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PRAIAVERMELHA
REITOR
Aloísio Teixeira
PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO E
PESQUISA
Ângela Uller
VICE-DIRETOR
Profº Dr Marcelo Braz
COORDENADORA DE PÓS-GRADUAÇÃO
STRICTO SENSU
Profª Drª Sara Granemann
COORDENADOR DE PÓS-GRADUAÇÃO
LATU SENSU
Profº Dr Luís Acosta
E-mail: praiavermelha@ess.ufrj.br
Site: http://web.intranet.ess.ufrj.br/ejornal/
index.php/praiavermalha/index
PRAIAVERMELHA
ISSN 1414-9184
Sumário
Editorial
Maria de Fátima Cabral Marques Gomes
Yolanda Aparecida Demétrio Guerra 9
Contents
Editorial
Maria de Fátima Cabral Marques Gomes
Yolanda Aparecida Demétrio Guerra 9
EDITORIAL
A Revista Praia Vermelha – Estudo de Política e Finalizando essa edição de nosso periódico, apre-
Teoria Social inaugura, neste número, uma seção de- senta-se uma resenha crítica em que espaço urbano e
dicada à Memória do Serviço Social. Esta seção será política são discutidos de forma articulada.
constituída por entrevistas de renomados professores
na área de Serviço Social, com destaque para os pro- Rio de Janeiro, dezembro de 2010
fessores que ajudaram a construir a Escola da UFRJ.
O projeto se inicia com José Paulo Netto, professor
titular dessa Escola por longos anos, cuja produção
teórica influenciou a formação de assistentes sociais Maria de Fátima Cabral Marques Gomes
no Brasil e no exterior. Yolanda Aparecida Demétrio Guerra
A América Latina é a temática que articula os Editoras Científicas
diferentes artigos aqui apresentados. Esse periódico
traz aos seus leitores uma ampla discussão sobre o
assunto, com artigos nacionais e internacionais. O
tema é de grande relevância para o Programa de Pós–
graduação da ESS, posto que professores, alunos e
pesquisadores latino-americanos têm nos procurado
frequentemente para sua formação. Ademais, entre
os membros dessa Escola estão docentes desse sub-
continente, tornando esse espaço qualificado para o
debate sobre temas cruciais da região.
Estudos críticos sobre a América Latina se multi-
plicaram nos últimos anos aqui no Brasil, dedicados
à defesa dos seus recursos naturais, dos seus povos,
suas tradições e culturas, dilapidados por séculos de
colonização e, nas últimas décadas, pela barbárie do
capitalismo globalizado.
Os artigos aqui apresentados retomam e aprofun-
dam questões vivenciadas nos distintos países que
compõem o nosso território, tratando-as a partir de
diferentes ângulos – economia, política, questão
agrária, espaços urbanos, políticas sociais e religião.
Nesses textos, revela-se um espaço político em ebu-
lição onde, apesar das imposições postas pela dinâ-
mica hegemônica, observam-se mudanças positivas
provenientes da ação de sujeitos políticos, muitas
vezes organizados em torno de movimentos sociais
e partidos políticos que apontam para um horizonte
mais democrático, depois de longas décadas de re-
gimes ditatoriais. Acredita-se que, dessa forma, os
estudos poderão contribuir para instrumentalizar o
leitor para uma análise crítica sobre os dilemas da
América Latina e para desvendar suas potencialida-
des, apontando caminhos para o enfrentamento de
seus desafios.
ENTREVISTA
A presente edição da Revista Praia Vermelha Na casa, a figura central sempre foi minha
lança a seção Memórias do Serviço Social. Este mãe, mulher muito ativa, independente, de
espaço será formado por entrevistas de renomados forte personalidade; uma doce tirana, com vi-
professores na área de Serviço Social que fizeram vas preocupações sociocêntricas – na crise do
parte do corpo docente da ESS/UFRJ. O projeto Estado Novo, ainda solteira, em Paty do Alfe-
se inicia com o prof. José Paulo Netto, professor res (RJ), onde viveu por cerca de dez anos, foi
titular dessa Escola que teve, ao longo dos anos, solidária com a luta democrática e teve laços
um expressivo destaque teórico nas ciências sociais com o Partido Comunista. Suas convicções de-
aplicadas brasileiras. mocráticas e progressistas perduraram por toda
Nesse momento de aposentadoria de José Paulo, a vida: odiava o imperialismo norte-america-
o objetivo é oferecermos ao leitor um balanço de sua no, viu a Revolução Cubana com alegria e, em
trajetória política e acadêmica. O texto é constituí- 1964, entendeu com clareza que se iniciava um
do por uma entrevista e depoimentos, cujo material episódio ditatorial de novo tipo. Por vinte anos,
foi fornecido por figuras importantes que acompa- ajudou corajosamente aos perseguidos pelo re-
nharam a trajetória histórica do entrevistado. Entre gime de 1º de abril. Sempre ativa nos processos
os entrevistadores destacam-se: Carlos Montaño eleitorais, morreu eleitora do PT.
(CM), Carlos Nelson Coutinho (CNC), Marcelo As diferenças entre minha mãe e meu pai, ho-
Braz (MB), Maria Carmelita Yasbek (MCY), Ma- mem extremamente dedicado ao trabalho, tran-
riléia Porfírio (MP) e Sara Granemann (SG), bem quilo e afetuoso, leitor de boa literatura, porém
como a equipe editorial da revista Praia Vermelha. medularmente conservador (julgou que o golpe
Os depoimentos foram dados por Alcina Martins, do 1º de abril dirigia-se mesmo contra a “corrup-
Andrea Oliva, Celso Frederico, Júlia Cardoso, Le- ção”!), eram evidentes: desde a organização da
andro Konder e Pablo Bentura. Os depoimentos, na vida doméstica à visão de mundo (ele, agnósti-
sua íntegra, estão disponíveis na página eletrônica co; ela, nos anos 1960, convertida ao kardecis-
da revista <http://web.intranet.ess.ufrj.br/ejornal/ mo). O engraçado é que tais diferenças jamais
index.php/praiavermalha/index>. afetaram os fortes vínculos que os uniam – até
seus últimos dias de vida, a relação entre ambos
MP Conte-nos um pouco da sua história familiar. era de uma ternura que sempre me sensibilizou.
JPN Sou de Juiz de Fora, onde fiquei até a primeira Mas o que me fascina mesmo, quando recor-
metade dos anos 1970. Nasci no remotíssimo do a minha infância e a minha adolescência,
29 de novembro de 1947... Meus pais, ambos é a capacidade – rara naqueles tempos e na
de Minas Gerais, ele de origem rural, casa- faixa social a que pertencíamos – que ambos
ram-se em 1946, tiveram dois filhos (eu sou demonstraram para criar um ambiente esti-
o primogênito) e viveram juntos 58 anos, até mulante para o desenvolvimento dos filhos.
a morte (ela faleceu em 2004 e ele em 2005, Tiveram comigo, certamente um adolescente
ambos octogenários). Constituíram uma famí- insuportável, tolerância e respeito. Naquela
lia típica do estrato baixo da pequena burgue- casa, onde se discutia de tudo (religião, políti-
sia urbana tradicional, aquela que se mantinha ca, futebol), às vezes de maneira muito acalo-
pelo trabalho pessoal – nunca experimenta- rada, podia-se pensar e falar livremente.
mos privações, mas sempre a casa viveu num E a família não se reduzia a meus pais e meu
regime de frugalidade. irmão – logo após o casamento de meus pais,
minha avó materna faleceu; meu avô e seus (só para lembrar, pensemos em Magda Belo
dois filhos, já homens feitos, não tinham Neves e Marilda Iamamoto).
como educar a filha menor, de modo que ela SG Seu trabalho de conclusão de curso (TCC),
foi viver com meus pais. Esteve na casa até se referenciado em autores como Marx, Engels,
autonomizar, após concluir seu curso univer- Sweezy, Florestan Fernandes, entre outros, já
sitário. Mais velha que eu onze anos, menos trabalhava na direção de uma importante crí-
que tia foi uma irmã, que participou da minha tica do Serviço Social como profissão. O que
socialização e a que me ligam fortes laços. tornou possível a elaboração desta crítica e
como foi a sua orientação de TCC?
MP E a sua trajetória educacional? Por que esco- JPN A sua apreciação do meu TCC (concluído
lheu a graduação em Serviço Social? em 1969, sob o título “Serviço Social e his-
JPN Toda a minha formação pré-universitária foi tória – introdução a uma abordagem genéti-
feita no Instituto Granbery, onde meu pai estu- co-estrutural”) é muito generosa... É verdade
dara. Entrei neste colégio metodista com sete que ele contém muito das ideias que acabei
anos incompletos e dele só saí para a univer- desenvolvendo – com as modificações que a
sidade. Devo muito ao Granbery: além da ex- experiência e a reflexão de décadas me propi-
celência do ensino (a esmagadora maioria dos ciaram – ao longo da vida. Penso que se trata
meus professores, do primário ao científico, de um texto bastante corajoso para a época,
era muito competente), que me proporcionou assentado no meu precário marxismo juvenil.
um “capital cultural” ponderável, o colégio me Mas a sua avaliação, repito, é muito generosa.
inculcou hábitos rigorosos de estudo e valores Carlos Nelson, que o leu à época, disse-me,
que consolidavam os que eram cultuados na muitos anos depois, que, ao chegar à última
casa – o trabalho, a responsabilidade pessoal, página, concluiu: “Esse moço tem futuro, mas
a disciplina intelectual. Comigo, o Granbery o seu presente é pobrezinho...”.
só fracassou num ponto: não me tornou um Na base do meu TCC está, obviamente, a mi-
“bom cristão” – entrei ateu (tornei-me ateu nha adesão ao marxismo e a minha militância
aos cinco anos) e saí mais ateu ainda... política, já intensa na época. Mas está também
Minha escolha pelo Serviço Social (que não uma leitura da bibliografia profissional dispo-
foi minha única formação: logo depois de gra- nível à época, com uma atenção significativa
duado, ingressei no curso de Letras) foi bas- à literatura latino-americana. A minha orienta-
tante racional: a Faculdade de Serviço Social dora Neli Campos Guerra, assistente social e
oferecia na cidade, à época, a melhor forma- freira da ordem das Missionárias de Jesus Cru-
ção para quem se interessava em compreender cificado, tão importante na difusão do Serviço
a vida social – não só pelo seu corpo docen- Social no Brasil, fez o que podia fazer com um
te (fomos, você e eu, alunos de figuras como estudante como eu: deixou-me escrever – dis-
Alexis Stepanenko, com quem aprendi a fazer cordando de tudo, mas sem me constranger em
pesquisa, de Rosa Stepanenko, de Jaime Sno- nada. A banca que examinou o trabalho (a pró-
ek, um dos maiores teólogos que conheci, de pria Nely, Jaime Snoek e Anthony Mendonça)
Itamar Bonfatti, de Dalton Barros de Almeida, apreciou, elogiou, mas não me deu o 10 que eu
do norte-americano Anthony Mendonça, que queria: deu-me 9,8. A banca considerou que a
me obrigou a ler os clássicos da sociologia, crítica “era muito negativa”. Devo admitir que
do meu amigo Nilo Batista, que então iniciava eles não estavam errados.
sua brilhante carreira), mas pelo clima aberto
de discussão que a sua Direção garantia. Es- CNC Como bom marxista, você nunca separou a sua
colhi Serviço Social menos por preocupações atividade intelectual da sua militância política.
profissionais e mais pela formação em sentido Quando e como se iniciou esta militância?
estrito. Aliás, você e eu podemos nos orgulhar JPN Vamos voltar há mais de 50 anos atrás... Além
de ser egressos de uma Faculdade que tem his- da influência de minha mãe e do fato de ser
tória e que produziu intelectuais importantes socializado num bairro onde era fortíssima a
presença de trabalhadores (junto à minha casa, vida operária). Muito brevemente, essa foi a
havia uma torrefação de café e uma indústria minha iniciação.
têxtil), contribuiu – veja que coisa curiosa! – CNC Você militou por muitos anos no PCB, tendo
para que eu despertasse efetivamente para a chegado a ocupar cargos em sua mais alta dire-
política um livro que meu pai (certamente sem ção. Como você avalia hoje esta experiência?
imaginar as implicações...) pôs em minhas E, de modo mais geral, como você avalia a
mãos por volta de 1958-1959: O que sabe ação dos comunistas na sociedade brasileira?
você sobre petróleo. A bíblia do nacionalis- JPN Entrei no Partido em 1963 e, salvo um breve
mo, do grande panfletário Gondin da Fonseca. período (1968-1969, na sequência da entra-
Li aquele breviário de defesa da Petrobras e da das tropas do Pacto de Varsóvia na então
virei um nacionalista fanático. Uns dois anos Tchecoslováquia) em que estive fora da or-
depois, meu barbeiro, o comunista mais pú- ganização, mantive-me nele por 29 anos. Até
blico da cidade, Milton Fernandes, deu-me de 1975, meu trabalho partidário restringiu-se a
presente uma ediçãozinha, da Vitória, do Ma- Minas Gerais. No retorno do exílio, em 1979,
nifesto comunista – minha conversão (porque tornei-me assessor do que se designou “Cole-
de conversão se tratou mesmo!) foi imediata... tivo Nacional de Dirigentes Comunistas”, que
Não é possível dizer da fantástica impressão tinha como principal figura Giocondo Dias.
que me causou o texto – basta assinalar que Fui eleito para o Comitê Central e para a Co-
então a minha vida se definiu e ganhou senti- missão Executiva no VII Congresso (1982) e
do. Passei a me caracterizar como comunista tornei-me “profissional” do Partido até 1986;
sem ter qualquer vínculo orgânico, até porque além das tarefas específicas de que me encar-
eu mal completara 13 anos. Na sequência, regaram (especialmente no domínio da cultu-
sempre com a influência do barbeiro, passei ra), respondi, entre 1982 e 1987, pela página
a devorar as edições da Vitória e a ler Novos editorial da Voz da Unidade e, durante os dois
Rumos, do qual virei vendedor no colégio e anos em que Noé Gertel esteve no exterior,
para os operários do bairro. substituí-o como editor do semanário.
Em janeiro de 1963 (é fácil lembrar a data: O PCB foi a experiência mais decisiva e edu-
foi no dia do plebiscito sobre o parlamenta- cativa de toda a minha vida. Meus camaradas
rismo), um dirigente estudantil do Partido, sempre me estimularam a estudar e nunca
Roberto Resende Guedes (o “Roberto Boli- sofri qualquer constrangimento em razão das
nha”), cuidou da minha ligação formal com minhas ideias (que nem sempre coincidiam
o PCB. Havia uma “base” secundarista e a com a linha oficial). Aprendi que o Partido
ela me agreguei. Era uma festa: pichações, Comunista é uma espécie de micro-síntese da
agitação em torno de Novos Rumos e por aí sociedade: nele se encontram, exponenciadas
afora... Veio o golpe e o Partido, também em ao limite, as características – positivas e de-
Juiz de Fora, foi duramente atingido e prati- letérias – da sociedade em que se insere. No
camente se desestruturou. Somente em finais PCB, conheci homens e mulheres comuns e
de 1965 começou a sua rearticulação e, de homens e mulheres excepcionais; conheci a
fato, só a partir de meados de 1966 tivemos fraternidade, a generosidade, o desprendi-
atividades partidárias regulares. Foi então mento, como também conheci a mediocri-
que, já na universidade, minha militância se dade, o oportunismo e a insinceridade. Mas,
tornou intensa: passei a ter responsabilida- desses traços, os primeiros sempre foram
des dirigentes (junto com o Roberto e mais dominantes. Do ponto de vista do meu de-
dois camaradas, Marco Antônio Dias Pontes senvolvimento intelectual e humano, foi do
e João Carlos Reis Horta) e uma forte re- PCB que recebi o essencial. Ainda hoje, en-
lação com trabalhadores (um mecânico de tre as minhas melhores referências éticas, es-
bondes – veja que sou do tempo dos bon- tão camaradas a que me liguei no velho PCB:
des! -, José Henrique de Oliveira, o “Gato Celso Frederico, Raul Matteos Castel, Anto-
Preto”, introduziu-me sistematicamente na nio Roberto Bertelli, Sérgio Brasil, Ronaldo
Coutinho, Sara Melo, Enoir Luz (o “Juca”) em bancas de madeira – e as “catadoras” eram
– e, entre todos, um baiano ao qual me une todas mulheres). Esta convivência foi de fun-
uma amizade de mais de 40 anos, que resistiu damental importância para mim na infância e
a ventos e marés, um pensador chamado Car- na entrada da adolescência: o contraste entre o
los Nelson Coutinho... Cito aqui apenas os meio trabalhador e as casas dos meus colegas
vivos e certamente esqueço camaradas que do Granbery abriu a minha cabeça ao mundo.
muito contribuíram para que o caipira de Juiz Entre os trabalhadores, aprendi as formas hu-
de Fora se tornasse menos ignorante. mildes da solidariedade e percebi a revolta
Do ponto de vista objetivo, penso que o PCB, surda contra a vida de miséria. A partir das
avaliados os erros e os acertos de sua longa suas existências anônimas, descobri o que
e difícil trajetória, prestou grandes serviços há de heroísmo em levar para casa o simples
ao nosso povo – ademais de ter sido o único pão cotidiano. Pude saber o que é ter um fi-
partido marxista que construiu, no Brasil, uma lho doente e, à falta de quaisquer recursos,
cultura política. Do tempo da minha militân- só lhe poder entregar carinho – mas carinho
cia, ressalto a correta concepção estratégica na não cura. Foi dessa experiência, muito preco-
luta contra a ditadura, com a política unitária ce, que nasceu o meu profundo desprezo pela
da frente democrática. E penso que a tragédia vida burguesa e por tudo o que se prende à
do PCB, nos anos 1980, foi a incompreensão burguesia como classe. Não é por acaso que,
de que a justa política da frente democrática às vezes, plagiando um ilustre comunista por-
já se esgotava em face das novas realidades tuguês, eu me apresento como um filho adoti-
brasileiras – foi esta incompreensão, e não os vo da classe operária.
eventos que levaram ao colapso o “socialis- É claro que, 50 anos depois dessa vivência, o
mo real”, a responsável pela crise em que o mundo mudou muito, aquela classe operária
Partido imergiu. Este é um período da histó- tradicional transformou-se sensivelmente –
ria partidária que ainda aguarda uma análise mas a impossibilidade de a sociedade burgue-
séria e profunda, pois encerra lições que não sa oferecer à humanidade trabalhadora qual-
podem ser minimizadas – e os dirigentes da quer alternativa que não seja a barbárie apenas
época nunca se mostraram dispostos a uma se tornou mais visível. É por isto que, meio
autocrítica séria (também a mim, que tive res- século depois, e apesar de todos os desaires
ponsabilidades neste processo, aplica-se esta do projeto socialista, eu continuo convencido
reserva. Mas pretendo ainda saldar este meu (por fortes razões teóricas, não por motivações
débito para com a história do Partido). somente éticas) da urgência e da viabilidade
do socialismo. A ordem consolidada e tardia
MB Você costuma dizer que a “sinfonia dos taman- do capital só pode inspirar asco e combate.
cos operários do Vitorino Braga” foi o que, em
sua juventude, embalou inicialmente a sua pai- CNC Você não aceitou a transformação do PCB em
xão revolucionária. O que hoje continua a mover Partido Popular Socialista (PPS), ficou muitos
a sua contagiante convicção pela revolução? anos sem partido (embora sem deixar a mi-
JPN De fato, a música da minha infância (na ju- litância) e agora retornou ao PCB renovado.
ventude, os trabalhadores já estavam melhor Por que, ao contrário da maioria dos membros
calçados...) foi o bater dos tamancos dos ope- do velho PCB, você não aceitou aquela trans-
rários do meu bairro – este foi o terceiro espa- formação? E por que resolveu ingressar agora
ço da minha socialização elementar, ademais no novo PCB? Trata-se de um ingresso ou de
da casa e do colégio. Dos seis anos em diante, um reingresso?
convivi intensamente com os trabalhadores, JPN A resposta é muito simples: sou marxista e co-
especialmente da Santa Helena e do Café Câ- munista, e o PPS já nasceu renegando o marxis-
mara (aí, conheci a superexploração do traba- mo e o projeto comunista. E hoje nada é mais
lho da mulher: era um tempo em que a separa- contristador e patético que ver a herança do
ção dos grãos do café fazia-se manualmente, velho PCB reivindicada por aqueles que se tor-
naram cabos eleitorais de figuras como César o sujeito ainda é a classe trabalhadora? Quais as
Maia e Geraldo Alckmin, só para ficar no eixo articulações possíveis com outros sujeitos?; MB
RJ/SP. Penso que é preciso ressalvar que ainda – Complemento a pergunta do Carlos: em artigo
há gente honesta no PPS, mas esta agremia- recente, você afirmou que o desafio das esquer-
ção não passa de uma linha-auxiliar do PSDB das hoje é o de superar o “déficit organizacio-
– trata-se de uma vulgar legenda de aluguel. nal”. No âmbito da formação teórico-política
Devo recordar que, em janeiro de 1992, no revolucionária, quais são os principais desafios?
congresso em que se criou essa agremiação, JPN Vocês põem na mesa um leque de problemas
eu e alguns camaradas (Celso Frederico, Noé que exigiria de todos nós um bom tempo tão
Gertel, Raul Matteos Castel, Antônio Roberto somente para determinar seus conteúdos es-
Bertelli e Martin César Feijó) apresentamos pecíficos. Vamos ver se, muito brevemente,
a proposta da criação indico alguns pon-
de um “Fórum Nacio- “No primeiro contato pude perceber o dom de oratória, tos importantes.
nal de Comunistas”. a fala enfática, a clareza e objetividade na exposição, Nenhum proces-
A ideia era promover a cultura universal e a prodigiosa memória. De fato, era so revolucionário
uma ampla mobili- alguém diferenciado em nosso meio. Um dirigente político moderno foi obra
zação de comunistas, de uma única clas-
interessado em questões estéticas e um professor que
membros do PCB ou se: da Revolução
discorria sobre diversos temas com incontida paixão
não, para discutir uma Francesa à Revo-
nova forma-partido. destoava, assim, tanto do pragmatismo imediatista dos lução dos Cravos,
O rapazinho que diri- profissionais do partido como do habitual discurso frio, passando obvia-
gia a mesa central, um impessoal e desapaixonado dos acadêmicos”. mente pelas ex-
bancário já devida- Celso Frederico periências russa e
mente escolado pelas chinesa, tivemos
práticas sindicais que conhecemos, sequer deu sempre um bloco de forças revolucionárias,
notícia da proposta aos congressistas. Nossa envolvendo segmentos de classes diferentes.
proposta foi para a lata do lixo e nem podemos Evidentemente, sempre houve uma hegemo-
dizer que fomos derrotados: fomos simples- nia de classe – expressa ou não por um partido
mente ignorados. Também, à época, não nos de classe – que direcionou tais processos. Não
alinhamos com aqueles que romperam com o vejo como, no futuro imediato, um processo
congresso – entre os quais Horácio Macedo, revolucionário possa ser estruturalmente dife-
Raimundo Jinkins, Antonio Carlos Mazzeo e rente. Isto não significa, porém, que a revolu-
Ivan Pinheiro –; não avaliávamos que eles po- ção do futuro reiterará as formas que conhe-
deriam avançar com algo factível. cemos. Estamos em transição para um mundo
Não sei se, em novembro de 2009, ao pedir a social novo: mantendo as características mais
minha inscrição no PCB renovado, “ingressei” substantivas do capitalismo monopolista, a
ou “reingressei”. Sei apenas que vejo nele o meu sociedade tardo-burguesa apresenta fenôme-
modesto lugar para melhor continuar participan- nos e processos inéditos – que vão do caráter
do das lutas de classes. Tenho para mim que este hoje necessariamente destrutivo da produção
PCB renovado, ainda pequeno, mas sério, pode comandada pelo capital (como Mészáros tem
contribuir para a revolução brasileira – que não insistido com razão) a uma complexificação
será obra de um único partido, mas da conflu- sem precedentes da estrutura social, metamor-
ência de movimentos sociais organizados e de foseando a própria classe trabalhadora e seu
partidos e grupos comprometidos de fato com núcleo duro, o proletariado industrial. Parece-
um projeto de ruptura com a ordem burguesa e me que não é a eventual redução quantitati-
com a perspectiva da emancipação humana. va, numérica, deste núcleo que compromete
a “missão histórica” que o marxismo tradi-
CM Muito se tem questionado e repensado a ques- cionalmente lhe conferiu – este núcleo per-
tão do sujeito da revolução – na sua avaliação, manece essencial para a revolução graças à
em 1966, publiquei uma plaquete de poemas, social marxiana e tradição marxista, críti-
que recolhi (por vergonha) logo depois de ini- ca literária e Serviço Social. Em sua própria
ciar a sua circulação. A Mariléa, por pura mal- avaliação, quais textos você destacaria como
dade, guardou um exemplar e sempre me faz mais relevantes e influentes?
uma ameaça que me põe a tremer: diz que vai JPN Não tenho como avaliar – nem isto faz par-
mostrar para alguém – mas não creio que a per- te das minhas preocupações ou interesses – a
versidade dela chegará a tanto... eventual influência de escritos meus, exceto
Claro que a diversidade dos meus escritos nuns poucos casos. Parece que, no Serviço
está vinculada à minha militância político- Social, livros como Serviço Social e ditadura
partidária – isto é óbvio. Mas eu gostaria de (com 14 edições), Capitalismo monopolista e
afirmar que a minha atividade de (como diria Serviço Social (com 7 edições) e Economia
o velho Astrojildo Pereira) escriba sempre foi Política. Uma introdução crítica, que escrevi
orientada por uma ideia que extraí de Lukács: com você (lançado em 2006 e com a 6ª edição
a política como meio, a cultura como fim. Se acabando de sair), seguramente têm contado
fui/sou feliz na realização desta ideia, não me com o favor dos leitores. E alguns ensaios que
cabe a mim decidir; mas tenho certeza de que nunca recolhi em livro acabaram por se tornar
fui/sou fiel a ela. Por outra parte, isto também objeto de um número significativo de citações
se relaciona ao fato de que sempre recusei a em artigos, dissertações, teses e livros.
idéia do “intelectual específico”: gosto mesmo No quadro da discussão marxista, as várias
dos antigos intelectuais universais. edições dos livrinhos de divulgação que es-
Daí a importância que sempre conferi à arte, em crevi para a editora Brasiliense2, também
especial a literatura – quem foi meu aluno sabe sugerem que tiveram algum efeito; neste
que, discutindo teoria social, a referência à lite- âmbito, se dei alguma contribuição mais
ratura nas minhas aulas é absolutamente com- significativa, foi na elaboração das antolo-
pulsória. Sei que, nos dias correntes, quando a gias que o Prof. Florestan Fernandes editou
“decadência ideoló- na coleção “Grandes
“Neste momento de homenagem ao prof. José Paulo Net-
gica” analisada por cientistas sociais”3
to, fica a minha/nossa gratidão por toda a sua capacidade
Lukács alcançou um e nas várias intro-
nível quase inima- de luta por uma sociedade justa, ainda que com custos duções que escre-
ginável, este estilo pessoais, e ao seu contributo para a formação dos assis- vi para textos de
de trabalho anda em tentes sociais. Não tenho dúvidas em reconhecer o seu Marx, Engels, Lenin
baixa. Mesmo assim, importante papel na reconstrução do Serviço Social por- e Lukács. Especifi-
sempre insisti nele: tuguês, pela participação na reformulação da formação e, camente no debate
quando iniciava o da tradição marxis-
sobretudo, no desenvolvimento da capacidade investigati-
curso de “Economia ta brasileira, penso
va, crítica e reflexiva dos assistentes sociais”.
Política e Serviço que foi importante,
Social”, na gradua- Júlia Cardoso num momento em
ção e para o noturno, recomendava que os alunos que Astrojildo Pereira e Nelson Werneck
lessem Machado de Assis (começando pelo de- Sodré eram como que “cães mortos”, os en-
licioso “A igreja do diabo”). Na pós-graduação, saios que escrevi sobre eles4. E creio que foi
é-me impossível tratar de Marx e sua concepção de alguma valia o texto Crise do socialismo
emancipatória sem referir o classicismo de Wei- e ofensiva neoliberal, que redigi no calor da
mar (Goethe, nomeadamente). E a Sara pode dar “queda do Muro” e logo publiquei, na Servi-
uma idéia da rica experiência que, aqui mesmo ço Social & Sociedade, depois posto em li-
na escola, tivemos com um grupo que, nos anos vro (1993) e com várias edições posteriores.
1990, discutia cultura. Curiosamente, dois ensaios de que gosto
muito – Notas sobre democracia e transição
MB Sua formação intelectual cobre áreas do co- socialista, de 1980, e Capitalismo e reifica-
nhecimento bastante diversificadas: teoria ção, de 1981, nunca receberam maior aten-
ção (embora este último tenha sido notado vos como o de Chaclacayo e a divulgação na
por Mészáros em Para além do capital). revista Acción Crítica. À experiência portu-
Quanto à crítica literária, de que me afastei há guesa, no Instituto Superior de Serviço Social
muito, a lembrança que tenho do que escrevi só de Lisboa, especialmente a Maria Augusta
me permitiria recordar sem o risco de me rubori- Negreiros, não devo apenas solidariedade e
zar um artiguinho sobre sociologia da lírica (que oportunidade de trabalho; devo a compreen-
saiu, nos anos 1970, num número da Revista de são das possibilidades do Serviço Social no
Cultura Vozes) e um texto sobre o Poema sujo, marco de um processo revolucionário.
do Ferreira Gullar, publicado sob o pseudônimo Mas o meu débito com a PUC/SP é de maior
de Luís Fernando Santos (eu andava exilado) na monta – e não só pela oportunidade de tra-
revista Contexto, que o Prof. Jaime Pinsky ani- balho: jamais esquecerei que o primeiro em-
mou em S. Paulo, também nos anos 1970. Eu prego que tive no Brasil, no meu regresso,
não tenho nada desse me foi propiciado
“A sua perspectiva marxiana contribuiu grandemente
material, mas ele cer- pela Faculdade
tamente se encontra na para cultivar e resgatar a história dos profissionais de de Serviço Social
biblioteca que você e o Serviço Social em Portugal, abrindo possibilidades da da PUC/SP, então
Carlos organizaram. sua compreensão e apropriação no contexto de uma dirigida por você
sociedade capitalista, profundamente condicionada pela (que tinha a seu
MCY José Paulo, vamos Ditadura e pela Guerra Colonial iniciada no Estado Novo, lado uma equipe
voltar ao Serviço So- memorável, com
com Oliveira Salazar”.
cial. Ao longo das úl- Marilda Iamamoto,
Alcina Martins
timas décadas, o seu Raquel Raichelis e
trabalho, dotado de uma coerência admirável, outros companheiros extraordinários). Foi a
tornou-se referência teórica e política para os PUC/SP que, de fato, me abriu as portas da
assistentes sociais, especialmente para aque- vida acadêmica: Suzana Medeiros e Miriam
les que, de diferentes formas, lutam a favor Veras Baptista levaram-me à pós-graduação
da construção de uma ordem societária de e me propiciaram a conclusão do doutorado.
inspiração socialista. Entendendo que muitos Vivi o doutorado e o magistério na pós-gra-
estudos e muitas experiências e muitas inter- duação – depois de Suzana e Miriam, dirigida
locuções teceram esta fecunda trajetória inte- por você e, em seguida, salvo erro, por Úrsula
lectual, gostaria que você registrasse o lugar Karsch – nos anos dourados de uma PUC/SP
ocupado pela Pontifícia Universidade Católi- aberta aos melhores ventos do pensamento
ca de São Paulo (PUC/SP) nesse percurso. brasileiro; ali aprendi e dialoguei com figuras
JPN Quando penso na minha relação com o Ser- tão importantes quanto diferentes: Florestan,
viço Social (relação que, por exemplo, duas Ianni, Evaldo Vieira, Maurício Tragtenberg e
figuras tão importantes na minha vida intelec- Luís Eduardo Wanderley.
tual, como o Prof. Florestan e o Prof. Ianni, Foi esta PUC/SP, efervescente, plena de vida
nunca entenderam), vejo que ela só se me porque plena de conflitos e contradições (e,
torna compreensível se levo em conta o que ao que sei, impensável sem a contribuição de
significaram o CELATS, a minha experiência Nadyr Gouveia Kfoury), que propiciou a vi-
portuguesa e a PUC/SP – a UFRJ veio depois, sibilidade do meu trabalho docente no Brasil
quase como conseqüência. e me ajudou a consolidar a minha interven-
Ao CELATS do tempo da Leila Lima, não ção na América Latina e em Portugal (mer-
devo apenas a solidariedade dos meus pri- cê dos convênios firmados com La Plata e
meiros dias de exílio. Devo a minha primeira Lisboa). E foi esta PUC/SP que me permitiu
intervenção na pós-graduação, com a convo- realizar, com estudantes de pós-graduação
cação para colaborar com a Maestría Latino- brasileiros, latino-americanos e africanos, a
americana de Trabajo Social, em Honduras; minha mais fecunda experiência acadêmica:
devo a participação em seminários expressi- a criação do “Núcleo de estudos e aprofun-
damento marxista”, o NEAM, que constituí Yves Lesbaupin e Eduardo Mourão Vascon-
inicialmente com o Evaldo Vieira e a Dilsea celos) foi notável. O grupo de professores,
Bonnetti e depois toquei sozinho. Por uma diferenciado mas muito unido, acabou por se
década, o NEAM foi um riquíssimo espaço transformar numa referência nacional e, ainda
de reflexão e debate, com claras incidências pela persistência da Maria Helena, constituiu-
na formação de excelentes pesquisadores. se o doutorado. As mudanças tiveram início
no último terço dos anos 1980 e já em mea-
PV Depois de ter cursado o doutorado na PUC/ dos da década seguinte o reconhecimento da
SP e ter permanecido ali no programa de pós- excelência acadêmica do nosso programa era
graduação, você aceitou o convite para se inte- consensual. No âmbito do programa, de que
grar, ainda na qualidade de professor visitan- fui coordenador por quatro anos, criei, com o
te, à Escola de Serviço Social da Universidade Carlos Nelson, o “Núcleo de Estudos e Pes-
Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ). Quais quisas Marxistas” (NEPEM) – que andou mal
os principais motivos para aceitar este convi- das pernas nos últimos anos, mas que agora
te? O que representou este longo período de está a ser dinamizado – e lecionei no marco do
vida acadêmica no interior da ESS/UFRJ? convênio com a Universidad de la República
JPN Sempre me senti em casa na PUC/SP, em ra- uruguaia. Também por mais de dez anos, fui
zão do que ficou explicitado na minha respos- pesquisador apoiado pelo CNPq, condição a
ta à Carmelita – aliás, sinto-me até hoje, dadas que renunciei quando o fordismo acadêmico
as relações que continuei mantendo com os se impôs definitivamente. Não sei exatamen-
companheiros de lá. Mas a pós-graduação da te quantas dissertações e teses orientei, mas,
PUC/SP já estava inteiramente consolidada à com certeza, não foram poucas.
época – era, na verdade, em Serviço Social, o Desde o primeiro ano em que trabalhei aqui,
modelo brasileiro mais exitoso. vinculei-me firmemente ao ensino de gra-
A ESS/UFRJ era um desafio profissional irre- duação, fui um ativo defensor da criação do
cusável, e por dois motivos: 1º. com o apoio curso noturno (salvo erro, definido na gestão
do Reitor Horácio Macedo, uma figura excep- de Maria Inês e implementado na gestão da
cional, a então Diretora da Escola, Maria He- Professora Maria Durvalina Bastos) e parti-
lena Rauta Ramos, sustentada por um grupo de cipei de todos os processos de revisão curri-
professores mais jovens, dispunha-se a redi- cular realizados nestas duas décadas. Sempre
mensionar inteiramente a pós-graduação exis- defendi que os professores mais titulados não
tente (que oferecia, ao tempo, apenas o mes- podem se isolar na pós: devem estar presentes
trado), também com a intenção de transformar na graduação e, por isto, dos meus 23 anos
a graduação; tratava-se mesmo de reverter a de permanência na Escola, em 20 deles conju-
linha claramente conservadora da pós-gradua- guei a docência na pós e na graduação. Enfim,
ção, num projeto que visava explicitamente a fiz quase de tudo nesta Unidade acadêmica:
excelência acadêmica; 2º. com esta perspecti- fui porteiro durante as greves de funcionários,
va, através da contratação de visitantes e, em chefe de departamento, coordenador de pós e
seguida, da abertura de concursos públicos e vice-diretor. Como vocês verificam, foi nes-
de transferências, Maria Helena articulou um ta casa que vivi o mais importante período da
núcleo básico de professores – Carlos Nelson, minha vida de professor.
José María Gómez, Marilda Iamamoto, No-
buko Kameyama... Se, por algum tempo, ain- MB Não há exagero em afirmar que, junto à obra
da tive algumas dúvidas sobre a viabilidade de Iamamoto e Carvalho (Relações sociais e
do projeto, a insistência da Maria Helena e da Serviço Social no Brasil), sua tese de douto-
Maria Inês Bravo quebrou-as rapidamente. ramento, publicada em dois livros (Ditadura
A experiência do redimensionamento do mes- e Serviço Social e Capitalismo monopolista
trado (a que se juntaram, depois, companheiros e Serviço Social), estabeleceu um divisor de
como o inesquecível Jean-Robert Weisshaupt, águas na renovação da profissão no Brasil.
Como você avalia a contribuição desses dois quisa internacional. Como você avalia a sua
livros para o Serviço Social brasileiro? atuação na América Latina e a inserção inter-
JPN Não sei se esta generosa avaliação sua é in- nacional do Programa de Pós-Graduação em
teiramente correta. Mas não resta dúvida – Serviço Social da UFRJ?
diante das sucessivas reedições e da constante JPN É curioso constatar uma coisa: como inter-
presença em bibliografias universitárias e até locutor ligado ao Serviço Social, tornei-me
de concursos públicos – de que são livros sig- conhecido primeiro na América Latina e só
nificativos. Algumas fórmulas que aparecem depois no Brasil: foi um texto de inícios de
neles (por exemplo, intenção de ruptura) tor- 1975, muito polêmico, esquemático e radica-
naram-se propriedade coletiva. lóide (“La crisis del proceso de reconceptu-
Aqui entre nós (e os eventuais leitores desta alización del Servicio Social”)6, que de fato
entrevista...), eu ousaria dizer que, para deter- me apresentou aos colegas latino-americanos,
minar alguma influência das minhas ideias no uma vez que as publicações da Humanitas cir-
Brasil, seria preciso levar em conta mais que culavam por todo o subcontinente. Pouco an-
esses livros. Eu daria alguma atenção aos cur- tes, publiquei, na revista do “Grupo ECRO”,
sos que ministrei, na segunda metade dos anos Hoy en el trabajo social, um artiguete do qual
1980, a convite de várias faculdades de prati- hoje não tenho a menor idéia (nem, natural-
camente todas as regiões do país e, também, mente, cópia).
aos encontros promovidos pela ABESS (hoje De qualquer modo, e tirante a pioneira publi-
ABEPSS) – suas direções, de 1982 em diante cação em castelhano, pelo CELATS, ainda
e em medida diversa, deram-me oportunida- nos anos 1980, do livro clássico de Marilda e
des de expor ideias e debatê-las com os co- Raul, influências brasileiras através de textos
legas. Também os promotores (em especial o só se fizeram efetivas com a criação, a partir
CFESS, a partir da gestão da Marlise Vinagre da iniciativa do nosso Carlos Montaño – e ban-
Silva) dos Congressos Brasileiros de Serviço cada, como sempre, pelo bom e velho Cortez
Social me concederam espaços privilegiados. –, da Biblioteca Latinoamericana de Trabajo
E, se me for permitido ir além, diria que textos Social. Salvo erro meu, antes desta coleção, as
avulsos (como, por influências brasileiras
“Por allá llegó Ze Paulo: solo llevaba su pesada carga de
exemplo, “A críti- na América Latina,
ca conservadora à libros, el trueno de su voz y su sorprendente elocuencia. No inclusive a minha, se
Reconceituação”, sé si todos tomamos conciencia inmediata del significado operavam através da
“A propósito da de este aporte y la generosidad intelectual de quien lo daba. presença em encontros
disciplina de me- Solo recuerdo la inocente clarividencia de una compañera e seminários, de ativi-
todologia”, “O que decretó: ‘El Trabajo Social uruguayo tiene un antes y dades de assessoria e
Serviço Social e a un después a la llegada de José Paulo Netto’”. consultoria e de cur-
tradição marxista”, sos em que brasileiros
Pablo Bentura
“Transformações eram professores con-
societárias e Serviço Social” e “A construção vidados. E, no caso excepcional do CELATS,
do projeto ético-político do Serviço Social influências ponderáveis de brasileiros só tive-
frente à crise contemporânea”)5 acabaram por ram lugar quando o organismo esteve sob a
ter uma repercussão bastante significativa. direção de Leila Lima (deixo de lado conside-
rações sobre a ALAETS, porque a própria na-
PV Depoimentos de professores e pesquisadores tureza da entidade era sobretudo político-orga-
do Serviço Social latino-americano deixam nizativa; o CELATS, aliás, foi seu organismo
claro a importância do seu trabalho docente acadêmico; mas não esqueçamos que na ALA-
na arquitetura e implementação de cursos de ETS a presença brasileira foi forte, mediante a
pós-graduação em toda a região. Além disso, presidência de Josefa Batista Lopes).
a ESS/UFRJ recebe inúmeros latino-america- Cabe, antes de prosseguir, um parêntese: estou
nos, estabelecendo-se como um centro de pes- me referindo a influências posteriores a 1970.
Entre 1965 (o famoso “Seminário de Porto gonismo na criação de uma “escola de pensa-
Alegre”, animado pelo falecido Seno Corne- mento”. Somente no Programa de Doutorado
ly, quando emergiu a “geração 65”) e 1971, da ESS/UFRJ contabiliza-se, do total de teses
operou-se um efetivo intercâmbio entre o defendidas, um elevado percentual – acima
Brasil e especialmente o Cone Sul, que, aliás, de 21% – e das que tiveram a sua orientação.
dava continuidade ao histórico contato entre Isto, tão importante quanto a sua produção
escolas católicas, como o demonstrou Manuel bibliográfica, confirma-lhe a observação do
Manrique – lembremos que o “Documento de seu orientador de doutorado, segundo a qual
Araxá” foi logo traduzido ao castelhano pelo “a universidade pública é o lugar do fazer e
também já falecido Natalio Kisnerman. do não-fazer”? Peço-lhe uma avaliação da sua
No meu caso particular, as eventuais influên- contribuição na formação de professores para
cias que exerci na América Latina foram via- o Serviço Social brasileiro e também sobre o
bilizadas pelos futuro da universidade
cursos que dei e “Quienes hemos tenido la oportunidad de cursar con pública em nosso país.
pelos seminários José Paulo Netto nunca olvidaremos suyas clases como JPN Antes de
de que participei, experiencias únicas, donde se combinan perfectamente mais, um esclarecimen-
mas sobretudo contenidos y la exhortación a pensar. Sin duda, Netto es to: a frase que você ci-
porque tive alunos un docente universitario que pretende generar reflexión tou e que sempre repito
e orientandos, em crítica y autonomía de pensamiento”. para meus orientandos
pós-graduação, da quando me indagam
Andrea Oliva
Argentina, Chile, sobre as possibilidades
Uruguai, Paraguai, Bolívia, Peru, Panamá e de trabalho na universidade – “a universidade
Costa Rica – primeiramente na PUC/SP e, de- pública é o lugar do fazer e do não-fazer” –
pois, na UFRJ. Evidentemente, os convênios foi-me dita pelo Prof. Ianni, quando eu hesita-
firmados posteriormente por ambas as univer- va, em meados dos anos 1980, em me dedicar
sidades abriram novos canais de contato para exclusivamente à academia. Ianni, mais que
todos nós – foi, inclusive, o que, para mim, mestre, era um sábio – e a ele não devo pouco.
possibilitou, a convite de Margarita Rosas, Hoje, com a experiência de décadas, apenas
tornar-me professor convidado do programa de confirmo o que ele me dizia: por maiores que
pós da Universidad de La Plata. sejam as limitações institucionais da universi-
Estou convencido de que o pós da ESS/UFRJ, dade, se você estiver disposto a meter a mão
assim como o da PUC/SP, teve e está tendo na massa, pode fazer muita coisa; mas se qui-
um protagonismo importante na constituição ser levar a vida na flauta, também pode fazê-lo
da pós-graduação no subcontinente – no caso que não acontece nada...
da UFRJ, creio que foi decisivo o convênio Não sei quantos orientandos tive sob minha
firmado com a Universidad de la República responsabilidade (o dado que você põe na
(Uruguai). No entanto, e esta é uma simples mesa é, para mim, desconhecido). Sei que
opinião pessoal, penso que temos sido mui- orientei muita gente. Mas não penso que com-
to tímidos quanto a convênios internacionais: panheiros que não orientaram tanto traba-
há uma enorme demanda dos companheiros lharam ou trabalham menos que eu – este é
latino-americanos e nossas iniciativas a este apenas um indicador, cuja importância deve
respeito são mínimas. E não só de latino- ser relativizada. Vou dar-lhe um exemplo: en-
americanos: sei, por exemplo, que, há anos, tre os companheiros mais dedicados da ESS/
companheiros portugueses (é o caso de Alcina UFRJ, lugar absolutamente destacado cabe
Martins, de Coimbra) buscam estruturar con- ao falecido Jean-Robert – com o seu aparente
vênios conosco e não têm sucesso. anarquismo e o seu real bom humor, ele tra-
balhava como um mouro (e o que fazia, fazia
SG Sua contribuição à difusão da tradição mar- com qualidade); e é provável que, se você uti-
xista no Brasil é enorme. Fala-se do seu prota- lizar os atuais indicadores de “produtividade”
docente, ele apareça como um ocioso. Portan- aos ditos libertários) e a todos assegurei a
to, há que ter cautela neste tipo de avaliação. mais plena autonomia. Não tenho conta das
Obviamente, sei que ofereci, no marco de um dissertações e teses que orientei divergentes
esforço coletivo, e peço que sublinhem esta do meu pensamento. Mas me recordo, por
observação, alguma contribuição à formação exemplo, que, na PUC/SP, orientei duas te-
de docentes na nossa área. Não creio, porém, ses de doutorado explicitamente contrárias
haver nenhum mérito nisto – trata-se, tão so- às minhas concepções e aqui na UFRJ, ain-
mente, de obrigação profissional: quem está da no ano passado, um orientando meu de-
inserido na pós-graduação tem o dever de fendeu uma tese de doutorado com uma in-
fazê-lo. Foi o que fiz, enfatizando sempre o terpretação histórica frontalmente oposta à
componente educativo, pedagógico – compo- minha. Só não orientei fascistas e racistas. A
nente que, na nossa área, nem sempre parece única coisa que sempre exigi deste universo
devidamente valorizado. E não só na nossa tão diferenciado – figuras inteligentíssimas,
área: a meu juízo, a universidade, como um algumas brilhantes, outras mais limitadas,
todo, está a deixá-lo de lado. até medíocres – foi seriedade intelectual.
Também é óbvio que o meu trabalho foi sem- Quanto à universidade pública em nosso país,
pre direcionado pela minha adesão ao marxis- sou francamente (e gostaria de cometer aqui
mo – explícita, expressa e de conhecimento um erro grosseiro) pessimista, pelo menos a
público. Nunca usei o truque fácil da “objeti- curto prazo. Enquanto instituição, ela pade-
vidade” científica, nunca fiz qualquer conces- ce do seu mal de origem, a tara elitista – que
são ao “relativismo” ou, mais refinadamente, não se cura simplesmente aumentando vagas.
ao “pluralismo”. Para lembrar Mariátegui, O sistema universitário brasileiro é um gran-
sou um marxista convicto e confesso. Jamais, de arquipélago de ilhotas onde a degradação
porém, quis criar e/ou criei uma “escola de do padrão de qualidade intelectual caminha a
pensamento”. Sou responsável somente pelas passos de gigante, com algumas ilhas de exce-
minhas ideias e não autorizo nenhum “discí- lência. O conservadorismo, o individualismo
pulo”: gosto mesmo é de pessoas que pensam e o corporativismo docentes parecem-me as-
com a própria cabeça. sustadores. Há bolsões combativos e lúcidos,
Divirto-me muito com algumas imagens di- mas o panorama geral não se me afigura ani-
vulgadas a meu respeito e que inevitavelmen- mador. Por outra parte, tenho para mim que,
te chegam ao meu conhecimento. Como em juntamente com a corporação policial, a uni-
40 anos de exposição pública não “troquei de versidade é uma das instituições sociais mais
paradigma”, não publicito minhas “perple- refratárias à mudança.
xidades” e permaneço um “ortodoxo”, con- Por isto mesmo, a luta por um arejamento míni-
sideram-me um “dogmático”... Morro de rir mo da universidade pública torna-se indispen-
com isto. Ao contrário da prática corriqueira sável. Ruim com ela, pior sem ela – basta ob-
na universidade brasileira, onde o orientador servar com algum cuidado o desenvolvimento,
geralmente seleciona seus orientandos por nos últimos anos, da rede privada de ensino su-
afinidades teóricas e/ou ideológicas, meus perior. Mas esta luta não pode, defensivamente,
orientandos chegaram a mim sempre por duas identificar-se com a pura e simples manutenção
vias: ou por escolha deles ou por indicação do sistema público que aí esta, nem limitar-se à
dos coordenadores de pós. E nunca disputei demanda de mais verbas.
orientandos: eles me foram dados, para reto-
mar Drummond, por Deus ou o Diabo talvez. MCY No VII ENPESS (Brasília, 2000), o tema
Aqueles que defenderam dissertações ou te- central foi a “questão social”. As conferências
ses sob minha orientação compõem um vasto proferidas revelaram posições diversas sobre
leque teórico e/ou ideológico: conservado- o tema e a sua – “Cinco notas a propósito da
res, cristãos, social-democratas, marxistas ‘questão social’” – foi, sem dúvida, uma con-
(dos mais variados matizes, dos trotskistas tribuição significativa ao debate. Sobre o seu
texto7, gostaria de entender melhor a sua ob- provavelmente subsistirá, mas com caracterís-
servação final acerca da “questão social” ser ticas certamente insuspeitadas.
a raison d´être do Serviço Social. Embora eu As experiências de Serviço Social em países
concorde com a determinação da “questão so- qualificados como socialistas sempre foram,
cial” na emergência e na institucionalização a meu juízo, paupérrimas e não me parecem,
da profissão, considero que ela não esgota as em absoluto, indicadoras de quaisquer alter-
possibilidades da intervenção do Serviço So- nativas de futuro. E a verdadeira explosão
cial, existente também, por exemplo, em paí- de cursos de Serviço Social em países que
ses socialistas. pertenceram ao falecido “socialismo real” (a
JPN Penso, Carmelita, que este é um ponto de Ucrânia, quanto a isto, me parece exemplar)
debate que envolve inúmeras dimensões, a apenas fortalece a minha argumentação – a re-
principal delas referida à capacidade de uma gressão histórica que ali se testemunha, com
profissão desenvolver respostas socialmente a restauração capitalista, repõe a “questão so-
qualificadas para questões que originalmen- cial” que tão bem conhecemos e, com ela, a
te (na sua gênese e mesmo no seu processo necessidade social do Serviço Social.
de constituição/institucionalização) não lhe
eram alocadas pela divisão sócio-técnica do CM Conforme a sua análise, o Serviço Social
trabalho. O que quero dizer é que nenhum es- pode superar a mera intenção de ruptura? É
paço profissional está dado de uma vez para possível uma prática profissional que efeti-
sempre: a história das profissões indica, com vamente não contribua com a reprodução das
suficientes provas factuais, que se trata de um relações sociais?
espaço muito plástico, que pode ser ampliado, JPN Quando, há mais de duas décadas, utilizei a
transformado e, inclusive, eliminado. Tam- expressão “intenção de ruptura”, eu o fiz com
bém a história do Serviço Social é, quanto a um objetivo preciso: caracterizar um vetor da
isto, eloqüente: no caso do Serviço Social bra- renovação profissional que se propunha supe-
sileiro, os últimos trinta anos assistiram a uma rar o conservadorismo do Serviço Social. E, já
ponderável ampliação do nosso espaço profis- então, assinalava o hiato existente entre a sua
sional – eu mesmo já indiquei este processo, elaboração teórica e os indicativos prático-
assinalando que superamos (sem abandoná- profissionais que oferecia. Não tenho dúvidas
la) a condição de “executores terminais de po- de que hoje – e isto apesar do avanço, no meio
líticas sociais” e conquistamos funções no seu profissional (e, obviamente, não só!), do neo-
planejamento, na sua gestão e avaliação. conservadorismo –, no plano das formulações,
O que sempre tenho afirmado é que a profissão o acúmulo foi tal que a ruptura do monopólio
está hipotecada à existência da “questão social” conservador sobre a profissão deixou de ser
– mais precisamente, às suas expressões, anti- uma intenção teórico-política e tornou-se uma
gas e novas, quando estas tornam-se objeto da realidade (o que, insisto, não significou a erra-
intervenção coesiva do Estado burguês. E dada dicação do conservadorismo profissional).
a concepção que sustento de “questão social” Quanto às práticas profissionais, a sua natu-
– que, como você sabe, toma-a como função reza imanentemente contraditória (e cabe à
da lei geral da acumulação capitalista –, consi- Marilda Iamamoto o pioneirismo da sua de-
dero que a supressão desta última implica a su- monstração teórica) implica uma dimensão
pressão da necessidade social de uma profissão necessariamente reprodutora – mas esta di-
como a nossa. Na hipotética medida em que mensão não é a única.
o Serviço Social possa desenvolver respostas
qualificadas para questões emergentes na or- MCY Gostaria de conhecer sua posição sobre as
dem societária que se seguirá à ultrapassagem possibilidades do “projeto ético-político” do
do reino do capital (e não nego a possibilida- Serviço Social no atual contexto, em que a
de de um tal desenvolvimento, mas aí estamos “questão social” assume novas configurações
claramente no território da futurologia), ele e expressões e na medida em que se intensifi-
ca, em relação às classes subalternas, a radica- “ócio criativo” ou vai reafirmar a “centralida-
lização da sua expropriação e crescem para a de do trabalho”? Afinal, o que fazer?
profissão demandas relacionadas à realização JPN Antes de responder, queria agradecer a genti-
de direitos dos seus usuários. leza com que vocês me tratam nesta despedida
JPN Num pequeno artigo publicado em 2007 , 8
da ESS/UFRJ – despedida em que me tributam
sustentei que o “projeto ético-político” co- muito mais do que mereço. Aposento-me cer-
meçava a trilhar a rota da sua inviabilização, to de que cumpri com zelo e honradez as mi-
mapeando dois ele- nhas tarefas de pro-
mentos constituti- “O anúncio da aposentadoria é uma notícia terrível para fessor, mas sem ver
vos do que se me o Serviço Social – não existem ‘genéricos’ que possam nisto qualquer mé-
afigurava a sua cri- substituir Zé Paulo. Essa ‘patente’ não é clonável, pois tal rito: como disse há
se – resultante da ‘produto’ é único e irrepetível. A palavra ‘aposentadoria’, pouco, tão somente
conjuntura configu- contudo, não combina com o seu espírito turbulento. cumpri com minhas
rada nos governos obrigações, tal como
Veja-se, a propósito, seu retorno à militância política.
FHC e Lula –: de o fazem muitos com-
Escrevendo sobre Lukács, num de seus textos, Zé Paulo
uma parte, a mini- panheiros desta casa.
mização do elenco chamou o pensador húngaro de ‘guerreiro sem repouso’ É claro que não
de objetivos profis- – inconscientemente, nessa projeção involuntária, unia vou me entregar a
sionais, reduzido à o seu destino ao de seu mestre. A militância política e a qualquer ócio – cria-
centralização das intervenção cultural continuarão a receber os estímulos tivo, para mim, é o
suas funções no pla- desse incansável guerreiro”. trabalho não aliena-
no assistencial; de do. Vou continuar
Celso Frederico
outra, a degradação estudando, já que o
da formação profissional, mediante a verda- estudo constitui o prazer da minha vida. De-
deira “reforma universitária” promovida, a dicarei mais tempo à Escola Nacional Flores-
partir de 1998, por Paulo Renato de Sousa. tan Fernandes, do MST, da qual sou apoiador,
O artigo desagradou amplamente companhei- e me envolverei mais nas atividades do meu
ros que admiro e respeito; o mínimo que me partido, o PCB. Eventualmente darei cursos
disseram é que eu estimulava o pessimismo e em universidades, públicas ou do gênero
o imobilismo. Não devo ter sido feliz na reda- das PUCs. Terei mais tempo para cuidar dos
ção e, por isto, certamente meus objetivos não meus amigos, aos quais frequentemente te-
ficaram adequadamente clarificados. Julguei, nho faltado, mas eles são generosos demais e
combatendo falsas ilusões, contribuir para me desculpam... Também espero me doar um
uma posição realista, capaz de ajudar numa pouco mais à Leila, que já suporta há anos, e
mobilização fecunda e produtiva em defesa solidariamente, a minha falta de tempo para
de valores que nos são comuns. Mas se talvez tudo. E, enfim, vou tratar de escrever um
a forma pela qual explicitei a minha posição pouco mais – no fim das contas, que sou eu,
não foi a melhor, o seu conteúdo o mantenho senão um pobre escriba da margem esquerda
até que me convençam de que não é correto. E do Paraibuna?
estou longe desse convencimento. Creio que
não é necessário repetir, seguramente melho- Notas
rando, a minha argumentação. Basta lembrar
a minha conclusão: no contexto atual, a meu 1
[Nota dos editores] Em 2008, Marcelo Braz e Car-
juízo é profundamente problemática a conver- los Montaño, com o apoio de antigos camaradas do
são do “projeto ético-político” em processo Prof. José Paulo Netto e de editores, reuniram parte
real de qualificação do Serviço Social. significativa da sua produção textual (livros, artigos
em revistas e jornais, traduções e introduções e pre-
PV Para terminar: quais são os seus planos após fácios) dos anos 1960 a 2000, num acervo que foi
a aposentadoria? Você vai tender mais para o doado à Escola de Serviço Social da UFRJ.
2
[Nota dos Editores] O autor se refere aos textos
que publicou, ainda nos anos 1980, na Coleção
Primeiros Passos (O que é marxismo, O que é
stalinismo) e na Coleção Encanto Radical (G.
Lukács. O guerreiro sem repouso).
3
[Nota dos Editores] Nesta coleção, sob a chan-
cela da Editora Ática (SP), o autor elaborou os
volumes Engels, Lukács e Stalin.
4
[Nota dos Editores] O autor se refere aos textos
de abertura de Astrojildo Pereira, Machado de
Assis, de 1991 e de Nelson Werneck Sodré, O
naturalismo no Brasil, de 1992 (ambos lançados
pela Ed. Oficina de Livros, de Belo Horizonte)
– recolhidos depois em José Paulo Netto, Mar-
xismo impenitente. Contribuição à história das
ideias marxistas (São Paulo: Cortez, 2004).
5
[Nota dos Editores] Todos estes textos foram pu-
blicados na revista Serviço Social & Sociedade,
editada pela Cortez, respectivamente nos núme-
ros 5 (1981), 14 (1984), 30 (1989) e 50 (1996)
– com exceção do último, que saiu no módulo 1
(“Crise contemporânea, questão social e Serviço
Social”) de Capacitação em Serviço Social e Po-
lítica Social. Brasília: CEAD, 1999.
6
[Nota dos Editores] Publicado originalmente em
Selecciones de Servicio Social (Buenos Aires:
Humanitas, nº 26, 2º cuatrimestre de 1975) e de-
pois recolhido em N. Alayón et alii, Desafío al
Servicio Social. Está em crisis da Reconceptuali-
zación?. Buenos Aires: Humanitas, 1976.
7
[Nota dos Editores] Cf. Temporalis. Revista da As-
sociação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Ser-
viço Social. Brasília: ABEPSS, ano II, nº 3, 2001.
8
[Nota dos Editores] Trata-se do artigo “Das ame-
aças à crise”, publicado em Revista Inscrita. Bra-
sília: CFESS, ano VII, nº X, novembro de 2007.
ARTIGO
Claudio Katz*
Resumo: Os governos reformistas da América do Sul lograram contundentes reformas eleitorais, desmentindo todos
os prognósticos de colapso. Podem avançar para rupturas revolucionárias ou consolidar o capitalismo de Estado.
Este contexto reanima as discussões na esquerda sobre o modelo novo-desenvolvimentista. Sua defesa não conduz a
forjar uma sociedade igualitária, mas pode levar à estabilização conservadora e à perda da credibilidade popular. É
necessário uma política de acumulação de forças para desenvolver uma estratégia de radicalização para transformar a
esperança de mudanças em uma realidade de conquistas, que abra as comportas para o socialismo do século XXI.
Resumen: Los gobiernos reformistas de Sudamérica lograron contundentes victorias electorales, desmintiendo todos
los pronósticos de desplome. Pueden avanzar hacia rupturas revolucionarias o consolidar el capitalismo de estado. Este
contexto reanima las discusiones en la izquierda, en torno al modelo neodesarrollista. Su defensa no conduce a forjar
una sociedad igualitaria, sino que desemboca en la estabilización conservadora y la pérdida de credibilidad popular. É
requiere una política de acumulación de fuerzas hacia desenvolver una estrategia de radicalización para transformar la
esperanza de cambios en una realidad de conquistas, que abra las compuertas para el socialismo del siglo XXI.
Abstract: The South American goverment reformers succeeded in crushing electoral reforms, belying all predictions
of failure. It may move to consolidate the revolutionary breaks or state capitalism. This context revives the discussion
to the left, on the neodevelopmental model. His defense is not conducive to forging an egalitarian society, but could
lead into a conservative stabilization and loss of public credibility. It is necessary a policy of building up forces to
develop a strategy to transform the radicalization of hope for change in a reality of conquest, which opened the flood-
gates for the XXI century socialism.
esa vieja conformación. Sólo un proceso socialis- minantes y frustraciones de la resistencia popular.
ta podría asimilar ese legado, desenvolviendo un Zelaya ha oscilado entre ambos antecedentes.
proceso de industrialización que reduzca en forma Por un lado se mantuvo firme en la denuncia
progresiva la desigualdad. de la dictadura, en medidas de acción (como el
Los mismos dilemas se procesan en Ecuador, a retorno al país) y en el llamado a la insurrección.
la hora de evaluar los nuevos pasos de la “revolu- Por otra parte, pospuso varias veces ese regreso
ción ciudadana”. Los tres años de este cambio han y se sumó al juego de distracciones y maniobras
permitido logros sustanciales, que se sintetizan en dilatorias que manejó Hillary Clinton. En esta os-
el texto de la nueva Constitución. Esta carta incluye cilación llegó a aceptar un acuerdo que avalaba el
el carácter plurinacional del estado, prohibe a los fi- fraudulento proceso electoral, a cambio de retomar
nancistas el manejo de los medios de comunicación, formalmente la presidencia por poco tiempo. Es-
introduce la revocatoria de los mandatos, limita la tas vacilaciones debilitaron la heroica resistencia
especulación con el endeudamiento público e impi- popular contra el golpe y facilitaron las maniobras
de la socialización estatal de las deudas privadas. que realizó la dictadura para sortear el aislamiento
Pero en el ejercicio del gobierno se adoptan me- diplomático internacional.3
didas que chocan con estas normas. El ejemplo más
contundente de esta contradicción ha sido el aval Resistencias y rebeliones
oficial a inversiones transnacionales destinadas a
explotar los recursos naturales. Esta decisión sus- Los desenlaces políticos de América Latina de-
citó un violento choque con el movimiento indige- penden principalmente de los resultados que alcan-
nista. También el decreto presidencial que otorga a cen las luchas sociales. Estas acciones contribuye-
las misiones católicas atributos de evangelización, ron, especialmente en Bolivia, Ecuador, Venezuela
viola la separación de la iglesia y el Estado que es- y Argentina, a revertir la secuencia de derrotas po-
tablece la Constitución. El trasfondo de estas ten- pulares en que se asienta el neoliberalismo.
siones es la composición de un gobierno que pro- En esos países se registraron levantamientos
pone ideas radicales, pero opera con funcionarios que enarbolaron reclamos coincidentes de anula-
comprometidos con los intereses del capital.2 ción de las privatizaciones, nacionalización de los
Estas ambivalencias del nacionalismo radical recursos naturales y democratización de la vida po-
se han verificado también en Honduras. La ines- lítica. Esas demandas se mantienen como ejes cen-
perada transformación de un gobernante clásico trales de la resistencia popular. Esta lucha combina
como Zelaya en participe del eje latinoamericano actualmente novedosas formas de protagonismo
antiimperialista fue un contundente ejemplo del social (indígenas, jóvenes, mujeres) con una acu-
enorme impacto continental, que ha generado la mulación de las experiencias procesadas durante
existencia del ALBA. todo el siglo XX (REGALADO, 2009).
La aceptación de las ofertas petroleras venezo- En la coyuntura del 2008-2009 no se han repe-
lanas desencadenó conflictos con Shell y Texaco, tido las revueltas generalizadas de los años ante-
que indujeron al golpe de estado. Pero el giro de riores. Frente al shock creado por la crisis financie-
Zelaya no respondió sólo a un estímulo exterior. ra global predominó una reacción acotada, afín al
Estuvo directamente influido por el fuerte predica- tipo de respuestas observadas en otros puntos del
mento que lograron los movimientos sociales, al planeta. Además, los gobiernos latinoamericanos
cabo de una férrea lucha contra el TLC y la depre- recurrieron con celeridad a fuertes gastos públicos,
dación que realizan las transnacionales. para evitar la reiteración de las sublevaciones que
No es la primera vez en la historia latinoameri- suscitaron los quebrantos bancarios y el caos infla-
cana que un presidente o líder militar radicaliza su cionario de 1999-2003.
acción, en un choque con la oligarquía o el impe- Durante el año se registraron igualmente algu-
rialismo. Ya ocurrió en Santo Domingo (Camaño), nas acciones populares de envergadura frente al
en Perú (Velazco Alvarado) o en Bolivia (Juan José ajuste inicial que desató la crisis. Los levantamien-
Torres). Pero también existen mayores precedentes tos que conmovieron a dos islas del Caribe (Gua-
de vacilaciones, compromisos con las clases do- dalupe y Martinica) fueron muy representativos de
esta reacción. Pero en general, la lucha social no Muchos pensadores sostienen que existe una
tuvo un detonante único, ni respondió directamente sola línea divisoria en la zona, que separa a la de-
a la eclosión global. Un cúmulo de motivaciones recha de los restantes gobiernos. Colocan a Lula
desencadenó estos movimientos. y a Chávez en un terreno común y distinguen úni-
En Perú, los indígenas doblegaron con una ex- camente a los defensores del libre comercio de los
traordinaria resistencia el intento gubernamental partidarios de la integración regional. Convocan a
de confiscar tierras. En otros países resurgieron las desenvolver políticas comunes de regulación del
movilizaciones sociales de los asalariados. Unas capital financiero y promoción del mercado inter-
200 marchas se concretaron en la ciudad de Mé- no. Este enfoque cuestiona las iniciativas autóno-
xico y otras 440 conmovieron a Buenos Aires. La mas de los movimientos sociales que afectan a los
batalla de los electricistas en el primer caso y de los gobiernos de centroizquierda, estimando que favo-
obreros de la alimentación o el subte en el segundo, recen a la derecha. Esta postura también considera
sacudieron la vida social de estas capitales. La fu- inexorable apostar a algún sendero de capitalismo
ribunda ira que transmiten las crónicas derechistas más benévolo.
es un termómetro del impacto que han suscitado Pero con esta actitud se termina justificando
estas acciones entre los opresores.4 las medidas que relegan las demandas populares,
Pero la mayor sorpresa del año ha sido la re- a favor de beneficios que reciben los dominadores.
sistencia casi insurreccional que presentaron los Este curso prevalece actualmente en Brasil, Argen-
oprimidos de Honduras al golpe derechista. Esta tina o Uruguay y se basa en priorizar los subsidios
reacción no estaba en los cálculos de nadie, ni era a las empresas a cualquier mejora de los salarios.
esperada en un país que operó durante décadas Esta visión postula, además, una falsa disyun-
como plataforma centroamericana del imperialis- tiva entre el amoldamiento al status quo y la acep-
mo. Basta observar el balance de la represión para tación de restauraciones conservadoras más ad-
notar cuán heroica ha sido esta lucha. Hasta ahora versas. Olvida que la elección entre lo malo y lo
se computan 21 asesinatos, 4000 casos de violacio- peor sólo conduce al desencanto y a la pérdida de
nes de derechos humanos y 120 presos políticos, credibilidad popular. Cuándo los sectores más es-
rigurosamente ocultados por todos los voceros de peranzados observan esta ausencia de alternativas
la “prensa libre”. frente a la creciente desigualdad se desmoralizan y
Durante 100 días de batalla contra el golpe, la toman distancia de la acción política.
respuesta popular alcanzó picos de polarización En muchas ocasiones este escepticismo es la
política y confrontación social que situaron esa principal causa del retorno electoral de la derecha.
rebelión en un plano próximo a los cuatro levanta- Frente a la primacía de distintas variantes de un
mientos sudamericanos de la última década. La Co- mismo patrón dominante, no sorprende que los de-
ordinadora Nacional de la Resistencia se convirtió rechistas consecuentes atraigan más votantes, que
en un centro organizador de esta acción, a partir del sus imitadores social-liberales. Este sostén de los
gran protagonismo que tuvieron los sectores socia- conservadores se ha convertido en una vía de san-
les de vanguardia de la docencia, el campesinado y ción al incumplimiento de las promesas de cambios
los sindicatos clasistas (BORON, 2009a; SAÉNZ, pausados. Una involución de este tipo se vislumbra
2009; HERNÁNDEZ, 2009). actualmente en Chile.
La resignación ante el status quo también conduce
Planteos estratégicos a otro resultado: la estabilización conservadora de go-
biernos centroizquerdistas, que se verifica en Brasil.
En este marco de reacciones populares muy va- Esta administración desenvuelve una política exterior
riadas pero persistentes, las discusiones de proyec- más autónoma, pero es completamente ajena al na-
tos políticos de la izquierda han recuperado interés. cionalismo popular, que históricamente combinó en
La batalla frontal contra las administraciones dere- América Latina acciones antiimperialistas, mejoras
chistas y pronorteamericanas de Uribe, Calderón o sociales y fuerte participación de las masas.
Alan García es una coincidente prioridad. Pero este Ciertos autores no registran ningún inconve-
acuerdo no se extiende a otros terrenos. niente serio en la “buena administración del capita-
lismo” que desenvuelve Lula. Consideran que este frontaciones que oponen a los gobiernos radicales
manejo motiva el despechado resentimiento de la con el imperialismo. Este tipo de choque ha sido
derecha, en un marco de bajo nivel de conciencia históricamente el motor de los procesos revolu-
de los oprimidos (POMAR, 2009). cionarios en América Latina. Desconocer esta di-
Pero una acertada gestión del capitalismo solo námica conduce al aislamiento, la impotencia y la
es auspiciosa para los poderosos y genera invaria- incapacidad para fusionar la acción militante con la
bles tormentos para los trabajadores. Los asalaria- experiencia de las masas, para desenvolver la con-
dos no generan los padecimientos que soportan, ni ciencia socialista.
son culpables de sus elecciones políticas. Esta res- Las posturas dogmáticas son estériles, ya que
ponsabilidad recae sobre los dirigentes, funciona- desvalorizan las mediaciones requeridas para lo-
rios e ideólogos, que justifican la perpetuación de grar el objetivo socialista. En los casos más extre-
la dominación burguesa, atraídos por las rencillas mos se alinean con la derecha por simple repeti-
políticas del momento. Ciertamente Lula proviene ción de los argumentos elitistas o por abstención
del campo popular y sus adversarios actuales del ante las confrontaciones en juego. Un ejemplo de
riñón de la burguesía, pero también Obama se forjó este neutralismo son las posturas de neutralidad en
en la adversidad racial y ahora sostiene sin ningún las batallas electorales contra la oligarquía de Ve-
remordimiento al estado imperial. nezuela, Ecuador o Bolivia.
Ciertos analistas suelen presentar el curso cen- Las reelecciones presidenciales -que han estado
troizquierdista sudamericano como un beneficio a veces en el centro de estas confrontaciones- han
internacional para los gobiernos radicales de Ve- sido habitualmente cuestionadas con los mismos
nezuela, Bolivia o Ecuador. Pero olvidan que las argumentos de derecha liberal. Se objeta la pror-
alianzas diplomáticas establecidas por los presi- roga de los mandatos, cómo si fuera un principio
dentes “progresistas” con estas administraciones constitucional intocable y de mayor gravitación
apuntan a reforzar negocios de distintos grupos que la participación popular en un choque con las
dominantes y a bloquear la radicalización de los fuerzas reaccionarias.5
procesos más avanzados de la región. En lugar de
favorecer rupturas anticapitalistas apuntalan a las Una reformulación socialista
“boliburguesías” de cada país.
En el pasado, esta estrategia era justificada como Es importante diferenciar a los gobiernos radi-
un desvío necesario para arribar al socialismo por un cales y de centroizquierda para trazar estrategias
camino de etapas prolongadas. Pero en la actualidad de construcción de un proyecto socialista. La dis-
este argumento sólo aparece en forma ocasional, ya tinción permite motorizar políticas de radicalizaci-
que se ha tornado intuitivamente insostenible. Salta ón, igualmente opuestas a la resignación y al sec-
a la vista que la promoción neodesarrollista del capi- tarismo. Al reconocer los rasgos progresivos que
talismo, no guarda ninguna relación con la construc- singularizan a los gobiernos reformistas se puede
ción de una sociedad igualitaria. batallar por un rumbo de ruptura con el capitalis-
La aprobación acrítica de los gobiernos de cen- mo, a partir de la acción independiente de los mo-
troizquierda frecuentemente suscita en la región, re- vimientos sociales.
acciones simétricas de cuestionamiento ciego a todas Esta estrategia implica alentar medidas de pro-
las administraciones, cómo si fueran equivalentes. En tección a los pueblos y sanción a los poderosos,
estos casos se objeta la política de Lula o Kirchner, para evitar que los desbarajustes provocados por
con el mismo parámetro que se enjuicia a Chávez, el capitalismo sean solventados por las víctimas
Evo o Correa. Todos los mandatarios quedan ubica- de este sistema. Estas acciones incluyen iniciativas
dos en un mismo campo burgués, al ser denunciados que impidan los despidos, garanticen los ingresos
cómo variantes de este sistema de dominación. mínimos y refuercen los gastos sociales. Son ini-
Esta visión es claramente dogmática. Ignora ciativas que apuntan a la nacionalización efectiva
las diferencias cualitativas que separan un ensayo de los sistemas financieros, la revisión del pago de
reformista de la simple perpetuación del orden vi- las deudas públicas y la recuperación efectiva del
gente. Tampoco registra la importancia de las con- control de los recursos naturales.
BORON, A (a). Honduras: ¿el principio del fin?, POMAR, W. 2009: a direita em desespero, Cor-
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jun. 2009. bune Libre, 23 de out. 2007.
Notas
1
Toer (2009a) postula la primera tesis y Almeyra
(2009b) la segunda.
2
Un interesante enfoque plantea Acosta (2010).
3
Dos balances completamente opuestos plan-
tean Puricelli (2009) y Toer (2009b) y Sáenz
(2009).
4
Un clásico exponente de esta furia es Oppenhei-
mer (2009).
5
Dos acertadas posturas en esta discusión son
Guerrero (2009) y Boron (2009b).
6
Un exponente del primer enfoque es Laclau
(2009) y del segundo Almeyra (2009c).
Claudio Katz
* Economista, Investigador, Profesor. Miembro del
EDI (Economistas de Izquierda). Su página web
es: www.lahaine.org/katz
ARTIGO
Trabalho, classe e sujeito social da revolução: o debate sobre a América Latina atual
Resumo: Este artigo procura estabelecer um diálogo crítico com algumas contribuições relevantes para o debate sobre
os movimentos sociais e políticos na América Latina contemporânea, tendo por objeto central a questão do sujeito
social da transformação. O argumento da mudança do sujeito social é confrontado com alguns elementos da argumen-
tação de Marx e Engels sobre as classes sociais, com o objetivo de rever concepções simplificadoras que muitas vezes
embasam a valorização dos “novos sujeitos”.
Labor, social class and political actor of the revolution: the current debate about Latin America
Abstract: This article aims to establish a critical dialog with some relevant contributions to the debate on the social
and political movements in contemporary Latin America. The central point is the issue of the social subject of transfor-
mation. The argument about the change of the social subject is confronted with some elements of Marx’s and Engels’
discussion on social classes, with the aim of reviewing simplistic conceptions that, frequently, support the positive
visions of the “new subjects”.
lização e a crise da classe operária: “Estávamos os “novos” sujeitos, para afirmar que a maior in-
diante de um acontecimento inusitado: o coração definição em torno do sujeito histórico hoje – (in)
do sistema estava saindo das grandes fábricas e dos definido pela sua capacidade de negação do poder
setores operários dos centros industriais e moven- – deve ser positivada pelos revolucionários:
do-se em direção a seus extremos. A fratura do sis-
tema estava encontrando outros caminhos, outras Um sujeito definido foi substituído por uma
explicações e novos horizontes” (Idem: 296). subjetividade indefinível. O poder do pro-
Já na análise de Jose Seoane, a contrapartida é letariado foi substituído por um antipoder
estabelecida entre a experiência e os projetos zapa- indefinido. Esse tipo de movimento teórico
tistas e as experiências e projetos dos movimentos constantemente está associado à desilusão,
revolucionários do século XX. O resultado seria a ao abandono da idéia de revolução a favor
mixagem, pela “voz” de Chiapas, entre as concep- da sofisticação teórica. Essa não é a nossa
ções mais críticas do marxismo, o anarquismo e to- intenção (HOLLOWAY, 2003: 229).
das as lutas contra opressões, gerando um exemplo
criativo e radical que se prestaria a renovar o pen- De uma forma mais acabada e referindo-se não
samento contestador diante da crise instalada pelo só à América Latina, mas ao conjunto do hemisfé-
balanço da experiência do Leste Europeu: rio sul, François Houtart também estabelece o con-
traste entre os “novos” e “velhos” sujeitos sociais
Nos dizeres chiapanecos ressoa e revive-se revolucionários. E o faz através de uma análise das
o caráter libertário e crítico do marxismo transformações impostas pelo capitalismo, ao su-
e do anarquismo, ou das correntes ‘conse- bordinar o trabalho de uma forma historicamente
lhistas’, ‘autogestionárias’ ou ‘luxembur- nova e transformar, com isso, o proletariado em
guistas’ para mencionar somente alguns dos sujeito revolucionário potencial:
nomes que esse espírito recebeu. Por sua
potente e radical criatividade e sua capaci- Um salto histórico dá-se quando o capita-
dade de evocação, a voz zapatista represen- lismo constrói, depois de quatro séculos de
ta um vento imprescindível diante das ex- existência, as bases materiais de sua reprodu-
periências dos mal chamados ‘socialismos ção que são a divisão do trabalho e a indus-
realmente existentes’ do Leste Europeu e trialização. Nasce o proletariado como sujeito
as conseqüências que estes tiveram sobre potencial, a partir da contradição entre capital
o pensamento contestador. Neste debate, e trabalho. Os trabalhadores estão submetidos
outras vozes também se unem ao grito que ao capital dentro do próprio processo de pro-
vem do México, as vozes das mulheres, das dução, fazendo com que a classe operária seja
minorias sexuais, do ecologismo, e de tan- totalmente absorvida e igualmente constituí-
tos outros que nos falam da amplitude e da da pelo capital. É o que Karl Marx chamou de
complexidade de um caminho efetivamente subsunção real do trabalho ao capital. A nova
emancipatório (SEOANE, 2005: 312). classe se transformou em sujeito histórico
quando se construiu no próprio seio das lutas,
Ainda tomando como referência a experiência e passando do estatuto de “uma classe em si a
as propostas zapatistas, podemos recorrer ao exem- uma classe para si”. Não era o único sujeito,
plo das análises de John Holloway. Holloway apre- mas sim, o sujeito histórico, isto é, o instru-
senta uma sofisticada e pertinente discussão sobre mento privilegiado da luta pela emancipação
a questão do fetichismo em Marx e afirma a centra- da humanidade, em função do papel jogado
lidade da classe trabalhadora em seu potencial de pelo capitalismo (HOUTART, 2007: 422).
insubordinação anti-sistêmica. Classe trabalhadora
entendida por ele, segundo afirma, em uma dimen- Da mesma forma que o capitalismo, entendido
são não reducionista, como um processo, não um como industrialização, teria construído as relações so-
lugar ou uma classificação. Ainda assim, também ciais que determinavam o caráter de sujeito histórico
ele estabelece a contraposição entre os “velhos” e do proletariado, as mudanças recentes na organização
produtiva capitalista acabariam por colocar um fim a tempos de ofensiva do capital e buscam, justamente
essa associação privilegiada entre o proletariado e a por sua perseverança na necessidade da revolução,
função de sujeito. Assim, “o capitalismo realiza um encontrar os caminhos que a tornam possível no
novo salto. O sujeito social amplifica-se. As novas presente a partir das pistas lançadas pelas rebeliões
tecnologias estendem a base material de sua reprodu- contemporâneas. No entanto, do ponto de vista que
ção: a informática e a comunicação, que lhe dão uma sustento neste artigo, vários problemas devem ser
dimensão realmente global” (Idem: 422) apontados nessas perspectivas. Não tenho espaço
A extensão dos territórios e dos setores da vida para tratar de alguns deles aqui, como o dos limites
reduzidos à lógica do capital, com o processo de nas concepções de Estado e de sua relação com a so-
globalização e as transformações tecnológicas ca- ciedade civil subjacentes às rejeições à “política ins-
racterísticas da reestruturação produtiva, teriam titucional” presentes em tais análises; ou a passiva
amplificado o sujeito na direção aos novos setores incorporação de algumas das teses do pensamento
submetidos ao capital, de maneira formal, ainda hegemônico sobre a “globalização”. Concentro-me,
que não real. Em suas palavras: pois, em apontar para as incongruências dessas aná-
lises no que se refere ao modo de pensar a classe
O resultado é que agora todos os grupos hu- trabalhadora, estereotipada como o “velho” sujeito
manos, sem exceção, estão submetidos à lei histórico, que teria sido superado pelo próprio de-
do valor, não somente a classe operária as- senvolvimento recente do capitalismo. Reduzindo a
salariada (subsunção real), mas também os classe a um sujeito superado, tais análises acabam
povos nativos, as mulheres, os setores infor- caindo em contradições pela sua ânsia em produzir
mais, os pequenos camponeses, sob outros um novo sujeito, oposto à classe, justamente pela
mecanismos, (...) significando uma subsun- forma reducionista como a concebem. Para intro-
ção formal (Idem: 423). duzir tal crítica, recorro aos argumentos de Marx e
Engels sobre o trabalho sob o capitalismo, a classe
Diversidade e multiplicidade seriam as marcas, trabalhadora e as lutas de classe.
portanto, desse “novo” sujeito histórico. Como na
análise de Houtart, da mesma forma que nas an- Trabalho e classe a partir de Marx
teriormente comentadas, se trata de estabelecer a
novidade do sujeito a partir de um raciocínio con- Vimos como para Ceceña “o coração do siste-
trastivo, a contraposição deduzida é entre o caráter ma estava saindo das grandes fábricas e dos seto-
restrito/fechado da classe operária (sobre a qual res operários dos centros industriais”. Na análise
pesa a subsunção real ao capital) e a abertura do de Houtart, a subsunção real do trabalho ao capi-
“novo” sujeito histórico, que para ele ainda está se tal, fruto da industrialização capitalista do século
construindo: XIX, criou a classe operária como sujeito histórico
e agora, com as transformações tecnológicas e a
Por todas estas razões, o novo sujeito his- globalização, o sujeito histórico se amplia e deve
tórico se estende ao conjunto dos grupos incluir o conjunto dos novos setores subsumidos
sociais submetidos, tanto aqueles que for- formalmente. Já Holloway amplia a idéia de clas-
mam parte da subsunção real (representa- se trabalhadora em direção a todos aqueles que no
dos pelos ‘antigos movimentos sociais’) seu cotidiano resistem, mesmo que veladamente,
como os que integrariam o grupo dos sub- ao processo de fetichização, mas afirma que “o po-
sumidos formalmente (‘novos movimen- der do proletariado foi substituído”.
tos sociais’). O novo sujeito histórico a A primeira observação que gostaria de fazer em
ser constituído será popular e plural, isto relação a essas teses é de natureza terminológica.
é, constituído por uma multiplicidade de Nas línguas latinas tendemos muitas vezes a tradu-
atores (Idem: 423-424). zir (e as citações que reproduzirei a seguir incor-
rem nesse equívoco) a expressão alemã empregada
Tais análises possuem o indiscutível mérito de por Marx – arbeiterklasse –, ou o correlato inglês
buscar atualizar a perspectiva revolucionária em working class, por classe operária. Tal tradução apa-
rece muitas vezes associada à idéia de que o verda- aos trabalhadores industriais). Podemos perceber
deiro sujeito revolucionário é o operário industrial isso no chamado “Capítulo inédito” d’O Capital.
– trabalhador produtivo, que sofre a subsunção real Ali, Marx define a subsunção formal e a subsun-
ao capital decorrente da interação com a moderna ção real do trabalho ao capital. Associando a pri-
tecnologia empregada na grande indústria. meira forma à mais-valia (ou mais-valor) absoluta
Daniel Bensaïd percebe os problemas desse e a segunda à mais valia relativa, Marx procura
emprego de um vocabulário restritivo para fazer demonstrar que o processo se inicia pela subor-
referência à classe: dinação direta dos trabalhadores aos capitalistas,
quando estes passam, na condição de proprietá-
No século XIX, falava-se em classes tra- rios/possuidores dos meios de produção, a contro-
balhadoras, no plural. O termo alemão Ar- lar o tempo e as condições de trabalho daqueles,
beiterklasse ou a expressão inglesa working que foram reduzidos à condição de proletários. O
class continuam extremamente genéricos. passo seguinte, da subsunção real, apresenta-se
“Classe ouvrière”, dominante no vocabulá- como decorrência da acumulação propiciada pela
rio francês, tem uma conotação sociológica etapa anterior, e materializa-se pela “aplicação
propícia a equívocos. Ela designa principal- da ciência e da maquinaria à produção imediata”
mente o proletariado industrial, com exceção (MARX, 1978: 66).
do assalariado de serviços e de comércio, que No mesmo texto, Marx apresenta a distinção
se submete a condições de exploração aná- entre trabalho (e trabalhador) produtivo e impro-
logas do ponto de vista de sua relação com dutivo: “só é produtivo aquele trabalho – e só é
a propriedade privada dos meios de produ- trabalhador produtivo aquele que emprega a força
ção, de seu lugar na divisão do trabalho ou de trabalho – que diretamente produza mais-valia;
da forma salarial de sua renda. Marx fala de portanto, só o trabalho que seja consumido direta-
proletários. Apesar de seu aparente desuso, mente no processo de produção com vistas à valo-
o termo é ao mesmo tempo mais rigoroso e rização do capital” (Idem: 70). Associando as duas
mais abrangente do que classe operária. Nas distinções, Marx vai afirmar que com o desenvol-
sociedades desenvolvidas, o proletariado da vimento da subsunção real, “não é o operário indi-
indústria e dos serviços representa de dois vidual, mas uma crescente capacidade de trabalho
terços a quatro quintos da população ativa socialmente combinada que se converte no agente
(BENSAÏD, 2008: 36). real do processo de trabalho total”, não fazendo
sentido, pois, buscar o trabalhador produtivo ape-
Marx não distinguiu sempre de forma muito nas entre os que desempenham as tarefas manuais
precisa a terminologia com que se referiu à classe, diretas (Idem: 71-72).
mas são dois os termos fundamentais que encontra- Indo além, não é o conteúdo do trabalho de-
mos em sua obra: proletariado e classe trabalhado- sempenhado, nem o setor da economia em que se
ra. Por proletariado podemos entender todos aque- desempenha esse trabalho que definirá o caráter
les que nada possuem, ou melhor, não possuem produtivo do trabalho ou do trabalhador. Por isso
outra forma de sobreviver, numa sociedade de mer- Marx faz questão de exemplificar o trabalho produ-
cadorias, do que vender também como mercadoria tivo com figuras como a do artista, ou do professor,
a sua força de trabalho. Por classe trabalhadora o embora reconhecendo que eram exemplos em que
conjunto daqueles que vivem da venda da sua força a subsunção ao capital ainda era formal:
de trabalho, através do assalariamento.
E ao tratar da classe trabalhadora, mesmo em Uma cantora que entoa como um pássaro é
seus textos de crítica da economia política, Marx um trabalhador improdutivo. Na medida em
nunca a restringiu ao operariado industrial, nem que vende seu canto, é assalariada ou comer-
através de uma associação restritiva com os sub- ciante. Mas, a mesma cantora, contratada por
metidos à subsunção real, nem tampouco por uma um empresário, que a faz cantar para ganhar
definição que fechasse a classe no setor produti- dinheiro, é um trabalhador produtivo, já que
vo (e este também não foi definido como restrito produz diretamente capital. Um mestre-escola
que é contratado com outros, para valorizar, em Marx ela não se resume à dimensão econômica.
mediante seu trabalho, o dinheiro do empre- O capitalismo apresentava, para Marx e Engels, um
sário da instituição que trafica com o conheci- potencial novo, justamente porque nele era possí-
mento, é trabalhador produtivo (Idem: 76). vel que, pela primeira vez, uma classe dominada
e explorada assumisse consciência de sua explora-
E se o caráter produtivo do trabalho e do traba- ção. A elaboração teórica dos dois era fruto desse
lhador não se define pelo emprego na grande indús- processo. Michael Löwy demonstra como a fun-
tria (nem, portanto, pela subsunção real), tampouco dação do materialismo histórico dos anos 1840 se
a classe trabalhadora aparece como restringida aos explica pelas relações dos dois com o movimento
que exercem trabalho produtivo. Pelo contrário, é dos trabalhadores na época: o cartismo inglês, as
a condição proletária e o assalariamento que a defi- greves de trabalhadores da Silésia, as organizações
nem. Marx lembra, naquele mesmo texto, que nem comunistas clandestinas de Paris; tanto quanto
todo trabalhador assalariado é produtivo, mas que pela superação das bases filosóficas do idealismo
mesmo os que exercem profissões antes associadas alemão, das bases da economia política clássica e
a uma auréola de autonomia (como os médicos, do socialismo anterior (LÖWY, 2002). Ou seja, a
advogados, etc.) cada vez mais se viam reduzidos questão das classes assumia uma dimensão política
ao assalariamento e caíam – “desde a prostituta até com potencial transformador. Se todos os confli-
o rei” – sob as leis que regem o preço do trabalho tos sociais do passado revelavam a luta de classes
assalariado (Idem: 73). como dimensão essencial do processo histórico,
Recorro aqui novamente à análise de Bensaid agora a classe adquiria consciência de classe, algo
que, comentando a concepção ampla de classe que não se define em termos puramente econômi-
presente n’O Capital, procura demonstrar como a co, mas em sua dimensão política, como Marx afir-
partir de uma visão de totalidade, da reprodução ma em correspondência a Bolte:
ampliada como a define Marx, não há porque res-
tringir a definição de classe ao trabalho produtivo. O movimento político da classe operária tem
como objetivo último, é claro, a conquista
Não há, em O Capital, definição classifica- do poder político para a classe operária e
tória e normativa das classes, mas um an- para este fim é necessário, naturalmente, que
tagonismo dinâmico que ganha forma, em a organização prévia da classe operária, ela-
primeiro lugar, no nível do processo de pro- borada na prática da luta econômica, haja al-
dução, em seguida, no do processo de circu- cançado certo grau de desenvolvimento. Por
lação e, finalmente, no da reprodução geral. outro lado, todo movimento em que a classe
As classes não são definidas somente pela operária atua como classe contra as classes
relação de produção na empresa. Elas são dominantes e trata de forçá-las ‘pressionan-
determinadas ao longo de um processo em do do exterior’, é um movimento político.
que se combinam as relações de propriedade, Por exemplo, a tentativa de obrigar, através
a luta pelo salário, a divisão do trabalho, as das greves, os capitalistas isolados à redução
relações com os aparelhos de Estado e com o da jornada de trabalho em determinada fá-
mercado mundial, as representações simbó- brica ou ramo da indústria, é um movimen-
licas e os discursos ideológicos. Portanto, o to puramente econômico; pelo contrário, o
proletariado não pode ser definido de modo movimento visando a obrigar que se decre-
restritivo, em função do caráter produtivo ou te a lei da jornada de oito horas etc., é um
não do trabalho, que entra somente no livro movimento político. Assim, pois, dos movi-
II de O Capital, sobre o processo de circula- mentos dos operários separados por motivos
ção (BENSAÏD, 2008: 35). econômicos, nasce em todas as partes um
movimento político, ou seja, um movimen-
E se é complexa a questão das classes no capi- to de classe, cujo alvo é que se dê satisfa-
talismo do ponto de vista das relações econômicas, ção a seus interesses em forma geral, isto
ainda mais complexa se torna se percebermos que é, em forma que seja compulsória para toda
a sociedade. Se bem que é certo que estes com mais clareza) capacidade de, na busca pela
movimentos pressupõem certa organização superação das suas contradições, ampliar a mais-
prévia, não é menos certo que representam valia relativa e, portanto, converter trabalhadores
um meio para desenvolver esta organização à subsunção real ao capital. Mas, a dimensão da
(MARX, [1871] s/d: 266). expropriação (conseqüentemente, da conversão
de novos setores à subsunção formal) continua a
A percepção da complexidade do conceito de se renovar, em cada nova atividade antes desen-
classe pelo materialismo histórico deve levar a que volvida de forma comunitária e agora subordina-
não nos contentemos com uma única dimensão da da à lógica do trabalho abstrato e em cada recurso
classe para entendê-la, pois que suas dimensões natural – a terra em primeiro lugar – tomado dos
econômicas possuem um sentido ampliado (na povos originários. A essas expropriações, em certo
produção, na circulação das mercadorias e na di- sentido “primárias”, se somam uma série de ou-
visão desigual do produto do trabalho, ou seja, na tras, que poderiam ser chamadas de “secundárias”,
reprodução ampliada do capital). E Marx nunca referentes por exemplo aos (já historicamente li-
restringiu sua definição de classe a uma dimensão mitados no caso latino-americano) direitos sociais
econômica, ao contrário, valorizou seu papel polí- – como saúde, educação, seguridade e garantias
tico, algo que só conseguia definir a partir da idéia trabalhistas – retirados, cerceados e cada vez mais
de uma consciência de classe, cujo desenvolvimen- submetidos à lógica da mercadoria.
to não se dá isoladamente, mas na luta de classes. A realidade mundial atual, e da América Latina
Combinando essas questões, é interessante per- em particular, demonstram assim os limites de aná-
ceber como um dos melhores leitores desta discus- lise dos que defendiam uma perspectiva evolutiva
são em Marx tratou de demonstrar a formação da linear do capitalismo, nas quais se acreditava que
classe trabalhadora – e da sua consciência de classe a etapa da expropriação se encerrara, restando-nos
– no período do fim do século XVIII e primeiras lidar apenas com a ampliada renovação das formas
décadas do XIX, ou seja, numa época em que ainda de exploração.
predominava a subsunção formal. Refiro-me a E. P. Os debates em curso tocam também, no que
Thompson em seu magistral estudo sobre a forma- tange à discussão aqui privilegiada sobre a questão
ção da classe trabalhadora na Inglaterra (THOMP- do sujeito social da transformação revolucionária,
SON, 1987-1998). Algo que nos possibilita enten- num ponto fundamental. A visão do sujeito da re-
der as reflexões de Marx e Engels desde a década volução restrita a uma concepção estreita de classe
de 1840 como produzidas a partir e, cada vez mais, operária, urbano-industrial, realmente subsumi-
no interior do próprio movimento de formação da da, assalariada regular, masculina, sindicalizada,
classe e de sua consciência. etc., não pode sustentar um projeto revolucioná-
rio consistente nos dias de hoje. Como, aliás, não
Retomando os argumentos era essa a leitura de Marx em seu próprio tempo.
Algo que, no fim da vida, explicitou de forma bas-
Voltando a considerar as teses sobre o “novo” tante clara ao afirmar que o “fatalismo histórico”
sujeito social na América Latina, podemos discu- da conversão do camponês em proletário através
tir seus limites a partir da breve retomada da re- da sua separação dos meios de produção (a terra
ferência a Marx que buscamos desenvolver ante- em particular) só se manifestava plenamente no
riormente. Em primeiro lugar reconhecendo que Ocidente, pois se tratava da conversão “de uma
aquelas teses partem da percepção de um fenôme- forma de propriedade privada em outra forma de
no real – e já estudado por Marx e Engels desde o propriedade privada” (MARX, [1881] 1965: 339-
Manifesto Comunista – qual seja, o de que o modo 340). Diante do quadro russo de uma agricultura
de produção capitalista vive um constante pro- camponesa coletiva – contrastante com o campo-
cesso de auto-revolucionamento. Esse processo nês “detentor de parcela” examinado no 18 Bru-
envolve a sempre renovada (embora naturalmen- mário – em contato com os primeiros momentos
te limitada pela dimensão ecológica do planeta, de uma agitação socialista naquele país conectada
conforme Marx já intuía e hoje nós percebemos ao movimento internacional do proletariado, Marx
afirmaria a possibilidade de que a comuna rural flexível, dado que o capital opera expropriações e
russa tivesse um potencial revolucionário, comen- explorações de forma distinta, conforme as reali-
tando no prefácio à edição russa do Manifesto, pu- dades anteriores que confronta, quanto a valoriza-
blicada em 1882, que “se a revolução russa dá o ção do elemento indígena nas lutas sociais latino-
sinal para uma revolução proletária no Ocidente, americanas, presentes nos autores que comentei na
de modo que ambas se completem, a atual pro- primeira parte deste artigo, encontram ecos muito
priedade comum da terra na Rússia poderá servir nítidos no passado dos clássicos do socialismo.
de ponto de partida para uma evolução comunista” Porém, longe de tratar as especificidades históri-
(MARX e ENGELS, [1882] 1982: 98). cas das situações “periféricas” em relação ao ca-
Muito próxima a esta abordagem foi a forma pitalismo europeu/ocidental como reveladoras de
como o marxista peruano José Carlos Mariátegui particularidades absolutas, tais escritos clássicos
encarou a potencialidade do elemento indígena no as compreendem em conexão com uma totalidade
processo revolucionário na América Latina, espe- mais ampla do movimento contraditório da histó-
cialmente no Peru. Para Mariátegui, a reivindicação ria. Daí que Mariátegui possa, ao mesmo tempo,
indigenista permaneceria isolada, ou manipulada rejeitar o eurocentrismo do projeto civilizatório
por populismos diversos, enquanto se manifestasse do capital e proclamar a universalidade do projeto
de forma restrita a aspectos étnicos, culturais ou emancipatório socialista.
educacionais, demandando expressão econômica e A busca por “novos sujeitos” e “novas estra-
política, através de seu vínculo com a questão da tégias” revolucionárias por parte de uma signifi-
terra. Entendendo o potencial que poderia advir de cativa parcela do pensamento social revolucio-
tal mudança de orientação do movimento indígena nário na América Latina atual parece ter perdido
como decisivamente vinculada à sua “consangui- de horizonte essa visão da totalidade que nos
nidade” com o socialismo proletário internacional, apresentam os clássicos. Talvez porque autores
Mariátegui explicou que: como os que mencionamos no início desse arti-
go tendem a ler na realidade atual uma mudan-
A fé no ressurgimento indígena não provém ça do sujeito social justamente porque perma-
de um processo de ‘ocidentalização’ material necem compartilhando com as concepções que
da terra quéchua. Não é a civilização, não é o tanto criticam uma definição restritiva de classe
alfabeto do branco, o que levanta a alma do operária, que não se encontrava em Marx, nem
índio. É o mito, é a ideia da revolução socia- na melhor tradição crítica que nele se inspirou.
lista. A esperança indígena é absolutamen- Assim, não percebem a classe trabalhadora, em
te revolucionária. O mesmo mito, a mesma sua dimensão processual e relacional (conflitu-
ideia, são agentes decisivos do despertar de osa relação moldada pela luta de classes), que
outros velhos povos, de outras velhas raças envolve hoje outros setores, objetivamente sub-
em colapso: hindus, chineses, etc. A história sumidos ao capital (quer formal ou realmente)
universal tende hoje como nunca a reger-se e subjetivamente construindo politicamente sua
pelo mesmo quadrante. Por que há de ser o consciência de classe. Por isso, negam a classe
povo incaico, que construiu o mais desenvol- como sujeito, justamente por não encontrarem
vido e harmônico sistema comunista, o único correspondência entre suas manifestações reais
insensível à emoção mundial? A consangui- e o modelo estático com o qual trabalham. E o
nidade do movimento indigenista com as cor- fazem compartilhando com os deterministas que
rentes revolucionárias mundiais é demasiado tanto criticaram justamente o determinismo de
evidente para que precise documentá-la. Eu sua análise, pois que repetem com mão inver-
já disse que cheguei ao entendimento e à va- sa a ideia de que a grande indústria (e a sub-
lorização justa do indígena pela via do socia- sunção real, ou o trabalho produtivo entendido
lismo (MARIÁTEGUI, 2010). como o fabril), e não a relação social conflituo-
sa do capitalismo, criou a classe. Fazem isso ao
Assim, tanto a noção de que a definição do su- defenderem que a retração do setor industrial, a
jeito social da revolução é histórica e relativamente “globalização” e as transformações tecnológicas
em curso determinam o fim do ciclo da “classe FOSTER, J. B. (2005). A ecologia de Marx: ma-
operária” como sujeito histórico revolucionário. terialismo e natureza, Rio de Janeiro, Civilização
Pode ser que isso aconteça porque, como assina- Brasileira, 2005.
la Bensaid com perspicácia:
HOLLOWAY, J. Mudar o mundo sem tomar o po-
Durante muito tempo, o marxismo dito ‘or- der. São Paulo: Viramundo, 2003.
todoxo’ atribuiu ao proletariado uma missão
heroica: uma vez que sua consciência alcan- HOUTART, F. Os movimentos sociais e a constru-
çasse sua essência, tornando-se o que ele é, ção de um novo sujeito histórico. In: BORON, A.;
ele seria o redentor de toda a humanidade. AMADEO, J. e GONZÁLEZ, S. (orgs.). A teoria
Para muitos, as desilusões do dia seguin- marxista hoje, problemas e perspectivas. São Paulo:
te são proporcionais às ilusões da véspera: Expressão Popular/CLACSO, 2007. p. 421-430.
na falta de tornar ‘tudo’, o proletariado se-
ria doravante reduzido a menos que nada LINEBAUGH, P. The Magna Carta manifesto:
(BENSAÏD, 2008: 35). liberties and commons for all. Berkeley: Univer-
sity of California Press, 2008.
Estabelecer o diálogo crítico com essas análi-
ses é fundamental não por uma questão de preci- LÖWY, M. A teoria da revolução no jovem Marx.
são teórica, entendida por um viés academicista, Petrópolis: Vozes, 2002.
nem tampouco para denunciar a suposta capitula-
ção de intelectuais de esquerda ante aos modelos MARIÁTEGUI, J. C. Prólogo de Tempestad
do pensamento neoliberal. Considero fundamen- en los Andes de Valcárcel. In:___. 7 Ensayos de
tal proceder à crítica porque os autores dessas re- Interpretación de la Realidad Peruana. Dis-
flexões são intelectuais militantes, cuja produção ponível em: http://www.marxists.org/espanol/
reflete e busca dialogar com as formulações que se mariateg/1928/7ensayos/02.htm. Acesso em: 05
originam dos próprios movimentos sobre os quais jul. 2010.
refletem, como o caso do zapatismo demonstra
exemplarmente. Trata-se, pois, de um debate fun- MARX, K. Carta de Marx a Bolte, 23 de novem-
damental no campo da práxis que se pretende su- bro de 1871. In: MARX, K. e ENGELS, Friedrich.
porte para a transformação social. Obras escolhidas, vol. III. São Paulo: Alfa-Ômega,
[1871] s/d.
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UFRJ, 2010. democracia. Do Sul vêm as vozes que comparti-
ARTIGO
Resumo: O presente artigo oferece um balanço crítico sobre a democracia representativa que impera nos atuais regi-
mes de governo, apontando seus limites e deficiências intrínsecos. Em contrapartida, apresenta novas formas de orga-
nização política de base popular, uma outra democracia construída de baixo pelos novos movimentos anti-sistêmicos,
com destaque para a experiências latino americanas, como os zapatistas mexicanos, os piqueteiros argentinos e os
sem-terra brasileiros.
Abstract: The present article offers a critical balance on the representative democracy that guides today govern
regimes, pointing its limits e intrinsic deficiencies. In the other hand, we bring forward new forms of popular based
political organization, a democracy built from below by the new anti-systemic movements, with emphasis in the Latin
American experiences, as the Mexican zapatists, the argentine “piqueteiros” and the Brazilian “sem-terra”.
Os limites da democracia capitalista atual tal após a Segunda Guerra Mundial, ou então para
criticar a partir de Cuba os projetos imperialistas
“Votando amanhã, mais uma vez iremos estadunidenses e sua “democracia hipócrita”, ou
substituir o verdadeiro poder legítimo para reivindicar no Brasil os processos de “de-
pelo simples poder legal [...] mocracia participativa” realizados em algumas
Em uma palavra, quando voto, cidades e prefeituras governados pelo Partido dos
abdico do meu poder. Trabalhadores2. Ao ser usado para se referir a re-
alidades e situações totalmente díspares, o termo
Abro mão da possibilidade, presente em “democracia” terminou por se esvaziar de sentido e
cada um, de constituir, ao lado de deixou espaço para confusos significados. Isso não
todos, um grupo soberano. Renuncio a impediu, porém, que dentro da cultura das classes
construir um grupo desprovido da subalternas e dentro do imaginário popular o termo
necessidade de representantes.” de democracia continue a conservar um prestígio
relativamente alto e a evocar, por caminhos subter-
Jean-Paul Sarte, “Eléctions, piège à cons” râneos e complexos, um objetivo ainda reivindica-
[“Eleições, arrmadilha para tolos”], do e reclamado como demanda a ser conquistada,
Les temps modernes, n° 318, Janeiro de 1973. reiterado profunda e persistentemente pelas classes
ou setores subalternos de todo o planeta.
Como apontou agudamente Marc Bloch em seu E para tornar este contraditório quadro ainda
texto inconcluso Apologia da história ou o ofício mais complexo, é evidente que hoje, em todos os
do historiador, a relação existente entre as reali- cantos do planeta, a democracia realmente existen-
dades sociais e históricas que cotidianamente pes- te se revela como apenas uma democracia formal e
quisamos e os nomes ou conceitos que utilizamos representativa, defendida por todas as classes do-
para designar tais realidades é uma relação com- minantes do mundo; uma democracia somente for-
plexa, mutante, ambivalente e cheia de surpresas.1 mal, derivativa e indireta, que ao ter cumprido seu
De fato, pode ocorrer que um termo idêntico seja ciclo de vida histórico, encontra-se numa irrefreá-
usado em épocas distintas para designar realida- vel crise profunda e terminal3, produzindo socie-
des completamente diferentes, ou então o inverso, dades cada vez mais desgarradas e confrontadas,
isto é, que uma mesma realidade seja denominada como resultado de eleições fechadas que dividem
com termos diversos em outros espaços geográfi- essas sociedades em duas partes quase iguais4. E
cos contemporâneos, em escala nacional, regional tudo isso ao mesmo tempo em que cresce vertigino-
e inclusive local. samente a abstenção política em todos os povos de
Além disso, dado que qualquer realidade social todas as latitudes, o que revela que tal democracia
histórica está sujeita à evolução e transformação hoje realmente existente é cada vez mais percebida
constantes, o termo que foi inventado para desig- tão somente como um óbvio engodo, destinado a
nar uma realidade específica em sua etapa original ocultar a descarada dominação social, econômica e
e formativa pode deixar de ser adequado para dar cultural das classes e setores ainda dominantes.
conta de tal realidade em sua etapa madura ou em Trata-se de uma crise múltilpa da democracia
sua fase terminal. E um mesmo termo, mediante o burguesa por enquanto dominante, que se reflete
uso de variados adjetivos anexos, acaba por abran- também no fato de que os povos não se sentem mais
ger e incluir sob sua denominação realidades não identificados com seus respectivos governos, ven-
somente divergentes entre si, mas às vezes comple- do estes últimos, no melhor dos casos, como males
tamente contraditórias e excludentes. inevitáveis e, em outras circunstâncias, como aber-
Este parece ser o caso atual do tão manuseado tos inimigos e oponentes. Há uma enorme separa-
e utilizado termo de “democracia”, que tem sido ção de todas as populações do mundo não apenas
usado tanto para justificar as irracionais invasões frente a seus respectivos governos e Estados, mas
imperialistas recentes dos Estados Unidos no Afe- também frente ao conjunto de suas correspondentes
ganistão e Iraque, como para legitimar os projetos classes políticas. Na mais indulgente das hipóteses,
de “socialismo real” nos países da Europa Orien- tal separação transforma o processo de eleições –
suposto elemento paradigmático e conspícuo dessa Para compreender a atual crise terminal da de-
democracia – num fraco e limitado instrumento de mocracia capitalista e burguesa dominante, deve-
expressão parcial e deficiente dos interesses popu- mos começar com uma referência ao sentido eti-
lares, isso quando não representa apenas uma “ar- mológico literal do próprio termo “democracia”.
madilha para tolos”, segundo a célebre expressão Este termo de origem grego vem do vocábulo “de-
de Jean-Paul Sartre (2010). mos”, que significa povo, e da raiz “cratos”, que
Pois bem, como explicar este esvaziamento de significa governo. Portanto, originalmente e num
sentido do termo “democracia”, junto à multipli- sentido literal, democracia significa “governo do
cação de adjetivos somados ao mesmo para ten- povo”. E vale a pena insistir que se trata do go-
tar oferecer um novo significado em diferentes verno direto do povo sobre seus próprios assuntos
versões? E como correlacionar tal esvaziamento e coletivos, o que logicamente denota que o conceito
polivalência de significado com a crise terminal da de democracia é, em sua origem, o termo que de-
democracia capitalista realmente existente? E tam- signa o autogoverno do povo sobre si mesmo, ou
bém como explicar a tenaz defesa e reivindicação seja, o exercício autônomo e soberano, aplicado de
de outra democracia por parte das classes subalter- maneira direta e sem mediações nem mediadores,
nas da sociedade? E quais são os conteúdos possí- da própria vontade popular.
veis dessa outra democracia de raiz e matiz genui- Mas se esta democracia é idêntica ao autogover-
namente subalternos e populares? E, neste sentido no popular, torna-se pertinente a pergunta: quando
específico, qual é a contribuição atual dos vitais existiu esta democracia em seu sentido original e
e importantes novos movimentos anti-sistêmicos quando teria começado a se desvirtuar deste senti-
da América Latina? Quais são as novas formas de do? E a resposta clara, que Marx nos deu há mais
democracia, dessa outra democracia, que estão de um século e meio, é que a democracia original
propondo e inclusive praticando esses movimentos se encontra no ponto de partida da história de ab-
anti-sistêmicos latino-americanos? E tudo isso para solutamente todos os povos humanos, relacionada
compreender outra questão mais geral: que tipo de com a vigência, também originária, das estruturas
democracia ainda é possível reivindicar e defender comunitárias da organização social humana5. Pois
neste início do século XXI cronológico, para além enquanto as sociedades humanas conversam essa
de suas limitadas e cada vez mais caducas formas estrutura comunitária, o governo constitui seu re-
burguesas e capitalistas, e dentro do horizonte das flexo, isto é, representa um governo de toda a co-
urgentes transformações sociais radicais que recla- munidade e, portanto, não obstante as múltiplas va-
mam dia-a-dia todas as populações e todos os po- riantes históricas concretas, forma-se um governo
vos do planeta? direto do povo, um autogoverno da comunidade
Para responder a este conjunto de urgentes sobre si mesma, enfim, uma verdadeira democracia
questões, cabe agora revisar algumas das formas em seu sentido literal e original.
concretas de democracia que, ao longo da histórica No entanto, e igualmente como explicou Marx,
humana, têm sido praticadas e desenvolvidas pe- o próprio crescimento e desenvolvimento dessas
las diversas sociedades e pelos diferentes povos de comunidades criam as condições de sua dissolu-
nosso cada vez menor Planeta Terra. ção, a partir do nascimento da propriedade privada
em lugar da propriedade coletiva, do trabalho indi-
Os percursos deformados da democracia na vidual em substituição do trabalho coletivo, do sur-
longa duração gimento das classes sociais em lugar da forma de
comunidade, e do desenvolvimento de um Estado
“(...) trata-se de uma democracia quando os de classe, junto a um governo de classe, frente ao
homens livres e pobres, formando a maioria, são anterior Estado e ao governo ainda comunitários.
senhores do Estado, ao passo que há oligarquia quando Neste sentido, junto ao processo de dissolução
governam os ricos e os mais nobres, das formas comunitárias da organização social, e
embora inferiores em número.” paralelamente ao concomitante desenvolvimento
de uma sociedade dividida em classes sociais, co-
Aristóteles, A política, 357-322 A.C. meça também a se dar o processo de desvirtuação
do sentido original do termo de democracia, cujo para começar a existir e trabalhar, na verdade, em
significado passa a ser lentamente deslocado de função dos interesses das classes exploradoras e
“governo do povo” ou autogoverno popular para o dominantes da sociedade6.
de “governo eleito pelo povo”, ou também “gover- Dessa forma, na medida em que avança a subs-
no que existe em nome do povo”, que “representa” tituição da democracia direta e imediatamente
o povo, que o “encarna”, que atua “em seu lugar”, exercida pelo povo na direção de uma democracia
“pelos seus interesses”, “segundo sua vontade ou indireta e representativa, em que a minoria começa
mandato”, etc. Em qualquer caso, porém, já não a governar sobre o povo, em tal medida diminui o
é o autogoverno direto do povo sobre si mesmo, papel da assembléia popular como pivô e centro de
mas sim uma forma diferente de governo, que, ao gravidade da antiga democracia original (a do go-
suplantar o povo, pretende atuar e trabalhar em seu verno e autogoverno do povo), dando lugar a uma
benefício ou segundo seus interesses. Pois ao nas- democracia que gira em torno à instituição e ao
cerem as classes sociais e com elas a luta de classes, aparato de Estado como seus novos centros de es-
rompe-se a unidade da comunidade e, conseqüen- truturação. Esse processo, logicamente, termina por
temente, a unidade do povo, tornando impossível a transformar a democracia original, que se baseava
existência desse governo direto e sem mediações, no exercício permanente do autogoverno popular e
do povo inteiro e unido sobre si mesmo. E tam- no protagonismo ativo e amplamente agregador do
bém, ao ser fraturada a propriedade coletiva, dando povo em seu conjunto, numa democracia diferente,
passo à propriedade privada e individual, quebra- agora apoiada no antagonismo de classes e que se
se a realidade da existência concreta e viável do caracteriza por ser episódica e intermitente, já que
interesse coletivo como interesse único e univer- o povo pode ou não ser convocado a eleições, a
sal, para dar passo ao nascimento do conflito que consultas ou a diversas ações concretas e pontuais.
as sociedades arrastam até o dia de hoje entre um Em vez de se apoiar no protagonismo constante e
interesse “geral” (que já não é idêntico ao coletivo, universal do povo em seu conjunto, essa condição
nem possui imediatamente um caráter universal) e democrática se desenvolve a partir da passividade
os múltiplos interesses “particulares” e “individu- geral e da atividade popular ocasional e restringi-
ais”, de grupos, classes, setores e indivíduos. da, além de estar em função de critérios restritivos
Com isso, a democracia, que era o autêntico go- e excludentes, que decidem não incorporar em tal
verno e autogoverno do povo, exercido de modo democracia os escravos, as mulheres, os pobres, os
direto e sem mediações, converte-se numa forma estrangeiros, os menores de idade, os supostos cri-
de governo que suplanta todo o povo por uma mi- minais, as diversas minorias e até mesmo as maio-
noria distinta e separada, e também, de forma mais rias, segundo as diferentes épocas vividas por essa
geral, transforma-se num processo de delegação de democracia desvirtuada de seu sentido original.
funções, de atributos, de tarefas, de exercício e de Outra deformação da democracia se refere às
faculdades, que antes permaneciam como próprios funções de mando e obediência. Na democracia
desse mesmo povo e que a partir de certo momen- original o conceito corresponde diretamente com
to se concentram em apenas um pequeno grupo, a realidade de um governo do povo e as funções
numa minoria que pretende representar e encarnar de mando e de obediência se encontram unidas e
o conglomerado popular. E se talvez na origem es- interconectadas de um modo harmônico e com-
sas minorias pretenderam realmente atuar em nome plementar; na democracia representativa, porém,
do povo e de acordo com seus interesses, também essas funções de mando e obediência se separam
é evidente que, sob a influência dos interesses das radicalmente e se redefinem completamente, co-
diferentes classes dominantes e no contexto de afir- meçando na verdade a se opor, a se excluir e se
mação progressiva da propriedade privada, de múl- contradizer mutuamente. Na democracia original o
tiplos interesses particulares, do desenvolvimento povo manda a si mesmo e se auto-obedece, isto é,
da exploração econômica como fundamento geral segue a sábia máxima de “mandar obedecendo” e
da economia social global e da crescente desigual- de “obedecer mandando”, a partir da qual se au-
dade social, essas minorias deixaram de atuar em togoverna harmonicamente. Em contraste, na de-
função dos interesses e das vontades populares, mocracia que se deforma por estar apoiada numa
sociedade dividida em classes, a função do mando mentira e impostura, pois encobre, sob o suposto
se separa da função de obedecer e adquire um sen- sentido liberal de governo “do” povo, a crua e cada
tido prepotente, autoritário, despótico e impositi- vez mais clara e óbvia dominação de uma classe
vo, sentido este que a acompanha desde os tem- sobre as outras e de certos grupos e setores sobre a
pos da antiga Grécia até a atualidade. A função de imensa maioria da população. E é com base nessa
obediência, agora desvinculada do mando e a ele impostura presente na democracia formal de modo
oposta, torna-se então uma ação de submetimento, estrutural e inevitável e afirmada por séculos e mi-
de humilhação, de degradação, de subalternidade e lênios, que tanto Marx como Lênin, entre muitos
de rebaixamento frente ao mando7. outros, puderam criticar a democracia capitalista e
Portanto, passamos de uma forma originária de burguesa, revelando-a como uma simples fachada
democracia, que era unitária, fluída e harmônica, e ou reduzida ao também secular domínio dos capita-
na qual o povo mandava e também obedecia (man- listas em particular, e, em geral, de todas as classes
dava obedecendo), para outra forma de democra- dominantes ao longo da história da humanidade8.
cia, que é desgarrada, competitiva, confrontante, Por outra parte, é lógico que se a democracia
difícil e contraditória, e na qual um pequeno grupo original se perverte e se esvazia de sentido, passan-
manda despoticamente e a maioria é obrigada a do de real a puramente formal, e de harmônica e
obedecer de forma relutante, dentro de um contex- unitária a desgarrada e conflituosa, tal democracia
to de constante luta, oposição, competição e con- perde então sua capacidade de projetar e refletir o
flito entre certas classes e entre diversos grupos, interesse universal como superior aos múltiplos in-
empenhados todos em tratar de conquistar essa teresses particulares, sendo cada vez mais incapaz
posição hierárquica original e originária de man- de construir consensos reais em uma determina-
do despótico. Além disso, ao se desvirtuar a de- da sociedade e deixando no lugar dessa tendência
mocracia original e originária, passando de direta consensual a impiedosa “guerra de todos contra to-
a representativa e separando as funções do mando dos” e, mais especificamente, o conflito entre clas-
e da obediência, na medida em que se transforma ses sociais antagônicas, entre grupos de interesses
de uma democracia harmônica a uma democracia diversos e entre setores, frações, agrupamentos so-
conflituosa e competitiva, tal democracia se esva- ciais e diferentes indivíduos. Pois é claro que aque-
zia de conteúdo e de sentido, pois deixa de ser o la democracia que é realmente o autogoverno do
verdadeiro autogoverno do povo, para passar a ser povo pode fazer com que surja facilmente a von-
um governo supostamente “eleito pelo povo”, e não tade coletiva, o interesse universal e o verdadeiro
mais o próprio povo se autogovernando. De real, a consenso da comunidade, através dos mecanismos
democracia passa a ser formal, ou seja, de um go- do diálogo fraterno, do escutar atento ao outro, da
verno realmente do próprio povo sobre si mesmo dialética e interpenetração graduais de posições
se transmuta a uma nova variante de governo de inicialmente divergentes, e da clara vocação de al-
uma minoria sobre o povo, um governo que, não cançar acordos comuns que sejam os mais benéfi-
obstante suas intenções, sua retórica e até mesmo cos para toda a comunidade em seu conjunto.
suas ações concretas, encontra-se já separado do Em contraste, a democracia formal e represen-
povo e lhe é claramente distinto. E, como é lógico, tativa, que se apóia no antagonismo de classes, será
o passo entre a separação e distinção em relação ao na verdade uma democracia eternamente dividida
povo e a imposição e dominação sobre o mesmo em maiorias e minorias, marcada pela luta e con-
é um passo que se abre facilmente, principalmen- traposição constantes das vontades e interesses das
te nas sociedades marcadas pela existência da luta classes, dos grupos e dos indivíduos, que somente
de classes e pela conseqüente vocação de domínio poderá funcionar mediante os mecanismos da im-
político e governamental dos exploradores e domi- posição mecânica do ponto de vista majoritário,
nadores sobre os explorados e submetidos. da marginalização constante das minorias, da po-
Trata-se da passagem de uma democracia que larização e acirramento das diferenças e posturas
era real a outra que é puramente formal ou, em diversas, e da impiedosa lógica de fazer com que
outras palavras, de uma democracia verdadeira sempre prevaleça um interesse particular sobre
a outra que possui inevitavelmente certo grau de todo o resto.
Assim, se a democracia originária é uma demo- originária do período histórico inicial das socie-
cracia qualitativa, consensual, viva e de conteúdo dades humanas, construída sob o esquema comu-
coletivo, em que o ponto de vista coletivo, livre, nitário da organização social, e, por outro lado, a
voluntária e conscientemente assumido, torna-se democracia desvirtuada e deformada, que corres-
dominante (o “nós” dos dignos companheiros neo- ponde a sociedades humanas divididas em classes
zapatistas9), contrariamente a democracia de longa sociais e que se estende ao longo dos últimos dois
duração, que corresponde à longa vigência das so- milênios e meio vividos por esta mesma história
ciedades divididas em classes sociais, termina por das sociedades humanas.
ser uma democracia quantitativista, ocupada sem- De fato, todos os traços que apontamos como
pre em medir maiorias e minorias, sendo também característicos desta última democracia, deforma-
uma democracia desgarrada, inerte, mecânica e da e desvirtuada em relação à primeira, foram se
atravessada todo o tempo por conflitos de interes- afirmando e se estendendo lentamente, ao longo
ses, vontades e posições de classe, grupos e indi- dos séculos, até culminar nas formas da democra-
víduos, imersos todos na hobbesiana lógica de que cia burguesa capitalista ainda operante, apesar de
“o homem é o lobo do homem”. estar atualmente submersa claramente numa crise
Além disso, e de modo complementar, en- terminal e inevitável. Pois os limites dos que pa-
quanto a democracia real do autogoverno popu- dece a democracia atual, apontados anteriormente,
lar é uma estrutura simples, funcional, barata, não são apenas os limites da democracia burgue-
que constitui uma verdadeira “corporação do sa e capitalista, mas sim os limites dessa forma de
trabalho” (segundo a expressão de Marx sobre a democracia classista e deformada, que inicia seu
fundamental experiência da Comuna de Paris), a período de existência nos tempos da Grécia antiga
democracia formal e desvirtuada, que surge como de Aristóteles e que, vinte e quatro séculos depois,
resultado do nascimento das sociedades classis- chega a sua etapa de crise definitiva e terminal.
tas, representa uma estrutura inutilmente compli- No entanto, e felizmente, os problemas so-
cada, hipertrofiada, pouco funcional e pouco efe- mente se colocam à humanidade quando já estão
tiva, conformada por toda uma intrincada gama dadas as condições de sua solução. Neste sentido,
de instituições, grupos, contingentes, instâncias a crise terminal da democracia desvirtuada que
e aparelhos extremadamente complicados e tam- acompanha todas as sociedades de classes se dá
bém desmesuradamente caros e parasitários das simultaneamente ao surgimento de uma “Outra
sociedades que os alimentam. democracia”, que se afirma no centro dos novos
Frente à democracia real, que simplesmente movimentos anti-sistêmicos da América Latina10 e
assume e resolve os problemas da comunidade não apenas recupera muitos dos traços da antiqü-
num ambiente de tolerância, de fraternidade, de íssima democracia real, originária e comunitária,
diálogo e de respeito mútuo entre todos os mem- mas também os enriquece com as múltiplas e com-
bros, a democracia formal, ao contrário, emprega plexas lições derivadas da experiência das lutas de
as instâncias misteriosas e intimidadoras da buro- classes oprimidas e subalternas, experiência esta
cracia e do aparelho governamental, reafirmando vivida durante as últimas treze décadas. Porque é
seu poder e vigência mediante os corpos o exército claro que a partir da importante experiência da Co-
e da política, e construindo todo esse complicado, muna de Paris as classes populares começaram a
inútil e ocioso castelo de instituições, aparelhos e ensaiar a construção de uma democracia distinta,
personagens como o parlamento, os palácios de de uma nova forma de democracia direta, radical-
governo, as câmaras, os tribunais, as instituições mente diferente em relação à democracia burguesa
eleitorais, os governos municipais, estatais e fe- e capitalista então dominante ou mesmo em rela-
derais, os partidos políticos, os representantes de ção à deformada democracia classista caracteriza-
todo o tipo, como senadores, deputados, prefei- da anteriormente, abrindo assim um caminho que,
tos, e um longo etc., tão absurdo quanto inútil e após diversas mediações, culmina agora nas va-
pouco eficiente e funcional. riadas formas de construção e expressão de uma
Tais são, muito resumidamente, alguns dos tra- nova democracia, de uma realmente “Outra De-
ços que caracterizam, por um lado, a democracia mocracia”, praticada e defendida pelos novos mo-
vimentos anti-sistêmicos da América Latina, pelo dadeiras figuras do autogoverno popular, que se
neozapatismo mexicano ou pelo Movimento dos assemelhavam espontaneamente às versões origi-
Trabalhadores Rurais Sem Terra brasileiro, e tam- nais da democracia, aquela real, direta, substanti-
bém por certos setores dos piqueteiros argentinos, va e comunitária.
ou certos grupos das comunidades indígenas mais Assim, desde a experiência heróica da Comuna
radicais e de esquerda da Bolívia e do Equador. de Paris, até as atuais formas de democracia que se
E se num sentido imediato essas novas figuras e ensaiam nas Juntas de Buen Gobierno Neozapatis-
formas da democracia já configuram uma clara tas, nos Assentamentos dos Sem Terra no Brasil, ou
alternativa frente à crise terminal da democracia em alguns Bairros Piqueteiros da Argentina, entre
capitalista, e inclusive da democracia classista outros, passando pelo governo dos Soviets russos
em geral, em termos mais profundos podem ser no período anterior à morte de Lênin, pela experi-
consideradas também como um possível embrião ência dos Conselhos de Fábrica de Turim dos anos
de alguns dos elementos que serão incluídos nas vinte, ou então pelo complexo processo da Revo-
futuras formas a serem adotadas, numa sociedade lução Cultural Chinesa11, o que observamos reite-
mundial não mais capitalista, pelas figuras do au- radamente é um claro processo no qual, ao se desa-
togoverno e pelas práticas de gestão e resolução tar a enorme e riquíssima criatividade das classes
dos assuntos comuns da comunidade. subalternas, as desgastadas e empobrecidas formas
de democracia capitalista ainda operantes tendem a
A nova e muy otra democracia para o século ser negadas e transcendidas, sendo substituídas por
XXI cronológico*** diversas variantes de uma nova e bem outra demo-
cracia, que por sua vez recupera o sentido original
“(...) e vemos que é preciso mudar, e que man- do termo e supera realmente, no sentido hegelia-
dem os que mandam obedecendo, e vemos que no – aufhebung –, tanto a deformada e decadente
essa palavra que vem de longe, para nomear a democracia classista dos últimos dois milênios e
razão de governo,‘democracia’, é boa para os meio, quanto a luminosa democracia antiga da eta-
mais e também para os menos.” pa comunitária original da história humana.
Pois essa verdadeira outra democracia, encar-
Comitê Clandestino Revolucionário nada pelas classes populares nas experiências de
Indígena do EZLN, governo antes mencionadas, não é uma simples có-
Comunicado de 26 de fevereiro de 1994. pia ou ressurreição da democracia original, direta
e comunitária, mas sim uma forma nova e superior
Se analisarmos com cuidado a experiência acu- de democracia, tão distinta e tão outra que talvez já
mulada pelos movimentos anti-sistêmicos de todo não devesse ser chamada de “democracia”. Trata-
o planeta nos últimos cento e trinta anos, veremos se de uma forma inédita de democracia, que ao pre-
que em todas as experiências de construção de go- figurar as possíveis formas de “governo” de uma
vernos levadas a cabo pelas classes subalternas, nova sociedade, na qual já não existirão classes
através desses movimentos anti-sistêmicos, tem sociais, aproxima-se à simples “administração téc-
se instaurado uma forma radicalmente diferente de nica dos assuntos comuns” ou à simples resolução
democracia, outra democracia, que se afasta do ca- prática dos problemas coletivos, a partir da lógica
minho seguido pela democracia representativa pró- neozapatista do “mandar obedecendo”, claramen-
pria das sociedades classistas e retoma em grande te contraposta e superior às conhecidas formas do
medida diversos traços da democracia original, di- “mal governo” e da pobre democracia da qual pa-
reta e comunitária, da verdadeira democracia, que decemos durante séculos e milênios e ainda sofre-
era idêntica ao autogoverno do povo. mos atualmente em todas as nações do mundo.
Através de ricos e importantes episódios, as Por isso, em todos os casos de construção de
classes subalternas puderam começar a esboçar a outros governos por parte das classes populares e
edificação de suas próprias formas de governo e, subalternas existe um retorno às formas da demo-
com isso, foram construindo formas do genuíno cracia direta, não representativa, mas também, e ao
“governo do povo”, ou seja, foram criando ver- mesmo tempo, ocorre uma recuperação distinta da
relação de “representatividade”, relação esta que, te essa nova forma de representatividade, na qual
longe do caráter suplantador das democracias clas- os representantes não deixam nunca de ser parte do
sistas, e em especial da democracia capitalista, é coletivo, nem de estar vinculados a ele, cumprindo
reformulada no sentido da real representatividade, simplesmente a função de operadores e executores
com representantes revogáveis em todo o momento, práticos, de viabilizadores logísticos das decisões
que devem satisfações permanentemente e que se específicas das assembléias populares13.
encontram sempre submetidos ao poder soberano A outra democracia dos novos movimentos
e superior da Assembléia Popular. Tendo sido ins- anti-sistêmicos latino-americanos igualmente al-
tituído pela primeira vez na essencial experiência cança a eliminar e transcender o caráter passivo,
da Comuna de Paris, esse traço se repete agora no- episódico, restritivo e realmente elitista da demo-
vamente em todos os movimentos anti-sistêmicos cracia classista, e o faz não somente para retornar
da América Latina, como, por exemplo, na consig- aos contornos da democracia comunitária, que era
na neozapatista das Juntas de Buen Gobierno, que direta, ativa, permanente, abrangente e integrado-
proclama que os membros desse Buen Gobierno ra, mas também para agregar a essas características
devem sempre “Representar e não suplantar12.” uma base mais sólida. E isso se dá de várias formas,
A nova democracia realmente representativa e seja pela vinculação do protagonismo das bases
não suplantadora está apoiada nesse processo de dos movimentos com a planificação consciente das
síntese complexa e superante, tanto da antiga de- tarefas a executar por parte de seus representantes,
mocracia comunitária, quanto da deformada demo- pela articulação do caráter de participação perma-
cracia classista, de modo que não apenas devolve o nente das assembléias populares com a regulação
protagonismo direto à imensa base da pirâmide so- inteligente dos âmbitos de decisão relacionados
cial e à vasta maioria dos coletivos de base dos mo- aos coletivos e aqueles que podem ser assumidos
vimentos, mas também constrói uma forma nova e cotidianamente por seus “delegados” ou coordena-
superior de representação, concebida estritamente dores, ou também pela síntese da dimensão abran-
como real expressão desse mesmo protagonismo gente e integradora dos processos decisórios e da
popular direto. Porque ao reposicionar a assem- definição dos rumos globais dos movimentos junto
bléia popular como órgão supremo encarregado de ao fundamental respeito e recuperação inteligente
tomar todas as decisões e diretrizes importantes do dos pontos de vista de todas as diversas minorias.
movimento e da luta, e ao estabelecer mecanismos O modelo novo e inteligente de democracia
permanentemente vigentes de supervisão de tais resgata o protagonismo da base do movimento, ao
assembléias sobre seus representantes, elimina-se mesmo tempo em que utiliza os instrumentos de
assim a possibilidade de suplantação dos coletivos planificação, regulação e flexibilidade, e está na
pelos representantes e também se assegura que o prática de todos os movimentos anti-sistêmicos da
destino global do movimento seja sempre, e em América Latina, como, por exemplo, no Movimen-
qualquer circunstância, uma função do próprio mo- to dos Sem Terra, considerando que em seus Con-
vimento como totalidade, isto é, do vasto conjunto gressos são definidos, de um modo amplamente
de suas assembléias populares e dessa imensa base democrático e participativo, os rumos e as políticas
que constitui seu corpo em geral. gerais a seguir por parte de todo o movimento até
Entre os piqueteiros argentinos, por exemplo, a celebração do seguinte Congresso, de uma for-
essa nova forma de representação se expressa atra- ma que também mantém e resguarda a autonomia
vés da idéia de que os “representantes” do movi- dos Setores, dos Coletivos e dos Assentamentos
mento são exclusivamente “coordenadores”, e não que conformam esse vasto movimento. Tudo isso
“Presidentes”, nem “Secretários”, nem nenhum des- seguindo um esquema no qual, de maneira cons-
sas denominações estrondosas e auto-afirmativas cientemente assumida, a direção é coletiva e par-
próprias dos velhos movimentos sociais, sendo que te dela está obrigada a viver dentro dos próprios
tal função de “coordenação” deve ser constantemen- Assentamentos; as regras de funcionamento geral
te rotativa, além de ter como impulso o “serviço à do movimento são definidas por todos e assumidas
comunidade”. Ao insistir que no movimento “nin- por todos voluntariamente; a organização se adapta
guém está acima de outro”, instaura-se precisamen- a seus membros e não o contrário, estabelecendo a
divisão e atribuição das tarefas em função da di- nin defenderam a idéia da extinção da democracia,
versidade de habilidades e características de seus ao argumentar que quando as sociedades humanas
membros; e a busca pelo consenso nas decisões, o aprendam a se auto-regular socialmente, e os indi-
desejo consciente de refletir nestas decisões cole- víduos aprendam a regular por conta própria seu
tivas o verdadeiro “sentimento generalizado” das comportamento social, então a solução dos assun-
bases, leva a negar a intimidação mecânica das tos coletivos – que é precisamente a tarefa prin-
minorias quantitativas, de modo a postergar uma cipal de qualquer possível “governo” – se torna-
possível decisão até o próximo Congresso ou até rá uma tarefa puramente administrativa e técnica,
um momento posterior, em que já tenha sido possí- dissolvendo a necessidade de qualquer governo, do
vel construir ou alcançar tal semi-consenso ou um próprio Estado, até mesmo da política, e, portan-
claro consenso majoritário entre seus membros14. to, de toda possível democracia. Por isso afirmam,
A democracia a que fazemos referência tam- numa linguagem um tanto hegeliana, que a mais
bém unifica o mando e a obediência, dando novo ampla e completa realização da democracia é, ao
significado a ambas as funções e convertendo o mesmo tempo, sua própria extinção.
“Mandar Obedecendo” num processo assumido Enquanto não chegamos a esse ponto do desen-
voluntária e conscientemente, numa relação que volvimento histórico, porém, é claro que a outra
de fato tende à verdadeira dissolução das diferen- democracia, distinta e superior, já está funcionan-
ças entre o mandar e o obedecer, a partir do desen- do nas Juntas de Buen Gobierno neozapatistas, nos
volvimento da auto-regulação consciente e do au- Acampamentos e Assentamentos dos Sem Terra do
to-disciplinamento da própria comunidade em seu Brasil, nos Bairros Piqueteiros Autonomistas da
conjunto e de cada um dos seus membros. Além Argentina, e igualmente nas comunidades indíge-
disso, tal democracia não apenas supera aquela nas mais avançadas, por exemplo, da Bolívia e do
democracia desgarrada e confrontante, puramen- Equador15. Pois são esses novos movimentos anti-
te formal e mentirosa, que encobre o domínio de sistêmicos da América Latina que neste momento
uma classe, mas também avança frente à simples estão transcendendo e superando, em sua prática
democracia unitária, real, que era expressão dire- cotidiana e em suas diversas lutas, a cada vez mais
ta das comunidades originárias, para então prati- limitada e decadente democracia capitalista, que,
car a outra e realmente nova democracia, também imersa em sua crise terminal e definitiva, não en-
harmônica e real, mas agora muito mais complexa contra mais saídas para os próprios problemas e
e sofisticada, democracia que reflete uma nova e processos que ela mesma engendrou.
superior forma de comunidade, ou seja, essa co- A outra democracia – conectada orgânica e
munidade que não é outra coisa que a “associação necessariamente, como afirmam os companheiros
voluntária de homens livres” proposta há mais de neozapatistas, com outra forma de fazer política,
um século e meio por Marx. outro modo de conceber o governo, e outra noção
Em suma, essa nova democracia não é quanti- de autonomia – representa não apenas um objetivo
tativa, nem inutilmente volumosa e ineficiente, e próximo a ser alcançado por todos aqueles novos
tampouco ridiculamente cara, mas sim uma demo- movimentos anti-sistêmicos, do México, da Améri-
cracia diferente, superior, qualitativa, que tende na ca Latina e de todo o mundo, mas é também, a prin-
verdade à sua própria extinção, sendo novamente cípio, um mecanismo e um modo necessário para
uma verdadeira “corporação de trabalho”, que re- o funcionamento cotidiano de todos os coletivos
solve de forma simples problemas complicados e e todas as organizações que tentam avançar num
que é quase ou totalmente gratuita. combate genuinamente anti-capitalista e anti-sistê-
Neste sentido, é importante lembrar que, mesmo mico, em qualquer parte de nosso planeta16. Pois
considerando essa forma superior esboçada pelas se é óbvio que dos objetivos gerais de todos esses
classes subalternas nos últimos 139 anos, a outra movimentos anti-sistêmicos da América Latina, e
democracia segue sendo uma forma específica de inclusive dos movimentos anti-capitalistas de todo
governo e, portanto, constitui ainda uma dimensão o mundo, será o de lutar por instaurar em nossas
particular dessa atividade humana conhecida como respectivas nações uma verdadeira democracia,
“a política”. Mas tanto Marx e Engels como Lê- isto é, um verdadeiro governo do povo, construí-
do sob a lógica do “Mandar Obedecendo”, e que se refere ao papel e ao estatuto de todos os repre-
tal governo não seja formal, mentiroso e velador sentantes dentro dos nossos respectivos movimen-
do domínio de qualquer minoria possível, também tos. Já que, tal como na Comuna, os representantes
deve ser evidente que esse objetivo deve começar a devem ser imediatamente revocáveis em qualquer
ser construído aqui e agora, no centro de todos os momento, estando obrigados a prestar contas per-
nossos movimentos e, portanto, no interior de cada manentemente, sem receber contribuição alguma
uma das organizações e dos coletivos que compõe por seu trabalho, nem nenhuma vantagem de or-
os movimentos anti-sistêmicos. dem material ou simbólica que vá além do legíti-
Assim, o objetivo mediato de construir outra mo reconhecimento por parte do coletivo, ou do
democracia, primeiro em escala nacional, e mais válido reconhecimento social pelo simples cum-
adiante em escala mundial, é também simultane- primento cabal de sua tarefa de real e verdadeira
amente um objetivo imediato de estender, desde representação de seus próprios coletivos. E esse
já e em todos os espaços possíveis, os princípios novo estatuto e papel dos representantes também
universais que a outra democracia implica. Neste podem ser recriados e reproduzidos nos sindicatos,
sentido, pensamos que é possível estimular formas nos coletivos, nos bairros, nas universidades e nas
diversas de democracia direta, como as formas bá- organizações mais diversas.
sicas e dominantes de toda essa enorme rede pla- A outra democracia dos nossos coletivos deve-
netária dos movimentos que hoje lutam contra o rá lutar também, conscientemente, contra os ve-
capitalismo de uma forma radical e genuinamente lhos ressaibos do autoritarismo, da prepotência, do
anti-sistêmica, o que significa que a palavra decisi- verticalismo e do avassalamento, próprios da de-
va em todas as questões fundamentais deve voltar mocracia formal burguesa e capitalista, dando im-
a ser das Assembléias Populares, isto é, dos con- pulso a novas formas de trabalho, de discussão, de
juntos que conformam a base fundamental de um busca de acordos, que sejam realmente dialógicas,
sindicato operário, ou de um coletivo qualquer, ou horizontais, fraternas e orientadas a buscar e cons-
de uma organização camponesa, ou de um bairro truir de modo tendencial decisões realmente con-
organizado, ou de uma universidade, ou então de sensuais. E tais formas novas devem ser profunda-
um grupo intelectual ou artístico, ou de uma as- mente respeitosas quanto aos pontos de vista das
sociação de qualquer tipo. Somente ao devolver o diferentes minorias, e ao mesmo tempo deverão ser
protagonismo principal às assembléias de base de mais qualitativas que quantitativas, outorgando o
nossos movimentos conseguiremos que o conjunto mesmo valor ao ponto de vista das maiorias que
das demandas desses movimentos anti-sistêmicos ao das minorias, e buscando harmonizar tanto as
surja realmente por baixo e à esquerda, assegu- convergências, como também, e principalmente, as
rando o compromisso vital e profundo de todos os diferenças, a partir da percepção consciente de que
participantes desses movimentos com as exigên- o que todos nós estamos tentando construir é real-
cias gerais e as reivindicações específicas, além mente “Um mundo em que caibam muitos mun-
de contribuir para que nossos movimentos em sua dos”. Além de ser parte de lógicas profundamente
totalidade construam a partir da situação concreta espontâneas de todas as classes sociais subalternas,
a dinâmica necessária para edificar, mais adiante, isto é, das lógicas subterrâneas que provêm dos es-
essa outra democracia em escala nacional e logo paços localizados abaixo e à esquerda, as novas ló-
mundial. Colocado em termos clássicos, próprios gicas de funcionamento de nossas organizações e
da revolução russa, devemos voltar a reivindicar coletivos são também as únicas que nos permitirão
em todas as partes aquela consigna de “Todo o Po- manter uma postura teórica e uma prática cotidiana
der aos Soviets”, o que, para nossos casos contem- realmente anti-capitalistas e anti-sistêmicas.
porâneos, reflete-se na idéia de que todo o poder Enfim, forma-se outra democracia, a incluir
deve residir, ser encarnado e se manter nas Assem- como um dos objetivos fundamentais de todos os
bléias de Base de todo tipo. movimentos anti-sistêmicos do mundo, da Améri-
Um processo como esse, naturalmente, deve ca Latina e de cada um de nossos países, e também
ser complementado, por exemplo, com as lições da como mecanismo cotidiano para a organização e o
Comuna de Paris, entre outras experiências, no que funcionamento atual de todos os nossos movimen-
tos anti-capitalistas, alguma coisa que parece ser e _____. El Estado y la revolución. Moscou: Progre-
seguramente será, segundo as palavras dos sábios so, [1917] s/d (b).
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3
Por certo, pensamos que esta crise terminal da 7
Sobre este problema das funções de mando e
democracia burguesa capitalista hoje realmen- obediência, e sobre as múltiplas e nem sempre
te existente não é mais que uma das múltiplas bem compreendidas implicações do inteligente
expressões da crise global e também terminal oxímoro neozapatista de “mandar obedecen-
de toda civilização capitalista. Sobre este pon- do”, ver nosso livro, Rojas (2010a); neste livro
to, ver Wallerstein (2005 e 1996). Ver também desenvolvemos a conexão deste oxímoro com a
nosso livro, Rojas (2007a). idéia neozapatista da “Otra Democracia”, junto
com seus vínculos com “La Otra Política”, “El número 8 da revista mexicana Contrahistorias,
Otro Gobierno”, e, de modo mais geral, com as publicado em 2007, e todas as apresentações es-
noções de autonomia política e de autonomia tão disponíveis para consulta na página “Radio
global dos dignos indígenas neozapatistas. Ain- Insurgente”, a rádio dos neozapatistas: http://
da sobre este tema, também pode ser consultado www.radioinsurgente.org.mx.
nosso livro, Rojas (2010b).
13
Sobre as características dessas novas formas de
8
Sobre este tema, sempre é proveitoso reler os tex- democracia entre os piqueteiros argentinos, ver,
tos clássicos, por exemplo, de Marx (1978), La por exemplo, os livros de Raúl Zibechi (2004),
guerra civil en Francia; e de Lênin [1917] (s/d.) Raúl Isman (2004) e de Maristella Svampa e
(b), El Estado y la revolución. Sebastián Pereira (2004).
9
Sobre a sábia prevalência do “nós” coletivo nas 14
Em relação a este novo modo de funcionamento
comunidades neozapatistas – o que, por certo, democrático entre os Sem Terra, ver a entrevis-
também está presente nas comunidades indí- ta de João Pedro Stédile (2003) e de Ademar
genas da Bolívia e do Equador, entre outras Bogo (2010). Ver também o número 273 do
–, ver os interessantes trabalhos de Carlos Jornal dos Trabalhadores rurais Sem Terra, que
Lekensdorf (1996 e 2002). está dedicado a resumir os acordos e as vicissi-
tudes do Quinto Congresso Nacional.
10
Sobre os novos movimentos anti-sistêmicos da
América Latina, ver nosso ensaio em Rojas, 15
Sobre os casos mencionados do Equador e da
2007b; e também nosso livro América Latina Bolívia, vale a pena revisar a entrevista de
en la encrucijada (ROJAS, 2009a). E sobre a Marlon Santi (2008), dirigente atual da CO-
“Outra Democracia” desenvolvida pelo neoza- NAIE equatoriana, publicada no número 11
patismo mexicano, conferir nosso livro Mandar de Contrahistorias, assim como a entrevista
Obedeciendo. Las lecciones políticas del neo- de Felipe Quispe (2009), dirigente do Movi-
zapatismo e também o ensaio de Sergio Rodri- miento Pachakutic de Liberación de Bolivia,
guez Lascano (2007). publicada no número 12 da mesma revista.
11
Sobre estas diversas experiências mencionadas 16
Sobre este ponto, ver nossos ensaios: Rojas, 2007c
de construção de governos por parte das classes e Rojas, 2009b. Ver também nossos livros já ci-
populares e subalternas, colocando em prática tados: América Latina en la encrucijada; Chia-
uma Outra democracia, conferir, por exemplo, pas, Planeta Tierra; e Mandar Obedeciendo. Las
Karl Marx, La guerra civil en Francia, op. cit.; lecciones políticas del neozapatismo mexicano
Vladimir Ilich, Lenin, [1917] s/d (a); Antonio e de Raúl Zibechi (2006).
Gramsci, 1973 e 1997; K.H. Fan (comp.), La
revolución cultural china. Documentos, Ed. Carlos Aguirre Rojas
ERA, México, 1970; e ver também nosso livro * Pesquisador da UNAM (Universidad Nacional
Mandar Obedeciendo. Las lecciones políticas Autónoma de México), professor da Escola Nacio-
del neozapatismo mexicano, op. cit.. nal de Antropologia e História.
12
Sobre este princípio do Buen Gobierno dos neo- ** Texto originalmente elaborado em espanhol.
zapatistas, que é parte dos “sete princípios” pro- Tradução: Fernando Correa Prado.
clamados por eles, vale a pena revisar as apre-
sentações dos próprios companheiros no Primer *** Apenas no título desta parte foi mantida a for-
Encuentro de los Pueblos Zapatistas con los ma original “muy otra”, por se tratar de uma ex-
Pueblos del Mundo, em especial a Mesa Inau- pressão especificamente zapatista. [N.T.]
gural sobre o tema “Autonomia e Outro Gover-
no”. Parte dessas apresentações pode ser lida no
ARTIGO
Resumo: Baseado na teoria do valor de Karl Marx e na teoria marxista da dependência de Ruy Mauro Marini, o
presente artigo desenvolve a tese de que a superexploração do trabalho, até pouco tempo um atributo das economias
periféricas e dependentes, estendeu-se por todo o mundo na era neoliberal em decorrência das transformações ocor-
ridas no mundo do trabalho. Os resultados socioeconômicos foram o aumento da jornada de trabalho, a queda dos
salários, a precarização e perda dos direitos sociais dos trabalhadores e o aumento do desemprego, do subemprego e
da pobreza.
Abstract: Based in Karl Marx’s value theory and in Ruy Mauro Marini’s marxist theory of dependency, the present ar-
ticle develops the thesis that the super exploitation of labor, until recently an attribute of the peripheral and dependent
economies, has been extended throughout the world in the neoliberal era as a outcome of the transformations occurred
in the labor world. The social and economic results were the increase in the workweek, the fall of salaries, precarious-
ness and even the loss of workers’ social rights and the increase in unemployment, in sub employment and poverty.
(...) tanto a evolução do emprego na região, Medio Este y África del Norte
2,3%), e a do produto decresceu em oito dé- Tomado de World Employment Report 2001, Life at work in the information
cimos de ponto (de 4,1% a 3,3%). Foi entre economy, Ginebra, 2002, Figura 4.1, p. 30.
como saúde, educação, pesquisa e gestão. vância para estes setores, os serviços apre-
O desenvolvimento da saúde, da educação e sentaram um comportamento levemente
dos serviços governamentais acelerará estas mais dinâmico durante os últimos anos, par-
tendências (OIT, 2001: 30). ticularmente no caso do serviço doméstico,
que cresceu em média 2,4% ao ano (CEPAL,
A OIT registra tendências globais no longo pra- 1999-2000: 95-96).
zo, porém deixa passar algumas importantes mu-
danças. Por exemplo, a terceirização da economia E o México não é exceção. Entre 1980 e 1993
latino-americana se mostra nas transformações da foram criados 2,7 milhões de empregos, entre os
estrutura setorial do emprego na última década. quais o setor de serviços absorveu mais de 50% do
Neste sentido, de acordo com a CEPAL: total, seguido pelo setor agropecuário e da indústria
de construção, enquanto a indústria manufatureira
A agricultura, o comércio e os serviços so- reduziu sua ocupação (MARIÑA, 2001: 414).
ciais representavam em 1999 os ramos da Do exposto anteriormente é possível apreender
atividade econômica que concentravam o que as transformações do mundo do trabalho apre-
maior número de pessoas ocupadas; cada sentam as seguintes características:
uma delas compreendia um quinto dos em-
pregos totais. Das três, a agricultura segue a. Em primeiro lugar, a enorme brecha existen-
sendo a atividade majoritária, ao prover de te em todos os planos (econômico, social, fi-
trabalho quase 40 milhões de pessoas em nanceiro, comercial, político e cultural) entre
toda a região. No outro extremo, os serviços os países subdesenvolvidos e dependentes e
financeiros, domésticos e pessoais são os se- os países desenvolvidos do capitalismo cen-
tores com menor participação; a soma des- tral. O mesmo se reflete na crise do Estado
tas três categorias abarca aproximadamente de bem-estar e dos sistemas ford-tayloristas
15% da população ocupada, porcentagem que se associam ao mundo do trabalho.2
similar à da indústria. b. A reestruturação do Estado imperialista nos
Em contraste, o emprego no setor agrícola, centros industrializados e do Estado depen-
praticamente, se estancou nos anos noventa, dente nos países periféricos, particularmente
com crescimento médio anual que não al- na América Latina, pela ação das forças do
cançou 1%. A reduzida capacidade da agri- mercado e pelas pressões políticas do neoli-
cultura para gerar novos empregos explica beralismo na década de 1980, ajudou a abrir
em boa medida o progressivo abandono das caminho para que o capital desenvolvesse
áreas rurais – de conteúdo predominante- novos setores onde seus investimentos fos-
mente agrícola – e a migração para as áreas sem rentáveis, tais como os serviços infor-
urbanas, fenômeno já destacado como uma máticos, software, telecomunicações, ban-
das características demográficas da década. cos e seguros.
Por sua vez, o emprego nas áreas rurais tem c. Na década de 1990, irrompem novos siste-
apresentado propensão a se diversificar para mas produtivos e de organização do trabalho
ramos de atividades distintas à agricultura, que se articulam com os sistemas prevale-
com claros aumentos na participação do co- centes na região antes da chegada do capita-
mércio (de 8,2% a 9,4%), da indústria (de lismo neoliberal.
7,9% a 8,8%), da construção (de 4,1% a d. O pensamento neoliberal se consolida e se
4,8%) e dos serviços sociais (8,6% a 9,0%). projeta negativamente sobre o mundo do
O resto das atividades, entre as que se encon- trabalho.
tram relacionadas com a prestação de servi-
ços sociais, pessoais e domésticos, mostrou Ao lado desta fragmentação, reestruturação e
um crescimento similar na média, mantendo reorganização do mundo do trabalho, na América
taxas de participação relativamente estáveis. Latina também se percebe a incidência do capi-
Nas áreas urbanas, contexto de maior rele- tal financeiro especulativo que provoca cada vez
Portanto, existe uma relação direta, que Marini Como afirma Nise Jinkings (1995: 65),
reconhece, entre produtividade e superexploração
do trabalho. Daí que a aplicação das tecnologias (...) nos países do Terceiro Mundo são do-
da comunicação-informação nas economias de- minantes as práticas tayloristas/fordistas
pendentes, em lugar de permitir uma melhora nas de trabalho. Os países capitalistas avan-
condições de emprego e salário dos trabalhado- çados, cenários de inovações tecnológicas
res, acentua os mecanismos que elevam a supe- extremadamente velozes e forçadas pela
rexploração da força de trabalho. Como se não concorrência, buscam ainda um mode-
bastasse, em muitas legislações trabalhistas refor- lo próprio de organização produtiva e de
madas pelo neoliberalismo desde as décadas de relações de trabalho conforme as suas ne-
oitenta e noventa aparece a codificação jurídico- cessidades de valorização do capital. Nes-
institucional para sustentar este objetivo supremo ses países, convivem certamente os dois
do capital. modelos de acumulação capitalista, o que
Por outro lado, Alves mostra também que nos ocorre de modo específico, dependendo do
países do centro um fator político que estimula e setor produtivo e das relações de produção
difunde a superexploração é a crescente perda de estabelecidas.
poder político e de negociação dos sindicatos, pois
o movimento operário é obstaculizado ou inutili- A autora confirma a vigência do taylorismo
zado para que não crie empecilhos ao aumento da no setor informatizado dos bancos no Brasil:
jornada e da intensidade do trabalho e à queda dos “o processo de flexibilização do trabalho que
salários reais dos trabalhadores. se está experimentando nas agências e entre os
Nos países do capitalismo central, essa perda de técnicos dos departamentos, onde a maioria das
poder de negociação dos trabalhadores e dos sindi- tarefas se realiza em equipe, convive com o tra-
catos, assim como a reestruturação que realizou o balho taylorizado e empobrecido que resultou
capital no curso da década de oitenta, traduziu-se dos processos de racionalização das tarefas”
nas seguintes formas: (JINKINGS, 1995: 89).
Na lógica da imposição do mercado como mo-
(...) redução do proletariado estável, herdeiro tor do desenvolvimento capitalista, o neoliberalis-
do taylorismo/fordismo, ampliação do traba- mo desmontou os processos ligados à reprodução
lho intelectual abstrato no interior das fábri- da força de trabalho, para convertê-la em força
cas modernas, e ampliação generalizada das de trabalho flexível, polivalente e precária. Além
formas de trabalho precário (trabalho manual disso, impôs à classe operária e, em geral, a todos
abstrato), terceirizado, “part time”, desenvol- os assalariados, o contrato de trabalho temporal.
vidas intensamente na era da “empresa flexí- Na perspectiva empresarial, este tipo de contrato
vel” e da desverticalização produtiva (AN- se pode definir como um contrato de trabalho just
TUNES, 1999: 120, grifos originais). in time que
Nos países do capitalismo dependente, a in- (...) terá um amplo e importante papel na
trodução do fordismo e do taylorismo nos setores nova economia global baseada na alta tec-
dinâmicos como as indústrias automotriz e side- nologia do próximo século XXI. As em-
rúrgica, propriedade de empresas transnacionais, presas multinacionais, ávidas para se man-
que praticamente deslocaram e marginalizaram ter flexíveis e ativas frente à concorrência
outras indústrias tradicionais ligadas à dinâmica global, optam cada vez mais por contratar
dos mercados internos, reforçou o regime de supe- trabalhadores eventuais com a finalidade de
rexploração do trabalho ao combinar os métodos poder responder com rapidez às flutuações
de produção modernos com os tradicionais e apro- do mercado. O resultado será um aumento
veitar a debilidade dos sindicatos em sua defesa de na produtividade e uma maior insegurança
condições mínimas de contratação e uso da força do emprego em todos os países do mundo
de trabalho. (RIFKIN, 1997: 240).
Do mesmo modo que o fordismo, o sistema tentada por uma revolução agrícola contínua
toyotista foi introduzido na América Latina sobre num ambiente favorável graças à “saída”
a base do estado de coisas pré-existente. Isto levou que a emigração para as Américas oferecia
ao avanço da superexploração do trabalho. De fato, à pressão trazida pela explosão demográfi-
referindo-se ao fordismo no Brasil, o Departamen- ca europeia, e graças também às conquistas
to Intersindical de Estatísticas e Estudos do Traba- coloniais, que procuravam matérias-primas
lho (DIEESE) adverte que: baratas. O fordismo sustentou o compromis-
so histórico capital-trabalho facilitado pela
A implantação do regime de desenvolvi- redução do exército industrial de reserva
mento fordista (...) não veio acompanhada nos centros. No Terceiro Mundo em vias de
por mudanças sociais e econômicas, como industrialização, pelo contrário, nenhuma
o crescimento do salário, aumento da pro- destas condições favoráveis existe para evi-
dutividade, fixação de direitos trabalhistas e tar que a expansão capitalista tome formas
a construção de um Estado que dirigisse o selvagens (AMIN, 1995: 20).
desenvolvimento econômico para distribuir
a renda. Pelo contrário, o modelo de desen- As relações industriais e de trabalho na Amé-
volvimento brasileiro se caracterizou pela rica Latina se desenvolvem bloqueando qualquer
exclusão e pela reprodução de um padrão de ambiente de melhoramento das condições de tra-
pobreza que não gerou reformas estruturais balho e de vida nessas sociedades.
básicas como as reformas agrária, de seguri-
dade social, tributária, sindical e educacio- O prolongamento da jornada de trabalho
nal, entre outras (DIEESE, 1996).
O toyotismo acarreta um aumento do tempo de
A ausência de reformas estruturais no Brasil, trabalho em todas as suas formas, de modo que,
como a reforma agrária, é a causa que explica a longe de diminuir (como diz a propaganda), mani-
profunda crise social que existe no campo brasi- festam-se no mundo fortes tendências ao aumento
leiro. absoluto da jornada de trabalho para além de seu
A introdução do fordismo e do taylorismo res- limite legal e que configuram formas clássicas de
tringidos é similar à forma como a América Latina exploração de mais-valia absoluta.
se industrializou na segunda metade do século XX: Na atualidade, a jornada legal na França é de
sem reformas e para atender uma “demanda pré- 35 horas, mas são somente indicativas e sujeitas
existente” da sociedade oligárquico-latifundiária e a negação entre sindicatos e empresas. Os países
exportadora. As indústrias, como a automotriz, nos que, em princípios da década de cinqüenta, tinham
países dependentes assumiram o desenvolvimento jornadas prolongadas (Alemanha com 46,5 horas
tecnológico e a organização do trabalho vigente e Inglaterra com 43,3 horas semanais) começaram
nos centros desenvolvidos do capitalismo, assimi- a reduzi-las a partir de 1956. Entre 1963 e 1976,
laram sua administração empresarial, mas provo- França foi o país europeu que contou com o tempo
caram sérias distorções na estrutura industrial e no de trabalho mais prolongado. A partir de 1982, po-
desenvolvimento das forças produtivas ligadas aos rém, reduziu a jornada a 39 horas semanais (DIEE-
mercados de consumo de massas. SE, 1997a: 26 e ss.). Por outro lado, em 1986, Itália
Samir Amin capta o fenômeno do caráter restri- e Dinamarca reduziram a 36 horas e a Espanha a 34
to do fordismo em nossos países quando diz: horas, segundo a OIT (1997).
Contudo, em países “modelos” como a Suécia, a
A industrialização não reproduzirá aqui uma jornada de trabalho diária na atualidade é de 8 horas,
evolução social a imagem e semelhança com 45 minutos para a refeição e um pagamento de
àquela do Ocidente desenvolvido. Neste, o aproximadamente 600 dólares por mês. Na Áustria,
fordismo veio depois que a sociedade foi a jornada legal de trabalho é de 8 horas por dia e na
transformada no curso de uma longa prepa- Coréia do Sul de 45 horas semanais distribuídas as-
ração para a grande indústria mecânica, sus- sim: 8 horas por dia útil e 5 horas no sábado.8
Nos Estados Unidos os dados oficiais exibem dos trabalhadores do comércio trabalham mais do
uma jornada “legal” de 35 horas por semana, mas que a jornada prevista por lei (DIEESE, 1997b: 35-
o tempo real de trabalho tem aumentado desde a 36; 1996: 8, tabela 1).
década de 1970. Na França, para mencionar outro Na Colômbia, considerando tanto os assalaria-
caso de país desenvolvido, na indústria de confec- dos como aqueles que trabalham de forma inde-
ção se trabalha em média 15 horas por dia com um pendente, homens e mulheres, as horas de trabalho
salário médio de 20 dólares diários ou 1,33 dóla- por semana, no total das atividades econômicas,
res por hora, enquanto num país subdesenvolvido somaram 46,7 horas em 1999, contra 47 em 1998.
como o México, no mesmo setor trabalha-se em Se consideramos somente os assalariados, ou seja,
média 9 horas contínuas ao dia por um salário de funcionários e operários, o tempo de trabalho se-
4,32 dólares por jornada, isto é, 48 centavos de manal aumenta para 48,2 em 1999.
dólar por hora. Em países latino-americanos tradicionalmente
Em teoria, pensa-se que, conforme avançasse liberais como a Costa Rica, a jornada semanal em
seu desenvolvimento, o capitalismo operaria com 1999 foi de 46,8 horas para homens e mulheres
maiores índices de produtividade do trabalho (ren- (assalariados e autônomos) e aumentou no mes-
dimentos por hora do trabalhador em relação à mo ano para 49 horas quando se considera somen-
quantidade e qualidade de produção de bens e ser- te os homens.
viços). Além disso, tem-se a idéia que tal proces- No Chile as estatísticas indicam que, em 1998,
so se faria sobre a base da produção de mais-valia a jornada semanal para homens e mulheres era de
relativa, com salários aumentando e tendências à 44,1 horas para assalariados e autônomos, subin-
redução da jornada de trabalho. No entanto, nada do para 45,3 se somente se considera os homens.
disso está ocorrendo e menos no que corresponde à Em El Salvador a jornada semanal para operários e
jornada de trabalho, que tende a aumentar em mé- funcionários (homens) foi de 44,6 em 1998.
dia mundialmente. Assim, de acordo com o Anuá- No México, onde a Lei Federal do Trabalho
rio de Estatísticas do Trabalho 2000 da Organiza- estabelece, desde 1931, uma jornada legal de tra-
ção Internacional do Trabalho (OIT), publicado na balho de 48 horas por semana (seis dias), segundo
França, tanto nas atividades manufatureiras como a OIT a jornada de trabalho para operários e fun-
nas atividades econômicas em escala mundial, cionários assalariados de ambos sexos foi de 44,7
poucos são os avanços em matéria de redução do horas em 1999, aumentando para 47 horas quando
tempo total de trabalho e, ao contrário, revelam-se se considera apenas os homens. Aqui se destacam
tendências ao seu aumento absoluto. Por exemplo, o setor da pesca, onde se trabalham 55,4 horas se-
na Argentina a jornada de trabalho para os homens manais, e o setor de “transporte, armazenamento e
no emprego total, ou seja, considerando operários comunicações”, no qual a jornada média semanal
e funcionários, é de 47,2 horas de trabalho no total é de 53,9 horas.
das divisões da atividade econômica em 1998, des- Na Coréia do Sul, que foi durante muitos anos
tacando o caso da divisão de “exploração de mi- um “tigre asiático” exemplar, o tempo semanal de
nas e pedreiras”, no qual a jornada de trabalho é de trabalho para operários assalariados de ambos os
57,5 horas por semana. sexos foi de 47,9 horas em 1999 e 48,2 horas no
No Brasil, apesar da queda da jornada de traba- caso específico dos homens. Neste país também se
lho nas indústrias química e metalúrgica do estado destaca a divisão de “transporte, armazenamento
de São Paulo devido às lutas operárias e às nego- e comunicações”, onde a jornada ultrapassa as 50
ciações com o governo9, e mesmo que na Cons- horas; a indústria manufatureira, locomotora do
tituição de 1988 tenha se estabelecido a jornada desenvolvimento capitalista deste país, apresenta
legal de 44 horas, na prática o tempo de trabalho uma jornada semanal de 49,5 horas. Tudo isso ape-
vem aumentando, como se pode perceber através sar de que a jornada legal, como já se apontou, é de
das cifras sobre a Grande São Paulo, onde 42% dos 45 horas por semana.
trabalhadores têm jornadas maiores que 44 horas No Canadá, contando somente operários (mu-
semanais. Em relação aos diversos setores da eco- lheres e homens), a jornada semanal de trabalho
nomia, 42% dos trabalhadores da indústria e 52% nas atividades econômicas, que era de 39,8 horas
Os Estados Unidos permitem projetar as ten- _____. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as meta-
dências globais do capitalismo no que se refere morfoses e a centralidade do mundo do trabalho.
às condições e direitos dos trabalhadores e dos São Paulo: Cortez, 2001.
cidadãos. A revolução do mundo do trabalho
gerou três tendências nesse país: a) de contínua BOYER, R. Diversidad y futuro de los capitalis-
eliminação massiva de postos de trabalho como mos. In: Trayectorias, nº 7/8, México, UANL, sep-
efeito da introdução de novas tecnologias e do tiembre de 2001-abril de 2002.
consequente processo de automatização e de cri-
se; b) de aumento da jornada de trabalho e, por- CEPAL. Panorama Social de América Latina.
tanto, da mais-valia absoluta como mecanismo Santiago: Organización de las Naciones Unidas,
para compensar a redução sistemática dos salá- 1999-2000.
rios e dos subsídios ao trabalho, sem esquecer
as reduções do processo de produção originadas CEPAL. Panorama Social de América Latina,
pela crise, mesmo em situações em que não se 2000-2001. Santiago: Organización de las Nacio-
aplique tecnologia nem se realizem melhoras nes Unidas, 2002.
técnicas na produção e, c) de intensificação da
força de trabalho. CRÓNICA, 14 de mayo de 2000
O novo “modelo” de relações de trabalho e de
exploração introduzido pelas corporações trans- CUEVA, O. L. de la. La flexibilización de los dere-
nacionais com o apoio do Estado repousa nos se- chos laborales en la recomposición del capitalis-
guintes pilares: a) intensificação do trabalho; b) mo. México: UAM, 1997.
aumento progressivo da jornada de trabalho; c) di-
minuição dos salários reais e, d) intenso processo Dal ROSSO, S. A jornada de trabalho na socie-
de precarização da força de trabalho e do emprego, dade: o castigo de Prometeu. São Paulo: Editora
o que implica, sobretudo, na perda de direitos para LTr, 1996.
os trabalhadores; e, por fim, e) aumento do desem-
prego e do subemprego em todas as suas formas, _____. El tiempo de trabajo en América Latina y
com o conseqüente aumento da pobreza. el Caribe. Trabalho apresentado no III Congreso
À guisa de conclusão provisória, pode-se dizer Latinoamericano de Sociología del Trabajo, área
que a superexploração do trabalho deixa de ser um de Tecnología, Organización y Proceso de Trabajo,
atributo exclusivo das sociedades subdesenvolvidas grupo Tiempo de trabajo, Buenos Aires, de 17 al 20
do capitalismo dependente, fazendo-se presente tam- de maio de 2000.
bém nas sociedades desenvolvidas; sua generalização
é dada, na formação social mundial capitalista con- _____. Mais trabalho: a intensifição do trabalho
temporânea, através da extensão da lei do valor-traba- na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitem-
lho, numa ditosa aproximação da teoria do Marx. po, 2008.
5
Segundo o Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher, Governo do Brasil, baseado em dados
do IBGE, Tabulações Especiais do PNAD de
1995 a 1999; e Fundação Seade: <www.mj.gov.
br/sedh/cndm/genero/mj01.html>.
6
Giovanni Alves (2000) compreende estas mu-
danças através da transição do “toyotismo res-
tringido” da década de oitenta ao “toyotismo
sistêmico” da década de noventa do século XX
no Brasil dentro da noção de superexploração
do trabalho.
7
Para este tema cf. SOTELO VALENCIA, 2010.
8
Para dados sobre a Coréia do Sul, ver <www.
nso.go.kr/cgi-bin/sws_777pop.cgi.>
9
Nestas indústrias, a jornada de trabalho passou
de 48 horas para entre 40 e 47 horas semanais
em 1985, segundo o DIEESE (1996: 17)
10
Ver também Dal ROSSO (2008), onde o autor
mostra a tendência secular do sistema para in-
tensificar o trabalho.
ARTIGO
Dagoberto Gutierrez*
Stefano Motta**
Resumo: O artigo trata de algumas questões relacionadas ao tema do poder e da construção do sujeito histórico em
El Salvador na atualidade. Partindo da análise da materialidade da classe trabalhadora hoje, mostra-se como a vida
cotidiana desta é mais imediata, mais fragmentada, mais alienada e fora do controle do ser social. Este contexto coloca
novas barreiras ao desenvolvimento da consciência de classe e à construção de formas de organização e luta contra o
capital. A isto soma-se a institucionalização conservadora dos partidos de esquerda, como o FMLN em El Salvador,
que coloca a necessidade de construção de novas formas de poder popular. A partir destes desafios, e da particularidade
de El Salvador, serão expostas algumas ideias centrais sobre a construção de novas formas de poder popular.
Abstract: This paper tackles some issues related to power and the construction of historical subject in El Salvador
nowadays. Starting from the materiality´s analysis of the working class, it shows that daily life is today more im-
mediate, more fragmentized, more alienated and out of control of social been. This context arises new barriers in the
development of class consciousness and the construction of forms of organization and struggle against capital. Further,
other obstacle is the conservatory institutionalization of left parties, such as FMLN in El Salvador, which places the
necessity to build new forms of popular power. Starting from these challenges, and from the particularity of El Salva-
dor, we will expose some core ideas about the construction of new forms of popular power.
do dolar, até agora a produção de armas fomentou mais angustiado e frustrado por não conseguir ven-
mais guerras regionais em várias partes do mun- der sua força de trabalho por mais barata que seja
do, especialmente no Oriente Médio e na África, ou mais autoculpabilizado e autodesprezado por
e novas “guerras civis”8 (MENEGAT, 2008: 162), não ser um “bom micro-empreendedor”. O desem-
produto do aumento exponencial da violência nas prego estrutural e o forte crescimento do exército
grandes metrópoles. Aumento do desemprego, de reserva acresceram também o reino da sobre-
pauperização crescente e crescimento incontrolá- vivência e da lógica do “salve-se quem puder”,
vel do fluxo migratório do campo para as cidades minando assim a instauração e consolidação dos
criaram uma situação social explosiva. Além da laços de cooperação e solidariedade entre a classe
violência real, o capital precisa criar mais medo e trabalhadora, no seu cotidiano.
insegurança para legitimar a repressão do Estado Outra saída para o capital tem sido a crescente
(desde os caveirões do Rio de Janeiro até os ge- ampliação da esfera do mercado na mediação das
nocídios no Iraque ou Afeganistão); eis aí o papel necessidades humanas. Isso precisou de processos
chave da televisão e dos meios de comunicação de de contra-reforma, de desmantelamento do Estado
massa sempre mais sensacionalistas, que especta- e retirada de direitos, de modo que a mercadoria,
cularizam a violência em todas as formas. E com hoje, resulta presente na quase totalidade da exis-
isso também cumprem outro papel fundamental: tência humana. As receitas neoliberais instauraram
banalizar e naturalizar a violência. O cotidiano de um “Estado de mercado”, ou seja, um Estado que
hoje da classe trabalhadora é portanto mais inse- privatiza, flexibiliza, liberaliza e transfere à esfera
guro, mais isolado e individualista, pelo aumento do mercado tudo o que é possível. Junto a isto, o
do medo e da desconfiança e mais horroroso, ain- controle do Estado pelo grande capital.
da que indiferente ante o horror. O aprofundamento das políticas neoliberais foi
A outra saída comum do capital em épocas de possível através da desmobilização política opera-
crise é a destruição do trabalho e/ou um incremento da por uma estratégia sistemática de cooptação dos
da extração de mais-valia. De fato, isso se realizou, movimentos populares, por um lado, e de “gestão
através da reestruturação produtiva e de uma nova da barbárie” (MENEGAT, 2008: 171) por outro,
ofensiva contra o trabalho, liquidando conquistas isto é, a estratégia de controle do conflito social
históricas dos trabalhadores do século passado, as- através da destruição de parte dessa massa exce-
sumindo novas formas de trabalho precário, sub- dente e explosiva do exército de reserva (através da
contratado e desregulado, além do aumento de de- repressão de Estado produzindo verdadeiros geno-
missões massivas9. cídios nas periferias urbanas) ou o apaziguamento
A reestruturação produtiva (fragmentação das da sua conflituosidade (através do enorme leque
linhas de produção, trabalho temporário, trabalho de planos assistenciais que ainda não resolvem a
em casa, trabalho por tarefa, part-time, trabalho in- pauperização e a degradação social, mas têm uma
formal, etc.) tem impactos diretos na cotidianidade excelente rentabilidade política). A isto se soma a
da classe trabalhadora10, com repercussões políti- monetarização das políticas sociais, já não mais
cas importantes. Hoje é mais difícil identificar o universais, que tornam a massa excedente do exér-
conflito capital-trabalho, sobretudo por aqueles cito de reserva em sujeitos monetários em vez que
trabalhadores que sofrem da subsunção indireta ao sujeitos de direitos. Essa nova estratégia de des-
capital, sempre em maior número, como também é mobilização política não faz mais que reforçar a
mais difícil a organização da classe, devido à frag- esfera do imediatismo e da sobrevivência próprias
mentação que esta vem sofrendo. da vida cotidiana: “é melhor pensar em ganhar algo
A nova ofensiva do capital contra o trabalho agora, hoje, e resolver as mágoas ‘cotidianas” que
e essa nova morfologia do trabalho cria um novo perder tempo em lutas abstratas e ideológicas irre-
cotidiano na classe trabalhadora, não só no ser da alizáveis”. A política, junto com a sociedade, foi
classe enquanto abstração sociológica, mais frag- se mercantilizando sempre mais, o que, somado
mentada e, portanto, limitada na sua capacidade de ao acomodamento da esquerda institucional, ge-
organização e na formação de consciência, como rou um crescente descrédito da classe trabalhadora
também no ser da classe que, no seu dia-a-dia, está para com as instituições da democracia represen-
tativa burguesa. As eleições, quando não acompa- imagem: a dimensão, humana e singular, do
nhadas por processos de mobilização social, já não que pode vir a ser uma pessoa, a partir do
mais mobilizam política e ideologicamente; elas singelo ponto de vista de sua historia de vida
viraram algo ritual, cotidiano; ir votar é como ir (KEHL, 2005: 51, 53, 66, 67).
ao mercado. Com efeito, tanto os candidatos como
os votos que eles precisam são outras mercadorias O Estado se adéqua as novas formas de domina-
mais: aqueles se vendem, estes se compram. ção e, na passagem das ditaduras as democracias,
A vida inteira se mercantilizou, e as mercado- os exércitos dos 80 foram substituídos pelas multi-
rias permeiam a inteira reprodução da existência plicação de seitas religiosas, de ONG11 e de grandes
material e espiritual, conseguindo controlar e or- corporações da comunicação de massa, que já não
ganizar a inteira existência dos seres humanos, informam, só impressionam, idiotizam e fragmen-
desde escolhas de vida existenciais até as escolha tam a realidade. Os formatos mudaram para que
das atividades mais triviais. Além de exercer um tudo seja um entretenimento, um espanto ou um
controle real da materialidade cotidiana dos in- gozo, suspendendo assim o pensamento e projetan-
divíduos, a expansão da mercantilização da vida do os indivíduos em outro mundo, o virtual. Com
penetra até os recantos mais profundos da sub- a mesma eficácia operam as novas tecnologias, se-
jetividade e na formação de identidades dos se- qüestrando milhões de pessoas cada dia, por horas,
res humanos: “Lo que mediante el dinero es para frente a seus computadores (veja os fenômeno das
mi, lo que puedo pagar, es decir, lo que el dinero redes sociais tipo Orkut, Facebook, etc.), aos vide-
puede comprar, eso soy yo, el poseedor del dinero ogames, ficando longe da realidade e das próprias
mismo. Mi fuerza es tan grande como lo sea la experiências. A situação não muda com as produ-
fuerza del dinero. Las cualidades del dinero son ções artísticas (música, teatro, cinema) mediadas
mis – o de su poseedor – cualidades y capacidades pela mercadoria como nunca, banalizadas e simpli-
esenciales” (MARX, 2006: 147). “Somos apenas ficadas para atender às necessidades do consumo
aquilo que compramos e que consumimos. (...) o rápido, aqui e agora. Está claro que o consumo de
sujeito – vendedor ou comprador – acaba se iden- subjetividades reificadas, produzidas em série, tem
tificando com a mercadoria: no limite, é como se desdobramentos políticos, no que diz respeito às
você fosse o tênis que usa, ou o celular que conse- barreiras a formação da consciência de classe. Ao
gue comprar” (VIEIRA, 2005: 16-17). desconectarmos da nossa experiência da vida real e
Outro impacto que vemos da produção mer- transitarmos no mundo virtual e do espetáculo fica
cantil hegemônica na alienação dos seres huma- mais difícil enxergar as contradições de classe que
nos é, assim como colocado por Maria Rita Kehl, o capital nos coloca cotidianamente.
a perda das produções subjetivas próprias e o im- Essa nova materialidade vivida pela classe tra-
pacto que isso gera na organização das vidas coti- balhadora deixa claro que a formação de sujeitos
dianas das pessoas. históricos hoje passa também pela quebra deste
cotidiano alienado e reificado, mais mediado do
Quanto mais o individuo, convocado a res- que nunca pela mercadoria; mais imediato, frag-
ponder como consumidor e espectador, perde mentado, destrutivo e indiferente ante violência
o norte de suas produções subjetivas singula- e destruição, mais sequestrado pelo gozo, pelo
res, mais a indústria lhe devolve uma subje- desejo, pelo mundo virtual e desconectado com
tividade reificada, produzida em série, espe- o real; enfim, um cotidiano mais fora do controle
tacularizada (...). A mídia produz os sujeitos do ser social.
de que o mercado necessita. (...) as pessoas, Se tomarmos como pressuposto as conclusões
despojadas ou empobrecidas em sua subje- de Mészáros colocando o debate sobre a diferença
tividade, dedicam-se a cultuar a imagem de entre superação do capitalismo e do capital, onde
outras (...). Consome-se a imagem espeta- a primeira não supõe necessariamente a segunda,
cularizada de atores, cantores, esportistas e e que a superação da ordem do capital passa pela
alguns (raros) políticos, em busca do que se socialização dos meios de produção controlada
perdeu como efeito da espetaculização da por processos autogestionários, implicando em
uma nova forma de construir e exercer o poder, e ámbito fundamental del Estado (…) porque
pela superação das mediações de segunda ordem de esa manera el nuevo equilibrio de fuer-
(MESZAROS, 2009), a grande indagação é: como zas sociales se fortalece con los reaseguros
impulsionar esse processo em uma sociedade ain- institucionales, legales, administrativos y
da dominada pelo metabolismo do capital? Varias represivos que se necesitan para cristalizar
experiências que se propõem superar o capital têm la nueva situación y garantizar la relativa
a dificuldade de avançar por ter que sobreviver, irreversibilidad del nuevo estado de cosas
no cotidiano, dentro da sua lógica, e ficam assim que frustre el sueño restaurador de las viejas
devoradas por este, tornando-se inócuas para a or- clases dominantes. (…) Y la tercera cuesti-
dem. Como superar o limite da formação de uma ón es la puesta en marcha de la prolongada
nova subjetividade, que surja desde dentro de uma y conflictiva instauración de un nuevo or-
objetividade “cotidiana” dominada pelo reino da den económico, político y social que ponga
sobrevivência e da reificação de toda nossa existên- fin a la sociedad anterior, procediendo a la
cia? Como construir algo por fora do capital tendo socialización de la economía, de la política
que sobreviver dentro deste? Qual é a natureza das y la cultura y dando inicio a un proceso de
formas organizativas necessárias para enfrentar as transición que coloque al país en la ruta del
novas formas de dominação do capital? Qual é a autogobierno de los productores. Es decir,
natureza do poder popular que se precisa construir de la creación de una sociedad sin clases y
em tempos de reificação da vida cotidiana? sin Estado (BORON 2007: 34-35).
Entretanto, cada uma das cinco organizações político. Isso tem a ver com a natureza da FMLN
guerrilheiras construiu, ao longo dos 70, suas pró- que foi nos anos da guerra, ou seja, de 1980 até
prias organizações de massa que se articularam 1992, uma aliança política, conformada por parti-
em 1980 na Coordenadoria Revolucionaria de dos revolucionários com divergências ideológicas.
Massas. A radicalidade e massividade do movi- Aliança é quando se estabelece um acordo político
mento popular constituiram um fator central no com cimento político. Diferente de uma unidade
desenvolvimento do movimento revolucionário que se estabelece quando é feito um acordo polí-
em El Salvador. tico com cimento ideológico. O fundamento desta
Um dos elementos mais importantes que dis- aliança foi político, não ideológico. Não tínhamos
tingue a revolução salvadorenha foi o auge de um as mesmas concepções ideológicas, mas sim coin-
forte movimento de massas e sua articulação com cidíamos nos aspectos políticos. O que construía o
a guerrilha. A luta de massas jogou um papel de acordo era o fator anti, não o fator por. Quando se
propulsor fundamental na revolução. Além disso, colocava o projeto político apareciam as grandes
a principal retaguarda da FMLN foram as mas- divergências; por isso esta ampliação social não se
sas, como falou o Comandante Marcial das FPL, expressou no aprofundamento do projeto político.
“nuestras montañas son las masas”, ou seja, em Ao terminar a guerra, termina o acordo político e
um país que não tem montanhas e é tão pequeno se forma um partido político.
como El Salvador não se pode explicar a revolução
salvadorenha, o crescimento e a força da guerrilha Da política “com” e “desde” as massas à política
sem o apoio do movimento de massas. Isso expli- de Estado
ca a estratégia do exército de aniquilar o povo, de
“quitarle el agua al pez”, de “tierra arrasada” que Quando a guerra termina, morre a FMLN por-
levou em apenas três anos (de 80 a 83) ao geno- que o fundamento objetivo do acordo era a alian-
cídio de mais de 30.000 salvadorenhos civis por ça. O partido político FMLN que nasce tem uma
parte dos aparelhos de repressão do Estado. natureza muito diferente da FMLN movimento
Este primeiro elemento determina outros dois: guerrilheiro, que jamais foi um partido políti-
1) a articulação entre sindicatos, frente de massas, co. Como parte dos “Acordos de Paz” o Estado
partidos revolucionários e seus braços armados, e, converte o FMLN em uma pessoa jurídica, uma
portanto a combinação entre luta econômica, luta instituição de direito público, um partido legal
política e luta militar permite romper com o fo- que pode concorrer em eleições. O movimento
quismo e a concepção militarista da revolução, e político armado FMLN não precisava de legali-
permite que esta encarne na consciência coletiva e dade, mas sim de legitimidade. O partido polí-
se transforme em força material do povo salvado- tico FMLN ganha legalidade, entretanto, perde
renho. 2) a ruptura com as concepções burguesas e legitimidade. Ao finalizar a guerra renuncia-se
reformistas da revolução promovidas pelos partidos ao pós-guerra. Isto é um problema teórico e polí-
comunistas latino-americanos (incluindo o salva- tico, porque nenhuma guerra é seguida pela paz;
dorenho) que foi possível não tanto pela decisão de toda guerra é seguida da pós-guerra, sobre tudo
uma vanguarda revolucionária, mas também pela uma guerra como a de El Salvador, por brutal
experiência vivida e organizada das massas; por e prolongada, onde combatemos todos os dias a
um processo de organização operária, camponesa morte, de maneira inclemente. Mas em El Sal-
e de massas, independentes frente ao Estado, que vador renunciou-se ao pós-guerra em nome da
impulsionou a direção dos partidos revolucionários paz. O conceito paz é um conceito simples de
a romper com o programa da Junta Revolucionária definir, pensar e viver, entretanto a figura paz é
e a constituir a FMLN () em 1980. provocadora e no caso do processo salvadorenho
Ainda que o auge do movimento de massa tenha teria um peso eleitoral, e no processo sacrificou-
contribuído para a radicalidade e o crescimento do se o político pelo eleitoral. O FMLN histórico
processo revolucionário, a ampliação das forças sempre esteve dentro da sociedade mas fora do
sociais e políticas, que participaram na luta, não sistema. O partido FMLN situa-se dentro do sis-
correspondeu com o aprofundamento do projeto tema mas fora da sociedade.
O que acontece, então, com a construção do só porque o partido já não promove mais a organi-
sujeito revolucionário no pós-guerra? Antes, o zação e a luta da classe trabalhadora, dedicando-se
movimento popular era o viveiro do qual se ali- exclusivamente à disputa eleitoral, mas porque até as
mentava o movimento revolucionário. Os diri- campanhas eleitorais respondem à lógica do aparato
gentes revolucionários conduziam o movimento da máquina eleitoral. Quem faz política nas campa-
popular e, a partir deste, fortaleciam suas distintas nhas eleitorais não são as massas trabalhadoras mas o
organizações. Após 92 estes passam da insurrei- partido e as campanhas não expressam as políticas, os
ção à instituição, problemas e as lutas da classe trabalhadora; esta últi-
ma, já não mais faz política nas campanhas eleitorais,
durante la guerra estuvieron al mando de los mas bem participa na política do partido. É verdade
frentes guerrilleros, del frente internacional, que toda campanha eleitoral pode ser contaminada
diplomático y de masas. Hoy están en los mi- pela política e, inclusive, uma campanha eleitoral
nisterios, en el parlamento, en las alcaldías. pode se converter em uma campanha política; e uma
Pero no están en el movimiento popular y so- campanha política pode, em determinadas circunstân-
cial. No hay un solo miembro de la dirección cias, se converter em uma campanha eleitoral. A cha-
nacional del FMLN que sea un dirigente del ve se encontra na definição dos conteúdos da campa-
movimiento popular y social. (SIEP 2010) nha eleitoral e se as campanhas eleitorais conseguem
esvaziar a realidade, com todas suas confrontações e
Se, durante a guerra, a preocupação central era contradições; ou se, simplesmente, se trata de definir
a organização popular, no pós-guerra a FMLN se quem vai governar no próximo período.
torna uma poderosa máquina eleitoral, cujo objeti- Finalmente em 2009, Mauricio Funes, um jovem
vo principal é a disputa de cargos políticos no par- periodista, que apresenta sua candidatura a Presiden-
lamento e nos poderes locais. O potencial revolu- te da República com a FMLN, se torna o presidente
cionário, ou seja, a experiência política das massas do país. Desde a campanha eleitoral até o primeiro
adquiridas durante mais de 30 anos de construção ano do seu mandato, este governo constrói uma filo-
de poder popular, fica neutralizado, bloqueado para sofia política própria, centrada em três pilares:
ser canalizado exclusivamente na disputa eleitoral.
O partido FMLN, aproveitando-se do patrimônio 1. Governo de Unidade Nacional: a palavra
do FMLN histórico, em uma década se torna a nacional é problemática, antes de tudo por-
principal força política do país (controlando uma que El Salvador não é nação, pois existe
média de 30-35% de deputados da Assembléia Le- uma nação em uma sociedade que compar-
gislativa e uma porcentagem equivalente de pre- tilha projetos históricos, uma visão de futu-
feitos e vereadores). O abandono da organização ro, projetos de futuro, que não é o caso de
e da luta de massa, faz com que este poder formal El Salvador. Que interesse comum existe
não se transforme em poder real, em poder popu- entre um poderoso banqueiro e uma pessoa
lar. Isso fica demonstrado claramente na completa que tenta escapar das corredeiras do fura-
inoperância da política de Estado executada pelo ção Agata? Ou entre os milhões de salva-
partido nos 15 anos de pós-guerra, quando não se dorenhos que emigram e os donos do país?
conseguiu deter nem um só projeto contemplado Existe uma nação quando todos compar-
nas receitas neoliberais, fazendo com que El Salva- tilham os mesmos projetos. Por exemplo,
dor se tornasse “um dos laboratórios mais comple- o povo palestino, que congrega comunis-
tos do neoliberalismo no planeta”, tomado como tas, anti-comunistas, setores de direita que
exemplo para outros países no mundo14. compartilham o propósito de converter-se
A metamorfose da FMLN coloca uma série de em um Estado, em compartilhar um territó-
questões relacionadas ao tema do poder e da constru- rio sobre o qual tenham soberania.
ção do sujeito revolucionário. O partido FMLN deixa
de fazer política e se desenvolve na experiência de 2. Governo para Todos: no discurso de posse,
fazer a política do Estado; isso desmobiliza o amplo Funes afirmou que seu guia seria Monsenhor
e combativo movimento de massas dos anos 80, não Romero e que governaria para os mais po-
FMLN, que se tornaram, cada vez mais, comercian- portante é também não ser funcionário, e não es-
tes que dirigentes políticos. Um sujeito que permi- tamos falando partindo do ponto de vista formal
ta ao povo deixar de ser ator para tornar-se sujeito porque formalmente é inevitável, mas do ponto
político, eis um povo dono da sua própria organi- de vista real, que você não se sinta funcionário.
zação política independente, dono de sua própria Um funcionário é aquele que considera que sua
política, seja dono de seu projeto político, de seu função é o fim e que ele é simplesmente o meio
programa político e dono das condições para lutar para um fim. Um funcionário publico não deve
pelo poder. Trata-se aqui de como as organizações ser um privilegiado, e isto tem a ver também com
populares precisam ser o coração deste sujeito, que o salário que ganha; deve ser um servidor e não
se pode chamar de partido; mas é preciso passar à alguém que se sirva do cargo.
organização de um partido político que se nutra da Aqui estamos falando, portanto, de uma con-
força política, ideológica e moral das organizações cepção de partido que supere a dicotomia movi-
sociais. Este partido não tem que ser uma fabrica mento-partido, assim as visões parciais caem no
de candidatos e nem uma fabrica de funcionários; espontaneismo sem um projeto das massas, por um
os dirigentes deste partido não devem ser candida- lado, ou na burocratização conservadora da insti-
tos nas eleições, nem devem ser funcionários. De- tuição, por outro. Se a idéia é a de um partido que
vem ser pessoas que estão metidas na luta da gente nasce e se constrói a partir do movimento sua fun-
todos os dias. Qual é o drama do partido FMLN? ção é servir
Que como todos são funcionários, ninguém faz po-
lítica, porque a política que se faz na Assembléia para realizar las metas de las organizaciones
Legislativa não é a política da classe trabalhadora, del pueblo y que no pretenda remplazarlo;
é a política do Estado. A política do campo popu- que se asuma como momento, no como ex-
lar é outra, é a luta pelo trabalho, a luta pela água, teriorización fija y especializada en el ejerci-
a luta pela comida, a luta pela agricultura, a luta cio del poder” (…) [que no busca] imponer
contra a contaminação, a luta contra as barragens, sus propio ritmos, los ritmos de la organi-
a luta contra a mineração; esta é a política dos tra- zación, del aparato [lucha electoral], dejan-
balhadores. O partido FMLN não faz a política dos do de lado el trabajo tendiente a generar o
trabalhadores, e sim a política do Estado. apuntalar los hechos capaces de modificar la
Nesta concepção de sujeito, o coração desta realidad [lucha política]. (MAZZEO, 2005:
nova figura seria o movimento popular que cria 106-107, 109).
sua própria institucionalidade, o partido, confor-
me as exigências da situação, para articular a luta Ou assim como sinalizado, há quase um sécu-
política à luta eleitoral, ou como dízimos ante- lo atrás por Rosa Luxemburg “o papel do partido
riormente, para esvaziar a luta política, com todas não consiste em mandar arbitrariamente, mas em
suas contradições e conflitos, na luta institucional. adaptar-se à situação o mais habilmente possível,
A idéia é radicalizar a democracia montando uma mantendo o mais estreito contato com a moral
nova democracia (participativa e direta), além da das massas” (LUXEMBURG apud LOUREIRO,
representativa18, que a substitua sem aniquilá-la. 2004: 84-85).
Onde a estrutura partidária não se separe da classe O fundamental na construção do novo sujeito
trabalhadora e suas lutas, e as organizações popu- revolucionário é entender que a mãe na construção
lares não se separem do aparato posto que é seu do sujeito é a luta política, construtora permanen-
aparato, seu meio, instrumento e os interesses da te do poder real, do poder popular, dia após dia.
classe são o fim, algo que muito bem sabemos que Portanto a função primordial do novo sujeito será
não acontece hoje. Hoje a gente é o instrumento e experimentar as melhores táticas em cada situação
o meio para que os partidos cheguem aos cargos concreta para fortalecer permanentemente a luta
públicos, mas não é o fim; o fim é o aparato. Por política. E a luta política servirá como base para
isso quando passam as eleições somos enterrados a luta eleitoral. A luta política se esvazia na luta
assim como as cigarras, e somos desenterrados eleitoral e a luta eleitoral se converte em instru-
só quando chegam novamente as eleições. O im- mento da luta política. É preciso aprender a fazer
este jogo, de como fazer a luta eleitoral para servir tos dispostos a lutar contra a ordem do capital.
à luta política. Para tanto, é preciso um processo A nova institucionalidade a ser criada precisa
de educação política permanente. É preciso abrir desenvolver no seu interior formas de organização
milhares de escolas políticas em todo o país para desalienantes que dêem conta de enfrentar os desa-
que a gente conheça a realidade histórica do país, fios deste cotidiano alienado, reificado. Aprenden-
entenda porque ocorre o que ocorre, para aonde va- do com o fracasso das experiências do socialismo,
mos, o que é preciso fazer para influir no rumo dos quando se acreditou que bastasse a negação legal
processos. É preciso que se conheçam as forças po- da propriedade privada para superar a alienação do
líticas que estão se movendo nesta realidade. Este trabalho e do ser humano no geral, Mészáros alerta
processo de educação política tem que ser vincula- que “la legislación nunca podría convertir al traba-
do à luta em cada lugar; por isto este partido tem jo en una necesidad interna del hombre. Para lograr
que ser vinculado à luta para conseguir que a gente este resultado son necesarios procesos sociales – y
faça política, sua política. morales – positivos” (MÉSZÁROS, 2005: 171-
Assim como na formulação da Pedagogia do 172). O “positivo” se refere essencialmente ao fato
Movimento Sem Terra precisamos de uma forma- de que é preciso surgir de dentro do ser humano,
ção política que não só prepare para a luta, mais isto é, de um processo de autoconsciência e não de
também que faça da luta uma escola (CALDART, negação ou imposição de uma conduta definida de
2000), onde se destaca a dimensão educativa das fora dos indivíduos.
ações de luta e de toda prática cotidiana que rompa
com a racionalidade do capital, atribuindo assim La verdadera autoconciencia de tal sociedad
novos significados a velhos conceitos e práticas, no puede ser una conciencia de “sociedad no
construindo assim novos espaços de sociabilidade enajenada”, sino simplemente la conciencia
desalienantes, que rompam com a lógica do lucro, de una “sociedad humana”. Es decir, esta
do interesse pessoal e que neguem a produção mer- conciencia no es la conciencia de una nega-
cantil. Não nos referimos, portanto, a uma concep- ción sino una conciencia de positividad (...)
ção tradicional de formação política, doutrinária e el comunismo “de naturaleza política” esta
mecanicista, mas a possibilidade de criar espaços atado todavía por la enajenación del hom-
formativos no mais amplo leque de atividades onde bre. Como negación de la propiedad priva-
se consiga desenvolver uma consciência de classe. da, es una forma de mediación. Entonces la
E, quando pensamos no papel da educação na solución no esta la negación de lo “privado”:
formação de uma consciência de classe, não pen- “la simple abolición de lo “privado” es tan
samos na transferência de uma consciência pré- artificial y enajenada como la “fragmenta-
confeccionada pelas vanguardas aos indivíduos ción”, “atomización”, “privatización” de lo
“incultos”: pensamos no desenvolvimento de uma “público”. La absolutización de cualquiera
autoconsciência de classe, Além de ter consciên- de los dos lados significa que el hombre esta
cia das causas históricas e estruturais dos nossos privado de su individualidad y convertido en
problemas e da nossa situação de vida, precisamos un “productor público” abstracto, o que, pri-
ter, também, consciência de nós mesmos, da nos- vado de su sociabilidad; se transforma en un
sa história, da nossa personalidade, da nossa afe- “consumidor privado” igualmente abstracto.
tividade e entender como esse lado subjetivo da Ambos son “hombres mercancía”, con la di-
nossa individualidade é fruto da nossa condição ferencia que mientras uno define su propia
histórica, ou seja, da nossa construção social no esencia como “productor de mercancías”, el
sistema capitalista, e ao mesmo tempo condiciona otro encuentra su auto confirmación en ser
a inteira esfera da vida cotidiana, organizando nos- un “consumidor de mercancías” auto-conte-
sas decisões, práticas e atitudes frente à realidade. nido (MÉSZÁROS, 2005: 199).
Só quando nós mesmos tomarmos consciência das
contradições entre nosso ideário e nossas práticas Essas passagens são muito importantes para en-
“cotidianas”, poderemos definir como superá-las, tender a profundidade da teoria da alienação em
dando um passo importante na formação de sujei- Marx, e uma questão muitas vezes não tomada
em conta por muitos marxistas e que a nosso ju- suas contradições e conflitos, na luta institucional;
ízo representa o limite histórico enfrentado tanto é assim que poderemos avançar rumo a uma so-
pelas revoluções do século XX, como pela esquer- ciedade de homens e mulheres livres, isto é, uma
da atual: até que não se supere a mercadoria como sociedade de indivíduos associados, onde o livre
célula da sociedade, mediação central das relações desenvolvimento de cada um corresponda ao livre
sociais, e a produção mercantil como lógica de desenvolvimento de todos.
reprodução do capital, e até que esse processo de
superação não seja autoconsciente, não podemos Referências bibliográficas
aspirar à emancipação dos seres humanos.
Esta nova forma de construção de poder popular ANTUNES, Ricardo. O caracol e a sua concha:
e a nova institucionalidade precisarão impulsionar ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São
formas de negação da lógica mercantil e, portanto, Paulo: Boitempo, 2005.
de negação da lei do valor: “para superar a lógica da
mercadoria é necessário restabelecer a determinân- BEINSTEIN, Jorge. La ruta de la decadência.
cia do valor de uso, chegando, assim, à famosa equa- Hacia una crisis prolongada de la civilización bur-
ção de cada um segundo sua capacidade e a cada um guesa. In: DIERCKSENS, Wim (Org.). La grande
segundo sua necessidade” (IASI, 2007: 73). depresión del siglo XXI: causa, carácter, perspecti-
Também é importante que o novo movimen- vas. San José Costa Rica: DEI, 2009.
to/partido impulsione processos autogestionários
(econômicos e políticos) 19. E para que as experiên- BELLAMY FOSTER, John; MC CHESNEY, Ro-
cias autogestionárias assumam força política é im- bert. Monopoly-Finance Capital and the Paradox
portante, também, que neguem a divisão social do of Accumulation, Monthly Review, New York, Oct
trabalho em seu interior promovendo a superação 2009, disponível em: http://www.monthlyreview.
entre trabalho manual e intelectual20. org/091001foster-mcchesney.php
KEHL, Maria Rita. Videologias. Rio de Janeiro: VIEIRA, Maurício M. Subjetividade e mercantili-
Boitempo, 2005. zação: a crítica de Marx a uma posição essencialis-
ta. Conferência realizada na UFRJ, 2005.
LOUREIRO, Isabel Maria. Rosa Luxemburg: os
dilemas da ação revolucionária. São Paulo: edi- Notas
tora UNESP: Editora Fundação Perceu Abramo,
2004. 1
A ubiquidade do poder [da mercadoria e do ca-
pital] se instala nos trilhos por onde corre o co-
MARX, Karl. O capital. Livro I. Vol. 1. São Paulo: tidiano (porque, aqui, a vida é o cotidiano, esse
Nova Cultural, 1985. produzir-se e reproduzir-se num eterno retorno,
numa tautologia plena) – aparece nas ações da
_____. Manuscritos econômico-filosóficos. In: Es- bolsa, nos regulamentos, nos talonários de che-
critos de juventud. Buenos Aires: Editorial Antído- ques, nas portarias, nos documentos, nos certi-
to, 2006. ficados. Está em todas as partes e não reside em
lugar algum. Escamoteia os fluxos, as continui-
MAZZEO, Miguel. Que [no] hacer: apuntes para dades e as rupturas: dá ao viver a seqüência da
una crítica de los regímenes emancipatorios. Bue- lanterna-mágica – normas, trabalho, lazer, etc.,
nos Aires: Antropofagia, 2005. tudo é uma mescla inorgânica cujo único enlace
é a sucessão no tempo e no espaço: a vida é uma
MENEGAT, Marildo. Sem lenço nem aceno justaposição de objetos, substâncias, implemen-
de adeus: formação de massas em tempos de tos. A própria fantasia, infinito do possível, se
barbárie: como a esquerda social pode enfren- abastarda: fuga, perde o húmus da historicida-
tar esta questão? in Praia vermelha: estudos de de. A ubiqüidade do poder – inconcreto, gasoso
política e teoria social n. 18, Rio de Janeiro: e onipotente – esconde o poder na ubiqüidade
UFRJ, 2008. (NETTO, 1981: 83).
humanas assumem a forma de relações entre coi- de forma violenta, em 2008 chegaram a 3179
sas (reificação): “as relações entre os produtores (http://www.diariocolatino.com/es/20090909/
assumem a forma de uma relação social entre os nacionales/71156/).
produtos de trabalho” (MARX, 1985: 71).
9
De acordo com o informe de setembro 2009
4
“Os setores dominantes elaboram uma bar- da Organização Internacional do Trabalho, o
ragem ideológica de tal monta, que mais que desemprego cresce a níveis sempre mais alar-
incidir na conformação do consenso, funciona mantes. Só para dar alguns exemplos mais
sobretudo como elemento de brutal apassiva- preocupantes: em EEUU, no ultimo ano (sept
ção, ao por a circular na tessitura das relações 2008-sept 2009), a taxa de desemprego su-
sociais, para além de valores de competitivida- biu do 6% ao 9,6%, e os desempregados de
de, consumo, individualismo, indiferença, auto- 9.199.000 passaram a ser 14.823.000, no mes-
culpabilização e conformismo, entre outros, a mo periodo na Espanha a taxa de desemprego
crença, internalizada, da inexistência de alter- passou de 9.6 % ao 17.9 %, e os desempregados
nativas possíveis ao capitalismo” (SOUZA DA de 2.174.000 a 4.138.000. Disponível em http://
SILVEIRA, 2004). www.ilo.org/public/libdoc/jobcrisis/download/
statistics/2009-09/1-unemp_sep09.pdf
5
“Of the fifteen largest U.S. banks in 1991 (to-
gether holding at that time $1.5 trillion dollars 10
Aqui, de acordo com Antunes, nos referimos
in assets), only five remained by the end of a uma noção ampliada de classe trabalhadora
2008 (holding $8.9 trillion dollars in assets)” como classe-que-vive-do-trabalho [termo su-
(BELLAMY FOSTER, 2009). cessivamente retificado por Antunes como clas-
se-que-vive-da-venda-do-seu-trabalho, mais
6
“Total private debt (household and business) correto em nossa opinião] que deve incorporar
rose from 110 percent of U.S. GDP in 1970 também aquelas que vendem sua força de tra-
to 293 percent of GDP in 2007; while finan- balho em troca de salário, como o enorme leque
cial profits skyrocketed, expanding by more de trabalhadores precarizados, terceirizados,
than 300 percent between 1995 and mid-2007” fabris e de serviços, part-time, que se caracte-
(BELLAMY FOSTER, 2009). “Para finales de rizam pelo vinculo de trabalho temporário, pelo
2007 la deuda total estadounidense (publica, trabalho precarizado, em expansão na totalida-
empresarial y personal) llegaba a 50 millones de do mundo produtivo. Deve incluir também
de millones de dólares: más de tres veces el PBI o proletariado rural, os chamados bóias-frias
norteamericano y valor superior al Producto das regiões agroindustriais, além, naturalmente,
Bruto Mundial” (DIERCKXSENS, 2009: 28). da totalidade dos trabalhadores desempregados
que se constituem nesse monumental exército
7
“Este passou de 387 bilhões de dólares no ano industrial de reserva (ANTUNES, 2005: 52).
2000 a 680 em 2009. A nível mundial o total do
gasto militar de maio de 2008 a abril de 2009 11
O analfabetismo político foi acrescido pelo
chegou a um trilhão e 340 bilhões de dólares, crescimento do assistencialismo das ONG e do
tendo crescido 45% nos últimos dez anos.” terceiro setor (cujo número incrementou expo-
Disponível em: http://www.globalissues.org/ nencialmente nos 90) que substituiu o Estado
article/75/world-military-spending na prestação de serviços, afirmando e promo-
vendo a retirada deste na sua responsabilidade
8
Só para dar alguns dados: no Brasil, em 1979, de garante de direitos, e promovendo assim a
morreram 11.194 pessoas por formas violen- passagem da reivindicação à caridade na subje-
tas, excluindo acidentes de trânsito, e no tri- tividade da classe trabalhadora.
ênio 1998-2000 a media anual foi de 41.138
mortos (MENEGAT, 2008: 165). Em El Sal- 12
O processo de democratização no continente
vador, em 1994 foram 1.749 as pessoas mortas latino-americano levou a institucionalização/le-
galização de varios partidos históricos de esquer- pondem a nenhuma linha partidária más só ao
da, que esqueceram as reivindicações da classe Presidente, que já desautorizou vários deles
trabalhadora como centro de suas agendas e cen- publicamente em varias ocasiões. A FMLN não
traram toda sua atenção no controle do Estado e têm participação nas decisões do Governo, en-
nas eleições. Isso permitiu algo de extraordinária tretanto tampouco pode romper com o Gover-
eficácia para a burguesia nacional e internacional: no, ou seja funcionar como partido de oposição,
a eleição de partidos de “’esquerda”, como o PT primeiro porque isso permite aos membros da
no Brasil, a Frente Ampla no Uruguai, o Partido cúpula de seguir gozando das vantagens gover-
Socialista no Chile, e mais recentemente a FMLN namentais e segundo por seguir-se apresentando
em El Salvador, que, na realidade, seguissem ad- antes seus militantes como governo; portanto se
ministrando os negócios da burguesia. mantêm em uma posição de indefinição frente a
Governo Funes.
“Nenhum dos sujeitos pode reivindicar a priori
13
Dagoberto Gutierrez
* Professor de Direito na Universidad Luterana
Salvadoreña e vice-reitor da mesma instituição.
Também foi comandante da FMLN na época da
guerra civil e na atualidade é dirigente do mo-
vimento político Tendencia Revolucionaria de
El Salvador.
Stefano Motta
** Doutorando da Escola de Serviço Social da
UFRJ e integrante do NEPEM (Núcleo de Es-
tudos e Pesquisas Marxistas) da mesma insti-
tuição.
ARTIGO
Radicalização democrática e políticas sociais na América Latina: notas sobre o processo venezuelano
Resumo: O presente artigo propõe uma perspectiva crítico-dialética para o exame da política social na Venezuela, a
partir do desenho ensejado pela Revolução Democrática Bolivariana, com ênfase no papel protagônico da participação
popular. Objetiva ainda a construção de bases analíticas que sejam capazes de traduzir e explicar as tendências em
curso na América Latina. Assim, o propósito central dessa análise é demonstrar se a implementação da política social
na América Latina, com toda a contraditoriedade que lhe é inerente, pode ser capaz de contribuir para nutrir a radical
democratização dos modelos institucionais das políticas públicas de governo, numa direção que contemple e amplie o
protagonismo e a participação crescente do povo no patrimônio político e econômico-social, coletivamente construído
pelo conjunto da classe trabalhadora.
Democratic radicalization and social policies in Latin America: notes from theVenezuela process
Abstract:This article proposes a critical-dialectical perspective to analyse the social policy in Venezuela, from the
design overburdened by the Democratic Bolivarian Revolution, emphasizing the main role of popular participation. It
also aims to build analytical foundations That Are Able to translate and explain the trends underway in Latin America.
Thus, the central purpose of this analysis is whether to Demonstrate the Implementation of social policy in Latin
America, with all the contradiction that is Inherent in it, May Be Able to Contribute to nurturing the radical democra-
tization of institutional models of public policies of government, That contemplation in the direction and expand the
role and Increasing the participation of people in the Political and Economic Equity, social, built collectively by The
entire working class.
os termos da democracia, para que, a partir de al- camente privilegiando os interesses da burguesia
guns parâmetros mínimos de governo e respeito à nacional e estrangeira. Por esse motivo, apesar da
nova legalidade democrática, pudesse haver garan- democratização relativa das instituições jurídico-
tia de manutenção da ordem econômica e política. formais, ocorreu um aumento expressivo das desi-
Nestes termos é que os partidos AD (Acción gualdades sociais em proporção direta à apropriação
Democrática), COPEI (Comité de la Organizaci- do excedente petroleiro pelas classes dominantes,
ón Política Electoral Independiente), URD (Uni- processo que se intensificou a partir de meados da
ón Republicana Democrática), com apoio dos década de 1970, tendo em vista o baixo preço do
líderes das Associações Comerciais, da Igreja Ca- petróleo no mercado mundial, a maior abertura da
tólica e das Forças Armadas, constituíram o de- economia ao capital externo e a forte instabilidade
nominado Pacto del Punto Fijo. Assim, durante política interna.
os 40 anos de vigência deste acordo na Venezuela A América Latina sangrava nestes anos, no tor-
(1958-1998), revezaram-se no poder o partido de niquete da crise econômica mundial com os regimes
orientação social-democrata AD e o de orientação ditatoriais. E a Venezuela não ficou incólume. De
social-cristã COPEI, tendo seguido basicamente a acordo com análise de Maya (2005), foi emblemá-
mesma linha política e sócio-econômica durante tica a sexta-feira correspondente ao dia 21 de feve-
todo o período. reiro de 1983, o chamado viernes negro, que mar-
Para Hellinger (2003), tal moderno sistema cou o início da desarticulação do Pacto del Punto
democrático venezuelano foi criado por uma Fijo. Nessa data, o presidente Luis Herrera Cam-
geração de líderes políticos, “que desde 1936 píns (1979-1984) desvalorizou a moeda nacional,
habían defendido la democracia electoral como como estratégia para enfrentar a crise econômica
la clave para lograr el control soberano so- que assolava o país, provocando uma grave crise
bre el petróleo (el subsuelo) y el desarrollo de material e ideológica, à medida que a população
una economía no sustentada en ese producto”. começara a se questionar acerca das reais possibi-
(HELLINGER, 2003: 43). Eis que, tal objetivo lidades da democracia burguesa em efetivamente
constituiu o cerne do projeto Puntofijista e para ensejar o desenvolvimento econômico e social da
tal o mesmo se baseou na constituição de um Es- Venezuela. Nesse período, as contradições do mo-
tado de Direito em que estavam postas garantias delo começaram a se intensificar, de modo que o
mínimas de proteção social à população, tendo desafio dos governos subsequentes era seguir com
ficado conhecido como “sistema populista de re- o Punto Fijo apesar da crise institucional.
conciliación” (HELLINGER, 2003: 43). Segundo Maya (2005), apesar dos problemas
A tática política do período, referida às interlo- herdados e agudizados nos anos anteriores, muitos
cuções estabelecidas entre o Estado e as massas, eleitores viram no retorno de Carlos Andrés Pé-
baseou-se principalmente na destruição da influ- rez (1989-1993) à presidência uma possibilidade
ência da esquerda, na época representada no país de se estabelecer a Venezuela Saudita e então, os
pelo PCV (Partido Comunista da Venezuela) nas graves problemas do país poderiam findar. Contu-
frentes sindicais e na cooptação dos movimentos do, não tardou para que a terrível realidade social
populares. Essas medidas se fizeram necessárias e econômica do país viesse à tona, de modo que,
para a vigência de um modelo de democracia pro- assim, configurou-se a conjuntura favorável para
tagonizado por apenas dois partidos, cujo intuito um ajuste estrutural com o FMI: El paquete, como
era garantir a renda petroleira para o capital exter- ficaram popularmente conhecidas as medidas que
no e as burguesias nacionais. Daí a necessidade de o governo Pérez implementou, contemplava uma
uma falsa democracia e de parcas políticas sociais, maior participação do setor privado interno e do
baseadas principalmente no clientelismo e na re- capital externo na economia nacional.
pressão política. Dentre as medidas estava o fim de vários subsí-
Durante os anos do Puntofijismo, o desenvol- dios aos serviços públicos e à população em geral,
vimento do país foi se estruturando cada vez mais aumento dos tributos e das tarifas públicas, como
atrelado ao rentismo proveniente dos recursos do também abertura comercial e privatizações. Tal é,
petróleo, com uma política governamental histori- na Venezuela, o caráter do movimento de moderni-
zação capitalista, conhecido como neoliberalismo. fracassar. Contudo, apesar da rotunda derrota do
Entretanto, diferentemente do que se observa em movimento e da detenção de Chávez por um pe-
outros países da América Latina, em que no mes- ríodo de dois anos, ele tornou-se a principal refe-
mo período tais medidas foram conduzidas com rência política de oposição à farsa do Pacto del
relativo e contraditório êxito na desarticulação do Punto Fijo, àquela democracia representativa e às
conflito social2, na Venezuela essa história teve um esmagadoras reformas neoliberais que o governo
desfecho distinto: a rebelião popular que ficou co- Pérez implementara.
nhecida como El Caracazo. Assim que, tendo sido destituído do cargo por
Com o aumento brusco no preço da gasolina, corrupção em 1993, Carlos Andrés Pérez foi subs-
do transporte coletivo e nos produtos que compu- tituído por Rafael Caldera (1994-1998), eleito para
nham a cesta básica, teve início um levante popular um segundo mandato, a partir de um discurso anti-
em 27 de fevereiro de 1989 na cidade de Caracas, neoliberalismo, que logo se revelou como retóri-
cujas respostas imediatas do governo federal foram ca eleitoral: em 1996, Caldera retoma o programa
a suspensão das garantias constitucionais, a convo- de reformas neoliberais de Pérez com a chamada
cação dos militares para repressão popular e a ins- Agenda Venezuela. Eram medidas que priorizavam
titucionalização do toque de recolher. Rapidamente um ciclo de privatizações de empresas estatais,
os protestos se espalharam, tendo atingido 19 cida- como também um duro ajuste fiscal, uma proposta
des de médio e grande porte do país e durado até de renegociação da dívida externa, com a diminui-
07 de março daquele ano. Assim, ao passo que El ção dos gastos públicos e abertura econômica do
Caracazo revelou a agudização das contradições país para o capital externo.
de um modelo político e econômico falido, abriu Tal foi o momento histórico que evidenciou o
dolorosamente as portas da Venezuela ao século esgotamento do Pacto del Punto Fijo na Venezue-
XXI: mais de mil mortos, centenas de feridos e um la e abriu a fenda histórica para seu sepultamento.
ímpeto de mudança que se expressaria com mais Emergiu, pois, a necessidade de refundar a Re-
densidade nos próximos anos. (RBV, 2009a). pública, expressa na candidatura de Hugo Chá-
De acordo com Hellinger (2003), surgiram inú- vez à presidência do país em 1998. É importante
meras manifestações de protesto e reivindicação no destacar que desde 1992 o MBR-200 defendia
período que se seguiu ao Caracazo, evidenciando a novas bases políticas, econômicas e sociais para
incapacidade dos partidos políticos tradicionais em a Venezuela. O fragmento abaixo traduz alguns
efetivamente representar as camadas populares, anseios do movimento popular, especificamente
bem como dos sindicatos, tal como constituídos, com relação à crise crônica do sistema sociopo-
em defender os interesses dos trabalhadores. No lítico do país.
vazio de representação que se cristalizava emergi-
ram novas forças sociais, como o movimento de Com o aparecimento dos partidos populistas,
trabalhadores La Causa Radical (LCR), logo con- o sufrágio foi convertido em uma ferramenta
vertido em Partido/LCR; grupos de executivos da para adormecer o povo vene as para dissolver
PDVSA; outros grupos vinculados à classe média a consciência popular. As mentiras políticas
e profissionais liberais; e um grupo de militares alienantes pintaram uma terra prometida a
denominado Movimento Bolivariano Revolucio- ser alcançada através de um jardim de rosas.
nário-200 (MBR-200)3, ao qual se vinculou Hugo A única coisa que os venezuelanos teriam
Rafael Chávez Frías. que fazer seria ir às urnas eleitorais e esperar
Esse movimento conquistou visibilidade na que tudo fosse resolvido (...). Assim, o ato de
conjuntura política venezuelana em razão de uma votar foi transformado no começo e no fim
insurreição militar4 desencadeada em fevereiro da democracia. (...) temos muitas razões para
do ano de 1992, na tentativa de derrubar o gover- seguir pressionando o acelerador da máquina
no de Pérez. Tal tentativa fracassou e seu líder, que move a história (FRÍAS, 1993: 5-6).
o tenente-coronel Hugo Chávez, foi encarcerado.
Em novembro do mesmo ano, os companheiros Pois bem, tais anseios tornam-se compromissos
de Chávez fizeram nova tentativa e voltaram a que se solidificaram no decorrer dos anos subse-
quentes à fundação do movimento, principalmente amplo debate político em todo país, com expressi-
após Chávez sair da prisão em 1994, quando ini- va participação popular, até que seis meses após a
ciou uma incursão pelo interior do país e, a partir sua instalação foi concluído o texto final que deve-
dos círculos bolivarianos5, começou a organizar ria ser submetido a um novo referendo.” (VIEIRA,
um movimento político nacionalista, erigido sob as 2005, p. 65). O plebiscito de aprovação da nova
idéias de Simón Bolívar, que deveria efetivamen- Constituição ocorreu, pois, em 15 de dezembro de
te se construir a partir da participação protagônica 1999. Com a Constituição da República Bolivaria-
das massas. Essa bandeira, portanto, constituiu a na da Venezuela vigente, foram convocadas para o
base do Movimento V República (MVR), que le- ano seguinte, novas eleições para todos os cargos
vou Hugo Chávez a vencer as eleições presiden- eletivos, incluindo o de Presidente da República,
ciais de 1998 na Venezuela. o que ocorreu em julho de 2000, quando Chávez
A vitória do projeto bolivariano nas eleições voltou a vencer as eleições com 57% dos votos.
de 1998 evidenciou a extrema decomposição do Segundo análise de Vieira (2005), a Consti-
sistema político, social e econômico, vigente na tuição Bolivariana de 1999 não se traduz numa
Venezuela por 40 anos, revelando claramente a fra- carta que objetiva a acomodação de interesses
gilidade de um modelo impopular. A democracia contraditórios, mas refere-se ao resultado de um
liberal-representativa, assentada sobre o Pacto del processo político que intenta alterar a estrutura do
Punto Fijo, em realidade evidenciou ser um pacto poder sócio-político no país, como eixo profícuo
de usurpação da soberania popular, à medida que às mudanças necessárias. Segundo o autor, esta
privava as massas do exercício pleno de sua von- carta consiste na tentativa de ultrapassar a repre-
tade coletiva, em nome da manutenção dos privi- sentatividade, própria à democracia liberal, para
légios das burguesias nacionais e estrangeiras. O a alteração da estruturação do espaço político da
processo de reestruturação da sociedade, a partir da sociedade (VIEIRA, 2005).
eleição de Hugo Chávez, portanto, requeria, além A principal e mais significativa alteração que se
de conduzir alterações importantes e necessárias observa nessa nova Constituição, especificamente
no terreno da reprodução material, possibilitar ao se considerarmos a maioria das Cartas latino-ame-
povo o resgate de sua soberania, como parte funda- ricanas – cujo cerne é a preservação do Estado li-
mental do novo projeto bolivariano. beral de direito –, é a introdução do poder popular
como eixo estruturante do novo Estado Bolivaria-
(...) no bojo desse processo, é que a bandeira no, que se pretende construir. O artigo 62 esclare-
pela instalação de uma Assembléia Nacio- ce: “La participación del pueblo en la formación,
nal Constituinte plenamente soberana veio ejecución y control de la gestión pública es el
constituir-se numa etapa decisiva tanto para medio necesario para lograr el protagonismo que
o resgate da função da política, enquanto ati- garantice su completo desarrollo, tanto individual
vidade central da vida social, bem como pas- como colectivo” (RBV, 2000: 67).
so decisivo para a recuperação da soberania Ademais, cabe destacar que pela primeira vez na
popular, abrindo caminho para uma transfor- história republicana, se reconhecem e incorporam
mação política dentro das regras complexas na Carta Magna os direitos dos povos originários,
do processo democrático, indispensáveis, saldando, portanto, uma velha dívida da sociedade
entretanto, a uma mudança pela via pacífica venezuelana para com esses povos; se reconhecem,
(VIEIRA, 2005: 65). ainda, os direitos ambientais e se ampliam os di-
reitos sociais e políticos, como também se instaura
Assim, no mesmo dia em que tomou posse, 2 de o paradigma do desenvolvimento endógeno – haja
fevereiro de 1999, Chávez assinou o decreto con- vista inaugurar um novo padrão produtivo – e de-
vocatório de um referendo popular para consultar a clara, por questão de soberania nacional, a impos-
população sobre a eleição da Assembléia Nacional sibilidade de privatização da indústria petroleira.
Constituinte, que deveria elaborar a nova Consti- Acerca da condução da política econômica para
tuição da Venezuela e redesenhar o sistema político materialização dos dispositivos constitucionais, a
venezuelano. Desencadeou-se, neste período, “um análise de Barros (2006), a partir de estudos rea-
lizados sobre documentos oficiais, evidencia que país, tal como está colocada no documento, não
nos dois primeiros anos de mandato, o programa questiona, em princípio, a economia de mercado.
econômico de transição do governo Chávez não Postula-se, por exemplo, que “la lucha contra las
pretendia uma guinada radical no campo econômi- desigualdades sociales y la pobreza es un imperati-
co interno. vo ético, que no es contradictorio con la eficiencia
Todavia, a inflexão do governo Chávez pode ser económica.” (RBV, 2001: 13). Assim, tensiona-se
vislumbrada a partir de 2001, de modo que alguns inaugurar um novo paradigma de desenvolvimento
elementos contribuem para a agudização do pro- sócio-econômico em que “la lucha contra las desi-
cesso venezuelano: a) o início da vigência do Plan gualdades y la pobreza tendrá en cuenta la eficien-
de Desarrollo Económico y Social de la Nación cia económica, pero no subordinada a sus restric-
2001-2007 (PDES), no qual estão postas as bases ciones.” (RBV, 2001: 18). Em suma, no primeiro
econômicas e sociais para a transição ao padrão de momento do governo Chávez, o que se observou
desenvolvimento necessário à sociedade de novo é que as principais medidas no plano econômico
tipo; b) a promulgação de importantes Leyes Ha- e social compunham um projeto que não impli-
bilitantes,, especialmente a Ley de Hidrocarburos, cava em uma ruptura, não ensejavam uma nova
que rege o setor petroleiro e a Ley de Tierras y De- perspectiva anti-capitalista. Percebe-se, sim, que
sarrollo Agrario, que trata da reforma e do desen- se processou uma transição, cuja preocupação fun-
volvimento agrário do país; c) a tentativa de golpe damental consistia numa mudança da configuração
de Estado em abril de 2002 e a insurreição popular do bloco de poder.
que materializou o contragolpe; d) a mudança de Inscreve-se também, nesse período transitório, a
controle na PDVSA, em fevereiro de 2003, após promulgação das Leis Habilitantes, em novembro
uma greve patronal-petroleira que havia começado de 2001. Dentre estas legislações, a Lei dos Hidro-
em dezembro de 2002; e) o desenvolvimento das carbonetos e a Lei de Terras podem ser considera-
misiones sociales como eixo estruturante da polí- das legislações fundamentais para a análise do pro-
tica social de massas que se desenvolve no país a cesso venezuelano. De acordo com Barros (2006), a
partir de 2003; f) o início da vigência do Proyecto partir da Lei de Hidrocarbonetos, o governo passou
Nacional Simón Bolívar – Primer Plan Socialista a exigir que o capital venezuelano tivesse maioria
2007-2013 (PPS), que versa acerca da construção acionária nas parcerias petroleiras estrangeiras atu-
do socialismo do século XXI no desenvolvimento antes no país, aumentando de 16,6% para 30% os
da nação venezuelana, a partir do terceiro mandato royalties cobrados sobre o barril do petróleo. Ade-
do presidente Chávez; e finalmente, g) a derrota de mais, o controle estatal sobre a atividade petroleira
Chávez no referendo constitucional e o consequen- foi priorizado a partir da criação do Ministério de
te reimpulso popular do processo bolivariano. Energia e Petróleo e da redução da autonomia da
Alguns apontamentos permitem assegurar, com PDVSA no intuito de garantir maior transparência
rigor analítico, uma caracterização das inovações com relação ao destino do excedente petroleiro.
sócio-políticas do Bolivarianismo, em meio à de- A Lei de Terras também constituiu matéria
sinformação da mídia burguesa. Na medida em que polêmica entre o setor latifundiário da sociedade
tais elementos constituem a síntese de emblemáti- venezuelana, pois, partindo do reconhecimento da
cos momentos conjunturais do governo de Hugo propriedade privada, regulamentou tanto o direito
Chávez, podem ser fecundos para exprimir a con- dos camponeses à terra como o objetivo constitu-
figuração específica do cenário venezuelano neste cional de segurança agro-alimentar e, ainda, esta-
início de século. beleceu como meta a eliminação do latifúndio.
Primeiramente, destaca-se o Plan de Desarrollo Dessa forma, a radicalização e o adensamen-
Económico y Social de la Nación 2001-2007 Ao to do processo político bolivariano foram se con-
versar sobre o equilíbrio econômico, o documen- cretizando na mesma razão em que crescia o des-
to trata do desenvolvimento baseado no princípio contentamento da elite. O governo, então, passou
de co-responsabilidade. Nessa perspectiva, cons- a ser veementemente acusado pela grande mídia,
tata-se que a proposta do governo em aumentar o pelos sindicatos patronais e demais setores con-
protagonismo do Estado no desenvolvimento do servadores do país, de atentar contra a propriedade
privada e de querer instaurar um regime castrista o governo Chávez iniciou uma reforma na PDVSA,
na Venezuela. Essas organizações empreenderam substituindo toda a sua direção, demitindo funcio-
alguns protestos em oposição ao governo no início nários e reorganizando a estrutura interna, vez que
de 2002 e em 11 de abril desse ano, intentaram por efetivamente se tratava de afirmar o poder público
meio de um golpe de Estado derrubar o governo nacional sobre os recursos petroleiros.
Chávez. No entanto, O maior controle do excedente petroleiro per-
mitiu que, a partir do ano de 2003, tivesse início
a pesar de un silencio de los medios, la no- na Venezuela uma agenda com políticas sociais de
ticia de un golpe y una resistencia inicial al massas, denominado misiones bolivarianas, cujo
mismo corrió por los barrios más pobres, eixo central o governo denomina de Projeto Re-
especialmente en el oeste de la ciudad, y volucionário Bolivariano. A idéia é que esse novo
la gente se concentró alrededor del palacio paradigma de política social possa, por um lado,
presidencial para demandar el regreso de romper concretamente com o legado clientelista e
Chávez. Pese el apoyo de EEUU al golpe, paternalista sob o qual o campo do direito social
los diplomáticos se rehusaron a reconocer esteve submetido até então. Por outro lado, cabe
el nuevo gobierno. Parte de la oposición le ao Projeto Revolucionário Bolivariano edificar as
retiró su apoyo activo después del anuncio bases do novo Estado Democrático e Social de Di-
de la Junta Interina de la suspensión de par- reito e de Justiça, conforme expresso na Constitui-
tes de la Constitución. Menos de 48 horas ção de 1999.
después de comenzado el golpe, Chávez As misiones, portanto, constituem uma das
regresó como presidente. (HELLINGER, principais engrenagens sócio-políticas do novo
2003: 72). Estado Bolivariano que aos poucos se descortina,
caracterizando uma fundamental trincheira de mo-
O contragolpe, através do qual as massas se bilização e de disputa, segmentadas em duas fren-
mobilizaram pelo retorno do presidente, consistiu tes principais: uma luta material pela superação de
em organizada e rápida reação popular no sentido um passado de desigualdades, como também de
de informar à população que Chávez não tinha re- uma luta simbólica por outra identidade nacional,
nunciado, que se tratava de um golpe de Estado e relacionada à nossa própria história de povo lati-
que era preciso ir às ruas exigir seu retorno ime- no-americano, ao ideal bolivariano de libertação,
diato ao palácio Miraflores – o que ocorreu no dia considerando a transformação cultural como ne-
13 de abril daquele ano. Tal conjuntura evidenciou cessária ao projeto revolucionário em curso na so-
o caráter efervescente do processo político vene- ciedade venezuelana. Desse modo, a política social
zuelano, a partir do início da chamada Revolução que se implementa hoje na Venezuela através das
Democrática Bolivariana, com a eleição de Hugo misiones tem papel medular na construção da nova
Chávez para presidência da Venezuela. sociedade. De acordo com documentos oficiais:
Uma série de protestos ocorreu durante o ano de
2002, de modo que em 2 de dezembro teve início a Su propósito fundamental es enfrentar las
mais duradoura greve do setor petroleiro. Tal movi- causas y consecuencias de la pobreza y la
mento ficou conhecido como paro-sabotaje petro- exclusión, con la participación protagónica
lero, que em última instância pretendia derrubar o del pueblo. Su despliegue fue posible gra-
presidente Chávez. Contudo, com a ajuda de parte cias al rescate de los recursos petroleros;
dos trabalhadores da indústria petroleira que não ti- así como al compromiso inmediato de las
nham aderido à greve, de petroleiros aposentados, mayorías excluidas de asumir el protagonis-
das forças armadas e do apoio de setores populares mo en la transformación de sus vidas y de la
que se manifestaram realizando uma marcha mul- sociedad venezolana en su conjunto. Se trata
titudinaria, em 23 de janeiro de 2003 (dois meses de un modelo revolucionario de políticas pú-
depois de iniciada a greve), o governo conseguiu o blicas, que conjuga la agilización de los pro-
controle da indústria e a retomada da produção do cesos estatales con la participación directa
petróleo. Tendo acabado o paro petrolero em 2003, del pueblo en su gestión (RBV, 2006a).
buiu a derrota, num primeiro momento, à falta de pois, que o povo quer uma democracia efetivamen-
conscientização do povo acerca do processo revo- te participativa e não uma democracia plebiscitá-
lucionário. Segundo Lander (2008), o projeto de ria. Assim que, a partir dos resultados deste refe-
reforma não foi produto de amplos processos de rendo o debate político no interior das forças de
participação popular, como as maiorias esperavam, transformação vem se desenvolvendo progressiva
ao contrário “la propuesta fue, en lo fundamental, e fervorosamente: a necessidade de aprofundar as
el producto de meses de trabajo de una comisión práticas democráticas aflorou a partir dessa prima-
presidencial, cuyo compromiso de confidenciali- vera política na pátria de Bolívar.
dad hizo que la propuesta sólo fuese dada a cono- Da mesma forma que Drummond descreveu o
cer una vez que ésta estaba elaborada, y revisada caminho de Carlito, em uma estrada de pó e espe-
por el Presidente.” (LANDER, 2008: 136). rança9, assim também caminha o projeto revolu-
Por esse motivo, a decisão de milhões de vo- cionário bolivariano. E como todo processo que se
tantes chavistas em não comparecer às urnas para pretende novo, carrega um tanto do legado das ve-
aprovar o referendo, longe de ser produto do bai- lhas estruturas, no entanto, a história demonstra que
xo nível de consciência ou formação política, o ímpeto de mudança e o protagonismo popular é
expressa precisamente o contrário, ou seja, uma a atmosfera sobrepujante. Desde as catacumbas da
crescente politização dos setores populares e de velha democracia falida do Punto Fijo até o renas-
suas exigências de maior protagonismo e partici- cimento da política com o advento da V República,
pação, como resultado do processo político vene- percebe-se que há um valioso e peculiar processo
zuelano que vem se adensando desde 2002. Nos de transformação em curso na Venezuela e, dado o
termos de Lander. especial papel que cumprem as políticas sociais, no
bojo dessa nova trajetória histórica, faz-se impera-
Las transformaciones más significativas que tivo uma cuidadosa análise a esse respeito.
han ocurrido en nueve años del proceso bo-
livariano han sido los cambios ampliamen- Participação popular nas políticas sociais na
te extendidos que se han dado en la cultu- Venezuela
ra política de los sectores populares. Estos
cambios se expresan en amplios niveles As políticas sociais na Venezuela, a partir do
organizativos y en el fortalecimiento de los processo revolucionário bolivariano iniciado em
tejidos sociales, los sentidos de pertenencia 1999, desenvolve-se através das misiones, confor-
y de dignidad individual y colectiva. La idea me assinalado. Atualmente, há misiones10 imple-
de la participación, lejos de ser una consigna mentando todas as políticas sociais naquele país,
retórica, se ha convertido en una práctica que de modo que as mesmas inauguram um novo pa-
ha generado expectativas en ámbitos cre- radigma de proteção social na América Latina, em
cientes de dicha participación. Y sobre todo um caminho diverso daquele “fijado por el Con-
ha sido, cada vez más, asumida como un senso de Washington” (BORON, 2004).
derecho. Estas expectativas de participación Segundo análise de Malavé (2004), a nova Cons-
no fueron, de modo alguno, satisfechas en tituição Bolivariana é o primeiro passo na direção
las modalidades y procedimientos mediante de uma nova institucionalidade democrática na Ve-
los cuales se elaboró la propuesta de reforma nezuela e as misiones corroboram com o aprofunda-
constitucional (LANDER, 2008: 136). mento do caminho de luta assumido pelo povo ve-
nezuelano, fortalecendo a mobilização através das
Nessa perspectiva, a derrota do sí no referendo políticas sociais, que condensam e impulsionam o
constitucional revelou que as massas rechaçam as poder popular no país. Dessa forma, para o autor,
propostas que são encaminhadas na contramarcha com a Carta de 1999, se ultrapassa a concepção me-
dos processos de participação protagônica que – ramente dogmática e programática do direito social,
após a caminhada da Revolução Democrática Bo- principalmente em virtude da ampliação e massi-
livariana – constituem o cerne do projeto de trans- ficação de políticas reconhecidamente universais
formação da sociedade venezuelana. Demonstra, como, por exemplo, saúde e educação.
Sin embargo, en la Constitución del 1999, produtiva dos atendidos – fato que, apesar de ter
el sólo concepto de Estado social significa encaminhados soluções de ordem reprodutiva ma-
compromiso, ejecución y exigibilidad direc- terial, não foi pujante o suficiente para desencadear
ta. Eso trae consigo que cuando el Estado a rearticulação de distinto modelo produtivo
venezolano asume la responsabilidad de O desafio não foi tangenciado. Coube debater
decir, porque lo establece la Constitución, e engendrar uma inédita dinâmica no âmbito da
está queriendo decir que su actuar debe ga- produção de bens voltados à satisfação das ne-
rantizar derechos como: a) aprender a leer cessidades sociais e à estruturação de mercado
y escribir, que se ha traducido en la Misión interno, libertos das contradições do sistema ca-
Robinsón, b) tener escuelas que sean aptas y pitalista, nas trilhas do desenvolvimento endóge-
capaces para el desarrollo integral de nues- no socialista. Sabemos, pois, que o desenho das
tros niños, traducido en las Escuelas Boli- políticas sociais desvinculado deste projeto tende
varianas, c) tener la posibilidad de incorpo- a reproduzir a funcionalidade das relações sociais
rarse a los subsistemas educativos, traducido de tipo capitalistas, ainda moduladas pela expro-
en las Misiones Ribas y Sucre, d) el derecho priação do trabalho assalariado, portanto, anula-
a la salud y a un sistema de salud digno, que das em seu potencial transformador. Porém, as
se expresa en la Misión Barrio Adentro y d) inovações são intensas.
desde el punto de vista del trabajo, el progra- Na medida em que o ponto de partida ainda é
ma Vuelvan Caras, que responde al derecho a teia do capital, todas as relações sociais que se
al trabajo (MALAVÉ, 2004). estabelecem na vida em sociedade constituem a
expressão daquela relação social fundante e, por
A Misión Vuelvan Caras pode ser vista como esse motivo, convencionou-se que a construção
uma primeira tradução deste potencial criador as- de uma nova base produtiva, tal como aparece
sumido diretamente na forma de poder popular, nos lineamentos colocados no PPS exigia uma
desta vez mediante o trabalho: essa misión objeti- formação de novo tipo, daí a resignificação do
vou fomentar a articulação do processo educativo projeto inicial da Misión Vuelvan Caras: em 2007
ao processo produtivo para gerar emprego e renda, o Executivo Nacional anunciou o lançamento da
orientar a formação de recursos humanos e asse- Misión Che Guevara com o objetivo de materiali-
gurar a participação popular na produção de bens zar um plano de formação integral, na direção da
e serviços. Nesse sentido, previa bolsas voltadas construção do homem novo, tal como preconizado
para o saber prático, ou seja, iniciativas educacio- por Che Guevara.
nais que privilegiassem conhecimentos para o tra- Para ensejar a construção do socialismo, parale-
balho, como também fomento ao desenvolvimento lamente à base material existente, Guevara (1965)
de cooperativas, em consonância com os pressu- insistia na necessidade de um homem novo. Em
postos da Constituição Bolivariana. 1965, ao dissertar acerca da construção da socieda-
No entanto, sabe-se que a Revolução Bolivaria- de após o processo revolucionário cubano, Che in-
na herdou uma pesada carga pretérita, no que se feria que em um período transitório, no qual ainda
refere ao empobrecimento extremo de sua popu- persistiam as relações mercantis próprias do modo
lação, às negligências diversas para o acesso aos de produção sob o qual estava se erigindo a nova
direitos sociais, à corrupção em vários níveis, à ordem societária, a lei do valor ainda vigente atua-
burocratização excessiva do Estado, entre outros – va como um cordão umbilical responsável pela co-
traços peculiares ao modelo capitalista periférico, nexão dos indivíduos à sociedade e a mercadoria,
que tende a agudizar as contradições tipicamente como célula econômica fundamental. Uma vez que
capitalistas. Por esse motivo, a Vuelvan Caras, tais vetores delimitavam o caminho e o destino dos
como principal política social que pretendia liber- indivíduos isolados em todos os aspectos de sua
tar através do trabalho, não logrou tal objetivo. vida, se fazia essencial pôr em marcha um proces-
Apesar do expressivo número de pessoas atendi- so de formação integral do ser humano, simultane-
das, acredita-se que o projeto estava demasiada- amente ao desenvolvimento de formas econômicas
mente voltado para a formação técnica e inserção novas, no período de transição ao socialismo. Com
base em tais pressupostos, houve o redimensiona- fortalecimento do poder popular, articulado à sa-
mento da Misión Vuelvan Caras, originando a Mi- tisfação integral das necessidades humanas, cons-
sión Che Guevara, que: titui-se a Misión 13 de Abril. Lançada em abril de
2008, no marco das comemorações do 13 de abril
Es un programa de formación con valores de 2002, essa misión tem a finalidade de gerar re-
socialistas integrando lo ético, ideológico, ferências concretas de gestão comunal no exercício
político y técnico productivo, para contri- da democracia protagônica e revolucionária. As-
buir a generar el mayor número de satis- sim, a Misión 13 de Abril contempla a agregação
facción social y transformar del sistema dos Conselhos Comunais na direção da conforma-
socio-económico capitalista en un modelo ção das comunas socialistas, ou seja, o objetivo é
económico socialista comunal. Su objetivo “reimpulsar el proceso de profundización de la Re-
es diseñar y ejecutar acciones en materia volución con el fortalecimiento del Poder Popular
de formación, capacitación y organización en la satisfacción integral de las necesidades huma-
laboral sustentables, desarrollando la con- nas y la articulación socio-territorial en Comunas
ciencia ética y moral revolucionarias como Socialistas.” (RBV, 2008: 2).
factores determinantes en la formación del Para o cumprimento do objetivo central, o docu-
hombre y de la mujer nuevos, sentando así mento metodológico remete a dois eixos transver-
las bases del proyecto revolucionario boli- sais, quais sejam, “mejorar las condiciones de vida
variano (RBV, 2009b). de las comunidades” e “desarrollar la conciencia
socialista con la articulación comunal” (RBV, 2008:
De acordo com Guevara (1965), esse processo 2), de modo que esses eixos são executados como
é fundamental para a construção do novo ordena- etapas sucessórias. Em um primeiro momento, ocor-
mento social. Sua análise revela que embora o pro- re a instalação de salas de Batallas Social nas co-
cesso transitório contenha expressões das mazelas munidades, tendo em vista atender de imediato as
do capitalismo, onde os indivíduos atomizados necessidades sociais da população e, na seqüência, a
ainda estão inacabados, abre-se possibilidades de modificação da estrutura sócio-territorial através da
se desenhar uma inédita condição de protagonista transformación integral del hábitat a partir do esbo-
“desse estranho e apaixonante drama que é a cons- ço definido pelo povo organizado no território, para
trução do socialismo, na sua dupla existência de a construção das comunas socialistas.
ser único e membro da comunidade.” (GUEVARA, O objetivo central, portanto da Misión 13 de
1965). Sendo assim, a necessária formação ética e Abril, exposto logo no princípio do documento
humana deve ser parte da luta contínua e se corpo- organizativo, refere-se ao fortalecimento do poder
rificar em um trabalho permanente para erradicar popular en la satisfacción integral de las necesida-
aos vícios do passado que são legados ao presente. des humanas, de modo a não pressupor referências
Além da dura competição com o passado, para distintas daquelas que o próprio povo organizado
Che, na dinâmica da nova sociedade em formação definir. O documento coloca que, nos marcos da
é imprescindível estar ciente que nos países onde radicalização democrática, está em marcha na so-
impera o subdesenvolvimento a riqueza está lon- ciedade bolivariana nova forma de gestão “involu-
ge de poder chegar às massas através somente do cra la organización de la participación de los inte-
processo de apropriação, “daí a importância de grantes de una comunidad para la direccionalidad
eleger corretamente o instrumento de mobilização política de los procesos de transformación de sus
das massas. Esse instrumento deve ser de índole condiciones de vida y el desarrollo de sus poten-
moral, fundamentalmente, sem esquecer uma cor- cialidades colectivas.” (RBV, 2008: 5).
reta utilização do estímulo material, sobretudo de Esse processo deve se desenrolar nas citadas
natureza social.” (GUEVARA, 1965). Salas de Batalla Social, espaço constituído a par-
Nesses termos e considerando os postulados do tir da congregação de vários Conselhos Comunais,
PPS, bem como os primeiros passos dados com a para operar como lócus de organização popular
Misión Che Guevara e, especialmente, a centrali- onde devem se definir o desenho e a execução de
dade da necessária mobilização das massas para o projetos, programas e políticas sociais, isto é,
Assim, ao passo que um projeto de radicaliza- ARGUMEDO, A. Los silencios y las voces en Amé-
ção democrática genuinamente latino-americano e rica Latina: Notas sobre el pensamiento nacional y
libertário, em todos os níveis, “deve resolver três popular. Buenos Aires: Ediciones del Pensamiento
aspectos fundamentais da vida social: soberania Nacional, 1993.
nacional, justiça social e o exercício democráti-
co do poder” (OURIQUES, 2005: 132), podemos BARROS, P. S. Governo Chávez e desenvolvimen-
inferir, tal como parece indicar o processo boliva- to: a política econômica em processo. Dissertação
riano, que a política social pode constituir-se em (Mestrado em Economia Política) – Programa de
uma ferramenta estratégica para deflagrar a efetiva Estudos Pós-Graduados em Economia Política,
participação da população, na contramarcha dos Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
processos de subalternização política, expropria- Paulo, 2006.
ção econômica e exclusão sociocultural.
Ademais, cabe referenciar que o novo cenário BORON, A. Las políticas sociales en las nuevas
latino-americano oferece fortes indícios de nossa hi- experiencias: de la gestión de la pobreza a los con-
pótese, pois o horizonte político social latino-ameri- tratos públicos por igualdad. Painel de discusión.
cano dos últimos anos é a expressão na conjuntura In: Seminario Nacional: política social
sócio-política do continente de que o projeto boli- ¿un nuevo paradigma? Caracas: FEGS,
variano não é dissonante e solitário. É nessa direção 2004. Disponível em: <http://www.gerenciasocial.
que caminha também o processo de transformações org.ve/bsocial/bs_03/bs_03_contenido.htm> Aces-
sócio-políticas em curso no Equador e na Bolívia. so em 01 fev. 2009.
O momento da América Latina hoje, como propõe
o governo bolivariano da Venezuela é: “Queremos CASANOVA, R. Democracia e políticas sociais
acabar com a pobreza? Demos poder aos pobres” na transição venezuelana: entre o capitalismo as-
(FRIAS, 2004). Sem ilusões a respeito da inevitabili- sistencial e a democracia socialista. In: BORGES,
dade na história, esse rebentar do protagonismo popu- L. F. P.; MAZZUCO, N. G. (orgs.) Democracia e
lar no continente latino-americano é precioso. Ainda políticas sociais na América Latina. São Paulo:
que peremptoriamente em disputa pela cena política Xamã, 2009. p. 61-75.
nacional e internacional, que pode exortar seus traços
mais efêmeros e frágeis, a eclosão de um processo DI FELICE, M.; MUÑOZ, C. A revolução invencí-
revolucionário de tipo tão especial pode ser vigoroso vel: Subcomandante Marcos e EZLN: cartas e co-
o bastante para contribuir na recriação da democracia municados. São Paulo: Boitempo Editorial, 1998.
na América Latina, isto é, na atribuição de um sentido
histórico-concreto da luta das classes populares, em ELIZALDE, R. M.; BÁEZ, L. Chávez nuestro. La
direção da impetuosa organização coletiva e da liber- Habana: Casa Editora Abril, 2005.
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der popular na Venezuela. 2. ed. rev. Florianópolis: Essa pesquisa contou com apoio do CNPq.
1
9
Referente ao poema Canto ao homem do
povo Charlie Chaplin, de Carlos Drummond
de Andrade.
10
Algumas das misiones vigentes, de acordo com
o sítio do governo bolivariano, são: Misión 13
de abril (fortalecimento do poder popular a
través de comunas socialistas), Misión Mercal
(alimentação subsidiada pelo governo e merca-
dos populares), Misión Negra Hipólita (assis-
tência social à população de rua), Misión Habi-
tat (habitação), Misión Guaicaipuro (indígena),
Misión Miranda (defesa da soberania nacional
numa aliança cívico-militar), Misión Identidad
(documentação para venezuelanos e estrangei-
ros), Misión Arbol (produção e conservação na
área rural), Misión Cultura (desenvolvimento
sócio-comunitário e cultural), Misión Ciencia
(desenvolvimento científico e tecnológico en-
dógeno), Misión Piar (diversificação da econo-
mia), Misión Zamora (contra o latifúndio), e as
mais conhecidas: Misión Barrio Adentro (aten-
ção integral a saúde nas comunidades), Misión
Robinson I e Robinson II (educação fundamen-
tal), Misión Ribas (educação de nível médio) e
Sucre (educação de nível superior).
ARTIGO
Resumo: Nesse artigo, examinamos a participação de intelectuais (experts) no desenvolvimento de políticas de imple-
mentação de reformas agrárias na América Latina durante o século XX. Comparamos as experiências resultantes da
aplicação dessas políticas, analisando, em particular, o caso da transformação no uso da terra na Bolívia.
Abstract: In this paper we examine the participation of the intellectuals (experts) in the development of policies for
the implementation of the agrarian reform in Latin America during the 20th century. We compare the experiences re-
sulting from the application of those policies, analyzing, in particular, the case of the transformation in the use of land
in Bolivia.
lação. De acordo com o DAES da ONU “a nova ma agrária”?; “quais são os resultados destas refor-
legislação é completa e complicada às vezes; isto mas?”. Dentre os objetivos, o principal apontado é
se deve, por uma parte, ao esforço para proteger os o de romper a estrutura tradicional da sociedade,
interesses especiais...” (DAES/ONU, 1965). eliminando o poder político dos terratenentes. Este
Percebemos, avaliando a dinâmica sócio-polí- seria um propósito compartilhado indistintamente
tico-econômica das reformas agrárias praticadas, por líderes na emergente classe média, naciona-
que as transformações aludidas na estrutura agrária listas, movimentos operários, comunistas e ainda
muitas vezes viram-se freadas pela intervenção de alguns industriais.
setores intelectuais, responsáveis pelo tom menos Quanto às condições, estariam, grosso modo, a
radical das deliberações legais estabelecidas. As presença de uma estrutura de propriedade da ter-
reformas agrárias tenderam a saídas conciliadoras, ra altamente desigual, a pobreza rural, o fracasso
garantindo a sobrevivência de formas de organiza- na distribuição de benefícios econômicos, a insta-
ção da propriedade e recriando outras. bilidade política e social, e, por último, o que ele
Desta maneira, a reforma agrária, longe de con- denomina de um catalizador, que poderia vir a ser
duzir a rupturas na estrutura social vigente, realo- uma liderança política ou uma espécie de episódio
cou fatores com a finalidade de ampliar espaços particular localizado, envolvendo fatos e pessoas.
da agricultura comercial capitalista, devidamente Os resultados deveriam conduzir, necessaria-
modernizada. mente, ao desenvolvimento econômico que pode-
Diversos processos revolucionários foram con- ria ser alcançado através do incremento da produ-
tidos no marco das reformas estatais. Cabe questio- ção agrícola, da redistribuição dos ingressos e da
nar então se toda e qualquer reforma agrária esgota integração nacional e do “sentido de propósito”,
sua finalidade no redistributivismo modernizante que consistiria no estímulo da vontade de trabalho,
ou pode sugerir o caminho da ruptura com os pa- de sacrifício e de modernização.
drões agrários dominantes. Michel Gutelman (1971), por outro lado, par-
tindo da mesma interrogação original acerca do ca-
Sobre o conceito de Reforma Agrária ráter da reforma agrária, introduz uma segunda for-
mulação que torna sua análise bastante sugestiva.
A indagação mais constante sobre a questão Gutelman questiona se o que ocorre na rea-
agrária na América Latina, entre os anos 60 e 70, lidade dos processos agrários é uma reforma ou
refletiu o papel decisivo das transformações na es- uma mistificação. Ele pergunta: “Como imagi-
trutura agrária que seguia inexorável curso à época. nar, efetivamente, que uma oligarquia no poder
Todo o problema agrário era canalizado para uma iria sacrificar seus próprios interesses de classe
mesma direção: a da necessidade urgente de inter- distribuindo realmente terras?” A partir daí está
venções modificadoras nas formas de propriedade colocado um viés que permite o aprofundamento
agrária e consequente produção agrícola. da questão. Referimo-nos ao que Gutelman define
“O que é reforma agrária?” passou a ser a gran- como “natureza de classe das reformas agrárias”
de questão a ser decifrada pelo conjunto dos atores (op. cit.: 14).
sociais agrários do período. Isto é, por militantes A preocupação de Gutelman é situar, para além
das vanguardas dos movimentos sociais e especial- da reforma agrária em si, o conflito político-ideoló-
mente pela intelectualidade engajada na proble- gico desencadeado a partir das concepções contra-
mática mais candente do período, exatamente a da ditórias elaboradas por setores que vêem nas lutas
perspectiva de resolução para os desafios gerados do campo a ocasião mais propícia para a ruptura
pelos impasses sociais no campo, que vinham ame- radical com as formas de mercado e o começo da
açando a existência dos mais diferentes projetos. implantação do sistema planificado; e pelas outras
Solon Barraclough (1965) vê tamanha comple- correntes, majoritárias, as quais interpretam a re-
xidade na questão chave do problema que a subdi- forma agrária como sendo o movimento ideal para
vide em três perguntas básicas: “quais são os ob- alterar a estrutura agrária com o objetivo de permi-
jetivos daqueles que fazem as reformas agrárias”; tir a chegada, de uma forma ou de outra, do capita-
“quais são as condições que produzem uma refor- lismo ao campo.
Baseando-se neste tipo de argumentação, Mari- No terceiro módulo, aparece o que se chama de
ni ressalta que “as reformas agrárias nasceram sem- Conservadorismo Agrário, subdividido em colo-
pre da dinâmica das classes exploradas. Por outra nização-parcelarização insignificante (Colômbia,
parte, não são as burguesias fortes as que fazem a Peru e Equador), colonização histórica (Argentina
reforma agrária, mas as burguesias fracas, incapa- e Paraguai), conservação agrária rígida (demais
zes de resistir à pressão das massas, ou desejosas países da América Latina). As principais caracte-
de obter um aliado contra o proletariado combativo rísticas desse conjunto são: manutenção do status
(Chile) e inclusive contra a velha oligarquia (Méxi- quo nas relações sociais agrárias e a ausência de
co)” (GULTEMAN; MARINI, 1971: 20). oportunidades reais para a melhoria dos níveis de
Seja como for, parece-nos que a tese de Mari- vida do setor rural.
ni contempla nossa caracterização anterior, pela A abordagem de Delgado nos permite conce-
qual as reformas agrárias latino-americanas têm ber um modelo amplo de reformas, no qual, pela
demonstrado, na prática, com a óbvia exceção de própria nomenclatura utilizada, a reforma agrária
Cuba, que elas proporcionam realinhamentos im- propriamente dita é apenas uma das partes que in-
portantes entre classes e frações de classe, mas não tegram o quadro global de transformações, quase
rupturas essenciais na estrutura sócio-econômica todas parciais, e manutenções da estrutura agrária
agrária, há muito tempo integrada às formas capi- vigente. É perceptível no organograma proposto
talistas de organização e mercado. que a grande maioria dos países da América Lati-
na, até a primeira metade dos anos 60, encontrava-
Tipologia e aplicação das reformas agrárias na se em situação muito pouco evoluída em termos de
América Latina alterações mais sensíveis na estrutura agrária.
As colonizações desempenhavam papel muito
São diversas as tipologias possíveis para retra- mais relevante do que as reformas, restritas a so-
tar o andamento das reformas agrárias na América mente dois países. O conservadorismo, isto é, a
Latina. Alguns autores detiveram-se atentamente completa ausência de desenvolvimento agrícola e
ao processo e formalizaram propostas bastante viá- redistribuição agrária predominavam largamente.
veis, que auxiliam a compreender as aproximações Gunder Funk (1965), partindo da noção de
e diferenças entre as várias experiências de refor- que reforma agrária é um processo essencial-
ma levadas a efeito na América Latina, durante as mente político, tipifica os movimentos aconte-
quatro últimas décadas. cidos até os anos 60 em três categorias distintas:
Iniciaremos por comentar a tipologia desenvolvi- no primeiro, proposto pelos conservadores, fica
da por Oscar Delgado (1965), que consiste em clas- excluída qualquer transformação política signifi-
sificar as reformas agrárias ocorridas a partir de três cativa. Neste grupo ele inclui o gesto de doações
grandes blocos. O primeiro, o das transformações de terra aos camponeses levadas a efeito pela
agrárias, desdobra-se em uma ramificação capaz de Igreja e pelos proprietários terratenentes. Frisa
apresentar uma situação dinâmica das políticas agrá- também que o processo em questão não pode ser
rias e agrícolas. Trata-se dos casos de revolução agrá- classificado de reforma.
ria (Cuba) e reforma agrária (México e Bolívia). O segundo tipo visa à incorporação do cam-
O segundo bloco é denominado genericamen- pesinato à comunidade política nacional pré-exis-
te de Cambio Parcial, consistindo na chamada tente. Segundo Frank, “a reforma agrária que se
colonização-parcelarização que inclui a Venezuela propõe meramente a integrar o campesinato den-
e o Chile. No câmbio parcial ficam afetados certos tro da ordem social existente provavelmente fra-
segmentos e funções da estrutura agrária e não o cassará ainda que obtenha os apregoados fins de
conjunto da mesma, não se ataca o problema do seus proponentes”.
latifúndio, permite-se a conservação do status so- No terceiro segmento, Frank coloca “o único
cial e político da população camponesa, sem que tipo de reforma agrária merecedor do título”. Tra-
se procure mobilizá-la, distribui-se terra aos cam- ta-se daquele em que procura-se realizar uma rápi-
poneses e se faz a titulação de terras públicas e pri- da e fundamental transformação da própria ordem
vadas, anteriormente distribuídas. existente. Cita o exemplo de Cuba revolucionária.
Gunder Frank possui, a nosso ver, nesta orde- As Reformas Agrárias Convencionais, segundo
nação, o mérito de apontar o caráter politicamente grupo tipológico, constituem uma forma negociada
limitado e excludente das avaliações que tendem a entre grupos sociais antagônicos de antiga ou re-
considerar “progressista” o fato de o campesinato, cente formação; suas linhas ideológicas correspon-
ou parte dele, simplesmente integrar-se de alguma dem ao sistema de partidos institucionalizados que
forma à sociedade burguesa. Criticamos anterior- negociam a reforma; não se formula a exigência de
mente esta premissa em autores como Chonchol. uma transformação estrutural e política do Estado,
Por outro lado, consideramos que a tipologia mas uma abertura de seus órgãos assistenciais e de
de Frank é falha em pelo menos dois aspectos. seus mecanismos de distribuição social do ingresso
Primeiro, ele distribui de forma pouco elaborada agrícola; exigem uma transferência do investimen-
os tipos que seleciona, permitindo um verdadeiro to interno do Estado e das massas camponesas para
“abismo” analítico entre os procedimentos con- os grandes proprietários de terra, desviando o giro
servadores e o revolucionário. Em segundo lugar, dos recursos financeiros e impedindo o indispen-
talvez em função do primeiro problema apontado, sável desdobramento da reforma agrária em uma
quando ele se refere ao terceiro tipo e nele inclui revolução agrícola e social.
Cuba, permite uma exaltação da reforma agrária O terceiro grupo é o das Reformas Marginais ou
como processo global, esquecendo-se das especi- Contra Reformas Agrárias. Estas não apontam para
ficidades do caso cubano e de seu processo re- a ruptura do monopólio senhorial sobre a terra ou
volucionário que culmina numa postura político- para a transformação das estruturas latifundiárias;
econômica anti-capitalista. apoiam-se nas negociações entre setores políticos
Antonio Garcia (1973) é o pesquisador que das próprias classes dominantes, por intermédio
elabora a mais extensa e detalhada classificação ti- do sistema conservador e populista de partidos e
pológica das reformas agrárias na América Latina. da aplicação irrestrita das normas institucionais da
Garcia traça inicialmente um panorama das princi- sociedade tradicional; perseguem, como objetivo
pais tipologias até então conhecidas. estratégico, a conservação do status quo, não só
Refere-se, num primeiro momento, ao agrupa- dentro do marco da estrutura agrária, mas também
mento dos tipos já organizados. Divide as tipolo- no âmbito da vida nacional ou das relações interna-
gias conhecidas em econômicas, sociológicas e cionais de intercâmbio.
dialéticas. Ele então passa a discorrer sobre sua Garcia procura ultrapassar os limites da aborda-
própria interpretação quanto ao conjunto de refor- gem técnica, valorizando aspectos sócio-políticos
mas realizadas. capazes de diferenciar em profundidade os múlti-
Garcia procede à feitura do esquema de caracte- plos aspectos da questão.
rização histórica das reformas agrárias na América
Latina. O primeiro grupo, ele denomina Reformas A reforma agrária na Bolívia: a interpretação
Estruturais, que entre outras características inte- de uma experiência
gram um processo nacional de transformações re-
volucionárias da economia, da cultura, do Estado, As interpretações mais generalizadas acerca do
da organização social e política; são lideradas por processo de reforma agrária na Bolívia situam-se
um elenco de novas forças sociais, assumindo estas nos marcos das considerações de caráter político-
a responsabilidade de classes motrizes e conduto- ideológico corroboradas, em alguns casos, pela
ras do processo; fundamentam a mudança em uma organização de um modelo “tecnocrático”. As afir-
alteração simultânea do sistema tradicional e das mações, contidas nos textos que abordam a ques-
normas institucionais que o preservam e expres- tão, percorrem o amplo espectro das tendências que
sam; criam uma nova imagem nacional e orgânica marcam a discussão do tema. Observamos, por um
do Estado, como estrutura básica da transforma- lado, colocações que visam a justificar a condução
ção, da representação, da integração e do desen- política da reforma governamental empregando
volvimento; tornam irreversíveis as conquistas al- forte conteúdo legitimador a suas análises (DEL-
cançadas com a abolição das formas arcaicas de GADO, 1965). Neste caso, a legitimação tem um
latifúndio de colonato. sentido conservador, na medida em que ratifica o
papel desempenhado pelos formuladores legais da conduziria necessariamente a uma radical mudan-
política agrária, sem questionar sequer a existência ça ideológica na forma de agir dos atores sociais.
de movimentos sociais agrários dispostos a refutar Em pólo oposto ao da legitimação técnica, po-
a orientação imprimida pelo Estado às transforma- lítica e ideológica da reforma agrária legal levada
ções no sistema de propriedade da terra. adiante pelo Estado, encontra-se o setor responsá-
O fato de que a ação estatal correspondia a uma vel por uma ruptura crítica com os preceitos e a
intervenção politicamente radical em meio a uma execução prática da reforma estatal. A crítica aos
conjuntura revolucionária não neutraliza o caráter procedimentos reformistas do Estado bifurca-se,
de parcialidade histórica das teses legitimadoras. em pelo menos, duas posturas basicamente anta-
Os principais argumentos dos que legitimam a gônicas. Uma delas desautoriza a reforma legal
reforma agrária oficial na Bolívia relacionam-se tendo em vista o fraco alcance das expropriações –
com a propalada destruição do sistema latifundi- autorizadas pela legislação – das grandes proprie-
ário oligárquico. Paralelamente, a reforma agrária dades. Esta corrente crítica, a qual nos referimos,
legal teria obtido a introdução no país de formas limita-se a censurar o procedimento do governo
agrárias intermediárias entre o grande latifúndio e nacionalista revolucionário quanto, fundamen-
a mão de obra servil despossuída. O conseqüente talmente, à timidez na execução de um programa
estabelecimento do setor agrário identificado com de implantação de um amplo setor de pequenos
a pequena propriedade viria como corolário de proprietários rurais (ANTEZANA,1979). Assim
todo este processo. A democratização das relações sendo, a crítica dirige-se à inoperância da lei em
políticas e sociais no campo constitui-se também relação ao cumprimento de medidas políticas que
em forte argumentação a favor dos efeitos da re- viessem a acelerar a introdução de formas capita-
forma estatal. Exemplifica-se, neste sentido, com listas no campo. Desta maneira, o esboço crítico à
a permissão e imediata regulamentação dos sindi- reforma praticada assume um viés reducionista ao
catos de trabalhadores rurais e da Confederação não formular precisamente a questão dos grupos de
Nacional de Trabalhadores Camponeses Bolivia- pressão envolvidos. Disto redunda a minimização
nos (CNTCB), vinculados ao então recém criado das influências políticas e sociais sobre o quadro
Ministério de Assuntos Camponeses. Em 1953, o da reforma. Aparentemente, esta abordagem não
número de sindicatos camponeses contava-se aos leva em consideração as necessárias distinções só-
milhares, incluindo camponeses das comunidades cio-políticas entre categorias históricas tais como:
indígenas preservadas ou restauradas pela força campesinato, produtiva e culturalmente organizado
das armas durante os primeiros meses da revo- em comunidades indígenas secularmente estabele-
lução de 1952. Outro relevante aspecto utilizado cidas; campesinato submetido a formas de trabalho
para justificar a conveniência de adoção dos me- servil no sistema de haciendas ; e, por último, o
canismos técnico-políticos propostos pelos legis- pequeno e médio proprietário rural, relativamente
ladores oficiais da reforma seria o de permitir a capitalizado, integrado de alguma forma ao merca-
real integração entre campo e cidade, através da do. A ausência de compreensão das diferenciações
formação de “uma nova burguesia agrária”, im- histórico-teóricas entre as mencionadas categorias
pulsionada por uma burguesia industrial “que pro- permite aos adeptos dessa corrente crítica conce-
tagoniza o desenvolvimento” (RIGOL,1976). ber de forma mecânica a superação de situações
O maior argumento de ordem “tecnocrática”, sociais arraigadas e historicamente relacionadas.
empregado para legitimar a aplicação do conjunto Referimo-nos à suposta possibilidade conferida à
de medidas que resultaram na lei de reforma agrá- propriedade parcelária da terra de promover, por
ria de Agosto de 1953 é o de que a racionalidade si só, sob qualquer condição histórica dada, o ple-
técnica e administrativa, garantida pela execução no desenvolvimento de uma agricultura capitalis-
sistemática da reforma, permite a planificação ta social e economicamente avançada. Vale dizer:
global e setorial fazendo supor a presença de uma pretender que se estabeleça na formação social
nova ordem político-econômica no país. Em fun- boliviana, via legislação agrária, algo próximo da
ção da modernização alcançada na relação Estado- revolução farmer norte-americana do século XIX
Sociedade, a ampliação da participação política significa negar a historicidade inerente a processos
de transformação econômica e social nas socieda- em nossa análise a questão do permanente cotejo
des capitalistas dependentes. entre via parcelária e via coletiva da terra, levan-
Em termos de crítica extrema aos métodos e do em conta a categoria teórica da renda fundiá-
objetivos empregados pelo Estado boliviano para ria. Estabelecemos uma hipótese central, pela qual
consumar a reforma agrária, evidencia-se a elabo- consideramos que a reforma agrária estatal boli-
ração proveniente dos setores políticos oriundos viana pretendeu nacionalizar parcialmente a terra
do movimento operário mineiro (LORA,1963). para intervir no processo de apropriação da renda
Esta corrente não apenas rejeita radicalmente a fundiária, recriando as condições de existência da
postura nacionalista burguesa imprimida pela re- propriedade camponesa, com o objetivo de redire-
forma legal, como contrapõe a ela uma perspec- cionar o fluxo da renda, favorecendo a industria-
tiva socializante do uso da terra. Esta argumen- lização acelerada do setor capitalista urbano. No
tação baseia-se na constatação de que a pequena caso da Bolívia, basicamente, o setor mineiro ex-
propriedade parcelária encontra-se historicamente portador. Este processo é viabilizado por alianças
em absoluta oposição frente a forma de organiza- políticas em torno do Estado, configurando uma
ção social produtiva das comunidades indígenas situação em que a fração dominante industrial-
estruturadas na formação sócio-econômica da mineira submete historicamente o setor agrário
Bolívia. Esta tese vê na distribuição da terra em tradicional, procurando subtrair-lhe a renda e apro-
pequenas parcelas o próprio germe da subsequen- priar-se, consequentemente, do lucro suplementar
te instalação do sistema de propriedade latifundi- resultante (COSTA NETO, 1996). Isto já explica,
ária, com o inevitável submetimento do campo- a nosso ver, a indiscutível opção da reforma legal
nês à condição de agregado servil. Além disso, a pelo estabelecimento da chamada via parcelária
garantia do regime agrário comunal, baseado na (pequena propriedade camponesa) em detrimento
consígna política de “terra para os índios”, tra- da grande produção coletivizada.
ria duplo benefício para o campesinato: por um Abordando a constituição histórica das formas
lado, serviria de proteção “político-administra- camponesa – fundamentalmente da pequena pro-
tiva” contra os constantes ataques e usurpações dução agrária mercantil sob o capitalismo – em
promovidas pelos terratenentes e pelo Estado e, relação à questão da renda fundiária, constatamos
paralelamente, estaria consagrando a propriedade que Marx percebeu que nelas “a renda não aparece
coletiva da terra, própria do sistema comunal. como forma particular da mais-valia”, mas “como
Mesmo considerando que esta última aborda- lucro suplementar que pertence ao camponês, a
gem crítica é mais coerente em suas premissas do quem cabe o rendimento todo do trabalho”. A exis-
que a primeira já avaliada, na realidade, tanto ela tência de lucro suplementar, como forma de absor-
como as demais interpretações analisadas, inclu- ção da renda faria do camponês, segundo Marx,
sive as que procuram justificar a reforma estatal, um pequeno produtor capitalista. Isto ocorre ape-
carecem de sustentação objetiva. Nossa preocu- nas em termos potenciais pois, como Marx mesmo
pação neste estudo é aprofundar a discussão em reconhece, “o único limite absoluto para o campo-
torno dos resultados da reforma agrária bolivia- nês é o salário que paga a si mesmo, após deduzir
na, tendo em vista fatores ainda não devidamen- os custos propriamente ditos. Enquanto o preço do
te trabalhados pelas abordagens aqui enfocadas. produto o cobrir, cultivará a terra e, frequentes ve-
Embora não negligenciando o importante aspec- zes, submetendo-se a salário reduzido, ao mínimo
to relacionado às condições político-ideológicas vital” (MARX,1984: 923). Marx observa, portanto,
como motivação para a reforma, consideramos na pequena propriedade, o predomínio do trabalho
essencial ir além desta perspectiva de avaliação isolado, não social.
para efetivamente acompanhar de maneira objeti- Procurando interpretar as transformações ocor-
vamente histórica os passos dados no transcorrer ridas nas atividades camponesas, ligadas à produ-
da reforma até sua conclusão. ção agrícola, na Bolívia entre 1952 e 53, o pesqui-
Partindo da realidade material do processo his- sador Ronald Clark admitiu como “provável que
tórico boliviano no período da reforma agrária, de- a família camponesa, que já não estava obrigada
finimos como traço metodológico a ser empregado a trabalhar um período determinado de tempo nas
terras dos proprietários, houvesse decidido traba- trial capitalista ou, no caso da reforma boliviana,
lhar menos horas” (CLARK,1980). Silvia Rivera para o Estado, que se responsabilizava diretamente
assinala que o rumo geral do processo da reforma pela economia nacionalizada.
agrária na Bolívia foi o da redistribuição parcelá-
ria da terra que gerou um novo tipo dominante de Considerações finais
produção agrária: a pequena produção mercantil,
baseada na gestão familiar, e vinculada em maior O caso boliviano revela, a nosso ver, que a im-
ou menor grau a formas comunitárias de reprodu- plantação de formas econômicas capitalistas, no
ção. A mesma autora destaca que, após a reforma, conjunto da sociedade, veio precedida por uma re-
surgiram novas redes mercantis que deram lugar à forma agrária que restaurou, no sentido histórico, e
formação de monopólios comerciais não controla- disseminou profundamente, a pequena propriedade
dos pelo campesinato indígena. Rivera afirma que agrícola mercantil.
“a política de preços do Estado, destinada a favore- O impulso capitalista no sentido de garantir, a
cer a acumulação no setor industrial e exportador, todo custo, a acumulação industrial resultou em
privilegia os baixos preços ao consumidor, ainda uma modernização distorcida, do ponto de vis-
que isto resulte em déficit para o produtor” (RIVE- ta do próprio capital, nas sociedades onde este
RA, 1983: 132-134). exerceu influência constante, com o objetivo de
Se relacionarmos a justificativa de legitimação reproduzir-se social e economicamente, tal como
técnica da reforma agrária oficial, acima mencio- ocorreu na Bolívia.
nada, no que se refere à relação campo/cidade e A referida distorção relaciona-se com o fato do
agricultura/indústria com as referências teóricas de capitalismo haver recorrido à “recriação” da pe-
Marx sobre a propriedade parcelária camponesa, quena propriedade agrícola mercantil para poder
associando-se com as constatações acerca da redu- impor-se nas atividades vinculadas à agricultura.
ção das atividades camponesas durante a reforma O resultado da expansão capitalista, exemplifi-
agrária boliviana e levando em conta as observa- cado no estudo de caso boliviano, foi a formação
ções sobre a política de preços do Estado frente à de um numeroso campesinato, economicamente
pequena produção mercantil na Bolívia daquele marginalizado, socialmente pauperizado e politi-
período, estaremos diante de algumas revelações camente fragilizado.
extraídas do processo histórico. Na Bolívia, o campesinato “recriado” pela re-
Inegavelmente, há fortes indícios na realidade forma agrária institucional distributiva conduziu,
dos fatos apresentados que abonam nossa hipótese indiretamente, à estruturação do segmento agro-
central, anteriormente referida, segundo a qual a industrial, baseado na grande propriedade, depen-
política de Estado, na vigência da reforma agrária dente do apoio financeiro do Estado e de organis-
boliviana, privilegiou o segmento dominante ur- mos internacionais de fomento, sem condições de
bano, ao proporcionar a drenagem do lucro suple- sustentação econômica duradoura e efetiva.
mentar, contido na renda fundiária, do campo para
a indústria. Antes da reforma, a renda da terra era Referências bibliográficas
auferida pela oligarquia latifundiária, através do
sobre-trabalho camponês e do controle da política Amin, S.; Vergopoulos, K. A Questão Cam-
de preços. Depois de iniciada a reforma, o campe- ponesa e o Capitalismo. Lisboa: A Regra do Jogo,
sinato passou a ditar o ritmo da produção agrícola, 1978.
embora, como vimos, não controlasse a distribui-
ção e os preços. Ao produzir para si mesmo, sem Antezana, L. Proceso y setencia a la Reforma
visar a renda e o lucro, o camponês contribui para Agraria en Bolivia. La Paz: Puerta del Sol, 1979.
que se verifique o chamado processo de “intercep-
tação da renda” (AMIN; VERGOPOULOS, 1978: Barraclough, S. Qué es una Reforma Agra-
228-233), que consiste exatamente na transferência ria ? In: Delgado,O. (org), Reformas Agrárias
do lucro suplementar obtido a partir do usufruto da en la América Latina. México: Fondo de Cultura
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tina: a experiência da Bolívia (1952-1979), Tese
de Doutorado, Niterói, UFF, 1995.
ARTIGO
Nora Clichevsky*
A regularização urbana melhora as condições de vida da população de baixa renda na América Latina?
Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar os programas e projetos de regularização de posse como urbana e
integral, como uma das políticas sociais implementadas na região. O aumento da magnitude da população vivendo em
diferentes tipos de informalidade, em um contexto macroeconômico de maior iniquidade do que em décadas anteriores e
a impossibilidade de oferecer um habitat adequado através das políticas que se implementam tradicionalmente em déca-
das passadas, fez com que os governos encarem, especialmente desde os anos noventa, políticas tendentes a melhorar a
situação urbana dos ditos habitantes informais e/ou solucionar a situação de posse irregular dos mesmos. Os supostos são
diversos e os mesmos têm orientado a formulação e execução dos programas e projetos, com diferentes ênfases, que têm
significado também diferentes tipos de solução e resultados para a população que tem sido objeto das mesmas.
Palavras Chave: Informalidade urbana; Regularização; Política social.
Does urban regularization in Latin America improve living conditions for lower income population?
Abstract: This article aims to present programs and projects of urban land regularization. This is one of the social
policies implemented over the region and involves dominial, urban and integral programs and projects. Latin Ameri-
can governments are developing --especially since the nineties-- policies to improve the urban situation of informal
habitats and / or resolve the situation of illegal possession of them. This new approach is a consequence, on one hand,
for the increasing number of people living in different types of informality, (as a part of a macroeconomic context of
greater inequality than in previous decades), and the public inability to provide suitable habitat through traditionally
policies implementation, on the other. Assumptions of new policies are different than the correspondent to applied
policies along the past decades and have guided the formulation and implementation of programs and projects, with
different emphases, which have provided, different types of solutions and also different types of consequences for the
involved population.
Keywords: Urban informality; Regularization; Social policy.
¿La regularización urbana mejora las condiciones de vida de la población de más bajos ingresos en Latinoamérica?
Resumen: Este artículo tiene por objetivo presentar los programas y proyectos de regularización tanto dominial, como
urbana e integral, como una de las políticas sociales implementadas en la región. El aumento de la magnitud de la
población viviendo en diferentes tipos de informalidad, en un contexto macroeconómico de mayor inequidad que en
décadas anteriores y la imposibilidad de brindar un hábitat adecuado a través de las políticas que se implementaban
tradicionalmente en décadas pasadas, ha definido que los gobiernos ejecuten, especialmente desde los años noventa,
políticas tendientes a mejorar la situación urbana de dichos hábitats informales y/o solucionar la situación de tenen-
cia irregular de los mismos. Los supuestos son diversos y los mismos han guiado la formulación y ejecución de los
programas y proyectos, con diferentes énfasis, que han significado, también, distintos tipos de soluciones y resultados
para la población que ha sido objeto de los mismos.
Palabras- clave: Informalidad urbana; Regularización; Política social;
prefiera vender sus tierras a grupos económicos bién en terrenos privados— asumen otras formas
que desean invertir en la ciudad, en detrimento de de ocupación, desde la casi “familia por familia”
usarlas para suplir la demanda de los sectores de de las villas, callampas, favelas, etc.—, hasta las
menores ingresos. organizadas que pueden ocupar un terreno, en ge-
Para entender las distintas ilegalidades existen- neral fiscal, en menos de 24 horas con una poblaci-
tes en la actualidad es necesario remontarse a la ón de hasta 20.000 habitantes.
historia de las ocupaciones directas, los mercados Existe multiplicidad de tipos de informalidad,
informales y la constitución de mercados al inte- algunos históricos y otros nuevos, y un crecimien-
rior de las ocupaciones (CLICHEVSKY, 2003). La to cuantitativo de población que vive en ellos,
“producción” en el mercado ilegal asume distintas aunque en algunos países la puesta en marcha de
formas, que es difícil conocer en su integridad, de- programas masivos de legalización dominial ha
bido a la complejidad de procesos y agentes5 —y mejorado la situación, como en Perú desde fines
hasta relaciones con el mercado legal—. General- de los años noventa. La cuantificación de la infor-
mente, la misma se realiza de manera dispersa a malidad es difícil por: i, el dinamismo de los pro-
través de loteos en la periferia urbana, en algunos cesos informales; ii. la falta de registros comple-
casos de más de 100 Has., a veces localizados en tos de regularización; iii. lo complejo de dichos
sectores de fuerte fragilidad ambiental. En otros procesos, en los cuales muchos se encuentran “a
casos, los loteadores utilizan terrenos intersticiales mitad de camino” de la regularización. El Cuadro
entre subdivisiones legales. Las ocupaciones direc- Nº 1 muestra la situación en algunos países y ciu-
tas —en tierras principalmente fiscales, pero tam- dades de la región.
yy Ampliar el universo de los clientes de las em- Nacional de la Vivienda, la Junta Nacional de
presas privatizadas de los servicios públicos. la Vivienda, el Organismo de Desarrollo de los
Pueblos Jóvenes, el Sistema Nacional de Apoyo
yy Hacer de la legalización un aliciente para a la Movilización Social y el Ministerio de Vi-
mejorar las viviendas. vienda. Entre 1980-1995 fueron los gobiernos
municipales provinciales quienes asumieron
yy Disminuir los problemas de salud, los riesgos dicha labor, con muy escasos resultados, por la
por vivir en áreas anegadizas, erosionadas, a cantidad de trabas burocráticas y los larguísimos
partir de la construcción de infraestructura y procesos (en algunos casos con más de 120 pa-
de equipamientos colectivos. sos). En Brasil, el esfuerzo pionero fue realizado
por los Municipios de Recife y Belo Horizonte,
yy Luchar contra los narcotraficantes; aunque seguidos por los de Diadema y Río de Janeiro,
esto ha sido difícil, pues incluso se ha tenido en la década del 80 y a partir de 1989 las expe-
que negociar con ellos para poder mejorar riencias se multiplicaron. Recife implementó el
algunos barrios, o legalizarlos. Plano de Regularización de las Zonas Especiales
de Interés Social —PREZEIS— y Río de Janei-
yy Reducir la violencia urbana, aunque te- ro el Programa de Regularización de Loteos; en
nencia segura y/o mejoramiento urbano ambas se posibilitó la participación integral de la
no significan por si solo menor violencia comunidad y de las organizaciones de la ciudad
si no están acompañados por otras medi- involucradas en la temática para formular y eje-
das preventivas y de acompañamiento de cutar la política.
la población. En Colombia, se plantean procedimientos
para Planes y Programas de Habilitación o Me-
yy Promover del empleo a través de la cons- joramiento de barrios desde 1963. En 1972 se
trucción por mejoramiento barrial implementa el Programa Integrado de Desarrollo
Urbano para la Zona Oriental de Bogotá –PIDU-
yy Hacer clientelismo. ZOB—, y en 1983 el Programa de Desarrollo In-
tegrado Ciudad Bolívar. En promedio, con todos
Un panorama general de los Programas/Proyectos los esfuerzos realizados, los procesos de legali-
zación podían durar hasta 10 años. En 1971, el
En algunos países, las experiencias de déca- Gobierno Federal de México encargó al Instituto
das anteriores en la aplicación de políticas, han Nacional de Comunidades Obreras —INDECO—
condicionado los procesos actuales de regulari- legitimar la tenencia de la tierra en los asenta-
zación, tanto dominial como urbana e integral. mientos irregulares así como prever espacios para
En Brasil han sido la base de las actuales po- el crecimiento de las ciudades. Ese mismo año
líticas; en Perú, justamente la escasa repercusi- creó el Programa Nacional de Regularización de
ón que habían tenido la implementación de las Zonas Urbanas Ejidales —PRONARZUE—, a fin
mismas desde 1961, sumado a factores políticos de regularizar la tenencia de la tierra en los asen-
e influencia de los supuestos de Hernando De tamientos a nivel nacional, el cual se transforma
Soto, definen un cambio en la formulación en la en 1973 en el Comité para la Regularización de la
década del noventa. Tenencia de la Tierra —CORETT— (Comisión, a
Los primeros programas de regularización partir de 1974).
dominial fueron implementados en situaciones En otros países, los programas de mejoras de
donde la informalidad era muy grande, por las la situación urbano ambiental se han aplicado
políticas normativas muy restrictivas implemen- de forma independiente a la legalización domi-
tadas hacia el mercado legal, como es el caso nial e incluso de manera poco estructurada en
de Perú. Entre 19616 y 1980, el gobierno cen- términos de configuración urbana resultante,
tral asumió la política dirigida a las barriadas articulación entre obras realizadas, etc. Vene-
a través de varias instituciones: la Corporación zuela es el caso más paradigmático al respecto;
desde los años cincuenta se habían implemen- recta con políticas que tienden a la regularización.
tado propuestas de mejoramiento de los bar- El caso de Perú es paradigmático: el Presidente
rios (ranchos); a partir de 1968 se desarrolló la Fujimori elimina el concepto de función social en
política de proveer servicios a los invasores de la reforma constitucional que promueve a inicios
terrenos, también a aquellos en difíciles condi- de la década del noventa, y es el momento donde
ciones topográficas y en pendiente. Esta política se implementa el programa masivo de regulariza-
pública de mejoramiento y de tolerancia frente ción dominial.
a las ocupaciones, estimuló nuevas invasiones7 En cuanto a las políticas específicas urbano-
y los desalojos promovidos por los propietarios ambientales, los dos países que se encuentran
eran difíciles de efectuar, dado la movilización liderando el proceso son Colombia y Brasil. En
de la población. La regularización dominial ha el primero de dichos países, las Leyes de Refor-
comenzado recién en 2002. ma Urbana y de Desarrollo Territorial9 han sido
Un conjunto de países ha realizado cambios innovadoras en cuanto a las formas de gestionar
en los marcos legales que han tenido directa sig- la política urbana, aunque las mismas poseen
nificación para la definición de políticas específi- una incidencia mucho mayor en las políticas
cas de regularización. En otros hubo importantes de prevención de la informalidad. En Brasil, el
modificaciones constitucionales, como en Brasil, Estatuto da Cidade10 define a nivel federal las
Colombia y México. En Brasil, la Constitución políticas que ya se implementaban a nivel local
de 1988 incluyó el concepto de función social desde hace décadas como las ZEIS y el CDRU y
de la propiedad y se institucionalizó a nivel na- establece el usucapión individual y colectivo.
cional la Regularización Dominial, a partir de la Las políticas de regularización se imple-
cual la mayoría de las Constituciones Estadua- mentan a través de distintos instrumentos; en
les, Leyes Orgánicas Municipales y Planes Di- algunas realidades se hace a través de leyes o
rectores realizados en los inicios de la década del decretos específicos o a través de un marco le-
90, colocaron explícitamente como un objetivo gislativo; en otras, por Programas o Proyectos.
la regularización dominial. Dicha Constitución La diferenciación de los mismos importa, dado
define el usucapión urbano, que contempla la ad- que de ellos depende el tipo de regularización
quisición del derecho de propiedad de quienes que se realiza en cuanto a la masividad, el tipo
detentan la posesión de la tierra durante un lapso de informalidad que se pretende solucionar, el
ininterrumpido de cinco años, sin haber oposici- nivel de gobierno que interviene y los recursos
ón del propietario a dicha posesión8. disponibles. El Cuadro Nº 2 presenta el uni-
En Colombia, los cambios introducidos en verso de proyectos y programas existentes. Se
1991 permiten implementar políticas sobre re- identificaron 24 programas de regularización
forma urbana y desarrollo territorial, e incluso dominial, 1 Decreto y 2 Leyes de legalizaci-
se abrieron posibilidades como la de expropiar ón dominial, en 11 países y se identificaron 47
por la “vía administrativa” y, en situaciones ex- Programas en 13 países de regularización urba-
cepcionales, sin indemnización. En México, la na e integrales11.
reforma constitucional de 1992, permitió una Los programas pueden ser de regularizaci-
nueva forma de encarar la situación de propie- ón dominial o de mejora de la situación urbana
dad de los terrenos ejidales (AZUELA, 2001). y/o ambiental, o sectoriales. Existe una última
En Argentina hubo cambios constitucionales, en generación de proyectos mucho más integrales,
1994, pero no han significado avances sobre el incluso algunos son segundas etapas de progra-
acceso al suelo. mas de vivienda, como el de Ecuador, que incluye
Interesa destacar que el hecho de que los mar- un componente de mejoramiento barrial, que se
cos constitucionales incorporen la función social realizan, aunque parcialmente, con participación
de la propiedad no significa que en los respecti- social y se vinculan a planes directores o marcos
vos países se implementen políticas de mejora de más generales como en Colombia, con los Pla-
las condiciones de la población pobre respecto al nes de Ordenamiento Territorial -POT- y en Brasil
acceso al suelo urbano ni hay una correlación di- con el Estatuto da Cidade.
Cuadro 2. Universo de Programas/Proyectos, por país, tipo de regularización e informalidad que legalizan
Tipos de Programas/ Proyectos Tipo de informalidad que regulariza
Países Urb./ Ocupación Ocupación Mercado
Total Dominial Integral T. Pública T. Privada ilegal Otros
Argentina 3 1 2 x x
Bolivia 4 4 - x x
Brasil 18 4 14 x x
Chile 7 2 5 x x
Colombia 6 3 3 x x
Costa Rica 1 - 1
Ecuador 4 1 3 x x
Guatemala 6 3 3 x
México 5 2 3 x x x
Nicaragua 5 2 3 x x
Paraguay 5 - 5
Perú 2 1 1 x
Uruguay 2 - 2
Venezuela 3 1 2 x
TOTAL: 13 71 24 47
Fuente: Clichevsky, Nora, 2006
Las nuevas políticas de regularización se defi- o locales respecto a las metodologías que propo-
nen además de los supuestos señalados más arriba, nen los organismos internacionales o bilaterales
por los préstamos que las entidades financieras in- de crédito, especialmente el BID y el Banco Mun-
ternacionales quieran otorgar y los países puedan dial; los programas con financiamiento externo
o están dispuestos a tomar. En la mayoría de los han tenido una influencia mayor en aquellos pa-
programas analizados los supuestos no se encuen- íses sin antecedentes en este tipo de programas.
tran explícitos. Los Programas que más definen sus En aquellos que tenían una historia por detrás, las
supuestos, son los de legalización dominial, impul- metodologías se ajustaron a las situaciones na-
sados, tanto por las indicaciones de UN-HABITAT cionales; pero en otros países, en los cuales los
sobre seguridad de la tenencia, como influidos por programas nacionales, como en Perú, habían sido
las ideas de De Soto (1987; 2003). Ello ocurre en un fracaso igual fue más fuerte la impronta in-
Perú, México, Venezuela, el Caribe y Centroamé- ternacional. Asimismo, la campaña del “alivio a
rica. En Guatemala se incluye como objetivo pro- la pobreza” llevada a cabo principalmente por el
piciar el acceso y legalización de la tenencia de Banco Mundial, ha significado que se haya intro-
la tierra con vocación habitacional, con prioridad ducido un componente de regularización en algu-
a las familias en situación de pobreza y extrema nos de estos programas, como en Guatemala.
pobreza. Otro ejemplo es Guyana, donde los argu- Son excepciones los programas que poseen
mentos a favor de la regularización de la tenencia consideraciones en torno a los parámetros urbano
de la tierra y los derechos de propiedad como un ambientales para los lotes a legalizar, y ellos están
modo de escapar de la pobreza fueron ampliamente explicitados solamente en pocos casos de regula-
reforzados por los trabajos de Hernando de Soto. rización urbana, y en ninguno de regularización
Los programas siguen ciertos “modelos” en dominial. Los programas no han elaborado pautas
base a los supuestos que utilizan y en función de urbanas especiales – superficie lote, localización,
quienes son las instituciones financiadoras. En servicios y equipamientos, ambiente natural-, con
este último aspecto, es interesante observar qué excepción de los de mejoramiento urbano imple-
innovaciones introducen los gobiernos nacionales mentados a través de préstamos de organismos
internacionales, que los colocan como condición. blación viviendo en la informalidad: mientras que
Algunos de los proyectos de mejoramiento en los los proyectos en Belém y Salvador solo tenían por
cuales es imposible realizar la regularización en las objetivo regularizar a 1,68% y 1,14% respectiva-
condiciones actuales de consolidación y hacina- mente, de la población viviendo en la informali-
miento han considerado opciones para la reubica- dad, en Goiania tal cantidad representaba el 9,46%,
ción de parte de la población localizada en áreas de mientras que en Recife y Porto Alegre algo más del
riesgo así como para disminuir las densidades. La 38%, en Río de Janeiro algo más del 46% y en Te-
sustentabilidad ambiental tampoco está contempla- resina el 100%. Interesa señalar que los proyectos/
da en la formulación de muchos de los programas, programas que regularizaban a una cantidad mayor
por lo menos a nivel explícito, o lo dejan librado de población eran exclusivamente dominiales. Lo
a los municipios (ejecutores de planes urbano am- mismo ha ocurrido en Perú y México, donde los
bientales, si es que éstos existen). porcentajes de población legalizada dominialmen-
En la mayoría de los programas, las regula- te son muy altos, sobre todo en el primero de los
ciones estatales han debido flexibilizarse para ser países (aproximadamente el 70% de la población
aprobadas las regularizaciones, pues los códigos que vivía en la informalidad al inicio del programa
de construcción, las normas de planificación y los de regularización masiva).
estándares de infraestructura urbana que se aplican El tipo de informalidad más atendida es la ocu-
en otras áreas de la ciudad suelen ser inapropiados pación directa sobre tierra pública (o comunal/eji-
y no pueden aplicarse a proyectos de mejoramiento dal, en algunos países como México). Ello se da
de asentamientos informales12. Para poder legalizar tanto en los programas de regularización dominial
la tierra que ocupa, la población debe poseer requi- como los de regularización urbana e integral. Son
sitos distintos que varían según los países-. Gene- escasos los programas que atienden a la población
ralmente se exige un tiempo mínimo de permanen- que ha ocupado tierra privada de manera directa, y
cia en el lote (que en muchos casos no se cumple, mucho menos aun a los que han comprado tierra en
pues se han legalizado tierras baldías, como en los mercados ilegales.
Perú); no poseer otra propiedad en el país (lo cual La legalización dominial en general se realiza
es difícil de documentar, dado la falta de catastros sobre tierra fiscal. Si bien muchos de los programas
actualizados y centralizados en muchos países de de regularización se plantean legalizar las ocupa-
la Región); ser jefe o jefa de familia (dando priori- ciones en tierra privada, el número de soluciones es
dad a la mujer, cuando existe una política definida significativamente menor que en las tierras fiscales,
a tal efecto), no tener deudas con el Estado. Otro dado que el Estado debe primero expropiar la tierra
requisito, y esto atenta contra la superación de la para luego traspasarla a los ocupantes, o ser media-
pobreza, es poseer un ingreso que permita un tipo dor en una negociación directa entre los propieta-
de pago; de lo contrario, parte de la población –la rios del suelo y los ocupantes, para que el precio que
más pobre e indigente- queda afuera de los Progra- los primeros coloquen sea compatible con la capa-
mas, salvo en aquéllos donde el pago es simbólico cidad de pago de la población. Los programas de
o subsidiado totalmente13. regularización dominial más exitosos, en términos
La proyección de la cantidad de soluciones que de cantidad de soluciones, son los de Perú y Mé-
los programas van a resolver es muy distinta; in- xico14. Desde 2002, Venezuela está implementando,
cluso en algunos de ellos no se explicita el numero también un programa masivo de regularización con
como es el caso del Programa de Regularização participación de la población, a través de los Comi-
Fundiária–PRF- de Porto Alegre. Otros surgen tés de Tierra Urbana –CTU-. Hasta 2006, se habían
de alguna definición territorial: dar solución a la constituido Comités de Tierra Urbana en 111 de los
población que ha sufrido inundaciones, por ejem- 336 municipios venezolanos, cuyo trabajo ha bene-
plo, entonces la población es toda la que se halla ficiado a 106.483 familias, con la entrega de 70.762
habitando en tales circunstancias, otros son un ba- títulos de propiedad, debidamente registrados en los
rrios determinado, o un área piloto. En un trabajo organismos competentes.
realizado en Brasil (IBAM, 2002), se ha evaluado En Perú se crea la Comisión de Formalización
la cantidad de población objetivo, frente a la po- de la Propiedad Informal -COFOPRI- en el ámbito
del Ministerio de Justicia, organismo encargado de bitantes del país. En Quito, Ecuador, desde el año
diseñar y ejecutar un Programa Nacional de For- 2001, el Municipio Metropolitano ha mostrado un
malización, en 1996. En dicho año, se calculaba mayor interés en legalizar y regularizar los asenta-
que el 50% de los titulares de vivienda urbana no mientos; para ello, se conformó en el Municipio la
tenían titulo de propiedad (ROUILLON, 2004) en Unidad Suelo y Vivienda, que hasta fines de 2004
2 millones de predios avaluados aproximadamen- ha regularizado 105 barrios y 27.500 propiedades.
te en 20.000 millones de dólares. COFOPRI de- En Bolivia, el Programa ARCO se ha iniciado hace
sarrolla su labor en 78 provincias ubicadas en 17 5 años, en programas piloto de El Alto y Cocha-
departamentos, y abarca el 46% del área urbana de bamba, aunque el mismo se desarrolla a partir de
Perú. Los objetivos de la titulación masiva son in- un marco legislativo que tiene por objetivo la lega-
crementar el valor de las propiedades, integrarlas lización masiva; aun no se han obtenido elementos
al mercado inmobiliario y mejorar el acceso a ser- para poder evaluar sus resultados.
vicios de infraestructura básica y al crédito. Los Programas de regularización urbana e inte-
En 1998 se aprobó el Proyecto de Derechos de grales poseen diferentes componentes; en la mayo-
la Propiedad Urbana –PDPU- a través de un con- ría se contempla la provisión de red de agua, de-
venio entre el BIRF y el gobierno peruano. El ob- sagües cloacales, pavimento, centro educacional,
jetivo del Proyecto es la formalización integral de centro de salud, equipamiento comunitario, núcleo
los derechos de propiedad. Entre 1996 y 2004 se húmedo dentro del lote y en algunos casos, vivien-
entregaron en todo Perú, incluido Lima, 1.425.688 da. En los Programas integrales, es fundamental,
títulos en 1.929.070 lotes en 13 localidades. So- asimismo, el acompañamiento social de los proyec-
lamente en Lima se otorgaron 635.851 títulos en tos de obra, y, en algunos, la generación de emple-
785.911 lotes (SAAVEDRA, 2005). De la totalidad os. La mayoría de los programas integrales poseen
de los títulos, 1.188.094 corresponden a propieta- un fuerte componente de acompañamiento social
rios de viviendas en barriadas, 43.272 a propieta- y en muchos de ellos, también, un componente de
rios en asociaciones y cooperativas de vivienda, fortalecimiento institucional. En muchos se desar-
194.322 a población de programas de vivienda del rolla un componente de generación de empleo y/o
Estado, 24.396 a organizaciones de base y entida- de capacitación, lo que significa una mayor posibi-
des titulares de lotes comunales y de equipamiento lidad de apoyar a la población a mejorar sus condi-
urbano, 8.719 a lotes comerciales, 182 a lotes de ciones de vida.
mercados en barriadas y 49 a lotes en mercados En cuanto a la política urbano - ambiental y
públicos (COFOPRI, 2004). programas de regularización, salvo excepciones,
En México se han legalizado más de 2,5 millo- la mayoría (desde los dominiales a los integrales)
nes de lotes en dos décadas; pero aun faltan otorgar aun se hallan desvinculados de la política urbana
títulos a alrededor de un millón de familias (AZUE- en su conjunto. Incluso entre los programas que se
LA, op. cit). El organismo encargado de la regulari- implementan en los últimos años, sólo unos pocos
zación de los asentamientos informales en terrenos poseen relación con el área urbana en el cual se lo-
ejidales es la Comisión para la Regularización de calizan. Esta situación no tiene relación exclusiva
la Tenencia de la Tierra -CORETT. La acción más con quien formula e implementa los programas,
relevante por sus implicaciones tanto para el sec- sino más bien con la forma de llevar a cabo la polí-
tor agrario como para el urbano, es la creación del tica urbana, de manera sectorizada y desarticulada,
Programa de Certificación de Derechos Ejidales y en cada realidad. Los Planes directores, reguladores
Titulación de Solares Urbanos –PROCEDE- des- o los Códigos de Planeamiento y/o C onstrucción
de 1993. La cobertura del programa es de 29.951 sólo regulan y gestionan la ciudad “legal”, y en es-
ejidos y comunidades agrarias que agrupan a 3,5 casas ciudades incluyen a la ciudad “informal” en
millones de ejidatarios y comuneros, así como a las políticas. Por lo tanto, transitan en dos carri-
4,6 millones de parcelas y 4,3 millones de terrenos les separados. Es de destacar que también existe
urbanos. La superficie de los ejidos representa el una ambigüedad de las políticas urbanas, facilitada
50% del territorio nacional y la población ocupante por la organización administrativa municipal: por
representa poco más del 25% del total de los ha- lo general hay sectores completamente separados,
unos se ocupan de los pobres (vivienda popular, seguridad parcial, ya que dependen de un periodo
regularización, etc.) y otros de los intereses de los de posesión más o menos largo y del éxito del pro-
agentes inmobiliarios (operaciones urbanas, zone- ceso jurídico que se desarrolla hasta obtener la te-
amiento, etc.). nencia final o escritura. La definición de ‘seguridad
También existe desarticulación entre progra- de tenencia’ varía en la teoría y en la práctica; los
mas de regularización y la política ambiental, en derechos atribuibles a los ocupantes presenta gran-
un doble sentido. Por una parte, estos programas des variaciones según las distintas realidades, des-
no están contemplados en la política ambiental, por de títulos -como tenencia absoluta o tenencia tem-
lo menos a nivel nacional, por la otra solo algunos poral- hasta contratos -como arrendamiento social
Programas, desde sus unidades o instituciones eje- y otros mecanismos de arrendamiento- y permisos
cutoras, realizan vinculaciones con los organismos administrativos precarios --licencias temporales -
dedicados al ambiente. En algunos países se han (FERNANDES, 2002).
elaborado manuales sobre riesgo, con parámetros Dados los cambios constantes de los contextos
precisos de qué tipo de tierra se puede legalizar, políticos locales, en muchas ciudades donde las
como en Brasil, y en Argentina, aunque por ser pa- políticas de la tenencia y los programas de regula-
íses federales, y los documentos son de orden na- rización no están consolidados, aun hay desalojos
cional, los mismos son solo indicativos. (CLICHEVSKY, 2003). Por lo tanto, tener segu-
Es por ello, conjuntamente con el hecho que no ridad de la tenencia a través de un documento se
se han elaborado parámetros ambientales durante vuelve importante cuando un conflicto surge, sea
la formulación de los Programas, que las áreas ur- una confrontación jurídica entre los ocupantes y el
banas que se legalizan poseen tantos problemas propietario original privado, por problemas fami-
a nivel urbano ambiental. Se legalizan situacio- liares, o por causa de factores económicos exter-
nes “de hecho” y se han entregado titulaciones a nos, tales como obras publicas significativas que
tierras con mínimas superficies (desde 30 m²), en pueden tornar las áreas ocupadas más atrayentes
zonas de riesgo donde las familias hubieran te- para el mercado inmobiliario. Obviamente que las
nido que ser relocalizadas y con escasos o nulos escrituras públicas – registradas en el respectivo Re-
servicios y equipamientos. gistro Público de la Propiedad- son los documentos
Porto Alegre es una de las pocas ciudades en que dan total seguridad a quienes la poseen. Una ins-
Brasil que, antes de la aprobación del Estatuto da titución como ésta debe operar sobre una base racio-
Cidade, decide modificar el Plan Director, cambia nal, impersonal y ‘desinteresada’ y se puede defen-
el marco regulatorio y adopta otras estrategias para der públicamente el título a la tierra en juicios que
la producción de la ciudad; se define que el lotea- proclaman el principio del acceso universal y el aca-
dor irregular, así como el “villero” o favelado, tam- tamiento universal a la regla de que la ley trascien-
bién es un constructor de la ciudad y a partir de allí de los intereses particulares. La posesión del título
surge la propuesta del Urbanizador Social. Es uno legal permite a los propietarios la libertad de utilizar
de los escasos municipios que definen, a partir de y disponer de la propiedad (VARLEY, 2001). Esta
ese momento, vincular la política de regularización seguridad se desvanece, en parte, en las titulaciones
a la de desarrollo urbano, explicitando una nueva que no se realizan mediante escritura pública.
estrategia de planificación urbana. En la mayoría de los países se legalizan las ocu-
paciones de tierras fiscales y en menor cantidad
La regularización como política social las realizadas sobre tierras privadas. En algunos
se otorgan escrituras públicas; en otros títulos en
La seguridad de la tenencia puede ser obteni- un registro especial, como en Perú; algunos países
da a través de distintos instrumentos, desde docu- utilizan la usucapión y la Concesión del Derecho
mentos intermedios hasta escrituras públicas; los Real de Uso, como en Brasil. En Argentina, la po-
mismos poseen distinta seguridad, pues frente a sesión de lote ocupado ilegalmente, si no es solici-
cambios políticos, en especial con gobiernos más tado por el propietario original durante el término
autoritarios, las tenencias intermedias pueden ser de 10 años, es tenencia intermedia (mediante un
más vulnerables, dado que las mismas ofrecen una documento público inscripto en Registro), luego de
lo cual el poseedor obtiene la escritura definitiva. (o lo hace a precio simbólico), quien solo abona, a
Esta política se aplica mediante legislación nacio- veces, los costos de mensura y escritura. Sólo en
nal (Ley Nº 24.374/94) a la cual se han adherido pocos casos se establece el pago en función del
la mayoría de las provincias. Han pasado 15 años precio de mercado de la tierra que se regulariza y
desde el inicio de su implementación, y han co- de los ingresos de los beneficiarios. Participar de
menzado a otorgarse, aunque muy lentamente, las programas de regularización significa, pues, en tér-
primeras escrituras definitivas. minos de costos y financiamiento, muy diferentes
En Perú, a través de COFOPRI los títulos que situaciones para la población, en virtud del tipo de
se entregan son documentos legales que acreditan programa y de la propuesta de política específica:
al poblador su derecho de propiedad sobre el lote, si es el Estado el que asume los costos, o traspasa
con inscripción registral. No se realizan median- parte o la totalidad a la población.
te escritura pública pues esto significaría mayores En los casos de regularización urbana, también
costos notariales. La COFOPRI ha contado con un son mayormente subsidiados y la población sólo
propio Registro -diferente al que había sido utiliza- se hace cargo, posteriormente, de los pagos de im-
do hasta ese momento- con el objetivo de agilizar puestos y tasas por servicios. Solo en un Programa
los trámites. Desde 2005 se encuentra en proceso --el Habitar Brasil—la población puede realizar el
de municipalización y unificación de registros, pago con contraprestación en trabajo. Las formas
aunque será un proceso largo y complejo. de financiamiento pueden considerar una demanda
Un alto porcentaje de los programas posee finan- segmentada (según su real disposición a pagar) o
ciamiento de organismos internacionales, básica- no; en este último caso, la falta de financiamiento
mente del BID y BIRF, aunque también, en algunos específico según las distintas posibilidades de pago
casos de agencias europeas de cooperación binacio- de la población beneficiada, puede llevar a que par-
nal (caso PRIMED, en Medellín, con financiamien- te de la misma no pueda pagar, lo que, según países
to alemán). De los 49 programas para los cuales se y coyunturas políticas, puede llegar hasta el desa-
ha conseguido información, 32 poseen financia- lojo y el remate del terreno (si se ha hipotecado el
miento internacional, algunos cuentan con más de mismo como garantía de la deuda).
300 millones de dólares, lo que significa un esfuerzo Muchos de los Programas que son gratuitos
para el Estado en términos de deuda externa. para la población beneficiada, y que se realizan con
En algunos programas analizados, se ha no- financiamiento internacional, suponen que recupe-
tado una falta de recursos para llevar a cabo los rarán parte de los recursos invertidos a través del
mismos según se habían formulado por no darse impuesto inmobiliario, las recaudaciones fiscales,
los supuestos adecuados: es el caso de Colombia, y las tasas por servicio, como en Brasil (IBAM,
donde no se pudo vender un activo del Estado a un 2002). Programas como el de legalización masiva
programa de regularización (VEJARANO, 2004) en Perú es gratuita para la población, pero se incor-
o Guatemala, donde se han utilizado mal los fon- pora como contraparte del mismo, el pago por ser-
dos existentes en el Programa de Ventanilla Social vicios y tasas que la población efectuará (un monto
(DRUMMNOND, 2004); en otros, complicaciones de 4 millones de dólares en relación a los 66 millo-
político-institucionales impiden que los presupues- nes de dólares de costo total del Programa).
tos asignados sean correctamente utilizados, por lo En los casos de regularización dominial, una
menos en los tiempos previstos (caso PROMEBA cantidad importante de contribuyentes son regula-
en Argentina). En Porto Alegre, los recursos son rizados, pero con impuestos nulos o muy bajos. El
asignados en el presupuesto participativo y la po- impuesto inmobiliario no sirve para equilibrar las
blación (posible beneficiaria del programa de regu- cuentas fiscales (municipales o provinciales) por
larización) debe disputar los mismos frente a otras las exenciones, la morosidad, y por el escaso peso
prioridades del resto de los habitantes de la ciu- relativo frente a otros contribuyentes. En muchas
dad, lo que ha significado que los recursos anuales realidades existen años de gracia o exoneración
hayan fluctuado (IBAM, 2002). del pago, como por ejemplo, en Guayaquil, donde
En la mayoría de los programas de regularizaci- se permite la eximición del pago de los impuestos
ón dominial, la tierra no es pagada por la población prediales por un lapso de cinco años (CLICHE-
VSKY, 2006). En relación a las tasas de servicio, Un estudio en Argentina, corrobora que la ob-
ellas varían según los servicios que posean; si los tención del título de propiedad no significa una
mismos se hallan privatizados o no; si se aplican mayor cantidad de población beneficiada con
“tarifas sociales” de agua, electricidad, y de acuer- créditos. No hay diferencias en cuanto al acceso
do a la política de las empresas frente al no pago: si al crédito formal entre 1.800 familias legaliza-
cortan o menos el servicio. das entre 1989 y 1998 y otro grupo de familias
En cuanto al otorgamiento de crédito, justa- aun no regularizadas. Las familias regularizadas
mente uno de los supuestos fundamentales para la siguen accediendo a crédito informal a través de
legalización es que la población pueda acceder al parientes, colegas, vecinos y amigos (GALIANI;
mismo mediante el sistema financiero privado. De SCHARGRODSKY, 2004).
Soto (DE SOTO, 2003) considera que, fuera de las En cuanto a la lentitud y complejidad de los
familias, el principal beneficiario de los procesos procesos de legalización en la mayoría de los paí-
de regularización del suelo es el sistema financie- ses de la región dependen, por un lado, del objeto
ro. Pero la existencia de garantía propietaria por sí mismo que se quiere legalizar, en función de los
sola no es suficiente para el desarrollo de mecanis- distintos tipos de ilegalidad y los múltiples agentes
mos de crédito, pues los bancos exigen además a actuantes; y, por otro, a los problemas institucio-
los acreedores un determinado ingreso (familiar o nales, pues aun no existe un catastro actualizado,
individual,) y no exclusivamente la propiedad del ni tampoco técnicos especializados en una proble-
terreno. A su vez, para las instituciones financieras mática tan especial como la legalización del suelo
formales resulta igual de oneroso otorgar présta- urbano. Recién en la última década se han comen-
mos de pequeños o de mayores montos. zado a organizar los catastros.
En Perú, la vivienda registrada es una garantía Los niveles del Estado que implementan las po-
para la institución financiera y la hipoteca cons- líticas de regularización están relacionados con la
tituye un documento que es posible transar en el organización político-administrativa y con la vo-
mercado secundario de valores. Pero sin embargo, luntad política de cada uno de los niveles de go-
la opinión generalizada de las familias es que un biernos15. Los programas de regularización domi-
crédito hipotecario es algo demasiado riesgoso de nial a veces son solo “registro de propiedad”, y por
asumir, debido al gran valor que le otorgan a la vi- lo tanto están localizados en los ámbitos de Eco-
vienda. En términos generales existe una actitud nomía, Hacienda o incluso Ministerio de Justicia,
prudente respecto a la solicitud de préstamos. Ello como en Perú. Las instituciones a cargo de la lega-
se explica por la inexistencia de un trabajo estable y lización dominial y de los programas de mejora-
de buenos ingresos (DESCO, 2001). Los créditos, miento de barrios (aunque algunos de ellos posean
tanto en montos como en cantidad, han ido en au- como requisitos la regularización dominial) están
mento: 249 millones de dólares en 2000, que inte- absolutamente separados. En algunos programas
resan a 154.000 personas; 274 millones y 173.000 participan del proceso de regularización más de 10
personas en 2001, 314 millones y 197.000 benefi- instituciones que pertenecen a distintos niveles del
ciarios en 2002 y hasta agosto 2003, 346 millones Estado, aunque incluso existen problemas de coor-
y 226.000 propietarios (COFOPRI, 2004). dinación entre el mismo nivel.
En México, no toda la población que posee el En ningún Programa analizado se ha dado par-
terreno, quiere un crédito bancario. Se ha demos- ticipación a la población durante la formulación;
trado que ya antes de poseer la propiedad tenían durante la implementación, la misma ha participa-
créditos (quizá a mayor interés, pero eso no le im- do en mayor o menor medida, dependiendo de su
porta mucho a la población) a través de agentes organización, de la coyuntura política y también
privados o de familiares, amigos, etc. Existe un de los programas específicos; en los programas ex-
“mercado” de crédito informal, a los que dicha po- clusivamente dominiales la participación es menor
blación tiene acceso. Y con la legalización, quieren que en los programas integrales. En los programas
seguir teniendo ese tipo de crédito por desconfiar de legalización masiva, la población tiene muy es-
de los bancos, de las condiciones que les imponen; casa participación, salvo en cuanto a requisitos de
de las hipotecas y por el miedo de la morosidad. documentación y, si corresponde, en los posteriores
por flexibilización de las normas existentes. la banca privada en la proporción que los
Existen solo unos pocos casos en los cuales supuestos de algunos programas indica-
los programas están vinculados a la política ban. Si bien en Perú han aumentado en los
urbano ambiental a nivel local, provincial / últimos años, no ha sido con el impulso
estadual o nacional. que se pensaba, y la legalización no ha te-
nido repercusión sobre el crédito en Brasil
yy Costos para el Estado: se evidencia una y Argentina. Ello ha sido explicado por el
preponderancia de programas con financia- peligro que le significa a la población en-
miento internacional –que en escasos casos deudarse, y más si es de forma hipoteca-
son a fondo perdido—lo que significa que ria. Con relación a la incorporación de la
los países deben endeudarse para poder lle- tierra legalizada al mercado inmobiliario,
varlos a cabo. aun no existen evidencias de ello; la canti-
dad de población que vende su propiedad
yy Costos para la población regularizada: recientemente legalizada pareciera que no
en la mayoría de los programas, el costo del es mucha (aunque también faltan evalua-
suelo es gratuito o se efectúa un pago simbó- ciones al respecto).
lico. Muchos de los programas con compo-
nentes de mejoramiento urbano son asimis- yy Regularización y mejora en las condicio-
mo gratuitos, o con alta cuota de subsidio. nes de vida de la población pobre: es indu-
Por lo que pareciera que no son los costos dable que los programas de regularización
de los programas los que induciría a la po- mejoran las condiciones de vida de la po-
blación a vender su ahora legalizado hábitat, blación pobre urbana, pero en muy diversa
sino los costos provenientes de impuestos medida, en relación al tipo de proyecto. Es
y tasas del proceso de regularización. Pero evidente que los programas integrales pose-
también en muchos casos los impuestos in- en resultados más positivos al respecto que
mobiliarios son muy bajos o los inmuebles los estrictamente de regularización dominial
están exentos; solo los costos de tasas por o de mejora de algún aspecto urbano; impor-
servicios podrían ser impagables por parte ta señalar que en un número considerable de
de la población legalizada. los programas integrales, la generación de
empleo – de manera directa o indirecta a tra-
yy Participación de la población: los progra- vés de capacitación, microcréditos, etc.- ha
mas de mejoramiento urbano o integrales, jugado un papel importante en la mejora de
ejecutados a escala local (aunque proven- la población pobre urbana.
gan de fuentes de financiamiento nacional
o internacional) poseen un componente Un comentario final: es evidente que la regu-
importante, en general, de incorporación larización es una política “social”, y por lo tan-
de la población en la etapa de implemen- to lleva implícita una mejora en las condiciones
tación (en la de formulación, la población de vida de la población, pero también posee un
objeto de los programas no participa en componente de creación de capital inmobiliario,
ningún tipo de ellos). En los programas de sobre todo en los supuestos de algunos progra-
legalización exclusivamente, ello no ocur- mas, que involucra la incorporación de las pro-
re y las decisiones son tomadas exclusiva- piedades regularizadas al sector inmobiliario y
mente por el Estado. de los beneficiarios al sistemas fiscal del Estado
y como clientes de las empresas privatizadas de
yy Propiedad legalizada como capital: cré- servicios. En el equilibrio entre esos dos aspec-
dito y compra-ventas. Los escasos traba- tos, que no se dirime en el espacio ‘micro’ del
jos que existen sobre la relación entre la acceso al suelo – aunque posee su importancia--,
legalización y crédito demuestran que la sino en el espacio más amplio socio político (con
población legalizada no toma créditos en el peso relativo de los distintos sectores sociales)
es que se podrán diseñar programas, quizá, más DE SOTO, H. El Otro Sendero, Buenos Aires: Edi-
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la superación de la precariedad y pobreza urba- 7
Hacia 1978 se pudo estimar que el 58% de los
nas en América Latina y el Caribe, Eje: Acceso al ranchos se ubicaban en tierras de propiedad
suelo urbano para los pobres, Santiago de Chile: pública (de las cuales 40% eran municipales
Informe final de Consultoría CEPAL, 2005 y 7% nacionales), 15% en propiedad privada,
21% en propiedad municipal-privada y el resto
UN-HÁBITAT. Campaña Mundial de Seguridad en áreas mixtas.
en la Tenencia de la Vivienda. Documento Concep-
tual. K0055114.s . www.habitat-lac.org, 2004 8
El usucapión estaba en el Código Civil pero con
20 años de ocupación (Clichevsky, 1991).
VARLEY, A. De lo privado a lo público: género,
ilegalidad y legalización de la tenencia de la tier- 9
Leyes Nº 9/89 y Nº 388/97 respectivamente.
ra urbana, Cambridge: LILP/ Mercados Informa-
les, 2001 10
Ley Federal de Desarrollo Urbano (Ley Nº
10.257, de 10 de julio de 2001)
VEJARANO, M. C. Informe componente suelo.
Bogotá: Informe final de consultoría CEPAL, 11
Según los resultados de la investigación sobre
2004. el acceso al suelo urbano en la región reali-
zado en el marco del Proyecto: “Pobreza Ur-
Notas bana: estrategia orientada a la acción para los
gobiernos e instituciones gubernamentales en
1
Para un análisis de la regulación de los merca- América Latina y el Caribe”, desarrollado por
dos de tierra, en la “producción” y en la comer- la División de Desarrollo Sostenible y Asenta-
cialización, ver: LUNGO, 1989; JARAMILLO, mientos Humanos de la Comisión Económica
1987, entre otros para América Latina y el Caribe de las Naciones
Unidas, entre 2004 y 2006.
2
La tierra rural que se convierte en urbana tiene
un precio mucho más bajo que la primer tierra 12
En Brasil, las Áreas o Zonas de Especial Interes-
definida como urbana, en la periferia. se Social – AEIS o ZEIS- ha sido el instrumento
adoptado para amparar legalmente la flexibili-
3
Han ido cambiando a través del tiempo y del zación de los parámetros urbanísticos; inclusi-
crecimiento de las ciudades: los sectores socia- ve es un instrumento incorporado al Estatuto da
les que podían elegir, han pasado, por ejemplo, Cidade como política nacional; en estas áreas se
13
También existe una política implícita de dis-
criminación aplicada a la legalización: en la
mayoría de los países no se legaliza la tierra a
extranjeros, lo que trae aparejados una serie de
problemas en áreas fronterizas, por ejemplo, en
el norte de Argentina, muy habitada por bolivia-
nos y paraguayos.
14
En los otros países analizados las soluciones
han sido mucho menores, aunque en los que
se implementan programas en diferentes ni-
veles del Estado no existen datos consolida-
dos de las soluciones dadas por el conjunto de
los mismos.
16
En un contexto internacional en donde el au-
mento de la población viviendo en la informali-
dad aumentará en las próximas décadas (PAY-
NE, 2005).
Nora Clichevsky
* Arquitecta, Magister em Planificación Urbana y
Regional, ITDT-URGS, Investigadora del Con-
sejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnicas-CONICET-, Instituto de Geografía,
Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de
Buenos Aires- UBA. Soldado de la Indepen-
dencia 1343, 6º A (1426BTS) Buenos Aires,
ARGENTINA. TELFAX (54 11) 4772 9775.
noraclic@satlink.com; noraclic@yahoo.com.ar
ARTIGO
Mónica Lacarrieu *
Resumo: Nos últimos anos, as cidades latino-americanas têm sido examinadas homogeneamente, salientando-se os
problemas em termos de crises. As propostas públicas apresentam soluções baseadas em modelos globais/transna-
cionacionalizados, ignorando os contextos históricos de produção – nacionais e locais. Nosso interesse principal são
os desafios e problemas das iniciativas de requalificação cultural nas cidades latino-americanas. Partindo do discurso
global/transnacional, segundo o qual a cultura se tornou um recurso para o desenvolvimento, com implicações sobre
seu papel nas políticas urbanas, colocamos em debate as relações e tensões estabelecidas entre cultura e patrimônio,
espaços públicos e processos de negociação e/ou disputa produzidos a partir e entre os grupos sociais envolvidos.
Resumen: En los últimos años, las ciudades latinoamericanas son examinadas homogéneamente, focalizando los proble-
mas en términos de crisis. Las propuestas públicas procuran soluciones en base a modelos globales/transnacionalizados,
negando los contextos históricos de producción –nacionales y locales-.Nuestro interés es focalizar en los desafíos y
problemas de las iniciativas de recualificación cultural en las ciudades latinoamericanas. Partiendo del discurso global/
trasnacional según el cual la cultura se ha vuelto un recurso para el desarrollo, con implicancias sobre su papel en las polí-
ticas urbanas, es que pondremos en debate las relaciones y tensiones que se establecen entre cultura/patrimonio, espacios
públicos y los procesos de negociación y/o disputa que se producen desde y entre los grupos sociales involucrados.
Latin american cities. Challenges and limits of the processes of cultural requalification: global/transnational,
national, regional and/or local?
Abstract: In recent years, Latin American cities have been analyzed homogenously, being the problems pointed out in terms
of crisis. The State proposals present solutions based on global/transnational models, ignoring the historic contexts of pro-
duction ― national and local. Our main interests are the challenges and problems of cultural requalification in Latin Ameri-
can cities. Setting out from the global/transnational discourse, which claims culture has become a resource to development,
with implications for its role in urban policies, we open to debate the relations and tensions that are established among culture
and patrimony, public spaces and negotiation and/or dispute processes produced by and among the involved social groups.
Hace aproximadamente un año y medio, un co- riados propios de esa etapa, había un interés por
lega venezolano con el apoyo de la OEI, la Uni- volver al pasado: algunos carteles y publicidades
versidad Central de Venezuela y del Municipio del de la Alcaldía de Caracas –algunos vinculados con
Chacao, organizó en la ciudad de Caracas, un Se- la gestión general de infraestructura pero también
minario internacional denominado “Las interven- con Fundapatrimonio- llamaban a “El rescate del
ciones culturales en la renovación de las ciudades” espacio” por ejemplo, en el Paseo de los Próceres,
1
. Entre los objetivos propuestos se mencionaban o convocaban con imágenes y signos a “Espacios
dos: por un lado, analizar el papel de la cultura en recuperados para el disfrute de la comunidad”. Un
los procesos de renovación, recuperación y redi- asombro complementado por signos contradicto-
seño de las ciudades; por el otro, evaluar expe- rios que daban forma al espacio público urbano:
riencias concretas de intervenciones culturales en entre un cartel imponente ligado a la llegada en
el desarrollo de planes estratégicos y en procesos aquel momento de Evo Morales que decía Presi-
de transformación urbana en ciudades de Europa, dente Evo Morales: Bienvenido a Caracas, cuna
EEUU y América Latina. Ambos asuntos dejaban de la libertad de los pueblos de América, y otro
manifiesto, en primera instancia, que existe una ligado a los 441 años de la ciudad. La idea de rein-
agenda pública trasnacional ligada a los procesos ventar algunos edificios, colocar en la cultura y el
mencionados en ciudades de diferentes continentes patrimonio un recurso de intervención, así como
y países. En segundo lugar, evidenciaban la pre- cierto entusiasmo por debatir en el ámbito acadé-
sencia de un campo de expertos afines que, al me- mico pero también de la gestión, sobre experien-
nos implícitamente, consensuaban la implementa- cias que se habían llevado a cabo en otros lugares,
ción de dichas intervenciones en las ciudades a las de modo de transferir las ventajas hacia la ciudad
cuales representaban (Santiago de Chile, Medellín, de recepción, al mismo tiempo que de eludir las
Buenos Aires, Quito, Glasgow, Salvador de Bahía, dificultades ya identificadas; se constituyeron en la
Bogotá, Bilbao, entre otras). No solo resultaba perspectiva dominante de ese momento.
curioso que el seminario convocara a representan- Podríamos aventurar junto con Izabela Tamaso
tes de diferentes ciudades para hablar de un mismo (2006: 3) que la “onda universalizante de la Unesco”
problema, sino sobre todo, en lo que a mi respecta se torna cada vez mas un valor para innumerables
y luego de conocer/reconocer la ciudad de Caracas ciudades que ahora perciben –agregaríamos que a
(cuestión que sucedió una vez finalizado el semi- diferencia del período moderno de lo urbano- que
nario), que este evento se había realizado en una lo “moderno es ser antiguo”. Siguiendo a la autora,
urbe marcada por la modernidad, no solo en los Caracas sería objeto del redireccionamiento del de-
espacios periféricos, sino también en el centro de seo: si antes el deseo se construía hacia el progreso,
la misma. Para plantearlo en forma más clara: me ahora este se sustituiría por un deseo hacia el pasado,
incomodó (no por el sentido literal de la palabra, reorientando la idea del progreso y el desarrollo y
sino por su vínculo con cierta idea de incomprensi- asimilándola con una mirada positiva hacia el cam-
ón) encontrarme en la capital de un país que se asu- po de la cultura y de lo patrimonial.
me, al menos en términos de una amplia mayoría, En esta perspectiva, es posible pensar en un es-
como ideológicamente de izquierda en términos de quema reduccionista acerca de la ciudad contem-
transformaciones sociales y políticas, no obstante, poránea. Un esquema que se funda, de acuerdo a
atravesada por intervenciones culturales que, aun- visiones estereotipadas, en un discurso dominan-
que promueven la reparación social del lugar de te negativo que se procura revertir a partir de in-
los sectores desfavorecidos, procuran embellecer tervenciones que, se espera, transformen ese lado
al menos un espacio de la ciudad -nos referimos al pesimista en optimista. La ciudad latinoamericana
centro histórico, en imagen casi “anti-histórico”- . no escapa a esa visión en la que prima una mirada
Aún más, me resultó poco entendible, porqué en patológica basada en la fragmentación como “es-
esa ciudad caracterizada por la modernidad, en la pectro que planea sobre las ciudades del mundo”
que desde hacía tiempo (mediados del siglo XX) (MARCUSE; VAN KEMPEN 2000, apud BÉNIT
se había tomado la decisión de demoler práctica- et.al 2007: 15). La lógica de la separación –si-
mente toda la metrópoli y construir edificios se- guiendo a Donzelot (2004)- fundada en la idea que
cias han sido relativamente similares a las de otras cuando plantea la reconversión de Bucarest en
ciudades: los desplazamientos de población local y Rumania, luego de la caída del comunismo, para
localizada –solo en retorno para ofrecer algún ser- pensar que efectivamente estos modelos se impo-
vicio-, el vaciamiento de espacios públicos antes nen más allá de contextos políticos y que operan
bulliciosos, la estetización y la visita del transeún- en la misma lógica y con los mismos resultados
te-turista. Probablemente, Cuba necesitó del cen- –renovación de edificios desde nuevas formas de
tro histórico embellecido de La Habana para hacer monumentalización y reubicación de pobladores e
frente al bloqueo económico, no obstante y si así incluso de quienes transitan la ciudad-.
fuera, le ha hecho frente con las mismas armas con La idea de intervención cultural niega la de
que se lo bloquea, porque en cierta forma estas in- proceso(s) vinculados a la recualificación/reno-
tervenciones se entienden en el marco de la cultura vación/regeneración urbana. En cierta forma, la
y el desarrollo, encuadrado en el discurso global de visión intervencionista, estrechamente asociada a
organismos que responden a ciertos modelos de la la concepción clásica del desarrollo, sincroniza y
“occidentalización del mundo”. horizontaliza un modelo que parece expandirse sin
Más recientemente aún, visité por primera vez discusión y sin particularidades, por las ciudades
la ciudad de Bogotá, sobre la que hasta hace poco en su conjunto. Esta perspectiva ha propiciado la
conocía solo desde los relatos de algunos de sus “ciudad de pensamiento único” (ARANTES; VAI-
habitantes, en los cuales el centro histórico apa- NER; MARICATO, op. cit) expandible, generali-
recía como un lugar en las sombras de la ciudad, zable y globalizable. Y en esa forma de desterri-
acechando peligrosamente a sus visitantes. Sin torialización del modelo se pierden los procesos
embargo, tal fue la sorpresa cuando La Candela- a partir de los cuales, las intervenciones pueden
ria –el centro histórico- apareció ante mis ojos: un constituirse entre rupturas, discontinuidades y fun-
barrio en renovación, intentando revivir un pasado damentalmente entre especificidades asociadas a
que hasta hace poco era ajeno a sus residentes, pero tensiones locales.
sobre todo, a los habitantes de la ciudad. Y pensé En tanto las palabras no son neutrales, cuando
en la ciudad de Quito y su monumentalidad colo- los gobiernos, los gestores y planificadores, o los
nial que, obviamente, se construye a distancia de la propios académicos hablamos de intervenciones
monumentalidad “popular” de La Candelaria, pero culturales urbanas, estamos apelando a un modelo
sobre todo pensé que las propuestas de regenera- que se plantea como desterritorializado, pensando
ción urbana en los que la cultura y el patrimonio en la desterritorialización como la forma hegemó-
son recursos ineludibles están –como ya dijo Han- nica por excelencia para representar la globaliza-
nerz (1996), “en todas partes”, si bien como en este ción (MATO, 2003). En contraposición, cuando
caso construidas entre “lo monumental” y lo “po- de la mano de la cultura y el patrimonio se habla
pular monumentalizado”-. Están en “todas partes” de procesos de revitalización y/o de recualificaci-
sin embargo, diferenciadas o más bien retomando ón urbana, no solo se trata de un juego o un in-
trayectorias específicas de acuerdo a los contextos tercambio de palabras, sino sobre todo de pensar
locales urbanos. dichas propuestas ya no como meros modelos que
Llevada por lo visto en La Habana o en Cara- se producen bajo la visión naturalizada en torno de
cas diría que estas formas de intervención, no solo una potente geografía imaginada ligada a la dester-
son transversales y atraviesan diferentes realidades ritorialización a-espacial (MASSEY, 2008). En la
urbanas, y en lo más importante, distintos contex- perspectiva de la desterritorialización y globaliza-
tos socio-políticos –cuestión que en cierta forma ción a-espacial, como señala Massey, “las multipli-
relativizaría el sentido capitalista y occidentalista cidades esenciales de lo espacial son negadas”, del
de estos modelos-; sino que además se constituyen mismo modo que las trayectorias específicas se ven
homogéneamente como si los problemas y las so- como obstructivas. De allí, que la idea asociada a
luciones fueran comunes y pasibles de ser compar- las intervenciones culturales urbanas responden a
tidos por todas las ciudades del mundo. La Habana ese sentido de “inevitabilidad” (op.cit.: 127) que
es una ciudad próxima a nosotros como latinoame- implica un único camino posible que, como hemos
ricanos, no obstante, basta leer a Althabe (2008) mencionado, se imprime en las diferentes ciuda-
des de nuestro continente. Por contraste, postular complejo trasnacional vinculado a la producción
que dichas acciones son procesos ya no desterri- cultural. Parafraseando al autor, las acciones de
torializados o globales, sino atravesados por la recualificación trascienden la dinámica global su-
transnacionalidad, en tanto condición compleja de prahumana, colocando en escena ideas, interpre-
producción transversalizada por las trayectorias taciones y representaciones que desde la cultura
y especificidades locales, que aunque constituida operan sobre la ciudad, producidas en “procesos
más allá de las fronteras nacionales, en torno de sociales trasnacionales”, es decir entre actores que
similitudes, sin quiebres, al mismo tiempo tiene podríamos calificar como “trasnacionales” y acto-
fronteras, lleva a pensar que se producen entre di- res que especulamos se constituyen en el ámbito de
ferencias, avances y retrocesos, y sobre todo entre lo “local”. Desde esta perspectiva, es posible decir
relaciones de poder que contribuyen en procesos que los procesos de recualificación cultural urbana
de desigualación. Si bien, en una primera instancia, son la traducción selectiva de una agenda pública
tal como señala Smith (2006: 67-68, n/traducción) trasnacional en la que contribuyen no solo organis-
parece una cuestión de escala, la problemática aso- mos como Unesco, agencias de cooperación inter-
ciada a las “estrategias de “regeneración” [consti- nacional, Banco Mundial, entre otros, sino también
tuidas] a través de las fronteras nacionales… inau- ONGs y fundaciones que suelen constituirse como
guran estrategias de gentrificación trasnacional…”. “locales” (pertenecientes a ciertos países), no obs-
Proyectos que ya no tienen, aparentemente, un ori- tante, trascendiendo dichas localizaciones cuando
gen nacional, no obstante ello, fenómenos produ- sus iniciativas y financiamientos llegan a otros lu-
cidos en la trasnacionalidad y contextuados en la gares y a articularse con actores de esos otros terri-
situacionalidad de lo local. torios. Dicha agenda se completa con la participa-
Desde el sentido global y a-espacial de estas ción de los gobiernos nacionales, pero sobre todo
propuestas (en el sentido dado por Massey que no de los gobiernos de las ciudades. Estos no imponen
se traduce en el fin del espacio, sino en pensar en la agenda tal como se decide en las altas esferas
un espacio que disuelve las fronteras, que se abre de los organismos trasnacionales. Cuando bajan a
al infinito), la recualificación cultural aparenta ser sus territorios no solo filtran y seleccionan aspectos
un modelo homogéneo, único, extensible más allá de la misma, sino que desarrollan sus iniciativas
de las fronteras, las temporalidades, los actores e luego de arduos procesos de negociación con otros
intereses comprometidos. Una perspectiva que no actores, como puede ser el campo de lo privado e
solo omite las diferentes formas de recualificar en incluso los sectores sociales involucrados con los
base a los múltiples contextos localizados, sino territorios – desde asociaciones vecinales hasta
que autoriza la repitencia, no solo en términos de grupos y sujetos locales (ARANTES, s/d).
la planificación urbana, sino incluso en relación a Como hemos señalado los procesos de recuali-
la producción académica que, más allá de matices, ficación cultural urbana son un componente inelu-
suele concluir genéricamente en que se trata de una dible de los caminos que ha tomado el desarrollo
tipología propia de la contemporaneidad y fundada cultural en las ciudades. En este sentido, es de des-
en la “globalización desde arriba” (LINS RIBEI- tacar que esa agenda trasnacional organizada en
RO, 2009; SEGATO, 1997). base a convergencias negociadas, también en di-
Las iniciativas ligadas a la recualificación re- sensos, obtiene valor toda vez en que se renegocia
quieren de elementos y/o manifestaciones “amplias en el ámbito de lo local, arena en la que confluyen
y universales de la cultura” (BAUTES, 2010: 159) también consultorías y orientaciones que provie-
estrechamente asociados a las nuevas dimensiones nen de ciudades reconocidas como paradigmáticas
culturales del desarrollo. En este sentido, tomamos –por ejemplo en el caso de América Latina, los
prestada la visión de Daniel Mato con la que define representantes de Barcelona han sido figuras que
el Programa de Cultura y Desarrollo, mediante el desde el ámbito trasnacional-local han jugado un
cual la Interamerican Foundation y la Smithsonian papel crucial en la definición de principios para
organizaron un Festival Folklife en 1994, para dar las experiencias recualificadores en Buenos Aires,
cuenta de que las iniciativas de recualificación ur- Río de Janeiro, San Pablo, entre otras-. Es decir,
bana constituyen una forma específica dentro del que la agenda pública trasnacional que tiende a
centro histórico de la Ciudad de Quito en 2009, en las que permiten observar que tanta familiaridad se
la Avda. 9 de Julio (centro de la ciudad) de Buenos relativiza en torno de los efectos finales: las con-
Aires en 2010 y el que se desarrollará en ciudad memoraciones de México DF y la de Buenos Ai-
de México en setiembre de este año, constituyen res dan cuenta de esas diferencias, pues la primera
acontecimientos ligados a la cultura y el patrimo- dejará rastros del acontecimiento plasmados en
nio como recurso e imprimen transformaciones señales asociados a obras públicas y monumentos
socio-espaciales. Desde espectáculos vinculados por doquier, mientras el “Paseo del Bicentenario”
a shows musicales, de danza, apertura de centros de Buenos Aires, si bien recreó una territorialidad
culturales como ha sucedido en Quito, hasta la explícitamente “pesada” durante el evento, pocos
construcción de un “Paseo del Bicentenario” a lo días después de finalizado, mostró su “levedad”
largo de la 9 de Julio en Buenos Aires, donde se en el sentido efímero del mismo. Tanta “pesadez”
entrelazaron desfiles tradicionales con un desfile como tanta “levedad” no producen necesariamente
artístico a través del cual se reconstruyeron los hi- “paisaje cultural”, no obstante, es bien importante
tos de la historia nacional, representaciones de las resaltar la relevancia dada a este tipo de eventos en
provincias con espectáculos musicales/shows de determinados espacios de la ciudad y sobre todo
luz y sonido, recreaciones de fiestas populares, de- visualizar las similitudes entre ellos.
gustación de comidas regionales; los espacios fue- La cultura y su rol en los procesos que estamos
ron objeto de políticas públicas y prácticas sociales analizando, solo es entendible a través del discurso
vinculadas a la creación cultural. Fundada en inte- global y globalizado en el que la misma se ha vuel-
racciones entre “situaciones eventuales” que, en su to un “potente motor de desarrollo” (CANCLINI,
especificidad, recrea elementos y representaciones 2005), o bien un recurso, en palabras de Yúdice
legitimados en la agenda y campo de lo trasnacio- (2002), aparentemente material –en tanto utilitario
nal, rituales de pasaje y relaciones y prácticas del en pos de beneficios económicos-, sin embargo,
ámbito de lo cotidiano resaltadas en el ámbito de lo cada vez más, centrado en su concepción espiritu-
extra-cotidiano. Por un lado, resulta interesante que al, la que coloca a la cultura trascendiendo a los in-
estos mega-eventos producen un efecto conmemo- dividuos, como potencial instrumento de evolución
rativo que reúne a diferentes grupos sociales en el hacia el progreso. Como fue planteado por George
marco de “sentimientos y compañerismos” (LINS Yudice (2002: 23, el resaltado es nuestro) “En lugar
RIBEIRO, 1997: 22) afines en la idea de bicente- de centrarse en el contenido de la cultura…tal vez
nario latinoamericano. Por el otro, que este tipo de sea más conveniente abordar el tema de la cultura
acontecimientos hacen de la ciudad un dispositivo en nuestra época…considerándola como un recur-
cultural –tal como señala Agier quien discute con so”. Esta nueva perspectiva asociada a la cultura,
la idea de la ciudad como productora de cultura contribuyó, al menos aparentemente, en el despla-
desde sí misma (1999: 150). zamiento de la “cultura como trascendencia”. La
Estos mega-eventos y mega-rituales de carácter apelación del autor remite a la transformación de
trasnacional en muchos de sus aspectos – incluso la cultura como un elemento fundamental respecto
regionalizados en el contexto de las ciudades lati- del desarrollo –crecimiento económico, atracción
noamericanas, de modo tal que con frecuencia lo de inversiones, desarrollo urbano, etc.-, perspecti-
que vemos como turistas en metrópolis cercanas va que banaliza a la cultura pero que también la
(con recurrencia también en capitales europeas) o recrea como “transculturalidad”, situándola como
como residentes en nuestra propia urbe, tienen un “reserva de sentido” al mismo tiempo que como
“aire de familia” que nos vuelve más latinoameri- elemento residual (RIST, 2000: 134). En la visión
canos, al menos en la coyuntura de ese momento-; de la “cultura como recurso” prima la concepción
devuelven a los espacios ese “clima” o “ambiente” de ésta en su transversalidad, es decir, atravesan-
necesarios a posibles recualificaciones posteriores. do todos los aspectos de la vida social: perspec-
La “atmósfera cultural” resulta afín a la noción tiva que ha contribuido a pensar la cultura ya no
de “paisaje” recortado y constituido entre la (in) restringida a un campo delimitado, como el de las
soportable pesadez y levedad de lo urbano. Pero políticas culturales, sino ubicable en cualquier área
las especificidades de dichos acontecimientos son de gobierno. Asimismo, centrada en la estructura
simbólica que subyace a la misma y que permea la tamos sacar nuestra carta de identidad, elegir algún
vida social y cotidiana de los sujetos, contribuye símbolo que al mismo tiempo catalice nuestro es-
a su densificación, simbólica antes que material, y píritu de paulistanidad, el que no se traduce por
desde la misma a la emergencia de la creatividad la raza, color u origen, sino que es antes un estado
social y la generación de atmósfera. de espíritu”, espíritu reflejado en el “ser paulista”
Este supuesto avance ligado a los usos de la como una forma de vivir, soñar, trabajar, luchar y
cultura en la conformación urbana de las ciudades, morir por San Pablo. En esa propuesta subyacía un
contradictoriamente parece llevar hacia una nue- interés casi patriótico fundado en base al consen-
va perspectiva –aunque no tan nueva, en tanto se so en torno de una identidad esencial “leve” y al
asienta en la concepción antropológica de la cul- mismo tiempo lo suficientemente fuerte como para
tura- en la que la misma parece tomar vida propia, recrear la “comunidad imaginada” en tanto entidad
imponerse por encima y más allá de los sujetos, abstracta y abstraída de la vida social. Pero sobre
yuxtaponiéndose a bienes y objetos sin mediar en todo de la vida social y sus conflictos.
ocasiones apropiación alguna por parte de aquellos El objetivo de posicionar a Buenos Aires
y en ese sentido, “crear atmósfera”, derivando como “Capital Cultural de América Latina” (un
como hemos dicho, en la levitación de la cultura en propósito gubernamental y ligado al mercado
tanto “espíritu” y “alma” de las “cosas”, en tanto que se promueve también desde fines de los ´90),
campo autónomo respecto de los sujetos y grupos situación que coincidió y se complementó con
sociales. Como señala Bautes (2010: 359) la cultu- la propuesta de declarar “Paisaje Cultural de la
ra en tanto recurso de la recualificación se traduce Humanidad” una amplia zona de la ciudad, pro-
en “cultura sin autor”, a contramano de los propios curando otorgarle “valor universal excepcional”
fines perseguidos por esta concepción, o sea por que por sobre todas las cosas incluye el río, terri-
“fuera de preocupaciones sociales” y reflejada en torialidad física desde la que se intenta fortalecer
“políticas económicas culturales”. En este sentido, el carácter “porteño” de la ciudad, pero también
la cultura se convierte en un dispositivo material y ciertos espacios recualificados o con intentos de
simbólico que, adherido a monumentos, arte, patri- renovación como Puerto Madero, La Boca, San
monio inmaterial, se torna “objeto de contempla- Telmo, entre otros; resulta otro ejemplo paradig-
ción” y como señala De Certeau (1996) “sustrae mático en el sentido planteado.
a usuarios de lo que presenta a los observadores” Tanto en Buenos Aires como en San Pablo, a
(apud TAMASO, 2006: 4). Desde esta perspectiva, las que podríamos agregar Río de Janeiro3 –por
los procesos de recualificación son el producto de solo mencionar tres de las ciudades más paradig-
un “urbanismo escenográfico” (BORJA; MUXI, máticas en torno de estos procesos-, la cultura
2003) que hace de la ciudad una especie de museo aparece en un rol central y crucial de los proce-
patrimonialista o de galería de arte donde las obras sos mencionados, a fin de “promover ciudad” a
u objetos seleccionados son iluminados una vez en partir de singularidades, no obstante universaliza-
que se extraen de “su lugar” y por ende, son desa- bles desde su carácter de transnacionalidad, que
propiados de los sujetos productores o bien de los se suponen fortalecen una idea de cultura urbana
sujetos y grupos que usan y se apropian de los mis- más asociada a la de “estilo de vida” que como
mos. Los elementos recualificadores se transfor- “asunto político” –parafraseando a Appadurai y
man en dicho proceso y salen del espacio/tiempo Steinou (2001) quienes señalan este punto en re-
cotidiano hacia un espacio/tiempo extra-cotidiano. lación a la problemática de la diversidad cultural-.
Hace ya unos cuantos años, pero como no podía Es de destacar que aunque los valores culturales
ser de otro modo, en la década de los ´90, cuan- urbanos que se promueven se construyen desde
do estos procesos empezaron a tener presencia en lo local, no obstante, atravesados por referencia-
América Latina, en la ciudad de San Pablo la Aso- les globales; por otro lado, se trata de referencias
ciación Viva O Centro en alianza con el gobierno culturales fuertemente enraizadas –también tipi-
local, comenzó a promover la recualificación del ficadas en base a la legitimación de procesos de
centro histórico. Fue en torno de dicho contexto en estereotipación-, fácilmente transnacionalizables
que desde el poder público se planteaba: “necesi- –es obvio que la “Buenos Aires cultural” como
Río de Janeiro como “ciudad de samba” son reco- los aparentemente generalizables y necesarios por
nocibles por otros latinoamericanos e incluso por igual, negando su dimensión hegemónica); 2) En
otros “ciudadanos del mundo occidental”, en tanto la visión de la cultura como antídoto de las patolo-
representaciones dominantes y legítimas de cada gías urbanas, opera la fuerte mirada acerca de que
ciudad en particular que se han expandido a lo lar- “todo espacio y todo sujeto y/o grupo social tiene/
go de procesos históricos extensos-, pero sin duda posee cultura” (CANCLINI, 2005). El aparente
cargadas de relativa y profunda especificidad. desplazamiento del sentido de “trascendencia” que
Retomando lo dicho hasta aquí, podríamos supo tener la cultura, que hemos puesto en duda
plantearnos tres premisas básicas en la promoción mas arriba, y que se vio plasmado en determina-
de la recualificación transnacional: 1) la banaliza- dos “nichos urbanos” de la ciudad moderna –zonas
ción con que se construye la cultura como recurso, históricas resaltadas, áreas asociadas a las bellas
por efecto de su supuesta ampliación que sobrevie- artes- conduce hacia la concepción antropológica y
ne de pensarla como un recurso que puede flexi- subjetiva de la cultura, que en términos de UNES-
bilizarse y desparramarse más allá de distinciones CO y otros organismos, se traduce en la palabra
sociales y culturales – desde este punto de vista, creatividad. Creatividad y expansión de la cultura
no solo habría ampliación sino también aparente más allá de las artes cultas y el patrimonio históri-
inclusión; 2) la estrecha vinculación entre esa idea co, supone desarticulación de la cultura y la espe-
de cultura y la visión de la regeneración y renaci- cialización y consagración instituida por efecto de
miento como parte de un estado de situación único políticas culturales selectivas, asimismo, supone
que omite procesos y contextos de localización es- igualación de producción, circulación y consumo
pecíficos –es muy probable que el modelo catalán del entramado de símbolos que intersectan la vida
solo sea aplicable con relativo éxito en el contexto social. Se espera que la capacidad de imaginar e
de una ciudad como Barcelona. Cada ciudad es el innovar surja del reconocimiento de la creatividad
resultado de procesos de conformación históricos que todos podemos desarrollar, más allá de capa-
localizados a partir de los cuales son entendibles cidades intelectuales y/o culturales especiales (to-
valores, prácticas y comportamientos; 3) la puesta dos somos potencialmente creativos y toda ciudad
en juego de modelos en los que impera y circula contiene recursos asociados a la creatividad) –la
la lógica de la rentabilidad económica camuflada idea de creatividad se introduce como soluciona-
mediante el protagonismo dado a la lógica de la dor de problemas de todo orden-; 3) no obstante,
rentabilidad cultural, en el presupuesto de que todo en el camino hacia su utilización en procesos de
espacio condensa valor agregado y capital simbó- recualificación urbana, la cultura comporta cierta
lico – solo hay que saber extraerlo -, por ende que ambigüedad: por un lado, se desparrama como atri-
cada y todo lugar de la ciudad puede usufructuar buto y atribución extendida en la estructuración de
de esa rentabilidad – oscureciendo un registro seg- la vida social cotidiana –se subjetiva-, por el otro,
mentado de lugares más rentables y lugares menos adquiere su sentido de “trascendencia” toda vez en
rentables, o sea más o menos atractivos, más o me- que se vuelve recurso de dichos procesos –en la
nos distintivos. transformación de un “lugar común” en un “lugar
Desde las premisas planteadas, resulta de inte- extraordinario y fuera de lo común” es necesario
rés profundizar en esta cuestión de la cultura como seleccionar y exaltar ciertos referentes simbóli-
recurso de la recualificación, pues es en ese punto cos a partir de los cuales se establecen parámetros
en que se entronizan una serie de paradojas: 1) la de definición del lugar y una matriz de inclusión-
visión de la cultura como recurso se forja en una exclusión socio-cultural-. La cultura así recurre
idea esencial y utilitaria de la cultura que en pri- al patrimonio o el arte, los que mediante usos de
mera instancia relega la importancia de pensar la la estética y la belleza, operan sobre la conforma-
cultura como “lo cultural” (APPADURAI, 2001) o ción de referentes excepcionales y de excelencia
sea como diferencia situada por efecto de procesos cultural –excepcionales porque pueden representar
específicos de localización y desigualmente consti- por exceso y condensación de signos-. La cultura
tuida en relación a los mismos. Por ende, la cultura se reinstitucionaliza objetivando y materializando
en estos términos desdiferencia (reproduce mode- manifestaciones de orden inmaterial. En este sen-
tido, su ambigüedad deviene de su nueva misión qué lógicas pertenecen las operaciones de recuali-
asociada a la atenuación y compensación de ten- ficación...: a aquellas del juego electoralista, de los
siones y conflictos de otro orden, sin embargo, en- imperativos de la competitividad, de los principios
trampada necesariamente en su papel de excelencia de la sostenibilidad o del discurso global formula-
y excepcionalidad (la cultura eleva y dignifica lo do por los organismos internacionales que intervie-
social); 4) La visión anterior remite ineludiblemen- nen sobre el lugar directa o indirectamente?
te a la idea de “todos tienen cultura”, no obstante, Como hemos venido analizando, en parte res-
como lo ha señalado G. Canclini (op.cit.), omite ponden al discurso global y globalizado de la cul-
la pregunta acerca de quienes, donde y como pue- tura y el desarrollo que, sin duda, en algunas ciu-
den desarrollarla. La desdiferenciación cultural se dades han intervenido incluso con financiamientos
desajusta y contradice en relación a la producción –es el caso de Quito, por ejemplo, donde inicial-
de “las culturas” frecuentemente estigmatizadas y mente el BID intervino con financiamiento y des-
construidas en la desigualdad social. En este aspec- de allí indujo a la creación de una empresa mixta
to, puede rastrearse la ambigüedad conflictiva en (una alianza público-privada), así como la Junta de
que la cultura hoy se vuelve un recurso de relevan- Andalucía que intervino con recursos para rehabi-
cia para los procesos de transformación urbana. La litación de viviendas en el mismo centro histórico;
visión de la cultura como recurso y su ampliación o bien el caso de La Habana que obtuvo recursos
a la idea de creatividad supone mayor igualación y de la UNESCO-. Pero intentar explicar estas nue-
democratización e inclusión de los sujetos y grupos vas formas de operar sobre las ciudades solo desde
sociales en su diversidad. Pero la inclusión de los ahí, implicaría frivolizarlas. Según nuestro parecer,
sujetos no garantiza su incorporación como sujetos este interrogante se responde considerando que los
históricos y productores de cultura. No obstante, procesos de recualificación/regeneración urbana se
participación no es igual a democratización e im- constituyen a partir de discursos y prácticas aso-
plementación de justicia distributiva: disfrutar de ciados a las políticas públicas que, sin embargo,
sus modos de vida y de sus manifestaciones cul- se institucionalizan como materia prima global-
turales e incluso ser reconocidos a partir de ellos, trasnacional-local –se desarrollan localmente con
no se traduce en la corrección de desigualdades influencias exógenas que, una vez materializados,
sociales, económicas y políticas; hay expresiones también actúan irradiándose hacia fuera-. En este
de mayor o menor valor, hay culturas minusváli- sentido, se trata de procesos políticos que exceden
das; 6) La promoción de la diversidad cultural o la a un único partido político, porque como ha seña-
mixtura social en un “paisaje” –un lugar recualifi- lado Rebotier (2006: 22), en relación a la ciudad de
cado- a partir del cual “todos” pueden apropiarse Recife, “…la naturaleza de las políticas de recuali-
de “lo cultural” y “todos” tienen cultura, supone ficación de los centros es menos el producto de la
que “todos” pueden ser integrados y merecedores ideología política de un partido o de una adminis-
de la ciudad, relegando, como señala Zukin (1996), tración, que el resultado de un juego complejo de
que “la cultura es también un medio poderoso para alianzas locales y de socios circunstanciales para
controlar las ciudades”. el cual la complejidad de las elecciones no es de
Los postulados planteados reintroducen el menor importancia”, sin embargo, como dice el au-
problema de las ambigüedades, contradicciones tor, la política pública urbana precisa de horizontes
y tensiones contenidas en los nuevos procesos de temporales más largos. Sus conclusiones son bien
renovación urbana donde la cultura opera como importantes toda vez en que focaliza en el análisis
un recurso indiscutible. En cierta forma, y para- del centro de Recife en relación no solo a la retó-
fraseando a Susan Wright (1998), ¿cómo empezar rica que hoy prevalece en torno de la cultura como
a mirar esta utilización de la cultura en diversos recurso, sino principalmente haciendo dialogar los
campos de lo urbano por parte de tomadores de procesos de recualificación con las políticas públi-
decisiones que proceden del campo de la política, cas urbanas –con el telón de fondo de la coyuntura
y desde allí analizar los efectos sobre los diversos electoral, pero al mismo tiempo reflexionando so-
actores sociales involucrados, especialmente sobre bre las continuidades/discontinuidades vinculadas
los vistos como “no productores culturales”? ¿…”a a los partidos gobernantes y en torno a las cuales
se debilitan y/o fortalecen dichos procesos o pro- estos procesos implica una “apropiación cultural
ducen efectos negativos o no sobre los sectores dirigida” que en las ciudades modernas antiguas
empobrecidos, entre otras cuestiones-. (las que poseen historia manifiesta, es decir patri-
monio histórico) conduce a una redefinición del
Gentrificación, recualificación, regeneración: “significado social de un lugar específicamen-
¿Procesos para el consumo y/o la producción te histórico para un segmento del mercado”. El
socio-cultural? ¿Procesos de adhesión y/o re- remapeamiento de las ciudades sería el resultado
sistencia? de la construcción de “espacios liminares” (entre
lo público y lo privado, el mercado y el lugar),
Los procesos sobre los cuales estamos colocan- concretamente de “paisajes” a los cuales se llega
do nuestra atención, entraron a escena en las ciuda- con la cultura como recurso estratégico invalora-
des denominadas del Primer Mundo –como Nueva ble y en dos etapas según la misma especialista:
York (EEUU) o Londres (Inglaterra)- bajo el nom- en primer lugar, un grupo –que Zukin suele aso-
bre de la gentrificación. Entre la década de los `60 ciar al mercado- no nativo del lugar toma cuenta
y la de los `70, comienza a producirse el “retor- de la perspectiva del mismo y del carácter local,
no a la ciudad”, particularmente a los centros que en segunda instancia, ese grupo convierte lo local
por ese entonces sufrían el deterioro y la crisis que en paisaje a partir de los procesos de apropiación
afectaba en su conjunto a las ciudades por ente- espacial, en el que la cultura se transforma en un
ro. Estas formas de reorganizar los espacios deben negocio, pues actúa a favor de nuevas inversiones
entenderse en un contexto de desindustrialización, económicas, al tiempo que en una estrategia de
según el cual, la mayoría de las ciudades perdieron estetización y construcción de imagen.
la fuente de recursos necesaria a la reproducción de En esta concepción de la gentrificación se mate-
una parte de la sociedad –no debemos olvidar que rializan “paisajes” embellecidos a partir del denomi-
la ciudad moderna, siguiendo a Donzelot (2004), nado “urbanismo escenográfico”, una forma de rea-
se constituyó en base a una lógica del ascenso so- propiación simbólica de lugares de la ciudad, sobre
cial producto, no solo de una forma de insertarse los cuales se interviene microquirúrgicamente, de
en un contexto de planificación funcionalista, sino acuerdo a esta perspectiva, a los fines de sobrecar-
también de ingresar en el mercado de trabajo pro- garlos de plus simbólico y volverlos “lugares espe-
pio de la industrialización-. ciales” contorneados en base a contenidos culturales
Si bien no es interés de este texto realizar una estrechamente relacionados con el entretenimiento
genealogía de los términos, sino discutir con los y el placer –incluso la puesta en valor del patrimo-
componentes del proceso y sus desafíos y limita- nio histórico, se supone que encuentra sentido desde
ciones mirados desde el conjunto de las ciudades esa lógica de uso-. Los procesos de gentrificación
latinoamericanas; por otro lado, resulta de interés que los autores brasileros tradujeron como de “en-
volver por un momento, sobre la categorización nobrecimento urbano”, pero que con posterioridad
que se impostó desde las “ciudades desarrolladas” también fueron llamados de recualificación cultural
en el mundo occidental. La palabra gentrificación urbana 4 –sobre todo en nuestro medio se recurrió
supone ese movimiento, es decir la reconversión a esta denominación en sintonía con el modelo de
o recambio de población: zonas abandonadas y Barcelona, el que fue impostado con características
centrales transformadas y recuperadas para sec- similares en varios lugares de Buenos Aires, aunque
tores sociales, especialmente clases medias “dis- especialmente en Puerto Madero-; responden a una
tinguidas”, gustosos de estas nuevas áreas “en- estrategia de impostación de un estilo de vida antes
noblecidas” (como resultado de la expulsión de que a una revitalización o rehabilitación –conceptos
sectores populares). Dicho movimiento era y es diferenciados en cuanto a su sentido- del espacio de-
(cuando se produce) la consecuencia de la genera- teriorado e intervenido, desde las cuales se focaliza-
ción de un “paisaje”, concepto clave, según Zukin ría la atención en el mejoramiento de las condiciones
(1996), para comprender la transformación espa- de vida de los sectores empobrecidos. Cuando el pre-
cial asociada a la gentrificación. La misma autora sidente de Viva O Centro en San Pablo se planteó el
nos dirá que la construcción de paisajes en base a siguiente interrogante: “¿Estrategia de recualifica-
ción o Política Habitacional?” resolvió el dilema y de la identidad en las que el poder público y pri-
diciendo: “Un programa exitoso de uso residencial vado juegan un papel de trascendencia, aunque no
del Centro será importante por su significado sim- son los únicos, en la eficacia de visibilizar “buenos
bólico, no así como programa de atención a las y bellos espacios” y “buenos y bonitos vecinos”
agotadoras demandas por vivienda en la ciudad. neutralizados por la imaginería cultural/patrimo-
…en la perspectiva de la recualificación del área, nial. Cabe destacar la relevancia que adquiere en
se incentiva la función residencial…” 5. Evidente- esta redefinición de los lugares por vía de lo cultu-
mente este actor proveniente del ámbito del merca- ral, la imposición de la idea de belleza de acuerdo
do resalta la visión de estos procesos asociados al a cánones occidentalizados (AMENDOLA, 2000:
estilo de vida, constituido en base a la impostación 132-33) relacionados con cierta exigencia contem-
de cultura, particularmente de patrimonio histórico poránea de las ciudades: la impostación de la bel-
cuando se trata de recentralizar centros históricos, leza como “un objeto de normalización positiva” o
sin embargo, en contextos de empobrecimiento y como “estética decretada” desde la cual se sancio-
falta de políticas de vivienda de interés social. na no solo la gama de colores con los cuales inter-
Alineado con esta postura Proença Leite (2009) venir los lugares, sino sobre todo la elevación del
señala la relevancia de algunos aspectos caracterís- espíritu del que ya hablamos en el tópico anterior,
ticos de estos procesos: 1) la necesaria incidencia imaginando lugares sin conflicto y accesibles para
de la espectacularización de la cultura; 2) la revalo- todos, independientemente de los recursos mate-
rización del patrimonio histórico; 3) ambos usados riales con que se cuente. Resulta de interés la apre-
por prácticas asociadas al consumo cultural. A di- ciación que en el mismo sentido realiza Smith (op.
chos rasgos, el autor agrega que el ennoblecimien- cit.: 67) cuando señala que estas formas de ocupar
to de determinadas zonas lleva a la “formación de el espacio son también intentos de “desestigmati-
socioespacialidades y a la construcción de un espa- zación” de “zonas rojas” –“marcada en rojo” en los
cio público fragmentado…”. En base a esta visión mapas de la ciudad por infrigir moralidades legíti-
quisiéramos resaltar, por un lado, la impostación/ mas-. Es decir, que la recualificación cultural con-
imposición de lo cultural, en la mayoría de las ve- tribuye a recrear parámetros y valores necesarios
ces bajo la exaltación de un patrimonio histórico al sentido urbano de las ciudades –toda sociedad
en su “versión autorizada del pasado”, que parece suele tener un sentido de la belleza desde el cual
bajar y asentarse sobre un sitio más allá de proce- se valoran objetos y sujetos y se imprime, no solo
sos y sujetos históricos locales. Por el otro, la fuer- una estética, sino también una valoración ética-.
za que adquiere esa “bajada-intervención cultural/ La agregación de elementos como la estética y el
patrimonial” que acaba reafirmando la perspectiva color, se suman en la reproducción higienista de
de estos fenómenos en base a “usos” y “consu- las ciudades que no hace otra cosa que procurar
mo” y negando no solo la misma idea de proce- retomar el paraíso perdido de la ciudad moderna
sos, sino incluso de producción y apropiaciones. en la que el higienismo fue un componente crucial
Condensación de recursos que llevarían bajo esta a la hora de reparar las patologías urbanas. La idea
lógica a la construcción de un mapa urbano pleno de higienización física y social recientemente ha
de fragmentos territoriales definidos por el diseño, llevado a la introducción de un nuevo término para
en contraste con las “nuevas políticas de lugares” definir los procesos que venimos analizando: el de
(DELGADO, 1998) que aunque son el resultado de regeneración urbana, una categoría connotada por
aspiraciones del poder local afines a la conforma- los significados biologicistas y biomédicos insta-
ción de los fragmentos –pues como señala el autor lados en la modernidad urbana y retomados en la
pretenden actuar sobre la “rehabilitación” o “re- contemporaneidad.
dención del espacio” mediante la monumentaliza- Esta visión centra la lógica de estos procesos en
ción de ciertos hitos de fuerte arraigo simbólico y el capital y el mercado, circunscribiendo las iden-
la generación de identidad-, permiten pensar estos tidades socio-espaciales que de los mismos se de-
principios de organización de las ciudades contem- rivan, en identidades que resultan “de aquello que
poráneas en base a relatos constitutivos de lugares consumimos” (ZUKIN, 1996). La autora (1996:
simbólicos, consecuencia de políticas territoriales 26) agregaba a su postura que “la resistencia a las
múltiples perspectivas del paisaje pos-moderno público urbano, perspectiva que no solo avanza so-
puede ser verdaderamente demostrada por aquellos bre la simple idea de uso –y consideremos que los
que no participan de los modos dominantes del usos no implicarían de por sí resistencia, entre otras
consumo visual. Mas quien hoy posee una mirada cuestiones-, sino que integraría la concepción ligada
tan desocializada? Los sin techo, que no tienen lu- a la dimensión política que todo espacio requiere en
gar en el mercado; aquellos que permanecen en el su constitución social –y cuando hablamos de lo po-
lugar a despecho de las fuerzas del mercado (por lítico en este caso, estamos abarcando a los sujetos
razones sentimentales o de historia, barreras de y grupos sociales que residen, transitan, producen,
clase o raza)….”. La autora desecha la posibilidad consumen, en los lugares “extraordinarios” por efec-
de pensar en “identidades de resistencia” partiendo to de la recualificación-; 3) finalmente, aunque per-
de que dichos “espacios totalmente programados” mitiría asumir la idea de resistencia por oposición, la
(O´CONNOR; WYNNE, op.cit) por el capital, construcción de la misma se daría por la vía de los
son el resultado de “identidades de consumo” que opuestos, sin estimar tensiones y disputas que ade-
acabarían con aquellos sectores desplazados de la más de llevar a repensar la misma idea del “contra-
apropiación cultural. uso” –como idea polarizada confrontativa de la de
La cuestión de la imposición y control homoge- “uso”-, permitiría observar problemáticamente los
neizante que la cultura/patrimonio contribuirían a procesos conflictivos consecuencia de consensos,
crear en cada uno de estos lugares especiales, asunto negociaciones y disputas que todo proceso de este
que obligaría a pensar en la reproducción de sitios tipo produce. En la visión de los “contra-paisajes”
copiados a imagen y semejanza unos de otros, ha lle- se pierden los sujetos, en la de los “contra-usos” se
vado genéricamente a pensar como Zukin, que estos diluyen las apropiaciones conflictivas de dichos
procesos no generan resistencias, por ende, que no sujetos sobre los mismos “paisajes”.
dan lugar a posibles transformaciones y puesta en Está claro, según lo comentado, que estos pro-
juego de conflictos en discusión con la imagen legi- cesos no responden a una “lógica unilineal y unidi-
timada. O bien, en la perspectiva de Proenca Leite, reccional del capital, donde hasta la autonomía re-
aún en la idea del consumo, los usos asociados a los lativa del capital cultural cede a los imperativos del
“paisajes de poder” (ZUKIN apud LEITE), podrían mercado global” (O´CONNOR ; WYNNE 1997:
contrarrestarse con la generación de “contra-usos” 204). No sólo las “nuevas centralidades” pueden ser
(LEITE, 2007, apud, LEITE, 2009). Más allá de el “centro de convergencia de un amplio conjunto
la visión “paisajista” o territorial desde la cual se de renegociaciones…” (O´CONNOR; WYNNE,
construye esta idea, la misma relega dos cuestiones id.ibid.) asociados a las identidades de consumo,
a nuestro entender de importancia: por un lado, los así como a las identidades del lugar, sino también
procesos de producción y circulación de bienes y re- espacios que aunque renovados, acaban siendo dis-
cursos materiales y simbólicos que involucrarían a putados en su sentido recualificado.
todos los sujetos y grupos implicados en algún pun- Desde esta última perspectiva, resulta de interés
to con la recualificación, asunto que al recargar las el análisis desarrollado por Bautes (op.cit.) acer-
tintas sobre el consumo, deja a los sujetos en actitud ca de la recualificación del centro histórico de Río
de pasividad, pero particularmente a ciertos secto- de Janeiro, a la que se vincularon una serie de ini-
res sociales en relación a la “no producción”, en este ciativas artísticas y patrimoniales vinculadas a la
caso, cultural; por el otro, la inclusión de los “con- Favela del Morro de Providencia. Re-funcionalizar
tra-usos” o “contra-paisajes”. Esta cuestión lleva a un lugar de la pobreza en pos de redefinir estraté-
otros tres aspectos cruciales: 1) la discusión con el gicamente la miseria “como problema paisajístico
“paisaje recualificado” se daría solo en términos de (o ambiental)” (VAINER, 2000: 82), habla de una
dicotomía espacial, o sea en confrontación de opues- especificidad de este tipo de procesos, al mismo
tos, reforzando la idea de fragmentación del espa- tiempo que de la otra cara de los mismos que opera
cio y calificando entonces entre espacios legítimos en algunas ciudades donde los pobres y el territorio
y espacios deslegitimados, aunque usados por con- donde residen o circulan, debe ser integrado a la re-
traposición con aquellos; 2) la visión asociada a los cualificación. No obstante, este proceso aplicado en
usos, desestima la idea de apropiaciones del espacio la favela o asentamiento popular no hace mas que
reproducir una lógica universal donde la cultura es y disputa que operan en forma simultánea o dis-
omnipresente en su valorización, a fin de particula- continua en el centro histórico de San Telmo, en el
rizar su existencia, pero “definida como “…viven- centro histórico de Quito o en la Rambla del Raval
cia en un territorio homogéneo, de “iguales”…” en Barcelona6, constituyen ejemplos en ese senti-
(BAUTES op.cit.: 161). Como señala el autor, la do. Desde esta óptica, es posible pensar que las li-
“estetización de la marginalidad”, se convierte en mitaciones y desventajas de la recualificación cul-
un “recurso potencial de valorización territorial” tural, pueden trasmutar en desafíos y ventajas: la
(op.cit.: 165), que aunque no siempre participa de funcionalidad de las negociaciones que desarrollan
manera uniforme, en ocasiones como la estudiada los indios de Quito, los afrodescendientes de San
por Bautes, resulta “funcional” a los procesos des- Telmo o los bolivianos participando de la “Gran
criptos. A diferencia del planteo que el autor reali- Vía” de Avenida de Mayo en Buenos Aires7, pue-
za, desde nuestra perspectiva, consideramos que la de convertirse en disfuncionalidad –desde quienes
“estética decretada” (AMENDOLA, 2000) por la planifican la recualificación- o bien en disputas por
recualificación no solo se constituye en un meca- el territorio y el reconocimiento socio-cultural.
nismo de control de las políticas públicas, además
del mercado, sino también de los espacios y grupos La recualificación cultural entre la visibilidad/
sociales, en primera instancia, excluidos de dichos invisibilidad de “producciones/(no)productores
procesos. La aparente democratización que obser- culturales”
va Carré Jeudy (2000, apud BAUTES, op.cit.) en
relación a la patrimonialización de los territorios Según algunos autores, estos fenómenos de-
y sectores populares, o la supuesta resistencia que berían ser comprendidos en su sentido “clasista”
Bautes atribuye a estas situaciones en la que movi- (SMITH, 2006) o como ha señalado Wacquant
mientos de artistas y activistas culturales implantan (2008) habría que repensar la gentrificación “re-
colores, arte y patrimonio en la favela; pensamos localizándola” a partir del “nexo de clase [que]
que acaba en un fortalecimiento de la recualifica- forma el verdadero corazón del fenómeno” (Glass
ción, en una profundización de la vulnerabilidad retomado por el autor). En la perspectiva del pri-
social de los sujetos y grupos involucrados, en con- mer autor, la renovación urbana es de dimensión
secuencia en procesos de negociación funcionales clasista, en la del segundo, el problema está en
a la renovación y valorización de espacios urbanos la pérdida observacional del analista social que
escogidos por el poder público y privado. No solo ha dejado de mirar “los barrios tradicionalmente
la estetización y recualificación generalizada ho- de clase trabajadora” diseccionados por Topalov
mogeneíza espacios y se transnacionaliza atrave- y puesto el énfasis y las “interrogaciones dentro
sando fronteras de las diferentes ciudades, sino que de la etnicidad y segregación por un lado, y po-
incluso, como hemos analizado en otro texto (LA- breza urbana…por el otro”. Aunque acordamos
CARRIEU, 2008), requiere de los sectores menos con este autor en que una vasta proporción de la
afines a la misma, para que ésta sea posible. Con bibliografía sobre los procesos de recualificación
este planteo discutimos con la visión unilineal de cultural “reproducen para esos distritos la tenden-
la gentrificación (la del recambio poblacional), si cia general de políticas públicas de invisibilizar al
bien aceptamos que puede haber procesos de con- pobre urbano, ya sea dispersándolos (a través de
testación por parte de quienes son expulsados. Y la demolición y desconcentración del alojamiento
es probable que sea en estos procesos de resisten- público) o conteniéndolos en espacios reservados
cia, contestación y disputa en que la recualificación (distritos estigmatizados de perdición…)”; el pro-
encuentre fisuras, en consecuencia, que podamos blema no solo se asienta en que dichos estudios,
relativizar la transnacionalización de la misma. La como remarca Wacquant, “dejan afuera el rol cru-
persistencia de la favela en las proximidades de la cial del Estado”, sino en que lo que están dejan-
recualificación del centro histórico de Recife, no do afuera, además, es la producción funcional de
obstante, sin estetización, la visibilización e ilumi- grupos sociales recualificados y las tensiones con-
nación estética de la favela y los favelados en Río flictivas que hacen de estos procesos, fenómenos
de Janeiro, o los procesos tensos de negociación inestables, ambiguos, inciertos y en muchos casos
pone en escena la tensión entre el ideario aso- sólo que actúa en un sentido más cínico y perverso,
ciado al “todos tienen cultura” y la pregunta que pues finalmente es una violencia oculta, escondida,
desvela a G.Canclini acerca de “¿Quiénes pueden disimulada y simulada, pretendidamente invisibili-
desarrollarla?”. Cuando las diferencias no logran zada, no obstante legitimada en y legitimadora de
ser exotizadas dejan de ser un recurso. En la me- discursos y prácticas que deciden sobre el futuro
dida en que la diversidad cultural –valor inherente de sujetos y grupos sociales en base al descono-
a la cultura como recurso- trasciende el espacio cimiento. Lo desconocido es aquello que se es-
de representación o de exposición instalándose conde, sin embargo, de indiscutible eficacia, tanto
en el espacio de co-presencia ligado a la sociali- material como simbólica, y de alto valor simbólico
zación y el encuentro/desencuentro con el “otro” por su condición de arbitrariedad propia de uno o
(AMENDOLA, 2000: 278), “…la cultura [devie- diferentes grupos de poder, altamente selectivos
ne] también en un lugar de conflicto explícito de en relación a que contenidos simbólicos imponer
las diferencias sociales y los miedos urbanos” (comportamientos, valores, creencias), instrumen-
(ZUKIN, 1996). El piquetero, en este sentido, no talmente utilizados mediante la puesta en marcha
solo no es merecedor del espacio público ni de la de ciertos procedimientos institucionales e insti-
cultura en tanto recurso, sino que tampoco podría tucionalizados (TERRAY, 2005). La Buenos Ai-
ubicarse entre el menú de posibles sujetos dife- res de hoy, en sintonía con otros modelos urbanos
rentes que podrían desarrollar la cultura en tanto idealizados, apela a la belleza como procedimiento
marcada por una diferencia cultural “permitida”. adecuado para ejercer la violencia simbólica desde
El piquetero convoca a una mirada provocadora la cual se excluye y se incluye, se integra y se se-
de la diferencia: no a la colorida diversidad exo- grega, se ejerce control y poder, finalmente se legi-
tizada, sino a la deslucida diferencia de la pobre- tima una forma de “merecer la ciudad”, así como
za. Su visibilidad extrema un posible “indice de los sujetos que de ahí en más serán “merecedores
tolerancia” respecto de lo potencialmente tolera- de la ciudad”.
ble o no (BERNAND, 1994). Los piqueteros en El planteo de Terray (2005: 331) da cuenta de
cuestión, son advertidos cuando más se distin- “las diversas variedades de violencia que se des-
guen del patrimonio cultural “inglés” expresado bordan la una sobre la otra, pasan la una a la otra
en las construcciones reconstruidas, situación que y acumulan sus efectos…” en procesos de conti-
los condena aún más en su segregacionismo. Muy nuidad y discontinuidad que obligan a pensar que
por el contrario si estos piqueteros, como otros los ejercicios de la violencia urbana van más allá
actores de la ciudad que se recrean en la diferen- no sólo de los problemas de inseguridad o delin-
cia cultural “permitida”, pudieran estar pero pa- cuencia, traspasando los momentos críticos de la
sar inadvertidos, no solo serían tolerados en su dictadura militar (en nuestra ciudad) y producien-
pintoresquismo cultural, sino que se constituirían do efectos materiales y simbólicos intimidatorios.
como sujetos de la recualificación cultural. Desde No por ello, como señala el autor, imposibles de
esta perspectiva, no hay necesidad de evitamien- ser “contestados” en su propia esencia, cuando se
to, y es más, si la diversidad cultural contribuye, descubre el rostro del enmascaramiento que com-
al menos coyunturalmente, a “vestirse” de diver- portan dichas violencias.
sos comercializables, es posible hasta socializar
en la efimeridad de un tiempo breve asociado al A modo de conclusión
ritual, la fiesta o la comida típica.
El ejemplo que hemos tomado expone las con- Las ciudades de América Latina, aún en sus es-
tradicciones que los procesos de recualificación pecificidades vinculadas a procesos de conforma-
cultural urbana ponen en marcha. La cultura como ción metropolitanos así como a procesos históricos
recurso aparentemente indemne a los conflictos nacionales, ofrecen desafíos y limitaciones ligados
sociales y urbanos, acaba produciendo procesos a fenómenos que trascienden y al mismo tiempo
en los que la violencia simbólica es objeto de rele- atraviesan las fronteras de los países. Podríamos
vancia. Bourdieu nos ha enseñado que la violencia especular que la fragmentación que se atribuye a
simbólica es como la violencia física y/o material, las urbes contemporáneas, así como las interven-
ciones recualificadoras, son principios de estructu- versidad en el ámbito de los espacios públicos.
ración urbanos y latinoamericanos. Como hemos No obstante ello, como señala Appadurai (2001),
dicho en otro texto, serían fenómenos que respon- los espacios recualificados desde la cultura, no
den a situaciones y procesos regionales, no obs- generan espacios de gestión de la interculturali-
tante, inescindibles de contextos urbanos globales. dad, sino lugares de conflicto y disputas. Estos
Desde esta perspectiva, y siguiendo los planteos últimos se constituyen en base a sujetos, grupos
provenientes del campo de las ciencias sociales y sociales que tensionan y disputan el arreglo espa-
el urbanismo, estos aparentes “productos globales” cial de la recualificación con la diversidad como
materializados en la región, son fenómenos a-his- instrumento público de reconocimiento. Sin em-
tóricos, estáticos, homogéneos, nacidos desde el bargo, como bien dice el autor, muchos de estos
vacío –como si cada ciudad volviera a nacer-, ais- grupos son libres de expresarse en su diversidad
lados de conflictos y relaciones de poder, en suma en el ámbito de lo privado o bien en los lugares
despolitizados. En el caso de las recualificaciones no recualificables y por ende residuales para la
culturales estrechamente asociados al cambio o producción urbana, generando problemas que
impostación de un estilo de vida, antes que com- exceden el ámbito de la cultura e incorporan el
plementarios de soluciones a la crisis urbana y/o de los derechos sociales, en tanto “se convierten
a las desigualdades sociales. Es esta mirada sobre en posibles solicitantes de espacios y prácticas
dichos procesos, la que se concentra en la política [también] regulados por el estado” como la vi-
pública sin política, en el mercado y eventualmen- vienda por solo poner el ejemplo que mas atañe
te en sectores medios distinguidos, aparentemente a los procesos aquí analizados.
nuevos residentes de estos lugares. De este modo, Es obvio que la relación entre cultura, diver-
el campo de los expertos observa los desafíos en sidad y ciudad se tensiona en el ámbito cultural,
términos de ventajas, o bien las limitaciones en re- simultáneamente en que fricciona el campo de lo
lación a los procesos de segregación socio-espacial social. En este sentido, la cultura y la diversidad
que estos fenómenos generan. Escasamente se se sitúan por fuera y no dentro del contexto de
vislumbran las tensiones y disputas que colocan las desigualdades, procesando procesos de segre-
a estos procesos entre incertezas, ambigüedades y gación agudizadas aún, como vimos, en situacio-
contradicciones. Es justamente desde este ángulo nes en que aparentes movimientos de resistencia
en que decidimos colocarnos. retoman la cultura, el patrimonio y el arte como
Los procesos de recualificación cultural urba- recursos de contestación.
na contribuyen a la instauración de tensiones y
disputas relacionadas con el discurso de producci- Referências bibliográficas
ón del lugar, con las prácticas adecuadas al mismo
y con los sujetos y grupos sociales que tienen a AGIER, Michel. L´invention de la ville. Banlieus,
incluirse o excluirse. Con la cultura de la mano townships, invasions et favelas, Éditions des ar-
puede controlarse socialmente el espacio y des- chives contemporaines, Francia, 1999.
de allí la misma ciudad, así como explicitar los
conflictos específicos que devienen de grupos no ALTHABE, Gérard. Recomposiciones simbólicas
deseados. Con la cultura se puede “merecer” ser del urbanismo totalitario. El Centro Cívico de
parte o no del lugar. Bucarest, ¿lugar de memoria?. In La (Indi)Getión
La exacerbación de las políticas que asocian Cultural. Cartografía de los procesos culturales
cultura y ciudad focalizan la atención no solo contemporáneos, Lacarrieu y Alvárez (comp.).
en la construcción simbólica –también imagina- Buenos Aires: Ediciones La Crujía, 2008.
ria- de la urbe, sino sobre todo en la exclusión
de derechos sociales y la aparente inclusión de AMENDOLA, Giandomenico, 2000. La Ciudad
derechos culturales, estrechamente vinculados Posmoderna. Magia y Miedo de la Metrópolis
al “derecho a la belleza y la estética” (AMEN- Contemporánea. Traducción de Marisa García
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ARTIGO
Resumo: Trata-se de uma análise das reações das igrejas cristãs à judicialização e ao fortalecimento dos direitos
humanos nas sociedades latino-americanas. Interessa-nos explorar as tensões oriundas da difusão dos movimentos
em defesa dos direitos sexuais e reprodutivos na região. Assim, depois de uma síntese do debate sobre as múltiplas
formas de modernidade, realizamos na primeira seção uma reflexão sobre a influência do catolicismo na moral sexual
predominante. Em seguida, examinamos as consequências da pluralização no cristianismo e as estratégias das igrejas
frente à luta pela criação de uma moral sexual baseada nos direitos humanos. Concluímos com o argumento de que
existe hoje uma acirrada disputa entre as ideologias de matriz cristã e as de caráter secular em torno dos sentidos da
sexualidade e da vida humana, intensificando-se as demandas pela laicidade do Estado na América Latina.
Christian churches and the challenges for the expansion of human rights in Latin America
Abstract: This article intends to analyze the reactions of Christian churches to judicial protection and strengthening of
human rights in latin america societies. The tensions derived from the spreading of the sexual and reproductive rights
defense movements in this region are considered. Thus, after a summary of the discussion on multiple forms of mo-
dernity, we developed in the first section some thoughts about the influence of Catholicism over the dominant sexual
moral. Next, we focus on the consequences of pluralization in Christianity and the churches strategies regarding the
struggle for the creation of a sexual moral based on human rights. The conclusion is that there is today a tight dispute
between the Christian ideologies and the secular ideologies concerning the senses of sexuality and human life. The
demands for a laic State in Latin America are therefore intensified.
(1994), seria reconhecido como paradigma para a emergência no Chile que desencadeou uma forte re-
elaboração de políticas nacionais de população e ação da Igreja Católica classificada por líderes evan-
desenvolvimento nas décadas seguintes. A oposi- gélicos como “fundamentalista” (REYS, 2008).
ção ao programa traçado naquela conferência foi De modo que se constata a ingerência dos di-
encabeçada pelo Vaticano e pelas sociedades mul- rigentes religiosos católicos na revisão das legis-
çumanas, mas países católicos da América Lati- lações relacionadas à família, à sexualidade e à
na – Argentina, Equador, Guatemala, Honduras, contracepção nas distintas configurações nacionais
Nicarágua, Paraguai Peru e República Dominica- que integram essa parte do continente americano.
na – se alinharam a eles, embora muitos, poste- E mesmo que se considere o esforço de algumas
riormente, viessem a adotar as recomendações do intelectuais católicas em fazer a mediação com o
Programa de Ação. feminismo a partir de redes movimentalistas de
A literatura sugere, entretanto, que ainda é mui- caráter transnacional, como Católicas pelo Direito
to significativa a influência das Igrejas locais na de Decidir que hoje articula militantes no México,
política institucional e que existe uma porosidade Brasil, Chile, Argentina, Uruguai, etc.3, é inegável
dos movimentos católicos (como da Opus Dei e que as hierarquias locais assumiram uma posição
da Renovação Carismática pelo lado mais tradi- inflexível de rejeição à agenda política do movi-
cionalista e as Comunidades Eclesiais de Base e o mento, criando uma série de dificuldades para o
Católica pelos Direito de Decidir no campo mais processo de mobilização social pelos direitos sexu-
libertário) com muitas das ações coletivas que se ais e reprodutivos.
desenrolam nas diferentes configurações nacionais Analisando a capacidade de influência da hie-
do continente (o movimento Pró-vida e o feminis- rarquia no debate público e nas políticas chilenas,
mo, respectivamente). Reys (2008: 336) argumenta que as ações da li-
No que se refere ao primeiro aspecto, embora se derança religiosa local são bastante articuladas
verifique a tendência de alinhamento da hierarquia quando se discute a descriminalização do aborto, a
católica com o Estado na maior parte da história educação sexual e as campanhas de prevenção das
política das sociedades, se reconhece a pluralida- Doenças Sexualmente Transmissíveis e à AIDS.
de de arranjos entre os atores políticos e religiosos Nesse sentido, para além das tradicionais homilias
nas configurações nacionais, com as experiências e dos documentos pastorais, os bispos e sacerdotes
cubanas, mexicanas e uruguaias constituindo-se nos vêm pressionando os altos funcionários do gover-
casos mais radicais de laicização na região. Mesmo no, pedindo explicações a respeito das políticas
assim, a instituição católica continua tentando inter- públicas de saúde educação, assim como têm ad-
vir na legislação das duas últimas nações. No Méxi- vertido os parlamentares católicos sobre o caráter
co, a aprovação em 2007 da lei que descriminalizou emblemático de suas posições, na elaboração e nas
o aborto até doze semanas de gestação despertou votações da legislação relacionada com a sexuali-
uma grande reação da Igreja local e do próprio Papa dade e a reprodução humana.
Bento XVI que ameaçou excomungar os legislado- Mais recentemente, segmentos da hierarquia
res responsáveis pela revisão da lei (BLANCARTE, católica vêm recorrendo à justiça para impedir
2008). No caso do Uruguai, as ameaças se repeti- o avanço das demandas dos movimentos sociais
ram e, embora o projeto de descriminalização tenha de caráter mais libertário e mesmo para reverter
sido aprovado no Congresso Nacional em 2008, o decisões e ou suspender o desenvolvimento de
Presidente Socialista Tabaré Vasquez, cuja esposa é programas de saúde reprodutiva. A distribuição
uma católica fervorosa, vetou a lei no mesmo ano e gratuita da anticoncepção de emergência, ou da
o Parlamento não conseguiu derrubar o seu veto. As pílula do dia seguinte, gerou nos últimos anos
pressões sobre as primeiras damas, sobre legislado- uma série de processos judiciais em países como
res e políticos em cargos do executivo têm sido con- Peru, Equador, Colômbia, Chile, Argentina, etc.
tinuamente denunciadas pela imprensa, pelos mo- (VILLANUEVA, 2008). O mesmo tem aconteci-
vimentos sociais e até mesmo por algumas igrejas do com as tentativas de certos setores brasileiros
evangélicas instaladas nestas sociedades. Exemplar de estender o direito do aborto para os casos de
neste sentido foi a introdução da anticoncepção de anencefalia fetal.
Chile, México, Argentina e Brasil. Neste último ção política das lideranças religiosas no campo da
país, um grande survey realizado em 2007, pouco saúde reprodutiva e sobre a moralidade sexual dos
antes da visita do Papa, demonstrou que a maior evangélicos da América Latina. A diversidade in-
parte dos católicos brasileiros tem autonomia de terna desta tradição religiosa constitui num grande
consciência e decisão, divergindo de Bento XVI, desafio para os estudiosos da região, mas as inves-
por exemplo, na condenação ao uso dos preserva- tigações tendem a associar as posições liberais com
tivos, com 94% dos entrevistados desta tradição uma maior liberdade individual no campo da con-
religiosa defendendo a utilização do códon, per- tracepção às igrejas evangélicas históricas (MUN-
centual igual aquele encontrado na população to- DINGO, 2005) e as visões mais tradicionalistas
tal6. No que se refere ao aborto, uma investigação com os pentecostais. A grande competição entre as
desenvolvida em 2004 já indicara que 70% das igrejas pentecostais e a plasticidade de algumas de-
mulheres católicas seriam favoráveis à ampliação nominações desse braço do protestantismo impõem
das situações em que ele seria permitido, caso de uma dinamicidade no campo religioso que dificulta
risco à saúde materna e de estupro, para atender o as grandes generalizações (SMILDE, 2004).
caso de fetos anencéfalos. Em estudo sobre a participação dos parlamenta-
res pentecostais na Assembléia Constituinte do Bra-
Evangélicos e o debate atual sobre os direitos sil, Freston (1993) chamou atenção para as posições
reprodutivos alinhadas e conservadoras desse segmento nos temas
relacionados à família e à moralidade sexual. Mas
Embora minoritária, a presença dos evangéli- uma década depois, estudos também no parlamento
cos na América Latina é antiga e existe bibliografia brasileiro já detectariam posturas divergentes entre
sobre a instalação e desenvolvimento das igrejas os parlamentares pentecostais no que se referia ao
nos diferentes países da região, assim como sobre a uso de embriões em pesquisas científicas e à amplia-
participação de alguns segmentos nos movimentos ção dos permissivos para a interrupção da gravidez,
ecumênicos e de caráter mais libertário, como a te- associando essa mutação no campo pentecostal ao
ologia da libertação. Aqui nos interessa explorar a fortalecimento político da Igreja Universal do Rei-
tendência de pentecostalização desta tradição reli- no de Deus (MACHADO, 2006). Criada no ano
giosa (STOLL, 1990; BASTIAN, 1997; MARTIN, de 1977, esta denominação vem há anos atacando
2002) na segunda metade do século XX e a par- a visão natalista da Igreja Católica e enfatizando a
ticipação das estruturas eclesiásticas pentecostais necessidade de realização de uma efetiva política de
no debate público e na definição das legislações planejamento familiar por parte do governo nacional
nacionais sobre a sexualidade, a reprodução e as como uma estratégia de combater a miséria (MA-
pesquisas com os embriões humanos. CHADO; FERNANDES, 1995). Em uma sociedade
O pentecostalismo também não é um fenôme- com fortes traços machistas, as lideranças inovaram
no novo no continente uma vez que países como indicando a vasectomia aos seus pastores e fiéis que
o Chile e o Brasil contam com grupos desse ramo já tinham dois ou mais filhos e incluíram temas como
do protestantismo desde o início do Século XX. O gravidez na adolescência, educação sexual e aborto
que a literatura indica como mutação mais recente na pauta de seus meios de comunicação. Trata-se na
nesse campo é a multiplicação de denominações verdade de uma das poucas denominações que as-
com atuações transnacionais, o fortalecimento da sumem publicamente a defesa da ampliação da per-
capacidade de mobilização junto às camadas popu- missão da interrupção da gravidez no caso de fetos
lares de um número cada vez maior de sociedades anencéfalos no Brasil (MACHADO, 2006), mas sua
nacionais e ampliação da influência das lideran- participação no debate público serve de contraponto
ças evangélicas na política institucional de países para as posições inflexíveis da Igreja Católica junto
como Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Vene- aos setores mais pobres da população.
zuela, Brasil, Peru, etc. (BASTIAN, 1997; FRES- As análises das percepções e atitudes dos fiéis
TON, 2004; MACHADO, 2006). pentecostais também sugerem mudanças no ethos
Diferentemente do que acontece com o catoli- familiar e na moralidade sexual dos pentecostais
cismo, existem poucas investigações sobre a atua- nas quatro últimas décadas, aproximando-os dos
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3
Ver Navarro y Me jia (2006)
4
Ver Parker, 1996; Maduro, 1978; Gimenez,2003;
Mariz, 1994; Machado, 1996; Drogus e Stwe-
art- Gambino, 2005, entre outros.
5
A partir da década de 90 o número de domicí-
lios chefiados por mulheres chega a representar
um quarto e um terço dos lares, de acordo com
o país (Arriagada, 2006: 208).
6
Folha de São Paulo, 06, 05, 2007, Caderno
Especial. Para o Chile, México e Argentina
ver Reys, 2008, CDD 2003 e respectivamente
http://www.culto.gov.ar/encuestareligion.pdf, .
Acesso em: 19 de set. 2009.
7
Os dados da pesquisa “Spirit and Power: A 10-
Country Survey of pentecostals” podem ser en-
contrados no site The Pew Forum on Religión
& Public Life: http://www.pewfoundation.org.
Acesso em:10 de set. 2008.
8
Ver :www.noticiasglobales.org/comunicacion-
Detalles.asp Acesso em: 15 de set. 2009 e http://
www.aciera.org/declaraciones.html. Acesso
em:01 de set. 2009 No contraponto dessa posição
de rechaço às políticas nas áreas de saúde repro-
dutiva e de educação do governo do Presidente
Kirchner encontrariam algumas poucas denomi-
nações – a Igreja Evangélica del Rio de la Plata e a
Igreja Evangélica Luterana Unida – que em 11de
novembro de 2004 divulgariam na impressa local
um documento chamado Aportes para el diálogo
com relación a La Educación Sexual Integral em
La ciudad Autônoma de Buenos Aires..Ver http://
www.iglesiaevangelica.org/men_hemosdicho.
htm. Acesso em:12 de set. 2009.
9
Ver: http://mujercristianaylatina.wordpress.
com/2008/10/01/alianza-evang....)
10
www.noticiacristiana.com/.../marcha-evan-
gelica-contra-ley-de-derechos-sexuales.html.
Acesso em:15 de set. 2009
RESENHA
O autor fez seus estudos de pós-graduação na conceito de espaço público político elaborado por
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Univer- estudiosos de outras áreas do conhecimento, sem
sidade de São Paulo-FAU/USP, concluindo o seu a mediação de nenhuma teoria urbana, fato que o
doutorado em 2005. Esse percurso lhe permitiu en- leva a indagar sobre a origem dessa apropriação as-
frentar o desafio de pensar as variações em torno sim como sobre as razões da difusão desse concei-
do conceito de espaço público urbano com o qual to entre a grande maioria dos estudiosos do urbano.
se defrontou ao longo de toda sua vida acadêmica. Ciente disso, Sérgio Abrahão enfrenta o desafio de
Tais variações remetiam sempre a imbricação entre recuperar tanto os estudos na área da filosofia po-
esse conceito e o de espaço público político, quer lítica e das ciências sociais que trabalham o con-
quando se remetia à historia das idéias quer quando ceito de espaço público, como as propostas de in-
tomava como referência a sua prática institucional. tervenção governamental e iniciativas urbanísticas
Ora, pensado sob esse ângulo o conceito de espaço levadas a termo por estudiosos nacionais e inter-
publico é ele mesmo saturado de uma ambigüidade nacionais constituídos em grupos e, ou, individu-
radical, talvez para não se render ao simplismo da almente. Na primeira chave, o autor, coerente com
equiparação entre espaço concreto e espaço físico o problema que se pôs, dedica o primeiro Tema ou
do ambiente construído. É possivelmente a com- Capítulo I, à recuperação do conceito de espaço pú-
preensão desse fenômeno que leva o autor a dizer: blico na forma como ele é pensado por autores da
“ É de se observar que [...] a transposição dos atri- filosofia política tais como, Hannah Arendt, (1994)
butos do espaço público político para os espaços Jurgen Habermas (1984) e Richard Sennett (1983)
públicos urbanos não foi mediatizada por nenhuma somando a estes a filósofa brasileira Marilena
teoria urbana” (p.16). Nesse sentido ele se depara Chauí. A investida de Sergio Abrahão nesse campo
com a apropriação pelo campo do urbano de um do conhecimento é pontual e, como ele sublinha,
Recebida em 15.08.2010. Aprovada em 15.09.2010.
baseada em “leituras de leitura”. Por essa via ele por ter como principal mentora a associação “Viva
se preocupa em reter desses autores, através de um o Centro”. Dele participaram várias personalida-
movimento de aproximação-afastamento entre um des ligadas ao planejamento urbano, dentre elas as
e outro, não só as suas concepções sobre vida pú- duas figuras paradigmáticas do urbanismo mundial
blica e espaço público político, mas as chaves que a época, Jordi Borja e Manoel de Sola-Morales,
estas abrem no sentido do entendimento e da arti- célebres formuladores do chamado “Plano Barce-
culação com o espaço público urbano. No segundo lona” que deu os parâmetros da cidade democrática
registro, Sérgio Abrahão procura observar como, e entendida como espaço cidadão e como fonte orga-
em que medida, a reflexão sobre espaços públicos nizadora da vida pública. Sergio Abrahão sublinha
urbanos de autores, ligados ao planejamento urba- que a manutenção da forma pública não foi discu-
no nacionais e internacionais, é qualificada e po- tida apenas sob o viés do espaço público urbano,
tenciada no registro do “espaço público político”. mas em uma relação estrita com o espaço público
Ele investiga isso nos Temas ou Capítulos- 2 e 3 político diferente do privado; “... a eficiência ad-
“A Rua e o Espaço Público” e a “Morte da Rua ministrativa deveria garantir os direitos que todo
Corredor”. Em ambos a referência são os debates cidadão tem que ter assegurado no espaço público
travados no interior de dois Seminários Internacio- suprimindo daí quaisquer traços de privatização”
nais promovidos pelos governos municipais da ca- (p.58). Concluindo esse eixo de reflexão o autor
pital paulista em dois períodos histórico/políticos destaca que “do Seminário de Revitalização das
diferentes. O primeiro, em 1975, no momento da áreas centrais ao Seminário Centro XXI, o termo
ditadura, foi realizado em parceria com o Instituto espaço público passou a ser genericamente utiliza-
de Planejamento Urbano de Curitiba (IPUC) e teve do para nomear o conjunto de praças, parques ruas
por tema – Seminário de Revitalização das áreas e avenidas (mas ) atrelando-se a ele um universo de
centrais. Centrado no “Projeto Centro”, o evento significados”(p.59). Ele sublinha que a explicação
teve como “mote” do debate a preservação das áre- para essa postura tem antecedentes nas diretrizes
as centrais da cidade de São Paulo e como “emble- do VIII CIAM, que pensa a cidade como espaço
ma a pedestrianização das ruas. A rua aparece aí urbano delimitado a partir de um “centro cívico”.
como protagonista do que chamam de nova cidade A ênfase do livro nesse eixo é a “ Morte da Rua
e deve ser protegida de veículos e outros objetos Corredor” seguida da ênfase nos espaços comuns
que possam impedir a “boa vida” dos pedestres. Na sem limites. Este é o segundo Tema ou capítulo do
mesma perspectiva são valorizados os locais públi- livro e nele o autor traça uma verdadeira “geome-
cos com vistas à humanização da cidade. Segun- tria” dos espaços urbanos desenhados nas propos-
do Sérgio Abrahão, essa perspectiva se definia em tas de urbanistas do mundo inteiro, ou pelo menos
contraposição ao urbanismo funcionalista presente dos seus principais protagonistas, demonstrando
na Carta de Atenas que, publicada em 1933 no in- no percurso que “geometrias não são geografias”
terior do IV Congresso Internacional de Arquitetu- como bem assinalou Milton Santos. Centrando a
ra Moderna (CIAM), é então criticada por Jaime atenção nos Congressos Internacionais de Arquite-
Lerner, assim como pelos urbanistas internacionais tura Moderna –CIAMS- iniciados ainda em 1928
presentes ao evento, embora ela tenha mantido sob o protagonismo de Le Corbusier que assinou
vida longa. De qualquer modo, segundo Sergio o manifesto de La Saraz, Sergio Abrahão procu-
Abrahão, a expressão “espaço público” não é en- ra descrever as ações e os processos que vão de-
contrada em nenhum dos textos publicados, dife- senhando a estrutura dos espaços urbanos numa
rentemente do que aconteceu no II Seminário Cen- tentativa de captar a reinterpretação dos objetos
tro XXI, evento que acontece em 1995; realizado urbanos pelos atores ou grupos implicados na pro-
em uma conjuntura política diferente, no período posta, assim como observar a diferença de signifi-
de democratização, este Seminário foi articulado cados que são a eles atribuídos a partir de novas e
segundo Sérgio Abrahão, em torno da relação espa- velhas formas de pensar o urbano. Nesse sentido
ço público urbano – e espaço público político. Para ele descreve as inflexões que vão se operando do
o autor esse evento se caracterizou, diferentemente I ao X CIAM passando pelo IV que, segundo o
do anterior, sobretudo, por ser aberto à sociedade e autor, sintetiza na Carta de Atenas, os temas tra-
tados nos Congressos anteriores. Aí, sublinha ele, nha crítica à essa linhagem que é potenciada em
reafirma-se a “convicção do urbanismo como uma outros espaços e cujos atores rejeitaram a cidade
ciência tridimensional onde ganhavam forma as funcionalista e o planejamento progressista que,
cidades verticalizadas”, pensadas a partir das fun- ao longo de todo o século XX, saturou a arquite-
ções, “morar, trabalhar, divertir e circular” (p.68). tura moderna. Entre estes ele destaca Jane Jacobs
Essas funções, apesar das divergências internas são e Henry Lefebrve que, além de outras afinidades,
alimentadas até o VIII CIAM, realizado em 1951, tinham em comum a idéia da Rua como espaço
quando então se lhes acrescenta mais uma- a cívi- transfuncional marcado pela diversidade de usos e
ca- traduzida como o viver em comunidade. Essa como lugar de encontro e solicitações múltiplas de
função, segundo o autor, ganha concreção no dese- caráter material e cultural. Essa perspectiva ganha
nho dos centros cívicos de caráter monumental que ênfase no presente livro nos Temas , “Em Busca
deviam desempenhar “um papel recentralizador do Espaço Publico” e “A Rua que virou Casa”,
das cidades e transformador da sociedade” (p.77). que o autor denominou na Introdução como ca-
Sérgio Abrahão é minucioso na descrição da “mo- pítulo quarto. Este capítulo é dedicado ao pensa-
numentalidade” , (p.78) e do significado atribuído mento e a ação do brasileiro Carlo Nelson Ferreira
pelos seus idealizadores à essa perspectiva. De for- dos Santos, chamado de arquiteto antropólogo,
ma sintética, para ele procurava-se dotar a cidade pela aproximação que ele faz a essa área de co-
de um “coração” pulsante que se definia para além nhecimento no desenvolvimento do seu trabalho
da perspectiva de planificação moduladora da ação nas áreas de Brás do Pina, Catumbi e no Conjunto
dos arquitetos no pós-guerra. Adveio daí a idéia Habitacional Selva de Pedra. Sergio Abrahão as-
de dar ao VIII Congresso o Tema “Coração”, que sinala que é para esses lugares que esse estudioso
apesar de não agradar a todos, expressava o signi- volta o seu olhar na tentativa de perceber o senti-
ficado atribuído aos centros cívicos- “um espaço do, as práticas e as formas de espacialização que
civil de agrupamento civil” (p.83). Nesse sentido elas vão delineando na perspectiva da constituição
Sergio Abrahão registra a advertência de um dos de Espaços Públicos como lugares de cidadania.
mentores dos projetos do “centro cívico”, para o Nesse sentido, Sérgio Abrahão demonstra como
qual a “...forma dos “corações” não podia ser con- o deslocamento do autor do campo da arquitetura
fundida com uma concepção paisagística (...) nem para o da antropologia social é marcado por sua
tampouco ser convertida num conjunto de edifícios experiência de observador e analista dos aspec-
monumentais”(p.89). Ora, isso parece indicar, de tos econômicos sociais e culturais da sociedade
forma sutil, as dúvidas com relação a possibilida- brasileira, o que lhe permite pensar o processo
de de concretização dos centros cívicos e embora de segregação sócio-espacial baseado no modelo
Sérgio Abrahão não se detenha nessa questão ao núcleo-periferia que tem em Brasília sua mais per-
mencionar as diferenças internas ao CIAM, ele feita tradução e cuja outra face são as COHABS e
aponta, quer o ceticismo de alguns participantes os INOCOPS. Sergio Abrahão traça a trajetória de
em relação ao projeto, quer uma aceitação passi- Carlos Nelson Ferreira dos Santos a partir de uma
va de outros, quer ainda uma crítica explícita de estreita relação entre idéias práticas e instituições
alguns que classificavam o modelo como simplis- dando relevo a algumas experiências do autor nes-
ta. Segundo Paulo Sergio, a crítica destes incidia se campo, a exemplo da sua prática na Companhia
muito na feição genérica do modelo pouco voltado de Desenvolvimento de Comunidade- CODESCO-
para o sentido de pertencimento. Daí a ênfase que onde ele, juntamente com outros, participou de um
deram no X CIAM a casa e a rua como lugares de programa de urbanização de favelas da época.
formação de identidade e de formação de sociabi- Sérgio Abrahão finaliza o livro com o Tema- Es-
lidades. Mas, segundo ele, essa proposta também paços públicos Polifônicos I e II. Em ambos, ele in-
não teve eco entre muitos dos participantes, para vestiga a correspondência entre o conceito de vida
os quais esses lugares não podiam abrigar o sentido pública desenvolvido pelos autores que trabalham
da vida em comunidade. o tema e as possibilidades e limites da atual con-
Continuando sua análise para além dos circui- juntura. Nessa ótica ele se aproxima de estudiosos
tos dos CIAMs, Sergio Abrahão recupera uma li- brasileiros e estrangeiros, vinculados a diferentes
áreas do conhecimento, para pensar se o entrelaça- de Sérgio Abrahão, na medida em que ele apresen-
mento entre elas vem contribuindo para enriquecer ta ao público interessado na história do urbanismo
a reflexão e a prática do urbanismo. Desse exercí- e da vida pública nas cidades, uma grande plêiade
cio, o autor subtrai algumas “afinidades eletivas” de estudiosos da área. O problema do livro, a meu
entre esses autores, retendo, principalmente, aque- ver, é que o autor, ao se deter na descrição desses
las que se expressam na chave da relação público- estudiosos, negligencia o espaço da crítica e, nesse
privado, onde a interpenetração entre essas duas movimento, deixa de iluminar, de modo mais con-
instâncias produz o empobrecimento da vida públi- tundente, o objeto a que se dedica. Apontar esse
ca política das cidades. Sérgio Abrahão sugere que deslize não é, entretanto, subestimar a sua contri-
essas afinidades podem ser analisadas não apenas buição, mas dar os limites dela para abrir espaço à
nas evidências dadas nas paisagens das grandes ci- imaginação do leitor no sentido do trabalho com a
dades, onde os territórios produzidos dão lugar aos palavra e, quem sabe, com a ação política.
condomínios fechados e aos shopings centers em
detrimento da vida nas ruas, mas também, e, so- Maria Helena Tenório de Almeida
bretudo, na afirmação da lógica individualista que, * Doutora em Serviço Social. Pesquisadora do
aliada à do mercado, decreta o fim das grandes uto- CNPq. Professora visitante da Faculdade de Servi-
pias socialistas; a dessacralização dos movimentos ço Social da UERJ.
sindicais e dos movimentos sociais que, no início
da década de 80, acenaram com o fortalecimento da
vida pública no Brasil e alhures, resulta na erosão
do espaço público político e no recuo da cidadania
o que dá lugar a uma sociabilidade do espetáculo e
do divertimento, dirigidos para “a fruição efêmera
e a contemplação a distância”.
Na conclusão, o autor se restringe a uma sínte-
se da reflexão desenvolvida, acrescentando a esta
uma ligeira apreciação sobre o sentido do papel
do Espaço público em tempos de neo-liberalismo
e sobre as tentativas dos urbanistas arquitetos de
atualizar em seus propósitos as concepções de Es-
paço público, modeladas nos campos da filosofia
política e das ciências sociais.
O livro é um presente ao leitor interessado em
se aproximar das variações que vêm se desenvol-
vendo em torno do conceito de espaço público e
dos dilemas que o estudioso do urbanismo vem en-
frentando na relação espaço público urbano e espa-
ço público político. Com o objetivo de decifrá-los,
Sérgio Abrahão investiga, por dentro de eventos
realizados por órgãos do governo e por grupos arti-
culados em torno dos congressos internacionais de
arquitetura moderna (CIAMS), ou não, o itinerário
do urbanismo e as possibilidades de construção de
um campo de conhecimento e de prática na área.
No curso, o autor acaba narrando a história dos en-
contros e desencontros entre a filosofia política e
outras disciplinas, e das ações dos que recorrem a
essas fontes para pensar novos modos de vida para
a cidade. Esta é na verdade a grande contribuição
NORMAS EDITORIAIS
em espanhol), tendo os direitos autorais cedidos Se a referência do autor vier dentro dos
pelo(s) autor(es) e editor(es). Todos os artigos de- parênteses, que o sobrenome do autor
verão ser enviados através do Sistema Eletrônico conste em maiúsculas, seguido do ano da
de Editoração da Revistas Praia Vermelha, sendo publicação.
necessário o cadastramento prévio do autor no
sistema, através do endereço: Ex.2:
... exaurido de um certo padrão de desenvol-
http://web.intranet.ess.ufrj.br/ejornal/index.
vimento capitalista (NETTO, 1991)...
php/praiavermelha
Os originais, escritos em editor de texto, de- 2. Citação direta: até três linhas, inserida no corpo
verão ser salvos na extensão “.DOC”, “ODT” do texto, entre aspas, seguida do sistema “autor,
ou “.RTF” (não serão aceitos arquivos em data, página”:
“.DOCX”). Recomenda-se, ainda, que o texto
se adeque à seguinte configuração: Tamanho da Ex.2:
página A4; margem superior e inferior igual a 3 O ano de 1968 produziu uma enorme voga
cm; margem esquerda com 3 cm e margem direi- intelectual para o marxismo em teoria geral-
ta com 2 cm; espaçamento entre linhas duplo (ao mente em versões que teriam surpreendido
longo de todo o texto a partir da primeira página Marx – e para uma variedade de seitas e
do artigo, exceto nas citações, que devem estar grupos “marxistas-leninistas”, unidos pela
em espaço; fonte “Times New Roman” tamanho rejeição a Moscou e aos velhos partidos co-
12 (com 70 toques por linha ou 63 mil caracteres munistas como não suficientemente revolu-
no total, incluindo referências bibliográficas); cionários e leninistas (HOBSBAWM, 1998:
alinhamento do texto justificado com recuo de 81).
2 cm para cada parágrafo; a numeração das pá-
ginas deve ser feita no canto superior direito co- As notas devem ser reduzidas ao máximo,
meçando pelo número 1. As referências biblio- e na impossibilidade, solicita-se que sejam
gráficas virão logo em seguida, ao final do texto, feitas ao final de cada capítulo, com refe-
e as notas, quando houver, após as referências rência inserida no corpo do texto, através de
bibliográficas, sem quebra de página para am- numeração arábica entre parêntese, apresen-
bos. O texto deverá conter o titulo do trabalho, tando a formatação a seguir: fonte “Times
resumo (máximo 100-150 palavras), palavras- New Roman” tamanho 11, justificada.
chave (entre três e cinco), título do trabalho em As referências bibliográficas precisam estar
inglês, abstract e keywords. citadas no texto, em espaço simples, espa-
çamento entre linhas (antes e depois) igual
Caso o trabalho contenha tabelas, gráficos, a 6pt, sem recuo de primeira, ou segunda li-
fotos, mapas e ilustrações, estes receberão nume- nhas, que devem vir formatadas. Devem ser
ração consecutiva, em arábico, conforme o tipo observadas as normas da ABNT, conforme
de elemento incluído, exigindo-se um título e, ao exemplos que se seguem:
final, referência à fonte, ou crédito do autor.
1. Livros (obra completa):
As citações observarão as normas da ABNT,
conforme segue:
Ex1.: Único autor, volume único:
1. Citação indireta: indicada através do sistema NETTO, J. P. Ditadura e serviço social. São
“autor-data”. Paulo: Cortez, 1991.
Ex.3: Mais de três autores: Ex.2: Caso haja mais de três autores:
FEIGUIN, D. et al. Um retrato da violência GUERRA, Y. et al. Elementos para o debate
contra a mulher: 2.038 ‘boletins de ocorrên- contemporâneo da “questão social”: a im-
cias’. São Paulo: Fundação Seade, 1987. portância dos seus fundamentos. In: Revista
de Políticas Públicas, São Luis, v. 11, 2007,
Ex. 4: Mais de uma obra do mesmo autor p. 237-255.
MARX, K. O capital: crítica da economia
política. Rio de Janeiro: Civilização Brasi- Ex.3: Artigos diferente de um mesmo autor:
leira, V. 1, 1998. VARGAS, J. D. Indivíduos sob suspeita:
______. A questão judaica. São Paulo: Cen- a cor dos acusados de estupro no fluxo do
tauro Editora, 2005. Sistema de Justiça Criminal. In: Dados, Re-
vista de Ciências Sociais, v. 42, n. 4, p.729-
Ex.5: Mais de uma referência a um mesmo au- 760, 1999a.
tor, com publicação num mesmo ano:
SILVA, J. F. S. Justiceiros e violência urba- _____. Familiares ou desconhecidos? A re-
na. São Paulo: Cortez, 2004a. lação entre os protagonistas do estupro no
______. Violência, Serviço Social e forma- fluxo do Sistema de Justiça Criminal. In: Re-
ção profissional. In: Serviço Social e Socie- vista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14, n.
dade. São Paulo: Cortez, n. 79, p. 133-147, 40, jun., p. 63-82, 1999b.
set. 2004b.
4. Jornais:
2. Capítulo de livros:
Ex.: NAVES, P. Lagos andinos dão banho
Ex.1: Em caso de um único autor do capítulo: de beleza. Folha de São Paulo, São Paulo, 28
BUTTIGIEG, J. Educação e hegemonia. jun., 1999, p.13.
In: COUTINHO, C. N.; TEIXEIRA, A. de
P. (Org.). Ler Gramsci, entender a realidade. 5. Revistas (magazine):
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003,
p. 39-50. Ex.: ALVARENGA, T. A eutanásia virá. In:
Revista Veja, Ed. 1.898, n. 13, São Paulo, 30
Ex.2: Mais de três autores ou organizadores: março de 2005, p. 98.
VINAGRE SILVA, M. Ética, direitos huma-
nos e projeto profissional emancipatório. In: 6. Publicação por órgão público brasileiro:
GUERRA, Y.; FORT, V. (org.). Ética e direi-
tos: ensaios críticos. Rio de Janeiro: Lumem Ex.:
Juris, 2009. BRASIL. Ministério de Ciência e Tecno-
logia. Ciência e tecnologia e inovação:
Ex.3: Quando o autor é também organizador: desafios para a sociedade brasileira (Livro
MINAYO, M. C. Ciência, técnica e arte: o Verde). Brasília, Academia Brasileira de Ci-
desafio da Pesquisa Social. In: ______. (Org.) ências, 2001. 278 p.
Pesquisa social: teoria, método e criativida-
de. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 09-30. 7. Constituição Brasileira:
3. Periódicos: Ex.:
BRASIL. Constituição (1988). Constituição
Ex.1: No caso de um único autor: da República Federativa do Brasil. Brasília,
COUTINHO, C. N. O conceito de vontade DF: Senado, 1988.
coletiva em Gramsci. In: Revista Katálisys,
Florianópolis, v. 12, n. 1, 2009. p. 32-40.
8. Legislação:
Ex1.:
BRASIL. Lei 10.172, de 9 de janeiro de
2001. Aprova o Plano Nacional de Educa-
ção e dá outras providências. Diário Oficial
da União. Brasília, DF, 10 jan. 2001.
Ex.:
MAGNOLI, D. O dom de iludir, Associação
dos Docentes da UFRRJ, 09 de set. 2009.
Disponível em:
http://www.adur-rj.org.br/5com/pop-up/
dom_de_iludir.htm
Acesso em: 10 de set. 2009.
Ex.:
SANSON, C. Trabalho e subjetividade: da
sociedade industrial à sociedade pós-indus-
trial (Tese de Doutorado). Programa de Pós
Graduação em Sociologia – Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2009.