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A NEUROSE DE CLASSE

TRAJETORIA SOCIAL E CONFLITOS DE IDENTIDADE


Vincent de Gauleiac
Nas sociedades hipermodernas, as classes sociais parecem menos visíveis por serem menos
definitivamente instaladas. Isto não suprime os processos de dominação entre grupos sociais
e os mecanismos de reprodução. Pelo contrário, a precariedade profissional e a
vulnerabilidade social acentuam os processos de invalidação dos mais desprovidos e a
internalização de sentimentos de inferioridade naqueles que não correspondem à imagem de
sucesso que a sociedade propõe como ideal. Vemos se desenvolverem doenças da excelência
e doenças da exclusão. Estresse e vergonha: é evidente a interpenetração entre os fenômenos
sociais e suas repercussões psíquicas. Mais as sociedades se desenvolvem, mais as tensões
psíquicas aumentam. Daí a necessidade de construções teóricas que permitam compreender
as relações recursivas entre os conflitos psíquicos e as contradições sociais.
Na Rússia, Grécia, Suíça, Bélgica, Brasil, Uruguai, Chile, Canadá e México, diferentes
culturas e línguas, diversos contextos econômicos e sociais, vemos os mesmos fenômenos.
As contradições sociais atravessam as histórias familiares e pessoais. São um componente
maior na gênese dos conflitos psíquicos. Quando os fenômenos de promoção e regressão
sociais se desenvolvem de modo rápido e significativo, os indivíduos são confrontados com
conflitos de identidade que têm aspectos econômicos, sociais, culturais, familiares e
psicológicos.
O aparelho psíquico tem uma lógica interna de funcionamento que lhe é própria, diferente
daquela que rege um aparelho de produção econômica ou um sistema familiar. São níveis da
realidade que obedecem a leis particulares, autônomas entre si. Mas esta autonomia é
relativa. A sociedade e a família canalizam os desejos, impõem proibições, propõem ideais
coletivos modelos de identificação, sistemas de valores e normas. Elementos que influen-
ciam a psicologia consciente e inconsciente de seus membros. Inversamente, os indivíduos
contribuem para produzir sistemas sociais e familiares que respondam às suas aspirações e
estejam de acordo com sua personalidade. É, pois, a combinação destes diferentes registros e
a análise de suas articulações que é verdadeiramente explicativa.
Estas contradições, de origem heterogênea, são transformadas à medida que se ligam entre si
em um sistema neurótico. Definitivamente, é o sujeito neurótico que produz a neurose da
qual é ele mesmo o produto: ele se torna produtor do que o produziu. A abordagem clínica
permite compreender as raízes, ao lhe oferecer os meios de se libertar.
Para apreender a dinâmica complexa dos processos que regem as relações entre o psíquico e
o social, a sociologia clínica é um procedimento ao mesmo tempo sociopsicológico, que visa
compreender como as transformações sociais condicionam as atitudes e os comportamentos
dos indivíduos, e psicossociológico, que busca analisar o modo como um sujeito intervém
como ator, inventa práticas para enfrentar estes conflitos e fazer face às situações sociais.
VINCENT DE GAULEJAC

A NEUROSE DE CLASSE
TRAJETÓRIA SOCIAL E
CONFLITOS DE IDENTIDADE

TRADUÇÃO DE MARIA BEATRIZ DE MEDINA


E NORMA TAKEUTI (COL.)

vialettera.com.br
PREFÁCIO

A noção de "neurose de classe" é ambígua. Na carta retomada no epílogo desta obra, Annie
Ernaux faz sua crítica judiciosa: "este termo ainda me aflige, parece-me 'congelar' conflitos e
condutas, que evoluem, com efeito, no tempo': Aceito de bom grado esta observação. O
termo neurose comporta uma conotação psicopatológica. Induz a ideia de uma deficiência
psíquica a propósito dos conflitos vividos pelas pessoas que mudam de classe ou de cultura.
Tende a reduzir o caráter dinâmico destes conflitos e das contradições sociais que os geram.
No entanto, se o termo parece contestável, pude constatar, à luz dos diversos testemunhos
que suscitou, o quanto ele é evocador para aqueles ou aquelas que são confrontados com
conflitos desta natureza. Apesar de teoricamente discutível, ele provoca um eco imediato,
um questionamento que nos faz entrar no cerne da questão. Por ele ser recebido como
significante, continuo a defendê-lo, optando por privilegiar o reconhecimento intuitivo em
detrimento do rigor científico. Seu alcance existencial compensa amplamente, a meu ver,
suas fraquezas conceituais.
A sociologia era um refúgio contra o vivido... foi-me necessário tempo para compreender
que a recusa do existencial era uma armadilha. A sociologia constituiu-se contra o singular, o
pessoal, o existencial. Temos aqui uma causa essencial da incapacidade por parte do
sociólogo de questionar certos sofrimentos sociais. Estes argumentos são de Pierre Bourdieu.
Devo confessar minha surpresa e contentamento quando os ouvi em outubro de 1991, em um
colóquio sobre a pobreza. Enfim, um dos representantes mais engajados da sociologia pura
observava com força a mutilação intelectual e teórica que a recusa em considerar o "vivido"
causa. Foi em reação a esta recusa que escrevi esta obra, que, na origem, tinha uma tripla
ambição: participar da construção de uma sociologia clínica; analisar as articulações entre a
gênese social e a gênese psíquica dos conflitos existenciais; permitir às pessoas, que são
confrontadas com o problema do deslocamento em nossa sociedade, uma melhor
compreensão dos conflitos que encontram. Onde estamos hoje?
A sociologia clínica tornou-se uma corrente reconhecida da sociologia. Quando em 1986, eu
concluía esta obra pelo projeto de trabalho por uma sociologia clínica, não imaginava que
existisse um pequeno grupo de colegas que, em torno de Robert Sévigny, Gilles Houle e
Eugène Enriquez, desenvolvia um projeto similar no seio da Associação Internacional de
Sociologia. Encontrei-os em Genebra em 1988. Desde então, esta orientação enriqueceu-se
rapidamente, já que reúne hoje pesquisadores de diferentes países na América do Norte,
América do Sul, África e Europa. Diversas publicações ilustram esta história, inclusive um
número especial da revista
8 • A neurose de classe

International Sociology que tive a honra de dirigir l. Este desenvolvimento é o sinal de uma
espera partilhada por vários pesquisadores nas ciências sociais e humanas: recusa de
compartimentações disciplinares, crítica ao objetivismo, reabilitação da subjetividade,
necessidade de considerar o registro existencial e de articular pesquisa, intervenção e
implicação.
Paralelamente, assistimos a uma tendência impressionante com relação às histórias de vida.
Conhecia, na ocasião, os trabalhos de Daniel Bertaux, Franco Ferrarotti e Mauricio Catani,
no campo da sociologia. Mas foi somente em 1986, em um colóquio em Tours, organizado
por Guy Jobert e Gaston Pineau, que percebi o interesse suscitado pela metodologia dos
relatos de vida e a proximidade das questões teóricas levantadas por sua aplicação. Também
pude constatar como as histórias de vida eram transversais ao conjunto das disciplinas. Da
literatura à psicologia, das ciências da educação à antropologia, do trabalho social à
geografia humana e à história, há um fenômeno tão importante quanto o estruturalismo nos
anos 1960-70. Diversos trabalhos foram desde então publicados. O debate aprofundou-se em
torno da utilização das histórias de vida na formação, na pesquisa, como fator de
desenvolvimento pessoal, ou ainda na terapia 2. Ocasiões de discutir as fronteiras e
articulações entre a teoria e a prática, a análise e o vivido, o relato e a história, o social e o
psíquico etc.
Desde a primeira edição de A neurose de classe e com um pouco de distância, a análise
apresentada ainda é atual? Com efeito, os fenômenos descritos acentuaram-se ainda mais. A
exigência de mobilidade ligada à ditadura do mercado de trabalho obriga um número cada
vez mais significativo de indivíduos a se adaptar a universos sociais diferentes e efetuar um
trabalho em si mesmos para enfrentar os conflitos que estes deslocamentos geram.
Poderíamos pensar que, com a ruptura das classes sociais tradicionais, a neurose de classe
iria desaparecer. Não foi isso que aconteceu. Longe de se atenuar, o fenômeno tornou-se
mais complicado. Os processos de dominação que estavam estruturados principalmente em
torno das relações de classe, na sociedade industrial, agravam-se por se encontrarem
reforçados pelo desenvolvimento da luta de lugares.
Nas sociedades hipermodernas, as classes sociais parecem menos visíveis por serem menos
definitivamente instaladas. Isto não suprime, no entanto, os processos de dominação entre
grupos sociais e os mecanismos de reprodução. Muito pelo contrário, a precariedade
profissional e a vulnerabilidade social acentuam os processos de invalidação dos mais
desprovidos e a internalização de sentimentos de inferioridade naqueles que não
correspondem à imagem de sucesso que a sociedade propõe como ideal. Vemos se
desenvolverem doenças da excelência e doenças da exclusão. De um lado, o estresse e, do
outro, a vergonha. Nos dois casos, a interpenetração entre os fenômenos sociais e suas
repercussões psíquicas é evidente. Mais as sociedades se desenvolvem, mais as tensões
psíquicas são fortes. Daí a necessidade de construções teóricas que permitam, compreender
as relações recursivas entre os conflitos psíquicos e as contradições sociais.

_______________________
1.Clinical Sociology, International Sociology, V. 12, N. 2, Junho, SAGE Publications; Cf. também três obras coletivas: E.
Enriquez, ·G. Houle, J. Rhéaume e R. Sévigny. Ülpproche cliniq14e en sciences humaines, Saint-Martin: Montreal, 1993;
V. de Gaulejac e S. Roy. Sociologies cliniques, Paris: Desdée·de Brouwer, 1993; N. Aubert, V. de Gaulejac e K. Navidris,
!:Aventure psychosociologique, Paris: Desdée de Brouwer, 1997.
2. Citemos em particular Michel Legrand, !:Approche biographique, Paris: Desdée de Brouwer, 1993; Max Pages,
Psychothérapie et complexité, Paris, Desdée de Brouwer, 1993; Alex lainé, Paire de sa vie une histoire, Paris: Desdée de
Brouwer, 1998; C. Niewiadomski e G. de Villers, Souci et soin de soi, Paris: I'Harmatan, 2003 (obra coletiva).
Prefácio • 9

Com certeza, os efeitos destas evoluções são diferentes conforme o estado de de-
senvolvimento econômico, cultural e social dos países. Nestes últimos anos, tivemos a
oportunidade de animar grupos de implicação e pesquisa sobre o tema Romance familiar e
trajetória social em países muito diferentes, como Rússia, Grécia, Suíça, Bélgica, Brasil,
Uruguai, Chile, Canadá e México. Além das diferenças culturais e linguísticas, em contextos
econômicos e sociais muito diversos, encontram-se os mesmos fenômenos. As contradições
sociais atravessam as histórias familiares e pessoais. São um componente maior na gênese
dos conflitos psíquicos. Quando os fenômenos de promoção e regressão sociais se
desenvolvem de modo rápido e significativo, os indivíduos são confrontados com conflitos
de identidade que têm aspectos econômicos, sociais, culturais, familiares e psicológicos.
Convém, então, para compreender as diferentes facetas destes conflitos, sair das
compartimentações e da justaposição disciplinar.
Assim, o aparelho psíquico tem uma lógica interna de funcionamento que lhe é própria,
diferente daquela que rege um aparelho de produção econômica ou um sistema familiar. São
níveis da realidade que obedecem a leis particulares, autônomas entre si. Mas esta autonomia
é relativa. A sociedade e a família canalizam os desejos, impõem proibições, propõem ideais
coletivos modelos de identificação, sistemas de valores e normas. Elementos que
influenciam a psicologia consciente e inconsciente de seus membros. Inversamente, os
indivíduos contribuem para produzir sistemas sociais e familiares que respondam às suas
aspirações e estejam de acordo com sua personalidade. É, pois, a combinação destes
diferentes registros e a análise de suas articulações que é verdadeiramente explicativa.
Há reciprocidade de influências, quando os elementos se articulam entre si em uma
complementaridade dialética, que Georges Gurvitch (1962) definia como "os contrários
completando-se no seio de um conjunto por um duplo movimento que consiste em aumentar
e se intensificar tanto na mesma direção, quanto em direções opostas, graças ao jogo das
compensações': É o reforço mútuo entre os conflitos ligados a uma mudança de classe, ou de
cultura e os conflitos psicossexuais que produz a neurose de classe. Muitos indivíduos, em
situações similares, não se tornarão neuróticos, porque estes dois registros, em vez de se
reforçarem, se compensam. Desta forma, os conflitos de ordem sexual e os de ordem social
podem tanto entrar em correspondência e se reforçarem mutuamente, quanto se
compensarem anulando-se. No primeiro caso, isto produzirá uma neurose; no segundo, o
sujeito terá sabido encontrar as mediações para seu conflito jogando em diferentes registros.
A neurose de classe é o produto de contradições que operam sobre três registros (sexual,
social e familiar) que se reforçam mutuamente para produzir uma "estrutura fechada', ou
seja, um sistema que se fecha sobre si mesmo e absorve os elementos anteriores para se
autorreproduzirem. Estas contradições, de origem heterogênea, são transformadas à medida
que se ligam entre si em um sistema neurótico. Definitivamente, é o sujeito neurótico que
produz a neurose da qual é ele mesmo o produto: ele se torna produtor do que o produziu. A
abordagem clínica permite compreender as raízes, ao lhe oferecer os meios de se libertar.
Para apreender a dinâmica complexa dos processos que regem as relações entre o psíquico e
o social, a sociologia clínica é um procedimento ao mesmo tempo sociopsicológico, que visa
compreender como as transformações sociais condicionam as atitudes e os
comportamentos dos indivíduos, e psicossociológico, que busca analisar
10 • A neurose de classe

o modo como um sujeito intervém como ator, inventa práticas para enfrentar estes conflitos e
fazer face às situações sociais.
Trata-se de construir um espaço entre as preocupações teóricas e aquelas que são
existenciais. A hipótese central deste livro considera o indivíduo o produto de uma história
da qual busca se tornar sujeito. Esta perspectiva se aproxima dos trabalhos de Cornélius
Castoriadis quando escreve: "um sujeito situa-se como origem, obviamente parcial, de sua
história passada e também como querer em relação a uma história futura e querer ser seu
coautor" (1986: 37).
Um livro alcança seu sentido quando favorece este trabalho de apropriação de sua existência,
dando ao leitor uma compreensão melhor de si mesmo e do mundo em que vive.

Vincent de Gaulejac
Junho de 1999
PRÓLOGO

ENCONTROS DIALÉTICOS

Como utilizar nossa herança nas ciências humanas? Psicanálise, marxismo, estruturalismo,
funcionalismo... as escolas, as correntes se entrechocam. Algumas, que parecem eternas, se
vão bruscamente, aparecem novas correntes, que, por um tempo e sobre um dado território,
exercem a hegemonia. Além dos efeitos da moda, o que fazer desta turbulência e, antes de
tudo, como explicá-la?
Nenhuma regra automática permite separar a ciência da ideologia, como já dizia Karl
Mannheim l. Os grandes sistemas de pensamento das ciências humanas, e talvez das outras
ciências, são, ao mesmo tempo, maravilhosos instrumentos de descoberta sobre os processos
psicossociais, fontes preciosas de métodos e práticas, e Igrejas com vocação hegemônica,
produtoras e guardiãs de ideologias, encarnadas com frequência nos aparelhos de poder
terroristas.
Eu experimentei, como muitos outros, a situação paradoxal do pesquisador e do prático:
como renunciar às contribuições indispensáveis, como articulá-las entre si quando ligadas a
sistemas feitos para se ignorarem ou se destruírem? Para o clínico que sou, tratava-se de
Rogers e da fenomenologia, da psicanálise, de Reich, de Moreno, de uma perspectiva
sociológica crítica tomada do marxismo. Cada um de nós tem sua herança própria que possui
sua fisionomia singular, mas muitos são os esgarçados entre fidelidades inconciliáveis. Uns
se alojam no dogmatismo, outros adotam soluções compostas, incitando prudentemente
reconhecimentos em torno de um polo fortificado. Vemos, por exemplo, na França, tais
tentativas em torno da psicanálise com o relaxamento analítico, o psicodrama analítico, a
conduta psicanalítica de grupo. Outros, enfim, renunciam às ambições teóricas e se refugiam
no empirismo e no ecletismo.
Nenhuma destas soluções satisfaz verdadeiramente. Somos muitos a pensar que um trabalho
de análise dialética é necessário, permitindo separar, nas escolas de pensamento que nos
servem de referência, as metateorias ideologizantes com vocação hegemônica (teoria da
libido, da luta de classe, da energia sexual), teorias mais modestas sobre os processos.
Operar um tipo de suspensão teórica no nível das teorias definitivas e, ao mesmo tempo,
tornar possível o trabalho de articulação indispensável entre pontos de vista, métodos,
problematizações diferentes, visando o social, o psicológico e seus fundamentos biológicos.
Trata-se de passar das contradições estéreis entre escolas para a utilização dialética e fecunda
de oposições. Explorar o campo das articulações interprocessuais, práticas com entradas
múltiplas, a propósito de objetos concretos, e desenvolver ao mesmo tempo uma reflexão
epistemológica sobre as

___________
1. Karl Mannheim, Ideology and Utopia, Londres: Routledge, 1936.
12 • A neurose de classe

condições de um trabalho científico multirreferencial. Em suma, definir certos eixos do


trabalho interdisciplinar, com demasiada frequência limitado a confrontações sem método.
Não se trata de uma dialética fechada sobre uma doutrina, mas de uma dialética aberta sobre
um método, ele próprio em permanente evolução. Este trabalho já foi iniciado por alguns
entre nós, a propósito de objetos precisos, a organização, a emoção (Pagès et al., [1979]
1998; Pagès, 1986), e reúne os trabalhos de outros pesquisadores 2.
É este projeto que retoma e desenvolve hoje as edições "Homens e Grupos", abrindo a
coleção “Encontros Dialéticos”: com o auxílio de um comitê interdisciplinar, composto por
meus colegas Anne Ancelin Schützenberger, Daniel Bertaux, Jean- Pierre Chartier, Vincent
de Gaulejac, Nielle Puig- Vergès, Claude Revault D'Allones e por mim mesmo. Esperamos
que interesse aos pesquisadores e práticos, que creio numerosos, que estão insatisfeitos com
o dogmatismo e o ecletismo, e desejosos de construir em uma perspectiva de rigor e
abertura.
A bela obra de Vincent de Gaulejac sobre a "neurose de classe': que inaugura a coleção
ilustra maravilhosamente este propósito. Trata-se de interrogar os fenômenos neuróticos,
pelo menos alguns deles, a partir de uma dupla problematização, sociológica e psicológica.
A atenção de Vincent de Gaulejac foi atraída pela importância que o deslocamento social,
ascensão ou declínio, tem na produção dos fenômenos neuróticos. Ele mostra que, nestes
casos, é impossível reduzir a neurose a uma simples causalidade social ou psicológica, ou
mesmo a uma soma de fatores. Trata-se antes de uma articulação de processos em vários
níveis: processos sociais de dominação e invalidação entre dominantes e dominados;
processos intrafamiliares, demandas contraditórias dos pais por serem respeitados por seus
filhos e que estes se identifiquem a outros modelos diferentes deles; processos
intrapsíquicos, conflitos de identificação, conflitos entre o Supereu e o ideal do Eu... Os
conflitos de grupos sociais se repercutem sobre injunções familiares contraditórias, que, elas
mesmas, sobredeterminam os conflitos psíquicos e acentuam as divisões. A noção de "lugar"
social e de deslocamento que Vincent de Gaulejac elabora a partir de Bourdieu, e as noções
psicanalíticas de conflito e aparelho psíquico, são utilizadas conjuntamente, para construir
modelos cruzados de análise da neurose, apoiados em casos clínicos, e ilustrados para uma
melhor compreensão de textos literários.
A compreensão da neurose, não somente teórica, mas prática é com isso consideravelmente
enriquecida. Penso principalmente nas análises que são feitas dos sentimentos de vergonha e
culpa que, indubitavelmente, em certas pessoas pelo menos, somente podem ser entendidos
como uma mistura íntima de determinantes de origem social e de origem sexual-familiar.
Poderíamos inclusive pensar que toda neurose deva ser procurada de acordo com tal
método? Não estou longe de achar que sim, a meu ver, apesar de o autor ser mais prudente.
De qualquer forma, o livro é estimulante e não duvido de que suscitará diversas reações.
Max Pagès
Paris, junho de 1987

___________
2.Cf. principalmente J. Ardoino, "Des allants de soí pédagogiques à la conscientisation critique", p. V-LXV, in Prefácio de
F. Imbert, Pour ur e práxis pédagogique, Paris: Matrice. 1986 e a obra recente de Edgar Morin.
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Esta nova edição torna acessível aos leitores brasileiros uma obra que está, a meu ver, na
gênese da sociologia clínica. Ela mostra o interesse de articular os processos sociais e os
processos psíquicos na compreensão das condutas humanas. O autor propõe uma
metodologia para analisar em profundidade os vínculos entre história pessoal, familiar e
social, a fim de compreender melhor em que o indivíduo é ao mesmo tempo produto e
produtor de sua história, e como se constrói um sujeito no cruzamento de seu romance
familiar e de sua trajetória social. No plano epistemológico, ele expõe uma teoria
intermediária entre a psicanálise de Freud, a sociologia de Bourdieu e o existencialismo de
Sartre. Relacionar a postura sociológica, a psicanálise e o procedimento clínico suscita
muitas questões e, às vezes, polêmicas tanto entre sociólogos e psicanalistas, como entre os
clínicos.
A maioria dos sociólogos desconfia do "vivido': dos afetos, dos sentimentos, das emoções,
do inconsciente, da interioridade, registros que eles consideram como sendo do domínio da
psicologia. Lembramo-nos da proposta de Émile Durkheim nas "regras do método
científico", segundo a qual qualquer explicação psíquica dos fenômenos sociais é falsa. Isto
posto, a posição deste fundador da sociologia é, com efeito, muito mais nuançada. Se ele
pregava a necessidade de explicar o social pelo social, considerava a sociologia uma
psicologia coletiva e convidava os sociólogos a se munirem de uma sólida formação
psicológica. No entanto, um bom número de seus discípulos é inspirado por um
antipsicologismo radical que os leva a se distanciarem da subjetividade, a desconfiarem das
pulsões e das paixões, sejam elas individuais ou coletivas, a recusarem qualquer implicação
do pesquisador em seus objetos, a adotarem uma postura distanciada que coloca a
subjetividade e os afetos à distância.
Muitos psicanalistas consideram que haveria um tipo de monopólio do inconsciente. Eles
seriam os únicos a compreender os mistérios, os únicos a conhecer o caminho para permitir
ao "EU" advir. Lembramo-nos da crítica que Robert Castel dirigia ao Psicanalismo (Castel,
1973), denunciando, em particular, o desconhecimento das questões do poder, a leviandade
em relação ao dinheiro e a dificuldade de considerar a história além da história pessoal do
sujeito. "Estabeleceu-se um consenso para fazer da criança em cada homem a chave
explicativa de seu destino", escrevia ele a este respeito. Eu me lembrarei por muito tempo de
um homem que participou de um grupo de implicação e de pesquisa que eu conduzia sobre o
tema "romance familiar e trajetória social" que me dizia: "Como você quer que eu lhe fale
disso? Como você quer que eu fale a meu psicanalista de minhas origens sociais, da miséria,
da repugnância, da sujeira, do mau cheiro. Como falar da pobreza de meus pais sobre um
divã de couro, em seu
14 • A neurose de classe

consultório situado em bairros bonitos, com quadros dos Mestres na parede? O que ele pode
compreender disto”: O ISSO evocado aqui não é aquele que Freud descreveu em “O Eu e o
Isso”: Ele remete a uma realidade diferente da psíquica e do mundo das pulsões. Ele remete
à realidade social e à história incorporada, às condições concretas de existência, à
incorporação dos habitus ligados à posição social. A história está carregada de afetos, estas
experiências em suas primeiras relações, mas também aquelas nas relações sociais. O
confronto com a violência simbólica das relações sociais é um componente essencial do
desenvolvimento psíquico.
Os clínicos venham eles da medicina ou da psicologia, são, no mais das vezes, indiferentes à
dimensão social dos fenômenos estudados. Eles os evocam de tempos em tempos, à margem
de suas respectivas disciplinas, sem lhes destinar muito interesse, como fenômenos residuais.
A sociologia não é ensinada nem na medicina, nem na psiquiatria. No campo da psicologia, a
psicologia social se encontra em crise, a psicossociologia está praticamente eliminada dos
estudos universitários. A batalha entre os cognitivistas, os experimentalistas e os clínicos
leva a maioria dos psicólogos a ignorar as contribuições da sociologia.
Paradoxalmente, a rejeição de uns explica a adesão de outros. A sociologia clínica encontra
eco junto a todos que recusam a monodisciplinaridade, o positivismo, a unidimensionalidade
e as compartimentações disciplinares. No tempo da complexidade, enquanto todas as
reflexões epistemológicas aprofundadas apelam para uma refundação das ciências humanas e
sociais, a sociologia clínica aparece como uma abertura. Um bom número de pesquisadores
deseja repensar as relações entre a teoria e a prática, entre os procedimentos compreensivos e
explicativos, entre a pesquisa e a intervenção, entre o cuidado com a objetividade e a
consideração da subjetividade. Quantas vezes afirmamos ter necessidade de "oxigênio" para
continuar a pensar. Eles encontram na sociologia clínica uma liberdade e uma renovação,
apesar de não se definirem como sociólogos clínicos, por virem de outras disciplinas, como a
psicologia, as ciências da educação, a gestão, as ciências da comunicação, a economia, a
filosofia ou a literatura.
Do lado dos profissionais experientes, constata-se um fenômeno equivalente. Eles se sentem
limitados nas práticas e reflexões profissionais que se desgastam em face do pluralismo
causal e da multidimensionalidade dos problemas encontrados. Eles também não se
questionam sobre a legitimidade de seu posicionamento, quando devem tomar decisões
difíceis, porque elas lhes demandam arbitrar entre diferentes forças, considerar exigências
contraditórias, mensurar antecipadamente os efeitos sobre as pessoas sobre ou com quem
trabalham.
O próprio termo "sociologia clínica” é ambíguo, pois parece afirmar a primazia da
sociologia, enquanto somos partidários convictos da pluridisciplinaridade. Não procuramos
impor a hegemonia desta disciplina sobre as outras. Seria mais justo falar de "ciências
sociais clínicas': ou ainda de "sociopsicologia clínica: mas a história decidiu de outra forma.
O vocábulo se impôs no campo das ciências humanas e sociais.
A sociologia clínica está confrontada a um desenvolvimento paradoxal. De um lado, ela
suscita rejeições, oposições, ataques pelos defensores dos "núcleos duros" de cada disciplina
nas ciências sociais ou de cada corporação de profissionais das relações humanas e, de outro,
se beneficia de um reconhecimento cada vez mais evidente na Europa, na América do Norte
e na América do Sul. A publicação desta obra no Brasil testemunha esta tendência. Não
faltaram manifestações de reconhecimento,
Prólogo • 15

seja da riqueza e notoriedade das publicações, dos prêmios concedidos aos jovens
pesquisadores por seus doutorados (seis prêmios de teses na França e um no Brasil). Estas
honrarias mostram o interesse suscitado por esta orientação em diferentes meios científicos.
No Brasil, um laboratório de sociologia clínica foi fundado por Christiane Girard em
Brasília, desenvolvem-se formações em Natal com Norma Takeuti, no Rio de Janeiro sob o
estímulo de Teresa Carreteiro e Fernando Gastal de Castro, em Belo Horizonte com José
Newton, Vanessa Andrade de Barros e Ana Massa, em Florianópolis com Vera Roesler.
Com frequência, é-me colocada a questão de saber se o conceito de neurose de classe é
pertinente aqui, no Brasil, em um contexto em que os termos neurose e classe social parecem
completamente ultrapassados. A noção de neurose remete a uma nosografia "arcaica” de um
momento em que os sintomas psíquicos se expressam em termos de patologia do narcisismo,
de pacientes limite e condutas aditivas. Da mesma forma, nas sociedades em mutação
profunda, como o Brasil, a luta dos lugares bem parece ser substituída pela luta de classes.
Assim, conservamos este conceito de "neurose de classe" à medida que, para as pessoas
concernidas, ele continua evocador. Todos aqueles que são habitados por um sentimento de
vergonha por causa de suas origens, por conflitos de lealdade entre sua identidade herdada e
aquela adquirida, por um sentimento de ilegitimidade na frequência de meios sociais
diferentes, de culpa por nunca fazer o bastante para serem reconhecidos, todos aqueles que
são habitados por um ódio de classe, invejando aqueles que ocupam posições sociais a que
aspiram, todos se reconhecem até certo ponto na necessidade de compreender o que sentem,
os conflitos que vivem e as relações entre estes conflitos e sua inscrição social.

Vincent de Gaulejac
Março de 2014
INTRODUÇÃO

A neurose de classe define as características principais dos conflitos psicológicos ligados à


desclassificação social.
A evolução das sociedades modernas leva um número cada vez maior de indivíduos a mudar
de lugar na sociedade. A mobilidade cultural e social contribui para desenvolver o fenômeno
da individualização: o indivíduo define-se menos por referência a um grupo
social/étnico/familiar que lhe confere um lugar em uma ordem estável, do que em relação a
si mesmo em referências às categorias dessocializadas (sua personalidade, sua conta
bancária, seu signo zodiacal, seu físico...) em uma ordem que se move.
As sociedades tradicionais hierarquizadas conforme uma estrutura social bem instalada e
relativamente fixa, na qual cada indivíduo ocupa um lugar determinado, são substituídas por
uma multipolar, constituída em torno de redes intrincadas segundo uma ordem que se
movimenta, que leva os indivíduos a mudar de lugares ao longo de sua existência ou, em um
dado momento, a ocupar diversos lugares em diferentes redes. O multipertencimento é, aliás,
uma estratégia necessária para conquistar posições de poder tanto no domínio econômico,
quanto no político ou intelectual. No interior das organizações, este movimento reticular
muda igualmente as estratégias de poder e as questões de carreira. O governo patronal é
substituído pelo modelo gerencial e pelo desenvolvimento de uma ideologia "libera!",
fundada na adesão e na motivação como valores que buscam equilibrar a insegurança e o
estresse que aí reinam 1.
Nestes universos, a guerra de lugares tende a substituir a luta de classes. No mundo
industrial, nascia-se operário ou burguês e assim se permanecia por toda a vida na grande
maioria dos casos. No mundo atual, a competição para ocupar ou "inventar" os lugares
sociais é cada vez mais dura. Se a desigualdade das chances permanece, a concorrência está
cada vez mais forte. Cada indivíduo, qualquer que seja sua origem, está confrontado com a
necessidade de conquistar para si um lugar, de "encontrar uma situação" e mesmo de "criar
seu emprego”: Os lugares não são mais atribuídos definitivamente, é preciso "tomá-los"
daqueles que os têm ou, então, inventar novos. Isto produz efeitos contraditórios: a
mobilidade reforça a liberdade de escolha, as possibilidades de mudança, mas justamente por
isso traz insegurança, medo de perder e a exclusão de todos aqueles que são eliminados desta
competição. Se a sociedade de classe ligada ao

_____________
1.Sobre estas questões ver: Pagès. Bonetti e de Gaulejac ([1979]1998) e Collectif Sciences Hurnaines Dauphine.
L’Organisation et le management en questiones). Paris: J'Harmattan. 1987, reedição Paris: Desclée de Brouwer. 1998.
18 • A neurose de classe

capitalismo industrial era rígida, hierarquizada e, portanto, repressiva, a sociedade dual que
se desenha atualmente é fragmentada, frágil e opressiva: ela tende a fazer do indivíduo seu
próprio referente, ela faz da "própria realização" um objetivo a atingir, cada pessoa está de
alguma forma condenada a se desenvolver, "o EU de cada indivíduo se tornou seu próprio
fardo" conforme a feliz expressão de R. Sennet 2. O reinado da hierarquia superegoica tende
a ser substituído pela tirania do narcisismo, como o analisa C. Lasch 3 a propósito da
sociedade americana.
Mas estas evoluções nem por isso suprimem o papel das classes sociais e o peso da
identidade herdada na constituição do indivíduo. A noção de indivíduo sem pertencimento
que G. Mendel (1983) propõe esboça uma transformação provável, mas que permanece
atualmente relativa.
Estas relações de poder expressam-se por processos de oposição, invalidação, submissão,
rejeição que influenciam a personalidade dos indivíduos que compõem estes diferentes
grupos. São os efeitos destes processos, que nos propomos a evidenciar, por meio da análise
dos conflitos de identidade, que as pessoas em promoção ou regressão social expressam.
Este é o caso dos imigrados da segunda geração instalados na França, filhos e filhas de
camponeses ou operários que se diplomam ou se tornam executivos, filhos da alta burguesia
decadente, todos aqueles cuja trajetória social é marcada por rupturas importantes e que são
confrontados com sistemas de referência duplos e contraditórios. Qualquer indivíduo que
muda de classe social vive um conflito entre sua identidade herdada, original, que lhe é
conferida por seu meio familiar (Gaulejac, 1983c), e sua identidade adquirida, aquela que ele
constrói ao longo de sua trajetória.
Estes conflitos não provocam obrigatoriamente uma neurose. Para que haja neurose, é
necessário que eles se inscrevam em uma estrutura psíquica vulnerável, que sejam
substituídos por um desenvolvimento psicossexual problemático.
A característica principal da neurose de classe está no intrincamento sistêmico entre conflitos
sociais e psíquicos, que se apoiam uns nos outros, no sentido de um reforço mútuo.
O termo neurose de classe é ambíguo no plano teórico, porque tende a associar uma noção
clínica e uma noção sociológica que não têm uma ligação direta entre si: as classes não são
neuróticas, as neuroses não dependem das classes sociais. O termo neurose em psicanálise
designa um modo de estruturação psíquica, enquanto aqui é utilizado para descrever um
quadro clínico. O termo "de classe”poderia deixar supor que apresentamos uma tipologia das
neuroses segundo as classes sociais (seria necessário colocar "s" em neurose e em classe), ou
que ele define as características patogênicas das diferentes classes sociais, o que não é o
caso. Nós o conservamos, no entanto, porque provoca um eco nas pessoas cujos conflitos
psicológicos estão ligados a uma desclassificação. Em sua subjetividade, há uma ligação
entre sua trajetória social e as dificuldades psíquicas que encontram. Se é criticável
teoricamente, o termo neurose de classe permite caracterizar um quadro clínico que descreve
a sintomatologia dos indivíduos que mudam de posição na estrutura de classe. A descrição
deste quadro clínico permite esclarecer o papel respectivo dos fatores psicossexuais e sociais
na gênese e desenvolvimento deste tipo de neurose.

____________
2. R. Sennet, Les tyrannies de l'intimité, Paris: Le Seuil, 1979.
3. C. Lasch, Le complexe de Narcisse, Paris: R. Laffont, 1980.
Introdução • 19

Esta análise é a oportunidade de refletir sobre as relações entre a sociologia e a psicanálise,


sobre o interesse e os limites de suas contribuições respectivas na compreensão dos destinos
humanos e dos conflitos existenciais: a propósito das relações entre a história social, a
familiar e a pessoal no desenvolvimento da personalidade; a propósito da gênese social dos
conflitos psíquicos em particular no desenvolvimento dos sentimentos de culpa, de
humilhação e de inferioridade; a propósito da articulação entre os componentes sexuais e
sociais do complexo de Édipo; a propósito das noções de romance familiar e de clivagem do
EU...
Trata-se de ilustrar a análise dialética cujos fundamentos apresentamos, com M. Bonetti e M.
Pagès, por ocasião de nossa pesquisa sobre o controle da organização e que consiste,
conforme a expressão de Max Pagès (1986), em "propor articulações significativas entre
processos vindos de diferentes domínios”.
Esta análise está baseada em quatro princípios:
• um procedimento multipolar que consiste em se interrogar sobre um fenômeno, aqui a
neurose de classe, no ponto de intersecção de diversos métodos;
• uma problematização múltipla que relaciona várias perspectivas, neste caso as
abordagens fenomenológicas, psicanalíticas e sociológicas;
• o modelo da autonomia relativa que permite precisar a noção de articulação: cada
registro estudado (social, psicofamiliar e psíquico) tem uma dinâmica própria de
funcionamento, mas está ligado aos outros por correspondências, influências
recíprocas de complementaridade ou oposição, rejeição ou integração, reforço ou
neutralização;
• a ênfase colocada sobre as contradições como analisadores dos conflitos observados:
os conflitos vividos pelos indivíduos são interpretados como respostas às contradições
com as quais são confrontados.
A neurose de classe é o produto de contradições que operam sobre três registros que se
reforçam mutuamente para gerar uma "estrutura fechada”, conforme a definição de Roger
Perron (1985);
• registro social: as contradições sociais que caracterizam as relações de classe
atravessam a identidade dos indivíduos com duplo pertencimento;
• registro familiar: estas relações se repercutem no interior do sistema familiar, com
mais frequência no casal parental que propõe aos filhos aspirações e modelos de
identificação contraditórios;
• registro psicossexual: estes conflitos ecoam as contradições dos desejos inconscientes,
em particular os edípicos, e a culpa que deles decorre.
A sobreposição destas contradições em um "complexo”, um "nó", sua correspondência
interativa em um sistema que se fecha sobre si mesmo, leva a produzir uma estrutura
neurótica que tende à repetição, inibição e resistência à mudança.
O material utilizado para esta pesquisa vem principalmente dos seminários de implicação e
de pesquisa sobre o tema "Romance familiar e trajetória social", cujos princípios e métodos
expomos no Capítulo 8. Isto representa um corpus de 600 histó-
20 • A neurose de classe

rias pessoais recolhidas ao longo de aproximadamente cinquenta seminários que conduzimos


pessoalmente. Entre estes 600 casos, selecionamos uns vinte que resultaram em entrevistas
individuais fora do enquadre temporal do seminário.
Nesta obra, escolhemos apresentar apenas alguns casos e testemunhos autobiográficos
publicados sob a forma de romances ou de relatos de vida. Esta limitação é deliberada
seguindo a experiência de Freud que declarou a Lou Andréas Salomé:
"Você sabe que eu me preocupo com o fato isolado e que espero daí ver sair o universal"
(carta de 1915). Para passar do caso Dora à compreensão da histeria, do caso do presidente
Schreber à compreensão da paranoia, é preciso ter analisado centenas de casos. O caso é a
condensação, em uma pessoa, de processos descobertos pouco a pouco em outras. Ele ilustra
hipóteses elaboradas em outras situações. O caso adquire um caráter universal quando sua
singularidade foi relativizada e ele se torna representativo dos mecanismos em ação no
fenômeno estudado. A propósito do presidente Schreber, Freud justificava sua abordagem
escrevendo: "Uma memória redigida pelo doente pode substituir seu conhecimento. É por
isso que acho legítimo acrescentar as interpretações psicanalíticas à história da doença de um
paranoico que jamais vi, mas que escreveu e publicou ele próprio seu caso" ([1905-1918]
1966, p. 264).
A utilização clínica de um material autobiográfico coloca, no entanto, um certo número de
problemas. Trata-se de uma forma de expressão muito elaborada à medida que passa pela
mediação da escrita, o que a diferencia da expressão oral que pode, a priori, parecer mais
espontânea. De fato, estas diferenças talvez sejam menos importantes do que parecem. Todo
discurso, seja ele escrito ou oral é uma reconstrução e, neste sentido, não pode ser
identificado no real. Forçosamente, quando se trata de um discurso sobre o passado que
somente pode ser "tempo recomposto”, É justamente essa a qualidade principal do
romancista: encontrar as palavras que estejam mais próximas do real:

os poetas e os romancistas são preciosos aliados, e seu testemunho deve ser tido em
alta conta, pois eles reconhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas que nossa sabe-
doria cotidiana não poderia sonhar. São, no conhecimento da alma, nossos mestres,
nós homens do comum, pois eles bebem de fontes que ainda não tornamos acessíveis
à ciência. 4

Se, pois, o romance oferece um material fixo que não pode ser enriquecido pela dinâmica
interativa que existe em um encontro de pesquisa ou terapêutico, seu interesse está em
função da capacidade do autor de evidenciar as "verdades" da condição humana. É por ele
encontrar as palavras que melhor expressam os laços entre os sentimentos, as situações, as
emoções, as representações... que sua subjetividade nos esclarece sobre nossa própria
existência. Quando este discurso dá lugar a uma análise e interpretações, a questão não é
saber se são justas ou falsas para aquele que se permitiu enunciá-las, mas se elas permitem
ampliar nossa compreensão dos mecanismos em jogo. O importante não é compreender a
obra em si ou seu autor, mas produzir hipóteses cuja validade dependa de sua capacidade de
dar conta do processo e do grau de generalização delas.

_________________
4. S. Freud, Délires et rêves dans la "Gradiva" de jensen, Paris: Gallirnard, Col. Idées, 1971
Introdução • 21

O romance é um privilegiado instrumento de investigação da articulação entre o psíquico e o


social. Ele tem outra vantagem, é um material que está publicado e, portanto, acessível a
todos. A revelação de histórias privadas coloca problemas éticos, metodológicos e
deontológicos, sobretudo quando se trata de utilizá-las em publicações. Este problema não se
coloca para a literatura, à medida que o autor aceita antecipadamente o risco da leitura e da
interpretação do que escreveu. Sua história cai, então, no domínio público e cada um se
autoriza a se encarregar de comentá-la, analisá-la, interpretá-la e utilizá-la. Além disso, esta
publicidade facilita a discussão e a confrontação. Não é possível publicar in extenso as
entrevistas de pesquisa. Pode-se sempre suspeitar, portanto, que o pesquisador deva
conservar do material bruto unicamente os elementos que apoiem sua demonstração. De
qualquer forma, a verificação é raramente possível e a discussão das hipóteses somente pode
ser parcial, já que os dados iniciais são conhecidos apenas pelo pesquisador. O romance
permite uma confrontação mais vasta, posto que cada um pode, constantemente, se remeter a
ele.
Esta é a razão pela qual privilegiamos na apresentação de nosso trabalho as referências aos
romances. Se a maior parte de nossas hipóteses foi produzida a partir de histórias de vida que
nós mesmos recolhemos, escolhemos sistematicamente ilustrar as hipóteses por casos
literários, sempre que possível.
1

HISTÓRIA E HISTORICIDADE

O homem não tem natureza, ele tem é... história.


Ortega y Gasset
O importante não é o que fizeram do homem,
mas o que ele faz do que dele fizeram.
J.-P. Sartre

A neurose de classe especifica um conflito que emerge na articulação entre a história


pessoal, familiar e social de um indivíduo. São as correspondências entre esses três registros
que permitem compreender a gênese e o desenvolvimento dessa configuração neurótica; os
fenômenos de poder entre as classes atravessando as famílias, as relações conjugais, as
relações pais/filhos; contribuindo, assim, para modelar a identidade destes. Para analisar os
processos em curso, nessa transmissão, é necessário compreender em que medida a história é
atuante na produção de um indivíduo; por quais mediações passa-se da história social à
pessoal; como as contradições sociais podem produzir conflitos psicológicos.
Considerar o indivíduo como produto da história coloca em causa o profundo egocentrismo
do homem. Cada um tende, inicialmente, a considerar que a história começa a partir da
tomada de consciência de si. Aceitar considerar-se um simples elemento de um processo,
que se enraíza muito profundamente no passado e que se desenvolve além de si, choca a
percepção de sua consciência e, mais ainda, os desejos de onipotência do seu inconsciente.
Sair do etnocentrismo demanda, portanto, "um trabalho" de renúncia de toda onipotência e
de aceitação do caráter contingente e passageiro da existência.

Minha família, minhas origens familiares com as quais, até hoje, não me importava
nem um pouco, interessam-me cada vez mais. Havia, certamente, um fundo de
hostilidade na convicção orgulhosa de que eu era, entre os meus, um fenômeno
único, inexplicável, imprevisível. Com esse meio familiar em que eu era tão
totalmente incompreendido se distanciando, seus membros decaindo um após o
outro, minha aversão se desarma, e me disponho, cada vez mais, a me reconhecer
como seu produto. 1

_____________
1
. M. Tournier, Les météores, Paris: Gallimard, 1975.
24 • A neurose de classe

A sucessão das gerações inscreve seus efeitos em cada um dos membros de uma família que
está, assim, ligado aos outros por uma série de elos econômicos, ideológicos, afetivos, que,
em grande parte, operam no nível inconsciente. É assim que se deve compreender o "apego"
como um fenômeno afetivo e, também, constrangedor. O indivíduo é constrangido por esses
elos, que entravam sua liberdade de movimento; contudo, esses elos são, igualmente,
ligações, que inserem o indivíduo em uma rede relacional que fabrica o tecido familiar e
social. A configuração de uma árvore genealógica mostra claramente como um indivíduo é
produto de alianças sucessivas que se ampliam à medida que se remonta na história familiar,
em uma progressão geométrica, para se perderem ao cabo de três ou quatro gerações, em
uma rede ampliada. Tal como uma boneca russa, a história individual está aninhada em uma
história familiar, ela própria inserida em uma história social. Cada um se inscreve nessa rede
que estabelece o seu lugar, a sua identidade. Nesse sentido, o homem é história.
Essa fórmula deve ser compreendida sob diversos planos:
• o indivíduo é produzido pela história: sua identidade é construída, de um lado, a partir
dos acontecimentos pessoais por ele vividos e que formam a trama de sua biografia,
de sua história singular e única e, de outro, a partir dos elementos comuns à sua
família, ao seu meio, à sua classe de pertencimento que o posicionam como um ser
sócio-histórico:
• o indivíduo é um ator da história: se o indivíduo pode ser considerado como produto
da história, ele é, igualmente, seu produtor. Ele é portador de historicidade, isto é, da
capacidade de intervir em sua própria história; função que o posiciona como sujeito em
um movimento dialético entre o que ele é e o que ele se torna: o indivíduo é produto de
uma história na qual ele busca se tornar sujeito.
• o indivíduo é produtor de histórias: por sua atividade fantasmática, sua memória, sua
palavra e sua escrita, o homem opera uma reconstrução do passado, como se quisesse,
diante do não controle do seu curso, ao menos dominar o sentido.
Essas diferentes dimensões da história são, particularmente, visíveis em indivíduos cuja
trajetória é marcada por rupturas, sejam estas culturais ou sociais. É o caso de Zahoua, para a
qual a identidade é atravessada por conflitos entre a cultura argelina e a francesa. É, também,
o caso de François, originário do mundo operário, que se casa com uma mulher da alta
burguesia.

O EXEMPLO DE ZAHOUA

Esse exemplo foi tomado de um artigo de Abdelmalek Sayad (1979) sobre a situação de
emigrantes na França.
A partir de uma entrevista com uma jovem estudante argelina, Zahoua, na qual ela retraça a
história da emigração de sua família e, além dessa experiência imediata, a história das
relações entre as sociedades francesas e argelinas, A. Sayad mostra os elos entre o conjunto
das contradições, que a emigração é portadora, e os conflitos psicológicos que ela suscita:
"Esses conflitos, habitualmente descritos em termos psicológicos, são abordados, aqui, em
sua verdadeira dimensão sociológica: ao mesmo
História e historicidade • 25

tempo em que eles se enunciam, eles se constituem em enunciados das condições sociais de
sua gênese".
É assim que Zahoua descreve a "fratura que divide sua família entre aqueles que nasceram
na Argélia e os que nasceram na França”, e o drama de seu pai que questiona os filhos
naquilo em que eles não se reconhecem: "Não se sabe o que vocês são!... De onde vocês
vêm, de onde vocês nos vêm? (em árabe na entrevista). De onde vocês são?.. Daqui (da
França) ou de lá (da Argélia)': Ele expressa, assim, um problema de "reconhecimento" entre
pais e filhos, uma contradição entre um projeto parental baseado na cultura argelina e as
novas condições de existência que conduzem os filhos a realizar outros projetos. "Não há,
em nossos projetos, aqueles que sejam cumpridos': constata o pai de Zahoua. É assim que
educa sua filha mais velha, na perspectiva de esta se tornar uma boa esposa e mãe, mas ele
descobre que as coisas não andam bem e ela deve trabalhar sem nenhuma qualificação; além
disso, seus dois filhos - que ele fez casar, relativamente jovens, com mulheres vindas da
Argélia com o objetivo de manter a tradição e a autoridade -, uma vez casados, filhos e
noras, distanciam-se de uma e de outra. Querendo transmitir aos seus filhos o modelo
argelino, no qual ele se reconhece, dá-se conta de que engendrou "estrangeiros" que ele não
entende; filhos que se remetem ao modelo francês, filhos que, ao mesmo tempo, deseja e
rejeita.
Os emigrantes ficam divididos entre duas culturas, duas tradições, duas línguas, dois países
diferentes. Os pais internalizaram hábitos de um país, porém vivem em outro; os filhos
internalizam hábitos do país em que estão, enquanto os pais lhes pedem para se
conformarem ao modelo do país de origem. Todo jovem magrebino, nascido ou chegado
muito jovem na França, está submetido a uma série de injunções paradoxais que se podem
assim resumir:

• Torne-se um homem ou uma mulher responsável na sociedade onde você vive...


• Você deve permanecer fiel às tradições de seus ancestrais, de seu país...

"Dividido entre uma modernidade complexa e uma tradição distante e inacessível, todo
jovem emigrante se encontra confrontado com um problema... Ele é, de algum modo,
herdeiro da ruptura que seus pais vivenciaram" 2. A confrontação com um duplo sistema de
referência, em que muitos elementos são opostos, desencadeia no emigrante uma espécie de
confusão ideológica, uma culpa latente (os temas da traição e da renegação são frequentes),
um mal-estar que ele carrega consigo, tanto no país em que é acolhido quanto no seu país de
origem.

Se os emigrantes... dão a impressão de que não sabem onde estão, nem o que fazem,
é porque, à maneira dos colonizados, eles carregam consigo o produto de sua história,
um sistema de referência dupla e contraditória. Já tendo internalizado antes de sua,
emigração, duas morais contraditórias, cotidianamente contradizendo-se pela sua ex-
periência 'de emigração, eles são levados a se entrechocar com todos os aspectos que
tenham pontos de vista contraditórios. (Sayad, 1979, p. 130)

_____________
2. Extraído de um sumário de mestrado da Unidade de Formação e Pesquisa de Ciências Humanas Clínicas de
Paris 7 de Malika Hanifi. 1982. Malika é como Zahoua uma imigrada argelina da segunda geração.
26 • A neurose de classe

Pode-se fazer um paralelo entre esse duplo movimento contraditório, diacrônico e


sincrônico, que atravessa a colonização-emigração, e a situação dos filhos de camponeses ou
de proletários, que se acham confrontados com urna promoção social importante: assim
corno a colonização, as contradições sociais produzem conflitos de ideal e de aculturação
naqueles que elas atravessam. Assim, urna situação social produzida pela história, partilhada
coletivamente por um grupo de indivíduos, vai estruturar seu vivido psicológico,
provocando, em alguns, neuroses individuais. Na medida em que se carrega "em si" a
história do seu grupo de pertencimento, fica-se atravessado por contradições que
caracterizam a história desse grupo. A gênese social de certos conflitos psicológicos
necessita uma compreensão dos mecanismos sociais estruturantes da existência individual,
não somente do interior, ou “em si", mas, igualmente, do exterior. Só se pode compreender a
própria situação com relação à do conjunto de pessoas que vivem a mesma condição.
A história inscreve o indivíduo em urna solidariedade, em urna comunidade e em um
conjunto, que o "socializam”. Nesse sentido, ele é produto disso. É dizer que as rupturas, os
antagonismos e os conflitos, que atravessam a história desses grupos, estão no fundamento
da identidade daqueles que os constituem.
A. Sayad mostra que Zahoua só pode compreender sua própria situação, compreendendo a
situação dos outros: a análise do que ela vive, do que vive seu pai, sua mãe e cada membro
da família é indissociável da análise das condições sociais desse vivido. Além das "misérias"
que endurecem seu pai e sua mãe, é pela compreensão da origem social dessas misérias que
Zahoua chega a compreendê-los e, assim, se compreender:

A autoanálise torna-se, aqui, uma verdadeira "socioanálise”. É a esta que Zahoua


deve, entre outras coisas, o fato de ter conseguido controlar sua própria situação e
experiência... restaurar a integridade de uma identidade que a provação da emigração
deslocou: ela concorre para liberar (ao menos, parcialmente) as múltiplas
contradições impostas por esse duplo sistema de referência do qual não se pode sair.
(Idem, p. 132)

Em face desse "duplo cego" social, que situa Zahoua em urna situação paradoxal, a análise
da gênese social de seus conflitos pessoais e interpessoais permite-lhe atingir um nível de
metacomunicação, o único meio de sair desse duplo constrangimento. Nomear as coisas
corno elas são, desmontar os mecanismos que produzem esses duplos elos, compreender a
cadeia que vai da história da colonização à da emigração, desta para a história de sua faml1ia
e desta história para a constituição de sua identidade, é o meio para Zahoua desenvolver a
sua função de historicidade, isto é, a sua capacidade de análise e domínio dos elementos que
a constituem corno sujeito histórico.

UM EXEMPLO DE NEUROSE DE CLASSE

Outro exemplo permite ilustrar de que maneira as contradições sociais (no caso, os
antagonismos de classe) vêm refletir um conflito psicológico de modo a provocar urna
neurose de classe.
François é um engenheiro que encontramos enquanto preparava um doutorado de 3º ciclo em
Economia. Brilhante estudante, porém reservado, no limite inibido, ele tem a aparência de
um jovem-profissional (28 anos) "bem em todas as relações”. Contudo, sua maneira de ser e
suas intervenções expressam urna violência contida e
História e historicidade • 27

uma profunda revolta. Ele conta sua história a partir de um desenho sob o tema "A história
de minha vida”.
François é filho de um operário, militante ativo do Partido Comunista e da CGT
(Confederação Geral do Trabalho), há 40 anos. De um lado, seu pai inculca-lhe "o ódio pelos
financistas e burgueses incapazes" e, de outro, "a admiração por essa gente inteligente que
chega ao poder", particularmente, aqueles que cursaram a Politécnica. Ele deseja que seu
filho tenha sucesso nos estudos para mostrar sua inteligência e chegar ao poder; ao mesmo
tempo, combate os burgueses que ocupam o poder. François vive essa dupla mensagem
como uma contradição irredutível, que vai se traduzir por uma escolaridade, ao mesmo
tempo, brilhante e difícil: é bom em matemática, porém jamais o primeiro. Contudo, ele
detesta essa matéria que o obriga a entrar em um quadro lógico fechado, rígido, em uma
"ordem estabelecida”. Contrariamente, ele gosta de francês, matéria na qual obtém
resultados bastante medíocres. Incapaz de se concentrar em um assunto, ele começa uma
frase para, em seguida, associar outra, deixando seu pensamento rolar, tornando o seu
propósito desordenado e incompreensível, recebendo, com isso, sempre a avaliação: "fora do
assunto". Entretanto, isso não o impede de passar nos exames de modo a preparar o seu
ingresso na Politécnica, onde ele vai fracassar. Simultaneamente, ele entra para o Partido
Comunista.
Como ele mesmo diz: vai "entrar na Politécnica por intermédio do seu sogro”. De fato, ele se
casa com Isabelle, uma jovem da alta burguesia (apartamento de 16 cômodos no 7º distrito,
casa de campo nos arredores de Paris, casa na Côte d’zur, casa dos avós em Deauville,
situação importante do sogro que é da Politécnica etc.). Não somente os pais de François
estão orgulhosos com esse casamento, como desejam que seu neto (filho de Isabelle e de
François) seja educado pela família dela, de modo a garantir "uma boa educação”.
François ressente-se muito dolorosamente dessa posição parental. Não podendo propor à sua
mulher "de ir viver no bairro de habitação popular", ele aceita e se submete calada, mas se
sentindo mal; "a parafernália do apartamento em Paris, finais de semana no campo, férias
com a família da mulher”. Ele desaprova o seu pai por ter aceitado e favorecido essa
situação, não somente porque não se opõe a isso, mas porque o parabeniza: "Bravo meu
filho, você conseguiu”, diz ele ao filho, sem enxergar a contradição na qual este se encontra
enredado. A partir desses poucos elementos, vê-se desprender um cenário sociopsicológico
que concorre para a produção de uma situação de tipo neurótico.
No começo, uma família operária que investe no desejo de mudar a ordem social pela luta de
classes, desejando para seus filhos outro lugar nessa ordem. Para atingir as aspirações
paternas, François deve se preparar para ingressar na Politécnica para demonstrar que os
operários são tão inteligentes quanto os burgueses; mas, ao fazer isso, ele próprio torna-se
um burguês e passa para o lado daqueles que foram responsáveis pela "vida de cão" que seus
pais tiveram. Para satisfazer o desejo parental, portanto, para ser amado, ele deve se tornar
aquilo que seus pais lhe ensinaram a detestar.
Encontra-se aqui uma explicação da trajetória escolar de François: ele é bom em matemática,
embora não goste dela, na medida em que ela representa o aspecto da ordem. Todavia, ele
jamais é o primeiro nessa matéria. Vai mal em francês, apesar de gostar, porque ele se situa
"fora do assunto", isto é, fora dessa "ordem'. Pode-se pensar que há, aí, uma tradução do seu
conflito com a autoridade e com a ordem estabelecida, que determina o que é estar "no
assunto" ou "fora do assunto": estar fora do assunto é uma maneira de ser posto em seu
lugar.
28 • A neurose de classe

François tenta, assim, mostrar sua capacidade de ser inteligente e de ter sucesso, preservando
a liberdade de pensamento e de expressão que não se reduz ao quadro fixado pela ordem
estabelecida. Ele tem sucesso naquilo que não gosta e fracassa naquilo que gosta; esse é o
único meio de responder a um projeto parental, também contraditório. É a mesma lógica que
o conduz, após ter fracassado no concurso de ingresso na Politécnica, a desposar a filha de
um politécnico, pertencente à alta burguesia, e entrar no Partido Comunista. Realiza, assim, a
dupla injunção de conseguir a Politécnica, mesmo que "por intermédio do sogro", isto é, de
se tornar um burguês, ao mesmo tempo em que manifesta sua solidariedade com sua classe
de origem e, portanto, com seu pai, tornando-se, por sua vez, militante do Partido
Comunista. O ponto essencial que "trava”, de algum modo, a rede de contradições na qual
François vai se encontrar enredado é, então, o discurso paterno: "Bravo meu filho, você
conseguiu”. Felicitações que não estão endereçadas ao militante comunista, mas ao filho que
mudou de classe social.
Para o pai, trata-se do orgulho de ver seu filho subir na escala social. Para François, de um
duplo fracasso: o de não ter podido conseguir, por si mesmo, essa passagem, mas somente
através do seu casamento, o que o torna dependente da família de sua mulher; o de passar,
assim, para o lado de uma ordem que ele desejaria derrubar. As felicitações vêm, então,
reforçar sua culpa relacionada à renegação de suas origens, visto que essa mudança de
classe, que parece, assim, orgulhar seu pai, é vivida por François como uma traição. É
insuportável para François ver seus pais aceitarem e se regozijarem pelo fato de seu filho se
casar na igreja e de o neto vir a ser educado "burguesamente”, a tal ponto de se distanciarem
para não atrapalhar a promoção do filho. Este é, assim, levado a censurar o pai que endossa,
até mesmo reproduz a ordem social, ao mesmo tempo em que lhe ensinou a viver a luta de
classes. Reprovação que François não pode expressar, visto que ele se tornou um burguês,
enquanto seu pai permanecerá sempre operário. É-lhe, então, necessário recalcar essa raiva
contra o seu pai, que não somente o abandona como renuncia à luta ao aceitar a invalidação
de sua classe social. A inscrição no Partido Comunista será uma tentativa de reparação bem
precária, pois, François se demitirá, em seguida, para se afundar em um silêncio hostil,
alimentado pela leitura de Nietzsche.
A partir desse momento, François vive como um impotente, despossuído de uma parte de si
mesmo, incapaz de reagir; não podendo pedir à sua mulher para viver no bairro popular,
aceita, então, viver no apartamento ofertado pela família dela. Deixa-se levar pelos
compromissos da vida burguesa que detesta. Aceita o afastamento de seus pais no tocante à
educação do seu filho e aceita que este seja, assim, "ajudado" e beneficiado pelas
"facilidades burguesas”, que ele próprio não teve. A única coisa que François pôde fazer foi
expressar sua raiva no dia em que seus sogros levaram seu filho ao cabeleireiro,
apresentando-lhe a imagem de um filho "bem penteado”, isto é, a imagem daquilo que está
se tornando: um filho da boa burguesia que conseguirá, ao menos ele, entrar na Politécnica.
François não conseguiu encontrar um meio termo entre o que ele é, como filho de operário e
o que se tornou, como pai de um "pequeno-burguês”, destinado a se tornar um herdeiro da
alta burguesia. Lacerado, em seu interior, pelo conflito que se traduz, no nível psicológico,
como relações de dominação entre duas classes. A culpa que decorre disso não se reduz à
sua dimensão edipiana. Se a relação com seu pai é um dos elementos essenciais da
configuração que François apresenta, essa relação está su-
História e historicidade • 29

bentendida pelo antagonismo entre a classe operária e a burguesia. Esse antagonismo conduz
os pais operários a desejar, para a sua classe, uma reversão da ordem estabelecida e, para
seus filhos, uma promoção, de modo que eles passem para "outro lado”.
Seus filhos são esgarçados entre essa aspiração coletiva de sua classe de pertencimento e a
aspiração individual de sucesso social: o sucesso individual confronta-os com uma ruptura
de solidariedade em relação às suas origens sociais. Ruptura ainda mais importante ao se
traduzir em diferentes níveis: a passagem da classe operária para a burguesa necessita de
uma aquisição de novos habitus, de uma linguagem, de práticas que introduzem uma
distância entre as maneiras de fazer e de ser dos pais e dos filhos. Essa distância social leva a
uma distância afetiva. Os pais sentem estar diante de um estrangeiro que não compreendem
mais; os filhos se sentem em dívida para com os pais, que envidaram esforços para garantir
seus sucessos e, ao mesmo tempo, sem saber como partilhar os frutos. Situação propícia para
mal-entendidos, humilhações e culpa, tornando difícil a comunicação e favorecendo o
distanciamento afetivo. Para François, o fato de o seu pai aceitar e favorecer esse
distanciamento é vivido como uma prova de amor, pois é essa a condição que lhe permite
sucesso; mas é também vivido como uma traição dos ideais e valores dos quais ele é
portador. O amor recobrindo a traição, François não pode reprovar o primeiro sem
reconhecer a segunda. Ele só pode se sentir culpado em responder com raiva ao amor assim
prodigalizado. Refugiando-se no silêncio, aceita a distância em relação à sua família de
origem.

O INDIVÍDUO PRODUZIDO PELA HISTÓRIA


Os exemplos de Zahoua e de François ilustram a hipótese segundo a qual o indivíduo é
"produzido" pela história. Eles nos permitem compreender como a história pessoal é
marcada pelos conflitos da história familiar, ela própria atravessada pelas contradições da
história social: a história da colonização e da emigração argelina para Zahoua; a história das
relações entre a burguesia e a classe operária para François.
A injunção paradoxal com a qual eles são, cada um, confrontados não está atrelada a uma
estrutura psicótica de seus respectivos pais. Os conflitos aos quais eles devem fazer face não
são unicamente psicológicos, visto que estão relacionados às contradições que caracterizam a
história de seu grupo de pertencimento e ao campo social, nos quais a sua identidade se
ancora. Sua "psicologia” é, portanto, em parte, resultante de um processo histórico, que
produziu a situação social, com a qual se acham confrontados. Nesse sentido, a história é
"atuante", na medida em que condiciona os comportamentos, os modos de ser, as atitudes e a
personalidade dos diferentes membros de uma família. Para compreender em que essa
história é atuante, torna-se necessária a análise da gênese social dos conflitos psicológicos,
isto é, dos mecanismos sociais que estruturam a existência individual, não somente do
interior, ou "em si': mas igualmente do exterior, porque as situações de Zahoua ou de
François só podem ser compreendidas em relação ao seu modo de inserção social.
A psicanálise aborda esse problema, mostrando a permanência do passado no inconsciente.
Para o inconsciente, a história é constantemente atualizada. É o sentido da expressão "o
inconsciente não possui história” que situa o funcionamento psíquico no registro da
condensação e do deslocamento: na ordem psíquica, a reversibilidade é possível.
30 • A neurose de classe

Os longínquos acontecimentos ressurgem do inconsciente sob forma de emoções, afetos,


sentimentos e desejos. Freud nos mostra que o passado se perpetua na vida psíquica: "Nada é
perdido na vida psíquica, nada desaparece no que é formado, tudo é conservado de alguma
maneira e pode reaparecer sob certas circunstâncias favoráveis...” 3
Freud compara a construção da identidade à construção de uma cidade que se faz por
estratos sucessivos, cada um deles prefigura o seguinte que, não obstante, vem recobri-lo; na
construção da identidade, o aparelho psíquico mantém "a sobrevivência do estado primitivo,
ao lado do estado transformado que dele deriva”.
A identidade formando-se a partir de identificações sucessivas, o indivíduo preserva suas
relações anteriores e, em primeiro lugar, os elos com seu pai e sua mãe, que o levaram a se
constituir na imitação e na repetição para acessar o mundo do desejo. Mas a maior parte dos
trabalhos de inspiração psicanalítica apenas leva em conta as qualidades psicológicas; a
identificação concerne também aos aspectos, propriedades e atributos sociais dos
personagens tomados como suportes desse processo. Quando tratamos desse problema
independentemente da análise das relações sociais e da posição social que os indivíduos
ocupam, limitamos a influência da história na constituição do aparelho psíquico à esfera das
relações intrafamiliares em uma ou duas gerações. Ficamos impedidos, por esse
procedimento, de analisar em que medida a história das relações sociais e a genealogia
atravessam o indivíduo, modelam-no, imprimem e nele atuam... Considerar esses
fenômenos, exclusivamente em seus efeitos psíquicos, leva a autonomizar completamente o
aparelho psíquico como sendo de responsabilidade da "personalidade" e, portanto, a fazer do
homem o motor da história, enquanto ele não passa de uma de suas engrenagens. Tende-se,
dessa maneira, a reduzir a incidência do passado às primeiras relações infantis e a
autonomizar radicalmente a vida psíquica do campo social. "Estabeleceu-se um consenso
quanto a fazer da criança em relação ao homem e da criança em cada homem a chave de seu
destino pessoal e a explicação essencial de sua história”4.
Esse postulado, denunciado por R. Castel permanece dominante na maioria das teorias
psicológicas atuais, em obra na clínica, na pedagogia, na criminologia etc. Essas consideram
que as relações atadas na infância determinam o destino de um indivíduo, e isso tanto mais
quando elas não foram "satisfatórias': Se considerarmos que o destino de um indivíduo é
determinado pela história, esta não seria redutível à história das relações afetivas entre a
criança e os adultos que o conduziram em seus primeiros aprendizados. Essas relações são,
elas próprias, carregadas por uma série de relações que as determinam. Elas não são
portadoras somente de aspectos afetivos, mas também de aspectos ideológicos, culturais,
sociais e econômicos; cada um desses níveis não podendo estar dissociado dos outros, na
medida em que é a sua intrincação que produz a estrutura de programação, o sistema de
habitus e o quadro referencial, sobre os quais a criança vai ancorar sua própria história.
Mesmo as abordagens psicológicas, que não negam o impacto da história social sobre os
destinos pessoais, colocam-na como exterioridade, como um elemento que não concerniria
diretamente à formação e o funcionamento da psique; o Eu estando, de algum modo,
posicionado

______________
3. S. Freud, Malaise dans la civilisation, Paris: PUP, 1971, p. 11.
4. R. Castel, La gestion des risques, Paris: Gallimar/Minuit, 1981.
História e historicidade • 31

em mediação entre o interior, o que é do âmbito da psicologia, e o exterior, que seria do


âmbito da sociologia.
A oposição entre as abordagens psicológicas e sociológicas e, em particular, entre a
psicanálise e o marxismo, os debates sobre as relações entre o indivíduo e a sociedade, entre
o mental e o social, impuseram uma concepção de homem que se debate em duas cenas
independentes. Uma cena "interna”, onde entram em jogo os afetos, fantasmas,
representações, emoções, sentimentos; cena em que o indivíduo tende a se constituir como
sujeito. Outra cena "externa”, onde entram em jogo a luta de classes, os desafios
econômicos, culturais e sociais, e na qual o indivíduo constitui-se como objeto da história
das formações sociais e dos sistemas sociais, é modulado pelas condições concretas de
existência que produzem as relações sociais.
De fato, a vida é uma peça que se dá em uma única cena. Se há "outra cena” metafórica e
simbólica -, as "representações”, que aí se combinam, e a maquinaria que serve de suporte
concreto à realização são expressão da cena existencial onde se dão as relações sociais. A
"outra cena” não é, portanto, uma cena à parte, funcionando independentemente do campo
social sobre o qual suas marcas são colocadas. Compreender o peso da história em si é
compreender a articulação entre sua história pessoal e a história social na qual ela se
inscreve.

Começava a me dar conta de que minha situação psicológica pessoal não era separá-
vel da situação socioeconômica de minha família, que os mecanismos de
identificação também entram em jogo sob um modo social, e que não é simplesmente
o negócio do complexo de Édipo "que pega”. De fato, é uma abordagem original que
me permitiu perceber plenamente que eu era claro, o filho do meu pai e da minha
mãe, mas que era também filho de um camponês que se tornou operário e de uma
doméstica que se tornou lavadeira e mãe de família... e que esse vivido social estava
intrinsecamente ligado à história de minhas relações infantis.5

Esse testemunho, assim como os de Zahoua e de François, destaca a dimensão


sociopsicológica do peso da história. O desenvolvimento de um indivíduo, constituindo-o
como um ser psicossocial-histórico, é marcado por toda a experiência biográfica.
W. Reich ([1929]1970) percebeu esse problema, quando assinalou que a psicanálise permitia
apreender em que as pulsões sádicas de um indivíduo levá-lo-iam a se tornar açougueiro,
cirurgião ou detetive; é, todavia, antes de tudo, "a posição econômica do indivíduo que o fará
sublimar o seu sadismo como açougueiro, cirurgião ou detetive”, Indicava com isso que toda
pulsão é socializada de "certa maneira” e que os destinos pessoais são o resultado de uma
combinação entre processos psíquicos e sociais.
O indivíduo é, inicialmente, um herdeiro. O emprego que possui os estudos que "escolhe”, a
pessoa que desposa a residência em que mora, o modo de vida que o caracteriza, as
ideologias que defende etc. são o produto de sua experiência biográfica, que se inscreve na
"sucessão”. É nesse sentido que a história permite compreender como cada um de nós é
levado a ocupar tal ou qual posição social. O que se chama de ''destino'' nada mais é que a
expressão daquilo a que fomos destinados por aqueles que nos precedem. Quando D.
Bertaux (1979) mostra que famílias de servidores públicos produzem servi-

_______________
5. Cf. B. Jondeau, "faire craquer l'impérialisme des théories psychologiques", in Le groupe social, n. 96, jul/ago 1982.
32 • A neurose de classe

dores públicos, famílias capitalistas produzem capitalistas, famílias operárias produzem


operários, famílias de quadros superiores produzem quadros superiores, ou quando C. Thélot
(1982) mostra que as escolhas profissionais, conjugais, familiares e ideológicas são
determinadas pela linhagem, eles ilustram estatisticamente o impacto objetivo da história
familiar nas trajetórias dos seus membros.
Pierre Bourdieu permite perceber um aspecto essencial do peso da história na construção da
identidade, a partir da noção de incorporação de habitus: para explicar o comportamento de
um indivíduo, convém compreender que "a ação não é uma resposta cuja chave estaria
inteiramente no estímulo desencadeador; ela tem por princípio um sistema de disposição, o
qual denomino habitus, que, é o produto de toda a experiência biográfica” (1981, p. 75).
O habitus é o resultado de um conjunto de práticas que se constituíram, ao longo do tempo,
que foram capitalizadas em função de sua pertinência, isto é, de sua capacidade de trazer
respostas às condições concretas de existência em um dado momento, e que se transmite de
geração em geração. São "espécies de programas historicamente postos" que indicam ao
indivíduo maneiras de ser e de se comportar em situações sociais. "A história no estado
incorporado expressa-se pelos habitus, produto de uma aquisição histórica, que permite a
apropriação do adquirido histórico”.
Quando fala de incorporação da história, Bourdieu quer dizer que o trabalho de inculcação e
de internalização faz com que o habitus seja parte integrante do indivíduo. Esse processo é,
em grande parte, inconsciente na medida em que as condições sociais de produção de habitus
estão ocultadas, negadas, esquecidas: os habitus incorporados são percebidos como sendo da
ordem da natureza (é "natural"), do inato, espécie de um "dom do céu”, desprendido de sua
origem concreta. Esse sistema de disposições se inscreve no corpo e no psiquismo, nas
maneiras de falar, de se deslocar, de andar, de se comportar... e caracteriza o conjunto de
atitudes e 'condutas do indivíduo.
Se o habitus é um programa autocorrigível, que pode gerar novas práticas adaptadas ao
sistema de disposições anteriores e às novas condições de existência, ao mesmo tempo, sua
adaptabilidade está inscrita nas suas condições de produção: certos meios geram habitus
rígidos (meios conservadores ou "decadentes" que não conseguem reproduzir as condições
de sua reprodução), enquanto outros, ao contrário, possuem uma capacidade muito grande de
produzir habitus que vão no "sentido da história”. "É uma espécie de máquina
transformadora que faz com que "reproduzamos" as condutas sociais de nossa própria
produção" (idem, p. 134).
Essa abordagem permite indicar outra dimensão dos processos inconscientes que a,
psicanálise deixa na sombra: 'o conjunto ,de ·condições sociais de produção de um,
indivíduo.Em outros termos, o inconsciente

não é senão, efetivamente, sempre o 'esquecido ,da história, que a própria história
produziu realizando as estruturas objetivas que engendra nessas quase-naturezas, que
são os habitus. História incorporada, feita natureza e, daí, esquecida como tal, o
hábito é a presença atuante de todo o passado, do qual é o produto. (Bourdieu, 1980,
p. 94)

Essa tese prolonga o que Durkheim desenvolvia.

Há, em cada um de nós, 'em proporções variáveis, o homem de ontem; em vista de


que o presente não é senão bem pouca coisa, comparado a esse longo passado, no
curso do
História e historicidade • 33

qual nós nos formamos e somos resultados, é que o homem de ontem, por força das
coisas, é predominante em nós. Apenas, não sentimos esse homem do passado,
porque que ele é, em nós, inveterado; ele forma a parte inconsciente de nós mesmos.6

Pode-se criticar Bourdieu, em sua tese, de apresentar um homo sociologicus que aparece
como produtor ativo de classificação e de maneiras de ser adaptadas à posição ocupada em
uma ordem: "os agentes sociais, que o sociólogo classifica, não são só produtores de atos
classificáveis, mas também, de atos de classificação dos quais eles próprios são
classificados" (1979, p. 544). Estamos em um universo onde cada classe reproduz seus
esquemas de distinção e oposição, que se repetem e se eternizam, o que leva a desdialetizar,
de um lado, as relações entre classes, e de outro, as relações dos indivíduos com sua história.
Se a noção de habitus permite identificar em que o peso da história incorporada é fator de
reprodução social, produzindo costumes e "personalidades" conformes e adaptados aos
modelos culturais veiculados para cada grupo social, não se vê realizar os diferentes
processos de mediação que - do indivíduo ao grupo, dos grupos às classes e das classes à
sociedade - fundam a dinâmica social e permitem compreender a história como um
movimento.7
Bourdieu propõe uma visão de um indivíduo que é agido inconscientemente pelas maneiras
de ser e de pensar, reflexos de sua posição social. Os processos psicológicos são apenas
correias de transmissão dos habitus. O trabalho das pulsões e do desejo é determinado do
exterior por um sistema de aspirações. As questões do sujeito, da consciência e da palavra
são remetidas aos idealistas e aos fenomenólogos. As contradições intrapsíquicas são
epifenômenos que vêm perturbar o trabalho do sociólogo, ocultando o que determina os
comportamentos, as atitudes e as personalidades.
Definindo o habitus como estrutura estruturante, Bourdieu reifica o trabalho da história. Se
ele mostra como o peso do passado inscreve cada indivíduo na lógica da reprodução social,
não permite apreender o trabalho de reescrita que o sujeito efetua, de modo a transformar a
maneira como a história nele age.
Tais limites da "teoria bourdivina” como o denomina com humour B. Lacascade, não devem,
entretanto, mascarar o interesse da noção de habitus, que permite identificar o trabalho da
história com o estado incorporado. O peso da história "tende a reduzir o possível ao
provável" (Bourdieu). Permite apreender, assim, um processo sociológico que contribui para
que os indivíduos fabriquem seus comportamentos e atitudes no futuro provável, tal qual ele
se inscreve objetivamente na ordem estabelecida, concorrendo, assim, à sua reprodução.
Esses processos sociais são "atuantes" no sentido em que Freud observava relativamente à
transferência: eles dominam todas as relações de uma dada pessoa com seu entorno humano
e quanto maior sua força menos duvidamos de sua existência. Quer rejeitemos quer
aceitemos nosso passado, ele cola à nossa pele, ele é nossa pele. Quanto mais o indivíduo
tende a ignorar que ele é produto de uma história, mais se torna seu prisioneiro.

______________
6. E. Durkheim. L’évolution pédagogique en France. Paris: Alcan. 1938. p. 16.
7.Para uma crítica mais aprofundada da abordagem de P. Bourdieu, pode-se remeter ao trabalho de B. Lacascade: "La
divine théorie ou critique de la sociologie de "l’habitus”, in Marxisme et mode de vie: contribution a une sociologie des
pratiques. Tese de 3º ciclo. EPHESS. 1982.
34 • A neurose de classe

Essa discussão crítica das teses de Freud e de Bourdieu permitem evidenciar uma diferença
radical do estatuto da história no funcionamento social e no psíquico.
Para o sociólogo que analisa a permanência da história no presente, a cronologia é uma
referência de base incontestável. A anterioridade de um acontecimento lhe confere um
estatuto particular, na medida em que o presente é produto da história. O inverso jamais é
verdadeiro, salvo se considerar que o observador é levado a analisar a história em função do
presente. Nesse sentido, a história é irreversível e o que se passou é a forma definitiva do
real.
Na ordem psíquica, essa lei de irreversibilidade está longe de ser evidente: "o psiquismo
humano é o único sistema que pode se deslocar no eixo do tempo nos dois sentidos; essa
total reversibilidade encontra-se no núcleo de sua existêncià' (Perron, 1985, p. 95). Isto
significa que, do ponto de vista psíquico, nada é jamais adquirido, porque, no
desenvolvimento da pessoa, os elementos de uma estrutura podem ser modificados e
reorganizados em um estágio posterior. Em cada nível da evolução do aparelho psíquico, os
elementos associados em uma estrutura "são reinterpretados, encontrando um novo sentido e
sobretudo uma nova função na estrutura seguinte': Essa singularidade do funcionamento
psíquico está no fundamento da capacidade do homem de mudar não a história passada, mas
sua relação com essa história, isto é, a maneira como ela é atuante para ele e, com isso,
desenvolver sua função de historicidade.

DA HISTÓRIA À HISTORICIDADE
Se a história inclina nosso destino, ela não o decide. Dizer que ela é atuante não significa que
o individuo só pode agir de uma determinada maneira. Identificar os determinismos permite
compreender "o que €: a maneira como as "escolhas" de um indivíduo são condicionadas
pela história. Mas não se trata de se fechar em uma concepção mecanicista, no sentido em
que o devir provável é só um aspecto do devir possível, o "realizado" é apenas uma das
formas do "realizável”. Indicar em que a identidade é determinada pela posição do indivíduo
na estrutura de classe ou pela cadeia do DNA que o caracteriza não aliena em nada sua
singularidade. Dizer que o indivíduo é produzido por sua história é, também, levar em conta
a singularidade, enquanto cada história é diferente, embora inscrita em uma história comum.
Se a história faz do homem um indivíduo programado, este guarda a capacidade de
modificar essa programação, de operar uma reescrita. Tomar consciência da maneira como
suas "escolhas" são condicionadas pela história pode levar o indivíduo a modificá-las,
compreendendo em que medida ele foi, de algum modo, "obrigado” a se conduzir assim.

A HISTORICIDADE INDIVIDUAL
Uma das especificidades da espécie humana é a possibilidade de cada indivíduo agir sobre si
mesmo, de operar um trabalho sobre o que ele é, de se auto constituir em personalidade, em
sujeito. Essa capacidade de distanciamento do indivíduo em relação à sua história, o trabalho
que ele efetua para nela modificar o sentido, para tentar se tornar seu sujeito, a possibilidade
de abandonar habitus impróprios de modo a adquirir outros, para fazer face às novas
situações, constituem a função de historicidade. A historicidade é um conceito
fenomenológico, desenvolvido por Heidegger e Husserl. Em Ser e tempo, Martin Heidegger
escreve, notadamente: "Então, a história não sig-
História e historicidade • 35

nifica se referir ao 'passado', no sentido do que se passou, mas, sim, do que advém. Quem
‘tem uma história’ está em relação com um devir... aquele que, assim, 'tem uma história’
pode, ao mesmo tempo, 'fazer' história...” (apud Lebovici, 1979).
Essa concepção dinâmica da história salienta a relação entre o que se passou e o que pode
advir. É o fato de "ter" uma história que permite "fazer" história. Ao contrário, pode-se
constatar que "quem não possui história” não pode fazer uma. Quando se rouba toda a
história, ou parte dela, de um indivíduo, efe fica mutilado de uma parte de si mesmo: não
saber de onde vem não lhe permite saber "quem" é. Existe um estreito elo entre a capacidade
do indivíduo de integrar sua história e suas possibilidades de investir no futuro.
A experiência clínica mostra que a história deve ser completamente dada para a criança para
que possa se constituir como sujeito. Sabe-se que crianças da assistência social, que foram
abandonadas e que desconhecem sua história, isto é, a história da qual são o produto,
possuem grandes dificuldades para se posicionar em um devir.8 Essa incerteza em relação às
suas origens se traduz por uma atividade fantasmática intensa, permitindo-lhes construir uma
história: esse é o sentido do "romance familiar':
Encontramos, frequentemente, em pessoas que recusam sua história ou que têm dúvidas
sobre a sua origem real, a dificuldade de viver sua própria história de uma maneira que as
satisfaça. Pode-se compreender que o fato de não conhecer o que se passou impede o
indivíduo de responder à questão "QUEM SOU EU" e, consequentemente, de desenvolver
sua função de historicidade.

Certos pacientes sofrem por não ter história. Eles podem, com certeza, em sua bio-
grafia, distinguir a sucessão dos acontecimentos e descrever a maneira como eles se
agrupam, porém lhes falta a experiência e a representação de um processo
internamente coerente do seu ser e do seu devir, que seja função de um continuam
pessoal... 'Ter uma história' ou 'viver uma história' pressupõe o vivido e a realização
da coerência do devir. Em revanche, tomar consciência do seu próprio
desenvolvimento, no tempo, pode permitir ao sujeito a percepção da historicidade de
sua existência e incitá-lo a um esforço sempre renovado para apreender e interpretar
a sua própria história 9 (Grifos nossos.).

A historicidade designa a capacidade de um indivíduo de integrar sua história, mas também,


de integrar a História, de modo a:

• de um lado, compreendê-la, identificá-la, o que pode levá-lo a reconhecê-la, portanto,


a modificar a maneira como essa história atua nele;
• de outro, estabelecer estratégias sociais pertinentes em relação à evolução da socie-
dade; um trabalho de adaptação às mudanças culturais e socioeconômicas.

A abordagem da psicanálise existencial de Sartre não está muito distante dos nossos
propósitos, quando ele fala do sujeito que se "historializa”', isto é, que opera uma mudança
na sua relação com o mundo para se "constituir como um si"

_________________
8.M. Bonetti, J. Fraisse, V. de Gaulejac, "De l'assistance publique aux assistances maternelles” Les Cahiers de Germinai,
Paris, 1980.
9
. L. Schacht, "Découverte de l'historicité", in Nouvelle Revue de Psychanalyse, n. 15, Primavera 1977, p. 68.
36 • A neurose de classe

(Sartre, 1979, p. 623). Ele se aproxima, igualmente, da abordagem fenomenológica (Husserl;


Heidegger), que considera o indivíduo uma intencionalidade aberta ou uma temporalidade
que se temporaliza como futuro. É essa característica "aberta" que explica a dialética da
historicidade entre "tornamo-nos o que somos" e "somos o que nos tornamos".
Consequentemente, "não temos significação atribuível, para sempre, mas significação em
curso, e é por isso que nosso futuro é relativamente indeterminado, que nosso
comportamento é relativamente imprevisível para o psicólogo, que somos livres"10.
O homem não está somente na história, ele é portador da história cuja significação busca.

Há história porque os homens estão juntos, não como subjetividades moleculares e


fechadas que se adicionam; ao contrário, estão como seres projetados para o outro,
como instrumentos de sua própria verdade. Há, portanto, um sentido da história que
é o sentido que os homens, ao viver, dão à sua história. 11

É esse movimento de historicidade que permite explicar por que em iguais condições
objetivas de existência vêm se enxertar tomadas de consciência variáveis, o que J.-P. Sartre
denominava por possibilidade de um "descolamento': A história não tem "um" sentido, mas
"0" sentido. O sentido de uma história é, portanto, ao mesmo tempo, objetivo e subjetivo,
isto é, necessário e contingente.

A HISTORlCIDADE COLETIVA
A compreensão da relação que cada indivíduo entretém com sua própria história necessita de
uma análise do sistema social, no qual ele se encontra e do lugar que ele aí ocupa. O
indivíduo está sempre incluído em um campo de determinações sociais que condiciona suas
condutas e representações, e que o constitui como sujeito social-histórico. Há, portanto, uma
correspondência estreita entre a historicidade individual, pela qual o indivíduo tende a se
constituir como sujeito de sua história pessoal, e a historicidade coletiva, isto é, os processos
pelos quais uma sociedade efetua um trabalho sobre ela própria a fim de controlar suas
próprias transformações.
Touraine denomina historicidade a ação que "a sociedade exerce sobre si mesma pelo
investimento, conhecimento e representação que tem da criatividade" (1974, p. 37). É essa
ação contínua que permite explicar que as sociedades tenham uma história, na medida em
que os modelos culturais que ela produz comportam uma interpretação do devir: "a distância
entre a produção da sociedade e sua reprodução racha a pura sincronia, dá um sentido ao
tempo, obriga distinguir hoje e amanhã" (ibidem). A transformação da sociedade por si
mesma é uma ação, um trabalho que se desenvolve em um "jogo" entre a reprodução e a
produção, entre a ordem e o movimento, entre os limites que a sociedade se determina pelo
seu modelo cultural, seu tipo de acumulação, seus modelos de conhecimento, e as aberturas
que ela produz pelos seus desequilíbrios internos:

______________
10. J.-F. Lyotard, La phénomenologie, Que sais-je:, Paris: PUF, 1961, p. 100.
11. Idem, p. 118-119.
História e historicidade • 37

Toda sociedade é dominada pela ligação e pela tensão do seu ser... O sistema de ação
histórica... [é] o drama que ela coloca em jogo consigo mesma, pelo fato de a capaci-
dade simbólica do homem lhe permitir agir sobre si, trabalhar sobre o seu trabalho e
sobre o seu ser. (Idem, p. 114)

Vê-se, aqui, aparecer o elo entre a historicidade como: conceito sociológico, que designa o
conjunto dos processos pelos quais uma sociedade produz sua história; e como conceito
psicológico, que dá conta da capacidade do homem de produzir mediações simbólicas em
sua relação consigo mesmo e com o mundo.
A passagem do nível individual ao nível coletivo permite introduzir um elemento essencial
da dinâmica social que condiciona a historicidade individual:

Essa distância de si a si e esse domínio de si sobre si não podem estar separados de


uma divisão da sociedade em classes. A sociedade, como comunidade, não pode gerir
essa separação, e esse domínio de forma alguma é aquele sobre si mesmo. Daí a
oposição entre uma classe dirigente que gere a historicidade, e que também se apro-
pria dela, e uma classe popular que se defende contra essa dominação e que também
apela para a historicidade contra os interesses privados que a confiscam. (Idem, p.
37)

A historicidade é O que está mais em jogo nos antagonismos de classes: a classe dirigente
torna-se dominante na medida em que impõe seu modelo cultural e suas orientações ao
conjunto da sociedade. É dizer que ela administra a historicidade em função de seus próprios
interesses. As outras classes estão, então, em posição dominada, o que se traduz seja por
posições defensivas (nos termos de defesa de interesses particulares, em face dos efeitos da
dominação), seja por posições ofensivas contra os interesses da classe dominante.
As relações de classes são, consequentemente, relações abertas: elas não podem ser
consideradas como simples relações de interação no interior de um sistema, na medida em
que seria, então, necessário postular a existência de um Todo que regularia as relações entre
as partes; são relações de força, de poder nas quais nenhum equilíbrio "normal" é concebível.
Essa concepção dinâmica, aberta e conflituosa da historicidade, esclarece o posicionamento
de base de cada indivíduo de acordo com a sua classe de pertencimento.
Os indivíduos que "pertencem" à classe dirigente, ou que dela estão próximos, vivem uma
congruência forte entre aquilo que são como herdeiros, a função social da classe que lhes é
atribuída, e a posição ocupada no sistema de distribuição antroponômica. Sua identidade
social não é a priori conflituosa: eles participam da historicidade identificando-se ao devir da
sociedade. Eles não têm razão alguma em se dissociar daquilo que diz respeito à produção e
à reprodução da ordem social e daquilo que diz respeito à defesa de sua posição nessa
ordem.
Isso não ocorre da mesma maneira para aqueles que pertencem a outras classes, para os quais
há antagonismo entre seus interesses individuais e seus interesses de classe: no nível
individual, a historicidade pode levá-los a mudar de posição no sistema de classe, enquanto,
ao nível coletivo, a historicidade os conduz a transformar a relação entre as classes sociais.
Para se compreender a historicidade das trajetórias sociais, é essencial, portanto, que se
compreendam os mecanismos de produção social dos indivíduos, a maneira
38 • A neurose de classe

como o sócio-histórico está presente na história individual. Aproximamo-nos, aqui, da tese


de C. Castoriadis12:

Uma interpretação psicanalítica deveria poder dar conta daquilo que torna um
indivíduo capaz de assumir, mais ou menos, sua situação efetiva, que é, certamente,
sempre uma situação social. Só pode haver sociedade capitalista, se capitalistas e
proletários se reproduzirem cotidianamente em milhões de exemplares por meio do
funcionamento social, justo onde esse funcionamento só produzia, há apenas um
século, semifeudais ou camponeses. Processos psicogenéticos, que tornam indivíduos
capazes de assumir situações de capitalistas e de proletários, têm uma importância
decisiva, eles são uma das condições de existência do sistema capitalista.

Castoriadis prossegue:

(...) Esses processos são irredutíveis aos processos puramente sociais; ainda que
pressuponham lógica e realmente esses últimos, visto que se trata, no caso, de formar
o indivíduo como capitalista ou proletário, e não como um senhor, um prático ou um
sacerdote de Amon-Rá. Nada no psiquismo, enquanto tal, pode produzir essas
significações... o modo de ser dessas significações, como instituídas. Nem um
componente constitucional, nem uma aberração de formação e tampouco um
substituto do objeto da pulsão ou da perversidade dos pais, poderia pré-formar, em
Atenas ou em Roma, um filho a se tornar presidente da General Motors; nada pode
hoje, em Paris ou em Nova Iorque, pré-formá-lo a ser sacerdote ou Xamã, a não ser
que o tornasse psicótico e que o conteúdo do delírio psicótico estivesse utilizando
significações historicamente disponíveis.

Resgatamos essa longa citação que permite relativizar a parte individual da historicidade,
mostrando claramente que o indivíduo é, inicialmente, um produto da história social, inscrito
em uma ordem já constituída, e que essa história determina a maneira como ele vai se
posicionar como agente da historicidade.
A maioria das perspectivas psicossociológicas é criticável, sob um ponto de vista
sociológico, porque elas não integram a análise dos processos sociais que contribuem para a
produção da identidade individual. Inversamente, as abordagens sociológicas, que analisam a
estrutura dos cenários e as regularidades objetivas que condicionam as trajetórias sociais,
não dão conta da maneira como esses elementos ecoam na organização psíquica, dos
conflitos que eles engendram e das ramificações individuais para esses processos coletivos.
As tentativas de construção de uma metateoria englobando, em um conjunto, essas diferentes
abordagens parecem ser em vão, porque se trata de fenômenos que obedecem a leis de
funcionamento de naturezas diferentes. Cada uma possui uma lógica própria que convém
que se estude como tal, com métodos e conceitos apropriados, assim como suas articulações
são, igualmente, um elemento a se estudar como tal. Isso implica não se procurar submeter a
compreensão dos processos psíquicos aos mecanismos que regem os processos sociais ou
inversamente.
Entre S. Freud e P. Bourdieu, há um corte epistemológico, uma incompatibilidade radical. O
primeiro chega a conceber a sociologia como um apêndice da psicologia, porque estuda o
social por meio de sua inscrição no psiquismo: "a sociologia só pode ser uma psicologia
aplicada': escreve Freud em um texto, no fim de sua vida ([1932]1971, p. 237). O

______________
12. C. Castoriadis. L’institution imaginaire de la société. Paris: Seuil, 1975.
História e historicidade • 39

segundo vê a psicologia através da análise do campo na qual ela se exerce, isto é, como uma
moral característica da nova pequena burguesia que vê aí um meio para "se separar da força
de atração do campo social de gravitação" (Bourdieu, 1979, p. 429). Há, de parte a parte,
uma atitude imperialista que reduz artificialmente a compreensão da complexidade dos
processos psicossociológicos. Contudo, isso não invalida a pertinência de suas análises
respectivas. O problema que se coloca é, então, o de construir uma problemática que leve em
conta as aquisições da psicanálise, sobre a análise dos processos psíquicos, e da sociologia,
sobre os processos sociais, para compreendermos o seu modo de articulação. Para tanto,
convém proceder a um duplo movimento. Uma parte da análise do campo social e de suas
evoluções, de modo a situar os problemas encontrados pelos indivíduos confrontados com o
deslocamento social, para compreender em que medida o contexto social sobredetermina os
conflitos que eles vivem. O outro parte da análise das perturbações psíquicas, vividas pelos
indivíduos socialmente deslocados, ao poderem se dar conta, pela palavra, de sua própria
história.
A análise do projeto parental, elemento central do processo de constituição da identidade, vai
nos permitir ilustrar esse duplo movimento.

O PROJETO PARENTAL

Eu deveria ser Professor na Sorbomne.


Era o projeto que meu pai não pôde realizar.
Eu devia realizá-lo em seu lugar.
Tinha uma espécie de dívida em relação a ele.
R. Aron
Não seja um fracassado como o seu avô.
Michel M.
A família é o lugar privilegiado do trabalho de incorporação da história e da fabricação de
"herdeiros". A herança opera como estrutura de transmissão que situa o quadro no qual cada
filho está inscrito (de Gaulejac, 1983c). É sobre essa base que se sustenta o projeto parental,
isto é, sobre o conjunto das representações que os pais têm do futuro dos seus filhos.
Os pais têm projetos de futuro para o filho; eles desejam que ele se conforme à imagem que
nele projetam; eles lhe propõem os fins a atingir, os objetivos de vida. A noção de "projeto
parental" dá conta desses dois aspectos: de um lado, um fim a atingir; de outro, uma
projeção, ou seja, o fato de atribuir ao outro o que está em si.
Como elemento que "projeta”o filho, o projeto parental dá um impulso que condicionará sua
trajetória posterior. Como elemento de projeção no filho ele designa a perpetuação da
relação dos pais com seu próprio futuro. O projeto parental funciona, de algum modo, como
uma "correia de transmissão"dahistória.13

__________
13.A expressão é de Max Pagès que analisa o projeto parental como um projeto de poder sobre os filhos em seu artigo sobre
os sistemas sociomentais in Bulletin de Psychologie. t. XXXIV. n. 350, p. 599. Nossa proposta se une também aos trabalhos
de R. Perron quando assinala que "qualquer criança se inscreve em uma expectativa que predefine sua imagem e enquadrará
seu desenvolvimento'; in Genese de la personne, Paris: PUF. p. 34.
40 • A neurose de classe

GÊNESE SOCIOPSICOLÓGICA DO PROJETO PARENTAL


O projeto parental é a expressão do desejo dos pais para o seu filho: "Se considerarmos a
atitude dos pais com seus filhos, somos obrigados de, nela, reconhecer o renascimento e a
reprodução do seu próprio narcisismo" (S. Freud). O filho é, assim, investido do amor que os
pais sentem pelo filho imaginário que eles possuem, no mais profundo de si mesmos. Eles
identificam esse filho ideal ao filho "de carne" que produziram, projetando nele todas as
qualidades que eles desejam para o seu próprio ego. Eles o investem da missão de realizar os
desejos que não puderam, por si mesmos, satisfazer. O projeto parental é, de algum modo,
um "modelo depositado' em cada filho.
As relações pais-filhos são, portanto, estruturas de um duplo processo de identificação:
identificação dos pais com o filho imaginário que carregam em si mesmos e que apresentam
como o modelo ao qual é conveniente se aparentar; identificação do filho com seus pais,
como modelo de adulto, de "pessoas grandes" que ele busca imitar. Esse duplo movimento
situa o filho na trama geracional da história familiar, visto que ela se perpetua a cada nova
etapa: em suas relações com os filhos, os pais reatualizam o que eles viveram com seus
próprios pais, que se tornam, então, "avós': No projeto parental, reencontra-se a relação do
pai e da mãe com o desejo de seus próprios pais por eles. No trabalho clínico, aparecem
frequentemente situações nas quais o filho retoma, por conta própria, o desejo - não saturado
- que um dos avós projetou sobre sua mãe ou seu pai"14.
Esses encadeamentos do desejo não descrevem só um processo psicodinâmico. O projeto
parental é a expressão dos desejos conscientes e inconscientes dos genitores sobre sua
progenitura, mas é, também, um projeto social portador das aspirações do meio familiar e
cultural, aspirações condicionadas pelo contexto social que favorece ou impede sua
realização. Isso porque o projeto corresponde a um conjunto sociopsicológico que recobre
vários níveis:

• um nível muito arcaico e inconsciente, que remete à constituição primeira da


idealidade. No cruzamento do narcisismo primário e da busca da onipotência, o ideal
do Eu canaliza as pulsões para a busca de um absoluto;
• um nível afetivo, que leva o indivíduo a se desenvolver pela identificação e di-
ferenciação sucessivas, imitando pessoas amadas e amando aquelas que correspondem
ao modelo ideal internalizado;
• um nível ideológico, que leva o filho a retomar por sua própria conta os valores, as
normas e o etos dos personagens que lhe são apresentados como modelos de iden-
tificação, e a rejeitar aqueles que lhe são apresentados como "antimodelos";
• um nível sociológico, na medida em que se trata de ideais coletivos, de modelos de
sucesso social, de um sistema ético, que se traduzem religiosa, política e socialmente
em práticas das quais o filho é levado a participar e a aderir.

A gênese do projeto parental encontra-se, portanto, na genealogia. Ele é a expressão dos


projetos de gerações precedentes, do grupo familiar que o produziu. Trata-se, porém, de uma
expressão constantemente atualizada, na medida em que as

_____________
14. A este respeito, remeter-se aos casos apresentados por Alain de Mijolla (1981, p. 171).
História e historicidade • 41

aspirações que ela veicula devem se modificar em função de suas condições objetivas de
realização. Ora, estas dependem, ao mesmo tempo, da posição social ocupada pelos pais e da
relação que eles entretêm com essa posição: sabe-se que o nível de aspiração escolar e
profissional dos filhos é determinado pelo nível que os pais atingiram. Pais agricultores
podem desejar que seus filhos tornem-se professores do ensino fundamental ou médio,
enquanto pais professores de ensino fundamental ou médio desejam que seus filhos se
tornem professores de ensino superior. Esse esquema clássico deve ser nuançado em função
da evolução do contexto social, que produz modificações entre o status profissional e o
social, no espaço de uma geração: o status de professor de ensino fundamental ou médio
muito valorizado socialmente até a segunda guerra mundial não possui a mesma conotação
nos dias de hoje.
O ponto essencial é compreender que o projeto parental se ajusta às condições sociais de
existência com as quais os pais são confrontados, em sua própria trajetória. Ele traduz,
particularmente, suas estratégias de promoção social ou seus temores de declínio social.
Convém, portanto, referir o projeto parental não somente à situação social dos pais, na
medida em que o projeto veicula o habitus, os valores e as normas de sua classe de
pertencimento; mas também, referi-lo à sua história, ela própria produto da história familiar,
de modo a apreender a dinâmica interna e, particularmente, as contradições que atuarão no
devir do filho. O pai de Zahoua e o de François, encontrando-se em contradição entre suas
solidariedades originárias e suas aspirações de integração, para o primeiro, e de promoção
para o segundo, transmitem mensagens contraditórias.

CONTRADIÇÕES DO PROJETO PARENTAL


O projeto parental jamais é monolítico e unívoco. Ele é atravessado por uma série de
contradições, mais ou menos antagonistas, com as quais o filho se encontra confrontado.
Do lado dos pais, duas lógicas encontram-se em ação: uma que leva à reprodução e outra, à
diferenciação. Seu projeto é a expressão de temores e de desejos contraditórios: temor de que
o filho se torne como eles, temor de que ele seja diferente - desejo de que o filho se torne
como eles, desejo que ele seja diferente. De um lado, desejo de que o filho seja a
continuação de sua vida, que ele se reencontre neles, que se torne o que eles são, que faça o
que eles fizeram. Lógica da reprodução que leva à imitação, à repetição, ao conformismo. De
outro, desejo de que o filho realize todos os desejos que eles não puderam satisfazer, que
faça tudo o que eles não puderam realizar, que ele seja "alguém", isto é, torne-se outro.
Lógica da diferenciação que encoraja a singularidade, a autonomia e a oposição. Essa
contradição se reencontra no filho dividido entre, de um lado, o desejo de realizar as
promessas do ideal do Eu de seus pais e, de outro, o desejo de escapar da ilusão, da tirania
desse filho imaginário.
No projeto parental, expressa-se a maneira com que os pais procuram negociar essa dialética,
assegurando-se de que os filhos, a um só tempo, perpetuem a sua história e afirmem sua
própria individualidade. Convém, portanto, considerar o projeto parental não como um
conjunto de desejos, de ideais, de modelos com o qual o filho deve se conformar, mas sim,
como um conjunto contraditório que propõe, a um só tempo, objetivos a atingir e a evitar,
desejos ambivalentes, modelos e antimodelos.
Essa dinâmica interna do projeto é influenciada por suas modalidades de realização, que são
a expressão da posição social que os pais ocupam e da relação que com
42 • A neurose de classe

ela entretêm. O projeto parental se inscreve em um contexto que determina as identificações


possíveis e impossíveis, as condições concretas de sucesso social, as possibilidades de acesso
a certos modelos, as ideologias que estruturam os ideais pessoais... A realidade social vem
impor lógicas, rupturas, oportunidades e contradições que determinam a natureza do cenário
que o projeto propõe.
Citemos alguns arquétipos que prefiguram cenários que agem na neurose de classe. No meio
subproletário ou proletário, os filhos são, geralmente, confrontados com uma dupla
mensagem, assim como o indicamos, ao apresentarmos o caso de François. Os pais desejam
que seus filhos tenham uma vida melhor de modo a acessar uma posição social que impeça
de conhecerem a miséria e a exploração, ao mesmo tempo em que eles desejam que os filhos
permaneçam solidários ao seu meio e lutem com os explorados contra os burgueses, os ricos
e todos aqueles que se aproveitam dessa miséria. Mensagem contraditória visto que se trata,
para o filho, de se tornar burguês e de destruir todos os burgueses, já que se lhe pede mudar
de classe social ao mesmo tempo em que permanece solidário à sua classe de origem. Nesse
caso, o filho só pode se sentir culpado, por não conseguir satisfazer o projeto parental;
culpado, caso "consiga” distância social em relação aos seus pais. Essa culpa é a
contrapartida do ressentimento dos pais. Ressentimento se o filho não consegue admitir a
reprodução de sua própria miséria; ressentimento se consegue vê-lo se afastar e adquirir os
habitus e as maneiras de ser daqueles que eles invejam e detestam; ter relação com um
estrangeiro que não mais compreendem e que tampouco os compreende.15
O exemplo de Michel é significativo das contradições com as quais os filhos do meio
operário podem ser confrontados. "Quando era criança, eu era frequentemente identificado
com o meu avô paterno”. "Você é como seu avô"; "você não serve para nada, como o seu
avô"; "Você vive sujo como seu avô”; quando eu manchava minhas roupas. Mas isso era
colorido de ambivalência e o discurso podia tomar a seguinte forma: "Não seja um
fracassado como o seu avô”. De toda maneira, a imagem do avô era negativa, e o discurso
pode se resumir assim: "Você será como o seu avô, mas é necessário que você não o seja”.
Esse discurso contraditório tem em vista: conjurar um futuro percebido como inelutável;
preparar o filho para aquilo que provavelmente vai ser dissuadindo-o a se preparar e;
expressar o peso dos determinismos sociais e o desejo de escapar disso.
De um lado, ele expressa uma atitude preventiva face ao temor da repetição, de outro, uma
atitude de resignação em face da reprodução social que se impõe de geração em geração.
Outra forma de contradição, particularmente conhecida nos meios conservadores ou em
regressão, é a que existe entre o projeto dos pais e as condições concretas de sua realização.
Há um fenômeno de carga ideológica que redunda em uma defasagem entre a evolução dos
sistemas de valores, das ideias, dos habitus e a evolução das condições concretas de
existência. Quando se resgatam a moral e os valores propostos pelos avós, adaptados pelos
pais em função das condições socioeconômicas que exis-

______________
15
. Doris Lessing cita a carta de uma mulher de 45 anos, recepcionista de um dentista, tendo trabalhado como doméstica durante 20 anos
para criar dois filhos depois da morte de seu marido e que, além disso, milita no partido comunista: "Meus filhos frequentaram, todos os
dois, a escola primária e secundária, e têm muito mais conhecimento do que eu, acho. Isto me causou um complexo de inferioridade difícil
de combater". In Carnet d'Or, Paris: Abin Michel, 1980, p. 521.
História e historicidade • 43

tiam há 30 ou 40 anos, eles podem ser vividos como não pertinentes, e desadaptados pelos
filhos confrontados com a realidade social atual. Essas contradições são, particularmente,
acentuadas em famílias que passam do mundo rural para o urbano, e naquelas que se
encontram em setores em crise. É o caso das famílias de mineiros instalados no Leste e no
Norte (da França), há várias gerações, cujas tradições são postas em causa devido ao
fechamento das usinas de mineração; das famílias magrebinas cujos pais internalizaram o
sistema de valores de sua cultura de origem e cujos filhos se acham confrontados com a
cultura urbana nos subúrbios operários; das famílias burguesas tradicionalistas, cuja posição
social e fortuna não estão mais à altura de suas aspirações.
F. Muel-Dreyfus (1983) analisou com acuidade "as crises de sucessão" entre pais oriundos
das classes médias, que propõem aos seus filhos um projeto concebido no momento em que
eles próprios eram adolescentes, e filhos que vivem esse projeto como desadaptado em face
da evolução do mercado de posições.
Em cada uma dessas situações, o filho fica confrontado com a defasagem, não assumida
pelos pais, entre um sistema de aspirações e as possibilidades objetivas de realização, aos
quais esse sistema está desadaptado, como se lhe fosse demandado tornar-se o que não pode
ser, ou seja, o projeto parental se situa na articulação dos jogos do desejo entre pais e filhos,
e das estratégias sociais de adaptação dos indivíduos em lugares sociais disponíveis no
mercado da distribuição antroponômica (Bertaux, 1977).

PROJETO PATERNO - PROJETO MATERNO


Até agora, discutimos o projeto parental como se existisse um projeto único e bem definido,
almejado ao mesmo tempo pelo pai e pela mãe. Ora, o conjunto das contradições que
acabamos de descrever se refletem, igualmente, nas relações entre os pais, que podem ter
trajetórias e posições diferentes, resultando assim em projetos diferentes e, por vezes,
conflituosos. A neurose de classe pode resultar da confrontação entre dois projetos: um
materno e outro, paterno; cuja síntese torna-se um problema. Aquém da problemática
edipiana, que estrutura os jogos das identificações sucessivas, dão-se as relações entre as
famílias paterna e materna que, a cada geração, tentam assegurar a sua reprodução, através
de alianças que podem comprometê-las. As relações conjugais são atravessadas por uma
guerra entre linhagens, na qual cada um tenta assegurar a perpetuação de sua herança
familiar. É sobre os filhos que ela produz plenamente seus efeitos, entre o projeto paterno e o
materno, trata-se de saber qual vai se impor. Entre o compromisso e a oposição, a
internalização pelo filho desses dois projetos, encontra-se em jogo uma luta, seja aberta,
latente ou, seja ela mais ou menos viva, conforme o caso, mas sempre presente.
Essa luta é tanto mais problemática quando há fortes diferenças entre os dois projetos:
diferenças sociais, quando os pais não pertencem à mesma classe de origem; diferenças
ideológicas, quando valores, opiniões, opções políticas, religião e moral são dessemelhantes;
diferenças culturais, quando o nível escolar, os gostos e os habitus não são os mesmos;
diferenças econômicas, quando há defasagem entre a posse de um e do outro etc.
São as relações de dominação que, de fato, estão aí em jogo, que tendem a se perpetuar no
casal; o filho estando confrontado, pois, no jogo dos conflitos com o projeto materno e o
paterno.
Essa análise do projeto parental permite desvelar três níveis de contradições:
44 • A neurose de classe

As contradições internas ao projeto, que são a expressão das contradições vividas por cada
um dos pais e/ou pelos pais entre si. Quando não souberam ou não puderam resolver os
conflitos encontrados na relação com seu próprio projeto parental, os pais "encarregam" seus
filhos de realizá-lo. Estes são, então, investidos de uma missão de ser sucedido naquilo em
que os pais fracassaram, de reparar seus erros, de preencher suas fraquezas, de conseguir o
que deveriam ter realizado.
As contradições na relação com o projeto, que são a expressão das relações entre os pais e os
filhos e, em particular, dos conflitos edipianos. O pai e a mãe são, ao mesmo tempo, objetos
de amor e de rivalidade. O sonho projetado sobre o filho é marcado pelo desejo incestuoso e
pela interdição que o veta. Realizar o projeto é assumir o risco de responder ao desejo de um
dos pais, descartando o outro. Porém, não realizá-lo é se enclausurar em uma incapacidade
radical, em uma impotência, que impede a realização de qualquer outro projeto.
As contradições na realização do projeto, que são a expressão da defasagem ou do
antagonismo entre o ideal proposto e os meios dados ao filho para atingi-lo ou, então, entre o
conteúdo do projeto e suas condições objetivas de realização. Trata-se, particularmente, de
situações nas quais os pais propõem aos filhos modelos de condutas que não estão mais
adaptados à sociedade na qual seus filhos devem se inserir.
O jogo entre esses três níveis de contradições deve ser apreendido sob uma perspectiva
sistêmica e dinâmica. As contradições se sustentam umas sobre as outras, na medida em que
os diferentes aspectos de cada nível são influenciados (no sentido de um reforço ou de uma
atenuação) pelos outros níveis. Nesse sentido, trata-se de um sistema no qual os diferentes
elementos estão em interação uns com os outros. Na neurose de classe, esse sistema tende a
se fechar sobre si mesmo, cada aspecto reforçando os outros, operando uma repetição; o
filho acha-se confrontado com um sistema contraditório, em face do qual não consegue
encontrar saídas, nem abandonar os diferentes aspectos que o constitui, tendendo, então, a se
fechar nele, reproduzindo-o.
Em uma perspectiva dinâmica, convém compreender o projeto parental no movimento que
conduz cada indivíduo a ser, ao mesmo tempo, filho e pais. O prolongamento da expectativa
de vida leva um número, cada vez maior, de pessoas a ocupar simultaneamente, durante uma
boa parte de sua vida, essa dupla posição. O projeto evolui por causa da dinâmica
contraditória que o constitui e, também, da confrontação entre os projetos no eixo das
gerações sucessivas.
Nessas influências cruzadas, um elemento permanece, contudo, dominante: o filho que se
torna pai tende a transmitir aos seus próprios filhos, além do conteúdo manifesto do seu
projeto, a maneira como ele próprio teve êxito ou fracassou em sua busca para inventar
mediações para as contradições que o atravessam. Este é, portanto, um elemento central da
identidade herdada.
2

POSICIONAMENTO E DESLOCAMENTO

Uma das experiências mais importantes


afazer com o homem consiste em estabelecê-lo
em novas relações sociais ... Percorrer todas as
classes da sociedade posicionar-se pessoalmente
no maior número de posições sociais diferentes.
C. de Saint-Simon
O espaço de liberdade-de-movimento
não nasce de uma relativa fraqueza das
determinações estruturais, mas de sua
acumulação contraditória em um ponto,
em um determinado lugar. Por as relações
estruturais não irem todas em um mesmo sentido,
em seu ponto de encontro, emerge
algo que é da ordem da liberdade, sendo a
práxis concreta mais do que a soma de suas
determinações estruturais.
D. Bertaux

O problema do deslocamento social está fundamentalmente relacionado ao desenvolvimento


do individualismo. A possibilidade de mudar de lugar social é um fenômeno inconcebível
em sociedades de tipo holista. Segundo Louis Dumont (1983), a concepção holista considera
a sociedade como um todo ordenado, englobado por valores que implicam uma hierarquia
entre sujeitos, e privilegia a estabilidade e a complementaridade. C. Lévi-Strauss (1945)
mostrou, no que às sociedades primitivas, que os indivíduos estão ligados entre eles por
direitos e deveres, em função de sua posição na aldeia, seu parentesco, sua idade, seu sexo...
Nas relações entre si, comunicam sua posição social por meio de condutas, de uma
linguagem e por atitudes apropriadas à sua condição. Os desconhecidos devem se situar em
uma categoria e, consequentemente, interrogados sobre sua genealogia, para serem
reconhecidos. É por isso que o Branco, inclassificável, é frequentemente considerado,
quando aparece não como um homem, mas como uma fantasia. Este sistema se caracteriza
por uma ordem que fixa cada um em um lugar determinado, que organiza a priori a trajetória
de seus membros.
Em um universo desse tipo, não pode haver distância, para o indivíduo, entre a posição em
que ele se encontra e a relação subjetiva com sua posição, do mesmo modo que não pode ser
concebido um passado ou um futuro distanciados do presente. Como C. Lefort sublinha: "Se
os horizontes estão fechados, se passado e futuro não são considerados diferentes, em
princípio, porque os homens tornam impossível uma
46 • A neurose de classe

distância entre si ou uma experiência de alteridade, eles são anulados por suas alianças e seu
enraizamento social" (1978, p. 45).
Em oposição às formações sociais de tipo holista, a concepção individualista valoriza ao
extremo o devir individual, privilegia as relações contratuais entre os indivíduos, insiste nos
valores de liberdade e de igualdade, valores que implicam a possibilidade de deslocamento
social e que, segundo a expressão de L. Althusser, interpelam o indivíduo como sujeito. A
estabilidade da ordem holista que organiza a proximidade é substituída pelo movimento das
sociedades modernas que confronta o indivíduo com a possibilidade de uma distância em
relação a uma posição herdada, portanto, em relação aos conflitos de identidade quando sua
trajetória o leva a mudar de posição.
Em um romance, Paul Nizan narra A vida de Antoine Bloyé, que vindo de um meio popular,
passou para o lado dos burgueses. Ele opõe a esse deslocamento a vida do pai de A. Bloyé,
um homem preso, por toda a vida, à mesma posição:

Jean Bloyé veste-se com o uniforme dos empregados das Estradas de ferro, ele é
carteiro na estação de Orléans. É um homem pobre. Sabe que está preso a um certo
lugar no mundo, uma posição decretada para toda a vida, um lugar que ele vê de
antemão como uma cabra presa no limite de sua corda, uma posição que é pretendida
como qualquer condição do mundo, pelo acaso, pelos ricos, pelos governantes. "Por
Deus': diz sua mulher. Deus é como o acaso e os governantes. É tudo o que esmaga.
Ele sabe que lhe estão prometidos poucos títulos e propriedades e uma pequena
liderança. Ele ignora a ambição, a revolta. Ele é dócil, não é desses homens que
esperam, paciente e eternamente, uma oportunidade e uma chance que jamais virão.
Ele não faz projetos. Vive um dia após o outro, sabendo que os anos não lhe
reservam nenhuma transformação ou aventura. Ele está em um lugar, está em uma
certa situação e aí permanecerá fixo: ele vê como vivem os homens como ele, como
se desenrolam sua vida, morte e sua pobre herança, é um caminho cujo fim é visível
de longe. Muitos homens se estabeleceram, aos 20 anos, em um nível além do qual
não vão, podendo quando muito decair. Eles nascem, vivem, morrem, estrangulados
pelo trabalho: acima deles, há outros homens que sabem simplesmente que vão
morrer, porém os desvios que eles fazem para chegar à morte não são assim tão
claros e passam por encruzilhadas. Os burgueses são homens que podem mudar de
futuro e que nem sempre sabem como vai se lhes afigurar ... 1

Entre a trajetória do pai e do filho, aparece a diferença radical entre uma ordem que fixa cada
um em uma posição e aí o firma, e uma que contribui para o deslocamento de indivíduos,
cada vez mais numerosos.

ORDEM DAS POSIÇÕES E POSIÇÃO EM UMA ORDEM


Os trabalhos etnológicos, particularmente os de C. Lévi-Strauss, mostram como cada
sociedade funciona segundo uma ordem que confere a cada indivíduo e a cada grupo suas
posições e os meios de se situar uns em relação aos outros. Essa ordem de posições está
baseada na lei, "palavra fundadora definindo a ordem do mundo que foi pronunciada, um
dia, pelos deuses ou pelos grandes ancestrais, e que confere

______________
1. Paul Nizan. Antoine Bloyé, Paris: Grasset. Livre de Poche 3173, [1933]1971. p. 34-35.
Posicionamento e deslocamento • 47

sentido ao grupo e à sua ação" (Enriquez, 1985, p.196). A lei fixa limites, interditos e,
sobretudo, ordenamentos, isto é, um sistema de classificação que permite ajustar cada
indivíduo a uma posição: "Na infinita variedade do mundo, em seu brilho insuportável, na
mistura obscura que ele enuncia, a classificação escolhe as diferenças, estabiliza-as em um
corpo de teorias imutáveis e confere a cada uma sua posição, seu papel, sua possibilidade de
ser. A ordem social se constitui a partir de diferenças irredutíveis, o sexo, a idade, a vida e a
morte que fornecem pontos de referências para situar cada um e uns em relação aos outros, e
editar regras sobre o que é permitido e proibido, interior e exterior, superior e inferior.
A classificação permite diferenciação, criação de elos de reciprocidade, mas também de
dominação, distribuição de um poder, produção e repartição das riquezas, construção de uma
identidade de grupo e da identidade de cada um no grupo. A posição ocupada no clã, tribo ou
comunidade depende desse sistema de classificação e confere um status intangível,
definitivo.
Nesta ordem, não se pode conceber lacuna entre a posição ocupada e a identidade daquele
que o ocupa. Os dois são confundidos, a própria noção de indivíduo não faz sentido.
Louis Dumont (1977) mostrou a ambiguidade do termo indivíduo que designa:

1) a amostra indivisível da espécie humana, tal qual se encontra em todas as sociedades;


2) o ser moral independente, autônomo e, assim, essencialmente não social, tal qual é
encontrado, antes de tudo, em nossa ideologia moderna do homem e da sociedade.

A aparição do indivíduo como ser psicológico independente da amostra humana, como


sujeito capaz de distanciamento em relação à sua posição social, como pessoa buscando uma
autonomia em relação ao seu status em sua comunidade, é um evento considerável. Sua
emergência parece correlata ao desenvolvimento das trocas mercantis que impõe o dinheiro
como mediador das relações sociais e substitui a ordem tradicional das relações de
interesses, de concorrência e de trocas individuais. Introduzindo a abstração monetária nas
relações humanas, o capitalismo traz uma ruptura, na ordem das posições tradicionais,
submetendo-as à ordem econômica do sistema de produção e do valor de troca:

Desde o fim da Idade Média, a história da Europa e da América do Norte é a do


advento do indivíduo. É um florescimento que debutou na Itália, no Renascimento...
Durante esse período, a base econômica da sociedade ocidental sofreu mudanças
radicais que foram acompanhadas por uma transformação igual à da personalidade do
homem. [Na sociedade medieval] cada um estava preso à sua função social... salvo
raras exceções, ele devia permanecer onde nascera ... Mas, se o indivíduo não era
livre no sentido moderno do termo, ninguém também se sentia só ou isolado. Desde
seu nascimento, ocupava uma posição distinta, imutável e inconteste no mundo
social, estava enraizado em um conjunto bem estruturado. Sua vida possuía um
sentido que não questionava nenhuma posição ou ocasião. A pessoa se identificava
com o papel que tinha na sociedade; era camponês, artesão, cavaleiro, mas não um
indivíduo que chegava a ter esta ou aquela ocupação. A ordem social era entendida
como natural e, por ser uma parte definida dela, propiciava ao homem um sentimento
de segurança e pertencimento.2

______________

2
. E. Fromm. Escape for freedom. Nova York Farrar & Rinehart, 1942.
48 • A neurose de classe

Essa tese de E. Fromm junta-se aos trabalhos de P. Ariès (1975) sobre a evolução do status
da criança e da família. Ele mostra que o investimento na criança pelos pais, como sujeito
diferenciado, só se desenvolve a partir do século XVII. É, também, nesse momento que os
pais começam a se interessar pelos estudos de seus filhos, dir-se-ia hoje por sua carreira, o
que indica que a questão da personalidade se introduz nas relações familiares e,
correlativamente, que a questão da futura posição da criança na sociedade toma-se,
igualmente, uma preocupação.
A preocupação pela ordem é substituída, pouco a pouco, pela preocupação com o indivíduo:

A maior parte das sociedades valoriza, primeiramente, a ordem, portanto, a conformi-


dade de cada elemento com seu papel no conjunto; em suma, na sociedade como um
todo... Outras sociedades, como a nossa, valorizam, em primeiro lugar, o ser humano
individual... Tudo se passa como se (o primeiro tipo de sociedade) tivesse sido a
regra, com a exceção de nossa civilização moderna e de seu tipo individualista de
sociedade. (Dumont, 1977, p. 12)

Não seria necessário considerar, contudo, as sociedades de tipo holista como universos
sociais nas quais as posições ocupadas pelo indivíduo seriam totalmente determinadas pela
ordem social. A propósito da noção de pessoa na África, Louis Vincent Thomas sublinha o
caráter compósito (pluralidade de elementos esparsos de origens diversas: almas, princípios
vitais, nomes...) e autocriativo da constituição de um indivíduo:

A pessoa deve colocar tudo em jogo para inscrever sua liberdade na e por meio das
múltiplas falhas que os diferentes setores do determinismo deixam entre si.
Assim, aos diversos determinismos "inscritos" em sua natureza, acrescentam-se
aqueles que a vida social comporta, e a pessoa só pode se realizar utilizando esses
mesmos determinismos (ou suas lacunas) para criar a indeterminação.3

Essa observação a propósito das sociedades tradicionais é, também, pertinente para as


“individualistas”. É a pluralidade dos determinismos que gera a possibilidade de uma
desordem e, portanto, de uma escolha na busca que o indivíduo opera para encontrar uma
coerência naquilo que o constitui e no trabalho de ajuste às diferentes posições sociais que
pode reivindicar. Confrontado com as contradições, em sua herança e no projeto parental que
o incitam a ocupar esta elou aquela posição, a realizar esta elou aquela aspiração, encontra
nessas incoerências a possibilidade de ocupar outras posições, de realizar outras aspirações.
Se os determinismos fixam o quadro no interior do qual o indivíduo constitui sua identidade,
esse quadro não pode ser concebido como um elemento fixo e rígido, mas como uma
pluralidade de elementos polissêmicos e multipolares.
Nas sociedades modernas, essa zona de indeterminação tende a se desenvolver, o que não
significa que os determinismos sociais tradicionais não sejam mais operantes, mas que a
ordem que lhe conferia uma coerência global tende a se desestruturar. O

________________
3.J.-P. Laleye, La conception de la personne dans la pensée traditionnelle Horuba, Berna: H. Lang, 1970 apud L. V.
Thomas, L’être et le paraître”, in Fantasme et formation, Paris: Dunot, 1979.
Posicionamento e deslocamento • 49

indivíduo se encontra, então, submetido às múltiplas pressões, heterogêneas, ruidosas.


Confrontado com um universo social fragmentado, ele é levado a tentar encontrar em si uma
unidade que a ordem social não mais lhe oferece.
Essas observações somam-se aos trabalhos de G. Mendel (1983) que distingue três tipos de
indivíduo:

• o indivíduo psicofamiliar, pelo qual a psicanálise se interessa, que recobre a


personalidade formada durante a infância e no interior de uma família, tendendo a
repetir em sua vida social as relações originárias;
• o indivíduo com pertencimento (nacionais, profissionais, sociológicos, políticos,
religiosos, sexuais) que define como aquilo que permanece do antigo pertencimento
quase total do indivíduo tradicional à sua comunidade, e que se fragmentou em
pertencimentos especializados (idem, p. 12);
• e o indivíduo sem pertencimento, que surgiu com o desenvolvimento do capitalismo
nos esgarçamentos do tecido social da sociedade tradicional e que tenta assegurar um
mínimo de harmonia e de unidade interior entre os elementos contraditórios de sua
personalidade. Indivíduo em busca de identidade que procura, ao mesmo tempo, "ter a
ilusão narcísica de sua completude" (idem, p. 15) e sair de seu narcisismo, se realizar
escapando a todo pertencimento.

Pode-se recear que essa sedutora tese G. Mendel só contribua a entreter uma visão de
indivíduo tripartite, permitindo às diferentes disciplinas nela encontrar sua explicação em
uma coexistência pacífica que evita interrogar as articulações. "O indivíduo psicossocial",
para a psicanálise, "o indivíduo com pertencimento" para a sociologia e "o indivíduo sem
pertencimento" para uma psicossociologia moderna (ou para uma socioanálise). De fato, esse
"terceiro ladrão", assim como o chama G. Mendel, aparece correlativamente com o primeiro,
perturbando a própria existência do segundo. O pertencimento se dá, ao mesmo tempo, no
registro familiar e social que são indissociáveis. O não pertencimento é um efeito das
contradições sociais que produzem a individualização.
A busca narcísica e a ideologia da realização de si mesmo são efeitos do deslocamento que o
capitalismo engendra. A sociologia e a psicanálise aparecem como ferramentas de
historicidade, tendendo a preencher o distanciamento entre o sujeito e sua própria história.
Se não é mais possível aceitar uma visão unitária do indivíduo, não é tanto por ele estar em
um estado de desmantelamento entre diferentes partes de si, mas por ele, como instância
sócio-histórica, cristalizar individualmente a história de sua família, de seu grupo social, da
sociedade. Não se pode, então, opor pertencimento ao não pertencimento, na medida em que
é uma certa forma de pertencimento social que o coloca em uma situação de deslocamento,
de distanciamento, de oposição, de desadaptação, em relação aos seus pertencimentos
originários.

AS ORGANIZAÇÕES COMO “AGÊNCIAS DE POSICIONAMENTO”


Nossa sociedade se caracteriza por uma contradição central entre o desenvolvimento da
socialização e o da individualização: de um lado, uma interdependência dos homens, a
aparição de redes, cada vez mais complexas de produção, de consumo, de comunicação, de
informação, de educação, de assistência, de circulação, de assis-
50 • A neurose de classe

tencialismo etc., que organizam a vida social, modificam linguagens, habitus e códigos
territorializados e aceleram as formas mais variadas de mobilidade (geográfica, profissional,
social, econômica, cultural, ideológica etc.). De outro, uma autonomia da pessoa em relação
à sua inserção social originária, que o confronte com a necessidade de se posicionar em redes
sociais para escapar ao isolamento. Mas essas redes não são todas elas acessíveis. Elas
submetem o indivíduo a processos de seleção, de orientação, de contratação, de avaliação,
aos quais deve se sujeitar individualmente e que determinam sua admissão ou rejeição e a
posição que ele pode esperar aí ocupar. A ordem das posições é móvel e instável. Se esse
movimento permite a cada indivíduo mudar de posição (por necessidade, obrigação ou
escolha), ele se confronta com a insegurança (ele pode perder sua posição), com a
concorrência (sua posição pode lhe ser tomada; ele pode cobiçar a posição de outro), com a
desadaptação (ele pode ocupar uma posição na qual não se encontra ajustado), com a
defasagem (está em uma posição que não considera conveniente) etc. A partir do momento
em que a classificação não depende mais de uma ordem metassocial (como a estrutura de
classe do Antigo Regime no qual a ordem era "de direito divino"), torna-se possível mudar
de classe ou perder posição social.
O posicionamento ("encontrar uma situação", "ter uma boa posição", "abrir um negócio”...) é
o que está fundamentalmente em jogo do ponto de vista existencial, determinando as escolha
afetivas, profissionais, ideológicas. Mesmo quando a lógica da reprodução social continua
impondo seus efeitos, não é mais o grupo social de pertencimento que se encarrega das
alianças, da repartição do trabalho, da adesão a um sistema de valor. O indivíduo é levado a
se posicionar individualmente, nesses diferentes registros, porém sua existência é
regulamentada, regrada, condicionada, "organizada" pelas múltiplas instituições.
As organizações têm um papel cada vez mais importante nos mecanismos de distribuição
antroponômica. Atualmente, são as organizações que distribuem os indivíduos no espaço e
no tempo, inventam classificações diferenciadas, desenvolvem sistemas de
recompensas/sanções que influenciam as trajetórias individuais. As organizações tentam,
assim, substituir as regras familiares, patrimoniais e religiosas, com suas próprias regras de
ordenamento. Analisamos, em outra obra, o processo de desterritorialização que certas
empresas modernas desenvolvem e que consiste em:

Separar o indivíduo de suas origens sociais e culturais destituí-lo de sua história pes-
soal para reescrevê-la no contexto da organização, desenraizá-lo de sua terra inicial
para melhor enraizá-lo no solo da empresa, apagar suas referências originais para lhe
fornecer outras. (Pagès, Bonetti, Gaulejac, 1987, p. 130)

Nem todas as organizações levaram tão longe seu domínio, mas seu desenvolvimento é tal
que impuseram seu modo de classificação na definição das posições sociais: quadros médios,
operários (profissional, qualificado ou especializado), empregados, industriais e
comerciantes. As categorias socioprofissionais são definidas pela posição ocupada nas
organizações do trabalho, e se tornaram um dos indicadores essenciais para definir as
posições sociais dos indivíduos.

O MULTIPOSICIONAMENTO
Consequentemente, os indivíduos que pertencem a diferentes organizações ocupam uma
multiplicidade de posições que correspondem a status e papéis diver-
Posicionamento e deslocamento • 51

sificados. Esse multiposicionamento tem por efeito o aumento das dificuldades de


classificação; mais os códigos de referência são diversificados, heterogêneos e evolutivos,
mais aleatória toma-se a definição de posições. Seria inexato considerar os Srs. Marchais e
Krasucki como pertencentes à classe operária (mesmo que um bom número de indicadores
"objetivos" o permitisse fazer), porém seria também inexato inseri-los na burguesia ou nas
novas classes médias. As hierarquias das organizações políticas não obedecem às mesmas
regras e não produzem os mesmos efeitos que as do mundo do trabalho. Elas são, contudo,
essenciais para se apreender a posição ocupada na hierarquia social. O pertencimento
simultâneo a diferentes organizações, onde se ocupa diversas posições, confere uma
multiplicidade de status: pode-se ser liderado no lugar de trabalho, e dirigente em uma
organização sindical, política ou associativa. O operário e o agricultor que são, além disso,
vereadores, presidentes de uma associação de locatários ou de um clube de futebol, não
ocupam as mesmas posições sociais que os operários e os agricultores que não possuem
nenhum outro engajamento. Um professor universitário, que é, também, diretor de uma
coleção em uma editora, responsável por um laboratório de pesquisa, membro do comitê de
redação de uma revista, consultor junto à direção de uma empresa ou de um partido político,
não pode ser equiparado aos professores que não possuem outra atividade além do ensino. A
partir do momento em que as classificações sociais não se baseiam mais nas estruturas de
parentesco, no pertencimento religioso ou a um clã, mas essencialmente nos papéis
econômicos (como em todas as sociedades industriais), e mais precisamente em empregos,
desenvolve-se um código de referência abstrato que não permite dar conta do conjunto das
posições concretas. A possibilidade para um mesmo indivíduo de ocupar diferentes posições,
no seio de uma mesma organização ou de várias, confere-lhe uma relativa autonomia no jogo
de posicionamento e de deslocamento.
Nesse sentido, o homem das sociedades desenvolvidas não pode ser considerado
"unidimensional", segundo a expressão de H. Marcuse 4. Se cada organização à qual
pertence tende a impor seu domínio, modelando-o em função da posição que ele nela ocupa
(produzir um indivíduo conforme), só raramente ela atingirá seus fins, na medida em que, na
maioria dos casos, obtém somente uma identificação parcial. Os deslocamentos sucessivos
impostos aos indivíduos pela história social, familiar e das organizações confrontam-nos a
um permanente trabalho de ajustes.

QUESTÕES DE AJUSTE
A partir do momento em que a distribuição antroponômica não obedece mais à lógica de um
ordenamento social único, mas à influência de múltiplos ordenamentos organizacionais, cada
indivíduo é levado a se adaptar a novas situações, enquanto ele puder crer que o motor de
sua história é sua capacidade pessoal de adaptação. Se ele é levado a desenvolver suas
capacidades de deslocamento, é para responder à necessidade de mudar de posição ou de
ocupar simultaneamente diferentes posições. Pode-se interpretar a expressão necessidade de
se situar como uma consequência das defasagens, cada vez mais frequentes, entre os
diferentes status que decorrem das posições ofertadas e a identidade dos indivíduos que as
ocupam.
“A necessidade de se situar” expressa uma angústia existencial fundamental. O homem quer
saber "onde está" e "quem são os outros”. A taxinomia remete sempre

_________________
4. H. Marcuse, L’homme unidimensionnel, Paris: Minuit, 1978.
52 • A neurose de classe

a certa nostalgia monística: "reduzir a inquietante diversidade fenomenal em certo número


de classes em função de um único código" (Vincent, 1978, p. 66). As classificações
administrativas, jurídicas, institucionais, informáticas, são o sinal da ordem disciplinar
estabelecida, do século XVIII ao XX, para vincular os indivíduos às posições, de modo a
torná-los "dóceis e úteis": "Vigilância, exercícios, manobras, anotações, ordens e posições,
classificações, exames, registros, toda um maneira de sujeitar os corpos, de dominar as
multiplicidades humanas e manipular suas forças" (Foucault, 1975, p. 328). Mas essas
classificações não seriam tão operantes, se elas não satisfizessem necessidades de proteção e
de segurança provocadas pelo deslocamento. À liberdade do movimento social, que se
desenvolve a partir do século XVIII, corresponde, de um lado, uma ordem disciplinar
visando o esquadrinhamento do espaço, o controle do emprego do tempo, de modo a ajustar
os indivíduos às suas posições; e, de outro, um novo perfil psicológico de indivíduos
confrontados com a mobilidade social.
A novidade reside na capacidade/necessidade de ocupar várias posições, seja no curso de sua
trajetória socioprofissional (na diacronia) ou em um dado momento de sua vida (na
sincronia). A essa pluralidade de posição corresponde uma identidade multidimensional
constituída de múltiplas e diferenciadas identificações, de diversificados papéis, de
heterogêneos pertencimentos (sociais, institucionais, culturais, simbólicos), de habitus
variáveis.
O habitus como sistema de disposição coerente e homogêneo estruturado pela posição de
classe, tal como o entende P. Bourdieu, é cada vez mais questionado na medida em que há o
aumento da mobilidade estrutural. Os indivíduos que ocupam posições diferenciadas são
atravessados por conflitos de habitus, que podem se traduzir seja por uma tentativa de
reproduzir os habitus antigos em situações novas, que é a tese de Bourdieu, seja pela
aprendizagem da ambivalência, pela busca de diferentes mediações, pela invenção de novas
práticas, que é o que R. Barbier 5 chama de dissidência: "Há dissidência quando o instituinte
no habitus faz rachar a estrutura deste para a sua metamorfose". Se não seguimos Barbier
quando ele tende a idealizar o instituinte e a dissidência, como elementos a priori positivos
de mudança social, aproximamo-nos dele em sua preocupação de enfatizar o caráter dialético
do habitus, como sistema de disposição, ao mesmo tempo, estruturante e desestruturante. A
multiplicidade dos posicionamentos conduz o indivíduo a incorporar habitus diversificados
e, às vezes, contraditórios. Por exemplo, os engenheiros atomistas que também são
ecologistas, nos sindicalistas, nos policiais-educadores, nos operários vereadores etc., mas,
sobretudo, em todos aqueles que mudam de classe social ou de cultura e são levados a buscar
sínteses, a inventar mediações, a produzir novos cenários de vida. Nesse sentido, eles são
agentes de historicidade, no trabalho que eles operam para se ajustar às contradições de sua
história (na diacronia) e às diferentes posições que eles ocupam (na sincronia).
Enquanto P. Bourdieu descreve o sistema social estando submetido a uma lógica dominante
de reprodução da dominação social, parece-nos que o deslocamento se inscreve em uma
dialética da reprodução e da mudança. Se a análise da distribuição antroponômica mostra
que o posicionamento dos indivíduos não se dá ao acaso, e permanece estruturalmente
dominado por determinismos sociais, uma análise mais

_________________
5. M. Foucault, Surveiller et punir, NRF, Paris: Gallimard, 1975, p. 328.
Posicionamento e deslocamento • 53

apurada das trajetórias "deslocadas" mostra que a defasagem, entre as posições objetivas e as
subjetivas que esses deslocamentos produzem, introduz uma distância entre a posição e a
relação com a posição. É nesse distanciamento que o indivíduo é levado a fazer um trabalho
de ajuste/desajuste, de desterritorialização/reterritorialização, de
identificação/desidentificação, de idealização/desidealização; tantos processos dialéticos
pelos quais ele tenta se (re)produzir e se (re)situar, transformando-se. É, igualmente, nessa
defasagem entre posição social e posição subjetiva que aparece a fantasia do romance
familiar, isto é, a possibilidade de imaginar que se é de outro lugar porque se veio de alhures
e, consequentemente, pode-se ir a algum outro lugar além do lugar onde se está. É
justamente por os indivíduos estarem socialmente confrontados com a possibilidade do
deslocamento, que este opera como processo psíquico permitindo se imaginar em um
alhures, distinto e diferente.

DISTÂNCIA SOCIAL, CONFLITOS RELACIONAIS E


CONFLITOS DE IDENTIDADE
Os efeitos do deslocamento social são facilmente identificáveis quando se traduzem em
conflitos relacionais. A literatura e o cinema desenvolveram, com frequência, o tema das
amizades de guerra ou de escola, que se rompem no dia em que cada um "retoma à sua
posição': Eles ilustram a hipótese segundo a qual as relações afetivas são condicionadas pela
relação social que as sustentam e que há uma correlação entre proximidade afetiva/social,
distância afetiva/social. Não se trata, contudo, de uma causalidade linear e mecanicista, a
proximidade social podendo, igualmente, significar distância afetiva e, inversamente, a
distância social podendo recobrir uma proximidade afetiva.
A influência da distância social sobre as relações afetivas aparece em situações de crianças
adotadas por famílias de um meio social diferente de sua família biológica; de casais em que
os cônjuges possuem trajetórias sociais antinômicas; de famílias em que as crianças mudam
de classe social.

AS CRIANÇAS ADOTADAS
Em uma pesquisa sobre a “assistência social à infância”, analisamos os elos entre as relações
sociais e as afetivas no sistema de relação criança adotada/família de adoção/família de
origem/trabalhadores sociais.
O novo status das famílias de adoção se traduziu por uma revalorização profissional,
econômica e social da função de Assistente Materna. Essa passagem de “baba” ou
“empregada” para “assistente materna” teve como efeito o aumento da distância social entre
os pais adotivos e as famílias de origem das crianças. Em nossa pesquisa, analisamos a
contradição entre uma intenção declarada, no sentido de reforçar os elos entre a criança
adotada e sua família de origem, e um dispositivo que tendia a aumentar a distância social
entre eles:
Uma certa solidariedade de classe podia existir entre as famílias de adoção e as de
origem (que nós não idealizamos, ao conhecermos bem as diferenças existentes entre
o proletariado e o subproletariado). Ela se dava sociologicamente a favor da criança,
mesmo se os conflitos psicológicos fossem importantes (em termos de “se disputar a
criança”) e, mesmo, que se a política do serviço consistisse em distanciar as duas
famílias.
54 • A neurose de classe

Essa solidariedade agora se dá, principalmente, entre os trabalhadores sociais e as


famílias de adoção. A distância sociológica cresce entre a criança e sua família no
momento em que se desenvolvem um discurso psicopedagógico e uma política de
serviços que tende a assistir, de mais em mais, as famílias biológicas. Essa passagem
da solidariedade social à assistência social é a consequência mais significativa do
novo status das relações entre as famílias. As relações, notadamente entre a criança e
suas duas mães, são condicionadas pela questão da distância social entre as duas
famílias. Se a defasagem social é pouco importante, o desejo da babá de destituir a
verdadeira mãe se dá principalmente no nível psicológico, porque a competição é
tanto mais forte quanto a distância social é fraca: a criança que toma os adultos que a
educam como figuras de identificação não terá problema sociológico para passar de
uma figura a outra, de sua babá à sua mãe, se elas possuem a mesma linguagem, o
mesmo jeito de se vestir, a mesma cultura... Contrariamente, esse desejo de destituir a
verdadeira mãe, quando a defasagem social é importante, realiza-se "naturalmente"
para a assistente materna, se ela habita uma casa confortável com um jardim (em
oposição a um quarto de empregada ou uma habitação popular), se sua linguagem é
adaptada à da escola, se a higiene, a propriedade, a vestimenta são conformes à ética
burguesa. Nesse caso, o "retorno" da criança ao seu meio de origem traz problemas
de tal maneira que seu desejo a leva, sobretudo, a permanecer junto dessa "mãe" de
adoção e esta terá menos necessidade de se fazer "pesar" no nível psicológico para
assegurar a afeição da criança. A afeição sociológica permite a sustentação da
afetiva. Inversamente, se as famílias biológicas renunciam, em um dado momento, a
visitar seus filhos, é porque sentem essa distância se acentuar entre o que elas são so-
cialmente e o que se torna essa criança que, cada vez menos, é “a sua” Em resumo,
damo-nos conta de que é no momento em que a distância social objetiva cresce entre
as famílias de adoção e as biológicas, que aparece um discurso sobre a necessidade
de encorajar e restabelecer os elos entre elas.6
As entrevistas com crianças adotadas, quando adultas, confirmam a importância do que
esteve em jogo, para elas, quanto à defasagem social entre suas duas famílias, quando uma
estava marcada por referências e habitus do proletariado ou do subproletariado e a outra, por
aqueles da pequena burguesia.

AS RELAÇÕES CONJUGAIS
A abordagem estatística mostra que as defasagens em termos de status social entre os
cônjuges não são frequentes, nem muito importantes. Assim, a maior parte das mulheres
desposam homens socialmente próximos da posição que seu próprio pai ocupa. Assim como
o sublinha Alam Girard:
A liberdade do indivíduo ou, ainda, sua margem de liberdade em seus processos mais
íntimos e pessoais, permanece limitada por todos os lados, hoje e sempre, a uma
estreita rede de probabilidades e determinismos que tornam mais difícil escolher do
que encontrar um cônjuge que lhe seja tão próximo quanto possível. 7

____________________

6.M. Bonetti, J. Fraisse, V. de Gaulejac, "De l'assistance publique aux assistances maternelles”, Cahiers de Germinai, Paris.
1980, p. 81 e ss.
7. A. Girard, artigo "Sociologie du mariage”, Encyclopedia Universalis, Paris, 1974. Ver também C. Thélot (l982),
principalmente o capítulo 8, as alianças. p. 179 e ss.
Posicionamento e deslocamento • 55

Se, portanto, as probabilidades e os condicionamentos levam a grande maioria dos cônjuges


a se escolher em uma proximidade social, a maioria dos casais se baseia em uma homologia
entre as trajetórias do marido e da mulher (que seja em descensão, em estabilidade ou em
promoção); é interessante analisar os efeitos das trajetórias cruzadas: mulheres em
promoção/homens em descensão; mulheres em descensão/homens em promoção.
Constatamos, então, que essas defasagens estão no fundamento do desentendimento conjugal
ou dos conflitos que podem tomar formas diversas para os homens e para as mulheres. 8
Para os homens, o casamento com uma mulher, cujo status é inferior à posição social
adquirida, reduz os efeitos da promoção ou amplia a regressão. Inversamente, as mulheres
encontram, através do casamento, uma ampliação de sua promoção pessoal ou uma
atenuação de sua eventual regressão. No caso em que as origens sociais dos cônjuges sejam
muito opostas e suas posições subjetivas arrisquem ser antinômicas: um se esforça para não
descer ao nível de um status do qual o outro tenta se libertar. Aquele que está em regressão
se esforçará para valorizar suas origens, enquanto o outro se apoiará no sucesso profissional
para fazer esquecer as suas. É assim que as diferenças sociais podem entreter a guerra
conjugal. Aquele que está em promoção reprova no outro não ser mais o que ele está se
tomando, ainda que permaneça em dívida com relação à sua promoção, enquanto aquele que
está em regressão pode reprovar o outro pela acusação de ter se servido dele para se tomar o
que ele próprio não é mais, ainda que essa mesma promoção lhe permita conter sua própria
descensão. Um nó de relações complexas e imbricadas, essas situações possuem a
humilhação, o ressentimento, a amargura, o ciúme e a culpa.
As rupturas nas trajetórias profissionais (desemprego, demissões, rendimentos, acidentes de
trabalho...) engendram situações desse tipo, mais conflituosas à medida que o homem está
em regressão; o declínio sendo, social e psicologicamente, menos aceito para os homens que
para as mulheres. Entretanto, se o homem em regressão conserva um status profissional
superior ao de sua mulher, malgrado a promoção desta, as relações do casal não sofrem
transformação radical. O problema se apresenta quando o sucesso profissional da mulher é
tal que o homem pode vir a ser, aos seus olhos, um fracassado e viver a situação como uma
humilhação, um questionamento de seu poder "viril". Isso ocorre de outro modo quando é a
mulher que se encontra em regressão e o marido, em promoção. O caso mais conhecido é o
de herdeiros da burguesia ou da aristocracia decadentes, que desposam jovens diplomados
dos quais se espera saberem honrar o brasão familiar. Se o marido satisfaz essas esperanças e
permite diminuir a defasagem entre a posição objetiva e a esperada, a dinâmica social
consolidará o entendimento conjugal. Caso contrário, o ressentimento, o despeito e a culpa
podem atravessar as relações do casal, e resultar senão em uma separação de corpos, ao
menos em um distanciamento afetivo.
Esses diferentes exemplos ilustram a hipótese segunda a qual a proximidade social favorece
as reaproximações afetivas, enquanto a distância perturba os elos afetivos. Nos grupos de
implicação e de pesquisa que dirigimos sob o tema "Romances

______________
8.M. Bonetti, "Trajectoire sociale et strayégies matrimoniales·, in Le groupe familial, revista da Escola de Pais e
Educadores, n. 96, julho de 1982.
56 • A neurose de classe

amorosos e trajetória social” 9, constamos que um certo número de rupturas afetivas era
produzido por trajetórias apartadas; a guerra conjugal sendo uma das formas de expressão
dos antagonismos sociais.

AS RELAÇÕES PAIS/FILHOS
As relações familiares são, igualmente, relações sociais. A promoção de uns, o declínio de
outros condicionam as relações que se estabelecem entre as diferentes linhagens, entre
irmãos e irmãs, entre pais e filhos. Constata-se que o declínio de um ramo da família se
acompanha, frequentemente, de um distanciamento progressivo dos outros ramos. Certas
famílias burguesas chegam mesmo ao esquecimento dos que têm declínio patente. A
passagem da classe operária para as classes médias resulta, geralmente, em uma ruptura na
família entre aqueles que permanecem operários e os que estão em promoção.
Os problemas colocados pelas mudanças de classe são, particularmente, visíveis entre os
filhos em forte promoção e seus pais. O filho em ascensão social é levado a utilizar outra
linguagem, a adquirir outros habitus, a integrar outro mundo, provocando uma dissonância,
ao mesmo tempo, cognitiva, existencial e social nas relações com os mais velhos. A
distância social traduza-se ela por um distanciamento progressivo ou não, reativa a
ambivalência, provocam mal-entendidos, alimenta culpa de ambas as partes.
Do lado dos pais, é o sentimento de ter que lidar com um estrangeiro que não se compreende
mais, que é, ao mesmo tempo, objeto de orgulho (porque seu sucesso é também deles) e de
vergonha (porque o que ele se tornou os confronta com a imagem do que eles não são ao
temor de não estarem à altura). O incômodo que sentem pode levá-los a tomar distâncias
desse outro que não se parece com eles.
Do lado do filho, a culpa se enraíza no sentimento de ter traído as fidelidades originárias, em
uma dissociação entre dois seres: o herdeiro produzido pelos pais que permanece marcado
por uma filiação originária; e o filho que se tornou outro, que escapou ao domínio das
primeiras identificações.
É uma ruptura de identificação que provoca a passagem de um filho para outra classe social.
Sabe-se que a identificação permite ao filho assimilar as propriedades e os atributos,
particularmente, das figuras parentais, constituir-se de acordo com os modelos que eles
propõem; processo que perdura independentemente da presença real dos pais. Nesse sentido,
a identidade é o produto do conjunto das identificações passadas. É, portanto, um processo
diacrônico, mas também, sincrônico, na medida em que a identidade jamais é fixada para
sempre: os objetos tomados como modelos são variáveis, ou seja, podem ser substituído por
outros, em um trabalho de reatualização permanente. Em função das diferentes posições
ocupadas, os modelos de identificação propostos variam, levando o indivíduo a efetuar
escolhas, sínteses, compromissos, renúncias e ajustes.
A identidade é, em um dado momento, resultante do conjunto de objetos e de pessoas
tomadas como suportes de identificação no passado e no presente. Ademais, é a
multiplicidade dessas identificações que confere ao indivíduo, ao mesmo tempo,

_______________
9.J. Fraisse e V. de Gaulejac, Grupos "Romance amoroso e trajetória social", Formação permanente, UER Ciências
Humanas Clínicas, Paris VII - 1985-1987.
Posicionamento e deslocamento • 57

sua conformidade e sua singularidade em seus diferentes grupos de pertencimento. A


evolução estrutural (da ordem das posições) e a mobilidade conjuntural (de sua posição na
estrutura social) confrontam o indivíduo deslocado com contradições entre a fidelidade às
identificações passadas e a necessidade de questioná-las para se adaptar à suas condições
atuais de existência. A identidade é o lugar de um trabalho que tenta resolver os conflitos
entre a identidade herdada - que representa o peso da história em si - e a adquirida - que se
ajusta ao habitus, aos ideais e às práticas dos grupos aos quais se pertence no presente.
Nas relações com os pais, há ruptura de identificação quando o filho abandona as figuras de
identificação dominantes com as quais seus pais se reconhecem, para adotar novas figuras
que os pais percebem como estrangeiras, por serem referências situadas fora de sua classe de
pertencimento. Essa ruptura é um processo diferente do fenômeno de contraidentificação
característica do adolescente que se opõe às figuras parentais ao procurar tomar na
contramão as referências propostas pela autoridade. Situando-se na oposição, o adolescente
permanece em seu quadro inicial de referências, visto que procura fazer o contrário daquilo
que seus pais lhe pedem. Nesse caso, o investimento dos modelos iniciais persiste, ainda que
o adolescente deseje deles se afastar. A ruptura de identificação passa pelo desinvestirnento
dos modelos internalizados que se tornam indiferentes, pelo abandono das referências
ideológicas, culturais, institucionais, que os subentendem. Trabalho de desligamento 10,
segundo a feliz expressão de Pierre Ansart, que tende a desligar os elos entre pais e filhos
que não estão mais "atados" por referências comuns e por identificações com os mesmos
objetos.
A ruptura de identificação, desencadeada pela distância social, produz diferentes efeitos
segundo a posição subjetiva dos pais e a relação entre a posição adquirida e aqueia esperada
do filho. Na medida em que o filho realiza as aspirações parentais, a distância social não
colocará obrigatoriamente em causa a proximidade afetiva. Isso pode, ao contrário, se
produzir, se o projeto parental é ele próprio contraditório, como no caso de François, a quem
o pai pede para se tornar burguês, ao mesmo tempo em que pede a destruição de todos os
burgueses.
Nesse exemplo, há de algum modo, uma cola entre os conflitos identificatórios do pai e de
François, esse último reproduzindo, em uma posição objetiva diferente, a contradição do pai.
Tornando-se burguês, François realiza um desejo paterno e, ao mesmo tempo, torna-se seu
inimigo, ele passa para o campo "dos maus". Aqui, o conflito de identificação impede o
processo de superação que permitiria a François operar uma ruptura de identificação. O
conflito de classe burguês/operário é articulado sobre um conflito edipiano em uma
problemática contraditória, onde a identidade é partilhada entre dois modelos antagonistas,
dos quais François não consegue se descartar.
Para Jacqueline Palmade, esse tipo de situação é característica dos filhos das classes mais
desfavorecidas, que vivem necessariamente um conflito entre os modelos parentais e os
sociais:

Em nosso sistema cultural... o filho de um operário especializado não pode reencon-


trar seu "Pai" (particularmente, o pai interno) nas imagens de homens, imagens por-
tadoras de potência social e de conhecimento, propostas e valorizadas pela sociedade
(à qual ele deve-se se integrar). A sociedade lhe remete explícita ou implicitamente

___________________
10. P. Ansart, "Structure socio-affective et désidentification”, in Bulletin de Psychologie, n. 360, maio-junho, 1983.
58 • A neurose de classe

uma imagem de seu pai, diminuída, desvalorizada, "castrada”... A atitude dos pais
pode corresponder frequentemente a uma injunção paradoxal, propondo ao filho
explicitamente identificar-se com os modelos sociais valorizados e implicitamente
recusar esses modelos, no que eles não são os de sua classe e que os levar a trair, no
que perturbam o desejo de identificação e de dominação dos pais sobre o filho.
(Palmade, 1981, p. 768)

A capacidade de superar esse tipo de conflito, entre os modelos sociais e os parentais,


sempre depende, segundo J. Palmade, da posição que se ocupa no sistema social:

Dependendo da posição objetiva nas relações sociais de produção e da aquisição da


herança cultural, os filhos das classes sociais, em uma relação de identificação
simbólica com o sistema cultural dominante, terão uma probabilidade maior de
poder superar as dificuldades e os conflitos inerentes da fase de latência. (Ibidem)

A distância social entre o filho em promoção e seus pais será, portanto, vivida
diferentemente, dependendo de a posição adquirida pelo filho ser valorizada pelos pais ou
ser percebida de modo ambivalente. Constata-se, particularmente, que as classes socialmente
invalidadas confrontam seus membros com uma contradição entre o desejo de mudar de
classe e o de revalorização de sua cultura, tradições e habitus. Este é um dos aspectos
essenciais que atravessa as relações familiares, quando os filhos mudam de classe social; as
diferenças dependem de a posição originária ser valorizada ou não: os agricultores, os
pequenos comerciantes ou os artesãos, que são seus próprios patrões e que possuem uma
relativa autonomia na organização de seu trabalho, são nesse aspecto menos invalidados do
que os operários ou os pequenos empregados confinados em um trabalho repetitivo de
execução. A possibilidade de valorizar o ato de trabalho (o saber-fazer) ou a comunidade de
trabalho (pelo engajamento militante) é o meio de reagir contra a invalidação de sua imagem
social, mas essas reações se verificam bem precárias quando o filho, para o qual se desejou
outro modo de vida, reativa, pela posição que ocupa as contradições vividas pelos pais na
relação com sua própria posição. Nesse sentido, o testemunho de Annie Ernaux é exemplar.

A POSIÇÃO, OU O AMOR SEPARADO


Annie Ernaux, em um livro intitulado A posição11, descreve as dificuldades relacionadas
com o deslocamento, particularmente, a distância que separa, pouco a pouco, a estudante
casada burguesamente, que ela se tomou de seus pais que eram, em sua origem, agricultores,
depois operários e, finalmente, pequenos comerciantes. Essa "laceração de classe" a leva à
escrita que lhe vem como uma reparação, como meio de preencher a distância. Annie Ernaux
escreve um "romance familiar", por oposição ao romance romanceado, uma descrição
precisa desse mundo do qual ela é oriunda e que desaparece:
Para dar conta de uma vida submetida à necessidade, não tenho o direito de, primeiro, tomar
partido da arte, nem de procurar fazer alguma coisa "apaixonante”,ou "emocional-

_________________
11. A. Ernaux, La place, NRF, Paris: Gallimard, 1984. As indicações seguintes virão somente com a indicação da página.
Posicionamento e deslocamento • 59

mente” Juntarei palavras, gestos, gostos de meu pai, fatos marcantes de sua vida; todos os
sinais objetivos de uma existência que eu também compartilhei. (p. 24)
Assim, ela descreve a lenta ascensão de seu pai, que se toma ajudante de fazenda até a guerra
de 1914-18, depois operário em uma fábrica onde ele encontrou sua mulher, operária como
ele. Após um acidente, eles decidem economizar para obter um fundo de comércio para abrir
uma café-mercearia, em um bairro operário e, depois, em um bairro menos popular. Vida de
trabalho de um pai que margeia a miséria sem nela cair, que utiliza cada oportunidade da
existência e, particularmente as duas guerras, para "ganhar um lugar ao sol", para subir na
escala de modo a passar da condição de vaqueiro ajudante à de operário, depois a de
operário-comerciante, em seguida a de comerciante por conta própria: "ele não bebia, ele
procurava manter sua posição. Parecer mais um comerciante do que operário" (p. 45).
E, sob esse sucesso aparente, Annie Ernaux nos descreve "a crispação da facilidade obtida na
marra" (p. 58), isto é, o incessante trabalho, "nem mesmo um minuto para ir a poucos
lugares", a necessidade de economizar em cada coisa, e talvez, sobretudo, o medo de estar
deslocado, de ter vergonha... "leitmotiv, não se deve peitar mais alto do que se pode" (p. 59),
a obsessão da aparência... "o que vão pensar de nós?" (p. 61).
Ela narra longamente as características desse meio intermediário entre a classe operária e a
pequena burguesia: a ausência de opinião e a polidez obsessiva para não chocar ou correr o
risco de ser criticado, o conformismo que leva a parecer na tentativa de se passar
despercebido, a calcar sua conduta no "que deve ser feito", no medo constante de fazer "o
que não deve". "Manter sua posição", para os pais de Annie Ernaux, é se colar a um modelo,
que representa "o que é bem", "o que se faz". Intemalização de um sistema de valor de gente
"bem-educada", isto é, desses que não são agricultores, nem operários, mas com quem se
pode conviver: é ao pintor ou ao marceneiro que se pergunta "o que se faz" quanto às cores e
formas. O importante é não ter cara de gente da roça ("sair do campo"), ou de operário; "os
estudos são um sofrimento obrigatório para obter uma boa situação e não se casar com um
operário" (idem, p. 80).
Quando apresenta, a seus pais, ''um estudante de Ciência Política" que vai se tomar seu
marido, ela observa:

Bastava que este fosse bem-educado, era a qualidade que meus pais mais apreciavam,
ela lhes parecia uma difícil conquista. Eles não procuraram saber, como o teriam
feito se fosse um operário, se era corajoso e se bebia. Convicção profunda que o
saber e as boas maneiras eram a marca de um excelente interior inato. (p. 94)

Esse encontro vai fazer, definitivamente, Annie Ernaux pender para "essa metade do mundo
no qual o outro é apenas decorativo" (p. 96), ainda que permanecendo inteiramente
atravessada por essa defasagem; divisão irredutível que atravessará, também, a sua vida de
casal. Ela vai sozinha à casa dos pais,

calando as verdadeiras razões da indiferença do genro, razões indizíveis, entre ele e


mim, e que admiti como algo evidente. Como um homem nascido na burguesia, com
diplomas, constantemente "irônico", teria desfrutado da companhia da brava
gente,
60 • A neurose de classe

cuja gentileza, reconhecida por ele, jamais compensaria aos seus olhos essa falta
essencial: uma conversa espirituosa. (p. 96)

As palavras são, para Annie Ernaux, o meio de encontrar uma mediação entre sua posição
originária, como filha de seus pais - "agora digo, frequentemente, 'nós' agora, porque por
longo tempo pensei desse modo e não sei quando cessei de fazê-lo" (p. 61) - e sua posição
adquirida, como intelectual burguesa. Ela se descreve como "dividida" entre, de um lado, o
amor de seus pais, a solidariedade a esse meio de onde ela é oriunda, de outro, o desprezo
dos pequeno-burgueses que a alta burguesia mantém a distância crítica e o "irônico" dos
intelectuais em relação ao mundo, às coisas e às pessoas.
"Arrisco uma explicação: escrever é o último recurso quando traímos". Essa frase de Jean
Genet que Annie Ernaux coloca em exergo, propõe uma chave quanto ao status desse livro
no trabalho que lhe é necessário realizar para gerir seu deslocamento/reclassificação:
distanciar-se pelo preenchimento dessa distância, reparar uma traição para se sentir melhor
em sua posição, endossar uma ruptura pela afirmação de sua aliança originária.

Via estreita, escrevendo, entre a reabilitação de um modo de vida considerado


inferior e a denúncia da alienação que a acompanha. Porque esses modos de viver
eram, para nós, uma felicidade mesmo, mas também barreiras humilhantes de nossa
condição C consciência de que "não se está suficientemente bem em casa"), eu queria
falar, ao mesmo tempo, sobre a felicidade e a alienação. Impressão, sobretudo, de
titubear de um lado ao outro dessa contradição. (p. 55)

Começa, então, para ela, uma autoanálise, um trabalho sobre ela própria, cuja descrição
lúcida permite identificar diferentes processos em curso.

COMPONENTES DA GESTÃO DO DESLOCAMENTO

Luta contra a humilhação


Seus pais têm medo de jamais conseguir ser "como é preciso", de não estar à altura da
condição à qual eles aspiram; medo que os leva a ter vergonha daquilo que eles são. A filha
participa, igualmente, dessa vergonha originária e assume uma posição que a leva a partilhar
o desprezo de classe que caracteriza a relação entre as classes dominantes e as outras.

O deciframento desses detalhes se impõe para mim, agora, com tanta necessidade por
tê-los recalcado certa de sua insignificância. Somente uma memória humilhada teria
podido me fazer conservá-los. Rendi-me ao desejo do mundo, em que vivo, que se
esforça para fazê-lo esquecer as lembranças do mundo de baixo como se fosse algo
de mau gosto. (p. 72)

Essa humilhação é exacerbada quando Annie Ernaux deve "mostrar" sua família ao seu
futuro marido ou às suas amigas estudantes, confrontando uns à sua "superioridade" e outros
à sua "inferioridade", à existência de dois mundos separados pela distância de classe que
transparece qualquer que seja a vontade das partes de atenuar os efeitos.
Posicionamento e deslocamento • 61

Quando a família de uma de minhas amigas me recebia, eu era admitida para


compartilhar de modo natural um modo de vida que minha chegada em nada mudava.
Entrar em seu mundo que não temia nenhum olhar estranho e que me estava aberto
porque eu havia esquecido as maneiras, as ideias e os gostos do meu. Dando um
caráter de festa àquilo que, nesses meios, não era senão uma visita banal, meu pai
queria honrar minhas amigas e se fazer passar por alguém tinha traquejo. Ele
revelava, sobretudo, uma inferioridade que elas reconheciam sem querer, dizendo,
por exemplo: "bom dia senhor, como vai tu?" (p. 93)

Humilhação encoberta no pai, pela negação, quando ele lhe diz um dia, com um olhar
orgulhoso: "jamais a fiz passar vergonha" (p. 93).
Humilhação recoberta, em A. Ernaux, pelo esquecimento, renúncia de uma parte de si
mesma, que ela tem, por assim dizer, "recalcada", assim que ela se encontra em contato com
a classe dominante. A assimilação do recalque se impõe quando as mesmas palavras
designam sentimentos de vergonha ligados à sexualidade e aqueles ligados à diferenciação
social: o mau gosto, vivido como um pecado, uma tara que lhe é necessário dissimular a fim
de adquirir rapidamente "boas maneiras". Ela se sente, então, duplamente culpada: culpada
desse "mau gosto" que ela traz, assim, em si e culpada de reconhecer como "mau" esse gosto
que é o de seus pais.

Luta contra a culpa


Essa culpa se desenvolve ainda mais quando ela ecoa o sentimento de não estar jamais em
seu lugar, de estar constantemente em transição entre a posição originária onde ela não está
mais e a adquirida em que ela se sente mal: o deslocamento é marcado pela dívida e pela
traição que se atualizam, permanentemente, nas relações da filha com seus pais.
A filha, ao realizar as aspirações promocionais do projeto parental, significa-lhes a distância
que eles não percorreram, mas permanecendo em dívida em relação àquilo que se tomou.
À medida que a filha avança em seus estudos, imbricam-se distanciamento crítico (habitus
característico das classes intelectuais que podem analisar os sentimentos e as diferenças, o
que é um meio de experimentá-los, pela atenuação da carga afetiva) e sentimento de traição
quando se é levado a renegar as origens, quando mesmo a renúncia objetiva é encoberta pela
afirmação de uma solidariedade subjetiva.
É a razão pela qual a trajetória dos indivíduos em promoção é frequentemente caótica,
marcada por condutas de fracasso, movimentos, mudanças de orientação e um profundo
sentimento de ilegitimidade.
"Não me sentia no direito de entrar na universidade" (p. 86), diz Annie Ernaux, no momento
em que ela confronta sua juventude e liberdade à velhice difícil de seus pais, como se seu
sucesso devesse ser paga com a vida de seu pai, e como se a dívida contraída com eles fosse
tão mais pesada quanto maior se tornasse seu sucesso.

A ambivalência
O trabalho de escrita de Annie Ernaux consiste, particularmente, em decifrar a ambivalência
subentendida nas relações com seus pais, na medida em que realiza sua ascensão social.
62 • A neurose de classe

Para os pais, a ambivalência entre o desejo de que o filho se tome "melhor do que eles" e o
medo de que ele lhes escape, que se tome um estrangeiro, que, realizando esse desejo, lhes
devolva uma imagem desvalorizada de si mesmos.
Para o filho, ambivalência entre o desejo de realizar as aspirações parentais, desejo que ele
retoma por sua conta em seu desejo de conseguir, e o sentimento de distância, de
estrangeiridade, de dissonância que invade, pouco a pouco, a relação com seus pais.

Meu pai entrou na categoria de "gente simples" ou "modesta” ou “brava gente”. Ele
não ousava mais me contar histórias de sua infância”. Eu não lhe falava mais dos
meus estudos... eles lhe seriam incompreensíveis e ele se recusava em fazer a cara de
quem se interessava... E sempre o medo ou TALVEZ O DESEJO que eu não
conseguisse. (p. 80)

Ao orgulho do pai diante do sucesso de sua filha, corresponde o sentimento de estar


obsoleto, de não mais compreendê-la, de não poder acompanhar e, portanto, o receio de não
estar "à altura". Mas também e, sobretudo, o medo de que sua filha assuma o desdém que as
classes "superiores" sentem tão facilmente por quem não pertence a elas.

O trabalho de desligamento
A ambivalência, em face da mudança de classe, desejada e temida, recobre aqui uma
contradição ainda mais forte, quanto mais à identificação entre o pai e a filha se desagrega.
"Chegar lá", para Annie Ernaux, é efetuar um trabalho de desidentificação em relação aos
seus pais, sendo o seu livro a resultante disso. Para o pai, o desejo de "que ela não chegue lá"
é o de manter a sua filha, como se o pai compreendesse implicitamente que o sucesso dela a
levasse a invalidar sua existência, a lhe devolver uma imagem desvalorizada daquilo que ele
é, provocando não somente uma distância social, mas, igualmente, uma distância afetiva
irredutível. Enquanto, para ela, trata-se de operar um "desligamento", segundo a expressão
de P. Ansart, isto é, desembaraçar-se de aspectos, propriedades e atributos parentais que lhe
serviram para constituir sua personalidade originária. A diferenciação social que ela opera se
sustenta em um trabalho de diferenciação psíquica, em relação aos modelos de identificação
que o mundo parental representa.
Sabe-se que as identificações formam uma estrutura complexa na medida em que o pai e a
mãe são, cada um, a um só tempo, objeto de amor e de rivalidade. O afastamento de Annie
Ernaux produz uma parte de desinvestimento desses objetos, que seja no domínio do amor
ou da rivalidade, as figuras parentais tomando-se de outro mundo - o da "brava gente". A
escrita, que se pretende um testemunho da permanência do amor da filha para com seu pai, é
sobretudo o produto desse trabalho de desligamento, um meio de reinvestir no plano
intelectual essa relação afetiva.
Esse trabalho de desligamento se efetua, igualmente, em relação aos habitus originários. Para
inverter o processo, descrito por P. Bourdieu trata-se, aqui, de desincorporação dos habitus:
mudar seus gostos, seus hábitos, seus modos de ser, que seja em relação aos objetos, à
cozinha, às roupas ou à linguagem. É preciso "esquecer as maneiras, as ideias e os gostos"
(p. 93) do meio parental para adquirir os da burguesia intelectual e acessar, assim, o "saber-
fazer" e "bem-estar" que caracterizam a cultura das classes dominantes.
Trabalho considerável para se chegar a diferenciar "o que é de bom gosto" do "mau gosto", o
que torna "culto" do que torna "vulgar", nos objetos de decoração,
Posicionamento e deslocamento • 63

modo de se vestir, de cozinhar, de falar, de habitar seu corpo e mais geralmente de "se
conduzir" na vida social. Questionamento radical e profundo do modo de vida e, portanto, do
modo de ser de seus pais, do sistema de disposições adquiridas durante a infância e da
herança como elemento estruturante da identidade.
O testemunho de Annie Ernaux é exemplar de uma trajetória fortemente ascensional. O pai
passa da posição de ajudante de fazenda à de operário, depois à de pequeno comerciante. A
filha toma-se professora de Letras, depois escritora e acessa, por meio do casamento, à alta
burguesia intelectual "instalada". Esse duplo sucesso - sucesso objetivo, mas igualmente,
sucesso em sua capacidade de "assimilar" os conflitos que sua ascensão implica - foi
facilitado par vários elementos:

• o crescimento econômico e os efeitos das duas guerras que permitiram a reconversão e


a ascensão de seus pais que lhe ofereceram oportunidades que eles souberam
aproveitar;
• a inclinação ascensional da trajetória parental que ela faz, de algum modo, prolongar,
na medida em que esta lhe indica a direção a seguir marcando uma coerência entre a
posição esperada e a adquirida;
• seu status de filha única que faz dela objeto exclusivo das esperanças e do inves-
timento parental;
• seu casamento, na medida em que o status do seu marido lhe permite acelerar e
consolidar seu pertencimento à burguesia intelectual. Esse caso é frequente em
mulheres, com forte promoção social, enquanto homens em forte promoção
geralmente desposam mulheres que estão em uma posição intermediária entre sua de
origem e a adquirida;
• seu investimento na escrita por meio da qual ela administra as contradições de sua
história: esse "romance familiar" tem uma dupla função psicológica (suportar e
corrigir a realidade vivida) e social (prestígio de escritora e pertencimento "ao mundo
das letras" de um lado, mas, de outro, distanciamento da "artista” que lhe permite
dizer estar sempre em um lugar diferente daquele em que se situa objetivamente). Ela
pode, assim, reconstruir sua história, desenvolvendo sua própria historicidade:
trabalho de reconhecimento e de transformação em uma busca de coerência entre o
que ela é e o que se tornou, entre sua identidade herdada e a adquirida.
3

MUDANÇA DE CLASSE E
CONFLITOS DE IDENTIDADE

O que distingue quem estudou como autodidata não é a


amplitude dos conhecimentos, mas o grau diferente de
vitalidade e autoconfiança. O fervor com que Tereza,
ao chegar a Praga, se lançou à vida foi, ao mesmo tempo,
voraz e frágil. Ela parecia temer que algum dia lhe
dissessem: "Seu lugar não é aqui! Volte para onde veio".
Milan Kundera

O deslocamento social traz consigo uma série de conflitos afetivos, ideológicos, culturais,
relacionais e políticos que se cristalizam na relação do indivíduo com seu lugar e identidade.
Aqui, identidade se define como a resultante das diferentes posições ocupadas (vertente
identidade social) e da relação subjetiva com essas posições (vertente identidade psíquica).
Essa definição remete ao duplo sentido da identificação que, por um lado, é o processo pelo
qual um sistema social permite nomear e situar cada indivíduo dentro de sua "ordem” e, por
outro, é o processo psicológico pelo qual a personalidade se constitui ao assimilar, no todo
ou em parte, propriedades, atributos e qualidades das pessoas que a rodeiam. A identidade é
o produto de um movimento duplo, interno e externo. Portanto, ela é menos um estado do
que uma construção dinâmica resultante do trabalho do indivíduo que busca se situar se
posicionar, afirmar uma singularidade e uma unidade diante de uma realidade multiforme e
heterogênea, e encontrar mediações diante das contradições intrapsíquicas, psicológicas e
sociais que o invadem. A identidade, de certa forma, fica dilacerada entre a permanência e o
contraste, entre a semelhança e a singularidade, entre a reprodução e a diferenciação, entre o
que a ancora no passado e o que a especifica no presente em uma perspectiva de futuro.
A identidade é uma noção multidimensional e contraditória. Como destaca Lévi-Strauss: "A
identidade é um tipo de portaria virtual à qual é indispensável nos dirigirmos para explicar
um certo número de coisas, mas sem jamais ter existência real" (1979, p. 322). A palavra
identidade, que traz em si a raiz "idem”, o mesmo, só faz sentido dentro de uma dialética na
qual a semelhança remeta ao dessemelhante, a singularidade à alteridade, o individual ao
coletivo, a unidade à diferenciação.
Devereux apresenta a identidade como construção ativa, produto de um processo de
diferenciação efetuado por arranjo e justaposição de elementos heterogêneos.
Os conflitos de identidade surgem quando, em meio a esses elementos, avizinham-se objetos
conflitantes sem que o indivíduo consiga encontrar mediações satisfatórias que lhes
permitam coexistir.
66 • A neurose de classe

A constituição da identidade é um processo complexo, dinâmico e conflituoso. A identidade


não é um dado primário; "ela resulta de uma montagem ao mesmo tempo planejada e fortuita
cujas possibilidades e extensão são limitadas, tanto pela natureza de 'projeto', quanto pelo
material de que se dispõe, e cujas possibilidades são exploradas com maior ou menor
sucesso"l. Nesse processo, Devereux distingue o que diz respeito à parte nuclear do
psiquismo, a personalidade idiossincrásica que recupera a ideia de "eu mesmo" e a
personalidade étnica, que "não se constitui durante os estágios pré-genitais e na época dos
objetos parciais, mas durante o estágio edipiano e na época dos objetos totais, que servem de
mediadores do ambiente social e cultural"2. Nesse sentido, os problemas de identidade têm
sempre essência psíquica, à condição de levarem em conta a atividade psíquica como aquela
que integra o social, ou seja, o mundo exterior com seus conflitos e contradições.
A psicanálise pressupõe que o fundamento da identidade está na relação do indivíduo com os
genitores ao evidenciar os processos de identificação que funcionam dentro dessa relação, no
EU submetido ao desejo do outro. “A aquisição da identidade não é uma construção linear
realizada por integrações sucessivas, mas um processo dialético da relação sujeito/objeto.
Para acontecer, é preciso efetuar a destruição dos mesmos que criaram sua existência”.3
Essa dependência originária não deve, portanto, se reduzir aos aspectos psíquicos. Essa
relação com os genitores, em primeiro lugar, é uma relação social. ''A identidade do
indivíduo só pode lhe vir de fora, ou seja, da sociedade”. (Green, 1979, p. 83). É a sociedade
que lhe impõe a identidade pelas posições que define para cada indivíduo na rede social. A
sociologia pressupõe que o fundamento da identidade esteja na relação do indivíduo com um
sistema de parentesco, com os grupos em que nasceu, as instituições e redes sociais às quais
pertence, as classes sociais que caracterizam o funcionamento social do qual participa. Mas
essa relação está marcada pela problemática familiar, ou seja, pelo modo como os genitores e
ascendentes se posicionam dentro desse conjunto de relações.
A lembrança dessas abordagens da identidade mostra que se trata de uma noção abrangente,
multidimensional, que descreve os diversos registros que constituem a personalidade do
indivíduo. Isso nos pareceu necessário para compreender a situação de quem muda de classe
social e analisar as tensões que esses deslocamentos provocam.

OS CONFLITOS LIGADOS À PROMOÇÃO


As trajetórias promocionais foram objeto de numerosos depoimentos, o que não surpreende,
na medida em que escrever é um meio, para quem vive essas trajetórias, de perceber a
promoção ao mesmo tempo em que toma consciência dos conflitos provocados por ela.
Esses depoimentos podem assumir a forma de romances mais ou menos autobiográficos
(como os de Annie Ernaux e Paul Nizan, que já citamos) ou de estudos sociológicos. Entre
estes últimos, recordamos o de F. Muel-Dreyfus sobre os

_________________
1.G. Devereux, "La renonciation à l'identité: défense contre l'anéantissement", Revue française de psychanalyse, t. XXI,
1967, n. 1, p.1l2.
2. Idem, p. 83.
3.A. Green, ''Atome de parenté et relations oedipiennes”, in L'identité, seminário dirigido por C. Lévi-Strauss, Grasset,
Paris, 1979, p. 83.
Mudança de classe e conflitos de identidade • 67

professores primários de origem camponesa, o de R. Hoggart sobre os desenraizados vindos


de classes populares, o de L. Boltanski sobre gerentes e executivos autodidatas em promoção
e o de M. Bonetti sobre homens em rápida ascensão, que permitem distinguir os conflitos e
contradições ligados à promoção social.

O ROMANCE FAMILIAR E SOCIAL DOS PROFESSORES


PRIMÁRIOS DE ORIGEM CAMPONESA

No estudo de F. Muel-Dreyfus (1983) sobre os professores vindos do meio camponês


encontramos muitos pontos em comum com a história de Annie Ernaux.
A partir de autobiografias, depoimentos, correspondência e romances, F.Muel-Dreyfus
mostra que é a história de uma linhagem que atua na "escolha” de se tornar professor
primário quando se é filho de camponês. A gestão dessa promoção social, a passagem entre
dois universos sociais radicalmente diferentes, leva esses professores a viver uma tensão
entre a identidade herdada de pais camponeses geralmente pobres e a adquirida com um
curso superior que os leva da escola primária à escola normal, depois à profissão de
professor, em geral em escolas rurais. A semelhança das problemáticas em ação permite
deduzir um certo número de constantes em seu romance familiar e social: sentimento de
culpa ligado à distância do meio de origem, sentimento de orgulho pelo sucesso obtido,
reconhecimento de uma dívida para com os ascendentes, isolamento social, sentimento de
não estar em seu lugar, nem no meio de origem nem no atual, investimento no trabalho de
escrever etc.
A escrita, para os professores, cumpre essa função de historicidade que permite estabelecer
um vínculo entre o passado e o presente, através dos conflitos que surgem.
“O trabalho literário pode surgir, portanto, como a questão de um trabalho simbólico sobre o
passado que permite, a seu modo, desenredar certas contradições do presente" (idem, p. 2); a
autobiografia é um meio de se lembrar e significar aos outros, especialmente aos próprios
filhos, que, "quando se ascendeu a uma profissão que permitiu escapar de condições
materiais compostas de insegurança, usura psíquica e excesso de trabalho, é pelo esforço dos
pais (e/ou avós) que é possível" (idem, p. 92).
O relato da vida é, ao mesmo tempo, testemunho de uma dívida contraída para com os
ascendentes e um trabalho de reconstrução da história, de reflexão sobre si, de integração
entre a identidade original e a atual.
O elemento mais conflituoso que transparece por esses múltiplos depoimentos é a relação de
"proximidade distante" que o professor saído das frações mais pobres do campesinato
mantém diante de sua classe de origem, relação permanentemente renovada pelo fato de
estar em uma escola rural, em contato com o meio camponês. Essa posição permite uma
mediação entre o reconhecimento da dívida e o distanciamento: com o trabalho educativo
junto às crianças de sua classe de origem, ele permanece próximo de todos, ao ajudar alguns
a "sair dali"; mora em uma aldeia rural, mas em uma condição social particular e diferente.
Ao permitir que outros, pelo viés da escola, tenham esperança de promoção, o professor
encontra um elemento de legitimação daquilo em que se transformou. Sabe-se que a figura
do professor sempre ressurge como elemento determinante nos relatos de trajetórias
ascendentes de filhos de operários e camponeses. A desidentificação com os próprios pais
provocada pelo deslocamento é substituída, para o professor, pela identificação com os
"bons alunos" vindos de meios populares que ele vai apoiar e proteger para que consigam
seguir o caminho que ele mesmo percorreu. Porque
68 • A neurose de classe

esse caminho é difícil: "Nem sempre é permitido esquecer o custo psicológico e social da
‘ascensão’, e a relação com o passado, que permanece vivo na família de origem e, no
presente, nas famílias que moram na aldeia ou nas fazendas vizinhas, pode ser acompanhada
por um tipo de trabalho de luto, sempre a se refazer, mesmo quando atenuado pelo orgulho
da conquista” (idem, p. 93).
Esse "trabalho de luto" recupera o trabalho psicológico e social de desligamento que a
mudança de classe exige: trabalho de desincorporação dos habitus originais e de
reincorporação de novos; trabalho de desidentificação com os modelos "depositados" na
criança pelo meio original e de reidentificação com modelos diferentes, às vezes
contraditórios; trabalho de desidealização de valores e aquisição de crenças e ideologias
novas: "Esse trabalho sobre as origens tende a integrar universos sociais e simbólicos
separados, o mundo do esforço físico, o da comunidade camponesa com seus ritmos, suas
representações do tempo, seu sistema de valores, sua divisão do trabalho entre os sexos etc.,
e o que podemos chamar de mundo dos livros, o do isolamento, do trabalho intelectual e da
solidão sem surpresa da carreira de funcionário público, descrita como 'caminho plano'''
(idem, p. 137).
Dessa separação brota uma série de contradições que invadem a existência desses
professores: de um lado, desligamento, mas de outro afirmação de uma solidariedade para
com aqueles a quem deve o que se tornou, uma dívida ligada ao sentimento de culpa por não
ser mais como eles, por compreender suas lacunas, suas carências, sua pobreza.
A característica dos professores é cumprir um destino social, na maior parte das vezes
esperado por palavras e atos dos ascendentes: eles cumprem "um destino", ou seja, aquilo a
que foram destinados pelos que os precederam. "Quando descrevem a vida cotidiana,
doméstica ou profissional dos pais, os professores encontram nela todos os sinais desse
encorajamento para serem aquilo em que efetivamente se transformaram" (idem, p. 172).
Mas na verdade essas aspirações são contraditórias: os pais desejam que o filho tenha
sucesso e adquira uma condição mais prestigiada; ao mesmo tempo, desejam que não se
torne um estranho, que não renegue sua origem. Eles desejam que se torne outro e, ao
mesmo tempo, que se mantenha igual, situando a construção da identidade bem no centro de
uma contradição entre o idêntico e a diferença.
Daí vem os relatos que descrevem, ao mesmo tempo, o isolamento social dos professores,
que se sentem constantemente "deslocados" dentro dos diferentes grupos sociais de que se
aproximam, mas que afirmam a fidelidade às tradições e a solidariedade para com a classe de
origem, que situam a própria trajetória no combate coletivo, de um meio, para melhorar as
condições de vida. A solidariedade se expressa na valorização da instrução como elemento
de progresso social, nos relatos que dão testemunho da cultura familiar original e lhe exaltam
os méritos e, com bastante frequência, em um engajamento militante “de esquerda”. Esse
engajamento, do mesmo modo que a escrita, é uma das reações possíveis ao isolamento
social.

OS AUTODIDATAS EM PROMOÇÃO
A situação é diferente para os gerentes e executivos autodidatas em promoção que constroem
a carreira em um setor em que concorrem diretamente com os herdeiros da burguesia, para
os quais, seja como for, o cargo de chefia foi adquirido no berço.
O chefe autodidata não tem os mesmos meios do professor para expressar solidariedade com
suas origens, na medida em que o trabalho de chefia o leva a "passar para o outro lado”, o
lado dos que têm o poder.
Mudança de classe e conflitos de identidade • 69

Luc Boltanski, em um capítulo intitulado "Uma patologia da promoção" (1982, p. 451-459),


expõe o resultado de uma pesquisa realizada com os leitores da revista Science et Vie, dos
quais grande parte são operários, funcionários ou técnicos que assumiram cargos de chefia
com uma “formação interna” ou com cursos noturnos.
O estudo mostra que a promoção exige investimento econômico e psicológico, uma
organização metódica da vida e uma energia que lhe seja totalmente consagrada; domínio do
tempo, autodomínio, ascetismo sexual, ausência de lazer... Esses diversos elementos
produzem uma tensão que se expressa em fragilidade psicológica, rigidez de caráter e
isolamento social.
"Por conhecer o custo elevado dos investimentos exigidos pela promoção a cargos de
comando, compreende-se que aqueles que conseguem superar a barreira tenham tendência a
superinvestir psicologicamente em sua posição e seu papel, o que contribui para torná-los
muito vulneráveis" (idem, p. 456). Essa vulnerabilidade se expressa, especificamente, em
uma "patologia da promoção” sob a forma de problemas psicológicos, depressão nervosa,
doença cardiovascular, úlcera do duodeno etc. Boltanski cita uma pesquisa da UNEDIC
(União Nacional Interprofissional pelo Emprego na Indústria e no Comércio) que mostra que
30% dos autodidatas em cargo de chefia sofrem de depressão quando desempregados, e um
estudo de J. Ruesch sobre a frequência de úlceras do estômago em indivíduos em promoção.
Ele observa de passagem que, embora os anglo-saxões tenham feito pesquisas sobre essas
questões, elas praticamente não existem na França.
Em um trabalho que fizemos com assistentes sociais da Previdência Social que acompanham
segurados em licença médica, constatamos que esses diversos sintomas eram efetivamente
mais desenvolvidos nos ocupantes de cargos de chefia em rápida promoção ameaçados em
sua posição profissional.
Sua vulnerabilidade se expressa igualmente no sentimento de insegurança diante de diversas
reestruturações, reconversões e reorganizações que estejam em andamento dentro da
empresa. Nisso Luc Boltanski vê o indicador "da tensão cotidiana que caracteriza a relação
que os profissionais de chefia em promoção mantêm com sua identidade social" (idem, p.
458).
Essa tensão se expressa em uma rigidez de comportamento, seja na relação com a linguagem
(a obsessão da “palavra certa”), seja na importância dada ao respeito devido a títulos e
posições sociais, seja na obediência às diretrizes que convém seguir “ao pé da letra”.

Dilacerados nas situações mais banais entre seguir o impulso do habitus, produto da
educação infantil, e obedecer a controles internalizados com maior ou menor intensi-
dade, adquiridos com o aprendizado de normas geralmente incertas e ambíguas, entre
a identidade original e a visada, os gerentes e executivos autodidatas são levados,
como todos aqueles para quem o universo não é óbvio, a buscar o conforto das regras
estabelecidas e formuladas. (Idem, p. 459)

A rigidez do comportamento expressa à dificuldade de distanciamento entre o indivíduo, seu


papel e sua posição social, a dificuldade de conhecer o “papel das coisas”, de brincar com as
palavras, coisa que os chefes diplomados sabem fazer com brio.
Essa solidão se exacerba especialmente diante de jovens formados cuja despreocupação
condenam e cuja tranquilidade invejam. Portanto, podem buscar cum-
70 • A neurose de classe

plicidade ou exigir respeito, atitude percebida pelos subordinados como "deslocada”. É por
manter uma relação ambígua com o próprio lugar que eles superinvestem em marcas
nominais de status, que manifestam uma vontade feroz de "repor as coisas em seu lugar" e
um respeito à ordem formal que pode se tornar obsessivo.
Embora tivesse de despender energia considerável para adquirir uma certa posição social, ele
se apega aos signos que o caracterizam e reage com veemência aos riscos de desvalorização
dessa mesma posição social. O jogo com os lugares, necessário para quem quiser fazer
carreira nas empresas em constante transformação, provoca um distanciamento constante
entre o papel atribuído ao lugar ocupado e aquele atribuído à pessoa que o ocupa. Assim
como as regras devem ser transgredidas para serem aplicadas (Pagès, Bonetti, Descendre,
Gaulejac, [1979]1999, p. 58), a relação com o lugar tem de ser suficientemente fluida e
distante para aceitar reestruturações ou mudanças rápidas de posição dentro da organização.
Embora os professores e os profissionais de relações humanas consigam, pela mediação da
escrita ou da palavra, efetuar o trabalho de distanciamento exigido pela gestão dos conflitos
engendrados pela trajetória de promoção, os autodidatas em cargo de chefia têm dificuldade
de adquirir essa fluidez que lhe é exigida para passar da condição de gerente à de diretor'. As
organizações de tipo patronal se caracterizavam por um "quadro" estável e hierarquizado
(organograma vertical), um sistema de regras de tipo disciplinar e o exercício de uma
autoridade baseada em normas explícitas. Nesse modelo, a promoção de cargo por
antiguidade ou por meio de formação interna permitia um ajuste progressivo da
personalidade ao lugar ocupado, com um sistema de seleção que avaliava a capacidade de
internalizar as normas de funcionamento e de reproduzi-las: a obediência e o respeito às
regras e à hierarquia, além de conhecimentos técnicos, eram os elementos essenciais. A
evolução das empresas rumo aos modelos de tipo gerencial e sistêmico não baseia mais a
promoção na adaptação a um quadro fixo e rígido, mas na adaptação a uma organização
móvel, na capacidade de reciclagem permanente, na capacidade de inovar dentro da técnica,
da animação do trabalho, na produção de regras de funcionamento.
A rigidez das estruturas hierárquicas, assim como das estruturas de caráter, se torna um
obstáculo ao desenvolvimento desses novos modos de organização. Os chefes autodidatas
que internalizaram os habitus próprios das empresas do tipo patronal, dos quais a rigidez é
um aspecto, se sentem, na maior parte das vezes, mal adaptados a universos móveis,
flexíveis e em reorganização permanente. Na medida em que o investimento no trabalho é,
para eles, o elemento central da identidade, sentem-se profundamente inseguros e, com
frequência, esmagados por um sistema que os deixa em uma situação paradoxal: exige-lhes
que sacrifiquem a vida pessoal e que vivam realmente como ascetas para se formar; quando,
depois de anos de esforço, chegam lá, diz-lhes que, na verdade, não têm a formação
adequada para ocupar aquela posição5.
A vulnerabilidade e a rigidez andam lado a lado com o fechamento sobre si mesmo e o
isolamento. L. Boltanski descreve o modo de vida de funcionários, técni-

__________________
4.Sobre esse trecho, é possível referir-se especificamente a L’emprise de l’organisation (op. cit.), ao artigo de M. Bancal e
V. de Gaulejac, "Condamnés à réussir” in Sociologie du travail, n. 3, 1983, e ao nosso texto "Modele patronal et modèle
managérial dans les rapports Hommes-Femmes", in Le sexe du Pouvoir, BPI, 1986.
5.O capítulo "Moi, un cadre. da obra de L. Boltanski (op. cit., p. 13), e principalmente o último capítulo, "La voiture dans la
remise" (p. 491), são absolutamente exemplares nessa questão. Pode-se dizer o mesmo do papel representado por G.
Depardieu no filme Meu tio da América, de Alain Resnais.
Mudança de classe e conflitos de identidade • 71

cos e operários especializados que querem ocupar cargos de chefia. Vida "exemplar",
completamente organizada em torno desse projeto; cursos noturnos, trabalho nos fins de
semana, pouco lazer, vida familiar reduzida ao mínimo. O candidato fica constantemente
"tenso" com a realização desse projeto ao qual tem de sacrificar o conjunto de sua existência.
Especificamente, Boltanski observa que a taxa de celibato é especialmente elevada nessa
população (32% em homens de 25 a 34 anos contra 25% na média nacional francesa de
1970).

OS HOMENS EM RÁPIDA PROMOÇÃO


Um estudo do CSTB (Centro Científico e Técnico da Construção Civil) sobre homens em
rápida promoção mostra que o isolamento se expressa igualmente na relação com a moradia:
"a rápida promoção social deixa os indivíduos em uma situação intermediária entre a classe
de origem e aquela a que pertencem [...] Gestão difícil, visto que têm de se desligar das
origens e, ao mesmo tempo, tentar integrar-se aos novos meios sociais correspondentes à
nova situação social"6.
Quando o ambiente habitacional corresponde à classe de origem, eles se veem em uma
situação de risco em relação àquilo que desejam se tornar, e o significado do ambiente é um
obstáculo à realização de seu projeto de futuro. Quando, por outro lado, buscam um bairro de
acordo com a nova situação, arriscam-se a se sentir completamente isolados e até
ameaçados, pois não dominam bem as relações sociais exigidas pela posição de chefia. Eles
buscam, portanto, residir nos espaços intermediários entre os bairros populares e os
burgueses, em geral em bairros recentes de cidades novas ou em bairros residenciais mais
afastados, universo de moradias separadas onde predomina o isolamento social. Eles reagem
"banalizando suas relações': limitando-as a relações de troca de serviços. As relações com os
outros, seja no trabalho, seja fora dele, são principalmente funcionais e defensivas: poucos
contatos afetivos, poucas amizades profissionais e pouco investimento em redes relacionais
ampliadas. O estudo do CSTB faz sobressair uma "forte resistência à integração
comunicativa” que é inversamente proporcional à distância social: quanto mais importante a
promoção, mais fracas as relações sociais intensas.
A experiência de ascensão social é solitária. Ao limitar as relações sociais, o indivíduo em
promoção tende a evitar as situações conflituosas de humilhação, de risco, que qualquer
reunião coletiva provoca naquele que pode ser levado a se situar, a afirmar seus signos de
pertencer ou não a este ou àquele grupo.
No discurso dos homens em promoção, o que domina é o mal-estar entre o desejo de
reconhecimento social jamais satisfeito e o medo sempre presente de "cair" no lugar de onde
vieram. Mas, ao contrário dos exemplos de escritores, professores primários ou educadores
que, por meio da escrita ou da profissão, tiveram meios de realizar "um trabalho sobre si" e
assumir as contradições de sua posição subjetiva, em geral os quadros autodidatas não têm
condições de fazer isso.
Pode-se pensar que o desenvolvimento extraordinário dos seminários de relações humanas
dentro das empresas poderia ser utilizado nesse sentido por alguns. Quando se conhece o
modo como costumam se realizar, pode-se temer que passem a reforçar ainda mais o
processo de negação e repressão diante dos conflitos determina-

_______________
6. M. Bonetti, "Note sur les hommes en forte promotion” CSTB, documento mimeografado, 1983.
72 • A neurose de classe

dos pela trajetória social. A dinâmica de grupo, a análise transacional, os seminários de


expressão etc. aplicados à empresa são, com mais frequência, lugares de descarga catártica e
não perlaborações que permitam uma análise aprofundada dos conflitos de identidade dos
participantes.
Seja como for, a rigidez e o isolamento dos homens em rápida promoção, tanto no trabalho
quanto na vida social, levam a maior parte deles a viver seu conflito internamente (no
interior da "intimidade familiar" e no interior da psique), o que favorece o surgimento de
sintomas psicossomáticos em consequência de uma situação contraditória vivida como
ansiogênica.

Sua promoção social parece resultar de uma identificação com o desejo (de promoção
social) dos pais e se encontra em contradição com o desejo de identificação (e
fidelidade) às imagens parentais. Na verdade, eles realizaram um projeto parental que
acarretava a separação social em relação a eles, e essa situação ansiogênica os força a
recusar, tanto no trabalho quanto em casa, todos os aspectos sociossimbólicos que
corram o risco de confirmar sua promoção-traição: a promoção era necessária, mas
só pode avançar camuflada. 7

OS DESENRAIZADOS E OS DESCLASSIFICADOS
As contradições dos indivíduos em promoção social foram igualmente analisadas por R.
Hoggart ([1957]1970) em um estudo sobre a cultura das classes populares8 que remete tanto
à etnossociologia quanto à autobiografia, sendo que o autor era da classe operária do
nordeste da Inglaterra antes de se tornar professor da Universidade de Birmingham.
Em um capítulo de A cultura do pobre, R. Hoggart analisa a dificuldade da vida de bolsistas
e autodidatas.

Entre os desenraizados, a insatisfação e a ansiedade, que não poupam nenhuma


classe, são levadas a extremos, pelo fato de eles estarem sentimentalmente separados
de sua classe de origem por qualidades que, como a vivacidade da imaginação ou o
espírito crítico, lhes provocam uma consciência ainda mais aguda e dolorosa da
ambiguidade de sua condição. Nem todos os "desclassificados para cima” são
neuróticos, mas todos conhecem a experiência de ansiedade que, para alguns, pode
levar ao desequilíbrio patológico. (Idem, p. 347)

R. Hoggart analisa a natureza e os efeitos desse desenraizamento enfrentado por todo menino
de origem popular que, graças a bolsas de estudo e com o auxílio do sistema escolar,
consegue prosseguir os estudos. Nesse caso, o conflito com o meio familiar é inevitável,
porque ele se encontra no "ponto de atrito" entre duas culturas, atrito ainda maior porque o
sucesso escolar foi suficiente apenas para separá-lo da classe de origem sem, apesar disso,
lhe permitir que ascenda realmente a outra categoria social: "Os que mais se sentem
desconfortáveis consigo mesmos são os bolsistas que mal conseguiram sair da classe de
origem, sem obter qualificação suficiente para integrar-se ao grupo dos [intelectuais] ou se
misturar aos profissionais liberais" (idem, p. 349).

_____________
7. Cf. pesquisa CSTB, "Changement de travail et relations à l’habiter” documento mimeografado, 1982.
8. Ver, especificamente, o capítulo 10, "Déracinés et déclassés".
Mudança de classe e conflitos de identidade • 73

Toda trajetória de promoção fica marcada pelo rompimento entre o indivíduo e a família,
assumindo formas diversas. A criança é estigmatizada no seu meio, tanto pelas observações
elogiosas e o orgulho de que é objeto pelo sucesso escolar quanto pela desconfiança e pela
condescendência provocadas pelo trabalho intelectual: ''As pessoas do povo sempre
subentendem que 'saber se virar' segundo as normas tradicionais talvez seja mais difícil do
que 'ter boas notas na escola’” (idem, p. 350).
Para ter sucesso, o bolsista precisa romper com o "etos do lar" da família, com os valores
comunitários das classes populares. Para se adaptar aos habitus escolares, tem de se abstrair
mentalmente do ambiente de origem e resistir, portanto, ao que constitui a qualidade
principal de seu meio, a intensidade das trocas familiares e o ambiente caloroso do
parentesco. Seja na família, seja no bairro junto aos camaradas da "turma”, o bolsista "vive
bem cedo, portanto, a solidão e o fechamento sobre si mesmo" (idem, p. 351).
Cada vez menos compreendido no lar, geralmente mal aceito na escola, ele se vê dilacerado
entre dois mundos que não têm quase nada em comum: "Na escola secundária, logo aprende
a utilizar dois sotaques, talvez mesmo a compor dois personagens e a obedecer,
alternativamente, a dois códigos culturais" (idem, p. 352). Essa divisão o deixa pouco à
vontade nos dois mundos de que participa. De um lado, perde a espontaneidade, a
despreocupação de moleque, a insolência e o humor, sem, contudo adquirir a segurança e a
autoconfiança dos jovens burgueses.
Ele enfrenta constantemente a humilhação ligada à pobreza, ao "estigma das vestimentas
baratas, das excursões escolares às quais teve de renunciar por não ter dinheiro e, sobretudo,
da entrada ostensiva dos pais endomingados no salão de festas no dia da distribuição dos
prêmios" (idem, p. 353).
Para ter sucesso, apesar dessas diversas dificuldades, o bolsista fica obcecado com a ideia
fixa de ter bons resultados, de ser bem visto pelos professores sem, no entanto, se destacar.
a investimento no trabalho escolar se traduz em identificação formal com o papel de "bom
aluno" que consagra toda a sua energia para passar nas provas, que respondendo passiva e
conscienciosamente às exigências da escola. "a bolsista perde aos poucos toda a
espontaneidade para criar para si C ..) uma personalidade intelectual que lhe permita passar
nas provas sem falta. Ele se torna incapaz de zombar do que ou de quem quer que seja. Está
a caminho de se tornar um bom funcionário, sério e zeloso, desprovido de incongruências ou
de entusiasmo" (p. 354).
Produto rematado do sistema escolar vê-se, portanto, indefeso quando precisa enfrentar outro
mundo. Exceto para também se tornar agente da educação nacional, como bom número de
professores primários e universitários, ele não tem os meios necessários para enfrentar o
mundo da competição, no qual as recompensas não vão obrigatoriamente para os que mais
trabalham o sucesso não está ligado a concursos e exames e há a introdução de outros
critérios, como sorte, dinamismo, trabalho coletivo e relações sociais. Diante do universo
narcísico e competitivo da empresa privada, o bolsista, portanto, fica paralisado: "Ele nunca
se decide a aceitar os critérios dessa nova forma de competição para, custe o que custar, criar
para si um lugar ao sol (sem, contraditoriamente, deixar de sentir a amargura da derrota,
porque os anos de humilhação lhe ensinaram a importância do dinheiro)" (idem, p. 356).
Ele fica dividido entre o orgulho e a ausência de autoconfiança, o fascínio do próprio sucesso
e o medo da queda, o desejo de progredir, de subir sempre mais e a culpa de não mais se
solidarizar com seus apegos de classe.
74 • A neurose de classe

Na descrição dos efeitos do desenraizamento para ascender, R. Hoggart insiste


principalmente na descrição do autodidata envergonhado de sua origem que tende a “olhar
de cima” as atitudes e maneiras populares:

Ele se sente pouco à vontade, às vezes até agressivo, quando percebe que sua
mímica, sua postura e mil características de seu sotaque ou de seus modos o "traem"
o tempo todo. De repente, ele projeta sobre seu grupo de origem o sentimento da
própria imperfeição e se entrincheira por trás de todo um sistema de atitudes
defensivas. (Idem, p. 358)

É assim que ele vai anunciar aos operários sua falta de destreza manual, como se isso
permitisse afirmar, ipso facto, a superioridade intelectual. É ainda a tentativa de se mostrar
familiarizado com o povo quando se comporta como "um deles”, embora toda a sua atitude
consista em superinvestir nos sinais de que pertence à burguesia. Ele guarda a saudade de
seu meio de origem, cuja cordialidade, simplicidade e generosidade tende a idealizar, e
rejeita, ao mesmo tempo, a incultura e a "vulgaridade" de que é portador.
Desligado de seu meio de origem, o autodidata também o está de outros meios,
principalmente os das classes dominantes, cuja fluência, cultura e desenvoltura admiram,
mas que desdenha e rejeita profundamente. De um lado, adoraria se integrar a esse mundo,
ser reconhecido como um deles; de outro, desconfia deles e os odeia. Ao oscilar entre o
desprezo e a inveja, ele se comporta como o personagem descrito por Virginia Woolf em
Rumo ao farol: "Ele me lembra de um bolsista, um jovem imberbe extremamente brilhante e
inteligente, mas tão egoísta e complexado que ficou maluco, extravagante, amaneirado,
barulhento, pouco à vontade. Os que lhe têm apreço lamentam, os outros o acham
insuportável”.9
Para Hoggart, a tendência dos autodidatas a se tornarem insuportáveis diante dos burgueses
deve ser interpretada como desejo inconsciente de ser, por eles, rejeitado. Dividido entre um
mundo ao qual não pertence mais e outro ao qual aspira ao mesmo tempo em que o rejeita, o
autodidata é solitário, indeciso, amargo, atormentado e ansioso.

AS CRISES DE SUCESSÃO NA PEQUENA BURGUESIA


Aos exemplos de professores primários da belle époque e de autodidatas para quem o custo
psicológico da ascensão social se atenua, em parte, com a obtenção de uma posição esperada
tanto por eles quanto pelos pais, opõe-se o exemplo das novas classes médias que estão em
uma posição objetivamente pouco afastada da família de origem, mas subjetivamente muito
diferente. Aqui o deslocamento não corresponde, obrigatoriamente, a uma mudança de classe
social, mas a uma mudança no interior da mesma classe entre frações cuja ideologia, valores
e habitus estão em oposição. Portanto, ele encobre uma estratégia de recuperação para os
indivíduos ameaçados de regressão. Em todo caso, o deslocamento permite gerar uma
relação contraditória com o projeto parental, que é explicitamente recusado como
implicitamente realizado.

_______________
9. V. Woolf, A writer’s diary, Nova York: Harcourt Brace, 1953, p. 49.
Mudança de classe e conflitos de identidade • 75

É o caso de um bom número de participantes dos nossos seminários "Romance familiar e


trajetória social" - assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, animadores socioculturais -
que passam por uma problemática semelhante à dos educadores de que F. Muel- Dreyfus
(1983) fala e contam uma história familiar conflituosa cuja trama descreve oposições,
tensões, mal-entendidos e rupturas.
F. Muel- Dreyfus interpreta sua trajetória como "crise de sucessão”, na medida em que o
futuro real dos filhos não realiza aquele imaginado pelos pais e que o projeto parental é
repensado pelos filhos como futuro "impossível de viver" nos dois sentidos da palavra:
impossível de viver por ser objetivamente irrealizável e subjetivamente inaceitável.
O sistema de aspirações dos pais da pequena burguesia da década de 1960 se ajustava a um
passado prestes a desaparecer; a elevação considerável do nível de vida entre 1950 e 1970, a
expansão econômica e a democratização do ensino sustentaram uma grande coerência entre
uma ideologia de promoção (investimento na carreira profissional), as trajetórias ascendentes
e a expectativa de que os filhos seguissem o caminho assim traçado:

toda a existência do pequeno-burguês ascendente é a expectativa de um futuro que,


em geral, ele só poderá viver por procuração, por intermédio dos filhos, aos quais
transfere, por assim dizer, suas ambições. Como um tipo de projeção imaginária da
trajetória passada, o futuro "que sonha para os filhos" e no qual se projeta
desesperadamente consome seu presente. Por se dedicar a estratégias para várias
gerações [...] ele é o homem do prazer adiado, que o gozará mais tarde, “quando tiver
tempo”, "quando acabar de pagar", "quando terminar os estudos': "quando os filhos
crescerem" ou "quando se aposentar”.10

A coerência entre o contexto socioeconômico e a ideologia de promoção da pequena


burguesia começa a se desfazer nos anos 1970.
Para os filhos, a desproporção entre a satisfação e o sacrifício necessário para realizar o
projeto parental os leva a "viver o presente': a se adaptar ao mercado de diplomas e lugares
tal como é, a ajustar as aspirações às probabilidades objetivas de realização. Por volta de
1968, a concorrência se torna mais intensa, as profissões com posição de prestígio junto aos
pais (ensino, medicina, direito) começam a se desvalorizar, embora o acesso a elas continue
difícil; os diplomas não bastam mais para obter cargos profissionais importantes, a
assimilação entre carreira profissional e sucesso pessoal começa a apresentar problemas etc.
A problemática dos jovens diante da inserção social muda radicalmente: não se trata mais de
"ser levado" pelos que vêm antes, mas, ao contrário, de "não se permitir herdar" (Muel-
Dreyfus, 1983, p. 175) Para um certo número desses jovens, a militância terá função
semelhante à da escrita para os professores primários: gerenciar a tensão entre identidade
herdada e adquirida, mas em um sentido diferente. A "proximidade distante" que afirma a
fidelidade às origens é substituída pela "distância-proximidade" que afirma a oposição à
herança, principalmente ideológica, sem que, com isso, se traduza em uma mudança de
posição social. Embora a distância social objetiva entre os educadores e os pais seja fraca, a
distância subjetiva é forte. É na ideologia que se afirma a oposição: a denúncia da “estupidez
pequeno-burguesa” do engodo da

__________________
10. P. Bourdieu, "Avenir de classe et causalité du probable”, Revue française de sociologie, xv. 1974, p. 20.
76 • A neurose de classe

ascensão individual, dos "chefes jovens e dinâmicos" que representam o antimodelo por
excelência, o acesso à propriedade que obriga a trabalhar anos e anos para pagar o
financiamento, a lógica do consumo e da diferenciação social etc.
Mas essa oposição ideológica expressa igualmente um apego a certos valores da herança
familiar: leigos e republicanos para uns, católicos e humanistas para outros. A ideologia de
1968 é portadora desses valores de igualdade social, de busca do “amor autêntico”, de recusa
da dominação do dinheiro nas relações sociais, de busca de sentido no trabalho... Valores
que procuram questionar radicalmente a ideologia da ascensão social, do consumo e da
acumulação, mas que remetem a um tipo de pureza ideológica original.
A oposição manifestada encobre uma certa forma de fidelidade: em nome da solidariedade
com os dominados, os filhos de famílias católicas se tornam maoistas; em nome da recusa da
tradição familiar, dão-se aos filhos nomes bretões, bascos ou provençais que lhes permitam
ressituar-se em uma tradição "ampliada”; as mensagens de caridade, apostolado ou
sacerdócio se transmudam em ação social, trabalho educativo ou psicológico etc.
Portanto, a invenção de novas profissões no setor das relações sociais - educadores,
animadores, conselheiros conjugais, psicólogos, orientadores profissionais etc. - é um meio
de realizar uma transação social que permite, ao mesmo tempo, se opor ao projeto parental e
cumpri-lo: oposição porque, em geral, se trata de um trabalho que representa um
questionamento das aspirações parentais, uma recusa dos valores familiares, um desejo de
ruptura em relação à trajetória dos ascendentes. O que domina na explicação das escolhas
profissionais são, essencialmente, escolhas negativas: ninguém sabe direito o que quer, mas
todos sabem muito bem o que não querem. Encontra-se essa constante quando essas
profissões recrutam integrantes de todos os meios sociais: famílias operárias em ascensão,
famílias de ocupantes de cargos de chefia em consolidação, famílias burguesas ameaçadas de
declínio etc. O essencial na escolha é a recusa de uma carreira previsível, de um status bem
definido, de uma vida profissional já traçada. Nessas novas profissões de contornos mal
definidos, busca-se "um setor em que se possa ter sempre o sentimento de inventar a vida”,
um meio de tomar distância da "identidade social herdada”, “um terreno de aventura no qual
se possa brincar com as contradições recém-produzidas pela relação com o mundo social e
com o universo de posições sociais (idem, p. 202)”.
Mas, por meio desse "terreno de aventuras" profissional, percebem-se na verdade as
aspirações familiares quando se atinge uma posição objetiva próxima daquela esperada. Em
termos de status, de renda, de condições de trabalho e mesmo de prestígio social, não é
muito importante a diferença entre o professor primário e o educador, o gerente
intermediário e o assistente social, o técnico de nível superior e o psicólogo. Além disso,
essas profissões permitem utilizar os habitus da classe original que vão levar o filho (ou
filha) do diretor de uma empresa a se tornar assistente social e depois diretor de uma escola,
o do profissional liberal a se tornar psicólogo-psicanalista, o filho de professores primários,
formador de adultos. Constata-se que, à medida que essas profissões se inventam e se
institucionalizam, os que nelas investiram reconduzem entre si, no nível profissional, as
disparidades sociais originais ou reencontram, em outro código, as posições que lhes foram
atribuídas. Os filhos de operários cuja posição esperada era a de técnico ou operário
especializado se tornam instrutores técnicos; os filhos da burguesia e das classes médias cuja
posição esperada era principalmente a de professores primários, padre, médico ou
engenheiro se tornam edu-
Mudança de classe e conflitos de identidade • 77

cadores especializados. Aqueles cuja posição esperada era principalmente de gerência ou


diretoria se tornam educadores-chefes ou diretores de escolas...
Pode-se aprofundar essa questão em outros setores da assistência social, da animação
cultural, da psicologia, do aconselhamento, da formação, ou seja, em todas essas profissões
recentes, pouco estruturadas, sem hierarquia instituída de longa data, sem tradição
profissional forte. Campo "ideal" para todos os que se recusam a se permitir herdar, que
desejam "produzir sua vida” ll, mas cuja função essencial é confundir os códigos: ponto de
encontro entre trajetórias ascendentes, descendentes e estáveis, essas profissões permitem
que cada um dissimule (para ascendentes e colegas e para si mesmo) as questões sociais e os
conflitos que provocam. A ausência de referências estabelecidas permite evitar comparações
e, portanto, medir a desclassificação. Pode-se gerar uma ascensão rápida manifestando, ao
mesmo tempo, uma solidariedade profissional com o grupo de origem (principalmente na
assistência social). Pode-se também realizar as aspirações de promoção social dos pais
"pequenos-burgueses" fingindo, ao mesmo tempo, que elas não importam, como se fosse
possível situar-se em outro lugar. Pode-se, enfim, mascarar uma queda rápida com um
trabalho que, simbolicamente, compensa o afastamento objetivo: as dimensões militantes,
benévolas, educativas ou caritativas dessas profissões permitem invocar um "luxo" mesmo
quando as vantagens econômicas e sociais que conferem manifestem uma regressão social
objetiva.
Em todas essas profissões cujo objeto é um trabalho relacional, cuja ferramenta é,
principalmente, a palavra e cuja função é gerir conflitos pessoais, interpessoais, insti-
tucionais ou sociais, a identidade do próprio profissional é que está "em trabalho': Portanto,
não surpreende que gerem uma "crise de sucessão”, isto é, uma tensão permanente entre a
identidade herdada que se recusa e aquela em aquisição que se busca.

“A HISTÓRIA ATOLADA” OU AS DIFICULDADES


DE MUDAR DE LUGAR
As crises de sucessão podem assumir diversas formas. A tensão entre a identidade herdada e
a adquirida e incerta pode se expressar por um sentimento de impotência de se tornar algo
diferente do que se é, de ficar "atolado" na própria história enquanto se aspira a sair dela. O
caso de Patrick, nesse sentido, é significativo: "Estou dividido entre o que queria ser e o que
não pude ser", diz ele.
Patrick tem 34 anos. Confeiteiro durante 12 anos antes de se tornar instrutor técnico de um
CAT (Centro de Auxílio ao Trabalho), tentou se tornar educador especializado, mas falhou
nas duas tentativas de passar nas provas. Ele veio de um meio de camponeses em levíssima
promoção depois de quatro gerações, um meio muito conservador, situado no mesmo lugar
desde quando a memória familiar era capaz de recordar. O conservadorismo da família é
expressão da ordem social que se impõe nessa região rural de Charentes, ordem vivida como
intangível (como na expressão "é da ordem das coisas"). Cada um tem seu lugar e ninguém
sonha mudar: " Entre os

______________
11.Expressão tomada de Gaston Pineau (1984), que conta como, para ele, o trabalho autobiográfico foi o meio de gerir as
contradições da passagem de operário-camponês a formador de adultos.
78 • A neurose de classe

grandes, médios e pequenos proprietários, não há luta de classes”, diz Patrick. O conjunto da
família (materna e paterna) está instalado em um raio de trinta quilômetros.
Os bisavôs paternos eram boias-frias que trabalhavam para fazendeiros, seus avós também,
antes de comprarem uma fazendinha que o tio herdou. Do lado materno, a trajetória é
semelhante, e o pai assumiu a fazenda dos pais da esposa depois de ter sido artesão
construtor de carroças.
Na verdade, a melhora da condição social está ligada ao aumento generalizado do nível de
vida depois do início do século e da melhora das condições de vida do campesinato
(mobilidade estrutural). Assim, essa promoção não se traduz, portanto, em uma mudança de
posição dentro da estrutura de classes.
De uma família de oito filhos, Patrick é o único a ter “subido” até Paris. Os irmãos e irmãs se
instalaram na mesma região e, com certeza, na mesma aldeia. Ele descreve os pais como se
não tivessem sem nenhum projeto de promoção social para os filhos e não investissem no
sucesso escolar. Aos 12 anos, quando Patrick pediu ao pai para estudar, este respondeu:
"Ninguém pagou para os outros, vá aprender uma profissão." Aos 16, ele tirou o CAP
(Certificado de Aptidão Profissional) de confeiteiro, profissão que exerceu durante doze
anos. Na família, os homens têm profissões (padeiro, agricultor, carteiro, ferroviário,
açougueiro), enquanto as mulheres trabalham ajudando o marido no comércio ou na fazenda,
conforme o caso. Todos compraram uma casinha e têm de 3 a 5 filhos. É um meio familiar
muito fechado em si mesmo, do qual ninguém fala e no qual os dramas, as histórias de
família e as aventuras de uns e outros caem no silêncio e no mistério: histórias de heranças,
disputas frequentes, mortes suspeitas, ciúmes tenazes etc. Mas o empreendimento familiar
continua muito forte: "Quando há risco de separação, a família os recupera, o importante é
dar a impressão de família unida”.
O pai de Patrick é descrito como trabalhador, ao mesmo tempo conservador e não
conformista. Bastante comunista em um meio católico, "era muito festeiro e saía facilmente
para a boemia, levando as economias".
A mãe, por outro lado, é uma mulher submissa, católica praticante, que censura os seus pais
porque a obrigaram a se casar. O marido é o primeiro homem que conheceu; as duas
fazendas eram vizinhas. Mulher cumpridora de seus deveres desejava outra coisa, mas, "não
se concedendo jamais autorização para obtê-la”, queixa-se constantemente da doença que
sofreu: "Quando me teve, ela chorou durante a gravidez inteira” (Patrick é o oitavo filho).
Ela invejava, especificamente, a irmã mais bonita, que tivera um casamento mais
interessante com um agricultor proprietário de uma fazenda grande, com apenas dois filhos e
vários amantes. Embora vizinhas, as duas famílias são brigadas e não se falam há vários
anos.
A infância de Patrick foi difícil devido à pobreza da família e ao número de filhos, sem, no
entanto, ter sido infeliz.
Seu romance familiar é marcado por três situações gravadas na memória.
Os avós moravam em uma fazenda que seria "recuperada” pelo seu pai e que Patrick
igualmente "recuperou”, sem que se possa precisar se ele a recebeu como herança ou se a
quitou. Nesse momento, o discurso de Patrick é frouxo e contraditório, expressão de sua
ambivalência em relação àquela casa. Apesar do desejo forte de se "livrar" dela, Patrick
guarda no sótão da casa todas as lembranças familiares e volta lá com frequência: "Sou
muito ligado à família, sinto-me bem lá, mas não consigo passar mais de meio dia com eles
[...] Isso é um peso para mim” Seu sonho é vender a casa,
Mudança de classe e conflitos de identidade • 79

mas se sente incapaz disso. Dos avós maternos, guarda a imagem de um casal sempre feliz,
"de mãos dadas": avô cortês que escrevia poemas que Patrick guarda religiosamente no
sótão, avó atenta que preparava "pratinhos': Depois da morte da mulher, o avô se suicidou
com 87 anos, jogando-se em um poço: "eu tinha 15 anos, dormia no mesmo quarto que ele".
Assim se acha ligadas, no romance familiar de Patrick, a posse da casa de que não consegue
se desfazer e a história familiar da qual se sente um depositário privilegiado. O suicídio do
avô, que o mergulhou nas profundezas da terra, acentua o peso dessa "história atoladà:
O pai tinha uma irmã, Jeanne, cujo marido era hortelão e que não tinha mais filhos para
cuidar: um morrera na guerra, o outro fora embora. Quando Patrick tinha oito anos, o pai
sugeriu que fosse morar com a tia, que gostava muito do sobrinho. Patrick, depois de um
momento de indecisão, aceitou, mas a mãe se opôs, o que ele lamenta amargamente: "Se
tivesse ido, eu teria estudado:'
Outra situação da infância continua gravada na memória de Patrick:

Nessa região, os grandes proprietários são importantes, os pequenos não valem nada.
Eu vivia enfiado na casa dos vizinhos que tinham televisão, instrumentos musicais,
objetos de cobre... eu adorava. Sonhei várias vezes que meus pais morriam e eu era
adotado por essas pessoas, que não tinham filhos.

Assim, Patrick se vê dividido, desde a infância, entre uma história familiar na qual se sente
"atolado" e uma aspiração de promoção social que se baseia nesse sonho de ser filho dos
"castelães" de sua aldeia. "Tento sair dessa coleira familiar sem conseguir, queria tanto outra
vida... Sofro demais com essa família camponesa não intelectual. Bem garoto, eu desejava
outra família, outro meio... Sou a pessoa que está sendo pioneira nesse meio social”.
Nessa família na qual não se fala, ele é o único a fazer perguntas sobre os ascendentes,
expressão de sua busca de um modelo identificatório que lhe apresente um roteiro possível
para sair da "coleira familiar": "Eu pensava em achar pessoas cultas, o que me daria a
possibilidade de me enriquecer e me cultivar. É duro ser o único que luta por isso".
Claro que Patrick tem consciência de que essa busca retoma parte das aspirações insatisfeitas
da mãe ("Percebo, cá comigo, o que ela não pôde fazer") e do avô materno que escrevia
poemas. Mas, apesar disso, nem um nem outro saíram do modelo e, embora ele faça
perguntas à mãe sobre a história da família, esta se apavora como se ele tocasse em alguma
coisa indizível.
Ao contrário das famílias operárias nas quais a ideologia da luta de classes sustenta um
projeto de mudança, as famílias camponesas, por tradição, são marcadas pela imobilidade
social. Patrick não tem referências sobre o que deve fazer para satisfazer sua aspiração de
outra coisa. Embora encontre meios de partir e ir para Paris, sente-se continuamente
“reaspirado” pelo meio de origem. Embora não suporte o lugar que lhe é atribuído na
estrutura familiar, ele não vê qual poderia ocupar agora.
Foi ao conhecer Annie, divorciada que ama a música e a arte, que ele conseguiu abandonar o
trabalho de confeiteiro para se tornar instrutor de escola técnica. Mas se considera "em
transição', com trabalho instável, ligação afetiva precária, viajando entre Paris e as
Charentes, sem conseguir se livrar daquela casa que ama e detesta ao mesmo tempo. Suas
escolhas são essencialmente negativas: "Não tenho filhos por
80 • A neurose de classe

enquanto, porque não tive vontade de reviver tudo isso"; para ele, trata-se de escapar, não de
se instalar.
Na família, Patrick é percebido como o "pato selvagem': e no limite como se fosse
"desarranjado", condição peculiar que o valoriza e lhe pesa ao mesmo tempo. Mas nessa
busca de outra coisa, apesar de tudo, ele não rompe a solidariedade que o prende ao grupo
familiar: "Se eu conseguir sair, outros membros da minha família talvez cheguem lá”.
A história de Patrick é um exemplo da situação de um certo número de grupos sociais
marcados por fortes tradições que inscrevem cada um dos membros em uma ordem quase
inamovível. Essa ordem define um quadro que tem a dupla função de sustentar a identidade e
fixar os indivíduos em um lugar bem determinado. Em sua busca por outra coisa, Patrick
vive essa ordem como uma coleira que o prende, mas da qual não consegue se livrar.
A característica de seu meio reside no fato de não ser invadido pela ideologia da promoção
social nem por aquela da luta de classes, ideologias que podem transmitir projetos de
mudança individual ou coletiva. Aqui, ninguém sonha transformar sua condição: as coisas
são como são. Na genealogia familiar, nenhuma figura de identificação propõe um roteiro
diferente no qual Patrick possa se apoiar. É na casa dos "castelães" vizinhos que encontrará
apoio ao sonho de ser filho de outra classe. Mas esse sonho só pode se realizar ao preço da
morte dos pais, fazendo Patrick enfrentar uma culpa intransponível que o impede de cumpri-
lo. Só à custa de muito trabalho, ele conseguirá uma mediação entre a exclusão e a
recuperação familiar, percorrer um caminho diferente daquele que sua história lhe traçou a
priori.

OS CONFLITOS LIGADOS À REGRESSÃO


A regressão12 caracteriza a trajetória dos indivíduos que não souberam ou não puderam
adquirir a posição correspondente ao lugar que provavelmente ocupariam em função de sua
herança, sabendo que a maioria dos que estavam em posição semelhante ocupa posições
socialmente mais elevadas. Podem ser herdeiros que não puderam herdar indivíduos
pertencentes a grupos sociais em declínio que sofrem passivamente seu destino social,
"fracassados" que não cumprem as aspirações neles investidas pelo grupo familiar: todos
aqueles que, ativa ou passivamente, enfrentam o rebaixamento de classe sem que este possa
ser interpretado como passageiro. Em umerosas trajetórias seguem um caminho caótico, com
momentos de regressão e outros de promoção. Aqui, o importante é seguir a tendência geral,
que permite perceber se, no longo prazo, se trata de promoção, estabilidade ou regressão.
Eliminamos, portanto, do nosso propósito as regressões transitórias provocadas por
desemprego, mudanças de carreira profissional, dificuldades econômicas e fatos acidentais,
uma vez que estes têm efeito unicamente momentâneo. Consideramos que há
desclassificação a partir do momento em que não só um indivíduo, mas também a unidade
familiar

_______________
12.O equivalente inverso da promoção não é a regressão, mas a "demoção" (rebaixamento), palavra usada atualmente em
empresas da Bélgica. A palavra "regressão" permite condensar o fato sociológico (mudança de posição dentro da estrutura
social) e a representação social e psicológica desse fato como fenômeno negativo que é o contrário da progressão.
Mudança de classe e conflitos de identidade • 81

que ele (que o) constitui, muda de classe em condições nas quais a probabilidade de retorno
à classe de origem é pequena. Convém, portanto, identificar o fenômeno em uma geração
para distinguir as regressões passageiras das consolidadas. Essa precisão se impõe ainda
mais porque a regressão é um fenômeno difícil de identificar.

OS OBSTÁCULOS À OBSERVAÇÃO DA REGRESSÃO SOCIAL


OS efeitos da regressão social pertencem ao registro da opacidade, sendo dificilmente
observáveis. Embora as promoções sejam social e subjetivamente reconhecidas como tais, as
regressões não se expõem. Elas se mascaram e se dissimulam por trás de diversas formas de
racionalização e negação. O fenômeno da regressão fere a ideologia dominante que valoriza
a promoção, que identifica sucesso individual a ascensão social, que impõe a representação
de um mundo no qual é preciso subir e condena os que descem à desconsideração,
invalidação e esquecimento. A ausência de reconhecimento tende a produzir a ignorância a
fortiori em uma sociedade na qual o individualismo, a "autopromoção”, a "invasão da
sociedade pelo Eu" remetem todos ao próprio narcisismo, como mostra Christopher Lasch13
no caso da sociedade americana. A regressão, portanto, é social e psicologicamente
inadmissível o que torna delicada a observação e a análise.
Seu reconhecimento objetivo é difícil porque a regressão, até hoje, foge das estatísticas, o
que Claude Thélot (1982) chama de efeito catraca, e o desenvolvimento da nova pequena
burguesia teve como consequência atenuar ou deslocar os efeitos do declínio social de tal
maneira que não pudesse ser analisado como regressão. Nas "crises de sucessão" que
poderiam ser interpretadas como reações à ameaça de regressão, há uma interferência dos
códigos tradicionais de classificação dos indivíduos que impede a aplicação dos indicadores
habituais utilizados para medir a desclassificação. Do mesmo modo que as empresas
multiplicam títulos hierárquicos para evitar que os funcionários percebam o processo de
desqualificação de que são objeto, os grupos sociais ameaçados de declínio tendem a
transformar as tipologias sociais para não serem percebidos nem se verem em regressão.
Nesse caso, tem o apoio do discurso político, que, quando se dirige a eles, fala de conversão,
mutação, modernização. São o caso de agricultores, pequenos comerciantes, siderúrgicos,
metalúrgicos, de uma parte cada vez maior de gerentes da indústria para os quais se cria uma
série de dispositivos de indenização e formação que tendem a limitar os efeitos do declínio,
apresentá-lo como um fenômeno transitório e atenuar suas consequências.
Ademais, em uma sociedade em que, após duas gerações, o número de lugares nas classes
dirigentes e nas classes médias tende a aumentar regularmente e na qual o crescimento
provocou uma melhora global do nível de vida do conjunto das categorias sociais, os
fenômenos de queda objetiva são estatisticamente desprezíveis. Nessa situação, uma simples
reprodução da posição de origem pode, objetivamente, representar uma regressão sem que,
apesar disso, seja vivida como tal. É o caso dos médicos e professores primários, cuja
posição social tende a declinar desde o início do século, mas cuja posição simbólica continua
importante: invejados pelos que veem nelas um meio de assegurar sua promoção, essas
profissões, quando ocupadas por filhos de médicos ou professores, podem lhes dar a
sensação de conservar a posição social mesmo quando perdem uma grande parte da
notabilidade que lhes era atribuída.

_______________
13
. C. Lasch. Le complexe de Narcisse. Paris: R. Laffont, Libertés 2000. 1980.
82 • A neurose de classe

Esses obstáculos à observação do fenômeno da regressão social são reforçados pelas


resistências psicológicas dos indivíduos que a enfrentam. A promoção é caracterizada pela
ambivalência entre sentimentos positivos (orgulho, valorização, consideração) e negativos
(culpa, humilhação, infidelidade) e pela expressão consciente do vínculo entre os conflitos
vividos e a trajetória social. A regressão envolve sentimentos essencialmente negativos
(desvalorização narcísica, humilhação, inveja, amargura) que, por um lado, provocam
negação e, por outro, uma dissociação entre os conflitos sentidos e o rebaixamento social do
sujeito.
Um estudo do CSTB14 mostra que 40% dos homens em regressão objetiva se veem em
promoção (20%) ou em estabilidade (20%). Apenas a metade deles tem uma experiência de
vida de acordo com sua trajetória. A negação pode igualmente assumir formas ideológicas.
Enquanto os indivíduos em ascensão social falam dela de bom grado, os que estão em
descensão constroem uma visão da sociedade que lhes permita evitar situar-se em termos de
mobilidade social, minimizando as barreiras sociais, recusando-se a considerar a ascensão
social como ideal ou projeto, privilegiando a adesão a um sistema de valores "metassocial"
que tende a se basear no exterior das relações sociais.
Enquanto os que estão em promoção são eloquentes sobre sua história, com as palavras ou a
escrita lhes oferecendo um meio de enfrentar as contradições que os invadem, os que estão
em regressão são silenciosos e evasivos.

CARACTERISTICAS DOS INDIVÍDUOS EM REGRESSÃO


O silêncio, a negação e o fechamento sobre si são as características mais evidentes da
regressão.
É o que acontece com certos filhos de personagens ilustres que, literalmente, "somem no
anonimato”, exemplos extremos e significativos das dificuldades de indivíduos que não
conseguem reencontrar o lugar ocupado pelos que os precederam.
A Sra. X15 é filha de um filósofo e escritor famoso. Mora na Drôme e é professora primária
em uma aldeia. É casada com um bacharel em psicologia que se tornou operário marceneiro
na oficina de um artesão. Ela não quer mais ouvir falar do pai, recusa entrevistas a jornalistas
e pesquisadores e não responde aos convites que lhes são regularmente enviados para
participar de colóquios. Ela corta os laços com o resto da família, com exceção da mãe, que
visita esporadicamente.
Nesse caso, tudo acontece como se o isolamento fosse uma reação ao sentimento de não
estar à altura, uma recusa de viver por procuração como "filha de" um escritor famoso.
Diante do lugar representado pelo ascendente ilustre, do qual se diz que ninguém poderia
igualá-lo, cuja trajetória representa um desafio impossível (ele mesmo veio de um meio
popular), a dificuldade é posicionar-se. A alternativa, portanto, é viver sobre esse capital
social, gerando a posição de "filha de”, vivendo à sombra do pai famoso e alimentar sua
memória e consideração; ocupar a posição de filha, de descendente, apagando-se por trás
dessa história que determina seu próprio futuro; aceitar ser unicamente uma herdeira, como
os filhos que retomam a obra do pai, alimentam sua memória, publicam sua correspondência,
cumprem seu destino a serviço da glória do ascendente.

_______________
14. M. Bonetti, Notes sur les hommes et femmes en régression sociale, documento mimeografado, CSTB, 1983.
15. Para respeitar esse "anonimato voluntário”, dissimulamos os fatos que permitiriam identificá-la.
Mudança de classe e conflitos de identidade • 83

Ou então, não se permitir herdar, tentar viver por conta própria, independente da vida desse
Outro que continua a existir socialmente e cujo Nome marca o filho com seu cunho histórico
- tentativa ainda mais vã porque esse Nome é continuamente retransmitido pelos outros que,
quando o filho se apresenta, perguntam que laços o prendem ali. Portanto, a pessoa 40 filho
desaparece, porque esse Outro ocupa todo o lugar. De certo modo, é preciso que desapareça
efetivamente para poder existir, ser anônimo para recuperar o próprio nome.
Nessas situações em que o futuro é sobredeterminado por um destino "histórico" e a
possibilidade de também se tornar "ilustre" é improvável, o fechamento sobre si é o meio
adotado para escapar ao peso demasiado da história.
Esse fechamento explica a posição marginal na qual se encontram os filhos que, ao se
distanciarem da posição prestigiada do ascendente, deixam o grupo familiar e social a que
pertencem sem, contudo, se integrarem a outro. Embora seja possível medir objetivamente
sua regressão, não se pode dizer, contudo, que tenham mudado subjetivamente de classe, na
medida em que é exatamente o não pertencimento que, de qualquer modo, lhes permite
existir. Fora do espaço privado da residência, o conjunto dos lugares habitualmente
utilizados para ancorar a identidade social são desinvestidos: o trabalho, as relações sociais,
os diplomas, o engajamento militante ou associativo e todos os elementos que ligam os
indivíduos às redes sociais.
A ausência de investimento nos objetos sociais é uma característica do conjunto de pessoas
em descensão. É o que confirma o estudo de Michel Bonetti 16, que constata que essa é uma
população heterogênea quanto à mobilidade profissional, à relação com o poder, aos
investimentos ideológicos, ao nível de aspiração, mas que é homogênea nas duas variáveis
da relação com o trabalho e com a moradia, com diferenças entre homens e mulheres.
Enquanto os homens devem a descensão social ao fracasso profissional, a maioria das
mulheres a deve ao fato de ter "sacrificado" a carreira profissional ao investimento afetivo e
familiar, o que as leva a investir, de forma central, no casal e na família, enquanto os homens
se fecham em uma solidão muito mais intensa.
Os indivíduos em regressão consideram seu trabalho unicamente como meio de subsistência
ou condição para realizar seus desejos em outra parte. O trabalho não é valorizado como
elemento de apoio das relações pessoais, na medida em que não buscam estabelecer relações
continuadas nem integração nas redes sociais. O desinvestimento, em especial, se expressa
na ausência de projetos profissionais ou sociais. O problema, portanto, é saber se o
desinvestimento no trabalho, na mobilidade social, o distanciamento do poder, resultam da
impossibilidade de manter a posição social e concretizar um projeto de promoção ou se está
na origem da regressão social. Isso leva a interrogações sobre a natureza do desejo de
sucesso social, sobre os vínculos entre os desejos de poder total e a atração do poder, sobre o
fenômeno da ambição: se na nossa sociedade a regressão é pensada como fracasso enquanto
a promoção é vivida como sucesso, resta saber o que remete à ideologia e o que se liga à
psicologia própria dos indivíduos no processo de investimento e desinvestimento no sucesso
social.

_____________
16. Cf. M. Bonetti. Notes sur les hommes et femmes en régression sociale, documento mimeografado. CSTB. 1982.
84 • A neurose de classe

Pode-se pensar que, para os indivíduos em regressão, o fato de se situar fora do valor da
mobilidade vem do mesmo mecanismo que La Fontaine ilustra na fábula "A raposa e as
uvas"17:

O maroto, por seu gosto, faria uma refeição;


Mas como não as pôde atingir:
- Estão verdes - diz ele, - boas pr'um grosseirão.

Por não poder satisfazer suas ambições sociais, é melhor invalidar o que não se consegue
atingir. E La Fontaine conclui: "Seria o mesmo se chorasse”, descrevendo assim duas
atitudes possíveis para enfrentar a regressão, disfarçar para desviar a atenção ou chorar.
Disfarçar é tentar conservar diante dos outros, assim como diante de si, a ilusão do sucesso
passado ou da manutenção da posição original.
Chorar é correr o risco de invalidar a si mesmo ao defrontar a própria degeneração, a não ser
que esta seja atribuída a causas externas: a crise, os imigrantes, a guerra, a doença, o azar etc.
Essas questões aparecem na relação com a moradia:

é preciso igualmente insistir na função da moradia como dissimulação do significado


social inconsciente do investimento na defesa para gerar as contradições psíquicas
provocadas pela trajetória social [...] A plasticidade simbólica da habitação permite,
por exemplo, transmudar a busca de identificação aparente em significado social da
moradia, ou anular, da mesma maneira, a frustração da imagem social [...] Pode-se
perguntar se [...] a univocidade simbólica da moradia popular, que, inexoravelmente,
significa para seus habitantes a posição social desvalorizada, não seria um dos
maiores problemas que enfrenta, na medida em que não lhe permite se iludir a
respeito de seu Significado social.18

Diante do processo de descensão social, a moradia se mantém como meio de compensar,


reparar, ocultar o fracasso social ou profissional. Pensemos na luta dos aristocratas
arruinados que se agarram à moradia, última expressão do esplendor passado, a ponto de
lutar a tiros de espingarda quando as forças da ordem vêm executar a ordem de despejo que
os tirará de lá; pensemos igualmente naqueles administradores desempregados que tentam
com desespero conservar a casa de campo que mandaram construir com grande reforço de
empréstimos quando a carreira era ascendente.
Se a moradia significa pertencimento social, seu abandono significa a queda, a perda de
posição; é o signo de uma degeneração consumada. Proteger a moradia é conservar o
engodo, para os outros, mas também para si, de que estamos sempre no mesmo lugar, de que
nada mudou, de que conservamos o conjunto dos atributos de pertencimento à "nossa” classe
social.
Morar em um castelo, mesmo sem dinheiro, ainda é ser castelão; ocupar uma mansão em um
bairro residencial, um grande apartamento nos "bairros bons”, ainda

_________________
17.Le galand en eut fait volontiers un repas; / Mais comme il n’y pouvait atteindre: /Ils sont trop verts, dit-il, et bons pour
les goujats. La Fontaine. Fables, Paris: Classiques Hachette. 1929. p. 105.
18. Cf. M. Bonetti. op. cit ., p. 25 .
Mudança de classe e conflitos de identidade • 85

é ser da boa burguesia; morar em um condomínio de casas em um bairro residencial ainda é


estar na nova burguesia ascendente. Por outro lado, morar em uma habitação popular é estar
irremediavelmente classificado nas classes populares.
Os estudos do CSTB mostram que os indivíduos em promoção escolhem se instalar em
moradias cujo significado social seja intermediário entre a classe de origem e a nova classe a
que pertencem, enquanto aqueles em regressão buscam se proteger pela retenção do
ambiente inicial, o que lhes permite evítar confrontos com outras classes sociais. Assim,
evitam o risco de expor a disparidade, recuperando a distância social com a proximidade
geográfica. Pode-se pensar que essa observação só é válida apenas para uma parte das
pessoas em descensão, as que, exatamente, passam a "disfarçar”, ou seja, manter os signos
de pertencimento à antiga classe social. É verossímil que as regressões rápidas que não
permitam mais manter essas ilusões levem os indivíduos a se isolar, a se marginalizar e a se
afastar dos lugares e pessoas que poderiam comprovar sua posição de origem. A dificuldade
está no fato de que, dessa maneira, essas pessoas recusam toda participação em pesquisas
que as levem a se expor. Elas tendem a se enterrar em um isolamento cada vez mais radical,
um meio extremo de enfrentar a profunda ferida narcísica que representa o sentimento do
próprio fracasso. Isso pode levar à doença mental, alcoolismo, condutas delinquentes,
mutismo, todos esses sintomas de reação à angústia provocada por uma imagem degradada
de si mesmo, pelo sentimento de fracasso irremediável, pela auto desvalorização quando a
negação não permite mais escapar.
Embora os conflitos vividos nas trajetórias ascendentes estejam conscientemente ligados à
existência de classes sociais e às contradições que caracterizam suas relações, as trajetórias
descendentes remetem os indivíduos a si mesmos. Mais do que humilhação social, é ferida
narcísica profunda; mais do que conflito de identificação, é perda da identidade; mais do que
culpa, é sentimento de perseguição; mais do que rejeição pelos outros, autodesvalorização.
Caso a crise atual persista, pode-se pensar que a vivência da regressão vai se transformar na
medida em que chegue a uma parte mais significativa da população. Até esses últimos anos,
esse era um fenômeno sociologicamente marginal que atingia individualidades cuja
fragilidade psicológica era um fator determinante da situação social. Nesse sentido, tratava-
se de um fenômeno principalmente individual.
Na medida em que a regressão se torna um fenômeno social no qual a ideologia do progresso
e da promoção é questionada, no qual a mobilidade estrutural acelera os processos de
deslocamento horizontal e vertical, é provável que mude a vivência da regressão; ela será
percebida como menos inadmissível socialmente e menos desvalorizadora em termos
psicológicos.
Essa observação vai ao encontro da obra de C. Tietze (apud Bastide, [1965] 1977, p. 158),
que constatou, ao comparar o número de problemas mentais entre os desempregados de
Baltimore em 1933 e em 1936, que nesta última data o percentual de casos não passava de
um terço do de 1933. A hipótese apresentada era que, em 1936, período de depressão
econômica, o desemprego era percebido como um fenômeno da sociedade, de
responsabilidade do governo e dos dirigentes da economia, enquanto em 1933 o mais
frequente era atribuí-lo aos próprios operários. Atualmente, assistimos na França a uma
mudança da mesma ordem.
Como no exemplo dos repatriados do norte da África, dos judeus perseguidos durante a
guerra de 1940-1945, das famílias arruinadas pela crise de 1929, quando
86 • A neurose de classe

a regressão atinge o conjunto de um grupo social, a perda das posições adquiridas é vivida
como acidente histórico, mais do que como regressão, e força uma geração a recuperar a
posição perdida. O efeito psicológico é menos conflituoso quando a situação é compartilhada
pelo conjunto do grupo a que pertence o indivíduo. Nesse caso, não há conflito nem perda de
identidade, na medida em que as dificuldades enfrentadas pelos indivíduos são diretamente
causadas pelo "turbilhão da história”.
Portanto, é claramente como sujeito sócio-histórico que cada um é questionado, e não na
ilusão do sujeito individual. Ainda que, para cada um deles, as situações de crise provoquem
perturbações psicológicas, elas se devem a transformações sociais (guerra, crise, revolução)
e não a disfunções internas do aparelho psíquico individual. Não é a mesma coisa quando
cada pessoa é levada a gerar individualmente os efeitos da mobilidade estrutural. Poucas
pessoas em desclassificação ligam o que lhes acontece às lutas sociais para conquistar ou
conservar posições dentro da estrutura de classes. A regressão opera principalmente como
ferida narcísica porque, na maioria dos casos, é ideologicamente dessocializada.
A regressão é interpretada como consequência do destino individual, embora seja produto da
concorrência social que provoca o descolamento entre oferta e demanda no mercado de
lugares sociais. A regressão, agora e sempre, é um fenômeno social. Se em 1987 há mais de
2,5 milhões de desempregados na França, isso se deve à desigualdade estrutural existente
entre a população ativa e o número de vagas de emprego oferecidas; não se deve à
incapacidade nem à desadaptação dos indivíduos desempregados. Os sintomas que essa
situação provoca, portanto, só podem ser tratados psicologicamente se a psicologia integrar,
em sua compreensão, os processos psíquicos e a presença de efeitos sociais internalizados. O
mesmo ocorre com os efeitos do rebaixamento; o tratamento dos conflitos psicológicos por
ele provocados passa pela compreensão dos vínculos entre os processos psíquicos e sociais
em ação.
4

NEUROSES E NEUROSE DE CLASSE

Escolhe, por favor, contar-nos a história dum rapaz, um filho de mujique, que foi
menino de recados, garoto de coro, aluno primário, depois estudante, criado no
respeito à nobreza e ao clero e que aprendeu a se inclinar diante da opinião dos
outros, a agradecer seus benfeitores pelo menor pedaço de pão, que sentiu o rebenque
com bastante frequência, que teve de dar aulas particulares no inverno sem botas,
que teve de lutar com patifes, maltratou animais, que gostava de jantar na cidade
com conhecidos afortunados, que se comportou com hipocrisia diante de Deus e
dos homens, não para promover a carreira, mas simplesmente por ter consciência
de sua insignificância, faze-nos ver como esse rapaz pôde matar aos pedacinhos o
escravo que tinha em si e como certo dia ele acorda sentindo correr nas veias não
mais o sangue de um escravo, mas o de um homem livre.
Carta de Tchekov a Suvarin

A expressão "neurose de classe" pode gerar um certo número de mal-entendidos e confusões.


Nosso projeto não é estudar, como algumas correntes da psiquiatria social, a doença dos
grupos sociais, partindo da hipótese de que as classes sociais apresentam problemas do
mesmo modo que os indivíduos.
Assim, Trigant Burrow fala de "sociedades histéricas", Ruth Bénédict, de "sociedades
paranoicas" (apud Bastide, [19651977, p. 161). A hipótese segundo a qual determinadas
classes sociais se tornam neurotizadas só pode provocar impasse, na medida em que leva a
assemelhar o funcionamento do indivíduo ao da sociedade de uma classe ou de um grupo. As
neuroses são sempre individuais. A palavra designa uma disfunção do aparelho psíquico. Se
determinadas classes sociais, em certos momentos da história, conseguem influenciar o
surgimento e o desenvolvimento de sintomas neuróticos em seus integrantes, não se pode
inferir que elas mesmas sejam neuróticas.
O funcionamento social e o psíquico são fenômenos de natureza distinta que, nesse aspecto,
obedecem a leis, regras e processos diferentes. A não ser como metáfora, não se pode,
portanto, utilizar um conceito que descreve um tipo de funcionamento do aparelho psíquico
para descrever um tipo de funcionamento coletivo.
Nesse sentido, parece-nos inconveniente falar de classe neurotizada, de sociedade histérica
ou esquizofrênica. Esses diversos conceitos foram elaborados para descrever sintomas
clínicos no nível individual. Não é possível utilizá-los para qualificar fenômenos sociais sem
risco de confusão. Por outro lado, e é esse o objeto da sociologia das doenças mentais, pode-
se constatar que o desenvolvimento desta ou daquela neurose é mais frequente em
determinadas classes do que em outras e que
88 • A neurose de classe

certas formações sociais favorecem o surgimento de paranoias ou psicoses e outras, ou de


problemas psicossomáticos ou histéricos etc.
R. A. Schermerhorn (apud Bastide, idem, p. 14) é um dos autores representativos dessa
abordagem: segundo ele, a classe baixa apresentaria sobretudo transtornos de conduta, a
classe média, transtornos psicossomáticos associados à repressão ou à censura social, a
classe alta, psiconeuroses ou psicoses maníaco-depressivas. Do mesmo modo, Ruesch
mostra que os transtornos traumáticos são mais disseminados nas classes populares, ligados
à luta de classes; as doenças psicossomáticas, mais comuns nas classes médias, ligadas ao
conformismo; as psiconeuroses nas classes dirigentes, ligadas ao Supereu fortíssimo e
conservador de seus integrantes. Rennie, Stole, Opter e Laugner1 mostraram que as psicoses
variavam na razão inversa do status em uma escala de estratificação social (13% dos doentes
são de tipo psicótico nas classes baixas, contra 2,6% nas mais altas), enquanto os neuróticos
variavam na razão direta (25% dos doentes são neuróticos nas classes baixas, 43% nas altas).
O estudo mais completo nessa direção é o de Hollingshead e Redlich, realizado em New
Haven (apud Bastide, idem, p. 161). A partir de um índice de posição social e de uma
tipologia com cinco classes, esses autores constatam, por um lado, que o número global de
doenças aumenta à medida que descemos na escala social, e, por outro, que o número de psi-
cóticos domina nas classes inferiores: "o gênero de vida da classe baixa surge como
estimulante do desenvolvimento de transtornos psicopáticos. Inferimos (com base nos dados)
que o grande número de psicoses nas áreas desprivilegiadas é um efeito das condições de
vida dos estratos socioeconômicos inferiores da sociedade" (apud Bastide, idem, p. 242).
Essa hipótese é contradita pelos resultados de outros estudos. Na Pensilvânia, Graham2
encontra os transtornos mentais mais graves nas classes superiores.
Em Ontário, Laughton3 não vê diferença significativa entre as várias classes, seja no número
de doentes mentais, seja na divisão por tipo de doença.
As divergências do resultado das correlações entre a classe a que se pertence e o surgimento
de doenças mentais mostram os limites dessa abordagem. Além do fato de as estatísticas não
serem confiáveis nesse domínio, a própria interpretação dos dados cria problemas: o fato de
encontrar uma correlação estatística não estabelece, na verdade, que haja uma causalidade
linear direta entre a posição de classe e os problemas psíquicos. Estes são produto de uma
multiplicidade de fatores complexos que não é possível reduzir a um fator social simples.
Para Bastide, o papel das classes sociais na etiologia das doenças mentais tem mais a ver
com as dificuldades enfrentadas pelos indivíduos deste ou daquele grupo para mudar de
posição social do que com o pertencimento a este ou aquele grupo:

Assim, menos que a posição social, a rigidez do sistema de classes, os obstáculos


crescentes enfrentados pela vontade de ascensão e a ruptura com essa
comunicabilidade entre uma

______________
1.T. Rennie, L. Stole, M. K. Opler e T. Laugner, "Urban life and mental health. Socioeconomic status and mental disorder
in the metropolis”, American Journal of Psychiatry, n. 113, 1957, p. 173.
2.S. Graham, "Socioeconomic status and illness, and the use of medical services”, Milbank Memorial Fund Quarterly, 35,
1957.
3. K. B. Laughton, "Socioeconomic status and illness", idem, 36, 1958.
Neurose e neuroses de classe • 89

classe e outra definiram a sociedade do capitalismo nascente e, talvez, sejam fatores


explicativos do número muito maior de problemas nas classes inferiores, desde que
as estatísticas de Hollingshead e Redlich sejam, ao menos, válidas. (Bastide, [1965]
1977, p. 168)

Essa interpretação, que subscrevemos, estabelece um vínculo entre a evolução das relações
sociais e os conflitos psicológicos enfrentados pelos indivíduos e não entre a posição de
classe e este ou aquele sintoma.
É exatamente nesse ponto de vista dinâmico que nos situamos. Falamos de "neurose de
classe" para descrever o quadro clínico que caracteriza os conflitos psicológicos vividos por
indivíduos que mudam de posição dentro da estrutura de classes.

SOBRE A NEUROSE
Não temos a pretensão de desenvolver aqui uma teoria geral da neurose, que teria de referir-
se a uma teoria geral da personalidade. Mas é preciso delinear algumas referências básicas
para situar a noção de neurose de classe que nos serve para descrever o roteiro
sociopsicológíco característico dos indivíduos que enfrentam a mudança de posição social.
Duas noções são essenciais para compreender o desenvolvimento dos transtornos neuróticos:
a noção de estrutura e a noção de conflito.
Os estudos sobre a personalidade dão ênfase às características de globalidade, coerência e
permanência que definem a estrutura:

Uma estrutura é um sistema de transformação que comporta leis enquanto sistema


(em oposição às propriedades dos elementos) e que se conserva e enriquece com o
próprio jogo dessas transformações [...] A estrutura, portanto, inclui as três
características de totalidade, transformação e autorregulação. (Piaget, 1970, p. 6-7)

O funcionamento do aparelho psíquico corresponde a essa definição, na medida em que se


trata de um sistema de transformação que, ao mesmo tempo em que assegura uma certa
permanência, é capaz de integrar elementos novos: ''A pessoa é uma estrutura, ou seja, um
conjunto organizado de partes interdependentes e regidas por leis de autorregulação, sob o
duplo aspecto de equilíbrio interno e ajuste externo; em consequência, tende à coerência e à
permanência” (Perron, 1986, p. 13).
Nessa óptica, a neurose pode ser definida como uma disfunção desse processo de equilíbrio
do funcionamento interno e do ajuste externo do aparelho psíquico, que age, portanto, como
"estrutura fechada, pela tendência à repetição e resistência à mudança, [a neurose] se
consolida com o próprio funcionamento” (idem, p. 11).
O problema, portanto, é determinar as causas dessas disfunções, ou seja, a natureza dos
conflitos que vêm perturbar a organização e o desenvolvimento da psique.
O Vocabulário da psicanálise definiu a neurose como "afecção psicogênica em que os
sintomas são a expressão simbólica de um conflito psíquico que tem raízes na história
infantil do sujeito e constitui uma acomodação entre o desejo e a defesa” (Laplanche e
Pontalis, 1967, p. 267).
O conflito psíquico é o elemento central da teoria freudiana das neuroses. Há conflito
quando o sujeito enfrenta dentro de si exigências opostas, quando está diante de tendências
contraditórias. Dizem que a psicanálise considera o conflito como elemento constitutivo do
ser humano, podendo assumir formas diferentes: conflitos entre instâncias, entre pulsões,
entre o desejo e a defesa, entre o desejo e o proibido.
90 • A neurose de classe

"Quando se tem uma visão geral da evolução das representações que Freud deu do conflito,
ficamos espantados [...] porque em um dos polos do conflito está sempre a sexualidade,
enquanto o outro é buscado em realidades mutáveis ('Eu’, 'pulsões do Eu’, 'pulsão de
morte')" [...] (idem, p. 93). Qual é a justificativa teórica desse privilégio conferido à
sexualidade nesse conflito, perguntam J. Laplanche e J.-B. Pontalis, indicando que Freud, na
verdade, não respondeu a essa pergunta.
Em um artigo de 1896 sobre hereditariedade e etiologia das neuroses, Freud analisa as
causas específicas da neurose:

[...] cada uma das grandes neuroses tem, como causa imediata, um problema
particular da economia nervosa. Essas modificações patológicas funcionais
reconhecem como fonte comum a vida sexual do indivíduo, seja o transtorno da vida
sexual atual, sejam acontecimentos importantes da vida passada. ([1896]1973, p. 47)

Também se encontra essa importância atribuída à vida sexual na etiologia das neuroses
quando Freud examina os fatores que provocam a entrada na neurose. Entre esses diversos
fatores, a frustração e a incapacidade de se adaptar a uma realidade por fixação são
apresentadas como essenciais.
A frustração: o indivíduo tem boa saúde enquanto sua necessidade imperiosa de amor for
satisfeita por um objeto real do mundo exterior: "Ele se neurotiza quando esse objeto lhe é
retirado sem que, em seu lugar, se ofereça um substituto [...]”. A frustração tem como efeito
represar a libido, provocando uma tensão psíquica. Esta pode ser aliviada de duas maneiras:

A primeira consiste em converter a tensão psíquica em energia ativa voltada para o


mundo exterior que, finalmente, força o indivíduo a dar satisfação real à libido; a
segunda é renunciar à satisfação libidinal, sublimar a libido represada e utilizá-la para
atingir metas que não são mais eróticas e escapam à frustração. (Freud, [1912]1973,
p. 176)

Se o Eu não consegue dar à libido uma satisfação substitutiva (por deslocamento do objeto
ou por sublimação), o conflito deságua na formação de sintomas.
A incapacidade de se adaptar a uma realidade por fixação: o indivíduo não adoece devido a
uma modificação do mundo exterior que substitui a satisfação pela frustração, mas porque
esbarra nas dificuldades internas de se adaptar às exigências da realidade externa.
O indivíduo, devido a uma rigidez interna, não consegue trocar uma satisfação anterior por
outra para se adaptar às modificações do ambiente: "O conflito se apresenta imediatamente
entre o esforço de se modificar em função de novos desígnios e novas exigências da
realidade" (idem, p. 177) Quando as fixações anteriores da libido são suficientemente fortes
para impedir essas modificações, para "oporem-se a um deslocamento”, instaura-se um
conflito que inibe tanto as satisfações anteriores às quais o indivíduo estava acostumado
quanto as que tentava obter.
Nesses dois tipos de entrada na neurose 4, os exemplos oferecidos mostram que a frustração,
segundo Freud, está sempre ligada a uma insatisfação sexual.

_____________________________
4. Freud também fala da "inibição do desenvolvimento” e de "suspensão súbita da libido”, indicando que considera esses
tipos secundários em relação aos outros dois.
Neurose e neuroses de classe • 91

Sem minimizar a importância da sexualidade como elemento motriz do desenvolvimento


psíquico, parece, contudo, que os processos neuróticos podem ser provocados por conflitos
de outra natureza. Assim, a frustração também pode ter raiz social quando a criança constata
que seus pais são dominados ou invalidados, que outras crianças têm melhor sorte do que
ela, que seu modo de ser ou de falar é utilizado para lhe transmitir uma imagem negativa de
si. Nesse caso, e o processo é bem aquele descrito por Freud, a criança pode converter a
tensão psíquica em energia ativa para compensar a desvalorização narcísica que sofreu,
como, por exemplo, na dedicação ao trabalho que caracteriza os neurotizados pela
promoção.
Do mesmo modo, a incapacidade de se adaptar a uma realidade por fixação corresponde à
situação das crianças que enfrentam a necessidade de se adaptar a dois mundos sociais
diferentes e, de certo modo, opostos.
A rigidez e a falta de adaptabilidade que Freud menciona estão, sem dúvida, ligadas aos
aspectos constitucionais, mas também às exigências contraditórias enfrentadas por toda
criança que muda de classe social: há risco de neurose quando coexistem, em uma relação
conflituosa que tende a se congelar, habitus, ideais e identificações inconciliáveis. Nesse
caso, o indivíduo permanece, por um lado, apegado (energia ligada) aos objetos do
investimento original (mais frequentemente, ligados ao grupo familiar), enquanto conviria se
afastar deles para se adaptar a uma situação nova. Ele resiste a se dedicar a um trabalho de
desidealização, de desidentificação, de desincorporação dos habitus, não só devido à rigidez
interna, mas também porque há antagonismo entre esses ideais, identificações e habitus.
O comportamento humano, em boa medida, é codificado pelos modelos afetivos, sociais e
ideológicos do grupo original a que o indivíduo pertence. O uso desses códigos é
internalizado por ele como necessidade vital de adaptação ao meio. O ambiente social está
sempre a postos para nos "chamar às falas", para nos transmitir "o que temos de fazer, o que
nos permitem fazer, o que não é permitido, o que é absolutamente proibido e como temos de
nos comportar" (Mitscherlich, [1963] 1969). Mas esse ambiente não é unívoco. A
internalização do código inicial pode levar o indivíduo a esbarrar em outras prescrições,
imperativos, proibições, modelos. O Eu, portanto, é levado a escolher, a encontrar
acomodações, a inventar mediações em relação àqueles vínculos sucessivos que o
constituem. Quanto maior a distância entre os diversos modelos, mais os possíveis objetos de
investimento se excluem; quanto mais as figuras de identificação se opõem, mais o conflito
vivido terá repercussões psíquicas intensas.
Em um estudo sobre os conflitos de transculturação, J. Palmade (1972, p. 309) definiu o
conflito como a "presença de tendências contraditórias que o indivíduo não pode resolver
sem desequilíbrio e insatisfação [...] Um dos indicadores de conflito seria a impossibilidade
do Eu de encontrar uma saída satisfatória e adaptada à exigência (admitida pelo sujeito,
portanto internalizada) do ambiente”.
Do mesmo modo, Dallas Pratt 5 analisa a situação dos estudantes estrangeiros nos Estados
Unidos:

____________
5.Dallas Pratt, "Rôle des valeurs culturelles dans la santé mentale de l’étudiant étranger", Bulletin international des sciences
sociales, v. VIII, n. 4, 1956, p. 612-620. Pode-se igualmente consultar a esse respeito o trabalho de Norma Takeuti,
"Conflits d'identification culturelle chez les étudiants brésiliens en France”, tese de pós-graduação, Paris IX, 1985.
92 • A neurose de classe

[...] o fato de ir ao exterior ou de lá residir por algum tempo pode provocar conflitos
mentais quando se cria uma rivalidade entre ideais e escalas de valor diferentes [...] O
que mais ameaça a saúde mental é o estremecimento dos alicerces profundos da per-
sonalidade; ora, esses alicerces têm sua base na infância e na cultura de origem, ou na
cultura assimilada depois de muito tempo.

Essas abordagens diferentes tendem a esmiuçar a distinção entre os conflitos intrapsíquicos,


que viriam de exigências inconscientes e cuja fonte estaria na estruturação da personalidade
quando das primeiras experiências infantis, e os conflitos do Eu, que viriam de uma tensão
entre essas exigências internalizadas e a adaptação ao meio ambiente externo. Esse esforço
de esclarecimento é útil para compreender melhor o funcionamento do aparelho psíquico,
desde que não deságue em uma oposição entre os fatores internos, que seriam de ordem
psíquica, e os externos, que seriam de ordem social.
Freud explicou, a respeito dos tipos de entrada na neurose, que a doença surgia por
"sucessivas erupções de lava”, cada uma delas podendo relacionar-se a um tipo diferente de
fator deflagrador, alguns mais internos, outros mais externos:

[...] o primeiro tipo (frustração) nos mantém no espírito a influência


extraordinariamente potente do mundo exterior; a segunda (fixação), a influência não
menos importante do temperamento particular do indivíduo que se opõe a ela [...] A
psicanálise nos exortou a abandonar a oposição estéril entre fatores externos e
internos, entre destino e constituição, e nos ensinou a encontrar regularmente a causa
do início da neurose em uma situação psíquica determinada que possa se instaurar
por vias diferentes. ([1908-13] 1973, p. 182)

Há uma ambiguidade no pensamento de Freud, que admite que os fatores deflagradores da


neurose podem ser internos e/ou externos, mas que dá importância quase exclusiva à vida
sexual como "fonte comum" de cada uma das grandes neuroses (idem, p. 53 e ss.). Ora, ao
lado desses aspectos sexuais, que não é nosso propósito minimizar, parece-nos oportuno
abrir espaço para outros fatores que intervêm na deflagração e desenvolvimento de um
processo neurótico.
A característica principal da neurose de classe é realizar uma colagem entre os elementos
sexuais e sociais do processo: os primeiros afetos ligados a experiências sexuais infantis
(mal ou bem sucedidas) sendo ligados a questões sociais conflituosas. O conflito que
provoca o traumatismo pode ser a princípio, social, a experiência sexual provocando o
investimento libidinal nas questões sociais; pode, igualmente, se tratar de um conflito sexual
sobredeterminado pelas questões sociais, em uma configuração sociossexual que liga os
diversos aspectos.
É esse emaranhamento entre elementos de natureza diferente - sexuais, afetivos,
fantasmáticos, ideológicos, culturais - que é preciso, portanto, analisar: entender como
reúnem-se uns aos outros, de que maneira estão interligados, como suas articulações se
constituem com o passar do tempo para chegar a uma configuração específica.
Aqui nossa abordagem se une à análise proposta por Max Pagès a partir do conceito de
poder, definido como um vínculo de reforço entre três processos: "processo de dominação
social, processo inconsciente de fantasmatização e clivagem, processo de inibição das trocas
corporais e emocionais"6. A articulação entre esses três tipos de

______________
6. M. Pagès, "L’emprise”, Bulletin de psychologie, t. XXXVI, n. 360, maio-junho de 1983, p. 503-509.
Neurose e neuroses de classe • 93

processos funciona segundo uma circularidade dialética que torna inúteis os debates sobre a
primazia de um ou de outro: "a dominação, produto da fantasmatização e da inibição
corporal; a inibição, produto da fantasmatização e da dominação [...] trata-se de sistemas
dialéticos que interligam contradições e conflitos de diversas ordens"7. O essencial, portanto,
é compreender as articulações entre os processos de mediação no nível sociológico do poder,
os processos de defesa no nível dos conflitos psicológicos inconscientes, as relações
fantasmáticas e as tensões corporais. Assim, ele mostra que cada um desses polos (a luta de
classes, o inconsciente, o corpo) funciona de acordo com lógicas autônomas que, entretanto,
estão em correspondência e conjugação mútuas.
A análise de Max Pagès tem o mérito de ultrapassar as oposições criadas entre termos
diferentes (psicologia/sociologia, psíquico/social, interno/externo, inconsciente/poder etc.)
para se concentrar na relação entre esses diversos termos e descrever os processos que os
unem: "os sistemas de poder se encontram no cruzamento de determinações internas e
externas [...] Na questão psicossociológica, o dentro cria seu próprio ambiente, o fora
estrutura o dentro; é na reciprocidade dessas influências que é necessário apreender a gênese
dos sistemas sociomentais"8.
Essa concepção da articulação entre os processos psíquicos e sociais está, do mesmo modo,
muito próxima do pensamento de G. Gurvitch que, para criticar as concepções mecânicas da
causalidade, propôs o princípio da reciprocidade de perspectivas, na medida em que o
psiquismo e o social implicam-se mutuamente em um jogo de complementaridade dialética:
"São contrários que se completam dentro de um conjunto por um duplo movimento que
consiste em crescer e se intensificar simultaneamente no mesmo sentido e em sentidos
opostos, graças ao jogo das compensações".9
Assim, os conflitos de ordem sexual, essencialmente de origem psíquica, e os conflitos de
ordem social ligados à mudança de classe podem estabelecer uma correspondência e, como
diz Gurvitch, "crescer e se intensificar no mesmo sentido" ou compensar-se, aniquilar-se uns
aos outros. Em um caso teríamos uma neurose, no outro o indivíduo encontraria respostas
satisfatórias para os conflitos que enfrenta ao lidar com registros diferentes. Como observa
Bastide:

[...] é preciso entender as diversas variáveis não como na mecânica, ou seja, como
um conjunto de fatores isolados que age separadamente, somando-se ou subtraindo-
se, e se expressando, finalmente, em um teorema da composição de forças, mas de
modo dinâmico, como um sistema global em movimento no qual é impossível
separar analiticamente a ação da constituição mental e dos micro e
macrogrupamentos, e extrair um antes e um depois, porque tudo está unido em
dependência mútua. (l965, p. 251)

Essa é a razão pela qual a mesma situação social não produz as mesmas reações psíquicas,
reações que, por sua vez, influenciam a natureza das situações encontradas: diante de
mudanças similares de classe, alguns indivíduos ficam neuróticos, outros não. Há neurose a
partir do momento em que os conflitos ligados à trajetória social e

________________________
7. Idem, p. 504.
8. Idem, p. 508.
9. G. Gurvitch, Déterminismes sociaux et liberté humaine, Paris: PUF, 1955, e Dialectique et Sociologie, Paris:
Flammarion,1962.
94 • A neurose de classe

aqueles ligados ao desenvolvimento psicossexual se apoiam reciprocamente e produzem um


reforço mútuo. O psiquismo age como um filtro que toma do social elementos que manterão
as inibições, reforçarão as defesas, amplificarão os conflitos internos; reciprocamente, os
conflitos sociais que o indivíduo enfrenta configuram sua personalidade, reverberam em seu
funcionamento psíquico, sem que se possa estabelecer uma anterioridade das influências.
Dado que a neurose se instala por erupções sucessivas, o indivíduo, desde que nasce, está
preso nas relações familiares e sociais que condicionam seu desenvolvimento psíquico.
Essa concepção permite sair dos debates entre as abordagens que consideram a neurose um
produto das contradições sociais e as que buscam sua causa na hereditariedade genética ou
em disfunções psíquicas. A busca da causa suprema, de um fator preponderante, leva a uma
concepção mecanicista do desenvolvimento individual. A neurose de classe é, ao mesmo
tempo, produto de conflitos sexuais, relacionais e sociais, que se sustentam uns aos outros
em um sistema de influências recíprocas.
A neurose de classe se caracteriza pelo fato de que a complementaridade dialética age no
sentido de reforçar os conflitos vividos pelo indivíduo. A inibição sexual reforça a inibição
social e vice-versa, como se os diversos elementos estivessem colados uns aos outros, e sem
que se possa determinar um elemento deflagrador exclusivo. O que distinguirá a neurose de
classe das outras formas de neurose é a importância dos conflitos ligados ao deslocamento
social no surgimento da doença. O indivíduo vive uma lacuna conflituosa entre a posição
objetiva e a subjetiva, conflito que influencia o desenvolvimento psíquico a ponto de
provocar problemas mentais.
Excluímos dessa discussão os fatores biológicos. A problemática dos biólogos não está
muito afastada da nossa. Assim, F. Jacob mostra que a articulação de fatores biológicos e
culturais se efetua por uma interação incessante entre os genes e o meio ambiente:
[...] nos organismos complexos, o programa genético [...] em vez de impor instruções
rígidas, confere ao organismo potencialidades e capacidades [...] os 46 cromossomos
do ser humano lhe conferem uma série de aptidões físicas ou mentais que ele pode
aproveitar e desenvolver de maneira muito variada, segundo o meio e a sociedade em
que viveu e cresceu. É o equipamento genético, por exemplo, que dá à criança a
capacidade de falar. Mas é o meio que lhe ensina uma língua em vez de outra. E não
importa qual seja o caráter, o comportamento do ser humano é configurado por uma
interação incessante dos genes com o meio. Essa interdependência entre o biológico e
o cultural é subestimada com muita frequência [...] Em vez de considerar esses dois
fatores como complementares e indissoluvelmente ligados na formação do ser
humano, busca-se contrapô-los. (l981, p. 119)
Esta última frase poderia também se aplicar à interdependência entre o social e o
psicológico.
Em resumo, podemos afirmar que, na origem da neurose e dos problemas mentais, há
sempre um conflito interno de ordem psíquica. A questão, portanto, é saber se o conflito é
produzido por uma disfunção psíquica, uma situação social ou um transtorno orgânico.

1. Não se pode resolver essa questão em termos de oposição (um ou outro), na medida
em que podem intervir diversos fatores, dos quais nenhum pode, a
Neurose e neuroses de classe • 95

priori, ser considerado determinante. Não há um único fator causal, mas um conjunto
em interação, formando um sistema.
2. Fatores biológicos, psicológicos e sociais podem intervir na gênese do conflito
psíquico, sob diversas formas e composições. Embora um dos fatores possa, em um
caso ou noutro, ser considerado dominante, de modo algum isso exclui a intervenção
dos outros.
3. A neurose de classe é uma forma de neurose clássica (trata-se de um problema
psíquico) na qual os fatores sociais tiveram papel essencial, para não dizer
preponderante: a desclassificação é um dos componentes centrais do conflito inicial
que provocou a neurose. Portanto, há repercussões em nível psíquico de um conflito
social.

A expressão "neurose de classe", que propomos, tem valor mais descritivo do que
nosográfico, na medida em que nos esforçamos para descrever um certo tipo de conflito,
mais do que um certo tipo de funcionamento psíquico.
Ou seja, não nos envolvemos em uma discussão que tenderia a especificar a neurose de
classe em relação às classificações contemporâneas das doenças mentais ou das diversas
formas de neurose.
Trata-se, principalmente, de designar com essa expressão um quadro clínico que caracteriza
os indivíduos nos quais os problemas estão ligados (consciente ou inconscientemente) a um
deslocamento social.
O conflito se manifesta especificamente no nível psicológico por:

• reativação do sentimento de culpa,


• forte sentimento de inferioridade,
• dificuldade característica diante do complexo de Édipo, cujos componentes sexuais e
sociais são objeto de apoio recíproco,
• desenvolvimento de uma atividade fantasmática, nos moldes do romance familiar, que
constitui um mecanismo de defesa contra a inferioridade social,
• um mecanismo de desdobramento ligado ao sentimento de estar dividido por dentro, e
• isolamento e fechamento sobre si.

Esses diversos componentes da neurose de classe podem variar entre um caso e outro e, no
mesmo indivíduo, entre um período e outro. A questão, portanto, é determinar em que
momento se pode falar de neurose. Na maioria dos indivíduos, os problemas surgem ou
desaparecem segundo variações periódicas mais ou menos intensas. Ou seja, a fronteira entre
as chamadas dificuldades existenciais e a neurose não é evidente.
Estimamos que as dificuldades existenciais tenham caráter neurótico a partir do momento em
que se reúnem três condições:

• o conflito é causa de uma ansiedade profunda que inibe parte da atividade sexual e/ou
social do sujeito,
96 • A neurose de classe

• O indivíduo não consegue encontrar solução no longo prazo para realizar mediações
satisfatórias dos conflitos que o invadem, e
• ele se encontra em uma situação repetitiva caracterizada por um roteiro cuja trama
reproduz, consciente ou inconscientemente.

ANÁLISE DO CASO DENISE LESUR/JANNIE ERNAUX


Para ilustrar a nossa análise da neurose de classe, escolhemos utilizar um material
autobiográfico publicado em vez de uma entrevista, em parte devido ao interesse clínico,
mas também porque seu caráter público permite que qualquer um o consulte. A utilização de
entrevistas pode constituir um grande inconveniente para as hipóteses de pesquisa. Elas não
podem ser transmitidas em estado bruto, e é o pesquisador quem realiza sua recomposição
em função das hipóteses que tenta validar. Ao fazê-lo, não permite ao leitor discutir a
pertinência do que foi retido ou abandonado na passagem entre o material inicial e o que
permanece na apresentação. É por essa razão que preferimos usar um caso publicado,
portanto acessível a todos. Retomaremos a discussão sobre o status desse tipo de material.
Os dois testemunhos que Annie Ernaux10 nos dá sobre sua vida em O lugar e Os armários
vazios são de uma riqueza excepcional. Com a escrita, a autora efetua um verdadeiro
trabalho terapêutico no qual descreve o conjunto de conflitos ligados ao "dilaceramento
social”. Evocamos sua situação a respeito dos conflitos de identidade ligados à promoção
social. Trata-se agora de analisar por meio de que processos esses conflitos podem se tornar
neuróticos.
Em O lugar, Annie Ernaux escreve na primeira pessoa e se apresenta como sujeito do
romance; em Os armários vazios, dissimula-se por trás da história de Denise Lesur. Embora
essa diferença explique o trabalho realizado pela autora durante os nove anos que separam os
dois romances, nem por isso deixam de ser testemunhos autobiográficos nos quais a autora
tenta compreender a relação entre a situação social dos pais e os conflitos psicológicos que
viveu desde a infância até o casamento.
A culpa é tema recorrente em todos os casos de neurose de classe. Em Os armários vazios,
Annie Ernaux descreve com perfeição sua gênese e desenvolvimento, permitindo entender os
diversos componentes e, em particular, os vínculos entre a culpa sexual e a social.
Annie Ernaux conta que, ao chegar ao sexto ano de uma escola particular, é levada a se
submeter ao ritual da confissão: mandaram-na responder um questionário e listar todos os
seus pecados, o que ela fez com dedicação antes de entrar no confessionário onde o padre
parece se interessar essencialmente pela sexualidade: "Saí suja e só. Era só eu, ninguém mais
passava o dedo na ‘preciosa’, ninguém mais a olhava no espelho... Se as outras fossem como
eu, não teria feito tanto escarcéu. Não havia o que fazer, fui rejeitada, separada das outras
por expedientes imundos”11

______________
10.Annie Ernaux, La place, NRF, Paris: Gallimard. 1983 e Les armoires vides, Paris: Gallimard. 1974. O número das
páginas é da edição de 1984. Collection Folio.
11. Annie Ernaux, Les armoires vides, op. cit., p. 65.
Neurose e neuroses de classe • 97

Ela então se lança ao trabalho de reconhecer o bem e o mal, o puro e o impuro, de distinguir
"pecado e não pecado”. É nesse momento que percebe que uma diferença a diferencia
radicalmente das outras meninas da mesma idade, cujas faltas são basicamente anódinas,
sem importância, sem consequências. Annie se sente marcada, isolada das outras:

Só eu fico com o meu velho pecado inclassificável, nem mortal, nem venial,
inominável, mistura de sordidez viciosa, não toque nisso, balas roubadas, cassoulet
esfregado nas marmitas dos operários de obra, sonhos flácidos durante as aulas e,
sobretudo meus pais, meu meio de lojistas sujos.12

Assim, o ato de pertencer a seu meio e a ideia de pecado, de mal, de culpa estão
indissociavelmente ligados: "Uma coisa nojenta e impura me cerca definitivamente, ligada
às minhas diferenças, ao meu meio"13.
Mas, embora possa haver absolvição para o que diz respeito à sexualidade, pecado que ela
descobre ser comum a todas as meninas de sua idade, isso não acontece com o pecado ligado
à diferença: "A igreja rejeita tudo em bloco, a minha mãe acachapada de fadiga, o meu pai
que tira a dentadura depois de comer, os meus prazeres que eu achava inocentes [...] Todas
as rezas de penitência de nada adiantariam. É preciso que eu seja punida”14.
Por mais que diga: "Meu Deus, meu Deus, a culpa não é minha, faça com que isso mude,
que os meus pais se pareçam com os outros"15, Annie sabe que sua prece não será atendida e
que permanecerá com esse mal cuja causa não compreende, mas cujos efeitos vê
cotidianamente: nas reflexões dos professores sobre "coisa que não se faz" e "que não se diz':
nos olhares condescendentes ou zombeteiros que a diretora e os colegas de classe lançam
sobre seus pais na primeira comunhão, nas comparações entre pessoas "bem-educadas" e
"mal-educadas”.
Esse pecado é a tomada de consciência, a princípio brutal, depois progressiva, de que seu
comportamento, seu modo de ser, seu jeito de falar que lhe pareciam naturais não são
compartilhados por todo mundo e, sobretudo, são condenados pelas "autoridades" às quais os
próprios pais dizem ser preciso obedecer. Ela percebe, portanto, a diferenciação entre as
classes sociais e que, dentro dessas diferenças, há os bons e os maus, as pessoas “de bem” e
as outras. À constatação da distância objetiva entre ricos e pobres, moradores do centro da
cidade e os de seu bairro, as crianças da escola pública e as da particular, sobrepõem-se a
consciência subjetiva dos valores atribuídos a uns e outros, a percepção dos processos de
classificação, hierarquização e invalidação:

A partir dos 12 anos, fiz a minha pequena tabuada, um sistema de medidas. As pes-
soas de bem têm carros, pastas, capas de chuva, mãos limpas. Têm a palavra fácil,
não importa onde, não importa corno. No guichê do correio, em voz alta: “Não é
possível!”. Meu pai nunca protesta. Podem deixá-lo esperando horas. As mulheres,
bem ... elas são

________________
12. Idem. p. 87.
13. Idem, p. 67
14. Ibidem.
15.
Idem. p. 90.
98 • A neurose de classe

todas especiais, o corte do cabelo, o tailleur, as joias, discretas, nenhuma palavra


mais alta que a outra ... A leveza é isso, impecáveis e limpas. Os outros se parecem
todos com os fregueses: operários de macacão, a boina ou o boné, a bicicleta...
Mesmo quando endomingados, nos dias de comunhão, todos reparam, as unhas
pretas, sem punhos na camisa, sobretudo o modo de andar, os braços pendurados,
moles, incertos. Não sabem conversar corretamente, vociferam. As mulheres que
vêm fazer as compras do dia, com seus chinelos, as sacolas de lona encerada, todas se
parecem, gordas ou magras demais, sempre deformadas, os peitos afundados e
ausentes ou caídos pesadamente na cintura, as nádegas cercadas pela cinta... Nunca
pensei que as diferenças pudessem vir do dinheiro, acreditava que era coisa inata, o
asseio ou a grosseria, o gosto pelas coisas bem-feitas ou o deixa-pra-lá.16

Vemos despontar nessa descrição os dois mundos que dilaceram Annie Ernaux, cada um
deles portador de habitus que permitem distinguir as pessoas de bem, portanto "bem-
educadas”, e as outras.
"O bem era confundido com o limpo, o bonito, uma facilidade de ser e falar, em suma, com
o 'belo: como se diz na aula de francês; o mal era o feio, o nojento, a falta de educação.” 17
De um lado, a autoafirmação, a limpeza, a ligeireza, o espiritual, a discrição, a fluência, a
correção, a elegância, a fineza, o bom gosto. De outro, a submissão, a sujeira, a gordura, a
monotonia, a resignação, a grosseria, a moleza, a deselegância, a vulgaridade e o mau gosto.
De um lado as qualidades, de outro os defeitos. A falha, portanto, é ser "mal-educado".
A dominação entre as classes sociais funciona em termos de invalidação, desvalorizando os
comportamentos, habitus e valores das classes "inferiores" e apresentando como modelos e
"qualidades" os habitus das classes "superiores”. A linguagem corrente é cheia de termos que
conotam, ao mesmo tempo, a diferença social e as diferenças de valor em termos morais:
“nobreza” designa uma classe e uma qualidade do coração, "afluência” e "fluência”, a
facilidade de quem tem dinheiro e um comportamento; pessoas "bem-educadas" são
corteses, cultas, distintas, enquanto as "mal-educadas" são descorteses, incultas, vulgares etc.
Quando falamos em "mau gosto”, indicamos não só uma falha em relação aos cânones da
cultura dominante como também que se trata de uma falha que condena o autor, percebido
então como mal. Encontramos essa colagem na dificuldade de qualificar as classes sociais.
Falar de classes superiores e inferiores é, ao mesmo tempo, indicar posições dentro da
estrutura social e também uma hierarquia de valor que tende a associar, de um lado, a
dominação de uma classe à superioridade das pessoas que a compõem e, de outro, o fato de
ser dominado, ao ser “inferior”.
Diante desse processo de invalidação que transmite à criança uma imagem negativa dos pais,
as tentativas de revalorização têm pouco peso: os pais de Annie Ernaux pregam honestidade,
hospitalidade, prestimosidade, solidariedade, sobriedade, coragem, sucesso por meio do
trabalho, luta contra a hipocrisia.
Mas todos esses valores, na verdade, disfarçam a aceitação de seu destino, a resignação com
seu estado, uma submissão à ordem estabelecida que a criança vi-

_______________
16.
Idem, 97.
17.
Idem, p. 107.
Neurose e neuroses de classe • 99

vencia como covardia: eles não querem ver o que realmente são. Dizem "que não é preciso
comer sardinha e arrotar caviar': "que é preciso conhecer seu lugar", valores que contribuem
para desqualificá-los, já que assim aceitam a humilhação e o desprezo de que são objeto. É
ao se confrontar com esses processos de invalidação que a criança descobre a existência das
classes sociais, e só mais tarde poderá fazer o vínculo com os processos de exploração e
desigualdade econômica. Ela constata que o bem não está principalmente do lado do pai e da
mãe; que eles chegam a ser "mal"comportados, "mal" -ajambrados, "mal" vestidos, que
gaguejam diante de pessoas mais importantes do que eles, como se fossem culpados, como
se realmente tivessem sido pegos em falta. É que o Supereu está impregnado de valores da
classe dominante. Quem fala em "gente direita” indica à criança e a si mesmo um
comportamento a seguir, da ordem do Supereu; é assim que se faz para ser respeitado, para
ser "de bem': e, por outro lado, uma condenação implícita dos que não obedecem a essa
ordem.
Annie Ernaux se descreve como invadida por uma tensão insuportável entre o apego aos pais
e o desprezo que eles lhe inspiram:

Apesar de tudo, eram pequenos merceeiros, os donos do boteco da esquina,


contadores de moedas, gente medíocre [...] já não bastava ser uma depravada,
furtiva, uma menina nojenta e gorda diante das colegas de classe, leves, livres, puras
em sua existência [...] Era preciso ainda que eu passasse a desprezar meus pais.
Todos os pecados, todos os vícios. Ninguém pensa mal do pai nem da mãe. Só eu. 18

Entendemos que a falha, para Annie Ernaux, condensa aqui três elementos: por um lado, a
vergonha social e sexual; por outro, o ódio diante dos que lhe ensinam o bom gosto e,
portanto, o desprezo; o saber e, portanto, a possibilidade de comparar; a inveja de ser como
eles e, portanto, a se afastar dos pais; enfim, a ambivalência diante dos pais, feita de amor
misturado ao ódio, de apego e desapego, de gratidão e culpa. Retomemos esses três pontos:

1) A cena da confissão realiza uma colagem entre a ideia de pecado, a noção de


impureza e o meio familiar de Annie. Até esse momento, Annie vivia a sexualidade como
um prazer que não era objeto de proibições específicas. Seu despertar sexual e, mais tarde, a
chegada da menstruação, que ela aguarda com impaciência, assim como as primeiras
experiências sexuais, são vividos como descobertas, aventuras que não provocam mal-estar
nem culpa. O que lhe causa problemas é, por um lado, a sensação de ser diferente das outras
meninas da escola e, por outro, a sensação transmitida pelo padre de que há nela alguma
coisa suja, impura, depravada e má. Portanto, é ao fato de pertencer a seu meio que vão se
fixar esses diversos adjetivos. A repugnância pelos bêbados que vomitam no pátio, a sujeira
dos fregueses do bar, a pobreza da lona encerada, a imundície da casa é que se tornam signos
de impureza, que significam esse vício que ela tem em si e que lhe é censurado. A vergonha
não vem do prazer, das carícias, mas da imagem negativa dos pais, da família, de si mesma,
que lhe é transmitida. O mal é essa sua diferença. Sua falha é ser filha de pais "medíocres" e
querer ser diferente. A punição é a solidão e a humilhação.

_________________
18. Idem, p. 99.
100 • A neurose de classe

Assim, misturam-se no mundo de Annie Ernaux, de um lado, pureza, riqueza e bem-estar e,


de outro, impureza, pobreza e sujeira. As meninas da escola, bem vestidas, com casas
bonitas, não podem ter maus pensamentos. Estes são apanágio das "colegas da rua”, com as
quais dividiu "jogos furtivos" nos porões e armários do pátio, as primeiras descobertas dos
prazeres do corpo associados a seu mundo "sujo”. Assim, Annie se vê como a única de sua
espécie na escola, a única a ser depravada, a única a ser filha de pequenos comerciantes: por
ser preciso dar algum sentido à diferença social que lhe é transmitida como tara, é necessário
separar assim o mundo puro do impuro.
Pode-se interpretar seu comportamento como um deslocamento da culpa sexual para a
social. Essa hipótese poderia manter-se se a primeira fosse reprimida, se houvesse em Denise
Lesur uma inibição diante de seus desejos sexuais, uma relação problemática com o corpo e
o erotismo. Embora pouco informada sobre as questões sexuais, ela desperta para o prazer
mais na brincadeira do que na culpa, aguarda com impaciência as primeiras regras, seduz os
meninos sem timidez, busca satisfazer a curiosidade sem restrições específicas. Diante das
perguntas insistentes do padre, a primeira reação é de espanto e surpresa. É em um segundo
momento que o sentimento de culpa vai se impor, ligando à situação social a noção de
pecado que lhe é transmitida devido aos jogos sexuais. O que é "repugnante" não é a
sexualidade, são as condições de vida de seu meio: "Eles se empanturraram de novo na casa
de Lesur! Aqueles olhares de nojo deixam rastros em mim [...] Essa impureza perto da qual
os dedos que se aventuram nas regiões macias, docemente irritadas, à noite; sob as cobertas,
são um jogo quase inocente"19.
2) O ódio é, a princípio, uma reação contra a humilhação sentida diante da invalidação e
do desprezo que os moradores dos bairros elegantes transmitem "com tanta facilidade" ao
seu meio, sua família, seus pais e a ela mesma. Mas esse ódio não pode se transformar em
revolta, na medida em que os próprios pais lhe exigem que se torne "uma pessoa direita", ou
seja, que assimile os valores e os habitus da burguesia por meio da educação na escola
particular em que está matriculada.
Para isso, é preciso internalizar esse novo modelo e rejeitar o dos pais. É preciso que ela
possa dizer: "Não sou como eles, não me pareço com eles"20. Para se distanciar socialmente,
é preciso desligar-se afetivamente dos pais: "Se os escuto, se me deixo levar, se me ponho a
amar a casa dos meus pais como antigamente, vou ficar como eles"21. É preciso começar um
trabalho de desidentificação por meio do aprendizado do desprezo e do ódio. É preciso
resistir à tentação contínua de renunciar a sair dali, combater os momentos de preguiça
quando o conflito é demasiado intenso, o peso do habitus grande demais: "De qualquer
modo, serão sempre meus pais, seus queixumes, seu gosto, sua maneira de falar [...] Isso me
impedirá de sair de lá, de subir"22.
Mas é preciso odiar, responsabilizá-los por todas as humilhações que ela sofre: "Eles não me
ensinaram nada, é por causa deles que zombam de mim"23. Mas esse ódio

______________
19. Idem, p. 101.
20. Idem, p. 94.
21. Idem. p. 106.
22. Idem, p. 112.
23. Idem, p. 115.
Neurose e neuroses de classe • 101

necessário que cresce nela aumenta também a culpa: "Um monstro [...] Vadia, eu tinha cada
vez mais vergonha. Não é verdade, eu não os odiava... Eles queriam que eu tivesse sucesso,
queriam a minha felicidade"24. Assim, ela se vê cada vez mais encurralada na contradição
entre ter sucesso para satisfazer o narcisismo dos pais (vertente ideal do Eu) e odiá-los para
obter esse sucesso.
É preciso mudar o ideal, procurar outras figuras de identificação que correspondam a pessoas
bem-educadas, mas também aos que praticam o ódio e o desprezo por seus pais. Contradição
insuperável que lhe deixará o ódio no coração para que ela possa desmontar sua fonte: "Não
nasci com ódio, não detestei, desde sempre, os meus pais, os fregueses, a loja [...] agora eu
também os outros, os cultos, os profissionais, os respeitáveis"25. O ódio é uma reação a uma
situação. Por ser transmitida uma imagem negativa, não a Denise-Lesur-que-tira-notas-boas,
mas a Denise-Lesur-filha-dos-que-têm-um-bar-e-mercearia-em-um-bairro-pobre, ela
enfrenta a humilhação. Para se libertar dessa imagem negativa, é preciso libertar-se de seu
meio; é preciso se separar dos pais. Paralelamente, para se integrar nesse meio de "gente de
bem", é preciso reprimir a revolta, suportar a rejeição de que é objeto para superar o ódio que
ela provoca: "Nunca se fala delas, da vergonha, das humilhações, a gente as esquece, as
frases pérfidas completas na garganta, principalmente quando se é jovem"26.
A criança é indefesa para se posicionar nesse jogo duplo e contraditório das relações de
classe e da identificação com pais e professores, mais indefesa ainda por depender, objetiva e
afetivamente, destes e daqueles.
3) O ódio aos pais não é apenas a reprodução da invalidação social externa; ele é
igualmente produzido pelos próprios pais, na medida em que a filha descobre que os pais
participam da própria sujeição, que são dominados e que aceitam a dominação: "Quando
lhes falam de cima, é o fim, eles não dizem mais nada”27.
Essa descoberta a leva a desvalorizá-los, provocando a desidealização e a desidentificação.
Há aí uma primeira contradição entre o apego afetivo e o desencanto social: como continuar
a amar dentro da desidealização?
Essa contradição é avivada quando Annie Ernaux descobre que os pais são ambivalentes até
diante dela. Por um lado, exigem explicitamente dela o sucesso escolar e que não brinque
com as colegas da rua; por outro, temem que se torne uma estrangeira, resistem a seu
afastamento, exigem-lhe que seja como eles: "Eles sempre achavam razões para não sair da
sujeira. Esse medo me foi transmitido. Nasci no meio deles, é mais fácil voltar a ser como
eles"28. Assim eles lhe ensinam a submissão e a resignação, participam da sufocação de suas
veleidades de revolta, de questionamento, exigem-lhe que seja diferente ao mesmo tempo
que permaneça como eles!
Surge outro elemento para desconsiderar os pais aos olhos de Annie Ernaux: a tomada de
consciência de que os habitus internalizados lhe valem zombarias e invalidação por parte das
outras crianças. Ela gostaria que não a tivessem ensinado a se comportar "direito'”.

__________________
24. Idem, p. 116.
25. Idem, p. 17.
26. Idem, p. 60.
27. Idem, p. 97.
28. Idem, p. 107.
102 • A neurose de classe

Os pais são duplamente culpados:


• de serem dominados e, portanto, derrubados de seu pedestal, provocando uma ferida
narcísica fundamental na criança que descobre que aqueles que tinha na mais alta
conta são "medíocres", “menos do que nada”, “gentinha” ..
• de não protegê-la, ela, a pequena, a fraca, a indefesa, da zombaria e do desprezo que
as crianças de outras classes transmitem a quem não é como elas.
A humilhação é ainda mais forte quando as diferenças e a estranheza (de habitus, de
linguagem, de comportamento) que a criança sente diante dos colegas de sua idade lhe são
transmitidas pelos adultos como uma tara, algo do qual precisa se livrar. Um professor:
"Srta. Lesur, não sabe que isso não se diz?"29; repreensão implícita a seus pais, que não
ensinaram à filha o bom uso das palavras; repreensão explícita à criança por ser o que é por
utilizar as palavras que aprendeu com a família. Dizem-lhe que não se comporta "direito"
quando age como os próprios pais.
E são esses mesmos pais que lhe dizem que é preciso dar ouvidos aos professores, que se
orgulham da filha porque frequenta a escola particular, porque ficará como aqueles que os
desprezam, porque aprende a arte e a maneira de não ser o que são.
Isso deixa a criança com uma dupla culpa:

• culpa de não "ser direito”. Como na peça de Sartre A prostituta respeitosa, Lizzie e o
Negro se sentem culpados, embora nada tenham feito de errad030. A falha é ser
marginal, estrangeiro, negro, dominado...
• culpa de ter de repreender os pais pelo que são: "Odiá-los me fazia bem", escreveu
Annie Ernaux31, para se afastar do que representam, seu meio, sua classe, para se
libertar de sua linguagem e de seus habitus.

Annie Ernaux volta várias vezes a esse sentimento de ser um "monstro" diante dos pais, que,
por amor a ela, tudo fizeram para que tivesse sucesso e que é preciso odiar.
Uma situação contraditória, no limite do paradoxo. É por amor que os pais levam a filha a
odiá-los. É para satisfazer o desejo dos pais que ela se torna uma menina "bem-educada” que
precisa se afastar deles.
A criança: é por amor que o odeio. Os pais: é por amor que exijo que me odeie. A criança,
portanto, tem vergonha de si, vergonha desse sentimento negativo em relação aos pais:

Vadia, eu tinha vergonha... Cada vez mais. Não é verdade, eu não os odiava... Papai,
mamãe, os únicos que realmente se interessam por mim, só tenho a eles. Querem que
eu tenha sucesso, querem a minha felicidade... Mais tarde vou lhes agradecer, vou
compensá-los. Com lágrimas nos olhos, por que sou tão injusta?32

_____________________
29. Idem. p. 115.
30. J.-P. Sartre, A prostituta respeitosa. Lizzie: Você também se sente culpado. / O Negro: Sim, senhora. / Lizzie: Mas você
não fez nada? / O negro: Não, senhora. / Lizzie: Então o que eles têm para todos ficarem do lado deles? / O negro: Eles
são brancos.
31. A. Ernaux. Les armoires vides. op. cit., p. 82.
32. Idem. p. 116.
Neurose e neuroses de classe • 103

Vergonha ainda de não estar à altura do desejo dos pais de que seja feliz: os pais querem sua
felicidade e ela é infeliz. Ela aceita deles essa exigência contraditória, e lhes é grata, portanto
reconhecida, por seu amor, seu sacrifício. É a problemática da dívida que a criança sente ter
contraído para com aqueles que lhe dizem que lhes deve tudo, dívida que será eterna por não
saber como reembolsá-los. É preciso que ela os ame e odeie ao mesmo tempo, porque lhe
exigem que seja como eles, mas diferente, diferença essa que a obriga a recusar o que os pais
são.
O ódio e a culpa são o meio pelo qual a criança que se afasta conserva, apesar de tudo, uma
relação afetiva com os pais: "Estrangeira diante de meus pais, de meu meio, não queria mais
olhá-los. Os únicos momentos que me reuniam a eles eram as explosões de ódio ou culpa”33.
O ódio também é a descoberta de que os pais modelam o filho de acordo com suas
aspirações, que esperam que ele se ajuste a essa imagem e temem que ele não cumpra essa
expectativa: "Medo de que seja inútil a escola particular, de ter me feito estudar à toa”34, e
em resposta o ódio da criança que teve sucesso e que se volta contra aquilo que se tornou: "É
a mim que odeio. Aproveitei-me deles que labutavam no balcão e os desprezo [...] De que
serve isso, não tenho amiga, não me apego a ninguém [...]"35.
Em um nível mais inconsciente, podem-se interpretar essas reações de Annie Ernaux como
um distanciamento do pai no momento em que o despertar da sexualidade afaz enfrentar a
proibição que pesa sobre os desejos edipianos. Ao se dar conta do desejo do pai de que se
torne "uma pessoa de bem", ela percebe o sonho incestuoso que subtende o projeto paterno.
Em seu fantasma, podem-se considerar indissolúveis a culpa social ligada à descoberta do
desprezo de que os pais são alvo e a culpa edipiana ligada à realização imaginária do desejo
pelo pai. Por ser imperioso o desejo, é preciso odiar e' afastar o pai; por ser proibido, ela se
sente culpada.
Essas duas interpretações não nos parecem excludentes entre si, muito pelo contrário: a
necessidade de se tornar "Senhorita Primeira” na escola é tão imperiosa que é preciso
renunciar a ser a primeira para o pai. O ódio e o desprezo que, de qualquer modo, ela está
condenada a conhecer para se tornar uma "pessoa de bem' lhe permitem expressar de forma
deslocada seu ressentimento diante de sua rival edipiana. A situação social que enfrenta
reverbera no roteiro edipiano em que os pais são objeto de amor e rivalidade. A culpa social
está em estreita ressonância com a culpa edipiana. As contradições que ela vive entre esses
dois universos nos quais tem de se inserir não seriam tão fortes se não se baseassem nas
contradições do projeto paterno que a filha enfrenta por meio da realização de um sonho de
ascensão social, concretizando o sonho incestuoso. A culpa que resulta da proibição de
satisfazer esse outro desejo é um elemento essencial do erro de Annie Ernaux.
O importante é conceber esses dois registros (o registro inconsciente do Édipo e o social da
família e da escola) como tendo, cada um deles, realidade e dinâmica próprias, mas não
independentes. As duas interpretações dos conflitos vividos por Annie Ernaux não se
anulam. É a coexistência que permite explicar sua intensidade. É porque os elementos
fantasmáticos, relacionais e sociais estão interligados em uma

_______________
33. Idem, p. 119.
34. Idem, p. 146.
35. Idem, p. 164.
104 • A neurose de classe

dinâmica de reforço mútuo e sustentação recíproca que se desenvolve o sistema neurótico,


ou seja, uma estrutura conflituosa, rígida, repetitiva, que tende a se fechar em si mesma, quer
dizer, alimentar-se do próprio funcionamento.

ESQUEMA SINTÉTICO DE UMA NEUROSE DE CLASSE


Na teoria psicanalítica, a culpa é interpretada como consequência de uma tensão entre o Eu e
o Supereu. Segundo Freud, a função do Supereu é correlata do complexo de Édipo: a
criança, obrigada a renunciar à satisfação de seus desejos edipianos atingidos pela proibição,
transforma o investimento nos pais em identificação com os pais ou, mais exatamente, em
identificação com o Supereu dos pais: ela internaliza a proibição. O Supereu surge como
instância do aparelho psíquico que cumpre três funções: auto-observação, consciência moral
e função de ideal (Freud, [1932]1975).
A distinção entre consciência moral e função de ideal é ilustrada pela diferença que Freud
apresenta entre sentimento de culpa e de inferioridade; o primeiro tem relação com a
consciência moral que fixa os mandamentos e proibições ("Honrarás pai e mãe"); o segundo,
com o ideal do Eu que fixa as exigências e modelos a seguir.
Retomamos a discussão teórica sobre as posições tópicas respectivas do Supereu e do ideal
do Eu. Em um primeiro momento, propusemos essa distinção para analisar os conflitos
enfrentados por Annie Ernaux em sua relação com os pais e com o mundo externo.
Escutemos: “As humanas ensinam o respeito. Mas tem a ver. Vadia que sou, 'Honrarás pai e
mãe' estraga tudo. O pior é que não é por eles serem maus ou duros. Eu não falava disso com
ninguém, mas na escola, passeando pelas lojas do centro, lendo, eu aprendera a comparar" 36.
Vemos aparecerem aí dois componentes do sentimento de culpa que se refletem um no outro
no nível intrapsíquico entre as instâncias do aparelho psíquico Supereu-ideal do Eu-Eu, e no
nível relacional entre Annie, os pais e a família, em consequência dos processos de
dominação e invalidação que propõem modelos contraditórios de valorização. Resumimos
esses diferentes elementos em um esquema.

Esquema sintético de uma neurose de classe (ver a página seguinte).

Comentários

1) Apoio recíproco das contradições.


As relações de dominação entre o meio da escola e o do bar-mercearia se expressam no nível
relacional por habitus e modelos de identificação diferentes, em que um é invalidado
enquanto o outro é valorizado. O sujeito, portanto, enfrenta um conflito de identificação
entre o que os pais e os professores representam. Esse conflito vai modificar profundamente
o aparelho psíquico da criança ao introduzir tensões entre as diversas instâncias: quando
busca se ajustar ao modelo proposto pelo ideal do Eu ("torne-se uma pessoa de bem'), a
criança é levada a questionar as exigências do Supereu (“Honrarás pai e mãe"), na medida
em que as pessoas que são "direitas" mostram que os pais são desprezíveis, vulgares, gordos,
subservientes etc.

______________
36. A. Ernaux, Les armoires vides, op. cit., p. 95.
Neurose e neuroses de classe • 105
106 • A neurose de classe

Destaquemos que os próprios pais participam do apoio e do reforço dessas contradições; ao


responder com submissão e idealização aos processos de dominação e invalidação, propõem
à criança um antimodelo e, assim, participam da própria autoinvalidação. Por isso mesmo, só
fazem transmitir à criança as próprias contradições entre o desejo de que ela se torne uma
pessoa de bem, ou seja, que realize o que eles desejariam ser, e o medo de que, assim o
fazendo, ela se torne outra pessoa, que se distancie deles.
Na escola, a criança é levada a inverter seu sistema de valores e suas referências de bem e de
mal. O que era bom (os pais) se torna mau; o que era objeto de amor se torna odiável.

2) Desenvolvimento da culpa
As contradições geram uma carga agressiva da criança em resposta às humilhações sofridas.
A criança se sente culpada por não ser "direita” diante dos professores - teme não poder
satisfazer o ideal que lhe propõem - e dos pais - teme não amá-los suficientemente. Portanto,
sente-se mal com os que lhe exigem que despreze e rejeite os primeiros objetos de amor e
com os outros que são responsáveis pelas humilhações que sofre. Diante da ambivalência, a
criança tende a jogar sobre si a carga agressiva. É meu próprio Eu que se torna odioso.

3) Mecanismos de defesa
Diante desses conflitos, a criança ativa uma série de mecanismos de defesa para regular a
agressividade e a angústia que provocam, para aguentar as consequências, para encontrar
mediações para as múltiplas contradições que a dilaceram.
A obstinação no trabalho como meio de se revalorizar. Diante das humilhações da "menina
mais mal vestida” cujos pais são continuamente invalidados, que não sabe se comportar
"direito”, o sucesso escolar permite se diferenciar dos outros em relação a um sistema de
normas e valores no qual ela pode ser competitiva. É o meio de canalizar toda a
agressividade consequente à humilhação, de devolver o desprezo aos que a invalidam, de
inverter a inveja sentida diante dos que a humilham: "sou eu, eu... Denise Lesur, a palerma, a
depravada do padre [...] tenho notas melhores que vocês"37 É assim que ela se torna a
"Senhorita Primeira”, a que sempre sabe a resposta certa e que a professora chama quando os
outros erram. É sua vingança, o meio de afirmar uma superioridade que compense a
inferioridade social que lhe é constantemente transmitida. É o meio de conquistar e
salvaguardar uma identidade em um meio que tende a invalidar a identidade social e familiar
que a caracterizou até aquele momento. Por ser a primeira, ela afirma sua existência, obtendo
um reconhecimento social inegável.
No nível energético, o trabalho oferece um objeto de investimento que permite canalizar a
libido para uma atividade social e afetivamente valorizada, tanto pelos pais quanto pelos
professores.
O desdobramento é o meio de fazer coexistirem as aspirações e os sentimentos contraditórios
que a invadem: "Dois mundos lado a lado, sem se incomodarem muito, a escola e a casa”38.

__________________
37. Idem, p. 71.
38. Idem, p. 73.
Neurose e neuroses de classe • 107

Diante das identificações e dos habitus desses dois mundos, instala-se uma clivagem do Eu
na qual coexistem esses contrários diferentes: "Trago em mim duas linguagens, os pontinhos
pretos dos livros, os gafanhotos loucos e graciosos, ao lado de palavras gordas, corpulentas,
bem apoiadas, que se cravam na barriga, na cabeça, fazem chorar no alto da escada e rir
debaixo do ba1cão"39.
Mas o equilíbrio entre esses dois mundos é frágil, por ser muito contraditório: "Era mesmo
preciso escolher um como ponto de referência, é obrigatório. Se eu escolhesse o dos meus
pais [...] não teria desejado sucesso na escola”40.
Ela escolheu, portanto, ser a filha dos pais em casa e se tornar outra fora dela: "Mal aberta à
porta, lá fora, condeno os meus modos”. É preciso empilhar diplomas para esconder "a
menina Lesur [...] cheia de gestos e palavras vulgares [...], para tolerar a barulheira, acabar
definitivamente com o bar-mercearia, a infância cafona [...] [e] ser como as meninas
distantes"41, para se tornar uma menina "direita”, as que vão para a faculdade.
O fechamento sobre si mesmo: diante desses conflitos demasiado agudos com o mundo
exterior, seja o dos pais, seja o da escola, para escapar do dilaceramento e da dor das
contradições que a dividem, para tentar conservar uma unidade coesiva de si, Annie Ernaux
se fecha em si mesma, na leitura, nos deveres escolares: ''Afasto-me cada vez mais [...]
Ausente"42. Ela para de dar bom dia aos fregueses, de frequentar as "colegas da rua”, de falar
da escola para os pais que, de qualquer modo, não sabem gramática, latim, história nem
geografia ... Ela se torna uma estrangeira que mora em casa como se fosse um hotel, que fica
lá ausente e que sonha com outra família, com outro mundo a partir das leituras. A dupla
diferença, em casa porque frequenta a escola, na escola porque vem de seu meio, a condena
ao isolamento. Em cada um desses lugares, há apenas uma parte de si que ali se encontra. O
fechamento sobre si mesmo, o diálogo interior; é, portanto, um meio de se ver inteira, não
dividida, de escapar da clivagem e do dilaceramento.
Nesse "fechamento", o sonho e as leituras permitem realizar de forma fantasmática o que a
realidade não permite: "Fugir para as belas histórias [...] a minha cabeça estava cheia de uma
multidão de gente livre, rica e feliz ou então de uma miséria negra, soberba, sem pais, trapos,
crostas de pão, sem lugar"43.
Vemos aparecer aqui a função do romance familiar como fantasma dos filhos das classes
dominadas que lhes permite inverter a posição social e suportar as condições concretas da
vida corrigindo a realidade.
A obstinação no trabalho, o desdobramento, o fechamento sobre si mesmo e a elaboração do
romance familiar são os mecanismos de defesa que Annie Ernaux produz para tentar aliviar
as tensões, encontrar soluções, escapatórias ou acomodações para os conflitos que a
invadem. Essas reações não são forçosamente neuróticas. Na maioria das situações desse
tipo, ao contrário, elas permitem ao indivíduo escapar da neurose. Esta aparece quando os
diversos elementos que descrevemos formam um sistema consolidado que tende a se fechar
sobre si mesmo:

____________________________________

39. Idem. p. 77.


40. Idem, p. 82.
41. Idem. p. 161.
42. Idem, p. 92.
43. Idem, p. 80.
108 • A neurose de classe

Toda neurose, no sentido "patológicd' da palavra, tende a realizar um sistema relativamente


fechado, ou seja, protegido, e duplamente protegido: quanto ao exterior, contra aconteci-
mentos, contatos, relações pessoais etc., quanto ao interior, contra explosões pulsionais e
reativações de conflitos geradores de angústia. O sistema defensivo funciona, até onde for
possível, em isolamento, segundo mecanismos e lógica próprios. (Perron, 1986, p. 239)
o esquema sintético desse sistema permite descrever seus diversos componentes, o modo
como se interligam e os mecanismos de defesa que o levam a se fechar sobre si mesmo.
5

O COMPLEXO DE INFERIORIDADE

O sangue servil de Jean não lhe permitia tamanha


presunção. Reconhecia o privilégio, não sonhava
em participar dele; tinha consciência de que seria
ainda mais humilhado, e por isso não desejava.
A. Strindberg

O IDEAL DO EU E O SUPEREU
Na análise do caso de Annie Ernaux, começamos uma discussão sobre os papéis respectivos
do ideal do Eu e do Supereu, opondo-os como instâncias diferenciadas. Dizem que o
pensamento de Freud oscilou entre a distinção e a assimilação dessas duas instâncias1. No
que diz respeito à gênese e ao papel do Supereu, a teoria psicanalítica é homogênea e
coerente, mas fica mais diversificada e evolutiva quando se trata do ideal do Eu.
No início de sua história, a criança tem uma relação dual com a mãe. Essa relação é
quebrada pelo pai, que interdita a mãe ao impor a Lei da interdição do incesto, o que
introduz o desejo da criança que, portanto, passará a buscar essa mãe perdida. O sentido da
Lei é que, ao renunciar à mãe, a criança possa ter acesso ao desejo do outro. Na relação dual
que precede a instauração da Lei, a criança só pode desejar o desejo da mãe, ou seja,
satisfazer os desejos de onipotência desta, não nascendo nenhum Ele no mundo do desejo.
A solução do complexo de Édipo passa pela internalização do legislador (o Supereu) e a
aceitação de uma existência limitada, submetida ao tempo e à morte.
O Supereu é a internalização das exigências e interdições parentais, instância que encarna
uma lei e proíbe que seja transgredida. Portanto, corresponde à identificação com a instância
parental. Mas, segundo Freud, essa identificação não deve ser compreendida como
identificação com pessoas: "O Supereu da criança não se forma à imagem dos pais, mas à
imagem do Supereu dos pais. Ele se enche com os mesmos conteúdos, torna-se o
representante da tradição, de todos os juízos de valor que subsistem durante gerações”.

_________________
1. Sobre a evolução da concepção freudiana e como tentativa de esclarecer esse conceito, pode-se consultar a obra bastante
exaustiva de Janine Chasseguet-Smirge1 (1973).
110 • A neurose de classe

Nas Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1932), Freud também apresenta o
Supereu como veículo do ideal do Eu, em relação ao qual o Eu se avalia, a cujo nível tenta se
elevar e cujas exigências de perfeição tenta cumprir.
Em seu Vocabulário (l967), Laplanche e Pontalis definem o ideal do Eu como uma
"instância da personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do Eu) e
das identificações com os pais, com os seus substitutos e com os ideais coletivos. Enquanto
instância diferenciada, o ideal do Eu constitui um modelo a que o sujeito procura conformar-
se”.
Ao contrário de Freud, esses dois autores apresentam o ideal do Eu como uma instância
diferenciada. Para Chasseguet-Smirgel (1973, p. 21), o ideal do Eu, menos do que uma
instância, é um "fantasma projetado à frente': fantasma saído da perfeição narcísica perdida
sob a influência da crítica parental. Mas ela continua: "Por sua vez, existe ao lado do ideal do
Eu uma instância cuja tarefa seria verificar se a satisfação narcísica está assegurada em
função do ideal do Eu e que, com esse fim, vigia constantemente o Eu real e o compara a
esse ideal”. Trata-se, de qualquer modo, de um processo2 de avaliação permanente do Eu em
relação às exigências internalizadas, processo bem descrito pela palavra "autoestima”. De
fato, embora Chasseguet-Smirgel recuse a ideia de instância ao mesmo tempo em que a
reintroduz, ela o faz para afirmar o caráter dinâmico do ideal do Eu como processo incitador
e evolutivo que fixa continuamente para o Eu as metas e exigências a cumprir e que,
segundo a última frase de seu ensaio, "nos impele sem demora para a frente, sempre para a
frente”.
Além dessas discussões sobre a situação do ideal do Eu, surge claramente uma série de
diferenças entre o ideal do Eu, herdeiro do narcisismo primário, e o Supereu, herdeiro do
complexo de Édipo. O primeiro constitui, pelo menos na origem, uma tentativa de
recuperação da onipotência perdida. O segundo, do ponto de vista freudiano, nasce do
complexo de castração. O primeiro tende a restaurar a ilusão, o segundo a promover a
Realidade. O Supereu separa a criança da mãe; o ideal do Eu a impele para a fusão. O ideal
do Eu tem exigências ilimitadas de perfeição e poder, enquanto o Supereu alivia essas
exigências ao instituir a barreira do incesto e transformar a impotência intrínseca da criança
em obediência a uma interdição, "o que lhe permite não apenas salvar as aparências como
também obter satisfação narcísica com a própria obediência” (Chasseguet-Smirgel, 1973, p.
87).
O ideal do Eu é uma instância de incitação que impele o Eu, em um primeiro momento, a
reconquistar a perfeição perdida e, depois, a procurar fora de si os objetos parciais ou totais
idealizados, objetos que vai internalizar para se obrigar a eliminar, por dentro, a lacuna que o
separa do ideal. Portanto, é o narcisismo que é constantemente solicitado e incita o Eu a se
ultrapassar para "estar à altura” de sua imagem idealizada.

____________________
2. Na verdade, as diversas instâncias do aparelho psíquico encobrem diversos tipos de processos psíquicos e não estados
diferentes do inconsciente. Há uma ambiguidade no vocabulário psicanalítico, bem destacada por Roger Perron: "A
linguagem introduz na matéria uma cilada da qual é preciso suspeitar. Com efeito, designar com substantivos os
subsistemas em causa favorece a ideia de que se trata de personagens autônomos, sobretudo quando se escrevem os termos
com maiúscula, como se fossem nomes próprios (o Isso, o Eu, o Supereu) [...] Trata-se, na verdade, de descrever processos
que caracterizam o funcionamento de subsistemas (as "instâncias"); talvez se devesse, com o máximo rigor, utilizar apenas
verbos e adjetivos, falar, por exemplo, de processos inconscientes e jamais de Inconsciente. O substantivo, porém, desde
que se evite a reificação ingênua, é cômodo para designar um conjunto de processos do mesmo tipo" (1986, p. 173).
O complexo de inferioridade • 111

o Supereu, antes de tudo, é uma instância de adaptação que fixa limites e fronteiras para o Eu
e lhe indica o que deve ou não fazer. O Édipo introduz a criança na ambivalência pela
diversificação do processo de identificação (identificação secundária). O Supereu se
constitui nesse momento, simultaneamente como instância previsora - "Seja como seu pai"
e/ou "Seja como sua mãe" - e como instância interditora - "Não seja como seu pai" e/ou
"Não seja como sua mãe"; isto é, ''Aceite que algumas prerrogativas estão reservadas a eles",
"Renuncie a ocupar um lugar que não é seu': Enquanto o ideal do Eu impele à fusão e,
portanto, à indiferenciação, o Supereu conduz o Eu a se posicionar pela identificação, mas
também pela diferenciação, na medida em que indica limites ("a não ultrapassar") e
fronteiras. O Supereu se caracteriza pela continuidade, pelo fato de se constituir a partir dos
Supereus dos pais, formados e consolidados pelos predicados e interdições ligados aos usos e
costumes do grupo social a que pertencem. Nesse sentido, é uma instância mais
conservadora que prega a manutenção da ordem, o respeito às tradições, a permanência de
modelos de referência. Para esquematizar, podemos qualificá-lo como instância de
reprodução e de colocação. Com efeito, é do Supereu que vem a injunção de ter de se
colocar na ordem das gerações (entre pais e filhos), na dos sexos (entre homens e mulheres)
e na social (entre as diversas classes, etnias, culturas etc.), reproduzindo o modo como os
próprios pais se situam e internalizando a lei da cultura do grupo que fixa a ordem dos
lugares atribuídos a cada um.
O ideal do Eu é mais permeável à evolução dos modelos e ideais coletivos. Tende à
superação do que somos. Sua busca de perfeição impele o Eu a procurar outros modelos,
sempre mais "elevados”, e avançando sempre mais longe. A busca da onipotência não
concebe limites nem fronteiras. No Romance Familiar, são os personagens mais prestigiados,
os mais "considerados”, aqueles tomados como pais substitutos ou referências ideais.
O ideal do Eu fixa as exigências que impelem o Eu permanentemente para a mudança.
Portanto, ele é, de fato, uma instância de deslocamento, no sentido em que incita o indivíduo
a se situar em outra parte, a procurar outros lugares além daquele que lhe foi atribuído por
herança.
Essas duas instâncias submetem o Eu a tensões de natureza diferente. O Supereu se inclina
para a obediência. Ele está na origem do sentimento de culpa vivido quando o interdito que
fixou é transgredido. Por sua vez, o ideal do Eu fixa exigências idealizadas que solicita ao Eu
que atinja. Ele está na origem do sentimento de inferioridade vivido quando o Eu se vê
incapaz de realizá-las e do sentimento de vergonha quando é posto em xeque, o que lhe
transmite uma imagem desvalorizada de si mesm03• Esses diversos elementos permitem
esquematizar as características respectivas do ideal do Eu e do Supereu.

______________
3.Gerhart Piers e Milton B. Singer. Shame and guilt. a psychoanalytic and a cultural study. Springfie1d: Charles Thomas,
1953.
112 • A neurose de classe

Quadro comparativo das características do ideal do Eu e do Supereu


ideal do Eu Supereu
Herdeiro do narcisismo Herdeiro do complexo de fdipo
Busca de onipotência Respeito ao interdito e à lei
Mantém a ilusão Busca a adaptação à realidade
O ideal do Eu impele à fusão (relação
O Supereu separa a criança da mãe (vem do
dual)
complexo de castração)
O ideal do Eu pressiona o Eu para
O Supereu alivia as exigências ilimitadas
satisfazer
do Ideal transformando a impotência em
sua ambição, a busca de perfeição e
obediência a um interdito e em respeito às regras:
poder: ele o
ele impele o Eu à adaptação ao lugar ocupado
impele à superação/deslocamento
= instância preditiva
= instância incitadora
Identificação primária: modo primitivo de
constituição do sujeito segundo o modelo
do Identificações secundárias que impelem a criança
outro; projeção da onipotência perdida a renunciar à fusão, à relação dual e, portanto,
sobre o à onipotência; capacidade de triangulação, de
objeto (a mãe) que, assim, se torna entrar em um sistema de dupla identificação.
representante
do primeiro ideal do Eu da criança
Vergonha = tensão ideal do Eu/Eu. Culpa = tensão Supereu/Eu. Sentimento de
Sentimento de culpa ligado à transgressão.
inferioridade ligado ao medo de não estar
à altura.
Tende à mudança pela busca de modelos
Tende à reprodução de modelos anteriores
sempre
mais exigentes
= exaltação do Eu = submissão do Eu
= instância de deslocamento = instância de colocação

IDEAL DO EU E PROMOÇÃO SOCIAL


Em seu ensaio, Janine Chasseguet-Smirgel insiste no aspecto dinâmico e maturador do ideal
do Eu que leva o sujeito a "adquirir um Eu depois de integrar todas as fases de sua evolução"
(idem, p. 175). Portanto, ele se constitui em etapas sucessivas, cada uma delas integrando-se
às precedentes.
No processo de edificação do Eu, o ideal do Eu intervém para fixar as exigências sobre o
modo como o Eu integra sucessivamente identificações diversas. Ele impele a procurar
qualidades e atributos que significam perfeição e onipotência diante de contradições, falhas e
defeitos aos quais o Eu é confrontado.
Esse encaminhamento do aufheben4 acontece depois do estágio edipiano: o Eu se constitui
enquanto se transforma, em uma dialética de identificação e diferenciação buscada ao longo
de toda a vida. No entanto, pode-se isolar uma tendência na qual, com o envelhecimento, o
aspecto "conservador" tende a se desenvolver, enquanto o
______________
4. Processo descrito por Hegel que consiste em superar ao mesmo tempo em que conserva.
O complexo de inferioridade • 113

aspecto de "superação" tende a se atenuar. Desse ponto de vista, concebe-se que o papel do
ideal do Eu é impelir o Eu continuamente à superação, à busca constante de modelos de
identificação e de atributos e qualidades mais "elevados" do que aqueles que o indivíduo
atribui a si mesmo.
É por essa a razão que as trajetórias de promoção não são obrigatoriamente neuróticas: o
desafio contínuo de se superar e de se elevar que o Eu enfrenta só se torna conflituoso se
houver contradição entre os modelos iniciais da sua construção e os novos propostos como
ideais.
Esse aspecto do funcionamento do aparelho psíquico permite compreender melhor a
correspondência psicológica da lógica da diferenciação social na sociologia: o ideal do Eu
impele o Eu a se apropriar do conjunto de signos de pertencimento ao grupo social que lhe
parece superior. Esse impulso, portanto, é ainda mais importante do que a promoção e a
carreira, que em si mesmos são ideais: é preciso ter sucesso, é preciso subir na escala social;
cada indivíduo, portanto, é "chamado" a eliminar as diferenças (de posição social, renda,
salário, modo de vida, nível cultural, prestígio etc.) em relação aos que ocupam as posições a
que aspira e, ao mesmo tempo, a se diferenciar dos que ocupam as posições que tenta
abandonar. Nesse curso de promoção, entrevemos os vínculos entre um sistema social
baseado em uma dupla lógica de expansão e hierarquização, que exige que cada indivíduo
invista para melhorar sua posição, e o processo psíquico que impele o Eu a cumprir as
exigências do ideal do Eu5.
Embora sejam heterogêneos, na medida em que caracterizam o funcionamento de fenômenos
de natureza diferente, os processos sociais e os psíquicos são interligados pelos efeitos de
fechamento e correspondência. A ação das estruturas sociais sobre os indivíduos se exerce
por intermédio de mecanismos que regem os processos psíquicos e, inversamente, estes,
embora não produzam as organizações sociais nem as relações que as interligam se integram
a elas de maneira mais ou menos coerente. A coerência é efeito de um apoio recíproco que se
consolida quando é forte a correspondência entre o modo de funcionamento da organização
social e aquele do aparelho psíquico. Quando essa correspondência é fraca ou conflituosa, a
coerência do sistema tende a diminuir.
Em O poder das organizações, analisamos os dispositivos que asseguram a interligação entre
os objetivos de produção e de dominação e o sistema de aspiração individual. Mais
exatamente, de que maneira as políticas de gestão de pessoal apoiam, captam e canalizam os
processos psíquicos. Nesse jogo de correspondências, o ideal do Eu de cada funcionário é
especialmente solicitado, na medida em que a idealização favorece, ao mesmo tempo, a
adesão e a produtividade e, portanto, o poder psicoideológico da organização sobre seus
membros.
Esse tipo de interligação mostra bem a permanência do ideal do Eu como exigência de
superação contínua à qual o Eu está submetido, mas também sua permeabilidade às
exigências externas bem depois da infância. Toda situação social de competição, desafio ou
seleção reatualiza o poder do ideal do Eu, que nela encontra material para solicitar ao Eu que
se supere.
Em situações organizacionais desse tipo, os indivíduos são levados a se ajus-

_____________________
5.Ver principalmente C. Lasch, 7he culture of narcissism, Nova York: WW Norton, 1979, tradução francesa de M. L.
Landa, Le complexe de Narcisse, Paris: Robert Laffont, 1981.
114 • A neurose de classe

tar ao modelo de personalidade estimulado pela empresa: uma personalidade individualista,


agressiva mas adaptável, que tenha um ideal perfeccionista, fortes exigências morais e
grande capacidade de resistência ao estresse. Os que se ajustam encontram nisso uma fonte
muito importante de satisfação narcísica: a potência da organização com a qual se
identificam lhes permite crer em uma onipotência individual, de um Eu em expansão
incessante que não encontra limites. Mas, embora a satisfação seja profunda, a exigência
também o é: o indivíduo tem de dar o melhor de si, consagrar-se inteiramente ao trabalho,
sacrificar tudo à carreira: "está condenado ao sucesso”.
Evidentemente, não é uma lei formal, mas um mandamento com base nos sonhos de
onipotência do inconsciente. A contrapartida da satisfação narcísica é o medo de fracassar,
de perder o amor do objeto amado (aqui, a organização), o temor de não estar à altura, a
humilhação de não ser reconhecido como um bom elemento. Nessas situações, a tensão é
entre o Eu e o ideal do Eu.
Na neurose promocional, intervém outro elemento conflituoso que impede, de qualquer
modo, que o Eu cumpra as exigências do ideal do Eu. Este deve, igualmente, obedecer a uma
injunção do Supereu de se manter "apegado" aos pais, ou seja, de conservar as primeiras
identificações paternas e maternas. De um lado, a exigência de superação; de outro, o
mandamento de ser "como eles”. Aqui, o conflito não se situa apenas entre o ideal do Eu e o
Eu, de um lado, e o Supereu e o Eu, de outro, mas também entre as incitações do ideal do Eu
e as injunções do Supereu.
Em nossas sociedades "narcísicas”, dominadas pelo modelo de desenvolvimento das
sociedades multinacionais que qualificamos de modelo administrativo6, os ideais de sucesso
social, promoção individual e mobilidade permanente (ao mesmo tempo profissional e
geográfica, mas também afetiva) correspondem aos dispositivos dominantes de legitimação
social: a ideologia da autorrealização e do desenvolvimento pessoal é veiculada pela maioria
dos meios de comunicação, instituições educativas e entidades profissionais. Ela invade a
maior parte das classes sociais.
Essa ideologia não deixa de causar problemas nos meios tradicionalistas e nas classes sociais
dominadas, nas quais o sucesso individual colide com obstáculos objetivos, mas também
subjetivos. O mesmo acontece com as diversas etnias nas quais o modelo "modernista”
ocidental entra em contradição com numerosos pontos de seu sistema original de valores.
Nessas diversas situações, a aspiração promocional, que vai buscar contatos psíquicos na
formação do ideal do Eu, se arrisca a cair sob a crítica do Supereu, que toma sob sua
responsabilidade a reprovação dos pais e de seu meio diante de tudo o que poderia pôr em
questão o respeito aos costumes, habitus e valores com base nos quais as gerações anteriores
construíram sua identidade. Trata-se aí de uma dimensão particular dos conflitos de
identificação cuja gênese se encontra na articulação entre os processos sociais e os psíquicos.

______________
6.V. de Gaulejac, "Modes de production et management familial” in N. Aubert, E. Enrique, V. de Gaulejac (org.), Le sexe
du pouvoir, Paris: EPI, 1986.
O complexo de inferioridade • 115

GÊNESE SOCIAL DOS CONFLITOS PSÍQUICOS


Convém aqui insistir no caráter ao mesmo tempo autônomo e heterônomo dos processos
sociais e psíquicos. Cada um deles obedece a lógicas próprias, de acordo com mecanismos
específicos. Dito isso, eles estão ligados entre si em uma relação de correspondência
sistêmica que realiza interligações e interações entre si. É assim que o desenvolvimento do
Supereu e do ideal do Eu se efetua segundo leis que presidem o funcionamento do aparelho
psíquico, influenciado, ao mesmo tempo, pelo contexto social no qual se forma.
Não se trata, portanto, de estabelecer um vínculo direto e mecânico entre conflitos sociais e
psíquicos, cujo efeito seria considerar a pessoa "um tipo de decalque interno do sistema de
valores e regras de conduta do qual ela não poderia escapar" (Perron, 1986, p. 3). Os
conflitos internos nunca são um reflexo exato daqueles do ambiente, na medida em que
também provêm de necessidades internas: "É repetir que a pessoa é um sistema ativo, regido
por leis próprias, e acrescentar que sua crença e equilíbrio são necessariamente tensionais,
porque têm de conciliar o desejo e a interdição" (idem, p. 31).
Mas, apesar disso, não se pode considerar que os conflitos internos sejam totalmente
independentes das situações sociais vividas pelo indivíduo. As tensões psíquicas, embora
não sejam apenas reflexo das sociais, são amplificadas, influenciadas e condicionadas por
elas. A relação não é de determinação simples, mas de correspondência complexa de tipo
sistêmico, na qual elementos de natureza diferente refletem-se uns nos outros.
A neurose de classe se caracteriza pelos conflitos de identificação que ocorrem em nível
intrapsíquico nas tensões entre instâncias (Eu-ideal do Eu-Supereu), tensões que são mais
fortes quando ligadas a um deslocamento social entre duas posições conflituosas, conflito
produzido por antagonismos sociais que se desenvolvem entre certos grupos, classes, etnias
em momentos históricos específicos.
Caso sigamos Edith Jacobson (1975)7, é no momento do período de latência que a criança é
levada a deslocar suas relações e identificações com os pais para modelos (éticos, sociais,
físicos e intelectuais) comuns à sua faixa etária, propostos por professores ou outros adultos
externos ao meio familiar original. O problema, portanto, vem da compatibilidade entre
essas diversas figuras de identificação, fazendo a criança enfrentar conflitos que podem
estimular os processos de organização do Eu, caso ela encontre unificação e coesão nessa
diversidade ou, ao contrário, fragilizá-la, caso as diferenças sejam demasiado contraditórias.
Esse propósito vai ao encontro de uma observação de Freud em O Eu e o Isso que indica, a
respeito das identificações do Eu com objetos sexuais: "Quando essas identificações se
tornam demasiado numerosas, demasiado intensas, incompatíveis entre si, estamos na
presença de uma situação patológica [...] Pode resultar daí uma dissociação do Eu, cujas
diversas identificações conseguem se isolar entre si e opor resistência umas às outras"
([1923]1975, p. 199)-
Entre as contradições que levam a essa dissociação, Freud estudou principalmente as que
têm natureza sexual. Os conflitos ligados à variedade de investimentos

_____________________
7.Especialmente o capítulo IX, "Les voies du développement durant la période de latence et les rapports entre sentiments de
culpabilité et complexes de honte et d'infériorité".
116 • A neurose de classe

objetais também podem ter origem social. É a partir do período de latência que as
discordâncias sociais ou ideológicas começam a ser percebidas como tais pela criança,
principalmente quando, na escola, ela confronta a lógica da diferenciação social. É o que
descreve Annie Ernaux quando opõe o mundo "sujo" dos pais àquele cultivado dos
professores, levando-a a odiar os pais para se identificar com objetos mais compatíveis com
o novo grupo de pertencimento. Diante de dois modelos contraditórios, a criança é levada a
desvalorizar os pais, a invalidá-los para assumir como seus os valores e a ideologia da
cultura dominante. Esse questionamento é insuportável justamente porque leva ao desamor:
para conseguir a passagem, para se inserir no novo grupo social, para entrar na rede de
identificações que a constitui é preciso odiar os pais, realizar um trabalho de
desidentificação, escolher entre dois mundos.
É nessa escolha que se enraíza o processo de dissociação do Eu de que fala Freud. A criança
partilhada por dois grupos sociais antagônicos tem de fazer uma escolha entre suas
fidelidades identificatórias originais e a entrada no mundo do "saber", da "cultura”, do poder,
mundo no qual há unidade e coerência entre as satisfações narcísicas, as relações objetais e o
reconhecimento social.
Quando os objetos de identificação são sexualizados, no sentido em que o investimento é
libidinal, as contradições que o Eu enfrenta são consequência da dominação entre os grupos
sociais, dominação que produz os fenômenos de desvalorização, invalidação, humilhação e
inferioridade. Diante desses conflitos de identificação, a criança, portanto, é levada a afirmar
muito precocemente a autonomia de seu Eu para fugir de uma escolha impossível, autonomia
que, entretanto, não retifica os conflitos que tendem a perdurar. Nesse exemplo, podem-se
identificar as diversas dimensões psíquicas do conflito:

• A tensão entre o Eu e o Supereu que vem da impossibilidade de se identificar com os


pais invalidados provoca um intenso sentimento de culpa.
• A tensão entre o ideal do Eu e o Eu, produzida pela oposição entre os modelos de
pessoas percebidas como cultas, ricas, distintas e as outras vindas de um meio pobre,
percebidas como incultas e dominadas, provoca sentimentos de inferioridade (medo
de não estar à altura) e humilhação.
• A tensão entre o Supereu, que impele para a fidelidade, a obediência, a submissão aos
pais, e o ideal do Eu, que leva a questioná-los e invalidá-los, provoca uma contradição
do Eu, que tende a se dissociar e se desdobrar.

Aqui parece que não se pode compreender a gênese desse tipo de conflito psíquico
independentemente das condições sociais que impulsionam seu desenvolvimento. Uma
leitura exclusivamente psicanalítica tenderia a buscar a raiz da culpa nos conflitos edipianos,
a gênese dos sentimentos de inferioridade e humilhação na ferida narcísica original da
criança, que se percebe irremediavelmente demasiado pequena para satisfazer o desejo
daqueles cujo amor busca a dissociação do Eu como resultante de um conflito entre o desejo
reprimido e a realidade externa.
Sem obliterar a existência de conflitos inconscientes intrapsíquicos no desenvolvimento da
personalidade, não se pode considerar desprezível um certo número de questões.
O complexo de inferioridade • 117

1. As tensões entre o Eu e o Supereu não são fruto unicamente de uma relação edipiana
problemática e podem ser consequência de um conflito de aspiração entre o Supereu
e o ideal do Eu, ligado a conflitos de identificação produzidos por antagonismos
sociais.
2. As feridas narcísicas podem ser consequências psíquicas de processos de invalidação
e desvalorização social.
3. O desdobramento pode ser provocado pela necessidade de ocupar, em um dado
momento, duas posições sociais contraditórias.

CULPA, VERGONHA, INFERIORIDADE


A comparação entre o Supereu e o ideal do Eu nos levou a distinguir, de um lado, o
sentimento de culpa e, de outro, os de inferioridade e humilhação.
Na teoria freudiana, o sentimento de culpa está ligado ao período edipiano e à formação do
Supereu: a culpa é a percepção que, no Eu, corresponde à crítica do Supereu. O sentimento
de inferioridade é bem anterior. Freud mostra que o desejo mais imperioso da criança, nos
primeiros anos, é ser como os pais, ou seja, ser tão grande quanto eles. Trata-se de um
processo de identificação primária, imediata, direta, anterior ao Édipo. Mas esse desejo se
choca com a realidade da inferioridade objetiva da criança, irremediavelmente "menor do
que" os pais, e provoca uma ferida narcísica profunda: a criança toma consciência "de ser um
objeto sexual inadequado, rejeitado e humilhado pelos próprios objetos de seu desejo"8. A
dolorosa tomada de consciência da impotência sexual a leva, portanto, a desenvolver uma
grande atividade fantasmática para compensar a frustração com a onipotência do
pensamento. É nessa falha original, como reação à humilhação de ser "menor", que se
constrói o ideal do Eu, que tem a função de exaltação do Eu (fantasma) e de conserto da
imagem narcísica. Além disso, os pais, que estão na origem dessa ferida e que até então eram
objeto de amor, vão se tornar também objeto de ressentimento, fazendo a criança iniciar o
aprendizado da ambivalência e da culpa.
Ao esquematizar essas diferentes fases do desenvolvimento psíquico da criança, podemos
reconstituir uma cadeia que atribui o sentimento de inferioridade ao sentimento de culpa.

Inferioridade Humilhação Ódio aos pais Culpa


(ser menor do que) Desenvolvimento da Aprendizado da Formação do
atividade fantasmática e ambivalência Supereu
do ideal do Eu

A importância do sentimento de inferioridade no desenvolvimento da neurose tornou-se


objeto de uma polêmica entre Freud e Adler. Na verdade, este via nele o processo
fundamental da formação dos problemas neuróticos, buscando a raiz da inferioridade em
deficiências orgânicas objetivas:

___________________
8.S. Freud, "La création littéraire et le rêve éveillé”, texto de 1907, in Essais de psychanalyse appliquée, Paris: Gallimard,
1971.
118 • A neurose de classe

os defeitos constitucionais e outros estados análogos da infância fazem nascer um


sentimento de inferioridade que exige uma compensação no sentido de uma exaltação
do sentimento de personalidade. O sujeito forja para si uma meta final puramente
fictícia, caracterizada pela vontade de poder, meta essa que [...] deixa em sua esteira
todas as forças psíquicas.9

A teoria de Adler dá um alcance geral ao complexo de inferioridade ao explicar todos os


problemas da personalidade como reações a deficiências morfológicas que o sujeito busca
compensar.
Essa tese lhe valeu uma crítica muito violenta de Freud: "Quer se trate de um homossexual,
de um necrófilo, de um histérico ansioso, de um neurótico obsessivo muito fechado ou de
um demente agitado, o adepto da psicologia individual de Adler explicará a doença dizendo
que o sujeito teria de se valorizar e supercompensar sua inferioridade" ([1932] 1971, p. 186).
Nessa conferência, Freud se pergunta sobre a origem do sentimento de inferioridade,
situando-o, do mesmo modo que a culpa, como resultante das tensões entre o Eu e o
Supereu:

O sentimento de inferioridade tem vigorosas raízes eróticas. A criança se sente


inferior quando observa que não é amada, e o mesmo acontece quando adulta [...] é
na relação do Eu com o Supereu que se deve buscar a causa principal do sentimento
de inferioridade, sendo que este, assim como o de culpa, nada mais faz além de
transmitir uma tensão entre os dois (idem, p. 89);

e acrescenta, adiante: "Talvez conviesse considerar o sentimento de inferioridade como


complemento erótico do de inferioridade moral" (ibidem). Vê-se aqui que Freud hesita entre
duas hipóteses: dar autonomia ao sentimento de inferioridade, situando-o como
consequência da ferida narcísica da criança que se apercebe não sendo objeto de amor
exclusivo, e assimilá-lo ao sentimento de culpa, ou fazer dele uma das questões da tensão
entre o Eu e o Supereu. Pode-se explicar essa hesitação, por um lado, como consequência de
sua reação às teorias adlerianas, diante das quais busca minimizar o papel do sentimento de
inferioridade na formação da neurose, e, por outro, pela resistência a dissociar, no aparelho
psíquico, o papel do Supereu e do ideal do Eu como duas instâncias independentes. Para ele,
o essencial é insistir no componente erótico desse sentimento.
Nesse ponto, podemos retomar a crítica que Freud desenvolve a respeito de Adler
devolvendo-a: a relação com os pais e as insatisfações que ela provoca é que são
apresentadas como explicação suprema e quase exclusiva do sentimento de inferioridade.
Este, ainda que tenha relação com uma ferida narcísica, pode apresentar "vigorosas raízes"
sociais. A inferioridade, como sentimento de ser "menor do que", pode nascer no momento
em que a criança toma consciência de que seus pais não são onipotentes nem perfeitos, que
outros são mais potentes e "bem-educados”.
Portanto, embora possamos considerar que todo conflito psicológico é mediado pelo
funcionamento do aparelho psíquico, as causas, apesar disso, não podem ser exclusivamente
buscadas nas tensões entre as instâncias. Em particular, o sentimento de inferioridade pode
nascer, efetivamente, de um "defeito constitucional': como ob-

______________
9. Alfred Adler, Le tempérament nerveux. [1912]1955. Paris: Payot. p. 49.
O complexo de inferioridade • 119

serva Adler (deficiência física) ou de uma diferenciação social: a criança que observa que os
pais são dominados por outros ou que sofre a humilhação da pobreza diante dos colegas de
escola enfrentará uma inferioridade “objetiva” diante da qual poderá reagir subjetivamente
de várias maneiras. Além disso, se ela tem o sentimento de não ser amada, de não ter sido
desejada, de não estar à altura das aspirações dos pais, os fatores psíquicos amplificarão o
sentimento de inferioridade. A maneira como os pais se situam diante das diferenças sociais
é (em particular) um elemento essencial para a criança. Quando se resignam com seu
destino, participam da própria invalidação, quando internalizam a humilhação ligada à
imagem negativa de sua posição social, a criança internalizará o sentimento de inferioridade
por identificação. Quando, por outro lado, os pais permanecem em exterioridade diante dos
mecanismos sociais da dominação, recusam a aceitação passiva do destino, situam-se em
uma relação de poder diante dos dominantes, quando se recusam a pôr as relações de classe
em termos de «superioridade" e «inferioridade", a criança aprenderá a diferenciar o que se
deve à posição social dos pais e o que se deve à vivência afetiva, ao amor, à identidade
sexual, à posição narcísica. Nesse caso, a criança poderá instaurar uma identificação positiva
com os pais sem se resignar, contudo, a reproduzir sua posição social.
Temos aqui dois níveis de realidade diferentes (social e psíquica) que funcionam com base
em lógicas diferentes (a lógica da dominação social e do poder em um caso, a lógica do
desejo e do amor no outro), mas que são interdependentes: elas se apoiam uma na outra, se
interpenetram, se influenciam reciprocamente.
É a interação entre as «raízes eróticas" e as sociais que, na neurose de classe, explica o
desenvolvimento do sentimento de inferioridade. Pode-se aceitar que a criança que tem o
sentimento de não ter sido desejada e amada se pergunte se isso não se deve à sua
"inferioridade". Pode-se igualmente compreender que isso possa ser engendrado pela
constatação de que os pais são socialmente dominados, oprimidos, desprezados, humilhados.
Nesse caso, a criança poderá internalizar um sentimento de inferioridade sem ter, no entanto,
o sentimento de não ser amada pelos pais.
O exemplo de Annie Ernaux é, como tal, ilustrativo de uma situação em que o sentimento de
inferioridade apareceu muito mais em consequência de "raízes sociais': sendo os problemas
sexuais um dos efeitos. Filha única, Annie Ernaux não evoca, em momento algum, o
sentimento de não ter sido suficientemente amada. Nas primeiras relações com meninos,
seus temores e conflitos são evocados principalmente em termos de inferioridade social:
"Comecei a caça aos meninos sem nenhum pudor. Quem me ensinaria esse truque burguês, o
pudor”. 10 A preocupação essencial que a guiava nas escolhas amorosas era eliminar os
operários, aqueles que parecem "com os mijões do pátio”. Quando conhece um jovem
burguês que lhe fala de Mozart ou Wagner, nomes que nunca ouvira, ela escreve: "Nem
pensar em largá-lo, que importa que Eu seja boba, é preciso fisgá-lo para virar outra [...]
Engolir minhas inferioridades"ll.
Sem dúvida pode-se interpretar essa caça aos burgueses como deslocamento no nível social
de uma ferida narcísica inconsciente ligada ao sentimento de não ter sido um objeto sexual
satisfatório para o pai. Embora essa hipótese não possa ser excluída, não se podem abstrair
os elementos que ela nos dá para analisar a gênese de

________________
10. A. Ernaux, Les armoires vides, op. cit., p. 130.
11. Idem, p. 134.
120 • A neurose de classe

seu sentimento de inferioridade: a imagem negativa do seu "meio sujo", de seus "pais
desprezíveis" que lhe é transmitida pelas pessoas "bem-educadas", basta para produzir uma
imagem desvalorizada de si mesma. Aqui, a desvalorização narcísica é a consequência
psíquica da desvalorização social.
Paul Nizan descreve bem esse processo no romance que dedicou ao pai:

Antoine começava a sofrer várias coisas que via [...] Por exemplo, que fizessem aos
pais caridades disfarçadas, que lhes enviassem, porque eram dóceis e respeitosos,
calças velhas, casacos velhos [...]. Ele se incomodava de ver o pai saudar tão
docilmente, suportar tudo tão educadamente que lhe dessem tapinhas nas costas com
um ar condescendente de proteção. 12

É no olhar dos outros que Annie Ernaux e Antoine Bloyé descobrem a inferioridade social
dos pais, e é esta que lhes provoca incômodo e sofrimento.
Esse debate sobre a inferioridade pode ser retomado a respeito da vergonha. Embora Freud
não aborde essa questão, um certo número de psicanalistas, principalmente anglo-saxões, a
estudaram. Já mencionamos Piers e Singers, que situam a vergonha como sentimento
percebido pelo Eu que se sente incapaz de cumprir as exigências do ideal do Eu.
Para Edith Jacobson:

A vergonha se refere principalmente ao olhar do outro, enquanto o sentimento de cul-


pa se refere, sobretudo às críticas, interdições e exigências verbais. As angústias
provocadas pela vergonha [...] se desenvolvem sobre o tema dos problemas morais e
também sobre o tema dos problemas de tato, boas maneiras, boa educação e
aparência física [...] Grande número de pessoas sente vergonha não apenas de falhas
como deformidades físicas [...] mas também devido à pobreza, ao baixo nível social,
à raça ou a outras características análogas. ([1964] 1979, p. 149)

Jacobson interpreta o sentimento de vergonha como formação reativa em resposta às


tendências pré-genitais, narcísicas, infantis, eróticas, agressivas, em conflito com o Supereu.

Um sucesso devido a fortes tendências agressivas e narcísicas pode satisfazer a


autoestima do individuo ao mesmo tempo em que ele pode ser condenado pela
consciência moral: uma carreira brilhante, mas construída sem escrúpulos, que
levou a grandes realizações, ao poder, à riqueza, a uma situação social invejável,
pode perfeitamente provocar graves conflitos morais, capazes de finalmente
arruiná-la. (Idem, p. 153)

Em última análise, para Jacobson a vergonha vem de um conflito enraizado no período


edipiano ou pré-edipiano. As formações reativas, portanto, sempre remetem a conflitos
inconscientes anteriores na diacronia psíquica. Os conflitos ligados à relação entre o Eu e a
realidade externa nunca são interpretados em função dessa realidade. O que se contempla é o
trabalho psíquico; os sentimentos de culpa, vergonha e inferioridade são habitus psicológicos
constituídos em reação a um desejo reprimido, a um conflito inconsciente que teria raízes
nas primeiras experiências infantis.

_______________
12. P. Nizan. Antoine Bloyé. op. cit, p. 58.
O complexo de inferioridade • 121

Essa leitura tende a reduzir a importância do papel das contradições sociais nos conflitos
psíquicos que invadem certos indivíduos: a vergonha, a culpa, o sentimento de inferioridade,
embora se baseiem em questões narcísicas e nas primeiras relações objetais, podem
igualmente provir da experiência concreta (e, em segundo lugar, da representação) dos
processos de dominação, invalidação e diferenciação.
A busca de uma unidade coesiva do Eu se choca com conflitos conscientes ou inconscientes
de natureza diversa (sexual, social, ideológica, afetiva etc.). Na neurose de classe, as
formações reativas devem ser interpretadas simultaneamente como reações ligadas à
atividade sexual infantil e às primeiras experiências de dominação social nas quais a criança
vivenciou a vergonha, a inferioridade, a culpa e o desprezo.
É por haver reforço mútuo entre os sentimentos de inferioridade/culpa, tais como podem se
desenvolver em qualquer criança na relação com os pais, e aqueles ligados à situação social,
que há neurose. São as ligações entre a vertente psíquica e a social da inferioridade, da
humilhação e da culpa que provocam os problemas neuróticos. Propomos ilustrar essa
questão com um diagrama que permite esclarecer a correspondência entre as duas vertentes.

O COMPLEXO DE INFERIORIDADE NA NEUROSE DE CLASSE


122 • A neurose de classe

Esse diagrama deixa claros o paralelismo e as correspondências entre os aspectos mais


exclusivamente psicológicos e os sociais dos sentimentos de inferioridade, humilhação e
culpa. Na neurose de classe, constatamos uma gênese sociopsicológica desses diferentes
sentimentos, no sentido em que os elementos psíquicos e os sociais se apoiam mutuamente,
com componentes diferentes conforme o caso. Nesse sentido, falaremos de complexo de
inferioridade na medida em que os sentimentos percebidos pelo sujeito encobrem uma
montagem de representações e emoções afetivas e sociais, parcial ou totalmente
inconscientes, que estruturam suas atitudes, condutas e reações.
O complexo se forma em erupções sucessivas em diversos períodos: pré-edipiano, latência,
adolescência. Cada uma dessas etapas provoca uma reorganização dos estágios anteriores ou
uma consolidação dos conflitos que trazem consigo. Ou seja, o complexo realiza uma
condensação de elementos diacrônicos que constituem, progressivamente, um nó, um roteiro
básico (pattern) que determinará o perfil psicológico posterior do sujeito.
O complexo de inferioridade vem da descoberta, pela criança, dos processos de
diferenciação entre sexos, gerações e classes sociais. Em cada um desses planos, ela ocupa
uma posição dominada que a leva a relativizar os desejos de onipotência e a sair da
completude fusional relativa à relação dual originária.
Dupla ferida narcísica para a criança que percebe:

• por um lado, que não é "bastante grande" para ser um objeto sexual satisfatório para
os próprios objetos de seu desejo (o pai e/ou mãe);
• por outro, que os pais, que imaginava onipotentes e perfeitos, são dominados,
invalidados e desprezados por outros adultos.

Aqui, a desvalorização social vem amplificar a desvalorização narcísica. Essa descoberta faz
a criança enfrentar uma dupla humilhação: ser pequena e impotente, levando-a a renunciar a
ser um objeto de amor exclusivo dos pais e ao sentimento de ser "mal" amada; ser dominada,
invalidada, desvalorizada socialmente, levando-a ao sentimento de ser "mal-educada”.
Essas humilhações vão provocar uma série de reações por parte da criança.

1) Desenvolvimento de uma atividade fantasmática que permite ao sujeito suportar


essas frustrações e conflitos, realizando, no imaginário, os desejos que não pode satisfazer na
realidade.
O fantasma do romance familiar é um exemplo dessa atividade, na medida em que permite à
criança sair do conflito edipiano deslocando para objetos fantasmáticos os investimentos
iniciais, realizar uma restauração narcísica ao se imaginar nascida de pais bem mais
prestigiosos do que os reais, suportar a dependência e corrigir os efeitos da dominação
social.
2) O sujeito também pode realizar uma "inversão em seu contrário': transformando a
inferioridade em complexo de superioridade. Como reação à humilhação, como
compensação da dupla ferida narcísica, constitui-se uma exigência ideal altíssima a ser
perfeito, o melhor, o primeiro, o mais virtuoso etc.; o ideal do Eu, portanto, vem compensar
as carências do Eu e as exigências de adaptação do Supereu. Diante das contradições da
criança entre os desejos e a realidade, diante dos limites e interdições a que tem
O complexo de inferioridade • 123

de obedecer, o ideal do Eu propõe ao Eu "superar-se" para superar essas contradições e


limites. A tenacidade no trabalho, à vontade de ser o primeiro da classe, a busca de
excelência em todos os domínios, a entrada em uma lógica de desafio permanente são
expressão dessa busca constante de superioridade. É preciso se elevar para superar os que
são causa de humilhação, devolver o desprezo a todas as figuras que simbolizam a
dominação, ocupar o lugar dos que estão acima, evitar todas as situações de dependência,
submissão ou autoridade que poderiam devolver o sujeito à inferioridade.
3) que a obrigam a renunciar à onipotência sexual e social, mas também à idealização
originária. A desvalorização dos pais que descem do pedestal, que a criança observa serem
pequenos e fracos, provoca um ressentimento ainda mais potente que a decepção, por maior
que esta seja. Decepção que se torna insuportável quando a criança constata que os pais
também são humilhados, que participam da própria submissão, que se resignam com o seu
destino e nada podem fazer para sair dele ou para se proteger do desprezo e das agressões
externas. Portanto, para a criança o problema é renunciar a idealizar os pais enquanto
continua a amá-los.
Ódio aos dominantes (professores, castelães, burgueses, ricos etc.), que transmitem uma
imagem negativa da criança e de seu meio, que participam da invalidação dos genitores, que
os desconsideram e, por desconsiderá-los, questionam o amor que a criança tem por eles.
6dio ainda àqueles que possuem a riqueza, o poder, a fluência, a cultura, a consideração, e
que, portanto, representam figuras ideais, modelos a serem seguidos, deixando ao Eu o temor
permanente de não estar à altura. 6dio alimentado pelo confronto com a injustiça que causa
as desigualdades sociais, a exploração e os efeitos cotidianos da dominação. Para a criança,
portanto, o problema é adotar como ideal figuras de identificação odiáveis.
Esse emaranhado complexo de amor e ódio, idealização e invalidação, identificação e
rejeição desenvolve no sujeito um intenso sentimento de culpa. A parte do ódio que não pode
se descarregar como revolta, como agressão diante do exterior, se volta contra o Eu sob a
forma de culpa.
Diante dos pais, a culpa tem raízes no Édipo. O desejo de eliminar o genitor do mesmo sexo
para ocupar seu lugar no desejo do outro é ainda mais forte por ser socialmente invalidado.
Essa invalidação torna problemática a possibilidade de idealização que permite à criança
resolver, no nível da fantasia, os desejos que não pode satisfazer na realidade. O desejo
edipiano ativa-se ainda mais quando a criança é chamada a se tornar socialmente superior
aos pais, a ultrapassá-los. Há aí uma transgressão à ordem dos lugares sociais que equivale a
uma morte simbólica. Além disso, a inferioridade social leva a criança a censurar os pais por
serem dominados, por não serem direitos e, consequentemente, a se sentir culpada por esses
ressentimentos, por não amá-los como conviria, por não saber honrá-los. Assim, a criança
tem uma dívida para com eles, na medida em que lhes deve o que está a caminho de se
tornar. A culpa, portanto, se torna o sentimento de ingratidão, mais forte ainda quando a
criança se afasta objetivamente dos pais, quando fica diferente deles e, ao se tornar
"superior", lhes transmite uma imagem negativa do que são.
O sentimento de culpa se desenvolve na relação com o mundo exterior. A criança se sente
culpada de não ser "direita” em suas relações com os colegas de classe, professores e o
conjunto de relações novas estabelecidas com pessoas que lhe parecem
124 • A neurose de classe
"bem-educadas”. O sentimento de ser "mal-educada” é internalizado como correspondente
psíquico do processo de invalidação: se eles me invalidam, é porque há em mim alguma
coisa má. A criança se sente diferente, marginal, e percebe como falta todas as lacunas de
comportamento, linguagem, atitude, ou seja, as diferenças de habitus entre seu meio familiar
e o das pessoas "de bem': Estas representam, ao mesmo tempo, um ideal que a impele a se
tornar igual a elas e um objeto do ódio que a leva a rejeitá-las: ela se sente culpada por
admirar aqueles que odeia e odiar aqueles que admira. O abandono dos habitus originários é
vivido como negação da origem, como ruptura dos primeiros apegos, como traição. Ao
subir, a criança é levada a comungar com os que participam da invalidação de seus pais e de
seu meio de origem. Aí também a culpa desemboca na ingratidão, no sentimento de ser má.
Como elemento inverso da autoestima, a culpa se volta contra o Eu sob a forma de vergonha
de si.
Seja diante dos pais, seja diante dos dominantes, o sujeito em deslocamento entre duas
posições sociais das quais uma é percebida como inferior à outra é tomado pela tensão entre
a autoestima e a vergonha de si. A revalorização narcísica, aos sentimentos de orgulho e
admiração que o fato de ascender poderia gerar, correspondem os sentimentos de culpa e
ingratidão que reforçam o complexo de inferioridade.
Esse conflito central da neurose de classe diz respeito ao posicionamento do sujeito na
ordem dos lugares sociais. O problema não surge apenas na fixação de seu lugar na ordem
das gerações e das identidades sexuais; surge também em relação à fixação de lugares sociais
em termos de superioridade e inferioridade. Para o sujeito, trata-se de se situar entre
dominantes e dominados, entre castelães e criados, reis e camponeses, mestres e valetes,
patrões e operários, patrícios e plebeus, senhores e servos, burgueses e proletários, ricos e
pobres etc.
Na neurose de classe, o complexo de inferioridade é a tradução psíquica das relações de
poder entre os grupos sociais. Para o sujeito, os conflitos que o geram se caracterizam pelo
desejo de ascender mantendo-se apegado à posição originária, o medo de nunca estar à altura
de suas aspirações, uma sensibilidade intensa a todas as situações de humilhação e um
sentimento de culpa ligado aos temas da traição, da negação e da dívida.

O SUPERINVESTIMENTO NO TRABALHO
O superinvestimento no trabalho é uma defesa reativa ao complexo de inferioridade da
neurose de classe. Indicamos que o complexo de superioridade realiza uma inversão da
relação do individuo diante do que lhe provoca humilhação. A tenacidade no trabalho, em
especial da criança na escola, é sempre apresentada como um meio inicial de eliminar as
diferenças "culturais”, mas também de compensar as feridas narcísicas que estas provocam.
Na escola, a criança percebe que as diferenças entre ricos e pobres se transmitem para as
relações interpessoais por meio da invalidação, da condescendência ou do desprezo e que as
diferenças de habitus lhe são retransmitidas como tara, defeito, falta: "Ele comprova
confusamente que não disporá jamais das mesmas senhas nem participará das mesmas
reuniões que o filho do comandante”.13

_____________________
13
. P. Nizan. A. Bloyé. op. cito
O complexo de inferioridade • 125

A tenacidade no trabalho escolar permite à criança, por um lado, lutar para compensar essa
falta, com um desejo frenético de tudo saber, tudo conhecer, tudo ler... e, por outro,
compensar a inferioridade no registro social pela superioridade no registro escolar: ser a
primeira em tudo, ganhar os prêmios, vingar-se. "Foi assim que comecei a querer o sucesso
contra as meninas, todas as outras meninas, as metidas, as falsas, as choronas [...] Ali estava
minha vingança [...] Quando uma menina não sabe, a professora levanta o queixo, 'Denise
Lesur... ’ e dou a resposta, é como se eu desse um tapa bem na cara da menina”. 14 Trata-se
de inverter a relação de inferioridade vivida diante dos outros: sem poder ser igual a eles,
busca-se a posição na qual se é o primeiro, o melhor: "Com uma menina da roça que se
tornava a primeira, eles só podiam se conformar" (C. Duval). A classificação escolar permite
utilizar outras referências além daquelas que presidem a classificação social, oferecendo, ao
mesmo tempo, resultados reconhecidos e valorizados pelos que ocupam as posições a que se
aspira: "Nisso ele já descobrira que havia uma coisa que, na sociedade, poderia deixá-lo no
nível dos grandes e que poderia conseguir: o saber".15 O saber permite elevar-se ao mesmo
nível e até ir além daqueles cujo desprezo se sente, e assim inverter a desigualdade. O meio é
ainda mais atraente por permitir elevar-se sem dever nada a ninguém: a criança "boa aluna”
vem encobrir a criança "mal-educadà”, procurando ser esquecida. Mas esta pode ressurgir a
qualquer momento.
A cena da distribuição dos prêmios surge com frequência nos depoimentos biográficos
porque põe em cena a contradição na qual já se encontra a criança boa aluna:

• de um lado, reconhecimento do sucesso. Diante de todos os outros, é proclamada a


melhor, a primeira. Pode, portanto, oferecer o sucesso aos pais que, graças a ela,
"podem se orgulhar”. Uma ocasião de revalorização pública e também narcísica para a
criança, que vê os pais corarem de satisfação diante de seu sucesso.
• mas, de outro, essa consagração reaviva o sentimento de inferioridade. As diferenças
de posição social se manifestam publicamente pela vestimenta, pela linguagem, pelo
modo de ser dos pais sob o olhar condescendente dos outros alunos, dos professores e
das "pessoas de bem".

A consagração oficial do desempenho da criança se paga com uma humilhação suplementar;


a satisfação narcísica é ocasião para nova ferida:

Várias pessoas aplaudiram; na primeira fila, uma senhora bem arrumada com um
vestido violeta, guarnecido de renda [...] Mais longe, Antoine descobre a mãe, com a
saia preta e rígida, o colete ajustado e a touca redonesa [...] A senhora sentada na
primeira fila se inclinou para a vizinha e começou a rir; sem dúvida ria-se dele,
seguia-o com os olhos; ele achou ter ouvido: esse "camponesinho': 16

E corar de vergonha... Assim o prazer e a vergonha se mesclam em uma emoção comum que
pode desembocar em manifestações fóbicas como no caso de Aliette, que,

_____________________

14. A Ernaux, Les armoires vides, op. cit., p. 71.


15. A Strindberg, Le fils de la servante, op. cit., p. 86.
16
. P. Nizan, A. Bloyé, op. cito
126 • A neurose de classe

a partir dos 12 anos, não saía mais de casa porque tinha medo de enrubescer incontro-
lavelmente sempre que alguém lhe dirigisse a palavra. Em contrapartida a esse eritema
emotivo devido à humilhação sentida pela origem popular dos pais, Aliette passava os dias a
ler, estudar e aprender. Apesar da oposição dos pais à continuação dos estudos, ela terminará
o ensino médio, passará no concurso para professores de filosofia, fará o mestrado em
biologia, o DEA (Diploma de Estudos Aprofundados) em psicologia e o doutorado em
antropologia, com notas excelentes na prova escrita e um terror da prova oral. Mas esse
acúmulo de diplomas não lhe permite obter confiança em si nem se integrar a um lugar no
qual não se sinta desvalorizada nem humilhada. Embora cheia de diplomas, permanece em
um cargo marginal de substituta temporária em várias instituições de pesquisa sem jamais
conseguir uma posição estável e reconhecida. Ela se mantém isolada e se aterroriza toda vez
que é preciso manter as relações sociais mínimas necessárias para obter os cargos que deseja.
A princípio um meio de compensar o sentimento de inferioridade, de se vingar, o trabalho se
torna, sobretudo, um meio de canalizar a angústia ligada à culpa do sucesso. Colette Duval
se considerava anestesiada durante todo o tempo de escola: passa todo o tempo livre
estudando. Ter sempre algo a fazer, estar sempre monopolizada, completamente absorta... O
trabalho se torna um fim em si mesmo, como para Antoine Bloyé, que só pensa nisso:

o perfil das linhas, as relações de serviço [...] giravam em seu cérebro como engrena-
gens cuidadosamente calibradas. Até em casa ele vivia perseguido pelas horas,
sempre apressado, contra o relógio [...] Não tinha lazer para outros movimentos
humanos que não fossem os do trabalho. Era absolutamente absorvido pela profissão,
sem nenhuma ocasião para pensar em si, meditar, conhecer-se e conhecer o mundo.

O superinvestimento no trabalho tem as mesmas características da bulimia: é o sinal de uma


tentativa jamais realizada de encobrir uma falta, de compensar uma inferioridade, de reparar
uma rachadura, de pagar uma dívida.
O paradoxo da tenacidade no trabalho é que ela acentua a distância social que provoca a
angústia que com ela se busca remediar. Antoine Bloyé, ao subir pela hierarquia, "entrava
em uma sociedade de homens que comandam [...] ele aumentava sua carga de trabalho e sua
responsabilidade [...] via-se cada vez mais entre os grandes chefes e os operários [...] tornou-
se seu próprio inimigo”.
O que se torna neurótico não é, evidentemente, o fato de trabalhar nem o fato de ter sucesso;
é o fato de o sucesso produzir um efeito contraditório em relação ao que se busca. Longe de
resolver o sentimento de inferioridade, o sucesso parece, ao contrário, reavivá-lo: "não havia
jamais um único diploma que bastasse para me dar confiança” (C. Duval).
August Strindberg conta, em O filho da criada17, suas relações com os filhos da "classe
superior" - como esses "jovens nobres': finos e delicados eram ao mesmo tempo admirados e
invejados pelas crianças de outras classes que aspiravam a imitá-los e partilhar de seus
privilégios, mas não o ousavam: "O sangue servil de Jean não lhe permitia tamanha
presunção. Reconhecia o privilégio, não sonhava participar dele; tinha cons-

__________________
17. A. Strindberg, Histoire d'une âme, op. cit., p. 87.
O complexo de inferioridade • 127

ciência de que seria ainda mais humilhado, e por isso não queria. Mas chegar no nível deles
por outros meios, pelo mérito e pelo trabalho, eis com que seriamente sonhava”.
O sucesso tem de ser irrefutável, sem concessões, sem comprometimento, sem falhas. O
mérito tem de ser exemplar: "Tudo esclarecer, tudo saber, tornou-se para ele uma mania” (A.
Strindberg); "Era preciso que eu fosse a primeira” (C. Duval); "Responder sem nenhum erro
às perguntas da professora” (A. Ernaux).
O ideal do Eu impõe à criança o desafio de superar os mesmos que invalidaram seus pais, de
reparar a ferida narcísica fundamental que representa a humilhação deles. Mas esse ideal tem
exigências absolutas: não admite o mínimo fracasso, o mínimo enfraquecimento; exige
sempre mais. É essa a razão pela qual o fracasso não é vivido como um acidente de percurso,
como um erro passageiro, mas como falha insuportável, como falta imperdoável. A criança
"boa aluna” não consegue mais mascarar a criança "mal-educada” que corre o risco de surgir
a qualquer momento, portadora de todas as humilhações contidas e da intransponível
inferioridade originária. O ideal do Eu não pode suportar essa imagem da criança humilhada,
da criança inferior, da criança pequena.
Essa exigência do ideal do Eu também tem outra função: canalizar a culpa produzida pela
transgressão que consiste em querer ocupar outro lugar diferente daquele que lhe foi
designado desde o princípio. Diante do Supereu que recorda que há ali uma falta, que o
desejo de superar os pais é também um desejo de matar, o sujeito deve apresentar provas
contínuas de seu mérito, legitimar suas pretensões, mostrar que o sucesso só se deve a suas
virtudes: daí vem esse medo permanente de ser pego em falta e essa tenacidade para provar
seus méritos.
6

O ÉDIPO COMO COMPLEXO SOCIOSSEXUAL

O Édipo tem importância vital para a constituição do sujeito com sua


inscrição milenar nas próprias estruturas da sociedade. Ele sustenta a
organização simbólica da Família e, pode-se dizer, nesse caso, que se a
criança vive é exatamente porque tem de se socializar.
Anika Rifflet – Lemaire

Seria possível, dizia ele a si mesmo, que fosse filho natural de algum
grande senhor exilado em nossas montanhas pelo terrível Napoleão? A
cada instante, a ideia lhe parecia menos improvável [...] Meu ódio por
meu pai seria urna prova disso [...] Eu não seria mais um monstro!
Julien Sarel
O vermelho e o negro, Stendhal

Freud considerava o complexo de Édipo como o verdadeiro núcleo da neurose ([1919] 1973,
p. 233). Dizem que Carl Schorske repreende Freud por ter esquecido que "Édipo era Rei",
esquecimento que pode ser interpretado como "recalque" analítico da maneira como as
condições socio-históricas interferem nos destinos humanos. Em uma análise do contexto
cultural e político de Viena no final do século XIX, Schorske mostra em que medida esse
contexto pôde influenciar o pensamento de Freud:

tendo assim integrado seu conflito com o pai à própria hostilidade para com a autori-
dade pública, Freud pôde, desde então, adaptar-se a esta estabelecendo a primazia da-
quele. Assim fazendo, elevou a história pessoal, determinada no seio da família,
acima da história geral, determinada no seio da cultura em seu conjunto. Portador de
todas as dimensões das relações e da identidade familiar, Édipo perdeu seus atributos
de REX. Em outras palavras, Freud suprime o significado público do mito a favor de
seu único sentido psicológico.1

O destino de Édipo é régio. Embora simbolize o que há nos desejos humanos mais
inconscientes, o mito que permite representá-los põe em relação personagens "fora do
comum” devido à posição social. Ainda que, fantasmaticamente, qualquer um possa se ver
dentro dos diversos protagonistas da tragédia, as condições objetivas de realização do desejo
não deixam de ter importância para compreender o que há de

________________
1.C. E. Schorske, "Conflits de générations et changement culturel, réflexions sur le cas de Vienne”; in Actes de la recherche
en Sciences Sociales, 26-27, março-abril de 1979, p. 115.
130 • A neurose de classe

complexo na história de cada indivíduo. Mais exatamente, trata-se de analisar a dinâmica


edipiana e os processos de identificação instaurados por ela como um complexo sociossexual
que traduz uma interação entre elementos psíquicos e sociais.
O Édipo, como momento em que o sujeito se constitui em uma relação triangular, tem duplo
efeito: leva a criança a sair da relação dual, da indiferenciação; fá-la confrontar a
socialização do desejo, isto é, encontrar objetos de investimento fora da relação
paterna/materna. No Édipo, a criança sai da ilusão de onipotência na qual o outro,
imaginariamente, é manipulável à vontade. A introdução de um terceiro na relação com o
outro (com a mãe) leva a criança a reconhecer que o outro é, ao mesmo tempo, sujeito e
objeto do desejo de um outro, o pai, e, portanto, dos outros, e afinal de todos os outros. O
Édipo introduz as relações afetivas na dinâmica das relações sociais: "O encontro edipiano
ergue diante da criança, de maneira incontornável, o fato da instituição como fundamento do
significado [...], e a obriga a reconhecer o outro e os outros seres humanos como sujeitos de
desejos autônomos, que podem se ligar uns aos outros independentemente dela, até excluí-la
de seu circuito”.2 Além do papel do pai que impede o acesso da criança à mãe, é o social que
canaliza, assim, a atividade fantasmática da psique e faz surgir a criança como ser social:

Só a instituição da sociedade pode tirar a psique de sua loucura monádica original


[...]. Isso envolve a fabricação "hereditária” de indivíduos como indivíduos sociais -
o que também quer dizer: indivíduos que podem e desejam continuar a fabricação de
indivíduos sociais. É aí que, além de toda relatividade sociocultural, jaz o significado
profundo do complexo de Édipo.3

A importância da fase edipiana no desenvolvimento psíquico do indivíduo está ligada ao fato


de fazê-lo enfrentar o aprendizado da diferenciação e da identificação: onde posso me situar
entre meu pai e minha mãe? Entre meninas e meninos? Entre os bons e os maus? Etc. É o
momento em que a criança vai buscar para si uma identidade, produto de um movimento
dialético entre o processo de identificação e o de diferenciação.
A reprodução social precisa da implementação de duas lógicas contraditórias. De um lado,
que cada um fique em seu lugar, respeitando a manutenção da ordem: para que uma
sociedade se reproduza, convém que as regras de transmissão da herança e do ajuste dos
indivíduos aos lugares sociais se façam de tal maneira que evitem o questionamento da
ordem que a embasa. De outro, que essa ordem possa evoluir para se adaptar, a fim de
produzir as mediações necessárias à gestão das contradições que a invadem. De um lado, a
lógica da distribuição antroponômica; de outro, a lógica da historicidade. No
desenvolvimento psíquico dos indivíduos, encontra-se esse movimento duplo entre a
reprodução e a mudança, entre identificação e diferenciação, entre desejo mimético e busca
da estranheza, entre desejo de transgressão e internalização da lei.
Embora explique bem as questões fantasmáticas que marcam as relações da criança com os
pais, raramente a tragédia edipiana é interpretada como expressão de questões sociais: ao
ocupar o lugar do pai no amor (e na cama) de Jocasta, Édipo

__________________
2. C. Castoriadis, I.’institution imagina ire, d.e la société, Paris: Seuil, 1975, p. 418.
3. Idem, p. 417.
O Édipo como complexo sociossexual • 131

retoma igualmente o lugar social que lhe cabia por direito. Ele é o herdeiro legítimo de um
trono do qual Laio, para se proteger, tentou privá-lo.
Vimos que as escolhas amorosas são sobre determinadas por lógicas sociais que levam os
indivíduos a escolher parceiros congruentes com suas próprias trajetórias sociais: "O amor
não é cego e, ainda que tenha suas razões, o coração raramente ignora a razão social daquele
ou daquela por quem bate".4 Ou seja, o roteiro edipiano que dá à criança a possibilidade de
fazer escolhas quanto aos objetos de seu desejo e de suas identificações comporta uma
dimensão social essencial.
Até a fase edipiana, os processos de distribuição antroponômica e os de desenvolvimento
psíquico interferem uns nos outros. O Édipo é o momento em que essas duas lógicas vão se
combinar ou se curto-circuitar em um complexo, isto é, uma montagem de elementos ligados
uns aos outros em um sistema de relações organizadas e relativamente estáveis.
O processo de identificação que tem papel central no momento do Édipo deve ser concebido
como um processo psicossocial. Ele designa, ao mesmo tempo, o fenômeno de assimilação
de todas ou parte das qualidades ou atributos ligados ao objeto e, igualmente, significa o
trabalho de posicionamento em uma rede de lugares organizados, hierarquizados e
subordinados uns aos outros. Por meio da identificação, a criança enfrenta o aprendizado da
diferenciação sexual e social. Assim, é levada a internalizar os limites ligados a diferenças de
sexo, geração e classe. O Édipo é o momento em que ela aprende a se situar, porque, de certo
modo, ela "se põe em seu lugar", é levada a reconhecer onde está posicionada na ordem
familiar e social, a aceitar e ocupar o lugar que lhe é designado, como menino ou menina,
como filha daqueles pais. Nesse sentido, o Édipo é o primeiro momento do trabalho de ajuste
entre o indivíduo e seu lugar.
Ressaltamos que a identidade era uma construção, uma montagem de elementos
heterogêneos, multidimensionais, uma "bricolagem", na expressão de Lévi-Strauss. Ou seja,
a identificação não se realiza apenas com objetos parciais, mas também com "objetos totais”,
no sentido em que a personalidade é um conglomerado de elementos corporais, psíquicos,
culturais, ideológicos e sociais que formam um conjunto. É diante desses "conjuntos" que a
criança vai se situar no momento do Édipo, em um movimento que a leva a escolher,
separar, testar diversos modos de montagem, tentar ligar elementos heterogêneos diferentes,
procurar mediações originais diante das diversas figuras de identificação que lhe são
propostas.
Nesse amálgama de elementos esparsos, o sujeito vai iniciar a experiência da au-
toconstituição: primeira tentativa de ligação que, com maior ou menor sucesso, encontra sua
coerência. Os processos psíquicos em ação - principalmente a identificação e a idealização -
são, em essência, processos que tendem a ligar e religar instâncias, objetos e entidades. Os
conflitos surgem, portanto, a partir do momento em que certos elementos não podem aderir a
outros, na medida em que contenham aspectos contraditórios.
Esses conflitos podem assumir formas variadas. Os casos aqui apresentados tentam mostrar
de que maneira, na fase edipiana, encontram-se unidos elementos afetivos, fantasmáticos e
sociais em um engate recíproco - uma estrutura de poder que

________________
4. Michel Bonetti, "Trajectoire sociale et stratégies matrimoniales”, in Le groupe famílial. n. 96, julho de 1982. Ver também
v. de Gaulejac. "Trois hypothèses sur les rapports entre l'amour et la sociologie”, in Dialogue, le jeu de l’amour et du
travaíl, n. 83, 1984.
132 • A neurose de classe

levará o sujeito à neurose. Eles ilustram, especificamente, como as diferenças sociais


interferem no posicionamento da criança diante dos desejos paterno e materno.

O EXEMPLO DE COLETTE DUVAL


Colette vem de uma família de camponeses de uma aldeia do oeste da França. Nessa aldeia
de 600 habitantes, com "uma rua, uma igreja, uma escola e comerciantes”, Colette descreve
a existência de três classes: "os pequenos, os médios e os grandes': Os pequenos são os
camponeses que arrendam terras ou são proprietários de um sítio com menos de três
hectares. Os médios, dos quais fazem parte seus pais, são proprietários ou arrendatários de
uma fazenda que permita à família viver corretamente (cerca de 16 hectares). Os grandes são
os proprietários de um castelo, prefeitos da aldeia de pai para filho, que ela chama de
castelães: "Eram bem vistos na aldeia [...] Não era gente que marcasse a distância; eles
tentavam fazer contato, davam bom dia, pediam notícias dos filhos [...] Na missa, tinham
bancos reservados [...] Era gente cultivada [...] No entanto, não era nosso mundo”.
Em oposição a esse mundo, os "pequenos" são camponeses pobres que mal sobrevivem,
dentre os quais saiu uma empregada doméstica de seus pais que será expulsa quando
descobrirem que espera um filho do pai de Colette.

Eu tinha quatro anos quando meu pai e minha mãe quase se separaram por causa
dessa história da criada grávida que foi expulsa de casa [... ] nunca mais se falou
disso depois, é uma coisa que foi abafada. A única coisa de que me lembro é de
passar pela aldeia com minha mãe, encontrar essa criada com os filhos e ouvir minha
mãe fazer uma reflexão do tipo: "Ela tem um ar Duval"; creio que essa história
causou uma grande perturbação na minha vida [...] É que isso me bloqueou afetiva e
sexualmente [...] Vivi em suspenso até os 25 anos, quando sofri de depressão.

Desde essa cena, ela descreve o pai como recolhido, culpado, rejeitado pela família. Colette
passa essa vida "em suspenso", trabalhando. Depois da escola primária, é a única a fazer o
ginásio em um colégio a 3S km da aldeia. Assim ela conhece as meninas da cidade, um outro
mundo no qual se sente estrangeira e complexada devido a seu "grasseillement" (sotaque dos
que falam de jeito grasse, gutural).

É um período de minha vida no qual eu tinha a impressão de que tudo se fazia assim.
Eu trabalhava muito, aprendia, passava todo o tempo fazendo os deveres, estudando
as lições, também nos fins de semana, quando voltava à fazenda [...] não me dava
conta de que trabalhava além do necessário [...] Acreditava que era preciso que fosse
a primeira para ter a impressão de que a coisa andava [...] Como fora a primeira na
escola primária, era bom continuar assim, seria duro me ver em outro nível; para mim
seria um choque.

Colette viveu esse período como "anestesiada”, o investimento no trabalho escolar era um
meio de "não quebrar a cara”.

Era preciso que fosse assim, essa espécie de tenacidade na escola, a necessidade de
ser a primeira [...] A necessidade de acumular diplomas. Passei anos de minha vida
frequentando faculdades além de trabalhar porque era necessário ao plano de meu
equilíbrio [...] Não havia jamais um único diploma que bastasse para me dar
confiança do que eu
O Édipo como complexo sociossexual • 133

era [...] O que provocou isso foi a história de meus pais [...] Um afastamento [...] Não
sou mais do meio de minha origem, mas não sou do meio em que estou agora.

Quando fala de sua história, Colette associa as etapas da escolaridade e a trajetória afetiva,
ligando em seu discurso os relacionamentos com a escola e com os garotos. As relações
afetivas são ainda mais problemáticas porque a mãe lhe repete que os homens são perigosos,
que é preciso desconfiar deles, que a vergonha suprema é engravidar antes do casamento, e
porque Colette não recebe nenhuma educação sexual: "Fui marcada por isso. Era preciso
paquerar bem de vez em quando, porque sempre havia o risco [...] Minha mãe proibia tudo
[...]".
A mãe a vigia quando ela vai dançar "nas assembleias" (as festas da aldeia) e abre as cartas
que Colette recebe. Cortejada por professores primários que não a agradam, ela é atraída
fisicamente pelos rapazes da aldeia, dos quais mantém distância.

Em uma colônia de férias, assim mesmo me joguei, comecei a paquerar [...] o rapaz
era professor, portanto perfeitamente adequado [...] Foi recebido na casa dos meus
pais [...] Fui considerada noiva [...] Isso durou um ano e meio, o rapaz partiu para o
serviço militar. Naquele período, saí com os jovens da aldeia, descobri que tinha
vontade de me divertir, que não tinha vontade de me casar com aquele rapaz [...] Não
sabia como sair da situação, porque a lógica exigia que eu me casasse com aquele
rapaz que estava dentro dos conformes [...] Eu ser professora primária, ele ser
professor primário, era uma vida bem traçada [...] Mas já me deitara com ele e,
francamente, não tive vontade de fazer amor, quando ele me abraçava eu não sentia
nada, não era amorosa, isso era claro.

Diante do sentimento de ser arrastada para uma vida que rejeita, Colette não sabe como sair
dessa relação que a prende. Ela queria romper, mas não sabe como fazer isso. Decide
conversar com a mãe para encontrar uma saída. "Mas mamãe me disse que talvez fosse a
mesma coisa com outros homens. E nisso posso dizer que ela acabou comigo, me derrubou
[...]"
Para Colette, segue-se um período de culpa intensa diante do noivo a quem anunciou o
desejo de ruptura, culpa que se extinguiu quando ele se casou, seis meses depois, com uma
de suas amigas. "Então saí com os rapazes da aldeia, namorei os rapazes da aldeia, mas
nunca me deitei com os rapazes da aldeia, isso era impossível para mim; tinha vontade, é
claro, mas era impossível, havia um nó dentro de mim que nunca consegui superar”.
Ao mesmo tempo, Colette conhece outros professores primários e universitários, gente que
"tinha outro nível': "Comecei a sentir que tinham me enganado, professor primário não era o
máximo [...] Era a base da escala [...] Para minha família, o máximo era um professor
primário, e eu acreditara ter obtido grande ascensão por ser professora”.
Ela conhece então um espanhol, engenheiro do Departamento de Pontes e Estradas, com
quem sai durante um ano:

Certo dia ele me disse que, se me casasse com ele, não queria que eu trabalhasse e
que iríamos para a Espanha [...] Não trabalhar era negar todo o meu passado, eu não
poderia fazer esse corte [...] Não sei o que acontecia; aquele rapaz nunca me
pressionou para fazer amor, ele aguardava, era um rapaz direito [...] Finalmente
rompemos porque ele se deu conta de que aquilo não era viável [...] Eu tinha um
desprezo por aqueles burgueses espanhóis que ele nã0 podia admitir. Mas, naquele
momento em que ele
134 • A neurose de classe

disse: "Bom, nada vai dar certo entre nós afinar”..., aí tive uma depressão nervosa
[...] Antes tinha a impressão de que ia sufocar; acredito que então adoraria que desse
certo mas não era possível, havia o afastamento social que me bloqueava [...] e aí
fiquei com a impressão de que havia uma rachadura, mas uma rachadura interna, e
que eu não podia mais ter relações com os homens.

Colette, com 28 anos nessa época, passa três meses em uma casa de repouso e começa uma
psicanálise que durará dez anos. Nesse período, trabalha como professora e depois
orientadora educacional. Ao mesmo tempo, faz cursos na universidade e coleciona diplomas.
Obcecada com os problemas de sexualidade e virgindade, encontra uma ginecologista que
lhe receita anticoncepcionais. Chega a ter relações com homens que têm a característica de
vir de um meio de origem próximo do dela, de estar em rápida ascensão social sem diplomas
(comerciantes, jornalistas) e com os quais ela mantém uma posição de amante, mais do que
de esposa legítima.

A suprema aspiração de minha vida sempre foi me casar e sem dúvida nunca me
casarei. Isso faz parte do desejo de ser como os outros. Há uma aspiração de estar
dentro da norma, na massa, que sou incapaz de realizar... impressão de sufocar dentro
da norma mas de aspirar a ela...

A história de Colette e o modo como ela reconstrói cada uma de suas etapas nos esclarece o
emaranhado permanente de questões sexuais e sociais nos conflitos que a invadem, levando-
a à depressão. Trata-se agora de separar os diversos componentes para compreender esses
nós de que ela fala a respeito da vida. Nós que podem ser interpretados como complexos, ou
seja, uma montagem de representações relacionadas ao mesmo tempo aos fatos passados, às
lembranças deles guardadas pelo sujeito, aos fantasmas que os ligam, que os fazem aderir
uns aos outros, que os fixam em um conjunto organizado e relativamente estável. O trabalho
de análise consiste em localizar os elementos dessa colagem e desmontar a constituição de
uma neurose que se constitui como destaca Freud, por "erupções sucessivas”.
Os processos neuróticos em ação aqui são característicos da interligação, no sentido
sistêmico da palavra, entre os aspectos sexuais, afetivos e sociais dos conflitos cuja gênese e
desenvolvimento Colette descreve.
Ela mesma liga suas relações à cultura, ao corpo e à sexualidade.

Sinto-me sem cultura [...] Sempre tive essa aspiração de tudo saber e de medir a cada
instante os buracos do meu saber, meus buracos, minhas faltas; enfrento-os todo dia,
quando ouço falar quem tem a palavra fácil [...] todo dia, todo dia. Eu achava que, na
Educação Nacional, seria possível completar a cultura com horas extras. Na verdade,
percebo que não, sempre há pelo menos uma diferença. Agora convivo com essa
diferença, mas sei que não a eliminarei jamais.

A essa diferença social vivida como irredutível, Colette opõe a sexualidade com a qual acha
que poderá atingir um ápice que lhe permita "estar à altura”. "Meu problema era estar à
altura, em meu corpo e na vida:'
E, enquanto Colette se pergunta onde se enraíza essa aspiração de chegar ao ápice, essa
vontade de sempre subir socialmente que a confronta com o risco de depressão, com seus
buracos, suas faltas, aparece a invalidação originária: "Quando
O Édipo como complexo sociossexual • 135

nasci, eles queriam um menino [...] Minha validação está postada na integridade de minha
pessoa”.
Nessas associações em torno do tema da diferença e da falta, surge uma condensação entre o
sentimento de inferioridade social, o medo de não estar à altura e o complexo de castração.
O "buraco", sentimento de não saber o que os outros sabem, remete a três fatores que vão se
superpuser em sua história e lhe condicionar o sentido.
O "buraco" é do "caipira”, da filha de camponeses que não tem “A” cultura legítima, que
confere o "porte distinto" e a fluência dos castelães, da "gente de bem", dos burgueses, dos
que não falam pela garganta, gente da cidade que tem dinheiro, que tem "maneiras", que
consegue falar de tudo e nada.
O "buraco" também é o segredo que encobre a história da criada, a falta e o prazer do pai;
história sem palavras que ocasiona o recolhimento do pai, a rejeição da amante, o ódio da
mãe. Silêncio que gera uma ameaça às relações entre homens e mulheres, a interdição do
prazer e a culpa diante da transgressão sexual e social que representa o erro do pai. Silêncio
que se generaliza a tudo o que diga respeito à sexualidade: Colette não terá nenhuma
educação sexual, nenhum "saber" sobre a sexualidade feminina e masculina, sobre a
contracepção, sobre as relações amorosas.
O "buraco”, enfim, é a ausência de pênis na menininha que não pode satisfazer o desejo dos
pais (sobretudo materno) de ter um menino. É à base do sentimento de inferioridade de
Colette, ferida narcísica originária que vai marcar sua existência: para estar à altura do filho
ideal, era preciso tapar esse buraco, possuir um pênis, ser o que ela não é e jamais será: um
menino.
Em termos cronológicos, a falta inicial é determinante. Sabe-se que, para Freud 5, o
complexo de castração leva a menina a desejar o pênis do pai. Já, no menino, a angústia de
castração marca a crise terminal do Édipo e provoca a formação do Supereu. Na menina, que
não vive a castração como ameaça, mas sim, principalmente, como falta, ela marca o
momento da entrada no Édipo. Nela, "a renúncia ao pênis só se realiza depois de uma
tentativa de obter uma compensação. A menina desliza - ao longo de uma equivalência
simbólica, pode-se dizer - do pênis à criança, e seu complexo de Édipo culmina em um
desejo mantido durante muito tempo de obter como presente um filho do pai, de lhe pôr um
filho no mundo".6
Colette, nesse momento essencial da organização de seu aparelho psíquico, descobre que o
pai ofereceu um filho a outra mulher que não é sua mãe. Essa descoberta a deixa diante de
duas figuras femininas opostas, dois modelos contraditórios na ordem das identificações
sexuais e sociais: a mãe, que é “a primeira” na ordem da norma social, não é um objeto de
satisfação para o pai. Por outro lado, a amante do pai, que ela poderia supor ser a primeira na
ordem de satisfação sexual, está no último degrau da ordem social.

______________
5.S. Freud, "Le déclin du complexe d'Oedipe" (Der Untersans des Oedipus Komplexes, 1924), in Revue françai-se de
psychanalyse, 1934,7, n. 3, p.394-399.
6.Sigmund Freud é muito criticado por sua interpretação "masculina” do 1õdipo. Sem entrar nesse debate, desenvolvido
especificamente por Christiane Ollivier em Les enfants de locaste (Denoël e Gonthier, 1974), a maioria dos autores
concorda que, para o menino, o 1õdipo remete à ameaça, enquanto para a menina remete ao vazio e à inveja.
136 • A neurose de classe

Aqui vemos se delinear um roteiro edipiano de tipo sociossexual que vai inserir o desejo em
um jogo contraditório entre o prazer e a norma, entre o bem e o mal. Embora levem a criança
a se situar simultaneamente em uma identidade sexual e nas relações de filiação, os
processos de identificação também permitem que ela se situe nas relações sociais. O lugar
designado à criança na ordem simbólica lhe confere um lugar social em função da posição
social do casal de pais.
Essa "ordem" é ainda mais impositiva porque Colette nasceu do cruzamento de duas famílias
camponesas instaladas desde muitas gerações na Sarthe, região conservadora e
tradicionalista da França. A mãe tem o nome da avó e da bisavó. O tio materno tem o mesmo
nome do avô. Do lado paterno, encontra-se o mesmo peso das tradições camponesas,
simbolizado pela transmissão dos nomes e da terra. O pai tem o nome do avô que conseguiu
tornar fazendeiros os três filhos, cada um deles casado com filhas de camponeses. Só
Madeleine, a irmã do pai de Colette, escapa desse destino por se tornar professora primária e
depois se casar com um professor. Nesse meio, as filiações e alianças se organizam em
função da reprodução e da transmissão da ferramenta de trabalho, e o essencial é ser
proprietário das terras para fugir à dependência dos castelães que arrendam terras aos
fazendeiros. A ordem, portanto, é dividida em três classes: os pequenos, que não conseguem
viver sem trabalhar para os outros; os médios, que conservam a independência porque a
fazenda permite a vida da família; os castelães, senhores da comuna há várias gerações, que
personificam a cultura, a presença imponente e o poder.
Segundo essa ordem, Colette está destinada a se casar com um fazendeiro, como a mãe e as
duas avós, ou a se tornar professora como a tia Madeleine. Além disso, isso aconteceria se
um fato não viesse questionar essa ordem ao abalar a coerência entre o jogo do desejo e a lei
da distribuição antroponômica. Colette se encontra com uma meia-irmã que tem seu nome,
filha do pai e da criada. Só bem mais tarde ela conseguirá reconstruir o que aconteceu,
apesar da opacidade do silêncio em torno desse escândalo. "Na vida, sinto-me no lugar da
criada que desempenhou no plano sexual para meu pai, e me encontro sempre nesse lugar”.
Essa situação funciona como um curto-circuito do Édipo para satisfazer o desejo do pai; não
é o lugar da mãe que convém ocupar, mas o da amante. É ela o objeto de desejo. Mas esse
lugar é duplamente ilegítimo, porque transgride a lei do casamento e a ordem social. A
mulher que dá prazer é uma empregada doméstica de classe inferior. É a mãe que personifica
a proibição, que é a guardiã da lei. É ela que sanciona o erro do pai, que transmite à criança a
fronteira entre o bem e o mal.
Colette, portanto, se vê diante de dois modelos antagônicos de mulher: de um lado a mãe,
conformista, superegoica, sexualmente insatisfeita, mas legítima. De outro, a criada,
marginal, sedutora, sexualmente satisfeita, mas ilegítima. Uma é a mulher de bem, “direita”.
A outra é rejeitada e desvalorizada socialmente.
O projeto materno é que a filha permaneça em seu lugar, em seu nível, ou seja, que se case
que se torne professora e trabalhe em um lugar estável, como funcionária pública. Mas,
assim fazendo, ela terá de renunciar ao prazer sexual, aceitar nada sentir com os homens, que
são seres perigosos que é melhor evitar.
Em uma primeira etapa, Colette se inscreve nesse projeto. Boa aluna é estimulada pelos
professores a continuar, os estudos. É a única aluna da aldeia a fazer o ginásio na cidade
vizinha: "Foi um grande corte, mudei de mundo, estava com as pessoas da cidade, no
desconhecido...”. Essa mudança a faz enfrentar o sentimento de ser me-
O Édipo como complexo sociossexual • 137

nos cultivada e a lógica da diferenciação social que leva as outras meninas a zombar do seu
jeito de falar. Em reação, ela superinveste nos estudos para ser a primeira da turma: "Era
preciso que eu conseguisse que fosse a primeira para ter a impressão de que a coisa andava
[...] Seria duro me ver em outro nível; para mim seria um choque”.
Mas esses bons resultados não são investidos narcisicamente. Colette não tira disso nenhuma
revalorização, como se fosse uma exigência interna à qual é obrigada a obedecer: era preciso
ser a primeira. Pode-se sentir, por trás dessa obrigação, a reação do Eu às exigências do
Supereu, um desejo de compensação, um mecanismo de defesa contra a culpa inconsciente e
um meio de mantê-la recalcada. A sublimação no trabalho não consegue canalizar a
angústia.
É que a tenacidade se situa em outro lugar. Ao ser "a primeira”. Colette busca superar o
ressentimento originário, consequência do não desejo da mãe por ela. Desde o começo, ela
era insatisfatória, já que seu corpo e seu sexo não provocaram o desejo por parte da mãe e
que, no momento em que poderia ser objeto do desejo paterno, este foi levado por outra,
ainda que essa outra fosse rejeitada, banida, deposta e condenada. O medo de "encontrar-se
em outro nível" remete, portanto, a uma série de pares opostos (menino/menina,
mãe/amante, patrão/empregada) que definem posições diferentes e contraditórias. Ser a
primeira como objeto de desejo do pai é correr o risco de uma dupla desclassificação: no
amor da mãe e social ("ser banida da sociedade"). Ser a primeira no amor da mãe é correr o
risco de ser a última no desejo do pai etc.
Para Colette, "a primeira coisa que não era direita dizia respeito ao corpo, porque se tratava
do sexo que não provocava o desejo da mãe", e Christiane Olivier (1974, p. 65) mostra bem
que esse "vazio" inicial é o destino da grande maioria das meninas. Mas esse conflito se
torna crucial para Colette, na medida em que o sentimento de não estar à altura do desejo do
outro age sobre vários registros que se ligam uns aos outros, com apoio recíproco, o que não
quer dizer que um determine os outros, mas que eles se reforçam mutuamente em relações de
correspondência.
A tenacidade no trabalho, longe de atenuar as diferenças que favorecem a assimilação ao
mundo urbano e burguês, contribui para isolá-la um pouco mais. Colette não faz amigos e
passa todo o tempo livre com os livros da escola; ela se marginaliza, vive entre parênteses
como se "anestesiada”. Sua ansiedade de não estar à altura a leva a trabalhar muito mais do
que seria necessário para ter sucesso. O medo de não saber, o temor de não ser a primeira,
longe de se atenuar, se amplifica. Diante da angústia que aumenta, ela se apega aos cargos
institucionais da escola, depois da escola normal, depois do serviço público: "Isso era
necessário para meu equilíbrio”. Essas diversas organizações lhe conferem um lugar, um
nível, um apoio, mas não lhe permitem, contudo, escapar do sentimento de inferioridade.
Embora perceba uma fluência natural nos outros, capazes de falar de coisas que não
conhecem, ela não consegue encontrar, nos diplomas e no sucesso escolar, a confiança que
lhe falta.
Ao roteiro edipiano que introduz uma contradição em seu posicionamento afetivo e sexual se
superpõe uma cisão entre dois mundos nos quais ela não consegue encontrar seu lugar: "Não
sou mais do meio de minha origem, mas não sou do meio onde estou agora”. Essa cisão
remete a uma dupla oposição: entre o mundo rural camponês dos pais e o urbano burguês da
escola; entre o mundo dos homens e o das mulheres.
O confronto com a diferença social a luta para reagir ao "choque" que ela representa o gasto
de energia necessário para ser e permanecer a primeira acontecem em um universo feminino.
O equilíbrio encontrado por Colette se mantém desde que
138 • A neurose de classe

esteja em um cercado que a proteja dos homens. Mas esse cercado que a protege é o mesmo
que a anestesia, porque exclui o prazer, porque sufoca a parte dela atraída pelos homens,
porque reprime a sexualidade: "Sempre eliminei os homens nesse momento”. Os contatos
que pode ter com rapazes acontecem em situações oficiais, ritualizadas, "nas assembleias",
sob os olhos da aldeia e dos pais, ou na Escola Normal, nos encontros organizados na
aprovação dos rapazes. "No entender de minha mãe, havia perigo nos homens; havia o
perigo, sem dúvida, de engravidar assim que abraçasse um garoto”.
Esse temor dos homens transmitido pela mãe é duplo: os homens são ameaçadores por serem
violentos, "são animais”, a necessidade dos homens é bestial; além disso, a falta mais grave
para a mulher é engravidar fora do casamento, representando a suprema degeneração. Para
evitar esse risco e canalizar a violência dos homens, é preciso noivar o mais depressa
possível com um homem "de bem”.
Colette, portanto, está diante de uma contradição na relação com os homens. De um lado, sai
com um professor sério, aceito pela família, de quem está quase noiva: ele se inscreve com
perfeição no projeto materno, na norma, em uma "vida bem traçada”. Mas ela não sente nada
por ele, nem desejo, nem amor. De outro, é atraída fisicamente pelos rapazes da aldeia, mas
para ela é impossível ter relações sexuais com eles, devido à proibição materna que
internalizou reforçada pela diferença de nível cultural que os exclui como pretendentes ao
casamento.
Esse "nó”, essa contradição provoca um primeiro episódio depressivo. Por não saber como
sair da situação, ela busca ajuda junto à mãe. Mas, embora obtenha dela a coragem de
romper com um homem perto de quem nada sente, isso a remete à incapacidade de viver:
"Talvez seja a mesma coisa com outros homens”. Com essa resposta, a mãe quer dizer que
não aceita que a filha não seja como ela; ao lhe dizer isso, ela também afirma: "Comigo é a
mesma coisa”. "Você é como eu”. "Seja como eu" e, ao contrário: "Caso sinta, você ocupa o
lugar da criada, me trai, é uma filha má".
Colette, portanto, se sente "afundada”, "afogada”, remetida à sua incompletude, incapaz de
reagir. Essa situação ilustra a hipótese de Francis Pasche sobre a depressão de inferioridade:
"Na depressão, o Eu e o Supereu se aliam contra o Eu para dar um veredito infindável de
incapacidade”.7 Esse episódio depressivo durará seis meses até que ela conheça uma mulher
que "aparentemente ama o marido", que lhe transmite que a alternativa na qual se encontra
não tem nada de inelutável: "É bom parar com isso, a vida não é assim, não é preciso
continuar nessa história se o efeito é esse”. Colette sente então a energia e o direito de
romper, de enfrentar a família e o noivo-professor.
Esse roteiro vai se repetir uma segunda vez de modo um pouco diferente: de um lado,
Colette se permite flertar com os "rapazes da aldeia”, de outro, começa a conhecer homens
de outro nível social que a fazem perceber que ser professora primária "não era o máximo,
era a base da escala”.
Ela sai, portanto, com um aluno engenheiro que lhe apresenta a vida parisiense, a cultura
burguesa, mas com quem ela não tem relações sexuais.
Ela é atraída pelo que vê como "conto de fadas”, por esse novo "ápice" a alcançar: o modelo
da mulher burguesa, sustentada por um marido que a respeita e não lhe propõe que tenha
relações sexuais antes de se casar. Mas essa proposta lhe dá a

___________________
7. F. Pasche, A partir de Freud, Paris: Payot, 1969, p. 185.
O Édipo como complexo sociossexual • 139

impressão de sufocá-la: renunciar ao trabalho é negar todo o seu passado, é invalidar tudo o
que fez para se tornar professora, é romper com as origens sociais e culturais, é se tornar
uma burguesa, é enfrentar irremediavelmente a distância social e confirmar a cisão entre
esses dois mundos. Caso aceite que deve a promoção a um homem, ela se condena a aceitar
sua dominação, a dever-lhe o que poderia se tornar, a tornar-se alguém que, no fundo,
despreza.
Esse medo da distância social encobre outro do qual essa relação a protege: ao não lhe
propor que faça amor, ele lhe permite evitar a ameaça de se ver grávida; mas assim confirma
a sufocação da sexualidade, a proibição do prazer. Ao lhe propor que se torne uma mulher
legítima e respeitada como a mãe, ele sufoca a outra mulher, certamente ilegítima, mas que
sabe dar e receber prazer.
Dividida entre essas duas partes de si mesma, Colette força o noivo a deixá-la e mergulha
outra vez na depressão: "Fiquei com a impressão de que havia uma rachadura, mas uma
rachadura interna, e que eu não podia mais ter relações com os homens”.
Mesmo depois da psicanálise, as relações com os homens continuaram marcadas por essa
contradição entre o desejo sexual e a aspiração social. Há homens com quem poderia ter
relações e desposar, mas com eles não sente nada, não tem prazer (os professores, os
engenheiros, os diplomados). Eles estão dentro da norma do projeto materno, poderiam lhe
dar segurança e estabilidade e consolidar sua promoção social, permitir-lhe atingir um
"ápice" social. Mas são os outros homens que lhe permitiriam atingir um "ápice" sexual, com
os quais ela sente no corpo o prazer: os rapazes da aldeia, os homens já casados, mas que
têm a característica de serem marginais em relação à burguesia e autodidatas não
diplomados.
Tudo se passa como se fosse preciso dissociar a possibilidade de relações sexuais
satisfatórias e de relações afetivas duráveis. Embora sua "suprema aspiração" continue a ser
o casamento, sua obsessão é "ter todas as noites com quem me deitar legalmente”. A
satisfação do desejo não pode se realizar na obrigação da legalidade instituída e na forma
burguesa.
Essa questão permanece fundamentalmente inscrita na relação com o desejo do pai,
dilacerado entre dois modelos inconciliáveis de mulher, pertencentes a dois mundos sociais
diferentes.

O EXEMPLO DE AUGUST STRINDBERG


A discussão sobre a parte relativa às questões sexuais e sociais no complexo de Édipo
também pode ser ilustrada pelo caso de August Strindberg, que, em toda a sua obra
dramática e nos romances autobiográficos, nos fornece um material riquíssimo e pungente
sobre sua história 8.
Não discutiremos aqui a classificação do material empregado: trata-se de um depoimento
autobiográfico ou de um romance "inventado"? Como destaca Marthe Robert, "o romance
nunca é verdadeiro nem falso" ([1972]1976, p. 33). Como todo discurso do sujeito sobre si,
ele "nunca é nada além de um aumento de seu poder de

_________________
8.August Strindberg escreveu mais de cinquenta peças de teatro, vários romances e uma autobiografia em cinco volumes,
além de uma correspondência volumosa. Cf. a bibliografia estabelecida por G. Vogelweith in Le psycho-théâtre de
Strindberg, Paris: Klincksieck, 1972.
140 • A neurose de classe

ilusão", um meio de "contar histórias" para se enganar e enganar os outros, mas que intervém
na vida "revelando seus subterrâneos mais escondidos': na medida em que "pode detalhar o
mal sem deixar de ser puro e bondoso".
Ao escrever na terceira pessoa, Strindberg pode se entregar ao mesmo tempo em que
mantém a distância ilusória, mas necessária do romancista, seja em relação a si mesmo, seja
em relação à sociedade rígida e conservadora da Suécia no século XIX. O subtítulo que deu
a seu romance, "História de uma alma”, indica o propósito do autor, que consiste em
descrever a constituição e a formação de sua personalidade entre 1849 e 1867, ou seja,
durante os 18 primeiros anos de vida.
A qualidade extraordinária desse material autobiográfico, completado por uma obra
dramática também interessante tanto no plano teatral quanto do ponto de vista clínico, faz de
Strindberg objeto de numerosos estudos psicopatológicos, como os de Guy Vogelweith e de
Janine Chasseguet-Smirgel 9 .
Nascido em 1849, em Estocolmo, Strindberg é o quarto de onze filhos. O pai, agente
marítimo, vem de uma família aristocrática que o rejeita depois do casamento com uma
antiga empregada doméstica. A mãe morre em 1862, quando August tem 13 anos. Único da
família a prosseguir nos estudos, ele vai entrar na universidade, se tornar bibliotecário da
Biblioteca Real de Estocolmo e depois dramaturgo. Em 1875, se apaixona por Siri von
Essen, casada com um barão, que desposará em 1877. Começam então as crises de delírio
que descreverá, especificamente, em Defesa de um louco (1887)10. Ele se divorcia em 1892 e
entra em um período de conflitos, miséria e delírios que o leva a se interessar pela alquimia.
As crises de paranoia chegam ao ponto máximo em Paris, em 1896. Ele as descreverá em
Inferno e Lendas. De volta à Suécia, casa-se outra vez, retoma a atividade literária, divorcia-
se de novo para se casar e se divorcia uma terceira vez em 1904. Morre em 1912 de um
câncer de estômago.
Em O filho da criada ll, August Strindberg conta seu romance familiar sob os traços de Jean:
"O pai era aristocrata de nascença e formação. Tinha uma antiga árvore genealógica,
segundo a qual a família nobre remontava ao século XVII [...] A mãe de Jean era filha de um
alfaiate pobre, e o padrasto a lançara na vida como doméstica e, depois, como criada de
albergue" (p. 12). Devido ao "mau casamento': o pai se rebaixa diante do resto da família,
mas mantém os hábitos aristocráticos: “De barba, a pele fina, ele se penteava à moda Luís
Felipe. Além disso, usava monóculo, estava sempre bem vestido e adorava roupa limpa. A
criada que engraxava suas botas tinha de usar luvas durante a operação, porque suas mãos
eram consideradas sujas demais para penetrar nas botas do patrão” (p. 12). Ele o descreve
como triste, cansado, severo, sério, fechado em si: “Ele não aceitava nenhum convite dos
amigos porque não poderia convidá-los em troca [...] tinha uma ferida que queria esconder e
cicatrizar” (p. 14). Ferida da regressão, “porque descera, estragara sua situação”.
A mãe é descrita como simples, limpa, compassiva, justa, "relativamente contente com seu
destino, porque se elevara na escala social': Embora tivesse criados, a família vivia
pobremente: comida racionada, carne unicamente no domingo, roupas

____________________
9. Guy Vogelweith, Le psycho-théâtre de Strindberg, op. cit., e J. Chasseguet-Smirgel ([1963]1971).
10. Le plaidoyer d'un fou, Paris: Mercure de France, 1964.
11.Sua autobiografia intitulada Histoire d'une âme, escrita em 1866, se divide em 4 volumes: Le fils de la servante [O filho
da criada], Fermentation, Dans la chambre rouge e L’écrivain. As citações que se seguem são extraídas de Le fils de la
servante, op. cit., 1973.
O Édipo como complexo sociossexual • 141

conservadas pelo máximo tempo possível, moradia exígua para a família numerosa: "Três
quartos eram habitados pelo pai, a mãe, sete filhos e duas criadas".
Jean é descrito como arisco e solitário. O irmão mais velho era o favorito da mãe, o segundo
o favorito do pai. "Jean não era favorito de ninguém [...] queria conquistar a mãe. Tornou-se
bajulador, agarrava-se a ela com força; foi desmascarado e rejeitado”. O sentimento de ser
mal amado gera uma culpa profunda: "Jean tinha sempre medo de que descobrissem alguma
falta para lhe imputar" - o que o leva a ser punido por faltas que não cometeu. Uma cena
ficará especialmente gravada na memória do narrador. Strindberg voltará a ela com
frequência em sua autobiografia.

Certo dia, ao meio-dia, o pai examinava uma garrafa de vinho em uso pela tia.
- Quem acabou com a garrafa? - pergunta, passando os olhos pela mesa.
Ninguém responde, mas Jean se ruboriza.
- Ah, foi você - diz o pai.
Jean, que jamais descobrira o esconderijo da garrafa de vinho, começou a chorar e
soluçar.
- Não fui eu que tomei o vinho.
- Ah! Nega, como se não bastasse!
Como se não bastasse!
- Você vai ver só quando sairmos da mesa.
A ideia do que lhe aconteceria quando saíssem da mesa, além das observações que o
pai continuava a fazer sobre o caráter pouco comunicativo de Jean, provocaram um
novo dilúvio de lágrimas.
Todos se levantaram da mesa.
- Entre - disse o pai, - e vá para o quarto.
A mãe foi atrás.
- Peça perdão ao papai - diz ela.
- Não fui eu - chora ele ainda.
- Peça perdão ao papai - diz a mãe, puxando-o pelo cabelo.
O pai pegou a correia que estava atrás do espelho.
- Querido papai, me perdoe - grita o inocente.
Mas agora é tarde demais. A confissão foi feita.
A mãe assiste à execução.
A criança grita de mágoa, raiva, dor, mas principalmente de vergonha e humilhação.
- Agora peça perdão ao papai - diz a mãe.
O menino a olha e a despreza. Sente-se só, abandonado por aqueles junto de quem
sempre se refugiou
para receber ternura e consolo, mas raramente justiça.
- Querido papai, perdão - diz ele, mordendo cruelmente os lábios mentirosos. Então
ele escapole pela cozinha atrás de Louise, a babá que geralmente o penteia e lava, e é
no seu avental que chora as mágoas.
- O que foi que você fez? - pergunta ela com compaixão.
- Nada - responde ele. - Não fui eu que fiz.
Chega a mãe.
- O que Jean disse? - pergunta ela a Louise.
- Diz que não foi ele que fez.
- E ele ainda nega!
E finalmente Jean é levado de volta para ser torturado até que admita o que nunca
fez.
Então ele admite o que nunca fez.
142 • A neurose de classe

Desde esse dia Jean vive em uma inquietude permanente e começa a entrever "espíritos
maus como os selvagens e os animais ferozes [...] Era como um condenado. Condenado por
mentira e roubo [...] Perdera a consideração social, tornara-se suspeito e era ridicularizado
pelos irmãos e irmãs porque fora pego" (p. 21). Tudo isso devido a uma falta que não
cometera.
Uma interpretação psicanalítica simples permite compreender como Jean acaba castigado
pelo pai diante da mãe, permitindo-lhe desprezar aquela que deseja inconscientemente e
odiar, devido à injustiça, aquele de quem queria inconscientemente se livrar. Aqui, a punição
vem responder à culpa inconsciente, substituindo o desejo proibido por uma falta imaginária
que lhe é atribuída.
Essa cena ilustra com perfeição as questões sexuais do desejo que vão influenciar Strindberg
em suas relações posteriores; ilustra também as questões sociais que vão marcá-lo de
maneira tão radical. Se quisermos compreender a natureza profunda da neurose do autor, a
dinâmica inconsciente do desejo sexual é indissociável da posição social dos atores
presentes. O pai, que representa a classe superior da qual não faz mais parte, tenta, em vão,
encarnar a ordem, a justiça, o poder, a autoridade, mas exerce suas prerrogativas de maneira
deslocada. A humilhação sentida por Jean está ligada ao sentimento de que o pai é
desclassificado em relação à posição que busca ocupar, embora ela não mais lhe pertença.
Mais do que a injustiça do pai que o pune por uma falta que não cometeu, é a degeneração da
imagem paterna que se encena aqui. A vergonha vem da necessidade de se submeter a uma
autoridade que queria ser superior mas não é mais, a uma potência cuja arbitrariedade só faz
expressar a fraqueza, a um poder que não é mais legitimado pela consideração social. O pai é
desvalorizado por ser incapaz de dar proteção e segurança ao menino, quer diante dos
desejos culpados que o impelem para a mãe, quer diante de uma ordem social cindida entre
"dominantes" e "escravos”, na qual as crianças estão, irremediavelmente, do lado dos
escravos. O pai não permite ao filho achar solução para seus conflitos porque ele mesmo não
soube achar solução para sua falta, ou seja, o mau casamento. Ele se comporta como se ainda
fosse um senhor embora não o seja mais, como se ainda fosse "superior" embora viva
recluso, dissimulando no interior do espaço doméstico a degeneração familiar e social da
qual é objeto. Na identificação com o pai, o que se destaca, portanto, é a humilhação, a
desconsideração social, a zombaria dos outros, como se Jean adotasse a imagem reprimida
do pai. A identificação com o agressor, longe de propor à criança um modelo de potência,
firmeza, força e dominação, a leva a introjetar uma imagem negativa e desvalorizada de si
mesma. Sem dúvida, é nesse processo que convém inscrever a gênese do sentimento de
perseguição que acompanhará Strindberg ao longo de toda a vida - ainda mais que a criança,
indefesa diante do castigo paterno, não pode se apoiar na sustentação materna nem na
solidariedade dos dominados.
A mãe é duplamente submissa: como mulher, ao desejo do pai; como escrava, ao desejo do
senhor. Assiste à execução e dela participa. Diante da injustiça e da arbitrariedade de que o
filho é objeto, ela o acusa e mortifica. Em vez de consolá-lo, é ela que o leva de volta à
"tortura” quando ele vai buscar, junto de outra criada, o consolo que ela lhe recusou. Além
de abandonar o filho, ela ainda se torna cúmplice ativa do perseguidor: é ela que lhe exige
que se humilhe que se submeta: "Peça perdão ao papai” diz ela, puxando-o pelo cabelo. Ela,
a mãe que se encontra ao lado do pai esse seria, portanto, um simples episódio edipiano -,
mas, sobretudo, Ela, a escrava, a criada, que se encontra ao lado do senhor, tornando-se essa
uma tragédia social. Jean
O Édipo como complexo sociossexual • 143

é "o filho da criada”. No desejo que sente pela mãe, não consegue dissociar a mulher de sua
posição social.
O casal de pais é, ao mesmo tempo, o suporte dos jogos do desejo sexual e das relações
sociais de dominação. Para Jean, portanto, o problema será se situar em um ou em outro. O
desejo de ficar ao lado da mãe para se tornar "seu favorito" o impele a afirmar uma
solidariedade ativa com o mundo do qual ela veio, mas ele se dá conta de que ela não está
mais lá, de que se aliou ao senhor contra ele. Essa aliança de duas pessoas desclassificadas,
que poderia significar o triunfo do amor diante das lógicas de dominação, se transforma em
arbitrariedade, em fechamento sobre si mesmo, em conformismo, em negação de toda a
expressão própria ("Você não tem nada a querer", p. 17), em auto desvalorização. É a
imagem social desvalorizada e internalizada pelos pais que constitui sua falta, negando aos
filhos a capacidade de se afirmar: "O que dirão os outros? [...] E com isso sua personalidade
foi minada; o menino não podia jamais ser o que era; dependia sempre da opinião flutuante
dos outros e nunca teria confiança em si para o que quer que fosse" (p. 17).
Sem dúvida, a cena do castigo e a culpa que provoca tem uma explosão de energia sexual
reprimida. Mas a violência dos sentimentos não seria tão grande se não fosse sustentada
pelos conflitos de classe que invadem o triângulo edipiano: humilhação da desclassificação
para o pai que vive uma contradição entre a autoridade paterna da qual permanece investido
e a autoridade social que lhe é negada; culpa pela mãe, cuja promoção produziu a
desclassificação do pai que ela compensa com submissão e dependência à sua autoridade.
A renúncia de Jean aos desejos edipianos se traduz, portanto, em uma colagem entre as
questões afetivas e sociais. O conflito com o pai, quando se pensa que, inconscientemente, é
Jean que, ao se ruborizar, o deixa na posição de castigá-lo injustamente, não seria tão
violento se ele não compartilhasse de sua humilhação social. Aderido ao desejo de se livrar
do rival que impede o acesso à mãe vem o desprezo pelo pai que reproduz as injustiças de
uma dominação que ele mesmo sofreu. Quem pune é um homem rebaixado. O castigo, longe
de aliviar a culpa sentida pela criança, contribui para pôr em cena a impotência do pai para
se situar em uma ordem que, embora arbitrária, permite a cada um encontrar seu lugar
"justo”.
"A maior vilania é jogar a falta sobre os outros [...] essa punição é pura vingança”, escreve
Strindberg, como para dizer que o pai, quando exige que o filho admita uma falta que não
cometeu, tenta compensar a própria culpa, vingar-se do próprio estado.
É claro que a criança de cinco ou seis anos só percebe confusamente as questões sociais que
presidem o comportamento do pai e da mãe. Só mais tarde ela organiza seu romance
familiar, introduzindo nele, diretamente, a dinâmica das relações sociais, a consciência da
hierarquia social. Mas, do mesmo modo que a criança não pode simbolizar com palavras as
questões sexuais que sente, as questões sociais são percebidas sem, contudo, serem
expressas.
É nesse nó edipiano que se enraíza o conjunto de conflitos nos quais Strindberg se debaterá a
vida inteira e, em especial, sua incapacidade de se posicionar socialmente.

O menino viu à distância o esplendor da classe superior [...] Ele aspira a ela como se
fosse seu país natal. Mas o sangue de escravo da mãe se revolta. Ele venera por
instinto a classe superior, a venera demais para ousar ter esperanças de alcançá-la. E
sente que não está lá. Mas ele não é mais da classe dos escravos. Essa será uma das
lacerações de sua vida. (p. 36)
144 • A neurose de classe

Depois de terminar os estudos colegiais (equivalentes ao ensino médio), o pai lhe propõe que
entre na escola militar.

Ele não sabia o que responder. Era demais. Tornar-se um senhor elegante, com uma
espada ao lado! Tornar-se oficial significa ter poder; as moças lhe sorririam e [...]
ninguém o oprimiria mais [...] Mas era demais para ele [...] ele não queria essa
elevação nem comandar, queria simplesmente escapar da obediência cega, da
vigilância, da submissão. O escravo que nada ousa exigir da vida despertou nele, que
recusou. (p. 118)

Assim, ele aspira a se tornar dominante, mas não se permite, não ousa pretendê-lo, porque
uma parte sua se lhe opõe. Permanecer escravo é guardar o vínculo com a origem social da
mãe, é continuar "filho da criada”, é manter a identificação originária por meio do que ela
representa socialmente. O desejo de se elevar se choca, por outro lado, com a culpa diante
desse pai decaído que então é preciso superar e, portanto, humilhar. A criança fica presa em
um amontoado de contradições quanto ao lugar que lhe cabe entre dominantes e dominados,
senhores e escravos, carrascos e vítimas.
Temos aí os componentes de um sistema que nos dispomos a esquematizar para destacar:

• os vínculos entre a posição social dos pais e as contradições do projeto parental;


• os vínculos entre essas contradições e as tensões psíquicas entre o Supereu e o ideal
do Eu;
• as reações do Eu diante desses conflitos.

ESQUEMA (ver a página seguinte)

A demonstração dos componentes sociais do complexo de Édipo nos parece capaz de


facilitar o entendimento da gênese dos problemas paranoicos de A. Strindberg e completar a
interpretação deles feita por Chasseguet -Smirgel (1963, p. 107-167; 1973, p. 124-131).
Chasseguet-Smirgel vê a origem da paranoia no caráter aterrorizante da imagem materna e
no enfraquecimento da identificação paterna:

Pode-se dizer que o futuro paranoico, cuja imagem materna fálica é sempre má, não
encontrou no pai [...] apoio para uma nova triangulação. O sujeito não pôde passar
pela fase de idealização do pai que [...] é necessária para as identificações edipianas.
Para ele, o pênis paterno é um objeto erótico e agressivo, mas não o portador de seu
ideal do Eu. Para ele, permanece como pênis e não como falo. (1973, p. 124)

A partir desse enfraquecimento, o sujeito será levado a idealizar o próprio Eu ou a projetar o


ideal do Eu em uma figura divina. O investimento do Eu é interpretado como importante
defesa contra a homossexualidade:

O sujeito elaborará, portanto, fantasmas e atos que visam a demonstrar que já possui
um pênis de potência absoluta e perfeito em todos os aspectos: superior a todos os
outros, esse pênis, evidentemente, é superior àquele do pai, do qual, em
consequência, ele não tem nenhuma necessidade. (Ibidem.)
O Édipo como complexo sociossexual • 145
146 • A neurose de classe

A existência desse pênis, segundo Chasseguet-Smirgel, por se basear em uma lacuna, a


introjeção não efetuada do pênis paterno explicaria um certo número de características da
paranoia, em particular a invenção megalomaníaca que corresponde "à criação de um falo
autônomo que se situa fora da realidade': Ela interpreta a obra de Strindberg como defesa
contra a angústia que provoca o enfraquecimento da identificação paterna e as pulsões
homossexuais que este reforça. Os cenários, as situações falsas, as funções usurpadas, os
jogos duplos, as humilhações encenadas, as degenerações, as trapaças, as mentiras que
povoam o universo dramático e autobiográfico de Strindberg são analisados "como saídos do
sentimento profundo da própria inautenticidade de sua identificação paterna” (idem, p. 127).
Para Chasseguet-Smirgel, a vida conjugal é "uma defesa contra a homossexualidade graças
às satisfações homossexuais indiretas que oferece pela identificação com o parceiro"
(ibidem). Suas invenções literárias, assim como seus delírios de perseguição, são produto da
pulsão homossexual: "Embora seu falo tenha perdido as características narcísicas mágicas, o
sujeito é forçado a reconhecer seu desejo erótico pelo pai e seu pênis, ou seja, sua
necessidade de identificação com o portador do pênis genital por introjeção de seus
atributos" (idem, p. 129).
A tentativa infrutífera de devolver ao pai a potência fálica impede a sublimação da pulsão
homossexual, enquanto o Eu do sujeito permanece um objeto de grande investimento
narcísico, o que provoca uma regressão: ''A regressão termina na megalomania, sendo o
investimento narcísico do Eu a única saída para quem não conseguiu projetar seu narcisismo
sobre um objeto erigido em ideal do Eu" (Chasseguet-Smirgel, [1963]1971, p. 114).
Não nos alongaremos mais sobre as teses de Chasseguet-Smirgel, não sendo nosso propósito
discutir a pertinência dessa leitura e sim mostrar que esses elementos fantasmáticos
inconscientes se baseiam em questões sociais que os sobredeterminam.
Assim, o enfraquecimento da imagem paterna é produto de uma degeneração social não
assumida pelo pai, que propõe ao filho uma figura de identificação contraditória. Ele o faz
enfrentar uma injunção paradoxal ao lhe ordenar, por um lado, que se torne como ele, um
senhor aristocrata, embora não o seja mais, e, por outro, que escape da degeneração ao
mesmo tempo em que o rebaixa, o submete, o trata como criado exige que se encarregue de
tarefas "servis"12.
Do mesmo modo, o sadomasoquismo de Strindberg é consequência das relações de
dominação/submissão que invadem o casal parental devido às respectivas posições de classe:
a mãe criada, dominada, é ameaçadora por ser a causa do desmoronamento do pai, da
invalidação do Senhor, ao mesmo tempo em que continua a ser uma mulher submissa; o pai,
que representa a autoridade, o poder social e familiar, é de fato uma vítima, ao mesmo tempo
em que continua a ser o guardião da lei, o que julga, impõe proibições e distribui punições.
A megalomania e o complexo de superioridade são as consequências das situações de
humilhação que o levam a desenvolver um complexo de inferioridade.
Em sua autobiografia, Strindberg mostra a importância das situações de humilhação na
gênese do delírio de perseguição. Ele conta, especificamente, que, no ginásio (equivalente ao
segundo ciclo do ensino fundamental), foi exposto ao sarcasmo e às

_________________
12. A. Strindberg, Le fils de la servante, op. cit., p. 115 e 55.
O Édipo como complexo sociossexual e 147

zombarias dos alunos devido à sua pobreza e, na família, o sucesso escolar leva o pai e os
irmãos a rebaixá-lo: "Ele cresceu e tinha de usar roupas que não eram de seu tamanho. Os
colegas se compraziam em rir-se de suas calças curtas demais. As camisas iam apenas até o
cotovelo [...] por isso, na ginástica, ele mantinha sempre o paletó", o que lhe vale
reprimendas e a rejeição dos professores. ''Agora ele conhecia a humilhação. A pobreza,
imposta por maldade, como humilhação, e não por necessidade. Ele se queixava aos irmãos,
que lhe diziam que não era bom ser orgulhoso. Estava aberto o abismo que criara entre eles
uma cultura diferente" (p. 114).
Vê-se aqui que a humilhação social leva ao fechamento sobre si mesmo e ao sentimento de
estar exposto à maldade. A revalorização narcísica que a criança busca no sucesso escolar
vai se chocar contra a invalidação do pai e dos irmãos, que percebem esse sucesso como
vontade do menino de rebaixá-los. Tanto na escola quanto na família, a busca de
reconhecimento e amor é recusada. O sentimento de ser perseguido se desenvolve, portanto,
como reação à rejeição da qual é objeto: é mais duro ser constantemente desvalorizado do
que ser perseguido. A humilhação de não ser objeto de amor se transforma em ressentimento
contra os que o rejeitam, dos quais se torna vítima: ''Agora ele odiava seus perseguidores, e
estes o odiavam'.
Aqui, a humilhação e a invalidação são o produto de rivalidades afetivas e sociais. Nesse
jogo de rivalidades, Strindberg é constantemente confrontado com identificações
contraditórias que reatualizam permanentemente as contradições do projeto parental. Incapaz
de se situar entre a classe superior e a inferior, os senhores e os escravos, os dominantes e os
dominados, os alunos do ginásio e os irmãos, os carrascos e as vítimas, ele entrará em um
processo de clivagem e desdobramento do qual sua produção teatral será uma das
expressões. Encontramos aqui a tese de Guy Vogelweith, que vê no trabalho de escrita o
meio para Strindberg se projetar em uma cena imaginária:

É no espaço mental que, como marca d'água, ele verá surgir seu duplo [...] O duplo
do autor não é, necessariamente, uma cópia fiel de seu Eu [...] [mas] um projeto de
comportamento destinado a resolver as dificuldades de ordem psíquica [...] graças à
projeção desse outro Eu, que é o duplo, o autor consegue enfrentar seu Eu com uma
imagem que se fraciona em diversas zonas. 13

Strindberg porá no palco essas diferentes partes de si que estão em conflito entre si,
respondendo assim à análise de Freud, que escreveu, sobre a paranoia, que ela "cinde o Eu
em várias pessoas estrangeiras"14. Por meio de todos esses personagens, aparecem os
múltiplos componentes da neurose de Strindberg, entre os quais os aspectos sociais estão
constantemente presentes15.

ROMANCE FAMILIAR E NEUROSE DE CLASSE


Freud menciona a trama do romance familiar em uma carta a Fliess datada de 1897. Mas é
em 1909 que ele publica o artigo "Der Familien roman der Neurotiker"

__________________________
13. G. Vogelweith, Psycho-théâtre de Strindberg. op. cit .• p. 8.
14. S. Freud, La naissance de la psychanalyse, tradução para o francês de A. Bermann, Paris: PUF, 1969, p. 270.
15. Cf. especialmente Mademoiselle julie, Paris: l'Arche, 1957, tradução para o francês de Boris Vian.
148 • A neurose de classe

em um livro de Otto Rank16 . Para Freud, o romance familiar designa os fantasmas com os
quais o sujeito modifica imaginariamente os vínculos com os pais, imaginando, por exemplo,
que é uma criança encontrada: "Para a criança, os pais, a princípio, são a única autoridade e a
fonte de toda crença [...] a criança aprende aos poucos a conhecer as categorias a que os pais
pertencem" (vemos aqui que o próprio Freud faz a ligação entre o romance familiar e o
confronto da criança com a existência das classes sociais).

Ela conhece outros pais, compara-os com os seus e adquire, assim, o direito de
duvidar do caráter supremo e incomparável que lhes atribuíra. Pequenos
acontecimentos da vida que provocam na criança um sentimento de insatisfação lhe
dão oportunidade de começar a criticar os pais e de utilizar, para esse posicionamento
contra eles, o conhecimento adquirido de que outros pais, sob vários pontos de vista,
são preferíveis. A sensação de não ver os próprios sentimentos plenamente
retribuídos vem à luz na ideia [...] segundo a qual é filho de outra união ou adotivo.
([1908] 1973)

Assim começa a elaboração de narrativas mais ou menos extraordinárias e fabulosas,


maravilhosas ou aterrorizantes, que a criança vai forjar. Embora o título do artigo de Freud
pareça reduzir esse fantasma apenas aos neuróticos (sem precisar em lugar nenhum que não
é exatamente assim), seu conteúdo permite afirmar que ele a considera uma experiência
normal e universal da vida infantil.
"Contar histórias" não é apanágio da primeira infância. Além dos romancistas que
socializam a expressão, cada indivíduo pode "fazer um romance" do que lhe acontece. Todas
as histórias que utilizamos romances, histórias de vida, autobiografias, são meios de ilustrar
a trajetória psicossocial do indivíduo e o modo como ele a representa. Realidade e/ou
fantasia se condensam como no teatro.
Essas reconstruções de histórias individuais ilustram cada uma à sua maneira, as
combinações de amor e poder, de questões sexuais e sociais, de desejo e ambição, que agem
em todos os destinos humanos17.
A atividade que consiste em "fazer um romance" é definida pelo dicionário Littré nesses
termos: "'trata-se' de conquistar o coração de alguém de condição superior, como se vê nos
romances 'e' de contar as coisas de um modo diferente do que se passou”.
Esses dois aspectos do romance são analisados por Marthe Robert, que destaca sua função de
historicidade. O romance não busca reproduzir a realidade, mas "resumir a vida para recriar
incessantemente novas condições e redistribuir seus elementos" (Robert, 1977, p. 37).
O romance é um meio privilegiado de escapar da reprodução, de abrir um campo de
possibilidades, de reescrever a própria história. É um trabalho de remanejamento que o autor
realiza para sustentar "o que é" e mudar "o que ele é”
O romance familiar permite à criança suportar suas insatisfações e decepções,
principalmente na crise edipiana. Não faltam ocasiões na realidade para ser decepcionado,
humilhado, rejeitado, esquecido, às vezes até abandonado. A criança tem de dividir o amor
dos pais com irmãos e irmãs, enfrentar interdições e punições, suportar

_________________
16. O. Rank, Le mythe de la naissance du héros, Paris: Payot, 1983.
17.S. Freud, "Os desejos que dão seu impulso à fantasia [...] são desejos ambiciosos que servem para exaltar a personalidade
ou desejos eróticos" (1907), in Essais de psychanalyse appliquée, Paris: Gallimard, 1971, p. 73.
O Édipo como complexo sociossexual • 149

as ausências e separações que lhe são impostas, aceitar a imperfeição, a mediocridade, o


cotidiano. Ela vê que os pais têm problemas, dificuldades que não sabem resolver, que não
são melhores nem piores do que os vizinhos. É uma ferida narcísica profunda renunciar à
imagem ideal de pais todo-poderosos que amam totalmente o filho.
Entre todas as insatisfações e desapontamentos que a criança deve suportar, convém dar um
lugar especial à descoberta da diferenciação social e à humilhação que sentirá ao descobrir
que os pais são seres bastante medianos, talvez inferiores e, em todo caso, que existe gente
bem mais aquinhoada, mais rica, mais potente e mais dotada. Não há humilhação mais
inexplicável e inevitável do que essa descoberta: os pais não são os melhores; existem
muitos outros que, certamente, são "superiores”. O reconhecimento impossível mas
necessário da diferenciação social levará a criança a reescrever sua história para "explicar a
vergonha inexplicável de ser malnascido, mal aquinhoado, mal-amado" (Robert, 1977, p.
45).
Por esse meio, a criança dá um jeito de se queixar do que não vai bem, de se consolar do
conjunto de suas insatisfações e de se vingar das humilhações, preservando, ao mesmo
tempo, as relações com os pais "verdadeiros". A ficção do romance familiar permite
conservar a ternura original da criança pelos pais.

Não há infidelidade e ingratidão que não seja na aparência; porque, quando se


examina com detalhes esses fantasmas romanescos mais frequentes, a substituição
dos pais por pessoas de mais destaque, descobre-se que esses novos pais mais
distintos são dotados de características que vem todas, de lembranças reais dos pais
verídicos, essa gentinha, de modo que a criança não elimina, propriamente falando, o
pai, mas, ao contrário, o eleva. (Freud, [1908] 1973, p. 160)

O romance permite à criança evitar a crítica aos pais reais, o confronto com eles e, ao
contrário, os louva com gratidão pela atenção com que se ocupam dessa criança que não é
deles, pelo esforço que fazem justamente eles, que não são ricos nem potentes. No fim das
contas, é esse ato de considerar o cotidiano da relação que lhe dá valor e permite "elevar"
esse pai e essa mãe imperfeitos.
A atividade fantasmática ajuda a criança a suportar o cotidiano, ou seja, as condições
concretas da vida às quais é obrigada a se adaptar. À medida que a criança enfrenta o tempo
presente, o romance familiar lhe permite reviver um tempo feliz e passado "em que o pai lhe
parecia o homem mais distinto e mais forte, a mãe, a mulher mais querida e mais bela. Ele se
livra do pai que conhece agora para voltar àquele em que acreditou, nos primeiros anos da
infância, e esse fantasma, propriamente falando, não passa de expressão da mágoa de ver
esse tempo feliz desaparecer" (Freud, [1908]1973,p.160)
Geralmente o romance familiar é construído sobre o tema do bastardo cuja mãe foi seduzida
por um pai prestigiado, um senhor, rei ou presidente de empresa, o esposo da mãe não
passando, portanto, de um "Zé", para usar uma expressão empregada por Strindberg18 .
Assim fazendo, a criança romancista se outorga um pai ideal de cujas qualidades espera se
apropriar. Ele economiza o homicídio paterno, suprimindo-o do triângulo edipiano e torna
disponível a mãe que se torna o objeto principal

_______________
18. Cf. especialmente na peça Mademoiselle Julie, op. cit.
150 • A neurose de classe

de sua atenção. Assim, ele usa de astúcia com seus desejos edipianos, permitindo-se uma
satisfação fantasmática sem precisar temer os castigos que os puniriam caso os realizasse na
realidade.
Otto Rank mostra que todos os heróis lendários têm um nascimento obscuro, milagroso ou
anormal. Nunca é fruto de um casal de pais legítimo e instalado. A interpretação que ele
propõe é que o nascimento fora das leis "naturais e sociais" da procriação permite compensar
inconscientemente a inferioridade que impõem à criança humana o nascimento prematuro e a
longa dependência que provoca. Ao se imaginar vindo de outro lugar, a criança pode aliviar
o peso da contingência histórica e, portanto, se imaginar diferente do que é na verdade.
Ao lado das questões edipianas que o nascimento mítico permite circunscrever, esse
fantasma também permite suportar a contingência social. A maior parte das interpretações
psicanalíticas esquece que essas histórias de homens e mulheres, de mães e filhos, de pais e
filhas são igualmente histórias de reis e camponesas, princesas e valetes, príncipes e criadas.
Além da gestão dos desejos de incesto e parricídio, o romance familiar permite ultrapassar as
barreiras sociais, corrigir a realidade cotidiana com a introdução de um pai ideal, rico,
potente, prestigiado, que permite à criança se elevar.

A atividade fantasmática tem a tarefa de se desembaraçar dos pais, doravante desde-


nhados, e substituí-los por outros, em geral de nível social mais elevado. Nesse pro-
cesso, aproveita-se a ocorrência fortuita de experiências realmente vividas (no
campo, o encontro com o castelão ou o proprietário da terra; na cidade, com o
personagem principesco). Essas experiências fortuitas despertam o desejo da criança,
que assim se expressa em uma fantasia em que os dois pais são substituídos por
outros mais distintos. (Freud, (1908)1973, p. 159)

Corrigir a realidade consiste em se livrar dos pais, da posição social que define sua
identidade, para mudar de vida. No caso, mudar de vida é se tornar príncipe, castelão ou
burguês; isso tem um significado psicológico bem evidenciado por Freud, mas também um
significado social.
O fantasma do romance familiar não serve apenas para gerar relações afetivas entre a criança
e os pais. Se ele está no centro dessa relação, é porque também se trata de uma relação
social. E por essa razão que o romance vai se escrever de forma diferente segundo a posição
de classe do pai e da mãe e o tipo de conflito que invade a família em sua relação com a
sociedade. O desejo de corrigir a realidade não será o mesmo se os pais ocuparem uma
posição privilegiada ou se forem oprimidos. Quando a posição social é baixa, pode-se pensar
que a criança, no dia em que tomar consciência das diferenças de classe, imaginará mais
facilmente que seus pais são "castelães”, como diz Freud com elegância, do que a criança
cujo pai já é castelão.
Como o romance familiar serve para "corrigir a realidade", convém considerar a realidade na
qual a criança está para compreender o que ela deseja corrigir. Quando as posições de classe
determinam estruturalmente os interesses defendidos pelos indivíduos, pode-se constatar que
alguns têm mais interesse em corrigir a realidade e que outros têm mais interesse em mantê-
la como tal.
Será possível considerar que o fantasma da criança camponesa no qual é filho de rei equivale
ao fantasma do filho de rei que sonha ser filho de camponês? Há uma diferença básica cujas
consequências psicológicas devem ser estudadas.
O Édipo como complexo sociossexual • 151

Portanto, o romance familiar não pode ser analisado unicamente como atividade
fantasmática do sujeito em resposta a conflitos intrapsíquicos. A integralidade de seu sentido
tem de ser apreendida com referência à história do indivíduo e da família que o produziu.
O romance permite à criança lutar ao mesmo tempo contra os sentimentos de culpa que seus
desejos lhe contrapõem e suportar a humilhação de ser um filho comum de pais socialmente
dominados. E uma reação ao triplo sentimento de inferioridade (biológica, psicológica e
social) que o invade. Para a criança, trata-se de viver como filho achado, cuja verdadeira
família se revelará um dia para devolvê-lo ao devido lugar e, assim, escapar de sua condição
social.

O sonho de ser outra menina [...] Com certeza o bar-mercearia de meus pais não era
verdadeiro, certa noite eu dormiria e acordaria à beira de uma estrada, entraria em um
castelo, soaria um gongo e eu diria: 'Bom dia, papai!' a um senhor elegante servido
por um mordomo bem treinado. Não era possível que minha vida, na rua Clopart, não
fosse o inverso de outra.19

No capítulo sobre o complexo de inferioridade, evocamos a função do romance familiar que


permite à criança corrigir os efeitos da dominação social ao se imaginar nascida de pais bem
mais prestigiados.
A citação de Stendhal na epígrafe deste capítulo situa o fantasma como um meio de aliviar a
tensão entre a ambição de Julien Sorel, filho de um pequeno artesão, e a culpa que sente
especificamente diante do pai.
O romance familiar é um mecanismo de defesa das crianças das classes dominadas para
suportar sua condição e livrar os pais da miséria. Ele aparece como contrapartida da culpa
sentida pela criança levada a odiar a miséria e, portanto, os pais por ela responsáveis e da
inferioridade que sente diante dos outros, os ricos. A atividade fantasmática lhe permite, por
um lado, se revalorizar narcisicamente construindo uma imagem ideal dos pais e, por outro,
absolver os pais pela falta ligada às humilhações de que são, objeto por parte dos
dominantes.
Encontramos a presença desse fantasma em todos os sujeitos que enfrentaram uma mudança
de posição social e, principalmente, nas pessoas saídas de um meio popular e que estão em
rápida promoção social.
Essas situações se caracterizam por um conflito entre:

• de um lado, o desejo de ser filho de um castelão ou rei que se reflete no desejo dos
pais que querem que os filhos obtenham o sucesso social que não conseguiram
conquistar;
• de outro, a retomada pela criança do desejo de lutar contra os reis e castelães que
exploram seus pais reais.

Portanto, ao mesmo tempo, a criança tem de se tornar castelã e destruir todos os castelães,
tornar-se burguesa e lutar contra a burguesia. Contradição difícil de resolver: ela se sente
culpada por esse desejo de promoção social cuja realização é integrada a uma

_______________

19. A. Ernaux, Les armoires vides. op. Cit., p. 80.


152 • A neurose de classe

traição das origens, a uma ruptura da solidariedade para com sua classe. Ela se sente forçada
a realizar esse desejo que permanece como meio privilegiado de se vingar pelos pais e por
seu grupo de origem, um modo de pagar a dívida contraída com eles.
A sociologia, a psicanálise e, mais amplamente, a intelectualidade de esquerda são países de
asilo para esses desenraizados. Trata-se de conseguir uma promoção social conservando, ao
mesmo tempo, um profundo desprezo pelo dinheiro, o ódio pela burguesia e pelo poder
dominante, e consolidando o capital cultural e ideológico.
Escrever é um meio de resolver essa contradição. Outros encontrarão uma saída
compensando o sucesso social com a militância no partido comunista: "Acontece que, nos
ritos do Partido Comunista, o aspecto familiar é fortemente marcado. Claro que não nos
estatutos nem no discurso oficial, mas nos modos e costumes, e com razão: ali, os militantes
encontram a concretização de um romance familiar inconsciente”.20 Dois casos ilustram a
proposta de Catherine Clément: o de Gérard Bellouin, autor de Nossos sonhos camaradas, e
Régine Robin, autora de Cavalo branco de Lenin.
Comecemos por Régine Robin:

toda a sua história fala da integração de uma judiazinha polonesa à intelligentsia


francesa. Integração conseguida com perfeição: cargo no ensino superior, livros
acadêmicos e até psicanálise. Mas integração culpada, como sempre, quando o
sucesso vem coroar a negação das origens, pois é assim que vive o inconsciente
familiar. Quando, por meio da memória recuperada e dominada, ela reviveu a lenda
desse pai que percebera o cavalo mítico onde Lenin empinava, o sucesso apareceu
como traição. A adesão [ao Partido Comunista] compensa a traição e confere um tipo
particular de pertencimento: entre excluídos da sociedade, parecemo-nos, reunimo-
nos. (Grifos meus)

Encontramos o mesmo tipo de síndrome no livro de Gérard Bellouin:

Filiado cedo, aos 14 anos, ao Partido Comunista, Bellouin se tornou membro do


comitê permanente, adquiriu no interior do Partido a cultura própria de todos os
membros do comitê permanente e acabou também ele, por escrever livros [...] A
culpa é a mesma, feita de assombro e vergonha inconsciente. A filiação, ao constituir
para ele uma segunda família, reforçou e anulou a exclusão originária.

E Catherine Clément para encerrar, sobre esse tema que ela conhece bem pela própria
trajetória:

Todos os que se filiam abrigam, sepultado no nível mais profundo do romance


familiar, o traço da exclusão e as promessas dessa reunião imaginária na qual, em
direito teórico, todas as diferenças de classe se anulam assim que se admita a
supremacia política da classe mais deserdada. Conscientemente, isso sempre se
formula com palavras simples: rejeição da injustiça. Inconscientemente, essa
injustiça é uma parte profundamente inscrita na história familiar e na transgressão
que o indivíduo conseguiu cometer para superar essa inscrição.

____________________
20. C. Clément, Les effets politiques du divan, in Pouvoirs, 1979, n. 11, p. 85.
O Édipo como complexo sociossexual • 153

Poderíamos multiplicar os exemplos nos quais o romance tenta vedar os conflitos ligados à
mudança de classe.
A atividade fantasmática do romance familiar, como a atividade socializada do romance
autobiográfico, que realizam cada uma à sua maneira, uma reescritura da história do sujeito,
são o meio de afirmar a fidelidade às origens, de conjurar a culpa, dando testemunho das
humilhações, da invalidação, da dominação e, por outro lado, da coragem, do valor e da
grandeza que são seu objeto.
7

DISSOCIAÇÃO DO EU E DESDOBRAMENTO

Não sou mais do meio de minha origem,


mas não sou do meio onde estou agora.
Colette Duval

GÊNESE SOCIAL DO DESDOBRAMENTO


A neurose de classe se caracteriza pela internalização conflituosa de referências que vêm de
universos sociais diferentes. Nos casos apresentados, mostramos que o desdobramento é uma
reação do Eu que tenta fazer com que identificações, ideais e habitus contraditórios
coexistam. Como não consegue escolher entre uns e outros precisam internalizá-los. Quando
esses elementos diferentes são antagônicos, o Eu, que não consegue achar uma mediação
para suportar a divisão que o invade, realiza um desdobramento, como se duas identidades
estranhas entre si o constituíssem.
São numerosos os depoimentos que descrevem esse fenômeno. Assim, August Strindberg,
no prefácio de Senhorita Júlia, apresenta Jean, que recebe o mesmo prenome que o autor
adotou em sua autobiografia:
Ele é filho de trabalhador rural e fez de si um futuro senhor. Tinha facilidade de
aprender, tinha os sentidos muito desenvolvidos (olfato, paladar, visão) e noção de
beleza. Já se elevou acima de sua condição e já é bastante forte para se aproveitar dos
outros sem sofrer com isso. Já é estranho aos que o cercam que despreza como um
meio antiquado; ele o teme e foge dele, porque ali seus segredos são conhecidos, suas
intenções previstas, sua ascensão vista com inveja e sua queda aguardada com
satisfação. Eis aí a explicação de seu caráter duplo, indeciso, hesitante entre a
simpatia por quem se elevou e o ódio por quem, nesse momento, ainda se encontra
abaixo dele. 1
Em seu estudo dos professores primários de origem camponesa, Francine Muel-Dreyfus cita
o caso de Louis Caubet, que escreveu: "sofro dessa aptidão para me desdobrar, para me
inclinar a cada instante sobre mim a fim de me ver viver. [...] Em vez de observar a loucura
sem me meter, de me separar dela, era preciso nela mergu-

__________________
1. A. Strindberg, prefácio de Mademoiselle Julie, op. cit., p. 13 (prefácio traduzido por C. G. Bjurstrom).
156 • A neurose de classe

lhar e viver sua vida”2 Muel-Dreyfus interpreta esse desdobramento como consequência da
oposição entre o modo de vida e os habitus do mundo camponês (valores "viris" baseados no
esforço físico, na ação, na força) e o modo de vida e os habitus do mundo dos professores
primários (valores principalmente "femininos", baseados no mundo dos livros, na mente, na
reflexão):

A especificidade desse tipo de aprendizado camponês explica a força do corte


nascido da adoção de uma carreira de professor ou funcionário público: não se pode
estar ao mesmo tempo dentro e fora desse universo; ou se está completamente dentro
ou completamente fora dele e, de certa maneira, ainda mais fora porque, ao contrário
dos que são fascinados pelo exotismo rural, sabe-se, ainda assim, como ele é. As
"qualidades" do camponês e as do professor não têm a mesma natureza. (1983, p.
111)

Esses dois universos, sendo contraditórios em vários aspectos, fazem o indivíduo ser
invadido pelo duplo sentimento de pertencer a um grupo, e diante disso a escrita fará uma
mediação.
Embora seja um processo psicológico que caracteriza um conflito interno do indivíduo, o
desdobramento é produto de uma situação social. É por enfrentar a coexistência de dois
grupos sociais diferentes e opostos e, de certo modo, "pertencer" a um e outro que o
indivíduo se vê assim dividido.
Roger Bastide constata o mesmo fenômeno em relação à migração: "Na medida em que se
adapta ao novo meio, o migrante é reconfigurado por ele; isso não destrói sua antiga
formação. O Eu, contudo, se divide em dois. Dois homens habitam o migrante e vão se
enfrentar nas profundezas de seu ser" ([1965]1977, p. 212). Para Bastide, o momento
importante para compreender a origem dos problemas mentais nas pessoas transplantadas é a
internalização do conflito: quando as contradições entre as duas culturas não são mais
vividas como externalidade, e sim como algo interno - "entre dois Eus, igualmente 'meus' e
portanto contraditórios [...] entre o homem antigo e o novo que nasce”.
As contradições próprias dos indivíduos divididos entre duas culturas são bem evidenciadas
por uma expressão do Mali que designa os negros que, por seu comportamento,
superinvestiram no modo de vida, habitus e modelos dos brancos: são chamados de toubab-
fin, em que toubab significa branco (da raça branca) e fin, negro (da cor preta)3.
Richard Hoggart analisou esse processo entre os jovens em promoção social vindos de meios
pobres. A propósito dos bolsistas e autodidatas, ele mostra as consequências psicológicas
desse corte social, seu enraizamento na infância e na adolescência e seus efeitos pelo resto da
vida.
Esse corte produz o desdobramento, pela adoção de duas linguagens diferentes (a da escola e
a de "casa”) e pela obediência "a dois códigos culturais" (Hoggart, 1970).
Esse processo de desdobramento leva a criança e, depois, o adolescente a se fechar em si,
tanto no lar quanto no grupo de jovens da mesma idade. Na escola, a ori-

__________________
2.Caubet, "Fragment d'un journal intime", La veillée, suplemento de Annales, junho de 1905, p. 143-144, apud Muel-
Dreyfus. 1983, p. 97.
3.H. Dapiedad. L’emergence des régimes militaires en Afrique, tese de doutorado, Université Paris IX Dauphine. 1979. p.
25.
Dissociação do Eu e desdobramento • 157

gem social lhe confere uma condição característica. No lar, a condição de "intelectual" o leva
a ler obras que os outros não compreendem, a se interessar por questões que não
compartilham e, sobretudo, talvez, a transmitir, contra a vontade, uma imagem que invalida
os que não atingem essa cultura. Quando não há rejeição, existe de parte a parte um
"rechaçamento" produzido pela distância social que "rechaça” quem quer pertencer a dois
universos sociais estranhos um ao outro.
No prefácio de Aden, Arábia, Sartre descreve Nizan nos seguintes termos: "a contradição se
instalara sob seu teto" devido às diferenças de trajetória entre o pai e a mãe: "o conflito
mudo de uma burguesa antiga e de um operário renegado, Nizan o internaliza desde a
primeira infância e faz dele a base futura de sua pessoa”4. É ao escrever Antoine Bloyé, a
história de seu pai, que Nizan explora a divisão que o invade, divisão entre o mundo para o
qual seus estudos o impelem e o mundo onde, desde a juventude, viveram seus pais: "Ele
sente um começo de separação. Não é mais exatamente de seu sangue e de sua condição, e já
sofre como um adeus, como uma infidelidade sem retorno”5 Nele, coexistem vários
personagens: o supervisor que tem de comandar e fazer os ferroviários trabalharem; o
homem do campo que, como filho de camponeses, poderia ter sido e que, dentro dele, não
estava totalmente morto; o operário com quem se solidariza diante dos "insultos que as
damas de bem lançavam ao povo”. Mas essa coexistência não acontece sem choques.
Durante uma greve, Antoine Bloyé dá conselhos para quebrar sem violência a oposição dos
operários: "Sou meu próprio inimigo, disse ele então”. Daí vem o comentário de Paul Nizan:
"O homem que souber triunfar sobre sua divisão não triunfará sozinho, porque as causas da
divisão não estão nele”.
O tema da divisão interior e do desdobramento é um leitmotiv da neurose de classe.
Annie Ernaux: "'Dupla [...] os dois mundos lado a lado [...] a escola e a casa [...] levo em
mim duas línguas [...]' O pai exausto repreendeu o filho: 'diga a gramática’, enquanto a mãe
uivava: 'a carne suja já acabou com o queijo dos fregueses!"'.
G. Gailloux: "Estava com um pé lá e outro cá [...] e ao mesmo tempo me sentia culpado".
Colette Duval: "Não sou mais do meio de minha origem, mas não sou do meio onde estou
agora”.
O deslocamento social produz um corte inicial entre o sujeito e seu meio de origem, depois
em seu íntimo entre a parte sua que continua apegada à posição inicial e a que internaliza a
linguagem, os habitus, o código cultural do novo grupo a que pertence. Ao corte entre dois
universos sociais estranhos entre si corresponde uma clivagem que atravessa o individuo.

______________
4. P. Nizan, Aden Arabie, PCM/éditions Paris: La Découverte, 1984; prólogo de Jean-Paul Sartre, p. 26.
5. P. Nizan, Antoine Bloyé, Paris: Grasset, 1933; Paris: Livre de Poche, 1971.
158 • A neurose de classe
Dissociação do Eu e desdobramento • 159

Comentários

1 O desdobramento, como sentimento internalizado de estar cortado ao meio, de um


EU dividido em duas partes antagônicas, de uma coexistência em si de dois universos
separados, é efeito do confronto entre dois grupos sociais na história do indivíduo: um grupo
originário (G1) que marca a posição herdada e cujos habitus o sujeito incorporou na primeira
infância; e um grupo novo (G2) ao qual aspira pertencer, cujos habitus adquire no decorrer
de seu desenvolvimento e que simboliza a posição esperada e/ou adquirida. As relações entre
esses dois grupos sociais se caracterizam pela dominação/submissão que os opõe um ao
outro, relações marcadas por invalidação (de G2 em relação a G1) e ambivalência (de G1 em
relação a G2). Ao mesmo tempo, o indivíduo se sente ligado aos dois e estranho tanto a um
quanto ao outro.

2 Diante do grupo originário a que pertence, o corte vem do grupo que tende a rejeitar
o indivíduo que se torna diferente à medida que incorpora os habitus dos dominantes e que,
por seu "sucesso': transmite ao grupo uma imagem desvalorizada e negativa de seus
membros. O corte também vem do indivíduo que precisa se desligar do grupo originário para
se assimilar a outro grupo. Esse desligamento o leva a realizar um trabalho de
desidentificação e desidealização em relação às figuras parentais e aos modelos e valores do
grupo. Na medida em que os processos de identificação e idealização são suportes ativos da
relação amorosa, o desligamento provoca o desamor, que se desenvolve ainda mais quando o
indivíduo tem a sensação de ser rejeitado.

3 Esse processo de desligamento se choca com o apego que, apesar de tudo, perdura
nos dois lados. A rejeição do grupo é apenas parcial, na medida em que o indivíduo é objeto
de orgulho e admiração por seu sucesso, que compensa a invalidação e o desprezo sentidos.
Seu sucesso se reflete sobre todos e demonstra que são tão "valorosos" quanto os outros. Do
mesmo modo, o desligamento do indivíduo é apenas parcial. Ele permanece ligado por
sentimentos de fidelidade à sua origem e solidariedade para com sua classe. Além disso,
sente-se culpado por se afastar dos ascendentes com quem tem uma dívida, na medida em
que, ao criá-lo (ou seja, ao cuidar dele), contribuíram para elevá-lo (na escala social).

4 Quanto ao novo grupo a que pertence, o corte vem do grupo, que reproduz, diante do
indivíduo, o desprezo e a invalidação que demonstra diante dos grupos dominados. O
indivíduo confrontado com a humilhação e a dominação reage com ódio e desenvolve um
complexo de inferioridade. Rechaçado, estigmatizado, ele tende, portanto, a se isolar, a se
fechar em si, dilacerado entre o desejo de assimilação e a rejeição de que é objeto.

5 Mas, ao mesmo tempo, o indivíduo busca reduzir a distância social e atenuar os


efeitos do corte assimilando a linguagem, os habitus, os valores e todos os sinais de que
pertence ao novo grupo. É nele que escolherá os novos objetos de identificação e
idealização. Portanto, conforme a distância se atenua se desenvolverão os processos de
integração, e os grupos dominantes têm, com frequência, uma estratégia de assimilação da
elite proveniente dos grupos dominados. O desejo de assimilação é ainda mais forte porque
os grupos dominantes são portadores da cultura legítima, porque
160 • A neurose de classe

se beneficiam do fascínio exercido pelo poder e porque seus habitus são socialmente
valorizados.

Nisso o indivíduo ainda está preso a uma contradição entre o desejo de assimilação e a
rejeição da qual é objeto, entre a aspiração a se integrar no grupo e o ódio que ele lhe
provoca.

6 Diante dessas contradições, do sentimento de sua dupla estranheza ("Não sou mais de
G1", "Não sou de G2"), desse conflito de filiações, o indivíduo reage com o isolamento, a
busca de grupos intermediários e o desdobramento.

A ausência de capital cultural e social na herança leva a criança a se desembaraçar por conta
própria para "sair dela”. Não é por acaso que os casos ilustrativos da neurose de classe são,
geralmente, filhos únicos ou crianças que ficam isoladas entre os irmãos6.

Na escola, a criança reage à diferenciação social com uma posição de recolhimento. A


diferença produz a separação e o desligamento em relação aos pais e camaradas do grupo de
origem, mas também o distanciamento em relação aos que pertencem ao novo meio para o
qual ela ascende.

Um movimento duplo: rechaçamento por parte dos que, intencionalmente ou não, tendem a
rejeitar os que são percebidos como diferentes, mas também do próprio sujeito, que se sente
pouco à vontade, humilhado e invalidado e reage se isolando e mantendo distância. Ele evita
todas as situações em que corre o risco de ser "posto em seu lugar", ou seja, ser devolvido à
sua origem social, como se ela fosse uma tara ou um pecado.

Daí o sentimento frequente de que só pode sair disso sozinho: "Ele pensava que nenhum ser
humano precisava dele [...] estava separado por um espaço espelhado e impenetrável; não
encontrava nenhum olhar" (Antoine Bloyé).

As "barreiras" sociais se tornam, portanto, psicológicas. O sujeito só consegue superar os


conflitos provocados pelo deslocamento "embarricando-se" dentro de si. O fechamento sobre
si é um meio de proteção.

A distância social produz o afastamento afetivo e torna problemática qualquer relação


amorosa. "Eu não entendia; sentia que os outros me amavam, mas, ao mesmo tempo, me
rejeitavam [...] disso eu já sofrera; não fazia mais parte do mundo deles e precisava encontrar
outras pessoas. Mas, ao mesmo tempo, me sentia mal em outros meios" (G. Gailloux).

Para escapar do isolamento, o sujeito passa a buscar grupos intermediários entre o grupo de
origem e o novo grupo a que pertence. Ele procura um meio de gerenciar a dupla estranheza,
o sentimento de ilegitimidade e a impressão contínua de não estar em seu lugar. A escola
normal para Colette Duval, o partido comunista para G. Gailloux, o meio teatral para August
Strindberg, a universidade para Annie Ernaux, o sistema público de educação e o trabalho
social para muitos outros são lugares que facilitam a transição, que dão segurança em um
momento em que as referências originárias são questionadas. Eles oferecem meios para uma
reestruturação diante da desestruturação provocada pelo deslocamento.

__________________
6.E por essa razão que não há neurose de classe quando o conjunto dos irmãos está em trajetória promocional. Quando o
conflito é vivido pelo conjunto do grupo familiar, há menos probabilidade de provocar uma neurose individual.
Dissociação do Eu e desdobramento • 161
Além da aparente heterogeneidade, para os indivíduos que mudam de posição social esses
lugares têm características em comum:

• São organizações que, em seus objetivos e funcionamento, estão em relação com os


diferentes grupos sociais confrontados por esses sujeitos. Pelo viés da ação política,
educativa, social ou cultural, elas se situam nas relações entre classes.
• Elas reúnem pessoas com trajetória social homóloga que conheceram conflitos
similares e que ali se encontram por razões interligadas. Permitem que cada um
"socialize" as relações ambivalentes mantidas com os diferentes grupos sociais por
que passaram. Vimos isso em professores primários de origem rural, instrutores
técnicos especializados e militantes do partido comunista.
• Enfim, são organizações estruturantes que distribuem os indivíduos em lugares
precisos de acordo com critérios internos que não estão ligados unicamente aos
mecanismos sociais de seleção e distribuição. Permitem que cada um se situe em
relação a outras referências além daquelas de seu grupo de origem ou das classes
dominantes e oferecem um quadro formal que pode ser usado como suporte da
identidade quando esta é socialmente incerta.

Contudo, as reações de isolamento e a busca de organizações intermediárias não permitem,


para o indivíduo, que evite o desdobramento internalizado como meio de conservar as
relações com o grupo originário ao mesmo tempo em que mantém relações com os novos
grupos a que pertence e a que busca ascender. Em termos esquemáticos, trata-se de fazer
coexistirem o Eu G1 e o Eu G2, sendo a clivagem, portanto, um mecanismo de defesa contra
as tensões internas provocadas por essa coexistência, um meio de conciliar os diversos
aspectos contraditórios que invadem o indivíduo.

DISCUSSÃO SOBRE "O DUPLO" DE DOSTOIEVSKI


Freud definiu a clivagem do Eu como "o fato de que uma pessoa possa adotar, em relação a
um comportamento dado, duas atitudes psíquicas diferentes, opostas e independentes entre
si"7. Ele acrescenta que esse fato é característico das neuroses e que o processo de clivagem
tem gênese dupla:
[...] o Eu infantil, sob o poder do mundo real, se liberta pelo processo de recalque das
exigências puncionais recalcadas. Acrescentemos [...] que o Eu, durante o mesmo
período da vida, se vê frequentemente obrigado a lutar contra certas pretensões do
mundo exterior que lhe são penosas e, em tais ocasiões, se serve do processo de
negação para suprimir as percepções que lhe revelam essas exigências [...] A rejeição
é sempre acompanhada de uma aceitação; duas atitudes opostas, independentes entre
si, se instauram, o que acaba levando à clivagem do Eu.8
A clivagem, portanto, pode vir de um conflito entre o Eu e o Isso ("a exigência pulsional do
interior") ou de um conflito entre o Eu e o mundo externo, isto é, de um

______________
7. S. Freud, Abrégé de psychanalyse, tradução para o francês de Anne Berman, Paris: PUF, 1967, S' edição, p. 82.
8. Idem, p. 82.
162 • A neurose de classe

conflito entre as instâncias do aparelho psíquico ou de um conflito intrassimétrico (dentro do


Eu) produzido pela realidade externa.
Essa distinção é importante na medida em que embasa uma discussão sobre a importância
respectiva dos fatores sexuais e sociais no fenômeno do desdobramento, discussão que
iniciamos a respeito de August Strindberg. Temos outro exemplo nas interpretações
respectivas de André Green e Yves Barel para o livro O duplo, de Dostoievski .9
Nesse livro, Dostoievski conta a história do Sr. Goliadkin, "conselheiro titular': ou seja, o
tipo convencional de funcionário público mediano, que se sente perseguido - "tenho inimigos
cruéis que juraram me perder"10. Ele deseja desposar Clara Olsufievna, filha de Olsufii
Ivanovitch, que considera seu protetor e benfeitor. Mas é outro que se beneficia dos favores
da moça, e ele é expulso da casa da cortejada depois de tentar arrombar a porta. É nesse
momento que aparece o duplo, que representa o que Goliadkin não quer ser (vencedor, bem
falante, intrigante, hipócrita e mentiroso), mas que tem sucesso onde ele fracassa
principalmente na conquista dos favores dos superiores hierárquicos e da família de seu
antigo protetor. Quanto mais Goliadkin se vê rejeitado (é demitido do emprego, posto em
quarentena por todos os amigos, abandonado pelo criado), mais seu duplo aparece, ao
mesmo tempo, como aquele que consegue obter a amizade dos que o rejeitam e como
principal instigado r de sua degeneração, a ponto de organizar a última cena que levará
Goliadkin ao asilo psiquiátrico na presença do conjunto de seus "inimigos”.
Esse "caso" que resumimos bem sucintamente foi objeto de uma interpretação de inspiração
psicanalítica por parte de André Green, à qual Yves Barel opõe uma leitura "sociológica”.
Esse debate se baseia na importância recíproca da gênese sexual e/ ou social do
desdobramento de Goliadkin e de sua paranoia.
Embora Dostoievski insistisse na "importância social de seu herói, que descreve escrevendo,
especialmente: 'Nunca lancei na literatura algo mais sério que essa ideia”11, A. Green afirma
que "o duplo é coisa bem diferente"12. Para ele, o essencial não é a crítica social que
transparece através da paranoia de Goliadkin, mas o desenrolar de um delírio de perseguição
descrito "com precisão e intuição que vão bem mais longe do que as dos psiquiatras de seu
tempo"13. Green explica: "Sem dúvida há mais verdade nesse Duplo do que nos tratados de
psiquiatria da época. É verdade que Dostoievski não sabe o que faz, já que acredita fazer
uma obra 'social' [...] Mas será disso que se trata?"14.
Green recorda a ambição social de Goliadkin: guardar dinheiro para desposar a filha do
protetor e entrar para a "boa sociedade": "Tal é o desejo consciente. O que o fará fracassar é
que Goliadkin não pode assumi-lo", e acrescenta: "ele está em seu coche de aluguel,
parecido com o Pequeno Polegar que calça botas de sete léguas que são grandes demais para
ele"15; em outras palavras, se ele fracassa é porque "não está

___________________________

9.Dostoievski, Le double, prefácio de André Green, tradução para o francês de A. Aucouturier. Paris: Gallimard Folio,
1984; Yves Barel. La société du vide. Paris: Seuil, 1984, p. 248 e 55.
10. Idem. p. 44.
11. Carta de Dostoievski ao irmão Michel, 1854, em Récits chroniques et polémiques, Pléiade, NRF. p. 1664.
12. Dostoievski, Le double, op. Cit., prefácio. p. 8.
13. Idem. p. 10.
14. Idem. p. 14.
15. Idem, p. 16.
Dissociação do Eu e desdobramento • 163

à altura”. Mas não é esse o aspecto que Green considera importante: o essencial é o desejo
inconsciente. O fracasso vem da culpa diante da "homossexualidade que atua, ferozmente
negada, rejeitada”16. O "verdadeiro" desejo de Goliadkin é "fazer triunfar seu rival"l7, "o
triunfo sádico" do duplo trazendo o regozijo da "realização do desejo masoquista" de
Goliadkin.18
Não desenvolvemos aqui a análise finíssima de Green sobre o "caso" Goliadkin e dos
vínculos entre o livro e a vida de Dostoievski; vamos apenas recordar a questão teórica que
embasa sua leitura e que ele toma emprestada de Freud.

A etiologia sexual não é exatamente evidente na paranoia; ao contrário, as caracterís-


ticas de destaque em sua causa são as humilhações e rejeições sociais, principalmente
no caso dos homens. Mas examinemos com um pouco mais de profundidade e veja-
mos assim que o fator verdadeiramente ativo nessas feridas sociais se deve ao papel
desempenhado pelos componentes homossexuais da vida afetiva nessas feridas
sociais. (Freud, [190S-1918]1967,p.30S)

Portanto, é a etiologia sexual que é apresentada como elemento explicativo determinante do


comportamento de Goliadkin, na medida em que ele buscaria se defender na paranoia da
"sexualização de investimentos sociais instintuais" (idem, p. 307).
Sua busca e alienação não são interpretadas como uma questão de afastamento entre sua
posição objetiva e as aspirações sociais, mas como expressão de uma homossexualidade
recalcada: "Alienado pela imagem especular, esta lhe transmite o que nele foi 'foracluído':
sua imensa necessidade de amor passivo diante de outro homem”.19 O duplo, portanto, mais
do que a imagem do que desejaria se tornar sem conseguir, é a imagem do objeto amado,
amor proibido que leva Goliadkin a ser humilhado e punido por instigação desse próprio
duplo.
Aqui, a humilhação não é consequência de relações de força entre grupos sociais em um jogo
social de exclusão e dominação, mas sim de uma situação provocada por Goliadkin, por
instigação de seu duplo para se punir por ter buscado transgredir uma proibição e satisfazer
um desejo recalcado. A homossexualidade é o elemento ativo "das feridas sociais", e André
Green acrescenta em uma nota20: "Na paranoia, a homossexualidade perde parte das
aquisições obtidas graças à sublimação. Portanto, ela sexualiza novamente as relações
sociais dessexualizadas. Essa observação permite criar uma ponte entre a interpretação
psicanalítica e a sociopolítica do Duplo”. Assim, ele tende a generalizar o fundamento
homossexual das relações sociais e deixa supor que estas podem ser determinadas por outras
lógicas de funcionamento que autorizam, do mesmo modo, outras leituras e outras
interpretações.
Yves Barel, no "vazio social”, propõe uma abordagem sensivelmente diversa da de Green:

________________________________

16
. Idem, p. 17.
17. Idem, p. 18.
18. Idem, p. 19.
19. Dostoievski, Le double, op. cit., prefácio, p. 18.
20. Idem, p. 17.
164 • A neurose de classe

Sem subestimar a importância da descrição "clínica" de um caso de duplo mental, pa-


rece que a encenação escolhida por Dostoievski é profundamente social e esse
aspecto social desempenha seu papel na lógica da intriga. Goliadkin é um funcionário
mediano (pequeno demais para realizar sua ambição, mas não pequeno demais para
estar protegido da ambição), alguém quase insignificante cujo estado de espírito nos
é apresentado assim: ele é um homem direto, claro, sem rodeios, mergulhado em um
mundo de intrigas e superficialidades que lhe é hostil; nessas condições, não lhe cabe
rebaixar-se para seduzir esse mundo cruel. Cruel, claro, mas como é duro não cair na
vaidade social, Goliadkin veste seu criado com ostentação, aluga um coche de
prestígio [...] Em resumo: Goliadkin quer se elevar, não sabe como agir, sabe que não
sabe, quer esconder isso de si e dos outros contando histórias sobre sua diferença
radical de um mundo podre e oscila permanentemente entre uma afetação de
isolamento e uma necessidade enlouquecida de reconhecimento social. (1984, p. 249)

Para Yves Barel, a criação do Duplo é uma reação fantasmática a uma situação de poder:
Goliadkin não consegue se integrar à boa sociedade (há um rival "real", Vladimir
Sieminovitch, que obtém a precedência e é mantido como pretendente da filha de seu
superior hierárquico); fazem com que sinta que sua "posição" o confina a desposar
unicamente uma “ex-senhoria”, assim, é "remetido a si mesmo" quando Dostoievski o
descreve como um homem "que queria se esconder de si"; e é no mesmo momento em que
pensa em suicídio que surge seu Duplo.
"Ser perseguido por seu Duplo é ainda assim triunfar, quando uma verdadeira vitória de si
sobre si e de si sobre os outros parece, daí para frente, ridiculamente impossível" (ibidem). O
duplo é aquele que pode ser bem sucedido por procuração, que obtém os favores do poder e
realiza com sucesso todas as baixezas e intrigas necessárias para satisfazer as aspirações
sociais de Goliadkin. Assim, este pode transformar seu fracasso e se tornar a vítima
expiatória de seu Duplo triunfante. Essa imagem de si, que ele ama e detesta, é tirada dele
mesmo, já que não consegue atingir a posição que ela encobre. "Finalmente, Goliadkin se
desdobrou porque é a única 'solução' que encontrou para o problema impossível que consiste
em alimentar uma ambição social sem ter os meios necessários" (idem, p. 251). Por trás
dessa impossibilidade está a fragmentação social que surge como elemento determinante dos
problemas de Goliadkin: uma sociedade que põe em tensão, de um lado, "indivíduos ou
grupos sociais e, de outro, os papéis sociais aos quais estão confinados" (idem, p. 249).
Daí a conclusão de Yves Barel: "Concordo - é bastante evidente - que Goliadkin seja, além
disso, um 'caso' psicológico, mas não vejo em nome do quê deveríamos considerar
desprezível todo o condicionamento de sua doença mental [...] Portanto, é bom que a
explicação psicológica ceda seu lugarzinho ao fator social" (idem, p. 250).
Essas duas análises do fenômeno de desdobramento descrito por Dostoievski, e isso apesar
das precauções para criar pontes ou aceitar a coexistência de diversas interpretações, são
radicalmente diferentes.
Uma considera o desdobramento como produto de uma homossexualidade recalcada, a
paranoia como busca de punição, a humilhação como expressão do sadomasoquismo. A
situação social vivida, portanto, não passa de encenação da "outra cena”, a do inconsciente,
em um registro sublimado. O determinante é a etiologia sexual dos comportamentos e os
conflitos intrapsíquicos entre o Eu e as outras instâncias do aparelho psíquico.
Dissociação do Eu e desdobramento e 165

A outra leitura considera o desdobramento como consequência de uma situação social na


qual o indivíduo deseja se tornar uma coisa que não é em relação à posição social que ocupa
e dos papéis sociais que sua condição lhe confere. Como não pode satisfazer suas ambições
sociais e não chega a pôr em andamento estratégias psicossociais que lhe permitam realizar
as mediações necessárias para enfrentar os conflitos de pertencer a dois grupos sociais
antagônicos, o indivíduo se desdobra, e o caráter patológico desse desdobramento é
interpretado como uma das formas de expressão dessa situação. O desdobramento é uma
reação às contradições sociais: "Ele é encontrado onde a prática social lida com paradoxos"
(idem, p. 251).
Mas, embora se oponham quanto à gênese do processo, as duas leituras desembocam na
evidência do caráter dialético do desdobramento: o surgimento do Duplo é uma resposta que
o indivíduo produz diante das contradições que invadem sua identidade.
Para André Green,

é quando aparece o desejo de dilaceração, no momento em que o sujeito aspira ao


nada, que acontece o desdobramento salvador: ele se torna dois (...) Mas, em outros
momentos, o duplo não consegue manter, com a criação de uma imagem especular, a
coesão ameaçada do Eu. O duplo se multiplica em uma infinidade de figuras. É a
fragmentação e o caráter ilusório do conceito de identidade como um todo que
ameaçam, por sua vez, com a tentação do nada e o infinito da fragmentação. O duplo
afirma, assim, nosso destino de sermos divididos entre a imagem que desejaríamos
ter de nós e a que nos remete nosso a/ter ego não reconhecido. (1984, p. 24)

Por trás desse "alter ego não reconhecido”. o sociólogo admite a presença da multiplicidade
de práticas sociais que influenciam os desejos de modo de ser e os habitus a partir dos quais
o indivíduo tenta se situar e se constituir.
Para Yves Barel, o desdobramento social se encontra onde as contradições sociais funcionam
como paradoxos:

No fundo, existe uma raiz comum aos paradoxos individuais e sociais: é o que pode-
ríamos chamar de aporia da identidade, individual ou social, que consiste em que não
podemos sentir que existimos sem, ao mesmo tempo, admitir ou criar um corte entre
nós e o mundo e negar esse corte reconstituindo um tipo de estado funcional e
postulando que nossa identidade vem dos outros. (1984, p. 252)

Por trás dessa aporia da identidade, o psicanalista reconhece a presença do inconsciente, o


caráter fundamentalmente contraditório da psique, a ilusão da busca de unicidade, a presença
do desejo de fusão com o coletivo, a dialética entre a singularidade do sujeito e a presença do
outro em si.
Duas análises inconciliáveis do desdobramento desembocam na constatação da
fragmentação, do caráter ilusório da unicidade do sujeito e no caráter dialético da busca
existencial. Permanece a discordância sobre a primazia dos desejos inconscientes ou das
situações sociais na explicação da conduta humana.
Para a psicanálise, o corte fundamental se situa na base do aparelho psíquico: a existência,
dentro do mesmo sujeito, de "duas atitudes psíquicas diferentes, opostas e independentes
entre si" (Freud) está no próprio princípio da psicanálise. Mas Freud
166 • A neurose de classe

não situa a clivagem unicamente entre instâncias psíquicas. Ele põe em evidência outro
processo em relação ao modelo de recalque; a clivagem do Eu (ichspaltung), cuja
particularidade "é não resultar na formação de um meio termo entre as duas atitudes
presentes e sim mantê-las simultaneamente, sem que se estabeleça entre elas uma relação
dialéticà' (Laplanche e Pontalis, 1967, p. 70). A clivagem, portanto, é resultado de um
conflito. Mas, como destacam Laplanche e Pontalis, "embora tenha valor descritivo, a noção
não comporta em si nenhum valor explicativo. Ao contrário, ela provoca a pergunta: por que
e como o sujeito se separa assim de uma parte de suas representações?".
É na relação entre o Eu sujeito e o inconsciente que se buscará a explicação.
Do ponto de vista sociológico, esta será procurada na relação do sujeito com o mundo
exterior: são os cortes, os paradoxos, as contradições que invadem o campo social (quer na
diacronia, quer na sincronia) que levam os indivíduos a enfrentar situações conflituosas
diante das quais reagem até o mais profundo de si mesmos. O corte entre os grupos sociais, o
afastamento entre os indivíduos tal como são socialmente produzidos e os papéis sociais que
lhes são propostos, as rupturas sociais que levam à produção de todo tipo de inadaptação
fazem os indivíduos enfrentar contradições diante das quais o Eu tenta realizar mediações. A
clivagem, da qual o desdobramento é a expressão suprema, é uma reação de fechamento
quando a mediação não se produz: os dois aspectos antagônicos coexistem sem que se
estabeleça entre eles uma relação dialética. Goliadkin é, ao mesmo tempo, um pequeno
funcionário medíocre e fechado em si que não chega à altura de suas ambições e um
intrigante admirável e eficaz que consegue "se colocar". A paranoia vem eliminar o
afastamento entre esses dois personagens, o fracasso e a frustração do primeiro tornando-se
consequência das manobras e do sucesso do segundo. A luta social na qual o herói é
derrotado se desloca para o interior de um delírio entre essas duas partes de si que ele nunca
chega a conciliar. A homossexualidade pode, igualmente, ser interpretada como expressão
desse desejo de aliança e fusão, da busca de unificação entre o que ele é e o que queria ser.
Compreende-se, portanto, o interesse de uma interpretação multipolar do desdobramento
como fenômeno coproduzido por questões inconscientes nas quais as tensões entre o desejo
e o interdito são essenciais e questões sociais nas quais os conflitos de poder e a competição
pelos lugares a ocupar e conservar é que são determinantes. Essas diversas questões podem
ser analisadas segundo leituras justapostas, na medida em que as teorias de referência que as
embasam tenham, cada uma, lógica própria e coerência interna. Mas por isso mesmo elas
tendem a retirar da explicação o conjunto de fatores que não se submete a essa lógica e
coerência. A justaposição é insuficiente para compreender uma realidade na qual o sintoma é
o resultado de uma combinação de fatores de ordens diferentes que interagem. Assim, o
fenômeno do desdobramento na neurose de classe não é simplesmente a tradução das
contradições sociais no nível psíquico nem a consequência única de conflitos intrapsíquicos.
É a combinação de elementos inconscientes e sociais que a provoca. É o apoio entre, de um
lado, os conflitos intrapsíquicos e, de outro, os conflitos entre grupos sociais, e o fato de
esses conflitos de naturezas diferentes estarem ligados na história do indivíduo, que provoca
o desdobramento.
8

OPÇÕES E SUPORTES METODOLÓGICOS

Temos necessidade do que nos ajuda a pensar por conta


própria: um método. Temos necessidade de um método de
conhecimento que traduza a complexidade do real, reconheça
a existência dos seres, aborde o mistério das coisas.
Edgar Morin

OS SEMINÁRIOS “ROMANCE FAMILIAR E TRAJETÓRIA SOCIAL”

Nosso interesse pela neurose de classe brotou dos seminários que concebemos e realizamos
com M. Bonetti e J. Fraisse sobre o tema "Romance familiar e trajetória social". Esses
seminários atraem pessoas que, devido à sua história, não encontram na psicologia, na
psicanálise nem na sociologia explicações suficientes para compreender a própria trajetória e
os conflitos que enfrentam. A maioria delas está em "deslocamento", invadidas por múltiplas
contradições. Para algumas, essas contradições formam um verdadeiro nó, com um
emaranhamento permanente e complexo, justificando o nome de neurose. Foi no decorrer
desses seminários e com seu concurso que começamos a elaborar e validar nossas hipóteses.
A apresentação do seminário é assim descrita:

Grupo de implicação e pesquisa


Objetivos
Trata-se de examinar de que modo a história individual é socialmente determinada.
Esses seminários de implicação e pesquisa visam a permitir que os participantes se
compreendam como produto de uma história da qual buscam se tornar sujeitos,
explorando os diversos elementos que contribuíram para configurar a personalidade.
A história pessoal é produto de fatores psicológicos, sociais, ideológicos e culturais
cuja interação nos esforçamos para entender.
A análise trata, especificamente:

• da "genealogia familiar': da qual depende a "herança” afetiva, cultural, econômica


e ideológica que cada um recebe e que condiciona sua inserção social;
168 • A neurose de classe

• da formação do "projeto parenta!" (o que meus pais desejam para mim), de suas
contradições e incoerências;
• do "romance familiar”, já que cada um realiza uma reescritura de sua história
aproveitando "histórias de família” para passar da história vivida à historicidade;
• das "escolhas e rupturas" da existência (escolhas profissionais, políticas, amorosas,
rupturas familiares, ideológicas etc.) para compreender o que as produziu e o que
elas reproduzem e localizar os elementos estruturantes da trajetória social; o modo
como cada um escreve a história de sua vida.

Um exame desses deve permitir que se compreenda melhor a própria história para
melhor controlar o futuro.
Aos terapeutas, psicólogos, assistentes sociais, instrutores e todos os que se dedicam a
um trabalho relacional, esse seminário pode oferecer um certo número de ferramentas
teóricas e metodológicas para entender o que determina a história e os mecanismos de
cronicidade das pessoas com quem trabalham.
Condução
Diversas técnicas de expressão verbal e não verbal serão utilizadas para permitir a
produção de material sobre a própria história (desenhos, árvores genealógicas,
conversas etc.) que servirá de suporte à análise em comum do romance familiar e da
trajetória social de cada participante.
Os animadores propõem uma problemática em grupo, métodos de trabalho e
contribuições teóricas articuladas sobre a análise coletiva do material produzido.

Esses grupos de trabalho têm dois objetivos:

• de pesquisa que consiste em elaborar um método de investigação que permita articular


a análise dos fatores sociológicos e psicológicos que condicionam as histórias
individuais;
• de formação que propõe aos participantes suportes para a reflexão que lhes permitam
analisar sua trajetória social e as relações que mantêm com sua história.

Para nós, esses dois objetivos são indissociáveis, na medida em que permitem dialetizar dois
aspectos dos depoimentos recolhidos: um nível descritivo, expressão do que o indivíduo
viveu de sua história; um nível analítico, que é uma reflexão "coral" sobre o que foi vivido,
segundo a fórmula feliz de M. Catani 21. Por reflexão "coral" entende-se a análise feita em
comum pelo sujeito, os pesquisadores-animadores e os

_____________
21. M. Catani e S. Maze, Tante Suzanne, une histoire de vie sociale, Paris: Librairie des Méridiens, 1982.
Opções e suportes metodológicos • 169

outros participantes sobre cada uma das histórias, nas quais se misturam elementos
subjetivos, ecos provocados no outro, informações objetivas e hipóteses interpretativas e/ou
explicativas. Esse modo de trabalhar remete a um certo número de opções metodológicas
que, por sua vez, dizem respeito à pesquisa propriamente dita e à animação de grupos.

AS OPÇÕES METODOLÚGICAS
AS RELAÇÕES ENTRE A PESQUISA E A IMPLICAÇÃO
Embora os problemas da relação do pesquisador com o objeto tenham sido abundantemente
estudados, em particular no campo da psicossociologia, é menos frequente refletir, por sua
vez, sobre a implicação das pessoas (as "cobaias") dentro do próprio processo de pesquisa.
Essa reflexão não se deve apenas a razões deontológicas. Ela visa a facilitar a participação
dos sujeitos na análise de sua situação a partir de um dispositivo que integre o trabalho
cognitivo - compreensão de processos, produção de hipóteses, análise de mecanismos - e o
trabalho de implicação no qual se questiona a história pessoal, familiar e social. Um
dispositivo desses permite, ao mesmo tempo, produzir material e refletir sobre seu
tratamento.
A qualidade do material produzido coletivamente depende do grau de implicação de cada
participante, ou seja, de sua capacidade e desejo de ir "em busca do tempo passado" para
reencontrá-lo, expressá-lo e analisá-lo. Todo trabalho histórico consiste em produzir um
discurso que reconstrua o que se passou, expressando, ao mesmo tempo, a permanência da
história no aqui e agora.
O dispositivo pedagógico é concebido de modo a facilitar a ressurgência dessa história:

• pela utilização de suportes verbais e não verbais que favoreçam a exploração, o


envolvimento e a expressão individuais;
• pela fluidez da palavra e da comunicação entre uns e outros;
• pela transversalidade do trabalho, que permite um aprofundamento coletivo das
trajetórias individuais com cada história entrando em ressonância com as outras.

Paralelamente a essas ressurgências da história, efetua-se um trabalho teórico que, além das
experiências individuais, permite explicar os mecanismos em ação. O objetivo é produzir
coletivamente hipóteses explicativas e propor uma problemática que dê sentido e guie a
decodificação dos materiais apresentados. A princípio, as hipóteses servem de chaves
explicativas para compreender este ou aquele fenômeno desta ou daquela pessoa específica.
Elas só adquirem a condição de hipóteses teóricas a partir do momento em que sua
pertinência em uma história singular seja encontrada em outras. Pouco a pouco, o "pessoal"
se decanta para deixar aparecer o arcabouço teórico, uma problemática que adquire sentido
por trás de cada experiência individual.
170 • A neurose de classe

OS ESCOLHOS DO VIVIDO SEM CONCEITO E DO CONCEITO SEM VIDA22


Essa metodologia tende a dialetizar a relação entre a análise e a experiência, evitando dois
pequenos defeitos:

• Mergulhar no que foi vivido, sentido, na experiência pessoal como se esta pudesse
encontrar seu sentido em si mesma. Uma conduta ou atitude não tem autonomia em
relação às condições que a produzem, ou seja, aos sistemas de relações nos quais se
expressa. Pensar que, no homem, o saber poderia ser inato, surgir do interior, do
vivido, é cair na ilusão empirista que busca o sentido dos atos na consciência do ator e
que assimila o real à sua percepção subjetiva. O mergulho no "vivido" permite
produzir representações, isto é, a expressão da relação imaginária que conserva cada
indivíduo em suas condições concretas de existência. Portanto, a análise dessas
condições é indispensável para compreender o "vivido”. É para guiar essa análise que
a teoria é necessária.
• Mergulhar no teórico, no saber "puro", nas construções intelectuais. É, portanto, cair
na ilusão positivista que reduz o real ao estudo das determinações estatísticas, das
probabilidades e das regularidades objetivas às quais obedece a conduta humana.
Embora a sociologia consista em estudar como coisas os fenômenos sociais, ela não
deve esquecer que a apreensão subjetiva faz parte das coisas a estudar como coisas,
que não se pode ter acesso à realidade fora da experiência concreta - ainda que
subjetiva - de um indivíduo concreto, e que a prova do social só pode ser mental.

O sentido e a função de um fato humano são descobertos no confronto entre a elaboração


teórica e a experiência vivida, entre a objetividade da análise e a subjetividade da
consciência individual.

OBJETIVAÇÃO-SUBJETIVIDADE
Nosso objetivo metodológico consiste, portanto, em criar condições para um movimento
duplo de distanciamento e implicação em cada etapa do trabalho. O distanciamento permite
objetivar a própria história situando-a em relação à evolução das relações sociais, relativizar
sua singularidade mostrando que é produto de evoluções que permeiam o conjunto dos
integrantes de uma classe social, cultura e época e analisar, além de sofrimentos, rupturas,
emoções e conflitos, as contradições e os processos em ação. Mas o trabalho não seria
completo se essa objetivação não se enraizasse na experiência subjetiva de cada um,
expressão da singularidade individual, que a questiona, interroga, valida e/ou contradiz,
permitindo uma interação constante e dialética entre objetividade e subjetividade, entre os
fenômenos coletivos e individuais, entre o social e o psíquico.
A desconstrução da história submetida a uma reconsideração em um momento dado
corresponde uma reconstrução a partir de hipóteses que identifiquem as diversas
determinações sócio-históricas que a produziram.

_______________
22. Tomamos essa expressão emprestada de Henri Lefebvre in La survie du capitalisme, Paris: Anthropos, Paris, 1973, p. 85.
Opções e suportes metodológicos • 171

PLURIDISCIPLINARIDADE E COANIMAÇÃO
O dispositivo empregado visa a analisar os indivíduos como produto de uma história da qual
buscam se tornar sujeitos. Portanto, deve pôr em andamento uma iteração permanente entre a
experiência e a análise, entre a expressão das representações e a objetivação das situações,
entre a dinâmica do desejo individual e a revelação de determinações sociais.
Essa abordagem dialética só é possível quando esses diversos aspectos estão presentes no
trabalho, provocando um movimento sobtensão: o avanço em um aspecto é imediatamente
relativizado, criticado e questionado a partir de outros pontos de vista. A irredutibilidade das
abordagens psicológicas e sociológicas, que não passa de expressão da impossibilidade de
reduzir o psíquico ao social ou o social ao psíquico, deve estar presente no trabalho, como
em um motor de dois tempos que só funciona graças à sua interação dinâmica (Gaulejac,
1983).
Para que esse movimento seja possível, é preciso que se inscreva no próprio dispositivo com
uma abordagem pluridisciplinar ativa e um processo de coanimação dinâmica.
A animação pluridisciplinar necessita de uma ancoragem de cada animador nesse
movimento dialético, o que acontece quando suas trajetórias pessoais e teóricas foram
permeadas de rupturas, questionamentos, remanejamentos e outras tantas transformações que
os conduzam a uma reflexão epistemológica.
Mas essa condição é insuficiente se o animador não é tensionado entre suas diversas
referências teóricas pela dinâmica do grupo e pela situação de coanimação.
Em uma situação pedagógica, o pesquisador-animador fica mais tentado a se apoiar em suas
certezas do que a aprofundar o esforço. Diante do grupo, ele é remetido à posição de quem é
"suposto saber": pede-lhe que contribua com um conhecimento elaborado, hipóteses bem
construídas, explicações bem-feitas, o que pode provocar o encerramento do processo de
exploração, o fim das sínteses cuja coerência se arrisca a ocultar a fragilidade ou o caráter
parcial.
A coanimação é um dos meios de implementar essa tensão, desde que cumpra duas
condições:

1. Os animadores devem estar de acordo a respeito de uma problemática para que o


trabalho em comum seja possível. Mas esse acordo deve ser apenas parcial para que se
instaure uma dinâmica reflexiva e pedagógica. Cada hipótese deve ser discutida para
comprovar sua validade. Especificamente, quando se trata de compreender as
determinações que estruturaram uma trajetória individual, é importante discutir a
intervenção e o peso respectivos dos diversos fatores (econômicos, históricos,
sociológicos, ideológicos, psicológicos) que puderam intervir. É na interação entre
esses diversos fatores que se consegue compreender a dinâmica de uma trajetória
individual. Convém, portanto, que o confronto de hipóteses explicativas seja
igualmente ativo no trabalho em grupo. É aqui que a formação básica dos animadores
é importante. Ninguém pode pretender se situar, ao mesmo tempo, como
economista, sociólogo, historiador e psicólogo, ainda que tenha formação sólida
nesses diversos domínios. O trabalho transdisciplinar só é concebível em um
confronto ativo entre as disciplinas para e entre os animadores.
2. Essa dinâmica entre a complementaridade e a oposição dos animadores permite aos
participantes se situarem igualmente em tensão reflexiva diante dos
172 • A neurose de classe
animadores e entre si. Ela produz uma zona de incerteza e questionamento na qual
não são mais apenas objetos do trabalho de grupo e consumidores do saber dos
animadores. Eles se situam como sujeitos de uma pesquisa que diz respeito a cada
um pessoalmente - quando se trata de explorar uma história singular -, mas também
a cada um coletivamente, sendo que cada história é apenas a expressão
individualizada de uma história comum.

O espaço do seminário cria uma estrutura de solicitação onde cada participante é convidado
a utilizar sua experiência individual para compreender mecanismos coletivos. É uma
pesquisa ao mesmo tempo pessoal e teórica, realizada em comum. O papel dos animadores é
produzir as condições para que esse processo seja possível. Quando posto em andamento,
todos participam dele. As ferramentas de análise, assim como os suportes da investigação,
são construídas progressivamente, em função das direções de pesquisa que vão surgindo.

DETERMINISMO E LIBERDADE
A tensão entre o vivido e a análise, entre o trabalho individual e o coletivo, entre os fatores
psicológicos e os sociológicos tem outro efeito. Ela permite evitar dois escolhos que se
encontram inevitavelmente em trabalhos desse tipo: a ilusão de onipotência do sujeito, cuja
outra face é a ilusão do determinismo absoluto.
O psicologismo, que tende a considerar que a pessoa humana é o motor da história, não teria
tanto sucesso se não fosse ao encontro de um fantasma profundamente enraizado no
inconsciente de todos. Fantasia de onipotência, concepção narcísica do sujeito, visão
etnocêntrica do mundo, crença na capacidade ilimitada do homem de se realizar
independentemente de qualquer contingência histórica e social, esses diversos elementos
psicoideológicos se apoiam e se estimulam, provocando resistências importantes à
introdução de uma compreensão sócio-histórica.
A introdução de uma visão mais sociológica dos destinos individuais provoca um
questionamento dessa ilusão e desemboca com muita frequência em uma fase depressiva:
"Eu me dou conta de como sou prisioneiro de minha história, como estou inscrito na
reprodução. Até agora acreditava ter controle de meu destino, ser ator, mas tomo consciência
de que sou apenas atuante”. Aqui a tomada de consciência da existência de determinismos
desemboca no sentimento de que tudo não passa de reprodução, que o indivíduo é apenas o
produto de sua história e das condições concretas da existência, que seu desejo de ser sujeito
só pode ter satisfação fantasmática, sem relação com uma realidade que o determina
totalmente.
O trabalho consiste em aceitar a contradição como elemento da prática existencial, em
renunciar à ilusão do sujeito livre que espera de um trabalho pessoal o meio de resolver
todos os seus problemas e em renunciar também à ilusão de que a salvação poderia vir de
uma mudança da sociedade que produziria, inelutavelmente, um destino menos
problemático. O fato de analisar em que o indivíduo é programado por sua história não a
muda. Ao contrário, muda sua relação com a história. Quando se levam em conta as
dimensões sociológicas e históricas dos destinos pessoais, as próprias, mas também as dos
outros, cada um pode compreender como diversos fatores agiram em seu caso, como
contribuíram para posicioná-lo em sua família e nas relações sociais, o que modifica
profundamente sua relação com essa "situação" e lhe permite compreender concretamente
que a realidade é apenas uma das formas do realizável, que o possível não se reduz ao
provável.
Opções e suportes metodológicos • 173

TERAPIA E PESQUISA
Um trabalho como esse está na fronteira entre pesquisa e terapia. A maior parte dos
exercícios que propomos se baseia em um trabalho de localização: Onde estou no desejo de
meus pais? Onde estou na saga familiar? Onde estou nas diversas correntes ideológicas?
Onde estou na estrutura social? Onde estou na história?
Essa busca de precisão concreta sobre as posições de cada um permite deixar em evidência,
ao mesmo tempo, a identidade e a diversidade das situações, questionando as fixações ou as
generalidades representativas abstratas nas quais o indivíduo tende a se fechar e se proteger.
Assim, ele percebe que está aqui e lá, e que em qualquer dessas posições ele é ao mesmo
tempo isso e aquilo. Nesse sentido, trata-se de um trabalho sobre os conflitos enfrentados
pelos indivíduos em sua trajetória e de uma análise das contradições que os provocaram.
Para tomar uma iniciativa dessas, é necessário que o participante seja capaz de enfrentar uma
posição contraditória, o que nem sempre acontece. Um certo número de sujeitos vão para a
terapia justamente porque não conseguem suportar a contradição. Ficam tensos com o desejo
de compreender o que se passa "no Eu" a partir de suas emoções, de seu sofrimento atual, do
aqui e agora de sua vida cotidiana. A necessidade imediata é de se livrar desse peso do qual
se sentem prisioneiros, desse passado que os envenena. Portanto, a ideia de que o Eu é
produto de uma história não é aceitável, porque a rejeição da história só pode provocar a
rejeição do Eu em um momento em que esse Eu é o único ponto de ancoragem na realidade,
o único meio de ação para controlar o que se é. Assim, é uma questão de sobrevivência para
o indivíduo situar-se "em si" antes de se posicionar na história e nas relações sociais. É
necessário que o indivíduo tenha o sentimento de um mínimo de autonomia do Eu, de
distância em relação a si mesmo, para que aceite ver como ele é produto de fatores sócio-
históricos e para que se instaure uma dialética entre a individualidade e a realidade externa.
Na cura psicanalítica, a transferência serve de suporte à relação terapêutica. A história do
sujeito, em consequência, é constantemente reintroduzida e reinterpretada em função da
relação transferencial. Em nossos grupos, a relação com os animadores é um elemento entre
outros no esquema de trabalho, na medida em que toda situação de grupo produz fenômenos
de projeção e identificação. Portanto, ela é levada em conta como um elemento da realidade
do grupo, mas não é objeto de um tratamento específico. É apenas um dos elos da corrente
que vai do vivido atual à história pessoal e social do sujeito. Embora provoque
remanejamentos importantes do modo como os participantes se situam nosso trabalho não
tem meta terapêutica, na medida em que busca produzir uma compreensão intelectual de
processos sociopsicológicos e não cuidar e tratar de indivíduos cujo mal-estar existencial é
insuportável.

OS SUPORTES METODOLÓGICOS
O trabalho de desconstrução/reconstrução de relatos autobiográficos é facilitado pela
alternância entre as fases de expressão verbal e utilização de técnicas não verbais de
exploração. Trata-se de encontrar os suportes que permitam, ao mesmo tempo, elucidar os
processos com a análise verbal e expressá-los da forma mais próxima de como cada um os
sente. A utilização de suportes não verbais (desenho, encenação, jogos de representação,
teatro, imagens, disfarces) permite formas de expressão
174 • A neurose de classe

não submetidas· às mesmas regras que a linguagem falada. A análise verbal é um ato a
posteriori. Ela exige a construção e a definição de um objeto e tende a racionalizar, isto é, a
reconhecer e ordenar os fenômenos. Mas ao ordená-los oculta aqueles que não foram
decifrados. A racionalização, portanto, é, ao mesmo tempo, um instrumento de elucidação e
um mecanismo de defesa. A expressão não verbal facilita o surgimento do imaginário, do
não explicado a priori, das contradições vividas, do imprevisível. Ela permite produzir
material a partir de códigos diferentes da linguagem falada e, geralmente, bem menos
controlados. Ela favorece o acesso à representação de situações vividas, reatualizadas no
aqui e agora do grupo.
A produção de material não verbal permite igualmente registrar traços que servirão de apoio
à análise verbal. Esse método favorece, ao mesmo tempo, o envolvimento, que põe em jogo
as técnicas de expressão livre, e o distanciamento. Não é diretamente sobre si que se
trabalha, mas sobre o material analisado. Por exemplo, o trabalho a partir de um desenho que
representa o projeto parental permite perceber diretamente sua natureza, seja qual for o
discurso que o ator produziria em cima. No jogo de formas, nos símbolos utilizados, nas
cores surge um conjunto de significados que o grupo pode perceber diretamente, de modo
independente de racionalizações e explicações propostas por quem desenhou. Este último,
portanto, se vê distanciado de seu projeto parental em uma situação em que busca, do mesmo
modo que os outros compreender sua problemática.
Utilizamos quatro suportes:

• a construção de uma árvore genealógica,


• um desenho do projeto parental,
• um esquema de análise das trajetórias sociais, e
• sociodramas que encenam situações sociais.

A ÁRVORE GENEALÓGICA23
A tarefa proposta aos membros do grupo é reconstituir sua genealogia em uma grande folha
de papel, indicando, em cada personagem, o nome, a profissão, o nível cultural, o lugar
geográfico, as datas de nascimento e falecimento. Por outro lado, pede-se que sejam
anotados "sinais particulares" que distingam este ou aquele membro da família e que, no
romance familiar, foram retidos como importantes em' termos positivos (condecorações,
qualidades específicas, funções de prestígio) ou negativos (defeitos, fracassos, sintomas,
doenças).
São levadas em conta as três ou quatro últimas gerações, um século, mais ou menos, o que
geralmente corresponde ao que subsiste na memória familiar. Quando o autor consegue
recordar mais, o que já é um sinal característico do funcionamento familiar pede-se que
indique as linhagens cujos vestígios a família conservou, seja no romance familiar (o que é
contado), seja em documentos, objetos, terras, casas etc.
Uma vez constituída, a árvore genealógica é exibida. Torna-se objeto de comentários de
quem a concebeu e de uma análise coletiva dos animadores e do grupo de participantes.

_________________
23. Jean Fraisse, "La généalogie” in Que faire des histoires de famille?, Le groupe familial, n. 96, jul-ago de 1982.
Opções e suportes metodológicos • 175

A genealogia assim projetada permite identificar as características da estrutura familiar, os


diversos componentes (econômicos, sociais, culturais, ideológicos, psicológicos) da herança
e, igualmente, a relação que o herdeiro genealogista mantém com a história familiar. Aqui, o
estudo da forma (por exemplo, o lugar ocupado por cada um dos ramos da família na folha
de papel) é indissociável do estudo do fundo. A árvore é significativa tanto pelo que deixa
ver quanto pelos vazios, ausências e faltas. O esquecimento em que caiu este ou aquele
personagem, esta ou aquela linhagem costuma ser indicativo das questões sociais que
permeiam a família: retêm-se os "bem-sucedidos" enquanto não se sabe muito sobre os
considerados em regressão. Algumas famílias mantêm as linhagem maternas enquanto outras
só dão atenção às paternas.
Enfim, a árvore genealógica permite relacionar o romance familiar com certo número de
indicadores que possibilitam objetivar as posições sociais de uns e outros, identificar o
funcionamento dominante da estrutura familiar e ressituar os destinos individuais dentro da
evolução socioeconômica global.
A identificação da classe social dos diferentes indivíduos situados na genealogia é um
elemento determinante para compreender as questões do destino social e afetivo de cada um.
Ela permite, especificamente, reconhecer os fenômenos de promoção, regressão, maus
casamentos, os fenômenos de reprodução ou desvio, o peso das ideologias ligadas a
pertencer a uma classe, as estratégias individuais ou coletivas de emprego etc.
A identificação do funcionamento da estrutura familiar permite captar as tradições, as regras,
os habitus e o modo como esses diversos elementos marcam as escolhas profissionais,
afetivas, sexuais, ideológicas, culturais etc. de cada um de seus membros. Podem-se
identificar, assim, tradições profissionais, a estrutura dos casamentos, o número de filhos por
casal, as práticas ideológicas.
Enfim, a árvore genealógica permite observar em que os destinos individuais são
condicionados pela história familiar e influenciados pelas mutações econômicas, políticas e
sociais. Vemos nela, em particular, a passagem do rural ao urbano, frequentemente
acompanhada da passagem de uma condição profissional independente (artesão, exploração
agrícola, pequeno comerciante) à condição assalariada; a queda bastante sensível da
natalidade que surge depois de duas gerações no conjunto das classes assalariadas que vivem
em meio urbano; o aumento da prática de coabitação entre os jovens; a elevação da
escolaridade no conjunto das classes médias e populares; o desenvolvimento das classes
médias; o aumento da expectativa de vida e a diminuição da mortalidade infantil; o
desenvolvimento da mobilidade profissional e geográfica.
Nossa abordagem da genealogia é diferente do genograma utilizado na terapia familiar 24. O
objetivo do genograma não é recolher informações objetivas sobre a estrutura familiar, mas
projetar em uma folha de papel a representação da família. Essa superfície projetiva de
fantasmas produzidos sobre a estrutura familiar é um modo de identificar os vínculos
narcísicos e libidinais no interior da família. O genograma é "uma representação do espaço
intrapsíquico familiar" e permite ao terapeuta compreender a problemática edipiana, os
processos de identificação, os mitos e segredos da história familiar.

_________________
24.
O genograma é especificamente utilizado por Donald Bloch, diretor do Instituto Ackermann, em Nova York, e na França
por Eve1yne Lemaire-Arnaud, que expôs os objetivos do método em dois artigos: "A propos d'une technique nouvelle, le
génogramme” Dialogue, n. 70, 1980, e "Utilité du génogramme pour la mise au jour des phénomènes transgénérationnels”,
Dialogue, n. 89, 1985.
176 • A neurose de classe

"O genograma é O que fica quando se esquece tudo da árvore genealógica”, escreve Evelyne
Lemaire- Arnaud. Essa fórmula mostra bem a diferença essencial entre a abordagem dos
terapeutas familiares e a que praticamos. O genograma é utilizado como meio de
investigação psíquica que abstrai a realidade sócio-histórica. O essencial é o relato
construído pelo indivíduo e os fantasmas que descreve. As identificações estão
exclusivamente compreendidas em sua dimensão psicológica. Esse ponto de vista é
sustentado por uma concepção do funcionamento da família como produto de inter-relações
entre seus membros. A ausência de referências às características sociais dos personagens e à
análise da estrutura familiar não permite ao paciente estabelecer o vínculo entre essas
interações psíquicas e as interações psicossociais e/ou sociais.

O DESENHO DO PROJETO PARENTAL


Definimos O· projeto parental como o "desenho industrial registrado” de cada criança. Esse
desenho está no cruzamento do narcisismo infantil com o imaginário dos pais. Sua
exploração exige um suporte que deixe uma parte importante ao imaginário.
As instruções dadas ao participante são de representar com o desenho "o que meus pais
queriam que eu fosse”. São postas à sua disposição folhas grandes de papel, tinta para
pintura de dedo, lápis pastéis, lápis de cor etc. Trata-se de facilitar a expressão gráfica
estimulando a imaginação dos autores, que podem brincar com formas, cores, ocupação do
espaço, contrastes, o figurativo e o abstrato. O desenho permite escapar da racionalização a
priori da linguagem ao propor uma superfície de projeção e uma técnica que permite
expressar diretamente condensações, deslocamentos e contradições conscientes e
inconscientes que povoam o imaginário.
O desenho não obriga a dar nome às coisas. Ele permite desenvolver uQla comunicação de
tipo analógico adaptada à expressão do projeto parental. A comunicação analógica "não
possui discriminantes que indiquem, diante de dois sentidos contraditórios, qual deles é
preciso compreender; ela não tem mais indicadores que permitam distinguir o passado, o
presente e o futuro. Por sua vez, existem discriminantes e indicadores na comunicação
digital; o que lhe faz falta é um vocabulário adaptado ao acaso da relação" (Watzlawick,
Helmick-Beavin, Jackson, 1972, p. 63).
Assim, o desenho possibilita expressar ao mesmo tempo as contradições do projeto parental,
o "acaso" da relação que o autor mantém com o projeto, a aceitação e a recusa de seus
diversos aspectos, a permanência do projeto nele etc.
A comunicação pelo desenho expressa diretamente a relação entre o autor e sua
representação.
Como no trabalho do sonho, no desenho o manifesto e o latente estão constantemente
misturados. A inexistência de perícia dos participantes em uma técnica que não dominam
favorece a expressão da representação que fazem do que os pais desejariam para seu futuro.
No desejo dos pais se misturam injunções precisas, vozes formuladas ou dissimuladas,
desejos não satisfeitos, esperanças e ressentimentos, exigências contraditórias, afetos e
práticas, toda uma série de elementos disparatados mais ou menos coerentes. O desenho
oferece a possibilidade de mostrar esse caráter composto e irracional do projeto.
O desenho não tem como objeto ser submetido a uma interpretação. Ele é utilizado como
superfície de projeção do projeto parental, cujo sentido é elaborado a posteriori.
Enquanto elemento de representação, ele é uma imagem que o participante dá de si, a partir
da qual se vai realizar um trabalho - trabalho em grupo que, em um primeiro
Opções e suportes metodológicos • 177

momento, remete essa imagem ao autor indicando-lhe o que cada um vê ali. Essa fase é
importante porque lhe permite tomar distância de sua representação. Permite também
expressar as emoções, os sentimentos e as interrogações que o desenho produz no outro,
sabendo que esses diversos elementos exprimem, na maior parte do tempo e com grande
fidelidade, a relação que o autor mantém com seu projeto parental.
Em um segundo momento, o autor põe em palavras o que desejava expressar e, depois, reage
aos comentários e à imagem que lhe foram transmitidos pelo grupo. Começa então a análise
propriamente dita do projeto parental, da combinação entre seus aspectos afetivos,
relacionais, ideológicos e sociais, das injunções e contradições que transmite e do modo
como o participante se inscreve, se opõe e se desloca em relação a ele.

A ANÁLISE DAS TRAJETÓRIAS


O trabalho sobre a genealogia e o projeto parental permite especificar a gênese socioafetiva
do indivíduo, ou seja, o conjunto de componentes da identidade herdada. A análise das
trajetórias deve permitir a compreensão da passagem entre a posição-originária e a adquirida.
Para efetuar essa análise, propomos aos participantes uma grade que põe em perspectiva:

• as características das diversas posições ocupadas a partir de indicadores socio-


profissionais;
• os principais acontecimentos pessoais e familiares que tiveram influência sobre a
trajetória; e
• os acontecimentos históricos e as mutações sociais que modificaram seu curso.

Depois de uma discussão do esquema proposto, cada participante é convidado a "interpretar"


o suporte para adaptá-lo a uma descrição de sua própria trajetória. Pede-se, especificamente,
que ele destaque as sequências de sua história de vida que lhe pareçam mais significativas e
que se interrogue sobre as rupturas, as "escolhas", as passagens entre essas sequências.
Uma vez constituído o suporte, cada participante apresenta sua trajetória, que é objeto de
uma dupla exploração:

• reconhecimento da dinâmica singular da história em referência ao discurso que o


sujeito produz sobre a própria vida, e
• reconhecimento da dinâmica social expressa por essa história em referência ao
contexto sócio- histórico no qual se inscreve.

A trajetória é analisada simultaneamente em diacronia e sincronia. Cada posição resulta do


trajeto anterior e do contexto pessoal, familiar e social que oferece as oportunidades e
determina as transformações necessárias ou possíveis. As trajetórias se inscrevem em uma
história que canaliza seu sentido pelas potencialidades que oferece e as rupturas que provoca.
As trajetórias descrevem a história das diversas posições ocupadas, isto é, as orientações
adotadas a cada momento pelo ator-indivíduo, que se determina diante dessas
potencialidades e rupturas.
178 • A neurose de classe

A análise consiste em identificar os momentos-chaves da inscrição social da identidade e os


elementos que intervêm em cada um desses momentos para explicitar a relação do indivíduo
com as situações enfrentadas (ver página seguinte).

OS SOCIODRAMAS
O sociodrama é uma técnica intermediária entre o jogo de representação, o psicodrama e o
teatro-fórum25. Consiste em criar um espaço cênico no qual o grupo vai experimentar
situações sociais concretas a partir de um roteiro básico construído em função de cenas
evocadas no grupo ou propostas pelos animadores. Descrevemos três exemplos.

1. Cena do navio "E la nave va”


Os participantes partem em um cruzeiro marítimo. São convidados a pegar as passagens de
primeira classe, segunda ou classe "econômica” em função de sua origem social. O espaço é
organizado de tal maneira que essas três classes correspondem a três lugares bem
diferenciados. Depois de zarpar, o navio sofre uma avaria e a tripulação (representada pelos
animadores) o abandona.
A partir desse momento, começa uma improvisação coletiva que põe em evidência os
comportamentos dominantes dos três grupos iniciais.
O grupo da primeira classe se refugia em um etnocentrismo suntuoso, reproduzindo a
situação dos passageiros do Titanic como descrita em numerosos filmes: um maestro
organiza uma "festa” que se pretende, ao mesmo tempo, heroica e ridícula. Estão todos em
um salão onde trocam futilidades, comentando a agitação que reina nas outras classes.
O grupo da segunda classe é mais indeciso. Divide-se entre o fascínio pelo espetáculo
mundano da primeira, que com certeza inveja, e o espetáculo ativo da classe econômica, da
qual, contudo, mantém distância. Em um primeiro momento, domina o sentimento de
incerteza, antes que a dinâmica coletiva leve esse grupo a explodir, com os participantes se
unindo aos outros grupos.
O grupo da "classe econômica” se caracteriza pelo ativismo: revolta, divisão,
reagrupamento, manifestações, gritos, animação, agitação, até o momento em que três líderes
o conduzem à sala de máquinas para pôr o navio em funcionamento e levá-lo ao porto.
Um quarto grupo lembra os isolados e marginais em relação a seu grupo de afeto originário,
o que lhes permite passar de um grupo ao outro sem nunca se inserir verdadeiramente em
nenhum.
Pode-se pensar que essa descrição é caricatural e fortemente influenciada pelas
representações induzidas no seminário. De fato, essa improvisação surpreendeu tanto os
animadores quanto os participantes pela vivacidade extraordinária das imagens, dos
comportamentos e dos habitus internalizados em função da origem social. Cada um se
mostrou, de qualquer forma, "mais verdadeiro que a natureza”, e as diferenças sociais, até
então bastante eufemísticas, se expressaram por meio do sociodrama: a condescendência da
primeira classe diante das outras; a dificuldade da segunda em se situar; a revolta e o respeito
da classe econômica diante da primeira, sua tentativa

_____________________
25. Técnica desenvolvida por Augusto Boal e pelo Teatro do Oprimido.
Opções e suportes metodológicos • 179
180 • A neurose de classe

de libertação pela tomada do controle das máquinas e da atividade manual, tarefas materiais
às quais as outras reagem com indiferença e desdém. Sem que as instruções explicitassem no
princípio, a situação permitiu que cada um encenasse o modo como confrontara a existência
de classes sociais a partir de sua posição inicial.
Além da articulação entre o individual e o coletivo, o sociodrama pôs em evidência as
oposições entre fazer e falar, entre as posições de autoridade e executante, entre submissão e
revolta, aceitação passiva e mobilização ativa, integração e isolamento, ciúme e inveja,
superioridade e humilhação etc.
Essas diversas posições se manifestaram entre os grupos, mas também em situações
individuais. A análise das relações entre o modo como cada um se situou no sociodrama e a
trajetória social permitiu reatualizar os conflitos enfrentados e compreender o vínculo entre a
dinâmica conflituosa das relações sociais e as contradições vividas.

2. Cena da refeição em família


Trata-se de explorar concretamente a noção de incorporação dos habitus a partir da
encenação de uma refeição em família. A refeição ilustra a função da herança como conjunto
de práticas sociais, ideológicas e comportamentais que forma uma estrutura de disposições e
predisposições diferentes segundo os grupos sociais.
Cada participante é convidado a encenar uma refeição de sua infância. Ele representa seu
próprio papel e designa, entre os outros membros do grupo, os diversos convivas presentes à
refeição: pais, avós, irmãos e irmãs. Dá-se atenção específica à decoração e ao espaço,
principalmente à cisão cozinha/sala de jantar, que situa o lugar de homens e mulheres,
patrões e empregados; o mesmo acontece com o lugar ocupado por cada um em volta da
mesa, quem serve a circulação da conversa durante a refeição, a presença ou não do rádio e
da televisão etc.
Não se trata de construir um roteiro específico, mas de representar a "banalidade" da vida
cotidiana durante a infância.
Uma representação dessas permite compreender melhor:

• a divisão de papéis masculinos e femininos nas tarefas domésticas;


• os habitus ligados à etiqueta ou, para alguns, o aprendizado de "boas maneiras" a
partir do modo de se comportar à mesa;
• o funcionamento íntimo do grupo familiar;
• a condição e o lugar de cada um;
• as distâncias entre a condição da refeição em famílias de diversas classes etc.

Um caso ilustra o interesse de tal abordagem. Georgette, filha de camponeses, conseguiu,


com o apoio de um professor, estudar enfermagem e depois serviço social, apesar da
reticência dos pais que desejavam que ela ficasse na fazenda. Ela se casa com um filho de
camponês que se tornou engenheiro eletricista. Trajetórias similares de ambos os lados,
marcadas por rápida promoção, mas vividas com dificuldade por Georgette, que sentia
intensamente as contradições entre seu modelo cultural de origem e o a nova classe a que
pertence. A encenação da refeição em família lhe permite trabalhar esse conflito. Nos
primeiros tempos do casamento, o casal não ousava receber amigos
Opções e suportes metodológicos •181

porque não sabiam, nem um nem outro, como "deviam fazer” A humilhação de não poder
enfrentar o desconhecimento dos habitus da refeição burguesa lhe deixou uma impressão
viva que nunca ousara expressar até então.
O trabalho sociodramático lhe deu a oportunidade de representar seu mal-estar, de dividi-lo
com os outros, de se distanciar da situação e relativizar o que era vivido como incapacidade
internalizada. A representação de si em uma situação lúdica permite esse trabalho de
desligamento entre o investimento afetivo e a situação social.
Uma variante desse sociodrama é a "refeição elegante”. Nesse caso, a situação proposta é
uma refeição real a partir da qual vai se desenvolver uma improvisação coletiva. Cada um é
convidado a representar o papel correspondente à posição social que deveria ocupar se a
distribuição antroponômica fosse um processo mecânico. Três mesas são organizadas, a
"mesa burguesa” a "mesa da classe média” e a "mesa popular”. Cria-se um "serviço" para a
"mesa burguesa”. A partir desse arcabouço, o sociodrama se desenvolve durante toda a
refeição, que não é simulada, incluindo a arrumação, a louça e a limpeza. Na hora da
exploração, a análise acontece com base na maneira como cada um ocupou e viveu "seu
lugar”, as diferenças entre as mesas quanto à relação com o serviço, a comida, a conversa, as
discussões, os modos de "se comportar”, as relações ou sua ausência entre as diversas mesas,
a divisão das tarefas domésticas entre os grupos, entre homens e mulheres etc. Observa-se a
facilidade com que alguns se situam (ficam à vontade em sua posição) e a dificuldade de
outros em encontrar seu lugar e ocupá-lo.
Esse tipo de situação permite identificar experimentalmente, mesmo que, a princípio, se trate
de uma caricatura, certo número de questões essenciais das relações sociais e o modo como
cada um participa delas, e tomar consciência, segundo o caso, das frustrações e humilhações
vividas, da culpa ou da consciência limpa e, em termos mais gerais, do modo de "ali estar"
ou de "ali ser”.

3. Cena do baile à fantasia


Trata-se de um trabalho a partir da noção de projeto parental. Os participantes são
convidados a se fantasiar partindo da instrução: "O que meus pais queriam que eu fosse':
Assim, organiza-se uma festa. Cada um se apresenta ao chegar. Segue-se uma improvisação
de cenas em que os participantes tentam estabelecer relações entre si. Segundo as situações e
as características dos participantes, a "festa” pode evoluir para um coquetel, um baile
popular, uma festa de gala ou outra coisa, como costuma acontecer em grupos socialmente
heterogêneos onde se apercebe que não existe nenhum modelo que permita a várias classes
sociais passarem uma noite juntas. O paradoxo, portanto, é que o aparente fracasso do baile a
fantasia (quando ali não acontece nada em nível coletivo) costuma ser a condição do sucesso
do sociodrama: o jogo não conseguiu superar a realidade social. Uma encenação muito bem-
sucedida, no decorrer da qual todos participam de forma ativa e lúdica, pode ter o efeito de
ocultar os conflitos sociais que se buscam captar por esse meio. Quando o teatro e o jogo se
tornam um fim em si mesmos pela atração que exercem, podem fazer esquecer o que
representam.
Como suporte de concretização, de encenação e projeção, a situação sociodramática permite
falar do que não se vê e ver o que não se fala. Ela amplia o registro de expressão individual e
coletivo e reproduz, no espaço do seminário, situações sociais que, como o teatro, são um
meio de acesso ao real.
POR UMA SOCIOLOGIA CLÍNICA

Sem dúvida, nada é mais cativante do que avançar por caminhos


mal traçados, abrir rotas até fronteiras indecisas entre duas
ciências, a psiquiatria e a sociologia; nisso, não há erros que não
sejam preciosos. Porque cada erro é a promessa de uma conquista.
Só nos perdemos para encontrar terras ainda não visitadas.
Roger Bastide

o estudo das trajetórias sociais complexas e da neurose de classe nos levou a percorrer um
campo multidimensional entre a sociologia da reprodução e a psicanálise, fazendo, ao
mesmo tempo, incursões pelo domínio da história, da etnologia, da psicossociologia, da
fenomenologia e da economia. Os destinos individuais se inserem em um movimento
produzido pelas interferências entre a lógica da distribuição antroponômica, que tende a
dividir os indivíduos dentro da estrutura social segundo uma ordem hierárquica estável, e a
lógica da historicidade, que cria uma distância entre a ordem estruturada dos lugares e os
atores sociais. Em um nível mais existencial, esse movimento dialético acontece entre uma
lógica de programação que conduz o indivíduo a se conformar com sua herança e uma lógica
do desejo e de transgressão que o impele a se construir na diferença, a se manter em busca de
outros modelos além daqueles que lhe foram atribuídos, a inventar outras possibilidades
além daquelas que lhe foram designadas como prováveis.
Portanto, não se trata apenas de ocupar os lugares disponíveis, mas também de contribuir
para produzi-los. Essas "invenções" exigem um trabalho de distanciamento e de
transformação entre o indivíduo tal como é produzido e aquele que se constrói ao realizar
e/ou sofrer esses deslocamentos.
Esse movimento é contraditório: gera equilíbrios e rupturas, rigidez e questionamentos,
bloqueios e transformações, adaptações e rejeições, reprodução e mudança. Essas
contradições permeiam os diversos níveis constitutivos do ser humano, o que encobre a
palavra "identidade”.
A análise dos conflitos de identidade, portanto, é um campo privilegiado para captar o
caráter dialético e multi dimensional desse movimento, principalmente no caso dos
indivíduos que pertencem simultânea ou alternativamente a grupos sociais diferentes e cujos
contatos são marcadas por relações de dominação. As relações entre as classes sociais não
são exclusivamente de exploração. A dominação e a diferenciação se transmitem no nível
simbólico, relacional, afetivo e emocional por uma série de mediações que vemos em ação
na história familiar, nas relações interpessoais e no aparelho psíquico.
184 • A neurose de classe

Assim, pode-se pôr em evidência o quadro clínico que caracteriza uma configuração
neurótica singular nas pessoas que mudam de classe social. Na neurose de classe, assiste-se a
uma influência correspondente entre, de um lado, os conflitos engendrados por uma
trajetória que atravessa universos sociais antagônicos e, de outro, aqueles ligados ao
desenvolvimento psicossexual do indivíduo.
É o apoio recíproco entre esses conflitos de natureza diferente que produz a neurose. Essa
tese leva a discutir o papel respectivo dos fatores sexuais e sociais nesse tipo de neurose,
principalmente no que diz respeito à gênese do sentimento de culpa, à evolução do complexo
de Édipo e ao fenômeno do desdobramento. Ela nos permite compreender melhor o papel da
humilhação e da invalidação no surgimento dos complexos de inferioridade e superioridade.
Enfim, ela nos permite esclarecer os diversos mecanismos de defesa característicos da
neurose de classe: o fechamento sobre si, o superinvestimento no trabalho, a clivagem do Eu,
o fantasma do romance familiar.
O resumo desses diversos pontos leva a lhe situar os limites. Embora pareça apropriada para
designar os diversos elementos de uma patologia própria das pessoas desclassificadas, e
ainda que provoque, nessas mesmas pessoas, um esclarecimento sentido imediatamente
como adaptado a seu mal-estar, a expressão "neurose de classe" nos prende ao terreno da
patologia e da terapia.
A metodologia que adotamos não nos permite pretender que descobrimos uma nova forma
de neurose. O material recolhido limita o exame das questões inconscientes dos conflitos
aqui descritos. A seleção que realizamos nos conduziu a manter apenas os indivíduos
capazes de reconstruir sua história, ou seja, aqueles que, intelectual e psicologicamente,
conseguem elaborar uma representação própria que lhes permita se afastar, pelo menos em
termos parciais, da inibição e do sofrimento.
As hipóteses que nos permitimos produzir só serão definitivamente validadas a partir do
momento em que possam ser utilizadas em um quadro terapêutico. Os reflexos provocados
por nosso trabalho em psicólogos clínicos nos autorizam a pensar que a problemática que
defendemos permite uma melhor compreensão dos casos que eles são levados a tratar.
Outro limite de nossa abordagem está ligado ao fato de que as tentativas de
descompartimentação de disciplinas correm o risco da generalização globalizante. Não existe
teoria geral que permita pensar na "personalidade total”. Essa ausência se liga à
multiplicidade de fatores de ordens diferentes que constituem a pessoa humana.
Cada um desses registros foi objeto de investigações e teorizações específicas. Essa divisão
parece uma condição necessária para perceber as leis que presidem o funcionamento de cada
fator. O trabalho de construção do objeto leva a reduzir, definir e circunscrever a realidade
observável. Assim, os conflitos que caracterizam a trama de uma história individual não
constituem em si um objeto de estudo, porque são multidimensionais, ainda que essas
diversas dimensões estejam interligadas.
Os conflitos somáticos, psicossomáticos, psíquicos, relacionais, culturais, econômicos,
políticos, sociais etc. obedecem a leis que lhes são próprias, ainda que, para o indivíduo que
os enfrenta, essas divisões permaneçam formais. A pessoa dentro desses diversos
componentes é tocada por um conflito sem que possa identificar facilmente as causas e
efeitos e diferenciar os vários elementos. Só se pode apreender cada um deles por uma
"construção" científica específica, mas cada uma dessas construções precisa ser
desconstruída para que se identifiquem as ligações existentes entre elas.
Por uma sociologia clínica • 185

Portanto, para que seja possível um trabalho interdisciplinar é necessário, como propôs
Gaston Bachelard, construir um sistema com várias entradas.
Mas essa proposta que tentamos manter se choca com duas dificuldades principais.

1. Cada entrada determina uma problemática, uma especificidade no trabalho de


construção do objeto, nas escolhas conceituais e nas opções metodológicas. Ela induz na
pesquisa uma linha de ação na qual o aprofundamento é sempre possível. O problema,
portanto, é situar a partir de que ponto essa lógica não funciona mais em relação aos
objetivos de conhecimento. Em outros termos, é difícil determinar, quando a teoria não
permite apreender um fenômeno, se isso se deve à insuficiência do aprofundamento ou aos
limites da própria teoria.
Assim, os psicanalistas poderão achar que nossa análise da neurose continua superficial,
especificamente no que concerne à análise da dinâmica inconsciente dos conflitos e
processos de recalque. Do mesmo modo, certos sociólogos poderão argumentar sobre a
ausência de representatividade dos casos apresentados e as condições de produção dos
discursos que têm sobre si. A consciência aguda dos impasses provocados pelo sociologismo
e pelo psicologismo podem, portanto, se voltar contra quem a tem, acusado de não fazer
sociologia nem psicologia.

2. A adoção de várias entradas se arrisca a desembocar em uma justaposição de


abordagens, cada uma com pertinência e lógica próprias, dando uma visão fragmentada e
não articulada do fenômeno estudado.

Temos consciência de que encontramos esses diversos limites sem, entretanto, ultrapassá-los
completamente. Trata-se agora de continuar essa pesquisa. A dificuldade vem do fato de
tratarmos de um domínio não desbravado no qual seguimos pistas em vez de um campo
claramente definido que é preciso demarcar.
As perspectivas criadas com esse trabalho brotam logicamente desses limites. No nível
teórico, trata-se de aprofundar a reflexão sobre uma teoria da articulação que leve em conta a
natureza diferente dos processos sociais e dos processos psíquicos, tentando ao mesmo
tempo entender como interagem. Com muita frequência, a psicologia social e a
psicossociologia se restringem a construir objetos à margem das disciplinas das quais se
ramificaram. Elas só adquirirão reconhecimento científico na medida em que souberem
sistematizar a dimensão sociológica dos processos psicológicos e a dimensão psicológica dos
fenômenos sociais.
Sem dúvida, é no nível metodológico que as perspectivas são mais ricas. A atual proliferação
de pesquisas que se apoiam sobre relatos de vida mostra isso muito bem (Gaulejac, 1984).
Mas elas só obtêm resultado na medida em que saibam ultrapassar as diversas ilusões que as
caracterizam com tanta frequência: a ilusão retrospectiva, a ilusão do sujeito, a ilusão
empírica, a ilusão biográfica. Entre o subjetivismo e a objetivação positivista, entre o
sociologismo e o psicologismo, entre a estatística e a discussão mais ou menos dirigida, há
lugar para métodos que permitam captar os fatos e sua representação sem confundi-los,
compreender a história do indivíduo concreto e a palavra do indivíduo sobre sua história sem
assimilar uma à outra.
No nível clínico, parece-nos importantíssimo desenvolver a pesquisa e a tomada de
consciência, principalmente nas práticas terapêuticas, da gênese social dos conflitos
psicológicos. Embora exija o trabalho sobre si, o tratamento dos conflitos vividos
186 • A neurose de classe

passa igualmente pela análise das condições sociais da produção dos conflitos. Essa
articulação nasce de uma disciplina que precisa ser construída: a sociologia clínica.
Sociologia porque se trata de entender como a dinâmica das contradições sociais e o peso
das estruturas intervêm sobre o destino individual para lhe canalizar o sentido, ou seja, sua
direção e a representação que o indivíduo faz dele.
Clínica porque a análise dos processos sociopsicológicos só é completamente "validada”
(isto é, ao mesmo tempo verificada e valorizada) quando à conceituação corresponde uma
experiência vivida à qual a hipótese dá sentido e coerência.
EPÍLOGO

Quando da primeira edição, enviei este livro a Annie Ernaux, que eu não conhecia. Sua
resposta é um depoimento e uma validação. Ao mesmo tempo em que reflete uma
experiência subjetiva, a análise assume uma nova dimensão. A pesquisa clínica se constrói
nesse vaivém permanente entre as tentativas de conceituação e a escuta do vivido.

Carta de Annie Ernaux


26 de dezembro de 1987

A Vincent de Gaulejac,
Naturalmente, não foi sem alguma apreensão que abri seu livro A neurose de classe,
receando, depois desse título, me sentir um caso clínico ilustrado pelo que escrevi.
Depois de terminar a leitura, creio que o senhor fez um estudo notável em geral e, no que
me concerne, absolutamente justo. De imediato sua abordagem me interessou bastante:
eliminar o "buraco" entre a sociologia e a psicanálise, ver como se articulam as duas
“cenas”, compreender o modo como o social e o histórico são representados na história
individual. De maneira diferente, é isso que também busco, através do que se convencionou
chamar de literatura, em oposição ao que o senhor faz, a ciência. (O último livro que
escrevi que vai sair em janeiro, traz a marca dessas preocupações.)1
A descrição e o esquema que o senhor constrói sobre a neurose de classe (mas confesso que
essa expressão ainda me aflige, me parece “congelar” os conflitos e condutas, que, de fato,
evoluem com o tempo) me parecem inegáveis, e o fato de o deslocamento social determinar
os outros conflitos é, para mim, uma evidência ofuscante. Para reduzir a extremos, eu diria:
"Meus pais eram deuses, descobri pouco a pouco que não o eram, que eram desprezados".
Essa descoberta, ao menos, tenho certeza, se baseou em uma série contínua de sensações, de
experiências cuja marca a memória guardou. A descoberta de que fala Freud, não a nego,
mas ela não me "interessa": não é objeto de experiências, não

___________
1. Trata-se do livro Une femme, NRF Gallimard, Paris. 1988.
188 • A neurose de classe

tenho "lembrança" dela (mas talvez imagens e paralelos permitam entender os conflitos
edipianos no núcleo da escrita).
Há apenas uma questão que eu gostaria de discutir; na página 63, o senhor menciona o
investimento na escrita como função psicológica e social e fala do ''distanciamento do
artista que permite se considerar sempre além de onde está objetivamente situado", Sim, em
geral o artista se quer "além" e inclassificável, mas exatamente nos “armários vazios" do
"Lugar" há essa recusa de estar "além", descartando toda abordagem fictícia. Igualmente, a
própria natureza do que escrevo o ato de trazer à luz o deslocamento, não será uma
maneira declarada de me "situar"? Ou seja: alguém passou da classe dominada para a
dominante? E há mais do que a escrita, há o dizer, por exemplo, em um encontro, em uma
conferência, porque, de hábito, isso não se diz, somos "escritores" e só (entre parênteses, o
sociólogo também evita se situar... ''de onde" ele vem... e, por exemplo... que interesse o
levou a estudar a neurose de classe?)
Talvez houvesse muitas outras coisas a dizer sobre as relações entre origem social e escrita
(mas, é claro, isso não entraria no escopo de seu estudo)...
Com toda a minha simpatia e meus votos de sucesso para sua obra, que o merece.
Annie Ernaux
A neurose de classe define as principais característi-
cas dos conflitos psicológicos vinculados com a desclassifi-
cação social. Remete à intrincação sistêmica entre conflitos
sociais e psíquicos que se apoiam no sentido de um for-
talecimento mútuo. O termo é ambíguo no plano teórico,
porque tende a associar uma noção clínica e uma noção
sociológica que não têm vínculo direto entre si: as clas-
ses não são neuróticas, as neuroses não dependem das
classes sociais. No entanto, permanece porque tem uma
ressonância particular nas pessoas cujos conflitos psicoló-
gicos estão ligados a uma desclassificação. Na subjetivi-
dade destas pessoas existe um estreito vínculo entre sua
trajetória social e as dificuldades psíquicas que enfrentam.
Quando falamos de "neurose de classe", caracterizamos
um quadro clínico que descreve a sintomatologia dos in-
divíduos que mudam de posição na estrutura de classes. A
descrição desse quadro permite esclarecer o papel respec-
tivo que os fatores psicossexuais e sociais desempenham
na gênese e desenvolvimento deste tipo de neurose.

Vincent de Gaulejac, sociólogo, professor na Uni-


versidade Paris-VII- Denis Diderot, é autor de diver-
sas obras. Dirige o Laboratório de Mudança Social
desde 1981. Membro fundador do Instituto Inter-
nacional de Sociologia Clínica, é um dos principais
iniciadores desta orientação científica que se interessa pela dimensão
existencial das relações sociais. Desenvolveu grupos de implicação e de
pesquisa em vários países da Europa, América do Sul e do Norte. Suas
pesquisas o levaram a explorar a neurose de classe, as origens da ver-
gonha, a luta dos lugares, o custo da excelência, a sociedade doente da
gestão ou ainda as causas do mal-estar no trabalho .

.L. JI

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