FICHA CATALOGRÁFICA : BIBLIOTECA FACHA PESQUISA

P474 Pesquisa histórica na educação física, vol. 4 / Amarílio Ferreira

Neto, (org.). Aracruz, ES: FACHA, 1999.
HISTÓRICA
p. 169 NA EDUCAÇÃO
1. Educação física - Pesquisa. 2. Educação Física -
historiografia. I. Ferreira Neto, Amarílio.
F Í S I C A
CDU: 796(81 )(091) Amarílio Ferreira Neto (org.)
Ana Carrilho R. Grunennvaldt
Carla Simone Chamon
Fernanda Paiva
Conselho Editorial: Amarílio Ferreira Neto
Carmen Lúcia Soares Homero Luis Alves de Lima
Eustáquia Salvadora de Souza
Luciano Mendes Faria Filho
Fernanda Paiva
Tarcísio Mauro Vago Pierre Normando Gomes da Silva
Victor Andrade de Melo
Tarcísio Mauro Vago

Editoração Eletrônica: Amarílio Ferreira Neto

Márcio Schneider Machado

Vol.4
Revisão do Texto: Alina da Silva Bonella

$
Capa: Cristina Xavier
^^^^^^FACULDADE DE
^ ^ ^ ^ ^ ^ CIÊNCIAS HUMANAS
OC ARACRUZ

© Faculdade de Ciências Humanas de Aracruz

•ACHA

Aracruz,1999
 Compendio de Gymnastica Escolar:
o Corpo e a Pedagogia no Início do Século XX

Pierre Normando Gomes da Silva

Professor da Universidade Federal da Paraíba
Mestre em Educação - UFPB

O Compendio... c o m o Livro-Didático

Pelos dados que a historiografia brasileira da Educação Física

possui, o texto de Arthur Higgins, denominado inicialmente de
Compendio de gymnastica e jogos gymnasticos escolares (1896)
foi a primeira sistematização pedagógica para a Educação Física
brasileira, durante a Primeira Republica, que de fato se efetivou na
escola com aprovação oficial.1 Para ilustrar esse status -que o
Compendio... recebeu, pelo menos no Distrito Federal, basta dizer que
foi aprovado unanimamente tanto pelo Conselho Superior de Instrução
(1902), quanto por uma comissão da Diretoria Geral de Instrução
Municipal, nos anos de 1912 e 1914, além de ter recebido prêmio
conferido por uma Comissão de Professores da Escola Normal do
Distrito Federal (1913).
Em 6 de março de 1912, início do ano letivo, o Compendio...
foi indicado como "livro-didático", para a Educação Física das escolas
públicas na cidade do Rio de Janeiro. Nessa época, a comissão da
Diretoria Geral da Instrução Municipal emitiu um parecer afirmando que
o livro seria um verdadeiro assessor aos professores primários, pelo
menos por dois motivos: primeiro, porque tornava "a ginástica uma
disciplina verdadeiramente útil e não nociva, como acontece sempre
que os exercícios são dados com desprezo das regras"(apud Higgins,
1934, p.4); segundo, porque organizava os exercícios de acordo com a
idade para os três cursos da escola primária (Elementar:7-10 anos;

1
Não estou desconsiderando toda a rica produção bibliográfica da segunda metade do
século XIX. Carlos F. CUNHA JÚNIOR fala de seis manuais de Educação Física,
publicados nesse período, e ainda acessíveis na Biblioteca Nacional. In: FERREIRA
NETO, Amarílio (Org ). Pesquisa histórica na educação física, 1998. p. 22-24.
28
Médio: 10 a 12 anos; Complementar: maiores de 12 anos). Desse
modo, o Parecer concluía, "Tem, pois, o professor primário, neste livro
um verdadeiro roteiro, e não terá mais a fazer que acompanhá-lo, para
ensinar proficientemente esta disciplina"C\9M, p.8).
Contemplando os requisitos indispensáveis para uma
sistematização pedagógica burguesa, a racionalização das regras, o
ajuste da matéria à idade e o cientificismo na seleção dos exercícios
que fossem úteis para a vida e para o trabalho, o texto de Higgins teve
uma repercussão dantes nunca vista. Além das aprovações oficiais,
ganhou uma popularidade enorme, pois, para uma época de poucos
leitores, devido ao índice de analfabetos, o livro teve três edições
(1896/99,1911,1934), todas publicadas peia Tipografia do Jornal do
Comércio/RJ. O manual pedagógico de Higgins, resultado de sua
experiência de onze anos à frente da Ginástica na Escola Normal do
Distrito Federai, funcionou como livro didático por, no mínimo, quatro
décadas, nas escolas do Rio de Janeiro. Recebeu também elogios na
imprensa escrita em diversos jornais e em diferentes momentos.2
Dentre esses, merece destaque o texto publicado ri'Õ Jornal do
Comércio (2-11-1899):
O Sr. professor Arthur Higgins acaba de publicar o seu excelente livro
de que já nos ocupamos quando publicada a introdução [1896]...
Este volume consta de três livros: Noções teóricas; ginástica primária
do primeiro grau e ginástica secundária. Além dos [exercícios]
técnicos, o Sr. Higgins completou a sua obra com vários e divertidos
jogos que ocupam agradavelmente as crianças e as fazem
insensivelmente praticar a ginástica que tanto para elas como para
os adultos é a realidade do prolóquio - mens sana in corpore
sano"(apud, Higgins, 1934, p. 2).
A "Tísica Pulmonar" e o Interesse pela Ginástica Higiênica
No prefácio à primeira edição, o professor, que lecionou 35
anos na Escola Normal do Distrito Federal e 37 no Externato do
Colégio
2
No ano da publicação do livro de Higgins, vários jornais divulgaram a obra: A Gazeta
de Notícias (6/10/1896), O País (3-10-1896), bem como por ocasião da segunda
edição, pelo Jornal A Gazeta Comercial e Financeira (24-10-1902).
29
Pedro II ou Ginásio Nacional, além de outros anos como
professor no Colégio Alfredo Gomes, revelou as origens do seu
interesse:
Só depois de 11 anos de tirocínio na arte que me dediquei de corpo e
alma, julguei-me capaz de dar a publicidade um escrito digno do
conceito generosamente elevado e do acolhimento carinhoso de que
tenho gozado desde o princípio da minha carreira no ensino dessa
arte utilíssima que, salvando-me da predisposição para a tísica
pulmonar, me tornou capaz de ser útil á minha adorada Pátria
(Higgins, 1934, p. 13).
As origens do seu interesse pela Ginástica higiênica deveu-se
aos exercícios que o salvaram da "tísica pulmonar". A tuberculose era
uma doença comum entre a população, devido às condições
ambientais em que as pessoas viviam. Acometido por esse mal, aos 21
anos de idade, o jornalista de O Cruzeiro foi orientado pelos médicos a
ter uma "vida regrada" e "cuidar do físico". Foi, então, que Higgins
procurou à Escola Normal para praticar exercícios ginásticos
convenientes ao seu enfraquecido organismo. Nessa escola, o
professor de Ginástica de então era o capitão Ataliba Fernandes. Após
um período de prática de exercícios,, relata. Higgins:
No fim do ano letivo, submetendo-me a exame, fui aprovado com
distinção, nota que nenhum outro examinando do meu sexo obteve
antes de ser eu professor daquela aula. A vista desses resultados
tomei a resolução de fazer-me professor de ginástica escolar [...] fui
logo depois do meu exame convidado para professor em
estabelecimentos de primeira ordem (1934, p. 14).
A Ginástica, essa "arte utilíssima", não só havia salvado
Higgins da tuberculose, mas havia dado-lhe um sentido existencial, "ser
útil à minha adorada Pátria", à semelhança do que a Ginástica de Jahn
propunha. Assim, seu ideal humanitarista, sua prática como professor
de Ginástica e a publicação do seu manual de Ginástica higiênica,
constituíam uma espécie de medicalização preventiva pedagógica:
salvar os de organismo enfraquecido e torná-los patrióticos, para se
ajustarem ao ritmo social da civilidade burguesa, imprimido peio lema
"Ordem e Progresso".
30
O Methodo Sueco-Belga-Brasileiro
Na sistematização pedagógica dessa "arte utilíssima", Higgins,
da primeira para a segunda edição (1911), alterou o título da obra de
Compendio de gymnastica e jogos gymnasticos escolares para
Compendio de gymnastica escolar (238 p ). O método era sueco-
belga devido a ser "o resultado de escrupuloso estudo de diversos
sistemas estrangeiros, principalmente dos de Ling, sueco e Dox, belga"
(Higgins, 1934, p.15), e era também brasileiro, porque, dizia ele:
Fiz inovações que concorrem muito para facilitar o aprendizado e o
ensino, e também para o embelezamento da arte. Assim, ê que
sistematizei os comandos, o que facilita muito o trabalho dos
discípulos, futuros mestres: a terminologia é quase toda arranjada
por mim, as mais das vezes sem sair da língua vernácula e algumas
empregando palavras latinas de facílima compreensão. /\s definições
e divisões da ginástica e dos exercícios foram concebidos por mim;
inventei alguns exercícios de movimentos combinados, imitativos e
estéticos e modifiquei ..algunsjogosginásticos,,.adaptando-osao
nosso clima (1934, p.15).
Apesar de toda a sistematização que desenvolveu, o cuidado
de Higgins em colocar-se como "organizador" e intitular o seu texto de
compêndio revela a sua seriedade e preocupação em considerar-se
como criador de um método para a Educação Física escolar, até
porque um método de ensino, "para ser digno desse nome, deve ser
baseado na experiência do exercício sobre o corpo, e somente com
essa condição é que se pode impo-lo à escola"(Higgins, 1934, p.25).
Como, para ele, a base de seu método estava no efeito que o exercício
provocava sobre o corpo, cabe-nos descobrir qual a compreensão que
o professor de Ginástica da Escola Normal possuía sobre o corpo e
sobre o movimento que esse corpo executava.
31
Corpo e Movimento em Higgins
A compreensão de corpo em Higgins não é difícil de ser
identificada, pois ele mesmo a explicita quando afirma que para seu
método ser eficaz os seus "discípulos, futuros mestres", deveriam
conhecer o corpo humano. Sobre essa recomendação fazia a seguinte
analogia:
Assim como qualquer maquinista deve conhecer os nomes das
diversas peças da máquina com que trabalha, nós temos que lidar
com essa maravilhosa máquina que se chama o corpo humano, não
podemos ignorar os nomes das diferentes partes de que ele se
compõe, pelo menos superficialmente (1934, p.41).
Conhecer os nomes das diversas peças da máquina com que
trabalhava era a tarefa do professor. Nesse sentido, o educador do
físico não passava de um operador de máquina que precisava
'dont:!!ÍÇ.a.r s u a s P a r t e s pelo nome. Por isso, deveria saber que o corpo
era dividido, segundo os manuais de Anatomia que Higgins havia
consultado, em quatro partes: cabeça, tronco, membros superiores e
membros inferiores. A especificação que o professor de Ginástica fazia
de cada parte era a seguinte: a cabeça constituía-se de crânio, toda a
região onde nasce o cabelo, e mais a testa e face, parte anterior onde
se acham olhos, nariz e boca; o tronco, a parte central do corpo, tem a
forma de um cilindro achatado de trás para diante, constituído de duas
partes: tórax (parte superior) e abdome, vulgo barriga; os membros
superiores ou membros torácicos são divididos em ombro, braço,
antebraço e mão - palma, dorso e dedos - e os membros inferiores ou
membros abdominais, também divididos em quadril, coxa, perna e pé -
calcanhar, soía ou planta, dorso e dedos ou artelhos - (Cf Higgins
1934, p. 41-42).
A identificação entre o corpo e a máquina era tanta, que não
bastava conhecer os nomes das "peças", era preciso vê-las pela óptica
mecânica, por exemplo, o tronco é visto como um cilindro achatado.
Esse entendimento anatômico do corpo-máquina, fruto da
compreensão cartesiana, por um lado, supera o entendimento do corpo
como invólucro da alma e, por outro, converte-o em simples máquina
movida por comandos. Isso significava desmistificar o corpo.
Dessacralizava-o para poder controlá-lo tecnicamente. Dessa forma,
31
indústria, propôs uma aprendizagem de movimentos em que estes
fossem tecnicamente definidos e milimetricamente controlados.
Nessa estética da máquina, o movimento corporal não poderia
ser tomado dos costumes e festas do povo, mas da neutralidade
científica da engrenagem de uma máquina. Sendo assim, Higgins (cf.
p. 42) definiu uma taxionomia, denominando-a de "terminologia dos
movimentos articulares", que estava estruturada em três classes de
movimentos: flexíveis, inflexíveis e mistos. Os movimentos FLEXÍVEIS
eram constituídos jior flexão, quando uma parte do corpo se dobra
sobre si mesma, e extensão, quando se desdobra a parte dobrada. Os
INFLEXÍVEIS, eram subdivididos em nove espécies de movimentos:
rotação, aquele que faz girar sobre si mesma uma parte do corpo;
pronação faz voltar a palma da mão para baixo, quando o antebraço
se achar em posição horizontal; o movimento inverso é supinação;
abdução faz membro(s) ou parte(s) se afastar da linha mediana do
corpo; o movimento oposto chama-se adução; elevação, movimento
que eleva em qualquer direção uma parte do corpo; o oposto à
elevação chama-se abaixamento; oscilação resulta da combinação
dos movimentos de elevação e abaixamento executados em dois
sentidos opostos e seguidamente; circundução, quando parte.....da.
corpo descreve uma figura cónica, cujo vértice fica na articulação e no
outro extremo, descrevendo • uma circunferência. Por último; ' o s
movimentos MISTOS, que eram constituídos pelos movimentos de
distensões,
A capacidade de mover-se e a intencionalidade operante da
motricidade humana estavam, em Higgins, delimitadas por uma
taxionomia que restringia a dimensão motora em três níveis de
classificação de movimentos e em doze subcategorias
correspondentes. Os movimentos flexíveis, inflexíveis e mistos
tipificavam um corpo-máquina, cujos movimentos eram realizados à
semelhança de alavancas, cilindros, pêndulos e esferas.
Contudo, vale dizer que essa percepção corporal, própria das
formulações dos movimentos ginásticos do último quartel do século XIX
e da expansão do mundo industrial, representava, para os seus
defensores, uma forma de embelezar o corpo. Não esqueçamos que
esse movimento ginástico era compreendido por Higgins como arte. A
beleza estava em fazer o corpo mover-se como uma máquina. E a
cientificidade em compreendê-lo como a articulação de "peças
anatômicas" desprovidas de desejo. Um corpo morto pronto para ser
manipulado.
33
Nesse sentido, basta ilustrar que a posição inicial do corpo
para os estudos anatômicos era a mesma para o início da execução
dos exercícios. O exercício de posição, chamado "Posição
Fundamental. Prima", deveria ser executado por todos os alunos (7 a
12 anos) na primeira lição de todos os cursos: depois da formação da
fileira, um ao lado do outro, por altura, o professor comandava:
"Atenção. Posição prima... Já". Decorrente desse comando, os corpos
dos alunos homogeneamente assumiam a seguinte posição:
Os calcanhares unidos; as pontas dos pés naturalmente apartadas: o
corpo aprumado; os braços pendidos ao longo do corpo; as palmas
das mãos voltadas um pouco para diante; o ventre retraído; o peito
dilatado sem esforço visível; a cabeça erguida e o olhar dirigido para
diante (Higgins, 1934, p. 61).
Uma posição que deixava o corpo sem expressão de vida,
"braços pendidos", sem nenhunf movimento, sorriso ou olhar brilhante.
Um corpo absorto, sem comunicação gestual para com outrem, mas
apenas..corn..^ diante". Essa primeira
posição sináiizava o esforço civilizatório de uma época para educar os
alunos, tranformando-os em corpos'"aprumados" e sem desejo, prontos
para serem manipulados - talvez essa seja a grande intenção do
capitalismo. A Ginástica trabalhava a partir da concepção do corpo
morto - o corpo vivo, ou "vivido" no dizer de Merleau-Ponty e
. desejante, no entendimento de Freud, é uma percepção que demorou
a chegar na Educação Física.
Objetivo Educacional do Mefhodo...
Para entender o objetivo especifico da proposta de Ginástica
educativa de Higgins, faz-se necessário compreender qual o papel da
educação para ele. Diz o autor: "Educar o homem é prepará-lo para a
luta. para a vida. desenvolvendo e aperfeiçoando-lhe as faculdades"
(1934, p. 21). Nesse sentido, educação é preparação para a vida ou.
mais especificamente, para o trabalho. Na esteira do ideai iockeniano.
ou da Reforma de Benjamin Constant, o objeto da educação para
Higgins não era mais o estudo das humanidades, mas, sooretudo, o de
ser útil e incorporar-se às demandas práticas da vida.
28
Nesse ideário burguês de educação, Higgins acreditava que a
tarefa da educação era aperfeiçoar as faculdades físicas e intelectuais
dos homens, pois, em sua compreensão, "qualquer plano de educação
que não [tivesse] por fim o desenvolvimento harmônico,
faculdades, [seria] incompleto e imperfeito"(1934, p.
desenvolvimento harmônico, nessa compreensão, significava oferecer
os mesmos cuidados tanto ao corpo, quanto ao intelecto. Ambos
deveriam ser exercitados de igual modo. Contudo, isso não queria dizer
que ambos tinham o mesmo valor, pois, na verdade, a busca do corpo
saudável era por causa do serviço que esse poderia prestar ao
intelecto.
Sobre essa subordinação do corpo à mente, dizia Higgins:
Ás descobertas fisiológicas vieram, porém, em socorro da pedagogia,
demonstrando de um modo patente que a lucidez do espirito
depende do bom funcionamento dos órgãos corporais:- que. para a
alma brilhar através do corpo, é necessário se ache este em estado
de desenvolvimento regular e de conveniente energia (1934, p. 21j.
Ou ainda quando cita o Dr. G. M. Schreber 3 , "o espírito é o
senhor e o corpo o escravo; e para poder este obedecer às
daquele, é necessário que seja sadio e forte" (apud, Higgins,1934, p. 21).
Por a educação, nesse entendimento, ter a tarefa de
aperfeiçoar as duas faculdades humanas, estabeleceram-se, de forma
dicotômica, dois modelos de educação, um para o corpo e outro para a
mente. Apesar de distintos, um estava subordinado ao outro. Nesse
sentido, Higgins, em sua proposta, tentou definir o papel específico
dessa educação subordinada, mas não inferiorizada: "A educação
física ou corporal é aquela que, por meio de exercidos convenientes,
torna sadio e forte o homem, desenvolvendo-lhe ao mesmo tempo
aptidões para a vida prática" (1934, p. 21).
A primeira função proposta era a de tornar o homem sadio e
forte. Isso porque o objetivo político-educacional, no início da Primeira
República, não era formar um guerreiro. Higgins, de forma diferente de
Jahn e Amoros e semelhante a Ling e Demeny, propôs, como objetivo
higienista, formar um homem "civilizado" (saudável, dócil e útil). Por
isso, a preocupação da Ginástica educativa ou higiênica de Higgins
' O livro Gymnastica doméstica, médica e hygiênica"(Lisboa,1886i era referência
para os autores da época.
35
não era com o aumento da força muscular. Ele chegou até a
menosprezá-la, quando desaconselhou a postura de alguns jovens que
dessas ... andam pelas ruas com os braços arqueados e o peito estufado
com o intuito de aparentar grande vigor. A força muscular exagerada
21). O
tem grande importância para os carregadores de fardos, mas nâo
para os moços que tem outras aspirações e por isso precisam de
uma educação física bem entendida (1934, p. 22).
Nessa proposta pedagógica, o objetivo não era a hipertrofia
dos grupos musculares, mas a aquisição de órgãos saudáveis,
principalmente os pulmões. Essa Educação Física não visava a formar
corpos de "carregadores de fardos", mas corpos civilizados que
pudessem ser capazes de "competir com os povos mais adiantados em
todas as esferas de ação" (1934, p. 23).0 segundo objetivo proposto
era que, concomitante à formação do homem saudável, a Educação
Física desenvolvesse as aptidões para a vida prática. Nesse projeto de
civilidade burguesa, a prática corporal deveria tornar o homem apto
para ser "prático", útil; enfim, trabalhador.
Assim, Higgins, e m - s u a -proposta pedagógica;-•pretendia
exigências responder positivamente às demandas de força de trabalho para as
classes dominantes (aristocracia agrário-comerciai e a nascente
burguesia industrial). Se não era esse o seu propósito, vejamos o que
ele diz: "A educação física, desenvolvendo o gosto pelo trabalho,
fornece braços vigorosos às indústrias e à agricultura" (1934, p. 22).
Conteúdos Programáticos do Methodo...
as
Para formar um corpo civilizado (saudável, regrado e
trabalhador), num ambiente permeado pela "tísica pulmonar" e num
povo "mole e indolente" - concepção dos republicanos Higgins
propôs como conteúdo programático a Ginástica. Não a "ginástica
acrobática, brutal, empírica e perigosa, porém sim a ginástica racional,
baseada em princípios científicos, própria do século em que vivemos"
(1934, p. 23). Com o mesmo ódio pedagógico que tinha Amoros da
Ginástica funambulesca ou do corpo circense que despertava o riso e
provocava a liberdade, Higgins dizia: "A acrobacia é a arte de executar
28
exercícios perigosos e surpreendentes. É a ginástica dos circos...
(1934, p. 23).
A acrobacia era "perigosa" não só porque oferecia "exercícios
perigosos", mas porque produzia o "surpreendente", e isso seduzia o
povo. Os movimentos acrobáticos confrontavam-se com a estética da
máquina, pois eles menosprezavam os interditos médicos e o
cientificismo mecanicista do uso do corpo e guiavam-se pelo prazer
que proporcionavam tanto àqueles que se arriscavam quanto àqueles
que admiravam. A vivência das acrobacias representava uma "alegria
agressiva", utilizando a linguagem de Lapierre e Aucouturrier (1986, p.
56), porque negava a ordem estabelecida através de um movimento
que abolia provisoriamente um certo número de proibições, e "trazia
imagens de luz e riso, do grotesco e do sublime e, sobretudo, do corpo
como centro de entretenimento", no dizer de Carmem Soares (1998, p. 55).
Numa tentativa de superar essa Ginástica "perigosa", Higgins
propunha uma Ginástipa científica, conceituando-a, como "um conjunto
de meios próprios para aperfeiçoar o individuo e finalmente a raça - o
único remédio à degenerescência e ao desequilíbrio, conseqüência dos
ã&üsós^rmrormMérnó^Oemeny, apud Higgins, 1934, p. 25).
Sendo assim, para selecionar, organizar e elaborar exercícios
"convenientes", contrários aos movimentos acrobáticos brincalhões dos
saltimbancos e malabaristas de rua, Higgins, baseado em Demeny; só
considerava exercício ginástico aquele movimento que produzia efeitos
específicos: na melhoria da saúde (higiênico), na distribuição dos
espaços musculares sobre diferentes partes do corpo (estético) e na
melhoria da utilização da força (econômico).
Pensando assim, Higgins classificou a Ginástica, "único
remédio para a corrupção da carne", a partir dos indicativos de Ling,
em higiênica, médica e educativa. Como não havia, naquele momento
histórico, uma necessidade de formação militar, Higgins excluiu essa
espécie de Ginástica, que até Ling havia incluído, e, na sua
compreensão, dividiu a Ginástica em: higiênica, que tinha por fim
"conservar e robustecer a saúde" (1934, p. 24); médica ou terapêutica
e ortopédica, que tinha por objetivos, "auxiliar a medicina na cura de
certas enfermidades e na correção de algumas deformidades" (1934, p.
24); e, por último, Ginástica educativa, que também era higiênica,
porque se caracterizava por movimentos que eram praticados "com o
fim de alcançar benéficos efeitos fisiológicos" (1934, p. 30). Essa
Ginástica escolar, no entender do professor do Ginásio Nacional, foi
37
"subdividida", de acordo com a especificidade dos exercícios, em três
grupos: Ginástica sistemática, Ginástica de aparelhos e Ginástica
recreativa, que passaremos a explicitar separadamente.
A Ginástica Sistemática
A ginástica sistemática ou sistêmica recebeu essa
designação, porque os seus exercícios eram executados com o rigor
de determinadas regras. Essa Ginástica foi subdividida em: "ginástica
sistemática livre", constituída por um conjunto de exercícios que se
praticavam sem instrumento algum; e "ginástica sistemática com
instrumentos", que. era praticada com vários instrumentos ginásticos
(peças portáteis de madeira, ferro e corda).
Quanto aos exercícios ou aos conteúdos programáticos para a
Ginástica, é possível' dizer " que Higgins organizou a Ginástica
sistemática livre, em doze categorias de atividades, denominadas:
"Preliminares, Exercidos fundamentais, Exercícios respiratórios,
Exercícios de expansão, Movimentos parciais, Movimentos imitativos,.
Movimentos combinados, Equilíbrios no chão, Exercícios estéticos,
Exercícios aos pares. Marchas e Jogos ginásticos livres" (1934, p. 31).
A Ginástica sistemática com instrumentos foi constituída por seis tipos
de exercícios que se distinguiam pelo uso de instrumentos, a saber:
"Exercícios com biboletes (halteres), Exercidos com maromba
(basiõesj, Exercícios com anéis de ferro (argolas), Exercícios com
massas, Exercícios com elásticos e Jogos ginásticos com
instrumentos" (1934, p. 31). Fica evidente, por essa organização
quantitativa de exercícios, que Higgins dera maior atenção aos
exercícios sem instrumentos da Ginástica sistemática livre - mais de
50% da obra.
Sobre a sistematização dos exercícios livres, maioria de
origem sueca, "alguns são criados, outros modificados e todos
coordenados metodicamente pelo autor destas linhas", dizia Higgins
(1934, p. 50). Na estruturação metódica que fora estabelecida para
cada uma das doze categorias de atividades da Ginástica sistemática
livre, Higgins propôs objetivos específicos.
Os objetivos específicos para cada unidade programática
podem ser expressos sumariamente da seguinte forma: para os
28 39

Os objetivos específicos para cada unidade programática A Ginástica de A p a r e l h o s

podem ser expressos sumariamente da seguinte forma: para os
exercícios preliminares, pôr ordem na turma; para os exercícios
fundamentais, base da ginástica sistemática, "fortalecer os músculos A Ginástica de aparelhos consta de um limitado número de
exercícios que se praticavam em peças fixas, volantes e oscilantes.
do tronco, principalmente os respiratórios e ampliar a capacidade
Essa Ginástica, segundo Higgins, era dividida em duas espécies, de
torácica" (1934, p. 50); para os exercícios respiratórios, essencialmente
acordo com a origem dos aparelhos ginásticos, alemã ou sueca. Os
suecos, "fortalecei os pulmões, ampliar a capacidade torácica e
aparelhos de Ginástica alemã eram: barra fixa, trapézio, argolas,
acalmar o coração e a respiração" (1934, p. 51); para os exercícios de
trapézio duplo, trapézio triplo e paralelas. Sobre esses aparelhos,
movimentos parciais, "educar e desenvolver os músculos e articulações
Higgins fazia a seguinte consideração: "Alguns desses aparelhos já
do pescoço e dos membros superiores e inferiores" (1934, p. 51); para
foram muito empregados na ginástica escolar; hoje, porém, estão
os exercícios de movimentos imitativos, de origem norte-americana,
condenados pela medicina e pela pedagogia moderna (Higgins, 1934, p. 32).
"destinados a ser executados com música e cânticos" (1934, p. 53);
Numa argumentação . higienista, Higgins condenava a
para os exercícios de movimentos combinados, ampliar o tórax e
Ginástica de aparelhos alemã/que; apesar de sua tradição na escola,
desenvolver o vigor e a estética corporal; para os exercícios de
não se adequava mais às exigências cientificistas. Em nome da
equilíbrio no chão, retificar as más posturas; para os exercícios
Medicina e da Pedagogia moâerna, que estavam eivadas de fisiologia,
estéticos, melhorar a estética corporal; os exercícios aos pares, de
Higgins colocava como superados os aparelhos alemães. Na verdade,
origem norte-americana, visavam a "aumentar o vigor corporal e dar
iaivez o Gue..f;stivesse..por4fás dessa argumentação não fosse apenas
graça aos movimentos", e as marchas ginásticas, ordenar a turma e
a desvalorização científica dos exercícios, mas a semelhança que a
encerrara sessão,
Ginástica alemã com os seus aparelhos, principalmente os trapézios,
Dentre os doze grupos de exercícios, apenas um se destinava
ainda guardava com a Ginástica circense e com os corpos voadores
ao fortalecimento dos membros inferiores. Isso era devido à
•'inúteis" dos trapezistas. Para Higgins, toda expressão acrobática
exacerbada preocupação higienista com a ampliação da capacidade
deveria "Ser completamente banida dos estabelecimentos de
torácica para melhorar o funcionamento respiratório. O corpo estava
educação, [pois] seu fim é causar admiração e desapego á vida e dar
resumido aos pulmões. O autor da Chronica Litteraria expressou muito
renda pecuniária" {1934, p. 25).
bem essa concepção, quando, comentando o livro, dizia: "O tema
Os aparelhos da Ginástica sueca, diferentemente dos
principal em educação física é o desenvolvimento da função
aparelhos alemães que colocavam o corpo em suspensão, prendiam o
respiratória, [...]. O músculo não passa de um servo humílimo dos
corpo sobre objetos localizados, principalmente, no chão ou nas
pulmões e do cérebro (apud Higgins, 1934, p. 7). Os movimentos, além
paredes. Eram eles: banco escolar ("banco sueco"), grade fixa, viga,
de sua utilidade fisiológica/respiratória, também se destinavam a
escada de corda, mastro, cabo liso, banco graduado para saltos e
ajustar o comportamento do educando a um estado de "pronta
grade oscilante. Como higienista, defensor do methodo sueco, diz
obediência". Assim, os exercícios de ordem, presentes no início, meio e
Higgins: "Estes aparelhos de ginástica sueca já estão adotados nas
fim da aula, não buscavam apenas o automatismo motor, mas
escolas aos países mais adiantados. Oxalá os esforços que não
representavam, para quem queria ser "útil à adorada Pátria", a vontade
pouparei para serem esses aparelhos adotados nas nossas escolas
de poder formar indivíduos dóceis à ordem política e úteis às
venham a ser coroados de êxito" (1934, p. 32).
demandas econômicas de então.
A diferença da Ginástica sueca para a alemã expressava-se a
partir de seus aparelhos: uma colocava o corpo preso às "grades fixas"
ou em segurança sobre o "bancG sueco", enquanto a outra permitia que
o corpo executasse estripulias nos ares Quanto ao significado de
 41

40
eram incluídos na parte final da aula, após a cadeia de marchas
ginásticas, talvez para liberar a energia que porventura não tivesse sido
independência, até o salto espontâneo que ê alegria de evasão" (1986,
consumida pelos exercícios ginásticos, já que as crianças saíam da
p. 27). Movimentar-se de forma isolada e analítica no solo significa
aula extenuadas.
passividade; é "fazer-se pequeno e fechar-se em si mesmo" (1986, p.
27), enquanto conquistar o solo e o espaço aéreo significa "procurar a O fato é que Higgins propôs duas séries de jogos: a primeira,
denominada "Jogos ginásticos comuns aos dois sexos" e a segunda,
maior dimensão de seu gesto, até além do corpo, no prolongamento do
"Jogos ginásticos privativos do sexo masculino". Um avanço para a
gesto, a trajetória real ou virtual, é afirmar-se, é vivei" (1986, p. 27).
época. Incluir jogos para o sexo feminino era uma iniciativa que o
Assim, a acrobacia, a® contrário de ser "desapego à vida", no dizer de
distinguia de seus pares." Há, na primeira série, a indicação de doze
Higgins, representava, na verdade, sua afirmação; sem falar que a
jogos e, para a segunda, trinta e dois jogos. Talvez com o
acrobacia era a expressão mais elementar da cultura popular, do
entendimento de que não havia jogos brasileiros, ou numa tentativa de
cômico, do extravagante, da festa do povo.
suplantá-los, Higgins propôs jogos estrangeiros - a maioria copilados
da Ginástica Alemã de Spiess.

A Ginástica Recreativa

"Jogos Ginásticos Comuns aos Dois Sexos"

A Ginástica recreativa era "constituída por grande número de
jogos ginásticos, nos quais o corpo [entrava] ativamente em
movimentos, ao mesmo tempo que o espírito [era] salutarmente Na primeira série, os .jogos-.possuíam os seguintes títulos: O
recreado" (Higgins, 1934, p. 25). Os jogos não eram tomados como besouro, A cabra cega. A raposa, Esaú e Jaeo. O c â o e a leore.Quem
Primeiro chegar..., Casinha para alugar, O lenço volante, O látego anda
uma atividade lúdica capaz de permitir ao praticante assumir outros
á roda'.' Corridas de bolas, Pula-pula, Saltitar sobre a corda. Higgins
comportamentos motores diferentes dos estereotipados. Os jogos, para
descreve-cada um deles e sugere o número de "recreantes", como ele
Higgins, à semelhança de Ling e Amoros, não tinham relação com a
denominava os participantes dos jogos.
ludicidade, com o prazer, mas com a utilidade de colocar o corpo em
movimento para torná-lo sadio, mesmo que esse movimento fosse Ainda na primeira série de jogos, vale considerar a
permeado de alegria. Outro propósito dos jogos ginásticos era recrear preocupação de Higgins em não masculinizar o corpo feminino da
o espírito de forma saudável, já que o espírito poderia se recrear com menina com atividades próprias para rapazes, ou o inverso. Por isso,
ele rejeitava até a possibilidade de as meninas brincarem com um jogo
atividades nocivas, tais como, a "lascívia dos quindins" ou os jogos de
que tivesse nomes masculinos. Um exemplo desse purismo sexista
bilhar, carta ou roleta - diversões próprias da época que passaram a
encontra-se no jogo Esaú e Jacó - quando trabalhado com as meninas
ser fortemente censuradas.
os nomes deveriam ser substituídos por Sara e Hagar.
Nesse sentido, os "jogos ginásticos", como conteúdo
programático, eram utilizados por Higgins com o fim de "aplicar e
aperfeiçoar os dotes físicos alcançados com os exercícios sistemáticos
livres" (1934, p. 182), bem como com o fim moral de corrigir os vícios e
excessos. Entretanto, era um conteúdo de relevância secundária, cujo
papel era complementar uma aprendizagem conseguida pelo conteúdo
principal, a Ginástica sistemática livre. Assim, possivelmente, os jogos 4
Sobre o assunto, recomendo a leitura de CUNHA JÚNIOR, Carlos Fernando Ferreira
eram incluídos na parte final da aula, após a cadeia de marchas da. A produção teórica brasileira sobre educação fisica/ginástica publicada no século
XIX: autores, mercado e questões de gênero. In: FERREIRA NETO, Amarílio (Org.).
ginásticas, talvez para liberar a energia que porventura não tivesse sido
Pesquisa histórica na educação física. 1998 p 19-47.
28 42
assumiam vários papéis (policial, caçador, negociante, cavaleiro ) ás
"Jogos Ginásticos Privativos do Sexo Masculino" meninas restavam-lhes o papel "doméstico" de imitar animais ("O cão e
a lebre"), ou cuidar da casa ("Casinha para alugar").

Numa divisão meramente sexista, Higgins propôs uma

segunda série de jogos ginásticos, sendo estes "privativos do sexo
Procedimentos Metodológicos
masculino". Nessa segunda série, os jogos possuíam os seguintes
As Vozes do Comando como Técnica de Ensino
títulos: O chefe de policia, Péla ao ar, O veado quer fugir, A raposa, Os
pescadores, Os negociantes de pássaros, A caçada, O recrutamento,
Os provocadores, O gavião, O gato e o rato, Combate, O maneta, Fora
Na compreensão de Higgins, o procedimento metodológico
o terceiro, Peteca, Passagem sob a corda, Bombardeio, Flageladores,
significa a "boa marcha de uma aula". Para conduzir a aula de
O anjo e o diabo, Amarela, Cavaleiros e cavalos, Defensor da praça, O
Educação Física como uma marcha, os exercícios deveriam "ser
Sol e os planetas, Barras, Vai-vem, Péla rebatida, Péla rachada, Entre
executados por todos os discípulos ao mesmo tempo e do mesmo
dois fogos, Peteca, Luta com corda, Luta com bambu e Bola a pé.
modo" (1934, p. 33). Numa tentativa de homogeneizar os corpos e
Não sei se essa recomendação "didática" de Higgins ocorreu
adestrá-los para uma obediência eficiente, restava ao professor a
porque ele, possivelmente, ensinava apenas à seção masculina da
tarefa de bem comandar. O poder do professor para comandar a
Escola Normal, mas o fato é que era uma atitude pedagógica, própria turma/tropa encontrava-se na patavra pronunciada. O que era dito e
da época que reafirmava a cultura falocrática. Por entender que os como era dito fazia com que todos os alunos se submetessem num só
jogos refletem as relações de poder existentes na cultura, é possível gesto de execução à ordem comandada.
dizer que a oferta de vinte jogos a mais para os meninos representava
Os comandos foram divididos por Higgins em "comandos
o privilégio do masculino em detrimento do feminino, numa sociedade
preventivos" e "comandos executivos". Os comandos preventivos eram
injusta. A superioridade no número de jogos não deve ser vista apenas
P a i a v r a s d í t as com voz clara e pausada, que indicavam aos
no aspecto quantitativo, mas essencialmente no qualitativo: 1)
executantes quais os movimentos a serem feitos, e consistiam quase
enquanto as meninas vivenciavam apenas alguns jogos de
sempre nos nomes dos exercícios (por exemplo: "Flexões frontais dos
perseguição e imitação, envolvendo corridas, saltos e arremessos, os
braços"), precedidos da palavra "Atenção". Diferente dos preventivos,
meninos vivenciavam jogos de perseguição, imitação, pontaria, de luta
os comandos executivos eram palavras pequenas, que deveriam ser
e com regras, envolvendo corridas, saltos, arremessos, equilíbrio,
ditas de forma rápida e enérgica pelo professor. Sobre esse
força, agilidade e chute; 2) enquanto os objetos utilizados nas aulas
procedimento, diz Higgins: "Sistematizei os comandos executivos,
para as meninas consistiam apenas em bola, látego e corda, para os
adotando sete palavras para a execução de todos os exercícios,
meninos: bolas (de diferentes formas, tamanhos e material-
dependendo apenas da escolha da palavra, dentre essas sete, da
constitutivo), disco de metal, pelota, peteca, bambu, cordas; 3)
espécie de exercícios que se queira executar. São elas: Já. Começar.
enquanto as meninas estavam circunscritas a pequenos espaços das
Passe. Cessar. Preparar. Marche. Alto"{1934, p. 33).
atividades em círculo, os meninos exploravam distâncias enormes
Cada uma dessas sete palavras tinha uma função específica
(jogo que ocupava até 120 X 80 metros).
no desenvolvimento das atividades, sem as quais a aula não se
Em termos cognitivos, também havia discrepância. A atividade
realizaria. Por isso, acredito ser importante explicitá-las: o Já era
intelectual dos meninos era muito mais solicitada, na medida em que
empregado para ordenar a execução de movimentos que não tinham
vivenciavam jogos competitivos e estruturados sobre um conjunto de
de ser repetidos seguidamente, por exemplo, "Atenção. Um passo para
regras bem mais complexas que as dos jogos das meninas. Outro
aspecto a ser considerado na distinção da vivência dos jogos e a
dimensão político-ideológica e cultural, pois, enquanto os meninos
28
45

professor, outro quanto à realização do exercício, outro sobre as

diante ...5 Já"\ o comando Começar usava-se para a execução de condições necessárias para a realização da aula e, por último, sobre as
movimentos que tinham de ser repetidos seguidamente, sem mudança durações e metodologias das aulas.
de lugar, por exemplo, "Atenção. Rotações binárias do
tronco...Começar"; o Passe era empregado quando um exercício tinha
de ser executado em mais de um dos modos (alternado, simultâneo,
Quanto à Ação do Professor
oposição). Por. Exemplo: "Atenção. Flexões frontais dos
braços...Começar...1, 2; 1, 2; 1, Passe; 1, 2; 1, 2; 1, Passe; 1, 2; 1, 2; 1
Cessaf; o comando Cessar servia para terminar qualquer exercício
O professor deveria: 1) adequar o ensino da Ginástica à
iniciado com a ordem de "Começar"; Preparar aplicava-se quando os
capacidade física do aluno ou à idade: "Os exercícios brandos são
alunos tinham de tomar posição especial para a execução do exercício
destinados aos educandos de 7 a 10 anos de idade; os exercícios
indicado pelo comando preventivo. Por exemplo: "Atenção. Meia volta
medianos aos maiores de 10 anos, ao passo que os mais fortes se
volver...Preparar...Já"; o Marche era utilizado para começar os
reservarão aos maiores de 12 anos" (1934, p. 37); 2)"não passar de
movimentos; e Alto, para cessar os movimentos iniciados pelo uma lição para outra antes de bastante repetições" (1934, p. 37); 3)
comando Marche. Por exemplo: "Atenção. Passos para informar aos alunos, antes de iniciar a aula, as vantagens
adiante...Marche...Alto".
orgânicas/fisiológicas que a Ginástica produz, com o fim de convencê-
Empregadas com a técnica de advertência, intervalo e los a praticarem-na "com convicção e vigor"; 4) exemplificar e explicar
execução, as vozes de comando conduziam os alunosà aprendizagem os exercícios no primeiro dia de -execução, "porém nas repetições
automatizada de exercícios analíticos. Nesse sentido, a eficiência do serão suprimidas as explicações; o professor dará tão somente os
..professor. fundaoientaya-se na sua capacidade de manipular as comandos necessários e corrigirá os erros se os houver" (1934, p.
palavras de forma precisa. E à precisão no mariüsèiò das palavras 178); 5) adaptar os exercícios e jogos ginásticos masculinos para as
chegava a melindres, por exemplo: "Quando a execução de um meninas; 6) ao término da aula, "não mandará debandar antes de fazer
exercício for ritmada em voz alta, para cessar o exercício, eleva-se executar a formatura inicial" {1934, p, 40),
muito a voz ao pronunciar-se pela penúltima vez o penúltimo tempo da
marcação e substitui-sé o último tempo pela palavra que se haja de
empregar para terminar o exercício" (1934, p. 34). Numa engenharia
Quanto à Realização dos Exercícios
fonética, Higgins controlava os corpos dos seus alunos. Não acredito
que Higgins tenha entendido, numa antecipação psicanalítica, que o
corpo é formado pelas palavras que escuta, mas o fato é que ele falava
Os exercícios deveriam: 1) ser introduzidos com ritmos ou em
e, como num feitiço, os corpos se "desempenavam", os defeitos eram
tempos binários (1, 2; 1, 2...), ternários (1, 2, 3; 1,2, 3...) e quaternários
reduzidos e os excessos reprimidos.
(1, 2, 3, 4; 1, 2, 3, 4...), começando num ritmo lento, passando para o
ordinário e acelerado e depois voltando para o lento; 2) ser repetidos
de igual modo pelos dois lados do corpo, para produzir "um
Outras R e c o m e n d a ç õ e s Didáticas
desenvolvimento uniforme e harmônico"; 3) observar a inspiração que
deveria, "ser feita pelas narinas para que os pulmões [ficassem]
preservados da poeira e da entrada de ar frio" (1934, p. 15), devendo
Higgins sugere várias recomendações que, para efeito de
exposição, dividiremos em quatro blocos: um que se refere à ação do

5 As reticências representam a pausa que o professor dava na voz para que os alunos
pensassem no que iriam realizar.
46
ser executada lentamente e com a boca fechada, enquanto a expiração
deveria ser feita apenas pela boca e de forma rápida.6
Q u a n t o às C o n d i ç õ e s Necessárias para a Aula
1)Todas as l i ç õ e s " deveriam ser ministradas, sempre que
possível, ao ar livre, num terreno espaçoso e plano com grama curta e
rolada. Mas, se a lição fosse realizada num salão, o local não deveria
ser úmido, as janelas deveriam ser abertas e "nas suas proximidades
não [haveria] emanações nocivas a saúde e [estaria] completamente
livre de poeiras" (1934, p. 44). 2) Os alunos deveriam estar
alimentados, banhados 7 e usando roupas não apertadas. 3) A aula
deveria acontecer nas "primeiras horas do dia".
Quanto à Duração e Metodologia das Aulas
Uma outra recomendação dizia respeito à duração das aulas,
pois, para Higgins, os três modos da Ginástica escolar tinham
especificações temporais e metodológicas. Primeiro, quanto à
distribuição do tempo: um período maior para a Ginástica
sistemática(GS), um outro menor para a Ginástica de aparelhos(GA) e
um ainda menor para a Ginástica recreativa(GR). Segundo, quanto ao
modo: na GS, a aula deveria ser ministrada para o coletivo com
poucas interrupções; na GA, a aula deveria ser individual e com
intervalos; a GR, que era considerada a mais atrativa, poderia ser
prolongada sem intervalos. Terceiro, quanto à especificidade temporal
para cada tipo de Ginástica: para a GS, se fosse diária, 30 minutos; se
"trisemanal", 45 minutos; se "bissemanal", 1 hora; para a GA, como a
programação era individualizada, o professor deveria estabelecer "um
6
Os exercícios respiratórios eram considerados tão importantes que
recomendava sua execução até nas salas, nos intervalos das aulas, pois eles tinham a
capacidade de "descongestionar o peito e a cabeça, restabelecendo,
regularidade da circulação sangüínea" (Higgins, 1934, p. 46).
7
Tomar banho nos primeiros horários do dia, nessa época, não era algo comum. Sobre
isso, sugiro a leitura de Victor Melo (V ENCONTRO... 1998, p.229).
47
certo número de exercícios para cada indivíduo, segundo as suas
condições físicas" (1934, p. 48); para a GR, durante o primeiro mês
uma hora, depois iria aumentando progressivamente até duas horas
diminuindo a freqüência na semana.
As orientações didáticas supracitadas refletem a propedêutica
de um grande professor, cheio de experiência pedagógica e
extremamente preocupado com o processo ensino-aprendizagem
Ensinar a ensinar foi a arte pela qual Higgins, como ele mesmo diz, se
dedicou de corpo e alma. Por isso, ele apelava aos seus pupilos:
Solicito aos meus discípulos que não desprezem estas noções
teóricas, pois elas são necessárias ao professor que se preza, não só
para poder dirigir bem a sua aula. mas ainda para. com gosto e
convicção, ensinar essa arte salvadora da degenerescência física em
que se acham as gerações atuais representantes do futuro do Brasil
(1934, p. 47).
No entanto, como deixa claro o próprio Higgins, as
recomendações não tinham a finalidade apenas de instrumentalizar o
' orófessor para m-hístrar üma büiraulavmasrsobretudo. para realizar o
projeto pedagógico-civilizatório — "salvar da degenerescência física os
brasileiros".. Para isso, era necessário suplantar a ociosidade da
aristocracia agrária e o trabalho do escravizado por uma conduta
corporal, cientificamente higiênica e economicamente produtiva,
adequada às exigências da nascente burguesia-industrial.
Considerações Finais
Para finalizar, gostaria de fazer algumas considerações, duas
para ser mais preciso.
Sobre a intenção de revisitar o compendio.... vale considerar
que teci minúcias sobre a sistematização pedagógica de Higgins por
entender que a Educação Física escolar tem uma tradição que precisa
Higgins ser resgatada, conhecida e respeitada, pois não se faz historiografia
com a superficialidade de análises funcionalistas que acabam por
assim a apenas estabelecer rotulações reduciomsías e ideologizadas. A
tradição da Educação Física, no entendimento da sistematização e
realização de suas propostas pedagógicas, é que nos orienta, como
48
numa cartografia, sobre os caminhos e descaminhos que os
programas de atividades corporais foram tomados para intervir na
sociedade.
Em seguida, gostaria de considerar a trama política que
envolveu a adoção do methodo sueco-belga-brasileiro pelo Estado do
Distrito Federal. O Compendio..; foi indicado como livro-didático oficial
por alguns motivos. Desconfio de pelo menos três: Primeiro, porque
adotar a Ginástica dfe Higgins, com sua preocupação excessiva de
alinhamento, ortogonalidade e simetria, movimentos que se relacionam
simbolicamente com a retidão e a observância à lei, significava
promover uma educação da "Ordem", princípio necessário para o
"Progresso" da República. Segundo, porque o methodo sueco-belga-
brasileiro representava modernização, aproximação dos "povos
evoluídos" (industrializados). Uma Ginástica que pensava educar o
brasileiro a partir do modelo vivido na Suécia e Bélgica atendia ao
empreendimento instalado no "Rio de Janeiro, de construir um país
moderno e civilizado.à semelhança do Distrito Federal, "que tinha por
incumbência mostrar ao restante do país o que deveria ser ò cidadão
republicano", diz Oliveira (1998, p. 243). Terceiro, porque a Ginástica
sistemática livre se constituía num instrumento eficaz e "barato" para
realização do projeto pedagógico burguês que se efetivava na Escola
Primária,8.
Seja como for, o fato é que Higgins, com a popularidade que õ
seu Manual Pedagógico alcançou, certamente contribuiu para implantar
o projeto de civilidade burguesa, que tinha como necessidade
capitalista substituir os hábitos'corporais do nosso povo tupiniquim por
aqueles dos "países mais adiantados", fazendo-nos adotar, através do
convencimento e da sedução, a cultura corporal burguesa9.
8
Penso nessa terceira possível razão a partir do discurso do Secretário do Interior do
Estado de São Paulo, Alfredo Pujol, no ano da primeira edição do Compendio...(1896),
quando diz: "É indispensável às nossas escolas uma ginástica higiênica:
saltos, lutas, exercidos em aparelhos simples, ou variados exercícios de
feitos nas próprias salas. Eis o que convém ás crianças e que, sem grande despesa, e
sem uma habilitação especial do mestre se pode organizar em todos os
esco/ares"(apud Marinho, 1980, p. 168).
9
Sobre as características dessa cultura corporal, sugiro a leitura da minha dissertação
de mestrado: A cultura corporal burguesa: seu contexto histórico e suas primeiras
sistematizações pedagógicas, trabalho do qual recortei este artigo que ora publico.
31
Referências Bibliográficas
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brasileira sobre educação física/ginástica publicada no século XIX
autores, mercado e questões de gênero. In: FERREIRA NETo'
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Associados, 1998.
corridas,
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grupos