Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
1. Como a mente forma o que vemos?
Acontece que o olho humano só consegue registrar imagens com nitidez numa área bem
pequena: a fóvea, que tem 1 milímetro de diâmetro e fica bem no meio da retina. Ela é um
buraquinho cheio de cones, células que captam a luz e a transformam em impulsos
elétricos que podem ser decodificados pelo cérebro. Você só está lendo este texto porque
a luz refletida pelas páginas (ou gerada pela tela) está batendo nas fóveas dos seus olhos.
Mas a fóvea tem resolução estimada de apenas 7 megapixels – uma mixaria, que não dá
nem para tirar boas fotos no celular, quanto mais gerar a imagem envolvente e hiper
detalhada que nossos olhos produzem. Qual o segredo, então? Como a visão humana produz
uma imagem panorâmica de 341,5 megapixels, se nossos olhos geram apenas 7 megapixels
com nitidez? Simples: o cérebro nos engana.
Você não percebe, mas os seus olhos estão sempre em movimento. Assim, a fóvea consegue
captar vários pedaços do cenário, que o cérebro costura numa imagem só. Mas esse
processo (cada pulo do olho, captação da luz e decodificação do sinal no cérebro) toma
tempo, cerca de 0,2 segundo. Durante essa movimentação, enquanto o olho se move para
focar em um novo ponto de captação para a fóvea, o cérebro deixa de receber informação
do ambiente por 0,1 segundo. Parece pouco. Só que os seus olhos fazem 150 mil desses
pulos por dia. Somando todos, você fica cego quatro horas por dia.
Nos anos 1980, havia cursos gravados em fita cassete que prometiam ensinar inglês durante
o sono – bastaria escutar aquilo para acordar falando. Pura charlatanice, claro. Mas, três
décadas depois, um estudo da Universidade Northwestern revelou que o cérebro é capaz de
memorizar informações (logo, aprender) enquanto dormimos. No estudo, voluntários foram
ensinados a tocar duas musiquinhas bem simples, num teclado. Depois, tiraram uma soneca
de uma hora e meia – assim que eles caíam no sono, os pesquisadores tocavam uma das
melodias. Quando os voluntários acordavam, tinham que tocar as duas músicas, e adivinhe
só: eles tocaram bem melhor, com bem menos erros, aquela que haviam ouvido enquanto
dormiam. “Isso mostra que receber estímulos externos durante o sono pode influenciar
uma habilidade complexa”, declarou o psicólogo Ken Paller, líder do estudo. Ele também
realizou outra experiência, em que os voluntários memorizaram uma sequência de 50
imagens, cada uma associada a um som. Metade das pessoas foi exposta aos sons enquanto
dormia – e, ao acordar, se lembrava de mais associações.
Para entender como isso acontecia, Paller e seus colegas monitoraram a atividade cerebral
dos voluntários. Eles descobriram que o efeito só funciona se a pessoa for exposta aos
barulhos enquanto estiver no chamado sono de ondas lentas, popularmente conhecido
como sono profundo. Nessa fase do sono, o cérebro organiza as suas memórias. Ele destrói
as mais banais (o que é feito enfraquecendo as conexões entre determinados grupos de
neurônios) e reforça as mais importantes (pelo processo oposto). Ao introduzir informações
externas – como os sons usados pelos cientistas -, é possível hackear esse processo,
induzindo o cérebro a reforçar uma memória. Não é um milagre, que permita acordar
sabendo algo totalmente novo. Você tem que ter estudado, acordado, o que deseja
aprender. Mesmo assim, é surpreendente.
Essa descoberta pode ajudar a elucidar outro enigma. Por que, afinal, a gente dorme? É
algo tão trivial que nem pensamos muito a respeito. Mas pense: é no mínimo intrigante
ficar inconsciente e indefeso por, em média, oito horas por dia. Para os nossos ancestrais,
cair no sono significava risco de ser atacado. Mas ficar sem dormir provoca delírios,
convulsões e até a morte. Então o sono deve ter alguma função.
Dois meses depois do assalto, você tem certeza de que o bandido era loiro, alto e usava
boné. Mas, na verdade, o sujeito que roubou o seu celular naquela tarde abafada de
janeiro era baixo, moreno e não usava nada na cabeça. Você criou uma memória falsa – e
justo de um evento traumático e impactante, do qual deveria se lembrar em detalhes. Não
se preocupe: você é normal. Nosso cérebro tem o hábito de agregar detalhes ou produzir
lembranças que não ocorreram. Grande parte delas é inofensiva. Mas as falsas memórias
também podem provocar graves injustiças. Segundo a ONG americana Innocence Project,
mais de 400 pessoas inocentes foram condenadas por causa de testemunhos que, mais
tarde, se revelariam falsos.
Por que o cérebro se dá ao trabalho de fabricar fatos? Para dar conta do excesso de
informação. Ele é incapaz de reter tudo o que a gente vê, sente, escuta ou toca. Então, em
vez de assimilar todos os pormenores do mundo, guarda apenas a essência de eventos,
objetos e emoções – e, na hora de lembrar de algo, preenche as lacunas, por associação,
com outras memórias. O problema é que não nos damos conta disso, e acaba acontecendo
uma sobreposição de lembranças.
No caso do assalto, por exemplo, você pode ter embaralhado a recordação do sujeito que
lhe apontou a arma com algum bandido que viu na TV. Quanto mais tempo passa, mais o
cérebro embaralha as coisas. “É comum chamarem uma testemunha para depor dois anos
depois. Nesses casos, a chance de depoimentos falsos é muito maior”, afirma a psicóloga
Lilian Stein, autora do livro Falsas Memórias: Fundamentos científicos e suas aplicações
clínicas e jurídicas. “Tratam a memória como uma máquina fotográfica, o que é um grande
equívoco.”
Além disso, a cada vez que você se lembra de uma memória, ela pode ser alterada – e
distorcida – pelo cérebro. Isso acontece por um mecanismo chamado de reconsolidação.
Quando você tenta se lembrar de algo, a memória sai do banco de dados do cérebro, é
acessada pela sua consciência e, por fim, armazenada novamente (reconsolidada) no banco
de dados. Durante esse processo, a memória está vulnerável, e pode ser acidentalmente
modificada pelo cérebro.
Estudos da Universidade Johns Hopkins, dos EUA, revelaram que há uma sutil diferença na
atividade cerebral durante a formação de memórias falsas e verdadeiras: o córtex pré-
frontal, ligado ao raciocínio, tem sua atividade reduzida quando a memória é falsa. Ou
seja, ambos os tipos de memória se formam do mesmo jeito, com uma diferença crucial: as
falsas não passam pelo lado lógico da mente.
Além disso, a sobrevivência humana não exige precisão absoluta. Quando queremos
expressar ideias, às vezes temos dificuldade de encontrar as palavras certas, e ainda assim
conseguimos nos comunicar. Nossa memória não é fotográfica, mas funciona. Mesmo depois
de aprender uma tarefa, como tocar violão, costurar ou falar um idioma, podemos errar ao
executá-la.
Mais: talvez nossa força esteja justamente nos erros. Alguns cientistas acreditam que os
erros elétricos do cérebro, que alteram de forma imprevisível as informações transmitidas
entre neurônios, estejam entre os responsáveis pela criatividade humana.
Também dá para ter uma ideia da importância delas observando o que acontece se não
funcionam direito. Quando o cérebro sofre algum dano, ele aciona seu mecanismo de
cicatrização: a astrogliose, que é feita pelas células gliais. Mas pesquisas têm revelado que
erros nesse processo estão ligados a doenças como esclerose lateral amiotrófica, Parkinson
e Alzheimer. “A cicatrização inadequada do cérebro é um fator importante para o
desenvolvimento do Alzheimer, mas ainda não se sabe se isso é causa ou consequência da
doença”, diz Douglas Sato, chefe do departamento de Neuroimunologia da Academia
Brasileira de Neurologia. Ou seja: sem as células gliais funcionando direito, não há
neurônio que resista.
6. O que é a consciência?
Ele produz a sensação de estar vivo
Três áreas agem para criar o “eu” – que pode ser mera ilusão.
Como você tem certeza de que esta revista existe? Porque você está tocando nela, oras.
Você tem consciência disso. Mas será que está mesmo? Alguém pode ter conectado seu
cérebro a uma máquina capaz de simular tudo. Nessa hipótese, a consciência seria apenas
uma ilusão. É uma hipótese absurda, claro, mas o mais incrível é: você não tem como
provar que ela não é real, porque não tem como sair da própria consciência e observá-la de
fora. Tudo o que você experimenta ou pensa é produzido pela consciência – logo, é
impossível saber exatamente o que ela é. “Como descrever objetivamente algo tão
subjetivo? Há uma questão epistemológica [filosófica] a resolver”, diz o neurocientista
Tadeu Mello e Souza, da UFRGS. De um ponto de vista puramente mecânico, em tese a
consciência é o resultado de um conjunto de processos cerebrais atuando simultaneamente
(como, numa analogia grosseira, o Windows é o resultado de um conjunto de processos
digitais que rodam no seu computador). Cientistas já encontraram algumas pistas sobre
onde a consciência “mora” no cérebro. Estudos feitos com pessoas em estado vegetativo ou
anestesiadas revelaram que três áreas parecem estar envolvidas na consciência: o tálamo,
o córtex pré-frontal lateral e o córtex parietal. É um trio poderoso: essas regiões têm mais
conexões entre si e com outras áreas do que qualquer outra parte do cérebro. Mas para
que serve a consciência, afinal?
Ainda há outro aspecto misterioso que ninguém soube responder: o que define o “eu” –
ou self, como preferem os psicanalistas. Nossa consciência é formada por experiências,
sons, cheiros, pensamentos, emoções e memórias que nunca poderemos dividir totalmente
com ninguém. Como é o vermelho que você enxerga, por exemplo? Na física, uma cor é só
a frequência de uma onda eletromagnética. Mas nada garante que a representação mental
dessa cor seja a mesma para duas pessoas. E isso vale para tudo o que sentimos.
“Precisamos entender como a atividade cerebral molda nossa consciência, como uma
sensação se transforma numa percepção consciente”, diz Seth. Quando a ciência tiver a
resposta, voltaremos à primeira pergunta: o que é, afinal, a consciência? “É uma forma de
informação? Uma propriedade do Universo, como massa ou eletricidade? Ou alguma coisa
como a vida?”, questiona Seth. Até lá, impossível saber se somos de fato humanos – ou
apenas cérebros em um laboratório.
Junte 100 moedas de R$ 1. Separe cinco delas. Pronto, esse é o dinheiro que você pode
gastar. As outras 95 moedas ficarão em poder de outra pessoa, que vai decidir como aplicar
esse dinheiro. Você toparia esse negócio? É provável que não. Mas é assim que funciona o
seu cérebro: cientistas estimam que 95% dos nossos processos cognitivos são inconscientes,
ou seja, operados sem o nosso controle racional. Você só consegue gerenciar o resto, 5%.
Quando você aprende a tocar um instrumento, automatiza tarefas que passam a ser
operadas pelo inconsciente. Você precisa executar uma infinidade de pequenas ações ao
mesmo tempo: segurar o violão, posicionar os dedos, acertar as notas e respirar – às vezes,
precisa também cantar de modo afinado junto. No início, quando você precisa pensar sobre
as tarefas (e o consciente ainda está tentando coordenar essas tarefas), é difícil pacas, e
você fica exausto depois das aulas. Mas, com o tempo, fica mais fácil. Sinal de que o
inconsciente aprendeu a lição – e automatizou as tarefas. A mesma coisa ocorre quando
você está dirigindo: se você racionalizasse a quantidade de ações simultâneas (trocar a
marcha, pisar no acelerador, cuidar dos espelhos, acertar o ponto da embreagem), poderia
bater o carro. Você só consegue operar tantas ações porque o inconsciente é mais poderoso
na multitarefa do que a área lógica do cérebro.
Ele é tão eficiente que toma decisões antes de você perceber. Isto é, ele faz a escolha por
você. Na década de 1980, o neurocientista Benjamin Libet fez um experimento mostrando
como as decisões racionais ocorrem segundos depois de processos neurais inconscientes se
ativarem, descoberta que colocou em xeque nossa capacidade de livre-arbítrio. De lá para
cá, munidos de aparelhos de ressonância magnética, outros cientistas analisaram cérebros
de voluntários e comprovaram a hipótese de Libet. Eles constataram que, quando uma
pessoa “faz uma escolha” consciente (como apertar um botão), o inconsciente dela já
decidiu – a atividade cerebral ligada àquela decisão começa até 10 segundos antes de você
ter como verbalizar aquela decisão.
Isso não significa que sejamos reféns de nossos cérebros. Pesquisas recentes têm
questionado a soberania do inconsciente. Em alguma medida, seríamos capazes de “vetar”
uma escolha tomada pelo lado oculto da mente. Foi o que mostrou uma experiência do
neurocientista John-Dylan Haynes, do Centro Bernstein de Neurociência, em Berlim. O
cientista monitorou o cérebro de voluntários enquanto eles disputavam um jogo contra um
computador (um game bem simples, de apertar um botão). O computador conseguia
detectar que a pessoa ia apertar o botão, vários segundos antes de ela efetivamente
apertar. A máquina tinha tempo de reagir a isso – e, em tese, ganhar 100% das partidas.
Mas não foi isso o que aconteceu. Os voluntários foram capazes de interceptar, e cancelar,
a ordem de apertar o botão que havia sido emitida pelo inconsciente – e, com isso, driblar
o computador e vencer o jogo. “Nosso estudo mostra que a liberdade é muito menos
limitada do que se pensava. No entanto, há um `ponto de não retorno¿ no processo de
tomada de decisão, em que cancelar o movimento não é mais possível”, disse Haynes.
Ou seja: o inconsciente está no comando, mas existe uma janela dentro da qual é possível
manobrá-lo. Mesmo quando não der, não é o fim do mundo. Consciência e inconsciente,
afinal, são partes da mesmíssima coisa. O seu cérebro.