Sunteți pe pagina 1din 17

A PERDA DA CONTEMPLAçãO SERENA E A PERCEPçãO

COLABORATIVA NUM PISCAR DE OLHOS

THE LOSS OF SERENE CONTEMPLATION AND COLLABORATIVE


PERCEPTION, AT A GLANCE

Alexandre Emerick Neves


PPGA-UFES

A partir dos modos de figurar o corpo, procuro discutir a noção de presença na experiência artísti-
ca como algo indissociável da ideia de colaboração. Com a proposição de uma discussão ampliada
sobre a presença colaborativa do espectador, busco certa aproximação do pensamento fenomeno-
lógico com os comentários de Didi-Huberman sobre o característico anacronismo no pensamento
de Aby Warburg. Para esquivar-me da concentração nas especificidades de certas propostas con-
temporâneas, submeto a inclinação do corpo em figurar-se a um olhar histórico mais amplo, desde a
figuração clássica à apreensão da presença do espectador como corpo figurado em obra.
Palavras-chave: Corpo, presença, contemplação, colaboração.

From ways to represent the body, I seek to discuss the idea of presence in artistic experience as some-
thing inseparable from the idea of collaboration. With the proposition of a broader discussion about the
collaborative presence of the viewer, I pursue some closeness of phenomenological thinking through Didi
-Huberman comments on the anachronism at Aby Warburg’s thinking. To skip from the concentration on
specificities of certain contemporary proposals, I submit the body’s representation to a broader historical
look, from the classical representation to the seizure of the viewer’s presence as body figured in work.
Keywords: Body, presence, contemplation, collaboration

17
farol

As inquietações advindas das experiências meia as possibilidades de nossa ação sobre os


em minhas aulas de arte contemporânea, so- outros e as coisas ou dos outros e das coisas
bretudo as discussões suscitadas pelos tópi- sobre nós. O pensamento fenomenológico intui
cos relativos às propostas colaborativas, me a percepção como algo essencialmente orienta-
induziram a buscar uma reflexão que demande do para a ação, isso por que “a percepção não é
certo anacronismo ao considerar a colaboração apenas um enquadramento”,1 o que corrobora
como um elemento constitutivo da experiência a ideia arganiana de arte como “uma modali-
artística. dade histórica do agir humano”.2 Dessa relação
Sem a pretensão de inaugurar qualquer con- entre perceber e agir podemos rever algumas
ceituação, mas com o cuidado também de não argumentações acerca da apreensão da obra
restringir o debate, com esse trabalho minha de arte, como a imposição de uma teatralidade
intenção não é outra senão a de apresentar, de comentada por Michael Fried, acerca dos obje-
um modo sucinto, como a ideia de colaborati- tos minimalistas. 3 Neste caso, ainda que o dado
vidade na experiência artística permeia minhas participativo não seja alcançado pela ação ma-
pesquisas referentes à temporalidade entre nipuladora direta do espectador sobre a obra,
corpos, caminhos e lugares, principalmente em a percepção do objeto leva o observador a mo-
relação à noção de presença na experiência ver-se, e sua ação gera novos modos de apre-
artística. Desse modo, entendo como colabo- ensão do objeto em relação ao espaço que os
rativa não somente a disposição do corpo em liga. A imagem do objeto é alçada à consciência
dar e receber algo em sentido literal; estender na duração da percepção depurada em ação e
a mão, tocar e manipular objetos, andar e pene- reação. E mesmo na pintura, a indissociável re-
trar ambientes. Tentarei demonstrar como dis- lação entre perceber e agir pode ser ressaltada,
cussão ampliada sobre a presença colaborativa desde a feitura até a recepção da obra de arte,
do espectador, para além das especificidades como nas imagens do monte Saint Victoire, ela-
de certas propostas em arte contemporânea, boradas por Cézanne, nas quais o potencial ati-
parte da premissa da irredutibilidade da experi- vista da percepção é revelador da amplitude do
ência artística, pois admite aprioristicamente a processo artístico. Assim, a genialidade da Dúvi-
espectação como algo indissociável da ideação, da de Cézanne4 advém de um entendimento am-
execução e apresentação da obra de arte. pliado do que é o processo artístico, da ideação
Assim, esta modesta reflexão parte do aspec- e da execução da obra alinhada ao pensamento
to sereno do ato contemplativo para conduzir- receptivo. Dessas imagens despontam tanto o
nos à premissa colaborativa da percepção, que domínio dos recursos pictóricos quanto o ato
incide na inclinação do corpo em figurar-se. de rodear o monte e suas motivações.
Tomado de uma profunda consciência da pre- Na apreensão de uma obra de arte, a tomada
sença, ver e ser visto são tidos como exercícios de consciência da presença é fundamental para
de afecção mútua. Imerso na intensa atmosfera
entre exposição e espectação, o corpo mostra- 1 Roberto Machado, Deleuze, a arte e a filosofia, p. 257.
se incansável na busca de elaborar figuras de si. 2 Giulio Carlo Argan, Arte moderna, p. 509.
Senti a necessidade de partir do entendimen- 3 Michael Fried, Arte e objetidade, in: Arte & Ensaios n° 9,
passim.
to de que perceber tem íntima aproximação
4 Maurice Merleau-Ponty, A dúvida de Cézanne, passim, in:
com o agir. A percepção, basicamente, entre- Id., O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

18
Simoni Martini, A
anunciação, de
1333

que o espectador se veja como parte de uma junto à própria edificação da História da Arte: o
experiência potencialmente ativa. Por jamais olhar pictórico. Sem exagerar muito, posso dizer
ser passiva, a percepção ressalta a ideia de que que é quase como uma História do Olhar Pictóri-
participar é antes de tudo saber estar presente, co que se instaurou.
e saber sua presença como disponibilidade de Rever a repercussão do discurso formalista,
colaboração àquilo que se presencia e, conse- ainda que de modo ligeiro, parece proveitoso
quentemente, de ser presenciado. neste ponto, e não se trata de alguma “chan-
Tratar a ideia de presença é um exercício in- tagem antiformalista”5 impulsionada por certa
dissociável da problematização dos planos de “indiscriminada fascinação (...) por Lacan, Der-
presentificação do corpo. Torna-se indispensá- rida, Foucault, Barthes, Kristeva, Baudrillard,
vel, portanto, um breve levantamento e questio- Lyotard, Deleuze, certamente estou esquecen-
namento de como o campo da arte tem tratado do alguns, todos autores confundidos e etique-
este tema, desde as especificidades dos planos tados sob um só rótulo “Theory””.6 O que de fato
de figuração artística ao plano de espectação. proponho é que, se “a tarefa do atual historia-
A influência de boa parte da crítica do século
5 Yve Alain-Bois, Viva o formalismo (bis), in: Glória Ferreira e
xx corrobora para a manutenção de uma quase
Cecília Cotrim, Clement Greenberg e o debate crítico, p. 246.
hegemonia de um tipo de olhar que se construiu 6 Idem, p. 245.

19
farol

dor de arte: resistência às diversas forças de cia histórica do olhar pictórico que se desdobra
chantagem intelectual”7 permanece válida em desde pelo menos o Renascimento.9 Ainda que
alguma medida, não se deve ceder à chantagem refute a figuração dos movimentos do corpo, tal
alguma, mesmo à “ladainha essencialista e ora- estética formalista ratifica a diferenciação dos
cular”8 de uma parcela da crítica formalista ba- planos e opõe ao plano da espectação a especi-
seada na dependência de Clement Greenberg, ficidade do plano de acontecimentos plásticos:
ao que chamarei apenas de purista.
Acontece que, mesmo com sua profunda di- Enquanto os grandes mestres criaram uma
mensão corpórea, temporal e espiritual, preten- ilusão de espaço em profundidade em que
de-se que a presença do espectador seja absor- poderíamos nos imaginar caminhando, a ilu-
são criada por um pintor modernista permite
vida no envolvente e complexo jogo formalista
apenas o deslocamento do olhar; só é possí-
de unidade e coerência interna da forma artís- vel percorrê-la, literalmente ou virtualmente,
tica, que desponta em sacrifício de um senti- com os olhos.10
do pleno de presentidade na sugestão de uma
serenidade contemplativa. Ao diagnosticar boa
parte da escultura modernista como uma espé- Assim, a ênfase dada ao retiniano na per-
cie de pintura no espaço, sobretudo a abstrata, cepção manifesta-se como o rebaixamento da
a crítica formalista purista dilata a preeminên- tatibilidade que lhe é própria. Mesmo frente às

9 Lembremos que o excelente ensaio que Greenberg escre-


Edouard Manet, veu em 1960 para desenvolver os conceitos fundamentais
Le Chemin de fer, à essência do modernismo na arte intitula-se Pintura
1872-1873. Modernista.
7 Ibid., p. 246. 10 Clement Greenberg, Pintura modernista, in: Glória Ferreira
8 Ibid., p. 246. e Cecília Cotrim, Clement Greenberg e o debate crítico, p. 106.

20
mais puristas formulações artísticas e teóricas ratifica que o espaço do acontecimento artís-
do modernismo, a apreensão retiniana deve ser tico não se deixa ocupar pelo espectador, que
tomada como um dos elementos constitutivos somente pode contempla-lo por um modesto
do olhar, que é aqui pensado como uma experi- movimento ascendente ao erguer a cabeça de
ência advinda da presença, particularmente no seu próprio lugar.
sentido de rejeitar a ideia de um sujeito desinte- Ainda que implique numa citação um pouco
ressado. Não se trata, portanto, da ocupação de extensa, e sem pretender um atalho para uma
um determinado ponto no espaço, mas de um história social da arte, para exemplificar alguns
corpo que sabe construir uma habitação no es- esforços para transpor tal abismo, parece perti-
paço ao sugerir possibilidades de movimentos, nente trazer a distinta análise de T. J. Clark so-
pois, “nossos corpos não estão no espaço como bre uma obra de Manet que encerra a visão do
as coisas; eles habitam ou assombram o espa- autor acerca da inscrição do tempo na pintura
ço”.11 Visto dessa forma, o corpo que habita o do cotidiano:
lugar é, mais que seguidor, propositor de cami-
nhos e roteiros. Sua presença inaugura, recebe, O vapor e a fumaça no pátio ferroviário, por
rejeita, adota ou assevera relações que “são exemplo, em Le Chemin de Fer, de Manet,
caminhos diferentes para o estímulo externo de pairam no ar por alguns segundos antes de
evaporar. Para a garotinha que observa, o
testar, solicitar e variar nosso domínio sobre o
tempo permanece imóvel. A mulher que le-
mundo”. 12 vanta os olhos para o espectador marca com
Cabe lembrar, também, que Rosalind Krauss o dedo o ponto de leitura em que parou, es-
levanta as características de um “espaço pic- perando o momento passar: nossa atenção
torizado”13 nas esculturas de Anthony Caro, so- é banal e efêmera (somos o transeunte mas-
culino que a arranca da identidade de go-
bretudo em relação à presença e ao posiciona-
vernanta e dama de companhia por um ins-
mento do espectador. A análise da obra Coche, tante, mas só durante o tempo que ela leva
de 1966, me parece bastante proveitosa neste para nos encarar de modo desconcertante),
ponto, pois a linha é carregada de um gesto de e logo sentimos que na verdade a mulher
ligação que entremeia as relações entre os gru- está em outro lugar, em meio ao devaneio do
pos de planos plásticos, com o acréscimo da romance que está lendo. Quadros são inter-
cepções: em um segundo, o ar vai clarear e
transparência resultante da trama dos planos
a leitora vai encontrar de novo seu lugar no
em grades que funcionam como hachuras,14 livro. (Ou seus lugares, para ser mais preciso:
características que instituem uma vista estabe- ela parece ir para frente e para traz na histó-
lecedora de uma distância específica, do modo ria, com o indicador e o polegar marcando
“como existe um abismo entre o espaço do ob- duas páginas diferentes). E, no entanto, o
livro em si, as páginas, as linhas impressas,
servador e o espaço de uma pintura”,15 o que
a capa com orelhas nas bordas; o cãozinho,
a pulseira, o leque fechado; a fita de cabelo
11 Maurice Merleau-Ponty, Um inédit de Merleau-Ponty, in:
da garotinha, o reflexo no chapéu de palha
Revue de Métaphysique et de Morale, nº4, pp. 401-409, apud
Christine Poggi, Seguindo Acconci/visão direcionada, in Arte
da governanta, são todos concretos e per-
& Ensaios nº 16, pp. 161. manentes – permanentes no simples fato de
12 Idem. estar diante dos olhos – como só a pintura a
13 Rosalind Krauss, Caminhos da escultura moderna, p. 228. óleo pode fazer.16
14 Idem, p. 231.
15 Ibid., p. 228. 16 TJ Clark, A pintura da vida moderna, p. 19-20.

21
farol

questionou se “já não se pergunta “o que sig-


O comentário de T. J. Clark mostra como é a nifica essa expressão?”, mas “”qual é a vonta-
personagem no quadro de Manet quem nos de- de exercida?”.18 Sem a pretensão de estender
nuncia a presença como passantes, como um o comentário sobre o conceito warburgueano
caminhante que lhe distrai por alguns instantes. de Pathosformel – tão bem conduzido por Didi
Ainda que na histórica posição de observador -Huberman e Philippe-Alain Michaud -, me con-
seja invocada a tradicional ideia de uma pos- centro na possibilidade de aproximação com
tura contemplativa passiva, a imagem gera em a fenomenologia para pensar contiguamente
nossa consciência o sentido de presença na o plano da expectação. Ao admitirmos que há
identidade de um caminhante urbano. Somos uma causa externa para o comportamento das
nós, espectadores, ainda que imobilizados pelo figuras de Martini, no sentido como Warburg
modo desconcertante como somos encarados, enuncia que as figuras “se movem num plano
os passantes que induzem a personagem a ele- paralelo ao espectador”,19 deve-se admitir, tam-
var a cabeça e fixar o olhar para fora do quadro. bém, que a disposição das figuras de Manet, ain-
Parece pertinente, com uma flutuação ana- da que se movam estritamente em seu plano,
crônica a mais, trazer a imagem dos corpos figu- está para além do plano de figuração artística.
rados no retábulo de Simoni Martini, A anuncia- Assim como a jovem de Martini é despertada
ção, de 1333. Basta reparar que um movimento por uma aparição, a menina de Manet olha para
semelhante ao executado pela personagem de o interior do seu plano entretida com a chega-
Manet é suscitado na mulher do painel central da espetaculosa da modernidade, de tal modo
pintado em têmpera sobre madeira para o altar que se mantém indiferente à nossa presença.
da Catedral de Siena, e que tal movimento tam- Porém, mais que a intuição da presença advin-
bém é motivado pela aparição repentina de um da pelo movimento da figura que “dá as costas
corpo. Até aquele momento, ela também estava ao espectador”.20 a presença tida como conver-
serenamente sentada e igualmente entretida gência dos planos é dada particularmente pelo
em sua leitura, tanto que repete outro gesto da movimento da mulher que, por um momento
mulher urbana da era industrial: intuitivamente de displicência em relação à menina que está a
marca com os dedos o ponto de interrupção seus cuidados e a despeito da estrondosa vida
da leitura do livro que tem em mãos. Mas no moderna ao seu redor, dirige seu olhar expres-
caso da pintura italiana do século xIV, a figura samente para fora do quadro onde se encontra
da Virgem sofre uma intensa torção ao elevar a a causa de seu movimento, uma causa externa
cabeça, pois seu olhar se dirige para o seu lado à figura e também ao plano de figuração. Esse
direito, no interior do seu plano, lugar próprio de breve levantamento auxilia a discutir como a
figuração da aparição e corporificação do anjo, figuração dos movimentos do corpo é revelado-
o plano artístico pictórico. ra, acima de tudo, da força que o move, pois o
Com o exercício de cruzamento de olhares -
hoje já muito bem comentado, sobretudo por 18 Aby Warburg, apud Philippe-Alain Michaud, Aby Warburg
Michel Foucault, em Las meninas17 - Warburg e a imagem em movimento, p. 87.
19 Idem.
20 Há um conhecido precedente histórico deste gesto no
17 Michel Foucault, Las meninas, in: Id., As palavras e as afresco de Giotto A lamentação de Cristo, na Cappella degli
coisas: uma arqueologia das ciências humanas, pp. 3-21. Strovegni, em Pádua.

22
corpo, da figura ou do espectador, parece saber quentemente, devo avaliar como a ativação e
que é um ser móvel, movido e movente. o adensamento dos modos de percepção po-
Por força da consolidação do olhar pictóri- dem ser associados ao pensamento artístico
co, autores como Carl Einstein e Daniel-Henry envolvido em boa parte da produção escultó-
Kahnweiler chegaram a classificar a tradicional rica contemporânea. Richard Serra declarou
escultura cristã como “a pintura que não ousava estar interessado em “como evoluiu o modo de
dizer seu nome”.21 Com base na teoria de Adolf percepção da obra”24 e argumentou que “elas
von Hildebrand, esses autores admitiam que “o não existem para ser vistas como objetos pre-
frontalismo e o pictorialismo eram aberrações ciosos, mas para ser experienciadas de modos
resultantes do medo do espaço, do medo de ver diferentes”.25 Em obras como Intersection II, de
o objeto escultural se perder no mundo dos ob- 1992, o espectador é o caminhante, e não se
jetos, do medo de ver os limites da arte ficarem trata de mover-se em torno de uma escultura
indefinidos à medida que o espaço real invadia de modo tradicional, pois a obra não é apenas
o espaço imaginário da arte”.22 Mas é interessan- algo tridimensional, um objeto no espaço para
te notar como de fato ocorreu uma contribuição ser visto em suas relações internas em diferen-
significativa da escultura do século xx para que tes ângulos, nem é o espaço dado à contempla-
esse medo fosse superado, a ponto da situação ção, mas este se impõe como um campo a ser
ser praticamente invertida e chegar-se a uma percorrido, um complexo de coisas e espaços,
ampla disseminação da convergência dos pla- um emaranhado de forças que cinge as coisas
nos, como supõe o diagnóstico de Hal Foster e o espectador e no espaço, uma obra dada por
– para quem Hélio Oiticica e Lygia Clark seriam esse complexo de relações na duração do pro-
proeminentes antecessores – sobre a quantida- cesso perceptivo.
de de propostas de performances e instalações Entretanto, devo afastar o risco de parecer
interativas nas últimas décadas. Ao referir-se à displicente com as recorrências da ideia pic-
obra de Rirkrit Tiravanija, Foster desconfia de torialista da escultura. Ao demonstrar não ser
certa exploração da perplexidade do especta- este um pensamento isolado, Charles Harisson
dor e, mais que isso, o crítico americano suge- e Paul Wood discutem uma nova escultura te-
re que uma possibilidade de “resultado desta orizada por Greenberg como “a nova arte de
forma de trabalhar é uma ‘promiscuidade das desenhar no espaço”,26 cujas origens seriam
colaborações’”.23 pictóricas e estariam associadas às experiên-
Sem perder de vista o alerta de Foster, sobre- cias com a colagem e a construção. Mas o que
tudo quando tratarmos diretamente de uma procuro enfatizar com este ligeiro comparativo
performance instalativa, mais adiante, e talvez entre itinerários é como a experiência com o
por conta dele, procuro ressaltar que a franca tempo nos percursos evocados por obras como
proximidade dos planos, talvez indistinção, Intersection II - caminhar através dos corredores,
desponta na justa medida em que sobressai para dentro e para fora da estrutura escultóri-
o aspecto colaborativo da percepção. Conse- ca – implica em esquadrinhar, na e com a obra

21 Yve Alain-Bois, A pintura como modelo, p. 94. 24 David Sylvester, Sobre arte moderna, p. 592.
22 Idem. 25 Idem.
23 Hal Foster, Chat rooms, in: Claire Bishop, Participation, 26 Paul Wood, Modernismo em disputa: a arte desde os anos
p. 191. quarenta, p. 179.

23
farol

Vito Accon-
ci. Blinks,
Nov 23,1969,
aternoon. Photo
Piece, Greenwi-
ch Street, NYC,
Kodak Instamatic
124, bw film.

de arte, o espaço-tempo do mundo, excursionar inscrito em sua obra “é o gesto cotidiano do ca-
por caminhos estabelecidos pela obra, e para minhar, mas num lugar construído, que propõe
além dela. outros desafios para nossa noção de equilíbrio
Propostas como as de Serra, fazem pensar e prumo”. 30 Ao entrecruzar as falas de teóricos e
como as fronteiras entre os planos tornam-se artistas, trago à tona os desdobramentos advin-
bastante sutis na arte contemporânea, ou mes- dos das experiências com obras situadas nessa
mo dissolvidas. A passagem da unidade estrutu- região fronteiriça entre escultura e instalação,
ral das esculturas para a relação espaço-tempo- assim como seus desenvolvimentos na cons-
ral do lugar nas instalações, do ponto de vista do ciência do espectador através da caminhada,
espectador, não se dá por uma evolução linear, invocada pela imbricação do espaço da obra
mas por uma rede de projeções em idas e vol- com o espaço da arquitetura, o que salienta que
tas. David Sylvester destaca na obra de Serra a a obra é esse lugar construído, talvez reconstru-
“essencial experiência de caminhar”,27 resposta ído. Trata-se, portanto, de uma forma de habitar
à relação com uma obra que apresenta um es- esse lugar construído pela arte. 31
paço que “não é um espaço contemplado, mas Sem título, instalação de Iole de Freitas na
um espaço percorrido”.28 Trata-se de uma cami- Documenta 12, de 2007, é um convite a um es-
nhada envolvente, na qual “o efeito da obra tem tado de habitação. A obra não é algo que está
a ver com gerar uma sucessão de experiências
desdobrando-se no tempo”.29 De igual modo, 30 Iole de Freitas, in: Ana Cavalcanti (org.), A desconstrução
para Iole de Freitas, um elemento intimamente dessas “certezas” entrevista com Iole de Freitas, Arte & Ensaios
nº 15, p. 8.
27 David Sylvester, Sobre arte moderna, p. 444. 31 Heidegger investiga o que significa habitar e construir no
28 Idem. âmbito do pertencimento em Construir, habitar, pensar, in:
29 Ibid. Ensaios e conferências, pp. 125-141.

24
pousado diretamente em algum ponto no es- para àquilo que a arquitetura estabeleceu como
paço da galeria, mas impõe-se livremente pelo exterior, mas que, para a artista, prolonga-se
espaço-tempo do lugar em adesão ao espaço como espaço do mundo, e agora também da
arquitetônico partilhado pelo público, e para obra. Não há distinção entre o espaço da obra e
além dele. Placas transparentes tomam formas do espectador, da galeria ou da cidade, nossos
geométricas que se curvam e cortam o espaço, caminhos se cruzam e entrecruzam sem distin-
associadas a tubos metálicos que riscam o ar. As ção de planos.
linhas e os planos caminham pelo espaço, cons- Ao lembrar de uma fala de Goethe sobre a
truem-se mutuamente, perpassam as paredes possibilidade de uma postura ativa do obser-
internas das galerias e evoluem pelo exterior do vador diante do grupo escultórico do Laocoon-
prédio. O aspecto gráfico das linhas e planos pa- te, Philippe Alain-Michaud33 nos reconduz a um
rece invertido, com linhas acentuadas e planos precedente histórico. Isso porque o filosofo ale-
suaves. Obras como estas, demonstram como mão propõe a adesão a um tipo de visão que, de
as características dos materiais empregados certa forma, se opõe ao sentido de serenidade
são altamente relevantes. Ao comentar a obra contemplativa, expresso na célebre análise de
de Waltércio Caldas, Paulo Venâncio ressalta Winkelmann sobre esta obra. Goethe começa
como o aço é um material “rígido, mas ainda seu argumento ao propor um posicionamento
assim flexível, anódino, uniforme e ao mesmo evocativo de uma frontalidade e uma estaticida-
tempo capaz de sutilezas em seu reflexo, sem de ainda condizentes com a postura solicitada
nenhum peso visual é provavelmente o metal pelo condicionamento histórico em relação à
mais aéreo, perfeito para estar suspenso: linha recepção da obra de arte. Mas, logo em seguida,
cortante que desenha no espaço”. 32 É interes- desafia o espectador a uma ação específica, ain-
sante notar que, nesta descrição, a ideia de de- da que sutil, pois sugere que, após a permanên-
senhar no espaço não implica em estabelecer a cia diante do conjunto escultórico a uma certa
distinção dos planos, e sim o contrário, sugere a distância e com os olhos fechados, ao abrirmos
liberdade da escultura em trabalhar com o pla- os olhos apenas por um instante, teremos a im-
no antes resguardado ao espectador. O que an- pressão de ver todo o conjunto em movimento.
tes suscitava medo, agora assume a dimensão Este embate histórico é ainda mais decorrente
de uma busca deliberada. do que suspeitamos, pois o pensamento de
Na obra de Iole, a densidade e polidez dos tu- Winkelmann, ao qual Goethe se opõe, é basea-
bos de aço inox garantem a fluidez das linhas, do na opinião de Platão de que “a tranquilidade
enquanto a transparência e leveza das placas de é a situação mais conveniente à beleza”. 34
policarbonato implicam na sutileza das formas. A apreciação que Didi-Huberman faz da mes-
Não há a ideia de uma superfície pictórica ou ma análise de Goethe sobre o Laocoonte revela
de frontalidade que possa capturar a evolução ainda que, ao contrário de um iconógrafo, o fi-
dos arranjos, pois a torção dos planos e linhas lósofo alemão do século xVIII estaria “contem-
- linhas tracejantes e planos esvoaçantes – as-
sume uma desenvoltura que flui pelo espaço
33 Philippe Alain-Michaud, Aby Warburg e a imagem em
32 Paulo Venâncio Filho, Ainda mais do que antes, in: Horizon- movimento, p. 89.
tes, catálogo da exposição de Waltércio Caldas, Fundação 34 Winckelmann, Reflexões sobre a arte antiga, apud Georges
Caloustre Gulbenkian, p. 34. Lisboa, 2009. Didi-Huberman, A imagem sobrevivente, p. 22.

25
farol

plando o próprio olhar”. 35 Isso acontece justa- e deixando marcas, pela forma como nossos
mente “quando o olhar compõe a forma com o sentidos se relacionam com as coisas em volta.
tempo”. 36 Este particular interesse na proposta É como uma presença, mas uma presença fan-
de Goethe se justifica porque foi justamente a tasmática”.41 Com esta intuição da presença, Ac-
partir destes argumentos que Warburg investi- conci leva adiante seu projeto e, após caminhar
gou a atribuição do movimento, em Especta- pelas ruas da cidade e registrar os “momentos
dor e movimento e em seguida em Movimento cegos”, compartilha tal intuição com o especta-
e espectador, e chegou “a propor que, por um dor a partir de um dossiê exposto como deriva-
exercício particular de atenção, o espectador ção.
podia substituir a causa externa que imprimia Incapazes de vasculhar o arquivo de imagens,
movimento às figuras”. 37 Warburg identificou tal sedimentado na mente do artista, como espec-
possibilidade como a “perda da contemplação tadores de Blinks, somos levados a uma mínima
serena”. 38 inversão na proposta goetheana de abrir e fe-
A permissão a certa “alucinação discreta e char os olhos: sem de fato estarmos em movi-
controlada a que se entrega o historiador da ar- mento pelos corredores da cidade, “para captar
te”39 me conduz, por um significativo traspassa- bem o projeto (...) o melhor é ficar de frente para
mento histórico, à experiência Blinks, de Vito Ac- ele, a uma distância conveniente”,42 mas agora,
conci. Essa obra, de 1969, é aqui tomada como de olhos abertos. É como se devêssemos, ao fe-
um descendente ilegítimo, pois a proposta do charmos os olhos, recompor ou reinventar todo
artista contemporâneo sugere uma inversão o dinâmico itinerário atribuído ao olhar de um
à intuição do filósofo do século xVIII, como se corpo em movimento, a partir somente daquilo
nota em suas recomendações: que ele não teria visto. Em resumo, somos soli-
citados a figurar o que foi visto por ele e que não
Segurando uma câmera, visando ao longe nos é ofertado. Trata-se, portanto, de um convi-
de mim e pronta a disparar, enquanto cami- te explícito à cumplicidade do olhar segundo a
nho em uma linha contínua por uma rua da lógica da montagem, que compõe uma estrutu-
cidade.
ra de aspecto aberto e sempre disposta a ofere-
Tento não piscar. cer entradas, saídas ou retornos por caminhos
Cada vez que eu piscar: tiro uma foto.40 nada estratificados.
Foi recorrente, entre os artistas dessa gera-
Impactado com o pensamento de Merle- ção, a exploração da suposta intimidade suge-
au-Ponty - como boa parte de sua geração - o rida pela mídia de massa. Revelou-se o distan-
artista italiano afirma que “o corpo está em ciamento e a natureza ilusória dessas imagens,
muitos lugares ao mesmo tempo, fazendo sinais com trabalhos que, ao mesmo tempo que ma-
nifestavam, questionavam a autenticidade de-
35 Georges Didi-Huberman, A imagem sobrevivente, p. 181. las. Acconci trabalha a presença do corpo em
36 Idem.
37 Philippe Alain-Michaud, Aby Warburg e a imagem em
movimento, p. 87. 41 Vitto Acconci, apud Christine Poggi, Seguindo Acconci/
38 Aby Warburg apud Philippe Alain-Michaud, Aby Warburg e visão direcionada, in: Ana Cavalcanti e Maria Luisa Távora,
a imagem em movimento, p. 88. Arte & Ensaios nº 16, pp. 160-161.
39 Idem. 42 Goethe, apud Georges Didi-Huberman, A imagem sobre-
40 <http://aleph-arts.org/art/lsa/lsa39/eng/1969.htm> vivente, p. 180.

26
Marina Abramo-
vez intitulado Following piece, também de 1969. vic, The artist is
Física e psicologicamente, o artista agencia a present, MoMA,
convergência dos planos, de ocorrência pecu- 2010.

liar em Blinks.
Nas obras aqui comentadas, os artistas pa-
recem mesmo confiar em nossa inclinação
colaborativa, esperam que sejamos capazes
de vislumbrar todo o repertório imagético des-
pertado a partir dos modos artísticos de figurar
suas próprias relações com o mundo. Sugerem
que vejamos sempre mais do que é diretamen-
te mostrado na imagem formada. Como se, por
exemplo, adotássemos o olhar da menina no
quadro de Manet, aquela que, de costas para
nós, espectadores, observa o dinâmico espetá-
culo da vida moderna. Ao seguir nessa proposta,
é o próprio artista quem nos aparece de costas
em Following piece e, em maior aproximação, é
como se tomássemos seu corpo de empréstimo
posturas abordadas de modo direto e envolve em Blinks para, a partir dele, excursionarmos
o espectador numa atmosfera psicológica de pelas ruas da cidade, ainda que seja por alguma
intimidade forjada pelo meio imagético. Fre- habitação poética. 44
quentemente faz convites para a participação Como prosseguir com o debate sobre a con-
do observador, muitos deles envoltos em ironia, vergência de planos sem mencionar que a ins-
e por vezes sugerem uma situação de voyeuris- tantaneidade da imagem videográfica propicia
mo, que nos remete aos apelos dos programas a captura e imediata exposição da imagem do
sensacionalistas de televisão, o que Rosalind espectador? Ao transportar a imagem do es-
Krauss, em relação à produção videográfica da pectador para o plano de figuração artística,
época, identificou como “estética do narcisis- Bruce Nauman instaura certa distorção espa-
mo”.43 Outras vezes, Acconci solicita ao especta- ço-temporal da presença com Live-Taped Video
dor que o acompanhe em práticas que causam Corridor, de 1968, uma construção em madeira
estranheza por abalarem as fronteiras entre o que forma um corredor equipado com dois mo-
banal e o distinto, entre a intimidade e a esfe- nitores sobrepostos ao fundo. Na entrada, uma
ra pública, entre o plano da obra e o plano do câmera registra a presença do espectador no
espectador, como seguir um caminhante qual- estreito espaço e repassa a imagem em tempo
quer pelas ruas e transformá-lo numa espécie real para um dos monitores, enquanto o outro
de guia pelos caminhos da cidade, ação a partir permanece com a imagem do corredor vazio.
da qual compila outro dossiê fotográfico, desta Conforme o espectador caminha em direção

43 Rosalind Krauss, Vídeo: a estética do narcisismo, in: Ana 44 Heidegger toma de empréstimo o pensamento do poeta
Cavalcanti e Maria Luisa Távora, Arte e ensaios 16, pp. 144- Hölderlin de que “poeticamente o homem habita”, in: Heide-
157. gger, Ensaios e conferências, pp. 165-181.

27
farol

aos monitores, afasta-se da câmera da entrada, tamento, o encontro seria dado no elo descri-
assim, sua imagem no monitor parece escapar- to por Deleuze entre “o presente que passa e o
lhe. O tempo da busca de aproximação com passado que se conserva”.49 O encontro, então,
nossa imagem parece sugerir o espaço inalcan- não passa de uma possibilidade, uma busca,
çável, o infinito, e o tempo incessante, o eterno. um estado em suspensão, cuja aproximação é
Isto pela inversão entre direção e sentido do dada na experiência forjada por Nauman, entre
percurso. Quanto mais nos aproximamos do a proposta de experiência com o mundo e sua
monitor que comporta nossa imagem, mais ela distensão midiática. Com a obra, ou em obra,
se afasta de nós e acentua a ideia de inércia do nossa consciência está estritamente tomada
aparelho e de mobilidade da imagem. A noção pela experiência com o tempo, de tal modo que,
de obra, que engendra um acontecimento, traz nos termos de Merleau-Ponty, “somos o surgi-
em sua constituição a ideia de presença, pois mento do tempo”. 50 Eu, espectador, sou o lugar
“não há acontecimento sem alguém a quem de partida do olhar, sou também o que se olha,
eles advenham”45 e, ainda sob a ótica de Mer- sou o rio e a margem, talvez a pedra inconfor-
leau-Ponty, por ser o fluxo temporal intrínseco mada que decide caminhar pela correnteza.
à obra como acontecimento, a ideia de que “o No dinâmico fluxo de convergência, vimos
tempo supõe uma visão sobre o tempo”46 se for- o corpo figurado no plano plástico ser movi-
talece. do pela presença de outra figura de seu plano.
O acontecimento em questão com Live-Taped Também acompanhamos uma figura pictórica
Video Corridor é a aparição da imagem do es- denunciar a presença do espectador frente a
pectador, a visão do tempo dada pela visão de seu plano e, em seguida, a possibilidade do ar-
sua própria imagem figurada na obra; presente tista, e logo do espectador, habitar o plano de
e presença em crise, a fugacidade do presente figuração artística. O artista parece estar “em-
que é puro devir somada à infindável aproxi- prestando seu corpo ao mundo”51 para trans-
mação com o eu mais profundo. Mas, concordo formá-los, mundo e corpo, em obra. Operação
com Paul Zumthor, “nenhuma presença é plena, disponível somente àquele que “reencontrar o
não há nunca coincidência entre ela e eu. Toda corpo operante e atual, aquele que não é um
presença é precária, ameaçada”.47 Presença é pedaço de espaço, um feixe de funções, mas um
duração, enquanto dura na consciência a sen- entrelaçado de visão e de movimento”. 52
sação de estar presente. Estamos, portanto, as- Marina Abramovic, em The artist is present,
sociando a busca da coincidência da presença parece reencontrar tal “corpo operante e atual”
com o eu, percepção exterior e interior, com a numa situação de franca reciprocidade, pois
própria experiência com o tempo em fluxo, pois artista, obra e espectador assumem o mesmo
a duração bergsoniana, esclarece Arlindo Ma- nível de presentidade ao habitarem, o que reo-
chado, “é essa coexistência, essa coexistência rienta as palavras de Warburg, o mesmo plano.
consigo mesmo”.48 Entre aproximação e afas- Definitivamente, não se trata mais de um desvio

45 Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, 49 Ibid., p. 278.


p. 351. 50 Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção,
46 Idem. p. 373.
47 Paul Zumthor, Performance, recepção, leitura, p. 81. 51 Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 278.
48 Roberto Machado, Deleuze, a arte e a filosofia, p. 277. 52 Idem.

28
no curso da narrativa em função de uma pre- te das repetições mais mecânicas, mais estere-
sença estranha. O personagem principal e seu otipadas, fora de nós e em nós, não cessamos
autor, assim como o personagem secundário e de extrair delas pequenas diferenças, variantes
o espectador, fundem-se na mais vívida possi- e modificações”. 53 De um modo indetermina-
bilidade de figuração do corpo. A presença da do, os expectadores que assumem a condição
artista, ao habitar o mesmo plano de existência de figurar a ação manifestam distintos estados
do espectador, admite também ele, em sua con- corporais, enquanto a artista, na condição de
tingência, como corpo figurado em obra. Como figura inaugural, se esforça para responder de
se seguisse as recomendações dadas pelo filó- modo igual à situação que se repete de modo
sofo alemão, as quais ressoam por mais de dois desigual.
séculos, mais uma vez Goethe, ainda que de Diferente do que acontece com os perso-
um modo diferenciado, Abramovic mantém os nagens em corpo figurado em tinta ou pedra,
olhos fechados até que sinta a presença de um em contraponto à concretude e permanência
espectador à sua frente. Ao abrir os olhos - de explicitada na citação de T. J. Clark, um acrés-
seu corpo-figura - a artista, ao mesmo tempo cimo fundante se instaura na performance de
em que se mostra consciente da presença do Abramovic. Interrompida, ou intercalada, por
espectador, dá à vista deste a imagem de sua um breve descanso dos olhos, que é ao mesmo
luta limítrofe contra as circunstâncias, por ser tempo desconexão, a série de movimentos é
ela a surpreendida a cada vista ofertada pelo atravessada pela presença de seu companheiro
sistema, assim como a mulher figurada por Ma- de longos anos. Quando ele surge na sua frente,
net mostra-se animada por cada espectador na condição de espectador, toda a complexa
que passa diante do quadro. Ainda que seja estrutura estética, ambiental e psicológica pa-
tomada por uma atração aparentemente indife- rece sofrer uma extrema reconfiguração. Assim
rente, cabe ao espectador atribuir, ao persona- que os olhos da artista encontram Ulay, e conse-
gem que olha, seu movimento interior. É como quentemente seu antigo companheiro enfrenta
se, inversamente, a imagem artística tivesse também os olhos de Marina, a despeito de todo
ouvido as instruções e obedecesse ao comando o silencioso controle, repouso e estabilidade,
dado por Goethe ao espectador, como se ado- põe-se em movimento uma tensão espiritual e
tasse a postura a ele sugerida e abrisse os olhos psicológica, a qual salienta o componente mais
assim que um espectador se aproximasse. Ao elementar e significativo, senão o mais essen-
que parece, outras figuras conhecidas da Histó- cial a toda e qualquer figuração dos movimen-
ria da Arte já o teriam feito segundo os critérios tos dos corpos, a saber, o componente afetivo.
de seus determinados planos. Ao acompanhar o pensamento de Deleuze, de
A presença de cada novo expectador coinci- que “a capacidade de ser afetado não significa
de com um novo momento, uma nova duração. passividade, mas afetividade”, 54 a aparente se-
Apesar de todo o esforço em manter a estrutu- renidade contemplativa da artista presente re-
ra inalterad,a é sempre um outro tempo que se vela-se como representação da potência afetiva
instaura como contiguidade, se me permitem, dos corpos envolvidos na figuração artística.
um outro-mesmo tempo de uma mesma-outra
53 Giles Deleuze, Diferença e repetição, p. 8.
ação, segundo o entendimento de que “nossa
54 Gilles Deleuze, apud Georges Didi-Huberman, A imagem
vida moderna é tal que, encontrando-nos dian- sobrevivente, p. 183.

29
farol

Não estou preocupado com o grau de esponta- e talvez justamente em função dela, todo uni-
neidade na participação de Ulay, ou com o nível verso humano parece alcançar uma densidade
de interferência da instituição neste episódio, absoluta de movimento; a densa duração dos
não agora. Minha inquietação, aqui, se atém à gestos contidos, o ritmo cauteloso das atitudes
instigante reflexão sobre a instauração, apari- confrontantes, tudo parece restituir ao olhar a
ção ou desvelamento da obra de arte que se faz força e a intensidade que lhe são característi-
presente e que, indissociavelmente, apresenta cas. A própria artista deixa claro: “eu sempre
a figuração dos estados de afecção dos corpos gostei de simplicidade em termos de geome-
presentes. tria, arquitetura, cor, em todos os elementos - e
É certo que a extremada intensidade da afec- dentro da própria performance. Mas além de
ção mútua associou os dois, Ulay e Marina, ao simplicidade, meu trabalho exige esforço e pre-
plano mais geral dos expectadores que rode- paração”. Particularmente, em The artist is pre-
avam a cena. Mas, deve-se arguir se isso é su- sent, todas essas características recorrentes em
ficiente para causar uma espécie de hiato na sua produção artística assumem um caráter de
obra ou se instaura uma outra obra, ainda mais essencialidade genitiva, de elemento fundante:
efêmera e aberta, a ponto de abarcar os demais a simetria da disposição dos poucos objetos de
expectadores na forma de uma interseção. De formas geométricas simples – uma mesa alta
qualquer forma, seja de modo mais íntimo e e duas cadeiras - favorecem a apreensão das
velado, seja mais geral e patente, desde o título duas faces de um mesmo plano; as dimensões
em forma de anúncio até a fissura causada pela arquitetônicas acentuam a concentração da
aparição de seu antigo companheiro, nessa per- força movente nos corpos figurados que se ape-
formance instalativa, Abramovic trabalha a pre- quenam, o que possibilita a reverberação dessa
sença em sua essência como elemento genitivo força pela amplitude do lugar de acontecimen-
das pulsões afetivas. tos artísticos; como uma acentuação cromático
Com o intuito de marcar como Goethe “sabe -pictórica de luminosidade intensa e vibrante, o
contemplar a forma”, 55 Didi-Huberman esclare- longo vestido vermelho guarda o corpo quieto
ce como a figuração dos corpos busca acima de que compõe uma figuração tão serena quanto
tudo dar vista à força movente que as anima e inquietante. Conforme a relação que faz Ernest
que estaria, já na convocação pelo quattrocen- Cassirer, admirador de Warburg, entre lingua-
to, da estética clássica grega, aquela do “ser mo- gem e afetividade, posso ver como o árduo
vido pelo afeto”. 56 A força movente que Warburg preparo comentado pela artista faz com que os
atribui ao caráter dos movimentos das figuras, objetos, a roupa e a postura sejam estruturados
ou das figuras em movimento, ou ainda da figu- como uma linguagem artística, que “parece ser
ração dos movimentos do corpo, parece que ela não apenas o sinal e a encarregada de uma re-
mesma é representada de um modo tão silen- presentação, mas também o sinal emocional do
cioso quanto intenso nos aspectos performa- afeto e da pulsão sensível”.
tivos suscitados pela obra em questão. A des- Resta saber se a obra se desfigurou, perdeu
peito da aparente serenidade contemplativa, os marcos estruturantes, advindos de todo o in-
tenso preparo, se a representação foi interrom-
pida, se ambos – o espectador e a artista, Ulay e
55 Georges Didi-Huberman, A imagem sobrevivente, p. 181.
56 Idem. p.180. Marina, as duas figuras - instauraram uma obra

30
distinta ou ainda se a aproximação de Marina ao A maneira como o racionalismo cartesiano en-
inclinar-se e estender-lhe as mãos, avançando tende o olhar, ou “o pensamento da visão”,60 não
sobre a mesa demarcadora dos espaços esta- atenta para as premissas inerentes ao corpo, ao
belecidos para as ações, reintegra-os ao fluxo lugar habitado, ao momento da habitação, “não
de práticas ordinárias de tal maneira que o con- é pensamento todo presente, todo atual: há em
tágio afetivo, segundo seu nível e intensidade, seu centro um mistério de passividade”.61 Parti-
seja ao mesmo tempo capaz de promover e de cularmente, no modo como a artista insiste na
extinguir o acontecimento artístico. Claro que a repetição de sua atualidade a cada levantar da
mudança no comportamento da artista, que até cabeça e abrir dos olhos, sua presença demarca
então mantivera a postura rigorosamente de- a irredutibilidade do olhar no modo como o visí-
terminada para a ação, foi decisiva para fomen- vel nos atravessa e nos transforma em vidente,
tar os questionamentos aqui discutidos. Cabe, experiência sensível e afetiva que tem o poder
portanto, a argumentação de que é, definitiva- de “atravessar e animar tanto os outros corpos
mente, a presença da artista como figuração no como o meu”.62 Em The artist is present, o olhar
mesmo plano da espectação o que determina a que “atravessa e anima” os corpos encontra na
duração, evolução e o desdobramento da obra. serenidade o modo de submeter o “mistério de
Mas, pode-se também ressaltar que foi a pre- passividade” ao crivo da afecção.
sença de um dos espectadores que afetou de- A perda da contemplação serena parece im-
cisivamente o modo de presença da artista em plicar menos na descrença da postura contem-
obra. Mais que isso, é possível afirmar que, sem plativa e na desconfiança da serenidade do que
a presença dos espectadores a artista presente na erosão da convicção da passividade do olhar.
não seria suficiente para ser tomada como uma De fato, parece não haver perda alguma, senão
figuração artística conforme a proposta. o inerente e incessante processo de diferencia-
Não posso deixar de lembrar que, para War- ção na experiência artística.
burg, as figuras “se movem num plano paralelo Para exemplificar como a relação entre movi-
ao espectador”, 57 mas é interessante ressaltar mento e repouso está diretamente relacionada
que “o olhar executa o movimento das figuras à dualidade entre morte e vida, Didi-Huberman
que estão frente a frente”. 58 Na performance usa como exemplo a postura que adotamos
de Abramovic, a força que move a figura que é diante de um corpo que jaz, pois numa situação
olhada de frente é a mesma que anima a figura como esta estaríamos muito mais preocupados
que olha. Trata-se, portanto, de um só e mesmo com os movimentos do corpo do que com sua
plano, o que faz com que os papéis se relacio- aparência. A fim de encontrarmos um mínimo
nem em uma reciprocidade tão íntima que por sinal de vida, atentaríamos para “a oscilação
vezes não há distinção entre as funções atribuí- de um dedo, um remexer dos lábios, um tre-
das por Merleau-Ponty ao corpo, lembremos, de mor das pálpebras”63 como representação do
ser visível e vidente, sobretudo por perseverar
em “ser atual, presente”. 59 ências filosóficas, p.50.
60 Merleau-Ponty, O olho e o espírito, in col. Os pensadores,
57 Aby Warburg, apud Philippe Alain-Michaud, Aby Warburg p. 98.
e a imagem em movimento, p. 87. 61 Idem.
58 Idem. 62 Merleau-Ponty, O visível e o invisível, pp.136 -137.
59 Merleau-Ponty, O primado da percepção e suas consequ- 63 Georges Didi-Huberman, A imagem sobrevivente, p. 167.

31
farol

esforço para manifestar um movimento. Posso res videográficos contemporâneos - num piscar
sugerir, portanto, que um corpo que não jaz, de olhos.
apenas repousa, como na figura de uma mulher
serenamente sentada – a Virgem de Martini, a Bibliografia
governanta de Manet, a artista presente na per- ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Pau-
formance contemporânea - apresenta as poten- lo: Cia das Letras, 1999.
cialidades sensíveis e afetivas que fazem a pro- BISHOP, Claire (org.). Participation: Docu-
cura inverter-se, pois o que mais se considera é ments of Contemporary Art. Cambridge, MIT
a ausência de movimento. A capacidade do cor- Press, 2006.
po de permanecer imóvel é significativa, pois, CLARK, T. J. Modernismos: ensaios sobre po-
neste caso, o esforço para conter o movimento lítica, história e teoria da arte. São Paulo: Cosac
diz muito sobre o estado de ânimo da figura. Naify, 2007.
Justamente por fazer intuir a contemplação DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio
por parte do personagem, que perece sempre de Janeiro: Graal, 1988.
estar disposto a ser contemplado, desde uma DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobre-
figuração pictórica até uma figuração performá- vivente. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
tica, a atitude contemplativa, mesmo a mais se- FERREIRA, Glória. COTRIM, Cecília (org.). Cle-
rena, se mostra altamente interativa, invocativa mente Greenberg e o debate crítico. Rio de
do aspecto colaborativo. Contemplar e colabo- Janeiro: Funarte Jorge Zahar, 1997.
rar não divergem de todo, mas são complemen- FILHO, Paulo Venâncio. Ainda mais do que
tares, senão convergentes. Para não parecer antes. In: Horizontes, catálogo da exposição
displicente com as estratégias artísticas con- de Waltércio Caldas, Fundação Caloustre Gul-
temporâneas mais francamente colaborativas, benkian, Lisboa, 2009.
vale considerar que a produção artística recente FREITAS, Iole de. A desconstrução dessas
contribuiu para fazer ver os níveis, assim como “certezas”. In: Arte & ensaios n° 15. Rio de Ja-
as intensidades, de confluência entre os fluxos neiro: Programa de Pós-Graduação em Artes/
de atividades contemplativas e colaborativas, a Escola de Belas Artes, UFRJ, 2007, pp. 6-15.
tal ponto que se possa considerar a solicitação FRIED, Michael. Arte e objetidade. In: Arte &
de todo o aparato perceptivo para a experiência ensaios n° 9. Rio de Janeiro: Programa de Pós-
de uma, digamos, percepção colaborativa. Graduação em Artes/Escola de Belas Artes,
O que proponho ao fim deste trabalho é que UFRJ, 2002, pp. 130-147.
The artist is present ratifica, acima de tudo, que HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências.
contemplar é já de alguma forma colaborar, Petrópolis: Vozes, 2006.
uma postura francamente antagônica à indife- KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura
rença, e que, em paralelo às recorrências histó- moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ricas, a obra de Abramovic retoma justamente a ___Vídeo: a estética do narcisismo. In: Arte
serenidade tão atribuída à contemplação, para & ensaios n° 16. Rio de Janeiro: Programa de
expressar tais instâncias ou condições de per- Pós-Graduação em Artes/Escola de Belas Artes,
cepção na experiência artística, ainda que seja UFRJ, 2008, pp. 144-157.
– desde a espectação de um grupo escultórico MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filo-
clássico até os arquivos fotográficos ou corredo- sofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

32
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia
da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
___ O visível e o invisível, pp.136 -137. São
Paulo: Ed. Perspectiva, 1992.
___O primado da percepção e suas conse-
quências filosóficas. Campinas: Papirus, 1990.
___O olho e o espírito. In: Col. Os Pensado-
res. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a
imagem em movimento. Rio de Janeiro: Con-
traponto, 2013.
POGGI, Christine. Seguindo Acconci/visão di-
recionada. In: Arte & ensaios n° 16. Rio de Ja-
neiro: Programa de Pós-Graduação em Artes/
Escola de Belas Artes, UFRJ, 2004, pp. 158-171.
SILVESTER, David. Sobre arte moderna. São
Paulo: Cosac Naify, 2006.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção,
leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
WOOD, Paul... [et alii]. Modernismo em dis-
puta: a arte desde os anos 40. São Paulo: Cosac
e Naify, 2002.

33

S-ar putea să vă placă și