões afins à interdisciplinaridade, referentes à transdisciplinaridade na
formação de professores, também foram foco de comentários por Fazenda (2008, p.
100). Segundo Japiassu (apud FAZENDA, 2008, p. 100), o termo transdisciplinaridade
foi gestado por Jean Piaget e antecede o vocábulo interdisciplinaridade. Sob o pálio da
transdisciplinaridade, “questões ambíguas como cura (Patrick Paul, 2007), amor (Renè
Barbier, 2007), espiritualidade, negociação, reconhecimento, gratidão (Paul Ricoeur,
2006), respeito, desapego e humildade (Maturana, 1997; Ricoeur, 2006) fazem parte de
um novo pensar sobre a Didática e a Prática de Ensino”. Os estudos transdisciplinares
na educação vem apontando para dimensões novas com enfoques de auto-formação,
eco-formação e heteroformação do ser humano.
Sob a ótica da pesquisadora brasileira Maria de Fátima Gomes da Silva (2008), da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a interdisciplinaridade das pesquisas
em educação no ensino superior deve ter como base a concepção histórica-dialética e
a “epistemologia da complexidade” a partir de 3 categorias-mestre: a) parceria: entre
sujeitos socialmente constituídos que pretendem inovar não só currículos escolares
mas também transformar estruturas sociais; b) diálogo: conforme entendido por Paulo
Freire, no qual se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos; c) complexidade: é
necessário trabalhar o paradoxo do uno (indivíduo) e do múltiplo (humanidade) em
termos de construção do conhecimento.
Sobre este último tópico, Augusta Thereza de Alvarenga (2011, p. 13), socióloga da
Universidade de São Paulo (USP), comenta que a interdisciplinaridade pode ser
considerada uma forma alternativa de produzir conhecimento científico diante da
complexidade do mundo contemporâneo. Não se trata da superação do conhecimento
disciplinar, mas do reconhecimento da pertinência de outro modo de fazer ciência
e gerar conhecimento, principalmente porque a realidade nem sempre pode ser
enquadrada no domínio disciplinar. De acordo com Morin (apud ALVARENGA et
al., 2011, p. 14), o paradigma da ciência clássica “tem por causa e efeito dissolver a
complexidade na simplicidade, por ser baseada nos seguintes princípios: da ordem,
da separação, da redução e da razão centrada na lógica formal, caracterizada como
processo indutivo-dedutivo-identitário”. O estudo de fenômenos complexos que
implicam conceber a unidade do múltiplo ou a multiplicidade do uno, ficam limitados
ou impossibilitados do ponto de vista dos princípios da separação e redução da ciência
clássica. A separação significa decompor um problema em elementos simples e a redução
parte do pressuposto de que os aspectos do mundo físico e biológico estão na origem
do conhecimento verdadeiro. A lógica formal não admite o pensamento complexo, ou
seja, a presença da contradição e dos paradoxos na realidade.
Nesse sentido, o avanço da física quântica expresso no paradoxo microfísico das partículas,
rompendo a visão positivista da ciência, pois estas se apresentam ao observador, ora
como ondas, ora como corpúsculos, exigiram assim uma nova epistemologia que a
física clássica, fundada pelo objetivismo da ciência normal, não explica (NICOLESCU
apud ALVARENGA et al., 2011, p. 25).
Enquanto isso, no Brasil, houve iniciativas por parte dos educadores em reconquistar
sua identidade perdida, sendo possível delinear um perfil de professor com atitude
interdisciplinar: um gosto especial em conhecer e pesquisar, um comprometimento
diferenciado com seus alunos, a implantação de novas técnicas e procedimentos de
ensino e a marca da resistência à acomodação (FAZENDA, 1994, p. 24-26).
Na década de 1990, merece destaque o trabalho interdisciplinar em desenvolvimento
no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), na França. Essa organização
realiza pesquisas nacionais e internacionais, em parceria com instituições do ensino
superior e de pesquisa, além de empresas com tecnologia inovadora de ponta. Dedica-
se à interdisciplinaridade de proximidade e de complementariedade entre disciplinas
vizinhas, além da interdisciplinaridade de objetivos para o estudo de um sistema
complexo, e até mesmo de uma interdisciplinaridade exploratória (ALVARENGA,
2011, p. 28-29). 1 No Brasil, a década de 1990 é envolvida por contradição, a principal
foi a constatação da interdisciplinaridade constituir-se em uma exigência na proposta
atual de conhecimento e de educação, sendo ao mesmo tempo exercida por meio
de práticas intuitivas. Para Fazenda (1994, p. 33-34), “a revisão contemporânea do
conceito de ciência orienta-nos para a exigência de uma nova consciência, que não
se apóia apenas na objetividade, mas que assume a subjetividade em todas as suas
contradições”. Fazenda vem realizando pesquisas com seus alunos da pós-graduação
de mestrados e doutorados da PUC de São Paulo, desde 1987, cuja marca é a prática
interdisciplinarmente vivenciada. Para ela e o grupo que coordena, a década de 1990
foi vincada por um projeto antropológico de educação, interdisciplinar, em suas
principais contradições.
Na análise de Fazenda (1994, p. 20), após quase 30 anos de estudo, chegou-se a hipóteses
e orientações de trabalho para as ciências humanas, que podem ser esboçadas a partir da
superação das dicotomias ciência e arte; ciência e cultura; objetividade e subjetividade;
percepção e sensação; e espaço e tempo.
Os avanços sobre o tema podem ser assim sintetizados: a interdisciplinaridade seria o
resultado de sínteses imaginativas e audazes; também não é categoria de conhecimento
mas de ação; é um exercício do conhecimento, perguntar e duvidar; entre as disciplinas
e a interdisciplinaridade existe uma diferença de categoria; e é arte do tecido bem
trançado e flexível; e se desenvolve a partir do progresso das próprias disciplinas
(FAZENDA, 1994, p. 28-29).
Diante dessa breve conjuntura, a interdisciplinaridade assumiu no Brasil contornos do
que foi denominado por Ari Paulo Jantsch e Lucídio Bianchetti (2011), professores da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), de uma filosofia do sujeito. A filosofia
do sujeito não é vinculada a nenhuma corrente filosófica, mas “caracteriza-se por
privilegiar a ação do sujeito sobre o objeto, (...) ” (JANTSCH e BIANCHETTI, 2011, p.19).
A filosofia do sujeito não se reduz às contribuições de Ivani Fazenda, é fruto de vários
autores que teorizam sobre interdisciplinaridade e contém os seguintes pressupostos:
a) a fragmentação do conhecimento leva o homem a não ter domínio sobre o próprio
conhecimento produzido; b) a especialização passa a ser assumida, com base no
item anterior, como “patologia”; c) a interdisciplinaridade só é produtiva se feita em
equipe, onde se forma um “sujeito coletivo”; d) esse sujeito coletivo consegue viver a
interdisciplinaridade em qualquer espaço de atuação, ou seja, no ensino, na pesquisa
totalidade é uma categoria que não está acima das ciências instando por sua reunião,
mas pertence a um discurso determinado, a teoria social” (FOLLARI, 2011, p. 128).
Delimitar um objeto para investigação não é fragmentação. Segundo Karel Kosik
(1976), a totalidade não é abranger todos os fatos. “Totalidade significa: realidade como
um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos,
conjuntos de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido”, em relação as múltiplas
determinações e mediações históricas que o constituem (FRIGOTTO, 2011, p. 37).
A proposta trazida por Fazenda de superação das dicotomias de ciência e cultura assim
como de ciência e arte, parece nivelar o conhecimento científico à arte e à cultura. Se
for esse o entendimento, e partindo do pressuposto de que a ciência é uma mediação
necessária para entender algo que não está posto claramente, não é possível nivelá-la
à arte ou à cultura.
Essa discussão complexifica-se quando se insere o conceito de transdisciplinaridade,
conforme alguns concepções mencionadas no texto. Além disso, as questões da
interdisciplinaridade giram em torno do campo científico propriamente dito mas
também da filosofia da ciência. A produção em ambos os campos são férteis em si e
entre si. Ao que tudo indica é necessário ultrapassar as barreiras não só das disciplinas
científicas assim como das filosóficas (ALVARENGA, 2011, p. 55).
Quando se busca compreender o desafio da interdisciplinaridade na produção do
conhecimento refere-se às teorias, às metodologias e às práticas. Teoria e prática são
facetas da produção científica, lembrando que toda teoria traz consigo determinada
metodologia e forma específica de fazer interpretações. O desafio da interdisciplinaridade
no avanço da ciência é teórico-metodológico assim como metateórico ou filosófico.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A palavra interdisciplinaridade refere-se a um conjunto amplo e heterogêneo de
experiências, realidades e projetos. De acordo com os diversos autores estudados,
observa-se que não há um consenso sobre quatro pontos principais da discussão em
torno da interdisciplinaridade são: 1) a relação do sujeito e do objeto na produção
do conhecimento, o polo regente estaria mais do lado do sujeito ou do objeto?
2) a relação das disciplinas com a interdisciplinaridade: continuidade ou ruptura?
3) a interdisciplinaridade realizada pelo “sujeito individual” e/ou o “sujeito coletivo”;
4) a interdisciplinaridade como princípio e/ou como metodologia.
No entanto, algumas tendências parecem se sobressair. Uma nova epistemologia
fundada na interdisciplinaridade sinaliza nova relação entre o sujeito e objeto do
conhecimento, não mais de ruptura, mas de interação de modo mais equitativo.
Tudo indica até o momento que a interdisciplinaridade se constroi na relação com o
disciplinar, pois pela crítica em relação à própria área disciplinar consegue-se transpor
fronteiras e proporcionar encontros entre os saberes. Este encontro se viabiliza pelo
diálogo aberto entre sujeitos pesquisadores disciplinares que objetivam compreender
um fenômeno complexo. Não foi possível construir um único e geral aporte teórico-
metodológico interdisciplinar, porém os princípios da interdisciplinaridade tem sido
os norteadores do diálogo entre teorias e metodologias disciplinares.
Nesse sentido, Alvarenga (2011, p. 60-61), que comunga do mesmo pensamento contido
no documento Interdisciplinaridade como desafio para o avanço da ciência e tecnologia,
publicado pela CAPES em 2008, tece as seguintes orientações para um trabalho
interdisciplinar: observar se os conceitos e teorias a serem utilizados são passíveis de
trocas teórico-metodológicas, possibilitando os seus deslocamentos da teoria de origem
para a construção de um novo esquema de referência teórico-metodológico capaz de
orientar a pesquisa; 2) a partir da investigação empírica de fenômenos, fatos e objetos,
o que se espera é o enriquecimento do próprio arcabouço teórico do qual se partiu; 3) o
ponto de partida da pesquisa é a problematização de temas complexos; 4) não definir
a priori a natureza e os tipos de trocas teóricas, metodológicas e tecnológicas a realizar,
já que tais necessidades se manifestam no processo do trabalho interdisciplinar, sendo
secundário ficar preso à definição de que tipo de interdisciplinaridade vai se utilizar
como referência ou para identificação do trabalho como tal; 5) não são as definições,
às vezes restritivas, mas os princípios gerais da interdisciplinaridade que tornam os
projetos de pesquisa produtivos.
A palavra princípio é tomada no sentido de método, isto é, caminho, sem o sentido de
instrumentalidade, e engloba as seguintes ideias: 1) o disciplinar, o pluri e interdisciplinar
são formas diferenciadas e complementares de geração do conhecimento; 2) a
interdisciplinaridade pressupõe avanço na produção do conhecimento porque implica
em trocas teórico-metodológicas, geração de novos conceitos e metodologias e graus
crescentes de intersubjetividades entre pesquisadores disciplinares visando atender a
natureza complexa de um fenômeno; 3) a interdisciplinaridade se propõe a estabelecer
relação entre saberes, entre o teórico e o prático, entre o filosófico e o científico, entre
ciência e tecnologia, revelando-se como uma resposta aos desafios do saber complexo;
4) a interdisciplinaridade visa estabelecer pontes entre diferentes níveis de realidade,
diferentes lógicas e diferentes formas de conhecimento presentes nas disciplinas
(CAPES apud ALVARENGA, 2011, p. 62-63).
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metodológicos da interdisciplinaridade. In: PHILIPPI Jr., Arlindo; SILVA NETO,
Antonio J. (orgs.). Interdisciplinaridade em ciência, tecnologia & inovação. Barueri: Manole,
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e a questão de valores. In: Revista Ideação, vol. 10, n. 1. Cascavel, PR: Edunioeste, 2008,
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FARIA, J. H. Epistemologia crítica, metodologia e interdisciplinaridade. In: PHILIPPI
Jr., Arlindo; FERNANDES, Valdir. (Orgs.). Práticas da interdisciplinaridade no ensino e
pesquisa. Barueri: Manole, 2015, p. 91-135.
FAZENDA, Ivani C. A. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. 15ª Ed.
Campinas, SP: Papirus, 1994.
FAZENDA, Ivani C. A. Interdisciplinaridade e transdisciplinaridade na formação de
professores. In: Revista Ideação, vol. 10, n. 1. Cascavel, PR: Edunioeste, 2008, p. 93-103.
Figura 1
Figura 2
3. Conclusões
A pesquisa, que teve como principal objetivo conhecer a percepção de professores de
uma escola municipal acerca da inclusão das práticas educativas do transito na escola,
projetou-se que a educação para o trânsito possibilitará aos jovens desenvolver da melhor
forma, uma consciência coletiva ética, valores e práticas que irão diminuir os problemas
no trânsito. Eles serão poderão ser futuros condutores de veículos no futuro, bem como
pedestres que convivem com o transito. Toda iniciativa de educar através desse tema são
essenciais para o dia a dia das pessoas, visto que envolve cidadania e conscientização.
4. Principais referências bibliográficas
BOTELHO, Anselmo Sebastião. A Educação para o trânsito em Escola do Ensino
Fundamental e sua relevância na formação de futuros condutores. Pós-graduação
em Gestão de Educação e Segurança no trânsito. Belo Horizonte - MG, Agosto/2009.
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Janeiro: ETJ – Equipe Técnico Jurídica, 1998.
BRASIL, IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2013.
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dezembro de 1996.
BRASIL, SUS - Sistema Único de Saúde, 2013
ECCO, Idanir; BANASZESKI, Alexandra Auziliero. Educação para o Trânsito: um
olhar para o contexto escolar. Rio Grande do Sul: Webartigos, março de 2009.
FRANCO, Maria Ciavatta. Quando nós somos o outro: questões teóricas metodológicas
sobre os estudos comparados. Educação & Sociedade.[on line]. Ago. 2000, v. 21, n.º
autonomous. Much still needs to be done with a view to enabling education to provide
students with an instrument of overcoming the state of alienation in which they find
themselves in the midst of the current educational model.
Key-words: Textbook of History, identity, territory, interdisciplinarity.
INTRODUÇÃO
Dentro do universo escolar, o livro didático se constitui de importante instrumento do
discurso científico, porém de uma forma geral existe um abismo entre o que se produz
na academia e o ensino básico.
Este artigo tem por objetivo discutir como a disciplina História, tratada
interdisciplinarmente no livro didático, é capaz de fortalecer a identidade dos
educandos e contribuir para promover a valorização histórica de seus territórios e
para a emancipação do homo faber (Meszárós, 2005). Desta forma, elencamos como
categorias de análise território, identidade como locus de pertencimento e valorização
dos indivíduos e das comunidades nas quais se inserem.
Este artigo busca contribuir para a superação da ideia fragmentada e linear do
racionalismo cartesiano ainda presente na formação acadêmica. Assim, esta pesquisa
busca uma visão interdisciplinar do estudo da categoria território e identidade como
forma de possibilitar o diálogo entre história e geografia, a partir da análise de livro
didático de história utilizada no ensino fundamental II.
O artigo se inicia com uma justificativa das razões para a escolha da análise de livros
didáticos, seguido de uma discussão a respeito das categorias de análise escolhidas
como forma de valorização identitária e possíveis diálogos no material a ser analisado.
1. O LIVRO DIDÁTICO: SUA IMPORTÂNCIA PARA A PESQUISA
Segundo Chartier (1990, p. 126-127)
Contra a representação [...] do texto ideal, abstrato, estável porque desligado
de qualquer materialidade, é necessário recordar vigorosamente que não existe
nenhum texto fora do suporte que o dá a ler, que não há compreensão de um
escrito, qualquer que ele seja, que não dependa das formas através das quais ele
chega ao seu leitor. Daí a necessária separação de dois tipos de dispositivos: os que
decorrem do estabelecimento do texto, das estratégias de escrita, das intenções
do “autor”; e os dispositivos que resultam da passagem a livro ou a impresso,
produzidos pela decisão editorial ou pelo trabalho da oficina, tendo em vista
leitores ou leituras que podem não estar de modo nenhum em conformidade
com os pretendidos pelo autor. Esta distância, que constitui o espaço no qual se
constrói o sentido, foi muitas vezes esquecida pelas abordagens clássicas que
pensam a obra em si mesma, como um texto puro cujas formas tipográficas não
têm importância, e também pela teoria da recepção que postula uma relação
direta, imediata, entre o “texto” e o leitor, entre os “sinais textuais” manejados
pelo autor e o “horizonte de expectativa” daqueles a quem se dirige.
De acordo com Martins (2004, 2009), devemos estar preparados para as transformações
que se apresentam no mundo contemporâneo o que torna necessária uma formação
interdisciplinar, pois é na cooperação e no intercâmbio entre os diferentes saberes que
superamos a visão única de mundo. Uma vez que os educadores incorporam uma
visão fragmentada de saberes específicos, muitas vezes sem correlação significativa
com a realidade, essa superação demanda que esses educadores atuem em relação
aos seus alunos como “consultores que os ensine a caminhar e não professores que os
orientem num percurso único superlotado” (BAUMAN, 2010, p.54).
É preciso ressaltar que a categoria território se insere dentro do ambiente escolar na
disciplina de Geografia no seu componente curricular. O próprio PNLD em suas
disposições gerais para análise das ciências humanas, para a disciplina de geografia,
define como objetivo da disciplina
uma ciência que estuda processos, dinâmicas e fenômenos da sociedade e
da natureza, voltada à compreensão das relações sociedade/espaço/tempo
que se concretizam diacrônica e sincronicamente, produzindo, reproduzindo
e transformando o espaço geográfico nas escalas local, regional, nacional e
mundial. Essas relações abordadas no processo de construção social, cuja
gênese se constitui no espaço e no tempo, não podem ser entendidas como uma
enumeração ou descrição de fatos e fenômenos desarticulados, que se esgotam
em si mesmos (MEC, PNLD 2017, 2016, p.55).
CONSIDERAÇÔES FINAIS
A interdisciplinaridade se funda na necessidade humana de produzir conhecimento
a partir de um caráter dialético da realidade social, ao mesmo tempo uma e diversa
(FRIGOTTO, 2008). Ao delimitarmos em um determinado objeto de pesquisa
a problemática, não precisamos, em nossas análises, abandonar as múltiplas
determinações que o constitui. Esta multiplicidade se faz a partir do que Kosik (1978)
defende como sendo a busca por explicitar do objeto de pesquisa delimitado as suas
múltiplas determinações e mediações históricas.
Devemos perceber a interdisciplinaridade como o princípio “da organização do trabalho
científico que se impõe pela necessidade da apreensão das múltiplas determinações
(sociais, culturais, políticas, econômicas, etc.) e das mediações históricas que as
condicionam, assim como, dos múltiplos usos que se faz desses conceitos” (NEFFA,
LEANDRO, 2015, p.7).
Assim, a busca por um diálogo interdisciplinar que valorize as identidades locais,
a partir do sentimento de pertencimento das comunidades locais ao seu território,
possibilitará a emancipação desta comunidade frente ao domínio do capital na
sociedade contemporânea.
Por fim, acreditamos que o livro didático possui papel fundamental nesse processo
emancipatório, uma vez que, se consiste de importante material de ensino e pesquisa
para professores, alunos e comunidade.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Capitalismo Parasitário e outros temas contemporâneos. Rio de
Janeiro, Editora Jorge Zahar, 2010.
_________________. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos
AlbertoMedeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
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Dissertação (Mestrado), 2004. Disponível em: htpp://www.ple.uem.br/defesas/pdf/
gmbrito.pdf, acessado em: 4 de Setembro de 2008. CHARTIER, Roger. A história cultural:
entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. DEMO, P. Conhecimento moderno:
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VESENTINI, José William. A questão do livro didático no ensino da Geografia: Novos caminhos
da Geografia in: Caminhos da Geografia. Ana Fani Alessandri Carlos (organizadora) ,
São Paulo, Contexto, 2007.
ALTERIDADE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES(AS): DIÁLOGOS
INTERDISCIPLINARES
Although we experience the most varied forms of human exclusion in daily life, we
believe that nonlinear paths and little explored in education research can lead to new
learning to live with differences and seek for otherness in different times and spaces.
Through a literature review and critical reflection, this article presents ideas for the
training of teachers for the limits and interactive potential of digital media in education
for humanization and socialization of plural cultures. In an interdisciplinary perspective
and under the light of Cultural Studies, he concludes that pedagogical interventions
designed to socialize plural cultures are fundamental and teacher training must be
thought and experienced, in this case, as a process in favor of otherness.
Key-words: Differences. Alterity. Training.
INTRODUÇÃO
A condição histórica do mundo contemporâneo configura-se em um momento de
contradições e dilemas sociais complexos, em diversos contextos, fenômenos como a
exclusão social, digital e tecnológica e suas consequências em nosso cotidiano, como a
violência, a injustiça, a intolerância e a desesperança. Por outro lado, existem caminhos
não-lineares a serem explorados, de reflexão entre sujeitos mais ativos, menos rígidos
e burocráticos, assim como, de possibilidades midiáticas que minimizam fronteiras de
comunicação. Esses caminhos, podem contribuir para a matriz central, a alteridade.
Percursos que conduzam a alteridade, podem auxiliar para a construção de relações
melhores e instaurar o humano como ponto central de toda prática educativa e social.
Neste sentido, a interdisciplinaridade garante a interação entre as partes envolvidas,
no intuito de ultrapassar o pensamento fragmentado, estabelecendo, segundo Fazenda
(2008), os princípios para a prática: humildade, espera, respeito, coerência e desapego.
Num contexto educacional, tais complexidades exigem ação educativa, ou seja,
intervenções fundamentadas e contextualizadas com a atualidade. Deste modo, pensar
a respeito das transformações no campo da formação de professores(as) é condição
sine qua non para tomada de posição e decisão. Este artigo apresenta resultados, tanto
de experiência empírica quanto revisão bibliográfica, sobre a referência e desafio de
formar professores (as) para humanização e socialização de culturas plurais. Analisa
a dimensão pedagógica e política do uso das mídias no processo de formação em
consonância com a importância da preservação, do respeito e enaltecimento da
diferença e da presença do Outro assumindo como princípio, práticas de alteridade,
principalmente em Emmanuel Lévinas (2015).
Nesse sentido este artigo é fruto de uma pesquisa em fase de conclusão que aborda
e problematiza formas de exclusão/inclusão no cotidiano por meio de caminhos
não-lineares e pouco explorados na pesquisa interdisciplinar. Objetiva evidenciar
aprendizagens para convivência com as diferenças e a busca pela alteridade nos
diferentes tempos e espaços. Por meio de um levantamento bibliográfico e da reflexão
crítica, apresenta ideias para a formação de professores(as) acerca dos limites e
potencialidades interativas das mídias digitais na educação para humanização e
socialização de culturas plurais. Numa perspectiva interdisciplinar e sob à luz dos
Estudos Culturais, conclui que as intervenções pedagógicas pensadas para socializar
culturas plurais são fundamentais e a formação de professores(as) deve ser pensada e
de estudantes e professores(as).
O desafio consiste em sermos capazes de discutir as relações entre os diferentes grupos
e as identidades culturais, ou seja, a relação com o Outro no núcleo das realidades
presentes na escola, e o uso consciente das mídias como possibilidade na formação de
professores(as) para a alteridade e enaltecimento das diferenças.
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Rumar em direção à alteridade está relacionado a intersubjetividade, do encontro do
eu e o Outro, e mais que isso, intimamente sustentado no objetivo de não se importar
somente com as próprias necessidades, mas principalmente, com as necessidades do
Outro. Apresentamos assim, aporte teórico sobre “alteridade” baseado no estudo
do pesquisador lituano-francês Emmanuel Lévinas, conhecido como o “filósofo da
alteridade”. Para isto, evidenciamos algumas obras do autor que aprofunda tal conceito
na filosofia contemporânea, são elas: Humanismo do Outro homem (LÉVINAS, 1993), Entre
Nós: ensaios sobre a alteridade (LÉVINAS, 2010) e Totalidade e Infinito (LÉVINAS, 2015).
No campo da formação docente e suas transformações, este artigo, uma vez ancorado
nas reflexões filosóficas de alteridade, concentra esforços na análise dos contributos
da mídia no processo formativo para uma sociedade inclusiva e justa, sem perder de
vista a problematização e os significados que representam tais contribuições para a
leitura crítica de formação de professores(as), tanto pedagógico quanto político. Para
isto, recorremos aos estudos de Rosa Maria Bueno Fischer (2007), Paulo Freire (1998),
Denise Rosana da Silva Moraes (2016), Teresa Teruya (2006), entre outros.
Compartilhamos a ideia de que as identidades são constituídas nas relações humanas,
fortemente marcadas pelas tensões, dinâmicas e disputas de poder nos diferentes
espaços sociais. Por este motivo, e por defender que identidade e diferença precisam
ser representadas na pedagogia e no currículo, apresentamos fundamentalmente
como plano de fundo desta tessitura, o campo dos Estudos Culturais, na aproximação
das mídias com a educação, por intermédio dos seguintes autores: Henry A. Giroux
(2013), Stuart Hall (2014), Douglas Kellner (2013), Tomaz Tadeu da Silva (2014) e Roger
J. Simon (2013).
3.1 Alteridade na filosofia contemporânea
Em sua obra “Humanismo do Outro homem”, Lévinas (1993) construiu sua defesa a favor
da reativação do humanismo, de modo intersubjetivista, para proteger o homem de
si mesmo. Para este filósofo contemporâneo, a resposta para tal empreitada estaria na
alteridade, na escuta da “presença do Outro”, no estabelecimento de novos laços de
bondade e responsabilidade.
A intersubjetividade é urgente na construção da paz que se dá por meio da justiça para
todos (as) e como responsabilidade de cada um. Pois, é “a partir da responsabilidade
por outrem, que aparece a justiça, que comporta julgamento e comparação, comparação
daquilo que, em princípio, é incomparável, pois cada ser é único; todo outrem é único”
(LÉVINAS, 2010, p. 131). Para este filósofo da alteridade, a filosofia seria o surgimento da
sabedoria por meio do âmago da caridade ou bondade, da sabedoria do amor. Embora
o autor não goste de usar a palavra amor, porque a considera gasta e adulterada, numa
parte da entrevista presente na obra “Entre nós: ensaios sobre a alteridade”, ele se obriga
O caminho para humanizar e socializar culturas plurais é complexo, quase que sinônimo
de educação da paz. Por outro lado, são situações de conflito que nos encontramos
com o Outro, e nos alteramos. Bondade, solicitude, responsabilidade, podem aparecer
simplesmente como palavras bonitas num texto, mas são difíceis de serem praticadas
em qualquer contexto.
Para Lévinas (2015, p. 274), não existe nada de novo neste caminho, afinal: “A relação
social não se transformará inteiramente em relações de consciência e de poderes?
Representação coletiva, só difere, de facto de um pensamento pelo seu conteúdo e não
pela sua estrutura formal”. Que a filosofia contemporânea nos auxilie, que os Estudos
Culturais nos dê mecanismos para mudar certos fatalismos vividos nas formações de
professores(as).
Com tantas questões urgentes a serem tratadas, que impedem a paz e a justiça, como
racismo, machismo, preconceitos e exclusão, não deixemos o pessimismo nos tomar
como vencidos, não nos contentemos em aceitar, frente a essa consciência contraditória.
Nos esforcemos um pouco mais, numa pedagogia, num currículo alternativo. Não
estamos sozinhos, e sim, lado a lado com nossos/as estudantes.
CONCLUSÕES
A necessidade de considerar as diferenças e as identidades culturais é pressuposto
na formação de professores(as), seja para a utilização de um dispositivo pedagógico
de mídia ou não. Refletir como fazer e agir diante desta apropriação também é
The present article is part of a dissertation research, still in progress academic Master
course of the post graduate program in Humanities, Culture and Art in Unigranrio.
Aims to comprehend the interdisciplinar proposal between theater and pedagogy
in the educational practice. Starts conceptualizing education, body, discipline, and
compartmentalized knowledge. Initially analyse the school as a place for expression,
though be a local for confinement, power and control (Foucault). Investigates the
teatcher practice conscientization and subversion inside the scholar tools through of
the Viola Spolin`s theatre method. It dois a comparative analysis between the stage
and the classroom. Also it tries to recognize how the teach of the theater can be used
working in the expressions, speech and the body in the classroom, introducing new
knowledges. At last, enforce the importance of this knowledge areas in the education.
Keywords:Education. Body. Theater
INTRODUÇÃO
A escola é o espaço das descobertas e das interações sociais. O rganiza o sistema
de aprendizagem em trocas eé local para experiência e diálogo com a diversidade
humana, gerando a construção do conhecimento.Paradoxalmente, essa mesma
reproduz questões de poder num mecanismo de perpetuação da ideologia dominante
na medida em que o professor se coloca como o único ser que detém o conhecimento ao
transmitir sem problematizarsaberes compartimentados. O professor do departamento
de Educação da Ue rj, Guilherme Lemos, problematiza a questão quando diz que
[...] o sujeito do conhecimento é a cada instante fundado e refundado, através
de um discurso tomado como um conjunto de estratégias que fazem parte das
práticas sociais, o que contradiz a vigente compartimentação do conhecimen to
em disciplinas e, por conseguinte, a inadequação do magistério como formação
a uma sociedade que, como afirma Stuart Hall (2006), já se configura sob a ég
ide do sujeito descentrado. Talvez resida nessa inadequação o sentimento de
cris e que perpassa os meandros da Educação. (LEMOS, 2015. In: Geo UERJ,
Rio de Janeiro, n. 27, 2015, p. 309-322)
ressignificando situações do cotidiano. É uma apre ndizagem que pode dar sentido
na vida do aluno e dos professores, na medida em que, a forma de transmissão se dá
de maneira teatral, e quando o professor internaliza que seu trabalho não seria apenas
uma transmissão de mensagens, mas uma promoção no sentido dialógico.
O contato com o teatro, além de propiciar a experiência de aprendizado próprio,
do autoconhecimento e da relação com o próximo , resulta também no estímulo à
criatividade, importante instrumento na vida do professor. Conforme Desgranges
(2010), “a experiência com o teatro estimula que os participantes trabalhem isto que o
diretor teatral inglês Peter Book chama de ‘o músculo da imaginação ‘”. (p.88)
Percebe-se a importância do conhecimento teatral na medida em que se pode conhecer
a realidade, ao outro e a si próprio. A consequente visão de mundo através dos jogos
que serão desenvolvidas, o respeito, o ouvir, são práticas que a arte teatral quando
desenvolvidas nesse propósito, resultarão em práticas de reflexão no ambiente escolar.
A respeito do conhecimento de si e da realidade, Reverbel (1997) nos explica que:
Nesse sentido, o ensino de teatro é fundamental, pois, através dos jogos de
imitação e criação, a criança é estimulada a descobrir gradualmente a si propria,
ao outro e ao mundo que a rodeia. E ao longo do caminho das descobertas vai
se desenvolvimento concomitantemente a aprendizagem da arte e das demais
disciplinas. (p. 25)
A experiência com os Jogos parte do princípio de que foi “criado para todos os que
desejam expressar-se através do teatro”. (DESGRANGES, 2005, p. 109). Na prática
docente, em que o corpo, a voz e a mente são imensamente trabalhados, a utilização
das técnicas teatrais seriam um dispositivo de conscientização dos seus recursos.
Nos jogos estão classificados três elementos teatrais que fazem parte do processo que
são: O QUE, que diz respeito a ação; QUEM, que diz respeito a personagem e ONDE,
que diz respeito ao espaço.
No exercício de improvisação, proposto por Viola, a ideia é que poucos recursos sejam
utilizados em cena, tornando a cena mais física. “Para o teatro improvisacional, por
exemplo, onde pouco ou quase nenhum material de cena, figurino ou cenário são
usados, o ator aprende que a realidade de palco dever ter espaço, textura, profundidade
e substância - isto é, realidade física” (VIOLA, 2005, p. 15). Nesse conceito, a autora
defende que quem pratica a improvisação, deverá chegar a um objetivo, sem precisar
de elementos para a composição e criação da personagem. O ator deve mostrar o seu
ato e não contar.
Depois de estruturados os elementos da ação, do local e do personagem, outro elemento
fará parte do processo de improvisação que se cha ma Ponto de Concentração (POC).
Através do POC, todos que participam do processo de improvisação, continuam
envolvidos com as atividades para a resolução do problema em cena proposto.
O método de improvisação tem como premissa a espontaneidade, que seria a essência
dos jogos teatrais. É na espontaneidade que há a liberdade no ato da criação.
Spolin (2005) divide a espontaneidade em sete aspectos: Jogo; Aprovação/
desaprovação; expressão de grupo; plateia; técnicas teatrais; transposição do processo
de aprendizagem e fisicalização.
De acordo com Spolin (2005), o primeiro aspecto - jogo - caracteriza-se assim:
Qualquer jogo digno de ser jogado é altamente social e propõe intrinsecame nte
um problema a ser solucionado - um ponto objetivo com o qual cada indivíduo
deve se envolver, seja para atingir um gol ou para acertar uma moeda num
copo. Deve haver acordo do grupo sobre as regras do jogo e interação que se
dirige em direção ao objetivo para que o jogo possa acontecer. (p. 5)
Esse aspecto, infelizmente, faz parte da vida escolar, quando os melhores serão
recompensados e aprovados pelo professor. Spolin acredita que nos Jogos, o
Dentre os inúmeros aspectos aqui apresentados, destaco este ponto como o mais
importante no fazer teatral que é o aprendizado da arte para a vida ou para a prática
docente. Quando se reconhece as diversas manifestações culturais e se entende que
a diversidade faz parte do cotidiano escolar, o professor terá a liberdade da criação,
fugindo dos sistemas de imposições e regras de comportamento.
E, finalmente, o sétimo aspecto da espontaneidade, é o conceito de fisicalização já
relatado neste artigo que seria a não utilização de material em cena para que a criação
da personagem não precisando de nenhum artifício para a atuação.
Como forma de ilustração, apresento dois exercícios teatrais que trabalham com
o conhecimento do corpo, proposto por Viola Spolin (2005, pp. 137 e 138)
Exercícios para movimento total do corpo
- Envolvimento total do corpo Dois ou mais jogadores.
Eles estabelecem Onde, Quem e O Quê.
Devem escolher uma cena que envolva ação da cabeça aos dedos dos pés. Ponto
de Concentração (P OC): Envolvimento da cabeça aos dedos dos pés.
EXEMPLO: Reunião para rememorar um acontecimento; peregrinos indo para o
santuário; mergulhadores procurando um tesouro submarino; removendo uma
pedra da entrada de uma caverna; astronave sem gravidade.
- Movimento rítmico
Grupo todo
Peça aos jogadores para sentarem ou ficarem de pé num espaço amplo. Professor
enuncia um objeto (trem, avião, astronave, máquina de lavar, etc). Os jogadores
devem imediatamente, sem pensar, fazer o movimento que o objeto sugere.
Peça para continuarem os movimentos até que se tornem fáceis e rítmicos.
Quando isso ocorrer, peça ao grupo, por meio de Instruções, para deslocar-se na
área, continuando a movimentação. Coloque um disco ou peça para um pianista
tocar, enquanto que os alunos mantêm os mesmos movimentos. Monte uma cena
para os jogadores, enquanto estão se movimentado.
EXEMPLO: Os personagens foram rapidamente distribuídos, sem interromper os
movimentos. Um aluno, que tinha desenvolvido um interessante movimento de
inclinação de tronco, tornou-se um porteiro de uma casa de shows. Duas garotas,
que tinham usado movimentos com as mãos parecidos com hélices, tornaram-
se dançarinas. Uma garota que corria rapidamente de um lado para o outro do
palco, tornou-se uma mãe que procurava sua criança, e assim por diante. O palco
todo se transformou num carnaval estimulante e animado.
Com o método de Spolin, o professor pode analisar a sua prática e perceber como
o teatro pode contribuir para uma aula mais enriquecedora e criativa. A proposta
é articular os estudos das Artes Cênicas na Educação, favorecendo um ensino que
valorize a participação de todos e principalmente, um olhar dinâmico na transmissão
dos conhecimentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista, a concepção do corpo no espaço escolar como elemento importante para
a autonomia do sujeito e das práticas pedagógicas que buscam outras metodologias
como forma de subverter dentro do aparato, o contato com a experiência artística em
teatro pode possibilitar outros processos de aprendizagem através da criação, tanto
para quem oferece o recurso, quanto para quem participa ou assiste.
O exercício teatral, os jogos conceituados por Viola, ou qualquer outra metodologia
cênica, promove a percepção do senso estético, estimulando o prazer de atuar e o
aprendizado em artes cênicas ou naquele que deseja se expressar através do teatro.
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DUARTE, João Francisco Junior. Por que arte-educação?6 edição. SP: Papirus, 19 91.
Na mesma linha de Nobre (2004), os autores americanos Lee Epstein e Gary King
(2013) em obra dedicada a demonstrar as dificuldades do campo jurídico para realizar
uma pesquisa empírica adequada advertem:
Um advogado que trata seu cliente como uma hipótese teria retirada sua licença;
um Ph.D. que advoga uma hipótese como um cliente, seria ignorado. Mas
quando advogados – como professores de direito – vão de um tribunal para
os corredores da faculdade (onde a verdade, e não somente uma determinada
versão dela, importa), é altamente problemático para eles defender teorias e
hipóteses como se eles fossem clientes necessitando a melhor representação
possível, desprezando competidores ou ignorando-os completamente. Isto
porque, na pesquisa empírica, desafiar uma teoria com os melhores argumentos
opostos possíveis é o que mais fortifica uma teoria (EPSTEIN; KING, 2013, p.15).
A confusão entre prática jurídica e a pesquisa acadêmica como uma das razões para a
existência de poucas pesquisas empíricas no Direito é analisada ainda por Oliveira e
Adeodato (1996), dentro da lógica da eficiência da administração versus qualificação
do pesquisador, onde os mesmos concluem que:
Um dos grandes problemas da área é a falta de qualificação e experiência dos
eventuais candidatos a pesquisadores, amadores recrutados na advocacia
privada, na magistratura, no ministério público, muitos sem o menor preparo,
tornando a pesquisa em direito uma atividade secundária e diletante, ainda
menos importante do que o já desprestigiado ensino.
Nas faculdades de direito das universidades públicas, as quais ainda vivem
as conseqüências da política educacional dirigida pelo regime militar de 1964,
vê-se toda uma geração de professores — teoricamente candidatos naturais
à pesquisa — que, com as exceções de praxe, foi selecionada e formada em
esquemas de ideologias políticas, relações pessoais, favores e privilégios, com
pouca ou nenhuma atenção para com a qualificação profissional. Esses setores
certamente não desejam nem estão preparados para uma concorrência aberta
em que se avalie a produção de resultados como critério para distribuição dos
recursos disponíveis (OLIVEIRA; ADEODATO, 1996).
Pereira Neto e Mattos (2007) identificam que não é possível pensar em uma reforma
do ensino jurídico sem que esta esteja acompanhada por um ciclo de inovação em
pesquisa dizendo ser fundamental associar o diagnóstico da crise do ensino jurídico ao
diagnóstico de uma crise da pesquisa em Direito, esta última decorrente da hegemonia
quase absoluta de métodos formalistas.
Atualmente, a pesquisa em direito realizada no Brasil tem natureza
predominantemente descritiva do ordenamento jurídico e dos conceitos
dogmáticos nele estabelecidos. A reconstrução dogmática, baseada em
categorizações e taxonomias voltadas para a “organização” lógica do
ordenamento jurídico, é considerada etapa necessária da pesquisa jurídica.
E tal reconstrução em geral é realizada assumido o sistema jurídico como
sendo fechado e estático, sem incorporar elementos explicativos das condições
(dinâmicas) de operação do direito ou normativos no sentido de propor
alternativas de desenho das instituições relacionadas à operação do direito. (…)
As pesquisas hoje realizadas na academia jurídica brasileira são derivadas
de modelos analíticos descritivos (acusados de formalistas) ou especulações
interpretativas (aparentemente sem fundamento em pesquisa empírica
consistente) a partir de modelos do tipo dworkiniano. Alternativas realistas,
como por exemplo aquelas inspiradas nas escolas de law and economics ou
do critical legal studies, acabam sendo caracterizadas simplesmente como uma
negação da especificidade da pesquisa em direito e desconsideradas no debate
acadêmico (PEREIRA NETO; MATTOS, 2007).
2 Neste ponto, deixa-se claro que este trabalho não tem como objeto defender atualmente a objetivação de sistemas jurídicos em
dois quadros objetivos de famílias, haja vista que é preciso considerar as especificidades e a numerosidade de sistemas jurídicos
ocidentais bem como a influência de um sistema sobre o outro. A apresentação dos sistemas é meramente didática.
Mas além dessas razões apontadas, é preciso ainda, dentro da reflexão epistemológica
e retornando a influência da prática jurídica sobre a pesquisa acadêmica, destacar
que a influência paradigmática na construção do sistema jurídico brasileiro pode se
apresentar como mais uma razão para que não se verifique um hábito e prática de
investigações empíricas como nas demais ciências sociais.
Ocorre que a formação do Direito ocidental é orientada por meio de duas grandes
tradições jurídicas, tradições diretamente ligadas às epistemologias dominantes nos
países de maior influência teórica sobre a consolidação dos sistemas jurídicos de
diferentes Estados Nações. Trata-se das duas tradições denominadas como famílias
common law e civil law2.
O agrupamento do direito em “famílias” foi sistematizado a partir de elementos mais
fundamentais e estáveis dos sistemas jurídicos, haja vista a diversidade de direitos
com regras que podem ser infinitamente variadas.
Este trabalho, que visa uma reflexão estritamente metodológica se serve dessa
sistematização histórica, mas considera que a mesma, qualquer que possa ter
sido sua expansão, não consegue dar conta de toda a realidade do mundo jurídico
contemporâneo (DAVID, 2002, p.23).
No primeiro sistema, o civil law, também chamado de família romano-germânica,
porque desenvolvido a partir de países europeus de influência latina e germânica,
estão agrupados os países nos quais a ciência do direito se formou sobre a base do
Direito Romano, onde as regras de Direito são concebidas inicialmente como regras de
conduta que deveriam regular as relações entre os cidadãos (Direito Civil) e onde se
atribui grande importância à lei geral e abstrata, já que os diversos países pertencentes
a este grupo dotaram-se de códigos jurídicos (DAVID, 2002, p.23).
Devido à colonização, a família de direito romano-germânica conquistou vastos
territórios, onde atualmente se aplicam direitos pertencentes ou aparentados
com esta família. Um fenômeno de recepção voluntária produziu o mesmo
resultado em outros países que não estiveram submetidos ao domínio dos
povos do continente europeu, mas em que a necessidade de se modernizarem
ou o desejo de se ocidentalizarem levaram à penetração das ideias europeias.
(DAVID, 2002, p.24)
houve numerosos contatos entre estes e os novos países que receberam as tradições
pela colonização ou voluntariamente, razão pela qual existem estruturas bastantes
diferenciadas entre países de common law ou entre países de civil law.
Sendo assim, não pretende o trabalho dizer que ainda hoje se sustentam limites
definidos nessa diferenciação de common law e civil law, os quais poderiam ser aplicáveis
universalmente a qualquer país ocidental.
O que se procura mostrar recuperando, em linhas gerais, características desses dois
grandes sistemas é que o Direito formado em determinado país forma-se a partir de
influências históricas e epistemológicas que o precedem, e estas influências carregam
também concepções científicas e metodológicas que determinam as estratégias de
pesquisas predominantes em campo científico.
Estas características próprias e disciplinares perceptíveis também na formação
metodológica de uma determina ciência através de suas técnicas de pesquisa são
percebidas por Almeida e Pinto (1975) quando apresentam a concepção de “meios de
trabalho”:
São eles constituídos, em cada formação científica, pelo corpo de conceitos,
métodos e técnicas disponíveis num momento dado e accionáveis, portanto,
nas actividades de investigação que se processam no âmbito dessa formação. Os
meios de trabalho teórico são assim, neste sentido, os elementos propriamente
instrumentais do que designámos por condições teóricas de produção científica
(ALMEIDA; PINTO, 1975, p.367. Grifos nossos).
Assim, a tradição sob a qual se ergue a formação jurídica de um país possui relação
direta com a prática de pesquisa do campo jurídico que o constitui, haja vista que,
como considera Carvalho (2010, p.9), no âmbito da formação sócio-histórica são
engendrados “regimes de verdade” nos quais se incluem os processos de produção do
conhecimento assim como as práticas que incidem na produção da pesquisa.
Investigando os pressupostos metodológicos utilizados de forma predominante pelo
campo jurídico, identifica-se que as duas tradições carregam em sua formação métodos
de pensamento próprios do contexto de seu desenvolvimento. Assim é que a tradição
de civil law iniciada sob a égide do racionalismo francês, possui forte influência do
método dedutivo e a tradição common law do método empírico-indutivo, reflexo do
empirismo britânico.
(...) há no civil law traço marcante do método dedutivo: construção de proposições
genéricas, abstratas, que visem resolução de diversos casos concretos mediante
subsunção.
Em contraponto, decorrente de um raciocínio indutivo, empírico, experimental
e prático, próprio do sistema anglo-americano, nasceu o common law; isto é:
case law, direito comum, casuísmo jurídico, com grande força na atividade
jurisdicional (jurisprudência), e nos Costumes (direito consuetudinário).(...)
O estudo do direito ocidental, pois, se molda a partir destas duas concepções
de pensamento. Até mesmo a forma de ensino da ciência jurídica no contexto
ocidental, varia segundo essas concepções. Os diferentes métodos de
pensamento ocasionam diversas maneiras de enxergar a ciência jurídica, e
consequentemente, apreende-la (FIGUEIREDO, 2013, p.11).
epistemológicos, aquilo que até então integrava mundo do ser – e por esta razão
era tido como impertinente ao conhecimento do direito –, agora se tornava parte
útil, relevante, ou mesmo indispensável aos expedientes pelos quais se determina
a vigência e o alcance do dever ser (SILVA, 2016, p.30).
É percebido com a exaustão do positivismo jurídico portanto, que a interação dos estudos
sociais com o Direito abre perspectivas para superação da metodologia formalista
usualmente utilizada, e nesse sentido, perspicazes são as considerações de Kant de
Lima (1983) e Baptista quando lembram que apesar do campo jurídico ser estabelecido
e legitimado internamente como uma esfera à parte das relações sociais, na realidade
não pode ser estudado de forma dissociada do seu campo social de atuação porque ele é
parte do controle social, não podendo ser visto como um saber monolítico.
O mundo jurídico, portanto, não deveria se constituir de um saber especializado,
uma vez que a sua lógica e o seu ordenamento se difundem e atingem todas as
esferas e camadas sociais. Todavia, é assim que o campo funciona e isto faz com
que a produção desse saber específico implique em um tremendo distanciamento
formal da realidade, que não se constitui de configurações normativas ideais,
como o Direito prevê (BAPTISTA, 2010).
Em artigo mais recente, Kant de Lima e Baptista (2015) anunciam que mesmo passados
25 anos do primeiro trabalho de Kant de Lima (1983) que chamava a atenção para
a importância de se constituir um campo de pesquisa empírica, de base crítica, no
Direito a dificuldade persiste e continua-se a retardar a constituição deste campo
crítico-reflexivo.
Daí é que como proposta de superação do quadro, Kant de Lima e Baptista (2016)
entendem que é necessário não apenas o fomento dessa metodologia de pesquisa
no ensino de graduação e pós-graduação, como ainda é preciso “articular a relação
institucional entre academia e os Tribunais” bem como do Direito com outras áreas
de conhecimento.
Permitir-se pesquisar e ser pesquisado e permitir-se criticar e ser criticado
academicamente, fora da lógica do contraditório, é algo sobre o que os juristas e os
membros do Poder Judiciário precisam começar a pensar. E quando manifestamos
isso não intentamos diminuir ou subjugar o saber dos integrantes desse campo,
mas, ao contrário, chamar a atenção para o fato de que a inculcação que neles se
faz desde os bancos universitários acaba por formar operadores resistentes ao
fazer jurídico diferente e treinados para a reprodução do conhecimento consagrado
e dos dogmas que embotam a criatividade e a crítica.
Além disso, a interlocução do Direito com outras áreas do conhecimento
é, igualmente, fulcral para o aprimoramento do nosso sistema judiciário.
A abertura do Direito, que é um campo tradicionalmente hermético, é um
importante passo para se alcançar estratégias institucionais de mudança do
quadro atual (KANT DE LIMA; BAPTISTA, 2016).
EUZEBIO, Umberto
Professor no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Sociedade e Cooperação Internacional da Universidade de Brasília
E-mail: umbertoeuz@gmail.com
REBOUÇAS, Eduardo Melo
Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em
Linguística da Universidade de Brasília
E-mail: eduardomelo.reb@gmail.com
RESUMO:
Neste trabalho foi analisada a metodologia interdisciplinar na formação de professores
de português como língua de acolhimento, em um grupo heterogêneo de imigrantes
do Haiti por meio de oficinas interdisciplinares envolvendo os oito eixos de orientação
para extensão universitária: saúde, educação, trabalho, tecnologia, meio ambiente,
comunicação, direitos humanos e cultura. As oficinas foram desenvolvidas com
amplas interações e discussões por meio da interculturalidade, relações sociais e
interdisciplinaridade, sempre com adaptações e alterações do planejamento, para
atender às demandas dos participantes. Foi constatado que a sensibilização do formando
para atuar com ensino de português como língua de acolhimento para a construção de
práticas específicas de ensino para imigrantes e a formação interdisciplinar permitem
maior compreensão do universo dos estudantes e maior diálogo e interação entre eles
e o professor.
Palavras-chave: Imigrante. Haitiano. Acolhimento.
ABSTRACT:
In this paper the interdisciplinary methodology was studied in the training of
teachers of Portuguese as a host language in a heterogeneous group of immigrants
from Haiti through interdisciplinary workshops involving the eight orientation
axes for university extension: health, education, work, technology, environment,
communication, human rights and culture. The workshops were developed with
wide interactions and discussions through interculturality, social relations and
interdisciplinarity, always with adaptations and changes of the planning, to
attend the demands of the participants. It was verified that the sensitization of
the undergraduates to act with teaching of Portuguese as a host language for the
construction of specific teaching practices for immigrants and the interdisciplinary
formation allow a greater understanding of the universe of students and greater
dialogue and interaction between them and the teacher.
Keywords: Immigrant. Haitian. Reception.
INTRODUÇÃO
O Brasil tem recebido um fluxo migratório caraterizado por imigrantes e refugiados,
provenientes de países latino-americanos, africanos e asiáticos, que buscam melhores
condições de vida e que, comumente, não têm domínio da língua portuguesa.
A falta de conhecimento da língua dificulta sua integração à cultura brasileira e,
consequentemente, sua inserção no mercado de trabalho. Esses dados também estão de
acordo com estudos de Fernandes; Milesi e Farias (2011) sobre haitianos em Manaus.
Segundo Cunha (2012), foi concedido, pelo Brasil, visto de permanência a centenas
de haitianos que migraram em razão do terremoto ocorrido em 2010, sob o inédito
fundamento de assistência humanitária. Dessa forma, o Brasil assume responsabilidades
em parceria com o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os refugiados)
oferecendo proteção e assistência às pessoas de forma imparcial sem distinção de raça,
sexo, religião ou opinião política. (UNHCR/ACNUR, s.d.)
O aprendizado da língua passa a ser uma necessidade imediata, envolvendo questões
relacionadas à própria sobrevivência no novo país, já que, como afirma Grosso (2010,
p.66), a mobilidade, nessa conjuntura, “afeta todas as áreas da vida de quem se desloca,
principalmente na área laboral”. Nesse sentido, é fundamental uma ação pedagógica
que parta do contexto e das demandas do público-alvo, ou seja, torna-se fundamental
que o professor tenha conhecimento da origem e da realidade de cada aprendiz para
melhor efetivação da prática de ensino e do aprendizado. Como afirmam Barbosa e
Ruano (2016, p.323), “a formação de professores, a confecção de materiais didáticos para
esse público e as dinâmicas em sala de aula necessitam de uma atenção diferenciada
por parte dos autores envolvidos neste processo”, de modo a desenvolver a autonomia
do aprendiz, entendo-o como cidadão e, segundo Grosso (2010, p.72), como ator social
na sociedade que o acolhe.
Nesse sentido, surge o conceito de língua de acolhimento, que tem ampla abrangência.
Na verdade, não é um termo novo, mas devido ao contexto migratório atual do Brasil e
suas implicações no ensino e na aprendizagem da língua, o termo vem sendo utilizado
com maior frequência nos estudos linguísticos brasileiros. Segundo Grosso (2010, p.62),
num cenário de grande mobilidade, marcado por uma diversidade linguística e cultural,
as mudanças econômicas e sociopolíticas abrem caminho a novos públicos, a novos
contextos de ensino-aprendizagem, resultando diferentes formas de ver a educação
em línguas. Ainda segundo a autora, nesse contexto, emergem termos que se impõem
pela frequência ou (re)criam e fixam conceitos com reinterpretações, resultantes das
novas demandas socioeducativas, como é o caso de língua de acolhimento.
Neste trabalho não objetivamos a conceituação do termo, mas a discussão acerca da
relação entre língua e acolhimento e esse contexto relacional na formação interdisciplinar
do professor de português. No entanto, é necessário esclarecer que entendemos a língua
de acolhimento como a língua ensinada num contexto singular que envolve uma situação
conjuntural específica de imigrantes e refugiados, considerando o conhecimento
sociocultural do aprendiz para o desenvolvimento de habilidades linguísticas para
novas práticas sociocomunicativas que envolvem a língua no novo país. O contexto de
língua de acolhimento privilegia uma abordagem sociointeracionista e, de acordo com
Grosso (2010, p.71-72), uma perspectiva construtivista e intercultural.
Na formação docente, de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs,
dentre as funções do professor está o planejar, implementar e dirigir as atividades
didáticas, com o objetivo de desencadear, apoiar e orientar o esforço de ação e reflexão
do aluno, procurando garantir a aprendizagem efetiva. Cabe também a esse educador,
assumir o papel de informante e de interlocutor privilegiado, que tematiza aspectos
prioritários em função das necessidades dos estudantes e de suas possibilidades de
aprendizagem.
O objetivo desse trabalho foi analisar a metodologia interdisciplinar de formação de
estudantes de Letras para a atuação em atividades específicas de ensino de português
como língua de acolhimento, em um grupo heterogêneo de imigrantes do Haiti. Como
metodologia, os estudantes de Letras criaram oficinas integradas interdisciplinares
envolvendo as oito áreas temáticas do Plano Nacional de Extensão: comunicação,
cultura, direitos humanos, educação, meio ambiente, saúde, tecnologia e trabalho
proposta no Fórum de pró-reitores de extensão universitária. (FORPROEX, 2001a, p.
21-22) “A extensão universitária como prática acadêmica deve dirigir seus interesses
para as grandes questões sociais do país e àquelas demandadas pelas comunidades
regionais e locais”. (FORPROEX, 2001b, p. 27) No contexto de ensino de português como
língua de acolhimento, Barbosa e Ruano (2016, p.326) afirmam que “as Instituições de
Ensino Superior (IES) podem desempenhar um papel primordial para atuar, tanto no
ensino e pesquisa como por meio da extensão universitária”.
Esse artigo está estruturado nos tópicos: o imigrante haitiano; fundamentação teórica;
resultados alcançados e conclusão.
1. O IMIGRANTE HAITINO
De acordo com observações realizadas em nosso campo de trabalho, atualmente, com
as mudanças políticas e sociais no Brasil, houve uma diminuição do fluxo migratório
de haitianos. No entanto, o país ainda tem recebido cidadãos do Haiti em decorrência
A metodologia adotada tem tido resultados positivos. Observamos que um dos pontos
de maior dificuldade para a dinâmica das aulas ainda é a chegada de novos alunos,
pois exige uma reflexão constante por parte do mediador/professor sobre a prática
pedagógica e sobre as dinâmicas de interação e integração do grupo, de modo a dar
continuidade ao que já vem sendo trabalhado nos encontros anteriores e, também, a
acolher os novos aprendizes.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Partindo dessa realidade do imigrante haitiano, foram necessárias medidas de
acolhimento e inclusão desses novos cidadãos à sociedade, à cultura brasileira e
ao mercado de trabalho. Para a efetivação desse trabalho, houve necessidade de
integração das diferentes áreas do conhecimento, com temas transversais, envolvendo
práticas interdisciplinares. Moita Lopes (2009) afirma que temos muita dificuldade de
compreender o outro, e é justamente por esse aspecto que enfatiza a necessidade de
uma ação transdisciplinar e não apenas interdisciplinar, de modo a envolver o interesse
e o respeito pela voz do outro, com a finalidade de analisar como suas ideias coadunam
com as perspectivas em questão. Porém, por outro lado, a transdisciplinaridade,
apesar de ser um processo praticamente impossível de se investigar ou desenvolver
uma pesquisa independente, exatamente por apresentar a característica de ser
transversal, dificulta a especificidade disciplinar, portanto a solução para o problema
seria justamente a transversalidade.
Neste sentido, segundo Escobar (2010), é preciso ultrapassar o campo interdisciplinar,
tendo como objetivo superar a setorização do conhecimento, e como afirma Nicolescu
(2001) “o crescimento dos conhecimentos em nossa época torna legítima a questão da
adaptação das mentalidades a estes saberes”.
No processo de formação da cultura brasileira ocorreu e ainda está ocorrendo a interação
de diferentes povos e grupos sociais, que resultam em uma grande miscigenação,
formando uma realidade cultural peculiar, que inclui aspectos das diferentes culturas.
Essa diversidade da realidade cultural cria uma forma específica de vida que passa a
ser uma característica do povo brasileiro. De acordo com Arantes, Deusdará e Brenner
(2016, p. 1200),
De um modo ou de outro, as mudanças nessas sociedades vão acontecendo
e contribuindo para o envolvimento na construção de um novo conceito de
Ao mesmo tempo que a diversidade amplia os horizontes, ela também se fecha como
forma de segurança e proteção de cada grupo específico. Em Bauman (2001) é afirmado
que devemos nos emancipar, porém, para haver uma efetivação concreta, é necessário
ter esse desejo ou, ainda, querer essa transformação, o que não é um processo simples
devido à falta de subsídios para a libertação dessa sociedade complexa. A sociedade
e a comunidade são agentes transformadores desse processo, porém somente o são se
houver consciência da existência desse potencial.
A proposta é um desenvolvimento sustentável de inclusão na sociedade, que promove,
consequentemente, o desenvolvimento da competência comunicativa e interacional,
ressaltando a importância da língua falada como prática social conforme enfatiza
Moura (2006) ao explanar sobre língua falada, língua escrita e ensino.
Para se planejar um desenvolvimento sustentável, com a promoção de saúde, qualidade
de vida, cidadania e ação na língua de acolhimento, é necessária a integração entre as
cinco diferentes dimensões que estão em torno do que é sustentabilidade:
i) Sustentabilidade social, fundamentada e orientada para a visão de uma boa
sociedade, construindo uma civilização com maior equidade; ii) sustentabilidade
econômica, possibilitada por uma gestão mais eficiente dos recursos e por um fluxo
regular do investimento público e privado. A eficiência econômica deve ser avaliada
por critérios macrossociais, não apenas em termos da lucratividade microempresarial;
iii) sustentabilidade ecológica, que pode ser incrementada pela intensificação do uso
dos recursos potenciais com um mínimo de dano aos sistemas; limitação do consumo de
combustíveis fósseis e de outros produtos esgotáveis ou ambientalmente prejudiciais;
redução da poluição; limitação do consumo material pelos países ricos; intensificação
da pesquisa de tecnologias limpas; definição de regras para uma adequada proteção
ambiental; iv) sustentabilidade espacial, voltada para um equilíbrio urbano-rural, com
melhor distribuição territorial de assentamentos humanos e atividades econômicas;
e v) sustentabilidade cultural, que busca o ecodesenvolvimento em uma pluralidade
de soluções, respeitando as especificidades de cada ecossistema cultural local. Assim,
o planejamento ou experiência deve ser confrontado com a sua extensão, para então
avaliarmos as dimensões conceituais de sustentabilidade que enxerga a realidade do
embate entre capitalismo e meio ambiente. (SACHS, 1993)
Com relação aos direitos humanos e justiça social, o projeto busca dinamizar e dialogar
com diferentes áreas, como educação, saúde, assistência social, meio ambiente e, em
particular, com o trabalho e os direitos do cidadão imigrante conforme consta na
publicação da UNHCR/ACNUR. Esses dados também contemplam os oito eixos da
extensão estabelecidos no fórum de pró-reitores de extensão. Dessa forma, no que tange
à saúde, é fundamental que os temas transversais estejam voltados para o bem-estar
social integral conforme definições da Organização Mundial da Saúde, envolvendo
inclusive o lazer. De acordo com o Plano Nacional para Extensão Universitária deve-
se promover a autonomia e a sustentabilidade com relação às tecnologias sociais que
melhorem a qualidade de vida, incentive a cooperação, o empreendedorismo para
gerar renda e o desenvolvimento econômico sustentável, inclusive com a capacitação
de mão de obra ligada ao comércio de bens e serviços. (FORPROEX, 2007).
Nesse sentido, Barbosa e Ruano (2016, p.323) agregam que há desafios adicionais no
processo de ensino e aprendizagem,
desafios que são distintos daqueles encontrados em contextos tradicionais de
ensino do Português como Língua Estrangeira (PLE). O migrante refugiado
encontra-se submetido, por exemplo, a um conjunto de pressões econômicas,
sociais e legais que o colocam em uma posição de vulnerabilidade.
Nesse raciocínio, cabe pensar, por fim, nas especificidades do público em questão
frente à condição excessivamente genérica do termo “estrangeiro”, como propõem
Arantes, Deusdará e Brenner (2016). Para os autores mencionados, não há como
assumir o “estrangeiro” como um rótulo único para referir-se a todos que atravessam
as fronteiras em busca de acolhida; existe, na verdade, uma imprecisão e excessiva
homogeneização subjacente à expectativa de que propor práticas de ensino a este
segmento fosse absolutamente idêntica a oferecer cursos a estrangeiros. (ARANTES;
DEUSDARÁ; BRENNER, 2016, p.1201). É nesse mesmo sentido que Grosso (2010,
p.65-66) afirma que:
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
As oficinas foram desenvolvidas com amplas interações e discussões sobre cada
eixo temático, necessitando, com muita frequência, de adaptações e alterações
do planejamento inicial, com o objetivo de atender às demandas dos estudantes
participantes de acordo com suas necessidades. Compreende-se que há necessidades
imediatas que levam os imigrantes a procurarem as aulas, visto que já estão inseridos
em situações comunicativas reais: precisam alugar uma casa, conseguir emprego,
deslocar-se pela cidade, fazer compras, regularizar sua situação no país, entre outras.
Assim, para a elaboração das oficinas, os estudantes de Letras adotaram a perspectiva
dos letramentos, considerando, desse modo, as diferentes práticas sociais que envolvem
o uso da língua, envolvendo não apenas o letramento escolar, mas principalmente os
vernaculares, que fazem parte do cotidiano dos imigrantes haitianos, os quais estão
inseridos em diferentes realidades socioculturais.
No planejamento das oficinas foi destacado haver necessidade de maior sensibilização
do profissional de Letras em direcionar atividades específicas para o aprendizado da
língua, com dinâmicas que objetivam desenvolver particularmente a comunicação
oral da Língua Portuguesa por meio da interação e da interculturalidade,
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade.
O objetivo do projeto foi para além de conhecer as características desse imigrante,
favorecer o ensino e o aprendizado da língua portuguesa ou contribuir para esse
processo por meio de oficinas interdisciplinares; foi o de introduzir esses imigrantes
na cultura brasileira por meio de diferentes práticas sociocomunicativas, utilizando a
língua portuguesa como meio de interação oral. Para isso, foram abordadas situações
do dia-a-dia e do ambiente de trabalho, demandadas pelos próprios haitianos, de
modo a desenvolver a competência lexical, interacional e as respectivas habilidades
comunicativas, favorecendo o uso do português como forma de interação com os
brasileiros no ambiente de trabalho e, mais amplamente, na vida social, cultural e
religiosa.
Essas práticas promoveram reflexões sobre a formação do professor de Língua
Portuguesa para todos os formandos, exigindo deles decisões muitas vezes inesperadas
para atender às necessidades do aprendiz.
A partir das oficinas integradas já é possível observar que ocorreu integração entre
o grupo de haitianos e que houve avanço no aprendizado do português. Entre os
resultados e as dificuldades de condução do trabalho, está o fato de haver uma migração
contínua dessa população para o Brasil e, consequentemente, há a cada momento
chegada de novos aprendizes haitianos ao grupo. Apesar de haver uma continuidade
no trabalho, a dinâmica consiste em acolher todos os que chegam, porém, mantêm-se
a temática e as estratégias previamente preparadas para aplicação na aula.
A partir dessas práticas, segundo depoimentos dos próprios haitianos, já temos
INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta os resultados parciais de um projeto de pesquisa de bolsa de
Iniciação Científica (PIBIC/CNPq) que integra o projeto de pesquisa coordenado pelos
professores doutores Diana de Souza Pinto e Francisco Ramos de Farias intitulado “A
construção de narrativas acerca da memória social no Hospital de Custódia e Tratamento
Heitor Carrilho” desenvolvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Memória
Social da UNIRIO. Desde 2009, alunos de graduação das Escolas de Biblioteconomia,
Pedagogia, Filosofia, História e Serviço Social, junto com alunos de Mestrado,
Doutorado e Pós-Doutorado do programa acompanham o processo de fechamento
da instituição. Empregando diferentes aportes metodológicos, tais como a cartografia
e a etnografia, e lançando mão de múltiplas estratégias de pesquisa, a exemplo da
observação participante, da análise documental e de entrevistas individuais este
projeto visa a construção de uma memória da instituição que considere as experiências
dos sujeitos que ali atuaram profissionalmente, nos campos da Saúde, da Assistência
e da Segurança, como também daqueles que foram objeto das práticas dos saberes da
Medicina e do Direito, entre outros, a saber o louco-criminoso (FARIAS, 2010).
Este artigo objetiva discutir a memória social do Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico Heitor Carrilho, tomando como recorte o prontuário de uma paciente/
interna que permaneceu na instituição por mais de três décadas. Esse grande
documento é composto por mais de 600 páginas digitalizadas e em suporte papel.
Guias de recolhimento de presos, ofícios de apresentação e de requerimento por parte
de juízes, memorandos de comunicado de ingresso de interna, ofícios de solicitação de
internação, ofícios de encaminhamento para outras clínicas médicas, pedidos de laudo
periciais, resultados de exames clínicos e relatórios de evolução clínica, psiquiátrica e
prescrição médica são alguns dos gêneros discursivos (BAHKTIN, 2003) que integram
essa vasta documentação que narra a vida da interna que, nesta pesquisa, recebe o
pseudônimo de Maria dos Anjos, na referida instituição.
Partimos do pressuposto de que o HCTHC é um lugar de memória, “(...) lugares, com
efeito, nos três sentidos da palavra: material, simbólico e funcional, simultaneamente
(...)”(NORA, 1993, p. 21). E, segundo (DODEBEI, 2000, p. 64), “não existe memória sem
documentos”. Le Goff (1996) assinala que o termo latino documentum, derivado de
docere ‘ensinar’, evolui para o significado de ‘prova’ que parece ser também o significado
que o senso comum atribui para o termo (DODEBEI, 2005). Contudo, há de se destacar
que todo documento é uma construção social, na medida em que é fruto de condições
sócio-históricas que circunscrevem sua criação. Tal enfoque nos leva, portanto, a
considerar, acompanhando (LE GOFF, 1984, p. 103-104), que “O documento não é inócuo.
É, antes de mais nada o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da
época, da sociedade que o produziram (...)”. Entram em jogo a interpretação e a análise
das condições de produção que permitiram sua manutenção e preservação.
Assim, direcionamos o olhar, nesta investigação, para o fato de que a construção da
memória a ser realizada distancia-se do mero resgate de um passado, seja de sua
preservação, seja de sua transmissão, razão pela qual, metodologicamente, teremos de
distinguir aquilo que do passado é de utilidade para a construção de uma memória,
daquilo que é dispensável, como a cultuada comemoração que, nos dias atuais, aparece
estritamente vinculada à memória. Isso quer dizer que o nosso intento é discriminar
social. Nesse contexto, “novas formas de custódia se criam, num elo que se multiplica
ininterruptamente” (Dantas e Dahmer, 2009: 148) para abrigar os criminosos que não
podiam responder pelo crime praticado, ou seja, os considerados loucos criminosos.
O hospital de custódia e tratamento é gerido ao menos por três políticas públicas,
sendo elas: o Sistema de Justiça Criminal, a política penitenciária e a de saúde mental
(Dahmer, 2010).
A instituição, ao longo de sua estória, recebeu diversas denominações: Manicômio
Judiciário do Rio de Janeiro, Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, Hospital de
Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho (CARRARA, 2010; SANTOS, 2016)
e, por fim, Instituto de Pericias Heitor Carrilho. As nomenclaturas acompanharam os
diferentes contextos do saber médico-penal, relativos ao tratamento do louco infrator
(SANTOS; FARIAS; PINTO, 2015). Diferentemente do criminoso, que recebe uma
sentença e deve cumpri-la em uma instituição penal, ao louco infrator é aplicada a
medida de segurança. Ao cometer um crime, o portador de doença mental, em função
de seu transtorno, não pode ser responsabilizado por seus atos, sendo considerado
“inimputável”. Deve, assim, ser tratado e não punido. Um breve histórico da Reforma
Psiquiátrica no Brasil, também chamada de Reforma anti-manicomial (Hirdes, 2009),
por se posicionar frontalmente contrária às práticas hospitalocêntricas que orientavam o
tratamento desumanizado dos pacientes psiquiátricos até então, ocorreu em nosso país.
Em 1987 foi lançado o lema “Por Uma Sociedade Sem Manicômios” na I Conferência
Nacional de Saúde Mental, no Rio de Janeiro que, após muita discussão e criação de
leis, decretos e portarias relacionados ao trato com o sujeito portador de transtorno
mental, culmina com a sansão da lei 10.216/2001 que trata dos direitos destes doentes.
Progressivamente, após a promulgação desta lei, os manicômios são substituídos por
dispositivos alternativos tais como os Centros de Atenção Psicossocial, Residências
Terapêuticas, Ambulatórios de Saúde Mental, entre outros. Após um longo processo,
iniciado em 2007, como desdobramento das determinações resultantes no campo
da assistência ao doente mental preconizadas pela lei antimanicomial nº 10.216 de
06/04/2001 (Diário Oficial da União-09/04/2001) e pelas resoluções 4 e 5 do Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária de 2004 e 2010, os Hospitais de Custódia
e Tratamento Psiquiátrico que historicamente desenvolvem as funções de punir/
custodiar e tratar, conjugando os saberes médico, jurídico e penal precisaram, então,
encontrar dispositivos alternativos para os desinternados criando espaços para abrigá-
los (SANTOS; FARIAS; PINTO, 2015). Em 20 de março 2013, o governador do Estado
do Rio de Janeiro, por meio do decreto 44.130, altera a estrutura organizacional da
Secretaria de Administração Penitenciário (SEAP-RJ), modificando a denominação da
instituição: o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho se torna
Instituto de Perícias Heitor Carrilho. Dessa forma, os internos que já haviam cumprido a
medida de segurança, deveriam deixar o local. Contudo, muitos dos desinternados não
possuíam nenhuma rede familiar de suporte. Outros, sequer tinham seus documentos
de identificação com os quais poderiam solicitar os benefícios que lhe são garantidos
por lei para manter-se fora dos muros da instituição (VER BENEFICIOS). Contudo, é
dever do Estado providenciar locais, como determina a lei, para acolhê-los. Progressiva
e lentamente, a partir de um grande esforço, as equipes multidisciplinares do hospital
se articulam com setores da Assistência Social e da Saúde Mental do Estado do Rio de
Janeiro, apoiados por ações do Conselho Nacional de Justiça, dando início a um longo
processo em múltiplas frentes para a busca de locais para onde encaminhar esses “sem
4. OBJETIVOS
O objetivo deste trabalho é propor a construção de um piloto como modelo para a
organização do prontuário da paciente/interna Maria dos Anjos visando os campos
da saúde e jurídico. O presente trabalho trata da categorização e organização dos
documentos relativos ao campo médico e jurídico de tratamento. Este trabalho integra
o projeto de pesquisa em andamento “Construção da memória social do Hospital de
Custódia e Tratamento à Instituto de Perícia Heitor Carrilho por meio da organização,
registro e armazenamento de prontuários” que busca desenvolver critérios de
organização, registro e armazenamento do conteúdo do prontuário da referida
paciente/interna visando sua futura utilização na organização dos prontuários dos
demais pacientes/internos para seu futuro uso por pesquisadores. Cabe destacar que o
espaço físico do atual Instituto de Perícias Heitor Carrilho passou a abrigar, em junho
de 2016, a Biblioteca, ainda sem nome e o Museu Penitenciário do Rio de Janeiro, ambos
sob a coordenação da Escola de Gestão Penitenciária da SEAP. Integra os objetivos
da biblioteca, organizar todos os prontuários para, no futuro, disponibilizá-los para
outros interessados em compreender a memória do mais antigo manicômio judiciário
da América Latina.
5. RESULTADOS ALCANÇADOS
Por meio da categorização utilizada, observamos que os gêneros discursivos, em 1985,
eram predominantemente de caráter jurídico, embora houvesse oscilação na forma de
tratamento utilizada. Neste período Maria dos Anjos é tratada, em alguns documentos,
como “paciente” e, em outros, como “interna”. Também constatamos a ausência da
fala do sujeito, mesmo que em fala reportada, bem como a ausência de assinatura de
profissionais em alguns documentos. Nesta janela temporal, visualizamos poucos
profissionais multidisciplinares atuando na instituição, com o predomínio de médicos
psiquiatras e agentes penitenciários/inspetores. Múltiplas conclusões resultam dessa
breve investigação. Por um lado, o prontuário materializa a configuração de poderes/
saberes em atuação na instituição naquele momento. Pertencendo ao chamado DESIPE
(Departamento do Sistema Penitenciário) extinto em 2003, a instituição era alavancada
em grande medida por práticas penais e judiciárias, sendo a atividade de custodiar a
que predominava.
Já em 2009, foi observado que a forma de tratamento é invariavelmente “paciente”, o que
evidencia uma mudança na configuração dos saberes/poderes naquele momento. Em
consonância com a Reforma, mais particularmente em obediência a Lei 10.216, até 2019
nenhuma instituição de caráter asilar deve estar em funcionamento no país. A presença
da fala de Maria dos Anjos, registrada entre aspas, configurando uma tentativa de
trazer para o prontuário a voz singular de quem o possui, materializar uma outra
forma de lidar, por um lado, com a vulnerabilidade da paciente e, por outro, com a
“impotência”, expressa literalmente por uma médica psiquiatra ao registar, em uma
folha de evolução clínica, seus sentimentos face à situação de desamparo do Estado
com relação aquela mulher que passara mais de 30 anos em uma clausura forçada.
CONCLUSÕES
A organização do prontuário da paciente/ interna Maria dos Anjos nos possibilitou
construir parte da memória social do hoje extinto Hospital de Custódia e Tratamento
Psiquiátrico Heitor Carrilho sob a ótica dos diversos profissionais que com ela tiveram
contato dentro do contexto político e social pelo qual passava o Código Penal Brasileiro
em variados momentos, no que tange à custódia e tratamento do louco infrator. Com
obstáculos ainda intransponíveis relacionados a desinstitucionalização, não só na
questão de desospitalização mas também na reintregração do sujeito, se dá o fechamento
do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho (SANTOS, 2016). A
instituição acabou, porém parte de sua memória continua no prontuário.
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INTRODUÇÃO
A escrita sobre o sofrimento evidencia muitas surpresas, não somente por retratar
situações da ordem do incompreensível, como também por nos colocar diante de
circunstâncias passíveis de ocorrência no âmbito da condição humana. Enveredando
nessa direção rastreamos o legado de três escritores para entabular um diálogo acerca
da dimensão do sofrimento que transparece em filigranas de memória no tocante à
escrita: Maurice Halbwachs, Primo Levi e Jorge Semprun.
Pretendemos estudar a configuração dessas escritas, cuja peculiaridade de seus relatos
encontra-se na combinação entre perplexidade e necessidade de narrar. Revelando a
experiência traumática por vestígios, traços, impressões, de forma tão devastadora
quanto desestruturante, sofrida por esse grupo social que viveu o horror dos campos
de concentração. Tais narrativas do sofrimento vivido, mas inassimilável, aproxima-os
do indizível, daquilo que, somente sob mediação da literatura são capazes de suportar
apresentando algumas especificidades que constitui um verdadeiro desafio entre
memória e esquecimento.
1. A violência da experiência traumática
Primeiramente esclarecemos que para realizar o presente estudo, utilizamos como
subsídios teóricos o saber psicanalítico, por meio das contribuições freudianas, e as
contribuições teóricas do campo da Memória Social, com o intuito de trilhar uma
metodologia possível para desenvolver a questão sobre a escrita feita por alguns
autores que sofreram o horror dos campos de concentração, como uma possibilidade
de elaboração da experiência traumática a que foram submetidos e dar sentido a algo
que foi da ordem do indizível.
Os estudos sobre o trauma nas Ciências Humanas nascem no final do século XIX a
partir da Psicanálise. No ano de 1915, Freud se debruça sobre os estudos relativos a
destruição da cultura, e escreve o texto Sobre a Guerra e a morte, onde percebemos em suas
reflexões a surpresa inicial com os acontecimentos e as incertezas em relação ao futuro
da humanidade. Sua conclusão converge para a ideia de que a civilização não havia
descido a níveis morais e culturais tão baixos como se temia, porque simplesmente não
havia se elevado a níveis tão altos quanto se acreditava. Movido pelo horror do impacto
causado pela eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914) na sociedade europeia, erige
uma escrita e endereça seu testemunho ao social.
No seu modo de pensar, a Primeira Guerra Mundial, iluminava as sedimentações
sucessivas depositadas pela cultura no homem, fazendo reaparecer o homem primitivo
que existia em cada um. Se a sociedade acreditava ter atingido o ápice do desenvolvimento
humano e cultural de toda a história da humanidade, a guerra veio demonstrar quão
ilusória era a situação, pois, segundo Freud, a psique do homem moderno não era
tão diferente daquela do homem primitivo. Ou seja, a guerra mostrou que o sujeito
moderno e o selvagem podem ser igualmente cruéis, bárbaros e sanguinários.
Em outros de seus famosos textos, como O porquê da Guerra? (1933/1976), Freud com o intuito
de mostrar que a racionalidade logo cai por terra, e movido pelo desejo de compreender a
motivação que levaria o homem a guerrear, em resposta a uma carta de Einstein assevera
que, no contexto da teoria das pulsões, constata-se que no homem impera a força que tende
para a destrutividade, a dissolução e os arranjos pautados em princípios racionais.
Não estamos querendo dizer, com isso, que a violência é uma forma de irracionalidade,
pois conforme assinalam Bastos, Cabral e Rezende (2010, p. 27) “a violência não se
refere à animalidade. Pelo contrário, a violência relaciona-se com a ditadura da razão”.
Nesse sentido, analisar a temática da violência, no cenário da contemporaneidade,
é considerar sua fundamentação na deformação da liberdade com desvios sérios da
moralidade. Contudo, a raiz ontológica da violência não é o parentesco com a condição
animal no homem e sim toda a propensão à destrutividade em que severas distorções
ocorrem na esfera dos mecanismos de realização do desejo e da liberdade.
Discorrendo sobre o tema da violência, Coutinho (2000) sublinha que fenômenos
como: sonhos traumáticos, a repetição na transferência e o ingênuo brincar infantil,
forneceram elementos que levaram Freud (1920/1976) a rever seu postulado segundo o
qual o aparelho psíquico funcionaria pelo princípio de prazer, com a finalidade única
de reduzir tensões. As observações clínicas sobre o modo como é possível ao sujeito
repetir, de modo continuado, situações cujo teor seja eminentemente desprazeroso foram
fundamentais nessa virada de pensamento, pois há, nestes fenômenos, a vigência de um
elemento novo que, contrariando o princípio de prazer, funciona de modo a subordiná-lo.
Esse elemento recém-descoberto foi denominado de pulsão de morte (COUTINHO,
2000). Desse modo, no pensamento psicanalítico, a pulsão de morte é o conceito que
explica a dinâmica que estaria por trás da motivação humana para a guerra e para a
violência, além dos referidos fatores históricos, sociais, políticos, econômicos.
O recurso à noção de pulsão de morte explica o caráter repetitivo de experiências
que trazem à tona o sofrimento. Com isso, têm-se argumentos para entender a
repetição referida ao trauma. Quer dizer, uma experiência traumática pode levar o
sujeito à busca de solução e, certamente, a repetição, mesmo que não resolva, uma
vez que sobrecarrega o psiquismo de tensão, não deixa de ser uma tentativa. Essa
modalidade de funcionamento da pulsão da morte, na esfera individual, pode causar
danos irreparáveis, caso não haja o empreendimento elaborativo por intermédio de
escolhas de alternativas criativas. Também esse impulso destrutivo pode se estender
ao funcionamento de coletividades, produzindo catástrofes e destruição imensuráveis.
Desse modo, a experiência traumática estaria na raiz da repetição que pode ter
finalidade apenas destrutiva, mas pode também impulsionar o homem à produção
de meios alternativos no âmbito da criação. Em ambas as situações estamos diante de
formas de violência, porém com efeitos diferenciados: a violência pode ser empregada
simplesmente para dissolver como também para criar.
A fim de compreendermos esse circuito, faz-se necessário o entendimento sobre a teoria
do trauma, considerado como um dos pilares da Psicanálise. A princípio foi pensado
por Freud em termos da sedução sofrida pela criança por um adulto. Posteriormente
houve uma reformulação na teoria do trauma, mediante as experiências de soldados
que estiveram em combate na I Guerra Mundial. Esses soldados, especialmente os
sobreviventes, que foram expostos a graves experiências traumáticas em batalhas,
ao retornarem das guerras eram cotidianamente consumidos por sonhos que os
enviavam a situações de sofrimento. Esses sonhos eram repetições de situações de
impotência que foram vividas nas frentes de batalha e que, uma vez temporalmente
distantes, foram mantidas no tempo presente. Trata-se de impressões que não
sofreram qualquer desgaste com o passar do tempo, sendo signos recorrentes de
percepção e não lembranças.
Caberia indagar o motivo pelo qual esses soldados, uma vez livres da violência dos
campos de batalha, não conseguem distanciar-se deles, trazendo-os para o convívio
cotidiano pelas impressões traumáticas presentes nos sonhos. As experiências externas
foram internalizadas como formas de impotência e desamparo, revelando assim a
presença de um “passado doloroso que ressurge de maneira silenciosa e violenta no
corpo e no psiquismo”
(FASSIN; RECHTMAN, 2007, p. 19). Como podemos depreender, há uma peculiaridade
na experiência traumática, ou seja, o sujeito encontra dificuldades em narrar sua
história como um evento passado, convertendo-se em impressão dolorosa. Esse é o
cenário bastante frequente nas sociedades contemporâneas.
Em certo sentido, a experiência traumática faz alusão a um testemunho que ficou
na ordem do indizível, por ser um tipo de saber específico do homem acerca do
extravasamento de seus limites de suportabilidade. Eis o que resiste da experiência na
condição de excesso que aniquila os sobreviventes, empurrando-os a situações extremas
de danos psíquicos. Nessas circunstâncias, em função da lógica de uma memória
traumática, tem-se tanto o silêncio das vítimas, o qual pode ser interpretado como
uma prova suplementar de exposição à violência, quanto a aproximação à experiência
dolorosa por meios de sonhos e impressões recorrentes. O silêncio e a aproximação
ao evento doloroso são defesas psíquicas frente ao trauma devido, principalmente, ao
estado de desamparo e de impotência vividos diante de experiências intoleráveis.
O comentário de Benjamim sobre a obra de Proust A la recherche du temps perdu, é
elucidativo:
Assim, a lei do esquecimento se exercia também no interior da obra. Pois um
acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao
passo que um acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma
chave para tudo o que veio antes e depois. Num outro sentido, é a reminiscência
que prescreve com rigor o modo de textura. Ou seja, a unidade do texto está
apenas no actus puros da própria recordação, e não na pessoa do autor, e muito
menos na ação. (BENJAMIN, 1996a, p. 37)
que toda situação de impotência e desamparo a que foram submetidos não passou
incólume, pois os soldados atormentados por suas lembranças mostraram-se incapazes
de formular sequer uma palavra sobre o que viram e certamente viveram. Conforme
afirma Benjamin (1996b, p. 115) “os combatentes tinham voltado silenciosos do campo
de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis”, sendo apenas acossados por
impressões dolorosas que povoavam os seus sonhos.
Considerando a dinâmica desse fato, Freud (1920/1976) caracteriza a experiência
traumática como uma lembrança, a qual o sujeito não se dá conta por não se constituir
como lembrança, mas há um registro em termos de impressão, como um afluxo
pulsional excessivo, sobrepondo-se à capacidade do psiquismo de ligá-lo e elaborá-lo.
A presença dessa impressão recorrente causa um severo dano psíquico na medida em
que aumenta o estado de impotência, contribuindo de forma positiva para acentuar a
condição de desamparo. Essa impossibilidade de elaboração muitas vezes paralisa o
homem na sua capacidade produtiva, devido ao fato de encontrar-se irremediavelmente
no emaranhado das experiências do passado que, paradoxalmente, não passam, pois, a
característica principal da experiência traumática, é que ela diz respeito não aquilo que
não pode ser lembrado, mas sim aquilo que não pode ser esquecido. E esse excesso de
aprisionamento ao passado impede a capacidade de criar, já que impede a inspiração.
Da mesma forma, Benjamin (1996b) teceu sua análise sobre o retorno dos soldados
do front, percebendo também a dificuldade de articular suas histórias e experiências,
considerando, diante de um mundo arruinado, a perda da capacidade de narrar
(BENJAMIN, 1996c) e a pobreza da experiência como um dos maiores deflagradores
dessa condição pós-guerra, o que se revela, sobretudo, na perda de esperança.
Nessas circunstâncias de sequelas muitas vezes irreparáveis, a vida psíquica está
constituída por memórias involuntárias de vestígios e impressões dos eventos traumáticos.
É importante ressaltar que o sofrimento psíquico relativo à experiência traumática não é
produzido pelo evento sofrido, mas sim devido às reativações de conteúdos e impressões
dolorosas recorrentes, pois “o passado traumático só aparece disponível para o sujeito
por meio de uma atualização do ato diferido de interpretação e compreensão que
inclui a história psíquica” (ORTEGA MARTINEZ, 2011, p. 23). Porém, a repetição dessa
experiência não consegue captar tal conhecimento e culmina numa conduta compulsiva;
a vítima permanece sem totais condições de avaliar e sem discernimento da experiência
traumática a que foi submetida, subsistindo apenas repetições compulsivas e memórias
involuntárias, indicando que há alojado um saber. Trata-se de um saber particular sobre
essa ferida, entendido como um saber que falta ao sujeito, ou seja, que não foi por ele
subjetivado, mas que pode encontrar-se em vias de sê-lo.
Salientamos, conforme esclarecido acima, que o trauma não é produzido pelo evento
originário: é necessária uma segunda ação psíquica no sentido de atualização para que
seja efetivado. Provavelmente, a exposição a experiências dolorosas pode se constituir
no momento de atualização de uma experiência dolorosa do passado. Portanto, é
importante que fique claro que falamos de um enigma formulado em termos de um
corpo estranho, e não como o regresso de um passado já vivido. Porém, esse corpo
estranho situa-se num intervalo entre dois acontecimentos, ligando um ao outro por
cadeias de memória, mas sem significação, pois a única forma de elaboração seria o
reportar-se à experiência com todas as emoções e sensações que causaram para que o
sujeito possa vê-la de outra forma, dando-lhe outro sentido.
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sociedade brasileira de acordo com sua história, com seus símbolos e toda uma gama
de variáveis que influenciam e se tornam formadoras de membros de grupos sociais,
de comunidades, entre elas, as comunidades pesqueiras artesanais.
Isso significa dizer que, quando nos referimos, no caso, à identidade cultural, referimo-
nos ao sentimento de pertencimento a uma cultura nacional e específica que esta
em nosso meio, que convivemos e absorvemos ao longo de nossas vidas. A cultura
nacional é composta não apenas de instituições nacionais, mas também de símbolos e
representações que iremos nos deparar em todos os momentos de nossas vidas. Por isso,
é importante salientar que esta identidade não é uma identidade natural, biologicamente
passada, mas sim, uma identidade constituída, ou melhor, uma diversidade de
identidades construídas. Hall (2002: 15) nesse âmbito diz que: Uma cultura nacional é
um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza ações, quanto
à concepção que temos de nós mesmos.
Logo, para ser vista como comunidade Tradicional e ter como pleitear seu
reconhecimento social é importante a sua autodefinição, entender o sentido de
comunidade tradicional pesqueira em suas distintas regiões, mas que trazem consigo
uma questão fundamental a sua atividade socioeconômica, as suas narrativas e, desse
modo a sua construção sociocultural, ou seja, o patrimônio cultural. Identificar-se em
si mesma, dando sentido a sua significação e sua representação no meio social. Por
isso ao levantarmos e entendermos suas expressões, mapeá-las traz o valor simbólico
de seus significados históricos, sociológicos, antropológicos e filosóficos neste contexto
de retalhos que vem sido massacrado pelas problemáticas provocadas pela própria
globalização possibilitando trazer e fortalecer a memória coletiva. É necessário dar voz
a este segmento social para que possamos falar pensar na preservação de suas inúmeras
histórias narradas, cantadas, desenhadas e pintadas, seus trabalhos artesanais que
mediam o estar no mundo, seu modo de vida cultural e econômico que compõem a
sua identidade enquanto comunidade, presente na trama do tecido social baseada na
diversidade da sociedade brasileira.
Para Hall (2002) a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é representado
e de acordo com o contexto social em que está inserido. Isso nos leva a pensar que
a formação da identidade está diretamente relacionada ao contexto sócio-cultural e,
consequentemente, está imersa em valores, regras, sanções, condutas, diferenças e
divergências. Assim, a noção de um sujeito tendo uma identidade unificada e estável é
superada. Esta, por sua vez, passa a ser definida historicamente e com particularidades.
Esse fenômeno de descentramento ou deslocamento tem características positivas.
De acordo com HALL (2000) tal fenômeno desarticula as identidades estáveis do
passado, abrindo possibilidades para que novas identidades sejam criadas; produz os
novos sujeitos, no entanto, não mais como identidades fixas e estáveis. Novos sujeitos
fragmentados, com identidades abertas, paradoxais, sempre em processo, assim como
a própria história desses sujeitos. Na verdade, é uma concepção lacaniana, ou seja, é a
formação do sujeito em relação aos outros. É uma concepção do eu interativo, do espelho.
É uma noção de sujeito que surge à medida que as sociedades modernas se tornam
mais complexa e adquirem uma forma mais coletiva e social. Essa visão entende que
a identidade dos sujeitos é formada na interação entre o indivíduo, a sociedade e suas
manifestações, constituindo o principio de pertencimento num grupo determinado,
Neste ponto refletimos sobre a relação direta que existe entre os patrimônios culturais e
os sujeitos sociais, os sujeitos sociais e a sua realidade sociocultural econômica, ou seja,
o sujeito social, o seu ambiente e suas construções, o seu modo de vida intermediado
pela narrativa, pela linguagem, que é socializadora, buscando, então, sobreviver às
adversidades do nosso tempo e mobilizar-se, e se torna eixo norteador ao tratarmos
da formação da identidade cultural, que favorece a possibilidade de integrar os
membros, constituindo entre os pares o reconhecimento recíproco e seu sentimento de
pertencimento.
2.2. MEMÓRIA COLETIVA E LINGUAGEM: A NARRATIVA COMO MEIO
SOCIALIZADOR
Partindo de BEGER& LUCKMAN (1985) sabemos que a linguagem usada na vida
cotidiana nos fornece as objetivações que serão repletas de sentido dentro de uma
ordem determinada pelo modo de vida, pela vida social de uma maneira geral. Logo,
a linguagem ganha significação por aquele que a vivencia, determinada por um lugar
geograficamente definido, usa instrumentos e vive dentro de uma teia de relações sociais.
Em outras palavras, “a linguagem marca as coordenadas de minha vida na sociedade e
enche esta vida de objetos dotados de significação” (BEGER & LUCKMAN: OP.CIT.:39).
Tais autores (op. Cit.) afirmam que a significação dada aos elementos fornecidos
pela linguagem para obtenha sentido e representação passa pela intersubjetividade,
numa relação composto entre os membros de um grupo, de uma comunidade, essa
intersubjetividade acaba fomentando a diferenciação entre os diversos grupos que
compõem a sociedade de maneira ampla, pois compõe a realidade social vivenciada
pela formação de uma consciência de si e do outro. Isso significa dizer que, há uma
correspondência entre os diversos significados nesse mundo da vida cotidiana, que
são partilhados, são comuns e, por isso, são apreendidos. A linguagem, então, é
intermediadora, devido a sua capacidade de comunicar significados e objetos. Ou seja,
a realidade da vida cotidiana é admitida como sendo a realidade (p. 40). Nesse aspecto,
concordamos com BEBER & LUCKMAM (OP. CIT: 43):
“A linguagem comum de que disponho para a objetivação de minhas experiências
funda-se na vida cotidiana e conserva-se sempre apontando para ela, mesmo
quando a emprego para interpretar experiências em campos delimitados de
significação.”
Como BEGER & LUCKMAN (op. cit.) afirmam, a construção social da realidade se
deve a formação do indivíduo no meio em que vive favorecido pela objetividade
do que é transmitido e subjetividade pela interpretação. É fato a influência sobre o
indivíduo pelas instituições sociais como a família, a religião, a organização da vida
social, econômica e política, além de aspectos da própria vida cultural. A constituição
da memória coletiva via a narrativa torna-se, assim, vivenciada pelos membros da
comunidade, permitindo que haja um primeiro reconhecimento entre eles, o que pode
ser percebido com a existência do sentimento de pertencimento, e, por mais, que haja
diferentes formas de interpretar e representar a própria memória individualmente,
temos pontos de interseções que traduzem a identidade cultural do próprio grupo,
refletida entre os pares no seu cotidiano.
Isso não significa dizer que a memória não sofra alterações, é justamente ao contrário.
HALBWACHS (1990) no diz que a memória não permanece inalterada, na verdade, a
memória, não reproduz de forma simétrica a imagem do que foi vivido, do passado,
assim na verdade, a memória é uma reconstituição, uma reprodução sobre o viés de
pontos de vista. Dessa forma, a memória coletiva se faz a partir da interseção dos
sujeitos sociais que se relacionam uns com os outros, dando, então, sentido ao passado
existente no consciente e inconsciente dos indivíduos e a sua relação com o presente.
É nesse aspecto que percebemos a importância da memória coletiva para a construção
da realidade social, da realidade vivenciada na interação social por cada sujeito social.
Seriam versões contadas, interpretadas e que são de suma relevância para que os sujeitos
sociais possam garantir a existência do grupo assim como de seu modo de vida e suas
redefinições mediantes as novas urgências, desafios, experimentações, dificuldades e
necessidades sociais.
3. RESULTADOS ALCANÇADOS:
Dentro da perspectiva do interacionismo simbólico, na qual os indivíduos atribuem
significado simbólico aos objetos sociais, que incluem as pessoas com quem se interagem
socialmente, os sujeitos sociais da comunidade pesqueira de Arraial do Cabo passaram
a fazer uso do self que corresponde às ideias e sentimentos que os indivíduos têm de
si mesmos, produzindo um texto biográfico no qual destacaram os principais fatos
de sua vida e de sua família com a seleção de fatos e situações sociais simultâneos a
períodos de sua vida. O interessante é que passaram a se caracterizar a partir de uma
distinção básica entre dois tipos sociais de Arraial do Cabo, o nato, chamado de cabista
e o migrante, chamado de caringô. E mais o bifó é o esperto, é o que dá golpe em todo
mundo, é o malandro.
O cabista nato, independente de ser pescador ou não, recebeu o apelido de xaréu dos
natos da cidade de Cabo Frio. Como o xaréu é um peixe considerado de terceira, tal
apelido não passa de uma provocação do pessoal de Cabo Frio, que no passado ouvia
como retaliação dos cabistas que é melhor ser um xaréu do que ser um carapicu ou um
camarão do esgoto que desemboca na Lagoa de Araruama. Porém, nos dias de hoje,
parece que ninguém mais se ofende ao ser chamado de xaréu, e a identificação com o
peixe foi assumida a ponto de qualquer cabista nato dizer dos cabistas de um modo
geral, que todos nós somos xaréu.
Assim, ser um xaréu é ser de Arraial do Cabo em oposição a ser um camarão, ou seja,
um nato de Cabo de Frio. Provocações não faltam quando se trata de comparar peixes
com pessoas, levando em consideração que no local existe uma escala de qualidade
para o pescado que valoriza primeiramente os peixes de carne branca de fundo, ou de
toca, do tipo badejo, garoupa e xerne, que só são pescados de linha ou de mergulho;
seguidos por peixes de carne branca, pescados de rede, do tipo anchova e cavala, e
depois, em terceiro lugar, por peixes de carne vermelha.
Logo foi possível estabelecer a relação entre a construção da identidade individual e
o pertencimento aos diferentes grupos e instituições sociais, a luta pelo direito de ser
pescador (reconhecimento social) e de participar dos festivais de recursos marinhos
que ocorrem na região. Como exemplos, temos ao longo do no diferentes festivais
gastronômicos realizados pela e para as comunidades tradicionais de pescas artesanais
de diferentes tipos. São rituais que trazem a sua memória coletiva, a qual é fomentada
pela sua historicidade compartilhada pelos membros dessa comunidade tradicional
pesqueira.
Assim, temos o festival de lula na Praia Grande em Arraial do Cabo, festival do marisco
na praia do Peró em Cabo Frio e festival de camarão na praia do Siqueira também
em Cabo Frio, são festas que foram criadas em um ambiente de celebração da fartura,
mobilizam as famílias dos pescadores e demais moradores, cada uma responsável por
uma barraca, como também estimulam a criatividade dos cozinheiros no preparo das
iguarias conforme as mais variadas receitas, em um rito que, ano a ano, vem reunindo
mais adeptos e incentiva o turismo na região em épocas de baixa temporada. Ocorrem,
em geral, respectivamente em março, abril e julho. Para participar tem que ser
identificado como pescador e/ou extrator tradicional, demonstrando como a identidade
de pescador ou maricultor é um mecanismo de articulação política, social e econômica.
O fato é que ao buscar entender o processo de construção do pertencimento e enraizamento
do indivíduo nos grupos sociais refletimos sobre suas narrativas, história oral e os
processos sociais em busca de direitos a partir dos modos de vida, de sua memória
coletiva que podem gerar o sentimento de pertencimento grupais e institucionais através
de suas definições, rituais e formas de expressar seu modo de vida.
Para isso, é de suma importante manter a nossa pesquisa para que possamos analisar
as relações simbólicas geradas da interação entre natureza e pessoas, além de entender
a identidade social como processo de articulação política e social a partir da constatação
da comunidade pesqueira como uma comunidade tradicional do território brasileiro,
podendo então refletir e contextualizar o sentido real de justiça ambiental e social para
este segmento da sociedade brasileira.
CONCLUSÃO
O estudo da história local, especialmente a partir de relatos orais, possibilitou verificar
a identidade como processo, a percepção da realidade cultural, a transmissão dos
modos apreendidos, as relações simbólicas e principalmente a valorização cultural em
que notamos uma linguagem específica com atribuição de valores e sentidos.
Assim, estabeleceu-se a relação entre a construção da identidade individual e o
pertencimento aos diferentes grupos e instituições sociais com a luta pelo direito de ser
considerada uma comunidade tradicional que tenha a legitimidade territorial a justiça
ambiental e social e se manter dignamente na região, se maneira que é perceptível sua
forma de organização entre os membros envolvidos: o trabalho com a pesca, sendo
considerados como um dos povos do mar.
Visualiza-se como as relações simbólicas geradas nas relações objetivas entre moradores
e suas atividades ligadas ao mar, podem ser vistos como forma de mobilização em torno
de um processo de afirmação identidária em que se constrói um o sentido de identidade
que tenta, ainda que a sociedade faça um processo de exclusão, sua legitimação mediante
a necessidade de pertencimento para com seus pares, o que permeia a comunidade de
pesca artesanal no município de Arraial do Cabo, tentando resistir às adversidades
encontradas em seus cotidianos, formando seus bens culturais ao longo da história da
sociedade brasileira tendo como base no processo socializador a sua narrativa repleta
de símbolos, representações e significações.
Ainda temos muito o que levantar das expressões e manifestações culturais deste
povo do mar cabista, de uma maneira geral, do patrimônio cultural desta comunidade
tradicional de nosso território brasileiro. Temos muito que entender sobre as
variáveis encontradas em sua narrativa, em sua historicidade, temos que desvendar
suas particularidades e multiplicidades que garantem suas histórias e memórias e,
consequentemente, o sentimento de pertencimento.
O fato é que nossa história é um complexo mosaico de culturas e povos que transitam na
nossa sociedade e enfrentam, no dia-a-dia, verdadeiros dilemas para que possam ser vistos
e reconhecidos como parte integra da sociedade brasileira, e, são os aspectos culturais
que podem promover sua autoidentificação e, consequentemente, o reconhecimento
recíproco entre os pares, o que é de suma relevância no contexto da justiça ambiental e
social, em nosso caso, para comunidade pesqueira em Arraial do Cabo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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democracia. Rio de Janeiro, IBASE, 1992.
_______________. Políticas ambientais e construção democrática. In: Acselrad, Henri (org).
the conductors of these bands. We will attempt to identify how rivalry operated as a
component of maintenance and improvement of the Portuguese philharmonic bands
of the city of Rio de Janeiro, also observing affective matters, family relations and
strategies of performance in the despiques.
Key words: Portuguese Philharmonic Bands. Memories. Rivalry.
INTRODUÇÃO
O presente estudo é parte integrante de uma pesquisa de doutoramento com foco no
processo de construção das memórias das bandas filarmônicas portuguesas da cidade
do Rio de Janeiro, a partir de 1920, e da compreensão da sua realidade atual.
A inspiração para o desenvolvimento da presente pesquisa surgiu a partir de um artigo
que me foi solicitado pela Confederação Musical Portuguesa para publicação na edição
número 3 de sua revista “Entre Bandas” (2012) a respeito das bandas filarmônicas
portuguesas no Brasil.
Ao iniciar a revisão da literatura, percebi que as informações sobre estes grupos
musicais eram escassas e baseavam-se, na sua maioria, em relatos orais de sujeitos que
fizeram ou ainda fazem parte destas bandas de música ou que tiveram alguma ligação
com elas dentro da comunidade luso-brasileira no Rio de Janeiro. A única pesquisa
acadêmica encontrada e que fazia referência ao tema, foi a Dissertação de Mestrado
de Ana Maria de Moura Nogueira intitulada “Como Nossos Pais – Uma História da
Memória da Imigração Portuguesa em Niterói, 1900/1950”, na qual a autora destaca
a influência da imigração portuguesa no desenvolvimento da cidade de Niterói na
primeira metade do século XX a partir de duas instituições fundadas por imigrantes
portugueses sendo, uma delas, a Banda Portuguesa de Niterói.
Existiram, na cidade do Rio de Janeiro, diversas bandas filarmônicas fundadas por
imigrantes portugueses. O primeiro grupo fundado na cidade foi a Banda do Centro
Musical da Colônia Portuguesa, em 1920. Desde então outras bandas foram criadas e
encerraram suas atividades como a Banda Lusitana, Banda União Portuguesa e a Banda
da Sociedade Beneficente Musical Portuguesa. Foi possível constatar a existência destas
bandas, fundadas na década de 1920, através de pesquisa em periódicos na Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional e, também, no Álbum da Colônia Portuguesa no Brasil,
publicado em 1929. Elaborado para a Exposição Internacional de Sevilha e editado por
Theóphilo Carinhas, o Álbum da Colônia Portuguesa no Brasil procura descrever,
de forma quase épica, a trajetória da colônia portuguesa desde o final do século XIX,
enfatizando o papel do empreendedorismo lusitano no processo de modernização
da sociedade brasileira e enaltecendo os feitos da comunidade e dos imigrantes
portugueses nas mais diversas áreas como comércio, indústria, agropecuária, artes
e beneficência, entre outras. A pesquisa no Álbum faz referência a duas bandas
filarmônicas portuguesas no então estado da Guanabara - a Banda do Centro Musical
da Colônia Portuguesa, fundada em 1920, e a Banda Lusitana, fundada em 1923.
Até a metade da década de 1990, existiam no estado do Rio de Janeiro quatro Bandas
filarmônicas portuguesas: Banda Portugal, Banda Lusitana, Banda Portuguesa de
Niterói e Banda Irmãos Pepino. Atualmente só estão em atividade a Banda Portugal
ao estado no Brasil), nas Regiões Autônomas dos Açores e da Madeira e das bandas
filarmônicas portuguesas em outros países como Estados Unidos, Canadá, Brasil,
a estes Santos contratam as bandas filarmônicas para tocar, nestas ocasiões, em diversas
atividades como desfiles de rua, missas, procissões e concertos. Nestas festas, que
duram praticamente um dia inteiro, as bandas se apresentam em diferentes momentos
como na “arruada” (desfile matinal para saudar o local da festa e seus organizadores),
na missa, na procissão e no “arraial” ou concerto que encerra as atividades da banda na
festa, naquele dia. É comum, nestas festas, a participação de, pelo menos, duas bandas
num mesmo dia, o que evoca um tema muito comum na relação entre as bandas
filarmônicas em Portugal - a rivalidade.
A importância do tema da rivalidade nas bandas filarmônicas em Portugal é tão
significativa que Brucher (2010) dedica um capítulo inteiro de sua tese a ele. A autora
considera que no centro e no norte de Portugal as bandas filarmônicas constroem suas
reputações em apresentações chamadas despiques nas quais, ao longo da noite, duas
bandas se revezam apresentando números musicais como parte do entretenimento
secular durante a Festa do Santo Padroeiro em uma determinada cidade. Brucher (2010)
atesta que, embora um despique não seja, oficialmente, uma competição, não tem valor
se não for competitivo. Os membros das bandas filarmônicas consideram um “despique
ideal” quando este inflama tanto o entusiasmo dos músicos como do público enquanto
as bandas travam um “duelo sonoro”. Um despique pode ser comparado a um jogo de
futebol, no qual, cada banda, representa sua aldeia ou cidade e sobe ao coreto, local
onde as bandas se apresentam ao final dos dias nas festas, para “defender a sua terra”.
Durante o verão as bandas se apresentam em despiques quase todo fim de semana. A
autora analisa, ainda, que os despiques têm implicações sociais e econômicas reais para
ambas as bandas e para as comunidades que as recebem para o evento. Um despique
bem-sucedido ajuda as bandas a estabelecer e manter suas reputações quanto ao nível
artístico e os organizadores das festas querem contratar as bandas que são conhecidas
por realizarem grandes apresentações, pois estas têm o potencial de atrair mais público
para as festas. A competição se desenrola dentro de certas convenções nas quais a banda
local inicia a apresentação e a banda convidada sempre executa, a seguir, uma obra do
mesmo gênero da executada pela banda anterior. Repetir uma peça já executada ou
mudar de gênero musical da obra apresentada pela banda local viola as “regras do
despique”. Depois de cada peça os fãs da banda que termina de tocar, posicionados
em frente às suas respectivas bandas, aplaudem enquanto a outra banda pendura um
cartaz anunciando sua próxima peça. Além da escolha do repertório executado pelas
bandas outra estratégia utilizada pelas bandas filarmônicas para tentar se sobressair
nos despiques é a apresentação de obras solo, com caráter virtuosístico, executadas
por solistas da própria banda. Os despiques podem se estender até a madrugada e,
normalmente, são encerrados pelas duas bandas tocando uma peça em conjunto, em
geral, uma marcha de rua.
Pode-se observar, também, a importância que as bandas filarmônicas têm na sociedade
portuguesa em ações como Dia Nacional das Bandas Filarmônicas, instituído através
da Resolução n° 56/2013 do Ministério da Cultura em reconhecimento à importância
do trabalho desenvolvido pelas Bandas Filarmônicas em prol das comunidades através
da agregação de valores sociais e culturais de inclusão, da construção de identidade e
coesão territorial, além do seu papel na preservação, divulgação e formação musical,
construção da memória afirmando que se admite hoje que a memória é uma construção
e que ela não nos conduz a reconstituir o passado, mas sim a reconstruí-lo com base nas
questões que nos fazemos, que fazemos a ele, questões que dizem mais de nós mesmos,
de nossa perspectiva presente, que do frescor dos acontecimentos passados. Farias
(2011) acrescenta à análise anterior a dimensão criativa no processo de construção
da memória, considerando que existem traços referentes às experiências vividas, que
concernem à produção de diferentes arranjos subjetivos, mas que não podem ser
pensados como um mero armazenamento, ou seja, um arquivo do passado e sim uma
espécie de virtualidade passível de atualização.
Bastos (2008) considera, ainda, que construímos as histórias que contamos em função
da situação de comunicação (quando, onde e para quem contamos), de filtros afetivos e
culturais, e do que estamos fazendo ao contar uma história e acrescenta que, ao contar
histórias, situamos os outros e a nós mesmos numa rede de relações sociais, crenças
e valores, ou seja, estamos construindo identidade. Moita Lopes (2003) considera que
as identidades sociais são fragmentadas, contraditórias e em fluxo. Para o autor as
identidades sociais são discursivas pois aprendemos a ser quem somos nos encontros
interacionais de todo dia.
A propósito das construções da identidade e da memória Pollack (1992) ressalta um
elemento de disputa política:
A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos
outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de
credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. Vale
dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e não são
fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de
um grupo. Se é possível o confronto entre a memória individual e a memória
dos outros, isso mostra que a memória e a identidade são valores disputados em
conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem
grupos políticos diversos. (Pollack, 1992, pág. 5)
O grupo focal foi formado por oito participantes sendo seis deles convidados e dois
pesquisadores. Os convidados foram músicos profissionais que atuam em orquestras
sinfônicas, bandas militares, como “freelances” ou são professores em alguma
instituição de ensino de música. Destes, cinco tiveram sua iniciação em uma das bandas
filarmônicas portuguesas da cidade do Rio de Janeiro e um deles teve sua iniciação
em uma banda sem qualquer vínculo com as bandas portuguesas, mas, muito novo,
começou a participar de uma das bandas filarmônicas portuguesas e lá permaneceu
por um longo período de tempo. Apesar de todos os participantes serem profissionais
da música, muitos deles não tinham contato ou não se viam há muitos anos. Os nomes
dos participantes são fictícios, a fim de preservar suas identidades sendo mantido,
somente, o nome do pesquisador Antonio que participou do grupo focal e que aparece
nos segmentos narrativos selecionados neste trabalho. As entrevistas com os maestros
das bandas que ainda estão em atividade foram realizadas, separadamente, também
pelo pesquisador Antonio.
O leitor poderá observar que as transcrições dos segmentos narrativos contêm uma
série de sinais, trechos sublinhados e/ou em letras maiúsculas. Estas convenções de
transcrição estão explicitadas no Anexo deste artigo. A transcrição de segmentos
narrativos é uma transposição do discurso oral para o discurso escrito - uma
transposição que contém imprecisões e que vai variar de acordo com a interpretação de
quem as realiza. É uma tentativa de trazer o leitor para o momento da interação sob a
perspectiva de quem fez a transcrição. Os sinais representam, na grafia, marcas que são
significativas na construção do discurso, particularmente, da maneira que queremos
o maestro (linha 475). No detalhamento das estratégias usadas pela banda que seu avô
dirigia, destacam-se a contratação de músicos extras para se apresentar com a maior
banda (linhas 475 a 478); as inovações no repertório com estímulo a arranjadores do
próprio grupo a fim de surpreender as outras bandas com músicas que não eram usuais
entre as bandas filarmônicas portuguesas e conseguir maior apelo junto ao público
(linhas 478 a 485); e, por fim, a rivalidade como algo benéfico que elevava o nível artístico
das bandas e das festas (linhas 485 a 487). Interessante ressaltar que Manoel não só
confirma a existência da rivalidade entre as bandas como explicita que seu avô “ficava
super nervoso” nas ocasiões em que as bandas tocavam juntas, denotando a importância
que aquela ocasião tinha para ele como maestro e para a sua banda (linhas 487 e 488),
assim como descrito por Brucher (2005) nos despiques em Portugal.
O próximo segmento narrativo foi transcrito a partir da entrevista realizada com o
maestro José Soares, atual regente da Banda Portugal. Português, nascido em Viseu, o
Sr. José Soares imigrou para o Brasil em 1955. Alfaiate de profissão participou, como
músico, da Banda Lusitana, Banda Portuguesa da Guanabara e Banda Portugal onde
é o regente desde o final da década de 1990. Neste segmento narrativo o entrevistador
pergunta a propósito da relação entre as bandas filarmônicas portuguesas da cidade
do Rio de Janeiro e o maestro descreve, do seu ponto de vista, como se davam estas
relações.
Segmento 4
A análise do segmento narrativo 4 nos permite algumas observações relevantes quanto
ao foco de estudo do presente artigo. O maestro Soares confirma que havia rivalidade
entre os grupos, sobretudo, quando se apresentavam em despiques e destaca os que
aconteciam na tradicional Festa da Penha (Linhas 1252 e 1254), festa católica, de origem
portuguesa que, em 2016, completou 381 edições e é realizada do primeiro ao último
fora do ambiente das bandas, todos eram pessoas normais e se relacionavam bem,
musicais, dentre eles a questão da rivalidade entre as bandas, objeto de estudo deste artigo.
As narrativas dos participantes do grupo focal e dos maestros das bandas em atividade
permitiram a compreensão de como a rivalidade era essencial para a própria existência
das bandas filarmônicas portuguesas na cidade Rio de Janeiro, assim como nos despiques
em Portugal, no olhar destes atores. Observou-se que o tema da rivalidade entre as
bandas foi recorrente e emergiu antes mesmo de realizarmos qualquer pergunta neste
sentido, tanto no grupo focal quanto na entrevista com o Sr. José Ferreira.
Os segmentos narrativos evidenciaram que a rivalidade trazia um sentimento de
pertencimento aos músicos de cada banda e foi o motor para que estes grupos musicais
estivessem constantemente motivados a se apresentar melhor explicitando, também,
a questão afetiva dos músicos e maestros para com as bandas, comparada à paixão
dos torcedores de futebol por seus clubes. É possível perceber, também, que ambos
os maestros se referem à rivalidade entre as bandas como algo fomentado pelos
portugueses mais antigos, tradição herdada dos despiques realizados em Portugal.
Podemos observar, ainda, que as relações familiares atuam nestas construções,
em especial, nas bandas cujos maestros tinham algum grau de parentesco com os
participantes do grupo focal.
Os despiques entre as bandas filarmônicas portuguesas na cidade do Rio de Janeiro
eram aguardados com ansiedade pelos músicos e fãs das bandas em ocasiões como a
Festa da Penha e os Encontros de Bandas Luso-Brasileiras realizados pelo radialista
Antonio Vieira (in memoriam) no qual se apresentavam as quatro bandas filarmônicas
portuguesas do estado do Rio de Janeiro atuando na elevação do nível artístico dos
grupos por conta das disputas entre eles.
A continuidade da pesquisa com a realização de novos grupos focais e entrevistas, além
da consulta aos periódicos e jornais de época, poderá agregar novos elementos para a
compreensão da realidade atual das bandas filarmônicas portuguesas e, também, outras
formas de como a rivalidade entre elas operava atuando na manutenção e crescimento
destes grupos musicais na cidade Rio de Janeiro durante o século XX.
REFERÊNCIAS
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Repetition, dialogue, and imagery in conversacional discourse. Cambridge, Cambridge
University Press, p.202 - 203.
ANEXOS
Abaixo seguem as Convenções de Transcrição utilizadas neste trabalho:
Convenções baseadas nos estudos de Análise da Conversação (Sacks, Schegloff e
Jefferson, 1974; Atkinson e Heritage, 1984), incorporando símbolos sugeridos por
Schiffrin (1987) e Tannen (1989).
“EU ESQUECI QUE UM DIA ENXERGUEI”: LEMBRANÇA E ESQUECIMENTO
EM NARRATIVAS DE PESSOAS CEGAS
1 Pesquisa na linha de Memória e Linguagem, sob orientação da Profª. Drª. Diana Souza Pinto do PPGMS da UNIRIO e coorientação
da Profª. Drª. Marcia Oliveira Moraes do PPGP da UFF, e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIRIO, através do Parecer
nº 890.873, em 28 de novembro de 2014.
2 “A pessoa com baixa visão apresenta uma perda visual severa, que não pode ser corrigida através de tratamento clínico ou
cirúrgico, nem com o uso de óculos convencionais. Entretanto, ela mantém um resíduo visual que é individual e sua capacidade de
usá-lo não depende somente da acuidade ou da patologia.” http://www.ibc.gov.br/?catid=149&blogid=1&itemid=10171
3 Instituição pública federal considerada, nacional e internacionalmente, referência no “atendimento às pessoas com deficiência
visual”. Mais informações: http://www.ibc.gov.br.
5 Em todo caso, para mais informações sobre a cegueira e a baixa visão: www.ibc.gov.br
6 O glaucoma é uma doença com lesão do nervo óptico relacionada à pressão ocular alta. Mais informações: http://www.ibc.gov.
br/?itemid=118.
narrativa; resolução, o resultado das ações complicadoras; e coda que serve para indicar
aos ouvintes que a história acabou. De acordo com Labov e Waletsky (1967), o ponto
e a reportabilidade da narrativa são indicados pela avaliação. Assim, chamamos de
canônica a narrativa que se apresenta sequencialmente neste modelo proposto por eles.
Os excertos de narrativas orais que trago aqui foram gravados no terceiro encontro
da oficina Rodas de Conversa, no dia 27 de março de 2015, e são apresentados
separadamente para facilitar a análise, mas, na mesma sequência em que ocorreram.
Os quatro participantes envolvidos são: Tam, Jet, Olga e eu. Olga tem 76 anos e ficou
cega na primeira infância por conta do glaucoma congênito6; Tam tem 60 anos e ficou
cego aos 32 em um acidente de carro; antes do acometimento era caminhoneiro e depois
tornou-se advogado. Jet tem 71 anos e ficou completamente cego aos 35 anos devido ao
glaucoma; era oficial da Marinha e depois foi aposentado. O foco da análise será as
narrativas de Tam e Jet.
Para transcrição dos textos utilizei as seguintes convenções:
3. O TEMPO DA TRAVESSIA
Em todas as Rodas de Conversa conversamos sobre um tema a partir de um texto,
geralmente um poema, trazido por mim ou pelos participantes. No terceiro dia, o poema
foi “Há um tempo”, de Fernando Pessoa. A escolha não foi ingênua. Pelo contrário, escolhi
cuidadosamente as palavras que poderiam traduzir minhas intenções. Ninguém melhor
que Fernando Pessoa, o poeta do desassossego, da efervescência, dos mares à frente.
Havia naquela proposta a vontade de partilhar a dor de desapegar do passado para
simplesmente viver, com tudo que há na vida.
Ao término da leitura do poema, propus que cada participante contasse um fato ou
episódio do que considerava uma travessia que tivera que fazer ao longo de sua vida. O
excerto abaixo mostra uma narrativa pessoal de Tam sobre o que aconteceu ao ficar cego.
Excerto 1: A travessia de Tam
Tam começa uma narrativa hesitante e repleta de gaguejos: “vou-vou-vou colocar pra-
pra vida prática é::: nós a maioria aqui perdeu a visão é-é na idade a-a-a-adulta, cheios
de vícios e costumes.” (linhas 712 a 714).
Abrindo o abstract e a orientação com o sujeito coletivo “nós”, Tam tenta, estrategicamente,
7 “Past events ‘come alive’ with the HP because it is formally equivalent to a tense which indicates events whose reference time is not the moment
of experience, but the moment of speaking”. (SCHIFFRIN, 1981, p. 46).
João Ricardo Melo Figueiredo (2014), em sua pesquisa sobre a alternância no uso entre
Decididamente, a cegueira de Jet marcou o fim de um modo de vida, que ele, ao fazer
questão de rememorar, encapsula no passado todas as qualidades, ações, imagens
positivas, “a época da juventude” (linha 839) e no presente o que é negativo: “[...] e
ago:ra? (0,2) heim? sem visão”. (linhas 843 e 844).
Nos resultados de suas pesquisas de campo, Martins (2006) relata muitos casos em que
o sofrimento causado pela perda da visão empurra os sujeitos para além do impacto do
próprio sofrimento e eles acabam encontrando maneiras de reconstruir as suas narrativas
e existências. “[...] A reconfiguração dos modos de existência se faz por apelo à capacidade
de resistência ao sofrimento implicado na perda” (MARTINS, 2006, p. 243).
Finalmente, o excerto 3, abaixo, mostra o desfecho da negociação de sentidos para
cegueira em que nos envolvemos a partir do poema “Há um tempo” de Fernando
Pessoa. A essa altura, o clima entre Tam e Jet não estava muito bom. Embora Olga e eu
tivéssemos nos empenhado para apaziguar a situação, parecia que havíamos entrado
em um terreno minado. Mesmo conhecendo Jet naquele dia, tive a impressão de que já
havia um estranhamento anterior na sua relação com Tam. Esta última parte começa
com Tam retomando seu turno para responder diretamente a insinuação de Jet. Seu
tom é de ultimato, e, realmente dá uma virada no jogo interacional:
Excerto 3: A viagem de Tam.
Tam está visivelmente irritado com o discurso de Jet, e, com uma fala firme, bem marcada
e endereçada a ele, deixa claro que não quer se enquadrar em sua descrição de cegueira.
Ao descrever o footing, Goffman diz que é comum que haja no jogo interacional, uma fase
ou episódio com um nível mais elevado, em que o novo footing serve “como um isolante
entre os dois episódios mais substancialmente sustentados” (GOFFMAN, 2013 [1979], p.
113). Logo no início deste excerto (linhas 861 a 867), a fala de Tam, além de se configurar
como uma dessas fases, funciona como abstract e orientação de uma narrativa que virá
em seguida, e com a qual ele recusa o enquadre de Jet para, finalmente, reenquadrar a
interação através da construção de sua relação com a natureza, bastante diferenciada
daquela descrita nostalgicamente por Jet.
Tam mantém o mesmo tempo verbal no presente, e com cadência vai performatizando
uma postura de cego “feliz”, a medida que constrói o contexto de sua narrativa com os
sons, os cheiros, cada detalhe da percepção háptica de que se vale para experienciar o
mundo e alimentar sua imaginação. As imagens de que se vale Tam não são somente
visuais. São imagens percebidas através da abertura dos sentidos e conhecidas a partir
de suas próprias experiências sensório-motoras.
Sua narrativa é um convite. Olga e eu participamos dessa construção, ratificando o seu
posicionamento. Com um trabalho de face habilidoso, Tam projeta-se novamente como
um cego compreensivo e bem resolvido. Muito mais que isso, com sua apresentação,
Tam revela sua superação: “mas eu não vou ficar sofrendo porque eu não enxergo (0,2)
“ai meu deus (0,2) quando eu enxergava”= (linhas 894 a 896).
A afirmação de Tam soa como uma acusação para Jet, que retifica tudo que havia falado
antes, e com uma pequena narrativa, faz questão de se apresentar como alguém que,
apesar de todo sofrimento da perda da visão que expôs antes, faz sua parte para não
sofrer; ouve música, dança, não quer nem saber e encerra o assunto com a coda “tô nem
aí, entendeu?” (Linha 902).
CAMPOS, Tamara
Estudante de doutorado do Programa de
Pós-Graduação em Memória Social
Tamara.campos86@gmail.com
RESUMO
Nesse artigo, a partir da análise de uma experiência do trabalho de campo desenvolvido
para investigar o processo de formação do regente orquestral, apresento a concepção
de memória social na qual articulo as abordagens interacionistas de George Mead
e de Erving Goffman, de forma a ter bases para pensar como ocorre o processo de
construção do self (Mead, 2010) e de que maneira que esse self é comunicado, projetado
(Goffman, 1985, 2011). Defendo que o trabalho de constituição de si é um trabalho de
memória, em que selecionamos e trazemos para o “aqui e agora” aspectos que julgamos
estarem de acordo com a “perspectiva do grupo” (Hughes et alli, 1996) do qual fazemos
parte, diferentemente da visão de Maurice Halbwachs, que enfatiza uma sedimentação
social. Entendo que os sentidos só podem ser interpretados de forma situada e que
existem repertórios de falas apropriadas, partilhados pelos atores culturalmente e
contextualmente, sendo os sentidos negociados no próprio curso da interação, à medida
que o atores, ratificam, negam ou ressignificam a perspectiva do grupo.
Palavras-chave: Self. Memória Social. Interacionismo Simbólico
ABSTRACT
In this article, from the analysis of an experience of the fieldwork developed to investigate
the process of orchestral conductor formation, I present the conception of social
memory in which I articulate the interactionist approaches of George Mead and Erving
Goffman, in order to have bases To think about how the process of self-construction
occurs (Mead, 2010) and how this self is communicated, projected (Goffman, 1985, 2011).
I argue that the work of self-constitution is a work of memory, in which we select and
bring to the “here and now” aspects that we believe are in agreement with the “group
perspective” (Hughes et al., 1996) of which we are part, Unlike the view of Maurice
Halbwachs, which emphasizes social sedimentation. I understand that the senses can
only be interpreted in a localized way and that there are repertoires of appropriate
speech, shared by the actors culturally and contextually, the senses being negotiated
in the very course of interaction, as the actors ratify, deny or resignify the perspective
of the group.
Key-words: Self. Social Memory. Symbolic Interacionism
INTRODUÇÃO
Apresento uma revisão da ideia de memória coletiva presente em Halbwachs
(1990), explicando as razões pelas quais tal perspectiva não coaduna com trabalhos
que enfatizem uma análise do processo de formação profissional de um indivíduo.
Articulo as instâncias do “mim” e “eu” mediniana (2010) no que tange à formação
do self, com as ideias de fachada de Goffman (ano), de forma a pensar não somente
como o self profissional se forma, mas como ele é projetado para uma audiência. Trago
uma passagem de uma entrevista realizada durante o trabalho de campo etnográfico
desenvolvido por mim e com duração de um ano e oito meses em uma escola de Música
de uma universidade pública, no Rio de Janeiro. A entrevista teve cerca de sessenta
minutos de duração e procurou reconstituir a relação do entrevistado com a música.
Durante o trabalho in situ o objetivo era analisar a cultura estudantil do maestro de
orquestra e como o discente assimilava o ethos profissional no espaço acadêmico.
1. MEMÓRIA, INDIVÍDUO E SOCIEDADE
(...) para aprendermos uma linguagem qualquer, é preciso submeter-se a um
1 Optei pelo termo funcionalista porque o mesmo se enquandra na perspectiva durkheimiana, que compreende a sociedade como
composta por diversas partes funcionalmente diferenciadas e articuladas entre si. Cada uma dessas partes teria uma função específica,
que contribuiria para a integração do todo. Halbwachs era discípulo de Durkheim, razão pela qual acredito que funcionalista seja
melhor que estruturalista. Além disso, os trabalhos de Halbwachs precendem o estruturalismo, pelo menos na antropologia e na
sociologia. O estruturalismo, nas ciências sociais, também dialoga com o funcionalismo, já que é notória a influência de Durkheim
em Levi-Strauss.
lembrança que evocamos livremente, cuja força reside no fato de ter no grupo seu
suporte. O segundo tipo de lembrança engloba aquelas que, apesar de nos pertencerem,
dificilmente evocamos. Isto porque elas só surgiriam ao acaso, restando “esperar que
muitos sistemas de ondas, nos meios sociais onde nos deslocamos materialmente ou
no pensamento, se cruzem de novo” (Halbwachs, 1990, p.69). O que está em jogo são
diferentes graus de complexidade envolvidos na rememoração das lembranças, sendo
a memória concernente ao grupo mais forte pelo fato de ter como suporte um conjunto
de homens. Tais indivíduos lembram por integrar um grupo, e cada lembrança não se
imporia sobre a outra, mas formaria um conjunto de lembranças.
Halbwachs, discípulo de Durkheim, desenvolve suas ideias a partir dessa percepção da
sociedade enquanto um objeto autônomo, externo ao indivíduo e com ação determinante
sobre o mesmo. As lembranças são preservadas no interior do grupo e “podemos
perfectamente decir que el individuo recuerda cuando se sitúa en el punto de vista
del grupo, y que la memoria del grupo se manifiesta y se realiza en las memorias
individuales” (Halbwachs, 2004, p.11).
A oposição entre dois projetos clássicos sociológicos, o de Emile Durkheim e George
Simmel, (Coelho, 2013, p.20) ajuda-nos neste percurso. Enquanto o primeiro entende que a
sociedade é “definida por sua exterioridade em relação à vontade individual”, para Simmel
“a sociedade é um processo”, sendo esta constituída a partir do engajamento dos indivíduos
em diversas interações. Nessa visão, sociedade não é algo exterior que age coercitivamente
sobre os indivíduos, mas uma instância, que envolve uma dimensão processual, sendo
constantemente ressignificada ao longo dos encontros sociais cotidianos.
Neste processo, é preciso atentar para a importância das representações coletivas
que formaram gradativamente o que entendemos como obrigações e expectativas da
profissão de maestro, ou, em outras palavras, que configuraram o ethos da carreira e
são compartilhadas.
Professor e aluno em sua interação podem colocar em cena diferentes perspectivas
sobre essa memória coletiva, ao mesmo tempo em que contribuem para sua construção.
Se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto
de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo.
Desta massa de lembranças comuns, umas apoiadas nas outras, não são as
mesmas que aparecerão com maior intensidade a cada um deles. De bom grado,
diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse
mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes
(Halbwachs, 1990, p.69).
Halbwachs entende que os pontos de vista individuais operam mais com vistas a
integração do que ao confronto, adotando uma lógica que admite a diferença na esfera
coletiva, mas essa diferença poderia ser classificada como uma diversidade estável,
jogando mais luz sobre o construído que sobre o confronto, iluminando mais a
representação do que o processo que se desdobra.
O ponto de vista de Halbwachs é compatível com o contexto político e social de sua
época, já que ele viveu os horrores da Primeira e Segunda Guerra Mundial, sendo
vítima fatal nesta. A Primeira Guerra põe fim ao clima de euforia experimentado desde
meados do século XIX em decorrências das evoluções tecnológicas e da efervescência
não verbais com o qual a pessoa expressa sua opinião sobre a situação, e através disto
sua avaliação sobre os participantes, especialmente ela própria” (Goffman, 2011, p.13).
Nosso “eu”, portanto, é uma instância de memória individual e coletiva, construída não
só a partir de como nos percebemos, mas das expectativas e obrigações que possuímos
nos distintos cenários. “Temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas
que não se confundem” (Halbwachs, 1990, p.26). Realmente nosso “mim” é formado
por essa multidão que, em relação dialética com a dimensão do “eu” meadiana, não
determina, mas influi sobremaneira em nossas decisões.
Nosso self é elencado de acordo com o contexto, no caso da Escola de Música, outros
selves do aluno, como o de pai, pessoa religiosa, entre outros, podem surgir e disputar
espaço no enquadre com o self profissional de regente em formação. Contudo, é
notoriamente o self de aluno se tornando maestro de orquestra que predomina nas
interações entre professor e aluno. O aluno adentra a Escola de Música performatizando
esse determinado self, o que denota uma dimensão mais estável do nosso self. É esta
estabilidade que permite com que interajamos. É certo que a ação humana muitas
vezes pode ser imprevisível, mas nós interagimos normalmente no “modos vivendi
interacional” (Goffman, 1985), acatando as normas do grupo, utilizando-as em nossas
representações, de acordo com o contexto.
Normalmente contribuímos para uma “única definição geral da situação, que implica
não tanto num acordo real sobre o que existe, mas, antes, num acordo quanto às
pretensões de qual pessoa, referentes a quais questões, serão temporariamente acatadas”
(Goffman, 1985, p. 18). Os indivíduos envolvidos em um mesmo cenário agem conforme
regras de conduta, obrigações e expectativas.
2.1 Self e Ethos
Através de Mead é possível termos não só as bases para pensar no processo de formação
do self do aluno de regência, mas compreender como esse self é formado em relação
a um ethos da profissão. Em outros termos, como professor e aluno no momento da
interação evocam, se apropriam, refutam e transformam, mesmo que sutilmente, a
memória acerca de como um regente deve agir e ser.
Retomando o que o conceito de “mim” representa para Mead, o ethos estaria presente
nessa fase distinta do self. A comunidade organizada, grupo social ou “outro
generalizado”, para usarmos os termos presentes na obra de Mead, (2010, p.171) fornece
a unidade de self para o indivíduo. Mas cabe ao sujeito “levar esse processo social em
sua totalidade para o âmbito de sua experiência individual” (Mead, 2010, p.173). Há,
portanto, um trabalho de memória nesse processo de constituir a si. Ao pertencer a um
grupo, me aproprio das normas do mesmo de tal forma que este, em última instância,
também influi na decisão do “eu”. Apesar das decisões do “eu” serem inesperadas,
incalculáveis, certas dimensões do “mim” estão amalgamadas ao “eu”, inspirando
certamente as decisões individuais.
O que me interessa é a perspectiva construtivista e interacionista que orienta as ideias
de Mead. O social fornece uma estrutura comum, que torna possível a formação de
comunidades. Os indivíduos elaboram seu self a partir da relação com essa estrutura. A
dimensão do social e seus efeitos na conduta individual não são negadas, mas também
não se trata de uma relação coercitiva que cai verticalmente sobre a cabeça dos sujeitos,
As inferências que faço a partir do campo enfocam esse “everyboy knows” e “everybody
does” de que o aluno se apropria durante sua trajetória acadêmica. A partir do momento
que ele consolida essa percepção do grupo ele fortalece o “mim” de seu self regente, e o
seu “eu” pode tomar decisões que sejam reconhecidas pelo grupo enquanto as corretas.
Mas Mead, ao enfatizar a constituição do self, não se concentrava na ação dos indivíduos.
Era Goffman quem utilizava a ideia de manipulação expressiva da fachada. Ao
articular os dois autores, tento desenvolver subsídios adequados para compreender
como ocorre o processo de construção de self, através das esferas do “eu” e do “mim”,
e do diálogo entre ambas, como também tenho elementos para interpretar a ação dos
atores durante as observações no trabalho de campo. Utilizo, na sequência, um trecho
de uma entrevista que realizei com o aluno um pouco antes de assistirmos uma aula
de regência, de modo a demonstrar uma análise que explora uma perspectiva a partir
de Mead e Goffman.
Em um determinado momento, o entrevistado discorre sobre o período que ingressara
Rodrigo traz esse ímpeto de fazer as coisas bem feitas para a regência, até porque para
ele a música é uma maneira de ele exercer sua religiosidade, ou, um modo de “adorar”,
uma expressão recorrente no vocabulário do aluno e dos batistas2 de modo geral.
Explicando o caso à luz de Mead, percebemos que existe na memória do grupo dos
músicos uma valorização do trabalho artístico que tende, portanto, a desvalorizar
um trabalho com característica mais braçal, como é o caso da construção civil. Essa
percepção na realidade está presente na sociedade como um todo, pois a história do
nosso país é marcada pela exploração da mão de obra escravocrata, que era forçada a
realizar trabalhos braçais árduos. O êxodo para grandes cidades do Brasil no século XX
e o fato do contingente nordestino migrante atuar na construção civil explica, de certo
modo, a estigmatização associada a ocupação.
Ou seja, existem noções que permeiam o ethos do artista que tendem a incutir nos
indivíduos uma valorização do artístico, bem como uma desvalorização do trabalho
com a força. Rodrigo leva em consideração essa dimensão do “mim”, razão pelo qual
opta por ocultar de seu relato a atividade, ou seja, o “eu” opta, em um primeiro momento,
em ir ao encontro dessa crença presente também em nosso imaginário coletivo.
O entrevistado projeta para uma audiência que ele imagina compartilhar de um
sistema de valores e crenças no qual a laboração física é hierarquicamente inferior à
mental. Por ter consciência que a enunciação de sua ocupação primeira pode fazer com
que um estigma (Goffman, 1982) recaia sobre ele, Rodrigo não menciona seu passado
na construção civil espontaneamente, não empreende uma apresentação de si com essa
informação e não a utiliza na constituição de sua fachada.
Segundo Goffman, fachada é o “equipamento expressivo do tipo padronizado intencional
ou inconscientemente empregado pelo indivíduo durante sua representação”. (1985,
p.29). O autor também define, em outra obra, fachada como o “valor social positivo
que uma pessoa efetivamente reivindica para si mesma através da linha que os outros
pressupõem que ela assumiu durante um contato” (Goffman, 2011, p.13). Através das
duas citações, percebemos que fachada envolve expressão do ator, e que nem todas
as informações que este demonstra em sua representação são de ordem consciente,
especialmente expressões faciais e trejeitos. Apesar da ênfase na análise do discurso
verbal, “o corpo não é usado apenas como um acessório para situações de copresenca;
é a âncora das habilidades comunicativas que podem ser transferidas para tipos não
corporificados de mensagens”, como nos explica Giddens (2013, p.26), ao lembrar que
Goffman considerava a comunicação não verbal muito relevante.
Fachada também envolve uma padronização, que ocorre através de uma linha que o
indivíduo assume desde o primeiro encontro e tende a manter ao longo das demais
representações. Por exemplo, conheci Rodrigo como estudante de regência, apesar de
conhecer outros aspectos sobre sua vida, como o fato de que era casado, tinha filhos,
morava em Teresópolis e que desejava melhorar sua condição financeira.
De forma geral, o próprio ambiente fazia com que só conhecesse o Rodrigo aluno de
regência, pois a expressividade comunicada por ele era orientada pelo papel que ele
desempenhava naquele contexto específico. “Quando um ator assume um papel social
estabelecido, geralmente verifica que uma determinada fachada já foi estabelecida para
esse papel” (Goffman, 1985, p.34). Ou seja, a partir do momento que Rodrigo passa
a frequentar a universidade com vistas a se tornar regente, ele assume uma fachada
que é previamente esboçada, pois “desde que as fachadas tendem a ser selecionadas e
não criadas, podemos esperar que surjam dificuldades quando os que realizam uma
dada tarefa são obrigados a selecionar, para si, uma fachada adequada dentre muitas
diferentes” (Goffman, 1985, p.34).
A fachada torna-se, de certa maneira, uma representação coletiva, na medida em
que as expressividades de determinadas fachadas subentendem tentar causar certas
impressões. Goffman afirmava que a expressividade (Goffman, 1985) envolve duas
espécies de atividades distintas: a expressão dada (information given), que são símbolos
usados com uma intenção de deliberadamente comunicar algo, como quando Rodrigo
conta algo de sua vida pessoal ou o fato de que entrou no inglês duas aulas após o
professor de regência ter demonstrado perplexidade pelo aluno ter declarado não
possuir conhecimentos básicos da língua. A segunda espécie de expressividade são as
expressões emitidas (information given off), que abarca o comportamento expressivo
involuntário, como um tique no olho que notei em Rodrigo. O ator não deseja comunicar
esse tipo de informação, que costuma escapar especialmente pelo plano não verbal,
como os gestos, olhares, expressões faciais.
Ao assumirmos uma fachada e uma linha levamos em consideração, ao nos
constituirmos, os atributos que são aprovados previamente pelo grupo. A relação
desses atributos com a fachada estabelece uma dinâmica em que os outros esperam
determinados comportamentos nossos e nós, diante disso, tendemos a agir com base
nessas expectativas e obrigações que nos são atribuídas em cada cenário.
A interação entre Rodrigo e eu ficava circunscrita ao âmbito acadêmico, pois estávamos
na companhia um do outro apenas durante os ensaios da orquestra de alunos ou as
aulas de regência. Apesar de eu tentar utilizar esses momentos para entender melhor
sua vida familiar, por exemplo, tais relances eram escassos devido ao script pouco
flexível que esses encontros tinham, bem como a linha assumida por nós dois. No
ensaio da orquestra é considerado inconveniente falar enquanto os músicos tocam e,
Mas construir uma fachada é um processo dinâmico, envolvendo não somente a linha
que o ator assume no primeiro encontro, mas também o feedback que ele recebe dos
outros sobre as informações que comunica. Retomando a questão da expressividade para
Goffman (1985), o ator informa certas expressões que são interpretadas e transformadas
em impressões. Algumas informações são conscientemente comunicadas, enquanto
outras não o são, mas influenciam sobremaneira o modo como interpretamos o outro
na interação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existe um monitoramento mútuo quando os atores estão em copresença, do qual
resulta a manipulação das impressões. Ou seja, Rodrigo, para elaborar a construção
de si, também leva em consideração o que eu penso a respeito dele, ou nos termos de
Mead, o self se constitui também a partir das respostas que o “eu” dá com relação às
expectativas dos outros (mim).
É para não incorrer no risco de macular sua fachada, pois existe um grande investimento
psíquico do ator no processo de construção e manutenção da mesma, que Rodrigo
habilmente ressignifica aquilo que a princípio poderia ser assumido como algo não
valorizado no mundo artístico. O fato de ter trabalhado na construção civil por dezoito
anos é incorporado à projeção de uma imagem positiva de si que ele já vinha realizando.
Ao exercer trabalho de tal natureza, Rodrigo alega ter melhorado sua percepção estética,
pois ao colocar azulejos, por exemplo, ele narra que seu acabamento era muito bem
feito e que “tudo que fazia e que faz procura executar da melhor maneira possível”
(Entrevista Rodrigo).
Enfatiza também sua ocupação de luthier, profissional que fabrica e conserta instrumentos
musicais, e como esta acaba sendo beneficiada pelas habilidades manuais adquiridas
na construção civil. Mais uma vez é estabelecido um nexo entre atividade musical e
trabalho manual. Ao adotar tais estratégias de apresentação de si, Rodrigo continua a
projetar uma fachada de bom estudante de regência e profissional caprichoso, enfatiza
a relação entre habilidades manuais e corporais e a atividade de regente e dá outra
interpretação para seu passado na construção civil que não mais o torna incompatível
com o mundo orquestral e que na realidade faz dele mais capaz. Vai ao encontro também
de um discurso de humildade que costumava pregar, que tem estreita relação com um
ethos religioso, respaldada por uma ética protestante, ao demonstrar honestidade sobre
sua origem, o que também acaba o destacando como alguém batalhador, que venceu e
procurava vencer ainda mais.
As narrativas não são simples rememorações do passado. Ao trazermos para o presente
fatos de outrora, reatualizamos nossa história de vida face ao presente. Entendo a
maneira como as narrativas são construídas como performances situadas, nos termos
de Mishler (1999, xvi):
(...) narrativas, e outros gêneros discursivos, são ações sociais. Ao falar, nós
realizamos performances de nossa identidade (Langellier, 1999) realizando
um “movimento” no campo das relações sociais (Labov, 1982). Essa visão
pragmática de linguagem ilumina o que nós estamos fazendo como atores
sociais ao selecionar e organizar os recursos da linguagem para contar as nossas
histórias de modos particulares que se adaptam à ocasião e que são apropriados
às nossas intenções, plateias e contextos específicos.
REFERÊNCIAS
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New Brunswick and London, 1992.
BOURDIEU, Pierre. A distinção: Crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2007.
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Giddens, Anthony. Goffman: um teórico social sistemático In Coelho, Maria Claudia (org
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GOFFMAN, Erving. Rituais de interação: ensaios sobre o comportamento face a face.
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_______. A representação do eu na vida cotidiana. Trad. Maria Célia Santos Raposo.
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___________ A memória coletiva dos músico In _________ A memória coletiva. São
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Mead, George. Mente, self e sociedade. Charles Morris (org.), trad. Maria Silvia Mourão,
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MISHLER, Eliot. Storylines: Craftartists’ Narratives of Identity. Cambridge/London:
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NAMER, Gérard. Posfácio. In Halbwachs, M. Los Marcos Sociales de la Memoria. Barcelona:
Antrophos Editorial, 2004, p.345-428.
O SERTÃO CIVILIZADO: CONSTRUÇÕES IDENTITÁRIAS DO NOROESTE DE
MINAS NO SÉCULO XVIII
chapada e vão (2006) de Flávio Antônio Neiva; Caixa Grande (2004) e Quatro Contos de
Reis (2000), ambos de Adriles Ulhoa Filho; Reminiscências de minha velha Paracatu (2000)
de Areoaldo de Paula; Vivências e Contrastes (2002) de Coraci da Silva Neiva Batista, e
da autora Zenóbia Vilela Loureiro, Paracatu: um passeio no tempo (1993), E o flamboyant
floriu... (1995), O sobradinho (1996).
Existe um considerável acervo de obras publicadas sobre a história e memórias da
cidade, e inicialmente, pensei em trabalhar com todas elas. Entretanto, o tempo que
dispunha para este estudo era exíguo, assim, optei por fazer a seleção daqueles três
autores que apontei no início do parágrafo anterior. Estou ciente dos efeitos que essa
atitude pode provocar, mas quero afirmar que não tenho a intenção de sacralizar essa
historiografia com que trabalho como único lugar de memória da cidade (PROST, 2008, p.
272). Estou ciente de que existem outras obras e outros mecanismos que operaram na
construção dessa memória ao longo do tempo em Paracatu.
2. UM MAL ESTAR DA HISTORIOGRAFIA: PARACATU NO SERTÃO
O sertão de que estamos falando neste trabalho não é simplesmente um espaço
geográfico, definível com fronteiras físicas. Era o lugar do vazio, do selvagem, do
indecifrável e também do fantástico. Era o oposto daquilo que se configurava no litoral.
Espaço mais simbólico do que geográfico, o sertão situava-se nas margens
do mundo conhecido, ao qual ele se opunha, rejeitando os valores da vida
civilizada...
Na América Portuguesa, as referências ao sertão principiam no século XVI,
quando o interior do continente defini-se em oposição à faixa litorânea,
espaço privilegiado então da colonização portuguesa. A etimologia da palavra
permanece desconhecida. Para alguns autores, o sertão derivaria do latim
desertus, por intermédio do latim vulgar desertanu, que pode significar deserto,
abandonado, inculto, selvagem, desabitado ou pouco habitado. Nos primeiros
relatos sobre a região aurífera, em fins do século XVII, o sertão aparece como
lugar inóspito, de difícil acesso, cortado por rios caudalosos e intransponíveis,
envolto em matas fechadas e escuras. (ROMEIRO; BOTELHO, 2004, p. 271).
Lylia da Silva Guedes Galetti em Sertão, fronteira, Brasil afirma, ao citar os estudos
de Gilberto Mendonça Teles, que a definição etimológica da palavra não é clara. Na
verdade, Teles afirma que deriva dessa obscuridade etimológica a maior motivação para
as várias significações que o vocábulo foi adquirindo à medida que o espaço brasileiro
foi se ampliando para o oeste. Neste sentido, em linhas gerais “o sertão designaria o
lugar do desertor, do que sai da ordem, o terreno incerto e desconhecido e, ainda, o que não está
entrelaçado ao conhecimento” (GALETTI, 2012, p. 48).
Nísia Trindade Lima em Um sertão chamado Brasil reforça a ideia de que a origem do
vocábulo, segundo os estudos etimológicos a que ela se refere, esteja de fato ligada
à ideia de deserto, por ser oriunda da expressão desertão. O seu sentido, segundo ela,
“encontra-se em uma dupla ideia – a espacial de interior e a social de deserto, região pouco
povoada.” (LIMA, 2013, p. 103). Apesar de, em nota, afirmar que não há consenso a
respeito da etimologia da palavra, observando que “a conotação de deserto e de tudo o
que se encontra distante da civilização é bastante frequente e duradoura no pensamento social
brasileiro”. (LIMA, 2013, p. 103).
Erivaldo Fagundes Neves, na introdução da obra organizada por ele, Caminhos do sertão,
defende que essa relação entre a ideia de sertão e deserto originou-se de um erro. Ele
cita os estudos feitos por Gustavo Barroso no Dicionário da Língua Bunda de Angola,
publicado em Lisboa em 1804, que “conferiu sua origem ao vocábulo muceltão, corrompido
para celtão e depois, certão, cujo significado em latim seria locus mediterraneus, ou lugar entre
terras, interior, sítio longe do mar, mato distante da costa”, de forma que, quando o vocábulo
De qualquer forma, o que sabemos é que toda essa polissemia que envolve o vocábulo
gerou um acúmulo de densidade semântica da noção de sertão, produto das práticas
que foram próprias do processo civilizador que se deu particularmente, neste caso,
no Brasil. Então, ao contrário do que se afirma, de que a noção estaria relacionada
meramente em oposição ao litoral, o que se tem é que, o sentido dado aí seja não ao litoral
em si, mas ao locus do poder, da ordem, isto é, o espaço já cooptado pela administração
colonial. Nísia Trindade de Lima defende claramente essa ideia quando diz que “mais
do que em oposição ao litoral, é em contraste com a ideia de região colonial que o imaginário sobre
sertão se constitui”. (LIMA, 2013, p. 104, grifos da autora).
O mesmo será defendido por Lylia da Silva Galetti. Para ela, nos estudos de Elisa
Mader “sobre a ideia de sertão nos séculos XVI-XVII, conclui que a noção de sertão se constitui
em oposição à região colonial, caracterizada como o mundo da ordem, onde reinavam, como
instâncias de poder, a Igreja e o Estado” (GALETTI, 2012, p. 57, grifos da autora). Sendo assim,
o mundo do sertão estaria associado a tudo que lhe fosse contraponto. Daí a ideia de
vazio, do desconhecido, o mundo da desordem e da barbárie, da selvageria e do diabo.
É desse espaço imaginário que os autores, interessados em construir a memória de
Paracatu no século XVIII, querem retirar a cidade. Não há dúvida, Paracatu se encontra
inserida nesse sertão.
Podemos perceber essa questão através da representação da região nos documentos
cartográficos da época. E não somente nos documentos, mas também naquilo que foi
registrado a partir de reflexões sobre eles. É o que se pode constatar através do Mapa
do Certão entre a Serra da Marcela e as nascentes do Rio São Francisco de 1770 (FIGURA 1).
Percebe-se como a região, mesmo quando se leva em conta todo o movimento
populacional já produzido pela descoberta do ouro tanto de Goiás quanto do noroeste
despovoados e de seus índios botocudos antropófagos.” (COSTA, 2004, p. 65, grifos meus).
Antônio Gilberto Costa fala de sertão despovoado ao mesmo tempo em que indica seus
habitantes: índios botocudos. Uma clara contradição, reveladora de que os indígenas
não eram considerados seres humanos, pessoas com cultura e organização social.
Nesse mapa, percebe-se que o sertão ocupa a maior parte do centro da imagem, e é
flagrantemente a região mais vazia do documento. Não há nem mesmo montanhas
ou rios, há somente um espaço vazio. Enfatizo que o mapa foi feito em 1770, época em
que a região já havia passado por longo estado de exploração e muitos de seus núcleos
auríferos já se encontravam em franco estado de decadência.
Em outro mapa (FIGURA 2), também intitulado Mapa do Certão, de 1750, seu autor
representa a região isolada pelo vazio, como se não estivesse integrada à outras regiões.
Neste caso, o espaço vazio não preenche o centro da representação (como na FIGURA
1), mas a isola e a “comprime”, de forma que na representação cartográfica, o lugar
parece estar ocupando o centro de uma região desértica. Neste caso, somos levados a
confundir o sertão com o deserto.
Figura 2. MAPPA DO CERTÃO continente entre a barra do rio Jaurú, q’ deságua no
Paraguay até a margem occidental do rio Guaporé, na paragem, em q’ desemboca o
Sararé; com as serras, e rios mais conhecidos d’aquella Campanha, pela qual deve
correr a linha divisória, entre as duas Coroas de Portugal e Castella. Post. 1750. 30 x
22,5 cm; Manuscrito e aquarela; AHU (n. 93/1253)).
Fonte: COSTA, 2004, p. 33.
O que temos nesses exemplos da cartografia setecentista sobre o sertão é a construção
imaginária dessa paisagem cultural que poderia marcar profundamente sua definição
associada ao deserto. Uma construção social tão forte e tão arraigada no imaginário
social que...
Seja qual for a definição, caracterização ou definição geográfica que se queira
dar ao sertão, uma ideia que permeia o imaginário nacional, até os dias atuais,
é a de que os sertões se identificam pela carência de civilização, está distante, é
interior e, normalmente, pobre, e pertence ao espaço do rural. Daí, portanto, a
rápida associação que fazemos do sertão somente com o semi-árido nordestino
(SARAIVA, 2004, p. 80).
Seja através da escrita ou das representações cartográficas, Paracatu, creio estar claro,
encontra-se numa região assim, associada à ideia de deserto e isolamento. O que estou
afirmando é que, entre os autores que elencaremos a seguir, esse isolamento poderia
diminuir a importância do seu arraial e de sua história por decorrência dessa distância
da região, de seu estado representado ora como uma região coberta de gentios selvagens
ora como espaço vazio, ainda a ser preenchido, dominado. Tratava-se então de relacionar
Paracatu, e posteriormente seus habitantes, com os elementos vindos do litoral.
3. SEMENTES DA CIVILIZAÇÃO PLANTADAS NO SERTÃO DO NOROESTE E A
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO POVO PARACATUENSE
No livro Memória Cultural (1990), Oliveira Mello emite seu posicionamento sobre a
miscigenação que ocorre no arraial já em tempos anteriores à descoberta do ouro,
mas que teria se intensificado após o seu anúncio em 1744. Ele afirma que “em virtude
de todo caldeamento, podemos assegurar que o paracatuense é dotado da resistência e da energia
do caboclo, da bondade resignada do preto, da intrepidez dos antepassados colonizadores e
da pertinácia dos reinóis” (MELLO, 1990, p. 20). A característica com que descreve os
colonizadores, a intrepidez, teria tornado possível a ocupação efetiva desse “deserto
selvagem” chamado sertão.
É interessante perceber o quanto as fronteiras do sertão são móveis, e por mais que
portugueses e agrupamentos humanos das regiões litorâneas adentrassem o espaço
que lhe era designado, “o sertão, com todo o imaginário que lhe era peculiar, continuou a existir,
deslocando-se em direção às regiões que permaneciam fora da esfera do poder metropolitano”
(ROMEIRO; BOTELHO, 2004, p. 271). Segundo essa ideia de sertão, à medida que o
povoamento chegava à regiões mineiras pertencentes ao sertão (como Vila Rica,
Mariana e Sabará), tais regiões deixavam de ser identificadas como pertencentes a esse
espaço, pois cada vez mais ganhavam as características das populações do litoral e a
ele se integravam. Entretanto, a fronteira do sertão se estendia para aquelas regiões que
ainda não se encontravam identificadas e povoadas pelo homem do litoral. Esse seria
o caso de Paracatu que somente terá o estabelecimento de seu núcleo urbano a partir
do anúncio oficial da descoberta do ouro, o que somente ocorrerá em 1744. Enquanto
isso não acontece, a região, ao contrário do que ocorria em Vila Rica, Mariana, Sabará,
continua a ser identificada com a representação de sertão aqui discutida.
Entretanto, Oliveira Mello escreve que o arraial já havia se formado muito antes da
descoberta do ouro, julgando que o povoado teria surgido exatamente dentro do
período em que as primeiras áreas de mineração foram descobertas e começaram a ser
exploradas no território mineiro. Segundo ele, “não há uma data precisa de quando surgiu
o povoado. Julgo que tenha sido entre 1690 a 1710. Paracatu já devia ser habitada quando servia
de caminho que ligou o centro minerador de Goiás aos centros criadores dos afluentes do São
Francisco.” (MELLO, 1979, p. 27). Assim, por essa narrativa do autor, Paracatu estaria,
juntamente com os outros núcleos de mineração da capitania, ocupada não por vazios
ou por seus indígenas selvagens, mas já povoada por elementos civilizados.
Essa representação do arraial já povoado e de sua região já explorada antes mesmo da
descoberta do ouro, pelos criadores de gado do nordeste que montavam seus currais
margeando o São Francisco e seus afluentes, não é própria de Oliveira Mello - já estava
presente na obra de Afonso Arinos de Melo Franco, quando este afirma que “as terras
iam ficando livres do gentio pela caça que lhes faziam os preadores de escravos e, nas regiões assim
limpas, os paulistas introduziam assim seus rebanhos” (FRANCO, 1955, p. 10). Paracatu e a
região do São Francisco vão constituir seus primeiros núcleos de povoamento a partir
do momento em que os indígenas (o gentio hostil, selvagem, elemento típico do sertão,
A representação de um arraial que desde cedo estava ocupado pelos sertanejos criadores
de gado não é simplesmente um dado objetivo, tal qual nos apresenta Waldemar Barbosa
elencando os vários documentos que revelam as concessões de sesmarias na região
do rio Paracatu. Ela cumpre duas funções significativamente importantes dentro da
construção historiográfica do noroeste.
A primeira função diz respeito à origem de Paracatu. Enquanto as outras cidades
mineiras já assistiam seu espaço urbano adquirir corpo a partir da exploração das
minas no final do século XVII e início do XVIII (com a chegada dos elementos que
referenciavam a civilização europeia), Paracatu permaneceria no espaço do sertão com
suas minas somente exploradas a partir da década de 1730. A chegada dos sertanejos
trouxe para o arraial que se formava os elementos dessa civilização do couro que
fizeram com que sua origem, nessa produção historiográfica, fosse datada da mesma
época de formação das outras cidades mineiras que já estariam em estágio avançado de
desenvolvimento urbano e com fortes laços com a administração colonial.
A segunda função dessa representação do arraial (desde cedo, fins do XVII para o
XVIII, ocupado pelos sertanejos) estava relacionada à explicação das características de
algumas das gentes da cidade. Nesse caso, cumpria a função de equilibrar a história
de fausto que o arraial vai vivenciar durante o período da exploração aurífera e,
consequentemente, de formar o caráter do homem paracatuense que ao mesmo tempo
que é simples, pode ser também muito requintado. A civilização do couro em Paracatu,
segundo a representação construída por Afonso Arinos, contribuiu para a formação de
um povo mais simples, acostumado ao tempo mais tradicional (em que as experiências
humanas seguem em compasso com as “determinações” das estações climáticas da
natureza que, de certa forma, impõe tempo para plantio, colheita, festividades e outras
atividades sociais), enquanto a civilização do ouro fê-lo ser alguém capaz de extrapolar
a vida rudimentar que caracterizava a cultura sertaneja, capacitando-o a conviver
adequadamente nos grandes ambientes de cultura.
Colocado no encontro das duas grandes eras históricas sertanejas, a do couro
e a do ouro, cada uma com as suas características culturais definidas, Paracatu
participou dos dois ambientes. Foi, desde o século XVIII, centro das duas
atividades econômicas, a criadora e a mineradora, conforme demonstram
velhos documentos municipais. Conheceu ao mesmo tempo a vida requintada
e luxuosa da mineração e a formação social igualitária da criação. E estas
influências formadoras, até certo ponto contrastantes, explicam, em grande
parte, traços psicológicos de alguns dos filhos mais destacados do velho centro
mineiro, como os irmãos Afonso Arinos e Afrânio de Melo Franco (FRANCO,
1955, p. 14, grifo meu).
Tristão de Athayde ao escrever sobre Afonso Arinos reforça essa imagem ao afirmar:
Tôda a sua primeira infância, até aos nove anos, passou-a Afonso Arinos na
vila natal [Paracatu]. A vida livre de então, na cidadezinha pacata e sonolenta,
onde não havia mister prender as crianças, pois todo ela era como o jardim da
casa, gravou-se indelevelmente em sua alma (...) Pouco antes de morrer ainda
evocava com ternura essa paisagem que o vira nascer e na alma lhe deitara
raízes indeléveis: - “A alma dessa paisagem, para onde quer que andemos longe,
nos segue de perto e nos acompanha...” (MELLO, 1961, p. 21-22).
Como um arraial que teria demorado tanto a se desenvolver, ainda tão isolada em
uma região associada ao deserto, e ao gentio selvagem, poderia ter contribuído para a
formação de uma alma tão expansiva e requintada como a de Afonso Arinos? Se o ouro,
o desenvolvimento urbano, a circulação de centenas de aventureiros e a vida baseada
no enriquecimento fácil e na existência cheia de fausto, somente chegariam a partir de
1744, o caráter do sertanejo de vida simples e humilde formou-se anteriormente a esse
fato, durante o ciclo do couro, com o povoamento gradual que aconteceu nas margens
do rio Paracatu com o estabelecimento dos currais.
Essa maneira determinista de se conceber a influência dos aspectos físicos e geográficos
do lugar sobre o espírito humano foi largamente trabalhado por um autor que se
tornou muito conhecido nesse período em que escreve Afonso Arinos: João Camillo de
2). Toda essa criação era extremamente importante na conversão do sertão do noroeste
em um ambiente civilizado.
Em Paracatu teremos exemplos para todos esses elementos simbólicos. A construção
de mitos de origem e narrativas que constituíram os heróis da cidade pode ser vista
na passagem em que, na historiografia elencada, os autores narram o encontro das
bandeiras de Felisberto Caldeira Brant e José Rodrigues Fróis. A invenção de tradições
também, como no caso da narrativa que constrói a imagem de um arraial liderado por
uma pessoa justa (Felisberto Caldeira Brant) que preferia abrir mão do aumento de suas
riquezas e promover a paz do lugar em troca de não ver sangue sendo derramado no
arraial e as vidas das pessoas serem preservadas, conforme mencionado por Olympio
Gonzaga e Oliveira Mello (GONZAGA, 1988, p. 5-7; MELLO, 1979, p. 29). Nas palavras
de Gonzaga, Brant foi um herói cuja “boa estrella sempre lhe guiára os passos” (GONZAGA,
1988, p. 7).
Também tivemos a invenção de tradições que em nada deviam às europeias. Temos como
exemplos aquelas narrativas que descrevem as festas da cidade, como a que ocorreu
por ocasião da elevação de Paracatu à condição de vila de Paracatu do Príncipe e por
ocasião do estabelecimento da primeira Câmara na vila, no ano de 1799.
Acompanhado de numerosa tropa de cavallaria e infanteria, o ouvidor entrou
no arraial a 13 de dezembro de 1799, sendo delirantemente acclamado pelo povo
que o recebeu com grandes festas. [...] Na instalação da camara, a 18 de dezembro
de 1799, os vereadores estavam trajados a Luiz XIV, vestidos de calção, casaca
de bico de vistosas cores, capa sobre os hombros, cabellos grandes penteados,
elegantes chapeus de pluma, espadim á cinta, meias altas e sapatos com fivellas
de ouro. Nessas occasiões, as senhoras trajavam vestidos de seda com saias de
balão, com grande roda e libras de ouro ao pescoço. Era uso das ricaças sahirem
a passeio carregadas em rêdes ou palanquins por criados agaloados. Aquellas
senhoras que vieram de suas fazendas e chacaras assistir á instalação da camara,
entraram na villa vestidas de robe, montadas em bonitos corceis, sobre sellins,
cujo assento era forrado de velludo e usavam esporas (GONZAGA, 1988, p. 21).
–Friedrich Nietzsche
“Durante anos ele não soube por que caçava esses objetos
desgastados. Toda aquela paixão frenética por uma bola de
beisebol e ele finalmente compreendeu que era Eleanor em sua
cabeça, era algum tipo de terror operando profundamente sob
a pele que o fazia juntar coisas, acumular bens como barreira
contra o vulto escuro de alguma perda insuperável. Objetos
para lembrar. O que ele lembrava, o que vivia no couro velho
e curado da luva do apanhador no porão era o toque de sua
Eleanor, eram de sua mulher aqueles olhos nas fotografias
ovais de homens com bigodes esticados. O estado de perda, de
fato, a factualidade em sua solitária extensão”
–Don DeLillo
busca de um sentido para a vida, gera “abertura para a criação” (FARIAS, 2013). Nela,
o vazio é potência. De acordo com esse raciocínio, pode-se pensar o colecionador como
sujeito melancólico, entendendo que, se o melancólico é aquele que busca por sentido, a
coleção é uma das formas de produzi-lo. Em um contexto pós-moderno de efemeridade
e identidades fragmentadas, não se poderia pensar a coleção como opção de resistência
possível, dentro do contexto de uma sociedade narcísica, ao esfacelamento?
Ao ato de colecionar também se atribui uma busca de sentido e reencanto, no contexto
desencantado do mundo. Esse aspecto lúdico (não só relativo à brincadeira como
também à criatividade e à manifestação do artístico) do colecionismo se reforça em
Pearce, quando esta traça um paralelo entre as coleções e os jogos/brincadeiras (play).
Na medida em que as coleções habitam o universo das atividades do lazer (leisure time
activities), elas adentram o campo dos jogos/brincadeiras, o campo do imaginário,
abrindo para o colecionador outros tempos e lugares. Nesse aspecto da coleção como
uma dimensão suspensa, na qual o tempo é abolido (BAUDRILLARD, 2012), também
se entrecruzam criação e melancolia, pois o tempo da coleção é o tempo da criação –
quando passado, presente e futuro se interpenetram, quando é possível experimentar o
libertar-se da temporalidade – e também o da melancolia – pois o melancólico é aquele
que se desliga do tempo, como o cachorro a dormir na pintura de Dürer, representação,
aliás, que une, no mesmo elemento, memória e melancolia (SCLIAR, 2003).
De acordo com a teoria dos humores, a bile negra, seca e fria, estaria associada
à capacidade de lembrar [e também ao estado melancólico], ainda que lembrar
ruminando tristes pensamentos. Na gravura de Dürer, contudo, temos uma
memória – representada pelo cão – adormecida [...]. O melancólico lembra, mas
o que lembra é triste: ele se desliga do tempo – dormindo (SCLIAR, 2003, p. 83).
No Problema XXX,1, Aristóteles tenta encontrar uma solução para a seguinte pergunta:
“Por que todos os homens excepcionais são melancólicos?” (CHAUÍ-BERLINCK, 2008;
FARIAS, 2013); “Por que razão todos os que foram homens de exceção no que concerne
à filosofia, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos?” (SCLIAR, 2003, p.
70). Para Scliar, nessa pergunta está implícita uma diferenciação da melancolia doença
– da qual seres humanos normais podem padecer (o que na contemporaneidade
chamamos depressão) – da melancolia “natural”, relativa à índole, que, para Aristóteles,
é a qualidade “que torna seu portador genial ‘normalmente anormal’” (SCLIAR, 2003,
p. 70, grifo do autor).
Poder-se-ia estabelecer um paralelo entre a concepção aristotélica e a bergsoniana, no
tocante à emoção criadora. Embora Bergson perceba que homens em geral são dotados de
impulso criador, ele reconhece em certos indivíduos a capacidade de ir além: “algumas
almas privilegiadas, como a do artista, do místico, do filósofo” (SANTOS, 2008, p. 168)
que experimentam um tipo diferente de arrebatamento, um quê de inconstância que
leva esses seres de exceção aos seus atos de excepcionalidade, por assim dizer: a pintar,
a esculpir, a escrever, a elaborar teorias... A colecionar.
4 Do original em inglês: “the immediate ‘other’ in a social relationship does not have to be another ‘human being’”.
5 Referência à noção de caça presente no trabalho de Walter Benjamin (2006, 2012), principalmente no fragmento Caçando borboletas,
de Infância em Berlim, que sugere que, para caçar algo, você deve se tornar aquilo que caça. Mas, no processo de se tornar o que caça,
a caça se torna você. Logo, no fim, capturar a borboleta é a única maneira de se tornar humano novamente.
6 Uma coleção é um todo, cuja adaptação é promovida pelos itens novos que lhe são incorporados e por itens antigos que lhe são
retirados. Mudanças e transformações sofridas pelo colecionador ao longo de sua vida podem ser sinalizados na coleção por meio
da dispersão do que não pertence mais e da incorporação do que passa a pertencer.
Nas coleções é possível observar uma operação de dupla conversão em curso: uma que
converte objeto em palavra7 – que constrói uma narrativa com objetos, que usa objetos
para dizer –, e uma que converte restos (ASSMANN, 2011; DEBARY, 2016) em rastros
(DERRIDA; SPIRE, 2008).
Coleções são constituídas de restos – de viagens feitas, de livros lidos ou que se quer/quis
ler, experiências passadas, lugares visitados, de outras pessoas (coisas herdadas, coisas
dadas), etc. Em uma coleção particular, o criterioso e cuidadoso agrupar desses restos
constitui uma obra, a obra de uma vida que atestará a existência de seu colecionador/
criador nesse mundo – afinal, existir é deixar/ter deixado rastro.
Ao tornar-se rastro, um processo que corre simultaneamente em duas direções opostas
se desdobra: a coleção trata da mortalidade/finitude ao mesmo tempo em que promete
e assegura transcendência.
A morte é com frequência relacionada à ideia de esquecimento. Na mitologia grega,
por exemplo, a morte se consolidava pelo beber das águas do rio Lethe. Desse modo,
conservar a memória no Hades seria transcender a condição mortal (ABREU, 1996).
Uma vez que os indivíduos têm dificuldade em lidar com o fato de que morrem, coleções
respondem a isso. Respondem a essa necessidade de lidar com a angústia do morrer/
acabar. Elas não apenas se propõem a expressar coisas por nós em vida, como também
prometem contar ao mundo de nós8, quando não mais estivermos aqui para fazê-lo, ou
seja, elas nos emprestam seu tempo superior de vida como oportunidade de deixarmos
uma marca de passagem pelo/no mundo. Porém, ao fazê-lo, elas também afirmam/
confirmam nosso fim (futuro ou concluído).
Logo, coleções são, sincronicamente, um passaporte para a imortalidade e um atestado
de finalidade – mas um com o qual podemos lidar. Pelo espelho da coleção, podemos
contemplar nossa condição mortal refletida sobre a possibilidade de permanecer. Por
sermos lembrados. De alguma forma.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A coleção oculta toda uma complexa rede de relações, dinâmicas e disputas psicossociais
e se apresenta como manifestação-espelho do indivíduo, da sociedade e do meio – e, com
“meio”, entende-se não apenas ambiente como também tempo –, constituindo, portanto,
um importante objeto de estudo das ciências humanas e um valioso instrumento para
a compreensão do ser-humano e das dinâmicas sociais.
Coleções funcionam como mediadoras entre estes elementos – individuais e coletivos
– e seus observadores, operando como pontes a levar os últimos para os primeiros.
Exatamente por essa característica, elas servem como instrumentos por meio dos quais
memórias podem ser construídas e perpetuadas. Seus objetos, que emprestam seu
tempo de vida superior para guardar passados e experiências, fazem lembrar/falam/
contam dos colecionadores, de suas vidas, de suas histórias.
Se, como disse Guimarães Rosa , “viver é um rasgar-se e remendar-se” (1968, p. 76),
é nos remendos que podemos encontrar peças para decifrar o enigma da história – o
acontecimento narrado, o “causo” – dos rasgos e construir sua memória. E é no espaço
dos remendos que se encontra a coleção, espaço de restos, rastros, e imaginação, afinal
INTRODUÇÃO
A proposta deste trabalho é apresentar um estudo a partir de uma prática de 20 anos
na Oficina de Psicomotricidade, Cinema e Memória, ministrada na Universidade Aberta
da Terceira Idade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UnATI/UERJ)
e na Coordenadoria de Artes e Oficinas de Criação da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (COART/UERJ)1. Destacamos a importância de haver uma atividade
voltada para idosos numa universidade pública, ressaltando a relação intergeracional
promovida pelo projeto. Ressaltamos, ainda, a importância de um programa voltado
para idosos numa universidade, que desenvolve uma série de atividades em diversas
áreas, sempre visando a qualidade de vida dos idosos, na faixa etária entre 60 e 90
anos. Na oficina, utilizamos a arte do cinema, as novelas, o rádio, o teatro e a música
como instrumentos de memória. A partir dessas artes, os idosos trazem suas memórias,
falam das suas experiências, se emocionam e se inspiram para criar personagens que
são apresentados por eles num palco - qualquer lugar onde eles tenham a possibilidade
de atuarem: um teatro, uma rua, uma escola, um pátio, uma sala. A importância não
é do lugar físico, mas das intensidades vivenciadas nesse espaço e que possibilita,
aos participantes, a criação de memórias e de novos sentidos para a velhice. A cada
apresentação eles são reconhecidos, valorizados pelo público que os assiste: a plateia
de amigos e de familiares que os assistem admirados. Eis em que consiste a importância
do palco: despertar o velho para querer estar vivo. Nas práticas da UnATI e da COART
temos um palco aberto e interativo em que o público também se contagia pelo espetáculo
e se sinta afetado pelo que está assistindo. Nessa prática, os idosos assistem às cenas
dos filmes e representam partes que possam suscitar algum vínculo com momentos
já passados em suas vidas. O objetivo é que, por meio dessa experiência, eles tragam
lembranças daqueles momentos de outrora e, transportando-os para o presente,
estejam prontos para transformar a própria vivência. Em outras palavras, visamos que
as imagens evoquem o seu passado e que, a partir dessas lembranças, adotem atitudes
diferentes frente ao seu envelhecimento. Trata-se de estimular uma postura nova e
criativa face ao passado, comprometida com a arte que os afeta. Consideramos, assim,
que a experiência do palco produz um efeito instantâneo: o presente surge como um
momento que permite viver as intensidades e as forças vitais. No espaço do palco
percebemos que a memória das perdas, dos desgastes, do cansaço, enfim, a memória
do passado se transforma em superabundância de forças. Dessa forma, torna-se
possível a afirmação da vida apesar de todo o sofrimento e das vicissitudes penosas
da existência. Em nossa proposta de trabalho, procuramos compreender o palco da
oficina como um espaço de esquecimento, criação de memórias e de novos sentidos
para o envelhecimento – como um espaço de saúde, de uma velhice afirmativa da
vida. Em nossa análise, relacionamos esse singular olhar sobre a velhice à afirmação
nietzschiana da “arte como tônico da vida”. Nietzsche vê na arte uma possibilidade
de encarar a vida de uma forma diversificada e criativa. A arte revigora e intensifica
o viver; Essa é a relação suscitada em nosso trabalho. Assim como o filósofo alemão,
pretendemos estabelecer uma ligação entre arte e vida.
1 No item 2 deste trabalho essas istintuições são apresentadas e também é descrita a atividade realizada nesses espaços.
Segundo o autor, existem dois impulsos aludidos aos dois deuses da arte nas figuras
dos deuses olímpicos Apolo e Dionísio, como inspiradores da obra de arte apolínea
e dionisíaca que geraram a tragédia ática, gênero teatral muito difundido na Grécia
arcaica – Apolo, o deus do sonho, e Dionísio, o deus da embriaguez, sendo a arte
apolínea como a arte da figuração e a arte dionisíaca como a arte não figurada:
2 Primeira fase da obra nietzschiana.
Propomos, num primeiro momento, uma articulação entre estes dois impulsos artísticos
gregos ao cinema e ao envelhecimento que vivenciamos no espaço da oficina, com os
idosos. Podemos compreender que o impulso apolíneo, a arte onírica, do sonho está
relacionado com a arte do cinema; e o outro, o impulso dionisíaco, da embriaguez, da
desmedida, desfigurado e também da alegria, se aproxima da ideia que propomos da
velhice nesta pesquisa: que apesar do corpo marcado pelo tempo vivenciam a alegria
de serem capaz de dançar, cantar, movimentar, quando estão no palco.
Da mesma maneira que ocorre a aliança entre os opostos, apolíneo e dionisíaco, entre
a medida de Apolo e a desmedida de Dionísio, ocorre também uma união entre a
arte onírica do cinema e a intensidade e força do corpo do velho. Entendemos que,
ao se apresentarem no palco, acontece num momento de criação, quando a velhice se
afirma, apesar dos sofrimentos, das vicissitudes penosas da existência. Aqui refletimos
sobre o conceito de trágico nietzschiano. A partir dessas considerações surgem as
seguintes questões: há possibilidade de no envelhecimento a dimensão apolínea – as
belas formas bem delineadas, harmônicas, equilibradas – conviverem com a dimensão
dionisíaca – a embriaguez, a dissolução, a desfiguração, a desmedida, mas também
a sensualidade, a celebração da existência? Afirmar a velhice nos seus aspectos – sua
sabedoria, sua experiência de vida, sua serenidade, sua maturidade, sua memória – e
no que ela tem de mais cruel e doloroso – sua proximidade com a morte – pode se
aproximar do pensamento trágico de Nietzsche?
Observamos o palco da oficina também como um espaço de saúde. Contudo, não
negamos a doença, caminhamos com ela, pois percebemos que a saúde é sempre
conquistada. Ela é sempre uma nova saúde.
Essa ideia é muito próxima ao conceito de memória em que apostamos: uma memória
enquanto um processo, que caminha junto com o esquecimento, uma memória sempre
criada, uma nova memória, uma memória viva3. Também está próxima da ideia de
velhice que propomos neste trabalho, ou seja, uma nova velhice, criativa, plena de
forças, afirmativa da vida.
A velhice que encontramos no espaço do palco experimenta um momentâneo
esquecimento de si e brinca com o jogo de forças da vida. Uma nova imagem de
velhice que está em pleno movimento de criar e recriar. Ela é sofrida, adoece e ressente,
mas no palco, recupera sua potência e sua saúde. Uma saúde que está relacionada
à capacidade de dizer sim à vida, enfrentar e estar em permanente combate com as
forças da existência. Observamos que o velho que se apresenta no palco da oficina é
3 Uma memória viva: avaliamos como uma memória em constante movimento, que se recicla e se modifica sempre no presente em
contraponto com uma memória estática que se conserva e tem relação com o passado.
capaz de dizer sim à vida. Assim, a importância do palco para este idoso permanecer
ativo e afirmativo.
Logo, refletindo sobre o que abordamos até aqui, será que poderíamos afirmar, numa
perspectiva nietzschiana, que o palco da oficina é um espaço trágico? Um espaço de
intensidades, onde os idosos experimentam a sua potência ao máximo?
Percebemos a existência de um transbordamento de forças, da presença de idosos
destemidos, capazes de brincar com a seriedade e o peso da velhice, expondo-se
corajosamente no palco. O combate que este velho precisar travar com as forças sociais
é permanente para ter direito a uma existência digna4.
Propomos uma primeira relação desse conceito de trágico do filósofo com a prática que
vivenciamos na oficina para reforçar a nossa ideia principal que é analisar se o palco
constitui como um espaço trágico de criação de memória e de novos sentidos na velhice.
Vinculamos esse conceito de trágico, especialmente na velhice, um tempo da vida no
qual recomeçar e reconstruir já é uma atitude afirmativa e de combate de forças.
Podemos refletir com uma visão de artista que, apesar do tempo vivido, o que ele
guarda de beleza está salvo: a memória, a sabedoria, a experiência, as histórias de vida.
Isso não pode ser o que a velhice tem de belo em sua existência?
Assim, a proposta deste estudo da memória é o seu vínculo com a criação. Não
enfatizar uma memória vinculada ao excesso de passado, mas à criação, à alegria e ao
esquecimento, uma memória que se afirma na arte.
Vemos surgir no palco da oficina uma memória que surge a partir de intensidades
vividas, de experiências sensíveis e que é criada no instante do palco: uma memória-
palco. Ela possibilita aos idosos novos sentidos e novas expressões na velhice. Como
se a cada instante que o velho está no palco dá início para ele de uma nova experiência
com a velhice.
Percebemos que no momento do palco ocorre um encontro do passado, do presente
e do futuro: os idosos trazem lembranças, a partir dos filmes e de outras artes, se
expressam e apresentam as suas aptidões artísticas. É o instante das intensidades, das
forças que se juntam para afirmar a vida e criar novas memórias e novos sentidos
para a existência dos idosos. Barrenechea (2011, p. 269) diz: “Ao afirmar a vida na sua
plenitude, e cada ato da vida, lembramos o que já fizemos e o acolhemos e o afirmamos
como nosso futuro”.
2. UMA EXPERIÊNCIA COM IDOSOS DA OFICINA DE PSICOMOTRICIDADE,
CINEMA E MEMÓRIA DA UNATI E COART
Olhais para cima quando buscais a elevação. Eu olho para baixo, porque estou
elevado. Quem, entre vós, pode ao mesmo tempo rir e sentir-se elevado? Quem
sobe aos montes mais altos ri das tragédias do palco e da vida. (NIETZSCHE,
2011, p. 41).
4 A partir de estudos na área do envelhecimento observamos que numa perspectiva social a velhice é considerada o fim da existência
onde nada de novo, de criação pode acontecer. O sistema social não dá espaço para a saúde do idoso e responde através de mais
consultas, mais médicos, mais remédios, mais hospitais, mais UTIs etc...que esse é o modelo de saúde no envelhecimento: uma
aposta na doença e na morte.
Quem ao mesmo tempo pode sofrer as vicissitudes da velhice e rir delas? Será que é
possível ao idoso poder olhar do alto dos seus 70, 80, 90 anos de caminho percorrido e
enxergar no palco da vida uma existência de intensidades e rir das dores do passado?
O trabalho aqui apresentado é um estudo a partir de uma prática de 20 anos na
Oficina de Psicomotricidade5, Cinema e Memória ministrada na Universidade Aberta da
Terceira Idade (UnATI/UERJ) e na Coordenadoria de Artes e Oficinas de Criação da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (COART/UERJ). Recorro a Veras e Caldas
(2004, p. 11-16) para apresentar a UnATI, trata-se de um centro que oferece
atualização, informação e cursos e presta assistência e serviços de diversas
naturezas a idosos de diferentes faixas etárias, gêneros, etnias, extratos sociais e
níveis educacionais e culturais, sempre guiado pela excelência das alternativas
oferecidas. Enfim, um Centro de Convivência e Conveniência, caracterizado
pela inovação e qualidade, no interior da Universidade Pública. Este trabalho
tem também o objetivo de colocar à disposição dos profissionais interessados
na área do envelhecimento humano, o inventário da experiência desenvolvida
na Universidade Aberta da Terceira Idade da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro – UnATI/UERJ. Além disso, pretende estimular a criação de Centros
de Convivência para pessoas idosas em qualquer comunidade com o mínimo
de recursos a partir de alguns princípios básicos.
Os autores destacam a importância de haver uma atividade voltada para idosos numa
universidade pública, ressaltando a relação intergeracional promovida pelo projeto,
entre outras coisas:
Pelo fato de se localizar no interior de uma grande universidade pública, este
modelo deveria ter a capacidade de possibilitar o convívio entre distintas
gerações, como estratégia para se reduzir a discrepância de valores e
preconceitos. A enorme gama de cursos e atividades nas mais diversas áreas
do conhecimento, as estruturas de apoio, como laboratórios, bibliotecas, e
ainda as tecnologias inovadoras desenvolvidas em uma universidade foram
agregadas ao projeto como suporte para a transmissão de novos e qualificados
conhecimentos em diferentes áreas, para os estudantes com mais de 60 anos.
(VERAS; CALDAS, 2004, p. 11-16).
5 A psicomotricidade é uma ciência que tem como objeto de estudo o homem através do seu corpo em movimento e em relação ao
seu mundo interno e externo. Está relacionada a um processo de maturação onde o corpo é a origem das aquisições motoras, mentais
e emocionais. A Associação Brasileira de Psicomotricidade define a psicomoticidade como sustentada por três conhecimentos
básicos: o movimento, o intelecto e o afeto. (Disponível em: http://psicomotricidade.com.br/sobre/o-que-e-psicomotricidade/).
Neste trabalho, optamos por outra concepção de pensamento, mas que também pode ser uma definição para a psicomotricidade,
conforme abordaremos em capítulo posterior.
As pesquisas e as obras de Caldas (2010) e Veras (2003) são fundamentais para o estudo
das diversas perspectivas sobre o envelhecimento, são referências de base, atuais e que
abrem possibilidades para que outros pesquisadores avancem nos estudos desta área.
Para este trabalho propomos refletir sobre o envelhecimento para além do campo
científico, afirmando a velhice dentro de uma perspectiva nietzschiana. Nesse
pensamento não há negação da doença, das dores e da finitude que fazem parte do
processo de envelhecimento, mas uma afirmação da totalidade de uma existência que
aponta para uma velhice singular e transbordante de vida.
Retornando ao início do nosso texto e ao convite feito de relacionar o conceito de trágico
vinculado à velhice que se apresenta no palco da oficina surge a questão: será o espaço
do palco um espaço trágico de criação de memória na velhice?
Na oficina, utilizamos a arte do cinema, as novelas, o rádio, o teatro, a música como
instrumentos de memória. A partir dessas artes, ao serem afetados por elas, os velhos
trazem suas memórias, falam das suas experiências, se emocionam e se inspiram para
criar personagens que são apresentados por eles num palco, ou seja, qualquer lugar
onde eles tenham a possibilidade de atuarem: teatro, rua, escola, pátio ou sala. A
importância não está dada pelo lugar físico, mas por um espaço de intensidades que
possibilite aos participantes a criação de memórias e de novos sentidos para a velhice.
Propomos um palco cênico onde a cada apresentação as cenas e os personagens se
repetem, mas com intensidades diferentes. Eles são reconhecidos, valorizados pelos
diferentes públicos que os assistem e que são afetados pela arte apresentada no palco.
A cada instante do palco acontece algo novo, uma nova emoção surge. Nas práticas
Nos tempos atuais, o velho, em algumas situações, é visto como alguém que está no
fim do percurso vital, cumprindo uma etapa que aparentemente nada de novo poderia
trazer7, sendo preciso, então, que esse velho se reinvente. Não podemos deixar de
mencionar que na nossa sociedade atual a imagem do velho aglutina componentes
contraditórios8, pois do ponto de vista das relações capitalistas, ele se tornou uma fatia
interessante no mercado de consumo9, pois há o excesso de medicamentos e novas
tecnologias para prolongar a vida além dos limites possíveis de viver. A morte está
cada vez mais se distanciando do homem. As pessoas estão vivendo mais tempo e
a longevidade é um tema cada vez mais relevante nos dias atuais, quando se fala de
envelhecimento: “está fora de moda morrer cedo”, como afirmou Renato Veras (2016),
em palestra proferida no Rio de Janeiro.
Outro aspecto que vamos focar nesta pesquisa é a concepção que interpreta a velhice
como uma etapa cruel da vida. A invisibilidade, não despertar mais o desejo do outro,
tornar-se descartável, o desamparo nessa etapa da vida são terríveis demais para serem
suportados. O medo da velhice, o confronto com a morte que dela é próxima aparece
como uma obsessão na nossa sociedade. Adiar cada vez mais o envelhecimento e a
morte é um dos aspectos desse medo.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS, 1946, p. 1), “a saúde é um
estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência
de doença ou de enfermidade.” Segundo Veras (2010), há apenas casos excepcionais
de envelhecimento sem doenças crônicas, mas não necessariamente a doença física
precisa estar condicionada à falta de saúde, como a própria OMS sugere, já que há
possibilidade do velho encaminhar sua própria vida, independentemente da presença
de uma doença crônica. Esse medo de envelhecer e morrer, com isso, pode também ser
modificado, já que não necessariamente envelhecer é ruim e está vinculado apenas à
doença e à morte.
Diante dessas reflexões, algumas questões surgem: a ávida busca por escapar cada vez
mais da velhice e da morte não significaria acabar com as diferenças e os múltiplos
estilos que fazem parte da vida? Estaríamos caminhando para um padrão e uma
automatização da vida? Seria possível ultrapassar cada vez mais os limites da vida?
A partir dessas ponderações, é possível estabelecermos outra perspectiva: a velhice
mudou. Hoje se vive mais anos de vida e vive-se bem. Temos os jovens-idosos que
estão plenos de vida e se encontram ainda em plena atividade. Qual a possibilidade
para estar jovem aos 70, 80, 90 anos? O filósofo Deleuze (1988-1989) quando fala da
velhice no documentário O abecedário – série de entrevistas a Claire Parnet – fornece
uma “chave” para essa questão:
7 Segundo Peixoto (1997, p.44) “Se considerarmos que a valorização do trabalho e da produtividade é bastante enfatizada nas
sociedades contemporâneas, a aposentadoria passa a representar, para alguns, a deterioração da pessoa [...].” Importante destacar
na pesquisa o tema da aposentadoria tão relevante nesta etapa da vida e contemporâneo em relação às políticas públicas sobre o
envelhecimento.
8 Os aspectos contraditórios mencionados se referem a que a velhice para a sociedade e para a midia é interessante por ser
considerada uma faixa que o mercado pode explorar e tem interesse e ao mesmo tempo comporta uma invisibilidade e ocupa um
lugar onde nada de novo pode trazer.
9 Segundo Rosenfeld (1997, p. 171) “No plano das políticas públicas essa dimensão [terceira idade] interessa à sociedade como um
todo, uma vez que o crescimento da população idosa amplia a demanda por recursos físicos e materiais, sem que sejam gerados
ganhos econômicos para a produção.” Refletindo sobre os componentes contraditórios dos quais fala a autora, deduzimos que ao
mesmo tempo que este velho é descartado da sociedade, ele é interessante enquanto uma peça importante no mercado de consumo.
INTRODUÇÃO
Este artigo visa contribuir para reconstrução do percurso da história da educação
para o cego no interior do estado do Rio de Janeiro, tendo como ponto de partida o
Educandário para Cegos São José Operário, localizado na região norte-fluminense,
no município de Campos/RJ. Este recorte espacial justifica-se tendo em vista que a
historiografia da história da educação especial centraliza a trajetória do estado na
cidade do Rio de Janeiro, tendo em vista ter sido a cidade que inaugurou a primeira
instituição da América Latina, nesta modalidade, sendo uma referência nacional de
educação para cegos.
Destacam-se como período inicial as décadas de 1950 e 1960, por ser o período de
fundação da instituição e de seu mantenedor, em um contexto marcado pela assistência
técnico-financeira do Estado às secretarias de educação e às instituições especializadas.
O período final é a década de 1980, marcado pelas mudanças na gestão, no perfil da
instituição, no fechamento do ciclo do Jubileu de Prata e pela expansão da perspectiva
da integração social.
A perspectiva microanalítica é privilegiada nesta pesquisa, considerando a região
como uma posição de análise. Revel citando Arnaldo Momigliano pondera que: “fazer
a escolha de uma história particular significa, de fato, eliminar – ou, pelo menos,
suspender por hipótese – uma pluralidade de outras histórias possíveis” (REVEL,
2010, p. 435, 438).
No que se refere aos aspectos metodológicos, a História Oral possui uma posição
importante neste trabalho, contudo, a triangulação das fontes entre entrevista oral,
acervo histórico da instituição, jornais da época, além da legislação, faz-se necessária,
contribuindo para uma maior solidez dos resultados.
Este trabalho apresenta resultados parciais de um projeto de pesquisa mais amplo,
sobre a relação entre a cultura escolar (JULIA, 2001) e a rede de sociabilidade que
envolve o Educandário para cegos, entre as décadas de 1960 e 1980, bem como a
identificação das políticas educacionais para o cego (ÉDLER, 1977; MAZZOTA,
1995, 2011; JANNUZZI, 1985, 2012; BUENO, 2001) que se firmaram neste período e
perpassaram esta instituição.
Este projeto de pesquisa vem sendo desenvolvido no âmbito do grupo de pesquisa
Educação, Sociedade e Região, da Universidade Estadual do Norte Fluminense,
especificamente no Programa de Pós-graduação em Políticas Sociais. Este grupo
tem se dedicado a reconstruir a história da educação e de instituições educativas de
tradição no interior do estado do Rio de Janeiro, priorizando o município de Campos/
RJ, tais como o Liceu de Humanidade de Campos, a Escola Profissional Feminina Nilo
Peçanha, o Instituto de Educação de Campos e a Escola Normal de Campos.
Em relação à estrutura do artigo, na primeira parte aborda-se um breve histórico sobre
a trajetória da educação especial, com ênfase na educação para o cego no estado do
Rio de Janeiro. Na segunda parte, apresentam-se resultados parciais referentes ao
Educandário para Cegos São José Operário, instituição objeto deste trabalho.
Bock (1980, p.66) ao tratar das teorias do Progresso, Desenvolvimento e Evolução afirma
que: “O que progride, onde e quando o progresso teria ocorrido, e que critérios são
usados para distinguir o progresso, não são questões os quais os teóricos do progresso
concordem, de época para época”.
A negação da sociedade que a pessoa com deficiência pode apreender conhecimentos
e comportamentos sociais caracteriza o momento da marginalização. O deficiente é
visto como inválido e incapacitado, “o que leva à completa omissão da sociedade em
relação à organização de serviços para atender às necessidades individuais” desse
público (MAZZOTTA, 1982, p. 3).
No momento em que a sociedade começa a oferecer assistência ao deficiente, não
significa que ela abandona a crença no indivíduo incapaz de participar ativamente da
vida social. Assim são organizados os Serviços de Assistência, “por pessoas bondosas”
“que refletiam atitudes sociais marcadas por um sentido filantrópico, paternalista e
humanitário” “em nome do princípio cristão da solidariedade humana” (MAZZOTTA,
1982, p. 3). Grande parte desses serviços de assistências possui cunho religioso.
No final da década de 1950, o Ministério da Educação promoveu a assistência técnico-
financeira do Estado às secretarias de educação e às instituições especializadas,
inclusive privadas, por intermédio das Campanhas Nacionais em prol das pessoas
com deficiência, passando atendimento ao excepcional ser assumido pelo governo
federal em todo país. São elas: Campanha para Educação do Surdo Brasileiro (1957);
Campanha Nacional de Educação e Reabilitação dos Deficitários Visuais (1958) e
Campanha Nacional de Educação do Deficiente Mental em 1960 (MAZZOTTA, 2011,
p.52-54).
Apesar de algumas iniciativas pontuais do Estado, a história da educação especial está
intimamente ligada à filantropia e à assistência social, sendo o deficiente um público
que historicamente fica à margem das políticas públicas. Percebe-se que, a “Assistência
Social brasileira carrega uma pesada herança assistencialista que se consubstanciou a
partir da “matriz do favor, do apadrinhamento, do clientelismo e do mando, formas
enraizadas na cultura política do país, sobretudo no trato com as classes subalternas”
(YAZBECK, 2008, p.75). Sposati (2009, p. 32) acrescenta que “a Política de Assistência
Social promovida por agentes público e privado foi reiteradamente marcada pela
ausência de compromisso do Estado, ausência de regulação pública, ausência do
direito de acesso”.
Na década de 1960 houve o favorecimento para a consolidação e permanência das
instituições privadas, filantrópicas, após a promulgação da Lei de Diretrizes de Bases
de 1961, que dispôs que o Poder Público deveria dispensar “tratamento especial,
mediante bolsas de estudo, empréstimos e subvenções” (MAZZOTA, 1995, p. 68) às
instituições privadas:
Art. 88. A educação de excepcionais, deve, no que for possível, enquadrar-se no
sistema geral de educação, a fim de integrá-los na comunidade.
Art. 89. Toda iniciativa privada considerada eficiente pelos conselhos estaduais
de educação, e relativa à educação de excepcionais, receberá dos poderes
públicos tratamento especial mediante bolsas de estudo, empréstimos e
subvenções (Lei 4.024/1961, art. 88 e 89).
Clube (1957), foi inaugurada a primeira linha de ônibus elétricos, os Tróley-bus (1958)
e foram criadas, em 1959, as Escolas Técnicas Federais em Campos (CARVALHO,
1991) e o Instituto de Educação de Campos, em 1955 (MARTINEZ; BOYNARD, 2004).
A Enciclopédia dos Municípios Brasileiros (1959, p.11), publicada em comemoração
ao 3.º aniversário do governo de Juscelino Kubistschek, informa que o Estado do Rio
de Janeiro, na década de 1950, mantém, como grande expressão de sua riqueza, os
canaviais de Campos, com a esplêndia indústria de açúcar que lá se desenvolve, [...]
ocupando o “ 4.º lugar na produção de cana-de-açúcar entre as unidades da Federação”.
Apesar das demonstrações pontuais de progresso, havia uma dicotomia social, tendo em
vista que apesar de serem oferecidos, na cidade, serviços modernos e entretenimento,
o acesso a eles era restrito a uma minoria. O recenseamento geral do IBGE de 1950
aponta que dos 237.633 habitantes de Campos/RJ, 154.545 pertenciam à zona rural,
ou seja, em torno de 65% da população (IBGE, 1959, p. 227). Dentro deste contexto de
vulnerabilidades sociais, a filantropia era uma prática recorrente na sociedade.
Ademais, cabe ressaltar que no período da fundação do Educandário de Cegos, o
município de Campos dos Goytacazes tinha uma oferta escolar precária e/ou elitizada
do ensino regular. Quanto à sua economia, era essencialmente sucroalcooleira,
marcando a sociedade e a sociabilidade sob vários aspectos, principalmente porque o
contexto amplo da cidade estava composto ou dividido em grandes espaços produtivos
e sociais denominados usinas.
O aprofundamento no mundo do açúcar e na sua peculiar sociabilidade é essencial,
pois indica uma contribuição significativa para a formação da matriz da cultura escolar
campista e a fixação no imaginário da região Norte Fluminense de um conjunto de
poderosas representações sociais (GANTOS; MARTINEZ, 2010).
O viés filantrópico caracteriza a instituição desde o seu início, quando ainda
funcionava somente como Serviço de Assistência (1956-1963), com o objetivo de
atender a necessidade do pobre na cidade, através de campanhas do cobertor, doação
de roupas e alimentos. A finalidade precípua do SASJO era “auxiliar o pobre com
alimentos, remédios, agasalhos e a difusão da moral cristã”. Para que esta finalidade
fosse alcançada, o Estatuto estabeleceu que os associados deveriam esforçar-se “por
se revestir do verdadeiro espírito patriótico e cristão, praticando especialmente as
virtudes de retidão e fidelidade, de justiça e caridade”, incluindo:
a) Retidão das intenções; b) Fidelidade no dever; c) Justiça para com todos;d)
Caridade, sobretudo com os mais necessitados.
[...] deve prevalecer em tudo o espírito de dedicação, de generosidade e de
serviço. Por isso o lema do Serviço de Assistência São José Operário será sempre:
SERVIR!(Estatuto do SASJO – Art.1.º parágrafo único e art. 2.º.
cego, no interior, que atendesse, de fato, a demanda dessa clientela. Ademais, havia
um forte apoio da rede social da fundadora, composta por pessoas de influência social
da sociedade campista, e também envolvia uma motivação religiosa, tendo em vista ter
sido, a fundadora, escolarizada no primário, no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora,
em Campos, e no ginásio, no Colégio Sacré-Coeur de Marie, no Rio de Janeiro, ambas
as instituições confessionais católicas. A última, coordenada por uma Ordem francesa,
que valorizava a ação social.
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INTRODUÇÃO
Para pensarmos as possíveis relações entre corpo, cinema e educação, iremos começar
investigando conceitualmente a relação entre corpo e poder. Para guiar nossa análise,
elegemos o pensamento de dois grandes filósofos contemporâneos: o francês Michel
Foucault e a estadunidense Judith Butler.
A partir de Foucault analisaremos o corpo disciplinado: corpo este que se apresenta
como “corpo máquina” e “corpo espécie”: o primeiro é adestrado de maneira a ter
suas aptidões e forças majoradas e o segundo para satisfazer as necessidades de uma
biopolítica da população. E em um segundo momento, investigaremos o corpo que
se liberta das tecnologias da assujeitamento tendo em vista o que Foucault chamou
de “estética da existência”: um autogoverno de si no que diz respeito aos processos
de subjetivação que tanto iremos discutir neste artigo. Já em Butler veremos como ela
retoma o pensamento foucaultiano no que diz respeito às tecnologias de construção
do sujeito a fim de expor e explorar modelos naturalizados e normativos de gênero e
sexualidade. Veremos que o corpo para esta pensadora não é “simples matéria”, mas
sim uma construção dada pelo discurso e pela lei. E que este pode ser sim ressignificado
de forma a desafiar as normas culturais vigentes.
A partir desta análise conceitual, pensaremos o cinema como instrumento possível no
processo de subjetivação dos corpos. No contexto social e cultural em que vivemos,
o conhecimento produzido não se restringe apenas às narrativas orais e escritas, mas
também se apresenta através de imagens e sons, provocando uma produção sem limites
de metáforas para a vida. As narrativas fílmicas passam a reivindicar para si um poder
pedagógico que se dá através das sensações: o corpo colocado em ação na narrativa
fílmica expressa estados sensoriais e sentimentais que, dado a ver audiovisualmente,
inspiram no espectador, se não os mesmos estados, algo bem próximo deles.
No entanto, como pensar o uso do cinema queer no âmbito da educação formal? Em
primeiro lugar, precisamos flexibilizar o termo “cinema queer” para pensarmos em
obras audiovisuais que abordem questões sobre gênero, sexualidade, raça, etnia e
classe social a partir de um olhar onde não há espaço para identidades fixas. Logo
depois iremos analisar como estudo de caso o site “Biblioteca Digital Escolas Plurais”,
que disponibiliza pesquisa de filmes ligados aos temas propostos pela nossa pesquisa, a
partir dos pressupostos teóricos propostos pela pesquisadora brasileira Guacira Lopes
Louro, que desenvolve uma rica reflexão acerca da teoria queer e da educação. Com
isso, buscamos estabelecer perspectivas para pensarmos de que forma as narrativas
audiovisuais podem ser utilizadas pela educação formal para minimizar os efeitos
opressores do que chamaremos de “processo de escolarização do corpo”. O objetivo
deste trabalho é promover uma breve reflexão de como podemos, através da educação,
promover uma sociedade composta de sujeitos livres e plurais.
1. CORPO, PODER E EDUCAÇÃO
1.1. Foucault e o ‘cuidado de si’.
Foucault retoma o pensamento 3reco-romano em História da sexualidade II: o uso dos
prazeres (1984), História da sexualidade III: o cuidado de si (1985) e A hermenêutica do
sujeito (2010) para problematizar um conjunto de práticas que ele irá chamar de “artes
da existência”: práticas racionais e voluntárias pelas quais os homens não apenas
E é justamente por isso que Foucault retoma este tema para pensar a ação ética e política
na contemporaneidade. Ele não cessa de insistir sobre o fato de que o sujeito suposto
por essas técnicas de si, pelas artes da existência, é um ser ético. Isso significa que o
sujeito é compreendido como transformável, modificável: é um sujeito que se constrói,
que se dá regras de existência e conduta, que se forma através de exercícios, das práticas
e das técnicas. Este procedimento de subjetivação, inclusive, não constitui uma prática
puramente individualista. O que interessa mesmo a Foucault neste cuidado de si é a
maneira como ele se integra num tecido social e constitui um motor da ação política.
Não se trata de renunciar ao mundo e aos outros, mas de modular de outro modo esta
relação com os outros pelo cuidado de si.
Observa-se que tal processo de singularização somente tem sentido quando culmina
na superação do individualismo pela nova aliança do indivíduo com novas formas
de viver e novos vínculos comunitários. Seria justamente o que Foucault chamou de
“estética da existência”, atitude pela qual nos tornamos artífices da beleza de nossa
própria vida, estilo de vida este de alcance comunitário, por ele denominada como
forma de vida “artista”, realizável por todo aquele que seja capaz de questionamentos
éticos e políticos. Afinal, para ele, a política começa com a recusa do silêncio da servidão
e prolonga-se quando indivíduos transformam a si próprios e aos outros. O trabalho
da política, a partir deste momento, é de criação, de diferenciação, de inovação. Trata-
se do governo de si que culmina no autogoverno recíproco de indivíduos autônomos.
Queer pode ser traduzido como “estranho” ou “abjeto” e significa também uma
expressão pejorativa em língua inglesa com que são designados homens e mulheres
homossexuais. Um insulto repetido pelos grupos homofóbicos e que, por isso mesmo,
é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais para caracterizar
sua perspectiva de contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a
normalização, venha de onde ela vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente,
a heteronormatividade compulsória da sociedade, como também a normalização
e a estabilidade propostas pela política de identidade do movimento homossexual
dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou
tolerada e, portanto, sua forma de ação seria muito mais transgressiva e perturbadora.
Desde os fins da década de 1960, vários autores começaram a compreender a
sexualidade como política e socialmente criada, portanto não mais como sendo da
esfera do biológico, psíquico ou natural. A teoria queer busca problematizar justamente
as regulações sexuais e de gênero socialmente impostas que criam e mantêm
desigualdades de toda ordem, em especial no menor reconhecimento político e de
direitos daquelas pessoas cuja sexualidade e/ou o gênero entram em desacordo com
as normas vigentes. A ordem política e cultural da heterossexualidade compulsória
garante os privilégios políticos, culturais e até econômicos daqueles que vivem dentro
de suas prescrições. Afinal,
Como sabemos o que faz uma atividade erótica boa e outra má? É um caso de
vontade divina, natureza biológica ou convenção social? Podemos realmente
ter certeza de que nossos desejos e prazeres são normais, naturais, bons – ou de
que nós o somos? Por que o sexo é tão importante? (SPARGO: 2006: p. 5)
Butler foca sua discussão teórica nas questões acerca do gênero e do sexo, discussão
esta que pode ser facilmente utilizada para discutirmos a questão do corpo. Sobre o
gênero e o sexo, ela afirma que estas são duas categorias construídas. E se o gênero é um
ato que está sempre e inevitavelmente ocorrendo, já que é impossível alguém existir
como um agente social fora dos termos de gênero, o sexo também é culturalmente
construído. Em relação a isso, o pensamento metafísico certamente estaria de acordo
com a crença difundida de que o sexo e o corpo são entidades materiais, “naturais”,
autoevidentes, ao passo que para Butler, sexo e gênero são construções culturais que
demarcam e definem o corpo. Em Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade
(2013), ela descreve justamente como os gêneros e os sexos são atualmente “feitos” no
interior da matriz heterossexual, à medida que examina como é possível “fazer” essas
construções de maneira diferente.
Desta forma, ela afirma que o corpo é efeito do desejo e não a sua causa. Ele não seria
uma “simples matéria”, mas um corpo construído e traçado pelo discurso e pela lei. Se
tanto o sexo quanto o gênero são “encenações” e não simples dados, acabam operando
performativamente para estabelecer a aparência de fixidez corporal. Todos os corpos
são “generificados” desde o começo de sua existência social, o que significa que não há
“corpo natural” que preexista à sua inscrição cultural. Antes de ser destino, a anatomia
é discurso ou significação, o que implica que o corpo pode ser ressignificado de forma
a desafiar as normas culturais vigentes.
Assim como acontece com o gênero, sugerir que não há um corpo antes da
inscrição cultural levará Butler a argumentar que o sexo, bem como o gênero,
pode ser performativamente reinscrito de maneiras que acentuem seu caráter
factício, artificial (isto é, seu caráter construído) em vez de sua facticidade (isto
é, o fato de sua existência). (SALIH: 2013: p. 88)
Nossos corpos são fabricados por tecnologias precisas e sofisticadas que têm como um
dos mais poderosos resultados a sua suposta naturalização. Inversamente, afirmamos
que a materialidade do corpo só pode ser apreendida através do discurso. A linguagem,
que parece apenas descrevê-lo, na verdade o constitui.
O CINEMA COMO INSTRUMENTO DE SUBJETIVAÇÃO DO CORPO
2.1. A subjetivação através do cinema.
Podemos afirmar que a sociedade contemporânea baseia-se em uma cultura centrada,
sobretudo, na imagem: acelerada, vertiginosa, distorcida, ampliada e quase onipresente.
É uma verve visual disseminada em outdoors, televisão, internet e cinema. Em
Sociedade excitada: filosofia da sensação (2010), Christoph Türcke afirma que a época do
surgimento da fotografia é a época da Revolução Industrial, quando um novo modelo
de produção, o uso de máquinas a vapor, começou a marcar o compasso da sociedade
ocidental.
A fotografia possui um efeito bruto: seu caráter de instantâneo. (...) Seus
pioneiros previam com muita clareza que em breve ela deveria tornar-se um
artigo de massa que penetra igualmente todas as classes sociais, o publico e
a esfera privada. Menos evidente era para eles em que medida o novo artigo
também atuaria como uma nova forma de intuição. (TÜRCKE: 2010: 187)
Já o cinema surge no final do século XIX não apenas como a evolução técnica da
fotografia, mas também como a evolução da representação do pensamento em imagens,
da mobilização das imagens por um pensamento e da “produção de metáforas” para a
vida, em busca de uma inteligibilidade e expressividade melhores. O cinema promove,
recolhe e integra em seu âmago as diversas artes precedentes, acrescentando-lhes
uma dimensão nova que o aproxima da vida. Afinal, o movimento e a temporalidade
passam a ser introduzidos no fluxo das imagens, não como produto mecânico de um
encadeamento de fotogramas, mas como força de organicidade e vivacidade de um
pensamento.
Há, desta forma, a incorporação das novas tecnologias audiovisuais em nosso cotidiano
com o tempo. Incorporamos toda uma reestruturação das funções das práticas culturais
de memória, de saber, do imaginário e criação devido a um contexto social e cultural
que não se restringe mais à produção de narrativas orais e escritas, mas que também
se apresentam através de imagens e sons. E é justamente neste novo contexto cultural
em que os indivíduos são progressivamente inseridos desde que nascem. Isso permite
que vejamos o mundo de “outra forma”, com outros parâmetros narrativos, agora
mais ancorados na visualidade.
Walter Benjamin em O narrador (1994) nos ajuda a perceber que as novas formas de
percepção expressam-se num sensorium diferente em razão da técnica, das novas
tecnologias, e mostra o quanto é necessário considerar que as mudanças no espaço
da cultura transformam as experiências dos sujeitos, interferindo nos seus modos de
produzir cultura. Vemos que os sentidos nas sociedades contemporâneas se organizam
cada vez mais a partir das imagens, que exercem o papel de grandes mediadores entre
sujeito e cultura. De fato, a imagem audiovisual não só assegura formas de socialização
e transmissão de informações, como também faz parte da nossa prática social e cultural.
Estamos vivendo uma audiovisualização da cultura sem precedentes.
(André da Costa Pinto, 2007), que aborda a vida de duas travestis no interior da Paraíba;
“Boneca na mochila” (Reginaldo Bianco, 1997) e “Novamente” (3 laranjas, 1991), que
abordam os medos e fantasias que permeiam a questão da homossexualidade; “Minha
vida de João” (Gary Barker, 2001) e “Era uma vez outra Maria” (Gary Barker, 2006),
animações que abordam questões de gênero, entre outros.
CONCLUSÃO
Os filmes propostos no presente trabalho são aqueles que, sejam curtas ou longas,
documentários ou de ficção, visam abordar o caráter performativo do gênero, a fluidez
do desejo sexual e as identidades discursivamente produzidas. Através de personagens
e narrativas que fogem das representações tradicionais da sociedade heteronormativa,
sexista e racista, buscam provocar um engajamento entre narrativa e espectador de
maneira que este último tenha seus estados sensoriais e sentimentais alterados.
Na educação formal, a utilização de filmes que abordem as temáticas acima descritas
pode ser de grande ajuda para pensarmos uma educação de fato libertária. No processo
pedagógico, a utilização de determinados filmes no trabalho do educador com seus
alunos pode possibilitar, além das alterações sensoriais e sentimentais descritos acima,
também o estopim de discussões críticas acerca das representações oferecidas nos
filmes. Desta forma, acreditamos que a utilização de filmes que abordem temáticas
que estejam de acordo com as nossas escolhas teóricas pode ser de grande ajuda no
processo de construção de uma educação queer: aquela que visa a subjetivação de
indivíduos plurais e verdadeiramente autônomos.
REFERÊNCIAS
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LOPES, Denilson. NAGIME, Mateus. ‘New Queer Cinema e um novo cinema queer no
Brasil. In. New queer cinema: cinema, sexualidade e política. Catálogo da exposição, 2015.
Introdução
No presente trabalho, pretende-se mostrar a importância que as metodologias qualitativas
baseadas na observação participante e na investigação militante, possuem na análise do
fenômeno da migração forçada interna2. Além de demonstrar a riqueza das histórias de
vida como ferramenta para a realização da pesquisa de campo. Assim este trabalho tem
como propósito gerar questionamentos, que não serão aqui respondidos, mas servirão
para refletir, pensar, criar e melhorar as nossas técnicas de pesquisa.
Para isso, esse trabalho é estruturado em três partes. Na primeira, falaremos sobre a
importância da metodologia qualitativa, especificamente por meio de uma perspectiva
compreensiva e interpretativa, de onde surgem os métodos da observação participante e da
investigação militante3 dos quais faz parte a ferramenta das histórias de vida. Nessa mesma
seção, um espaço será dedicado a abordar os efeitos que essa proposta metodológica
pode gerar na sua implementação. Na segunda parte, vamos discutir sobre as barreiras
e os desafios que a observação participante e a investigação militante enfrentam e quais são
os efeitos ou impactos na criação do conhecimento e, subsequentemente, na sociedade.
Finalmente na terceira seção serão expostas as considerações finais.
PARTE I
As histórias de vida como ferramenta metodológica permitem analisar profundamente
o modo como cada migrante se vê, se assimila e se interpreta4 dentro do processo do
deslocamento forçado interno, isso a partir das suas próprias experiências de vida que se
interconectam com as estruturas sociais e estas, por sua vez, com os atores, interagindo
todos numa dinâmica caracterizada pela competitividade, escassez, estigmatização,
exclusão, violência e incerteza (BELLO, 2001).
Segundo Gilberto Giménez (2009), uma parte importante da identidade dos indivíduos
está configurada por três elementos: o sentido de pertencimento, os atributos idiossincráticos
e relacionais e a sua história de vida e trajetória social. Sobre isso, os estudos de Martha
Nubia Bello (2005), Maria Teresa Uribe de Hincapié (2001), Tobón y Otero (1995),
Severin Durin (2013), Oscar Torrens (2012), Ewa Morawska (2005), Ian Chambers
(1994), entre outros, mostraram que no caso do fenômeno da migração forçada por conta
da violência, as pessoas se veem transformadas em sua configuração identitária. Com
isso, não se pretende apontar que a identidade é uma estrutura estática e imóvel e sim
que os processos de mudanças radicais e violentos experimentados pelos atores sociais
transformam esses três elementos.
2 Neste artigo os termos migração forçada interna e deslocamento forçado interno fazem referência ao mesmo conceito, conforme
os “Principios rectores de desplazamientos internos de 1995” del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Refugiados
(ACNUR) que aponta que deslocado é toda aquela […]población obligada a huir o dejar sus hogares o sus lugares habituales de
residencia como resultado de los efectos causados por conflictos armados, situaciones generalizadas de violencia, violaciones a
derechos humanos, o bien desastres naturales o causados por el hombre, población que no ha cruzado una frontera internacional
reconocida entre dos Estados ( (ACNUR, 1995, p. 5).
3 Existem diferenças entre a observação participativa e a investigação militante. Enquanto a primeira se caracteriza por estabelecer
uma relação difusa entre o pesquisador e a comunidade, procurando sempre a objetividade e tendo uma postura política e de valores
neutros; a investigação militante constrói uma relação contratual com a comunidade e isso tem incidência em todo o processo, desde
a determinação do título do projeto até os resultados obtidos e, com relação a princípios e valores, busca-se a justiça social, a defesa
dos direitos humanos e a equidade.
4 O termo intérprete neste texto é entendido a partir da teoria da ação social de Max Weber como aquela em que o sentido
apresentado pelo sujeito ou sujeitos, encontra-se influenciado pela conduta dos “outros” – pessoas que fazem parte do coletivo.
Assim, a conduta dos atores sociais se encontra atravessada ou configurada por quatro eixos: o primeiro é a finalidade racional ou a
ação instrumental, cujo modelo é a ação econômica, quando o ator social procura eficácia dos meios com relação aos fins; o segundo
é a valoração racional na que a avaliação em relação aos fins é submetida a um juízo carregado de valores morais; o terceiro eixo é a
ação afetiva, quando as emoções dominam a ação social; e, finalmente, o quarto elemento que configura a teoria weberiana, a ação
tradicional, quando as tradições são predominantes e orientam a ação social. Ver em: Max Weber, (1922). Economia y Sociedad:
esbozo de sociologia comprensiva, Espanha, Fondo de Cultura Economica, 2002.
Então surge a primeira pergunta: como realizar uma leitura científica de questões
tão profundas quanto as transformações identitárias nos atores da migração forçada
interna?
As diversas metodologias de pesquisa participativa se encontram ligadas à hermenêutica
e à sociologia compreensiva. Ambas partem do pressuposto que é possível entender o
sentido da ação social por meio do compartilhamento das motivações e afetividades
das comunidades que estudam. É justamente daí que surge a intersubjetividade e o
dialógico da investigação, bem como o surgimento da teoria da “captação interpretativa
do sentido da ação social”. Esta última procura marcar uma diferença entre as ciências
sociais e as ciências naturais, já que a primeira tenta expor a importância de uma
perspectiva compreensiva e interpretativa, propondo que propõe que a inteligibilidade
dos atores, que fazem parte do fenômeno social, surge graças à possibilidade de
experimentar as vivências, os sentimentos e as motivações dos atores (WEBER, 2002).
Assim, a ação pode ser lida como um conjunto de significados aprendidos por meio de
habilidades investigativas que não se encontram em meros manuais de metodologia,
uma vez que são adquiridas durante o processo de elaboração das pesquisas de campo,
ou seja, pela experiência. Alguns exemplos dessas habilidades são a criatividade, a
imaginação e a intuição, todos elementos importantes para o processo de reinterpretação
que deve ser feito pelo pesquisador.
Ainda nos anos 1970, na Europa, os estudos hegemônicos eram aqueles com perspectivas
estruturalistas e institucionalistas, bem como aqueles com enfoques funcionalistas,
organizacionais e sistêmicos. Apesar de serem estas linhas as predominantes, existiu
sempre uma questão preocupante com relação aos estudos que lidam com pessoas,
atores ou intérpretes: o ator social evapora-se, some diante de uma estrutura carregada de
conceitos construídos que, inclusive, em algumas ocasiões, estão sumamente afastados
dos contextos sócio históricos ou da ação social (PARIS, 2012).
A perspectiva compreensiva e interpretativa fundamentalmente busca devolver a voz ao
ator principal do fenômeno social estudado. No caso do processo do deslocamento
forçado interno, esse ator é o migrante, e deve haver o cuidado para não lhe outorgar
uma racionalidade pré-constituída, não perdendo de vista a questão sócio histórica
(BOURDIEU, 2000). São essas características que fazem dessa metodologia qualitativa
uma estratégia abrangente, pois se propõe a equilibrar as disparidades, dialogando
com a conduta humana e as estruturas.
Mas como é possível devolver a voz aos atores do processo para que, de um lado,
sejam eles os intérpretes e, de outro, sejam os cientistas os exploradores e descritores
do fenômeno do deslocamento forçado interno? Quais são os efeitos trazidos por esta
metodologia, ao reivindicar a voz dos atores principais do deslocamento forçado
interno?
Durante todo esse processo traumático e violento, pelo qual os migrantes forçados
atravessam, estes acabam ficando na marginalidade e isso significa não ter voz, não
ser escutado. Décadas de investimento em pesquisas na Colômbia, mostram como as
instituições fingiram não ter conhecimento do que acontecia e tudo para diminuir o
impacto que a crise humanitária teria no país (HINCAPIÉ, 2001).
Cada fenômeno social tem a suas particularidades e traços, tanto coletiva quanto
individualmente. Por isso, hoje em dia, os estudos de caso são muito importantes para
entender os fenômenos sociais, desde o micro até o macro, e vice-versa. Esta procura
ou tentativa de entender, explorar, descrever, observar e analisar os fenômenos sociais
não é feita com a ideia de realizar estudos comparativos que buscam similitudes entre
o que acontece com os deslocados pela violência na Colômbia, no México, no Brasil ou
em qualquer outro país, e sim buscar as diferenças, as especificidades de cada caso,
tanto no âmbito coletivo quanto no individual. Não obstante, realizar uma abordagem
de um fenômeno social por meio de uma metodologia qualitativa, como a observação
participativa e a investigação militante, ambas inseridas na proposta da perspectiva
compreensiva e interpretativa, gera grandes desafios.
Então, surgem duas perguntas: Quais são os desafios e as barreiras enfrentados pela
observação participativa e a investigação militante na academia latino-americana?
Quais são os seus efeitos no desenvolvimento dos estudos científicos e seu impacto na
sociedade?
PARTE II
Dando continuidade aos questionamentos expostos na seção anterior e que tratam dos
desafios e barreiras das metodologias qualitativas voltadas para um sentido humanista,
vamos dedicar esta segunda parte a repensar as indagações propostas, não com o
objetivo de oferecer respostas e sim de refletir sobre algumas soluções alternativas.
Gilberto Velho no seu trabalho entitulado “Notas para uma antropologia da sociedade
contemporânea”, remarca a importância de realizar trabalhos qualitativos e como
estes, na maioria dos casos, exigem dedicação por longos períodos de tempo, muitos
recursos, desafios comunicacionais entre o pesquisador e as pessoas que são estudadas,
além da disponibilidade dos cientistas em se deslocar de um ponto geográfico para
outro, isto dependendo das exigências que o fenômeno social em foco apresenta
(VELHO, G. 1987).
Com relação aos estudos que exploram a interação social, uma das dificuldades
apontadas por Gilberto Velho, citando Roberto da Matta, é “o estranho” entre o
investigador e as pessoas que fazem parte daquele fenômeno de interesse. Segundo
Gilberto Velho, tal estranheza entre ambas as partes não surge só pelo fato de que cada
um -seja pesquisador ou pesquisado-, pertencer a nações diferentes, falarem línguas
ou dialetos distintos- e sim, por serem duas pessoas que não tiveram proximidade,
contanto físico. O autor aponta vários exemplos de sensações experimentadas pelos
pesquisadores no dia a dia e mostra que, embora aquela pessoa lhe seja familiar, não
significa que ele tenha conhecimento sobre a sua intimidade, sua vida diária e os afetos
que a movimentam (VELHO, G. 1987).
Podemos então dizer que a sensação que se tem sobre determinada pessoa ser
“familiar” pode ser confundida como sendo esta pessoa “conhecida”, quando, na
realidade, ela pode ser desconhecida. Esse fator pode desviar uma linha de pesquisa
ou sobrecarregar subjetivamente uma indagação (VELHO, G.,1987).
Diante disso, Gilberto Velho diz que só confrontando os mapas e códigos
preestabelecidos, por meio do qual o pesquisador foi socializado é possível “estranhar”
ou “familiarizar-se” (VELHO, G., 1987). E é nessa medida que surgirão a curiosidade,
Segundo o autor Jean Schensul (2010) é preciso desenvolver esta série de atividades
com uma única finalidade, que o pesquisador possa se envolver no só como um ator
que procura dados, histórias de vida, corroborar uma hipótese e atingir seus objetivos
propostos no seu projeto de pesquisa, e sim como um ator ou um agente de mudança,
de transformação justamente naquelas comunidades que fazem parte da sua pesquisa,
até porque as transformações que o cientista possa gerar junto com a comunidade
servem para construir novas linhas de pesquisa, novos estudos.
De acordo com Gilberto Velho, uma das características favoráveis das pesquisas
realizadas no entorno onde se vive, é o contato e o confronto do resultado produzido
pela investigação com os mesmos atores que foram parte desse processo de construção
de conhecimento, isso diz Velho, enriquece os estudos já que faz ao pesquisador
repensar aquilo que escreveu, uma vez que o indivíduo que foi parte daquela
investigação pode estar ou não em acordo com a interpretação vertida pelo cientista
(VELHO, G., 1987). Isto se encaixa com perfeição nos estudos sobre a migração forçada
interna, em que retornar com o trabalho no qual encontram-se plasmadas as histórias
de vida dos protagonistas do fenômeno social, produz não só contrariedades, e sim
um sentido de empoderamento simplesmente por estarem sendo escutados. Isso para
alguns pesquisadores faz parte da construção da memória daqueles povos que tinham
sido esquecidos, marginalizados e censurados (BELLO, M. 2004).
Recuperar as histórias de vida de homens e mulheres que sobreviveram a massacres
durante processos violentos com o objetivo de evitar a negação e a distorção dos
acontecimentos seja através de escritos, da voz dos mesmos sobreviventes, da música,
da escultura, quer dizer, de qualquer mecanismo que abra passo à interpretação e a
retransmissão das experiências vividas; é de vital importância para manter o compromisso
com os mortos e com a construção da memória de uma nação ou de um povo que precisa
subsequentemente avançar na direção à justiça (LEVY, S.; FARIAS, F., 2016).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
––Existe uma discussão importante em matéria do uso da observação participante
e a investigação militante, já que se aponta, que ambos tipos de metodologias são
subjetivos e impedem realizar em profundidade, analises sobre que o acontece nos
fenômenos sociais. Mas existem processos metodológicos na ciências sociais que
sejam puramente objetivos?
––O uso das técnicas participativas nas comunidades de migrantes forçados
internos por conta da violência exige disponibilidade por parte dos pesquisadores
e também requer condições econômicas favoráveis, já que é preciso realizar
trabalhos etnográficos multi-situados. Não obstante os programas universitários
frequentemente se encontram focados em alcançar metas impostas por modelos
educativos internacionais que exigem produção em quantidade e não em qualidade.
––A inserção do pesquisador nas comunidades de deslocados requer flexibilidade
por parte do cientista, que vai da capacidade para se adaptar em diferentes espaços
geográficos e às relações interpessoais nas quais se misturam as expectativas
profissionais ou da pesquisa com as expectativas geradas nas comunidades.
––Por um lado, a observação participativa propõe compromissos, por exemplo,
o estabelecimento de relações entre o pesquisador e as pessoas da comunidade
estudada e mesmo quando estas ligações não são contratuais nem explicitas, gera
vínculos difusos entre os papeis pessoais, professionais e em ocasiões políticas. Por
outro lado, a investigação militante implica desenvolver entre o pesquisador e a
pessoa estudada, uma relação formal, contratual, com o movimento social ou com os
líderes das comunidades de migrantes. Não obstante ao longo do desenvolvimento
da pesquisa as relações vão se tornando menos especificas na medida que o
pesquisador estabelece relações pessoais com os atores que são estudados.
––As pesquisas colaborativas ou investigações militantes exigem por parte do pesquisador
uma coincidência política, as vezes ideológica, e interesse profundo por apoiar as
comunidades nos processos de reinvindicação sócio jurídica, sempre tomando em
conta que existem muitas possibilidades de que os objetivos que dirigem o projeto
de pesquisa possam perder o rumo. Para evitar isso é preciso estabelecer alguns
limites através da racionalização do pesquisador entre o papel que desenvolve
como agente ativo das transformações da comunidade e o papel como analista das
dinâmicas e das informações obtidas no trabalho de campo.
––É sumamente importante apontar que para poder atingir as exigências que a
investigação militante ou participativa apresentam, é necessário a unificação de
esforços entre diversas áreas do conhecimento como a psicologia, antropologia,
sociologia, ciência política, serviço social, administração pública, arquitetura,
entre outros mais (SCHENSUL, 2010). É através das ações coletivas no processo
da construção de conhecimento cientifico que se constroem redes de interação
acadêmica e nestes processos comunicativos surgem trocas de ideias que permitem
ao pesquisador – quais quer que seja sua área de conhecimento, fazer uma
abordagem da problemática social talvez desde uma perspectiva mais ampla e
mais consciente do compromisso social que a ciência precisa ter principalmente
nos países da América Latina.
––Recordar e narrar o conflito colombiano tem como objetivo reconstruir as memórias
que abordam os abusos de poder existentes entre as memórias das vítimas e as
versões institucionalizadas do passado ou aquelas narrativas dominantes dos
líderes políticos, grupos aramados, dos médios de comunicação, etc. É por médio
da reconstrução da memória coletiva e individual que surge uma das possibilidades
de documentar e questionar o passado (CENTRO NACIONAL DE MEMORIA
HISTÓRICA, 2013).
––A construção da memória através dos estudos que procuram recopilar, descrever,
explorar e explicar as histórias de vida de pessoas que sobreviveram a contextos
de extrema violência, abre passo ao empoderamento e a sua reivindicação social.
É através dos estudos que utilizam técnicas como a observação participativa e a
investigação militante que surgiram organizações dentro das mesmas comunidades
que procuram lutar pelos direitos violados (IBARRA, 2014b).
––Reiniciar discussões e debates acadêmicos sobre novas formas e técnicas
metodológicas para o estudo das ciências humanas ajuda a questionarmos uma
e outra vez o “porquê e para que o conhecimento”, “quais são as implicações
políticas, históricas ecológicas e culturais”, como aprender a construir pensamento
INTRODUÇÃO
O reconhecimento da importância da retransmissão da história do Holocausto é
aqui ilustrado no projeto desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação do
Rio de Janeiro junto aos professores e alunos de sua rede de ensino com a Jornada
Interdisciplinar de Ensino do Holocausto. Já em sua 11ª edição, a Jornada vem formando e
informando acerca do evento que marca a barbárie do século XX, com vias a contribuir
para que a sua história não seja esquecida, não se repita e que sirva de paradigma
de reflexão acerca do que o homem é capaz de fazer quando, em posição de poder,
demonstra falta de consciência crítica ética e moral (LEVY, 2014). Este trabalho traz uma
revisão do histórico desse projeto, seus objetivos, bem como os resultados atingidos,
inclusive outros projetos dele advindos, evidenciando o interesse e o valor do trabalho
interdisciplinar na formação de professores e alunos, ressaltando o reconhecimento da
importância da ética e da cidadania como conteúdos enfocados em sala de aula a partir
de reflexões acerca da história.
1. DA IMPORTÂNCIA DO ENSINO DO HOLOCAUSTO
O Holocausto nazista fez parte do plano eugênico do Partido Nacional Socialista
dos Trabalhadores Alemães, liderado por Adolf Hitler. Ao ministrar o conteúdo
programático acerca da Segunda Guerra Mundial, no entanto, nem sempre os
professores chegam a pormenorizar acerca da maior violação de direitos humanos
da história moderna, legitimado socialmente. Percebendo essa lacuna, um grupo de
vereadores apoiou proposta encaminhada pela Vereadora Teresa Bergher da ênfase
ao conteúdo sobre o Holocausto nazista, sem prejuízo do conteúdo programático do
ensino de História. Segundo a Lei 5.267 de 2011, o Conselho Municipal de Educação
determinará uma abordagem especial de noções sobre o Holocausto nazista como
forma de educação, prevenção e combate a todas as formas de discriminação e
intolerância, conforme fixação dos conteúdos mínimos de que trata o artigo 332 da Lei
Orgânica do Município (2016) – capítulo IV “Do Desenvolvimento Social”, subseção III
“Do Planejamento da Educação e Seus conteúdos”.
Nesse sentido, a temática do Holocausto serve como o ponto de partida para a realização
da Jornada Interdisciplinar de Ensino do Holocausto, para formação dos professores das
escolas públicas municipais do Rio de Janeiro, abordando um evento que nunca deve
ser esquecido apesar do horror nele perpetrado, pois seres humanos foram vitimados
simplesmente por terem sido elencados em categorias marcadas para morrer segundo
os interesses escusos de seus algozes, que concebiam uma sociedade eugênica, a qual
demandaria uma limpeza étnico-racial da humanidade.
Numa visão ontológica acerca da destrutividade humana, o contraponto para com
outros tempos e lugares não é díspare, o que reforça o investimento nesse conhecimento.
Na rede pública do Rio de Janeiro, a maior rede municipal da América Latina, há
também uma grande diversidade, grandes diferenças que refletem os diversos bairros
que compõem a cidade - uma cidade que já foi partida entre o morro e o asfalto, mas
que, hoje, reflete a riqueza étnica e a diversidade cultural do próprio país. Riqueza esta
que, aos olhos radicais, racistas, perversos, pode significar pobreza, miséria, sujeira.
Com as Jornadas, intenta-se contribuir para promover uma reflexão sobre ações
institucionais e individuais no combate à degradação da dignidade e à violência contra a
Assim, se tivermos por base a ideia desenvolvida por autores como Marc Bloch (2002)
de que a História é a ciência dos homens no tempo, vemos claramente a fundamental
necessidade de, em todo e qualquer tempo, promovermos o ensino e o estudo do
Holocausto para as novas gerações. A cada geração, um pouco da memória se perde.
Vivemos um tempo de memória fluida e líquida, como nos diz Zygmunt Bauman
(2007). E, nesse contexto contemporâneo, há que se buscar a consolidação de valores e
conceitos que remetam as novas gerações às memórias do passado. Vivemos tempos
difíceis. Os sobreviventes do Holocausto estão partindo e a atual geração de jovens
estudantes é a última a ter a possibilidade de ainda ouvi-los falar sobre o tema. Em
breve, os relatos serão apenas indiretos, lidos ou assistidos em gravações.
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
A Jornada é um projeto dinâmico na medida em que cria as suas próprias demandas.
Em 2014, a partir de uma sugestão de professores da Rede Municipal participantes
da Jornada, incluímos alunos do 4° e 5° anos do Ensino Fundamental (anos iniciais),
criando a categoria “Desenhos” à qual se juntou o 6° ano configurando, assim, a
participação de alunos e professores do Primário Carioca. Enquanto o Ginásio Carioca
(que compreende alunos do 7°, 8° e 9° anos) continuou com a categoria “Redação”.
O desenho vencedor do concurso de 2014 é de autoria de Júlia Soares Rodrigues,
de 10 anos de idade, aluna do 5º ano da Escola Municipal Rodrigo Otávio – Ilha do
Governador – Rio de Janeiro.
A redação da aluna Giovanna Moreira Ferreira concorreu com 112 redações no ano
de 2014. Por ser a vencedora, além da divulgação de seu texto nos canais competentes
da Rede Municipal, a aluna e sua orientadora fizeram jus a uma premiação que
constou de um tablet para a aluna e um voucher no valor de 150 reais, em importante
livraria carioca, para a professora. Para essa premiação, foi essencial a parceria com
a Associação Beneficente B’nai B’rith, parceira da Secretaria Municipal de Educação
desde a 1ª Jornada Interdisciplinar do Ensino do Holocausto.
A Jornada despertou tamanho interesse nos professores participantes que levou ao
surgimento do Grupo de Estudos do Holocausto, já em seu 3º ano em 2016. Em vários
momentos, os professores participantes pediam mais ações de formação e estudos
sobre esse delicado e importante tema, para melhor orientarem seus alunos no processo
de elaboração das redações e desenhos para o concurso da Jornada. Assim, em 2014,
de modo experimental, foi organizado o 1º Grupo de Estudos, com a participação de
10 professores. Em 2015, o número de participantes passou para 22, comprovando o
interesse e a importância desta ação. Em 2016, o número é de 30 participantes.
Ao final da jornada são premiados os melhores trabalhos realizados por alunos
orientados pro seus professores, os quais, por sua vez, também são premiados pelo
empenho nessa orientação na qual têm autonomia para criar a metodologia que melhor
se adequar à realidade de seus educandos.
Em dez anos da Jornada Interdisciplinar de Ensino do Holocausto, foram atendidos cerca
de mil professores e três mil alunos da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro. E
todo esse trabalho foi compartilhado para além das escolas participantes, nas formações
nas diversas coordenadorias regionais de ensino, e nas formações promovidas pela
equipe do Nível Central da SME carioca. Nas coordenadorias, as escolas participantes
tiveram espaço para troca de experiências pedagógicas nas mais diversas áreas, visto
que a Jornada é interdisciplinar. No Nível Central, setores ligados a outros projetos
também tiveram acesso às práticas desenvolvidas em sala de aula a partir dos relatos
e materiais disponibilizados pela Jornada, a partir de oficinas ministradas pelo Prof.
Roberto Antunes (2014) nas quais relata todo o processo de acompanhamento,
desenvolvimento e avaliação das atividades desenvolvidas pelas unidades escolares
que participam do programa.
A partir de 2016, surgiu a demanda para que a Jornada também contemple alunos e
professores de EJA – Educação de Jovens e Adultos - da SME – Rio, o que deve ocorrer
a partir de 2017.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nunca antes na história da humanidade milhões de pessoas foram alvo de um governo
dito civilizado, mas com tanto desprezo pela vida (UNESCO, 2013). O Holocausto foi o
maior exemplo da violação de Direitos Humanos, responsável pelo assassinato de seis
milhões de judeus (1,5 milhão de crianças), além de outros quatro milhões de pessoas,
entre ciganos, negros, homossexuais, eslavos, Testemunhas de Jeová, comunistas,
dissidentes políticos etc. Com esse fato lamentável, e outros que aconteceram ao
longo do século XX e no início do XXI, tornou-se, nos tempos atuais, fundamental o
debate e a discussão acerca dos Direitos Humanos para a construção de uma cidadania
plena, em ambientes formais de educação. Fornecer os meios para que se obtenham
E você que pensa que o Holocausto acabou e nunca mais poderá acontecer, pense mais
uma vez e reflita sobre o preconceito, a humilhação e a “sede” pelo poder, que podem
estar presentes em qualquer momento e em qualquer lugar onde existam pessoas
capazes de discriminar, matar e humilhar outro ser humano, “só” pelo PODER!
O que tenho certeza é que enquanto tiver voz e viver, nunca vou desistir de dizer,
escrever e gritar, se preciso for, a todos que conhecer: “O Holocausto, nunca mais!”
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Janeiro: SME, 2012.
UNESCO. Por que ensinar o Holocausto? Paris: Unesco, 2013.
INTRODUÇÃO
Ao observar a história da humanidade, pode-se constatar o seguinte fato: os sujeitos
que incomodam e/ou atrapalham certas camadas da sociedade são afastados do meio
social. Com isto, nos arriscamos a afirmar que a reclusão de certas pessoas sempre
existiu, consequentemente sempre existiram espaços de reclusão, e estes tinham como
objetivo afastar os sujeitos tidos como inconvenientes pelo poder local. Chamemos
aqueles que são excluídos de segregados, visto que de fato é isto que ocorre com
eles, uma efetiva segregação, no sentido de separá-los do restante da sociedade. Ao
lançarmos um olhar sob a história dos segregados, detecta-se na Idade Média, uma
grande preocupação com a questão da exclusão, basicamente em função do surgimento
e da rápida disseminação da lepra. Espaços de reclusão foram rapidamente criados e
tiveram como principal argumento para a sua criação, a contenção da propagação deste
mal. Tais espaços denominaram-se leprosários e foram construídos com o objetivo de
separar o leproso do restante da população (FOUCAULT, 1996).
Ao final da Idade Média a lepra praticamente desaparece do mundo ocidental. Tal
fato incorre no surgimento de uma série de estabelecimentos desprovidos de uso. Ao
lançar olhar sob tais estabelecimentos observa-se que sua arquitetura prima para a
segregação, logo, o mais lógico seria dar continuidade a utilidade deste espaço pelo
viés que a própria estrutura disponibiliza. Se estas estruturas antes tinham o propósito
de segregar, poderiam ser mantidas para a mesma finalidade, mudando apenas a
categoria daqueles que seriam segregados. Diante de tal cena, tem-se que, os hospitais
gerais, antigos leprosários, passaram a serem locais de exclusão destinados aos mais
diversos sujeitos considerados inconvenientes ou desagradáveis como: portadores de
doenças venéreas; miseráveis (pobres); vagabundos; prostitutas; alcoólatras; loucos;
dentre outros. Esses sujeitos que expressam ‘um modo de ser’ ou um ‘comportamento’
diferente acabam por ser, geralmente, deixados a esmo por suas famílias, e assim
acabam sendo desaprovados moralmente em função de suas particularidades de vida
(FOUCAULT, 1996).
O tratamento, ou seja, a cultura vigente dos estabelecimentos que isolavam socialmente
o sujeito sempre esteve norteada pelo enquadramento moral, primando pela correção
de maus hábitos e de paixões excessivas (FOUCAULT, 1996). Fossem calabouços,
prisões, hospitais gerais, enfim, independente da nomenclatura, esses espaços eram
usados pela classe dominante para manter os indesejáveis afastados, porém vamos
nos deter especificamente aos espaços prisionais, espaços específicos para conter os
transgressores de determinadas normas sociais, conhecidos como criminosos.
No decorrer da história do criminoso, houve também diferentes construções acerca
do crime. O ato criminoso, na antiguidade era caracterizado como algo que iria a
desencontro à vontade do rei, e aquele que cometesse tal ato era isolado e colocado
à espera do suplício, que serviria de exemplo aos demais; poderia servir não apenas
como exemplo, mas também para transformar o caráter do criminoso pela punição.
Atualmente, o criminoso é considerado como aquele que transgride uma norma social
específica e que assim contribui para a desordem social. As instituições prisionais
criadas pelo homem variaram conforme o seu contexto sócio-histórico em aspectos
diversos, como grandeza espacial, luminosidade, localização do espaço na cidade,
e ações do encarcerador para com o encarcerado, contudo, um aspecto é constante,
O desrespeito às leis, que transforma ordem em caos é o que permite que os sistemas
de segurança atuem sobre o sujeito, prendendo-o e confinando-o ao espaço conhecido
como prisão.
A prisão, como toda instituição, precisa se manter útil, para que não chegue ao fim
como ocorreu com os hospitais gerais. Sua característica principal é a condição de
reprodução, logo, as ações que se desenvolvem neste cenário concernem a dinâmicas
e padrões repetitivos, que se constituem para seus atores como hábitos. A questão
central desse espaço social é a legitimidade, e para que isso aconteça é necessária uma
incessante reprodução das práticas sociais, que são transmitidas permanentemente
aos sujeitos encarcerados neste lugar.
Nesse sentido, alude-se que qualquer instituição, longe de ser um fenômeno individual,
é construída para e por atores sociais. Isso significa dizer, que a mesma surge como
resposta a diferentes demandas e problemas da sociedade. Seguindo esta lógica
para que uma instituição se mantenha e se reproduza ela necessita de uma memória
convergente a ela que propague a sua existência.
Costa (1997,) salienta que o ato da instituição de reproduzir a si mesma, produz
memórias, uma delas a memória institucional, que se mantém por intermédio de um
eterno movimento do que é instituído e o que vem sendo transformado – o instituinte.
Este jogo pode ser compreendido sob duas perspectivas, a de uma memória-hábito que
conserva e memoriza as condutas e comportamentos dos sujeitos sociais; ou como uma
memória-arquivo, onde determinadas regras e informações devem ser constantemente
recuperadas, para a manutenção de determinada ordem vigente. De acordo com
Bergson (1990) o hábito é um tipo de memória, e por se tratar de um dispositivo que
todos os seres humanos fazem uso, acaba por instaurar o que deve ser lembrado ou
não. Berger e Luckmann (2004) compreendem que toda e qualquer atividade humana
está sujeita ao hábito, sendo este reproduzido a partir das instituições. Importante
evidenciar que é neste âmbito que nosso entendimento acerca das instituições se
debruça. Assim, o hábito de repetição no âmbito carcerário é uma necessidade a ser
apresentada cotidianamente para preservar a memória da instituição, bem como para
transformar os instituídos.
Para pensar a Memória que é produzida no cárcere, deve-se em primeiro lugar romper
com o silêncio e o esquecimento que são produzidos do lado de fora do ambiente
carcerário (FACEIRA, 2015). Essa não é uma tarefa fácil, pois pode por vezes revelar
dinâmicas e verdade que incomodam aqueles que passam a percebê-las. Mesmo assim,
deve-se levar em consideração que “construir memória caracteriza então o humano em
seus processos de socialização e aponta caminhos futuros, reconhecidos no passado e
vivenciados no presente” (FARIAS, 2015, p. 79).
Posto isto, retomemos a abordagem de alguns conceitos como a memória hábito
de Bergson aliada a alguns conceitos da Física para entendermos melhor a rede de
memórias que se constituem em torno desta figura que ainda hoje é emblemática e
causa as mais diversas querelas nos mais diferentes meios sociais: a figura da pessoa
criminosa. Longe de querermos esgotar o estudo ora travado, o pretendemos é trazer
novas dinâmicas e abordagens, vislumbrando o aprofundamento desta pesquisa em
momento posterior.
1. DA MEMÓRIA AO ECO
Levando-se em consideração que o hábito é um tipo de memória, denominada para
esta abordagem como memória-hábito, que na verdade trata-se de uma memória que
replica o passado, repete-o, contudo não é reconhecida como passado. Este tipo de
memória utiliza o acervo da ação passada para a ação presente, replicando-se de forma
automática. Um exemplo que pode ser dado acerca deste tipo de memória é aquela
que é produzida pela memorização, muito presente e lições de casa onde ocorre o
“saber de cor” (BERGSON, 1990).
Ao debruçarmos nosso olhar sobre os fenômenos físicos, tem-se que um deles em
particular chamou a atenção, principalmente quando relacionado com o tipo de memória
acima retratado. Trata-se do fenômeno do eco. Na física matemática, o eco pode ser
entendido como a reflexão de ondas sonoras em determinado ambiente, ou seja, ondas
sonoras que se propagam por um ambiente e encontram uma superfície que faz com que
elas alterem sua trajetória, mantendo a sua energia e forma. Nesse sentido traçamos um
paralelo entre ambos os conceitos apresentados para perceber que as memórias hábitos
acabam por funcionar como um eco de memória, na medida em que conforme Bergson
pontua, essa memória se replica sem necessariamente ser alterada.
Posto isto, é importante para a proposta deste trabalho trazer à tona uma memória
presente no discurso de grande parte da nação brasileira, particularmente da população
da cidade do Rio de Janeiro. Tal memória não precisa de esforço para ser percebida,
basta que se levante a temática do criminoso em qualquer roda de conversa que ela
emergirá. Trata-se especificamente da memória que diz: bandido bom é bandido
morto; e suas similares.
É necessário tratarmos de alguns aspectos e darmos importância a consistência de
tal discurso enquanto memória, ou seja, caminhar para o entendimento do por quê
esta frase se apresentar na memória na sociedade. Determinados sujeitos não são
diretamente reconhecíveis como sujeitos, e, além disso, há vidas que improvavelmente
são reconhecidas como vidas.
É na trama social que o ser humano se constrói, produz, reproduzindo e criando
memórias. Dependemos do mundo a nossa volta – este que nos invade repetidamente
ao longo da nossa existência, que nos ajuda nas interpretações e representações,
que acaba sendo um produto de um campo inteligível – que provoca, engendra e
enquadra nossas percepções sobre a realidade que nos apresenta. Vivemos num
campo de interpretações sociais elaboradas, que nos faz compreender e perceber o
mundo de forma seletiva, esmaecendo a sensibilidade a determinados fatos e práticas,
e acentuando reações afetivas a outros.
Partamos do seguinte exemplo: a estigmatização1 dos loucos. Esta categoria é, até a
atualidade, considerada por muitos como sendo perigosa. Contudo cabe questionar:
como se sabe que o louco é perigoso? Se digamos, uma criança, com desenvolvimento
mental e idade adequados para realizar leituras de situações e ações perigosas, tem
contato com um louco pela primeira vez, e este não dá evidência de representar
perigo, a experiência da criança indica que aquele sujeito não é perigoso. No entanto,
1 Estigma segundo Goffman (1974) pode ser compreendido como um sinal corporal, e tem por objetivo atenuar algo extraordinário
ou mau sobre o status moral de alguém.
se uma pessoa, que goza de total confiança do infante, adverte-o a respeito do perigo
que ele, o louco, pode abrigar dentro de si, ela imediatamente o classificará como
perigoso. Muito provavelmente, a pessoa que advertiu a criança também nunca
experienciou uma ação agressiva por parte de um louco, mas da mesma forma deve
ter sido advertida sobre o potencial perigo que este sujeito abriga. Concretiza-se
assim a transmissão de uma experiência, ou de uma memória, e este processo acaba
por vir a se repetir com todos aqueles que, são comumente percebidos como aqueles
que ‘não servem para viver em sociedade’.
Alguns discursos que entoam a pessoa criminosa são genéricos, universais, estereotipados
e a-históricos. O medo, o perigo constante e generalizado e a insegurança que marcam
esta realidade, juntamente com a ideia do Estado como um instrumento ineficaz e
corrupto, não caminha na possibilidade de eliminar o preconceito, busca, ao contrário,
exterminar os sujeitos estereotipados. Assim, a dificuldade de reconhecimento atrelada
ao sentimento de intolerância se torna cada vez mais presente, sendo comum a exigência
de um policiamento mais ostensivo, a redução da maioridade penal, trabalhos forçados
na prisão, pena perpétua, pena de morte, tortura e extermínio. Os discursos vêm se
mostrando tão quanto violentos como aquilo que se diz querer destruir.
2. A MEMÓRIA E O RECONHECIMENTO
Falar da pessoa criminosa implica falar de crime, e em função do nosso objeto de
reflexão ser a realidade brasileira, deve-se trazer à tona os estudos de Thompson (1980)
acerca da crise do sistema penitenciário brasileiro e de como este sistema acaba por
encontrar um fim em si mesmo diferente da recuperação da pessoa criminoso, sem dar
retorno positivo à sociedade. Contraditoriamente aos alertas, o Brasil é um dos países
com a maior população carcerária no mundo, numa política de aprisionamento em
massa, ocasionando prisões completamente superlotadas em todo o território.
Outro fato que deve ser também considerado é que segundo o Relatório da Anistia
Internacional (2015) as forças policiais do Brasil são as que mais matam no mundo.
Na maioria dos casos, são homicídios de pessoas já rendidas, que já foram feridas ou
alvejadas sem qualquer aviso prévio. O Relatório esclarece ainda que os assassinatos
cometidos por policiais tem tido um impacto desproporcional na juventude de homens
negros. Um dado ainda mais alarmante é que no ano de 2014, aproximadamente 16%
dos homicídios registrados no Brasil tinham como autor um policial no País.
Mesmo com tal política de encarceramento e práticas de extermínio praticadas por
policiais, é comum escutarmos nos mais diversos campos de discussão que vivemos
no país da impunidade. Resta sabermos que tipo de impunidade tais discursos estão
fundamentados, pois constata-se a ausência de algum grau de comoção em torno de
determinada figura da pessoa criminosa.
Isso é reforçado no Brasil, principalmente pelo fato de 57% da população brasileira
concorda com o extermínio de criminosos com esta frase (EXTRA, 2016). Tal fato permite
inferir que existe um silêncio da população em relação à criminalidade e as condições do
tratamento deste problema social. Acerca disto é importante mencionar que,
[...] o silêncio da sociedade, que se cala quanto às condições sub-humanas dos
presídios, é uma das formas da violência simbólica. Esse silêncio pode estar
representando perigosos espelhamentos simbióticos que abalam a pessoa
moral e ética que somos [...]. Nessa ótica, a prisão, na sociedade global, torna-se
uma instituição simbólica e exemplar para revelar a dinâmica de uma violência
poliforme. Sua complexidade reside na ambiguidade de ser e não ser a imagem
da própria sociedade. É a imagem como mecanismo de dominação, que na
prisão é transparente e perpassa toda a organização social com o objetivo de
transformar a vida humana em força (im) produtiva. Em contrapartida, aparece
no imaginário da sociedade como uma anti-imagem, como seu contrário,
pois, pelo fato de ser separada, discriminada, permite, aos que se encontram
fora de seus muros, a sensação de serem livres, honestos, limpos e vingados
(GUINDANI, 2001, p. 49).
Ao abordar a precariedade da vida, Butler (2015, p. 58), admite esta realidade ao afirmar
que “o corpo é um fenômeno social” e, ainda, que “está exposto aos outros, é vulnerável
por definição”. Consequentemente, “sua mera sobrevivência depende de condições e
instituições sociais, o que significa que, para ‘ser’ no sentido de ‘sobreviver’, o corpo
tem que contar com o que está fora dele”. O corpo é exterior a si mesmo. Isso significa
dizer que ele se faz no mundo dos outros, temporal e espacialmente não controlável.
Nele estão presentes diversos sentidos que não são nossos, em que “o modo como
sou apreendido, e como sou mantido, depende, fundamentalmente das redes sociais
e políticas em que esse corpo vive, de como sou considerado e tratado, de como essa
consideração e esse tratamento possibilitam essa vida ou não tornam essa vida vivível”
(BUTLER, 2015, p. 85).
Aqui conseguimos compreender que memória é capaz de manipular um entendimento
objetivo sobre a realidade. Partindo da afirmação de Gondar (2003, p. 32), de que a
memória é um instrumento de poder, e que “todo poder político pretende controlar
a memória, selecionando o que deve ser lembrado e o que deve ser esquecido”, há
uma criação processual, que não restaura um passado, mas sim, o reconstrói diante
do ângulo do presente. Neste espaço certas vidas serão consideradas como dignas de
proteção e subsistência, enquanto outras vivenciarão a precariedade de forma mais
intensa. Estamos, aqui, diante da questão do reconhecimento.
Como nos esclarece Butler (2015), a potência epistemológica de apreender uma vida,
decorre, em parte, de que tal vida seja constituída em convergência com as normas
que a definem como uma vida ou parte da vida. Isso converge ao fato de que são os
REFERÊNCIAS
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ZIZEK, Slavoj. Violência. São Paulo: Boitempo, 2014.
INTRODUÇÃO
O envelhecimento populacional como característica principal da nova era demográfica
com aumento no número de idosos em relação à população mais jovem, impõe retos
de perspectiva interdisciplinar, ao ser uma etapa do desenvolvimento humano de alta
vulnerabilidade, visando uma velhice bem sucedida dentro do reconhecimento de
suas potencialidades em prol do bem-estar físico, psicológico e social, que por sua vez
gera impactos positivos na qualidade de sua vida, na família e na sociedade em geral.
Desta maneira as diferentes mudanças que traz o processo de envelhecimento requerem
uma abordagem que integre a geração de conhecimento, a educação e a resignificação
das práticas sociais que afetan o imaginario social e o discurso dominante encaminhados
ao declínio e a perda. Assim, o presente trabalho se apresenta como parte inicial de uma
pesquisa de Doutorado que tem como objetivo principal contribuir na compreensão e
intervenção em uma das mudanças fisiológicas mais relevantes na velhice como são as
modificações do seu ciclo sono-vigilia.
As alterações do sono na velhice geram consequências negativas em sua qualidade
de vida por uma sonolência diurna excessiva, a falta de energia, as limitações em
atividades cotidianas, as variações do estado de ânimo, um menor rendimento cognitivo
e risco de quedas; que por sua vez gera isolamento social. Uns dos fatores causais mais
relevantes dentro desta mudança são a diminuição significativa de estímulos na vigília
pela aposentadoria, a perda de contato social, a atividade e a rotina que gera o trabalho;
situação que se explica ao ser o ciclo sono-vigília um ritmo com sincronizadores
internos como os mecanismos regulatórios fisiológicos e os sincronizadores externos
como são o ritmo de luz-escuridão e normas e hábitos sociais.
Na etapa da velhice os imaginários sociais de perda e de improdutividade com
consequentes discursos e ações que isolam os idosos pioram as alteraçoes de sono.
Desta forma se propõe que através de uma deconstrução e posterior transformação
desta realidade objetiva desde a subjetividade, usando a educação como estrategia de
intervenção para a higiene e o cuidado do ciclo sono-vigilia em um grupo de idosos
que participam no programa de extensão “Terceira Idade em Ação” da Universidade
Estadual do Norte Fluminense podem contribuir positivamente no seu ciclo sono-
vigília e portanto incidir em sua qualidade de vida.
Assim, para a presente pesquisa, que faz parte de uma tese de doutorado em andamento,
adoptou-se uma metodologia qualitativa com uma pesquisa bibliográfica e apresenta
os resultados de um levantamento de dados sobre as estratégias e intervenções para
melhorar a qualidade de sono nos sujeitos propondo uma intervenção educativa
para impactar positivamente no ciclo sono-vigília na população idosa. Por último,
a estrutura que se desenvolve a continuação descreve algumas generalidades do
processo de envelhecimento e a velhice, a fundamentação teórica em relação ao ciclo
sono-vigília no idoso e a educação nesta etapa da vida, finalizando com os resultados
alcançados correspondente à proposta de intervenção educativa para a resignificação
deste rirmo.
Este panorama demográfico implica orientar políticas e estrategias de ação que protejam
os direitos, a qualidade de vida, a saúde e o bem-estar de uma população com alta
vulnerabilidade como são os idosos, os quais desde uma abordagem cronológico é um
grupo populacional que vive a última fase da vida (CAMARANO, 2012). Entretanto,
o processo de envelhecimento é um fenômeno único, individual e multidimensonal
determinado por varios fatores mais que a idade cronológica influido por variávies
biológicas, psicológicas, sociais e culturais.
Desde uma abordagem biológica, o envelhecimento é geralmente o resultado de um
deterioro em função do tempo, como fator determinante, por desgaste cumulativo que
causa a degeneração gradual; assim, se apresenta como um processo individual, onde
o deterioro funcional, a velocidade e o padrão de declínio difere de pessoa a pessoa
e mesmo é diferente em cada tecido e órgãos de um organismo (MELIS et al., 2013).
Então, fisiologicamente, o corpo no envelhecimento apresenta mudanças estruturais
com a declinação de diversas funções. Em geral, todas as células perdem a competência
de dividir-se e reproduzir-se; muitas delas diminuem sua capacidade funcional ou
inicia um processo de funcionamento anormal (RODRÍGUEZ; HERNANDEZ, 2006).
O processo de envelhecimento está determinado geneticamente, mas também influído
por fatores ambientais, como a dieta, o exercício, o tabaquismo, o consumo de bebidas
alcoólicas e a exposição a microrganismos e contaminantes (MURAKATA; FUJIMAKI;
YAMADA, 2015). É assim que o corpo na velhice sofre alterações fisiológicas intrínsecas
que não geram incapacidade na fase inicial, mas que ao passar dos anos causam níveis
crescentes de limitações no desempenho de atividades básicas da vida diária e até
afetações na qualidade de vida (ESQUENAZI; SILVA; GUIMARÃES, 2014), além das
consequências derivadas das patológicas adquiridas antes e durante esta etapa, razões
pelas quais é uma idade de maior susceptibilidade.
Sendo assim, o idoso com baixa renda tem a necessidade de voltar ao mercado de
trabalho pela obrigaçaõ de “producir” para sobrevivir e não pela felicidade e realização
no trabalho, muitos deles, aceitando condições da informalidade laboral (BORGES,
2007). A desigualdade na renda e as carências económicas que flagelam a velhice
constituim um problema social com grande impacto, como o refere Camarano: “No
Brasil, como em outros países em desenvolvimento, a questão do envelhecimento
populacional soma-se a uma ampla lista de questões sociais não resolvidas, tais como
a pobreza e a exclusão” (2004), condições que pioram a saúde mental e física e a
percepção do idoso em relação a esta etapa da vida.
Apresentou-se então, a base sobre a qual se abordara a presente pesquisa refletindo
como aquelas mudanças biológicas, psicológicas e sociais se inter-relacionam e
determinam a qualidade de vida do idoso. A continuação se descreve a fundamentação
teórica que permite a compreensão dos resultados, destacando seu encaminhamento
metodológico de pesquisa bibliográfica através do levantamento de dados em artigos
científicos e capítulos de livros, onde a busca foi feita em médio impresso e em bases de
dados como Scielo, Scopus, PubMed, LILACS disponível on line na Biblioteca Virtual
em Saúde (BVS) e Google Scholar, utilizando-se os descritores: Envelhecimento, sono,
educação para idosos e higiene de sono; para alcançar o produto final da elaboração
de uma proposta de intervenção educativa para a resignificação do ciclo sono-vigília
no envelhecimento normal, como um dos objetivos de uma tese de doutorado em
andamento, desenvolvida com população idosa do programa “Terceira Idade em
Ação” da UENF.
2. FUNDAMENTAÇÂO TEÓRICA
Esta pesquisa, com abordagem interdisciplinar, possui inicialmente fundamentação
teórica a partir de uma perspectiva biológica para a construção conceitual das mudanças
relacionadas ao ciclo sono-vigilia no envelhecimento, partindo de suas generalidades
ao descrever-o dentro dos ritmos circadianos que regulam a vida do ser humano
influido por 9 fatores internos ou fisiológicos e externos ou socioambientais, sendo que
estes últimos se configuram a partir da história individual, familiar e social do sujeito
permeados por uma desvalorização cultural do descanso e uma supervalorização do
trabalho e a “vida produtiva”, a qual é perdida socialmente na velhice, situação que
deve ser mediada pela educação permanente como instrumento emancipatório, que
permita a reinvenção e transformação da sociedade como afirma Paulo Freire.
Neste sentido, a educação tem seu função na promoção de uma velhice bem-sucedida
encaminhada em sua perspectiva de ocorrir ao longo da vida segundo referido por
Paul Baltes; posicionando-se como a estrategia para a resignificação de práticas há
o ciclo sono-vigilia com a hipótese de que a uma maior estimulação cognitiva no
envelhecimento se tem um sono saudável com um impacto positivo na qualidade
de vida desta população. Igualmente, se fundamenta na teoria da reserva coginitiva
de Yaakov Stern para expicar como as mudanças cerebrais no idoso têm um padrão
variável mediado pelas experiências de participação e execução em atividades
complejas ao longo da vida, incluindo na velhice, o que sustenta a importância de
continuar uma estimulação cognitiva na população idosa com benefícios não somente
para prevenir o declínio cognitivo, mas também para melhorar a quialidade do sono.
2.1. O ciclo sono-vigília no envelhecimento normal
Todos os seres vivos incluindo o ser humano apresentam oscilações periódicas em
sua bioquímica, fisiologia e conduta denominados ritmos biológicos, os quais são
variações temporais e previsíveis nos níveis de seu organização biológica cuja função
principal é a otimização do metabolismo e utilização da energia para a sustentação
dos processos vitais do organismo, sendo a cronobiologia a ciência que estuda estes
ritmos nas funções corporais (GOLOMBEK, 2002). Um dos ritmos biológicos mais
importantes no ser humano é o ciclo sono-vigilia, espécie diurna que dorme em sua
maioria pela noite com intérvalos de 24 horas, com menos horas de sono e mais de
vigilia. Sua regulação é feita através de mecanismos homeostáticos que permitem
manter o equilibrio interno com os principais sincronizadores como a secreção de
melatonina, o ritmo da temperatura e o ritmo de excreção de cortisol, além disso a
influência dos estímulos externos como a luz ambiental e as normas o hábitos sociais
(PIN-ARBOLEDAS; ALARCÓN, 2007).
Entretanto, com o envelhecimento, o ritmo circadiano sono-vigilia apresenta uma
desincronização interna, uma diminuição na amplitude do ciclo e um avanço na
fase, produto da perda neural, a perda da capacidade de resposta à informação do
SCN, a degeneração do nervo ótico, a aparição de cataratas e a alteração dos ritmos
relacionados como são o avanço de fase do ritmo circadiano da temperatura, o avanço
da fase da secreção do cortisol e a diminuição da secreção do hormônio indutor de
sono que é a melatonina, mudanças que dão origem às queixas e alterações no sono do
idoso (DE LA CALZADA, 2000; GEIB, 2003; ÁNGELES-CASTELLANOS, et al. 2011).
aprendizagem para a vida, a qual se faz possivel mediante uma construção coletiva,
compartilhando experências com eles e deles em um espaço com função socializadora,
garante de uma educação na humanização sem dicotomias do homem e o mundo e
por tanto problematizadora, que leve a esse ese pensar certo como a capacidade de
assumir diante os outros e com os outros os aspetos do mundo e dos fatos (FREIRE,
1996), então se converte em um instrumento emancipatório.
Por sua vez, essa educação humanizadora e poblematizadora posibilita o
desenvolvimento do pensamento crítico, permitiendo permear a imagem negativa
do envelhecimento e do ciclo sono-vigília, resignificando práticas permeadas pelos
discursos de desvalorização da velhice e do descanso, com o objetivo de gerar
aprendizagens com os quais tenham a possibilidade de mudar comportamentos e
condutas, de deconstruir e reconstruir, como é o caso de modificar seus hábitos do
ciclo sono-vigilia orientados a seu auto-cuidado e abordar suas próprias mudanças
relacionadas às alterações de seu ritmo de atividade-descanso.
A educação na etapa da velhice promove um envlehecimento ativo que segundo Baltes
e Baltes (1993) é aquele que está encaminhado há a perspectiva Life-Span que inter-
relaciona desenvolvimento, aprendizagem e envelhecimento como inseparávels, os
dois primeiros que ocorrem ao longo de toda a vida, incluso nesta etapa. Além disso,
a educação constitui um fator protetor do idoso frente à demência e as mudanças
cognitivas da idade ao melhorar o fluxo sanguíneo cerebral aumentando o aporte de
oxigênio e glucosa ao cérebro e de gerar uma proteção contra o efeito dos radicais
livres, segundo Carnero-Pardo (2000).
Entre outras vantagens da educação permanente no idoso está explicada pela teoria da
reserva cognitiva proposta por Yaakov Stern que explica a tolerância dos sujeitos em
afeções como a lessão vascular, a doença de Parkinson, a lessão cerebral traumática, o
HIV, os transtornos neuropsiquiátricos, a esclerosis múltiple e a doença de Alzheimer,
antes de apresentar perda cognitiva, assim como no envelhecimento normal, onde
os idosos com uma reserva cognitiva (RC) aumentada podem reducir o risco das
mudanças cognitivas próprias da velhice (STERN; SCARMEAS; HABECK, 2004).
Segundo Sobral, Pestana e Paúl (2015) a RC é dinâmica, evoluindo ao longo da vida, incluso
se a estimulação cognitiva é feita no envelhecimento. Daí a importância de continuar com
atividades estimulantes cognitivas nos idosos, não só para prevenir o deterioro cognitivo
mais também para melhorar a qualidade do sono que igualmente contribui ao ótimo
desempenho cognitivo, mencionando por sua vez, que aquelas atividades contribuim
ao estabelecimento de redes de apoio diminuindo o risco do isolamento social o que
igualmente impacta positivamente na qualidade de sono nesta população.
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
Os resultados da presente pesquisa correspondem a uma proposta de intervenção
educativa para a resignificação do ciclo sono-vigília no envelhecimento normal dirigida
a desenvolver um processo de ensino-aprendizagem orientado à resignificação como a
via para aprender e ensinar o cuidado de seu ciclo sono-vigília. Então, resignificar os
diferentes sentidos e significados em relação ao tema permitirão uma apropriação de
uma nova linguagem que transforme ou reforce comportamentos e conhecimentos em
relação à atividade-descanso adquiridos ao longo da vida.
Por último, esta oficina é um processo dinâmico que permitirá avaliar constantemente
as necessidades dos participantes para redirecionar seus conteúdos, abordagens e
estratégias a fim de lograr o objetivo geral. Portanto, a avaliação formativa representa
um insumo que permite aprimorar este processo de ensino-aprendizagem, no qual a
participação ativa do todos os integrantes possibilitará a construção do conhecimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um novo padrão demográfico com um processo acelerado de envelhecimento é um
fenômeno mundial. Este processo multidimensional e complexo é determinado por
fatores bilógicos, psicológicos, sociais e culturais que determinam a qualidade de vida
nesta população naturalmente vulnerável. Neste sentido e secundário ao processo
do envelhecimento, os idosos experimentam uma modificação objetiva e subjetiva
do sono, por uma dessincronização interna e externa do ritmo sono-vigilia gerando
consequências negativas para o adequado aproveitamento da vigília e em geral
afetando sua saúde física e mental.
Um fator protector no deterioro natural da sincronização do ciclo sono-vigilia
é a educação, processo que deve começar a abordar-se em forma frequente e
prioritaria nos diferentes espaços desta população, como nos projetos de extensão
e nas universidades abertas à terceira idade. Desta maneira, os espaços de ação e
participação que materializam a promoção do envelhecimento ativo e bem sucedido
como lineamentos dos programas, dirige a possibilidade de transformação de uma
realidade que usualmente é de imagem de perda e limitação na velhice, gerando por
sua vez, uma relação positiva com a preservação da funcionalidade, autonomia e bem-
estar nesta etapa da vida.
Resignificar o ciclo sono-vigília dos idosos através da educação acontece ao gerar
aprendizagens que fazem parte de sua experiência, de su ser, de sua história de vida e
relação com seu próprio ritmo de atividade-descanso. A resignificação permite que os
novos conhecimentos aquiridos produzam uma transformação; baseado no presuposto
que aprender é uma possibilidade ao longo da vida. Assim, a educação permanente
é uma estratégia de liberação ao abrir caminhos diferentes aos discursos dominantes
e de imaginários socias que delimitam a velhice dentro da perda e extra-polarizam o
sono e a atividade.
REFERÊNCIAS
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vejez). Revista de la Facultad de Medicina de la UNAM, Ciudad de México, v. 54, n.
2, mar./abr. 2011.
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Alzheimer’s disease. Arq Neuropsiquiatr, v. 73, n. 6, p. 480-486, 2015.
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in an Australian older population. Asia-Pacific journal of public health, v. 27, n.2,
2015.
WORLD HEALTH ORGANIZATION-WHO. Envelhecimento ativo: uma política
de saúde. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde, 2005.
Introdução
Os anos iniciais do Brasil republicano foram marcados por significativas alterações no
âmbito político e econômico que redefiniram as estruturas sociais, tornando-as mais
complexas. Entretanto, para a concretização dos ideais republicanos, escritos em nossa
bandeira, foi necessário o estabelecimento de mecanismos que fossem capazes de
fortalecer o sentimento da nacionalidade, tão fundamental ao novo regime político e
promover o desenvolvimento social e econômico, já alcançado por parte dos países da
Europa. Porém, para a implantação de tais mecanismos era essencial o reconhecimento
e a superação das características da população brasileira, que se mostrava bastante
heterogênea, com formas de trabalho ainda não organizadas, além de um grande
número de analfabetos sem consciência patriótica.
Na tentativa de eliminar estes aspectos, os líderes da República possuíam um
projeto de modernização para o país com base nos ideais de civilidade transmitidos
especialmente pela educação. A expansão da escolarização acarretaria mudanças
nas relações sociais, principalmente na valorização do trabalho e na modificação
de costumes das populações pobres que deveriam aprender hábitos higiênicos e os
conhecimentos necessários para se tornarem trabalhadores nacionais.
Vale salientar que o projeto de modernização não se limitou à área urbana que almejava a
industrialização, os esforços para consolidação do regime político e o desenvolvimento
do país também se voltaram às zonas rurais, por serem onde se encontravam a maior
parte da população brasileira até a década de 1970, e ainda por serem as atividades
produtivas do campo basilares para a economia brasileira.
Entretanto, afim de modificar os diagnósticos que eram produzidos e propagados à
época, os quais destacavam a situação de abandono, atraso e degeneração do campo
e da população que nele habitava, foi constituída junto ao Ministério da Agricultura
Indústria e Comércio uma série de medidas voltadas para a reversão da situação exposta,
a qual tinham direção definida: era preciso fomentar o progresso e a modernização; a
civilização precisava ser levada até o campo.
Assim, para os espaços rurais foram empreendidas ações estatais de ampliação
da escolarização e formação de mão de obra que entre os anos iniciais da República
e a década de 1950 possuíam duas finalidades primordiais: a inculcação do trabalho
como meio fundamental para integrar o homem à sociedade bem como promover o
desenvolvimento da produção rural aos moldes capitalistas1. Deste modo, este trabalho
tem como objetivo realizar uma retomada histórica das ações estatais entre os anos de 1910
e 1950 destinadas ampliação da escolarização e qualificação profissional relacionando-as
a ideia de desenvolvimento. Para tal empreendimento, utilizou- se como metodologia a
elaboração de uma revisão literatura a partir da leitura de obras pertencentes ao campo
da história da educação bem como de outras relevantes ao tema.
As primeiras décadas da República
Projetaram-se nos anos iniciais da República ideias que depositavam na educação a
esperança da resolução de dificuldades como: a modernização econômica, o controle
dos problemas sociais e a vitalidade do sentimento de pertencimento nacional. Apesar
1 Utilizou-se o termo ações estatais/ iniciativas estatais no lugar de políticas educacionais por considerar que até a década de 1930
não havia políticas de caráter nacional.
Neste cenário, afirma Carvalho (2003, p.l13), o papel da educação foi hiperdimensionado,
porquanto esperava-se que esta ultrapassasse a sua função pedagógica e ganhasse
uma colocação social na tentativa de regenerar o povo brasileiro, tornando-o saudável,
disciplinado, produtivo, mas especialmente formador da nacionalidade brasileira.
Diante deste desafio, a educação aliada ao trabalho se tornou um importante
instrumento, pois embora as imagens dos negros e dos mestiços continuassem a
assombrar o desenvolvimento do país, acreditava-se que o aperfeiçoamento destes
grupos por meio da escolarização seria capaz de sobrepor qualquer caráter racial
suscetível a vadiagem.
Uma importante iniciativa no sentido de regenerar o povo brasileiro foi educar o povo
para as atividades rurais, neste caso, era importante que a escola assumisse não apenas
o papel de ensinar as primeiras letras, mas que doutrinasse para o trabalho a fim de
fixar o homem no campo, de modo a conter o êxodo rural e potencializar a produção
rural. Nesta perspectiva, podemos destacar a criação dos Aprendizados Agrícolas
(AA) e Patronatos Agrícolas (PA) a partir do ano de 1910. Estas instituições de ensino
vinculavam-se ao Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio que, desde 1910 até
1961, incumbiu-se do ensino agrícola em três níveis: elementar, médio e superior2.
A origem da interferência deste Ministério junto à educação profissional agrícola liga-
se à abolição da escravidão, pois este acontecimento fez com que grandes proprietários,
vinculados a grande exploração agrícola e até os ligados aos setores menos dinâmicos,
expressassem seu receio quanto a desorganização da produção e a uma possível crise
na agricultura3. Face a estes temores era necessário transformar:
(...) mulatos e negros derivados da escravidão, em trabalhadores nacionais
através de práticas educacionais “qualificadoras” de mão-de-obra, fortemente
autoritárias e baseadas em iniciativas imobilizadoras do êxodo rural
(MENDONÇA, 2006, p. 3).
4 São eles: Aprendizado Agrícola de São Luiz de Missões, Rio Grande do Sul; Aprendizado Agrícola de Satuba, Alagoas; Aprendizado
Agrícola de Barbacena, em Minas Gerais; Aprendizado Agrícola da Bahia e de Juazeiro e o Aprendizado Agrícola de São Luiz do
Maranhão. (BARROS, 2010, p. 3)
5 Nesse sentido, quase todos os antigos Aprendizados seriam reenquadrados como Escolas Agrícolas Básicas, ministrando, ao
mesmo tempo, o ensino rural, o ensino agrícola e os cursos de adaptação, como por exemplo o AA Manuel Barata (Pará); o AA Vidal
de Negreiros (Paraíba); os AAs de São Bento e Garanhuns (ambos em Pernambuco; o AA Benjamim Constant (Sergipe) – que, de
Patronato tornou-se AA, ministrando ensino rural e de adaptação; o AA Sergio de Carvalho (Bahia), dentre vários outros.
6 As aulas práticas das Escolas Básicas Agrícolas deveriam habilitar o aluno em uma, dentre as seguintes especialidades: horticultura,
culturas regionais, produção animal, maquinas agrícolas e indústrias agrícolas.
Todavia, a existência dos Aprendizados Agrícolas bem como a divisão dos cursos já
citadas seriam alteradas no ano de 1946 pela Lei Orgânica de Ensino Agrícola emanada
do Ministério de Educação durante o período da Reforma Capanema (1942-1946)
Quanto aos Patronatos Agrícolas reconhece-se nestas instituições intensões de cunho
disciplinar que uniam educação e trabalho. Estas intencionalidades não se afastavam
do contexto brasileiro do início do século XX no qual as questões sociais eram inseridas
em um universo civilizatório, como exemplo deste contexto podemos citar as reformas
urbanísticas promovidas no centro do Rio de Janeiro.
Nesta perspectiva, o modelo de educação para o trabalho concretizou-se com a criação
dos PA em 1918, cuja valorização do trabalho, os princípios educativos de socialização
e morais eram apresentados à infância marginalizada, considerada com falta de
formação moral porque não contava com a ação prévia do grupo familiar ou que este
era desqualificado para fornecê-los. Desta forma, os PA funcionavam como estratégias
de intervenção do Estado junto a grupos sociais pouco vinculados à agricultura,
servindo como paliativo à questão social urbana. A formação profissional presente nos
PA concorreria para fornecer aos menores abandonados a assistência, proteção e tutela
moral demandadas pela situação na qual se encontravam. Com este intuito:
Os Patronatos se constituíam como centros de ensino profissional que
habilitariam seus internos em horticultura, jardinagem, pomicultura, pecuária
e cultivo de plantas industriais, mediante cursos profissionalizantes, com uma
clientela composta por menores órfãos, entre 10 e 16 anos, recrutados pelos
Chefes de Polícia e Juízes da Capital Federal. (MENDONÇA, 2006, p. 5)
Oliveira (2003) afirma que apesar da qualificação profissional proferida nos Patronatos
Agrícolas, o papel e a atuação do Estado foram alvos de críticas devido a vinculação da
7 O Ensino Rural, na medida em que acabaria por fornecer, pari passu às habilidades técnicas, a própria alfabetização, dividia-se
em dois ciclos de um ano cada, sendo ministradas, no primeiro ano disciplinas como língua pátria, aritmética, noções de geografia
e cartografia, história pátria, desenho a mão livre, noções de agricultura elementar e máquinas agrícolas sendo que, no tocante
às disciplinas estritamente práticas (contempladas com carga horária equivalente ao dobro das aulas teóricas), aprenderiam
olericultura, fruticultura, jardinocultura e trabalho na oficinas. Já no segundo ano constavam as disciplinas: português, aritmética,
noções de ciências físicas e naturais, desenho linear, noções de criação de animais domésticos e, nas aulas práticas, habilitações em
avicultura, apicultura, sericicultura, piscicultura e trabalhos em oficinas. BRASIL. Atividades do Ministério da Agricultura entre
1936-1940. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação do Ministério, 1941, p. 314 apud BARROS, 2010, p. 4.
situação dos menores como questão de polícia. Em contrapartida, havia indícios que
evidenciavam a importância das instituições correcionais na conquista de resultados
positivos, e que de certo modo, justificavam a criação e a manutenção dos Patronatos.
Como exemplo de outras instituições correcionais neste período podemos mencionar
a Escola Premunitória Quinze de Novembro, no Rio de Janeiro8.
Ainda sobre as demandas sociais que explicavam a manutenção de instituições
correcionais como os PA, Oliveira (2003) ao analisar o Relatório do Ministério da
Agricultura Indústria e Comércio para o ano de 1918 identificou a cidade do Rio de
Janeiro como uma referência: onde cresce o número de meninos abandonados, criminosos
e malfeitores de amanhã (OLIVEIRA, 2003, p. 4). Assim a infância desvalida carioca
compôs a clientela de várias unidades institucionais dos Patronatos Agrícolas neste
período. Ademais, com a finalidade de resolver a demanda da Capital Federal e a de
outras unidades da federação foram criadas, em 1918, 1919 e durante a década de 1920
unidades em diversos locais, constituindo uma rede institucional articulada a partir
de uma organização comum administrada pelo Ministério da Agricultura Indústria e
Comércio. Esta rede pode ser visualizada a partir do quadro abaixo:
Quadro1. Patronatos Agrícolas- 1918/1926
8 Segundo Marcílio (2000, p. 42) a Escola Premunitória Quinze de Novembro foi criada no Rio de Janeiro em 1905 como instituto
preventivo- correcional para crianças entre 9 e 14 anos. A escola pretendia ser uma instituição modelo do governo. Destinadas
aos menores abandonados, seus Estatutos (1910) defendiam que sua finalidade era ministrar educação física, profissional e moral
aos menores. Via-se com otimismo, a possibilidade de regeneração da criança por intermédio da educação e do isolamento em
instituições especiais.
Neste sentido, a educação destinada às áreas rurais também passou a ter uma conotação
desenvolvimentista e assim, nos anos de 1950, tornou-se um projeto conduzido pelo
Estado com objetivo de potencializar o crescimento econômico do país, considerando
que nas populações rurais o número de analfabetos ultrapassava 50%9. Sendo assim,
era inadiável a tarefa de instruir os moradores das áreas rurais brasileiras para que
pudessem contribuir com a construção de um país produtivo, moderno e portanto
desenvolvido. Sobre esta questão Hidalgo e Mikolaiczyk (2012, p.111) enfatizam que
com esta finalidade foram criadas várias campanhas, projetos e programas com o intuito de
observar e modificar os sistemas de ensino distribuídos pelo país.
A fim de realizar o mapeamento da situação de escolarização do país foram criados
durante o governo de Juscelino Kubischek e sob a gestão do Instituto Nacional de
Estudos Pedagógicos- INEP, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais- CBPE e
os cinco Centros Regionais de Pesquisa Educacionais- CRPE, nos estados de RS, BA,
MG, SP e PE, cuja sede se localizava no Rio de Janeiro. (HIDALGO e MIKOLAICZYK,
2012, p.111). Os estudos de Mendonça e Xavier (2008) apontam que a criação do CBPE
e CRPE contaram com os investimentos da UNESCO (Organização das Nações Unidas
para a Educação Ciência e Cultura), fato que marcou a influência deste organismo
internacional na definição de ações educativas brasileiras:
O CBPE foi fruto de intensas negociações com representantes da UNESCO,
beneficiando-se dos recursos financeiros e da assessoria de cunho técnico e
organizacional, formulados pela entidade com vistas a fornecer subsídios para
a implementação de políticas de desenvolvimento econômico e de equalização
social nos países de terceiro mundo (MENDONÇA e XAVIER, 2008, p. 90).
1. INTRODUÇÃO
A preservação do patrimônio histórico educativo é vista hoje, prioritariamente, como
uma questão de cidadania e, como tal, interessa a todos, por se constituir em um
direito fundamental do cidadão e esteio para a construção da identidade cultural. O
direito à memória e à cultura, ao lado do direito à educação e à formação continuada
de professores, outrossim, tornam-se questões imprescindíveis das políticas sociais.
Nesta perspectiva, entende-se necessário que se alie a investigação/produção científica
a ações de divulgação e intervenções por meio, sobretudo, da Extensão Universitária.
Desse modo, o presente trabalho apresenta resultados de pesquisas desenvolvidos pelo
Grupo de Pesquisa do CNPq “Educação Sociedade e Região”, mais especificamente
sobre a Escola Profissional Feminina Nilo Peçanha, que funcionou entre as décadas de
1920 e 1970 como uma escola profissionalizante apenas para mulheres, bem como a
divulgação do trabalho científico junto à comunidade escolar do atual Colégio Estadual
Nilo Peçanha por meio do projeto de Extensão Universitária “Memória e patrimônio
escolar: preservação, sensibilização e formação dos agentes escolares de duas escolas
públicas campistas” (2016), propondo uma reflexão sobre o necessário diálogo entre
Universidade e Sociedade, extrapolando os “limites” da Universidade (ensino) e, no
caso, dos arquivos escolares (pesquisa), estimulando a participação da comunidade
externa, sobretudo a escolar.
A partir das experiências e resultados de pesquisas sobre a Escola Profissional Feminina
Nilo Peçanha (EPF Nilo Peçanha) tem se colocado em prática uma proposta de Extensão
Universitária, através do projeto “Memória e patrimônio escolar: preservação,
sensibilização e formação dos agentes escolares de duas escolas públicas campistas”,
que constitui não apenas o compartilhamento do conhecimento produzido a respeito
da instituição em questão junto a sua respectiva comunidade educativa, mas uma
atividade que visa estabelecer ação sistemática que contemple todos os envolvidos
na produção cotidiana da escola, com atenção especial a gestores e docentes, visando
à formação patrimonial histórica educativa dos mesmos através de momentos de
discussão e prática, a fim de mobilizá-los e formá-los para a valorização e preservação
do patrimônio histórico educativo do qual fazem parte. O projeto propõe contribuir
para a construção de uma consciência de preservação, do patrimônio e da memória,
por meio do diálogo e partindo dos interlocutores locais, tendo como público-alvo
estratégico os gestores (direção/coordenação pedagógica) e professores enquanto
potenciais divulgadores entre toda a comunidade escolar (alunos, porteiro, equipe da
limpeza, da cozinha, secretários, vigia, inspetores) de uma cultura de valorização e
preservação da memória e do patrimônio educativos. Este trabalho corporifica o tripé
da Universidade, unindo pesquisa, ensino e extensão, caracterizando lócus produtivo
onde dialogam intrinsecamente reflexão e ação.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 – Valorização do Patrimônio Histórico Educativo
No mundo moderno ocidental, a escola foi se tornando uma instituição central para
a difusão das primeiras letras e para a instauração de um modelo de estado-nação,
tomando contornos definidos nos limites de cada país, principalmente desde o século
XIX. Esta instituição, por sua parte, apesar de ser portadora de um modelo que alguns
Ulpiano Menezes afirma que o patrimônio é “antes de mais nada um fato social”, e
acrescenta:
Pior seria – e essa situação não é propriamente excepcional – que bens
declarados de valor mundial fossem ignorados pela população local (salvo
como mercadoria!): como pode algo valer para o mundo todo, se não vale para
aqueles que dele poderiam ter a fruição mais contínua, mais completa, mais
profunda? Como pode o patrimônio mundial não ter, antes, valor municipal?
[…]É preciso introduzir outros critérios para avaliar os círculos concêntricos
de pertinência e interesse do bem, que possam antes de mais nada definir seu
potencial de interlocução. A grade referência deveria ser esse potencial de
interlocução, começando sempre com os interlocutores locais (pp.29,30,33).
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
A partir da compreensão de que a preservação do patrimônio histórico educativo
constitui uma questão de cidadania, foi proposta uma atividade que transpusesse
didaticamente os resultados das pesquisas realizadas sobre a EPF Nilo Peçanha de
forma acessível e atraente ao público, visando dialogar com a comunidade campista e
em especial com a comunidade escolar, promovendo um espaço de diálogo pautado
nos princípios da educação patrimonial, visando o (re) conhecimento, a valorização e
a mobilização pela preservação do patrimônio e da memória da escola, atual CENP.
Como corolário de uma série de ações preliminares, e tendo por objetivo a formação
patrimonial histórica educativa dos sujeitos escolares de forma significativa, foi
realizada a Exposição “Escola Profissional Feminina Nilo Peçanha: Entre o Lar e o
Ofício”. A Exposição foi inaugurada no dia 10 de outubro de 2016, após inúmeros
encontros para planejamento, discussão, testes e montagem.
Essa exposição constituiu o grande primeiro passo junto à instituição para que
no início do ano letivo de 2017 sejam realizadas na escola oficinas de formação
tratando os temas história e memória da educação e instituições escolares e educação
patrimonial. Foi também a partir da abertura da exposição que tem se delineado
junto ao CENP a proposta do próximo de criação de um centro de memória e
espaço cultural na escola, que dentre os muitos desafios previstos empreenderá a
restauração/manutenção do arquivo histórico do CENP e a realização de atividades
de formação junto à comunidade escolar que consolidem esse espaço como um lugar
de cultura viva, atuante, e não apenas uma evocação do passado, entendendo que
tanto o passado mobiliza nosso presente como nosso presente dialoga com nossa
visão de passado. A Exposição tem proposta itinerante, de modo que visitará ainda
outros espaços de educação formal e informal.
A experiência de realização da exposição constitui mais que o compartilhamento do
conhecimento produzido a respeito da instituição pesquisada junto a sua comunidade
educativa, sendo o início de uma proposta de ações sistemáticas que buscam contemplar
todos aqueles envolvidos na produção cotidiana da escola, com atenção especial a
gestores e docentes, visando a formação patrimonial histórica educativa dos mesmos
através de momentos de vivências significativas, a fim de mobilizá-los e formá-los
para a valorização e preservação do patrimônio histórico educativo do qual fazem
parte. A proposta é de construção de uma consciência de preservação, do patrimônio
e da memória, por meio do diálogo e partindo dos interlocutores locais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Brasil, uma ideia bastante difundida e até cristalizada na sociedade, é a de ser
um país de “desmemoriados”, obstaculizando a consolidação de uma identidade
coletiva, social e cultural de valorização do passado. Esta característica demanda um
trabalho de conscientização e de sensibilização sobre a sua identidade social, cultural
e de construção da cidadania envolvendo a comunidade escolar. Os educadores e a
comunidade acadêmica têm um papel fundamental na preparação das atuais e futuras
gerações para construção de novos conhecimentos, numa ação de sensibilização, mas
também de informações e orientações técnicas-pedagógicas para que esse trabalho
ultrapasse o âmbito teórico.
Destaca-se que a perspectiva da proposta apresentada se realiza na intrínseca relação
entre pesquisa e popularização da ciência, Universidade-Sociedade, e que se norteia
no sentido de valorizar e mobilizar a participação de todos os atores que constroem o
cotidiano escolar, incluindo aqueles que tendem a serem “esquecidos” nos momentos
de discussão. O fim maior se trata da contínua valorização da memória e da identidade
tanto da instituição como de cada um de seus atores, considerando que a consciência
do patrimônio que possuem e que continuamente reconstroem contribuirá para sua
autovalorização e criação/fortalecimentos de laços de pertencimento.
O principal impacto desejado é de sensibilizar a comunidade escolar em questão para
o re(conhecimento) de seu ambiente escolar como patrimônio, visando fortalecer
sua ligação com a herança cultural local. Assim, se busca desenvolver um projeto de
educação patrimonial escolar partindo do próprio ambiente escolar.
O trabalho com as memórias institucionais escolares pode ajudar a construir e
consolidar uma identidade mais positiva da e na comunidade escolar, na medida em
que seus agentes reconheçam a singularidade e importância da instituição em que
estudam-trabalham. Sem dúvida, o reconhecimento da identidade construída no
contexto escolar, ao longo de mais de um século, pode ajudar a consolidar um novo
projeto de escola, que deverá se reverter na melhoria do ensino.
REFERÊNCIAS
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História da Educação, v.1, n.1. São Paulo: Autores Associados, jan./jun. 2001, p. 9-43.
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necessidade da interlocução. Pro-Posições (Unicamp), Campinas, v. 16, p. 13-18, 2005.
MOGARRO, Maria João. Arquivo e educação: a construção da memória educativa. In:
Sísifo Revista de Ciências da Educação, nº 1, Portugal, 2006, p. 71-84.
NÓVOA, António. Para uma análise das instituições escolares, In: NÓVOA, Antônio
(coord.), As organizações escolares em análise. 3ª edição. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1999, p. 13-42.
1. INTRODUÇÃO
O trabalho aborda parte da história de uma das mais tradicionais instituições escolares
da cidade de Campos dos Goytacazes, no Estado do Rio de Janeiro, que completou
121 anos de criação e teve um longo e importante percurso histórico na educação do
município, principalmente no que se refere à formação de professores.
No presente texto far-se-á uma breve trajetória da instituição desde a sua criação até
o momento atual, buscando analisar sua identidade construída ao longo dos anos, até
o momento de sua transferência para a Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e
Inovação em 2001.
A metodologia utilizada foi a de análise bibliográfica acerca dos assuntos abordados,
pesquisa em acervos históricos da instituição, entrevistas e observação participante.
O artigo fica assim estruturado: inicialmente se fará um breve relato do histórico da
instituição; a seguir será tecido um diálogo entre diversos autores que pesquisam
instituições escolares centenárias, formação de professores e história da educação.
Posteriormente serão analisadas algumas mudanças substanciais ocorridas na
instituição a partir de 2001, ano em que a mesma passou a fazer parte da Secretaria
de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação e algumas ações executadas pelo corpo
docente e discente a fim de preservar a memória, história e missão da instituição.
ISEPAM: um prédio, uma história, uma memória
O ISEPAM iniciou o seu funcionamento em 1895 como Escola Normal de Campos,
funcionando junto ao Liceu de Humanidades de Campos. Segundo Sousa (1985, p. 158),
“a notícia foi recebida com viva demonstração de agrado, havendo até... os clássicos
foguetes”. Conforme relata Crespo (2009), a Escola Normal foi criada em 1894 pela Lei
nº 164 de 26 de novembro de 1894, quando era o presidente da Província José Tomás
Porciúncula. Ela foi instalada em 1895 por decreto da Instituição Pública chefiado por
Antonio Aidano Gonçalves de Almeida.
Segundo Martinez; Boynard e Gantos (2004) a Escola Normal de Campos nesse período
tinha um grande prestígio, pois era a segunda instituição pública e oficial de formação
de professores do estado do Rio de Janeiro.
Conforme aponta Martínez (2009), a instalação da Escola Normal em 1895 despertou
“expectativas em relação à expansão da instrução primária para a qual formaria os
mestres”. Novos mestres sendo formados, haveria possibilidades de uma expansão
em relação à escolarização de crianças.
A Escola Normal sempre foi uma referência na formação de professores, e, continuou
com essa missão enquanto Escola Normal e anos mais tarde com as novas nomenclaturas.
Cinco anos após ser instalada, a Escola Normal foi extinta pelo Decreto nº 558 de 26
de janeiro de 1900, sendo organizada uma Escola Normal Livre em outro local. A
extinção foi promovida pelo diretor de instrução Dr. Paranhos da Silva, em fevereiro
do mesmo ano. A mobilização entre professores e outros cidadãos foi grande, e a
instituição foi instalada como Escola Normal Livre nas instalações do Liceu de Artes
Ofícios da mesma cidade, sendo concedido o pavimento superior (SOUSA, 1985). Em
1901, voltou a funcionar sob o domínio do Estado, com a sua reabertura no governo de
Quintino Bocaiúva (Decreto n 677). (Martínez, 2009).
Após esse breve incidente, conforme relatam Martinez e Boynard (s/a, p. 3), as
duas instituições, a saber, o Liceu e a escola Normal “conviveram por sessenta ano,
compartilhando prédios, diretores, inspetores e professores e produzindo fecundos
resultados”. Os professores formados pela Escola Normal junto com o corpo
administrativo e docente “constituíram-na em instituição de excelência, criadora/
portadora de uma cultura pedagógica singular na formação de professores da Região
Norte Fluminense”.
Em 1954 o ISEPAM, como é conhecido atualmente, passa a ser denominado Instituto de
Educação de Campos, mudando para um prédio próprio, que o abriga até a presente data.
Em 1965 a sua denominação passa a ser Instituto de Educação Professor Aldo Muylaert e
em 2001 sofre nova mudança e nova denominação, quando foi transformado em Instituto
Superior de Educação Professor Aldo Muylaert. (MARTÍNEZ; BOYNARD, 2004).
A criação do Instituto de Educação de Campos foi resultado de uma reorganização
da Secretaria de Estado de Educação e Cultura (SEEC/RJ) com a Lei nº 2.146 de 12 de
maio de 1954. Essa lei cria dois institutos, um em Niterói (IEN) e um em Campos (IEC).
O espaço cedido na cidade de Campos foi o local de funcionamento do Grupo Escolar
Saldanha da Gama, situado na Avenida 28 de Março nº 37 no bairro do Turf- Club
(CRESPO, 2009), para onde foram transferidas as alunas da Escola Normal do Liceu
de Humanidades de Campos.
Nesse momento e local se sedimentou uma história de sucesso na formação de
professores da região.
Findado o século, e como consequência das mudanças na legislação de formação
de professores no âmbito federal, em 2001 o ISEPAM é transferido da Secretaria de
Educação e Cultura para a Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação e
passa a oferecer o curso Normal Superior, fazendo a seu primeiro edital de seleção
para o vestibular. A partir daí a sua denominação passa a ser Instituto Superior de
Educação Professor Aldo Muylaert, por ter iniciado em suas dependências a formação
de professores em nível superior.
A partir de 2001 a instituição começa a escrever uma nova história, deixa de ser
formadora apenas de professores em nível Normal Médio, como fazia há décadas, e
inicia uma nova empreitada. Em 2009 cria o curso de Pedagogia.
A seguir, abordaremos aspectos dessa nova etapa.
ISEPAM. Uma trajetória de sucesso e conflito
O ISEPAM tem um histórico de atuação fundamentalmente na formação de professores.
Inicialmente formava professores no curso Normal, em 2001 inicia a formação em
nível superior com o curso Normal Superior e a partir de 2009 inicia a formação de
professores no curso de licenciatura em pedagogia. Essa história e contada por pessoas
que vivenciaram e ainda vivenciam essa trajetória de sucesso e conflitos.
Em muitas escolas do município começa-se a discutir, a partir de 1998, a formação de
professores em nível médio, o Curso Normal Médio, visto que a LDBEN 9.394/96 já
1 A exemplo, a instituição possuía cerca de 20 turmas de Educação Infantil nos 2 turnos. Hoje conta com apenas 10 no total.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A bibliografia utilizada sobre o tema em questão foi definida pelo estudo dos autores
nas áreas em questão. O professor Antonio Nóvoa, que traz importante contribuição
para a formação de professores; Bernadete A. Gatti, com seu estudo sobre formação
de professores, legislação e normas vigentes; Dominique Julia, com essenciais estudos
acerca da cultura escolar; Antonio Viñao, com suas pesquisas sobre cultura, patrimônio
e educação; Luciano Mendes de Faria Filho, que trata da cultura escolar como campo
de investigação na história da educação. Além dos autores citados, foram feitas
pesquisas em fontes documentais históricas no Arquivo do Liceu de Humanidades de
Campos, no Instituto Superior de Educação Professor Aldo Muylaert, artigos e livros
de pesquisadores que já adentraram esse tema como Martinez, Boynard, Crespo,
dentre outros.
A profissão docente sempre foi menosprezada ao longo dos anos, a valorização
sempre esteve muito distante de acontecer. Muitos discursos tem sido realizados, mas
pouco se tem conseguido. Nóvoa (2009) fez uma exaustiva pesquisa sobre formação
de professores, valorização e formação em serviço. Parece utopia conversar sobre esse
assunto quando existe tanta desesperança, mas ainda é possível reverter o quadro.
No presente século que estamos presenciando a tecnologização de algumas tarefas, o
isolamento profissional, a individualidade que impera em todas as profissões, sabemos
também que alguns pensam na humanidade e que acreditam que pequenas mudanças
podem trazer grandes transformações.
Nóvoa (2009) afirma que dentre o que se apresenta como prioridade nesse período está
a valorização dos professores, formação inicial e continuada, importância de trabalho
colaborativo, dentre outros. Ele nos traz um discurso leve, de responsabilidade com
o outro e consigo mesmo, próprio de alguém que já vivenciou muitas situações e que
ainda tem esperança. Como ele mesmo diz o seu ensaio é bem simples, tratando de
formação de professores dentro da própria profissão. Ao falar da cultura profissional
ele escreve que
Ser professor é compreender os sentidos da instituição escolar, integrar-se numa
profissão, aprender com os colegas mais experientes. É na escola e no diálogo com os
outros professores que se aprende a profissão. O registo das práticas, a reflexão sobre
o trabalho e o exercício da avaliação são elementos centrais para o aperfeiçoamento e
a inovação. São estas rotinas que fazem avançar a profissão (p. 30).
O ISEPAM sempre teve a sua cultura escolar no sentido que Faria Filho et all (2004)
projetam nas pesquisas sobre o assunto, tanto em nível nacional como internacional,
como investigação do cotidiano escolar. Observa-se que o corpo docente da instituição
tem maneiras peculiares de enxergar o cotidiano escolar e isso de forma natural vai
sendo transmitido aos alunos. Cada instituição tem a sua própria cultura, sua própria
história. Havendo ruptura nesse processo, a transmissão também fica limitada,
trazendo assim uma falta de identidade institucional, gerando insegurança e discursos
desconexos, pois cada um busca falar a sua própria linguagem, dar a sua visão pessoal
da situação. Dialogando com diversos autores Faria Filho et all (2004) observam que a
cultura escolar pode ser considerada composta por saberes, conhecimentos, currículos,
tempos e instituições escolares, além de materialidade escolar e métodos de ensino.
Entende-se que tudo isso está relacionado de maneira direta à identidade da instituição.
As três áreas tratadas por Julia (2001) terão destaque, as normas e finalidades que regem
a escola, o papel desempenhado pela profissionalização do trabalho de educador e a
análise das práticas escolares. Essas áreas estão diretamente imbricadas na temática
desenvolvida, por se tratar de uma instituição centenária que alimenta boa parte da
história da formação de professores do município.
Conforme escreve Julia (2001, p. 1) “a cultura escolar não pode ser estudada sem o
exame preciso das relações conflituosas ou pacíficas que ela mantém, a cada período
de sua história, com o conjunto das culturas que lhe são contemporâneas”. O histórico
do ISEPAM leva a um conjunto de culturas adquiridas ao longo dos anos e que já
faz parte do ideário da instituição e, de certa forma, já assimilado pela comunidade
escolar. A ruptura desse processo com todas as mudanças ocorridas gerou e ainda gera
insegurança e perda de identidade.
Julia (2001, p. 1) ainda entende que “a cultura escolar é descrita como um conjunto de
normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de
práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos”. Não se está falando de uma história pequena, mas de uma história
centenária que já faz parte da coletividade e que pode influenciar de maneira positiva
ou negativa outras gerações de alunos e professores.
Nessa perspectiva, entende-se a necessidade de se preservar uma cultura escolar
da instituição que remonta a sua longa história de formação de professores, dando
continuidade à mesma, sem, portanto, cair no continuísmo. Nóvoa (2009, p. 34) alerta
que “a formação de professores ganharia muito se se organizasse, preferentemente,
em torno de situações concretas, de insucesso escolar, de problemas escolares ou de
programas de açção educativa”. A parceria sugerida por Nóvoa pode ser aplicada na
divulgação e preservação da cultura escolar, de busca por soluções, de incentivo aos
alunos e futuros professores.
As relações e interações entre memória, patrimônio historio e educação serão
analisadas através das lentes de Viñao Frago (2010), quem ao considerar o patrimônio
considera-o como algo não estático, com sentimento de pertencimento e que precisa
ser conservado e protegido. Esse é um dos pontos principais de luta pela conservação
material e imaterial do ISEPAM por parte de alguns sujeitos.
A respeito da instituição que nos ocupa nesta análise, muitas críticas foram feitas quando
da implantação do curso Normal Superior e do curso de Pedagogia em uma instituição
de ensino que não está classificada como faculdade e nem como universidade, mas
uma instituição que oferece educação básica. Esse foi um aspecto bem difícil no início
da caminhada do ISEPAM no oferecimento do curso superior. A licenciatura em
Pedagogia teve as suas três primeiras turmas inseridas em março de 2009, quando foi
extinto o curso Normal Superior, pelo entendimento que conquanto fosse um curso
superior, a sua habilitação era similar ao curso de nível médio na modalidade Normal,
sendo desnecessário o oferecimento de ambos na mesma instituição. A despeito de
todas as críticas, o que se pode observar é que o curso de pedagogia levantou vôo e
segue formando professores e pedagogos para atender o município e cidades vizinhas,
apesar de todas as dificuldades pelas quais passa a instituição.
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
O ISEPAM abarca atualmente desde a Educação Infantil até a Pós-graduação lato sensu.
Até o ano de 1996, ano da aprovação da LDBEN (9.394/96) não havia preocupação de
mudanças no ISEPAM, com a Secretaria de Educação como mantenedora da instituição.
Com a aprovação do Plano Nacional de Educação (2001) iniciou-se uma preocupação
com a formação dos professores que atuavam na instituição, na educação infantil e
séries iniciais, visto que muitos possuíam apenas o curso Normal em nível Médio.
Os professores buscaram inicialmente formação superior com receio de “perderem”
as suas vagas. Surgem assim idéias de os professores serem formados na própria
instituição e muitas conversas e encontros acontecem até a idéia tomar forma.
Como mencionado anteriormente, no ano 2000 iniciaram-se esforços para criação
do curso Normal Superior, conforme determina a LDBEN (9.394/96) e em 2001 o
curso é criado. Junto à criação do curso ocorre a transferência da instituição para a
Fundação de Apoio à Escola Técnica, que é uma Fundação vinculada à Secretaria de
Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação (SECTI). Com a transferência, acontecem
muitas mudanças. Algumas foram consideradas positivas, outras nem tanto. A
referida fundação não conhecia a história da instituição e não tinha experiência em
formar professores, visto que a atuação era especificamente em cursos técnicos. Os
profissionais “mais antigos” viam a história escorrendo pelos dedos e esvaziando. A
intenção segundo entrevistas, não era voltar a ser a instituição de décadas passadas,
mas conservar a história, o patrimônio, tanto material como imaterial e a identidade,
que era a formação de professores.
As orientações pedagógicas sofreram intervenções de acordo com a nova secretaria.
O curso Normal de nível médio esteve em vários momentos indicados para encerrar
suas atividades. As turmas de Ensino Fundamental e Educação Infantil que até esse
momento abarcava uma grande quantidade de alunos, atendendo a crianças de todo o
município e distritos não recebia autorização para abertura de novas vagas.
Esses foram alguns fatos ocorridos nos primeiros anos da gestão da mantenedora.
Com o passar dos anos novos problemas foram surgindo, como por exemplo, a
instituição abrigar Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental em uma
instituição estadual, o que seria contrário ao que está na LDBEN (9.394/96) que orienta
os municípios assumirem a Educação Infantil e prioritariamente os anos iniciais do
Ensino Fundamental.
Introdução
A partir de um trabalho de campo que se desenvolve em um acampamento de reforma
agrária no Estado do Rio de Janeiro pretendemos apresentar “pistas”, “sinais” ou
“indícios” sobre a influência da cultura religiosa na organização de uma comunidade
rural (que completará em 2017 vinte anos de existência). Nesse sentido, utilizamos o
paradigma indiciário (GINZBURG, 1989) como caminho de investigação sobre uma
verdade provável, a “afinidade eletiva” entre a religião evangélica e a postura passiva
do Estado em relegar suas funções de promotor da política de reforma agrária.
Dando continuidade à prática do Observatório Fundiário Fluminense, vinculado
Universidade Federal Fluminense, acompanhamos, observamos e interferimos no
processo institucional que busca integrar os imperativos de conservação da natureza
com as necessidades de sobrevivência das comunidades de pequenos agricultores no
entorno da Reserva Biológica (Rebio) de Poço das Antas (RJ).
Durante o longo tempo de espera, várias situações contraditórias emergiram: venda
de lotes por alguns que não suportaram financeiramente ou emocionalmente a longa
espera; alteração na direção política da comunidade; mudanças no Governo Federal e
na política de reforma agrária; ingresso de novos ocupantes/reocupação, ocasionando
o surgimento de novos interesses, entre eles, a forte presença de igrejas evangélicas.
Assim, o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Sebastião Lan II existe numa
área que tem mais de duas décadas de presença humana.
Neste artigo, pretendemos, portanto, relacionar a luta pela terra em Sebastião Lan
com a literatura sobre conflitos ambientais e o denominado ecologismo dos pobres
para compreender o surgimento de um novo discurso religioso na comunidade. Ao
fim, acreditamos que a tensão entre meio ambiente, produção rural e agentes públicos
encobrem o conflito real, que se dá em relação à questão fundiária e as diferentes visões
de mundo dos sujeitos envolvidos.
O conceito weberiano Wahlverwandtschaft (afinidade eletiva), desenvolvido em
“Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, demonstra a existência de elementos
convergentes e análogos entre a ética religiosa e um comportamento econômico. Nesse
sentido, Michael Löwy (2014) chama atenção para uma possibilidade de “simbiose
cultural”, conceito que nos apropriamos para compreender as pistas levantadas entre
um perfil de agricultor presente no imaginário do agente do Estado e promotor de
políticas públicas para reforma agrária, e uma ética evangélica que passa a organizar
a vida comunitária.
Partindo do acompanhamento do caso de Sebastião Lan II ao longo do tempo, nos
remetemos ao paradigma proposto por Ginzburg para compreender os elementos
da realidade, ou observar as “zonas privilegiadas - sinais, indícios - que permitem
decifrá-la” (GINZBURG, 1989:177). Em paralelo, o debate proposto por Alier
(2007) nos oferecerá espaço de análise, ao classificar os tipos de discursos sobre a
natureza que são operacionalizados no caso de Sebastião Lan II, ora para justificar
a repressão da 3 comunidade, ora para reforçar o caráter de protagonismo da Rebio,
enquanto modelo de unidade de conservação, e, também, enquanto um outro nível
de sacralidade do território.
Destacamos, portanto, que a temporalidade de longa duração da luta por Sebastião Lan
tem produzido o efeito perverso de apagamento da memória. Com o passar do tempo, a
saída de lideranças do MST da centralidade da disputa tem produzido o esquecimento
dos enfrentamentos do passado. No novo cenário, a entrada de igrejas neopentecostais
na área tem transformado a história de numa espera pela terra prometida. A luta se
apropria do tempo do sagrado, onde a espera se faz com ações, mas também com
orações. Configura-se, portanto, um novo tempo na ocupação, novas lideranças
despontam e a religiosidade parece oferecer um novo modo de interpretação da luta.
Sobre a comunidade de Sebastião Lan
Vizinhos desses milhares de habitantes nobres da mata atlântica, em 2016, sete dezenas
de famílias de agricultores familiares completaram 19 anos de ocupação da terra, uma
longevidade que, para muitos atores sociais do entorno, já é possível classifica-los
como uma comunidade rural de Sebastião Lan II. A morosidade da justiça, aliada aos
impasses ambientais e agrários dos órgãos federais em disputa e a superposição de
questões ambientais em detrimento das questões fundiárias apresentam-se como a
principais problemas vivenciados pelos trabalhadores rurais.
Nesse cenário pretendo desenvolver uma reflexão que contemple as peculiaridades dos
discursos sobre e a partir de uma comunidade rural inserida na Zona de Amortecimento
de uma Reserva Biológica, obrigando, de um lado, o INCRA a desenvolver a primeira
experiência participativa de Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS)1 e, de outro,
novos circuitos de circulação de dinheiro tendo como moeda de troca não produtos
tradicionais, mas a natureza como patrimônio a ser preservada e capitalizada. Para
uma análise mais geral, o PDS Sebastião Lan II mostra a relevância de uma pesquisa
para aprofundar a compreensão sobre a Reforma Agrária no momento atual, a partir
da observação cuidadosa da relação tensa entre ecologia, preservação e a reprodução
de uma agricultura sustentável, onde existe uma grande incidência da sobreposição
entre áreas reformadas nas cercanias de sítios de preservação ambiental.
O método dialético de Hegel percebe a contradição como mola propulsora, um hiato
entre o real e o potencial. Nesse sentido, a relação entre a agricultura (no caso, a
reforma agrária) e a preservação do meio ambiente aparecem como contradições
no estudo de caso. Contradições essas que são dialéticas quando há possibilidades
de superação, como uma agricultura familiar ou camponesa agroecológica, que,
para existir, precisa conservar seus principais instrumentos de trabalho, a terra e
água. Ou, de outro lado, podem ser contradições antinômicas quando a agricultura
capitalista, guiada por pressupostos da Revolução Verde, encontra-se refletida num
modelo de preservação que espelha sua forma de lidar com a natureza, descartável.
Como resultado desse último modelo a Reserva Biológica de proteção integral,
sem presença humana, se justifica, preservando o mico leão-dourado do seu maior
predador: o homem capitalista. Ou seja, três discursos que, hoje, encontram-se
em disputa e sendo apropriados pelosdiferentes atores sociais, com uma nova
característica, o surgimento de uma nova liderança organizada através das Igrejas
evangélicas lá instaladas.
1 Dois PDS foram criados pelo INCRA no Rio de Janeiro em 2014, um em Silva Jardim (o Sebastião Lan) e outro em Macaé.
Apesar de cronologicamente a portaria de Macaé ser anterior, sociologicamente interpreto como primeiro pois em Macaé não havia
população residente, foi um território a ser povoado, enquanto o Sebastião Lan os trabalhadores rurais lá residiam há 18 anos no
momento da publicação da portaria que criou o PDS.
A área onde se encontra a comunidade rural Sebastião Lan, chamada de Brejão, que, após
a canalização na década de 70 para plantação de arroz, foi grilada por um fazendeiro,
posteriormente arrendada para continuidade da rizicultura e, depois, recebendo
tentativas de cultivo de aipim, batata-doce e banana. Trata-se de uma área de 1466
ha, ocupada em 1997 pelo movimento social, e que possui um solo que carrega uma
história que se origina com a derrubada da mata nativa, queimadas e produção com
agrotóxicos, dentro do pacote da Revolução Verde (maquinário e insumos químicos).
Esses movimentos de ocupação de terra por um campesinato que foi expulso para a
entrada de monoculturas em larga escala caracteriza-se pela “rerruralização” do Vale
do Rio São João com a produção de alimentos, ou lavoura branca. Esse cenário se
desenha dinamicamente em variadas formas de conflito, uma diversidade de atores em
tensão permanente acerca de direitos sobre a titularidade da terra e, principalmente,
no enfrentamento com projetos econômicos, ambientais e agrícolas que colocam em
jogo as diversas noções de territorialidade2.
Em 2013, data do nosso regresso ao campo, a situação das famílias de Sebastião Lan II
não se caracteriza mais como um precário acampamento, pelo contrário, há presença
de uma mínima infraestrutura com luz elétrica, transporte escolar, farta produção
e associação de pequenos produtores formalizada e com sede própria. De tal forma
que poderíamos classificá-los como uma comunidade rural a ser assentada. Situação
que fortalece as demandas por acesso a serviços públicos e direitos que arrastam-
se por anos, mas que continuam suspensas por supostas incompatibilidades entre a
agricultura familiar e a preservação ambiental.
Fotos da esquerda para a direita da Associação dos Trabalhadores Rurais de Sebastião Lan II:
anos de 2003, 2005 e 2014
Atualmente a Associação dos Trabalhadores Rurais de Sebastião Lan – Gleba II – tem
registros para a seguinte produção: citros; manga, aipim, banana, feijão de corda,
maracujá, café, batata doce, milho, abóbora, arroz, abacaxi, coco, melancia e mel. Nas
áreas em que os órgãos ambientais acusam de inundação os agricultores respondem
que há uma convivência harmoniosa com tal característica do meio ambiente, em que
há o aproveitamento do solo nos meses de seca (com culturas que produzem entre
3 e 6 meses) e, também, com culturas resistentes à água nos meses de maior índice
pluviométrico3. A área encontra-se dividida por órgãos públicos em 82 lotes, que
variam entre 8 a 12 ha cada, dos quais 61 encontram-se ocupados, 15 estão vazios e 1
lote está em uso coletivo da Associação citada.
2 “Disputando espaço com o avanço da urbanização, como é o caso do Rio de Janeiro; [...] A reapropriação de espaços pouco
explorados, onde as atividades agrícolas dos assentados para além de proporciona-lhes os meios de vida também adquire funções
políticas de delimitação de território, [...] (MEDEIROS, p.14, 1999).
3 Faz-se necessário destacar que o primeiro “pluviômetro” de todo o Vale do Rio São João foi produzido
artesanalmente pelo agricultor conhecido como “Gaúcho”, que ocupa seu lote desde o início da ocupação, em
1997, e serve de referência e consulta para diversos órgãos de assistência técnica rural.
Esse autor traça um histórico da conscientização em proteger áreas naturais, que apoia-
se ideologia “preservacionista” em que qualquer intervenção humana na natureza
é considerada negativa. Este modelo de conservação foi fortemente questionado na
medida em que foi exportado para os países do terceiro mundo, causando efeitos
danosos nas “comunidades tradicionais” (extrativistas, pescadores, indígenas etc.).
O título do trabalho de Diegues faz referência à retomada de conceitos míticos como
forma de situar toda a problemática em questão. A mitificação da natureza como um
espaço intocado e intocável (o chamado “neomito” ou “mito moderno”) vai servir de
base para a construção da concepção preservacionista.
A segunda corrente trabalhada por Alier, o evangelho da ecoeficiência, já domina os
debates tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, tanto do ponto de vista ambiental
quanto social e político. Os conceitos-chave são as ‘curvas Ambientais de Kuznets’,
pelas quais o incremento de investimentos conduz, em primeiro lugar, a um aumento
da contaminação, mas no final conduz a sua redução; o ‘desenvolvimento sustentável’,
interpretado como crescimento econômico sustentável; a busca de soluções de ‘ganhos
econômicos e ganhos ecológicos’ – win-win -, e a “modernização ecológica”6.
Já a terceira corrente, “A justiça ambiental e o ecologismo dos pobres”, é assim
classificada por Alier:
[...]grupos indígenas e camponeses têm co-evolucionado sustentavelmente com
a natureza e têm assegurado a conservação da 8 biodiversidade. [...] Enquanto
as empresas químicas e de sementes exigem remuneração por suas sementes
melhoradas e por seus praguicidas, solicitando que sejam respeitados seus
direitos de propriedade intelectual por intermédio de acordos comerciais, o
conhecimento tradicional sobre sementes, praguicidas e ervas medicinais tem
sido explotado gratuitamente sem reconhecimento.
Isso tem sido chamado de ‘biopirataria’. (ALIER, 2007: 34-5)
Pai. Só o Senhor pode nos guardar, só o Senhor pode nos proteger, só o Senhor
pode nos dar livramento e é o Senhor que tens feito nesse lugar, guardando este
povo, meu Senhor. Pai nosso Te agradecemos e Te glorificamos e eu peço Sua
bênção especial por cada um que aqui está, àqueles que te conhecem e também
os que não te conhecem, meu Senhor. Eu entrego nas Tuas mãos, em nome de
Jesus, Amém.
Nesse ponto, há uma convocação geral para uma comunhão com Deus, mas também uma
comunhão com a natureza através de uma nova sacralidade, de uma ligação triangular
entre “a palavra de Deus”, o trabalho e a terra. O pousio, o cuidado com a natureza,
para além do discurso técnico e científico, ganha contornos religiosos. Ensinamentos
esses que reinterpretam a tragédia ocorrida, não mais como um problema da represa
de Juturnaíba, das chuvas cíclicas, da interferência do homem sobre o meio ambiente
mas, principalmente, da vontade de Deus.
E continua:
Neemias trabalhava no palácio do rei Artaxerxes, nesse período que Neemias
trabalhava no palácio sempre alguém vinha e trazia notícias para ele de como
estava a cidade, e, um belo dia, Ananias chegou até Neemias, e Neemias
7 Artigo publicado por Oliveira Vianna em 10/01/1939, persente no Acervo do Ministro Geraldo Bezerra de Menezes. Pelo grau de
deterioração do jornal não foi possível identificar o nome do mesmo.
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INTRODUÇÃO
A questão nem-nem, como tem sido correntemente abordada na literatura científica,
reside na ausência dos jovens dos processos de socialização típicos da transição para a
vida adulta. Se a juventude é pensada como um processo de desenvolvimento social e
pessoal de capacidades e ajuste aos papéis adultos, são as falhas nesse desenvolvimento
e ajuste que se constituem em temas de preocupação social (ABRAMO, 1997). É nesse
sentido que a questão dos jovens nem-nem tem estado presente para o pensamento e
para a ação social assumindo a face de “problema”: como objeto de falha, disfunção
ou anomia no processo de integração social; e, numa perspectiva mais abrangente,
como tema de risco para a própria continuidade social. Essa perspectiva teórica pode
ser contestada, na medida que se observa que a composição da categoria nem-nem é
heterogênea em demasia. Isto significa que a abordagem de vulnerabilidade, risco ou
problema social, não se dá da mesma forma para todo o contingente populacional.
É importante, portanto, situar a questão nem-nem na estrutura social como um todo:
identificar quais elementos que condicionam suas vulnerabilidades, em particular,
as desigualdades estruturais que levam os jovens a crescentes dificuldades para
incorporarem-se ao mercado de trabalho, a especial concentração de pobreza nesse
segmento da população, os atrasos e desigualdades educacionais, a divisão sexual do
trabalho e as desigualdades de gênero, assim como as barreiras históricas e tradicionais
de mobilidade social.
Este artigo se propõe a investigar exclusivamente aspectos relacionados à questão de
gênero na caracterização da questão nem-nem, traduzidas na leitura quantitativa de
dados da PNAD-2014, no que concerne às características familiares dessas jovens.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1. A transição para vida adulta
Pesquisas recentes sobre transição para vida adulta (CAMARANO et al., 2006; VIEIRA,
2009; BOTELLHO, ARAÚJO e CODES, 2016) apontam que a transição tem um forte
componente de gênero. Casamento, maternidade e constituição de família e domicílio,
independentemente da inserção no mercado de trabalho, são ainda elementos definidores
da transição para a vida adulta das mulheres. Ao avaliarem-se as mudanças da transição
para a vida adulta nas séries históricas, a transição das mulheres experimentou mais
transformações que a masculina. O aumento da escolaridade feminina levou ao
incremento da sua participação no mercado de trabalho e, consequentemente, a que
aumentasse o percentual de mulheres que fizeram a transição via mercado de trabalho.
No entanto, permanece alto o percentual de mulheres que fizeram a transição via
constituição de família (CAMARANO et al., 2006).
Percebe-se, então, que, logo na adolescência, importantes diferenciais de gênero
marcam a tônica da transição para a vida adulta. Para as mulheres, há certa centralidade
das transições familiares como fator de abandono escolar1 e aceleração da entrada na
vida adulta, enquanto entre os homens, os interesses estão mais centrados no trabalho
1 Vieira (2009) conceitua, na perspectiva dos estudos sociodemográficos, a transição para a vida adulta como o processo de assunção
a novas posições, responsabilidades e papéis sociais próprios da condição de adulto. O indivíduo deixa para trás um estado inicial
de dependência e necessidade de proteção, assistência e cuidados que o caracterizava desde o nascimento, para enquadrar-se à
condição de adulto. O estudo de transição para vida adulta concentra-se, principalmente, na análise das dimensões institucionais
desse processo: escola, trabalho, família e constituição do domicílio (CAMARANO, 2006).
e na obtenção de renda, mesmo que isto implique sacrificar os estudos (VIEIRA, 2009;
CAMARANO et al., 2006).
Vieira (2009) também comenta que os papéis de gênero assumem uma função
preponderante na decisão de sair do sistema educacional e ascender à vida adulta. A
divisão sexual do trabalho, que delega aos homens o papel de provedor e às mulheres
o papel de cuidadora/reprodutora, dá sinais de estar ainda estar em vigor, sendo
um dos aspectos fundamentais do processo decisório do abandono escolar, conforme
apontam as supracitadas autoras.
Há também de se levar em conta que o trabalho, o casamento e a maternidade (muitas
vezes mais que a paternidade) são valores (ALMEIDA, M., 1987; ALMEIDA, P., 2002
apud VIEIRA, 2009), e como tais podem ser estimulados ou coibidos sob determinadas
condições, segundo a visão de mundo compartilhada pelos membros de uma
coletividade (VIEIRA, 2009).
Um ponto importante no qual há um contraste entre áreas vulneráveis e não
vulneráveis é quanto à menção feminina de que os afazeres domésticos e o cuidado
com os filhos motivaram sua opção pela inatividade, sendo este um motivo assumido
com maior frequência entre as mulheres de áreas vulneráveis (VIEIRA, 2009). Como
apontam Heilborn e Cabral (2006), parte significativa de mães adolescentes de baixa
renda e seus parceiros já estava fora da escola quando ocorreu a gravidez. Várias
delas já cuidavam dos irmãos e vizinhos, portanto, não tinham no seu horizonte de
expectativas a aspiração a um futuro muito diferente daquele que vivenciavam.
Vale uma pequena digressão a respeito das tarefas de cuidado: até hoje, as mulheres
têm sido as principais cuidadoras das crianças e idosos, realizando as tarefas rotineiras
e dando coesão às relações entre as gerações. Os homens e as mulheres brasileiros têm
direitos iguais perante a lei, mas, no que diz respeito ao cuidado dos dependentes, as
normas culturais ainda refletem uma expectativa maior sobre as mulheres do que sobre
os homens. Às mulheres, histórica e culturalmente, cabem os cuidados com a casa e
com a família, e, metonimicamente, com a reprodução da sociedade (FONTOURA e
BONETTI, 2010; GOLDANI, 2004).
Adotando-se uma perspectiva histórica, no mundo ocidental, tem-se o cuidado como
um valor social relativo à intimidade, ao afeto e à pessoalidade (TRONTO, 2002).
Ele está associado, portanto, à esfera do privado, espaço por excelência da família,
tomada como uma instituição humana universal, lugar do afeto e da cooperação e que
se constitui em uma oposição simbólica ao mundo público, do trabalho, da política
(COLLIER; ROSALDO; YANAGISAKO, 1992 apud FONTOURA e BONETTI, 2010).
De outro lado, somando-se a essa perspectiva histórica de gênero, esse significado
estrito do cuidado tradicionalmente dota de sentido um modelo hegemônico de
feminilidade ocidental (TRONTO, 1997).
Desta forma, a condição nem-nem se representa, muitas vezes, o interstício entre a
escola e o trabalho, em uma dinâmica reversível e não linear. As razões para saída da
escola e permanência na inatividade são, como discutido, muitas vezes motivadas por
questões de gênero importantes, que atrelam às pessoas do sexo feminino, a assunção
de papéis familiares. O tópico abaixo ilustra essa relação mais claramente.
filhos. O aumento da renda familiar via inclusão produtiva da mulher pode favorecer a
redução da necessidade de transferências de renda, mas depende da oferta de serviços
de atenção à criança na forma de acesso à creche e à pré-escola. Pode representar,
ainda, uma possível porta de saída no médio prazo para muitas famílias com crianças
participantes do programa Bolsa Família, na medida em que viabilizam o ingresso da
mulher em atividades produtivas fora do lar (SIMÕES, 2013).
Costa e Ulyssea (2014) constatam tanto o aumento da escolaridade como aumento da
inserção feminina no mercado de trabalho, como dois fatores importantes na redução
da disparidade de ocorrência de nem-nem entre homens e mulheres. De um lado, as
mulheres de 15 a 17 anos apresentaram uma redução substancial na proporção de nem-
nem, o que é compatível com a crescente e acelerada inclusão escolar das mulheres ao
longo dos últimos 10 anos. De outro, as mulheres de 25 a 29 anos apresentaram uma
redução de 15 p.p. entre 1992 e 2009 (com leve aumento entre 2009 e 2012), o que deve
estar mais associado ao aumento da inserção feminina no mercado de trabalho e à
crescente compatibilização das decisões reprodutivas e de participação no mercado de
trabalho. O diferencial tão acentuado entre homens e mulheres de 25 a 29 anos sugere
que a maternidade é um fator central para a compreensão dos determinantes do status
nem-nem entre as mulheres e, de fato, mostra que há uma diferença muito grande na
incidência de nem-nem entre mulheres com e sem filhos (COSTA e ULYSSEA, 2014).
A taxa de inatividade entre as mulheres ainda é bastante superior àquela dos homens.
Como notam Camarano e Kanso (2012), parece haver uma dinâmica diferenciada
por sexo que gera essas taxas de inatividade, que pode estar relacionada à divisão de
trabalho no interior do domicílio. Estima-se que na América Latina 22% das jovens
entre 15 e 29 anos se dedicam exclusivamente a afazeres domésticos, representando
uma parcela significativa das jovens classificadas como nem-nem. Esta cifra é de apena
1,4% entre os jovens do sexo masculino (HOPENHAYN, 2012 apud SIMÕES, 2013).
A divisão sexual do trabalho e a reafirmação de papéis tradicionais de gênero, que
tem como características a designação prioritária dos homens a esfera produtiva e das
mulheres a esfera reprodutiva (HIRATA e KERGOAT, 2007), parecem ter importância
seminal na compreensão da questão nem-nem.
Jacqueline Laufer (1995 apud HIRATA e KERGOAT, 2007) concebe um “modelo de
conciliação” no qual cabe quase que exclusivamente às mulheres conciliar e articular vida
familiar/doméstica e vida profissional. Hoje, certos pesquisadores propõem substituir
“conciliação”, ou mesmo “articulação”, por “conflito”, “tensão”, “contradição” para
evidenciar a natureza fundamentalmente conflituosa da incumbência simultânea
de responsabilidades profissionais e familiares às mulheres (HIRATA e KERGOAT,
2007). O modelo de delegação, outro apresentado pelas autoras, trata-se de externalizar
o trabalho reprodutivo, trabalho doméstico e familiar a outras mulheres, mais
representativo para mulheres mais ricas.
Em grupos onde o papel social da mulher ainda é exclusivamente o cuidado da
casa e da educação dos filhos, frente às limitadas possibilidades de se emanciparem
economicamente, para muitas meninas a constituição de família e maternidade é uma
âncora social para se tornarem adultas. Em estudos dos significados da maternidade
em populações de baixa renda, Oliveira (2008 apud FERREIRA et al., 2012) encontra que
a família ocupa posição central, enquanto a escolaridade e o trabalho tomam posições
Gráfico 1. Proporção de jovens por categoria de atividade, sexo e faixa etária, Brasil - 2014
Tabela 3. Proporção de jovens por categoria de atividade, segundo sexo e cuidado com
afazeres domésticos, Brasil – 2014.
Tabela 7. Número de horas que dedicava normalmente por semana aos afazeres
domésticos, por sexo, para jovens nem-nem, Brasil – 2014.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados obtidos contrariam a presunção de ociosidade das pessoas que não estão
na escola ou no mercado de trabalho; em particular, as nem-nem, longe de “não fazerem
nada”, dedicam muitas horas às formas de trabalho “invisíveis”, em que 90,8% delas se
dedicam aos afazeres domésticos e 62,8% delas já tiveram filho (chegando a 79,2% para
as de 25 a 29 anos). Os resultados convergem com aqueles discutidos na seção teórica,
com relação às mais altas taxas de fecundidade entre as nem-nem e a participação
persistente das mulheres nos trabalhos de reprodução da sociedade. Conclui-se, então,
que não é possível abordar a vulnerabilidade e o risco como situações fixas para todo
o segmento nem-nem, a heterogeneidade é inerente à categoria.
O foco das políticas públicas nos grupos de jovens em maior desvantagem social e
mesmo de menor desempenho escolar deve ser assegurado, pois esses são os que
RESUMO
Este artigo trata do tema das famílias de pessoas com deficiência e das redes de
solidariedade; mais precisamente, sobre a formação e atuação das redes de apoio
parental e social no cuidado e educação da pessoa com deficiência intelectual.
Assim, buscou analisar as estratégias de cuidado elaboradas e experienciadas pelas
famílias diante da necessidade de cuidar, educar e socializar filhos(as) com deficiência
intelectual. A pesquisa de natureza qualitativa foi realizada entre os anos de 2010 e
2014 e utilizou a entrevista semiestruturada com dezesseis famílias de pessoas com
deficiência intelectual, adultas, da cidade do Salvador/Bahia/BR. Os resultados
obtidos revelaram uma realidade familiar em que o apoio provido pelas redes parental
e social é um fator determinante no processo de cuidado, educação e socialização do(a)
filho(a).
Palavras chave: Famílias. Deficiência intelectual. Rede de apoio parental.
ABSTRACT
This article deals with the topic of families of people with disabilities and networks of
solidarity; More precisely, on the formation and performance of parental and social
support networks in the care and education of people with intellectual disabilities.
Thus, it sought to analyze the strategies of care elaborated and experienced by the
families in view of the need to care for, educate and socialize children with intellectual
disabilities. The qualitative research was carried out between the years 2010 and 2014
and used the semistructured interview with sixteen families of people with intellectual
disabilities, adults, from the city of Salvador / Bahia / BR. The obtained results revealed
a familiar reality in which the support provided by the parental and social networks
is a determining factor in the process of care, education and socialization of the child.
Key words: Families. Intellectual disability. Parental support network.
INTRODUÇÃO
Este estudo recorta uma fração no tempo da experiência de cuidadores(as) de indivíduos
com deficiência intelectual: trata-se de narrativas de experiências que se desenrolam
do nascimento do(a) filho(a) com deficiência até a época da enquete (2012), quando os
mesmos encontram-se numa faixa etária entre 18 e 54 anos.
A compreensão de que o(a) filho(a) com deficiência intelectual necessita de apoios
diversos vai, ao longo da trajetória de convivência, se amparando em diferentes
modelos: inicialmente e invariavelmente, um modelo médico e, posteriormente,
um modelo social da deficiência. Todavia, estes modelos explicativos se alternam,
são descartados ou recuperados à medida que a experiência cotidiana exige uma
compreensão mais complexa.
A necessidade de refletir sobre o papel que assumem as redes de apoio parental e
social no cuidado e educação da pessoa com deficiência, mais especificamente a
deficiência intelectual, além da importância dada ao tema nos meios educacionais com
o surgimento da discussão sobre a escola inclusiva, fez nascer o interesse por este
estudo.
Sabemos que quando um casal tem um(a) filho(a) deficiente, há uma mudança
significativa na sua rotina, podendo ser, inclusive, um dos motivos para o rompimento
da relação marital. A espera do(a) filho(a) “desejado(a)”, “normal”, fisicamente
“perfeito” e que, no seu desenvolvimento, seja capaz de revelar traços identificados
com os da personalidade de um dos pais1 – que não chegou, faz levantar uma série de
questionamentos que se misturam a conteúdos de culpa, preocupação e expectativa
por parte dos pais com relação ao futuro dos(as) filhos(as). Ao longo do tempo, a partir
de uma maior interação pais-deficiência, a busca de superação aproxima-se de uma
adaptação ao “problema” cheia de desafios, conquistas, dores, frustrações: experiências
comuns no processo de dar prosseguimento e cuidar da criança deficiente.
O projeto de vida que os pais elaboram para o(a) filho(a) implica em cuidar e educar;
mas, para que isso se efetive, a convivência implica amparar-se em conhecimentos
“teóricos” e expectativas, fornecidos através de literatura especializada e de
profissionais da área.
Outras redes ainda entram em jogo, constituindo-se no estabelecimento de uma
dinâmica de convívio com outros pais de pessoas deficientes, colaborando não apenas
com o compartilhamento de experiências, mas também possibilitando a participação
numa rede “menos tensa”, uma vez que a condição semelhante dos pais os coloca na
posição de “iguais”. A “rede parental”– aquela considerada dos parentes consanguíneos
e/ou afins –, a mais próxima teoricamente, e da qual se espera uma obrigatoriedade
na relação é igualmente tomada como importante nesta trajetória de auxílio ao casal.
A experiência de cuidado de filhos(as) com deficiência na infância, da maioria dos
pais que participou desse estudo, é anterior aos anos 1980, quando as ações e políticas
voltadas para esta população ainda era muito incipiente.
Embora a experiência da deficiência independa da classe social, os diferentes segmentos
sociais gozam de condições que diferenciam as oportunidades das pessoas com
1 O termo “pais” é entendido nesse estudo como o progenitor e a progenitora da pessoa com deficiência.
2 A discussão sobre a Inclusão Escolar tem como marco a Declaração de Salamanca, resultante de um Documento elaborado na
Conferência Mundial sobre Educação Especial, em Salamanca, na Espanha, em 1994.
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INTRODUÇÃO
A bibliografia revisada aponta unanimamente que os dois contextos de
desenvolvimento responsáveis pela formação das crianças e adolescentes são a
família e a escola, e a qualidade da relação entre elas é um fator significativo para a
obtenção de resultados positivos na educação destes sujeitos, ou seja:
A família e a escola são, inquestionavelmente, dois importantes contextos de
desenvolvimento infantil. É necessário que ambos se conheçam e reconheçam,
visando a elaborar estratégias que assegurem melhores condições para
o desenvolvimento pleno e integral das crianças que a eles pertencem
(MARCONDES e SIGOLO, 2012, p. 91).
Esta relação, sobre a qual já podemos considerar ser motivo de muitos estudos,
primeiramente na Europa e Estados Unidos1, depois no Brasil, foi modificada e
intensificada pelo contexto ocidental do final do século XX. A obrigatoriedade legal do
estudo, o maior tempo em horas e anos passados na escola, e a preocupação da escola
e família para com a formação plena da criança e adolescente, não só a intelectual,
mas também para com a sua formação humana, cultural, social, afetiva e profissional
mudou e aumentou o papel de ambas (NOGUEIRA, 2006, RESENDE, 2006).
Na legislação brasileira especificamente, na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação e no Estatuto da Criança e do Adolescente, a expectativa e
responsabilização pela aproximação e intensificação da relação família-escola está
presente. Tal conteúdo perpassa desde a descrição inicial da educação escolar como
obrigatoriedade da família e do Estado; pela responsabilidade da escola em informar
os pais sobre a organização escolar e procedimentos pedagógicos; pelo dever da família
em acompanhar a frequência e rendimento do filho; até a orientação à escola em manter
instâncias de participação dos pais, como Colegiado, Conselho Escolar e elaboração do
Projeto Político Pedagógico para a efetivação de uma gestão democrática.
Crescida as expectativas sobre a família e a escola, a relação entre elas, claro, se
intensificou, mas sem dizer que esta se desenvolveu de forma harmoniosa, igualitária
e dialógica, sobretudo no Brasil, infelizmente tem ocorrido o contrário. Segundo
Oliveira e Marinho-Araújo (2010),
[...] a relação entre família e a escola tem-se caracterizado por ser um fenômeno
pouco harmonioso e satisfatório, uma vez que as expectativas de cada instituição
ou de cada ator envolvido não são atendidas e se mostram pouco favoráveis ao
crescimento e desenvolvimento dos alunos (OLIVEIRA e MARINHO-ARAÚJO,
2010, p. 107).
Por exemplo, a vivência dos pesquisadores abordados nesse trabalho na escola básica
demonstrou que a relação existente entre a família e a escola dificulta o encaminhamento
de soluções para os alunos que apresentam dificuldades de aprendizagem e
comportamentais, sendo estes, prejuízos que não se recuperam rapidamente na
trajetória escolar posterior, quando a exclusão escolar não acontece.
Esse trabalho constitui-se de uma revisão bibliográfica de dez artigos científicos,
datados entre os anos de 1998 a 2016, de pesquisadoras estrangeiras e brasileiras
1 Sobre os estudos da relação família-escola nos Estados Unidos e Europa, comentados por diferentes referências desta pesquisa,
vale destacar os estudos estadunidenses de Joyce Epstein e o artigo de Cavalcante (1998) que descreve a visão dos pesquisadores dos
Estados Unidos na década de 1980 sobre a relação família-escola. A respeito dos estudos europeus, menciono o trabalho de Pedro
Silva, Perrenoud e Montandon.
Ainda sobre estes modelos analisados e adaptados é importante ressaltar o que as autoras
Resende e da Silva (2016) dizem: com as transformações sociais das últimas décadas,
tanto na Europa e Estados Unidos, como no Brasil ocorreu um “consenso legislativo”
sobre a importância da relação família-escola e sua necessidade de intensificação.
Contudo, na Europa e Estados Unidos, junto ao “consenso legislativo”, houve um
“surto de participação” e regulamentação dos dispositivos institucionalizados de
interação entre família e escola.
Diferentemente no Brasil, o “surto de participação” e a regulamentação não se efetivou,
apesar do aumento da interação família-escola se comparada às últimas décadas2.
Segundo as autoras, a regulamentação existente ainda é muito pouco. Portanto, fica
às escolas, a responsabilidade de aproximação e criação de instâncias de participação
dos pais.
As análises efetuadas nesta pesquisa, porém, fazem-nos formular a hipóteses de
que tal regulamentação é bastante genérica. Merece especial atenção a ausência
de normatização mais específica sobre a participação por meio de associações
de pais (...). Nesse contexto, os programas e políticas voltados para a relação
família-escola se mostram, de modo geral, dispersos e descontínuos, ficando a
cargo de cada instituição escolar as iniciativas de aproximação com as famílias,
cuja efetiva participação na gestão das questões educacionais ainda constitui
um desafio (RESENDE e DA SILVA, 2016, p. 51).
2 No Brasil, o “consenso legislativo” sobre a importância da relação família-escola na formação integral do estudante está presente
no conteúdo das leis: Constituição Federal, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Planos Nacionais da Educação 2001-2010 e 2014-
2024 e no artigo 53 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que versam sobre o direito e importância das famílias e comunidade
escolar participarem na construção e acompanhamento administrativo, financeiro e pedagógico das escolas, construindo,
portanto, uma gestão democrática através dos espaços previstos como Colegiado, Conselho Escolar e Projeto Político Pedagógico.
Contudo, este consenso não tem sido regulamentado por muitos estados e municípios, haja vista a necessidade de repetição das
metas de gestão democrática na escola do Plano Nacional de Educação 2001 para o Plano Nacional de Educação instituído em
2014 (RESENDE e DA SILVA, 2016, p. 46). Como também a não existência em grande parte das escolares brasileiras de Conselhos
Escolares, apesar da existência, mesmo que sem atendimento significativo à totalidade dos municípios brasileiros do Programa
Nacional de Fortalecimento de Conselhos Escolares que tem o objetivo não de obrigar e criar, mas capacitar e fomentar a existência
de tais. Segundo as autoras, comparando aos países da Europa Central, que além do “consenso legislativo” vivenciam um “surto de
participação” e regulamentação há alguns anos, através, por exemplo, da participação de representantes de pais de estudantes em
Conselhos e Associações Federais e de outras esferas, e da Federação e Associação de Pais e Mestres regulamentados por Portugal
desde a década de 70, o Brasil muito pouco regulamentou e possibilitou efetivamente a participação de familiares na instituição
escolar.
Contudo, alguns aspectos das últimas pesquisas apontam contrariedade a essa visão
e discurso dos professores. Por exemplo, todas as pesquisas divulgadas pelas autoras
aqui analisadas têm como resultado que os pais valorizam e se importam para com a
escolarização 9 dos filhos. Eles têm grandes expectativas para com a escolarização; de
ascensão social, profissionalização e desenvolvimento integral dos filhos.
E outra, a existência de um modelo familiar ideal para os professores, composta por
filho, pai e mãe escolarizados, não garante a participação dos responsáveis e sucesso
escolar dos filhos, assim como a de um modelo não nuclear não define a não participação
e insucesso escolar. Os fatores que influenciam o sucesso e insucesso escolar são vários,
não um (NOGUEIRA, 2006, RESENDE, 2009, p. 78).
Por fim, vale ressaltar outras afirmações das pesquisadoras: a escola não investiga,
compreende e trabalha de acordo com a realidade das famílias (destaco aqui as famílias
populares) e as suas lógicas de socialização, que é diferente da socialização escolar. E
não reconhece as práticas e contribuições das famílias para a escolarização de seus filhos.
De acordo com os modelos e resultados de pesquisa sobre a relação família-escola, os pais
participam da escolarização dos filhos de diversas maneiras. Ao prover de condições
materiais e instrumentais os seus filhos, ao adaptar, mesmo que com dificuldades,
as lógicas e práticas da socialização escolar - como o exercício da autoridade, do
tempo e comunicação - que são diferentes e até mesmo antagônicas à socialização das
famílias populares, ao trocarem, emitirem e receberem comunicados, participarem das
atividades em casa e na escola, como deveres de casa, eventos e reuniões, etc.
Os diferentes trabalhos têm sido recorrentes em apontar que as famílias de
camadas populares, na maior parte das vezes, atribuem valor à escola e à
escolarização de seus filhos, mas nem sempre seguindo a mesma lógica e as
mesmas estratégias de ação das famílias de camadas médias. Elas teriam formas
específicas de presença na vida escolar da prole, em geral, mais indiretas que as
das famílias escolarizadas (VIANA, 2000, apud RESENDE, 2009, p. 80).
Nestes dois artigos que abordam a visão dos alunos sobre a relação família-escola, em
um deles, o das autoras Oliveira e Marinho-Araújo (2010), elas divulgaram o resultado
de duas pesquisas, de Cardoso (2003) e Polônia (2005).
Segundo o relatado por Oliveira e Marinho-Araújo (2010), em uma pesquisa os
jovens tem uma percepção muito negativa da relação família-escola. Afirmaram que
a convocação dos pais ao colégio ocorre somente em situações que se referem as
notas baixas e mau comportamento. E que não são consultados pela instituição para o
conteúdo e participação nessa convocação, e não são registrados elogios quando vão
bem nas notas e na participação na escola. Os pesquisadores registraram também que
em casa os discentes relataram que o diálogo tem se mostrado comprometido devido
a falta de tempo dos pais e da não liberdade em tratar de suas intimidades para com
eles (OLIVEIRA e MARINHO-ARAÚJO, 2010, p. 106).
Na pesquisa de Marcondes e Sigolo (2012), as crianças relataram que as reuniões
bimestrais são importantes para os responsáveis conhecerem a escola, e segundo
observação das autoras os alunos se sentem orgulhosos na oportunidade de apresentar
o espaço físico da escola, os colegas e profissionais aos pais. Contudo, pelo relato
dos mesmos, os estudantes não participam das reuniões, são apartados no início das
discussões. De acordo com os discentes, eles só ficam sabendo do conteúdo da reunião
quando os responsáveis transmitem as suas advertências sobre o mau comportamento
e rendimento na escola, ou quando recebem algum elogio (MARCONDES e SIGOLO,
2012, p. 95).
2.3. Visão dos pesquisadores
Ao analisarem os discursos e as práticas da família e da escola nos dois ambientes
e estes em relação, as pesquisas e argumentações das pesquisadoras têm coincidido
bastante.
O divulgado entre eles é que a relação família-escola, por diversos fatores, tem sido
desigual, conflituosa, desestimuladora, etc. Não faltam adjetivos e explicações dos
autores para infelizmente considerar que a relação, ainda hoje, apesar de alguns
avanços e experiências significativas, não tem resultado no que se espera da escola e
família: a contribuição e colaboração entre eles para o desenvolvimento integral das
crianças e adolescentes.
3 Sem entrar no mérito da discussão dos motivos de não inserção à educação infantil e evasão escolar, que são vários, deve-se
divulgar o alto número de crianças e adolescentes fora da escola no Brasil. Segundo as Notas Estatísticas do Censo Escolar 2015,
publicado pelo INEP em março deste ano, 3. 025. 868 crianças e adolescentes, de 04 a 17 anos, estão fora da escola. Muitas crianças
de quatro a cinco anos, que segundo alteração na LDB em 2013 devem obrigatoriamente estar matriculadas no sistema de ensino
brasileiro estão fora da escola, pois, infelizmente ainda não se universalizou no Brasil a oferta de vagas para a educação infantil,
meta definida pelo Plano Nacional de Educação 2014-2024 para cumprimento até o final de 2016. Contudo, o Ensino Médio no Brasil,
por exemplo, que está bem mais apto a oferecer o número de vagas necessárias, apresenta altíssimos índices de evasão escolar. Por
exemplo, só em Minas Gerais, um dos 27 estados da federação, em 2012, pela sistematização dos dados do Censo Escolar do INEP
do mesmo ano tiveram 74.384 alunos das escolas públicas estaduais evadidos (DINIZ, 2015, p. 23).
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confrontação entre lógicas socializadoras. In: Revista Brasileira de Educação, v. 11, n. 32.
Rio de Janeiro: ago./2006, p. 211-225.
GT: 20 - Comunicação,
arte e cidade
Coordenadores: Gláucia Maria Costa Trinchão e
Maria Thereza de Oliveira Azevedo
INTRODUÇÃO
A cidadania, compreendida para os fins de articulação do presente estudo como a
condição humana do sujeito, de direitos os quais conferem ao homem a condição
de participar ativamente da produção política e social do Estado. O exercício da
cidadania, como prerrogativas de direitos civis e políticos, preconizado na Carta
Magna da Constituição Federal (1988), emerge como integrante do primado da
dignidade humana, 2 princípio esculpido no dispositivo do artigo 1º, inciso III como
valor supremo e fundamental da República.
Nessa vertente, algumas formas de utilização dos espaços públicos de periferia,
notadamente na zona norte do Estado do Rio de Janeiro, nos bairros de Madureira e
Rocha Miranda, tem nos chamado especial atenção, seja pelas expressões marcadas
nas paredes e muros das ruas seja pelas celebrações, elementos que vem propugnando
novas construções culturais, situada para além do eixo da organização cultural já aceita
e reificada, substrato de uma proposta contra hegemônica na construção cultural.
A observações de tais movimentos de apropriação na periferia ganham relevo e
importância a medida que espaços antes despidos de significados, (o não lugar) ganham
sentidos e representação através dos movimentos neles albergados, concatenando a
simbiose das zonas norte e sul, contribuindo para a integração urbana entre regiões
até então dissociadas entre si.
Nesse sentido, as reuniões de pessoas e celebrações abertas, traz consigo o processo
de migração de pessoas de zonas privilegiadas da cidade para os festejos da periferia,
consolidando uma matriz intercultural, a qual potencializa a rua como uma rede de
interculturalidades.
As expressões desse processo de intercâmbio urbano, são vivenciadas pela música,
dança, na escrita das paredes, nas comidas de rua, articulações as quais, além de
nos servir como recorte de análise, tem o condão de associarem elementos culturais
hegemonicamente reconhecidos, ao encontro de uma proposta cultural da periferia que
emerge, possibilitando novos olhares ao exercício da cidadania através da apropriação
dos espaços urbanos mediado pela produção da cultura periférica.
Nesse contexto, a proposta do presente trabalho segue, analisando as ruas de dois
bairros da periferia do Rio de Janeiro: Madureira e Rocha Miranda. A observação dos
movimentos e manifestações presentes nesses lugares, que consubstancia a matriz
intercultural, mediando o diálogo entre a periferia e a cidade.
A metodologia utilizada para a elaboração da presente proposta de estudo, consiste na
meta observação, que não é mais “participante”, da ação, mas tem na observação de
si próprio como sujeito que observa o contexto, com abordagem etnográfica que olha
obliquamente para todos os arranjos coletivos, distantes ou próximos (Geertz, 2015).
Assim sendo, na empiria social pudemos compreender o processo pendular de
moradores da zona sul para a zona norte, na busca do espaço urbano celebrante: a rua,
o que nos permitiu a leitura e compreensão das expressões e manifestações de ambos
os bairros na construção de uma matriz cultural própria. A apropriação dos espaços
públicos para celebrações permeia o exercício da cidadania através do direito à própria
cidade, fundado ainda no princípio the pursuit of happyness, ou a busca pelo direito a
felicidade1 nos encontros de rua.
O trabalho traz a proposta de compreensão basicamente de três ideias as quais
embasam a estruturação do texto: i) a cidadania exercida pela apropriação dos
espaços da cidade; ii) o movimento pendular entre as zonas da cidade concentrando
pessoas nas periferias, permeando a produção de uma cultura arrimada na matriz
intercultural; iii) nas concepções diversas da rua como espaço de extensão da vida
e celebração, consolidando lugares polifônicos urbanos, tecido e produzido no
pluriculturalismo desses encontros, consolidando essas as referências centrais de
desenvolvimento da pesquisa.
Nessa ordem, estruturamos o trabalho em 2 partes: na primeira, buscamos na
historicidade das Constituições brasileiras, a construção da cidadania; na segunda
parte, tratamossobre a apropriação dos espaços periféricos, sendo necessário dividir
em 3 seções: a) as epigramas, da favela as ruas; b) os ritmos musicais e as ruas de
Madureira; c) imagéticas polifônicas, abarcando aqui as imagens dos movimentos
observados. Assim iniciamos a construção de nosso trabalho, na observação das formas
de apropriação urbana.
1. CIDADANIA AO LONGO DAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
Ao longo dos anos, o cidadão vem lutando, a fim de garantir seus direitos sociais,
civis e políticos. Percorreu-se uma longa trajetória, seis Constituições (1824, 1891, 1934,
1937, 1946, 1960) até a Constituição de 1988, que foi conhecida como “Constituição
Cidadã”, uma vez que trouxe muitas conquistas para a sociedade civil. A consolidação
da cidadania ao longo dessas Constituições, emergem direitos atrelados a seu exercício.
Nessa vertente que, delineamentos a reflexão acerca da apropriação dos espaços
periféricos em expressões e celebrações populares como exercício da cidadania,
consubstanciado no direito à cidade (LEFEBVRE, 2015).
A Constituição de 1824 foi elaborada durante o Brasil Império e imposta aos cidadãos
pelo Imperador, quem centralizava o poder. Com a proclamação da República, houve
a necessidade de organizar uma nova Carta Magna (1891) para atender ao novo regime
instaurado, de forma que, mesmo limitado, os indivíduos do gênero masculino, maior
de 21 anos e alfabetizado podiam exercer sua cidadania através do voto não-secreto.
Em 1934, os cidadãos tiveram a elaboração da terceira Constituição, a fim de atender
os anseios da época, como a crise de 1929 e movimentos sociais. Algumas mudanças
aconteceram para os cidadãos, como melhores condições de trabalho, educação e
saúde. No entanto, o poder estava nas mãos de poucos. Diante de ideias democráticas,
igualdade e liberdade ao povo, foi organizada a Constituição de 1946, no entanto, com
o golpe militar na década de 1960, finda a vigência dela e o Brasil retornam para o
autoritarismo, através dos militares.
Para institucionalizar esse novo regime, é estabelecida a Constituição de 1967, que
restringiu os direitos dos cidadãos. Com o término do regime militar na década de
1980, a redemocratização inicia-se através da sétima Constituição, promulgada em 5
1 Precedentes: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, STF- ADPF 132, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em
5/5/2011; STF – RE 898060 Fixada tese 22.09.2016. fonte: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp
de outubro de 1988, que destacou-se pela atenção voltada para o social, eliminando os
resquícios do autoritarismo da ditadura militar e trazendo novos ares para os cidadãos,
fruto de sua trajetória histórica e de conquista de direitos.
O Brasil passou por seis Constituições (1824, período imperial; 1891, 1934, 1937, 1946,
1967, durante o período republicano), além de algumas emendas, até a atual, a de
1988, conhecida como mais democrática e liberal do país, sendo apreciada como
Constituição Cidadã. Lemos (2012) explica que os direitos sociais e civis, indispensáveis
às constituições, são importantes para que o Estado funcione e se organize, objetivando
evitar ações abusivas ou omissas por parte do Estado contra a dignidade humana.
A cidade do Rio de Janeiro no início do século XX assumia através de seus
administradores o compromisso de fazer merecer o título de cidade-capital da
nova ordem, identificada com o progresso. Para tanto deveria representar um
espaço adequado ao exercício das funções públicas da cidade-capital. Justifica-
se assim, aos olhos dos contemporâneos, a implantação de uma reforma e a
adequação racional da cidade para a sua transformação. (LIMA, 2010, p. 96)
De acordo com a autora, a vida política nacional era coordenada a partir da cidade-
capital, e até a década de 1920 comandou o centro financeiro do país, tanto interno como
externamente. Além disso, também era a capital industrial, tendo como excelência
nacional as fábricas de tecido (Fábrica Bangu – zona oeste e Fábrica Corcovado –
Lagoa), e cultural, que seguia o padrão parisiense e espelhava “cidade luz” para todo
o território brasileiro.
Nesse período político, a paisagem passava por modificações, que envolvia acabar
com a falta de higiene e tornar as ruas mais largas e transformar as ruelas também em
avenidas. Para atingir aos objetivos, foi necessário demolições de prédios, providenciar
saneamento básico, construir jardins, arborizar e erguer estátuas para promover o
embelezamento das novas ruas, pois a cidade-capital deveria ser cidade-expressão
para todo o país, conforme Lima (2010).
Quanto aos cidadãos, estes podiam circular pela cidade, apreciar e sentir os efeitos da
reforma, mesmo que não conseguissem “ler a cidade, e exercer a cidadania”. A reforma
propiciou a exclusão social, uma vez que deslocou pessoas do centro da cidade para o
subúrbio, a fim de abrir espaços, no entanto, não foram excluídos do setor urbano, já
que não retornaram para a área rural (LIMA, 2010, p. 86).
Cidadãos pela nova Constituição, segundo Carvalho (2001), eram as mesmas pessoas
que viviam sob o regime colonial, e como a maior parte delas não eram eleitores, de
forma que não sabiam sobre governo representativo. Na Constituição de 1891, conforme
Villas (2011), o voto era universal, concedido a todos os brasileiros maiores de 21 anos,
porém havia exclusões, tais como: os analfabetos, que eram a maioria dos cidadãos;
os mendigos; praças de pré; e religiosos monásticos, de companhias, congregações ou
comunidades, que estavam sujeitos a voto de obediência/regra/estatuto, envolvendo
a renúncia da liberdade.
Lenza (2012) comenta que a primeira eleição, apesar da previsão e conquista de
eleições diretas, foi indireta, pelo Congresso nacional, que elegeu Marechal Deodoro
da Fonseca e o Vice Marechal Floriano Peixoto para o, então, Estados Unidos do Brasil,
como passara a ser chamado o nosso país.
“A Constituição de 1891, na prática, ficou suspensa, pois poderia ser restringida por
simples decretos, leis ou atos do governo ou de seus delegados (art. 4º)” (VILLAS,
2011, p. 29). A chamada República Velha tem fim com a Revolução de 1930, levando
Getúlio Vargas ao poder, como Governo Provisório (Decreto n. 19. 398 de 11.11.1930)
até a elaboração da Constituição de 1934, promulgada em 16 de julho no mesmo ano,
conforme Lenza (2012).
A Constituição de 1934 sofreu influência do contexto social, político e econômico da
época, como a crise de 1929 e movimentos sociais. Foi uma das Constituições de curta
duração, vigorando até 1937 e dentre os direitos adquiridos pelos cidadãos, encontram-
se inseridos o voto feminino e o voto secreto, conforme explica Lenza (2012). Ainda
na Constituição de 1934, foi concedido ao Poder Executivo amplo poder, imposição
da Censura (artigo 174, parágrafo 5º), reconhecimento dos sindicatos, benefícios a
trabalhadores, como salário mínimo, limite diário da jornada de trabalho e férias, e
também a proibição do trabalho a menores de 14 anos, no entanto, na prática, essas
medidas atendiam ao mundo urbano, de acordo com Villa (2011).
Desta forma que, com a promulgação da Constituição Federal (1934), foi possível
finalmente a tutela de direitos trabalhistas, tendo sido a primeira constituição
brasileira a conceber direitos humanos, defendendo e regulando a liberdade e o
trabalho (LEMOS, 2012, p. 24).
Getúlio Vargas foi eleito para governar de 1934 a 1938, no entanto, conforme declara
Lenza (2012), em 30 de setembro de 1937, os jornais noticiaram que Estado-Maior do
Exército descobrira um plano comunista para tomar o poder, Plano Cohen, o que
motivou Getúlio Vargas, em 10 de novembro do mesmo ano, dar o golpe ditatorial
contra o comunismo, que estava na iminência de afligir o País. Junto ao golpe, houve
também a imposição de uma nova Constituição.
A Constituição de 1937 inicia explicando que a finalidade era atender as aspirações do
povo, quanto à paz política e social, concentrando o poder nas mãos do Presidente da
República. Como características dessa Constituição, podemos citar: Adoção da pena de
morte, que antes era permitida em caso de guerra com país estrangeiro; total censura, a
fim de promover a paz, ordem e segurança; defesa aos direitos trabalhistas; liberdade
para associação sindical, desde que reconhecido pelo estado; assistência financeira
(similar à bolsa-família) às famílias numerosas; dentre outros (VILLA, 2011).
Lenza (2012), preceitua que, com a contradição estabelecida no governo de Vargas,
apoiar os Aliados a enfrentarem a ditadura de Mussolini e Hitler e manter o modelo
fascista dentro do Brasil (Manifesto dos Mineiros), provocou uma crise política,
O autor explica que durante o regime militar, o país foi governado por: General Emílio
Garrastazu Médici (1969 – 1974), cujo governo foi considerado mais duro (Anos de
chumbo), porém a economia crescia, época conhecida como do Milagre econômico;
General Ernesto Geisel (1974 – 1979), que, a passos lentos, possibilitou o início da volta
da democracia; e General João Baptista Figueiredo (1979 – 1985), que promoveu a
aceleração da redemocratização.
Em 1983, o Deputado Federal Dante de Oliveira propôs, através da PEC n. 5/83, a
eleição direta para Presidente e Vice-Presidente da República, após 20 anos de ditadura.
2 Seguido pelos presidentes: Getúlio Dorneles Vargas – “Getúlio Vargas” (- 1951 – 1954); João Café Filho – “ Café Filho” (1954 –
1955); e Juscelino Kubitschek de Oliveira - “Juscelino Kubitschek – JK” (1956 – 1961).
Com o apoio popular, surge o movimento conhecido como “Diretas Já”, no entanto,
em 1984, a PEC Dante de Oliveira foi rejeitada. Diante da posição da sociedade civil,
em 1985, pelo voto indireto, foi eleito um governante civil, Tancredo Neves, o que
caracteriza o fim do regime militar (LENZA, 2012).
Tancredo, que garantiu constituir “Nova República” democrática e social, antes de
assumir o governo adoeceu e faleceu, assumindo a presidência o vice José Sarney.
Na medida em que Tancredo Neves sempre cogitou da elaboração de uma
“Comissão de Notáveis” para elaborar um anteprojeto de Constituição, José
Sarney, o novo Presidente, considerando o compromisso assumido pela
Aliança Democrática perante a Nação, instituiu, pelo Decreto n. 91.450/1985,
junto à Presidência da República, uma Comissão Provisória de Estudos
Constitucionais, composta de 50 membros de livre escolha do Chefe do
Executivo e com o objetivo de desenvolver pesquisas e estudos fundamentais,
no interesse da Nação brasileira, para futura colaboração com os trabalhos da
Assembleia Nacional Constituinte (LENZA, 2012).
Rocha Miranda (BRM), sendo este nosso lócus de estudo, o que tem colimado para a
compreensão das múltiplas formas de concepção do aperfeiçoamento humano, e da
própria concepção existencial revelada pelos moradores, partindo do arcabouço de
suas experiências cotidianas.
Nesse sentido, os muros da favela BRM revelam-se como pergaminhos de concreto
que desvelam a transitoriedade da existência para alguns jovens, e a longevidade
para outros, herdeiros do legado da escrita: para àqueles que ficam herdam o ofício,
deixando expressa a existência daqueles que se foram antes invisíveis, deixando
nas marcas dos muros traços de uma existência perene. As marcas das epigramas
configuram os devires imagéticos, delineados na e pela favela.
Assim, as formas de ocupação do espaço estarão sempre delimitadas pelos interesses
colocados nos embates sociais entre o Estado e as questões de ocupação territorial,
na dicção de Davis (2015, p. 105) inferência constante, e sob esse aspecto, se o 12
Estado intervém constantemente sob promessas de progresso, e de justiça social aos
desfavorecidos, realinhando as fronteiras espaciais da favela, de certa forma tais ações
tem como contra partida a formatação de apropriações do espaço, numa perspectiva
contra hegemônica.
Nessa organização, as produções do espaço da favela, encontram eco nos espaços
urbanos de periferia, estreitando os laços nas epigramas entre a favela e o espaço
urbano, consolidando uma forma de cultura crítica, que se produz nos espaços mais
pobres, encontrando no espaço dos muros das cidades, a rota da visibilidade dos
invisíveis.
A apropriação do espaço da favela e da periferia através de seus muros vem
demonstrando construções comunicativas, a mensagem se apresenta como produto e
integrante do próprio meio, ou seja, os confrontos, a vida e a morte presenciada pelo
espaço são marcadas nele, os muros apresentam-se como possibilidades, pergaminhos
forjados no concreto que fornecem estatísticas nas marcas do cotidiano nele gravado.
2.2 O Subúrbio, ritmos musicais e as ruas de Madureira
Para Martins (2015), os suburbanos, especificamente, os de menores poderes aquisitivos
independentes de morar no asfalto em moradias regulamentadas, são massa de
representação que se contrapõe estruturalmente aos sistemas das favelas, encontrando
convergência na utilização do espaço mediada pela música.
Se nas favelas ritmos como funk e pagode conduzem as celebrações nas ruas. O
prazer de ouvir a musica ou estilo musical de preferência, independe do lugar:
privado, ou associações, clubes, bares e agremiações, festas em decorrências de datas
comemorativas, feriado, aniversário, basta reunir grupos amantes do estilo, seja no
quintal, terraço, na garagem ou em uma praça com o som do carro ligado, onde os
festejos acontecem.
Essas características remontam desde Samba, jazz e black music. Nessa ambiência
muitas residências suburbanas se tornaram em ponto de encontro, a casa foi e ainda é
no subúrbio um espaço de fortes laços onde as pessoas se reúnem para ouvir diversos
estilos musicais.
O charme no contexto carioca é um herdeiro direto do Black Soul Rio, que tinha como
foco ações políticas que envolviam certos grupos sociais cuja forma de organização é
de protesto contra o sistema que subjuga grupos em detrimento de outros, assim como
o estilo estadunidense, que através da música soul denunciou as formas desiguais de
inserção social.
E nesta lógica nasce o charme nos subúrbios, cariocas como forma de resistência,
especificamente negra. A primeira geração de “charmeiros” entendem que ajudaram a
construir esse movimento cultural como continuação do movimento Black Rio .
Foram jovens que viram nascer um movimento que poderia ser politico na
medida em que buscou, em determinado momento, retomar a questão da
identidade negra, além da valorização da auto-estima, ou até mesmo para
alguns um movimento de cultura e de lazer sem maiores pretensões senão a
não ser a possibilidade de diversão e extravasamento do trabalho semanal.
Mesmo nesse caso resgata-se a sua importância, pois organiza e torna-se espaço
de elaboração de identidades, de estar junto a seus pares e ser reconhecido
no grupo. Configura-se também, em espaço educativo e de conscientização
geracional. (Martins, 2015, p. 35).
Os espaços de bailes nas ruas, como o Charme de Madureira, são menos isso do que
a possibilidade de não fazer frente a opressão, mas de transformá-los em lugares de
encontro despretensioso, para ouvir musica dançar e restabelecer ou reafirmar laços
de sociabilidades.
Declara Durán (2010) que o viaduto do Charme em Madureira, foi formado em 1990,
e nesse espaço, ou seja em baixo do Viaduto na Rua Carvalho de Souza, tem inicio o
Baile Charme do Viaduto de Madureira, esse baile especificamente nasceu do samba.
Foi seguindo o exemplo de três amigos que formaram um bloco carnavalesco embaixo
do viaduto, que um grupo de camelôs começou também a promover seus bailes,
chamados na época de Projeto Charme na Rua. Já no início, contaram com um apoio
de peso: o renomado DJ Malboro emprestou os equipamentos. Hoje o baile já conta
com a presença da terceira geração de charmeiros do viaduto, netos dos primeiros
frequentadores do “Dutão” de Madureira, o viaduto Negrão de Lima.
A galera do charme é festeira, pacífica e todo mundo que chega aqui é bem
recebido.” Foi também para levar o charme do Viaduto para além da Zona Norte
que, recentemente, o baile foi parar no encerramento do festival Back2Black,
ocupando a desativada gare da Estação Leopoldina com muito R&B e Hip Hop,
sempre repletos de passos marcados ( Durán 2010, p.10).
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Nessa perspectiva, como fundamentação teórica aportamos às noções de cidadania
e apropriação dos espaços urbanos no direito a cidade (Lefebvre, 2015), buscando
observar o movimento pendular (Augé, 2012), onde a rua passa a ser o lugar
antropológico de produção cultural, a periferia passa do não lugar ao lugar de (re)
encontro, de significação, analisando, nessa dinâmica, na compreensão de como a rua
se consolida como “lugar” que integra diversos signos (Bakhtin, 2013), representando
um espaço de produção pluricultural desvelando contornos a identidade cultural
urbana (Certeau, 2014).
3. RESULTADOS PARCIAIS
A pesquisa abrangeu os bairros de Rocha Miranda e Madureira, situados na periferia,
da zona norte do Estado do Rio de Janeiro, mantendo como duração de tempo de
observação 16 (dezesseis) meses, nas principais ruas de ambos os bairros.
A identificação das apropriações da cidade, no período da pesquisa, demonstra-se
em duas ordens: a primeira consiste nas escritas emocionais nos muros dos bairros
de Madureira e Rocha Miranda, marcando a principal rua de ambos os bairros. A
Estrada do Portela e Rua dos Diamantes ruas “passagem principal”, o que demonstra
um movimento de comunicação e escrita marginal que irradia da favela para o bairro,
externando homenagens aos moradores da favela que sucumbiram nos confrontos
violentos, revelando um registro oculto, visibilizando nos muros do bairro, a realidade
invisível da favela.
É possível ainda, encontrarmos nessas ruas mensagens emocionais, as quais, em
analogia, equiparam às inscrições gravadas em pedras e placas da antiguidade. A rua
se torna o “lugar” de inscrição primário, reverberado nas epigramas da favela, as quais
migram para regiões mais visíveis do bairro. Nesse sentido, os escritos manifestam-se
como resistência as mazelas sociais do próprio espaço.
3 http://blogtisom.blogspot.com.br/2012/03/um-viaduto-cheio-de-charme.html
REFERÊNCIAS
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Tradução Maria Lucia Pereira. 9ª edição. São Paulo: Papirus.
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Janeiro: Civilização Brasileira.
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LIMA, Jacqueline de Cássia Pinheiro (2010) As transformações urbanas e suas implicações
na promoção urbana. In. ROCHA, José Geraldo; NOVIKOFF, Cristina (orgs). Desafio
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VILLA, Marco Antônio (2011). História das Constituições Brasileiras: 200 anos contra o
arbítrio. Rio de Janeiro: Leya Editor.
INTRODUÇÃO
1. APRESENTAÇÃO
Este texto apresenta reflexões sobre as primeiras aproximações com os sujeitos de
pesquisa da dissertação “Feminismo negro em Cuiabá: práticas de comunicação e
aspectos da vinculação social”, cujo objetivo é descrever e analisar os modos de atuação
de um grupo de ativistas negras da cidade de Cuiabá (MT) a partir dos conceitos
comunicação como vinculação (Sodré) e identidade como rizoma (Glissant; Deleuze e
Guattari).
A aproximação ocorreu por meio da participação em três eventos realizados por e
para mulheres negras na cidade: 3º Encontro de Crespas(os) e Cacheadas(os) de
Cuiabá e Região, “Turbantaço na UFMT” e “Roda de conversas A mulher negra e
suas diversidades”, que têm como pano de fundo a discussão sobre padrões estéticos
e estereótipos raciais. Por meio de abordagem interdisciplinar, pensada originalmente
a partir das questões próprias da comunicação e da cultura, salientamos a dimensão
comunicacional das atividades observadas, tendo como base a noção de evento como
prática de vinculação social, abordando o grupo de mulheres enquanto comunidade e
refletindo sobre o que vincula as mulheres. O modelo descritivo baseado no conceito
de rizoma (DELEUZE e GUATTARI, 1995) subsidiará a reflexão sobre o grupo e sobre
a produção de subjetividades.
Para o presente estudo, foi adotada abordagem qualitativa e, como metodologia, a
pesquisa participante, “(...) baseada na interação ativa entre pesquisador e grupo
pesquisado e, principalmente, na conjugação da investigação com os processos mais
amplos de ação social” (PERUZZO, 2003, p. 9). Nesta perspectiva, o presente trabalho
incluirá a experiência de participação da pesquisadora como integrante do Instituto
de Mulheres Negras de Mato Grosso (IMUNE), entrevistas com ativistas do IMUNE e
parceiras do grupo, observação e participação em atividades como reuniões e eventos.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1. Abordagens da comunicação e da identidade
A abordagem proposta por SODRÉ (2001, p. 2) a respeito da ciência da comunicação
parte do pressuposto de que “(...) o objeto da comunicação é a vinculação social. É como
se dá o vínculo, a atração social, como [...] as pessoas se mantêm unidas (...)”. Com isso,
contrapõe-se à noção de comunicação como transmissão de mensagens entre emissor e
receptor, que passou a ser hegemônica no pensamento social a partir do século XX, em
um cenário de expansão das técnicas de transmissão de informação e da publicidade,
solidificando-se com o desenvolvimento dos dispositivos de mídia. Neste contexto,
“(...) o foco na interação, que é uma instância inerente à partilha comunicacional,
terminou sobrelevando o significado de transmissão de mensagens” (SODRÉ, 2014, p.
10), alteração subordinada aos interesses do capitalismo mundial.
A noção de comunicação como vinculação compreende a comunicação como
constituinte da própria existência e extensiva a toda ação humana, relacionando-se ao
comum, àquilo que é partilhado pela comunidade, concepções que estão nas origens
dos termos communicatio e communitas.
...é impossível não viver em comunidade (assim como é impossível não se
comunicar), ainda que disso não se saiba ou não se queira saber, na ilusória
suposição de que a vinculação comunitária foi relegada ao passado pelas formas
societárias emergentes na Modernidade, a exemplo da forma republicana
que, pretendendo-se uma e indivisa, tenta homogeneizar a diversidade das
atividades vitais (SODRÉ, 2014, p. 213).
A discussão era fomentada por lideranças como as professoras Lélia González, uma
das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), em São Paulo. Schumaher
(2007) e Roland (2000) apontam o surgimento de 39 organizações de mulheres negras
no Brasil entre os anos de 1978 e 2005: oito no Rio de Janeiro, onze em São Paulo, três
no Rio Grande do Sul, duas na Bahia, em Goiás e no Espírito Santo; uma no Distrito
Federal e uma em cada um dos seguintes estados: Maranhão, Minas Gerais, Piauí,
Mato Grosso do Sul, Amapá, Paraíba, Ceará, Sergipe e Pará.
A expansão da representatividade das mulheres negras em espaços institucionais,
alguns deles voltados às questões raciais, ao longo dos anos 1980, 1990 e 2000, está entre
os fatores apontados como causa e consequência do fortalecimento do movimento
e da agenda de políticas públicas efetivas (SCHUMAHER, 2007; DAMASCO et alii,
2012; ROLAND, 2000). O início do século XXI é marcado por sua acentuada presença
em instâncias decisórias das administrações, em órgãos como a Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e entidades como a Confederação
Nacional das Trabalhadoras Domésticas, organizações de lideranças quilombolas e
outros espaços, bem como pela criação de redes nacionais voltadas à temática, como a
Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB).
Entre as diversas ações citadas pelos autores no histórico do movimento de mulheres
negras no Brasil, destacam-se o I Encontro Nacional de Mulheres Negras, no Rio de
Janeiro, em 1988 e a Campanha Nacional Contra a Esterilização de Mulheres Negras,
realizada em âmbito nacional. Citando esta campanha contra esterilização de mulheres
negras, Damasco et alii (2012, p. 133) situam a discussão sobre saúde reprodutiva como
a “mola propulsora” da militância feminina negra no Brasil e estabelecem relação entre
ativismo e produção da subjetividade ao afirmar que os embates das feministas negras
em prol da saúde da mulher contribuíram para “a constituição de uma identidade
racial entre as ativistas”, atuando como “mola propulsora” para o feminismo negro no
Brasil entre os anos de 1975 e 1996.
Analisando este histórico, Roland (2000, p. 251) aponta como desafios para a organização
das mulheres negras, as diferenças ideológicas internas sobre o papel do movimento,
a tendência a reduzir a questão a mero tema “específico” na pauta dos movimentos
negro e feminista, a dificuldade de diálogo entre as diferentes tendências e entidades,
a necessidade de afirmação de lideranças e as interferências externas ao movimento.
Na atualidade, o contexto de desmonte das estruturas e políticas públicas voltadas a
esta parcela da população, sob o governo de Michel Temer, impõe novos desafios às
organizações feministas negras. Por meio da Medida Provisória nº 726, de 12 de maio
de 2016, o governo estabeleceu a nova organização da Presidência da República e dos
Ministérios, extinguindo o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude
e dos Direitos Humanos e determinando a absorção da Seppir (Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e do CNPIR (Conselho Nacional de
Promoção da Igualdade Racial) pelo recém-criado Ministério da Justiça e da Cidadania.
O ano de 2016 situa o feminismo negro num momento histórico de crise política no
Brasil, demandando pensar as questões tradicionais e as emergentes, em especial em
localidades como a cidade de Cuiabá, capital de Mato Grosso, historicamente marcada
pela inexistência de políticas neste segmento, conforme informações do Conselho
Estadual de Promoção da Igualdade Racial de Mato Grosso. Neste sentido é que o
feminismo negro aponta para reivindicações que emergem e se manifestam no âmbito
da sociedade civil.
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
3.1. O Encontro de Cacheadas
O primeiro contato da pesquisadora com grupos organizados em torno do feminismo
negro foi com o coletivo chamado de Família Black. O contato ocorreu em maio de 2016,
durante participação em uma sessão de fotos realizada por quatro integrantes do coletivo,
no campus da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), ação que fazia parte de
uma campanha que visava dar visibilidade e promover a afirmação do cabelo crespo,
intitulada “I love my hair”. A interação com o coletivo realizou-se por meio de doação de
um exemplar do livro “Cabelo Ruim?”, de autoria de Neusa Baptista, e sua participação
na produção das fotografias, com posterior compartilhamento pelo Facebook.
De acordo com uma das líderes, a estudante Ihoranna Rafaely Alencastro Nascimento,
de 18 anos, a inciativa da formação do grupo e da realização das ações foi uma resposta
à grande quantidade de depoimentos recebidos por ela de outras jovens, com relatos
de rejeição ao cabelo crespo. No grupo de whatsapp sobre 3º Encontro de Crespas(os)
e Cacheadas(os) de Cuiabá e Região encontra-se um grande volume de fotos nas quais
participantes mostram o aspecto dos cabelos após experiências de hidratação caseira e
o compartilhamento de dicas sobre produtos capilares.
O discurso produzido pelo coletivo passou a ser o de que cabelo naturalmente crespo e
cacheado deve ser associado a saúde e a autenticidade. O uso de tratamentos químicos
para alisamento passou a ser discursivamente criticado e combatido no âmbito do
coletivo por significar negação dos traços étnico-raciais. A coordenação do grupo é feita
por Ihoanna, pelos estudantes Annieli Suane, de 19 anos, Josimar Lima, de 22, e pelo
programador Kenny Roger. Em 2016, aconteceram encontros em abril e julho, estando o
4º encontro agendado para o mês de dezembro, com novos patrocinadores e atividades.
O 3º Encontro, ocorrido numa tarde de domingo, 10 de julho de 2016, contou com a
presença de cerca de cem pessoas. A divulgação do evento começou em maio, por
meio do Facebook, com o slogan “A festa é das cacheadas, mas as lisas também estão
convidadas”. Realizado no campus da UFMT, em Cuiabá, a programação do evento
teve desfile de cabelos, do qual participaram mulheres e homens do coletivo e do
público presente; apresentação de números de música gospel e dança de rua com
artistas locais voluntários, que compõem o círculo de amizade dos organizadores,
sorteio de brindes, exposição do livro “Cabelo Ruim?”, venda de artesanato, camisetas
temáticas, faixas, turbantes e lanches.
3.2. O “Turbantaço”
O “Turbantaço na UFMT” foi realizado no dia 28 de setembro de 2016 por estudantes
negros, como protesto contra um episódio relatado por uma estudante que se sentiu
constrangida por docente por estar utilizando turbante em sala de aula durante uma
apresentação de trabalho científico, sob o argumento, de modo resumido, de que a
vestimenta chamaria muito a atenção, destoando das finalidades mais prementes do
ambiente acadêmico.
A UFMT constitui-se de um corpo docente, discente e técnico oriundo de diversas
regiões do país, de distintas matrizes culturais e diferentes visões de mundo, o que
internamente faz evidenciar nuances de conflitos étnico-raciais muitas vezes negados
através de um mecanismo por vezes sutil e dissimulado de uma tensão aparentemente
menor e não criminalizada.
Trata-se de um bairrismo velado em certos regionalismos que diferenciam geográfica
e culturalmente o território brasileiro em regiões mais e menos desenvolvidas, o
que induz a estratificações nas quais se produz a distinção “moderno x tradicional”,
“civilizado x bárbaro”, “científico x mítico”, “o externo desenvolvido x o local atrasado”,
“o imigrante trabalhador x o habitante local indolente”.
O ambiente científico carrega o discurso modernizador, no qual os costumes
tradicionais também se tornam secundários em nome de um imaginário que passa
necessariamente pelo uso de equipamentos e vestuários considerados apropriados em
ambientes como hospitais e laboratórios. É nesse ambiente, que busca instituir também
uma identidade visual profissional, cujo símbolo maior talvez seja o jaleco, que outras
formas de visualidade tornam-se inconvenientes perante a discursividade também
visual do mundo científico, em especial na área da saúde.
O ambiente universitário, no caso, apresenta-se como lugar em que o estudante
busca emancipação através da formação científica, mas devendo aderir ao discurso
modernizador da ciência que não admite dubiedade visual e funcional no espaço do
trabalho. Jaleco, no caso, significa funcionalidade e vestimenta apropriada. Turbante,
no ambiente das ciências da saúde, é considerado disfuncional e problematizador, em
uma situação inesperada.
Visões de mundo evidenciam distintas leituras que fazem emergir conflitos,
provavelmente por alheamento do mundo científico na área de saúde ao que não lhe
compete diretamente e, simultaneamente, por imersão discente no campo profissional
cursado que se apresenta como mundo ainda fazendo sentido. Numa instituição
universitária, o mundo científico apresenta-se em busca de legitimação social em
interação com discentes igualmente em busca de afirmação identitária.
Após o episódio do turbante, que de mal-entendido intercultural ganhou repercussão
para além da sala de aula, outros alunos organizaram o que chamaram de “Turbantaço”,
divulgado via Facebook por estudantes ligados ao Coletivo Negro Universitário,
ao grupo LGBT Manicongo e à Frente Feminista da UFMT. Os grupos organizados
convocavam simpatizantes a permanecer de turbante durante aquele dia e estar
presentes no protesto, realizado no Restaurante Universitário. No primeiro horário,
cerca de 30 homens e mulheres marcharam até o restaurante utilizando turbantes
coloridos, entoando os versos “Povo negro unido é povo negro forte, que não teme
a luta, que não teme a morte” e “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, mexeu com povo negro,
assanhou o quilombo inteiro”, e repetindo palavras de ordem como “Professores
racistas não passarão”.
No RU, onde circulam centenas de estudantes diariamente, o protesto integrou-
se a uma roda organizada pelo grupo de capoeira Quilombo Angola, formado por
alunos e ex-alunos, que permaneceu no local por cerca de três horas. No evento,
um dos principais atos foi a prática de arrumação dos turbantes, realizado de modo
colaborativo, com participantes emprestando tecidos e a demonstração da técnica de
amarração dos tecidos por duas estudantes. A participação da pesquisadora incluiu,
além da presença no ato, o compartilhamento das fotos e vídeos postados no Facebook
pelos participantes.
Por ter sido realizada em meio a atividades de estudo e refeição no campus universitário,
integrando-se às ações diárias dos estudantes negros e estudantes de modo geral, a
ação contribuiu para a reflexão sobre a relação entre ativismo e cotidiano, tendo o
ambiente científico da UFMT como questão a ser pensada na medida em se que coloca
em relação dois discursos que buscam emergir e se consolidar: o discurso científico e
e do Grupo LGBT Livremente, entre eles a transgênero Luisa Nayara Soares Lamar
(nome social), de 18 anos. Durante a discussão, o sentido de ser negra parece ter sido
tomado como reconhecimento de uma singularidade que tem como marca a exclusão.
...ser mulher negra é [...] todo dia um ato revolucionário, sair na rua com nosso
cabelo, assumir o nosso crespo, nossa identidade, mesmo que as pessoas acham
que a gente tenha que ser forte [...] a gente tenta aguentar, mas, na verdade, é
uma grande luta todo dia (participante da roda de conversa/01.05.16)
Nota-se que o grupo se caracteriza pela diversidade em sua composição, reunindo, por
exemplo, pessoas de diferentes perfis profissionais e religiosos; em suas estratégias de
ação, que incluem marchas, almoços, palestras, moções de repúdio, moções orientações
a vítimas de racismo etc., e locais de circulação de suas atividades: os bairros, a UFMT,
as cidades do interior. Estas características nos indicam seu perfil rizomático. Outra
característica é a abertura do grupo a pautas distintas das suas, como a LGBT, o que
possibilita novos espaços de vinculação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O feminismo negro é caracterizado pela criação de espaços e modos de atuação
específicos, que têm relação com as condições concretas e simbólicas de vida das
ativistas. Os eventos políticos e culturais promovidos por elas carregam a marca
destas condições e, portanto, compõem a peculiaridade do feminismo negro cuiabano,
reforçando o encontro e o compartilhamento de suas pautas.
Temos como hipóteses que o feminismo negro se dá em duas frentes, distintas, mas
suplementares. Há condições em que se considera necessário o enfrentamento ao
preconceito racial realizado nas ações do coletivo, o que se atualiza nas atividades
cotidianas e nos espaços de circulação. Em outras condições, o feminismo negro se
atualiza de modo não necessariamente pelo enfrentamento, mas pela simples afirmação
das características e qualidades ligadas direta ou indiretamente à mulher negra.
As limitações de tempo e de recursos das mulheres para a dedicação ao coletivo
tornam tênues as fronteiras entre o espaço privado de cada indivíduo e a militância
no âmbito coletivo. Considera-se também que o ativismo perpassa o cotidiano ao se
pensar que ele tem relação direta com a produção das subjetividades ou identidades
entre estas mulheres, e que esta tem relação com o corpo.
As demandas por vinculação social surgem das dificuldades e dos desafios pelos quais
passam as mulheres negras, das contingências relacionadas à sua realidade concreta, tais
como a falta de acesso aos serviços básicos, como saúde e educação, maior índice de
violência, entre outras variáveis que condicionam a subjetividade da mulher negra.
Como práticas de vinculação social, os eventos, distintos na forma e variados nos
modos de realização, constituem-se em espaços simbólicos para o fortalecimento de
uma identidade como condição de organização da mulher negra em Cuiabá. Neste
sentido é que as dinâmicas comunicacionais devem ser consideradas como elementos
estruturantes da vinculação social e o mote principal que designa a condição de
mulheres que lutam e afirmama vida.
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12.03.16.
1 Artigo desenvolvido no âmbito do Projeto de Pesquisa “Modernização tecnológica e midiática: Imagens da cidade e demandas do
cosmopolitismo” (Propeq/UFMT) e do doutorado em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso
(PPG ECCO-UFMT/Cuiabá).
INTRODUÇÃO
Apresenta-se aqui dados parciais de pesquisa sobre a emergência e a trajetória do heavy
metal na cidade de Cuiabá, capital de Mato Grosso, Brasil. O mote da discussão transita
em torno da atualização realizada pelas bandas de heavy metal do que se entende como
underground em Cuiabá, cidade que partiu de uma condição de garimpo no século
XVII e que hoje apresenta-se ao mundo com uma economia de comércio calcada
em commodities e serviços no Oeste brasileiro. Tal atualização é feita em condições
de improviso e precariedade, tendo os bares como lugar de encontro e oxigenação do
fluxo de bens simbólicos e materiais associados ao underground metaleiro cuiabano.
Assim, evidencia-se um movimento cultural que é fruto de reverberações oriundas
de transformações socioculturais ocorridas no século XX, e que exibe contornos locais
que o singularizam ao mesmo tempo que o aproximam de um contexto cultural
globalizado.
Utiliza-se como subsídio teórico o modelo proposto por Venício Arthur de Lima
(2001), que permite uma abordagem interdisciplinar tendo como horizonte o campo
da comunicação:
“[...] busca –se a compreensão [...] das representações e práticas culturais que
expressam os valores e significados construídos na relação entre a mídia e as
demais instituições da sociedade urbana contemporânea. [...] Aqui o consumidor
é visto como ativo e construtor das mediações culturais.” [LIMA, 2001, p.49-50]
Este leitmotiv ideológico que conduz as ações do que se entende como underground na
contemporaneidade nasce mundialmente nos anos 1950 nos Estados Unidos, tendo
em seu bojo poetas marginais, quadrinhistas de fanzines e quem ouvia e fazia um
som não comercial. Era um movimento, em grande parte, de resistência à apropriação
da cultural musical negra (jazz e blues) pelo branco. Uma década depois, a cultura
underground passa a valorizar a liberação sexual e legalização das drogas, e incorpora
ideais contrários aos preceitos yuppies3. O Festival de Woodstock, realizado entre os
dias 15 e 18 de agosto de 1969 nos Estados Unidos, é um marco desta resistência contra
o avanço do capitalismo tardio:
[...] o capitalismo tardio em geral (e os anos 60 em particular) constitui um
processo em que as últimas zonas remanescentes (internas e externas) de pré-
capitalismo – os últimos vestígios de espaço tradicional ou não transformado
2 “Comunidade sem proximidade” é uma ideia elaborada pelo sociólogo Melvin Webber no ensaio “The Nonplace Urban Realm”,
de 1964. Sua explicação é que “[...] comunidades significativas poderiam se formar na ausência da proximidade geográfica, por
telefone, correio e outros meios.” (WEBBER apud WILLIAMS, 2008, p. 46)
3 Este termo faz referência a jovens que são simpáticos ao sistema capitalista cuja preocupação é ganhar dinheiro e status. São
identificados como o oposto dos hippies, tanto ideologicamente quanto em relação ao modo de estar no mundo.
O rock no Brasil se insere num universo cultural efervescente entre as décadas de 1950-
1960 no qual a Bossa Nova, Jovem Guarda e o Tropicalismo conviviam musicalmente,
contrapondo questões como o uso de guitarras e reverberando de preceitos da Semana
da Arte Moderna de 1922.
O rock’n’roll chega ao Brasil em 1955, ironicamente, na voz de uma artista
brasileira: a cantora Nora Ney, conhecida intérprete de boleros e sambas-canções
nos anos 40. Em arriscada jogada comercial, ela gravaria Rock Around the Clock,
mas não aconteceu o sucesso esperado. A explicação é óbvia, mas necessária.
O público de Nora Ney era o da chamada “velha guarda”, acostumado a ouvir
suas músicas lentas, tristes, de “dor-de-cotovelo” e não acolheu bem a música
de Bill Haley. A juventude, de sua parte, não tinha a mínima identidade com
a cantora de boleros. O resultado já sabemos, foi desastroso. Assim, embora o
ano de 1955 marque a entrada do rock’n’roll no Brasil, é só em 1956 que nossa
juventude vai efetivamente vivenciá-lo. Naquele ano este ritmo chegaria até
nós, através do filme Ao Balanço das Horas, cuja trilha sonora era nada menos
que a música Rock Around the Clock, interpretada por Bill Haley e seus Cometas.
(CALDAS, 2008, p. 73)
4 Elvis Presley é um ícone do início do rock’n’roll, na década de 1950 e, assim como Beatles – quinteto de Liverpool cuja trajetória
foi de 1960 a 1970 –, expressavam em sua postura e, em alguma medida, em sua música o teor contestatório que remonta às origens
do rock. Porém, eles “criaram” uma indústria que, neste trabalho, melhor se define como star system. Ramones foi uma banda nova-
iorquina ícone do punk rock formada na década de 1970. Encerrou suas atividades em 1996. Rage Against The Machine é uma banda
norte-americana formada em 1991 cuja característica é a mescla diferentes vertentes musicais com uma postura contra a máquina,
contra o sistema – leia-se: capitalismo. Slayer é uma banda norte-americana de thrash metal formada em 1981 cujas letras versam
contra, entre outros temas, o cristianismo. Tanto Ramones, Rage Against The Machine quanto Slayer são hoje bandas do mainstream,
mas cuja origem é o underground, a atitude underground. Trata-se de um paradoxo ideológico-musical cuja discussão não sera feita
neste artigo, e sim na tese originada da referida pesquisa.
Observa-se que enquanto a cidade expandia seus horizontes físicos, o âmbito cultural, em
especial o musical, também acompanhava tais transformações. Em 1961, por exemplo,
foi fundado o Consevatório Mato-Grossense de Música, no qual eram oferecidas aulas
de piano, teoria musical, acordeão, violão e harmonia. Já o Conservatório Musical de
Mato Grosso foi fundado em 1969, encerrando as atividades em 17 de janeiro de 1989.
É em meio a este cenário de transformações estruturais sob um fundo musical erudito
que há tempos se ouvia na cidade (RODRIGUES, 2000) que o rock surge em Cuiabá,
tendo como inspiração sonora a Jovem Guarda, cujo maior representante foi Roberto
Carlos. A banda pioneira foi Jacildo e Seus Rapazes, que lançou um único disco em
1996, Lenha – Brasa e Bronca. A versão cuiabana do chamado iê-iê-iê também “[...] era
ouvido como um artigo importado e supérfluo.” (DAPIEVE, 1995, p. 14)5. Moracyr Isac
Anunciação6, primeiro baterista da banda, lembra que nessa época o rock não era bem
visto socialmente, e que já havia uma peregrinação por locais para as apresentações.
Um dos espaços mais importantes nesse período foi o clube noturno Sayonara7, que
inclusive foi palco para a apresentação de Roberto Carlos na cidade.
O rock sessentista em Cuiabá não trazia nenhum tipo de politização da arte. A música
feita por Jacildo e Seus Rapazes e depois por Janghs7 não possuíam as marcas distintivas
(BOURDIEU, 2006) que caracterizam hoje o underground e o rock em geral na capital
mato-grossense – a única semelhança era a precariedade logística e um saber-fazer cujo
5 O panorama mudou com o Tropicalismo e, na década de 1970, com Raul Seixas e os grupos de tendência progressiva e progressista.
Bandas deste período foram importantes para a consolidação de uma vertente musical mais pesada em Cuiabá.
6 Entrevista concedida no dia 28 de outubro de 2016, na casa de Moracyr Isac Anunciação, no bairro Jardim Mariana, em Cuiabá.
Moracyr foi o primeiro a usar uma bateria completa em Cuiabá (com bumbo, caixa e pratos num mesmo instrumento). Após sair
da Jacildo e Seus Rapazes, Moracyr montou o Janghs7, grupo formado por sete músicos que chegou a tocar na inauguração da
primeira retransmissora televisiva da cidade, em 1969. A entrevista foi filmada para posterior confecção de um documentário sobre
a emergência e trajetória do rock/heavy metal cuiabano.
7 O Sayonara foi um conhecido e importante espaço cultural em Cuiabá, tendo recebido nos anos 1970/1980 muitos artistas
conhecidos nacionalmente, entre os quais Maysa, Jair Rodrigues, Beth Carvalho, Alcione e o já citado Roberto Carlos. Fechou as
portas na década de 1980, e a construção foi demolida em 2004 para a construção de um residencial.
alicerce era a prática. Esse modus operandi se modificou à medida que a cidade mudava,
e a sonoridade das bandas ganhou mais peso a partir da década de 1980. Ressalta-
se que neste período a concepção sonora e visual do que é heavy metal começara a
ganhar corpo com o lançamento do primeiro e homônimo disco do Black Sabbath,
em 1970. Soma-se a isso o movimento punk na Inglaterra, cujo mote do it yourself (faça
você mesmo) ainda hoje ajuda a definir as estratégias de ação do chamado underground
roqueiro cuiabano – incluindo aí as formas de circular pela cidade.
2. MÚSICA PESADA: ALTERIDADE NA PAISAGEM SONORA EM CUIABÁ
A década de 1980 em Cuiabá é importante para a construção de uma identidade sonora
underground. Porém, faz-se necessário identificar que a cidade já apresentava uma
caleidoscópica paisagem sonora, sendo esta entendida como “[…] qualquer campo
de estudo acústico. Podemos referir-nos a uma composição musical, a um programa
de rádio ou mesmo a um ambiente acústico como paisagens sonoras.” (SCHAFER,
2001, p. 23). Assim, entende-se o ambiente acústico urbano de Cuiabá como uma
paisagem sonora composta por diferentes cenas musicais. Segundo Straw (2004, p. 412),
cena musical é “[...] um espaço cultural em que várias práticas musicais coexistem
interagindo entre si com uma variedade de processos de diferenciação.”
São diferentes cenas que coexistem em Cuiabá há tempos: música de concerto (clássica
e contemporânea), músicas populares (samba, sertanejo, funk, hip hop, eletrônica) e
gêneros locais (cururu, rasqueado e lambadão). É neste bojo que o rock e seus muitos
gêneros se inserem no espaço urbano, usando de táticas de improviso e precariedade
para se manterem enquanto expressão cultural. Tais táticas remetem a uma linguagem
roqueira que nasce com as bandas Barato Estranho, Apocalipse 2000 e Kabbalah,
formadas entre o final da década de 1970 e primeira metade dos anos 1980. Em
entrevista8, Glaucos Luiz Flôres Monteiro9, que integrou as três bandas, informa que
os grupos de jovens em idade colegial se reuniam para ouvir e fazer música para
evidenciar uma postura política contrária à estrutura sociocultural vigente numa
cidade como Cuiabá.
Além dos jovens em idade colegial, outro grupo de músicos e entusiastas da música
pesada se encontravam numa feira de artesanato na Praça Alencastro – centro de
Cuiabá. O interesse em comum por gêneros musicais mais pesados (notadamente o
thrash metal e o hardcore, subgêneros do heavy metal) fez com que muitos jovens se
encontrassem para trocar informações sobre discos ou apenas ouvir música, fazendo do
centro da cidade um ponto de convergência/divergência sonora. A partir de afinidades
musicais e pessoais os jovens montavam bandas (Força Vital, Atenas, Petardo, G.T.W.
e outras) e organizavam shows, mesmo sem a estrutura hoje disponível – tanto técnica
como comunicacional. O modus operandi, observa-se, trazia os traços que definem a
atitude underground mesclados com o lema do it yourself do movimento punk inglês.
Um exemplo disso foi o Sexta-feira na Praça, realizado uma vez por mês entre 1994
e 1996 por Claudemir Jr., que sequer tocava em banda: cada um contribuía com um
instrumento, uma caixa de som e ajudava na logística do evento.
8 Entrevista concedida no dia 13 de maio de 2015, nas dependências da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em Cuiabá.
O material foi filmado, assim como a entrevista de Moracyr, para ser usado no documentário sobre a emergência e trajetória do rock/
heavy metal cuiabano.
9 Compositor multi-instrumentista e maestro brasileiro, produtor de diversas bandas marciais, de rock e rhythm & blues. Atuou em
Mato Grosso e em outros estados do Brasil. Nascido em Aquidauana, Mato Grosso do Sul, hoje é funcionário público da Universidade
do Estado de Mato Grosso (UFMT).
Assim, tem-se que a música pesada é uma alteridade na paisagem sonora de Cuiabá,
utilizando-se de espaços alternativos para evidenciar suas produções. Propor uma
cartografia do rock em Cuiabá passa necessariamente por enunciar os lugares por onde
as bandas tocaram/tocam – e, em sua grande maioria, tais lugares foram/são bares.
Estes, enquanto lugar-encontro onde os fluxos simbólicos e matérias se projetam,
podem ser entendidos como zonas de fronteira:
Estas zonas de fronteira, como cidades cosmopolitas, podem ser descritas como
“interculturas”, não apenas locais de encontro, mas também sobreposição ou
intersecção entre culturas, nas quais o que começa como uma mistura acaba se
transformando na criação de algo novo e diferente. (BURKE, 2006: 73)
Segundo Cachorrão, o bar nasceu com o objetivo de ser um espaço aberto para a cultura
underground, não somente ao universo heavy metal – apesar de hoje ele só organizar
shows de bandas de metal; shows de outros estilos são feitos em parceria. Há mais
de 10 anos em atividade, fato que o torna o mais longevo estabelecimento nos moldes
underground, o Cavernas ainda mantém um aspecto obscuro (tanto pelos cartazes de
filmes no teto quanto pelas ilustrações nas paredes ou pela parca iluminação), mas já
se abriu a um público que não necessariamente veste apenas camisa preta e usa cabelos
compridos. Percebeu-se que é necessário mudar para se manter, e esta mudança
está atrelada a normais municipais (alvarás, portas de emergência) e necessidades
comerciais (máquina de cartão para pagamento e oferta de cervejas especiais e petiscos,
por exemplo).
O Cavernas Bar, que se mantém seguindo a atitude underground e se utilizando de
táticas que beiram o improviso, é hoje o principal espaço onde as bandas de heavy metal
(e todos os seus subgêneros) se apresentam em Cuiabá. Trata-se de um lugar também
de produção e reconhecimento próprios do que se entende underground, numa cidade
cujo espaço físico e cultural está em constante transformação, sendo atravessada pelos
fluxos comunicacionais engendrados pelas novas tecnologias – em especial a internet.
A título de ilustração, montou-se um gráfico sobre o mapa da cidade de Cuiabá com
alguns dos lugares por onde o rock/heavy metal transitou e ainda transita, e que foram
citados neste artigo. Há mais espaços a serem descritos, mas optou-se por esta listagem
por entendermos que tais bares são significativos no que diz respeito a manutenção e
atualização da cartilha de ação do underground.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por mais que o cenário hoje possa ser entendido como uma comunidade sem proximidade14
por conta de toda a articulação que é feita via redes sociais15 na Internet, há ainda a
necessidade premente de ter um locus de encontro de deliberação artística e de consumo
de bens simbólicos do cenário. O bar é este lugar-encontro que abriga o que está de
passagem, o que não se mostra fixo: é o locus do devir. É neste que as cenas musicais
independentes, que possuem uma circulação afastada do que é mainstream, legitima-
se e atualiza-se. É no bar que o underground resiste, adapta-se, muda para sobreviver
paradoxalmente neste sistema capitalista.
No caso específico do underground cuiabano, os bares são espaço de memórias produzidas
e memórias potenciais de toda uma cena roqueira – em especial a metaleira, que ganhou
mais força após o Cavernas Bar abrir as portas. O bar (re)afirma-se como lugar no tecido
da cidade onde uma expressão cultural guarda fragmentos de sua memória já produzida,
mas também de um processo que se pretende estender no tempo:
A memória resgata o sujeito e sua subjetividade. A rememoração de sua história
de vida o reafirma como sujeito da ação, recria e reconstrói suas diferentes
identidades ou possibilidades de identificações. A identidade, por sua vez,
promove um processo de reconhecimento das similitudes e afirmação de
diferenças que situa o indivíduo como sujeito histórico nos grupos sociais com
os quais se relaciona. (PERAZZO; CAPRINO, 2008: 119)
O percurso feito pelas bandas de rock desde os anos 1960 na cidade convergiram para,
na contemporaneidade, o uso dos bares enquanto espaço de produção e fruição de
bens simbólicos e materiais. São nestes lugares – espaços sociais, zonas de fronteira – e na
própria ação cartográfica das bandas em busca de locais para apresentar e consumir
música pesada que é possível apreender a polifonia afetiva dos envolvidos nesse
movimento cultural urbano. Não se almeja obter conclusões dogmáticas sobre o tema,
pois tem-se claro que a cultura não é estanque, e qualquer tentativa de afirmações
definitivas pode soar demasiado pretensioso. Almeja-se, isso sim, lançar um olhar
sobre a cena metaleira cuiabana – tendo como subsídio a própria história do rock na
cidade – e abrir caminho para novas inquietações de como ela se representa enquanto
movimento cultural underground em pleno século XXI.
14 Cf. nota 2.
15 Perfil do Cavernas Bar no Facebook: https://www.facebook.com/cavernascuiaba/timeline; e do Twitter: @caverna’s_bar
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da Autora, 2000.
Introdução
Este trabalho tem como objetivo mapear as pesquisas de viés empírico, realizadas no
Rio de Janeiro, que tratem de mediação de conflitos – em suas diferentes perspectivas
teórico-metodológicas e tendo como objeto diferentes aspectos do que seja mediação.
Especificamente, este mapeamento não busca apenas identificar pesquisas, mas sim:
identificar os locais de produção destas pesquisas; que referenciais e métodos tem
sido empregados pra conhecer as mediações; quais as trajetórias dos pesquisadores e
sua relação com o campo jurídico. Deste modo, pretendemos criar um mapa útil para
pensarmos e entendermos como opera a produção de conhecimento sobre administração
de conflitos, no que se refere à mediação.
Por mediação, queremos dizer aqui todo um conjunto de práticas agregadas sob o
termo – um nome geral que congrega diversas técnicas de negociação e modelos de
tratamento de conflitos, onde um terceiro, que não está envolvido na questão, atua para
facilitar a comunicação 16 entre aqueles que em conflitos estão. Este grande nome de
mediação, no cenário em que buscamos pesquisar, se especifica para a discussão acerca
de mediação hoje mantida dentro do campo jurídico.
Percebemos que, a partir das iniciativas do Poder Executivo e Judiciário, a mediação de
conflitos tem sido tratada como sinônimo de mediação judicial, ensinada e reproduzida
no interior dos Tribunais. Ainda com iniciativas alheias ao “espaço” do Tribunal, tais
práticas de mediação estão hoje muito ligadas ao Direito – institucionalmente e no
campo de produção de conhecimento.
A partir da vigência do atual CPC (Lei 13.105/2015) em 2016, a mediação de conflitos
– ao menos no plano normativo – é parte obrigatória dos processos judiciais e seguirá
as diretrizes do CNJ e do Ministério da Justiça, que definirão os requisitos mínimos de
capacitação de mediadores (Art. 11 da Lei da Mediação, Lei 13.140/2015). Hoje, a partir
de tais diretrizes, a mediação judicial que acontece no Judiciário Brasileiro segue (ou,
em tese, seguiria) aquilo contido no “Manual de Mediação Judicial” (AZEVEDO, 2015).
Embora saibamos qual modelo de negociação é adotado, tais analises baseadas em
bibliografias e normas pouco nos diz sobre que (qual, quais) mediação é feita de fato no
cenário que temos.
Por isso, identificar pesquisas empíricas acerca de mediação é vital para entendermos o que
tem se feito na realidade dos Tribunais, e para que possamos refletir sobre este processo.
Elegendo uma metodologia e uma estratégia de trabalho
A partir do levantamento realizado no início desta pesquisa, pudemos identificar que, no
campo interdisciplinar dente o Direito e as Ciências Sociais, há pesquisas semelhantes
que buscam explicitar e interpretar as características da mediação judicial hoje praticada.
A partir de uma abordagem interdisciplinar, a mediação tem sido foco de investigação
por áreas de interseção entre o Direito e as Ciências Sociais. De um viés sócio-jurídico,
há pesquisas que vêm sendo realizadas na rede composta de diversos pesquisadores
do Brasil, cujos estudos foram publicados em dois volumes sob o título “Mediação:
Panorama Atual” (MEIRELLES; MARQUES. 2014). Na articulação entre Direito e
Antropologia, são de grande relevância os estudos de caráter empírico realizados sobre
tratamento de conflitos (OLIVEIRA, M, 2011) (MELLO; BAPTISTA, 2011) (FILPO, 2016).
Nossa proposta, a partir das pistas acima, foi buscar pesquisas sobre mediação no Rio
de Janeiro – estado que concentra muitas pesquisas no Direito, especialmente pelo
grande número de programas de pós-graduação. A primeira questão, então, foi onde
buscar tais pesquisas?
Uma proposta inicial seria buscar nos acervos das principais entidades de pesquisa
da área do Direito e das Ciências Sociais, tais quais o Conselho Nacional de Pesquisa
e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI) a Associação Brasileira de Pesquisadores
em Sociologia do Direito (ABRASD) e a Associação de Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanidades (ANINTER), por
exemplo, que são de acesso gratuito, permitindo de forma livre a consulta de diversas
investigações, concluídas e em andamento.
Ocorre que na discussão acerca de como realizar, percebemos que nosso interesse
eram as pesquisas finalizadas que pudessem contribuir para uma construção de
conhecimento empírico acerca de mediação de conflitos. Deste modo, seria mais
interessante buscar pesquisas finalizadas que tivessem maior densidade de reflexão –
e não apenas artigos científicos que, por vezes, sintetizam ou parcialmente divulgam
resultados de pesquisas maiores. Teses e dissertações, assim, foram definidas como
nossos objetos de busca.
Esta então ficou definida como etapa 1 de pesquisa: busca por teses e dissertações
acerca de mediação de conflitos, no Rio de Janeiro. A preocupação central – pesquisas
empíricas – ficou em segundo plano pois, afinal, para que se buscasse àquelas de viés
empírico, seria primeiro necessário um mapeamento mais amplo.
Elegemos como local de busca a o Banco de Teses e Dissertações da Capes1. De acesso
online, ele nos fornece uma folha com o resumo das produções, seus principais dados
e o arquivo da produção, de todos os programas de Pós-graduação do Brasil. Este, no
entanto, depende do tramite de preenchimento e depósito do próprio programa de
pós-graduação, de modo que nem todos os arquivos completos estão disponíveis. Tal
banco é alimentado pela Plataforma Sucupira, criada em 2014 pela CAPES, como um
sistema unificado dos programas de pós-graduação do país.
Imagem 1. Visualização de Busca do Banco de Teses e Dissertações CAPES
A busca na plataforma se dá por termos de busca iniciais, que podem ser aprimorados
por filtros de pesquisa.
Elegemos como termos de busca iniciais: “mediação”; “mediação de conflitos”; “mediação
judicial”; “mediações”.
Inserido o marcador, refinamos ‘mediação’, foram encontrados 7536 registros (Imagem
1), dos quais 400 eram oriundos de programas de pós-graduação em Direito. O filtro
escolhido assim, fora a área do Programa de Pós-Graduação. Cada registro significa uma
tese/dissertação que contém, em seu título, resumo ou palavras-chave, o termo de busca.
Importante frisar que nos orientamos não apenas pelo termo de busca: encontrado
o trabalho, a partir da leitura do título e resumo, verificamos se de fato tema/objeto
era mediação – nos termos que definimos acima. Se não, a pesquisa seria descartada
da amostra.
Nosso critério previamente escolhido para exportação de dados de trabalhos fora o ano:
elegemos como ano inicial 2016-2015 (marco referente ao CPC). A partir daí, buscamos
aqueles situados no Rio de Janeiro. Foi quando visualizamos que a Plataforma contém
apenas trabalhos de 2013 a 2015, por conta do ano de sua inauguração. Assim, a partir da
listagem, redefinimos que nossa busca seria, então, no ano de 2013-2015 e encontrando
um número de 13 trabalhos.
Daqueles iniciais 400 trabalhos se referiam a programas de DIREITO. Extensões como
DIREITO CONSTITUCIONAL ou CIENCIAS JURIDICAS são filtros próprios. Assim,
executamos segunda busca, condensando estes outros programa de direito, conforme
Imagem 2, abaixo. Encontramos, então, 103 trabalhos, de Programas de Pós-Graduação
de todo o país, que, filtrados os do Rio de Janeiro, quando somados aos 13 já encontrados,
deram 16 trabalhos.
Imagem 2. Programa de Direito agregados à Direito
Em seguida, para evitar que se perdesse dados por erros de filtros de pesquisa,
repetimos a inserção por ‘mediação’ aplicando o filtro não por Área do Programa de
Pós-Graduação, mas por Universidade, selecionando as Universidades do Rio de Janeiro.
Deste modo, obtemos 707 registros. Neste modelo de busca, encontramos diversos
trabalhos fora da área do Direito, cujo o termo mediação tem sentido completamente
distinto do objeto de nossa pesquisa. Ainda assim, encontramos 3 trabalhos que por
motivo não identificado não apareceram na busca anterior. Assim, nosso número subiu
para 19 trabalhos, dentre teses e dissertações.
Passamos então ano nosso segundo termo de busca “mediação de conflitos”, e foram
encontrados 900.685 registros. Aplicados os filtros referentes aos programas de direito,
obtivemos então 31.359 registros. Visto o número demasiadamente grande, para termo
‘mediação de conflitos’ buscamos a partir apenas das Universidades do Rio de Janeiro,
de modo a centrar na localidade que elegemos. Assim, retiramos os filtros dos nomes
dos programas e refizemos o termo apenas pelas universidades. 104 654 resultados.
Intrigados pelo número incrivelmente maior que o termo “mediação de conflitos”
trazia em relação à “mediação” – o que ia de encontro ao racíocinio de que, quanto mais
específico o termo de busca, menos resultados – passamos então a busca pelo terceiro
termo “mediação judical”.
O termo “Mediação judicial” nos rendeu 12.636 registros. Aplicados os filtros por
universidade, encontramos 1165 entradas. A partir dai, filtramos a busca para nome do
programa, tal qual acima.
Foi quando notamos que a engenharia de busca da Plataforma opera de modo a apenas
somar a busca de termos múltiplos. Isto é a busca por “mediação judicial” é igual a
busca por “mediação” + “judicial”’. Deste modo, é inviável, a busca por termos duplos
no sistema. Percebida esta falha do sistema, optamos por buscar dai apenas mais dois
verbetes: mediador e mediações.
Inseridas as buscas por “Mediador”, após filtrarmos pelos programa de Direito,
encontramos 53 resultados, sendo 11 do Rio de Janeiro. Destes, 10 já levantados no
verbete 16 mediação e 1 descartado por se tratar de tema não relacionado, cujo o termo
mediador não tratava do que tratamos aqui.
Inseridas as buscas por “Mediações”, após filtrarmos pelos programa de Direito,
encontramos 18 resultados, sendo 2 do Rio de Janeiro, descartados por se tratarem de
tema não relacionado, cujo o termo mediações não tratava do que tratamos aqui.
Até aqui, de maneira um tanto redundante, o termo relevante que nos rendeu resultados
foi “mediação”. A partir deste, alimentamos Planilha de trabalho obtendo, no período
2013-2015, 19 pesquisas sobre mediação no Rio de Janeiro, advindas de Programas de
Pós-Graduação em Direito.
Finalmente, por sabermos que a busca por “Direito” iria excluir os trabalhos de
programas da área Jurídica com viés interdisciplinar, tal qual o Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Direito da UFF, refizemos a busca a partir do nome dos
programas no Rio de Janeiro. Assim, encontramos 13 pesquisas que chamamos de
“Sociologia e Direito”, por serem todas oriundas do PPGSD-UFF.
A partir desta tabela cinco podemos visualizar com mais clareza um movimento
contrário: as teses aumentando, enquanto as dissertações estão diminuindo.
Tabela 6. Quadro Geral - Distribuição de Trabalhos por Programa de Pós-Graduação
Nesta tabela, visualizamos quem tem liderado a produção de pesquisas sobre mediação
– o que será relevante para o ponto a seguir, referente às construções de redes de
pesquisadores visualizáveis pelas orientações e composições de bancas. Em primeiro,
com 13 trabalhos, vem o PPGSD/UFF, seguido da UNESA (10), UERJ (5), UCP (3), e o
recente programa da UVA (1).
Orientadores e Bancas de Avaliação: visualizando uma rede
E quem vem produzindo tais pesquisas? Do ponto de vista da formação de redes
de pesquisadores, nossa opção foi analisar não os autores dos trabalhos, mas seus
professores orientadores. Nas tabelas abaixo, buscamos visualizar recorrências que
apontem características da produção de pesquisas em mediação no Rio de Janeiro.
Observando a tabela de orientadores, percebe-se que ao longo desses três anos (2013-
2015), os 19 trabalhos apresentados aos progamas de pós-graduação destas quatro
universidades (UERJ, UNESA, UCP e UVA), sobre o tema mediação ligado ao Direito
em sí, tiveram diferentes pesquisadores orientadores em sua execução e todos eles só
participaram de um trabalho em um destes anos, à exceção do professor Humberto
Dalla Bernardina de Pinho que é um personagem recorrente nesta tabela com um total
de 7 trabalhos produzidos sob a sua orientação, sendo três em 2013, um em 2014 e três,
novamente, em 2015.
Ao analisar, também, a formação acadêmica destes professores orientadores, verifica-
se que todos eles são graduados em Direito, possuindo mestrado e doutorado também
na mesma área (Direito em geral) e alguns especializados em áreas adjacentes, como
o Direito Penal (professor Nilo Batista), Direito Constitucional (professor Roger
Rodrigues) e Direito Público ( professora Carla Faria).
Tabela 8. Filtro Sociologia e Direito – Recorrencias de Orientadores
INTRODUÇÃO
Entrou em vigor, no final do ano passado, a lei nº 13.140, primeiro diploma legal no país
a tratar, especificamente, da mediação nos diversos âmbitos de solução de conflitos
existentes. Instituída como política pública, a mediação surgiu como alternativa para
resolução do problema de qualidade e efetividade do Poder Judiciário (SPENGLER e
SPLENGER NETO, 2010).
A mediação conseguiu notoriedade com a edição, pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ), da Resolução nº 125, de 2010. Antes disso, havia tramitado no Congresso Nacional
um projeto de lei de autoria da ex-Deputada Zulaiê Cobra, o PL nº 4.287/1998, o qual
acabou sendo arquivado. À edição da referida Resolução, seguiram-se a inclusão do
tema na reforma do Código de Processo Civil brasileiro, que culminou com a sanção
da Lei nº 13.105/2015, e a publicação da referida lei da mediação, que recebeu o número
13.140, também no ano 2015 (CABRAL, HALE e PINHO, 2016).
O texto aprovado pelos órgãos legislativos sofreu influências das diversas escolas que
discutiam o tema pelo mundo (PINHO, 2011), das quais se podem destacar a escola
europeia e a americana. O presente estudo destina-se a examinar o conceito de mediação
encontrado no texto da lei sancionada, através da realização de análise de conteúdo
como técnica de investigação metodológica, a fim de descobrir em qual dessas escolas o
legislador brasileiro foi buscar fundamento para a construção dos moldes de realização
da mediação no Brasil.
Além do próprio texto da lei, foram utilizados dados encontrados em documentos
que antecederam a edição de previsões normativas elaboradas nos âmbitos dos
três poderes brasileiros. Especificamente, foi analisado um texto de cada esfera
governamental, com naturezas diversas, que representavam uma síntese do teor de
todos os textos encontrados.
No âmbito do Poder Judiciário, foram analisados os considerandos da Resolução nº
125/2010, do Conselho Nacional de Justiça. O parecer de aprovação da lei de mediação
para submissão à votação pelo Senado Federal, Parecer nº 262, de 2015–PLEN, com a
transcrição das discussões que o antecederam, foi o documento coletado junto ao Poder
Legislativo; enquanto a exposição de motivos elaborada pelo então Ministro da Justiça,
José Eduardo Cardozo, para levar a matéria ao conhecimento da, à época, Chefe do
Poder Executivo, Dilma Rousseff, contém os dados colhidos junto a esse poder estatal.
Inicialmente, foram descortinados os conceitos aplicáveis ao estudo. Por primeiro, foram
apresentados conceitos de mediação preconizados pela doutrina especializada para,
em seguida, serem delimitadas as escolas destacadas como parâmetros para análise.
No exame dos resultados, enfim, foram se encaixando os elementos destacados na lei à
escola considerada prevalecente consoante as particularidades atribuídas à mediação
visualizadas nos documentos examinados. Esse é o objetivo do trabalho, cujo conteúdo
desenvolve-se a seguir.
1. O QUE É MEDIAÇÃO
O conceito atribuído pelo legislador à mediação atribui ao instituto a condição de
técnica direcionada à solução de conflitos:
Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015: Art. 1º (…)
Parágrafo único. Considera-se mediação a atividade técnica exercida por
terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes,
as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a
controvérsia. (BRASIL, 2015)
O conceito legal, contudo, está longe de apresentar uma definição segura acerca do tema.
Os próprios doutrinadores divergem sobre a matéria. São uníssonos, em verdade, em
preconizar a dificuldade de definir-se, com exatidão, o que seja a atividade mediadora,
sendo essa, comumente, confundida com a conciliação ou com negociações diversas
(REBOUÇAS, 2012).
É certo que se trata de um método de resolução de conflito que coloca na mão de um
terceiro, que não é um juiz, a condução do procedimento. Para conceituá-la, Fiorelli,
Fiorelli e Malhadas Junior ensinam: “A mediação constitui um processo de transformar
antagonismos em convergências, não obrigatoriamente em concordâncias, por meio da
intervenção de um terceiro escolhido pelas partes” (2008, p. 59).
É, portanto, a mediação uma forma de solucionar conflitos que se apresenta como
alternativa à via exclusivamente judicial. Corresponde a um meio autocompositivo, em
que as próprias partes constroem, com a intervenção do terceiro acima mencionado,
que corresponde ao mediador, a resposta para seu problema, pondo fim ao conflito
existente entre elas.
Visualizando-se uma necessidade de revisão da forma como são resolvidos os litígios
no país, a mediação despertou o interesse do poder público como importante forma
de resolução de controvérsias em uma “sociedade cada vez mais complexa, plural
e multifacetada, produtora de demandas que a cada dia se superam qualitativa e
quantitativamente” (SPENGLER e SPENGLER NETO, 2010, p. 41). Esse tipo de sociedade,
por certo, torna indispensável uma maior reflexão acerca da atuação dos poderes, em
qualquer de suas esferas.
2. A ESCOLA FRANCESA E A ESCOLA AMERICANA DE MEDIAÇÃO
Duas escolas preponderantes ocupam-se de delinear os contornos da mediação entre
os teóricos do tema. As escolas de mediação encontram-se bem delineadas no texto
de Águida Arruda Barbosa (2002), que esclarece os fundamentos de cada uma das
vertentes dominantes sobre o tema na literatura mundial. No estudo por ela realizado
e apresentado no III Congresso de Direito de Família, a tendência da escola americana
a focar na solução do litígio com fins de encerrar a demanda independentemente de
sua natureza é contrastada com o ideal francês de solução do conflito através de sua
transformação.
A busca por práticas de tratamento diferenciado de conflitos teve origem nos Estados
Unidos, através da ADR – Alternative Dispute Resolution – que tratava da resolução de
conflitos sem a intervenção de uma autoridade judicial (SPENGLER e SPENGLER
NETO, 2010). A escola americana, adotada pela vizinha Argentina, possui enfoque
O conceito legal, pois, está longe de limitar a atuação do mediador em sua função
transformadora. O engessamento não faz parte de qualquer espécie de mediação, seja
ela orientada pela técnica norte-americana, ou pelo ideal transformador francês.
CONCLUSÕES
As recentes reformas no judiciário apontam com ênfase para um modelo célere e
econômico, bem aos moldes dos direcionamentos de políticas públicas em contextos
neoliberais. Este viés, fortemente influenciado pelo modelo norte-americano e por
instituições como o FMI e Banco Mundial acabam direcionando a lei de mediação
nº 13.140/2005 recém-aprovada também para um modelo de gestão de conflitos mais
técnica, como é a escola americana. As características difundidas pela escola da ADR
podem ser facilmente visualizadas através dos termos utilizados e dos fatores que se
enunciam como indispensáveis atuação dos envolvidos na mediação como forma de
solução de conflitos regulamentada pelo referido diploma legal.
A lei de mediação aparece como uma das respostas do Estado ao problema que
representa o excesso de ações acumuladas no Poder Judiciário. Trata-se, portanto, de
mais uma preocupação de gestão judiciária, e não tanto de satisfação das partes na
resolução de conflitos. Ainda assim, representa uma aposta do poder público no sentido
de recuperar a credibilidade da Justiça que se encontra ameaçada por sua morosidade.
A importância conferida à causa do conflito, portanto, não representa uma condição
significativa a partir de uma análise do conceito legal. Todavia, não há óbice para que
o mediador com ela se preocupe, recuperando elementos também de uma mediação
transformadora.
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho pretende estudar os principais modelos de mediação de conflitos
da escola clássica, tais quais: o Modelo Tradicional-Linear de Harvard, o Modelo
Circular-Narrativo de Sara Cobb, Modelo Transformativo de Bush e Folger e o Modelo
da alteridade ou Modelo Waratiano com suas matrizes históricas, e especificidades,
relacionando-os entre si, bem como com o tipo de mediação que o Poder Judiciário
brasileiro vem adotando, na atualidade. Pretende-se, com esse viés comparativo,
observar quais mecanismos podem lograr mais êxito em gerar uma diminuição da
conflituosidade.
Intenta-se restringir o campo de observação para as relações familiares, por ser esta
uma das áreas nas quais a mediação encontra seus maiores desafios. Essa instituição –
a família – é local em que os indivíduos possuem laços afetivos estreitos, e o inevitável
convívio posterior, faz com que a busca pela melhor solução no caso concreto seja de
suma importância.
Para proporcionar às partes um ambiente harmônico em que possam estabelecer a
comunicação, o mediador é também parte importante no modelo de mediação que tem
sido proposto pelo Poder Judiciário brasileiro, com o devido cuidado para que o mesmo
não se torne apenas uma fase burocrática do processo, e sim um método alternativo, e
eficaz. Nesse sentido, pretende-se também, voltar o olhar para esse importante ator da
mediação, que é o mediador, observando sua individualidade e possibilidade de agir
auxiliando os atores protagonistas, que são os envolvidos no conflito.
É preciso ressaltar, que não se pretende trazer uma solução fechada, de qual seria
o melhor método de mediação para as relações familiares, uma vez que tal juízo é
subjetivo, e varia de acordo com o modo de ver a situação, e do caso fático em si. O que
se propõe aqui, é apresentar as características dos principais métodos de mediação,
para conjuntamente a essa apresentação analisar como esse processo se desenrola no
âmbito familiar.
Convida-se assim, através dessa apresentação, o leitor a refletir crticamente sobre qual
método de mediação seria o mais eficaz em cada caso familiar em concreto, deixando
claro que não existe uma resposta certa para questão, podendo inclusive serem
agregadas características de um e outro modelos em um mesmo caso.
1. Fundamentação teórica
Nesse viés de análise crítica da mediação enquanto meio alternativo de resolução de
conflitos pretende-se observar as colocações feitas pelos autores dos modelos de
mediação analisados, tais quais Roger Fischer, William Ury, e Bruce Patton, em sua
obra “Como chegar ao sim: negociações de acordos sem consessões”, bem como os
ensinamentos compilados por Sara Cobb.
Além disso, é fundamental o estudo das teorias de Habermas do agir comunicativo e
da inclusão do outro, somado à análise dos textos de estudiosos do tema Mediação na
teoria e na prática como Luis Alberto Warat e Ester Malvina Muszkat para analisar e
discutir a pretenção da Lei de Mediação e do novo CPC – Lei 13.105/2015, quanto aos
métodos utilizados que melhor atendam aos casos de confitos familiares, partindo-se,
portanto, da análise bibliográfica.
2. MEDIAÇÃO FAMILIAR
O curso de mediação de família do CNJ1, traz como objetivos: estimular as partes a uma
maior estabilidade familiar, diminuir a rivalidade e reunir estabilização emocional,
ampliar a satisfação com procedimentos jurídicos e seus resultados e proporcionar
maior cumprimento de decisões judiciais.
A mediação de família pode ser realizada judicialmente, de forma privada, por
programas comunitários, por ONGs, por Núcleos de Prática Jurídica etc, em vários
casos como de divórcios, alimentos, guardas e outros.
Embora atualmente não haja uma definição única de família, o modelo de sistema
familiar é bastante utilizado em mediação, por ter a participação de seus integrantes
e co-responsabilidades em estabilizar a relação familiar, sem a ideia de culpa. Isto
porque um sistema precisa ser estável, mas flexível por ser suscetível a mudanças, e por
haver fases de desenvolvimento de seus indivíduos; precisa ser aberto, mas fechado
para influências negativas; precisa do sentimento de pertencimento dos integrantes
mas também sua individualidade; o sistema também necessita da comunicação que
lhe dá estabilidade.
A função do mediador familiar é facilitar essa comunicação dos envolvidos, não
emitindo juízo de valor à família. Esta tende a se ajustar a partir do momento em que
seus indivíduos dialogam diretamente, sentem-se responsáveis por tentar solucionar os
problemas, aceitam as diferenças, e sobretudo conservam o clima emocional positivo.
Em consciência moral e agir comunicativo, o sociólogo Habermas acerca da ideia de
agir voltado para um entendimento mútuo por meio da comunicação expõe:
Chamo de comunicativas às interações nas quais as pessoas envolvidas se
põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o acordo alcançado em
cada caso medindo-se pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de
validez. No caso de entendimento mútuo lingüísticos, os atores erguem com
seus atos de fala, ao se entenderem uns com os outros sobre algo, pretensões
de validez, mais precisamente pretensões de verdade, pretensões de correções
e pretensões de sinceridade (...) Enquanto que no agir estratégico um atua
sobre o outro para ensejar a continuação desejada de uma interação, no agir
comunicativo um é motivado racionalmente pelo outro para uma ação de
adesão – e isso em virtude do efeito ilocucionário de comprometimento que a
oferta de um ato de fala suscita.2
A mediação como uma negociação facilitada por um terceiro, pode ser usada para
resolver várias questões, mas nem todas, prestando-se atenção especial em casos que
envolvam violência doméstica, abuso de menores, dependência química, doença mental
(passível de interdição)3.
O mediador de forma imparcial deve esclarecer sobre a mediação e seu papel e deve
facilitar o diálogo entre os envolvidos, ajudando-os a analisar seus interesses na
1 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Curso de mediação familiar do CNJ. Disponível em www.cnj.jus.br. Acessado em 18 de
out. 2016.
2 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
2003, p. 79.
3 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Curso de mediação familiar do CNJ. Disponível em www.cnj.jus.br. Acessado em 18 out.
2016.
tentativa de obter uma solução, exercendo especialmente a escuta ativa para entender
a dinâmica familiar, identificar e avaliar as questões causadas por sentimentos
de mágoa, ciúmes, rancor, desprezo e outros e os envolvidos no conflito familiar
precisam ter a capacidade de gerir suas emoções de forma positiva, com a ideia do
empoderamento, exercer o perdão e não a vitimização, enfim, agir no sentido de
libertar-se dos sentimentos negativos.
A partir dessas constatações, faremos um breve estudo dos principais modelos de
mediação conhecidos na atualidade, buscando entender suas características e objetivos,
com o fim de relacioná-los a mediação ocorrida no âmbito familiar.
3. PRINCIPAIS ESCOLAS DE MEDIAÇÃO
Atualmente existem três escolas clássicas que as doutrinas costumam indicar para
orientar as diferentes formas de se trabalhar com a mediação, são elas: o Modelo
Tradicional-Linear de Harvard, o Modelo Transformativo de Bush e Folger e o Modelo
Circular-Narrativo de Sara Cobb.
Porém, há ainda um outro modelo importante que foi idealizado por Luis Alberto
Warat, que é o modelo da alteridade ou modelo Waratiano da terapia do amor da
ALMED - Associação Latino-Americana de mediação, Metodologia e Ensino do Direito4,
e cabe aqui fazer menção, devido à sensibilidade do seu viés, que pode influenciar
significativamente no âmbito familiar.
Logicamente, existem muitas outras escolas e trabalhos de autores de grande mérito
e importância, mas neste trabalho o que se faz essencial é apresentar apenas os mais
expressivos.
O mediador é quem elege o modelo pertinente, escolhendo o que sirva melhor as
particularidades de cada caso determinado. Para tanto, ele deve ser sensível no intuito
de que haja um acordo criativo para que todos os envolvidos saiam vencedores.
No entanto, todas as linhas de pensamento e de prática são fundamentais para aprimorar
o trabalho de mediação, pois todas são resultados da investigação e das experiências de
grandes profissionais, o equívoco consiste em ficarmos presos a uma delas como sendo
a vontade absoluta e razão para diferenciação entre profissionais da mediação.
Passa-se, então, a discorrer sobre esses modelos, que correspondem às espécies de
mediação adotadas pelos mediadores em sua atuação, trazendo as propostas e críticas
de cada um.
3.1 Modelo Tradicional-Linear
O modelo Tradicional-Linear de Harvard ou Programa de Negociação da Escola
de Harvard, também conhecida como “mediação satisfativa” fundamenta-se na
comunicação entendida em seu sentido linear, isto é, a função do mediador é a de
facilitador da comunicação a fim de conseguir um diálogo, que é uma comunicação
efetiva bilateral.
EGGER, Ildemar. Cultura da Paz e Mediação: uma experiência com adolescentes. Florianópolis, Santa Catarina: Fundação Boiteux,
2008, p. 116.
O conflito é visto como algo que precisa ser posto em ordem, tendo como princípios a
imparcialidade, neutralidade e equidistância.
O mediador é o facilitador de uma comunicação pensada de forma linear, de
um conflito construído sobre uma relação de causa e efeito. Nesse caso ela se
define como um método pragmático de resolução de conflitos “alternativo” –
mais barato, mais rápido e independente – ao processo judiciário.5
Por esse modelo, já no início os envolvidos devem se expressar visando uma espécie de
libertação, devem estar abertos para isso, no intuito de se acalmarem e poderem pensar
melhor. Cada parte ouve a outra expor o seu ponto de vista para chegar a um acordo
benéfico a ambas, com a ajuda do mediador.
Tem como objetivo, produzir um resultado satisfatório para os dois lados em questão.
Assim, a negociação não deve ser vista como um embate, tal qual em um tatame, em
que um sairá ganhador e o outro, perdedor; mas ao contrário o que se procura é um
interesse mútuo e eficaz, até para que as portas fiquem abertas para outras situações,
o que é muito interessante, pensando de forma específica no âmbito familiar, em que
a proximidade das partes envolvidas leva a dependência, um do outro, mesmo no
pós-negociação.
Com foco no acordo, o referido modelo ressalta a importância dos “procedimentos
preparatórios”, em que o papel do mediador não deve ser de interventor direto, e sim
de facilitador do diálogo, que leva as partes a enxergarem além da simples negociação.
Busca-se um resultado prático, através do diálogo, racionalizado.
No livro “Como chegar ao Sim: a negociação de acordos sem concessões”, que foi escrito
pelos professores idealizadores desse modelo de mediação - Roger Fisher, William Ury
e Bruce Patton – foi apresentado o exemplo de dois estudantes que discutem numa
biblioteca sobre abrir ou não a janela, um deles se preocupa com a circulação do ar, e
o outro com as folhas que vão ser espalhadas pelo vento. Percebe-se que o ponto focal
não é a janela, nenhum dos dois está preocupado com ela, mas com as consequências
de sua abertura. Dessa forma, os autores chamam a atenção para a visualização do
problema de uma forma ampla, e não restrita, pois para se alcançar uma solução eficaz,
ou seja, um acordo, deve-se buscar compreender a intenção por trás da discussão.
Em continuidade ao exemplo, a bibliotecária percebendo a situação indaga aos
estudantes o motivo da discussão, ao compreendê-lo sugere que seja aberta a janela de
um aposento ao lado, solução que sana a problemática de ambos. O objetivo que era
encontrar uma solução que satisfizesse a ambos foi atingido, através da identificação do
real problema, e posterior análise das possibilidades.
Chama-se atenção também para o papel de facilitador do mediador, enquanto terceiro
alheio a situação, e capaz de estabelecer princípios para uma comunicação mais
harmônica, que pode levar as partes a observarem os reais interesses, compreende o
problema de uma forma ampla. É demonstrado uma relação linear, de saber a causa,
para pensar no efeito.
5 MUSZKAT, Malvina Ester. Guia prático de mediação de conflitos em famílias e organizações. 3. ed. São Paulo: Summus, 2008, p.
67.
Portanto, mais do que o acordo propriamente dito, o que o método transformativo busca
é uma mudança comportamental, por acreditar que dessa forma, os próprios litigantes
chegarão à um resultado satisfatório, sem a intervenção de terceiros, e inclusive, não só
para aquele problema, mas para outros futuros. A existência de etapas nesse modelo, é
bem variável, já que vai depender de cada caso por trabalhar o conceito de moralidade,
6 BRIQUET, Enia Cecília. Manual de mediação: Teoria e prática na formação do mediador. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,
2016, p. 167.
7 MUSZKAT, Malvina Ester. Guia prático de mediação de conflitos em famílias e organizações. 3. ed. São Paulo: Summus, 2008,
p, 68.
8 TOALDO, Adriane Medianeira; OLIVEIRA, Fernanda Rech de. Mediação familiar: novo desafio do Direito de Família
contemporâneo. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 95, dez 2011. Disponível em:<http://www.ambitojuridico.com.br/
site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=10860&revista_c adero=21>. Acesso em nov 2016.
e de como os litigantes lidam com o problema, cabendo ao mediador, mesmo com uma
postura passiva frente ao conflito, estar atento e perceptivo.
3.3 Modelo Circular-narrativo
O Modelo Circular-narrativo, de Sara Cobb, tenta desenvolver um espírito negociador
nas partes, para que o acordo seja logrado. Busca-se a transformação da narrativa, para
que a mesma seja efetiva, foca tanto no acordo como na própria relação.
Aqui a comunicação é enfatizada em seus aspectos expressivos de conteúdo e de
inter-relação, nossa expressão de nós mesmos e, o que nos acontece, é tomada como
uma narrativa 10 rígida a ser mudada, flexibilizada, através da investigação e no
reconhecimento da pluralidade de elementos intervenientes nos conflitos.9
O modelo, como o próprio nome sugere, se fundamenta na comunicação circular e
interdependente das pessoas. Trabalha com a necessidade de uma parte entender a
outra, por meio do diálogo facilitado pelo medidor, porém diferente do modelo de
Harvard, é necessário verificar o conjunto de causas anteriores que contribuíram para
o surgimento do conflito e não a causa imediata que o gerou.
(...) modelo de mediação voltado fundamentalmente para o campo da família, no qual
resgatam também a teoria da comunicação e algumas técnicas utilizadas pelas terapias
familiares. Esse método procura desconstruir velhas narrativas, dando oportunidade
para que novas possam ser construídas e, então, surja (ou não) um acordo. A linha
circular-narrativa foge da noção reducionista de causa e efeito e considera que inúmeros
fatores que se retroalimentam (causalidade circular) estão presentes nas inter-relações,
e, portanto, nos conflitos. Está mais focada nas transformações das pessoas do que na
busca do acordo final. Apoia-se na teoria dos sistemas e no construcionismo social, mas
não tem caráter terapêutico.10
A mediação é importante para possibilitar um crescimento das pessoas para que
tenham maior consciência e sejam capazes de enxergar o outro, entendendo o seu lado
também, o que representa um benefício pessoal e social, ou seja, a mediação não está
preocupada exclusivamente com a solução do conflito em si.
O conflito não necessariamente deve ser ligado à divergência e a agressão nas relações,
devendo ser visto como uma presença interna e quase contínua em cada pessoa. O
conflito deve ser diferenciado da disputa. Por isso, nesse método se valoriza não só o
acordo, mas especialmente as relações.
Sara Cobb, sua idealizadora, apud Raquel Nery Cardozo, defende que “deve ser
desenvolvido um processo que permita a pessoa a aprender a perceber, a refletir e a
atuar com relação ao seu problema”11. Assim, busca-se uma autonomia das partes na
relação problemática, sendo o papel do mediador de suma importância, no momento
inicial da identificação das peculiaridades do discurso trazido, que destoa do que é
falado com a ação em si, a fim de provocar essa autoanálise.
9 AMARAL, Márcia T. G. O Direito de Acesso à Justiça e a Mediação. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2009, p. 158.
10 MUSZKAT, Malvina Ester. Guia prático de mediação de conflitos em famílias e organizações. 3. ed. São Paulo: Summus, 2008,
p. 67.
11 CARDOSO, Raquel Nery. Os conflitos familiares e as escolas de mediação. Disponível em http://www.publicadireito.com.
br/artigos/?cod=a0e9cab17a035c5a. Acessado em 20 de out. 2016.
Tal característica pode ser extremamente útil nas relações entre membros da mesma
família, que muitas vezes, possuem seu discurso mascarado, não intencionalmente,
e o que se pleiteia na fala de uma das partes não corresponde ao que se sente, e em
contrapartida, a outra parte também responde de forma infiel ao seu sentimento.
Esse método, é dividido em etapas, que são quatro, das quais a primeira trata de realizar
uma decantação, separando o problema da relação pessoal. Conforme o exemplo que
foi dado de uma mediação entre pais separados, sobre a guarda da criança, o que se
busca é levar os litigantes a perceberem que o problema analisado é o da guarda da
criança, e não confundir, com expectativas frustradas do antigo casamento.
Na próxima etapa as partes devem definir a problemática, individualmente, e o
mediador, pode ajudá-las, com perguntas que ensejem reflexões. Intenta uma análise
de objetivos individuais, ocorre em local separado da outra parte. Na terceira etapa
o mediador se encontra com uma equipe, que estava observando a mediação, para
refletirem sobre o que foi colocado. Tal aspecto é interessante, sob o ponto de vista de
pessoas diferentes perceberem nuances antes não vista por nenhum dos envolvidos, ou
mesmo do mediador que estava preocupado com as perguntas, e estimular a reflexão.
Na última etapa acontece uma reunião conjunta em que a equipe, o mediador, e as
partes conversam, e tentam construir um acordo, por mais que esse não seja o objetivo
principal, pois o mesmo é a reflexão, e através da forma de se comunicar.
Sobre este método, elucida Raquel Nery Cardozo:
Desta forma, é considerado um modelo eficiente e quando corretamente aplicado,
leva a mediação ao êxito, desconstituindo o conflito instaurado entre as partes,
ganhando, inclusive, grande importância nas relações familiares, pois além de
focar na comunicação, não deixa de lado o acordo, o que é muito relevante nas
relações continuadas como as familiares12.
Pode-se compreender assim, que tal método intenta trabalhar nos interessados uma
finalidade para o problema, através da expansão da capacidade de reflexão, que é
estimulada através de perguntas do discurso em si (narração), e da troca de informações
trazidas entre os envolvidos, seja o mediador e a equipe, seja entre as partes, e uns e
outros (círculo de informações).
3.4 Modelo Waratiano
O Modelo Waratiano ou da alteridade é um modelo sui generis, pois se refere ao amor.
O método aplicado a esse modelo objetiva fazer a diferença, implantando o novo na
temporalidade, não tendo, portanto, como objetivo emergente a realização de um acordo13.
Muito embora, alguns estudiosos entendam esse modelo como uma espécie do modelo
transformativo, possui diferenças pois o autor do método, ao falar do amor, afirma que
não se ensina a amar, muito menos a desamar e fazer dessa despedida um momento
bom, com boas recordações é raro, e por isso, que essa fase apresenta tantos conflitos.
Por isso é que se deve distinguir os interesses patrimoniais e materiais das
questões afetivas, pois que mais se percebe é a utilização do patrimônio, dos
bens e até mesmo os filhos como meio de atingir um ao outro, nos processos
12 Ibidem
13 WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis, Santa Catarina: Habitus, 2001, p. 92..
Esse modelo foi idealizado por Warat, um estudioso não só do Direito, mas também
da psicanálise, da filosofia, e da literatura, e nesse sentido traz uma dura crítica ao
racionalismo, que, segundo ele, ocasiona a perda da sensibilidade, e transverte o que os
indivíduos de fato querem. Para o estudioso, o excesso de racionalização do Direito, e
a perda da sensibilidade do seu operador “trouxeram consequências traumáticas, uma
vez que, esses traumas estão ligados aos nossos estados de consciências.”18
Ao defender essa diferença do método estatal para o alternativo, Warat afirma que
o que se utiliza na mediação é o desejo das partes, a vontade, e não a lei positivada.
Por isso, sua amplitude é muito maior, e possivelmente, sua eficácia também será, por
não estar engessada, e racionalizada a padrões que, muitas vezes, não correspondem à
realidade das partes, em questão.
14 TOALDO, Adriane Medianeira e Oliveira, Fernanda Rech de. Mediação familiar: Novo desafio do Direito de família
Contemporâneo. Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?artigo_id=10860&n_link=revista_artigos_leitura>.
Acessado em 20 de out. 2016.
15 EGGER, Ildemar. Cultura da Paz e Mediação: uma experiência com adolescentes. Fundação Boiteux, 2008. p. 123.
16 WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis, Santa Catarina: Habitus, 2001, p. 92.
17 WARAT Apud SPENGLER, Fabiana Marion. Retalhos de mediação. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2014, p. 45).
18 WARAT Apud OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebiades de; ALMEIDA DA COSTA, Renata; HORTA, José Luiz Borges. Cátedra Luís
Alberto Warat. Disponível em http://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/2y368zo8/mwhGNpTvy7tq3Ezd.pdf. Acessado
em 22 de out. 2016.
é sem dúvida muito benéfico para lidar com aqueles conflitos familiares decorrentes
de conflitos de gerações, ou de formas diferentes de ver o mundo, no sentido de não
respeitar as escolhas do outro.
É preciso ressaltar ainda, que não existe um prognóstico do melhor método para a
mediação familiar, em específico, o que existe são modelos, como os apresentados, que
devem ser estudados para a partir do caso concreto se indicar caminhos possíveis para
o exercício desse meio alternativo de resolução de conflitos. Esses modelos são expostos
para facilitar o papel do mediador, tal qual uma orientação, e não para engessá-lo.
Tal afirmação se prova, pois algumas vezes, não se utiliza apenas um método, porém
um compilado deles, é possível começar objetivando um acordo final, com o método
havardiano, mas no meio do processo se descobrir problemas graves na comunicação
das partes, e se adotar técnicas do modelo narrativo circular, por exemplo. A essência da
mediação não é ser um instituto fechado, porém aberto para as partes se manifestarem
sem intervenções coercitivas, isso explica que não seria adequado estabelecer parâmetros
tão engessados na sua forma de ser conduzida, sob o risco de descaracterizá-la.
CONCLUSÃO
As intervenções judiciais que se apresentam têm se mostrado insuficientes e
insatisfatórias em razão das verdadeiras origens e demandas do litígio. Assim, a
mediação tem sido apontada como um instrumento capaz de contribuir de forma mais
profunda e permanente para a transformação do conflito, visando à superação do
método tradicional adversarial por meio de uma cultura mais dialética e terapêutica,
que resgate a comunicação entre as partes, investindo-as da autonomia necessária
para gerir suas adversidades e oportunizando novas perspectivas de crescimento e
desenvolvimento pessoais.
Com o estudo das escolas bem como da mediação familiar, a aplicação de modelos
não é tarefa estanque, podendo ser utilizados todos a depender das características dos
conflitos, porém, é certo que foi observado que há modelos que se adequam mais com a
mediação familiar, que é um sistema que envolve convivência e profundos sentimentos
de afetos e de identidade, tendo ainda dentro desses modelos caracteristicas próprias
para cada tipo de relação, e objetivo 16 intentado pelas partes, seja aqueles intrínsecos
ou os externos.
Especificamente a mediação dos conflitos nas relações interpessoais familiares, por
justamente serem relações de caráter duradouro e ou permanente é necessário uma
maior preocupação, não com um acordo, mas com o exercício do diálogo, do feedback,
da compaixão, da solidariedade, sobretudo para saber porque chegaram ao ponto de
conflito, sendo a observação do intuito fundamental para indicar o, ou os modelo(s)
mais adequado (s) para que a mediação cumpra com êxito o seu objetivo, tal qual
facilitar a concordância, lato sensu, das partes.
REFERÊNCIAS
AMARAL, Márcia T. G. O Direito de Acesso à Justiça e a Mediação. Editora Lumen Juris:
Rio de Janeiro. 2009.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Curso de mediação familiar do CNJ. Disponível em
www.cnj.jus.br. Acessado em 18 de out. 2016.
BRIQUET, Enia Cecília. Manual de mediação: Teoria e prática na formação do mediador.
Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2016.
CARDOSO, Raquel Nery. Os conflitos familiares e as escolas de mediação. Disponível em
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=a0e9cab17a035c5a. Acessado em 20 de
out. 2016.
EGGER, Ildemar. Cultura da Paz e Mediação: uma experiência com adolescentes.
Florianópolis, Santa Catarina: Fundação Boiteux, 2008, p. 116.
FISCHER, Roger. URY, William. PATTON, Bruce. Como chegar ao sim: negociações de
acordos sem consessões. Trad. Vera Ribeiro e Ana Luiza Borges. 2ª ed. Rev. e ampl. Imago:
Rio de Janeiro, 2006.
HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de
Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.
MUSZKAT, Malvina Ester. Guia prático de mediação de conflitos em famílias e organizações.
3. ed. São Paulo: Summus, 2008.
OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebiades de; ALMEIDA DA COSTA, Renata; HORTA, José
Luiz Borges. Cátedra Luís Alberto Warat. Disponível em http://www.conpedi.org.br/
publicacoes/c178h0tg/2y368zo8/mwhGNpTvy7tq3Ezd.pdf. Acessado em 22 de out.
2016.
SPENGLER, Fabiana Marion. Retalhos de mediação. Santa Cruz do Sul: Essere nel
Mondo, 2014.
TOALDO, Adriane Medianeira; OLIVEIRA, Fernanda Rech de. Mediação familiar: novo
desafio do Direito de Família contemporâneo. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 95,
dez 2011. Disponível em:<http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_
artigos_leitura&artigo_id=10860&revista_c adero=21>. Acesso em nov 2016.
WARAT, Luis Alberto. O ofício do mediador. Florianópolis, Santa Catarina: Habitus, 2001.
LEGRÁ FLEITAS,Mirel
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Direito da Universidade Federal Fluminense
mirel2483@gmail.com
ESTEVES VENTURA,Rafael
Estudante de Graduação da Faculdade de
Direito da Universidade Federal Fluminense
revventura@yahoo.com.br
SOARES MEIRELLES,DeltonRicardo
Professor adjunto do Departamento de
Direito Processual e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Direito, da Universidade Federal Fluminense
deltonmeirelles@id.uff.br
RESUMO:
Este artigo busca descrever e refletir sobre o instituto da mediação de conflitos no Brasil
e em Cuba a partir das pesquisas bibliográficas feitas, e além disso, tem por objetivo
apresentar a mediação comunitária destacando os aspectos diferenciais dessa prática
em comparação com os demais procedimentos classificados como mediação,1 sendo
utilizado o método da análise comparativa entre os sistemas de mediação comunitária
em Cuba e o Brasil. Ao resolver os seus conflitos sem o auxílio do Judiciário, a comunidade
torna-se menos dependente do assistencialismo estatal, aumenta sua coesão interna e
promove o empoderamento de seus membros, pela noção de que eles mesmos podem
resolver seus próprios conflitos. No Brasil, a Resolução 125 do CNJ e, recentemente,
Código de Processo Civil e a Lei de Mediação, pretendem estimular o emprego da
mediação no âmbito dos Tribunais, mas diferentes estudos etnográficos realizados até
hoje, evidenciaram que a mediação realizada nos espaços judiciais, geralmente como
uma etapa processual, apresenta como dificuldade que os litigantes não percebem a
distinção entre o processo e a mediação, por isso se torna mais uma formalidade a
cumprir, do que uma forma diferenciada, não-adversarial, de tratamento do conflito,
que é a proposta da mediação. Neste pais, a história da mediação comunitária nesses
novos moldes ainda é recente. Entretanto, começam a surgir iniciativas por parte de
organizações comunitárias e também por parte dos tribunais para a implementação
de meios de resolução alternativa de disputa de âmbito comunitário. Em Cuba, por
sua vez, não existe ainda a Lei de Mediação, senão que tem três Centros Comunitários
onde se faz mediação, onde qualquer um pode solicitar o atendimento do seu conflito
familiar ou de vizinho, sem ter previamente que acudir ao judiciário, pois essa mediação
é realizada em espaços extrajudiciais, como opções distintas no campo da resolução de
conflitos. O trabalho diz respeito ao contraste observado entre esses dois modelos de
solução de conflitos, que ora se aproximam e ora se afastam.
1 AZEVEDO, André Gomma de (org.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.
1. INTRODUÇÃO
Esse artigo tem por objetivo apresentar a mediação comunitária como via diferente de
resolução de conflitos, e para isso será utilizado o método da análise comparativa entre
os sistemas de mediação comunitária em Cuba e Brasil. Nesse sentido, vamos trabalhar
a ideia da mediação comunitária como forma muito importante de acesso à justiça de
todos os cidadãos, o que proporciona maior independência das partes e da própria
comunidade.
Ao resolver os seus conflitos sem o auxílio do Judiciário, a comunidade torna-se menos
dependente do assistencialismo estatal, e promove o empoderamento2 de seus membros,
pela noção de que eles mesmos podem resolver seus próprios conflitos. Essa prática
representa a possibilidade do exercício direto da cidadania, uma vez que garante aos
membros da comunidade o direito de acesso à justiça ao mesmo tempo em que enseja
o desempenho de seus deveres como cidadãos.
2 O termo “empoderamento” decorre da tradução de empowerment. A noção de empoderamento dos membros de uma comunidade
está ligada à ideia de diminuição da dependência destes em medidas assistencialistas (estatais ou de outras entidades), pela promoção
de medidas que permitam o exercício direto dos direitos e deveres dos cidadãos com um consequente ganho qualitativo.
A história da mediação no Brasil tem seu início com o Projeto de Lei nº 4.827/98, proposto
pela então deputada Zulaiê Cobra, sendo aprovado pela Comissão de Constituição e
Justiça no ano de 2002 e enviado ao Senado Federal, passando a ser conhecido como
PLC 94.
Tal projeto tem como principal característica a institucionalização de um procedimento
não obrigatório, que pode ser instaurado antes ou no curso do processo judicial,
podendo o juiz tentar convencer as partes a tentarem a mediação extrajudicial para a
resolução de conflitos. Sendo que, por fim, o acordo alcançado por meio da mediação,
mesmo que extrajudicial, deveria ser homologado pelo juiz.
Então, foi elaborado um anteprojeto pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual
(IBDP) em 17 de setembro de 2001. Esse anteprojeto se dividia em duas partes: a
primeira cuidando da mediação extrajudicial (mediação prévia) e a segunda regulando
a mediação incidental, a qual ocorre depois de ajuizada a ação.
Ocorre que, os projetos supracitados foram fundidos em uma versão consensual (projeto
de lei 94/02). Nessa versão consensual foi mantida a estrutura básica do anteprojeto da
IBDP. Além disso, a nova versão incorporou a definição para o processo de mediação
da deputada Zulaiê Cobra, com apenas algumas modificações, bem como a menção
de que é lícita a mediação em toda a matéria que admita conciliação, reconciliação,
transação ou acordo de outra ordem também que a mediação poderá versar sobre todo
o conflito ou parte dele.
Evidentemente esse projeto sofreu diversas modificações significativas no decorrer
dos anos. Modificações essas que foram fruto de intensos debates entre especialistas
e agentes que trabalham na área. Entretanto, no que se refere aos aprimoramentos
realizados, é necessário ressaltar que a opinião dos especialistas acerca de determinados
aspectos do projeto segue sendo cética.
Por seguida, foi criada a Comissão de Especialistas no âmbito da Secretaria de Reforma
do Judiciário do Ministério da Justiça, com o intuito de construir um texto para produzir
o chamado marco legal de mediação. Estruturaram-se então três frentes de atuação, a
saber: (i) mediação judicial, (ii) mediação extrajudicial e (iii) aspectos gerais de mediação.
Isso tendo como objetivo institucionalizar a mediação judicial e extrajudicial como
instrumentos consensuais de realização da justiça. O material produzido pela Comissão
foi enviado ao Congresso Nacional e foi denominado como PL 7169. Por conseguinte,
houve uma audiência pública em abril de 2014 para se debater o projeto de lei.
Por fim, a lei for aprovada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, juntamente
com a lei de arbitragem, sendo aprovada no dia 26 de junho de 2015 e entrando em vigor
cento e oitenta dias após sua publicação ocorrida no dia 29 de junho de 2015. A partir
daí, recebendo o número 13.140, de 2015 e ficando conhecida como “Lei de Mediação”.
1.2.Origem histórico da mediação em Cuba.
No campo do direito de família em Cuba, há poucos estudos sobre a mediação, e
menos ainda sobre a mediação familiar, sendo um assunto novo, de modo que o estudo
desta instituição torna-se mais interessante, compreendendo alguma pesquisa sobre
mediação, incluindo o Médio de Resolução Alternativa de Litígios, como é o caso do
Dr. Armando Castanedo Abay em seu livro “Mediação, gestão e resolução de conflitos”.
Devido a isso, nos últimos anos, podemos ver um movimento em direção ao estudo
deste meio alternativo de resolução de litígios.
Até agora, o problema dos conflitos ventilado em questões de família nos judiciados,
são tratados através dos mecanismos estabelecidos para os processos cíveis, em que não
é possível a aplicação de certos princípios próprios do processo de família. Juízes de
família, portanto, utilizando suas ferramentas de trabalho que não são características
dos processos de família, porque, apesar de que nossa Lei de Processos Civis conter
algumas disposições que permitem ao juiz para executar uma tarefa de gestão no
sentido de mediação, isso não é expressamente estabelecido.
No decorrer dos últimos anos o seu estudo sobre a matéria tem melhorado a partir
da experiência que há alguns anos já tinham as Casas de orientação na mulher e na
família, onde de facto se estava fazendo mediação comunitária, mas sem o nome mesmo
da mediação, o que poderia se considerar como a referencia mais direta neste sentido.
Porém, o tema ainda é desconhecido pela sociedade cubana por causa de sua pouca
publicidade.
No final, no Direito de Família em Cuba, deve notar-se que não pode-se falar da
existência de uma mediação como mecanismo de garantia no grau superlativo dos
Interesses Superior das crianças.
2. MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA: UMA POLÍTICA PÚBLICA COM A FINALIDADE
DE O DESENVOLVIMENTO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL.
Neste tópico serão abordados pontos específicos dos programas comunitários de
resolução de disputa que geram características capazes de diferenciar a mediação
comunitária das demais práticas de mediação, e de maneira particular abordaremos os
países da Cuba e o Brasil nesta linha de pensamento.
Ao abordar ela, aponta Fabiana Marion Splenger que sua função é reabrir os canais de
comunicação interrompidos e reconstruir laços destruídos; nesse contexto, seu mais
relevante desafio “é aceitar a diferença e a diversidade, o dissenso e a desordem por
eles gerados. Sua principal ambição não consiste em propor novos valores, mas em
restabelecer a comunicação entre aqueles que cada um traz consigo.” 7
A comunidade pode ter um rol social muito forte caso as disputas ou conflitos que
se geram nelas fossem resolvidas através das alternativas que facilitem a sua solução
imediata. Desde o olhar da vizinhança ou da comunidade, a mediação tem uma função
previsora e de prevenção dos futuros conflitos com uma alta probabilidade de se
transformar em delitos, sendo um instrumento para o tratamento dos conflitos. Com
esse método se promove a estimulação das pessoas a pensarem juntas em busca de
uma solução que satisfaça os interesses de todos os envolvidos e valorize a participação
popular, fazendo da mediação comunitária uma política pública que tem como foco
dar poder aos atores comunitários para que eles sejam os responsáveis pelas decisões
tomadas; é por isso que pode se falar que ela se realiza pela comunidade e para a
comunidade, ocasionando um novo olhar para a forma como solucionar os conflitos,
onde o interesse coletivo recebe destaque se sobrepondo ao interesse individual. Essa
7 SPENGLER, Fabiana Marion. A mediação comunitária enquanto política pública eficaz no tratamento dos conflitos. In: REIS,
Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta (orgs.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 11. Santa Cruz
do Sul: Edunisc, 2011, p. 176.
“a mediação comunitária pode ser apontada como uma política pública, uma
vez que se trata de um “conjunto de programas de ação governamental estáveis
no tempo, racionalmente moldados, implantados e avaliados, dirigidos à
realização de direitos e de objetivos social e juridicamente relevantes”.
O novo CPC de 2015 trouxe, dentre as normas fundamentais do processo civil – Capítulo
I do Título I, o compromisso do Estado com a busca de soluções consensuais para os
conflitos de interesses, e no Capítulo X do Título III, se dedica às Ações de Família, pela
previsão do artigo 694:
“Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução
consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de
outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação.”
CONCLUSÕES
Como se procurou demonstrar ao longo do artigo, a mediação comunitária como meio
de acesso à justiça representa um empoderamento da comunidade.
A mediação comunitária possui diversas características próprias que a distinguem de
outras práticas de mediação, como por exemplo, a conciliação nos Juizados Especiais
e a mediação para-processual, e a principal delas, que é ao mesmo tempo causa e
consequência dos fatores diferenciais da mediação comunitária, é a inserção de tais
programas no contexto social da comunidade, o que possibilita a ampliação dos
objetivos da mediação.
Assim, facilita o acesso à justiça aos membros da comunidade, e promove a preservação
do conjunto de valores desta e a manutenção de sua harmonia interna, pois sua prática
permite que os membros da comunidade atuem de forma mais ativa na resolução de
seus conflitos, ganhando independência, e a partir do momento em que a comunidade
passa a ser menos dependente do Estado para a resolução de seus conflitos, começa a se
criar um ambiente propício ao exercício da cidadania pelos membros dessa comunidade.
Por fim, quanto mais uma sociedade se funda no individualismo em detrimento dos
valores comunitários, mais legalista é a sua cultura. Por outro lado, é demonstrado
pelo estudo, que quanto mais uma sociedade cultiva valores comunitários, maior é
a probabilidade de que ela desenvolva, espontaneamente, alternativas internas de
resolução de disputas.
O Brasil já começa a demonstrar sinais desse processo. Nota-se que a expressão
“procurar a justiça” torna-se cada vez mais um sinônimo de propor uma ação judicial, e
a essência desta está cada vez mais distante da realidade vivida nas comunidades, pois
as suas políticas públicas são impostas artificialmente nas comunidades para atender a
política de gestão do Judiciário. Contudo pode se concluir que a medição é imposta de
cima pra baixo, pois o judiciário se apropriou dos médios alternativos de resolução dos
conflitos pra continuar com a concentração do poder, e assim hoje a mediação é mais
um ato processual.
Em Cuba ainda hoje não tem uma sistematização institucionalizada da mediação,
sendo necessário modificar o contexto legislativo cubano e se adaptar esta nova era, no
sentido de atingir a harmonia e estabilidade na família como a unidade fundamental da
sociedade, maximizando o papel negocial das partes no seu próprio processo e da figura
do juiz incentivados a mediação. Além disso, também é importante que as normas legais
em matéria familiar se aperfeiçoem no sentido de permitir a utilização da mediação
oferecendo a possibilidade que o judiciário possa avaliar e dar força executiva ao acordo
extrajudicial alcançado pelas partes sempre que cumpra os requerimentos legais.
Por fim, os programas de mediação comunitária representam uma tentativa de resgatar
valores sociais cada vez mais escassos no âmbito da comunidade. Representam a
proposta da redução da competitividade individual, expressada por uma busca
infindável por poder aquisitivo, em favor do compartilhamento da responsabilidade
pelos problemas existentes na sociedade.
Em conclusão, pode-se afirmar com segurança que as soluções extrajudiciais, em
especial a arbitragem e a mediação, representam o avanço do processo civilizatório
INTRODUÇÃO
O Poder Judiciário vem buscando fornecer respostas efetivas aos problemas das
sociedades contemporâneas. E, por outro lado, o Estado vem demonstrando a sua
incapacidade de monopolizar a solução das demandas sociais. Consequentemente,
tendem a se desenvolver procedimentos alternativos para dirimir os conflitos, como
a arbitragem, a conciliação, a negociação e, com especial destaque nesse momento, a
mediação (Lei 13.140 de 26 de junho de 2015 e o Código de Processo Civil/2015).
A aplicabilidade da Mediação de Conflitos está sendo adaptada à realidade brasileira,
não só pelas características próprias da nossa sociedade, mas, principalmente, por ter
sido regulamentada há pouco mais de um ano. Registre-se que o Código de Processo
Civil/2015 entrou em vigor na data de 18 de março de 2016.
No âmbito do Direito Penal, novos esforços também se fazem necessários para pleitear
o cumprimento das promessas democráticas ainda não realizadas na modernidade.
Começou-se, assim, desde 2009, a trabalhar o conceito de Justiça Restaurativa, cujo
desenvolvimento se deu de forma mais ampla a partir do envolvimento direto da
Organização das Nações Unidas – ONU1.
Nesse processo, tem-se a implantação de núcleos de justiça restaurativa e de mediação
penal como medida alternativa à solução de conflitos criminais. Contudo, esses
núcleos ainda não possuem um arcabouço científico e até há pouco tempo não eram
regulamentados por lei. A Lei de Mediação é recente, sendo necessário que os Núcleos
já implantados passem por uma adaptação e ajuste.
O presente trabalho é fruto das pesquisas realizadas até o momento para a construção
da tese de doutorado intitulada “Mediação Penal: uma via de Acesso à Justiça
Criminal Humanizada”, que se pautará na análise da eficácia e na pertinência da
utilização da Mediação na solução de parte dos conflitos que envolvem a aplicação
da Lei 11.340/2006, como fator de legitimação de um “novo” meio de Acesso à Justiça
para a solução humanizada de conflitos criminais, levando-se, assim, à delimitação do
tema e, consequentemente, da pesquisa. A proposta é que parte dos conflitos criminais
previstos na referida Lei venham a ser tratados a partir da investigação dos conflitos
familiares. A metodologia a ser utilizada caracteriza-se pelo pluralismo com vistas a
garantir a objetividade necessária ao tratamento das relações sociais no contexto da
Mediação Penal como acesso à Justiça Criminal Humanizada. Para tanto, o trabalho em
andamento está sendo desenvolvido através de uma pesquisa bibliográfica, pesquisa
de estudo de casos e pesquisa de campo.
Destarte, delineamos o conceito de Mediação Penal, analisamos a possibilidade da sua
utilização como instrumento alternativo para a resolução de parte dos conflitos que
envolvem a Lei ‘Maria da Penha’, bem como pontuamos esse instituto como via de
Acesso à Justiça. No item 3, discorremos sobre a trajetória da pesquisa que está sendo
desenvolvida no doutorado e pontuamos algumas considerações finais.
1 Resolução 1999/26 (de 26/07/1999), Resolução 2000/14 (de 27/07/2000) e a Resolução 2002/12 (24/07/2002).
1. MEDIAÇÃO PENAL
1.1 Conceito
A Lei 13.140/2015 considera a Mediação como “a atividade técnica exercida por terceiro
imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e
estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia”2.
Segundo CERETTI e PISAPIA “apud” Leonardo Sica,
A expressão mediação, do latim antigo mediare (dividir, abrir ao meio) é
adaptada para indicar a finalidade de enfrentar dinamicamente uma situação
problemática e abrir canais de comunicação bloqueados; refere-se a uma
atividade em que uma parte terceira, neutra, ajuda dois ou mais sujeitos a
compreender o motivo e a origem de um conflito, a confrontar os próprios
pontos de vista e encontrar uma solução, sob a forma de reparação simbólica,
mais do que material (CERETTI, 1997, PP.91-92). A mediação visa restabelecer o
diálogo entre as partes para poder alcançar um objetivo concreto: a realização
de um projeto de reorganização das relações, com resultado o mais satisfatório
possível para todos (PISAPIA, 1997, p. 05). (SICA, 2007, p.46)
p. 205); considerando-se que a mediação pode ser tida como a atividade que
melhor realiza os princípios da justiça restaurativa, abre-se chance real para
que a mediação assegure a continuidade democrática e integre a cidadania
brasileira, preenchendo o vácuo democrático criado pelo atual sistema de
justiça. (SICA, 2009, p.315)
A supracitada lei, que dispõe sobre a Mediação como meio de solução de controvérsias,
em seu artigo 2º, define como princípios deste instituto: imparcialidade do mediador,
isonomia entre as partes, oralidade, informalidade, autonomia da vontade das partes
(voluntariedade), busca do consenso, confidencialidade e boa-fé.
Os princípios da Mediação não são taxativos, se estendem ao âmbito de aplicabilidade
do conflito (internacional, trabalhista, empresarial, organizacional, familiar, penal,
escolar etc.), bem como possuem princípios específicos em cada uma de suas Escolas.
Podemos afirmar que o instituto da Mediação tem como pedra angular o princípio da
dignidade humana, sendo, também, um instrumento de aplicabilidade dos princípios
e garantias constitucionais.
1.2 A mediação no âmbito da violência doméstica
a) Resistência em aceitar a mediação no âmbito da violência doméstica
A Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (Secretaria de Enfrentamento à
Violência contra as Mulheres - SEV), bem como aqueles profissionais que atuam nesta
área, são resistentes ao uso da mediação no âmbito da violência doméstica. Alguns
argumentam que a mulher estaria em posição de desigualdade na relação, não aceitam
conversar com o agressor e não acreditam que a mediação poderá extinguir a violência
doméstica porque, ainda aqui, aplica-se, ao marido/companheiro, a teoria do inimigo
do direito penal.
Alguns profissionais que atuam de forma ativa no campo da violência contra as
mulheres, acreditam que ocorrerá uma separação entre a vítima e o ofensor e que estes
não conviverão a partir daquele momento. Entretanto, o que se verifica, normalmente,
é a existência de uma relação familiar complexa e doente, cujos laços afetivos se
desgastaram, seja pela própria violência existente ou pelo decurso do tempo (escalada
de conflitos não resolvidos ou mal resolvidos → escalada de violência doméstica). Em
sua maioria, esses casais possuem filhos e, ainda que separados, terão que resolver
juntos, os assuntos relacionados aos menores. Nesses casos, melhor que a convivência
seja baseada num patamar mínimo de respeito e sem agressões físicas ou morais.
Necessário que os envolvidos recebam tratamento adequado. Há que salientar, também,
a ocorrência dos conflitos domésticos entre filhos e mães, netos e avós e entre irmãos.
Perguntamos: Como romper o vínculo afetivo entre uma mãe e um filho, por exemplo?
Como aceitar uma solução que mantenha ou fomente, ainda mais, a ruptura de um
laço familiar? Será este o melhor caminho? São questionamentos que devemos pensar,
estudar, pesquisar, antes de responde-los! Nas supracitadas situações, necessário que se
entenda que todos precisam de um tratamento do sistema familiar, mesmo que vítimas
e ofensores passem a residir em casas separadas.
O que se tem observado, na prática, é que a mediação, respeitando os dispositivos da lei
11.340/2006, pode evitar, em muitos casos, que a violência (física, moral ou psicológica)
permaneça ou cresça.
Reforça-se que não estamos aqui a banalizar o enorme avanço conquistado pela Lei
“Maria da Penha”, nem mesmo criticar ou afirmar que o afastamento do agressor do
círculo familiar não seja necessário. Precisamos, sim, ser coerentes com a realidade
que ocorre diariamente dentro das delegacias e Juizados de violência doméstica para
não cairmos no descaso de uma situação grave ou movimentar a Justiça em situações,
inicialmente, desnecessárias (como, por exemplo, quando a suposta vítima quer apenas
“dar um susto” no companheiro ou quer que o delegado passe um “sermão” no mesmo).
Utilizar da mediação penal dentro das delegacias especializadas ou nos Juizados de
violência doméstica faz com que se possa oferecer um tratamento individualizado, ou
seja, a cada conflito dar-se-á encaminhamento especializado e necessário. A mediação
oferece recursos mais flexíveis para inquirir as circunstâncias do caso concreto e,
durante o seu procedimento, podem-se restaurar as partes afetadas pelo delito (vítima
direta, vítima indireta e ofensor).
As pesquisas realizadas até o momento, bem como os projetos de núcleos medição
implantados vêm demonstrando que aplicar a mediação penal no âmbito da violência
doméstica auxilia a resolução de conflitos e de crimes, a diminuir a violência e a
sanar dores.
2. MEDIAÇÃO PENAL COMO VIA DE ACESSO À JUSTIÇA
O Princípio Constitucional do Acesso à Justiça é de ampla definição e há muito tempo
vem sofrendo transformações para acompanhar as demandas da sociedade moderna.
Contudo, é primordial que o sistema jurídico seja efetivamente acessível a todos e,
principalmente, que possa oferecer resultados individualizados e socialmente justos aos
envolvidos em um conflito.
O Programa “Reforma do Judiciário”, do Ministério da Justiça, considera o Acesso à
Justiça
Um direito humano e um caminho para a redução da pobreza, por meio da
promoção da equidade econômica e social. Onde não há amplo acesso a uma
Justiça efetiva e transparente, a democracia está em risco e o desenvolvimento
sustentável não é possível. Assim, a ampliação do acesso à Justiça no Brasil é uma
contribuição certeira no sentido da ampliação do espaço público, do exercício
da cidadania e do fortalecimento da democracia. A democratização do acesso à
Justiça não pode ser confundida com a mera busca pela inclusão dos segmentos
sociais ao processo judicial. Antes disso, cabe conferir condições para que a
população tenha conhecimento e apropriação dos seus direitos fundamentais
(individuais e coletivos) e sociais para sua inclusão nos serviços públicos de
educação, saúde, assistência social, etc., bem como para melhor harmonização
da convivência social. (...)4
Por ‘Acesso à Justiça’, entende-se o acesso a uma ordem jurídica justa e, por ser um
Princípio Constitucional Fundamental (artigo 5º, XXXV da Constituição Federal de
1.988), tal conceito tem sido ampliado para assegurar, aos indivíduos, não só o direito
de ação, mas o efetivo direito à Justiça célere, individualizada, com respostas efetivas,
e, nesse painel, se insere a resolução de conflitos por meios alternativos.
É nessa concepção que se inclui a mediação penal como via legal por ser uma
alternativa democrática, de forma a fomentar o exercício da cidadania, uma vez que
legitima as partes envolvidas no conflito a se reconhecerem como autores da criação
de um “Direito” que atenda às suas pretensões, a um acordo equilibrado, construído
e não imposto.
3. DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA DE DOUTORAMENTO NO PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU DA UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ/RJ6
O presente artigo é parte da minha tese de doutorado, “Mediação Penal: uma via de
Acesso à Justiça Criminal Humanizada”, que pretende fazer uma análise do referido
instituto como implementação de um processo democrático que, através do diálogo,
da cooperação, da compreensão, da disponibilidade, da autonomia, pode-se chegar a
respostas mais satisfatórias e menos desgastantes para o Direito Penal.
A hipótese que orienta a tese de doutorado pauta-se na demonstração que o instituto
da Mediação Penal amplia os propósitos do ordenamento jurídico na medida em
que instrumentaliza os direitos humanos possibilitando uma “nova” forma de acesso
a uma Justiça Criminal Humanizada, bem como democratiza o Poder Judiciário.
Para tanto, propomos que os delitos previstos na Lei nº 11.340/2006 venham a ser
tratados a partir da investigação dos conflitos familiares. Examinaremos a eficácia
e a pertinência da aplicação da Mediação na resolução de tais conflitos como um
legítimo instrumento do princípio da dignidade humana. Importante ressaltar que
todas as pesquisas, bem como a aplicação da mediação no âmbito da justiça criminal
respeitam a legislação brasileira.
3.3 Metodologia
A metodologia a ser utilizada caracteriza-se pelo pluralismo com vistas a garantir a
objetividade necessária ao tratamento das relações sociais no contexto da Mediação
Penal como acesso à Justiça Criminal Humanizada. A pesquisa em andamento está
sendo desenvolvida através de pesquisa bibliográfica, pesquisa de estudo de casos
e pesquisa de campo. A abordagem se dá de forma quanti-qualitativa, pois, embora
sejam colhidos dados numéricos, o instituto da Mediação privilegia a análise qualitativa
de resolução de conflitos. Conduziremos a pesquisa pela indução para obtenção de
generalizações, a partir de fatos considerados isoladamente; a dedução, sobretudo,
para a explicação de fatos particulares ou para a fixação de perspectivas; e o método
analógico para estudos comparativos. Destarte, como supramencionado e respeitando
os rigores da lei penal brasileira, tem-se o desenvolvimento de uma proposta teórico-
prática no âmbito da mediação penal como forma alternativa de resolução de alguns
dos conflitos previstos na Lei 11.340/2006.
Iniciamos a pesquisa com a leitura, estudo e análise das referências bibliográficas.
A pesquisa de campo, bem como o estudo de casos realizar-se-á em laboratório
experimental: Núcleo Preventivo de Mediação Penal do Escritório Faria Felipe Sociedade
Individual de Advocacia, em Nova Lima/MG.
Durante os atendimentos de mediação no referido Núcleo, serão realizadas entrevistas
através da aplicação de questionários para obtenção de dados objetivos e subjetivos.
A partir de então, serão verificados o número de casos solucionados pelo Núcleo
Preventivo de Mediação Penal.
A pesquisa empírica da presente tese, respeitando os rigores da lei penal brasileira,
tentará criar um arcabouço científico para legitimar a aplicação da Mediação Penal em
alguns dos delitos que envolvem a “Lei Maria da Penha” sustentando-a como meio
alternativo de solução de conflitos criminais familiares e inserindo-a no Ordenamento
Jurídico Brasileiro como uma “nova” via de acesso à Justiça Criminal Humanizada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muito se discute acerca da complexidade dos delitos, da sua extensão sobre aspectos
da dinâmica social e do número de pessoas que por eles são atingidas. Necessário,
portanto, que se amplie o acesso à justiça, utilizando-se de técnica mais humanizada
que busque uma solução individualizada para atender aos fins do Direito Penal, quais
sejam: a prevenção do delito, a (re) inserção social, a diminuição da reincidência, que
tem como consequência lógica a redução da criminalidade, bem como do número dos
processos criminais.
As experiências de Mediação Penal existentes no Canadá, Austrália, Japão, África
do Sul, Itália, Espanha, Portugal, Argentina e Nova Zelândia (este considerado país
pioneiro na implementação de práticas restaurativas), bem como no Brasil, demonstram
que é possível restaurar no lugar de punir.
Contudo, ainda hoje, no Brasil, o operador do Direito e a sociedade em geral veem o
crime como uma transgressão à lei (e o é!) buscando apenas a punição do infrator. Esta
é uma visão que não condiz com a nossa realidade social, tanto assim que, se o rigor
na punição legislativa sanasse as questões relacionadas ao delito, não mais teríamos
Resultados parciais, nos dá embasamento para a presente pesquisa, que busca analisar
as dimensões jurídico-sociais de um processo democrático de acesso a uma Justiça
mais humanizada em que os envolvidos no conflito alcançam, de forma mais célere, a
solução do mesmo e o faz de forma ampla e integral.
7 ANDRADE, Berenice Neide Brandão. MPMG Jurídico - Revista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Edição Especial
Mediação/2012, p.10.
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ANDRADE, Berenice Neide Brandão. Tocando nas Estrelas. Belo Horizonte: PHD
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho é resultado de pesquisa em andamento realizada a partir do
projeto “Uma Análise Empírica sobre a Formação do Mediador: da Universidade ao Campo
de Trabalho”, em desenvolvimento no âmbito do PPGSD/UFF. Apesar da pesquisa
inicialmente tratar da formação dos mediadores, os autores notaram que as regras
sobre a utilização da mediação de conflitos no âmbito do Poder Judiciário, bem como
a estrutura deste impactam diretamente no desenvolvimento da atividade profissional
do mediador. Desta forma, pretende-se analisar no presente trabalho as disposições
legais e institucionais que regem o instituto da mediação e como a implementação
da mediação ocorre na prática judiciária, a partir de observação feita no âmbito do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJERJ).
A mediação pode ser definida como uma forma adequada de solução de conflitos em que
um terceiro imparcial (mediador) auxilia as partes em conflito para que restabeleçam
o diálogo entre si e construam um acordo para a solução do litígio. O instituto ganhou
maior importância com a publicação do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015)
e com a Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015), diplomas federais que normatizam o
instituto.
Na primeira parte do artigo, serão destacados os principais dispositivos legais acerca da
estrutura da mediação no Poder Judiciário, a partir da análise da Resolução nº 125/2010
do Conselho Nacional de Justiça. Depois, serão tratados os dispositivos do Código de
Processo Civil e também o contraste entre tais artigos e a prática da mediação, com base
na parte bibliográfica. Por último, será realizada uma análise sobe a implementação
da mediação no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJERJ),
trazendo reflexões sobre sua utilização.
A metodologia utilizada para realização do presente trabalho é essencialmente
bibliográfica, com a leitura de livros recentes acerca do tema da mediação de conflitos
e com a análise das legislações que regem o tema. A partir de pesquisa feita no site
do próprio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJERJ) chegou-se também
a algumas conclusões acerca da instalação dos Centros Judiciários de Solução de
Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) naquele Tribunal. Assim, pretende-se realizar uma
reflexão – ainda que incipiente – acerca das dicotomias encontradas entre as normas
legais da mediação e a aplicação deste instituto no Poder Judiciário.
1. AS DISPOSIÇÕES CONTIDAS NA RESOLUÇÃO Nº 125/2010 DO CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ)
No ano de 2010 o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Resolução nº 125/2010,
que instituiu a “Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de
interesses no âmbito do Poder Judiciário”. É interessante analisar as considerações
feitas pelo Conselho no preâmbulo da Resolução, os quais demonstram as justificativas
para a publicação daquela.
Em síntese, pode-se afirmar que alguns motivos que levaram à implementação dessa
Política Pública foram: 1) o Poder Judiciário tem como objetivos estratégicos a eficiência
operacional, o acesso ao sistema de Justiça e a responsabilidade social; 2) o direito de
acesso à Justiça, previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição da República implica
em acesso aos órgãos judiciários, bem como acesso à ordem jurídica justa e a soluções
Assim, no ano de 2013 a Resolução do CNJ já previa que os Tribunais deveriam implantar
os “mecanismos de soluções de controvérsias” de forma imediata ou no prazo de 12
(doze meses).
O artigo 3º da Resolução dispõe que o Conselho Nacional de Justiça auxiliará os
Tribunais a implementarem a política pública de solução de controvérsias:
Art. 3º O CNJ auxiliará os tribunais na organização dos serviços mencionados
no art. 1º, podendo ser firmadas parcerias com entidades públicas e privadas,
em especial quanto à capacitação de mediadores e conciliadores, seu
credenciamento, nos termos do art. 167, § 3°, do Novo Código de Processo
Civil, e à realização de mediações e conciliações, na forma do art. 334, dessa lei.
(Redação dada pela Emenda nº 2, de 08.03.16) – grifos nossos
Diante das disposições analisadas, é possível verificar que desde o ano de 2010, quando
a Resolução nº 125/2010 foi publicada, o CNJ determinou que os Tribunais deveriam
criar os Núcleos (NUPEMEC) e os respectivos Centros Judiciários (CEJUSCs) no âmbito
do Tribunal estadual.
Ocorre que o panorama atual demonstra que ainda há um grande caminho a ser
percorrido para que os Tribunais implementem efetivamente uma política pública de
solução adequada de conflitos e construindo estruturas adequadas para atender as
demandas determinadas pelo CNJ.
Diante desse quadro parece-nos que o Poder Judiciário pretende-se apropriar da
mediação, como detentor quase exclusivo desse meio adequado de solução de conflitos
(nas etapas pré-processual e processual), mas não realizou as adaptações necessárias, as
estruturas não são adequadas ao funcionamento ideal conforme as exigências contidas
na Resolução do CNJ, bem como há dificuldades na capacitação dos mediadores e a
consequente formação de um quadro permanente de mediadores em cada CEJUSC.
É interessante também analisar as disposições contidas no Código de Processo Civil e
que demonstram essa ambiguidade entre a apropriação da mediação e a adequação do
Poder Judiciário para recebê-la.
2. AS DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (LEI Nº 13.105/2015) E
QUESTÕES PRÁTICAS SOBRE SUA APLICAÇÃO
Nesse item pretende-se fazer a análise acerca de alguns dispositivos do Código de
Processo Civil e contrastar com questões doutrinárias e práticas acerca da mediação.
O Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) foi publicado em 16 de março de 2016,
com vacatio legis de (01) um ano, com vigência a partir de 17 de março de 2016. O novo
Código manteve alguns institutos, modificou outros e incluiu a regulamentação de
Desta forma, parece que a mens legis do Código é a de que deve existir uma
diferenciação entre as audiências do processo e as “audiências” de mediação/
conciliação (posteriormente será falado sobre essa nomenclatura) e as audiências de
instrução e julgamento ou outras determinadas no Código. Parece também que há
intenção de separar a mediação do processo, em que o Centro (CEJUSC) deveria ser
preferencialmente separado do Juízo.
Todavia, muitas Comarcas não possuem Centros de Mediação instalados ou nas que
eles existem, há apenas um Centro de Mediação para atender a toda Comarca3. Assim,
a questão que se coloca é como será feita a sessão de mediação nos locais em que não
possuem Centros instalados. Será feito na própria sede do Juízo? Na sala de audiências
processuais?
O Código de Processo Civil traz em seu artigo 334 e 12 (doze) parágrafos, as disposições
acerca da “audiência” de mediação e conciliação. Inicialmente, é importante dizer que
os especialistas em mediação afirmam que a nomenclatura ideal não seria audiência,
mas sim sessão de mediação. Há várias razões para que seja denominada “sessão”, mas
a principal delas é a da necessidade de que as partes entendam que a mediação é um
procedimento totalmente diferente do processo e da audiência realizada nos processos
e presididas pelo juiz.
A função principal é que a partir da nomenclatura as partes possam diferenciar a
mediação do processo judicial, especialmente quanto ao seu protagonismo e a forma de
atuação do mediador. De fato, diante dos costumes do Direito, no âmbito da audiência o
protagonismo de falas e opiniões é delegada aos advogados, enquanto as partes muitas
vezes estão ali por exigência da lei, mas não sabem o que de fato está ocorrendo na
audiência. Bárbara Gomes Lupetti Baptista (p. 4.673, 2008) em um texto que trata do
princípio da oralidade do processo civil trata muito bem essa questão:
“Desse modo, enquanto o processo buscar uma verdade transcendente, a ser
revelada unicamente pelo Juiz, na decisão judicial – conforme se demonstrará
mais adiante – e enquanto estiver fulcrado no princípio do contraditório (que
exige a interferência de um terceiro na relação processual, com poder de
autoridade, para escolher a tese prevalecente), as próprias partes envolvidas
no conflito não chegarão a consenso algum e a sua participação ficará,
necessariamente, condicionada à de terceiros, que elas representam, ficando
silente a sua própria voz.” (grifos nossos)
Já na mediação o protagonismo é 100% das partes visto que são elas que podem
restabelecer o diálogo e construir uma solução justa e adequada para o conflito existente
entre elas. O mediador é apenas um facilitador do diálogo, não lhe sendo permitido
propor qualquer acordo para pôr fim ao conflito. Mesmo com a obrigatoriedade de
participação dos advogados na sessão de mediação, as partes continuam com o seu papel
de destaque, sendo certo que aos advogados cabe a função de orientar tecnicamente
acerca de eventual acordo formulado pelos clientes.
3 É o caso da comarca da capital do Rio de Janeiro.
Por isso que também vale para reflexão o dispositivo do Código (artigo 334, § 10), que
autoriza que os advogados representem as partes na sessão de mediação, por meio
de procuração. É complicado tendo em vista o que foi falado sobre protagonismo das
partes.
Por fim, o Código estipula que a sessão de mediação deve ter prazo de duração máximo
de 20 minutos:
Art. 334. (...)
§ 12. A pauta das audiências de conciliação ou de mediação será organizada de
modo a respeitar o intervalo mínimo de 20 (vinte) minutos entre o início de
uma e o início da seguinte. (grifos nossos)
Assim havia bastante tempo para conversar e tentar chegar a um entendimento a esse
respeito pois, no dizer dos mediadores, ‘era importante para os filhos conviverem com
ambos os pais’”. (grifos nossos)
Dessa forma, observa-se que a estrutura da mediação é diferente da estrutura do
processo, não havendo lógica em se estabelecer prazos para o termino do acordo.
Esses são alguns dos dispositivos relativos à mediação e o Poder Judiciário, através
do processo civil. A seguir faremos algumas ponderações sobre essas disposições e o
paradoxo existente entre elas e as práticas de mediação.
5 Observadores são alunos que fazem o Curso de Capacitação em Mediação, que é dividido em dois módulos: Módulo Teórico, que
pode ser oferecido no Tribunal de Justiça ou em Instituição Privada; e o Módulo Prático, que para os medidores judiciais que consiste
na observação das sessões de mediação, conduzidas por mediadores mais experientes.
6 Disponível em: <http://cgj.tjrj.jus.br/consultas/mapa-do-estado-comarcas>>. Acesso em 15 out. 2016.
7 Disponível em <http://www.tjrj.jus.br/web/guest/institucional/mediacao/cejusc/lista-centros-mediacao>. Acesso em 15 out.
2016.
8 Divisão feita pela autora conforme mapa Regional do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em <http://www.mapas-rio.com/
regioes.htm>. Acesso em 13 out. 2016.
É interessante lembrar que em muitas cidades têm Juízos únicos ou poucos Juízos em
atuação. Ademais, como dito, a função do mediador é voluntária. Talvez essa disposição
possa ser mais uma restrição e um obstáculo para o exercício da mediação. Também
deverá ser observado se essa cláusula é somente para os advogados ou para o escritório
do qual ele participa também.
4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Para o presente artigo foi utilizada apenas a metodologia bibliográfica, com a
fundamentação teórica realizada a partir da análise das leis nacionais acerca do tema
da remuneração dos mediadores (Código de Processo Civil; Lei de Mediação; Resolução
nº 125/2010 do CNJ). Também foi realizada leitura de duas obras acerca da mediação
que puderam contribuir para as reflexões feitas no presente trabalho.
5. RESULTADOS ALCANÇADOS
No presente artigo, pretendeu-se demonstrar os desafios enfrentados pelo Poder
Judiciário para implementar a mediação e oferecê-la de forma efetiva à população
e aos que buscam uma forma adequada de solução de conflitos. Foi realizada uma
análise dos principais dispositivos sobre o tema, envolvendo a Resolução nº 125/2010
do CNJ e o Código de Processo Civil e realizado um contraste entre o que foi positivado
na legislação e as práticas que ocorrem no dia-a-dia dos Tribunais. Espera-se que o
trabalho possa contribuir para uma reflexão acerca da institucionalização da mediação
pelo Poder Judiciário, sendo certo que é possível que os dois mundos convivam em
harmonia, desde que as práticas representem a legislação sobre mediação, bem como
as disposições da doutrina.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do quadro normativo que o Brasil possui acerca da utilização dos métodos
adequados de solução de conflitos (conciliação/mediação) é preciso observar as práticas
judiciárias e verificar de que forma o Poder Judiciário está lidando com esses novos
procedimentos e como está se estruturando.
No presente artigo foram identificados alguns aspectos práticos que se contradizem
com as expertises de mediação e até mesmo com o que os diplomas legais estabeleceram
como regras a serem adotadas pelo Poder Judiciário para a efetiva implementação e
funcionamento dos Centos de Mediação. A responsabilidade foi delegada aos Tribunais,
os quais ainda estão caminhando na direção de aplicação do novo Código de Processo
Civil e de um novo instituto nesse âmbito jurídico, que é a mediação.
Além de possuir a estrutura física para implementação dos Centros, outras questões
merecem atenção do Poder Judiciário para boa utilização da mediação: a nomenclatura
“sessão”, ao invés de “audiência”; o limite de tempo e prazo para as sessões de mediação;
a possibilidade de os advogados representarem as partes na sessão de mediação. Essas
são questões que devem ser revistas pelo Poder Judiciário ao implementar a mediação.
Essas são algumas das questões práticas enfrentadas pelo Poder Judiciário, Tribunais,
mediadores e cidadãos que surgem como desafios para a efetiva implementação da
mediação como forma de solução de conflitos no âmbito judicial.
Assim, diante das questões expostas, pretende-se realizar uma reflexão acerca da
implementação da mediação no âmbito do Poder Judiciário, considerando as
normas do Conselho Nacional de Justiça e do Código de Processo Civil e a forma
como a mediação está sendo aplicada e utilizada pelos Tribunais. As dificuldades
enfrentadas pelo Poder Judiciário, mediadores, mediandos, advogados são oriundas
de questões que, embora positivadas em Resoluções e Leis, ainda não foram
efetivadas no campo jurídico.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 13.105/2015 – Institui o Código de Processo Civil. Disponível em: <http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em 21 maio
2015.
_______. Lei nº 13.140/2015 – Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução
de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública; altera
a Lei no 9.469, de 10 de julho de 1997, e o Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972; e revoga o
§ 2o do art. 6o da Lei no 9.469, de 10 de julho de 1997. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13140.htm>. Acesso em 21 maio 2015.
_______. Resolução nº 125/2010 – Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento
adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências.
Disponível em <http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=2579>. Acesso em
14 set. 2016.
CABRAL, Trícia Navarro Xavier; HALE, Durval; PINHO, Humberto Dalla Bernardina
de Pinho (Org.). O Marco Legal da Mediação no Brasil – Comentários à Lei nº 13.140/2015, de
26 de junho de 2015. São Paulo: Atlas, 2016.
FILPO, Klever Paulo Leal. Mediação Judicial – Discursos e Práticas. Rio de Janeiro: Mauad,
FAPERJ, 2016.
LUPETTI BAPTISTA, Bárbara Gomes. O Princípio da Oralidade visto sob uma perspectiva
empírica: uma alternativa metodológica de pesquisa em Direito. Disponível em: <<https://
s3.amazonaws.com/conpedi2/anteriores/XVII+Congresso+Nacional+Bras%C3%A
Dlia+(20%2C+21+e+22+de+novembro+de+2008).pdf>. Acesso em 15 out. 2016
SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação de Conflitos: da Teoria à Prática. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2016.
INTRODUÇÃO
Esse artigo reflete perfunctoriamente as impressões da primeira etapa de pesquisa
de um estudo descritivo-investigativo-exploratório que busca analisar o ensino da
mediação de conflitos na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense
– UFF, especificamente através da ação de extensão desenvolvida no núcleo de prática
jurídica no ano de 2013.
Com o implemento de práticas sensíveis e transdisciplinares como forma de resolução
adequada de conflitos no âmbito jurídico, em especial da mediação, através da Resolução
125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, bem como das Leis 13.140/2015 (marco legal
da mediação) e 13.105/2015 (novo Código de Processo Civil), destaca-se a relevância
do ensino jurídico das faculdades de Direito, no sentido de se ajustarem às recentes
tendências e normas jurídicas.
O contexto do ensino jurídico sempre foi marcado por práticas adversariais, formando
tradicionalmente operadores do Direito voltados à resolução de conflitos através
da litigiosidade. É também papel das faculdades de Direito (trans)formar essa base
atualmente inadequada, calcada em um modelo dogmático monológico, para ampliar
a metodologia, contribuindo com a formação de um profissional crítico e humanizado.
A fim de atingir esse anseio, se torna imprescindível essa releitura da formação
jurídica não apenas no ensino teórico, mas complementando-se sobretudo nos níveis
de pesquisa e extensão acadêmicas.
Nesse sentido, foi criado em 2013, ação de extensão voltada à resolução de conflitos
através da mediação intitulada Programa de Proteção e Facilitação à Convivência Harmônica,
desenvolvida no cotidiano do Centro de Assistência Jurídica da Universidade Federal
Fluminense – CAJUFF, vinculado ao Departamento de Direito Aplicado – DDA/UFF.
Apesar de ter obtido excelente aprovação pela comissão avaliadora com o grau 9,5 (nove
e meio) e de ter tido apoio financeiro e institucional da Universidade, as dificuldades e
resultados, a seguir descritos, não corresponderam aos anseios iniciais, revelando um
aparente sucesso, porém um verdadeiro fracasso no que concerne ao principal objetivo,
surgindo assim as primeiras hipóteses de trabalho, a saber, se existe resistência à
mediação de conflitos pelos estudantes da faculdade de Direito e se existe resistência à
introdução da mediação na prática extensionista no núcleo de prática jurídica.
Assim, a pesquisa se norteia por duas etapas investigativas. A primeira, através da
aplicação de um questionário fechado para os estudantes da graduação inscritos nas
disciplinas obrigatórias vinculadas ao Departamento de Direito Aplicado – DDA,
seguida de uma análise quantitativa dos dados colhidos através do Statistical Package
for Social Sciences (SPSS), cuja análise se segue como objeto deste artigo, marcando as
primeiras impressões da referida etapa de pesquisa.
A partir do tratamento e análise dos dados, restou acentuado um hiato entre a mediação
de conflitos na teoria (aspecto dogmático, político e institucional) e na prática, com a
concretização dessas práticas sensíveis no âmbito universitário em geral, revelando uma
necessidade de adequação cultural por parte dos envolvidos, bem como metodológica
por parte dos operadores do Direito, o que será demonstrado no decorrer do presente
estudo.
legítima, o mesmo não podemos afirmar das sentenças prolatadas pelo órgão do Poder
Judiciário, principalmente quando o caso se refere à relações continuadas, como as de
família ou de vizinhança.
Nas sessões de mediação, a intenção foi de oportunizar uma forma ímpar de se operar
a razão de cada participante, de forma que eles fossem capazes de pensar e propor os
enunciados argumentativos em condições que garantissem uma expectativa legítima
de observância, propiciando com o tempo o entendimento e a reconstrução da relação
afetada pelo conflito.
Por mais utópico que isto possa parecer, nas circunstâncias em que se encontra a
sociedade e temendo seus rumos, a mediação é proposta como um mecanismo de
transformação da própria realidade social e da prática da cidadania, favorecendo a
concretização dos direitos humanos. Com efeito, compreendida como ação dirigida aos
protagonistas dos conflitos sociais, a mediação propicia a abertura de um amplo debate
sobre os antagonismos existentes no próprio seio da sociedade, possibilitando o diálogo
e ampliação da compreensão das partes, transformando-se a situação adversarial
em uma situação de cooperação, promovendo assim, o acesso à Justiça na sua forma
mais eficaz, que é o gerenciamento e, possível, solução efetiva do conflito, resposta tão
almejada pela sociedade e pelo próprio Direito.
Dessa forma, buscou-se incentivar práticas sensíveis para resolução dos conflitos no
CAJUFF, a partir de uma prática diferenciada, mas complementar ao atual ensino
jurídico. Os objetivos principais foram verificar a possibilidade de uma nova proposta
de ensino da prática jurídica, baseada na cooperação e no resgate da cidadania e
responsabilidade dos envolvidos no litígio, além de analisar a implementação da
mediação como método alternativo e adequado de resolução de conflitos no âmbito do
núcleo de prática jurídica da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense,
analisando descritivamente os resultados decorrentes de tal proposta.
Sob a Coordenação dos professores autores do presente artigo, o programa contou com
uma equipe de execução composta de oito docentes e seis discentes, e se desenvolveu
no período de 12 (doze) meses (entre março de 2013 e fevereiro de 2014), semanalmente,
durante todos os horários de plantão do Centro de Assistência Jurídica para oportunizar
a participação máxima do público-alvo.
Ao ser cadastrado no SIG-Proj (Sistema de Informação e Gestão de Projetos), vinculado
ao MEC (Ministério da Educação e Cultura), e submetido à avaliação, o Programa foi
aprovado com o grau 9,5 (nove e meio), além de ter sido habilitado à contratação de dois
bolsistas, com financiamento institucional.
Após a seleção de um bolsista, o Programa iniciou seu desenvolvimento e contou
também com o apoio institucional no que concerne à parte de produção de materiais
gráficos (banners, cartazes, panfletos e folhetos), através do CEAEX/UFF (Centro de
apoio à extensão).
Houve ampla divulgação do Programa no município de Niterói, através dos principais
veículos de comunicação com cartazes fixados nos pontos de ônibus, barcas, prédios
públicos, prédios da UFF, inclusive nas Varas de Família e nas áreas comuns do Forum
da Comarca de Niterói, com a devida autorização do Tribunal de Justiça, além de
convites nas rádios e na própria mídia de televisão da UFF.
Após essa enorme divulgação nos meses de maio e junho de 2013, efetivamente as
inscrições foram abertas a partir de julho do mesmo ano, por meio de atendimento
presencial, por telefone ou via correio eletrônico. No mês de julho, não obstante à
procura diária pela assistência judiciária do Centro de Assistência Jurídica da UFF –
CAJUFF, com relação ao Programa, só houve um casal, o que causou certa estranheza.
Nos meses que se seguiram, manteve-se a irrisória procura, totalizando o número
final de apenas sete casos concretos, sendo quatro de procura voluntária e mais três de
convite a partir de procura por solução litigiosa no Centro de Assistência Jurídica da
UFF – CAJUFF.
Mesmo com essa triste realidade, o Programa foi premiado na 18ª Semana de Extensão
da UFF, XI Prêmio Josué de Castro de Extensão, vinculado à área de Direitos Humanos
e Justiça, com a apresentação do trabalho intitulado A experiência da mediação extrajudicial
no núcleo de prática jurídica da UFF, tendo obtido o terceiro lugar, em outubro de 2013.
Seguiram-se ainda importantes conquistas no campo teórico-acadêmico, com a
publicação de relevantes trabalhos científicos no ano de 20142, em eventos como
ANPOCS (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais),
ABEDi (Associação Brasileira de Ensino de Direito), ABRASD (Associação Brasileira
de pesquisadores em Sociologia do Direito) e CONINTER (Congresso Internacional
Interdisciplinar em Sociais e Humanidades).
Esse cenário revela uma suposta contradição entre os objetivos apresentados e os
resultados atingidos. Enquanto institucionalmente a ação de extensão obteve sincera
relevância com grau elevado de aprovação e total financiamento, no plano acadêmico
e pedagógico, apesar da ampla divulgação, poucos alunos realmente se interessaram.
Ademais, com relação à própria sociedade, pouquíssimas pessoas também procuraram
o núcleo de prática jurídica buscando uma solução não judicial. Tais circunstâncias
despertaram os problemas de pesquisa já traçados, que podem ou não confirmar a falta
de base cultural, importando em uma revisão do conjunto inteiro.
2. INVESTIGAÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA – PRIMEIRA FASE
2.1. Método
São inúmeras as classificações e taxionomias para investigação de problemas de
pesquisa de natureza científica, devendo ser escolhido o mais adequado àquela hipótese
a qual se pretende explorar. A presente pesquisa possui contorno teórico-empírico e
natureza descritiva e exploratória, ou seja, tem como fonte tanto aspectos descritivos,
como também colheita de dados através de questionários fechados e abertos.
Essa primeira etapa correspondeu à aplicação de questionário fechado construído
especificamente para esse fim. A população pesquisada neste momento foi dividida em
dois grupos grandes de alunos, todos inscritos em disciplinas obrigatórias vinculadas
ao Departamento de Direito Aplicado – DDA, sendo o primeiro grupo alunos da
2 2014 – ANPOCS – A introdução de novos contornos interdisciplinares ao ensino jurídico através da extensão acadêmica; 2014 –
ABEDi – A mediação no ensino jurídico: experiências do centro de assistência jurídica da Universidade Federal Fluminense; 2014
– ABRASD – Mediador: auxiliar da justiça ou do Direito?2014 – CONINTER - O ensino jurídico e os meios consensuais de resolução
de conflitos.
3 Disciplina correspondente ao sétimo período da faculdade de Direito e por conseguinte é a primeira disciplina efetivamente ligada
à prática jurídica e desenvolvida no Departamento de Direito Aplicado. É o primeiro contato que o aluno possui com o núcleo de
prática jurídica da faculdade.
4 Disciplina correspondente ao décimo período da faculdade de Direito e por conseguinte após já ter cursado as quatro disciplinas
de Laboratório obrigatórias vinculadas ao Departamento de Direito Aplicado – DDA, presumindo-se que já conheça a vivência
prática do profissional do Direito.
5 Devido a essa intercorrência não prevista, pensa-se, antes de ultrapassar para a segunda etapa, revalidar a primeira, aplicando
novamente os questionários aos alunos da disciplina Laboratório IV.
Tabela 1
Nesse ponto, como o resultado foi diverso da realidade, importante considerar quantos
foram os votos colhidos dos alunos pertencentes à disciplina Laboratório de Prática I
(sétimo período) e quantos correspondentes à disciplina Laboratório de Prática III ou
IV (nono e décimo período), sendo 29 (vinte e nove alunos – 64,4%) do primeiro grupo
e 71 (setenta e um alunos – 60,2%) do segundo grupo.
Mesmo fazendo essa diferenciação dos grupos, comprova-se que é indiferente se o
aluno se encontra no início ou no final da vivência da prática jurídica no núcleo de
prática, já que as porcentagens dentro de cada grupo são praticamente as mesmas com
relação às mesmas classes de respostas. Importa contudo é que o aluno percorre os
quatro períodos do núcleo de prática jurídica e mesmo assim deixa a faculdade sem
dominar a prática da mediação de conflitos.
Com relação à pergunta de número 4, havia apenas as respostas positiva e negativa,
sendo certo que todos os votos foram válidos, totalizando 67,5% (sessenta e sete vírgula
cinco porcento), ou seja, 110 (cento e dez) alunos entendem que o acordo não precisa
de homologação judicial para ter efetividade, contra 32,5% (trinta e dois vírgula cinco
porcento), ou seja, 53 (cinquenta e três alunos) com a resposta positiva, entendendo ser
imprescindível a cancela do poder judiciário.
Finalmente, no que concerna à pergunta número 5, também de respostas positiva e
negativa apenas, sendo todos os votos válidos, 87,7 % (oitenta e sete vírgula sete porcento),
representando 143 (cento e quarenta e três alunos) entendem que o profissional mediador
não precisa ter formação jurídica contra apenas 12,3% (doze vírgula três porcento),
o que representa o coeficiente de 20 (vinte) alunos, que reconhecem necessidade de
formação profissional jurídica ao mediador de conflitos.
Dessa forma, conjugando esses dados, pode-se aparentemente afirmar, a depender dos
dados dos próximos subconjuntos, que a população discente entrevistada não conhece,
seja por desinteresse, seja por falta de transmissão de conhecimento (necessário
observar o resultado do terceiro subconjunto, mormente a pergunta de número 10),
vivências práticas do instituto da mediação de conflitos, sinalizando uma cultura ainda
litigiosa, não voltada à incorporação de práticas dialógicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desse modo, se pretendeu nesse breve estudo uma conclusão mediata, a ser fartamente
explorada na pesquisa completa, a fim de sinalizar empiricamente que o ensino
jurídico de práticas dialógicas, em especial da mediação, por vezes é transmitido com
distanciamento das demandas sociais, sob o fundamento de neutralidade e autoridade,
com métodos que não estimulam a criatividade, a reflexão e o senso crítico do mundo
ao seu redor e muito menos compatibilizam a teoria com a prática.
A mediação reforça o seu papel como prática sensível e humanista, contribuindo,
quando inserida como disciplina nos Cursos de Direito, não só para uma resolução
mais adequada das controvérsias, mas também na formação positiva de um caráter
mais humano nos operadores do Direito.
Contudo, não obstante as reformas legais e processuais, trazendo a mediação inclusive
institucionalizada nos tribunais, percebe-se que ainda se sustenta uma formação do
profissional do Direito voltada a práticas litigiosas, o que pode trazer dificuldades à
difusão das técnicas adequadas de resolução de conflitos.
INTRODUÇÃO
É notório que o Estado figura, hoje, como o maior litigante do país. Esse fenômeno
resulta, em grande parte, da crescente judicialização das questões administrativas e a
intransigência do Estado em juízo.
Diante deste contexto, a utilização pelo Poder Público de meios consensuais para a
resolução dos seus conflitos – seja entre entes públicos, seja até mesmo entre eles e
os indivíduos – é tema que se afigura importante e atual. Para enfrentá-lo, todavia, é
preciso também responder a questões decorrentes da necessária compatibilização entre
as especificidades do Poder Público e a aplicação adequada das técnicas de solução
consensual de conflitos na esfera pública.
2. O PODER PÚBLICO EM JUÍZO E SUA RELAÇÃO COM A CRISE DO PODER
JUDICIÁRIO BRASILEIRO
Conforme apontam os dados da pesquisa “100 Maiores Litigantes – 2012”, divulgada
pelo Conselho Nacional de Justiça, somente os setores públicos da esfera federal e
dos Estados foram responsáveis por 39,26% dos processos que chegaram à Justiça de
primeiro grau e aos Juizados Especiais entre janeiro e outubro do ano de 2011.1 Mais um
exemplo: somente no ano de 2010 foram distribuídas aos Juizados Especiais Federais
1.211.833 novas demandas, o que resulta numa média mensal superior a 100.000 novas
demandas2, fato que tem preocupado em especial a Justiça Federal e seus órgãos de
controle, conforme amplamente noticiado.3
Cremos que tais dados resultam, principalmente, de dois fatores. Em primeiro lugar,
a ausência de uma cultura administrativa de solução dos conflitos internamente, sem
a necessidade da intervenção jurisdicional, o que tem estimulado uma tendência de
judicialização das controvérsias envolvendo a Administração Pública. Em segundo
lugar, a intransigência do Estado em Juízo, deflagradora de alta litigiosidade nas
causas de Direito Público com pouca probabilidade de consenso e fomentadora de uma
cultura da sentença para a solução dos conflitos que envolvam a Administração Publica
(FACCI, 2015, pp. 133-138)
No que se refere à judicialização das relações jurídico-administrativas, seus efeitos
perniciosos não se limitam ao aumento da carga de serviço dos juízes e dos percentuais
de processos nos quais o Estado figure como parte: além de reforçar a descrença da
população na capacidade das instâncias administrativas em resolverem seus problemas,
o repasse contínuo das controvérsias administrativas ao Judiciário como instância
decisória também contribui para que a Administração se torne cada vez menos eficiente.
Isso porque, no lugar de estimular a melhoria e ampliação dos serviços pela própria
Administração Pública, as soluções dos conflitos entre o Estado e o cidadão têm sido
reiteradamente construídas dentro do espaço judicial (CARVALHO, 2011, passim).
1 De acordo com levantamento divulgado em 29/10/2012 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), conforme noticiado no sítio
eletrônico daquele órgão, disponível em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/21877:orgaos-federais-e-estaduais-lideram-100-
maiores-litigantes-da-justica. Acesso em 02/10/2013.
2 Segundo informações constantes do sítio eletrônico do Conselho da Justiça Federal (CJF) - http://daleth.cjf.jus.br/atlas/Internet/
JuizadosTABELA.htm.
3 V. “CJF e CNJ querem resolver gargalos dos juizados” - http://www.jf.jus.br/cjf/noticias-do-cjf/cjf-e-cnj-querem-resolver-
gargalos-dos-juizados.
4 Cf. Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais. PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE
INTERPRETAÇÃO DE LEI nº 2006.72.95.01.5544-2. Relatora JUÍZA JOANA CAROLINA LINS PEREIRA, julgado, por maioria, em
16.2.2009.
5 Com o escopo de inibir a judicialização das controvérsias administrativas, a Procuradoria-Geral Federal, por meio da atuação
da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS (PFE/INSS), instituiu o Índice de Concessões Judiciais (ICJ), apurado a partir
da proporção entre o volume de benefícios concedidos mensalmente por ordem judicial e o volume total mensal de benefícios
concedidos administrativamente, permitindo assim auxiliar na identificação de soluções para causas geradoras de litígios judiciais
através da análise das práticas de gestão desenvolvidas pelas unidades melhor avaliadas, v. http://www.agu.gov.br/sistemas/
site/TemplateTexto.aspx?idConteudo=82965&id_site=1106
6 Com vistas a evitar o temor de responsabilização do advogado público federal em propor a conciliação, a Conclusão n.º 47 da I
Reunião de Serviço dos Juizados Especiais Federais, realizada pela Procuradoria Federal Especializada – INSS, entre os dias 15 e
18 de setembro de 2003, em Florianópolis/SC (3ª e 4ª Regiões), e entre 22 e 25 de setembro daquele ano, em Recife/PE (1ª, 2ª e 5ª
Regiões), prevê expressamente que, ainda que em estágio probatório, o procurador federal não poderá ser responsabilizado pela
realização de acordos, salvo atuação com erro grosseiro ou dolo.
com a manifestação contrária dos advogados, a incontinenti aplicação do §3º do art. 331,
CPC de 1973. Nesse caso, a conciliação era frustrada antes mesmo de ser efetivamente
tentada a autocomposição pelas partes através do diálogo entre elas e com o magistrado.
As leis alusivas aos Juizados Especiais (9.099/1995, 10.259/2001 e 12.153/2009) promoveram
alguns avanços em direção à conciliação. Tais diplomas fazem expressa referência à
figura do conciliador e do juiz leigo como agentes estimuladores da composição do
litígio entre as partes envolvidas. Embora seja evidente a preocupação do legislador em
caracterizar os juizados especiais como espaço que privilegia a conciliação (enunciada
expressamente como princípio norteador da atividade desses órgãos jurisdicionais),
observa-se nas referidas leis, muito embora em menor grau, o mesmo déficit que marca
o CPC de 1973: não cuidam dos meios adequados de atuação do Judiciário na sua
missão de pacificação do litígio. Esses diplomas legais estipulam uma audiência para a
realização da conciliação, enfatizam que a mesma deverá ser tentada e poderá ocorrer a
qualquer tempo no processo, aludem ao conciliador e ao juiz leigo, mas não se ocupam
de regular a sua atividade em direção à autocomposição. O art. 15 da Lei nº 12.153/2009
(que dispõe sobre os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, do
Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios), por exemplo, ao tratar das figuras
do conciliador e do juiz leigo, limita-se a afirmar que serão recrutados, os primeiros,
preferentemente, entre os bacharéis em Direito, e os segundos, entre advogados com
mais de dois anos de experiência (§1º), o que está inclusive a denotar, pelo menos, a
impropriedade da expressão “juiz leigo”, eis que a lei alude a pessoa letrada em Direito
e, mais que isso, exige atividade jurídica prévia. Na realidade, ao invés de estimular
da pacificação do litígio por meio de pessoas da própria comunidade, com a aplicação
do “direito” presente no cotidiano local (o que seria mais condizente com a expressão
adotada), optou-se pela condução da conciliação por “aprendizes de juízes togados”. O
art. 16 é revelador dessa opção legislativa: aproxima o conciliador ao juiz togado (caput)
e exige que sua atuação na conciliação seja marcadamente semelhante à condução da
instrução pelo magistrado (§1º).
O tratamento dos meios alternativos de solução de conflitos foi significativamente
aprofundado pela Lei nº 13.105/15 (novo CPC). Logo no seu art. 3º, o novo diploma faz
referência à arbitragem, cuja utilização é permitida na forma da lei (§1º); à tarefa do
Estado de promover, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos (§2º); e
ao dever de juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público
de estimular a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de
conflitos, inclusive no curso do processo judicial (§3º). Conforme Humberto Theodoro
Júnior, Dierle Nunes, Alexandre Bahia e Flávio Pedron:
“Ao analisar o disposto no art. 3º do Novo CPC, percebe-se uma notória
tendência de estruturar um modelo multiportas que adota a solução jurisdicional
tradicional agregada à absorção dos meios alternativos.
Busca-se, assim a adoção de uma solução integrada dos litígios, como corolário
da garantia constitucional do livre acesso do inc. XXXV do art. 5º da CR/1988.
(THEODORO JR., 2015, p.213)
Pública deve corresponder, assim, no plano prático, ao dever de efetivo respeito pelo
Estado dos direitos dos cidadãos, isto é: dever de consideração do ser humano como fim
em si mesmo e nunca mero meio para atingir objetivos coletivos ou outros individuais.
Por essas razões, o princípio democrático impõe ao Poder Público que procure dialogar
com os administrados para encontrar uma solução adequada para os seus conflitos.
Assim, incumbe ao Poder Público disponibilizar os mecanismos para a resolução
consensual de conflitos, cabendo ao particular optar pelo meio adequado, inclusive se
prefere o processo judicial tradicional. Da mesma forma, nos conflitos que envolvem
entes públicos entre si, a solução consensual deve ser buscada até que seja alcançada,
como imperativo do princípio da eficiência administrativa.
Além dos referidos fundamentos constitucionais, a legislação infraconstitucional prevê
meios para a resolução consensual de conflitos envolvendo o Poder Público.
Neste sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) também previu,
em seu artigo 211, a possibilidade de celebração de ajuste de conduta.
Nesta direção, o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 1990), ao alterar a
Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347, de 1985) para incluir o parágrafo 6º ao seu artigo
5º, passou a prever a celebração de “ajustes de conduta” nos temas que podem ser objeto
de ação civil pública – meio ambiente, patrimônio cultural, histórico e paisagístico,
ordem econômica, defesa do consumidor, entre outros.
Na mesma linha, a legislação de defesa da concorrência (Lei 8.884, de 1994), autorizou
em seu art. 53 a celebração de compromisso de cessação de conduta para suspender
processo administrativo sancionador, modelo adotado também pela nova lei que
disciplina o assunto (Lei n. 12.519, de 2011), cujos artigos 9º, V, e 85 continuam a dispor
sobre o compromisso de cessação de conduta lesiva à concorrência.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional também admite procedimento desta
natureza no exercício das atividades de fiscalização das instituições de ensino superior
(Lei n. 9.394/1996, art. 46, § 1º.; Decreto n. 5.773/2006, arts. 47 a 50), ao expressamente
conceder prazo para saneamento de deficiências eventualmente identificadas pela
avaliação.
No âmbito do Direito Ambiental, a Lei n. 9.605/1998 (art. 79-A), o Decreto n. 99.274/1990
(art. 42) e o Decreto n. 6.514/2008 (arts. 139 a 148) também admitem a celebração de
compromisso de ajuste de conduta, na esteira da Lei de Ação Civil Pública.
A Consolidação das Leis do Trabalho, através da Medida Provisória nº 2.164-41/2001,
a qual acrescentou o art. 627-A e modificou o art. 876, passou a prever a possibilidade
de celebração de termo de compromisso ou de ajuste de conduta em matéria de saúde
e segurança do trabalho. Tais regras foram regulamentadas pelo Decreto n. 4.552/2002
(art. 28).
O Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741, de 2003) também contém, em seu artigo 74, X, previsão
de possibilidade de celebração de ajuste de conduta.
Registre-se, ainda, que a legislação de quase todas as agências reguladoras outorga a
tais autarquias o poder-dever de dirimir, no âmbito administrativo, as divergências
entre concessionárias, permissionárias, autorizadas etc., de que são exemplos o artigo
3º., V, da Lei n. 9.427, de 1996 (ANEEL), e a Resolução ANEEL n. 333, de 2008; o artigo
19, XVII, da Lei n. 9.472, de 1996 (ANATEL); o artigo 20 da Lei n. 9.478, de 1997 (ANP)
e Portaria ANP n. 69/2011, art. 54; a Resolução n. 442/2004 (ANTT); a Resolução n.
987/2008 (ANTAQ); a Lei n. 9.656, de 1998, art. 29, § 1º e Lei n. 9.961, de 2000, art. 4º.,
XXXIX (ANS); a Lei n. 12.154, de 2009 (PREVIC), art. 2º., VIII; Instruções PREVIC n. 3 e
n. 7/2010.
Da mesma forma, vale mencionar que o Código Tributário Nacional admite expressamente
a transação como forma de extinção do crédito tributário (artigo 156, III).
Não se pode confundir indisponibilidade de direito com intransigibilidade, pois esta
somente se afigura nas situações em que a lei expressamente veda a transação, como o
artigo 17, parágrafo 1º, da Lei n. 8.429, de 1992, que trata de improbidade administrativa,
e que, para Luciane Moessa de Souza, consubstanciava “o único caso de proibição
expressa de transação em nosso ordenamento” (SOUZA, 2012, p. 173). Esse dispositivo foi
expressamente revogado pela recente Medida Provisória nº 703, de 18 de dezembro de
2015, que dispõe sobre acordos de leniência. Ademais, mesmo que, por hipótese, seja
possível definir com precisão sobre a indisponibilidade de direitos considerados em
si mesmos, não há indisponibilidade quanto ao modo dos mesmos serem regulados
(GRECO, 2011b, p. 77), nada impedindo, dessa maneira, que meios de resolução de
conflitos sejam empregados para esse propósito.
No mesmo caminho, Fernando Gama e Delton Meirelles ensinam que direito
indisponível pode ser definido como aquele direito que é irrenunciável, mas que
pode admitir eventual transação, dependendo do grau de indisponibilidade: absoluta
(irrenunciável, insuscetível de transação e de persecução processual obrigatória), relativa
(irrenunciável, suscetível de transação, mas de persecução processual obrigatória) ou
limitada (irrenunciável, suscetível de transação e de persecução processual facultativa).
Para os referidos processualistas, apenas as hipóteses de indisponibilidade absoluta
obstam a transação entre particular e pessoa jurídica de Direito Público, sendo que
“[a] garantia da tutela jurisdicional efetiva afasta os argumentos fazendários contrários à
tutela diferenciada” (MEIRELLES; MIRANDA NETTO, 2009, p. 6.401). Nesta direção,
foi publicada em 26 de junho de 2015, a Lei nº 13.140 que dispõe sobre a mediação
entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de
conflitos no âmbito da Administração Pública.
5. ESPECIFICIDADES DA APLICAÇÃO DOS MEIOS DE RESOLUÇÃO
CONSENSUAL DE CONFLITOS ENVOLVENDO O PODER PÚBLICO
As peculiaridades decorrentes do regime jurídico da Administração Pública impõem
certas limitações ao poder-dever de transigir no espaço das relações jurídico-
administrativas.
O princípio da isonomia, neste sentido, determina ao Poder Público igual tratamento
a situações iguais, não sendo lícito à Administração agir de outra forma quando
presentes os mesmos elementos fáticos ou em situações jurídicas que contenham a
mesma ratio (PÉREZ, 1983, p. 122). Nessa pauta, pode-se afirmar que o princípio da
impessoalidade administrativa (art. 37, caput, CRFB/88), como projeção da isonomia,
também se encarta como fundamento normativo para a aplicação do princípio de
vedação ao comportamento contraditório nas relações de Direito Público. Desse modo,
isonomia, bem-estar social etc., a realização do interesse público, muitas vezes, consistirá
exatamente na tutela de interesses privados, de forma que esse amálgama conceitual
formado pelo que se supõe ser interesse público, coletivo ou privado impede que se
possa cogitar de uma supremacia a priori de um sobre o outro (BINENBOJM, 2008, pp.
308-311).
Não perfilhamos da ideia de que exista, no ordenamento, princípio que estabeleça a
supremacia incondicional e apriorística de um valor, princípio ou direito sobre outros:
à Administração Pública incumbe, consideradas todas as circunstâncias de fato, o
dever de extrair qual o “interesse” a ser tutelado na hipótese enfrentada, considerando
não apenas a inequívoca unicidade e irrepetibilidade de cada caso mas, sobretudo,
a complexidade do ordenamento jurídico, composto de princípios e regras, de forma
que a ordem jurídica deve ser reconstruída de todas as perspectivas possíveis com o
propósito de alcançar a norma adequada capaz de produzir justiça material em cada
caso específico. Além disso, a adoção de uma prevalência a priori de um interesse
sobre outro, tende a gerar uma restrição arbitrária de direitos fundamentais, conforme
assinala Paulo Schier:
a assunção prática da supremacia do interesse público sobre o privado como
cláusula geral de restrição de direitos fundamentais tem possibilitado a
emergência de uma política autoritária de realização constitucional, onde os
direitos, liberdades e garantias fundamentais devem, sempre e sempre, ceder
aos reclames do Estado que, qual Midas, transforma em interesse público tudo
aquilo que é tocado (SCHIER, 2005, pp. 218-219).
O direito à igualdade (art. 5º, caput e inciso I, CRFB/88), por sua vez, também incide
sobre as relações entre a Administração Pública e os particulares. Não se pode, assim,
favorecer um grupo em detrimento de um grupo menor ou de apenas um indivíduo
simplesmente sob o vago argumento do bem comum.10
A constitucionalização do Direito Administrativo impôs ainda uma reformulação do
princípio da legalidade estrita, passando a significar tal formulação que o administrador
não está apenas positivamente vinculado às leis infraconstitucionais mas, também e
principalmente, aos princípios e regras constitucionais. A legalidade administrativa,
assim, consiste em mais um princípio inserido no âmbito dos princípios e regras
constitucionais, dos quais, inegavelmente, também é destinatário o administrador
público, competindo-lhe o dever de, mesmo na ausência de regra legal específica –
tendo em vista a força normativa dos princípios constitucionais –, materializar as
normas constitucionais no caso concreto. Por essa razão, o princípio da legalidade
estrita não pode ser invocado como um obstáculo, por exemplo, à incidência do
princípio da proteção da confiança, “mesmo quando se trata de preservação de condutas – ou
seus efeitos – inválidas” (MAFFINI, 2006, p. 223). Esse fenômeno tem levado parcela da
doutrina a aludir a um princípio da constitucionalidade ou da juridicidade (por todos,
v. BINENBOJM, 2008, pp. 311-313).
10 Como afirma Leonardo Greco, “a jurisdição não deve ser exercida com a finalidade de fazer prevalecer o interesse público. Se, num
processo judicial, se estabelecer um conflito entre o interesse público e um interesse particular, o juiz tem de fazer prevalecer aquele
que merecer a tutela jurisdicional de acordo com a lei ou com o ordenamento jurídico. Logo, não se pode dizer aprioristicamente que
nesse conflito sempre prevalecerá o interesse público” (GRECO, 2011a, pp. 70).
que as conciliações acontecem entre entes e órgãos da Administração Pública, possuímos dados
indicados a partir de 2007 a 2013 (nesta data) na ordem de: R$ 8.209.733.394,39”.
Tabela referente à produção da CCAF, enviada pela Assessoria de Planejamento da
CAAF para o nosso e-mail em 29 de setembro de 2015:
8. CONCLUSÃO
É notório que o Estado é o maior usuário do serviço de prestação de justiça no Brasil. A
judicialização das controvérsias administrativas e a intransigência da Administração
Pública em juízo são fatores importantes para compreender esse fenômeno, que tem
contribuído para o quadro de absoluto entupimento de processos no Poder Judiciário.
A constitucionalização do Direito Administrativo implicou na mudança do foco
principal da atuação da Administração Pública, antes calcada no melhor interesse do
Estado e agora direcionada à realização plena da cidadania. É nesse contexto que se
compreende o atual papel da Advocacia Pública, antes identificada tão-somente com
a defesa dos interesses patrimoniais do Poder Público, e agora comprometida com as
normas constitucionais, em especial, a observância da moralidade administrativa, o
respeito aos direitos fundamentais e ao exercício pleno da cidadania.
A utilização de meios consensuais de resolução de conflitos pelo Poder Público, neste
contexto, além de instrumento de pacificação, consubstancia indicação pelo Estado de
que pretende evitar os efeitos perniciosos da judicialização dos litígios. Ademais, o
prolongamento do litígio nas causas manifestamente favoráveis ao administrado apenas
eternizaria o estado de insegurança jurídica. Nestes casos, nem mesmo o interesse
meramente econômico do Estado seria tutelado com a insistência no litígio pois o
prolongamento da demanda aumentaria o valor do montante devido, em se tratando de
decisões condenatórias contra a Fazenda Pública. A utilização de meios alternativos pelo
Poder Público, de que é exemplo os utilizados pela Câmara de Conciliação e Arbitragem
da Advocacia Pública Federal, contribui para a efetivação da prestação jurisdicional,
caminha em direção à realização do princípio da eficiência administrativa e representa
a utilização responsável do sistema judiciário pela Advocacia Pública, consistente na
consciência das implicações que sua postura no litígio irá carrear não apenas à parte
contrária, mas ao sistema judiciário, ao próprio Estado e à sociedade.
REFERÊNCIAS:
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fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 25. ed. São Paulo: Malheiros,
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MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2005.
INTRODUÇÃO
A análise da história da humanidade prova que o mundo viveu mais tempo em guerra
do que em paz. Dos mais de 5600 anos que compõem a trajetória do homem na Terra,
foram só 292 anos de paz, contabilizando por volta de 14500 conflitos armados até o
início deste século (NASCIMENTO, 2007). O esforço da comunidade internacional,
evidenciada pela ação dos corpos diplomáticos, para que se estabeleça uma relação
pacífica entre os Estados demonstra os princípios de assegurar as gerações vindouras
dos flagelos e de se assegurar a paz internacional.
Os mecanismos internacionais de solução de controvérsias, norteados pela Carta da
ONU, se mostram extremamente relevantes na construção de uma política nacional
que impulsione a adoção de medidas que evitem a instauração de demandas judiciais.
Nesse sentido, a Lei nº 13.140/2015, aliada à aplicação do Novo Código de Processo Civil,
marca dentro do ordenamento jurídico brasileiro o caráter definitivo da importância
dos meios alternativos de resolução de controvérsias, principalmente os métodos
autocompositivos.
A transição de uma cultura do litígio para uma cultura do diálogo é a forma encontrada
então como meio de sanar parte dos problemas relacionados às deficiências do
judiciário. É mister destacar que grande parte das demandas judicializadas envolvem
a Administração Pública, grande alvo das normas estipuladas pela Lei de Mediação.
Assim, encara-se a adoção da referida Lei como instrumento de gestão voltada à redução
da litigância intragovernamental.
Considera-se, aqui, as teorias abordadas pelos franceses Pierre Lascoumes e Patrick Le
Galès sobre a ação pública e sobre a instrumentação das políticas públicas. Acredita-
se que para a boa implementação de uma política deve haver a comunicação entre os
diversos setores e seus atores, públicos e privados, consolidando, então, a ação pública.
A análise que será desenvolvida no presente artigo se destina a compreender como
a experiência internacional de métodos de solução pacífica de controvérsias pode
contribuir na adoção de meios alternativos de resolução de conflitos, principalmente da
mediação, no âmbito da Administração Pública, encarando a medida como instrumento
de gestão.
1. A EXPERIÊNCIA INTERNACIAL: DIFERENTES MEIOS DE ADMINISTRAR
CONFLITOS
Analisar a aplicação do direito internacional é diferente do tratamento dado às questões
de direito interno. Este, geralmente bem normativo e delimitado, é fundamentado
na aplicação da norma e das jurisprudências de seus tribunais. Aquele, mais fluido,
não expressa, costumeiramente, o aspecto imperativo dos ordenamentos jurídicos
domésticos, mais fundado, então, na aplicação dos costumes e ultimamente na
interpretação das jurisprudências das cortes internacionais.
Na vida em comunidade, a existência de conflitos sempre esteve presente. Na
comunidade internacional, não foi diferente. O registro de conflitos internacionais, dos
gregos até as repercussões dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, é extenso
e produz cada vez mais baixas civis, aliados ao combate efetuado por drones.
Historicamente, a provocação das cortes para a resolução de conflitos foi vista como a
maneira certa de se fazer entender.
Se é certo que, durante um longo período, a heterocomposição e a autocomposição
foram considerados instrumentos próprios das sociedades primitivas e tribais,
enquanto o ‘processo’ jurisdicional representava insuperável conquista da
civilização, ressurge hoje o interesse pelas vias alternativas ao processo,
A atual estrutura administrativa limitada não se mostra célere nem ativa na busca de
soluções. O resultado é uma enorme demanda judicial. O que se necessita é a transição
da cultura do litígio para a cultura da cooperação, do diálogo.
A facilitação de acesso à justiça não é sinônimo de e não deve levar à prodigalização
ou à banalização desse meio de resolução de conflitos, o qual empenha parcelas
cada vez mais importantes do orçamento estatal e que, quando logra o adentrar
o mérito da lide, oferta solução impactante, que polariza as partes em vencedor
e vencido, a par de representar uma mirada retrospectiva, que não pensa o
povir e não preserva a continuidade das relações, não raro perenizando as
desavenças ou lançando os germens de conflitos futuros (MANCUSO, 2009
apud ZANFERDINI, 2012, p. 110).
Acredita-se que a mediação prevista no instituto legal seja a melhor forma de se resolver
litígios. “A mediação tem de ser praticada como uma forma de pacificação da sociedade
e não apenas como uma forma de solução de conflitos” (WATANABE, 2003, p. 50).
Ao tratar da implementação dos juizados especiais de pequenas causas, o jurista Kazuo
Watanabe se preocupa da utilização deste mecanismo como forma de aliviar a justiça,
não com seu verdadeiro propósito de acesso à justiça e de uma forma de tratamento de
conflito de interesse.
Tenho um grande receio de que a mediação venha a ser utilizada com esse
enforque e não com o maior, que seria dar tratamento adequado aos conflitos
que ocorrem na sociedade; não se pode pensar nela como uma forma de aliviar
a sobrecarga a que o Judiciário está sendo submetido hoje, porque daremos
à mediação o mesmo encaminhamento que estamos dando hoje aos juizados
especiais (WATANABE, 2003, p. 45-6).
por quem. Para eles, os instrumentos são como instituições sociais, permitem
estabilizar as formas de ação coletiva, na medida em que definem a ação dos
atores. Os instrumentos permitem diferenciar os objetivos das reformas,
osinstrumentos preconizados, sua utilização e os parâmetros adotados. Para
Bruno Jobert (1994), a mudança das políticas públicas tem passado muito mais
pelo controle das receitas do que por suas grandes finalidades, qual seja, a
realização de direitos na forma de serviços (COELHO e LÚCIO, 2007, p. 88).
Assim, o instrumento da mediação pode completar as ações tomadas por entes públicos
para atingir a máxima satisfação dos clientes das políticas públicas.
Os conflitos intragovernamentais geram o enfraquecimento da gestão pública,
uma vez que esta visa melhorar os serviços oferecidos à sociedade. A litigância
intragovernamental diminui a eficiência de entidades que trabalham para o interesse
público e trazem desarranjo às estruturas da Administração. Atualmente, essas
demandas judiciais são remetidas e resolvidas pelo Judiciário brasileiro, notadamente
custoso e moroso.
4. A MEDIAÇÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚLBICA COMO INSTRUMENTO DE
GESTÃO
A mediação no ordenamento jurídico brasileiro constitui, assim, um belo instrumento
de gestão. Entende-se por instrumentação da ação pública “o conjunto dos problemas
colocados pela escolha e o uso dos instrumentos (técnicas, meios de operar, dispositivos)
que permitem materializar e operacionalizar a ação governamental” (LASCOUMES,
LE GALÈS, 2012, p. 20). A implementação da lei de mediação no Brasil seria, então, uma
tecnologia inovadora capaz de solucionar parte do inchaço do judiciário brasileiro e,
concomitantemente, resolver entraves típicos da Administração estatal.
Considerando-se a teoria da ação pública desenvolvida por Lascoumes e Le Galès
(2012), tem-se que uma política pública envolve muito mais que a esfera governamental,
priorizando-se o laço existente entre atores públicos e privados. Aqui, percebe-se a
importância da transição da mente dos operadores de direito em parar de pensar em
litígio e começar a desenvolver campos de diálogos.
Como instituto relativamente novo em muitos Estados, muitas vezes ainda nem
validado no positivismo intragovernamental, a mediação ainda carece de lapidação e
aperfeiçoamento de suas técnicas.
Neste sentido, os métodos de solução pacífica de controvérsias consagrados no direito
internacional público podem contribuir para o aprimoramento da mediação como
política pública.
5. RESULTADOS ALCANÇADOS
Como anteriormente disposto, a mediação é o carro chefe da Lei no 13.140/15. Mediação
conjura o significado de equilíbrio, de reatar aquilo que foi quebrado (SPENGLER e
SPENGLER NETO, 2007). O que se almeja é a estabilidade e a paz na ordem social
(WRASSE, 2007).
A mediação surge para tratar de um problema paradoxal: em tempos que a mídia e
os meios de comunicação se desenvolvem bastante, existe uma séria dificuldade de se
comunicar, de se entender (SPENGLER e SPENGLER NETO, 2007).
REFERÊNCIAS
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Nova Ordem Inernacional?. Belo Horizonte, 2008. Disponível na internet: http://
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Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD).
BRASIL. 10 anos de transformação: os bastidores, os desafios e o futuro da Reforma
do Judiciário / Secretaria de Reforma do Judiciário, Felipe Benaduce Seligman, André
Luís César Ramos (organizadores). – Brasília: Ministério da Justiça, 2014.
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CASELLA, Paulo Borba; ACCIOLY, Hidelbrando; SILVA, G. E. do Nascimento e. Manual
de direito internacional público. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa parte do incômodo gerado pela incoerência entre discurso e prática
do direito penal, bem como pela dissonância com aquilo que é apregoado pela
reforma psiquiátrica. Tem como objetivo analisar a constituição discursiva do termo
“medida de segurança” em pessoas submetidas a tal prática de internação, tendo como
forma de coleta das informações empíricas entrevistas semiestruturadas. A Análise do
Discurso da Escola Francesa foi o método de análise empregado por permitir verificar,
na fala dos entrevistados, as ideologias que constroem a visão da medida de segurança.
Especialmente no caso de pacientes com esquizofrenia – sujeitos escolhidos para o
estudo – a análise do discurso permite a verificação de discursos-outros presentes ao
seu redor. Logo, analisar o discurso de pessoas com esquizofrenia significa verificar os
discursos que são projetados sobre elas – o que permite analisar, portanto, o modelo
de intervenção pela equipe estatal. Partimos, então, em busca dos interlaçamentos
discursivos presentes na constituição discursiva da medida de segurança.
1. Fundamentação teórica
Na atualidade, a loucura (criminosa ou não) é vista como o contraponto da razão e, por
isso, frequentemente é silenciada. Não é à toa que diversos teóricos se debruçam sobre
a loucura e sobre a medida de segurança sem sequer cogitar a ideia de ouvir essas
pessoas, parecendo trazer um afastamento entre o “objeto” de pesquisa e o “sujeito”
pesquisador. Neste estudo, não!
Tem a intenção de ouvir o que os considerados loucos têm a dizer sobre si e nos mostrar
como veem o mundo que os rodeia. Este trabalho segue a linha teórico metodológica de
Michel Foucault e Michel Pechêux.
O fundamento da inimputabilidade e o objetivo da medida de segurança declaram-
se atrelados a questões de saúde: doença e tratamento mental, respectivamente. No
entanto, “tanto o manicômio, quanto a prisão são instituições de Estado que servem
para manter limites aos desvios humanos, para marginalizar o que está excluído da
sociedade”. Ou seja: penitenciárias e manicômio judiciários (atualmente “Hospitais
de Custódia e Tratamento ou “Alas de Tratamento Psiquiátrico”) são “instituições
totais” que visam higienizar a sociedade do indesejável, do desviante. Conclui o autor
que ambas são “situações intercambiáveis: podemos tomar um preso e 1 colocá-lo no
manicômio ou tomar um louco e metê-lo na prisão” (BASAGLIA, 1979, p. 45).
A tensão entre Direito Penal e Reforma Psiquiátrica ocorria desde os primórdios do
movimento que luta pela extinção dos asilos manicomiais. Com a promulgação da Lei
10.216/2001 (Lei de Reforma Psiquiátrica - LRP), a discussão se tornou mais acirrada. Se
antes as discussões eram teóricas entre juristas e reformistas, hoje há um cerne jurídico
que merece análise. A lógica antimanicomial positivada pela LRP traz um aparente
conflito de normas entre esta e o Código Penal (CP - 1940/1984), Código de Processo
Penal (CPP - 1941) e Lei de Execuções Penais (LEP – 1984). Há um tensionamento interno
no âmbito jurídico.
1 A hermenêutica é um ramo das ciências jurídicas que busca interpretar a lei, visando compreender o seu “espírito”. É atribuído ao
deus Hermes da Mitologia Grega, considerado o deus-intérprete, aquele que compreendia o que a mente humana não entendia. Daí
decorre seu nome (BASTOS, 2002).
2 Art. 4º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra hospitalares se mostrarem
insuficientes (BRASIL, 2001-a).
3 Art. 97 - Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível
com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial (BRASIL, 1984-a)
4 Art. 6º A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos
(BRASIL, 2001-a)
5 Art. 172. Ninguém será internado em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, ou submetido a tratamento ambulatorial,
para cumprimento de medida de segurança, sem a guia expedida pela autoridade judiciária (BRASIL, 1984-b).
6 Art. 4º, §1º O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio. (BRASIL, 2001-a).
7 Art. 97 - Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível
com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial (BRASIL, 1984-a).
8 Art. 97 (...) § 1º (…) O prazo mínimo deverá ser de 1 (um) a 3 (três) anos. (BRASIL, 1984-a)
9 Art. 97 (…) § 1º - A internação, ou tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for
averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade (BRASIL, 1984-a).
A LRP é de 2001, enquanto o CP e o CPP são da década de 1.940 e a LEP de 1.984, logo, a
mais nova derroga10 as disposições quanto às medidas de segurança. No entanto, uma
parcela de estudiosos questiona se realmente houve a referida revogação, apegando-se
basicamente a dois argumentos:
a) O critério temporal não se aplica quando há diferença de especialidades entre as
normas (o que obriga a prosseguir no método de Kelsen até o próximo critério de
resolução da antinomia);
b) O art. 9º da Lei Complementar 95/1.998 dispõe que “A cláusula de revogação deverá
enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas (Redação dada
pela Lei Complementar nº 107, de 26.4.2001).” (BRASIL, 2001-a-b).
O primeiro argumento será analisado com mais profundidade a seguir. O segundo
deve ser refutado porque se dirige à atividade legislativa, não ao intérprete do direito.
O art. 9º da Lei Complementar 95/1.998 teve alteração em sua redação no dia 26/4/2001.
Até então, o dispositivo vigia com a seguinte redação (BRASIL, 1998):
“Art. 9º Quando necessária a cláusula de revogação, esta deverá indicar expressamente
as leis ou disposições legais revogadas.” (grifo nosso).
A LRP é do dia 6 de abril de 2001, logo as disposições da Lei Complementar não se
aplicam à LRP. É bem verdade que o ideal da técnica legislativa está disposto no art.
9º da Lei Complementar 95. No entanto, é impossível exigir do legislador que conheça
e declare todas as alterações normativas decorrentes de uma lei nova. Por outro
lado, atento ao princípio da unidade e harmonização hermenêuticas, não há como se
cogitar a permanência de normas contraditórias ao argumento de que o legislador não
enumerou, “expressamente, as leis ou disposições legais revogadas”.
Nesse mesmo rumo, é importante destacar que ao intérprete, aplicam-se as disposições
da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro. Nesse sentido: “Art. 2º (…) § 1º A lei posterior
revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível
ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.” (BRASIL,
1.942). Parece evidente, portanto, que a Lei 10.216/2001 (LRP) derrogou o Decreto-Lei
2.848/1940 (CP), o Decreto-Lei 3.689/1941 (CPP) e a Lei 7.210/1984 (LEP), no que pertence
aos raciocínios apontados nos itens acima.
Vamos, porém, analisar o argumento da especialidade. Qual lei é mais específica? A
legislação penal, por tratar do louco criminoso, ou a LRP por tratar do louco sem fazer
qualquer distinção?
Aqui são cabíveis diversos argumentos. Veja-se a transcrição do art. 1º da LRP, capaz de
trazer importante indício teleológico (BRASIL, 2001-a):
Art. 1º Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de
que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto
à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade,
família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de
seu transtorno, ou qualquer outra (Grifo nosso)
10 Derrogação é o nome que se dá à parcial revogação da norma jurídica, como é o caso das legislações apontadas: CP, CPP e LEP.
Dentre as poucas respostas que a presente pesquisa chega, o presente tópico representa
a mais segura conclusão: a medida de segurança da forma como proposta pela legislação
penal é inconstitucional. Rejeitada esta tese, não há dúvidas, à luz da hermenêutica
jurídica, de que a Lei de Reforma Psiquiátrica abrange os loucos criminosos e, portanto,
derroga o CP, CPP e LEP no que for incompatível. Como lidar com as consequências
dessa afirmativa? Não existe um modelo certo e, sobretudo, não é o objetivo deste
trabalho, cogitar essa possibilidade. No entanto, no próximo item, seguem algumas
experiências aparentemente exitosas.
1.2 A conciliação entre direito penal e loucura
A presente pesquisa foi pensada, inicialmente, para discutir possíveis saídas para
tratamento mais humanitário às pessoas em medidas de segurança. Depois de todo o
estudo, chega-se à conclusão de que se trata de assunto extremamente complexo e que
não admite uma resposta concreta ou uma possibilidade mais correta. Assim sendo, o
estudo ganhou um novo foco: como as pessoas submetidas a esse regime institucional
se vêem implicadas? Isso parece útil ao planejamento de ações voltadas a essa minoria,
uma vez que o conhecimento da realidade pode demonstrar eventuais falhas nas quais
se devem apoiar as políticas públicas. Este estudo, porém, arrisca-se em demonstrar
algumas possibilidades referentes a isso.
Primeiro, para se propor qualquer modelo de intervenção é necessário se desvencilhar
do velho modelo misto, duplo e ambíguo: crime E loucura, punição E tratamento, prisão
E internação. Parece-nos essencial definir: o que é a medida de segurança? Conforme
exaustivamente analisado por Foucault, em “Os anormais” (1975/2001), a medida de
segurança, tentando atender a dois deuses, não atende a nenhum. Ou bem a Themis,
ou bem a Asclépio11. Da forma que vai, a medida de segurança não se amolda ao direito,
tampouco à medicina.
Não temos aqui a intenção de resolver o problema da medida de segurança ou redefinir
sua conceituação; tampouco pode-se negar o caráter duplo que a rege até o momento.
No entanto, podemos inferir, à luz de toda teoria e das entrevistas analisadas, que o
crime é apenas uma decorrência do transtorno mental.
Parece-nos evidente que a inimputabilidade, quando analisada em profundidade,
trata de um problema de saúde. É evidente que tem reflexos sociais – aliás como
qualquer outra doença – mas não uma questão de justiça. A inimputabilidade baseia-
se no transtorno mental. A própria redação do Código Penal aponta nesse sentido:
“É isento de pena o agente que, por doença mental (...)” (BRASIL, 1941-a). O motivo
da inimputabilidade é único: a doença mental. A periculosidade “dela decorrente” já
foi vista anteriormente como uma construção social que visa higienizar a sociedade
daqueles que não se adequam ao padrão da vida burguesa.
Vale lembrar, ainda, que a periculosidade é um juízo de probabilidade de que a pessoa
venha a delinqüir e, nesse sentido, não tem qualquer base científica e não passa de uma
ficta associação do “diferente” ao perigo (KARAM, 2010). Para Virgílio de Mattos
é fruto muito mais de um preconceito oracular sobre o futuro comportamento
problemático (‘desviante’, ‘criminoso’) do cidadão problemático (seja criança,
adolescente, adulto ou idoso) do que propriamente uma situação concreta
(MATTOS, 2006, p. 176).
Mais que isso: a inimputabilidade baseia-se em um laudo médico que afirma que o
agente “por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era,
ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do
fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” (BRASIL, 1941-a).
A inimputabilidade, portanto, baseia-se em uma questão pretérita de foro íntimo:
conhecimento da ilicitude ou possibilidade de determinar-se conforme o direito e
projeta uma consequência futura – presumidamente certa – que é a periculosidade, a
probabilidade de delinqüir novamente.
O questionamento é automático e cheio de lógica: como saber se à época do fato o
agente compreendia ou não a sua ação? Como prever se a pessoa voltará a cometer
crime? Por que não se procede a exame de periculosidade os demais presos? Por que
todas as pessoas não passam por exame de periculosidade? Qual é a relação entre
periculosidade e doença mental?
Estudos brasileiros com experiências salutares envolvendo os loucos criminosos
demonstram reincidência de sete por cento em Goiás (SILVA, 2010) e dois por cento em
Minas Gerais (MINAS GERAIS, 2010). Por outro lado, a reincidência na população geral
chega a 90%, conforme estudo de Assis (2008).
Ora, que periculosidade diferenciada tem a parcela da população cuja reincidência, em
caso de acompanhamento terapêutico, é mais de 10 vezes menor que a população dita
“saudável”? Os dados da reincidência no Brasil remetem a uma reflexão:
como preparar um homem para o convívio social, privando-o desse convívio? Seria o
mesmo que preparar um corredor sem permiti-lo correr no mês que antecede a corrida.
O mesmo raciocínio pode ser transplantado à medida de segurança. Se a “cessação de
periculosidade” depende do tratamento de sua causa – o transtorno mental– fadar a
pessoa à pior sanção possível (excetuada a pena capital) é fadá-la a eterna periculosidade.
Que tratamento DE SAÚDE pode ser garantido por uma unidade PRISIONAL? Que
espécie de cuidado agentes penitenciários podem dar aos portadores de transtorno
mental? Que estrutura hospitalar é essa, composta por grades, cadeados e muros? Qual
a contribuição do ócio na terapêutica do louco criminoso? Como pode a segregação
ensiná-los a viver em sociedade? Como esperar responsabilidade social de uma pessoa
que, excluída da sociedade, vê-se privada de responder por seus atos? Como querer
um sujeito austero, em um ambiente em que ele próprio é reduzido a uma doença, a
uma coisa? A percepção e respeito ao outro, passa pela percepção de si e respeito como
sujeito de direitos.
São essas inquietações que levam a repensar o sistema de medidas de segurança.
A organização Mundial de Saúde declarou, em 2001, que existe um falso conceito
difundido de que todas as pessoas com transtornos mentais são perigosas e
uma intolerância da sociedade com o comportamento indócil ou perturbador.
Além disso, alguns países não dispõem de tradições jurídicas que promovam o
tratamento (ao invés do castigo) para infratores com transtorno mental. Prisões
são o lugar errado para pessoas com necessidade de tratamento de saúde mental,
já que o sistema de justiça criminal enfatiza mais a repressão e a punição do
que o tratamento e a atenção. Onde os estabelecimentos correcionais enfatizam
a reabilitação, os programas costumam ser inadequadamente equipados para
ajudar as pessoas com transtornos mentais (p. 129).
social recai sobre o juiz. Não é demais imaginar que juízes se vejam diante de dilemas
quando da análise da situação de pessoas em medidas de segurança.
É evidente que o presente estudo não defende uma postura inerte do Poder Judiciário
com relação às pessoas em medida de segurança; mas é de se compreender a dificuldade
em lidar com essa situação. A dificuldade, o apelo midiático e a pressão social, porém,
não podem sobrepor os direitos da minoria. A ordem democrática plena se efetiva não
com o critério majoritário – aquele em que a maioria determina os rumos do Estado,
mas quando o Estado garante os direitos das minorias. E essa parece ser a função do
Poder Judiciário: a tábua de salvação, o último a que se recorre.
Cabe salientar que a aceitação da tese de responsabilidade da pessoa com transtorno
mental exige que todo o sistema penal seja reinventado, ao menos teoricamente. Admitir
na filosofia penal a responsabilidade de um alienado implica revisar os fundamentos
da ciência penal – há muito fixados. Mais que isso: significa admitir na sociedade a
existência e a preença do diferente - e respeitá-lo como um igual.
2. Resultados alcançados
Nosso trabalho teve início com um especial incômodo: as medidas de segurança não
seguem o discurso do direito penal. O discurso do direito penal, por sua vez, é antigo
e não se alinha à Reforma Psiquiátrica. Para analisar melhor essas diferenças, esta
pesquisa teve como objetivo analisar a constituição discursiva do termo “medida de
segurança” em pessoas submetidas a medida de segurança de internação.
O desenvolvimento teórico possibilitou-nos verificar que a medida de segurança tem
um caráter dúbio, algo entre crime e loucura, tratamento e castigo e revelou, ainda,
o objetivo da higienização social. Com base nesses constructos teóricos, partimos a
entrevistas semiestruturadas e falamos com pessoas submetidas ao regime de medida
de segurança. Posteriormente, esses dados foram analisados à luz da Análise do
Discurso da Escola Francesa e nos possibilitou ampliar os horizontes demonstrados
pela teoria.
Os dados coletados foram analisados à luz da Análise do Discurso Pecheutiniana (Escola
Francesa) e tomou como base os trabalhos de Borba (2006, 2008 e 2011), que se dedicou
ao discurso de pessoas com esquizofrenia e constatou como importante característica
a presença de discursos-outros na fala dos esquizofrênicos. Logo, pudemos inferir que
além da mescla de crime e loucura, tratamento e castigo, estão presentes no universo
em torno das pessoas em medidas de segurança as ideologias da periculosidade e do
abandono, fazendo retomar a problemática da medida de segurança eterna – tema de
inúmeros debates jurídicos e psiquiátricos nos últimos anos.
Os entrevistados, sujeitos com esquizofrenia e submetidos à medida de segurança de
internação por terem cometido fato previsto como crime, confirmaram a projeção das
ideologias psiquiátricas e jurídicas. Associaram sua submissão a este regime disciplinar
a dois motivos principais: o crime e a loucura. Nada muito definido, contudo.
Por outro lado, suas falas acrescentaram a periculosidade como causa e o abandono
como consequência. Nesse sentido, a descrição foucaultiana da medida de segurança
ficou nítida na fala dos entrevistados. Diversas construções foram trazidas por eles no
sentido de que os “moradores da casa” são perigosos e trouxeram distinções importantes
entre “psicopatas” e “psicomanos”. Este último termo fazendo referência aos loucos que
moravam lá.
Apesar de dizerem que os loucos não são perigosos, apontaram a presença de
alguns psicopatas, estes extremamente perigosos. Essas passagens nos remeteram
ao surgimento do manicômio judiciário, uma instituição inicialmente planejada para
os casos limítrofes (nem loucos, nem sãos; os que estão na fronteira; os psicopatas).
No entanto, devido a uma política de defesa social voltada à exclusão como forma de
higienização, foram inseridos neste regime disciplinar os loucos-criminosos.
Retomando estudos de Michel Foucault - específicos sobre a normalização da sociedade
por meio da Psiquiatria - pudemos verificar que, embora a medida de segurança
seja calcada nessa ciência e no Direito, – na verdade não atende aos constructos
epistemológicos de nenhuma das duas. É algo apartado. E, embora direito e psiquiatria
se sustentem mutuamente neste fenômeno, não se pôde verificar que qualquer dos dois
aplique seus mais modernos conhecimentos.
Intimamente ligada à noção da periculosidade como conceito forjado para justificar a
medida higienista, a questão do abandono foi descrita como consequência da medida
de segurança. Nesse sentido, diversas questões da Reforma Psiquiátrica põem em
xeque a medida de segurança. O discurso jurídico e psiquiátrico funda a medida
como necessária para garantir o bem-estar social e pessoal, submetendo inimputável a
medida de segurança – um tratamento compulsório. No entanto, a prática demonstra
um mero cárcere. Da análise processual também ,pode-se constatar esse fato. Prova
disso é que um dos entrevistados passou 12 anos submetido ao regime fechado em
uma penitenciária comum, sem receber qualquer tratamento de saúde mental.
Ambos entrevistados relataram, ainda, a rejeição familiar, não muito compreendida
por eles, mas muito nítidas nos autos de execução penal. Nos processos, em diversos
momentos os próprios familiares rejeitam recebê-los de volta, tendo em vista serem
perigosos. Ou seja: tanto os entrevistados, quanto os processos, demonstram a
periculosidade como causa do abandono.
Nem tudo é problema na medida de segurança. Como exemplos, apresentamos uma
breve descrição de programas de atenção ao louco-criminoso que conseguiram conciliar
direito penal e reforma psiquiátrica – PAI-LI e PAI-PJ. A título de contribuição social,
apontamos a necessidade de revisão das práticas que envolvem a medida de segurança.
CONCLUSÃO
Não se pode falar em democracia – objetivo maior da Constituição Federal de 1988
– enquanto minorias forem massacradas e excluídas do âmbito social, roubando-
lhes a cidadania. Dignidade da pessoa humana não é atribuível apenas às parcelas
predominantes socialmente. Para ter direitos humanos, basta ser humano. E precisamos
destacar: loucos, criminosos e loucos-criminosos não perdem sua condição humana por
estarem submetidos a um regime disciplinar. É esta visão que precisa ser modificada.
A redução do “inimputável” a um objeto de prova e objeto de intervenção impossibilita
a concessão de direitos e tratamento dignos. É preciso reconhecer que ali está um
sujeito de direito, independente de sua postura frente à razão cartesiana. É isso que
precisa ser discutido.
BARRETO, Michelle C.
Mestranda no Programa de Mestrado
Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (ICHSA) –
Faculdade de Ciências Aplicadas - UNICAMP
Bolsista CAPES
barretoc.michelle@gmail.com
SIMÕES, Mauro C.
Professor na Faculdade de Ciências Aplicadas –
UNICAMP Mestrado Interdisciplinar em
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (ICHSA)
mauro.simoes@fca.unicamp.br
RESUMO
Analisa-se neste trabalho de que forma as politicas públicas de direitos humanos definem
a expansão da justiça destinada a indivíduos, buscando relacioná-la à noção de justiça
defendida por John Stuart Mill. A base deste trabalho é essencialmente interdisciplinar,
pois políticas públicas de direitos humanos são compreendida pelo entrecruzamento
de diferentes disciplinas que tratam das relações humanas estabelecidas na vida em
sociedade. O texto visa, assim, realizar uma revisão de trabalhos que examinam o
tema, com enfoque na análise da relação dos pressupostos e as possíveis consequências
que possam ser produzidas, buscando entender o movimento relacional entre políticas
públicas e as garantias para a efetividade da justiça. O exame divide-se em três
partes: análise de conceitos fundamentais: justiça, democracia, políticas públicas e
direitos humanos; exame de políticas públicas dos direitos humanos e, por último, a
implementação de políticas que efetivem direitos dos grupos afetados.
Palavras-chave: Políticas Públicas; Direitos Humanos; Justiça.
ABSTRACT
It is analyzed in this work how the public policies of human rights define the expansion
of justice for individuals, seeking to relate it to the notion of justice defended by John
Stuart Mill. The basis of this work is essentially interdisciplinary, since public human
rights policies are understood by the intertwining of different disciplines that deal
with human relationships established in life in society. The purpose of this article
is to carry out a review of papers that examine the theme, focusing on the analysis
of the relationship between the assumptions and the possible consequences that can
be produced, trying to understand the relational movement between public policies
and the guarantees for the effectiveness of justice. The examination is divided into
three parts: analysis of fundamental concepts: justice, democracy, public policies and
human rights; Review of human rights public policies and, finally, the implementation
of policies that enforce the rights of affected groups.
Keywords: Public Policies; Human Rights; Justice.
INTRODUÇÃO
A relação entre políticas públicas de direitos humanos e a expansão da justiça será objeto
de análise neste artigo. Compreende-se como fundamental buscar o entendimento
sobre aspectos relevantes para tal proposta, principalmente sobre o que são políticas
públicas de direitos humanos, quem são os atores que as realizam e qual é o sentido de
justiça que está inserido nesse processo compreensivo.
É importante ressaltar que a abordagem sobre o tema tem a interdisciplinaridade
como eixo central para o exame que aqui se pretende. Esta abordagem se justifica no
sentido de melhor investigar as condições de possibilidades que os diversos campos de
pesquisa nos permitem.
A busca pela compreensão da justiça revela-se uma tarefa difícil, dada a ênfase na
positivação que envolve o tema, e que está muito associada às normas que regulam a
vida dos indivíduos, e aos múltiplos fatores subjetivos relacionados à moral e à ética.
Considerando que são diversos os processos de entendimento e composição do tema na
sociedade, este trabalho destaca a contribuição altamente significativa de John Stuart Mill
sobre a questão que discutiremos. Neste sentido, uma vez que adotamos o pressuposto
de que o utilitarismo milleano apresenta-se como um poderoso instrumento de análise
para o nosso tema, assume-se que o mesmo não é considerado como o enfoque central
da discussão.
A pauta dos direitos humanos no contexto atual está cada vez mais urgente e a garantia
dos direitos fundamentais parece suscetível a mudanças drásticas; ainda que em
grande parte das sociedades encontre-se a democracia como o sistema político adotado
e em vigor, e esperando-se que o acesso às políticas seja mais ampliado, isto, no entanto,
nem sempre é uma realidade concretizada. No Brasil a temática apenas é mencionada
na agenda pública após o processo de redemocratização, com a Constituição Federal de
1988 e a ratificação de Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Evidenciando uma premente valorização da dignidade humana, a organização da
sociedade em prol da defesa e garantia dos direitos fundamentais e a valorização dos
acordos ratificados e cumprimento das normas no intuito de atingir a eficiência das
políticas públicas, nem sempre impedem que violações de direitos deixem de acontecer.
A exposição inicial reflete sobre alguns aspectos que incorporam a discussão realizada
neste artigo, que busca por meio da revisão bibliográfica estabelecer a relação entre
fatos e suas consequências, na intenção de entender o movimento relacional entre
políticas públicas e as garantias para a efetividade da justiça. Nesse sentido pretende-se
contribuir com as discussões sobre políticas públicas de direitos humanos e na reflexão
sobre a ação dos atores no sucesso a atenção às populações vulneráveis.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 Conceitos e contextos
A perspectiva de John Stuart Mill sobre a justiça é explicitada no texto de Simões
(2016), analisando os pressupostos teórico-conceituais e examinando a concepção ética
e política do pensador britânico. A abordagem realizada permite determinar alguns
pontos essenciais do pensamento de Mill, dentre eles os horizontes da aplicabilidade
O debate sobre a justiça também é enfrentado por outros autores, cabendo ressaltar
alguns pontos instigantes na visão de Amartya Sen (2011), e em outro pensador
igualmente imprescindível na compreensão do lugar que a justiça ocupa no debate
atual: John Rawls, e que podem oferecer novas possibilidades para reflexão. Como
defende Sen, a propósito da razão estar no centro do pensamento da teoria de justiça,
Os requisitos de uma teoria da justiça incluem fazer com que a razão influencie
o diagnóstico da justiça e da injustiça. Por centenas de anos, aqueles que
escreveram sobre a justiça em diferentes partes do mundo buscaram fornecer
uma base intelectual para partir de um senso geral de injustiça e chegar a
diagnósticos fundamentados específicos de injustiças, e, partindo destes, chegar
às análises de formas de promover a justiça. Tradições de argumentação racional
sobre a justiça e a injustiça têm histórias longas — e impressionantes — por
todo o mundo; com base nelas, podemos considerar esclarecedoras sugestões de
razões de justiça (como será examinado em breve). (SEN, 2011, p. 26).
O Brasil, apesar de adotar a democracia como sistema de governo, tem um longo caminho
no desenvolvimento de suas capacidades democráticas de acesso ao poder, pluralidade
de visões e igualdade de oportunidades. Com o cenário de uma democracia jovem e
frágil, fortalece-se um ambiente no qual os direitos não adquirem efetiva proteção,
sofrendo constantes ataques por parte de setores conservadores da sociedade.
A democracia brasileira, em essência, seria também incorporada por meio das políticas
públicas, entendidas como diretrizes para enfrentar um problema público (SECCHI,
2013, p.2), sendo entendido como aquele que é percebido pelo coletivo como incontornável
e urgente. O estudo das políticas públicas de direitos humanos, definidas pelos Planos
Nacionais de Direitos Humanos, tenta mostrar as políticas que foram adotadas para
solucionar as desigualdades de acesso aos direitos por diversos grupos vulneráveis da
população brasileira.
Nesta direção, Secchi (2016) discute que a ciência política se responsabiliza pelo estudo
das políticas públicas, problemas públicos, instrumentos, instituições e atores políticos,
mas que há a ciência das políticas públicas como um campo de estudo multidisciplinar,
com seus métodos de análise com base na normatividade e foco na resolução de
problemas.
O desempenho das políticas públicas no Brasil está relacionado ao modelo de governo
que temos implantado, divido em três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário.
Muitas das políticas exigem que os atores envolvidos nas três esferas estejam
conectados e não tenham problemas de comunicação, o que não é a realidade atual.
As políticas também encontram desafios de implementação nas dimensões de nível
federal, estadual e municipal, onde muitas vezes os recursos destinados à implantação
das políticas podem enfrentar barreiras burocráticas ou políticas.
Arretche (1996) questiona a eficiência das políticas públicas na democracia que temos no
país e, partindo deste ponto, torna-se importante refletir sobre a posição que ocupamos
nesse modelo de organização política e como, de fato, os atores sociais interessados
na defesa dos direitos fundamentais podem se articular e acessar o sistema jurídico
brasileiro, comumente entendido como justiça, tanto para uso individual como coletivo.
Ao tratar de direitos humanos devemos saber que são atribuídos diferentes conceitos,
sendo um deles a universalidade, que nas palavras de Carvalho Ramos (2012, p.28),
consiste no reconhecimento de que são direitos de todos, não havendo diferenças entre
os seres humanos. Essa universalidade também se refere ao alcance que estes direitos
devem ter, afirmando-se tanto perante as diversas ordens estatais, internacionais, como
diante de ordens extraestatais (NEVES, 2005, p.8).
No contexto de defesa dos direitos humanos é fundamental o entendimento sobre a
preservação da dignidade humana, que de acordo com Sarlet (2001) apud Ramos (2012),
É a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humanos que o faz merecedor
de respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando,
nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem
a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano,
como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida
saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável
nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres
humanos. (SARLET, 2001, p. 60 apud RAMOS, 2012, p.30).
para a população que não teria acesso aos mecanismos da justiça foi o empoderamento
do Ministério Público e a alocação de defensores públicos para os que não podem arcar
com os custos judiciais.
O PNDH-III lançado em 2010 tem suas diretrizes estruturantes e conduzem as políticas
para áreas que necessitam maior atenção do poder público, principalmente quanto à
proteção e promoção dos direitos humanos. Parece evidente que as áreas prioritárias
das ações do Estado são aquelas em que a população está mais vulnerável às violações
de direitos, por parte do poder público ou por outros atores da sociedade. Tem-se
uma maior atenção em políticas de combate a violência contra crianças e adolescentes,
igualdade entre gêneros, proteção dos idosos, ampliação de acesso aos direitos e inclusão
para portadores de deficiência, igualdade de raças e etnias e combate à discriminação
contra a população LGBT.
As diretrizes estruturantes do Programa podem ser acompanhadas pelo Observatório
do PNDH-III, uma plataforma online que relata a situação da política, bem como quem
são os órgãos responsáveis pela sua execução. Esse mecanismo de monitoramento se
repete nas questões de políticas para as mulheres, políticas de defesa dos direitos da
criança e do adolescente, da igualdade entre raças e etnias, entre outros programas
específicos determinantes da proteção dos direitos humanos no Brasil. Podem ser
elencados atores importantes nesse processo como o Ministério Público, Tribunal de
Contas da União, Secretaria Geral da Presidência da República, Ministérios diversos,
IBGE, IPEA entre outras Secretarias relacionadas ao tema.
As políticas públicas são, em sua maior parte, realizadas pelos órgãos governamentais;
nesse sentido, há a necessidade de se estabelecer uma conexão do Poder Judiciário
com as políticas de acesso à justiça, que ao que parece nem sempre cumprem a função
exatamente como lhe compete.
2.3 Poder Judiciário e acesso à justiça
A presença dos atores estatais na garantia de direitos é primordial como instrumento
para acesso aos direitos fundamentais. O Poder judiciário é dotado de obrigações
e responsabilidades no que envolve questões de proteção e promoção de direitos
humanos. Piovesan (2014) converge os sistemas internacional e nacional na busca
por entendimentos sobre tais responsabilidades. Compreende que em ambos existe o
estabelecimento de normas para o acesso ao sistema jurídico como proteção de direitos.
Tendo em vista a historicidade dos direitos humanos e considerando a fixação
de parâmetros protetivos mínimos afetos à dignidade humana, com destaque
à Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, ao Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos e à Convenção Americana de Direitos Humanos,
no que se refere ao direito à proteção judicial destacam-se três dimensões:
1) o direito ao livre acesso à justiça; 2) a garantia da independência judicial
(direito de toda pessoa ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um
prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial,
nos termos do artigo 8o da Convenção Americana de Direitos Humanos, do
artigo 14 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do artigo 10 da
Declaração Universal); e 3) o direito à prestação jurisdicional efetiva, na hipótese
de violação a direitos (direito a remédios efetivos). (PIOVESAN, 2014, p. 104).
Essa passagem do texto também pode provocar a reflexão sobre como o Poder Judiciário
se considera soberano em relação aos outros poderes no Brasil, cabendo um maior
exame dos motivos que culminam nesse agigantamento do Judiciário, que infelizmente
não cabem no horizonte deste trabalho.
Visto que as políticas públicas de direitos humanos muitas vezes caminham pelo
processo da judicialização, podemos observar os resultados encontrados neste trabalho.
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
As reflexões discorridas acima e inspiradas nas determinações de Bourdieu sobre o
campo e os atores, em que as estruturas das relações objetivas determinam o que se
pode ou não fazer (BOURDIEU, 2004, p.29), nos revela que a relação estabelecida no
estudo, segue a perspectiva que a proteção dos direitos humanos está intimamente
ligada às estruturas organizacionais em que eles foram definidos. No campo delimitado
pelas políticas de direitos humanos é evidente a dificuldade em garantir os direitos
fundamentais e, principalmente, em garantir o acesso à justiça dos grupos vulneráveis.
Políticas Públicas e eficiência de acesso à justiça via Poder Judiciário
As principais políticas públicas que foram implementadas no país foram, em princípio,
elaboradas nos Planos Nacionais de Direitos Humanos e somando diversas diretrizes
para ação estatal em diferentes níveis da federação. Estas políticas se destacavam por
serem inovadoras na proteção de direitos, mas nem todas chegaram a ser implementadas.
São diversos fatores que tornam cada vez mais complexa a proteção e promoção dos
direitos humanos, principalmente pela via Estatal, sendo que os recursos são limitados
e os atores envolvidos disputam estes recursos. Também é notória a relação dos atores
políticos com visões mais conservadoras sobre assuntos relativos à garantia de direitos,
como direitos reprodutivos, direito a família, direito a moradia, educação, segurança,
dentre outros.
Nesta perspectiva as recomendações enviadas para o Brasil por outros países à RPU,
no sistema de análise de pares, listam que para garantir o acesso à justiça no país
é necessário melhorar o sistema judiciário, federalizar casos graves de violações de
direitos humanos, acompanhar de perto a eficácia do Programa Nacional de Apoio ao
Sistema Prisional, assegurar a responsabilização de membros da polícia e funcionários
das prisões que cometeram violações de direitos humanos, continuar a desenvolver
legislação que garanta as mulheres seus direitos de privacidade e presunção de
inocência, continuar a implementação da política destinada a melhorar o sistema judicial,
reformando os organismos de aplicação da lei e reduzindo a taxa de criminalidade
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A expansão da justiça através de políticas públicas de direitos humanos não foi
alcançada plenamente. Primeiro porque os direitos humanos não têm sido protegidos e
respeitados pelo Estado, o principal responsável pela garantia dos direitos fundamentais,
de acordo com os documentos internacionais ratificados e pela Constituição Federal de
1988. Percebe-se também que a estrutura e organização do Judiciário brasileiro dificulta
o acesso dos grupos vulneráveis à aplicação da justiça. Diversos são os exemplos de
violações de direitos que não possuem desfecho pela morosidade do processo judicial.
Cabe ainda a conclusão de que é necessária uma revisão dos mecanismos de acesso às
políticas públicas e extensão da garantia dos direitos fundamentais.
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INTRODUÇÃO
A sociedade mundial vive em constantes transformações face ao dinamismo social
e o surgimento de novos anseios advindos de movimentos sociais, o que influencia
diretamente o Direito. Neste sentido, o Direito é o reflexo do homem em sociedade,
necessária, portanto, sua adequação frente à sociedade.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4983, ajuizada pelo Procurador-Geral da
República contra a Lei 15.299/2013, do Estado do Ceará, que regulamenta a vaquejada
como prática desportiva e cultural, pretende a manifestação do Supremo Tribunal
Federal acerca da validade jurídico-constitucional da referida lei. A prática desportiva
aqui apresentada traz o conflito de normas entre manifestação cultural (art. 215, CR)
e proteção ao meio ambiente descrito no art. 225 da Constituição da República. A
antinomia entre a norma regional e a Carta Magna trouxe a necessidade de manifestação
da Suprema Corte para fins de intervenção na manifestação da Vaquejada no Estado
do Ceará. O método a ser utilizado é o dedutivo, focado nos argumentos apresentados
pelos julgadores da Suprema Corte, que será desenvolvido com base na doutrina
relativa ao tema.
Utilizar-se-á a decisão do Supremo Tribunal Federal e seu critério de entendimento
quanto à proteção da fauna e do meio ambiente, este apresentado como direito de
terceira dimensão. O Direito dos Animais e do meio ambiente serão apresentados como
forma de proteção ao animal não humano. O tema será abordado e apresentado na
forma debatida e argumentada na ADI 4983; não serão, contudo, analisadas questões
relativas a processo legislativo, competências, tampouco à conceituação e ao processo
de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade.
1. A PROTEÇÃO DE ANIMAIS NÃO HUMANOS E A VAQUEJADA FRENTE À
CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 88
Atualmente, a proteção dos animais não humanos tem como fator primordial o meio
ambiente, ou seja, não se leva em consideração o ser como detentor de valor intrínseco
e dignidade, mas sim o meio ambiente como um todo, cujo interesse está direcionado
única e exclusivamente ao homem e sua dignidade.
A vaquejada e a proteção jurídica dos animais vêm sendo objeto de análise em solos
brasileiros, o que tem despertado discussões ético-jurídicas à luz da Constituição
República de 88 e do ordenamento jurídico pátrio, com vistas a se compreender valores
inerentes à vida para além dos humanos, bem como à interação entre fatores físicos,
biológicos, sociais e econômicos como primordiais para a qualidade de vida do homem
e dos animais (art. 225, caput da CR).
A Vaquejada causa repulsa na população, tendo em vista o tratamento cruel dispensado
ao animal não humano que ali se encontra. Não há dúvidas quanto às condições de vida
dos gados que correm nesse tipo de “esporte”. As consequências cruéis são evidentes, o
que pode, muitas vezes, levar o gado à morte.
O objetivo é a derrubada do touro pelos vaqueiros, com puxões no rabo do bovino.
Antes de o “esporte” iniciar, o animal é enclausurado, açoitado e instigado a sair em
disparada. Quando da abertura do portão do brete, o animal é conduzido pela dupla de
vaqueiros competidores, agarrado pela cauda até que caia no chão com as quatro patas
de melhor linhagem. O chão passou a ser de superfície de areia, com limites definidos
e um regulamento a ser seguido. Passados anos o esporte se popularizou e hoje existem
clubes e associações de vaqueiros em todos os estados do nordeste; com calendários e
datas marcadas; patrocinadores com influência nesse ramo, que apoiam os eventos;
competição e festa que arrastam multidões.
A vaquejada é a festa mais popular e tradicional do nordeste do ciclo do gado nordestino.
No início, marcava apenas o encerramento festivo de uma etapa de trabalho. O trabalho
dos vaqueiros no início era reunir o gado, freá-lo, castrá-lo e depois conduzi-lo para a
“invernada” onde ainda existissem pastos verdes. Os coronéis e senhores de engenho,
ao perceberem que a vaquejada daria lucro e poderia servir como passatempo para
as suas mulheres e seus filhos, tornaram a festa um novo esporte. Organizavam-se
disputas entre vaqueiros. Atualmente, a vaquejada é uma festa que se comemora sobre
um cenário em que dois personagens essenciais são os bois e o vaqueiro. Com o passar
do tempo houve algumas modificações quanto à estrutura do evento, no que tange à
forma de participação, premiações aos campeões, inscrições, dentre outras.
Pequenos fazendeiros passaram a promover algumas vaquejadas, o que antes era
restrito apenas aos vaqueiros de senhores de engenho ou coronéis, e passaram a
cobrar uma pequena quantia em dinheiro, e com o pagamento o vaqueiro tinha a
oportunidade de participar da festa; criaram-se novas regras para o novo modelo
de vaquejada. Cada dupla teria direito a correr três bois. A dupla que somasse mais
pontos era a campeã e era agraciada com uma quantia em dinheiro. Hoje se chama
esse tipo de vaquejada de “bolão”.
As regras do “esporte” consistem em uma pista de 120 metros de comprimento por 30
metros de largura e se demarca uma faixa onde os bois deverão ser derrubados; dentro
desse limite o ponto será válido se o boi cair com as quatro patas e se levantar dentro
das faixas de classificação. O boi é julgado de pé; deitado, somente se não tiver condições
de se levantar. Os participantes são uma dupla de vaqueiros. O boi que ficar de pé para
frente, em cima da faixa, recebe nota zero. A disputa do campeão dos campeões é feita
em ordem decrescente.
A Vaquejada começa na Sexta-feira, com o treino ou o reconhecimento da pista. No
Sábado inicia a seleção ou classificação das duplas de vaqueiros, cada dupla enfrenta
três bois. O primeiro boi vale em 8 pontos, o segundo 9 pontos e o terceiro 10 pontos,
com um total de 27 pontos. No Domingo o número de pontos é diferente: o primeiro vale
11, o segundo 12 e o terceiro 13 pontos, com total de 36 pontos, somado com os pontos
anteriores (27 pontos ) somam-se 63 pontos. Os 20 melhores colocados concorrem para
ver quem é o campeão.
A dupla tem que derrubar o boi entre as duas linhas ou faixas que tem 10 metros
entre uma e outra. Cada dupla tem o vaqueiro de esteira (aquele que ajuda o puxador,
ajeitando e alinhado o boi na pista), o puxador (puxa o boi pelo rabo e derruba entre as
linhas). Se o puxador derrubar o boi entre as faixas então “Valeu boi” e a dupla ganha
seu respectivo ponto.
A expressão “boi saído é boi corrido”, é comum entre os locutores de vaquejada. Isso
significa que o boi solto tem todas as condições de ser convertido em pontos; salvo se
durante o percurso o boi virar sua cabeça em direção ao ponto de partida ou acontecer
um acidente com o cavalo.
A função do puxador é, após a saída do boi, aguardar a passagem de sua calda pelo
“bate-esteira”, que está na posição para alinhar a corrida e conferir a queda no meio das
faixas. Segundo os praticantes do “esporte”, uma boa apresentação não fica somente
a cargo do puxador, mas também com o cavalo de esteira, vez que além de seu valor
comercial, ajuda o puxador a derrubar e desiquilibrar o gado com uma pancada.
A competição dura cerca de dois dias normalmente, e totaliza 6 bois por cada inscrição
feita. Os três primeiros valem, respectivamente, 8, 9 e 10 pontos e são corridos no
mesmo dia. Os de 11, 12 e 13 pontos são corridos no dia seguinte. Por fim, a disputa
pelos prêmios se dá entre os mais pontuados em sistema de eliminação; o valor dos
pontos e as normas da competição podem variar de região para região.
2. DIREITOS FUNDAMENTAIS EM CONFLITO
As normas constitucionais, assim consideradas em conjunto, pertencem a um sistema
normativo com propósitos e configura um todo tendencialmente coeso e que se pretende
harmônico (MENDES, 2015, p. 72). Ao longo dos anos foi observado que tais normas
podiam ser compreendidas como dois tipos normativos, sob pontos de vistas distintos,
para fins de solução de problemas de aplicação de normas. A doutrina moderna passou
a classificar as normas em regras e princípios. Em um sentido amplo, regras e princípios
são espécies de normas.
A distinção entre regras e princípios é de extrema importância para a teoria dos
direitos fundamentais. Tal distinção é a base da teoria da fundamentação no âmbito
dos direitos fundamentais e a chave para solucionar problemas centrais da dogmática
dos direitos fundamentais. Sem ela não se pode haver nenhuma teoria adequada sobre
as restrições a direitos fundamentais; nem sobre uma doutrina satisfatória sobre colisões,
tampouco uma teoria suficiente sobre o papel dos direitos fundamentais no sistema jurídico
(ALEXY, 2015, p. 85).
A falta de clareza e a polêmica se encontram presentes não é de hoje ao se tratar da
distinção entre regras e princípios. Regras e princípios, segundo Alexy, são normas,
tendo em vista a normatividade inerente em cada termo, o chamado “dever ser” (ALEXY,
2015, p. 87). Afirma o autor ser comum às colisões entre princípios e aos conflitos
entre regras o fato de que duas normas, se isoladamente aplicadas, resultariam efeitos
inconciliáveis entre si, logo, há dois juízos concretos de dever-ser-jurídico contraditórios
(ALEXY, 2015, p. 92).
É comum ao se delimitar regras e princípios utilizar o critério da generalidade
ou abstração. Princípios são normas cujo conteúdo é mais aberto frente às regras;
corresponderiam às normas desprovidas de mediações concretizadoras advindas
do juiz, legislador ou da Administração. Regras seriam aquelas aplicadas de forma
imediata enquanto princípios seriam, portanto, padrões que expressam exigências de
justiça (MENDES, 2015, p. 72).
Estudos realizados por Ronald Dworkin e Robert Alexy contribuíram significativamente
para a questão da distinção entre regras e princípios, para fins de demonstrar que tal
distinção não é simplesmente de grau, mas qualitativa antes de tudo.
Dworkin concorda que regra e princípio se assemelham vez que ambos determinam
obrigações jurídicas; o que os separa é a diretiva que propõem e não o grau de vagueza
que um ou outro apresente (DWORKIN, 1978, p. 24).
Norma-regra apresenta uma aplicação própria qualitativa que a distingue da
norma-princípio. Somente é possível ser solucionado um conflito entre regras caso,
em uma das regras, haja cláusula de exceção que extermine o conflito ou se houver
a declaração de invalidade de uma das normas conflituosas, com sua exclusão do
ordenamento jurídico.
As colisões entre princípios devem ser solucionadas diversamente do acima exposto.
Segundo Dworkin, os princípios atraem valores morais de uma determinada comunidade;
não desencadeiam de forma automática as consequências jurídicas contidas no texto
normativo com o surgimento de uma situação ali transcrita (DWORKIN, 1978, p. 24).
Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida, dentro das
possibilidades jurídicas e reais existentes (ALEXY, 2015, p. 86); são comandos de otimização,
já as regras determinam algo. Se uma regra é válida, então há de se fazer exatamente o que
ela exige, sem mais nem menos (ALEXY, 2015, p. 87). Assim, se por um lado um princípio
pode ser cumprido de forma escalonada (em maior ou menor escala), as regras somente
podem ser cumpridas ou não cumpridas.
Afirmar que um direito fundamental é superior a outro significa valorar um direito
fundamental em detrimento de outro, o que é preocupante. Admitir que os direitos
fundamentais encontram-se todos no mesmo patamar constitucional dá maior
flexibilidade ao aplicador do Direito frente ao caso concreto. Nesse sentido, utilizar-se-á
a ponderação de valores e a razoabilidade para fins de se garantir a harmonia quando
do conflito entre dois ou mais direitos fundamentais.
O posicionamento majoritário do STF (ADI 4983), na ponderação de direito ao meio
ambiente, prestigiou o interesse dos animais não humanos para fins de lhes evitar o
sofrimento. Afirmou o relator que o Supremo Tribunal Federal, em temas que envolvam
crueldade contra animais, tem advertido, em sucessivos julgamentos, que a realização de referida
prática mostra-se frontalmente incompatível com o disposto no artigo 225, § 1º, inciso VII, da
Constituição da República (ADI 4983), o que gerou a inconstitucionalidade da lei cearense.
2.1. A Declaração Universal dos Direitos do Animais
A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, proclamada pela Unesco em 27 de
janeiro de 1978, em Bruxelas, a qual o Brasil é signatário, traz uma série de direitos
aos animais e reconhece a dignidade para além dos humanos em todo seu texto, e em
especial o art. 10 ressalta: “Nenhum animal deve ser usado para divertimento do homem. A
exibição dos animais e os espetáculos que utilizem animais são incompatíveis com a dignidade do
animal” (UNESCO, 1978).
Pelo o que se verifica, a proteção aos animais encontra amparo no ordenamento jurídico
interno e externo, de forma a assumir o compromisso com a comunidade humana
mundial e com o meio ambiente.
Até início dos anos 70 do século passado, podia-se afirmar que o pensamento mundial
era voltado ao entendimento de que o meio ambiente seria fonte inesgotável de
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INTRODUÇÃO
A categoria funcional das trabalhadoras domésticas do Brasil, após uma trajetória
de muitas lutas no sentido de reivindicar o reconhecimento de sua práxis, consegue
finalmente, a equiparação análoga às demais trabalhadoras brasileiras rurais e urbanas.
Com a promulgação da Lei Complementar nº 150 de janeiro de 2015 que regulamenta a
Proposta de Emenda Constitucional 72/2013, popularmente conhecida como a PEC das
domésticas, essas trabalhadoras obtêm o direito legal à constituir sindicatos, podendo
desta forma, solicitar seu registro como trabalhadora além das demais garantias
trabalhistas que essa situação contempla.
Apesar da baixa escolaridade que, de forma geral, caracteriza o perfil das empregadas
domésticas no Brasil, essa categoria possui um repertório de lutas de caráter político
e organização no sentido de buscar o reconhecimento de direitos e de sua condição
cidadã. Entretanto, no município de Palmas-TO não existe, até o presente momento,
nenhuma associação, sindicato, entidade de classe ou organização similar, com o
propósito de reivindicar direitos para essa categoria funcional.
Nesse sentido, o móvel desse trabalho é tentar explicitar a dinâmica do processo de
construção da identidade da trabalhadora doméstica no Brasil, assim como a construção
da sua cidadania em prol de suas conquistas nos últimos anos, e dessa forma, refletir
acerca do fato desse processo não ter, aparentemente, repercutido de forma significativa,
na capital do Tocantins. Ressaltamos que a cidade de Palmas é a mais jovem capital do
Estado brasileiro, nascida no contexto das transformações políticas e da retomada da
democracia em nosso território no processo da elaboração da Constituição de 1988.
Dessa forma, tanto as instituições que organizam a sociedade, quanto os parâmetros
de isonomia que foram construídos e conquistados a duras penas em outras capitais,
apenas precisavam ser incorporadas na cidade de Palmas. Entretanto, o arroubo
politizador do período de emancipação federalista1 não parece ter se expandido para
além do reconhecimento do novo estado.
Dessa forma, o presente artigo, busca problematizar as causas e consequências da
ausência de protagonismo político dessa categoria nesta cidade além de promover
uma reflexão sobre a questão da trabalhadora doméstica em Palmas. Para esta tarefa
realizamos uma pesquisa junto ao Sistema Nacional de Empregos localizado neste
município com a intenção de colher relatos dessas trabalhadoras e entender o seu
próprio processo de tomada ou não de consciência de direitos e o nível de articulação
política que as mesmas expressam. É essencial, de nosso ponto de vista, a escuta dessas
trabalhadoras, uma vez que, a pesquisa em questão, é proposta no sentido de uma
relação dialógica com essas mulheres, para que a interação entre pesquisadores e
pesquisados transcorra de forma menos hierarquizada. O objetivo principal é promover
uma compreensão da lógica cultural que envolve os imaginários dessas trabalhadoras.
1. AS RAÍZES ESCRAVISTAS DO EMPREGO DOMÉSTICO NO BRASIL
Quando optamos em discutir acerca do serviço doméstico no Brasil não podemos
deixar de observar os fundamentos no qual ele foi sendo construído até chegar ao
formato que temos hoje. Expressamos hodiernamente, o modelo de sociedade que
construímos no processo que estrutura a nossa história, seja com belezas, seja com
1 Período em que parte do território de Goiás foi emancipado para constituir o atual estado do Tocantins.
desafios e lutas. Tendo por premissa esse pressuposto, refletimos que se evidencia com
muita clareza que a gênese do serviço doméstico, em nosso território, está intimamente
ligada experiência da escravidão negra e na sua trajetória ao longo de seus 300 anos.
Até a metade do século XIX o trabalho doméstico era realizado, em sua maioria por
mulheres negras escravizadas. Essa particularidade de nossa sociedade, demonstra
que a “questão da escravidão constrói um sentido histórico que dá significado até hoje
ao emprego doméstico” (ÁVILA, 2009, p. 36). Mulheres escravas, constituíam-se muitas
vezes, em meros instrumentos das vontades de seus senhores, não sendo reconhecidas
como indivíduos portadores de subjetividade.
Essa herança deixada pelas mazelas de uma sociedade escravagista outorgou a categoria
profissional das trabalhadoras domésticas, por um lado, um ônus de preconceito em
relação ao não reconhecimento das competências acerca da sua práxis, e por outro, a
marca da informalidade no que diz respeito às relações de trabalho estabelecidas entre
patrões e empregadas. Tais relações que ocultas na esfera privada da casa, em oposição
ao que é público, mascara muitas vezes, a violência simbólica (BOURDIEU, 2012)
embutida nesses processos, criam estratégias de justificativas para não regulamentação
desta profissão que perdurou por muitas décadas.
Outro elemento pertinente a esta discussão se manifesta na relação desta profissão e
a pertença em relação à questão de gênero. A função de trabalhadora doméstica, não
é exclusividade feminina, especialmente no que diz respeito à inserção do trabalho
infanto juvenil (NEVES, 2008), contudo, apesar de não se caracterizar como uma
prerrogativa de trabalho para mulheres, o emprego doméstico possui efetivamente,
tão poucos representantes do sexo masculino, que em termos relacionais, esse número
torna-se inexpressivo para a discussão aqui proposta. Assim sendo, neste trabalho,
faremos referência apenas às trabalhadoras domésticas, ainda que o total deste
contingente possa agregar também representantes do sexo masculino.
Nesse sentido, nos propomos entender o processo de desenvolvimento da identidade de
trabalhadora doméstica, o movimento que gestou seu empoderamento e engajamento
político e o motivo pelo qual essa pertença não se configura na cidade de Palmas no estado
do Tocantins. Buscamos, inicialmente, um conceito com que pudéssemos trabalhar com
essas trabalhadoras dentro de uma perspectiva freireana (2003). Escolhemos o conceito
de cidadania para problematizarmos conceitualmente a nossa percepção enquanto
pesquisadoras e para refletirmos junto às trabalhadoras domésticas com intuito de
estabelecer uma relação de dialogicidade com as mesmas.
Dessa forma, o presente artigo se estrutura da seguinte forma: inicialmente uma
retrospectiva da origem do trabalho doméstico no Brasil; o desenvolvimento da noção
de classe social e sua organização política até a conquista de direitos trabalhistas.
No segundo tópico discutimos acerca das percepções das trabalhadoras domésticas
da cidade de Palmas problematizando junto às mesmas a questão da nova legislação
acerca de sua práxis. No tópico subsequente apontamos os resultados que obtivemos
através das pesquisas. No processo da pesquisa apresentamos em um primeiro
momento, um questionário semi aberto cujo objetivo principal era o de interar o teor
das pesquisas junto às trabalhadoras que concordassem em participar do nosso projeto.
Em um segundo momento, foram colhidos relatos, sendo que alguns foram gravados e
transcritos e outros apenas fruto de anotações de cadernos de campo - de acordo com
a escolha e autorização recebida - pois algumas dessas trabalhadoras se mostraram
apreensivas quanto ao uso das informações colhidas. A parte final constitui-se das
análises dos relatos e consolidação dos dados para refletir possíveis demandas dessa
categoria e construção de identidade local.
1.1 Os caminhos da invisibilidade e a busca pela cidadania
No tangenciamento da questão do gênero feminino e da perspectiva da herança
escravocrata, associa-se a realidade da baixa escolaridade e inacessibilidade aos
direitos, especialmente, os trabalhistas, característico das classes sociais menos
favorecidas. Dessa forma, deixamos evidenciado que é nosso propósito discutir
a premissa sob a qual construímos a reflexão do presente texto, através de uma
associação de gênero, classe e raça (socialmente, e não biologicamente) falando.
Assim, a perspectiva da interseccionalidade (CRENSHAW, 2002). é um elemento que
auxilia na construção do sentido do texto. A interseccionalidade acontece exatamente
no atravessamento de diversas pertenças produzido num mesmo fenômeno, e é
relevante para discutir tais perspectivas, uma vez que opera conceitualmente com
a noção de desempoderamento e empoderamento, a partir de rupturas com a lógica
de dominação que o grupo estudado sofre. É nosso entendimento que, ao falarmos
em emprego doméstico no Brasil, não podemos limitar a reflexão à questão da
precariedade do trabalho. Ela existe mas, é um entre outros elementos que expressam
as relações incorporadas a essa modalidade de profissão.
O conceito de interseccionalidade se apresenta como uma conceito profícuo,
uma vez que nos permite visualizar as duas dimensões das relações de poder:
por um lado, a produção de desempoderamento, opressão, discriminação; por
outro, a produção de agências políticas, mobilizações democráticas e sujeitos
políticos (COSTA, 2013, p. 475)
Dessa forma, tanto a questão de gênero, quanto do preconceito racial são igualmente
relevantes para uma compreensão mais ampla do fenômeno abordado. É importante
ressaltar, contudo, que apesar das evidentes dificuldades desse contingente no que diz
respeito à reivindicação de cidadania plena, no sentido apontado por Marshall (1978),
como o acesso ao exercício pleno dos direitos civis, sociais e políticos, tal perspectiva,
contudo, não tem representado, absolutamente, ausência de um protagonismo para o
acesso a tais prerrogativas. Ainda que os mesmos tenham sido desencadeados no bojo
de diferentes demandas, e no processo de operacionalizar perspectivas específicas
da classe trabalhadora doméstica, em associação com diferentes movimentos, essas
trabalhadoras têm ao longo de cerca de 80 anos de luta, buscado e paulatinamente
alcançado alguns expressivos resultados, especialmente na perspectiva normativa.
Dessa forma, salientamos aqui o outro aspecto da interseccionalidade: se por um lado,
a pessoa ou grupo é impactada por diferentes aspectos de correntes de força dentro
da sociedade, por outro lado, esse movimento também pode desencadear as reações
na forma de ativismo ou mobilizações para “responder” a esse fluxo de forças. No que
diz respeito às trabalhadoras domésticas brasileiras, esse pode ter sido o móvel das
estratégias para garantir representação e acesso a direitos.
estava ocorrendo no Brasil no que diz respeito à consolidação de leis que amparem o
trabalhador doméstico. Nesse sentido a Organização Internacional do Trabalho - OIT,
com o propósito de responder a mesma demanda no que diz respeito à condições de
trabalho, elaborou um documento que trata do “Trabalho Decente” . Este documento
fala que:
O Trabalho Decente, conceito formalizado pela OIT em 1999, sintetiza a sua
missão histórica de promover oportunidades para que os homens e mulheres
possam ter um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade,
equidade, segurança e dignidade humanas, sendo considerado condição
fundamental para superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais,
a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável.
(OIT, à 1999)
Ratificando o fato de que cada passo alcançado abre a perspectiva para a assunção de
novas demandas um importante passo conquistado pelas trabalhadoras domésticas foi
a Lei 10. 208 de 2001(BRASIL, 2001), que facultou a inclusão do empregado doméstico
ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS e ao seguro-desemprego. No ano
de 2006 houve uma nova conquista da classe das trabalhadoras domésticas com a
promulgação da Lei 11.324 (BRASIL, 2006) que impedia a prática do desconto no salário
das trabalhadoras devido fornecimento de alimentação, vestuário, higiene ou moradia.
Nossa percepção é que todo esse movimento de luta por direitos no processo de
elaboração de leis que atendessem às demandas desta categoria, contribuiu para
o suporte, amadurecimento e politização desta classe em diálogo com o Estado e
instituições da sociedade, que expressam muitas vezes, posturas excessivamente
conservadoras. Neste contexto a Emenda Constitucional 72 de 2013 representou o
mais expressivo marco na perspectiva de efetivação dos direitos trabalhistas desta
categoria funcional uma vez que agregou, de forma subjetiva, uma demanda há muito
reivindicada pela categoria das trabalhadoras domésticas brasileira, de forma objetiva:
a noção de respeito. Dominic Vidal (2003) aponta em seu trabalho realizado com
trabalhadoras domésticas na cidade de Brasília, no Distrito Federal e no Rio de Janeiro,
que houve uma ampliação no acesso à justiça do trabalho e que esse fato implica em
mudanças significativas nas relações entre as trabalhadoras domésticas e seus patrões
a linguagem do respeito possui uma dimensão específica nas camadas
populares das sociedades modernas, tendo em vista que associa intimamente a
importância conferida ao reconhecimento da humanidade com o sentido dado
a ideia de cidadania. (VIDAL, 2003, p. 269)
Essa mudança ocorre particularmente, pelo reconhecimento jurídico pelo qual essas
trabalhadoras conseguem expressar, através das novas conquistas legislativas, o sentido
do que Axel Honneth (2003) denomina “respeito de si” que, nesse caso, faz com que tal
noção de respeito dialogue com a concepção de dignidade humana. Assim, podemos
perceber que essa reivindicação de direitos da trabalhadora doméstica foi desenvolvida
por meio de uma rede de parceiros sintonizados pelos mesmos objetivos: a garantia de
direitos e de não discriminação, particularmente.
É interessante destacar neste aspecto a similaridade entre o conceito de “Trabalho
Decente” desenvolvido pela OIT em 1999 e o conceito de “Sociedade Decente” (1998)
Dessa forma, será no processo de amplos debates nacionais e internacionais e com o apoio
de entidades de movimentos sociais, que as trabalhadoras domésticas, por meio da PEC
72/2013 e da Lei Complementar nº 150, do dia 1 de janeiro de 2015 que regulamentou
os demais direitos trabalhistas previstos na Constituição de 1988, conquistam o direito
pleno de equiparação das leis trabalhistas. Essa PEC viria a alterar, o artigo 7º previstos
na Constituição de 1988.
Nesse sentido firma-se o acordo segundo o Manual do Empregador Doméstico
(e-Social, 2015) os seguintes aspectos2: Indenização em caso de despedida sem justa
causa; Seguro desemprego; adicional noturno; jornada de oito horas diárias de trabalho
e quarenta semanais; repouso semanal preferencialmente aos domingos; pagamento
de hora-extra de no mínimo 50% superior ao valor da hora normal, licença paternidade
nos termos previstos em lei; proibição de contratação de menores de 18 anos de idade.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 Mecanismos de reprodução de pertenças identitárias
Apesar de Palmas ser a mais jovem capital do Brasil, o projeto que criou o estado
do Tocantins, contudo, reflete uma ambição que vinha desde o início do século XIX
(FIRMINO, 2009) e no contexto da redemocratização nacional da década de 1980 o
movimento pela criação do estado do Tocantins foi retomado. Esse panorama ganha
concretude no bojo das discussões dos trabalhos da Assembleia Constituinte em 1987
em que a viabilidade e as possíveis vantagens da criação do novo estado é ratificada.
Assim, no dia 5 de outubro de 1989 foi criado o estado do Tocantins instalando-se como
sede provisória a cidade de Miracema do Tocantins.
Em primeiro de janeiro de 1990, Palmas é reconhecida como a capital do estado. Cumpre
destacar entretanto, que o projeto que deu origem ao novo estado e à nova capital era
de caráter marcadamente conservador reproduzindo, inclusive, um episódio famoso
de nossa história no contexto da Proclamação da República, imortalizado na fala do
jornalista Aristides Lobo “e o povo assistiu a tudo bestializado”, pois, “a população
nortense acompanhou todo o processo político e ideológico sem perceber que, no final
da jornada, continuaria desvinculada das grandes decisões e excluídos neste novo
território” (BARBOSA, Apud Firmino, 1999, p. 19).
Portanto, o processo da Constituinte de 1988 não significou a transferência de uma
mentalidade cosmopolita para a recém criada capital3. Muito pelo contrário, pesquisas
bibliográficas apontam que o ethos do estado do Tocantins e da cidade de Palmas por
extensão, opera a partir de uma lógica marcadamente conservadora. Os primeiros
2 Farei neste espaço menção somente dos direitos não apontados ainda, para evitar a repetição dos termos já que se trata de texto
legislativo que, em alguns casos, repete algumas proposituras.
3 O status de capital era recente, mas a cidade de Palmas já existia.
concursos públicos estão sendo realizados em nosso contexto atual e muitos deles sob
muita pressão para sejam anulados em virtude da quebra das cadeias clientelistas
estabelecidas há muitos anos. Segundo Barbosa (1999) o projeto que viabilizou a criação
do estado do Tocantins era pautado na lógica dos grandes negócios, especialmente a
agropecuária. Assim, em seus primórdios enquanto estado da federação, o Tocantins
ainda apresentava uma população carente por justiça social, alvo de expropriação
de terras, litígios entre posseiros e fazendeiros que muitas vezes, terminava em
assassinatos.
Desenvolvemos o trabalho no decurso de uma pesquisa no município de Palmas, em
Tocantins, que tinha o propósito de contribuir para um entendimento ampliado de
aspectos que tangenciam a práxis dos Assistentes Sociais: as mediações entre Estado e
sociedade civil, particularmente, os representantes dos segmentos mais expropriados.
Nesse processo, nos deparamos com uma situação análoga ao que Robert Merton
descreve para explicitar o “padrão de serendiptidade4” uma vez que ao notarmos que a
cidade não dispunha de nenhuma entidade de classe para reivindicar as demandas das
trabalhadoras domésticas, mostrou-se bastante revelador, uma vez que tais demandas
têm impactado, inclusive como tema central, aparecendo nas mídias inclusive as
televisivas e impressas.
Em meio a esse contexto, buscamos então entender a razão dessa ausência. Em nossa
reflexão, ao nos apropriarmos da literatura acerca do tema, constatamos que as
trabalhadoras domésticas nos demais estados da federação, ao reivindicarem direitos,
reivindicam também cidadania. Restava, nesse caso, definir que modelo de cidadania,
seria o mais adequado para fomentar uma reflexão mais densa sobre a questão proposta.
Partimos da conceituação generalista generalista proposta por Marshall (1978) e já
referida anteriormente. Entretanto, tal modelo, teve por inspiração um processo de
desenvolvimento social que difere muito do nosso. Assim, priorizamos uma noção
que agregue a especificidade da sociedade brasileira. A primeira opção foi a noção de
cidadania na perspectiva do inconcluso como proposto pelo historiador José Murilo de
Carvalho (2002). Referenciamos também a “cidadania tutelada” (1979) do cientista
político Wanderley Guilherme dos Santos que faz uma discussão de teor jurídico muito
pertinente. E finalmente, nos debruçamos sobre a concepção elaborada pela antropóloga
Teresa Pires do Rio Caldeira de “cidadania disjuntiva” (2000).
Optamos pela perspectiva discutida por Caldeira que aponta o processo de construção
da nossa sociedade, priorizando os direitos políticos em detrimento dos direitos sociais
e civis. Essa é uma particularidade importante pois os modelos operacionais exógenos,
especialmente os europeus ou norte americanos são pautados em um modelo de
associativismo5 que não se firmou em nosso território.
Assim sendo, tendo por base a concepção de uma disjunção entre a noção de direitos
que faz com ordinariamente as pessoas em nosso território projete uma imagem
subjetivada do “lugar” do político em nossa sociedade, e na perspectiva de que o estado
4 Robert King Merton é um sociólogo nascido nos EUA em 1910. Sua produção intelectual abrange reflexões sobre burocracia, a
sociologia da ciência e a problemática da comunicação de massa. Cunhou o conceito de “grupo de referência” e expressão “profecia
auto-realizável”. Propalou em seus escritos a noção descrita como “padrão de serendiptidade” que ele esclarece que tem relação com
fatos imprevistos mas que por sua relevância, podem até mesmo, reorientar o sentido da pesquisa.
5 Refiro-me aqui, explicitamente aos modelos como os descritos por Alexis Tocqueville ao discutir acerca da democracia.
A renda familiar da maioria das trabalhadoras entrevistadas, cerca de 73% delas, situa-
se no percentual de um salário mínimo. A ampliação dos direitos trabalhistas, assim
como uma maior consciência do seu valor como trabalhadora tem influenciado esse
dado, ainda que de forma tímida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Umas das estratégias no processo de dialogicidade foi estabelecer uma questão central
como elemento norteador que foi a questão da cidadania. Ao longo do processo da
pesquisa e por conta da especificidade de Palmas que não possui nenhuma entidade
de classe no momento histórico em que essa pertença simbólica é mais referendada,
optamos por incluir uma segunda problematização que era acerca do conhecimento do
teor da PEC 72/2013.
Em nosso levantamento a totalidade das entrevistas afirmaram pelo menos algum
conhecimento acerca do teor da PEC 72/2013 e todas elas afirmaram o quanto seria
importante haver em Palmas uma associação ou sindicato que as representasse.
Contudo todas elas expressaram o entendimento que uma organização desse porte
deveria ser criada pelo governo, ou pelos políticos.
Diante do que foi exposto, inferimos que a “juventude” da cidade de Palmas é um fator
importante na ausência de uma entidade de classe que requer o acúmulo de experiências
compartilhadas, motivadas por objetivos comuns para que a noção de organização
social possa emergir. Uma cidade que expressa ainda elementos do patriarcalismo e de
políticas clientelistas além de uma violência de gênero significativa, também impacta
na emergência de protagonismo feminino.
Percebemos, através da fala das trabalhadoras domésticas em Palmas que a cidadania
se constitui em um ideal que permite que os indivíduos de um determinado território,
possam alcançar patamares mínimos de direitos que possibilitem, aos mesmos uma
vida digna. Também é relevantes destacar que ficou evidenciado nas falas que existe
um abismo entre a norma expressa na Lei e a aplicabilidade da mesma. Todas elas
fizerem referência ao fato de que a “Lei das Domésticas” existe desde 1972 e que isso
prova que a existência de uma lei significa pouco na realidade objetiva.
Para além dessa realidade percebe-se no contato com essas trabalhadoras, caminhos
para uma ressignificação e empoderamento como mulheres e sujeitos de direito
que, na sua maioria reconhece seu valor e dignidade e que vislumbra neste trabalho
possibilidades para uma condição de vida mais digna.
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if one success sportsman could be a product only of the gift, or if the personal effort
should be more important in those cases, covering also about the genetic manipulation
in athletes, more precisely the drug use for having a better performance. We described
in this article one opposition to Michael Sandel in these two points, and for this, we
used the indicated bibliography and comparative analysis of remarkable people.
Key-words: Eugenics. télos. sport
INTRODUÇÃO
Nos dias de hoje, podemos contar com grandes avanços não somente na tecnologia como
também na alimentação própria para os atletas e nas técnicas que ajudam a melhorar
o desempenho dos competidores. Desde as sandálias de folhas improvisadas por
corredores olímpicos no mundo antigo até as vestimentas altamente hidrodinâmicas
próprias para nadadores já disponíveis nos tempos atuais, há debates sobre o combate
desleal entre os atletas, uma espécie de argumento no sentido de não haver, nesses casos,
uma paridade de armas que proporcionaria uma competição justa. Tudo isso nos leva
a pensar se deveria ou não ser considerado como desleal o uso de artifícios que ajudam
a promover ou aumentar as potencialidades dos competidores. Para abordarmos essa
questão, é necessário considerar qual é o télos do esporte e quais são os limites morais
da manipulação genética no caso dos esportistas. Este trabalho pretende esclarecer
qual é o télos dos esportes e evidenciar que a busca da perfeição nesse caso, ou seja,
através da manipulação genética, deve ser avaliada com base em critérios distintos
daqueles geralmente aplicáveis ao ser humano comum.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Ao examinar a questão do melhoramento genético aplicado à prática de esportes, no
livro intitulado Contra a Perfeição, o filósofo norte-americano Michael Sandel busca
refletir sobre as razões e princípios que dariam conta de nossos escrúpulos morais
face as técnicas utilizadas por esportistas com a finalidade de alcançar grandes feitos.
Sandel conjectura que a utilização dessas técnicas poderia representar uma ameaça à
nossa capacidade de agir de forma autônoma e livre, com a consequente diminuição
de nosso sentimento de sermos os autores do que fazemos (pp. 25-6). Na linha desse
argumento, no que tange ao esporte a noção de mérito desapareceria completamente.
Contudo, Sandel não está convencido de que o problema estaria no fato de que o
melhoramento genético arruinaria uma noção fundamental para o pensamento liberal,
a saber, a meritocracia.
Na visão do filósofo o pressuposto liberal que norteia competições baseadas no mérito
não seria o determinante dos nossos escrúpulos com relação aos atletas. Ele objeta
que muita coisa relevante em nossas vidas é fruto do acaso, de dádivas, do que não
depende do nosso esforço. Além disso, segundo ele, o esporte não teria a ver com
esforço (pessoal), mas com excelência. Dito isso, exploraremos a ideia do que seria o
verdadeiro télos dos esportes a partir de uma proposição apresentada pelo Professor
Julio Esteves em suas aulas, o que nos proporcionou alcançar uma conclusão sobre o
tema eugenia nos esportes.
concepção de esportistas estará refém das pressões institucionais que, por conseguinte,
irão tornar lícitas a produção, a venda e o consumo dessas substâncias de acordo com a
demanda? Seria o esporte é uma mentira? Se sim, essa mentira seria algo que começou
hoje ou algo que já existe desde que os antigos gregos forjaram as primeiras sandálias
de folhas para protegerem seus pés nas grandes corridas? Atletas melhorados pela
biotecnologia e pelo uso de próteses podem ser considerados uma farsa? Como será a
definição do ético ou permitido moralmente daqui a 30 anos?
Para nós, é no mínimo interessante considerar que devido a certas convenções e a
necessidade de atletas, a dopagem poderá passar a não ser uma prática considerada ilícita
ou até mesmo imoral. Mas será que na esfera dos esportes isso pode ser considerado tão
errado ou imoral como no caso da manipulação genética do homem comum?
Na página 40 (do livro em inglês), Sandel finalmente exprime seu posicionamento.
Ele parece acreditar que o principal problema das terapias de melhoramento e da
engenharia genética está pautado no fato de que elas representariam uma espécie
aspiração prometeica no sentido de remodelar a natureza humana para servir os nossos
propósitos e satisfazer nossas vontades. Ao examinar a questão do melhoramento
genético de esportistas, Sandel apresenta o que seria uma razão para nossos escrúpulos
morais quanto a certas técnicas nesse âmbito, a saber, a ameaça que isso representaria
à nossa capacidade de agir livre e autonomamente, com a consequente diminuição de
nosso sentimento de sermos os autores do que fazemos (pp. 25-6). Por conseguinte,
aplicado ao caso do esporte, a noção de mérito desapareceria. Assim, Sandel se opõe à
concepção liberal que coloca ênfase na noção do valor do próprio esforço, na meritocracia
e argumenta contra o pressuposto liberal que muito de nossa vida é determinado por
dádivas, por coisas que não dependem do nosso esforço. Além disso, segundo ele, o
esporte não teria a ver com esforço (pessoal), mas com excelência.
Em contrapartida, nós diríamos diferente, uma vez que acreditamos que no caso
dos esportes o que determina o êxito dos atletas não é mais o talento do que o treino
intenso (esforço pessoal). Estamos mais inclinados a pensar conforme a conhecida
frase de Thomas Edison: “Talento é 1% inspiração e 99% transpiração. O grande músico
erudito Mozart é conhecido até hoje por ter sido um “prodígio da natureza”, mas sua
história foi diferente. Essa glória foi proporcionada não somente pela genética de seus
ancestrais (avô materno e seu pai), que eram habilidosos artistas, mas sim por meio
de uma prática árdua que o tornou um exímio instrumentista. Esse exemplo serve
também para afiançar nossa tese de sobre o desempenho dos esportistas e a respeito
do que seria o télos dos esportes.
Da mesma forma que o pai do músico o direcionou à prática durante longas horas
diárias e o proporcionou algo inacreditável, como o aprendizado das oito peças do
livro de musica de Nannerl, aos quatro anos de idade (algo considerado impossível até
então), podemos observar um comportamento bem parecido do pai do nosso craque
Neymar desde quando o garoto começou a andar. O talento de Neymar é facilmente
visível, mas o que seria dele sem a prática reiterada dos movimentos e das técnicas,
bem como sem o preparo físico que o revelou um destaque nos campos? Desse modo,
acreditamos que o esforço faça a verdadeira diferença no final, sendo possível afirmar,
mesmo que empiricamente, que na convivência de pessoas de extremo talento, mas que
nada fazem para potencializá-los, ao invés de se tornarem pessoas virtuosas se revelam
Como vimos o resultado final do melhor do mundo não é só baseado em sua genética,
mas também em um complexo conjunto de fatores externos, e sendo assim, por que não
falarmos em uma possível manipulação genética em favor dos atletas?
1.2 As altitude houses
Além das inúmeras drogas existentes e consumidas por esportistas que almejam
resultados além de suas capacidades, hoje existem algumas técnicas que nos convidam
a refletir sobre sua validade moral, como, por exemplo, o emprego das “altitude
house” (p. 32 e segs.,) e de outros mecanismos destinados a aumentar artificialmente a
quantidade de glóbulos vermelhos no sangue dos atletas, questões que Sandel explora
no livro citado.
A utilização das “altitude houses” é uma técnica que utiliza o ambiente para condicionar
o organismo dos atletas a terem desempenhos melhores nas competições, algo diferente
dos outros métodos como, por exemplo, transfusões e injeções de eritropoietina (EPO),
um hormônio produzido pelos rins que estimula a produção de glóbulos vermelhos.
Consideramos que a estadia na “altitude house” não apresenta qualquer problema
moral, desde que essa prática passe a ser comprovadamente segura para a saúde dos
atletas, de maneira que o tempo utilizado lá possa ser como o de um jogo no qual
o atleta que se sair melhor vencerá. Tendo em vista que o treinamento nessas casas
visa submeter os competidores à resistência ao clima, pressão atmosférica e a outras
dificuldades, mas não altera geneticamente seus corpos e organismos como fazem as
drogas, injeções e transfusões, podendo ou não, ser suportado ou até mesmo eficiente
ao desempenho dos esportistas de acordo com o que cada um, através do que já é
naturalmente (a genética pode ajudar) e do seu próprio esforço e empenho, poderá
aproveitar em seu favor. Por esse motivo, não detectamos qualquer objeção moral a
utilização das “altitude houses”.
Já os outros métodos, que inclusive foram banidos pelo Comitê Olímpico Internacional
até o momento, dizem respeito ao uso de drogas pelos atletas, o que consideramos
mais sério, em virtude do perigo à saúde dos atletas, e como já versamos sobre a
integridade física dos esportistas e também a respeito de suas almejadas performances,
adentraremos agora no que definiríamos como o télos do esporte.
1.3 Qual é o télos do esporte
Sandel argumenta que nossas restrições sobre o uso de drogas e outros artifícios
não dizem respeito somente à saúde dos atletas, mas também, e principalmente, à
integridade e essência do esporte, ao télos do esporte (p. 38). Considerando a hipótese
de que os esportistas pudessem ser ou como se fossem equiparados a representantes
da humanidade para demostrar os limites do que o humano pode alcançar, existe
uma preocupação atual quanto ao que o esporte pode se tornar. Será que estamos
próximos do fim dos limites humanos? Será que estamos caminhando no sentido que
irá nos levar a perda dessa régua? O esporte não parece ter tão somente o objetivo de
entreter o espectador, mas sim algo de maior nobreza que é a missão de exaltar as
qualidades humanas, o que exige a união entre o talento e o esforço, o segundo em
maior importância para nós, no intuito do objetivo maior que é o de quebrar recordes.
Há uma enorme diferença entre espetáculo e esporte, em outros termos, uma coisa é o
espetáculo proposto pelos Harlem Globetrotters e o desempenho insuperável do Dream
Team, que possui o intuito de ultrapassar metas. Essa questão nos fez recordar, a título
de exemplo, o filme Space Jam, estrelado por Michael Jordan, uma forma divertida
de passar algumas tardes da década de 1990, acontece que aquela equipe não travava
verdadeiras disputas, mas realizavam uma espécie de espetáculo de circo.
A diferença entre esporte e espetáculo nos parece bastante clara. Cabe frisar que no
esporte sempre há, de certo modo, um espetáculo, mas na essência de uma apresentação
artística não há o objetivo peculiar a pratica esportiva (profissional).
Sob o ponto de vista do espectador (pagante), o que ele espera quando vai ao maracanã
assistir seu time jogar? É claro que ele espera a vitória do seu time e gols que garantam
a artilharia com quebra de records e, para isso, é necessário que a equipe se empenhe
o máximo no objetivo de vencer, de modo que, a mínima parte que toca ao espetáculo
no jogo é reservada as jogadas incríveis como olés, canetas e balõezinhos. Tudo isso é
belo, mas não faz o time ganhar o jogo. Do mesmo modo se comporta o torcedor do
Dream Team, que é um time considerado perfeito (equilibrado) e que visa o objetivo
de fazer cestas. É claro que entre uma jogada e outra há performances exibicionistas
que embelezam o jogo, mas ninguém está ali senão para vencer. É dessa forma que
classificamos o télos do esporte, no sentido de atingir recordes e não de apresentar pura
e simplesmente um espetáculo.
1.4 Até quando os esportes resistirão?
Sandel admite que nem toda inovação corrompe ou degenera a prática esportiva (p. 37).
Algumas até põem em relevo o que há de essencial nela, por exemplo, o caso dos pés
calçados em oposição aos pés descalços, o que proporcionou estabilidade às competições
e aos próprios competidores, que se livraram de pisar em pedras e espinhos. O mesmo
se aplica as vestimentas aerodinâmicas dos nadadores que oferecem um desempenho
maior nas piscinas. Quanto a essas melhoras não constatamos qualquer objeção moral.
Acreditamos que nesse ponto vem à baila um aspecto importante dessa discussão
que é o das equipes no background dos grandes atletas e da indústria de produtos e
acessórios utilizados por eles. Tudo isso faz parte da competição e não encontramos
objeções morais quanto a esse tópico, muito pelo contrário, essas inovações contribuem
para a melhor atuação dos esportistas e equilibram os jogos.
Diante dessas reflexões, nos parece que os esportes correm grande risco de extinção.
Imaginemos a hipótese de em um futuro próximo termos duas ligas desportivas,
uma composta por atletas ao natural, e outra composta por atletas artificialmente
melhorados. Acreditamos que haja mercado para isso, mas que corremos um sério risco
de perdermos o senso do humanamente possível. Podemos conceber que seria curioso
assistir durante alguns minutos pessoas modificadas geneticamente levantando SUV´s,
mas isso perderia logo a graça.
Há, porém, algo de perigoso nisso tudo, como o problema de se utilizar o ser humano
como mero instrumento para afiançar regimes político-ideológicos, como já aconteceu
em diversos momentos da recente história do mundo como, por exemplo, as competições
entre as cidades gregas da antiguidade, que “Era uma ocasião em que se desenvolvia
o que já foi classificado de “uma guerra sem armas” e que propiciava o exercício das
disputas entre as póleis, em situação controlada, definida por regras”. (HIRATA, E. F.
V. 2009).
Já naquele tempo havia uma busca pela excelência em diversas modalidades que cada
cidade grega acreditava ser ideal:
A competição entre as cidades envolvia, pois, os vários tipos de excelência
entendidos como ideais na cidade grega. Ao vencedor cabia, tanto a glória
individual pelo feito extraordinário realizado como, e talvez principalmente, o
mérito de ter alçado a sua cidade a uma posição de destaque frente à comunidade
pan-helênica. (IBIDEM).
RESULTADOS ALCANÇADOS
As reflexões feitas em classe fizeram com que nos inclinássemos a acreditar que, no
caso dos esportes, o que determinaria o êxito dos atletas seria não tanto o talento do
esportista, mas o treino intenso e o esforço pessoal, como exemplificado nos casos
apresentados como o do músico erudito Mozart e dos jogadores de futebol Neymar e
Cristiano Ronaldo.
Embora o filme Amadeus potencialize a ideia de que a grandiosidade de Mozart seja
oriunda de dádiva, o que o tornou conhecido como um “prodígio da natureza”, a glória
do compositor não teria sido alcançada somente por conta de sua herança genética, da
mesma forma que Neymar e Cristiano Ronaldo também não podem ser considerados
como produtos somente de uma boa genética.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As principais conclusões deste trabalho nos direcionam a crer que diferentemente
do que propõe Michael Sandel nas obras utilizadas como referência bibliográfica, os
esportes tem como télos o alcance records e não o simples objetivo de apresentar um
espetáculo, e é justamente por causa desse télos (peculiar à prática esportiva), que
chegamos à conclusão de que a eugenia nos esportes deve ser encarada com um olhar
diferente da eugenia que se refere ao homem comum.
REFERÊNCIAS
Arapy Produções, GloboNews, Globo Filmes . (2016) A corrida do doping. Dirigido por
MARKUN, Paulo. Ficha técnica: Direção: Paulo Markun; Roteiro: Paulo Markun;
Pauta: Kitty Balieiro; Direção de Fotografia: João Markun, Marcelo Amiky; Direção de
Produção: Leila Chagas; Montagem: Vitor Lopes; Arte Gráfica: Sergio Sanchez; Câmera:
Thiago Mello. Brasil/França.
BAKER, Richard. (1988). Wolfgang Amadeus Mozart. Tradutor: Marco Antônio Esteves da
Rocha - 2° Edição. Jorge Zahar Editor – RJ.
ESTEVES, Julio Cesar Ramos, (2016). Proposições em sala de aula e orientação - UENF.
SANDEL, M. J. (2007) The case against perfection: ethics in the age of genetic engineering. First
Harvard University Press paperback edition, 2009.
SANDEL. M. J.(2009) Justice: what´s the right thing to do? Farrar, Straus and Giroux. New
York.
1. INTRODUÇÃO
A questão trazida para reflexão implica no estudo e análise da transparência como
elemento de valor e missão a ser seguido pelo plano gestor nacional do poder judiciário,
e quais as dimensões das edições das resoluções normativas do Conselho Nacional de
Justiça como instrumentos de efetivação da democratização do judiciário. Foi efetuada
análise de campo utilizando-se dados coletados no site do CNJ, e associações de Juizes,
bem como análise aos dados sobre transparência pela FGV-epabe. O estudo e análise
da transparência é necessário, vez que, se destaca como elemento de valo institucional
do Poder Judiciário. Foi analisado o conceito de transparência e suas dimensões legais
e ligada a accountability e controle social.
O CNJ realizou um censo1, sendo a primeira pesquisa destinada a traçar o perfil de
magistrados e servidores de todos os tribunais e conselhos que compõem o Judiciário
Brasileiro. Foi realizado em 2013, onde todos os magistrados e servidores espalhados
pelo Brasil tiveram a oportunidade de responder aos questionários eletrônicos, de
modo independente e sigiloso, para que o CNJ pudesse retratar da melhor forma
possível quem são e o que pensam os integrantes do Poder Judiciário. Para tanto foi
disponibilizado três tipos de relatórios, conforme abaixo colacionado que procuram
suprir lacuna histórica da ausência de informações de dados detalhados acerca das
características pessoais e profissionais de magistrados e servidores, o que viabiliza
a primeira oportunidade de transparência das opiniões e avaliações das políticas do
judiciário, principalmente seus tribunais.
1) Vetores Iniciais e Dados Estatísticos - VIDE2 - O relatório apresenta dados
estatísticos com as principais características pessoais, profissionais e com as opiniões
presentes no censo de magistrados e servidores. Não há análises dos dados, mas
apenas os principais números que, sempre que possível, detalham os distintos
ramos de Justiça
2) Metodologia dos relatórios por Tribunal3 - Os 138 relatórios por tribunal
apresentam os principais dados estatísticos de cada um dos tribunais e conselhos
que compõem o Poder Judiciário. Por serem mais detalhados, os relatórios por
tribunal dos magistrados não foram apresentados para aqueles tribunais com
poucos magistrados, como os Tribunais Superiores e os Conselhos Superiores. Como
cada magistrado só poderia responder a pesquisa apenas uma vez, nos Tribunais
Eleitorais os dados dos magistrados são apenas daqueles da classe dos juristas. Os
juízes estaduais e federais que acumulam a função eleitoral responderam sempre
por seus tribunais de origem. Em vista do reduzido número de juízes eleitorais da
classe dos juristas, nestes relatórios apenas constarão as informações dos servidores.
3) Séries Temáticas 1 Percepções dos servidores sobre os desafios da gestão
judiciária4 As séries temáticas tratam dos assuntos mais relevantes para auxiliar
as ações estratégicas e as políticas judiciárias. São textos com aprofundamentos e
recomendações, úteis para todos os setores dos tribunais com interesse em utilizar
as informações e conclusões possíveis com base nos dados da pesquisa.
1 http://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias
2 http://www.cnj.jus.br/images/dpj/CensoJudiciario.final.pdf
3 http://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/censo-do-poder-judiciario/79054relatorios-por-tribunal
4 http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2015/12/6924ca7487b230769b634b2d7cef333e.pdf
As análise trazidas pelo CNJ, também nos remete a pensar sobre o distanciamento do
judiciário para com a sociedade civil, haja vista, que dentro de sua concepção entende
que o cidadão brasileiro está satisfeito com os atuais procedimentos de celeridade e
eficiência nas metas apresentadas. Ademais, as análise efetuadas nos remetem aos
atuais conflitos internos do campo jurídico com vários discursos de associações de
servidores e magistrados que passaram a se manifestar quanto as suas insatisfações, e
divergências. Hoje temos os progressistas e os conservadores em tensão e na disputa
de dominação do poder naquele campo jurídico (BOURDIEU, p.226), essas disputas
no meio jurídico se fundamentam na separação entre profissionais, e entre não
profissionais, onde a racionalização constante delega poderes autônomos, impondo um
sistema jurídico próprio inteligível para seus agentes e sujeitando a sociedade a sanções
produzidas por esses códigos.
Dentre as etapas efetuadas neste estudo, as resoluções normativas do CNJ propiciaram
a inserção de valores a serem alcançados pelo Judiciário, com uma nova retórica
através da transparência, credibilidade, participação do cidadão, dentre outros valores
inseridos, vejamos adiante.
O PLANO DE GESTÃO ADMINISTRATIVA DO JUDICIÁRIO E A
TRANSPARÊNCIA
Percebe-se que o CNJ, através do seu Plano Estratégico Nacional passou a implementar
valores e objetivos a serem seguidos como diretrizes pelo poder judiciário, o que vem
refletindo nas pesquisas efetuadas no senso do Conselho. Equitativamente foram
editadas várias resoluções que trazem como atributos de valor para o judiciário a
transparência, responsabilidade social e a ética, dentre outros atributos que deverão ser
seguidos pelo sistema interno dos tribunais de todo Brasil. Inegável que com a inserção
de novos valores mudanças estão aparecendo nas organizações ligadas à atividade
judiciária. O destaque da atuação do Conselho é relevante, pois este vem atuando,
em que pese as resistências, com o objetivo da concretização da democratização do
Judiciário. Pode-se destacar para melhor ilustrar a análise do tema algumas resoluções
instituídas:
1) Resolução 70, que se criou o Plano Estratégico Nacional do Poder Judiciário;
2) Resolução nº 128, que foi o resultado da necessidade vivenciada pelo Judiciário
de resgatar a confiança e a credibilidade da sociedade, através da implementação
e promoção de atributos de valor para a sociedade como o de: credibilidade,
Celeridade, Modernidade, Acessibilidade Imparcialidade, Transparência, Controle
Social, Ética, Probidade, Responsabilidade Socioambiental;
3) Resolução 102, que orienta os tribunais para que haja divulgação na internet de
informações as remunerações de magistrados e servidores. A resolução determina
que os tribunais tornem públicos todos os seus gastos, inclusive despesas com
passagens, diárias, contratação de serviços e obras.
4) Para garantir e ratificar esta preocupação o CNJ publicou a resolução de nº 151, que
determinou a divulgação nominal da remuneração dos membros e servidores do
judiciário, apresentando-se através de dados a folha de pagamento.
8 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos humanos, cidadania e educação.. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out.
2001. Disponível em:<https://jus.com.br/artigos/2074>. Acesso em: 20 set. 2016.
No caso específico do sistema legal, todas as suas unidades elementares, os atos legais,
bem como a unidade do sistema como um todo, são ativadas a partir do que o autor
chama de redução de complexidades. A partir desse processo, os sistemas submetem
os estímulos do ambiente a seus padrões próprios de entendimento e processamento
sistêmico. Luhmann absorve, nessa passagem, o conceito de autopoiesis desenvolvido por
Maturana e Varela (1980), para afirmar que os subsistemas funcionais da sociedade são
sempre auto-referenciais, ou seja, produzem e reproduzem a si próprios. Eles constituem
seus componentes pelo arranjo próprio desses componentes, o que constitui propriamente
sua unidade e, portanto, seu fechamento autopoiético.
A questão trazida para reflexão implica no estudo e análise das edições de resoluções do
CNJ como instrumentos veiculadores da democratização do judiciário. O surgimento
de resistências que até hoje ecoam da estrutura deste poder geram conflitos internos, e
nesta dimensão a perspectiva interdisciplinar da teoria de Luhmann possibilita melhor
compreensão dos sistemas jurídicos.
Da mesma forma, indaga-se se o poder judiciário, como sistema autônomo, atende
aquela imparcialidade, insuscetível de influências externas que fazem ecoar os conflitos
GT: 24 - Desenvolvimento,
inovação no setor público e
instrumentos de gestão
Coordenadores: Doriana Daroit e
Juliana Subtil Lacerda
INTRODUÇÃO
A dimensão mainstream do desenvolvimento, acompanhada de seus valores colonizadores
e economicistas hegemônicos, pode ser percebida em seu caráter mais clássico como
sinônimo de progresso civilizacional, modernização e crescimento econômico. Noutra
face, o termo vem sido ressignificado por atores de instituições nacionais e internacionais
e por coletivos da sociedade civil para trazer sentidos aliados a projetos societários de
promoção de direitos, inclusive considerando ângulos igualitários e socioambientais:
humano, sustentável e social se apresentam como predicados do desenvolvimento
desde a década de 1970 (HETTNE, 1990, ESTEVA, 1994). Uma terceira dimensão, talvez
menos discutida, é aquela das metodologias que visam promover o desenvolvimento,
seja para viabilizar os propósitos mainstream ou aqueles outros que os subvertem - ou
mascaram, conforme diriam críticos como Escobar (1995).
Este paper proposto não pretende esgotar cada uma dessas acepções, mas sim
partir de uma experiência participativa contemporânea voltada ao planejamento
governamental para refletir sobre desenvolvimento como referencial (MULLER, 2013)
e o desenvolvimento participativo (PIETERSE, 1998; OOMMEN, 1998). Já esboçados
como desígnios normativos na literatura e nas instituições internacionais desde a
década de 1980, esses construtos se forjam de modo interessante nas experiências
recentes do Fórum Interconselhos viabilizado entre maio de 2011 e março 2016. A arena
oportunizou o encontro de conselheiros nacionais e militantes engajados em mais de
trinta diferentes origens setoriais-temáticas. A elaboração do Fórum foi inspirada pelo
projeto político impresso no programa eleitoral vigente no país entre 2003 e 2016, que
inclusive contou com audiências públicas em 2004 e 2007 para finalidade parecida:
a incidência no Plano Plurianual (PPA) nacional. Orientados por representantes da
Secretaria Geral da Presidência da República (SG/PR) e do Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão (MPOG), centenas de conselheiros atuaram na elaboração e no
monitoramento do PPA do período 2012-2015 e na elaboração do PPA 2016-2019.
Uma etnografia institucional do Fórum foi realizada considerando suas reuniões
nacionais, a revisão bibliográfica sobre o tema (inclusive AVELINO, SANTOS,
2014; OLIVEIRA, 2013, que já se debruçaram sobre a instância), 18 horas de vídeos
disponíveis online referentes à primeira, segunda, quarta e quinta reuniões do Fórum
(FÓRUM PPA, 2011; PARTICIPA BRASIL, 2015; TVNBR, 2013); onze entrevistas semi-
estruturadas realizadas com participantes e organizadores, entre ativistas e gestores
governamentais; e a revisão documental das agendas transversais de monitoramento,
relatórios de discussão e outros documentos referentes aos dois PPA que contaram com
a incidência participativa derivada da instância em foco.
O paper está organizado da seguinte forma: primeiramente, trazemos uma descrição das
reuniões e propósitos do Fórum Interconselhos; em seguida, discutiremos as distinções
entre desenvolvimento mainstream e alternativo, observando os aspectos cognitivos, que
orientam e são orientados pelo referencial global da ação pública e as possibilidades
de interpretar referenciais híbridos para o desenvolvimento. Finalmente, discutiremos
desenvolvimento participativo enquanto uma dinâmica da ação pública transversal.
1 De acordo com o Decreto Presidencial 8.243 de 2014, o Fórum Interconselhos “é um mecanismo para o diálogo entre representantes
dos conselhos e comissões de políticas públicas, no intuito de acompanhar as políticas públicas e os programas governamentais,
formulando recomendações para aprimorar sua intersetorialidade e transversalidade” (BRASIL, 2014).
E foi a partir desses diálogos com atores que deram sentido à instância que pudemos
compreender que as gêneses do Fórum estão no primeiro mandato do governo de Lula,
entre 2003 e 2006, mesmo que o primeiro Fórum Interconselhos tenha acontecido apenas
em 2011 visando incidência sobre o PPA 2012-2015. É possível atribuir seu embrião
ao programa de governo expressado desde a campanha para presidente de Lula, em
2002. Em seguida, um importante ponto de inspiração ao Fórum Interconselhos esteve
nas audiências públicas promovidas com protagonismo da sociedade civil durante o
primeiro ano de mandato do presidente, em 2003, visando o PPA 2004-2007. E também
no período de início do mandato de Lula, encontramos mais uma das bases do Fórum.
Desta vez, na atuação que passou a ser prevista para a Secretaria Geral da Presidência
da República (SG). Entre as atribuições da SG, estava a representação da Presidência
no diálogo com Conselhos Nacionais. Para tanto, uma das estratégias da Secretaria
Nacional de Articulação Social, submetida à SG, foi reunir os secretários executivos
dessas instâncias, engendrando encontros até então inéditos.
Uma convergência entre um propósito de abertura participativa e a estrutura
institucional não se efetiva de forma simples ou automática, mas encontra sim
resistências entre importantes atores e setores da burocracia estatal. Entre os
2 Desde 2015, a Secretaria Geral da Presidência da República passou a chamar-se por Secretaria de Governo.
3 Servidor público entrevistado. Brasília, 29 de setembro de 2016.
fatores que valem considerar nessa construção, está o papel dos atores que lideram
as instituições setoriais. Num país marcado pelo presidencialismo de coalizão e
pela oferta de cargos públicos (DIAS, 2010) a indivíduos referendados por partidos
relevantes para a governabilidade (antes que necessariamente alinhados), essa coesão
entre orientação programática e ação governamental é especialmente desafiadora.
No caso do Ministério do Planejamento, acrescenta-se a prevalência de uma noção
eminentemente técnica sobre o seu próprio papel.
Assim, de fato, a intenção do diálogo com atores societais para agendas estratégicas
só deixa de ser mera orientação presidencial para se concretizar nas arenas do Fórum
Interconselhos em 2011, na aliança entre o ministro da SG, Gilberto Carvalho, e a ministra
do MPOG, Miriam Belchior. Mais especificamente, foi indispensável o estabelecimento
de relações entre atores da SNAS/SG, e as respectivas secretarias relevantes para o
Planejamento Plurianual, quais sejam: a Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e a
Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos (SPI), no MPOG, que passaram
a sensibilizar suas equipes e alterar, ainda que minimamente, seu organograma e
processos de trabalho para acatar eventos e incidências da participação social.
Na empreitada prévia ao Fórum, a SG manteve seu papel de diálogo e articulação com
os conselhos e movimentos sociais, e o MPOG cultivou o diálogo com os ministérios
setoriais. Na ocasião da reunião inaugural, estava claro para a representante da SPI/
MPOG que “no Planejamento, somos os guardiões do método. Mas quem vai fazer
as ações do PPA são os ministérios setoriais: e os senhores e senhoras conselheiros e
conselheiras têm um papel fundamental e insubstituível, que é esse papel de diálogo
com o ministério setorial” (FORUM PPA, Lúcia Falcon, 2011). Na conformação do
PPA 2012-2015, antecedeu à reunião do Fórum a tomada em conta de outros inputs
de processos participacionistas. De acordo com a mesma gestora, “nós abrimos
todos os documentos das conferências, e montamos planilhas para ver onde é que as
conferências iam corresponder nos programas, objetivos e iniciativas do PPA”. Esse
destaque é importante também para perceber que não fazia parte da intencionalidade
de constituição de um Fórum Interconselhos superar as dinâmicas conselhistas e
conferencistas setoriais, mas sim complementá-las.
Na primeira reunião do Fórum, em maio de 2011, o propósito era expor um modelo
mais facilmente inteligível de planejamento, de modo a permitir aos cidadãos engajados
e a outros atores, mediante monitoramento, acesso aos resultados alcançados pelo
Governo Federal. De acordo com a ministra do Planejamento, a arena oportunizaria
a participação orientando decisões que não precisariam considerar, exclusivamente,
termos técnicos orçamentários. O PPA estaria passando por ajustes para melhor refletir
as prioridades de governo, considerando as ações e resultados, em linguagem acessível.
O PPA é fundamental para construir uma visão de futuro do país. Ele propõe
macrodesafios e valores para orientar a ação do governo nos próximos quatro
anos (...). Então, nós estamos trabalhando, e os senhores serão muito importantes
nesse processo, para que ele tenha uma linguagem mais acessível, porque a
sociedade só pode acompanhar se ele for um instrumento mais acessível. Que
saia da lógica do dinheiro, do orçamento, para um mundo dos resultados,
daquilo que a gente quer alcançar; e que permita o efetivo monitoramento.
Então, o PPA muda o foco do dia-a-dia da gestão para as mudanças da vida da
sociedade. Então nós estamos focando as ações. Como estamos fazendo isso?
Primeiro, cada uma das áreas tem que estabelecer suas ações mostrando com
clareza qual o benefício que a sua atuação traz para a sociedade, e não mais só
os insumos que são necessários. Era muito comum, como resultado da ação,
comprar carro, equipamentos. Isso é meio, não é o fim para o qual uma ação é
feita. (FÓRUM PPA, Miriam Belchior, 2011).
4 Atualmente, SEPPIR e SPM não mais possuem vinculação direta à Presidência da República ou status ministerial, tendo estruturado
um Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos em 2015 e, desde o afastamento da Presidente Dilma
Rousseff em maio de 2016, foram alojadas no organograma do novo Ministério da Justiça e Cidadania.
As reuniões tinham como propósitos pactuar o que deve ser monitorado, por quem,
com quais compromissos, considerando uma lógica de seletividade das informações; e
apontar críticas e propostas às ações governamentais pelos representantes da sociedade
civil. As críticas e propostas exigiam respostas pelos atores do governo que, por sua
vez, foram ativados pelo MPOG em momentos posteriores às reuniões. Com respeito
a essas respostas, é interessante perceber que o Fórum era capaz de estabelecê-las em
caráter mais abrangente que aquele caráter fragmentário de uma resposta ministerial
a um conselho setorial. No Fórum, a resposta era do governo, identificando a ação
transversal à ação sistêmica governamental. Conforme um dos entrevistados, atuante
na Secretaria Geral,
a gente colocou como princípio a resposta específica. Cada proposta precisava ser
respondida individualmente, isoladamente, ainda que houvesse discordância.
(...). Uma resposta a uma proposta do Fórum Interconselhos não é mais uma resposta
setorial. É uma resposta de Governo. Então quando alguém do governo diz, por
exemplo, que energia nuclear não vai ser desativada, aquilo não é posição do
Ministério do Meio Ambiente, não é posição de Minas e Energias, é a posição
unificada do Governo Federal como um todo (informação verbal)5
Nos anos 2012 e 2013, a terceira e quarta reuniões do Fórum Interconselhos se deram
predominantemente em torno do monitoramento das agendas de igualdade racial,
comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais; povos indígenas;
políticas para mulheres; criança e adolescente; juventude; pessoa idosa; pessoas
com deficiência; população em situação de rua e população LGBT (BRASIL, MPOG,
SGPR, 2013).
Em 2014, começava a se desenvolver nos conselhos e ministérios setoriais discussões
para incidência no PPA 2016-2019. Em 2015, a partir da 5ª Reunião do Fórum
Interconselhos, o caráter propositivo retorna à agenda e complementa a lógica de
monitoramento. O governo reeleito mudava ali tanto a estratégia como seus ministros,
repovoando os espaços e incrementando a lógica do PPA participativo. Para além
da reunião nacional Interconselhos, foram organizadas reuniões setoriais sindicais,
empresariais, de juventude e de mulheres, e também fóruns regionais em capitais das
cinco macrorregiões do país. A quantidade de participantes nas reuniões presenciais
durante o ano de 2015 saltou da média de duas a três centenas de pessoas, para 4.000
– somando as dez reuniões realizadas (BRASIL, SPIE/MPOG, 2015). O Fórum também
mudou de nome para acoplar a si o rótulo da plataforma de participação digital6
“Dialoga Brasil”.
A metodologia era bastante parecida a das primeiras reuniões: abertura institucional
com fala ministerial, plenária com questionamento dos participantes, grupos de trabalho
da sociedade civil, relatoria, compromisso de devolutiva governamental. Mas uma
diferença metodológica marcante é que durante os momentos em plenária, passou-se a
contar com sujeitos da sociedade civil não apenas em púlpito para falas mais curtas que
a dos atores governamentais, mas também entre os componentes da mesa – algo que
ainda que o espaço do Fórum não seja perfeito, não seja adequado, não esteja
formalizado, que o PPA não tenha sido tão bem influenciado como poderia,
que o monitoramento pudesse ter sido feito de outra maneira, independente
disso, do ponto de vista de uma cultura organizacional, para mim, ele já marca
uma mudança: uma reação a essa excessiva fragmentação que a gente vê nas
políticas públicas brasileiras (informação verbal8).
Concordando com a noção mais geral de que o Fórum permitia a criação de propósitos
conjuntos, laços e referenciais em torno de um projeto de desenvolvimento, ao escrever
este trabalho em fins de 2016, não podemos deixar de reiterar as ressalvas às críticas
apresentadas.
2. Desenvolvimentos
Nos documentos que vocês nos enviaram tem um pressuposto que nunca é
questionado, que é o de que tudo está sendo planejado em função do crescimento
econômico. Embora se diga que o objetivo é desenvolvimento, igualdade,
sustentabilidade, os eixos centrais do plano energético, da estruturação do
orçamento, das prioridades, vão no sentido do crescimento econômico. Ora, nós
sabemos que ele está na raiz de muitos males que o mundo e o Brasil estão
vivendo. Eu gostaria de propor que a gente incluísse que o desenvolvimento
econômico e tecnológico deviam ser tomados no PPA como meios para um fim
maior, que é o desenvolvimento social e humano (ativista de direitos humanos
no FI, FORUM PPA, 2011).
9 Ainda que reconheçamos o potencial contra-hegemônico da instância participativa, não compartilhamos uma ingenuidade
com respeito às características dos representantes da sociedade civil. Ressalvamos, com as assessoras do INESC, que “não é
o caso de romantizar a participação social sob o risco de homogeneizar as intervenções e invisibilizar a disputa de diferentes
valores presentes na própria sociedade civil. Muitos representantes externaram discursos retrógrados em oposição, por exemplo,
ao paradigma dos DHESCA (Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais), norte político para um número
grande de entidades – por exemplo, aquelas filiadas à Associação Brasileira de ONG –ABONG, à Plataforma DHESCA e ao
Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos - FENDH. Ou seja, ficou expresso uma falta de coesão ideológica dentro das
organizações e redes que estavam representando a sociedade civil. O que é real e espelha a sociedade em toda a sua complexidade.
A política é permeada por disputas e a discussão do PPA não seria diferente, pois envolve concepções muitas vezes opostas. Em
certo momento, haverá necessidade de arbitragem e o governo terá de fazer opções políticas ao considerar as sugestões dadas no
Fórum” (BICALHO, GRAÇA, INESC, 2011).
10 Servidor público entrevistado, Brasília, 14 de setembro de 2016.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em alto grau de complexidade, encontramos nos propósitos do Fórum Interconselhos
um ensaio de dinâmica transversal e de organização em rede abrangente e ousada.
Na proposta, mais que na efetivação: a lógica de rede, por exemplo, é obliterada pelo
protagonismo do MPOG na orientação do conteúdo das discussões, e da SG/PR junto
ao MPOG na condução dos processos metodológicos.
Não há previsão de continuidade da iniciativa em foco, dada a brusca mudança de
atores e de modos de gestão no Governo Federal ocorrida neste ano no país. É essa
ruptura com o projeto participativo de orientação para o PPA e o desenvolvimento que
nos leva a compartilhar das ressalvas, realizadas por todos os entrevistados, às críticas
possíveis à instância. O intento de construção de novos marcos de monitoramento e de
conteúdo para os PPAs foram porosos a incidência de diretrizes, temáticas, objetivos,
ações e iniciativas societárias, criando um ambiente propício às possibilidades de
construção tanto dos novos laços relacionais como de referenciais híbridos. Esses são
interessantes atributos de fóruns complexos como o Interconselhos, que trazem consigo
o ímpeto do encontro e da construção de novos marcos para a ação pública rumo ao
desenvolvimento.
A frequência de reuniões, a repetição de participações individuais, a efetividade do
processo participativo, e a consideração, pelo governo, de críticas de representantes
da sociedade civil à metodologia de elaboração e do monitoramento do PPA denotam,
entretanto, fragilidades que merecerão maior atenção analítica em estudos posteriores.
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INTRODUÇÃO
Com a Reforma Psiquiátrica, houve uma quebra de paradigma do termo hospitalocêntrico
e asilar para psicossocial, quando os pacientes psiquiátricos que antes ficavam em
internação de longa permanência passaram a ser atendidos em seus territórios com a
preservação de direitos e intervenções eficazes dentro de sua realidade.
Nesse contexto, nasce a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), sendo uma estratégia
utilizada pelo SUS para a promoção de saúde em seu aspecto holístico e não mais
lançando mão de um paradigma somente biológico dos Transtornos Mentais. Esta
mudança de concepção de tratamento se deu através da Lei 10.216 que vem ao encontro de
uma nova lógica de atendimento, sobretudo com relação à crise. Dentro desta proposta
a crise precisa ser entendida e atendida em seu território, tendo os laços afetivos e
familiares em acompanhamento ao paciente no momento do cuidado intensivo que
seria qualificado similarmente a internação. Sendo a crise escutada e compreendida e
não mais visualizando a internação psiquiátrica de longa permanência como a primeira
opção de tratamento, fazendo uso de outros recursos e dispositivos que atendam a
demanda explicitada. Se faz necessário lançar mão de dispositivos que atendam a crise
dentro do que preconiza a RAPS, de forma a entender a crise como parte do tratamento
e trabalhar com ela, neste caso, o espaço o qual teríamos para melhor da conta devido
a estrutura e funcionamento é o CAPS III.
Por conta disso, nosso trabalho se norteia a fazer um levantamento de dados no que diz
respeito a implantação dos CAPS III em território nacional, utilizando como banco de
dados os arquivos, artigos e cartilha do Ministério da Saúde. Nossa pesquisa chama a
atenção para levar em consideração as peculiaridades do território, uma vez que existem
casos graves que ainda são internados por longa permanência pela dificuldade em
acessar certos dispositivos de cuidado. Temos a intenção de fomentar novas pesquisas
que considerem a importância da RAPS no cuidado ao paciente grave.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Anteriormente com uma visão hospitalocêntrica, o tratamento em Saúde Mental era
direcionado as instituições de caracterização fechada onde o individuo se via numa
lógica biológica da doença, onde a pessoa recebe a assistência da doença e, tendo como
concepção de cuidado, o isolamento. A partir do rompimento com este paradigma,
ganha espaço uma nova lógica de pensar o tratamento: uma lógica baseada numa
reforma desses métodos e técnicas de concepção de cuidado. O Movimento de Reforma
Psiquiátrica ganha articulação em todo o país, sob o lema “Por uma sociedade sem
manicômios”, e surgem experiências de novas formas de atenção a esta população.
Juntamente com esta nova forma de cuidado, muda-se a concepção legislativa de se
pensar na assistência em Saúde Mental, havendo um marco no aparato legal - Lei
10.216/01, que dispõe sobre os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais
e redireciona o modelo assistencial. Onde a internação que era a opção mais utilizada
anteriormente, passava-se a ser a última opção em concepção de cuidado: e que é
utilizado todos os dispositivos psicossociais que atendessem a pessoa em seu território
preservando seus vínculos familiares e comunitários. “ser tratado preferencialmente
em serviços comunitários de saúde mental (...); A internação, em qualquer de suas
modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem
III é um dispositivo 24 horas, onde o sujeito é assistido nesse período. Observa-se que
nas localidades que não tem CAPS III lança-se mão da RAPS com alguns dispositivos,
dentre eles os Leitos Psiquiátricos nos Postos de Urgência.
2. RESULTADOS ALCANÇADOS
A partir dos dados cedidos pelo Ministério da Saúde(2014):
De acordo com os dados da pesquisa documental, onde foi utilizada o banco de dados
de Brasil (2014), do ano de 2006 à 2014 houve a implantação de 47 CAPS III no Brasil,
a cada ano houveram aumento de dispositivos que atendam ao caráter de urgência
e assistência 24 horas. O que surgem a necessidade de cada vez mais se observar a
necessidade de implantação dos mesmos.
No que diz respeito a região Norte, destaca-se o Estado do Pará com três implantações
de CAPS III, seguido por Roraima e Amazonas com uma implantação.
Já a região Sudeste, destaca-se a região de São Paulo, com 35 CAPS III implantadas,
seguido pela região de Minas Gerais, com 12 implantações de dispositivos 24 horas,
seguido por Rio de Janeiro com três implantações. O curioso é que Minas Gerais, as
cidades no que se refere ao nível populacional são menores do que Rio de Janeiro, no
entanto existem 9 implantações a mais neste Estado, o que é de suma importância
pesquisas epidemiológicas para que haja esta implantação.
No que se refere à região Sul, num somatório de seis dispositivos implantados, três
estão implantados no estado do Pará, seguido por dois em Santa Catarina e um no Rio
Grande do Sul.
O centro-oeste, a região que tem menos implantação de CAPS III no Brasil, conta com
a implantação de dois dispositivos de atendimento 24 horas, estes dispositivos estão
implantados em Goiás e em Mato Grosso do Sul. Interessante observar que o Distrito
Federal não contempla CAPS III, embora seja o estado de maior destaque no Brasil por
ser sua capital.
Os resultados apontam para um somatório de 85 CAPS III implantados em todo
o Brasil( Brasil, 2014) sendo implantados mais no ano de 2014, no somatório desses
dados (2014). A região que mais se destacou pelo número de CAPS III foi a Sudeste
com 50 (cinquenta) CAPS III implantados, com ênfase para o Estado de São Paulo
num somatório de 35 CAPS III implantados. Já a região que menos se destacou foi a
região Centro Oeste com 2 CAPS III implantados, no entanto cabe-se ressaltar que os
achados apontam para Estados que não possuem a implantação de CAPS III como são
as realidades apresentadas no Distrito Federal e no Mato Grosso.
Sabe-se que para a implantação do CAPS III existem alguns critérios, entre eles
quantitativo de pacientes e, sobretudo, quantitativo populacional, o que de alguma
forma facilita algumas regiões e dificulta para outras, outra forma de se justificar é
o apontamento de demanda e de com dados epidemiológicos, com destaque para o
estado de Minas Gerais que é constituído de micromunicípios que não atingem o nível
populacional exigido, porém conta com 12 (doze) CAPS III implantados.
3. CONCLUSÕES
Para podermos preconizar o que nos reporta a RAPS, se faz necessário que a rede
atenda as suas demandas e discuta com elas, porém é de suma importância que a crise
seja acolhida de forma a lançar mão de subsídios para trabalhar com o momento de
crise de forma a se direcionar numa lógica de não institucionalização do sujeito, e entre
os dispositivos que atendem a esta lógica, contempla-se o CAPS III.
No mapeamento concluiu-se que há uma distribuição destes dispositivos de acordo com
as demandas apresentadas, seja populacional ou epidemiológica o que chama a atenção
para a possibilidade de regiões que não atendam aos quesitos da 336, façam uso de sua
própria demanda como justificativa, ressaltando que se faz necessária a implicação de
regiões na utilização desse recurso para contar com a implantação de dispositivos que
melhor atendam seus usuários, principalmente os de vulnerabilidade grave, intensivos
e recorrentes. A crise tem significado dentro dos quadros e é importante que esta seja
acolhida e trabalhada, num espaço que o sujeito apareça, este espaço: O CAPS III, o
dispositivo de atenção ao sujeito que sofre psiquiatricamente 24 horas.
REFERÊNCIAS
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das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo Assistencial em
saúde mental.
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29 de janeiro de 1992.
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de 31 de janeiro de 2002.
______. Ministério da Saúde (2002) Secretaria da Assistência à Saúde, Portaria 336/02 de
19 de fevereiro de 2002.
______. Ministério da Saúde (2002). Secretaria da Assistência à Saúde, Portaria 816/02
de 30 de abril de 2002.
______. Ministério da Saúde (2002). Secretaria da Assistência à Saúde, Portaria 817/02
de 30 de abril de 2002.
______. Ministério da Saúde (2002). Secretaria da Assistência à Saúde, Portaria 1679/02
de 19 de setembro de 2002.
INTRODUÇÃO
É relativamente recente o movimento de capacitação de servidores das instituições
públicas através da pós-graduação, particularmente, dos mestrados profissionais. De
um lado, iniciativas públicas tais como o Programa de Desenvolvimento de Pessoal do
Governo Federal, oferecendo apoio à educação continuada e abrindo perspectivas de
enquadramento na carreira em função de capacitação e, de outro lado, a emergência
dos mestrados profissionais que, nos seus esforços locais de criação e enquadramento,
incorporam compromissos institucionais de formação dos próprios servidores,
parecem circunscrever as iniciativas principais (BOUFLEUER, 2009; FISCHER, 2005;
NEGRET, 2008).
Esse movimento deve gerar uma demanda crescente por formação mas, ao mesmo
tempo, explicita um gap gigantesco, tanto na identificação e modelagem dos problemas
locais relevantes, quanto na própria capacitação atual dos quadros em busca de
aperfeiçoamento e confrontados com atividades de enorme heterogeneidade. Além
disso, impõe-se a necessidade de compreender melhor as conexões entre as demandas
institucionais gerais e os interesses pessoais dos sujeitos, na particularidade de suas
histórias de vida. O presente artigo pretende diagnosticar este quadro, através de um
estudo de caso na Pós-Graduação em Sistemas de Gestão da Universidade Federal
Fluminense, mapeando e categorizando iniciativas em curso e confrontando-as com a
literatura atual.
1. O MESTRADO PROFISSIONAL E A QUESTÃO DA INSERÇÃO SOCIAL
Os desafios postos à universidade pública nas últimas décadas se ampliaram e
se tornaram cada vez mais complexos à medida que o mundo se tornava global
e os problemas assumiam proporções planetárias, exigindo novas estratégias
epistemológicas e de ação. A resposta a estes desafios enseja a perspectiva da
interdisciplinaridade e passa inexoravelmente por mudanças também na organização
do próprio mecanismo universitário tal como ele se apresenta, com seus dispositivos
de gestão e de divisão do trabalho. Se do ponto de vista dos resultados em pesquisa
e formação de pessoas, a performance da universidade tem um histórico de relativo
sucesso, o mesmo não se pode dizer com relação à eficácia organizacional. As sucessivas
reformas universitárias, ou tentativas de fazê-las, não lograram êxito completo no que
diz respeito à organização propriamente dita, a começar pela Reforma Universitária de
1968 que, engendrada no bojo da ditadura civil-militar que assolava o país, terminou
frustrada em diversos aspectos, seguindo-se outras propostas de modificações que
surgiram com o intuito de redefinir a gestão do ensino superior nas universidades
públicas e modificar sua estrutura curricular, como as ocorridas em 1985, no governo
Sarney, em 1990, no governo FHC e em 2004, no governo Lula (BERNHEIM, CHAUÍ,
2008; RAYNAUT, 2011; CAPELLA, 2016).
Nessa sequência de operações cujo objeto era a universidade pública, surge em 1995,
através da Portaria n. 47, de 17 de outubro de 1995, a ideia da criação de mestrados
dirigidos à formação profissional (CAPES, 2005). Em 1998, através da Portaria n. 80,
de 16 de dezembro de 1998, é reconhecido no âmbito normativo o chamado mestrado
profissional, cujos objetivos, consolidados apenas em 2009, através da Portaria n. 17/2009,
incluíam (i) capacitação profissional voltada para demandas sociais, organizacionais
ou profissionais e do mercado de trabalho; (ii) transferência de conhecimento em razão
É nesse contexto que surge a discussão da inserção social como quesito de avaliação
da pós-graduação. Boufleuer (2009) vai indagar, em primeiro lugar, se pode haver uma
boa pós-graduação sem de fato existir inserção social, ou seja, até que ponto inserção
social não é inerente mesmo à pós-graduação. Para isso, o autor faz uma análise crítica
do documento publicado pelo Diretor de Avaliação da Capes, segundo o qual “a pós-
graduação tem uma responsabilidade social e deve, assim, não apenas melhorar a
ciência, mas também melhorar o país”.
Na caracterização do que é a “inserção social”, o documento da Capes, reconhecendo
a autonomia das áreas para definirem a questão da melhor forma, sugere, contudo,
quatro categorias de impactos, conforme o Quadro 1.
Quadro 1. Como avaliar a inserção social
programa, que divulga em sua página, com certa regularidade, notícias acerca do seu
empenho em promover a capacitação dos servidores da universidade. Em 2014, o curso
foi uma espécie de plataforma a partir da qual foi criado o Doutorado Interdisciplinar
em Sistemas de Gestão Sustentáveis, com o qual dialoga fortemente.
As linhas de pesquisa do curso, mantidas relativamente constantes ao longo do tempo são
(i) qualidade total; (ii) meio ambiente; (iii) segurança do trabalho e (iv) responsabilidade
social e sustentabilidade. O caso em estudo no presente artigo se inscreve na linha de
qualidade total, com o foco sobre aprendizagem e gestão do conhecimento.
2.1. O estudo de caso
O estudo tomou por base um conjunto de dissertações que dialogavam entre si e cujo
foco era estudar equipes de trabalho em instituições de ensino e/ou pesquisa. Foram
tomadas como referencia sete dissertações que tinham este foco, conforme o Quadro 2.
Quadro 2. As dissertações base
Fonte: os autores
A primeira dissertação (A implementação de procedimentos de controle como estratégia de
disseminação do conhecimento e instrumento para atingir eficiência na fiscalização de contratos
de serviços terceirizados em uma universidade pública), desenvolvida na Universidade
Federal de Juiz de Fora, tinha por objetivo analisar e discutir o processo de fiscalização
de contratos de prestação de serviços terceirizados, aliando diretrizes voltadas à gestão
própria percepção dos agentes executores, via de regra, mais próximos da demanda da
sociedade. Oliver-Mora e Iñiguez-Rueda (2015) mostram a importância da perspectiva
participativa no desenho, de baixo para cima, dos serviços públicos, como forma de
aproximar a especificação da execução.
A execução das atividades no contexto do trabalho, por sua vez, se faz a partir de
equipes muitas vezes formadas de maneira burocrática, ou, ao menos, sem levar em
consideração exigências de competência e de autonomia da equipe, particularmente
face um trabalho heterogêneo, referenciado por exigências da legislação, da tarefa e
da tecnologia. Odelius et al. (2016) chamam a atenção para as dimensões afetivas das
competências, com destaque para as atitudes e habilidades sociais que são condições
fundamentais para subsidiar planos de ação e a aprendizagem colaborativa.
Capella (2016), examinando a motivação dos sujeitos envolvidos com a formulação de
políticas públicas, destaca o fato de que a ação de indivíduos (ou grupos), denominados
de “empreendedores de políticas públicas”, constitui um aspecto central no processo
de produção de políticas. Dentre esses papeis, a autora destaca o de defender ideias e
facilitar a introdução de mudanças em processos. Em que pese o fato de que o alvo de
Capella (2016) tenha sido os formuladores de políticas, o comportamento empreendedor
é um componente cada vez mais valorizado e presente no contexto do trabalho no setor
público e, inclusive, uma fonte de tensionamento com o modelo burocrático tradicional.
Tais indicações teóricas subsidiam o esforço de compreender o fenômeno de busca
por capacitação da parte de servidores públicos, utilizando-se, em contrapartida, do
repertório de formação da pós-graduação. Esta, por sua vez, tensionando também o
limite clássico da definição de sua agenda de pesquisa, marcadamente disciplinar e
movida pelo projeto central do grupo de pesquisa, viu-se na contingência de adotar
novas formas de admissibilidade do que é, afinal, problema de pesquisa passível de ser
tratado com seu arsenal teórico e suas trajetórias empíricas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho ensaia aproximações, ainda muito embrionárias, sem certezas
consolidadas, entre uma certa abordagem da engenharia e uma concepção particular
da pesquisa em educação, partindo de uma suspeita. Tal suspeita deriva, em parte,
da observação de pesquisas produzidas em ambientes de mestrados profissionais, na
engenharia e na área de ensino.
Trata-se de supor que estamos vivenciando uma luta de vida e morte, uma espécie
de Armagedom (o Monte Megido é a subjetividade) entre uma lógica privada, de
mercado, que diagnostica o fracasso e a morte do público e do estado (ou pelo menos
uma radical alteração da relação entre ambos, francamente desfavorável ao segundo
polo), por um lado, e, por outro lado, uma outra perspectiva associada aos movimentos
sociais, à dimensão pessoal e à esfera da cultura, que procura resguardar a diferença e
a vitalidade do público contra seus detratores e arautos de seu fim.
Duas concepções de aprendizado podem estar associadas à essas alternativas. Uma
delas, de aprendizado técnico, referente a aquisição de um conhecimento que permite
operar um dispositivo técnico sobre processos. Outra é a que poderíamos chamar de
aprendizado narrativo, a partir dos seguintes aspectos.
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INTRODUÇÃO
O que move o mundo são as ações dos indivíduos. Nossas ações são baseadas em
conceitos pessoais, ideologias, percepções, entre outros princípios que são recebidos por
nós ao longo da vida. O “como se pensa” impacta diretamente no “como se age”. Muitas
vezes, justamente com o decorrer dos anos, abandonamos certos modelos e arquétipos
graças a um acontecimento, uma informação ou simplesmente porque deixamos de
acreditar em certos paradigmas de vida que nos foram [re]passados. Assim, como na
visão pessoal/privada de mundo, a ação humana (AREDNT, 2007) indubitavelmente é
guiada por princípios e, invariavelmente, as ações dos tomadores de decisões públicas
igualmente são alicerçadas em conceitos.
Nesse sentido, o intuito do presente texto é apresentar uma outra abordagem sobre
o famigerado conceito de desenvolvimento que nos é reforçado a todo momento e que
compulsoriamente o relacionamos automaticamente e estabelecemos aproximações
com as ideias de progresso, economia e industrialização. (E, para você, leitor, que iniciou
este trabalho incomodado com o discurso até aqui utilizado, discurso livre em
primeira pessoa incluindo o leitor - nós - , fique tranquilo, é com você mesmo que
buscamos nos comunicar. Desde já, queremos refletir: por que nos incomodamos tanto
quando nos deparamos com qualquer modelo ou formato atípico, sui generis do que
estamos acostumados – ou será que podemos dizer: treinados – a ver?). Este trabalho,
então, buscará perpassar através da estrutura da doutrina científica clássica, baseada
em argumentos formalmente aceitos pela academia por ideias cujo intuito será o de
reestruturar, remodelar, reexplicar e ressignificar o conceito de desenvolvimento que
estamos acostumados a mirar em nossas ações pessoais ou coletivas.
De acordo com Herrera (1995), existe uma concepção equivocada por parte dos
países desenvolvidos acerca das causas do atraso científico e tecnológico dos países
subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento. Tal concepção naturalmente acaba
por condicionar as estratégias dos organismos internacionais, que se pautam na ideia
de que a ciência é um insumo externo ao sistema de produção e, ao suprir essa carência,
será rompida a inércia do atraso e a sociedade se tornará mais dinâmica, permitindo,
assim, seu desenvolvimento. Nessa mesma perspectiva, Frank (1966) destaca que não
podemos esperar formular teorias e programas adequados sobre o desenvolvimento
para os países subdesenvolvidos, sem antes conhecer como seu passado econômico e
sua historia social deram lugar a seu atual subdesenvolvimento.
Na verdade, a questão central não está em determinar as causas para o [sub]
desenvolvimento, mas, antes disso, em buscar compreender de que desenvolvimento
estamos falando e quais as consequências dessa interpretação; afinal, uma dada
concepção que se tenha sobre qualquer termo/objeto acarreta em determinadas ações,
que seriam outras caso essas concepções fossem distintas.
O que se propõe aqui muito se assemelha ao que Feenberg (2010) cunhou como
“racionalidade subversiva”, que, para o nosso contexto de análise, seria o exercício de
dobrar a razão de desenvolvimento em si mesma, apontando suas intencionalidades
inerentes. Isto é, não se propõe aqui questionar “Porque desenvolvimento?”, tampouco
“Como desenvolver-se?”, mas sim ampliar a reflexão ao propor questionamentos tais
quais: “Para que desenvolvimento?” e, principalmente, a questão ontológica “Que
desenvolvimento?”.
Que desenvolvimento?
Há quase quatro séculos, a ideia de progresso se faz presente na humanidade
(ocidental) e tem consolidado uma revolução paradigmática na cosmovisão humana,
sendo, inclusive, responsável por gerar um novo ideal: o ideal do desenvolvimento
(HEIDEMANN, 2009).
Com efeito, os enfoques tradicionais de desenvolvimento existentes no mundo moderno
têm em sua base o conceito de progresso herdado do positivismo. No arcabouço
desses enfoques prepondera, ainda que implicitamente, a ideia de que as sociedades
podem progredir indefinidamente para níveis cada vez mais elevados de riqueza
material. Nessa visão, o progresso apresenta um caráter evolutivo quase que natural,
de transformação gradual e constante. Tem como princípios norteadores a crença na
razão, no conhecimento técnico-científico (enquanto instrumento para se conhecer
a natureza e colocá-la a serviço do homem), no crescimento econômico e no avanço
tecnológico (DIEGUES, 1992).
Nesse modelo de desenvolvimento clássico, o que move o crescimento econômico é
a industrialização, sendo que, como consequência, os países industrializados são
considerados desenvolvidos, enquanto que aqueles que têm como base de sua economia
a agricultura são vistos como subdesenvolvidos (DIEGUES, 1992).
Nesse contexto, Sunkel e Paz (1999) descreveram três perspectivas de desenvolvimento:
(1) desenvolvimento como crescimento; (2) (sub)desenvolvimento como etapas; e (3)
desenvolvimento como processos de mudanças estruturais.
Na primeira visão, o desenvolvimento é entendido como se fosse um problema de
crescimento da renda per capita, sendo o nível de subdesenvolvimento explicado pela
falta de capitais. Os autores que se apoiam nessa visão adotam como ponto de partida
a análise de aspectos relacionados com o investimento, o que envolve, por exemplo,
determinação da taxa de investimento, como se dá o financiamento externo, quais os
critérios de prioridade na alocação de recursos etc. (SUNKEL; PAZ, 1999).
Em geral, praticamente se ignoram os aspectos relacionados com a produtividade de tais
investimentos e com o grau de utilização da capacidade produtiva dos recursos humanos
e naturais. Assim, tampouco se avaliam as consequências desses investimentos sobre
as condições de vida da população, o que envolve distribuição de renda e concentração
regional da atividade econômica. Admite-se, com efeito, que há um sistema econômico
que funciona tal como se supõe a teoria neoclássica e keynesiana e que o problema
desses países dito subdesenvolvidos aparece assim reduzido quase que inteiramente ao
de uma maior capacidade de acumulação, sendo que seu desenvolvimento se assegurará
com a elevação da renda per capita. Quando tal previsão implícita não se cumpre, como
ocorre com muita frequência, se atribui a justificativa de que o sistema econômico é,
em algum sentido, anormal, ou que apresenta desvios com respeito a como deveria ser
(SUNKEL; PAZ, 1999).
Diferentemente do enfoque de desenvolvimento como crescimento, essencialmente
dedutivo, a corrente de pensamento do subdesenvolvimento como etapa adota uma
visão indutiva. Trata-se de autores que observam objetivamente certas características
que frequentemente apresentam as economias subdesenvolvidas e centram sua atenção
preferencialmente a algumas delas, convertendo-as no pilar de sua interpretação
Ainda segundo esse autor, a Economia Solidária ganhou maior visibilidade no Brasil a
partir de 2002 com o primeiro governo de Lula; entretanto, mesmo após os primeiros
incentivos do Estado:
é possível afirmar que o principal desafio das políticas públicas voltadas à
Economia Solidária diz respeito à ampliação do reconhecimento do princípio
redistributivo, para fortalecer o princípio da reciprocidade (fortalecimento do
ato cooperativo) para enfrentar os constrangimentos do mercado capitalista,
considerando a contraditória relação existente entre a Economia Solidária e o
intercâmbio mercantil. (Schiochet, 2012, p. 18).
Com base nas discussões acima travadas, não fica difícil compreender as relações que
se estabelecem entre desenvolvimento e políticas públicas. Partindo do pressuposto de
que o desenvolvimento não é algo universal e abstrato e sim particular e reducionista,
as políticas públicas, enquanto princípios norteadores do poder público estatal, acabam
sendo pensadas, formuladas e implementadas tendo como alicerce essa lógica. É como
se as políticas públicas traduzissem toda essa concepção acerca do desenvolvimento
e a colocasse em jogo. Conforme ressalta Teixeira (2002), os objetivos das políticas
escondem uma referência valorativa e exprimem as opções e visões de mundo daqueles
que controlam o poder.
Nessa perspectiva, é incontestável que o mundo, e em destaque o Brasil, passam por
uma crise de representatividade e de execução de políticas públicas. No Brasil, se
“tem ocorrido uma diminuição na participação das pessoas no processo eleitoral e um
resultado pouco satisfatório dos eleitores, que se sentem cada vez menos representados
por aqueles que elegeram, ocorrendo o que Santos e Avritzer (2003, 42) denominam de
dupla patologia: patologia da participação e a patologia da representação” (NOBRE,
2007, 216).
Nessa mesma perspectiva, Pateman (1992) afirma que:
Os dados obtidos em amplas investigações empíricas sobre atitudes e
comportamentos políticos, realizadas na maioria dos países ocidentais nos
últimos vinte ou trinta anos, revelaram que a característica mais notável
da maior parte dos cidadãos, principalmente os de grupos de condição
socioeconômica baixa, é uma falta de interesse generalizada em política e por
atividades políticas. (PATEMAN, 1992, p. 11).
O que se visualiza claramente no Brasil hoje é uma ausência de políticas públicas que
reflitam as reais necessidades dos cidadãos. Os dados encontrados nos estudos científicos
de vários setores de políticas públicas gritam por atenção dos formuladores, e, de mesmo
modo, as notícias que são publicadas nos meios de comunicação de massa reiteram a falta
de atenção e zelo para com os problemas sociais. Parte dessa desorganização pode ser
explicada através da reflexão de Abranches (1988) quanto à representatividade: “há um
claro ‘pluralismo de valores’, através do qual, diferentes grupos associam expectativas
e valorações diversas às instituições, produzindo avaliações acentuadamente distintas
acerca da eficácia e da legitimidade dos instrumentos de representação e participação
típicos das democracias liberais” (ABRANCHES, 1988, p. 06).
É nesse sentido que se faz necessária a desconstrução de um conceito de
desenvolvimento totalmente dominador e distante da realidade vivenciada; é algo
sine quae non quando se reflete sobre nossos atos diários e ações realizadas pelo
poder público. A construção da “não-aceitação” de ideologias tradicionais (como
o desenvolvimento essencialmente econômico; machismo; racismo; por exemplo)
deverá pautar a formação das novas gerações.
Portanto, o que aqui se propõe é uma concepção de desenvolvimento que seja
autonomamente livre, que possa ser definida pela sociedade sem balizamentos externos
a ela. Um desenvolvimento concebido sem uma semântica única, que nasça enquanto
construção coletiva, porém singular. Construção coletiva porque se faz em sociedade;
singular porque se opõe à categoria universal de desenvolvimento, sendo que aqui cada
sociedade significa o desenvolvimento a seu modo. É, portanto, uma concepção sem pré-
requisitos e precedentes, que permite diferentes e novas visões e interpretações sobre
como se apresenta a mulher e o homem na atualidade, a inclusão da heterogeneidade
de culturas e de distintas perspectivas de território e espaços sociais.
Nesse cenário, de certo modo aliado a essa proposta, surge a democracia participativa
enquanto alternativa às dominações; como um caminho a ser trilhado e um espaço
a ser ocupado para que as instâncias de decisão social possam ser compostas por
pessoas reais, por cidadãos concretos, com questões legítimas e genuínas. Nobre (2007,
p. 02) afirma que: “numa sociedade com diversidade sociocultural, especialmente nos
países do Sul (SANTOS; AVRITZER, 2003), a teoria representativa de democracia não
é mais suficiente para constituição de uma cidadania ativa; [...] torna-se fundamental o
aprofundamento dos fóruns participativos para se ampliar os conceitos e democracia
e cidadania”.
Reconhecendo a necessidade de novas vias de participação de formulação de
políticas públicas, legitimam-se no pós-1988 as instâncias de participação (IPs): vias
institucionalizadas com objetivo de trazer as demandas sociais para mais perto das
arenas decisórias. Foi nesse sentido que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu,
dentre diversas mudanças, o marco legal para o regime de gestão compartilhada no qual
a população é impulsionada a participar legalmente das arenas decisórias, e, neste
ambiente, manifestar suas posições e contribuir para a descentralização administrativa.
As instâncias de participação, também chamadas de instâncias e mecanismos de
participação institucional (ROMÃO, 2015) se manifestam nos âmbitos federal, estadual
e municipal. De forma genérica, pode-se explicitar que são nesses ambientes que a
população pode ganhar voz; contribuir, debater, investigar, questionar, deliberar.
Ocorre que, quase 30 anos após essa mudança constitucional, o questionamento-chave
sobre as IPs ainda versa sobre a pergunta: “Estes espaços de participação realmente
influenciam a ação do governo?” (ROMÃO, 2015; p. 37).
Uma das instâncias de participação existente se refere às Conferências Nacionais
– objeto deste trabalho – que, nos últimos 20 anos, passaram a compor o arranjo
institucional de participação social no processo de elaboração das políticas públicas no
pós-Constituição de 1988.
Neste sentido, questiona-se então: As Conferências Nacionais, no caso específico
da Ciência, Tecnologia e Inovação (CNCTI), permitem uma ampla e representativa
participação da sociedade? Conformam espaços de debates e de deliberação? As
CNCTIs corroboram para a construção desta outra abordagem quanto à concepção
de desenvolvimento? O próprio tópico deste trabalho irá apresentar as CNCTIs e os
argumentos para tentar responder a essas questões.
2. RESULTADOS ALCANÇADOS
É de fundamental importância dar visibilidade aos dados a seguir sobre a
representatividade dos participantes (SERAFIM, 2016): quando separados por gênero,
as conferências II, III e IV (ocorridas em 2001, 2005 e 2010, respectivamente) possuem um
público participante ativo de mais de 80% do gênero masculino. Já quando analisado
o grau de instrução dos participantes das CNCTIs, majoritariamente os partícipes
possuem Ensino Superior Completo, fator esse que pode evidenciar um isolamento
social dentre os participantes e a representação social existente no Brasil. Além disso,
a indicação dos envolvidos nas CNCTIs II, III e IV foi de responsabilidade dos comitês
organizadores dos eventos, dado esse que pode corroborar para a compreensão de que
essa arena de participação não tem a livre circulação ou a estruturação tradicional
que ocorre majoritariamente por vias de eleições (AVRITZER, 2013; SOUZA, 2013;
SERAFIM, 2016).
Em suma, as CNCTIs demonstram certa desarmonia com projeto de integração das
heterogeneidades culturais advindas do conceito de desenvolvimento aqui apresentado.
Os dados expostos sobre a estrutura e a representatividade dos participantes dos
INTRODUÇÃO
A base de discussão do trabalho é a questão da cooperação, e de como ela é um
caminho fundamental para se lidar com as adversas e complexas questões do mundo
contemporâneo, especialmente em contextos de severa contração de recursos para as
políticas públicas.
Atualmente muitas políticas são feitas de forma compartilhada, podendo ser elaboradas
entre organizações cujos focos são distintos. Uma ação coletiva entre organizações
caracteriza o que se pode compreender por Rede Interorganizacional. Nessa linha,
o recorte desse artigo é observar um ambiente que possui características de redes
interoganizacionais, onde o compartilhamento de recursos humanos, financeiros e
de infraestrutura pode significar uma alternativa para que as atividades de formação,
pesquisa e desenvolvimento fomentadas naquele ambiente se mantenham em
movimento.
O Complexo Tecnológico Educacional – CTE é um arranjo interorganizacional em
fase de formulação, localizado em Campinas, São Paulo, Brasil. Está instalado em um
terreno de cerca de 380.000 m2 com uma área total construída de 14.000 m2. Existem
algumas evidências que permitem a hipótese de que o CTE é uma rede colaborativa.
Ocupam esse ambiente, três organizações constituídas juridicamente de forma
independentes, são elas: O CTI Renato Archer, unidade de Pesquisa do Ministério
de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação - MCTIC, O Instituto Federal de São
Paulo uma autarquia federal de ensino e a Facti - Fundação de Apoio a Capacitação
em Tecnologia da Informação – Facti a fundação de apoio do CTI Renato Archer. Além
dessas três organizações o Campus também é ocupado pelo Centro Nacional em
Referência em Tecnologias Assistivas o CNRTA, uma iniciativa do Governo Federal
por meio do MCTIC e o Parque Tecnológico o CTI TEC, esse ultimo ainda em fase de
implementação.
Para observar as relações contidas nessa suposta rede, tomar-se-á um embasamento
teórico capaz de organizar os elementos colhidos em campo. A base conceitual adotada
para a compreensão do objeto estudado, está dividida em dois eixos principais. O
primeiro deles se encontra no campo da Análise de Política, do qual exploraremos os
conceitos de políticas públicas, tomada de decisão e ciclo de políticas.
organizações num mesmo ambiente, cada qual com sua característica jurídica e de
objetivos específicos.
Policy Arena: Este termo é associado aos espaços de conflito e consenso sobre
determinadas ações e políticas. Essa vertente da policy ganha importância nos processos
decisórios. (Frey; 2000) Na mesma linha de raciocínio configura-se no espaço do CTE,
uma arena, esse conceito se traduz naquele ambiente frente às diversas possibilidades
de disputas e mecanismos de governança contidos.
Policy Cicle: Trata-se das fases que um processo político-administrativo percorre ao
longo de sua existência. Considerando a Política Pública como uma ação processual
cíclica, entende-se que a esse processo se caracteriza em começo meio e fim. Numa
tentativa de facilitar a compreensão nas atividades contidas na atuação do campo
de Análise de Política, muitas obras explanam um mecanismo chamado Ciclo de
Política. Esse conceito nos remete a uma fotografia imperfeita que permite ao analista
observar o recorte e caracteriza-lo em uma fase especifica da vida processual de uma
política pública. Nessa lógica, o Ciclo de Política consiste em uma ordem sequencial
de acontecimentos sugeridos em etapas. Apesar da dinâmica de cada política
pública ser estabelecida de forma particular e não linear ou com sequência ilógica o
ciclo de políticas pode colaborar com a organização de ideias, criando um processo
organizacional mais acessível. As estruturas de Ciclo de Políticas podem se distinguir
em termos de nomenclatura entre um autor e outro, entretanto apesar das variações
podem-se reconhecer fases que são comuns à maioria deles, por exemplo: a formulação,
a implementação e a avaliação das políticas (JONES, 1970; MENY THOENIG, 1992;
DYE, 1984, FREY, 2000; SECCHI, 2013; SOUZA, 2006). Neste trabalho adotou-se uma
estrutura que dialoga com as fases na abordagem proposta por Frey (2000), respeitando
a raiz sistemática de sua proposta, simplificamos apenas a nomenclatura das fases do
ciclo e obtemos a seguinte estrutura: Percepção e definição de problemas; Definição da
Agenda; Formulação da Política; Implementação da Política e Avaliação da política.
Considerando o CTE, objeto de estudo deste artigo e a condição jurídica apresentada
desta rede, pode-se identificar que o mesmo encontra-se na fase de Formulação da
Política. A fase de formulação consiste no processo de escolha de alternativas e de ação,
a partir das questões selecionadas e que entram na Definição de Agenda. Nessa fase do
ciclo de políticas existe um traço especialmente forte a respeito dos embates ideológicos.
Aqui a disputa de ideias toma força por ser necessário se projetar as ações práticas
que vão ser desencadeadas na fase seguinte, chamada Implementação. Nesse momento
os papéis e atores envolvidos começam a aflorar em suas relações, frequentemente
marcadas pela disputa.
É importante lembrar que o Estado, palco principal destas disputas, deve ser analisado
como um conjunto de instituições interdependentes e é um espaço que abriga conflitos
de interesses muito além das classes sociais (HAM & HILL, 1993). Existem diversas
formas de relações no ambiente do Estado, alimentadas por muitos padrões de poder,
como as relações estabelecidas entre funcionários do governo, políticos eleitos, sociedade
civil, movimentos organizados, todos dividindo a mesma esfera. Nesse sentido o autor
coloca que o poder está fragmentado em meio a essa rede plural.
É importante ressaltar, que nessa fase de formulação ocorrem os enfrentamentos
ideológicos que se estruturam em torno das tomadas de decisão. Isso implica que a
arena está composta de diferentes forças de articulação política, cada qual com os
recursos que tem, tentando influenciar a ação e o comprometimento do Estado na busca
de soluções para os problemas eleitos na fase anterior.
Nesse sentido compreende-se que o CTE encontra-se em uma fase decisiva, onde
concentra disputas ideológicas e se fragmenta entre pontos que apoiam a decisão de se
estruturar e fortalecer como uma rede bem como outra parte entende e discursa que
esse não seria o caminho ideal.
2. REDES INTERORGANIZACIONAIS
Para a compreensão do conceito de redes nos apoiaremos também em diversas
abordagens, a maioria delas, inseridas no campo da gestão pública. A temática de redes
vem se destacando em meio aos estudos no âmbito das teorias sociais. O conceito de rede
pode ser associado a diversas vertentes, desde cooperações internacionais e contratos,
passando por atividades estratégicas e chegando até às redes sociais e ao networking
desenvolvido e cultivado por alguém durante sua vida. Neste sentido, para Lopes &
Moraes (2000), o conceito de redes vem passando por um processo de “esticamento”
que faz com que, precisamente por se referir a uma gama muito grande de fenômenos,
corra o risco de perder o seu poder explicativo.
Castells (2000) define o conceito de rede, como um conjunto de nós interconectados. Já
no campo das organizações, Provan & Kenis (2007), definem redes interorganizacionais
como três ou mais organizações juridicamente independentes que cooperam para
alcançar além dos seus objetivos individuais também um objetivo em comum. Além
disso, estes autores se propõem a compreender diferentes mecanismos de governança
de redes nas políticas públicas, ou seja, modelos de gestão que propiciam a “amarração”
da rede em sua dinâmica. O conceito de rede é subdividido e carrega em seu significado
diversas interpretações como acordos de cooperações internacionais, contatos,
atividades estratégicas ou até mesmo o network desenvolvido e cultivado por alguém
(LEITE, 2011; LOPES & MORAES 2000; BALESTRIN AT ALLI, 2010).
Nesse sentido, existe a proposta de um novo olhar para o desempenho das organizações,
onde o foco não seria somente o de suas funções individuais, mas também seu
desempenho coletivo, associado às várias organizações que trabalham sob uma 7
mesma pauta. Nessa ótica, o que se destaca são os resultados obtidos por meio de uma
atuação integrada de diversos organismos. (GOLDSMITH; EGGERS, 2006).
Por meio de um estudo exaustivo, Oliver & Ebers (1998) concluem que sobre os estudos
sobre redes se dividem em quatro abordagens principais, são elas:
◊ Dependência de recursos: Propõe esquemas de colaboração na busca de um
equilíbrio entre as organizações e o ambiente, em uma tentativa de reduzir
a dependência. (AGRANOFF & MCGUIRE2001; BALESTRIN ET ALLI, 2010;
ALDRICH; PFEFFER, 1976; PFEFFER; SALANCIK, 1978);
◊ Redes sociais: Propõe a refletir sobre as relações interpessoais imersas nas estruturas
sociais e organizacionais. (CUNHA 2000)
◊ Institucionalismo: Propõe que uma organização ao se aliar a outras organizações
em rede, está sujeita a uma série de novas ações que podem imprimir novos padrões
O CNRTA é a ação direta do MCTI para o plano Viver sem Limite, seu papel é ser
um observatório em torno das ofertas e demandas de Tecnologias Assistiva (T.A.s) -
Tecnologia Assistiva é o termo usado para identificar todos os produtos ou serviços
que possibilitem a ampliação de mobilidade, autonomia ou inclusão às pessoas com
deficiências.
Por fim chega ao campus no ano de 20013 O Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de São Paulo – IFSP, uma autarquia federal de ensino vinculada ao Ministério
da Educação (MEC). Fundado em 1909, é reconhecido pela sociedade paulista por sua
excelência no ensino público e gratuito. Tem atuação prioritária na oferta de Educação
Tecnológica nos seus diversos níveis e na formação de professores, assim como no
desenvolvimento de pesquisas e programas de extensão.
O diálogo entre o CTI e o IFSP teve inicio no mesmo período em que o Ministério de
Estado da Educação publica no Diário Oficial da União - DOU de nº 182 datado em 22
de setembro de 2010, uma nota com base nas Leis nº 11.534, de 25 de outubro de 2007 e
nº 11.740, de 16 de julho de 2008, que autorizava o funcionamento de novos Campi em
estados e cidades diversas, dentre elas Campinas – São Paulo.
O dialogo se constituía por meio da sinergia percebida nas missões individuais de
cada órgão, um com o proposito de formação e o outro de desenvolvimento. Após
três anos de trabalho a fim de consolidar os propósitos semelhantes, no DOU de 6 de
maio de 2013 é publicado um extrato sobre o convênio de número 004.13, estabelecido
entre o CTI Renato Archer e o IFSP – Campus Campinas. O objeto do convênio era a
criação de novos cursos em conjunto para ofertar programas de educação profissional
e tecnológica no Campus do CTI Renato Archer, este seria caracterizado por NUCLEO
AVANÇADO CAMPINAS - UNIDADE CTI RENATO ARCHER, porém ficou conhecido
popularmente por IFSP Campus Campinas. Tal convênio possui um plano de trabalho
anexo que estabelece os parâmetros desta parceria, que foi assinada em 05 de abril de
2013 e tem validade por 60 meses. O IFSP Campus Campinas inicia suas atividades no
segundo semestre de 2013 com o curso de Tecnologia em Análise e Desenvolvimento
de Sistemas, inicialmente com 40 vagas.
O processo seletivo dos alunos ocorreu por meio do Sistema de Seleção Unificado –
SISU.
O nome CTE passa a ser utilizado ainda que informalmente, após a parceria entre o
Ministério da Educação e o Mistério da Ciência Tecnologia Inovação e Comunicação
que formalmente traz o IFSP ao Campus. No dia 06 de junho de 2014, houve um evento
no auditório do Campus, com a presença de autoridades legais e 13 representantes de
estado, para o lançamento do Conceito “Complexo Tecnológico Educacional”. A partir
desse evento houve uma publicidade grande entorno do conceito CTE e a mobilização
entre as organizações que ocupam o Campus se evidenciaram.
3.2 AÇÕES DE INTERDEPENDÊNCIA
A proposta nesse tópico é realizar um olhar para as interdependências verificadas,
buscando compreende-las em termos de recursos de infraestrutura, recursos humanos,
projetos de pesquisa, políticas públicas e recursos financeiros.
entre FACTI, CTI e IFSP; Pesquisadores do CNRTA que realizam atividades em divisões
do CTI, IFSP e FACTI; Bolsas CNPq concedidas por meio do CTI cuja orientação é
feita por professores do IFSP ou em conjunto sob coorientação do CTI e ou da Facti;
Realocação de RH em outras organizações, projetos, atividades, entre outros índices.
CONSIDERAÇÔES FINAIS
A partir da análise documental apurada e também da perspectiva teórica, observamos
que é possível captar elementos concretos de que o CTE é uma rede em formação.
Especialmente ao analisar o campo pelos vieses institucionais e de interdependência,
encontra-se evidências de um compartilhamento de recursos, físicos, humanos e
financeiros e de serviços.
Em diferentes combinações, os dados mostram que uma organização coopera com a
outra, trazendo pistas de um fluxo organizacional que transcende cada organização
em separado. Assim, percebe-se interdependências concretas, institucionalizadas por
instrumentos legais, que manifestam a possível criação de rotinas organizacionais e
institucionalização do CTE como uma rede formal,
Um próximo passo seria refletir sobre a dinâmica resultante das interações entre as
organizações, gerando um possível modelo de governança, que pode emergir de forma
não intencional, ou ser formulado de maneira “top-down” pela alta hierarquia do
complexo.
É interessante perceber, neste processo, que antes mesmo do “conceito” CTE ter se
tornado público, já ocorriam articulações entre duas ou mais organizações do campus,
conotando que o lançamento do complexo já ocorre num cenário de cooperação
concreta, pautada pelo compartilhamento de ações e recursos.
O que foi apresentado nesse artigo são dados parciais de uma pesquisa que continua
ainda em execução, para complementar os dados documentais aqui apresentados serão
realizadas entrevistas com colaboradores do CTE, em busca de uma compreensão mais
apurada sobre aspectos institucionais e de interdependência, buscando, se possível,
captar as assimetrias e equilíbrios internos da rede.
REFERÊNCIAS
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research. Journal of Public Administration Research and Theory 11, 3, 295–326, 2001.
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BALESTRIN, A.; VERSCHOORE, J. R.; REYES JUNIOR, E. O Campo de Estudo sobre
Redes de Cooperação Interorganizacional no Brasil. RAC, Curitiba, v. 14, n. 3. Mai./
Jun. 2010.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede - a era da informação: economia, sociedade
e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CUNHA, R. C. Perspectivas Teóricas de Análise das Relações Interorganizacionais.
Encontro de Estudos Organizacionais. 2002. Recife. PROPAD/UFPE: ANPAD 2002.
consolidated through public policies, can contribute to the development and, within
the Brazilian context, what are the ramifications of investment in science, technology
and innovation for society, highlighting the importance of postcolonial and decolonial
thinking in understanding development and based on the public action theory created
by Lascoumes and Le Galès.
Key Words: Science, technology and Innovation; Management Tools; Public action.
INTRODUÇÃO
As intensas transformações tecnológicas que ocorreram especialmente após a Segunda
Revolução Industrial, e as crescentes demandas das sociedades modernas, tornaram mais
complexa a análise do funcionamento das economias. Como fatores políticos, sociais
e institucionais interagem para construir modelos sustentáveis de desenvolvimento, e
como são capazes de moldar as diretrizes das políticas públicas no século XXI renovam o
debate sobre os mecanismos de implantação das ações governamentais. Nesse contexto,
de busca por explicações para a trajetória de sucesso de alguns países em detrimento
de outros, destaca-se a importância da tecnologia e da inovação na formulação das
estratégias de desenvolvimento para o longo prazo, ressaltando-se como essas variáveis
tiveram um caráter central no processo de maturação das economias denominadas
desenvolvidas.
Por outro lado, ao se admitir a centralidade das políticas científicas, tecnológicas e
de inovação no desenvolvimento das economias mundiais, observações empíricas
demonstram que essas variáveis não agiram de forma equânime no processo de
crescimento e desenvolvimento das sociedades ao redor do mundo, tendo em vista
que cada país ou região apresenta especificidades na esfera econômica, política, social
e institucional que, de maneira direta ou indireta, interferem nas ações dos agentes
públicos e privados, bem como nos resultados das ações implementadas.
Nesse contexto, destaca-se a relevância dos instrumentos utilizados pelos agentes
públicos e privados no processo de formulação e execução das políticas públicas,
bem como na análise dos objetivos pretendidos e dos resultados esperados a partir
da implementação de uma determinada política pública. Cabe destacar ainda que o
presente trabalho considera que a inovação sob a perspectiva apenas tecnológica e
econômica não responde às questões relativas às divergências entre desenvolvimento,
crescimento e desigualdade.
O que se busca compreender, assim, é como a tecnologia e a inovação, operacionalizados
como instrumentos de gestão e consolidados através de políticas públicas, podem
contribuir para o desenvolvimento e, dentro do contexto brasileiro, quais os
desdobramentos do investimento em ciência, tecnologia e inovação para a sociedade.
Diante disso, o presente trabalho visa uma análise de como a inovação denota as
estratégias de desenvolvimento adotadas para a construção de um modelo sustentável na
esfera social, política e econômica e como os instrumentos de gestão atuam no processo
de consolidação das políticas públicas, destacando-se a relevância da integração dos
agentes públicos e privados que participam da formulação e execução das políticas.