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RESUMO: Inspirado, sobretudo, no novo Testamento e na teologia de alguns dos primeiros Padres
da Igreja, o texto aborda a questão da dignidade e grandeza do corpo huma¬no, em perspectiva
teológica. A doutrina cristã sobre o corpo conheceu muitos vaivéns ao longo da história. Porém,
nela perpassa a certeza de que o Verbo assumiu a fragilidade da carne humana, sem absorvê-la,
e a elevou, também em nós, a uma dignidade sem igual. O Filho de Deus, por sua encarnação,
uniu-se assim a todo homem. A chave está ai, na imagem de Cristo que o corpo do primeiro
Adão já reproduz antecipadamente. Haveria, acaso, uma grandeza maior, uma maior dignidade
no mistério do homem que só se esclarece no mistério do Verbo encarnado? Por outro lado, a 141
imagem do corpo está ligada intimamente à eucaristia, que é, segundo o Novo Testamento, a
forma a mais adequada para aproximarmos deste mistério. Uma outra imagem que nos leva a
considerar a grandeza do corpo humano é o matrimonio. O homem e a mulher serão uma só
carne, mistério que nos remete à profunda união corpórea de Cristo com sua Igreja. Por fim, é
preciso lembrar como dizia Sto. Irineu: “ o criado se emprenha do Verbo, e ascende com ele, acima
dos anjos e se faz imagem e semelhança de Deus”.
SUMMARY: Inspired above all in the New Testament and in the theology of some of the early
Fathers of the Church, the text addresses the question of the dignity and grandeur of the human
body. Christian doctrine about the body has known many oscillations throughout history. But in it
is the certainty that the Word has assumed the fragility of human flesh without absorbing it and
raised it, there is also an unequaled dignity in us. The Son of God, by his incarnation, thus united
himself to every man. The key is there, in the image of Christ, which the body of the first Adam
16 Ireneo de Lyon. Adv.Haer. III, 19,3 (SCH 211,280). Cf. também ib. V 15,2 (SCh153-204) sobre
a cura do cego de nascimento e outras passagens bíblicas para desenvolver a mesma ideia
17 Ib. V 36,3 (466).
18 In Mt. 6,1 (SCh 254,170); Tnn. VI43 (CCL 62, 247)
19 In Mt 18,6 (SCh 258,80), também ib. Trin. II 24 (CCL 62,60): “Assim como todos os homens
foram incorporados a ele pelo corpo que quis assumir, de mesmo modo ele, por sua vez,
se deu a todos por meio daquele que nele é invisível”.
20 Contra Apollinarem 16 (PG 1153). S. Cirilo de Alexandria. In Joh. ev. 0 (PG 73, 164:
”O Verbo habita em todos, num templo, quer dizer, naquele que assume de nós e
por nós, de modo que, contendo-nos todos nele, reconcilia todos num só corpo,
como diz Paulo (cf. Ef. 2,16)..”.
Igreja em sua unidade indivisível21: ”Assim como a cabeça e os membros de um
corpo vivo, ainda que não se identifiquem, são inseparáveis. Cristo e a Igreja não
se podem confundir, porém tão pouco separar-se. Eles constituem um só “Cristo
total”..22
3. “SALUS CARNIS”
24 Cf. S. Justino. Apol. I 39.4 (PTS 38,87); trata-se de una citação de Eurípides.
dimensão espiritual 25. Não necessitamos insistir neste ponto. Estas formulações
entraram no magistério da Igreja; recordemos o concilio de Viena (DH 902) e
o de Latrão V (DH 1440). O concilio Vaticano II se fez eco deste ensinamento
na constituição pastoral Gaudium et Spes, integrando-a com os elementos da
doutrina do novo Testamento, ao que já nos referimos:
Na unidade de corpo e alma (corpore et anima unius) o homem,
por sua própria condição corporal sintetiza em si os elementos
do mundo material de tal maneira que por seu intermédio
alcança o seu ponto mais alto e alça a voz para o louvor livre
ao criador. Por tanto não é lícito ao homem desprezar a vida
corporal, mas que, pelo contrario, deve considerar seu corpo
como bom e digno de honra, como criatura de Deus que há de
ressuscitar no último dia. Ferido pelo pecado, experimenta, sem
dúvida, as rebeliões do corpo. A mesma dignidade do homem
pede que glorifique a Deus em seu corpo... (GS 14) 26.
25 Cf. STh I q.76 a. 1.4: ib. I q.29. a.l. ad 5: «anima est pars humanae speciei [...]. Et sic
non competi* ei neque definitio personae neque nomen»
26 Cf. o comentário a este texto de J. Ratzinger Kommentar zum ersten Kapnei des
Ertsten Teils der Pastorelenkonstituition überder Kirchein der Welt von heute” Gaudium
et Spes”, em id. Gesammelte Schriftem 7/2, Freiburg-Basel-Wien 2012, 795-862, 811-
816.
27 A. Orbe. La definición del hombre en la teología del s. II: Gr. 48 (19670 522-567, 575.
Para este artigo me inspirei muito para o que segue.
A razão última, porém - e sobre este ponto insistiremos na continuidade
- é sua condição de imagem e semelhança com Deus. Assim dizia já Taciano:
«Somente o homem é imagem e semelhança de Deus. Digo homem não ao que
se comporta como os animais, mas, indo mais além da natureza humana, ao
que se une a Deus mesmo [...]. E se a forma [do corpo] assim constituída fosse
como um templo, Deus desejaria habitar nela mediante o Espírito seu legado».28
E o anônimo De resurrectione, atribuído por muitos a santo Justino: “Façamos o
homem a nossa imagem e semelhança” (Gn 1,26) qual homem? É claro que se
refere ao carnal [...] e tomou Deus barro da terra e modelou ao homem’’ (Gn 2,7).
Evidentemente o homem enquanto plasmado à imagem de Deus era carnal.
Além do mais é absurdo dizer que a carne modelada por Deus a sua imagem
é vil e sem nenhum valor. Visto que está diante de Deus, a carne é algo
precioso [...], pois, foi plasmada por ele, como imagem que nasce agradecida
a quem a modela e dá sentido”.29
Irineu insiste, como já vimos, na salvação da carne por obra do Espírito:
a alma. dotada de liberdade, estaria de algum modo em função desta salvação 151
da carne: “São três as coisas de que constituem o homem perfeito: a carne,
a alma e o Espírito. Uma delas é a que o salva e o configura: o Espírito; outra
a que é unida e conformada: a carne; e a que está entre estas duas: a alma.
Esta algumas vezes, quando segue o Espírito, é elevada por ele; porém, outras
vezes, quando está de acordo com a carne, cai nos desejos terrenos».30
Tertuliano insiste nesta “primazia” da carne com uma argumentação muito
curiosa: em primeiro lugar, segundo Gn 2,7, Deus formou o homem do barro31
e depois soprou sobre ele. A alma, segundo esta leitura, vem do sopro de Deus
sobre o homem; quer dizer, o corpo. Em segundo lugar porque - segundo são
Paulo, o corpo é o substrato comum entre o estado presente do homem e o do
futuro - «se semeia um corpo animal, ressuscita espiritual», e, por conseguinte é o
substrato que permanece e é comum ao primeiro Adão e ao segundo; o primeiro
feito alma vivente e o segundo Espírito que dá vida (cf. 1 Cor 15,44-46):
28 Taciano, A los griegos 15 (cf. D. Ruiz Bueno, Padres apostólicos y apologistas griegos,
Madrid 2009,1301-1302).
29 De Resurrectione, 7 (cf. Orbe o.c., 538-539).
30 Adv. Haer. V 9,1 (SCh 153, 106-110).
31 Adv. Marcionem I 24,5 (CCL 1,467-468): «Que é o homem, senão a carne? [ ] “E Deus
fez o homem - disse- barro da terra” (Gn 2,7), não a alma. Pois a alma procede do
sopro: “E o homem foi feito alma vivente” (ib.; cf 1 Cor 15,45); Quem? Certamente
aquele que procede do limo. “E Deus colocou o homem no paraíso” (Gn 2.28), o
que formou, não o que insuflou: portanto o que é carne, não o que é alma».
Se Adão foi o primeiro homem e a carne é o homem antes do
surgimento da alma, sem dúvida a carne foi feita alma vivente [...]
assim, pois, pela razão pela que corresponde chamar à carne de
corpo animado, em nenhum momento corresponde à alma ser
chamada assim. A carne é, pois, antes corpo que corpo animado
[...], pois, se o primeiro homem, Adão, foi carne, e não alma, que
depois foi feito alma vivente, e o último Adão é Cristo, é adão por
ser homem, e é homem por ser carne [...] e assim acrescenta: “não
é primeiro o que é espiritual, mas que o que é animal; depois o
que é espiritual”, segundo um e outro Adão».32
Já nos referimos à união dos cristãos no corpo de Cristo que é a Igreja. Esta
comunhão alcança seu ponto mais alto na participação na eucaristia, posto que
todos comemos de um mesmo pão e bebemos de um mesmo cálice: «Porque
154 o pão é um e, nós, sendo muitos, formamos um só corpo, pois todos comemos
do mesmo pão » (1 Cor 10,17). O corpo mortal de Cristo foi entregue por nós (cf.
Lc 22,19; 1 Cor 11,24), e este mesmo corpo glorificado, faz-se presente no meio
de nós na eucaristia. Ela é o lugar onde somos introduzidos na comunhão com
Deus e entre nós. A carne e o sangue são em Cristo o meio de comunicação da
vida divina, a garantia da vida eterna e da ressurreição (cf. Jo 6,53-57).
Em outras passagens do Novo Testamento, a carne e o sangue não têm
este significado positivo (cf. Mt 16,17; Jo 1,13; 6,63; 1 Cor 15,50, sem falar dos
lugares paulinos em que a carne tem um significado direta ou indiretamente
pecaminoso: Rom 8,5-9; Gál 5,16-25). A realidade humana é radicalmente
transformada por obra de Cristo. A assunção do corpo por parte de Cristo é
o instrumento da comunicação do Espírito que nos une num só corpo: «O
Verbo e Filho do Pai unido à carne, se fez carne como homem perfeito, para
que os homens, unidos ao Espírito se tornem um só espírito. Ele é o Deus
portador da carne (sarkofo, roi) e nós homens somos portadores do Espírito
(pneumatofo,roi)»38. É uma versão muito bonita da muito conhecida doutrina
do intercâmbio que tem em conta a condição original de Cristo como Filho de
Deus e a nossa de Filho do homem39.
37 Cf. p. ex. Catecismo da Igreja Católica, 364. 382.
38 Atanásio de Alexandria, De incarnatione Verbi et contra arianos 8 (PG 26,996).
39 Irineu de Lion, Adv. Haer. V prol. (SCh 153,14): «... nosso Senhor Jesus Cristo [...] se fez o
que nós somos para tornar-nos perfeitos com sua perfeição (ut nos perficeret esse quod est
ipse)». Outros exemplos da literatura patrística em L. Ladaria, Teologia dei pecado original y
de la gracia, Madrid 62012, 151.
A consideração sobre eucaristia nos leva de novo à Igreja como corpo de
Cristo ao qual já nos referimos. É precisamente a metáfora do corpo que permite
a Paulo expressar a união íntima de Cristo com os batizados e destes entre si.
Não vamos repetir o que já indicamos. A imagem do corpo, ligada intimamente
à eucaristia, é a que, segundo o Novo Testamento, se torna a mais adequada para
nos aproximarmos deste mistério.
6. UMA SÓ CARNE
Santo Irineu termina sua grande obra Contra as Heresias com um canto
à grandeza do homem, conformado e “concorporificado” ao Filho de Deus. Já
temos feito alusão a esta passagem. Cito-a agora por inteiro, com consciência de
40 Cf. o exaustivo estudo de J. Granados, Una sola carne en un solo espíritu. Teologia del
matrimonio, Madrid 2014.
sua audácia, sem comentário, como resumo de quanto estamos considerando
nas páginas precedentes:
Traduziu HR
41 Cf. S. Leão Magno, Sermo 1 de Asc. (PL 54,396): «...super omnium crea- íurarum
celestium dignitatem, humani generis natura conscenderet, supergressura
angélicos ordines. et ultra archangelorum altitudines elevanda».
42 Adv. Haer. V 36,3. Estou usando a tradução, com alguma pequena mudança, de
A. Orbe, Teologia de San Ireneo. Comentário al libro V dei «Adversus Haereses» III,
Madrid-Toledo 1988, 622-665. Veja-se ainda o exaustivo comentário do texto nas
pp. citadas.