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Visando traçar um panorama histórico, ainda que de forma assaz sucinta, num passado
muito distante encontramos resquícios de práticas verdadeiramente desumanas no que tange à
cobrança de dívidas. À guisa de exemplo, citamos a escravidão por dívidas, muito comum nas
sociedades antigas, como Esparta, Roma e Assíria. Naquela época predominava o direito
consuetudinário, por meio de Leis orais baseadas na tradição, salvaguardando, sobremaneira,
os patrícios em detrimento da plebe, a qual vivia do cultivo das terras (pequenos agricultores).
Estes, no intuito de saldar suas dívidas, vendiam inicialmente seus filhos como escravos no
mercado e, por fim, não logrando êxito em satisfazer o valor integral, acabavam por ser
escravizados.
Interessante se faz salientar, que não obstante a abolição das práticas desumanas de
cobrança de dívidas há muito, ainda nos dias atuais encontramos históricos de práticas que
ferem os direitos personalíssimos dos indivíduos, não somente no Brasil como também em
países considerados de "primeiro mundo", como Japão e Estados Unidos, dentre outros, ou
seja, o credor, no afã de ver a dívida saldada, acaba por desrespeitar outros direitos garantidos
nas mais diversas Cartas Políticas, utilizando-se de práticas consideradas abusivas nas
cobranças de dívidas.
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(Grifos nossos)
Por outro lado, o artigo 187 do Código Civil define que: "...comete ato ilícito o titular
de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim
econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."
Nesta linha de raciocínio, como já citado, nossa Carta Magna positiva como
fundamento do Estado Democrático de Direito o princípio da "dignidade da pessoa humana".
Ademais, no Título II – DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS -, extrai-se,
ainda:
"Art.5o Todos....
(...)
(...)
(...)"
Somente à luz dos artigos comentados até aqui, sem adentrarmos ainda propriamente
nos ditames do artigo 42 do CDC, podemos concluir que não é necessário muito esforço
interpretativo para se inferir que cobrar uma dívida é atividade comum e legítima (exercício
regular de direito). Entretanto, deduzimos, também, que no exercício desse direito legalmente
reconhecido não poderá o credor exceder os limites impostos pelo fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes, bem como não poderá ultrapassar a fronteira das
garantias fundamentais estampadas na Constituição Federal, independentemente da relação da
qual advêm a dívida (de Consumo, Cível, Comercial, Tributária e etc...).
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Interessante citar ainda, segundo o mesmo autor supracitado, os principais pontos que
influenciaram o texto brasileiro, senão vejamos:
Tradução livre:
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Nos Estados Unidos, notou-se a necessidade de se editar tais normas tendo em vista a
constatação de inúmeras práticas abusivas utilizadas pelas empresas de cobrança. À guisa de
exemplo, citamos os relatos extraídos da decisão judicial Duty v. General Finance Co., 273
S.W.2d 64 (Tex. 1954):
Infelizmente, mesmo com as normas contidas nos artigos 42 e 71 do CDC, assim como
outras subsidiárias que já cometamos alhures, no Brasil, apesar de acreditarmos que houve
uma redução de tais práticas, não há dúvida que ainda existem abusos nas cobranças de
dívidas, e podemos afirmar, ainda, sem qualquer receio de se estar cometendo equívocos, que
não são poucas.
Compartilhando com a doutrina mais seleta, ao nosso ver o CDC visa regular o
mercado de consumo em todas as suas fases (pré-contratual, contratual e pós-contratual), e
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especialmente em seu artigo 42, apresenta técnica legislativa louvável no sentido de regular o
mercado de consumo no que tange a cobrança de dívidas dele advindas (pós-contratual), uma
vez que o legislador certamente não visou beneficiar o devedor, mas tão-somente estabelecer
limites para que outros direitos não sejam usurpados quando do exercício desse direito.
A este respeito, cumpre ainda analisar o artigo 71 do CDC, o qual define o tipo penal
aplicável, visando justamente assegurar o cumprimento do artigo 42, permitindo-nos extrair o
propósito da lei. O dispositivo em comento define, mais especificamente, as condutas
proibidas, as quais, uma vez verificadas, configuram crime contra as relações de consumo.
Nesta esteira, mister trazer à baila o comando emergente da citada norma:
a) Ameaça
Salvo a ameaça de, não recebendo o débito, tomar as medidas judiciais cabíveis, ou de
envio do nome do consumidor aos cadastros de inadimplentes, práticas consideradas legais em
doutrina e jurisprudência, o fornecedor não poderá ameaçar o consumidor em outros sentidos
(e.g. ameaçar de comunicar seus familiares, seu empregador, afixar aviso em local de seu
convívio social e etc...)
Importante comentar que a ameaça estampada no artigo 42, não exige a aferição da
gravidade do mal, ou seja, não há que se perquirir se realmente o consumidor se sentiu
ameaçado, haja vista que o legislador visou proteger também o mercado de consumo e, assim
sendo, a simples conduta ameaçadora, independentemente de suas conseqüências, aponta para
o desrespeito da norma em comento.
No que tange ao crime previsto no artigo 71, a interpretação, ao nosso ver, deve ser a
mesma, pois diferentemente do que se verifica no artigo 147 do Código Penal, no qual a
pessoa deve sentir a intimidação, naquele a simples conduta exaure o tipo. De tal sorte,
entendemos ainda que, mesmo que o consumidor não tenha ciência da ameaça, por exemplo,
contida em carta encaminhada erroneamente ao destinatário, o crime está consumado.
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De tal sorte, concluir que a ameaça, no sentido de fazer valer um direito, só poderia
ocorrer se realmente o fosse exercê-lo em vias de fato, seria tirar do fornecedor a opção de
comunicar o consumidor das possíveis conseqüências do seu inadimplemento. Por outro lado,
muitas vezes, em um primeiro momento o fornecedor pensa em realmente tomar as
providências judiciais cabíveis; todavia, em um segundo momento, verifica que aquela atitude
pode ser inócua, por exemplo, diante da constatação de que o devedor não possui bens
passíveis de constrição. Se seguirmos o posicionamento do citado autor, mesmo diante desta
decisão que ocorreu em um segundo momento, o crime estaria configurado, uma vez que
afirmou e não cumpriu, o que se afigura, ao nosso ver, desequilíbrio na relação em detrimento
máximo do fornecedor, o que não parece ser a intenção do sistema.
b) Coação
No que tange a proibição de coagir o consumidor, essa diz respeito à prática que
impõe, de forma inadmissível, uma atuação do consumidor contra sua própria vontade, pelo
emprego de violência relativa, ou seja, sem a qual o consumidor jamais agiria de determinada
forma (vontade absolutamente anulada)
No constrangimento físico ou moral, o consumidor não tem sua vontade anulada, mas
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sim viciada, pois aqui o consumidor sofre grave ameaça acerca de sua saúde e integridade
física.
Tal vedação está intimamente relacionada com a correção e clareza das informações
que se exige em todas as fazes da relação consumerista (pré-contratual, contratual e
pós-contratual). Especialmente no caso sob análise (pós-contratual), o fornecedor também não
pode utilizar afirmações: 1) Falsas - que não sejam sustentadas em dados ou fatos reais ; 2)
Incorretas - que levem à interpretação desconforme, ainda que parcialmente, ou; 3) Enganosas
- que confundam o juízo de verdade do consumidor por meio de ação ou omissão, ou seja, o
leve a erro.
Os exemplos muitas vezes vão esbarrar em mais de um dos subtipos de afirmações que
não podem ser utilizadas no momento pós-contratual. Nesta linha de raciocínio, concordamos
plenamente com o ínclito professor Luiz Antônio Rizzatto Nunes, ao ponderar com muito
acerto que: "(...) Por isso, parece correto dizer que as expressões "afirmação falsa",
"incorreta" e "enganosa" são tomadas como sinônimas..." e segue com os exemplos:
Citamos, como exemplo, alguns atos que interferem no conceito moral do consumidor,
atingindo diretamente seus direitos personalíssimos, quais sejam: afixar lista de devedores em
local de acesso público; cobrar o devedor por meio de comunicação que, de qualquer forma,
possa ser identificada por terceiros como tal; cobrar o consumidor por meio de ligações
telefônicas para terceiros não garantidores do débito; utilizar correio ou telegrama fechados,
mas que seu envelope possa ser identificado como de empresa cobradora de dívidas e etc...
Com muito respeito aos posicionamentos contrários, não acreditamos que a proibição
em comento seja relativa, mas sim absoluta, ou seja, toda cobrança que exponha o consumidor
a ridículo é terminantemente proibida.
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Todavia, há quem diga que o legislador fez uso do termo "injustificadamente", o que
levaria a conclusão de que, em algumas situações, tais exposições seriam justificadas em via
de exceção e, portanto, a proibição seria relativa.
Parece-nos que o termo foi utilizado no sentido de ressalvar situações comuns, que
apontam para o exercício regular de direito, ou seja, o simples fato de estar sendo cobrado já
não é situação agradável para ninguém, mas é legítimo e justificável. Assim sendo, ao nosso
ver, o legislador optou por utilizar o termo para justificar as práticas exercidas dentro dos
limites impostos pela Lei, mas que por sua própria natureza já culminam em situações que
interferem na moral, descanso e trabalho do devedor (e.g. receber citação por meio de oficial
de justiça em condomínio acerca de cobrança judicial; citação por hora certa; o próprio CPC
autoriza, em casos excepcionais a citação fora do horário permitido e aos domingos e feriados
- § 2o art. 172).
Neste ponto, mister se faz interpretar o dispositivo em comento com muita cautela,
haja vista que o fornecedor realmente não pode interferir no trabalho, descanso ou lazer do
consumidor, porém isso não culmina em mitigação plena do exercício regular do direito de
cobrar.
Nesta linha de raciocínio, pode o fornecedor ligar para o endereço informado pelo
consumidor para possível cobrança, o qual pode ser residencial ou comercial, devendo
tão-somente atentar aos limites legais, conforme já cometamos em outros passos.
O que se veda, realmente, são as práticas abusivas. Dentre as inúmeras que podemos
encontrar no mercado, vamos citar algumas condutas que nos parecem legais e outras que não:
Tal prática, ao nosso ver, não apresenta desrespeito à norma contida no artigo 42 do
CDC, tampouco no 71, desde que a pessoa não se identifique como cobradora para terceiros,
não deixe recado com amigos e, principalmente, não transpareça, de qualquer forma, o assunto
a ser tratado.
Ligar para casa do consumidor também não é considerada prática abusiva de cobrança,
ressalvando, mais uma vez, que o contato deve ser direto com o devedor ou com o possível
garante e estritamente pessoal, sem envolver terceiros alheios à dívida.
Ligações após o horário que citamos como referência, ao nosso ver configuram
cobrança abusiva e desrespeito aos artigo 42 e 71 do Código de Defesa do Consumidor.
Importante salientar ainda, que mesmo diante de nossa sugestão, a qual concluímos
dentro de um parâmetro que nos parece razoável, no caso concreto caberá ao magistrado
perquirir acerca da ocorrência de tais hipóteses diante do conjunto probatório, pois se ficar
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demonstrado que o consumidor labora no período noturno (e.g. vigia de condomínio), fica
patente que seu descanso se dá no período diurno. De tal sorte, desde que provada a ciência
do fornecedor quanto a tal peculiriadade, teriamos situação oposta em relação ao perído citado
anteriormente como razoável no sentido de não interferir no descanso do consumidor, o que só
será realmente aferido caso a caso.
Notas
1
NERY, Nelson Junior e NERY, Rosa Maria de Andrade, in: Novo Código Civil e
Legislação Extravagante Anotados, RT, São Paulo, 2002, p. 112.
2
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do
Anteprojeto, 7a Ed., Forense Universitária, pág. 338.
3
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do
Anteprojeto, 7a Ed., Forense Universitária, pág. 338 (nota de rodapé 285).
4
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do
Anteprojeto, 7a Ed., Forense Universitária, pág. 340 (nota de rodapé 287).
5
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do
Anteprojeto, 7a Ed., Forense Universitária, pág. 342.
6
RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. Curso de Direito do Consumidor, Ed. Saraiva, São
Paulo 2004, pág.542.
Sobre o autor
Francisco Augusto Caldara de Almeida
E-mail: Entre em contato
Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº719 (24.6.2005)
Elaborado em 06.2005.
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Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico
eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
ALMEIDA, Francisco Augusto Caldara de. Cobrança de dívidas à luz do Código de Defesa do
Consumidor . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 719, 24 jun. 2005. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6921>. Acesso em: 14 jun. 2010.
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