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Raciais*
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é resgatar as reflexões sobre o tema das relações raciais de dois
sociólogos baianos radicados no Rio de Janeiro, a partir de suas trajetórias sociais e
intelectuais. Trata-se de Luiz de Aguiar Costa Pinto e Alberto Guerreiro Ramos. A
escolha desses cientistas sociais, com destacada participação no campo das ciências
sociais no Brasil entre 1945 e 1964, se deve não só à importância de suas respectivas
obras, mas, também, à polêmica que se criou entre os mesmos em torno da questão dos
intercursos étnicos.
A face mais visível do confronto teve como fórum privilegiado a grande imprensa da
época. Em um primeiro momento, a controvérsia poderia ser confundida com uma mera
questão pessoal; no entanto, uma leitura mais cuidadosa das origens sociais e raciais dos
dois intelectuais, de suas trajetórias profissionais e abordagens sobre o tema em questão,
revela que seus respectivos enfoques sobre as relações raciais, afora importantes
implicações políticas, pertenciam a dois padrões distintos de trabalho sociológico.
Nesse sentido, é importante destacar que os dois sociólogos, de modos variados, ao
lidarem com os intercursos raciais, trataram também da mudança social e do processo
de desenvolvimento do país, questões obrigatórias à época.
TRAJETÓRIAS CRUZADAS
Após a Revolução de 30, a derrotada elite política baiana não ofuscou a presença de
importantes intelectuais baianos, ou que viviam na Bahia, como Arthur Ramos, Jorge
Amado, Édison Carneiro, Aydano Couto Ferraz, Thales de Azevedo, e de outros que
iniciavam suas carreiras como Afrânio Coutinho, Rômulo de Almeida e Alberto
Guerreiro Ramos. Eles não ficaram imunes à radicalização política dos anos 30, optando
ora pela vertente comunista, ora pela católica ou integralista (Oliveira, 1995a, p. 23).
Alguns deles, como Arthur Ramos, Édison Carneiro e Aydano Couto Ferraz
organizaram o 2º Congresso Afro-Brasileiro, em 1937, que se pautaria pela ênfase nos
constructos raciais, especialmente a raça negra, destacando as características intrínsecas
às raças (físicas e psíquicas), as "sobrevivências" culturais e religiosas, os processos de
aculturação.
Luiz de Aguiar Costa Pinto, nascido em Salvador em 6 de fevereiro de 1920, era filho
de família abastada, proprietária de engenhos no Recôncavo baiano. Seu avô foi senador
da República e o pai diplomou-se em medicina, tendo trabalhado com Nina Rodrigues
na Faculdade de Medicina da Bahia e ocupado o cargo de diretor da instituição. Com a
morte do pai, Costa Pinto abandonou o segundo ano do pré-médico, antigo curso
secundário, e preparou-se para entrar na Faculdade de Direito. Em 1937, veio com parte
da família ¾ mãe e dois irmãos ¾ para o Rio de Janeiro. O futuro sociólogo envolveu-se
no movimento estudantil e militou na Juventude Comunista. Em 1939, por conta de sua
atividade política antiestadonovista permaneceu preso durante oito meses (Costa Pinto,
1989).
Quanto à Faculdade Nacional de Filosofia ¾ FNFi, ela foi criada no início da ditadura
varguista sob forte influência católica e de remanescentes do integralismo. Alguns
integrantes da antiga UDF foram absorvidos pela nova estrutura, como foi o caso de
Arthur Ramos, assim como os professores franceses Jacques Lambert, de sociologia, e
André Gross, de ciência política, entre outros (Paim, 1982; Schwartzman et alii, 1984,
pp. 214-219).
Durante os anos 40 e parte dos 50, o curso de ciências sociais da FNFi esteve
essencialmente voltado para o ensino. A frágil vinculação entre ensino e pesquisa no
campo das ciências sociais no Rio de Janeiro pode ser ilustrada pelo depoimento de
Costa Pinto: "a pesquisa era uma aspiração. Nunca houve pesquisa propriamente. O
[Arthur] Ramos fazia alguma coisa, mas de uma maneira muito individual. Era dele, não
era da faculdade" (Costa Pinto, 1989, p. 14).
Em 1942, ao terminar o curso, Costa Pinto foi convidado para ser assistente de Jacques
Lambert na cadeira de sociologia. Suas afinidades profissionais com o professor francês
resultaram na publicação de dois livros: Problèmes Démographiques
Contemporains (Lambert e Costa Pinto, 1944) e Lutas de Famílias no Brasil (Costa
Pinto, 1949b), estudo monográfico sobre o poder privado no Brasil colonial. Costa Pinto
publicou, ainda, diversos artigos na revista Sociologia, da Escola Livre de Sociologia e
Política de São Paulo, concernentes ao ensino das ciências sociais e sobre aspectos
teóricos e empíricos da pesquisa sociológica (Costa Pinto, 1941; 1944; 1946; 1947;
1948; 1949a; 1950).
Guerreiro Ramos teve trajetória diversa. Em 1942 foi preterido tanto na cadeira de
sociologia como na de ciência política. Em seu lugar, Victor Nunes Leal tornou-se
professor-assistente de André Gross. Na sua versão dos fatos, Guerreiro Ramos alega
que seu passado integralista no contexto da Segunda Guerra Mundial e de aproximação
do Brasil das Forças Aliadas prejudicou a continuação da sua vida acadêmica na
universidade. O diretor da Faculdade, San Thiago Dantas, outro ex-integralista,
conseguiu um emprego de professor para o sociólogo baiano no Departamento Nacional
da Criança (Oliveira, 1995a, pp. 140-141).
No começo dos anos 50, com a volta de Getulio Vargas ao poder, Guerreiro Ramos,
como funcionário do DASP, foi convidado a trabalhar na assessoria econômica do
gabinete civil da Presidência da República junto com Rômulo de Almeida, Jesus Soares
Pereira e Inácio Rangel. Ao analisar esse período afirma que sua participação no
governo Vargas foi de suma importância para sua compreensão do Brasil (Oliveira,
1995a, p.147).
Costa Pinto e Guerreiro Ramos, dois baianos que vieram para o Rio de Janeiro na
mesma corrente migratória de vários intelectuais dos anos 30: o primeiro, branco e
típico exemplo da elite baiana; o segundo, mulato e pobre, que aos poucos foi
ascendendo socialmente. Um na universidade, outro no Poder Executivo, Costa Pinto e
Guerreiro Ramos iriam se encontrar no debate sobre as relações raciais no Brasil na
década de 50.
No final de 1949, Costa Pinto foi convidado pelo seu ex-professor Arthur Ramos,
recém-empossado no cargo de diretor do Departamento de Ciências Sociais da
UNESCO, para participar de um encontro em Paris sobre a questão racial.
A primeira Declaração sobre a Raça só veio a ser publicada em maio de 1950, por
ocasião da 5ª Conferência Geral da UNESCO, em Florença. O tópico mais polêmico da
Declaração foi o questionamento radical da validade científica do conceito de raça. A
intervenção de Costa Pinto na reunião de Paris de 1949 indica, em boa medida, as
dúvidas quanto à aplicabilidade desse conceito para o entendimento das desigualdades
étnicas existentes no mundo. Suas indagações referiam-se à natureza econômica e
política dessas relações e a uma de suas mais importantes manifestações: a
discriminação racial. Para o sociólogo, raça não seria uma variável independente na
dinâmica dos conflitos étnicos, tendo íntima relação com a dominação em uma
sociedade de classes e, em escala mundial, com o poder do imperialismo (Costa Pinto,
1950, p.17). As diversas formas de perpetuação das disparidades sociais criariam"
mecanismo[s] ideológico[s] pelo[s] qual[is] se formam os preconceitos de raça, mesmo
quando se apresentam como etiquetas soi-disant científicas" (ibidem).
"[...] au Brèsil d'une enquête-témoin concernant les contacts entre races ou entre les
groupes éthniques, en vue de déterminer les facteurs économiques, politiques, culturels
et psychologiques favorables ou défavorables aux bonnes relations entre ces races ou
ces groupes éthniques" (UNESCO, 1950a).
A imagem positiva do Brasil no terreno das relações raciais já vinha sendo cultivada no
plano internacional desde o início do século, especialmente pelos americanos (Hellwig,
1992; Pierson, 1945). Essas interpretações do Brasil forjadas por brasileiros e
estrangeiros reforçavam a visão do país como uma democracia racial, especialmente nos
anos 30, 40 e 50. A título de ilustração podemos citar as obras de Gilberto Freyre
(1980[1933]) e Donald Pierson (1945). Além disso, é sugestivo pensar que depois do
genocídio nazista e da manutenção de um sistema legal de discriminação racial em
países como a África do Sul e, especialmente, nos Estados Unidos, objeto de constante
comparação com o nosso país, o Brasil pudesse oferecer "lições de civilização" ao
mundo. Assim, o Brasil transformou-se em um "laboratório racial", fornecendo o
respaldo empírico necessário à luta política, revestida de ciência, da UNESCO.
O projeto da UNESCO foi gestado por personagens vinculados à então Capital Federal.
O primeiro deles foi o médico e antropólogo Arthur Ramos, herdeiro da denominada
Escola Nina Rodrigues (Peixoto e Ribeiro, 1931; Corrêa, 1982), com diversos trabalhos
sobre o negro, especialmente nos anos 30 e 40, e fundador da Sociedade de
Antropologia e Etnologia. Esta associação, durante a Segunda Guerra Mundial, lançou
dois importantes manifestos contra o racismo, de repercussão internacional. Ramos foi
professor de antropologia da Universidade do Brasil, lecionou em universidades
americanas e coordenou uma coleção de livros contra o racismo. Ao ser criado o
Departamento de Ciências Sociais da UNESCO, Arthur Ramos tornou-se o seu primeiro
diretor, de agosto a outubro de 1949, quando veio a falecer (Azeredo, 1986).
Costa Pinto também contribuiu para a articulação desse projeto. Em sua intervenção no
encontro da UNESCO, em Paris, sobre a questão racial, o sociólogo baiano sugeriu que
fossem realizadas análises com base em pesquisas sobre relações étnicas, de perfil
interdisciplinar e reunindo equipes de pesquisadores de diversos países.
"Seria fácil encontrar por exemplo, para tais investigações, excelentes pontos de
observação no Brasil, nos Estados Unidos, na África do Sul, na União Soviética, na
Índia, no México, na Palestina e em diversas outras regiões desse tipo que Park
denominou ‘ fronteiras raciais’ ¾ o que nos permitiria observar, sempre em ligação
com as diferentes estruturas sociais, os tratamentos e as diversas soluções encontradas
para os problemas das minorias nacionais e étnicas" (Costa Pinto, 1950, p. 18).
"[...] it extremely important as far as certain countries in the New World were
concerned, in which there were to be found side by side native yellow peoples, black
skinned descendants of African slaves and, finally, white immigrants. He [Paulo
Carneiro] suggested that the investigation in question should be carried out in Brazil,
where the intermixture of the population was proceeding with a remarkable absence of
tensions, and where UNESCO would find a rich field for study and could be assured of
efficient help from the Brazilian authorities" (UNESCO, 1950b).
Antes de abordar com maiores detalhes o livro de Costa Pinto, O Negro no Rio de
Janeiro: Relações de Raça numa Sociedade em Mudança, cabe apresentar a trajetória
de Guerreiro Ramos na virada da década de 40 com o objetivo de tornar mais inteligível
a polêmica ocorrida entre os dois sociólogos.
Alberto Guerreiro Ramos conheceu Abdias Nascimento em 1939. Estes dois intelectuais
não-brancos tinham alguns pontos em comum: participaram da Ação Integralista
Brasileira e sofreram forte influência da religião católica (Nascimento e Nascimento,
1991; Oliveira, 1995a). Embora o TEN tenha surgido em 1944, Guerreiro Ramos só se
engajou no movimento negro em sua fase áurea, na virada da década de 40 (Costa Pinto,
1953), quando a associação procurou ampliar seu raio de ação. Inicialmente, Guerreiro
Ramos demonstrou desconfiança, motivada pela natureza do movimento, de expressão
racial e reivindicatória. Ao mesmo tempo, havia uma preocupação com sua própria
inserção social, na medida em que era um mulato "pegado de mau jeito pela sorte [...]
com a vida por organizar" (Guerreiro Ramos, 1950a, pp. 35-36). Ele só veio a participar
do TEN quando já havia se estabelecido profissionalmente e começava a obter
reconhecimento social. Nesse sentido, seu engajamento traduziu-se em maior
visibilidade para um mulato em processo de ascensão social.
Guerreiro Ramos inicia sua militância afirmando que o" problema do negro" deveria ser
encarado a partir das diferenças regionais, de classe e da clivagem rural/urbano.
Ademais, aponta a existência de uma "psicologia diferencial do negro brasileiro",
advinda de um "forte ressentimento" do negro das "classes inferiores" com relação aos
negros "de elevada categoria social", que o leva a acreditar que com o emprego de
"métodos da sociologia psicodinâmica" esse fenômeno poderia ser melhor
compreendido. De sua perspectiva, o preconceito em relação ao negro seria de cor e não
de raça, o que significaria a inexistência de uma linha de castas no Brasil. Por fim,
critica a valorização das "sobrevivências africanas" por parte de sociólogos e
antropólogos, indicando que os negros estariam mais preocupados em ascender
socioculturalmente (Guerreiro Ramos, 1948a, p. 5).
O TEN, segundo ele, deveria transformar-se em uma elite política e intelectual negra
que tivesse por missão superar o descompasso existente entre a simbólica condição de
cidadão livre adquirida pelo negro após a Abolição e sua adversa situação econômica e
sociocultural, ainda presente sessenta anos depois. A solução seria uma pedagogia da
cidadania que, além de socializar os negros nas novas condições geradas pela Abolição,
alterasse a estrutura de dominação da sociedade brasileira (Guerreiro Ramos, 1953b, p.
2).
Para eliminar esse suposto perigo, o TEN formaria uma intelligentsia com o objetivo de
"ganhar a confiança dos poderosos desta terra. Que eles reconheçam em nosso
movimento uma expressão de elite, um princípio de equilíbrio e de harmonia social"
(Guerreiro Ramos, 1950e, p. 50).
Vale ressaltar que o conceito de intelligentsia utilizado por Guerreiro Ramos para
representar um determinado segmento da sociedade, apesar de se inspirar originalmente
na idéia de um grupo de intelectuais "que produz e difunde idéias que contribuam para a
reforma social ou para o processo revolucionário" (Oliveira, 1995a, p. 53), é apropriado
em um sentido mannheimiano, ou seja, o de um "intérprete em geral da sociedade"
(Werneck Vianna, 1994, p. 379). Por isso mesmo, Guerreiro Ramos recusa qualquer
solução do tipo" partido de negros", na medida em que "o homem de cor, entendido
como homem-massa, não estaria habilitado às funções de mando, as quais, como é
sabido, supõe uma longa aprendizagem" (Guerreiro Ramos, 1950a, p. 38). Caberia
à intelligentsia negra promover a elevação social e sem conflitos da "massa negra".
A agenda política de Guerreiro Ramos era composta pelos seguintes tópicos: afirmação
da singularidade dos negros com a eliminação dos recalques advindos do passado,
ascensão social e econômica, constituição de uma intelligentsia, ou seja, de "uma
espiritualidade e uma missão" (Guerreiro Ramos, 1950e, p. 50). Só assim haveria a
redução da enorme distância entre o "negro legal" e o "negro real". Esse programa foi
sintetizado por ele em sua interpretação do "mito da negritude" em consonância com o
movimento negro das ex-colônias francesas na África (Sartre, 1965).
"[...] um elemento passional que se acha inserido nas categorias clássicas da sociedade
brasileira. [...] Humana, demasiadamente humana, é a cultura brasileira, por isto que,
sem desintegrar-se, absorve as idiossincrasias espirituais, as mais variadas. E até
compõe com elas a sua vocação ecumênica, a sua índole compreensiva e tolerante. A
cultura brasileira é, assim, essencialmente católica, no sentido que nada do que é
humano lhe é estranho" (Guerreiro Ramos, 1950c, p. 11).
O trabalho de Costa Pinto analisa as relações raciais no antigo Distrito Federal a partir
do desenvolvimento tenso e contraditório do capitalismo no Brasil. O estudo está
voltado especialmente para a dinâmica urbano-industrial, que foi acelerada após a
Primeira Guerra Mundial e, particularmente, com a Revolução de 30. Nesse sentido, a
questão racial seria um indicador preciso do processo de mudança social.
Na primeira parte do livro, Costa Pinto delimita seu objeto de estudo dialogando com a
literatura existente sobre o tema. Lembrando os comentários de Guerreiro Ramos, o
autor, inspirado em Sérgio Buarque de Holanda, considerava que o negro tinha sido
enfocado como "espetáculo" (Costa Pinto, 1953, p. 16). Isto significava dizer que
Costa Pinto procura demonstrar, a todo momento, a distinção entre fatores étnicos e
sociológicos na dinâmica demográfica do Rio de Janeiro. Nesse sentido, variáveis como
a fecundidade seriam influenciadas pela divisão de classes e pela relação rural
(atraso)/urbano (moderno). O deslocamento de negros e mulatos para os grandes centros
seria motivado pelo" caráter mais impessoal das relações sociais na vida urbana [sendo]
fator que contribui, ao lado dos demais, para que muitas pessoas de cor procurem numa
comunidade maior meios de ascender na escala social" (idem, p. 53). Embora o
processo de urbanização e industrialização abrisse canais de ascensão social, Costa
Pinto observa o caráter restrito da mobilidade social, já que a migração se traduz em
proletarização. Este fenômeno levaria à identificação dos negros "com a condição e as
aspirações das classes trabalhadoras, que constituem a esmagadora maioria da
população urbana deste País" (idem, p. 111).
Dessa forma, o estímulo à educação dos negros pelas elites brancas vem acompanhado
de uma certa ambigüidade: como mecanismo de ascensão social a educação é aplaudida,
mas, ao mesmo tempo, é vista como uma ameaça diante da potencial formação de uma
elite negra ansiosa por galgar posições que os brancos não estariam desejosos de
compartilhar.
O poder competitivo que os negros revelariam por intermédio da ascensão social, via
educação, desnudaria uma série de atitudes e estereótipos da sociedade brasileira. Para
verificar tal fenômeno, Costa Pinto realiza uma pesquisa sobre as atitudes raciais entre
jovens estudantes, utilizando a escala de distância social criada pelo sociólogo Emory
Bogardus, da Escola de Chicago. Destoando tanto da imagem tradicional da ausência de
preconceito racial no Brasil, quanto da visão idílica em relação ao mulato, Costa Pinto
evidencia a existência de uma série de estereótipos, especialmente em relação ao mulato
que, além de possuir um status marginal, é considerado ambíguo. Segundo afirmação do
sociólogo,
Costa Pinto classifica as associações em dois níveis: as tradicionais, que estariam mais
voltadas para as atividades recreativas, culturais, religiosas, apresentando "a
contribuição do africano à estética, à música, à coreografia, à mítica, em suma, à cultura
de folk brasileira" (idem, p. 257); e as de novo tipo, que estariam identificadas com "a
história viva e contemporânea das aspirações, das lutas, dos problemas, do sentir, do
pensar e do agir de brasileiros, social, cultural e nacionalmente brasileiros, etnicamente
negros" (idem, pp. 257-258, ênfases no original).
O sociólogo concebe que a nova forma de mobilidade dos negros já não é mais
individual como acontecia na sociedade tradicional, ditada pelo paternalismo,
especialmente no século XIX. Agora estaríamos diante de "novas elites" que reagem de
maneira
Essa elite viveria o drama da ascensão e das barreiras advindas dos estereótipos. Tal
dualidade provocaria a elevação do número de negros distanciados "das massas de cor"
e que se transformariam em "porta-voz natural das angústias e das aspirações de seu
grupo étnico enquanto grupo social" (idem, p. 270). No entanto, segundo Costa Pinto,
esta nova liderança se mantém em uma redoma, na medida em que não consegue
sensibilizar as "massas de cor" que, por serem proletárias, estariam mais identificadas
com movimentos de corte classista (partidos, sindicatos) e não étnicos (idem, p. 274).
Diante desse cenário, o sociólogo reafirma o caráter elitista do movimento negro que, a
despeito do seu afã de representar o negro em geral, limita-se a contemplar os intentos e
as mazelas vividas pelo negro de classe média "duplamente asfixiado por sua condição
de raça e de classe" (idem, p. 275).
Para dar mais sentido às suas reflexões, Costa Pinto detém-se na análise do Teatro
Experimental do Negro, que, devido "à dinâmica da tensão racial, [...] assum[e] a
envergadura de um movimento, mais que isso: de um grupo de pressão [...]" (idem, pp.
276-277) no final da década de 40.
Vivendo o dilema entre uma "atitude de protesto contra a linha de cor que lhes
dificultava a ascensão" (idem, p. 276) e a busca da disciplina gradativa da "gente negra
nos estilos de comportamento da classe média e superior da sociedade"
(Nascimento apud Costa Pinto, 1953, p. 281), o TEN seria, em seu tempo, "a mais
legítima expressão ideológica da pequena burguesia intelectualizada e pigmentada no
Rio de Janeiro e, por sem dúvida, no país" (Costa Pinto, 1953, p. 278).
"[...] do mesmo modo que se pode aqui mais uma vez repetir que não há um problema
do negro ¾ pois o problema é o branco que tem sobre o negro falsas idéias e age de
acordo com essas idéias falsas ¾ , também se poderia dizer, inversamente, que a idéia
da negritude não é negra ¾ é branca, é o reflexo invertido, na cabeça de negros, da idéia
que os brancos fazem sobre ele, é o resultado da tomada de consciência (também em
termos falsos, diga-se de passagem) da resistência que o branco faz à ascensão social do
negro. É, em suma, um racismo às avessas" (idem, pp. 332-333).
Com a modernização capitalista, a estratégia de ascensão social dos negros pela via do
branqueamento, de caráter individual, tornou-se inócua, já que se estaria diante da
conformação de uma classe média não-branca. A solução dos movimentos sociais
negros seria ineficaz não só pela" falsa visão" da ideologia da negritude, um" racismo às
avessas", mas também pelo descompasso, apontado por Costa Pinto, entre as diferentes
inserções sociais e visões de mundo das respectivas "elite negra" e" massa negra". Esta
última, segundo o sociólogo baiano, agiria diferente da "elite negra", pois
"[...] quando o preconceito [a] atinge el[a] reage de pronto, e diretamente, como quem
repele uma afronta pessoal, muitas vezes violentamente, à sua maneira. Não discute
pomposamente, nem elabora explicações sofisticadas sobre o paideuma de
sua negritude. Se o problema surge el[a] simplesmente o enfrenta, como home[ns]
simples, como home[ns] do povo. E como o preconceito não se apresenta numa frente
única e unida, apoiado pela lei e cristalizado numa doutrina, consistindo antes num
sistema de atitudes e estereótipos que não raro se contradizem e não apresentam
qualquer coerência, moralmente batido pela ciência e pela história, o negro-massa
encara-o sempre face a face, em cada forma ou circunstância em que se manifesta, e
destrói-o e vence-o em mil batalhas quotidianas, pensando, sentindo e agindo menos
como raça, mais como massa, cada vez mais como classe" (idem, pp. 337-338, ênfases
no original).
A pesquisa de Costa Pinto só foi publicada no final de 1953. Desde o ano anterior
Guerreiro Ramos já trabalhava na Casa Civil do governo Getulio Vargas (Oliveira,
1995b). No segundo semestre de 1952, Guerreiro Ramos começa a participar de
reuniões com um grupo de intelectuais (Helio Jaguaribe, Ignácio Rangel, Roland
Corbisier, Juvenal Osório Gomes, Hermes Lima e outros) que criaram posteriormente o
IBESP, futuro ISEB. Fazia parte da pauta de discussões do IBESP, segundo
Schwartzman, "o subdesenvolvimento brasileiro, a busca de uma posição internacional
de não alinhamento e de ‘ terceira força’ , um nacionalismo em relação aos recursos
naturais do País, uma racionalização maior da gestão pública [e uma] maior participação
de setores populares na vida política" (1981, p. 3).
No início de seu envolvimento com o IBESP, Guerreiro Ramos escreveu O Processo da
Sociologia no Brasil, trabalho que reflete a nova fase de sua atuação intelectual e
política. Logo na introdução, o autor afirma que "assumi[u] diante das obras dos
sociólogos brasileiros uma atitude de naturalista [...]" (Guerreiro Ramos, 1953b, p. 5),
em um esforço de construção de sua identidade nos embates no campo acadêmico.
É interessante observar que o sociólogo baiano cria "um sub-ramo desta última
corrente" (idem, p. 12) que estaria voltado para os estudos do negro, ou seja, que faria
do negro "material etnográfico", e à qual pertenceriam Nina Rodrigues, Gilberto Freyre,
Arthur Ramos, Alfred Métraux, Donald Pierson, Roger Bastide, Emilio Willems e
outros (idem, pp. 12-17). Estes autores veriam o negro "como uma espécie de múmia, e
não na sua problematicidade política e social. Daí que até certo ponto, eles tenham
cooperado para distrair a atenção das elites do país do sentido programático do
movimento abolicionista, tal como tinha sido delimitado por homens como Joaquim
Nabuco" (idem, p. 17).
Esse novo exercício de classificação dos intelectuais no interior das ciências sociais
revela uma mudança radical do sociólogo diante dos escritos anteriores,
especialmente Notícias sobre as Pesquisas e os Estudos Sociológicos no Brasil (1940-
1949) (Guerreiro Ramos e Garcia, 1949). Essa guinada se revela no cancelamento da
divisão, cujo marco seriam os anos 30, entre produção sociológica institucionalizada e a
considerada" pré-científica", "ensaística". Dita questão é bem evidente nas reflexões
sobre o negro. Guerreiro Ramos considera que a sociologia acadêmica, ao fazer do
negro" objeto de estudo", lembraria as pesquisas sobre as" sobrevivências africanas",
tão criticadas por ele.
O sociólogo divide essa tradição entre aqueles que procuravam incorporar o negro à
nação, embora com uma série de equívocos de natureza racista, como Oliveira Vianna, e
aqueles que, com uma visão racista e pessimista, como Nina Rodrigues, não
conseguiam encontrar "um lugar para o negro", já que este ameaçaria a identificação
entre os destinos da nação e a civilização branca e ocidental.
A aproximação de Guerreiro Ramos da vertente" autenticamente nacional" sugere a
existência de uma certa tensão, no pensamento do autor, entre o reconhecimento da
diversidade étnica existente no país e a necessidade de sua diluição em face da urgência
de se construir uma identidade nacional. Esta posição seria reforçada em julho de 1953
no II Congresso Latino-Americano de Sociologia ocorrido no Rio de Janeiro e em São
Paulo, no qual o sociólogo apresenta, como presidente da Comissão de Estruturas
Nacionais e Regionais desse Congresso, uma série de teses, recusadas em sua
totalidade, sobre o que deveria ser o trabalho sociológico em um país em processo de
desenvolvimento em bases nacionais. Isso faz com que Guerreiro Ramos estabeleça
uma discussão pública, por meio do jornal Diário de Notícias, a respeito de suas idéias.
Dentre as teses derrotadas pelo Congresso encontra-se uma especialmente dedicada à
questão racial:
Pode-se observar, pelo texto acima, que a visão integracionista de Guerreiro Ramos,
calcada no suposto êxito dos processos de mudanças estruturais nas sociedades latino-
americanas, encontra-se ainda fundamentada em uma ambígua compreensão do
significado do tema dos intercursos raciais em processo de desenvolvimento em
contextos nacionais. Guerreiro Ramos reconhece o problema, mas, ao mesmo tempo,
cancela suas especificidades em face da importância da questão nacional.
A radiografia do pensamento social brasileiro feita por Guerreiro Ramos em 1953 foi
aprofundada no ano seguinte em reação às críticas de Costa Pinto ao TEN.4 Além de
transformar textualmente o sociólogo mulato em objeto de estudo, na medida em que o
mesmo seria um dos ideólogos do TEN, Costa Pinto caracteriza o movimento negro
como uma elite mergulhada em um profundo dilema por estar nos estratos superiores da
sociedade, mas não ser aceita de fato pelas" elites brancas". Além disso, afirma que a"
ideologia da negritude" seria um "racismo às avessas" e que a "elite negra" se
constituiria em uma minoria totalmente descolada da "massa negra", não percebendo
que a dicotomia entre raça e classe é uma falsa questão. A análise de Costa Pinto só
viria a confirmar, segundo Guerreiro Ramos, a idéia de que a sociologia estaria
impregnada de estudos nos quais o negro seria transformado em" material etnográfico".
Logo na introdução, Guerreiro Ramos afirma que os estudos raciais são, em geral,
alienados por seguir parâmetros sociológicos espelhados nas realidades européia e
norte-americana. Conceitos como "aculturação"," estrutura social" e "mudança social"
estariam comprometidos com "uma concepção quietista da sociedade e, assim,
contribu[iriam] para a ocultação da terapêutica decisiva dos problemas humanos em
países subdesenvolvidos" (Guerreiro Ramos, 1957, p. 125).
É interessante observar que parte dos cientistas sociais criticados por Guerreiro Ramos
pertenciam ao projeto patrocinado pela UNESCO sobre relações raciais no Brasil. Este
projeto suscitou uma interessante confluência dos propósitos da UNESCO com a
presença de um grupo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros que chegavam, em
graus variados, à maturidade intelectual e profissional, possibilitando, no contexto de
democratização do país vivido entre 1946-1964, o surgimento de novas interpretações
sobre as relações raciais no Brasil e, especialmente, a revelação da discriminação racial
em diversos níveis, frustrando, em parte, a expectativa inicial da UNESCO.
Nesse sentido, o aspecto mais importante a ser revisto pela" sociologia de intervenção"
(Werneck Vianna, 1994, p. 378) proposta por Guerreiro Ramos seria a própria idéia de
conceber o negro como um problema na sociedade brasileira. Se os negros e os mulatos
professam em sua maioria a religião católica; se alguns dos fenômenos sociais, como a
criminalidade, advêm da sua condição socioeconômica e não étnica; se não há nada de
singularmente negativo em sua conduta, quer na vida associativa, conjugal, profissional
ou mesmo no processo de competição econômica e política; e, por fim, se o
comportamento do negro é "sempre essencialmente como brasileiro, embora, como o
dos brancos, esse comportamento se diferencie segundo as contingências de região e
estrato social" (Guerreiro Ramos, 1957, p. 149), qual seria o problema particular do
negro?
No centro dessa ideologia estaria a estética branca assimilada pelas sociedades que
sofreram a dominação colonial. Influenciado pelo etnocentrismo europeu, o brasileiro,"
especialmente o letrado, adere psicologicamente a um padrão estético europeu e vê os
acidentes étnicos do país e a si próprio, do ponto de vista deste. Isto é verdade, tanto
com referência ao brasileiro de cor como ao claro" (idem, p. 153). Portanto, os estudos
sociológicos e antropológicos sobre o negro elaborados até então não passariam de"
documentos ilustrados da ideologia da brancura ou da claridade" (idem, p. 154).
A atitude reativa da minoria branca, ávida por preservar sua condição de estirpe, de
pureza racial, em face de um povo nitidamente mestiço, mascararia seu complexo de
inferioridade, revelando assim uma combinação de anomalia e atraso. Diante de uma
nação em intenso processo de urbanização e industrialização, que se traduziria pela
mobilidade social vertical, contemplando inclusive os negros, a "patologia social do
‘ branco’ brasileiro" seria sinônimo de antinação, "já que [indicaria assim um]
sintoma de escassa integração social de seus elementos [...]" (idem, p. 191).
O sociólogo baiano acreditava que só uma sociologia operada por uma elite negra
poderia atingir uma solução satisfatória no terreno das desigualdades raciais. Para isso,
o pesquisador deveria "partir de uma situação vital [...] aberto à realidade fática e,
também, aberto interiormente para a originalidade" (idem, p. 156).
Pelo que se pode observar, essa "união de contrários" (conjunctio oppositorium) não
seria a diluição das especificidades raciais e sim, como "água e azeite" (Araújo, 1994), a
afirmação da diversidade em um contexto de desenvolvimento econômico nacional. Só
assim estaríamos diante da possibilidade de realização de uma democracia racial plena
intimamente associada à construção definitiva da identidade nacional.
À crítica às "sobrevivências africanas" soma-se agora uma visão que não diluiria as
especificidades raciais mas, pelo contrário, apostaria na superação do atraso,
precondição para a constituição política do povo brasileiro. Como afirma Guerreiro
Ramos:
"Desde que se define o negro como um ingrediente normal da população do país, como
povo brasileiro, carece de significação falar de problema do negro puramente
econômico, destacado do problema geral das classes desfavorecidas ou do pauperismo.
O negro é povo, no Brasil.[...] O negro no Brasil não é uma anedota, é um parâmetro da
realidade nacional" (Guerreiro Ramos, 1957, p. 157, ênfase no original).
NOTAS:
3. A primeira crítica de Guerreiro Ramos a Costa Pinto foi publicada antes de o livro
deste último, O Negro no Rio de Janeiro, completar um mês da publicação. O artigo
intitula-se "Sociologia Clínica de um Baiano ‘ Claro’ ", no qual o sociólogo ressalta a
necessidade de se estudar os aspectos patológicos que norteariam a conduta do branco
em relação ao negro. Embora não mencione textualmente Costa Pinto, este se constitui
em seu personagem central (Guerreiro Ramos, 1953a). A resposta de Costa Pinto viria
duas semanas depois, quando o professor de sociologia da FNFi afirma "que é preciso
não confundir duas coisas bem diferentes e que só podem ser misturadas por má-fé:
uma coisa é IDEOLOGIA RACIAL, outra coisa completamente distinta é o ESTUDO
CIENTÍFICO DE RELAÇÕES DE RAÇA. O leitor inteligente que tenha sobre o
assunto o mínimo de conhecimento necessário para se interessar pela leitura do livro e
dos artigos é capaz de compreender que a segunda é o métierprofissional do sociólogo e
que a primeira é o seu material. As duas atitudes, portanto, não se confundem e não
serei eu quem há de confundi-las" (Costa Pinto, 1954, p. 2, ênfases no original).
Guerreiro Ramos responde ao artigo de modo bastante agressivo, procurando
desqualificar o trabalho sociológico de Costa Pinto (Guerreiro Ramos, 1954a, p. 7).
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