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RESUMO
O medo é uma reação de alerta muito importante para a sobrevivência dos seres humanos,
mas, quando em excesso ele pode vir a prejudicar e tornar-se incapacitante em diversos
momentos da vida de um indivíduo, como quando este está no trânsito e deve dirigir um
veículo. Considerando que dirigir, hoje em dia, é sinônimo de necessidade e praticidade, este
trabalho visa contribuir para análise e discussão acerca do medo de dirigir, assim como dos
aspectos psicológicos envolvidos nesse contexto. Os aspectos objetos desse estudo serão
aqueles que se manifestam, possivelmente, a partir dos vínculos afetivos desenvolvidos nos
sujeitos dessa pesquisa e que desencadeiam o medo de dirigir, objetivando fazer uma relação
entre eles. Os dados foram coletados a partir da experiência de estágio específico, com ênfase
em Saúde na Contemporaneidade, com grupos do projeto Vencendo o Medo de Dirigir, de
parceria do Departamento de Transito de Mato Grosso do Sul - Detran-MS com a
Universidade Católica Dom Bosco, cujos encontros foram realizados na clínica-escola da
instituição.
ABSTRACT
Fear is a very important alert reaction to the survival of human beings, but when in excess it
can come to harm and become disabling at various times in the life of an individual, as when
it is in traffic and how to run a vehicle. Whereas direct, nowadays, is synonym of necessity
and practicality, this paper aims to contribute to analysis and discussion of fear of driving, as
well as the psychological aspects involved in this context. Aspects of the study objects are
those that manifest themselves, possibly from the affective links developed in the subject of
this research and that trigger fear of driving, in order to make a relationship between them.
The data were collected from the specific internship experience, with an emphasis on Health
in contemporary times, with project groups Winning the Fear of driving, traffic Department's
affiliate of Mato Grosso do Sul – Detran-MS with the Catholic University Gift Bosco, whose
meetings are held in the clínic.
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Artigo apresentado como requisito de avaliação final na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II (TCC-
II) do décimo semestre do curso de graduação em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB)
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Acadêmica do curso de Psicologia, e-mail: bruna.r_barboza@hotmail.com
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Acadêmico do curso de Psicologia, e-mail: nelsonfcnachif@gmail.com
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INTRODUÇÃO
A respeito desse tipo específico de medo, Bellina (2005) explica que por ser atividade
múltipla e, portanto, envolver números e diversos comportamentos, essa atividade que é o
dirigir, pode possuir diferentes estímulos e aspectos. Existem indivíduos cujo medo é de
causar um acidente e atropelar alguém; outros que o móvito de ansiedade é a possibilidade de
perder o controle do automóvel; aqueles que sentem medo de passar por viadutos e túneis e;
até aqueles que não gostam de se sentir expostos e observados, por receio de serem criticados
e ficarem constrangidos.
É importante justificar o porquê do medo de dirigir ser encontrado mais na população
feminina em relação à masculina. Um dos motivos, provavelmente, se deve ao fato da cultura
a qual estamos inseridos, determinar um padrão masculino em que o homem não possa
demonstrar fragilidade. Esse fato faz com que a procura deles por tratamento para o medo ou
fobia de dirigir seja consideravelmente menor em relação à mulher, justamente para não
serem expostos por esse medo que os caracteriza como frágeis diante da nossa cultura.
O uso do medo na infância serve, entre outras coisas, para que as crianças aprendam a
respeitar e temer as pessoais mais velhas e as coisas consideradas erradas, ou seja, serve para
moldar o comportamento das crianças, tornando-as obedientes e comportadas. Tessari (2008,
apud QUEIROZ, 2013, p,23) ressalta esse fato ao afirmar que “[...] a criança não possui os
medos que o adulto tem, mas vai aprendendo a tê-los ao longo da vida. Geralmente as pessoas
usam do medo para educar as crianças, submetendo-as às normas de conduta, aos usos e
costumes da sociedade.”
Essas questões de cultura e criação estão diretamente relacionadas a outros motivos do
medo de dirigir ser encontrado mais em mulheres. Segundo Bellina (2005 apud QUEIROZ,
2013), existem três aspectos que justificam isso. Um deles é o modo como meninos e meninas
são criados. O carro já é considerado objeto masculino, pois desde criança os garotos são
incentivados a brincar com bicicleta e carrinhos de brinquedo, ao passo que as garotas são
estimuladas com brinquedos mais afetuosos e “delicados”, ligados a aspectos do lar e da
maternidade, como bonecas, fogões e panelinhas. O segundo aspecto seria o fato de mulheres
serem, geralmente, mais ansiosas do que os homens, tornando-as, desse modo, mais
propensas a sentir medo. E o terceiro e último aspecto está ligados a diferença de prioridades
entre os dois sexos. O homem geralmente estabelece o carro como prioridade para conquistar
a autonomia financeira. Já a mulher priorizam estudos, ajudar os pais, adquirir casa própria,
constituir família e, por último, o carro.
A partir desses dados, questionamos os motivos que levam a maioria desses indivíduos
a terem essas características e, esse fato nos faz refletir onde esses sentimentos têm origem, já
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que nem sempre o medo está ligado diretamente a um acidente ou quase acidente. Portanto, é
possível que exista uma relação com vínculos afetivos ao longo do desenvolvimento dessas
pessoas?
Existe uma pesquisa que foi realizada com 4 mil pessoas que apresentavam esse medo
ou fobia e ela mostra que de todos os participantes, 40% sofreram acidente e não estavam
dirigindo. Do restante, 28% nunca sofreram acidente. Esses resultados tornam possível
concluir que as causas desse problema não são necessariamente ligadas diretamente ao objeto
ou evento fóbico, ou seja, ao automóvel ou ao acidente ou quase acidente (BELLINA apud
SOARES JÚNIOR, 2013). Essa pesquisa quantitativa, apenas aborda a existência das pessoas
que nunca sofreram acidente, mas têm medo de dirigir, porém não aprofunda a questão. Esse
fato nos permite fazer uma reflexão sobre a importância da problemática que queremos
desenvolver no presente artigo.
Cantini, Jessye Almeida et al. (2013) também abordam a questão da escassez de
pesquisas nesse sentido sobre o medo de dirigir, afirmando que:
A partir desse trabalho temos a chance de entrar em um campo menos explorado sobre
a questão do medo de dirigir, pois são poucas as pesquisas que abordam outros motivos
geradores desse sintoma.
Devido a todas essas características e dados acerca do trânsito, dos indivíduos e de
cargas emocionais e afetivas – não apenas comportamentais -, envolvidas nesse contexto,
percebemos a importância cada vez maior da Psicologia do Trânsito, tanto para os
profissionais de psicologia, quanto para as demais pessoas.
O surgimento da Psicologia do Trânsito, de acordo com Rozestraten (1981), surgiu
como consequência de abundantes pesquisas em diversos laboratórios, institutos e centro de
pesquisa por volta de 1971 e 1981.
Sendo uma área da psicologia, a Psicologia do Trânsito estuda os comportamentos das
pessoas no trânsito, por meio de métodos científicos válidos. Estuda, além disso, os fatores e
processos internos e externos, conscientes ou inconscientes que provocam ou alteram esses
comportamentos (ROZESTRATEN, 2012).
Foi através das políticas de prevenção e de segurança no trânsito, entre outros meios,
que os conhecimentos psicológicos foram inseridos no trânsito rodoviário. Algumas dessas
políticas tinham o objetivo de reconhecer e limitar quais pessoas tinha tendência, do ponto de
vista psicológico, a envolverem-se em acidentes no contexto do trânsito. Essa verificação era
realizada durante o processo de adquirir a Carteira Nacional de Habilitação (CNH). A raiz
dessa política sobre acidentes vem de décadas antes da regulamentação da Psicologia no
Brasil. Hoje em dia ainda existem essas políticas. (SILVA, 2012)
Nesse período de pré-regulamentação da profissão do psicólogo, as medidas de
trânsito estabelecidas foram cruciais para o que viria a ser a prática do psicólogo inserido no
contexto do trânsito. De acordo com Silva, (2012), um marco legal que estabeleceu as bases
para essas práticas, foi o primeiro Código Nacional de trânsito, pelo Decreto de lei número
2.994 de 1941, que definiu que os exames médico, fisiológico e psicológico deveriam ser
obrigatórios para as pessoas que queriam conduzir veículos. No exame psicológico, o critério
para ser aprovado era possuir o mínimo do perfil psico-fisiológico exigido para a tarefa. Do
contrário ele poderia ser recusado.
Os trabalhos estrangeiros desenvolvidos na Alemanha por Tramm, na França por
Lahy, na Espanha por Mira y López e nos Estados Unidos da América por Munsterberg e
Viteless, foram de forte influência para a estruturação da tarefa e avaliar as condições
psicológicas dos candidatos à motorista (CAMPOS, 1951 apud GUNTHER; SILVA, 2009).
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Segundo essa teoria, algumas pessoas são mais propensas do que outras a se
envolver em acidentes, o que justificava a elaboração de um processo de
habilitação para identificar os indivíduos propensos/não propensos aos
acidentes - quer dizer, os indivíduos aptos/inaptos para dirigir - e, desse
modo, esperava-se aumentar a segurança no trânsito. (p.164)
prova prática. Parte desses indivíduos já sofreu algum trauma no trânsito, direta ou
indiretamente, e outra parte nunca passou por uma situação assim. Trabalharemos com dados
do grupo como um todo, mas com foco nas questões das pessoas desse ultimo delineamento.
Dois instrumentos foram utilizados. O primeiro foi um questionário denominado
Questionário Inicial sobre Aspectos Psicológicos do Dirigir/Exame produzido pelo professor
e supervisor Renan da Cunha Soares Júnior. Esse instrumento teve como finalidade a
caracterização dos sujeitos e obtenção de maiores informações e, assim, escolher as melhores
técnicas para as finalidades propostas. O segundo instrumento utilizado foram os Inventários
de Beck. Deste fizemos uso das escalas de Depressão (BDI), de Ansiedade (BAI) e de
Desesperança (BHS) (CUNHA, J.A., 2001).
As sessões seguiram um padrão quanto à sua estrutura. Todas elas possuíam um tema,
estabelecido previamente em supervisão, a respeito de algum processo psicológico envolvido
no medo de dirigir. Com isso definido, era aplicado um “quebra-gelo” com a finalidade de
descontração, interação e aquecimento para o grupo. Posteriormente era realizada a
Psicoeducação sobre os principais conceitos, sintomas, consequências positivas e negativas
em relação ao tema proposto. A terceira técnica era a aplicação de alguma dinâmica ou
atividade que ajudasse a demonstrar, explorar, explicar e desenvolver o conteúdo do dia, a
partir da participação, colaboração e cooperação de todos, de forma integrada. Essa técnica
também tem como finalidade produzir uma reflexão, na prática, dos assuntos abordados. Por
fim, era feito uso de técnicas de relaxamente e respiração. Esses relaxamentos mudavam a
cada sessão, e a partir de certo momento, as técnicas passaram a ser utilizadas dentro de outro
tipo de relaxamento, que é o de visualização, onde os integrantes do grupo eram incentivados
a entrarem em contato com o objeto alvo de seus medos, através da imaginação e fazendo uso
de sentidos humanos.
Os encontros aconteciam na Clínica Escola da UCDB em uma sala reservada. Esta é
ampla, arejada e bem iluminada. Dentro dela são disponibilizadas lousa branca e canetas
próprias para ela, computador, projetor e cadeiras e mesas. A sala também conta com sistema
de ar-condicionado e controle para sua regulação. Os materiais utilizados nas sessões foram
escolhidos de acordo com as atividades realizadas e em número suficiente para todos.
A abordagem escolhida para o presente artigo é a Teoria da Gestalt e Gestalt-Terapia.
Essa abordagem também deu base para a teoria e técnicas na formação e desenvolvimento do
grupo.
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ANÁLISE E DISCUSSÕES
com ele através de atividades práticas e discussões que surgiam no aqui e agora, este que é
um conceito da Psicologia da Gestalt e utilizado na Gestalt Terapia, abordagem aqui utilizada.
A respeito desse trabalho no aqui e agora, Ribeiro (1985) afirma que ao usarmos a
fenomenologia – pressuposto filosófico da Gestalt Terapia - como método, trabalhamos o
aqui e agora. É nele que ocorre a totalidade e, só é possível ter acesso real à pessoa quando se
tem acesso à sua totalidade. Ele ainda vai além, e acrescenta que usar a fenomenologia é estar
atento à pessoa como um todo, tanto naquilo que ela fala quanto ao que ela não fala, ou seja,
estar atento às roupas, gestos, comportamentos, mudanças de expressão, e outros, pois tudo no
ser humano tem significado. “Não é o sintoma que está em terapia, é a pessoa como um todo”
(RIBEIRO, 1985).
Na sessão de tema “Autoestima” eles assistiram uma psicoeducação em slides com
definições, características de pessoas com autoestima elevada e daquelas com baixa
autoestima e, por fim, as possíveis consequências que podem acometer os indivíduos com
baixa autoestima. Durante a apresentação, cerca de um terço dos integrantes do grupo se
emocionou. No entanto, foi na atividade prática que eles começaram a expressar verbalmente
o que estavam pensando e sentindo. Para essa dinâmica foi realizada uma introdução pedindo
que cada um deles pensasse na pessoa que mais amam no mundo, aquela pessoa que eles dão
mais amor, carinho, cuidados e por quem desejam dar mais de seu tempo. Após algum tempo
para que pensassem nesse indivíduo, eles receberam a informação que um por vez seria
levado para ver essa pessoa e quando cada um voltasse, eles deveriam manter-se em silêncio.
Um por vez, eles foram chamados e conduzidos para a parte externa da sala onde se viam de
frente a um espelho grande, de modo que refletisse o corpo inteiro dos mesmos. Quando de
frente com sua própria imagem, todos eles se emocionaram, expressando as mais diversas
reações, desde lágrimas, até suspiros e frases como “Sou eu! Eu devo me amar mais e em
primeiro lugar...”.
Essa tarefa teve como objetivo o autoconhecimento e o dar-se conta de quem é de
verdade e de sua real importância. Ela foi extremamente importante, pois possibilitou que os
indivíduos desenvolvessem sua aware. Eles precisaram olha para si mesmo, internamente e
literalmente nesse caso, para adquirirem a consciência da consciência sobre eles mesmos. Eles
precisaram tornar-se inteiros, colocar-se como um todo naquele contexto.
Awareness é um conceito essencial da Psicologia da Gestalt. Segundo Ribeiro (2006)
awareness é a consciência da própria consciência. Ou também pode ser definida como um
processo pelo qual a pessoa se torna consciente da própria consciência, no mundo, aqui e
agora. O autor afirma que:
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O mesmo autor afirmando que essa consciência acontece quando todo o ser, as
percepções, emoções, sentimentos, pensamentos, trabalham junto para que o indivíduo possa
resignificar o dado. Isso é captado apenas pela consciência, através da qual todo o ser da
pessoa se prepara para intervir ou não no mundo que se desvela.
Essa sessão trouxe dados mais importantes, acerca dos vínculos afetivos, após a
dinâmica, quando teve início um debate sobre os sentimentos, pensamentos e emoções
internas que foram desencadeados no dia. Muitos tomaram a iniciativa de expressar através de
palavras o que significou para eles e, quando o fizeram, questionamos os mesmo sobre as
possíveis associações entre esse tema e o desenvolvimento do mesmo com o medo de dirigir.
A partir dessa reflexão eles conseguiram entender que quando sua autoestima está
abaixo ou a ponto de não existir, eles deixam de gostar de si mesmos e perdem a confiança,
não acreditam que são capazes e sempre colocam outras pessoas e interesses acima de si
mesmos. Várias falas mostraram isso, como “Se eu não me amo e não confio em mim, não
consigo fazer nada, nem dirigir”; “Eu preciso me amar primeiro”; “Eu sempre amei primeiro a
minha família porque é que o me ensinaram desde que entendo por gente... É o que sempre vi,
e é que sempre achei certo. Mas agora eu vejo que esse jeito de agir com eles e com todo
mundo só me faz mal. E até na hora de vir procurar ajuda aqui eu pensei antes neles do que
em mim. A minha primeira vontade foi perder esse medo pra poder levar e buscar meus filhos
nos lugares. E depois pra parar de ouvir desaforos das pessoas e me sentir mal. Por último
pensei em perder por mim...”; “Nem gosto de dirigir, mas meu filho e meu marido me
pressionam o tempo todo, sobre tudo. Será então que eu faço tudo isso porque amo mais eles
antes de me amar? Acho que preciso aprender a dirigir a minha vida antes do carro (risos)”.
As duas últimas frases foram ditas por integrantes diferentes do grupo e seguidas pela
concordância geral dos outros, mostrando o quanto a reflexão teve efeito. Isso mostra o
quanto os vínculos afetivos e as relações interpessoais, principalmente com pessoas próximas,
podem influenciar a tal ponto que esses indivíduos realocam suas prioridades com base nas
prioridades do outro e, dessa forma, contribuem na questão do medo de dirigir.
Possivelmente, a sessão que trouxe mais conteúdos de vínculos afetivos, foi de tema
Autoimagem. Após a apresentação de slides da psicoeducação sobre o tema em questão, eles
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com o que eles acham de si mesmos, e sim como as outras pessoas os veem e sobre como
falam sobre eles, acreditando fielmente nessas verdades contestáveis. “Sempre escutei do meu
pai o quanto não sei fazer as coisas. Ele falava que eu era incapaz de fazer algo certo e meus
irmãos riam disso. Até hoje acredito nisso e meu marido e filhos não dizem o mesmo, mas
também nunca me falaram o contrário”. Essa frase foi dita por uma integrante do grupo, ao
tentar expressar a relação entre seu medo de dirigir e sua autoimagem. Os demais, ao ouvirem
isso, concordaram e deram início a uma série de histórias e momentos em que conduziram
suas vidas a partir da opinião dos outros, e desse modo, diminuíram a si mesmos, baseados
em tudo, menos suas próprias opiniões. “Até então eu achava que não gostava de dirigir, mas
na verdade as pessoas falam que eu não gosto e por isso sou preguiçosa, não aprendo e falo
que tenho medo!”.
Outra discussão desencadeada por esse tema e de relevância para este trabalho, foi a
respeito das questões de gênero e forma como a mulher é vista em nossa sociedade. A cultura
estabelece, desde criança, que os homens são os provedores da casa, os chefes das famílias e
aquele que é o dono do carro e responsável por dirigir, automóvel que ainda hoje é símbolo de
poder e status. E a mulher é a dona de casa que cuida dos afazeres domésticos, dos filhos e do
marido. Isso é evidente desde o momento que as garotas ganham bonecas e brinquedos que
imitam utensílios domésticos e os garotos ganham carrinhos e outras coisas. Essa discussão
do papel mulher foi importante e surgiu da compreensão dos próprios integrantes do grupo
sobre o ditado “Mulher no volante, perigo constante”. “Eu ouço isso desde que sou criança e
cresci acreditando que sou ruim porque sou mulher”, disse uma integrante do grupo. E outra
afirmou: “Meu marido não perde a chance de me falar isso e ouço em outros lugares e
situações o tempo todo. Acredito que essa imagem faz também faz com que sejamos a
maioria”, em referência ao grupo ter apenas um homem como integrante. Com a concordância
de todas as mulheres e frases semelhantes, é possível estabelecer que os vínculos afetivos
refletem, também, aspectos culturais, determinando as dinâmicas das relações interpessoais, e
trazendo consequências para o cotidiano de cada pessoa. As mulheres, ao ouvirem que são um
perigo no trânsito e, portanto, incapazes de não causar acidentes e não cometer erros,
internalizam essas falas e o modo domina suas situações. Vínculos afetivos desprovidos
desses estigmas culturais, podem não impedir, em todos os casos e totalmente, que uma
pessoa desenvolva medo ou fobia de dirigir, mas certamente não é um incentivador nem ajuda
a não agravar.
O modo como foram estabelecidos os vínculos de vários indivíduos do grupo, com o
pai, maridos e filhos homens, ou seja, com figuras masculinas próximas e intimidas, também
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Yontef (1998), afirma que, nesse sentido, a Gestalt-Terapia trata o que é sentido
“subjetivamente” no presente e o que é “objetivamente” observado, como dados importantes e
reais. O modo como o indivíduo se torna consciente é crucial para qualquer investigação
fenomenológica
Baseado na fenomenologia, o papel do gestalt-terapeuta é de não apenas observar e
facilitar o processo de experiência do cliente, mas também de prestar atenção em aspectos que
podem estar sendo inibidos da experiência do indivíduo. Aspectos que estão fora da
awareness atual são trazidos à awareness, ou seja, à consciência (GESTAL EM
MOVIMENTO, 2010).
Interpretar e projetar, e por isso, de acordo com Gestalt em Movimento (2010), em
Gestalt-Terapia a busca da compreensão é baseada no óbvio e não na interpretação. Fazer
fenomenologia nessa abordagem é buscar descrever, a partir da experiência, a vivência
sensorial usando awareness sensorial para chegar à awareness reflexiva.
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que também é um conceito da Gestalt, Ribeiro (2006) afirma que, fazer contato é relacionar-
se, encontrar-se consigo mesmo e com o outro. Isso é feito sem jamais perder a perspectiva do
que acontece no mundo. Se reconhecer como sendo a si mesmo, olhar pra dentro e estar
presente a si mesmo, é o que chamamos de fazer contato.
O mesmo autor ainda afirma que o sentido que a pessoa dá à realidade fora do contato,
determina a intensidade e duração deste. Somente a pessoa que tem consciência da sua
totalidade, pode estar inteira no contato. Segundo a Gestalt-terapia, a forma, ou seja, o tocar,
olhar, falar, ouvir e a qualidade do contato estabelecido serão expressos de modo variável, ou
seja, é expressos de acordo com a história de vida de cada indivíduo, da história de contatos
estabelecidos pelo mesmo, dos significados que atribuiu a estes e, consequentemente, de
como os introjetou, de maneira a estruturar sua realidade interna. No caso tema em questão, é
expresso através do medo de dirigir.
Outros autores também falam sobre esse conceito. Erving e Polster (2001) afirmam
que o contato é muito mais do que apenas intimidade ou reunião, pois ele só pode ser feito por
pessoas independentes, entre seres separados. Somente esses são capazes de entrar em
contato. Para se familiarizar com o contato pleno, o indivíduo deve fazer isso como um todo,
com todo o corpo, toda a mente, ou seja, plenamente, e não em partes.
“O contato é o sangue vital do crescimento, o meio para mudar a si mesmo e a
experiência que se tem do mundo. A mudança é um produto inevitável do contato [...]”
(ERVING; POLSTER, 2001, p. 113). Ou seja, um contato, um vínculo estruturado em cima
de ideias negativas, gera consequências negativas. O medo de dirigir se encaixa perfeitamente
na falta de confiança em si mesmo e nas ideias erradas acerca do seu eu, que uma pessoa
estabelece a partir do contato com outro e falta de contato necessário e eficaz contigo mesmo.
A mudança por meio do contato simplesmente acontece, de acordo com os mesmos
autores. Ou seja, não é necessário que o indivíduo precise tentar mudar por meio do contato.
Este é incompatível com permanecer o mesmo. Ele não é uma característica da qual tenhamos
consciência, igual não temos da gravidade quando estamos andando. Ou seja, estando no aqui
e agora, ele é automático.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O principal propósito deste trabalho foi explorar a relação entre os vínculos afetivos e
o medo de dirigir através dos resultados de um relato de experiência com grupos terapêuticos
formados por pessoas com essa característica em comum, para verificar a existência, entre
eles, de possíveis causas afetivas que podem ter originado esse sintoma.
Através de sessões com os grupos, utilizando técnicas especificas em cada encontro,
conseguimos alcançar o objetivo deste trabalho, identificando as queixas presentes e cada
indivíduo, relacionadas com o medo de dirigir; caracterizando aquelas sem causa evidente
como acidente ou quase acidente; investigando as ansiedades e inseguranças dessas pessoas;
fazendo uma relação dos vínculos afetivos com as dificuldades relacionadas ao trânsito e;
verificando e avaliando os resultados obtidos no grupo.
A problemática da pesquisa era se, de algum modo, os vínculos afetivos, ao longo do
desenvolvimento do indivíduo, podem causar o medo de dirigir, e em caso positivo, como
isso ocorreria. Os maiores pontos de relevância para o nosso estudo foram os discursos a
respeito das inseguranças dos participantes em relação às criticas negativas que recebem
principalmente de seus familiares, ao longo da vida. Conseguimos identificar que essas
críticas, palavras e frases negativas, sobre eles, partindo de pessoas com vínculo tão forte
quanto membros da família, fizeram com que se tornassem pessoas inseguras, com
sentimentos de menos valia, inferioridade, com baixa autoestima, entre outros, refletindo,
desse modo, no ato de dirigir, causando o medo.
Outro ponto de relevância foi a questão de gênero, indicada pela composição quase
total de mulheres no grupo, mostrando o quanto elas são mais atingidas por esse tipo de medo.
Através da prática em saúde com os grupos, foi possível ver claramente o quanto, ainda hoje,
repercute a construção histórica e cultural da diferença de gêneros e dos papéis do homem e
das mulheres, trazendo prejuízos para grande parte das mulheres. Ideias de fragilidade e de
dependência são associadas às mulheres, informações essas que vêm da cultura, onde sempre
foram vistas como “sexo frágil”, diferente dos homens que simbolizam, entre outras coisas,
poder e proteção. Portanto, o papel de dona do lar, servindo para cuidar dos filhos e maridos,
foi e ainda é atribuído às mulheres, e papel de provedor do lar, protetor, aos homens. Portanto,
o carro que simboliza força, poder, autonomia, e o ato de dirigir, é atribuído como função
predominantemente masculina, embora seja uma visão errônea e ultrapassada.
Diante de todos esses pontos, podemos afirmar que as hipóteses levantadas no início
deste trabalho foram confirmadas. No entanto, a bibliografia não correspondeu às nossas
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expectativas, pois, apesar de ser possível encontrar diversos trabalhos com o tema Medo de
Dirigir, apenas um dos que foram encontrados explanava como causa outra explicação que
não a de envolvimento ou quase envolvimento em acidente, e ainda assim feita de maneira
breve. Esse fato nos mostra a importância de uma ampliação de pesquisas e referencial teórico
acerca do tema, abordando os aspectos psicológicos envolvidos nas outras possíveis causas.
Portanto, sugerimos que outras pesquisas com essas finalidades e características sejam feitas,
já que esse é um tema de extrema relevância para a Psicologia e, outras possíveis áreas.
Por fim, podemos afirmar que todo esse processo de descobertas e aprendizagem, foi
de total importância para a nossa formação acadêmica, construção não apenas profissional,
como também pessoal, pois nos deu a possibilidade de refletir sobre a importância do papel da
Psicologia e do Psicólogo nesse processo.
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