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Introdução
O escritor e radialista Michael lgnatieff conta a seguinte
história, a qual se passa no contexto de um país dilacerado
pela guerra, a antiga Iugoslávia:
São quatro horas da manhã. Estou no posto de comando
da milícia sérvia local, em uma casa de fazenda abandona
da, a 250 metros da linha de frente croata ... não na Bósnia,
mas nas zonas de guerra da Croácia central. O mundo não
está mais olhando, mas toda noite as milícias croatas e
sérvias trocam tiros e, às vezes, pesados ataques de bazuca.
Esta é uma guerra de cidade pequena. Todo mundo co
nhece todo mundo: eles foram, todos, à escola juntos; antes
da guerra, alguns deles trabalhavam na mesma oficina;
namoravam as mesmas garotas. Toda noite, eles se comu
nicam pelo rádio "faixa do cidadão" e trocam insultos -
tratando-se por seus respectivos nomes. Depois saem dali
para tentar se matar uns aos outros.
Estou falando com soldados sérvios - reservistas cansados,
de meia-idade, que preferiam estar em casa, na cama.
Estou tentando compreender por que vizinhos começam
a se matar uns aos outros. Digo, primeiramente, que não
consigo distinguir entre sérvios e croatas. "O que faz vocês
pensarem que são diferentes?"
O homem com quem estou falando pega um maço de cigar
ros do bolso de sua jaqueta cáqui. "Vê isto? São cigmTos
sé1vios. Do outro lado, eles fumam cigarros croatas."
"Mas eles são, ambos, cigarros, certo?"
7
"Vocês estrangeiros não entendem nada" - ele dá de 0 homem está dizendo a Ignatieff que sua maior queixa contra
ombros e começa a limpar a metralhadora 'Zastovo.
seus inimigos é que os croatas se pensam como sendo melho
Mas a pergunta que eu fiz incomoda-o, de forma que, res que os sérvios, embora, na verdade, "sejam os mesmos":
alguns minutos mais tarde, ele joga a arma no banco ao
lado e diz: "Olha, a coisa é assim. Aqueles croatas pensam segundo ele, não há nenhuma diferença enh·e os dois.
l) Essa história mostra que a identidade é relacional. A
·a
que são melhores que nós. Eles pensam que são europeus
finos e tudo o mais. Vou lhe dizer uma coisa. Somos todos identidade sérvia de ende, ara existir de al o
lixo dos Bálcãs" (Ignatieff, 1994, p. 1-2).
sa er, de outra identidade (croácia , de uma identidade ue ela
Trata-se de uma história sobre a guerra e o conflito, não é, que · ere da i entidade sérvia mas ue enh·etanto,
desenrolada em um cenário de turbulência social e política. omece as condições para que ela exista. A identidade sérvia
Trata-se também de uma história sobre identidades. Nesse se distingue por aquilo que ela não é. Ser um sérvio é ser um
cenário mosh·am-se duas identidades diferentes, depen "não-croatá'. A identidade é, assim, marcada pela diferença.
<
dentes de duas posições nacionais separadas, a dos sérvios Essa marcação da diferença não deixa de ter seus pro-
e a dos croatas, que são vistos, aqui, como dois povos claramen blemas. Por um lado, a asserção da diferença entre sérvios
te identificáveis, aos quais os homens envolvidos supostamente e croatas envolve a negação de que não existem quaisquer
pertencem - pelo menos é assim que eles se vêem. Essas similaridades entre os dois grupos. O sérvio nega aquilo que
identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos ele percebe como sendo a pretensa superioridade ou van
sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas.
G
tagem dos croatas, os quais são, todos, reunidos sob o guar
representação atua simbolica�te para classificar o da-chuva da identidade nacional croata, constituindo-os,
mundo e nossas relações no seu interiortHall, 1997a). Como assim, como estranhos e como "outros". A diferença é sus
se poderia utilizar a idéia de represenfação para analisar a tentada pela exclusão: se você é sérvio, você não pode ser
forma como as identidades são conshuída;S.,Desse caso? Exami croata, e vice-versa. Por ouh·o lado, essa afirmação da dife
nemos outra vez a histólia de Ignatieff.L9 que é visto como rença é problemática também para o soldado sérvio. No nível
sendo a mesma coisa e o que é visto como sendo diferente nasfÍí pessoal, ele está certo de que os croatas não são melhores que
duas identidades - a dos sérvios e a dos croatas? Quem é os sérvios; na verdade, ele diz que eles são a mesma coisa.
incluído e quem é excluído? Para quem está disponível a Ignatieff obse1va que essa "mesmidade" é o produto da expe-
identidade nacional sérvia enfatizada nessa história?J riência vivida e das coisas da vida cotidiana que os sé1vios e os
í)
Trata-se de povos que têm em comum cinqüenta anos croatas têm em comum. Essa disjunção entre a unidade da ,1
de unidade política e econômica, vividos sob o regime de identidade nacional (que enfatiza o coletivo "nós somos todos
Tito, na nação-estado da Iugoslávia. Eles partilham o local sérvios") e a vida cotidiana c1ia confusão para o soldado que
e diversos aspectos da cultura em suas vidas cotidianas. Mas parece se conh·adizer ao afirn1ar uma grande diferença entre
o argumento do miliciano sérvio é de que os sérvios e os os sé1vios e os croatas e, ao mesmo tempo, uma grande simila-
croatas são totalmente diferentes, até mesmo nos cigarros lidade - "somos todos lixo dos Bálcãs".
que fumam. A princípio, parece não existir qualquer coisa A identidade é marcada por meio de símbolos; por exem
em comum entre sérvios e croatas, mas em poucos minutos plÓ, pelos próprios cigarros que são fumados em cada lado.
8 9
Existe uma associação entre a identidade da pessoa e as As mulheres são os significantes de uma identidade mascu
coisas que uma pessoa usa. O cigarro funciona, assim, neste lina partilhada, mas agora fragmentada e reconstruída, for
caso, como um significante importante da diferença e da mando identidades nacionais distintas, opostas. Neste mo
identidade e, além disso, como um significante que é, com mento histórico específico, as diferenças entre os homens
freqüência, associado com a masculinidade (tal como na são maiores que quaisquer similaridades, uma vez que o
canção dos Rolling Stones, "Satisfaction": "Bem, ele não foco está colocado nas identidades nacionais em conflito. A
pode ser um homem porque não foma os mesmos ciaarros <lentidade é marcada pela diferença, mas parece que algti:
;C
que eu" [Well he can't be a m an 'cause he doesn't smoke the mas diferenças -neste caso entre grupos étnicos - são vistas<J-·
s�me cigarettes as me]). O homem da milícia sérvia é explí .-como mais importantes que outras, especialmente em luga-
cito quanto a essa referência, mas menos direto quanto a -res particulares e em momentos particulares.
outros significantes da identidade, tais como as associa Em outras palavras, a afirmação das identidades nacio
�ões com a _sofi�,ticação da cultura européia (ele fala de nais é historicamente específica. Embora se possa remontar
euro peus finos ), da qual são, ambos, sérvios e croatas, as raízes das identidades nacionais em jogo na antiga Iugos
,
�xcl �1 �os, e a inferioridade da cultura balcânica que é, lávia à história das comunidades que existiam no interior
1mphc1tamente, sugerida como sendo sua antítese. Isso daquele território, o conflito entre elas surge em um mo
estabelece uma outra oposição, pela qual aquilo que a mento particular. Nesse sentido, a emergência dessas dife
cultura balcânica tem em comum é colocado em contras rentes identidades é histórica; ela está localizada em um
te com a cultura de outras partes da Europa. Assim a ponto específico no tempo. Uma das formas pelas quais as
construção da identidade é tanto simbólica quanto soci�l identidades estabelecem suas reivindicações é por meio do
a ara a 1nnar as diferentes 1 e em causas apelo a antecedentes históricos. Os sérvios, os bósnios e os
e�nseqüências materiais: neste exemplo isso é visível 110 croatas tentam reafirmar suas identidades, supostamente
conflito entre os grupos em guerra e na turbulência e na perdidas, buscando-as no passado, embora, ao fazê-lo, eles
desgraça social e econômica que a guerra traz. possam estar realmente produzindo novas identidades. Por
Observe a freqüência com que a identidade nacional é exemplo, os sérvios ressuscitaram e redescobriram a cultura
marcada pelo gênero. No nosso exemplo, as identidades sérvia dos guerreiros e dos contadores de histórias - os
nacionais produzidas são masculinas e estão ligadas a con Guslars da Idade Média -como um elemento significativo
cepções militaristas de masculinidade. As mulheres não de sua história, reforçando, por esse meio, suas atuais afir
fazem parte desse cenário, embora existam, obviamente, mações de identidade. Como escreve Ignatieff em outro
outras posições nacionais e étnicas que acomodam as mu local, "os senhores da guerra são importantíssimos nos Bál
lheres. Os homens tendem a construir posições-de-sujeito cãs; diz-se aos estrangeiros: 'vocês têm que compreender
para as mulheres tomando a si próprios como ponto de nossa história .. .' e vinte minutos mais tarde ainda estamos
referência. A única menção a mulheres, neste caso é às ouvindo histórias sobre o rei Lazar, os turcos e a batalha de
Kosovo" (Ignatieff, 1993, p. 240). A reprodução desse pas
::garotas" q�e eles "namoravam", ou melh01� que foram sado, nesse ponto, sugere, entretanto, um momento de crise
namoradas no passado, antes do surgimento do conflito.
10 11
e não, como se poderia pensar, que haja algo estabelecido e arece necessário não apenas colocá-la em oposição a uma
fixo na construção da identidade sérvia. Aquilo que parece �utra identidade que é, então, desvalorizada, mas também
ser simplesmente um argumento sobre o passado e a reafir reivindicar alguma identidade sérvia "verdadeira", autênti
mação de uma verdade histórica pode nos dizer mais sobre ca, que teria permanecido igual ao longo do tempo. Mas
a nova po,sição-de-sujeito do guerreiro do século XX que é isso O que ocorre? A identidade é fixa? Podemos encon
está tentando defender e afirmar o sentimento de separação trar uma "verdadeira" identidade? Seja invocando algo
e de distinção de sua identidade nacional no presente do que que seria inerente à pessoa, seja buscando sua "autênti
sobre aquele suposto passado. Assim, essa redescoberta do ca" fonte na história, a afirmação da identidade envolve
passado é parte do processo de construg__ão da identid..Qde_ necessariamente o apelo a alguma qualidade essencial?
que está ocorrendo neste exatomomento e que, ao que Existem alternativas, quando se trata de identidade e de
parece, é caracterizado por conflito, contestação e uma diferença, à oposição binária "perspectivas essencialistas
possível crise. versus perspectivas não-essencialistas"?
Esta discussão da identidade nacional na antiga Iugos Para tratar dessas questões precisamos de explicações
lávia levanta questões que podem ser formuladas de forma que possam esclarecer os conceitos centrais envolvidos
mais ampla, para fundamentar uma discussão mais geral nessa discussão, bem como de um quadro teórico ue ossa
sobre a identidade e a diferença: nos dar uma compreensão mais amp a dos processos que
- Por que estamos examinando a questão da identidade estão envolvidos na construção da identidade. Embora es
neste exato momento? Existe mesmo uma crise da ulenti teJ-;-centrada na questão da identidade nacional, a discussão
clade? Caso a resposta seja ann:nativa: por que isso ocorre? de Michael lgnatieff ilustra diversos dos principais aspec
- Por que as pessoas investem em posições de identida tos da identidade e da diferença em geral e sugere como po
de? Como se pode explicar esse investimento? demos tratar algumas das questões analisadas neste capítulo:
Na base da discussão sobre essas questões está a tensão 1. Precisamos de conceitualizações. Para compreender
entre perspectivas essencialistas e perspectivas não-essen mos como a identidade funciona, precisamos conceitualizá
cialistas sobre identidade. Uma definição essencialista da la e dividi-la em suas diferentes dimensões.
identidade "sérvia" sugeriria que existe um conjunto crista 2. Com freqüência, a identidade envolve reivindicações
lino, autêntico, de características que todos os sérvios par essencialistas sobre quem pertence e quem não pertence a
tilham e que não se altera ao longo do tempo. Uma definição um determinado grupo identitário, nas quais a identidade é
não-essencialista focalizaria as diferenças, assim como as vista como fixa e imutável.
características comuns ou partilhadas, tanto entre os pró
3. Algumas vezes essas reivindicações estão baseadas na
prios sérvios quanto entre os sérvios e outros grupos étnicos.
natureza; por exemplo, em algumas versões da identidade
Uma definição não essencialista prestaria atenção também
às formas pelas quais a definição daquilo que significa ser étnica, na "raça" e nas relações de parentesco. Mais fre
um "sérvio" têm mudado ao longo dos séculos. Ao afirmar a qüentemente, entretanto, essas reivindicações estão basea
das em alguma versão essencialista da história e do passado,
primazia de uma identidade - por exemplo, a do sérvio -
12 13
na qual a história é construída ou representada como uma exemplo, o miliciano sérvio parece estar envolvido em uma
verdade imutável. difícil negociação ao dizer que os sérvios e os croatas são os
4. A identidade é, na verdade, relacional, e a diferença mesmos e, ao mesmo tempo, fundamentalmente diferentes.
é estabelecida por uma marcação simbólica relativamente a Pode haver discrepâncias entre o nível coletivo e o nível
outras identidades (na afirmação das identidades nacionais individual, tais como as que podem surgir entre as deman
por exemplo, os sistemas representacionais que marcam � das coletivas da identidade nacional sérvia e as experiências
diferença podem incluir um uniforme, uma bandeira nacio cotidianas que os sérvios partilham com os croatas.
nal ou mesmo os cigarros que são fumados). 10. Precisamos, ainda, explicar por que as pessoas assu
5. A identidade está vinculada também a ",.....,r1.�,..,.es mem suas posições de identidade e se identificam com elas.
sociais e materiais. .e um grupo é simbolicamente mar Por que as pessoas investem nas posições que os discursos
cado como o inimigo ou como tabu, isso terá efeitos reais da identidade lhes oferecem? O nível psíquico também deve
porque o grupo será socialmente excluído e terá desvan fazer parte da explicação; trata-se de uma dimensão que,
tagens materiais. Por exemplo, o cigarro marca distinções juntamente com a simbólica e a social, é necessária para
que estão presentes também nas relações sociais entre uma completa conceitualização da identidade. Todos esses
sérvios e croatas. elementos contribuem para explicar como as identidades
são formadas e mantidas.
6. O social e o simbólico referem-se a dois processos
diferentes, mas cada um deles é necessário para a constru
ção e a manutenção das identidades. A marcação simbólica 1. Por que o conceito de identidade é importante?
é o meio pelo qual damos sentido a práticas e a relações Uma das discussões centrais sobre a identidade concen
sociais, de�inindo, por exemplo, quem é excluído e quem é tra-se na tensão entre o essencialismo e o não-essencialis
incluído. E por meio da diferenciação social que essas mo. O essencialismo pode fundamentar suas afirmações
classificações da diferença são "vividas" nas relações sociais. tanto na história quanto na biologia; por exemplo, certos
7. A conceitualização da identidade envolve o exame dos movimentos políticos podem buscar alguma certeza na afir
sistemas classificatórios que mostram como as relações so mação da identidade apelando seja à "verdade" fixa de um
ciais são organizadas e divididas; por exemplo, ela é dividida passado partilhado seja a "verdades" biológicas. O corpo é
em ao menos dois grupos em oposição - "nós e eles", um dos locais envolvidos no estabelecimento das fronteiras
"sérvios e croatas". que definem quem nós somos, servindo de fundamento para
a identidade - por exemplo, para a identidade sexual. É
8. Algumas diferenças são marcadas, mas nesse processo necessário, entretanto, reivindicar uma base biológica para
algumas diferenças podem ser obscurecidas; por exemplo, a identidade sexual? A maternidade é outro exemplo no qual
a afirmação da identidade nacional pode omitir diferenças a identidade parece estar biologicamente fundamentada.
de classe e diferenças de gênero. Por ouh·o lado, os movimentos étnicos ou religiosos ou
9. As identidades não são unificadas. Pode haver contra nacionalistas freqüentemente reivindicam uma cultura ou
dições no seu interior que têm que ser negociadas; por uma história comum como o fundamento de sua identidade.
14 15
O essencialismo assume, assim, diferentes formas, como se
1.1. Identidade e representação
demonstrou na discussão sobre a antiga Iugoslávia. É pos
sível afirmar a identidade étnica ou nacional sem reivindicar Por que estamos examinando a identidade e a diferença?
uma história que possa ser recuperada para servir de base Ao examinar sistemas de representação, é necessário anali:
sar a relação entre cultura e. significad o (Hall, 1997). So
para uma identidade fixa? Que alternativas existem à estra . .
tégia de basear a identidade na certeza essencialista? Será demos compreender os s1gmficados envo1v1'dos nesses ,.
que as identidades são fluidas e mutantes? Vê-las como s1sº temas se tivermos alguma idéia sobre quais posições-de-
P_
sujeito eles produzem e como nos, , como suJeI · ·tos, podemos'
fluidas e mutantes é compatível com a sustentação de um interior. Aqui, estaremos tratando
projeto político? Essas questões ilustram as tensões que ser posicionados em seu . .
existem entre as concepções construcionistas e as concep de um outro momento do " circmto da cu1tura,,:. aguele em
ue O foco se desloca dos sistemas de representa ã · as
ções essencialistas de identidade.
identidades pro uz1 as por a_que es s1s�
Para justificar por que estamos analisando o conceito de
�representação inclui �s práticas_ de si�ni��ação e �s
identidade, precisamos examinar a fmma como a identidade
· temas simbólicos por me10 dos quais os s1gmficados sao
se insere no "circuito da culturà' bem como a forma como a
1
produzidos, posicionando-nos como sujeito._E por meio dos
SIS
16 17
censão ou a mãe sensível. Os anúncios só serão "eficazes"
no seu objetivo de nos vender coisas se tiverem apelo par ª
ti·d des poss1,veis· , poi·
um modo específico de subjetividade
e distante ou a da mascu-
os consumidores e se fornecerem imagens com os quai
a - tal como a da fieminilidade loira .
.
eles possam se identificar. É claro, pois, que a produç
s ª
. i·d de ativa at1·ati·va e sofistic
1m
, . s do 'u
-. ada dos anunc10
' u Gay, Hall et alii, 1997). Somos constran-
vvalk-
ão man da Sony (D
de significados e a produção das identidades que são 1 1 i ades
de poss1·b·I·d
posicionadas nos (e pelos) sistemas de representação gidos' entretanto, não apenas pe a gama .
isto é, pela vaneda de d e . .e-
iep1
estão estreitamente vinculadas. O deslocamento, aqu que a cultUI.a oferece' - . .
i, · bo'licas mas também pelas relaçoes sociais.
sentaço- es sim
para uma ênfase na identidade é um deslocamento de r0nathan Rutherford,
ênfase - um deslocamento que muda o foco: da repre Como ar 1enta J'
" marca o encontro de nosso passado com
... a 1·<lentidade
sentação para as identidades.
as relações sociais, cultmais e econom1cas nas q�ms v1Ve_m_os
, . . .
A ênfase na representação _e o papel-chave da cultura na agora... a identidade é a intersecção de nossas V1das cotidrn-
,. -
nas com as l·elações • .
econom1cas e pohticas de sub 01-d·maçao
produção dos significados gue permeiam todas as relações
sociais levam, ass · e dominação" (Rutherford, 1990, p. 19-20).
uma preocupação com a identificaçã;
Nixon, 1997).' sse conceito,·que escreve o processo pelo OS SIS· temas simbólicos fornecem
• novas formas de se dar
qua nos 1 entificamos com os outros, seja pela ausência de 1 oa
sent·d ' experiência das divisões e desigua ldades sociais
. . e
_ , .
uma consciência da diferença ou da separação, seja como · pelos quais alguns grupos sao exclmdos e estig-
aos me10s
resultado de supostas similaridades, tem sua origem na matizados. As identidades são contestadas. Este capitulo
psicanálise. A identificação é um conceito central na com começou com um exemplo de identidades fortemente c�n
preensão que a criança tem, na fase edipiana, de sua próp1ia testadas. A discussão sobre identidades sugere a emer?en
situação como um sujeito sexuado. O conceito de identificação cia de novas posições e de novas identidades, produzidas,
tem sido retomado, nos Esh1dos Culturais, mais especifica por exemplo, em circunstâncias econômi�as e sociais can�
mente na temia do cinema, para explicar a f01te ativação de biantes. As mudanças mencionadas anteriormente e enfati
desejos inconscientes relativamente a pessoas ou a imagens, zadas no exemplo da antiga Iugoslávia sugerem que pode
l
fazendo com que seja possível nos vem1os na imagem ou na haver uma crise de identidade? Que mudanças podem estar
personagem apresentada na tela. Diferentes significados são ocorrendo nos níveis global, local e pessoal, que possam
produzidos por diferentes sistemas simbólicos, mas esses justificar o uso da palavra "crise"?
significados são contestados e cambiantes.
Pode-se levantar questões sobre o poder da repre 2. Existe uma crise de identidade?
sentação e sobre como e por que alguns significados são Quase todo mundo fala agora sobre "iclentidac�e". �
tiçlade sá se torna um problema quando esta em cnse;
preferidos relativamente a outros Todas as práticas de sig ,
. quangg_algo que se supõe ser fixo, coerente e estavel e
nificação que produzem significados envolvem relações de cles'locado pela experiência da dúvida e da incerteza (Mer
podei� incluindo o poder para definir quem é incluído e quem cer, 1990, p. 4).
é excluído. A cultura molda a identidade ao dar sentido à
"Identidade" e "crise de identidade" são palavras e
?
experiência e ao tornar possível optai� entre as várias iden-
idéias bastante utilizadas atualmente e parecem ser vistas
18 19
por sociólogos e teóricos como características das socieda . produz diferentes resultados
A g1Obalizaça- 0, entretanto,
des contemporâneas ou da modernidade tardia. Já mostra . A homogenei. dade cultural PIQ-
mos o exemplo de uma área no mundo, a antiga Iugoslávia, em termos de i·<lentidade . . t
a pel o mer ado globa, l pode l evar ao d 1stancrn no
na qual se observa o ressurgimento de identidades étnicas movi·d c
,
�.LJ__L-
munidade e a '-::� 1
dai enti. a e re ativamen e
u
c Lil.i.u<'�
e nacionais em conflito, fazendo com que as identidades ernativa, pode levar a uma resistencia que pode
. A •
e arm a . . .
�: existentes entrassem em colapso. Nesta seção? examinare fortalecer e 1.eafinnar algumas
identidades nac10na is e 1ocais
. � mo� uma série de....iliferentes coniextQs nos quais questõe� . .
s posições de identidade.
-,.-p; sobre identidade e crise de identidade se tornaram centrais. ou levar ao surgimento de nova
Examinaremos, assim, a globalização e os processos associa As mudanças na economia global têm produzido m�a
Isso ocone nao
dos com mudanças globais, incluindo questões sobre histó dispersa- o das demandas ao redor do mundo.
e
ria, mudança social e movimentos políticos. apenas em termos de bens e serviços, mas tamb,em d,
mercados de h·abalho ·g-;migração. dos traba lh a d ores nao
_ e,
Alguns autores recentes argumentam que as "crises de _ , .
· ente, nova, mas a globalizaçao esta estreitamente
obviam
identidade" são características da modernidade tardia e que
associada à aceleração da migração. Motivadas pela neces-
sua centralidade atual só faz. sentido quando vistas no con
sidade econômica, as pessoas têm se espalhado pelo globo,
texto das transformações globais que têm sido definidas
de forma que "a migração inte�·nacional é parte de _urna
como características da vida contemporânea (Giddens,
volução transnacional que esta remodelando as socieda
1990). Kevin Robins, por exemplo, argumenta que o fenô
�:s e a política ao redor do globo" (Castles e Mille1� 1993,
meno da globalização envolve uma extraordinária transfor
p. 5). A migração tem impactos tanto sobre o país de origem
mação. Segundo ele, as velhas estruturas dos estados e das
quanto sobre o país de destino. Por exemplo, como resultado
comunidades nacionais entraram em colapso, cedendo lu
do processo de imigração, muitas cidades européias apre
gar a uma crescente "transnacionalização da vida econômica
sentam exemplos de comunidades e culturas diversificadas.
e cultural" (Robins, 1997). A globalização envolve uma
Existem, na Grã-Bretanha, muitos desses exemplos, in
interação entre fatores econômicos e culturais, causando
cluindo comunidades asiáticas em Bradford e Leicester, e
mudanças nos padrões de produção e consumo, as quais,
partes de Londres, tais como Brixton, ou em St. Paul' s, em
por sua vez, produzem identidades novas e globalizadas.
Bristol. A migração produz identidades plurais, mas tam
Essas novas identidades, caricaturalmente simbolizadas,
bém identidades contestadas, em um processo que é carac
às vezes, pelos jovens que c omem hambúrgueres do
terizado por grandes desigualdades. A migração é um
McDonald's e que andam pela rua de Walkman, formam
processo característico da desigualdade em termos de de
um grupo de "consumidores globais" que podem ser en-,
senvolvimento. Nesse processo, o fator de "expulsão" dos
c entrados em qualquer lugar do mundo e que mal se distin
países pobres é mais forte do que o fator de "atração" das
guem entre si. O desenvolvimento global do capitalismo não
>
sociedades pós-industriais e tecnologicamente avançadas.
é, obviamente, novo, mas o que caracteriza sua fase mais
(
O movimento global do capital é geralmente muito mais
recente é a convergência de culturas e estilos de vida nas
livre que a mobilidade do trabalho.
sociedades que, ao redor do mundo, são expostas ao seu
impacto (Robins, 1991).
20 21
/11 I q 1 /J-Ç4-0
/i::ssa dispersão das pessoas ao redor do globo produz
identidades que são moldadas e localizadas em diferentes . Uru·do, uma nostalgia por uma "inglesidade" mais. cultu-
Remo
a e nos Estados Uru·dos, um movimento
lugares e por diferentes lugares. Essas novas identidades ralmente hornogêne , . ,,
reto m O aos "velhos e bons valores da .e.
1ainíliaº amencana .
p�em ser desestabili�adas, mas também desest�bilizado por um . .
_
No Reino Unido, os movimentos na�10nahst�s_ten:1 lut�-
A
(
da, as pessoas envolvidas nesse processo comportam-se
romano e o protestantismo na Irlanda do Norte. Por outro
como se ela existisse e expressam um desejo pela restaura
lado, os grupos dominantes nessas sociedades também estão
ção da unidade dessa comunidade imaginada. Benedict
em busca de antigas certezas étnicas - há, por exemplo, no
Anderson (1983) titiliza essa expressão para desenvolver o
�� hAvm1AA,.·_ . .Y
22 -�
23
argumento de que a identidade nacional é inteiramente
� dades nacio nais .e étnicas. Mes-
dependente da idéia que fazemos dela. Uma vez que não çao e manutença�o das identi stroem
identidade s atuais recon
seria possível conhecer todas aquelas pessoas que partilham mo que o Passado que as . .
· ele proporc10na alguma
de nossa identidade nacional, devemos ter uma idéia parti seJa, sempi·e, apenas imagmado' .
a ça, fl�idez e �rescente
lhada sobre aquilo que a constitui. A diferença entre as di certeza em um clima que é de mud �
-
mcer teza· As identidades em conflit o estao localizadas no
versas identidades nacionais reside, portanto, nas diferentes , .
e omicas, mu-
interior de mudanças sociais, pohticas econ
A •
As mudanças e transformações globais nas estruturas �esse processo. Pode-se perguntai� primeiramente:
políticas e econômicas no mundo contemporâneo colocam existe uma verdade histórica única que possa ser recupera
em relevo as questões de identidade e as lutas pela afirma- da? Pensemos sobre o passado que a indústria que explora
24 25
uma suposta herança inglesa reproduz por meio da venda partilhados e signif�cados contestados, entre valores e
de mansões que representariam uma história passada au recursos materiais? E preciso afirmar nossas densas pecu
liaridades, nossas diferenças vividas e imaginadas. Mas
tenticamente inglesa. Pensemos também nas representa podemos nos permitir deixar de examinar a questão de
ções que a mídia faz desse presumido e autêntico passado como nossas diferenças estão entrelaçadas e, na verdade,
como, por exemplo, nos filmes baseados nos romances de hierarquicamente organizadas? Podemos nós, em outras
Jane Austen. Há um passado inglês autêntico e único que palavras, realmente nos permitir ter histórias inteiramente
possa ser utilizado para sustentar e definir a "inglesidade" diferentes, podemos nos conceber como vivendo - e tendo
vivido - em espaços inteiramente heterogêneos e separa
como sendo a identidade do final do século XX? A "indús
dos? (Mohanty, 1989, p. 13).
tria" da herança parece apresentar apenas uma e única
versão. Em segundo lugai� qual é a história que pesa - a ,As histórias são realmente contestadas e isso ocorre,
história de quem? Pode haver diferentes histórias. Se exis sobretudo, na luta política pelo reconhecimento das identi
tem diferentes versões do passado, como nós negociamos dades. Em seu ensaio "Identidade cultural e diáspora"
entre elas? Uma das versões do passado é aquela que mostra (1990), Stuart Hall examina diferentes concepções de iden
a Grã-Bretanha como um poder imperial, como um poder tidade cultural, procurando analisar o processo pelo qual se
que exclui as experiências e as histórias daqueles povos que busca autenticar uma determinada identidade por meio da
a Grã-Bretanha colonizou. Uma história alternativa ques descoberta de um passado supostamente comum.
tionaria essa descrição, mostrando a diversidade desses Ao afirmar uma determinada identidade, podemos bus
grupos étnicos e a pluralidade dessas culturas. Tendo em car legitimá-la por referência a um suposto e autêntico
vista essa pluralidade de posições, qual herança histórica passado-possivelmente um passado glorioso, mas, de qual
teria validade? Ou seríamos levados a uma posição relativis quer forma, um passado que parece "real" - que poderia
ta, na qual todas as diferentes versões teriam uma validade validar a identidade que reivindicamos. Ao expressar de
igual, mas separada? Ao celebrar a diferença, entretanto, mandas pela identidade no presente, os movimentos naciona
não haveria o risco de obscurecer a comum opressão eco listas, seja na antiga União Soviética seja na Europa Oriental,
nômica na qual esses grupos estão profundamente envolvi ou ainda na Escócia ou no País de Gales, buscam a validação
dos? S.P. Mohanty utiliza a oposição entre "história" e do passado em teimas de tenitório, cultura e local. Stua1t Hall
"histórias" para argumentar que a celebração da diferença analisa o conceito de "identidade cultural", utilizando o exem
poderia levar a ignorar a natureza estrutural da opressão: plo das identidades da diáspora negra, baseando-se, empi
A pluralidade é, pois, um ideal político tanto quanto um ricamente, na representação cinematográfica.
slogan metodológico. Mas há uma questão incômoda que
Nesse ensaio, Hall toma como seu ponto de partida a
precisa ser resolvida. Corno podemos negociar entre mi
nha história e a sua? Como seria possível para nós recupe questão de quem e o que nós representamos quando fala
rar aquilo que ternos em comum, não o mito humanista mos. Ele argumenta que o sujeito fala, sempre, a partir de
dos atributos humanos que partilharíamos e que suposta uma posição histórica e cultural específica. Hall afirma que
mente nos distinguiriam dos animais, mas, de forma mais há duas formas diferentes de se pensar a identidade cultural.
imp01tm1te, a intersecção de nossos vários passados e nossos A primeira reflete a perspectiva já discutida neste capítulo,
vários presentes, as inevitáveis relações entre significados
26 27
na qual uma determinada comunidade busca recuperar a bais na economia como, por exemplo, as transfmmações nos
"verdade" sobre seu passado na "unicidade" de uma história adrões de produção e de consumo e o deslocamento do
e de uma cultura partilhadas que poderiam, então, ser re fnvestimento das indústrias de manufatura para o setor de
presentadas, por exemplo, em uma forma cultural como o serviços têm um impacto local. Mudanças na estrutura de
filme, para reforçar e reafirmar a identidade - no caso da classe social constituem uma característica dessas mudan
indústria da herança, a "inglesidade"; no exemplo de Hall, ças globais e locais. d.J�J-"�.J4
a "caribenhidade". A segunda concepção de identidade
As crises globais da identidade têm a ver com aquilQ_gue
cultural é aquela que a vê como "uma questão tanto de
Ern�to Laclau chamou de deslocamento. As sociedades
'tornar-se' quanto de 'ser"'. Isso não significa negar que a
m�dernas, ele argumenta, nao tem qualquer núcleo ou cen
identidade tenha um passado, mas reconhecer que, ao rei
tro determinado que produza identidades fixas, mas, em vez
vindicá-la, nós a reconstruímos e que, além disso, o passado
disso, uma pluralidade de centros. Houve um deslocamertto
sofre uma constante transformação. Esse passado é parte de
dos centros. Pode-se argumentar que um dos centros que
uma "co- munidade imaginada", uma comunidade de sujei
foi deslocado é o da classe social, não a classe como uma
tos que se apresentam como sendo "nós". Hall argumenta
simples função da organização econômica e dos proces�os
em favor do reconhecimento da identidade, mas não de uma
de produção, mas a classe como um determinante de todas
identidade que esteja fixada na rigidez da oposição binária,
as outras relações sociais: a classe como a categoria "mestra",
tal como as dicotomi� "nós/eles", ou "sérvios/croatas", no que é como ela é descrita nas análises marxistas da estrutura
_
exemplo de Ignatieff.lEJe sugere que, embora seja construí social. Laclau argumenta que não existe mais uma única
do por meio da diferença, o significado não é fixo, e utiliza, força, determinante e totalizante, tal como a classe no para
para explicar isso, o conceito de, dijférance de Jacques digma marxista, que molde todas as relações sociais, mas,
Derrida. Segundo esse autor, o significaao é sempre diferido em vez disso, uma multiplicidade de centros. Ele sugere
ou adiado; ele não é completamente fixo ou completo, de não somente que a luta de classes não é inevitável, mas que
forma que sempre existe algum deslizamento. A posição de não é mais possível argumentar que a emancipação social
Hall enfatiza a fluidez da identidade. Ao ver a identidade esteja nas mãos de uma única classe. Laclau argumenta que
como uma questão de "tornar-se", aqueles que reivindicam isso tem implicações positivas porque esse deslocamento
a identidade não se limitariam a ser posicionados pela indica que há muitos e diferentes lugares a partir dos quais
identidade: eles seriam capazes de posicionar a si próprios novas identidades podem emergir e a partir dos quais novos
e de reconstruir e transformar as identidades históricas, sujeitos podem se expressar (Laclau, 1990, p. 40). As vanta
�erdadas de um suposto passado comum. � � gens desse deslocamento da classe social podem ser ilustra
das pela relativa diminuição da importância das afiliações
·G.2.
/
�anças saciai?;) baseadas na classe, tais como os sindicatos operários e o
Não estão ocorrendo mudanças apenas nas escalas glo surgimento de outras arenas de conflito social, tais como as
bal e nacional e na arena política. A formação da identidade baseadas no gênero, na "raça", na etnia ou na sexualidade.
ocorre também nos 1úveis "local" e pessoal. As mudanças glor
28 29
Os indivíduos vivem no interior de um grande número Existe, em suma, na vida moderna, uma diversidade de
de diferentes instituições, que constituem aquilo que Pierre osições que nos estão disponíveis - posições que podemos
Bourdieu chama de "campos sociais", tais como as famílias, �cupar ou não. Parece difícil separar algumas dessas iden
os grupos de colegas, as instituições educacionais, os grupos tidades e estabelecer fronteiras entre elas. Algumas dessas
de h·abalho ou partidos políticos. Nós participamos dessas identidades podem, na verdade, ter mudado ao longo do
instituições ou "campos sociais", exercendo graus variados tempo. As formas como representamos a nós mesmos -
de escolha e autonomia, mas cada um deles tem um contexto como mulheres, como homens, como pais, como pessoas
material e, na verdade, um espaço e um lugar, bem como trabalhadoras - têm mudado radicalmente nos últimos anos.
um conjunto de recursos simbólicos. Por exemplo, a casa é Como indivíduos, podemos passar por experiências de frag
o espaço no qual muitas pessoas vivem suas identidades mentação nas nossas relações pessoais e no nosso trabalho.
familiares. A casa é também um dos lugares nos quais somos Essas experiências são vividas no contexto de mudanças
espectadores das representações pelas quais a mídia produz sociais e históricas, tais como mudanças no mercado de
determinados tipos de identidades - por exemplo, por meio h·abalho e nos padrões de emprego. As identidades e as
da narrativa das telenovelas, dos anúncios e das técnicas de lealdades políticas também têm sofrido mudanças: lealda
venda. Embora possamos nos ver, seguindo o senso comum, des tradicionais, baseadas na classe social, cedem lugar à
como sendo a "mesma pessoa" em todos os nossos diferentes concepção de escolha de "estilos de vida" e à emergência
encontros e interações, não é difícil perceber que somos da "política de identidade". A etnia e a '\aça", o gênero, a
diferentemente posicionados, em diferentes momentos e sexualidade, a idade, a incapacidade física, a justiça social e
em diferentes lugares, de acordo com os diferentes papéis as preocupações ecológicas produzem novas formas de
sociais que estamos exercendo (Hall, 1997). Diferentes con identificação. As relações familiàres também têm mudado,
textos sociais fazem com que nos envolvamos em diferentes especialmente com o impacto das mudanças na estrutura do
significados sociais. Consideremos as diferentes "identida emprego. Tem havido mudanças também nas práticas de
des" envolvidas em diferentes ocasiões, tais como participar trabalho e na produção e consumo de bens e serviços. É
de uma entrevista de emprego ou de uma reunião de pais igualmente notável a emergência de novos padrões de vida
na escola, ir a uma festa ou a um jogo de futebol, ou ir a um doméstica, o que é indicado pelo crescente número de lares
centro comercial. Em todas essas situações, podemos nos chefiados por pais solteiros ou por mães solteiras bem corno
sentir, literalmente, como sendo a mesma pessoa, mas nós pelas taxas elevadas de divórcio. As identidades sexuais
somos, na verdade, diferentemente posicionados pelas di também estão mudando, tornando-se mais questionadas e
ferentes expectativas e restrições sociais envolvidas em cada ambíguas, sugerindo mudanças e fragmentações que po
uma dessas diferentes situações, representando-nos, diante dem ser descritas em termos de uma crise de identidade.
dos outros, de forma diferente em cada um desses contextos. A complexidade da vida moderna exige que assumamos
Em um certo sentido, somos posicionados - e também po diferentes identidades, mas essas diferentes identidades
sicionamos a nós mesmos - de acordo com os "campos so podem estar em conflito. Podemos vivei� em nossas vidas
ciais" nos quais estamos atuando. pessoais, tensões entre nossas diferentes identidades quan-
30 31
do aquilo que é exigido por uma identidade interfer troles e
as ex1gencrns de uma outra. U m exemp1o e, o conflit o.
ec m
o cont. exto ou campo cultural tem ,seus con
oe "·1magm
· ano· " ; 1s· to e', suas
ctat1vas, bem como seu
· A .
32 33
de classe e se dirigiam às identidades particulare
s de se s elas, como uma espécie de
sustentadores. Por exemplo, o feminismo se diri
gia espe igualmente a toda
eys, 1985).
ficamente às mulheres, o movimento dos direitos
civis d :trans-histórica (Jeffr . .
negros às pessoas negras e a política sexual às s essencI is
·al· tas da políti ca de identidade po
pes ecto . 0- es de algumas das participantes
lésbicas e gays. A política de identidade era o que so il strados pelas vis
u
defi · to pela Paz, de Greenham .
2
esses movimentos sociais, marcados por uma p en tos d o Mov imen
reocupa Pam. . , ·
os misseis
ção profunda pela identidade: o que ela signific
a, com art ici pa ntes daquela campanha contra , .
P
ela é produzida e como é contestada. A política
de iden os afinnavam represe ntar as caractensticas essen-
. . o com o outro e do
tidade concentra-se em afirmar a identidade cultu
ral te femm m as da preocupaçã -
essa .
pos1ça o como um " confior-
pessoa s que pertencem a um determinado grupo
oprimi o · Outras cn··ti·caram -
. parte da construçao
corn O pnnc1,p1 0 maternal que faz
do ou marginalizado. Essa identidade torna-se, assi .
m, u .e . .
fator importante de mobilização política. Essa pol
íti ôo pape1 da mulher' um princípio que o 1emm1smo
envolve a celebração da singularidade cultural questio . nar ,, (Delmar, 1986' p. 12). . De _forma s1m1 . ·1ar,
de um as afirma çoes de que a
determinado grupo, bem como a análise de sua opre
ssão tentativa de questionar
específica. Pode-se apelar à identidade, entretanto, de
duas seXU al·d I ade é anormal ou imoral, tem-se apelado a
formas bastante diferentes. . ent'ficos que confirmariam que a ·d 1 ent1·dade gay
os c1 1
gicamente determinada.
Por um lado, a celebração da singularidade do grupo, . . ,,
que é a base da solidariedade política, pode se traduzir em outro lado, alguns dos "novos movimentos sociais ,
afirmações essencialistas. Por exemplo, tomando como base do o movimento das mulher�s, tê� adotado m�na _
a identidade e as qualidades singulares das mulheres, al guns não-essencialista com respeito a identidade. El�s te:11
grupos feministas têm argumentado em favor de um sepa 0 que as identidades são fluidas, que elas nao sao
_
ratismo relativamente aos homens. Existem, obviamente, fixas, que elas não estão presas a �erenças que
diferentes formas de compreender e definir essa "singula permanentes e valeliam para todas as epocas (�ee�s,
Alguns membros dos "novos movimentos soc1rus _
em
ridade". Ela pode envolver apelos a características biologi
·cado O direito de conshuir e assumir a responsab1hda . �
camente dadas da identidade como, por exemplo, a afir
mação de que o papel biológico das mulheres como mães as suas próprias identidades. Por exemplo, as mul�er�s
torna inerentemente mais altruístas e pacíficas. Ou pode se têm lutado pelo reconhecimento de sua propna
basear em apelos à história quando, por exemplo, as mulhe de luta no interior do movimento feminista, resistin
res buscam estabelecer uma história exclusiva das mulhe sim, aos pressupostos de um movimento de mulheres
res, reivindicando, nos países de fala inglesa, uma "hers o na categoria unificada de "mulher" que, implicita-
e, inclui apenas as mulheres brancas (Aziz, 1992).
tory" (Daly, 1979), que os homens teriam reprimido. I sso
implicaria, segundo esse argumento, a existência de uma guns elementos desses movimentos têm questionado,
cultura exclusiva das mulheres - haveria, ao longo da histó cularmente, duas concepções que pressupõem o cará
ria, algo fixo e imutável na posição das mulheres que se o da identidade. A primeira está baseada na classe
, constituindo o chamado "reducionismo de classe".
34 35
r
l) ,' .2 � f/lt)
C( � � -. -
�
Essa concepção baseia-se na análise que Marx fez da relação que têm sido mantidas "fora da história" (Rowbotham , 1973)
entre base e superestrutura, na qual as relações sociais são ou que têm ocupado espaços às margens da sociedade.
vistas como determinadas pela base material da sociedade
O segundo desafio de alguns dos "novos movimentos
argumentando-se, assim, que as posições de gênero pode�
sociais" tem consistido em questionar o essencialismo da iden
ser "deduzidas" das posições de classe social. Embora essa
tidade e sua fixidez como algo "natural", isto é, como uma
análise tenha o apelo de uma relativa simplicidade e da
categoria biológica. A política de identidade não "é uma luta
ênfase na importância dos fatores econômicos materiais
entre sujeitos naturais; é uma luta em favor da própria expres
como determinantes centrais das posições sociais, as mu
são da identidade, na qual permanecem abe1ias as possibilida
danças sociais recentes colocam essa visão em questão.
des para valores políticos que podem validar tanto a
Mudanças econômicas tais como o declínio das indústrias
diversidade quanto a solidariedade" (Weeks, 1994, p. 12).
de manufatura pesada e as transformações na estrutura do
.,, Weeks argumenta que uma das principais conhibuições da
mercado de trabalho abalam a própria definição de classe
política de identidade tem sido a de consh1.ür uma política da
operária, a qual, tradicionalmente, supõe operários mascu
diferença que subve1ie a estabilidade das categmias biológicas
linos, industriais e de tempo integral. As identidades basea
e a conshução de oposições bináiias. Ele argumenta que os
das na "raça", no gênero, na sexualidade e na incapacidade
"novos movimentos sociais" historicizaram a experiência,
física, por exemplo, atravessam o pertencimento de classe.
enfatizando as diferenças entre grupos marginalizados
O reconhecimento da complexidade das divisões sociais
como uma alternativa à "universalidade" da opressão.
pela política de identidade, na qual a "raça", a etnia e o gê-
nero são centrais, tem chamado a atenção para outras divi Isso ilustra duas versões do essencialismo identitário. A
sões sociais, sugerindo que não é mais suficiente argumen · primeira fundamenta a identidade na "verdade" da tradição
tar que as identidades podem ser deduzidas da posição de e nas raízes da história, fazendo um apelo à "realidade" de
classe (especialmente quando essa própria posição de classe um passado possivelmente reprimido e obscurecido, no
está mudando) ou que as fonnas pelas quais elas são repre qual a identidade proclamada no presente é revelada como
sentadas têm pouco impacto sobre sua definição. Como ar um produto da histó1:ia. A segunda está relacionada a uma
gumenta Kobena Mercer: "Em termos políticos, as identi categoria "natural", fixa, na qual a "verdade" está emaizada
dades estão em c1ise porque as eshuturas h-adicionais de per na biologia. Cada uma dessas versões envolve uma crença
tencimento, baseadas nas relações de classe, no partido e na na existência e na busca de uma identidade verdadeira. O
nação-estado têm sido questionadas" (Mercer, 1992, p. 424). essencialismo pode, assim, ser biológico e natural, ou histó
A política de identidade tem a ver com o recrutamento de rico e cultural. De qualquer modo, o que eles têm em
sujeitos por meio do processo de formação de identidades. comum é uma concepção unificada de identidade.
Esse processo se dá tanto pelo apelo às identidades hege
mónicas - o consumidor soberano, o cidadão patriótico - 2. 4. Swnário da seção 2
quanto pela resistência dos "novos movimentos sociais", ao Nossa discussão apresentou v1soes diferentes e fre
colocar em jogo identidades que não têm sido reconhecidas, qüentemente contraditórias sobre a identidade. Por um lado,
36 37
a id , · ta como tendo algum núcleo essencial que
Argumentei, nesta seção, que a identidade importa por
---
distinguiria um grupo e outro. Por outro, a identida e é
que existe uma crise da identidade, globalmente, localmen-
. .
'7ista como contingente; isto é, como� uto e uma in
te , pessoalmente e politicamente. Os processos hist'oncos
te· es co�one ntes de discursos políticos - de certas i·den-
que, aparentemente, sustentavam a f·ixaçao
e culturais e .ck_histórias particulares. A identi a e contin- i entl·dades est-ao
l
tidades estão entrando em co apso e novas ·d
gente coloca problemas para os movimentos sociais em
sendo forjadas, muitas vezes por 1;1�io da l�ta e �a conte �
termos de projetos políticos, especialmente ao afirmar a
tação política. As dimensões pohticas da identidade tais
solidariedade daqueles que pertencem àquele movimento
como se expressam, por exemplo, "
nos conflitos nacionais e
. . . ,,
específico. Para nos contrapor às negações sociais dominan étnicos e no crescimento dos novos movimentos sociais ,
tes de uma determinada identidade, podemos desejar re estão fortemente base adas na construção da diferença.
cuai� por exemplo, às aparentes ce rtezas do passado, a fim
de afirmar a força de uma identidade coerente e unificada. Como vimos no exemplo de Ignatieff, no início deste
Como vimos no caso das identidades nacionais e étnicas, é capítulo, as identidades são fortemente questio�adas. Tam
tentador - em um mundo cada vez mais fragmentado e em bém vimos que, muito freqüentemente, elas estao baseadas
resposta ao colapso de um conjunto determinado de certe em uma dicotomia do tipo ':nós-=e eles". A marcação da
zas - afirmar novas verdades fundamentais e apelar a raízes diferença é crucial no rocesso de construção das posições
anteriorme nte negadas. Assim, em uma política de identi de identi ade . A diferença é reproduzida por meio de
dade, o projeto político deve certamente ser reforçado por sistemas simbólicos (envolvendo até mesmo os cigarros
algum apelo à solidariedade daqueles que "pertencem" a fumados pelos lados em conflito, no exemplo de Ignatie :ff).
um grupo oprimido ou marginalizado. A biologia forne ée A antropóloga Maiy Douglas argumenta que a marcaçã�da
uma das fontes dessa solidariedade; a busca universal, trans- diferença é a base da cultura porque as coisas - e as pessoas
_ ganham sentido por me io da atribuição de difefentes
l_Jstórica, de raízes e laços culturais fornece uma outra. posições em um sistema classificatório (Hall, 19976). Isso
As identidad são xoduzidas em momentos particula nos leva à próxima que stão deste capítulo: por meio de quais
res no tempo. Na discussão sobre mudanças globais, iden- processos os significados são produzidos e de que forma a
�ais e étnicas re ssurgentes e renegociadas e diferença é marcada em relação à identidade?
r
sobre os desafios dos "novos movimentos sociais" e das
novas definições das identidades pessoais e se xuais, sugeri 3. Como a diferença é marcada em relação à iden
que as identidades são contingentes, emergindo em mo tidade?
mentos históricos particulares. Alguns elementos dos "no
vos movimentos sociais" questionam algumas das ten 3.1. Sistemas classificatórios
dências à fixação das identidades da "raça", da classe, do
As identidades são fabricadas por meio da marcação da
gênero e da sexualidade, subvertendo certezas biológicas,
diferença. Essa marcação da diferença ocorre tanto por meio
enquanto outros afirmam a primazia de certas caraéterísti
de sistemas simbólicos de representação quanto por meio
cas conside radas esse nciais.
de formas de exclusão social. A identidade, pois, não é o
38 39
oposto da diferença: a identidade depende da diferença. Nas partido na mesa da comunhão, torna-se sagrado, podendo
relações sociais, essas formas de diferença -a simbólica e a simbolizar o corpo de Cristo. A vida social em geral, argu
social - são estabelecidas, ao menos em parte, por meio mentava Durkheim, é estruturada por essas tensões entre o
de sistemas classificatórios. Um sistema classificatório sagrado e o profano e é por meio de rituais como, por
aplica um princípio de diferença a uma população de uma exemplo, as reuniões coletivas dos movimentos religiosos
forma tal que seja capaz de dividi-la (e a todas as suas ou as refeições em comum, que o sentido é produzido. É
características) em ao menos dois grupos opostos - nesses momentos que idéias e valores são cognitivamente
nós/eles (por exemplo, servos e croatas); eu/outro. Na apropriados pelos indivíduos:
argumentação do sociólogo francês Émile Durkheim, é A religião é algo eminentemente social. As representações
por meio da organização e ordenação das coisas de acordo religiosas são representações coletivas que expressam rea
com sistemas classificatórios que o significado é produzido. lidades coletivas; os ritos são uma maneira de agir que
Os sistemas de classificação dão ordem à vida social, sendo ocorre quando os grupos se reúnem, sendo destinados a
estimulai; manter ou recriar ce1ios estados mentais nesses
afirmados nas falas e nos rituais. De acordo com o argumen grupos (Durkheim, citado em Bocock e Thompson, 1985,
to de Durkheim, em As formas elementares da vida religio p. 42).
sa, "sem símbolos, os sentimentos sociais teriam uma
O sagrado, aquilo que é "colocado à pmte", é definido e
existência apenas precária" (Durkheim, 1954/1912, citado
marcado como diferente em relação ao profçl.Ilo. Na verdade, o
em Alexander, 1990).
sagrado está em oposição ao profano, excluindo-o inteiramente.
Utilizando a religião como um modelo de como os �mmas pe� a cultura estabelece fronteiras e distinguê.._
processos simbólicos funcionam, ele mostrou que as relações . a diferença são crnciais para com reender as identidades. A_
sociais são produzidas e reproduzidas por meio de rituais e diferença é aquilo que separa uma identi ade da outra, esta
símbolos, os quais classificam as coisas em dois grupos: as belecendo distinções, freqüentemente na fo1ma de oposições,
sagradas e as profanas. Não existe nada inerentemente ou como vimos no exemplo da Bósnia, no qual as identidades são
essencialmente "sagrado" nas coisas. Os artefatos e idéias consb1-1ídas por meiq de uma clara oposição enb·e "nós" e
são sagrados apenas porque são simbolizados e repre "eles". A marcação da diferença é, assim, o componente-chave
sentados como tais. Ele sugeriu que as representações que em qualquer sistema de classificação.
se encontram nas religiões "primitivas" - tais como os
Cada cultura tem suas próprias e distintivas formas de
fetiches, as máscaras, os objetos rituais e os totêmicos -eram
classificar o mundo. É pela construção de sistemas classifi
considerados sagrados porque corporificavam as normas e
catórios que a cultura nos propicia os meios pelos quais
os valores da sociedade, contribuindo, assim, para unificá-la
podemos dar sentido ao mundo social e construir significa
culturalmente. Segundo Durkheim, se quisermos com
dos. Há, entre os membros de uma sociedade, um certo grau
preender os significados partilhados que caracterizam os de consenso sobre como classificar as coisas a fün de manter
diferentes aspectos da vida social, temos que examinar como
alguma ordem social. Esses sistemas partilhados de signifi
eles são classificados simbolicamente. Assim, o pão que é cação são, na verdade, o que se entende por "cultura":
comido em casa é visto simplesmente corno um elemento
da vida cotidiana, mas, quando especialmente preparado e
40 41
... a cultura, no sentido dos valores públicos, padronizados, meio pelo qual as pessoas podem fazer afirmações sobre si
de uma comunidade, serve de intermediação para a expe próprias. Ela também pode sugerir mudanças ao longo do
riência dos indivíduos. Ela fornece, antecipadamente, al tempo bem como entre culturas. Podemos pensar na enor
----tp.. gumas categorias básicas, um padrão positivo, pelo qual as
idéias e os valores são �igienicamente ordenados. E, so:
bretudo, ela tem autondade, uma vez que cada um e
me variedade de ingredientes que estão hoje disponíveis
nos supermercados e também na diversidade étnica dos
induzido a concordar por causa da concordância dos ou restaurantes nas grandes cidades do mundo e mesmo em
tros (Douglas, 1966, p. 38-9). pequenas cidades - bares que servem tapas espanholas e
O trabalho da antropóloga social Mary Douglas desen restaurantes tailandeses e indianos são apenas alguns dos
volve o argumento durkheimiano de que a cultura, na forma exemplos que podem ser citados. Para Lévi-Strauss, é tam
do ritual, do símbolo e da classificação, é central à produção bém a forma como organizamos a comida que importa - o
do significado e da reprodução das relações sociais (Du gay, que conta como prato principal, como sobremesa etc.; o que
Hall et alii, 1997; Hall, 1997b). Para Douglas, esses rituais é cozido ou o que é cru. O consumo de alimentos pode
se estendem a todos os aspectos da vida cotidiana: a prepa indicar quão ricas ou cosmopolitas as pessoas são, bem como
ração de alimentos, a limpeza, o desfazer-se de coisas - tudo, sua posição religiosa e étnica. O consumo de alimentos tem
desde a fala até a comida. No restante desta seção, vamos uma dimensão política. As pessoas podem se recusar a
explorar um pouco mais a centralidade da classificação pa comer os produtos de países particulares, em um boicote
ra a cultura e a significação, utilizando o exemplo cotidia que expresse a desaprovação das políticas daquele país: os
no da comida. produtos da África do Sul antes do fim do apartheid; os
alimentos da França, em protesto pelos testes nucleares
O antropólogo social francês Claude Lévi-Strauss pro
franceses no Pacífico. Certas identidades podem se definir
pôs-se a desenvolver esse aspecto do trabalho de Durkheim
apenas com base no fato de que as pessoas em questão
e utilizou o exemplo da comida para ilustrar esse processo. A
comem alimentos orgânicos ou de que são vegetarianas. As
cozinha estabelece uma identidade entre nós - como seres
fronteiras que estabelecem o que é comestível podem estar
humanos (isto é, nossa culhira) - e nossa comida (isto é, a
mudando e as práticas alimentares são, cada vez mais, cons
natureza). A cozinha é o meio universal pelo qual a natureza é
truídas de acordo com critérios políticos, morais ou ecoló
b·ansfo1mada em cultura. A cozinha é também uma linguagem
gicos. O consumo de alimentos tem também uma conexão
por meio da qual "falamos" sobre nós próp1ios e sobre nossos
material: as pessoas só podem comer aquilo que elasp;clen\
lugares no mundo. Talvez possan1os adaptar a frase de Descar
comprar ou que está disponível em uma sociedade particu
tes e dizer "como, logo existo". Como organismos biológicos,
lar. A análise das práticas de alimentação e dos rituais
precisamos de comida para sobreviver na natureza, mas nossa
associados com o consumo de alimentos sugere que, ao
sobrevivência como seres humanos depende do uso das cate
menos em alguma medida, "nós somos o mos". Na
gorias sociais que surgem das classificações culturais que
verdade, se consideramos as coisas que, por uma razão ou
utilizamos para dar sentido à natureza.
outra, nós não comemos, talvez a afirmação mais exata seja
Aquilo que comemos pode nos dizer muito sobre quem a de que "nós somos o que não comemos". Existem proibi
somos e sobre a cultura na qual vivemos. A comida é um ções culturais amentais contra o consumo de certos
42 43
alimentos. Existe t ambém uma divisão básica entre o co
, 1- . S,__·auss argumenta que, da mesma f01ma que ne-
mestível e o não-comestível que vai além d as distinções Lev u.
entre o nutritivo e o venenoso. Isso pode assumir diferentes hum sa cie dade humana deixa de ter uma l'mgua, nenh u-
a
. .
n ana tampouco deixa de ter uma cozi·nh a
formas como, por exemplo, a proibição de bebidas alcoólicas ma soc1edade hum
. tO e, ' aiguns meios para se transformar a1·1mento c1.u em
(is
e de carne de porco pelos muçulmanos ou a proibição de ,
alimentos não-kosher pelos judeus. M as, em todos os casos, ª I"imento COZI·do). o alimento cozido e .aquele. alimenta cru
.
que r iOI transformado por meios culturais. O alimento podre
a proibição distingue as identidades d aqueles que estão . .
é O ai1m
. ento cru que foi transfoimado por me10s natm-ais.
incluídos em um sistema particular de crenças d aqueles que
estão fora dele. Constroem-se oposições entre vegetarianos Lévi-Strauss identifica os diferent�s processos de coz1-
e carnívoros, entre consumidores de alimentos integrais e mento que ilustram essas transformaçoes. ,
Assar - que en-
consumidores de alimentos considerados pouco saudáveis. vo1ve exposição direta às chamas (que e o agente ,
de conver-
sa- o), sem a medi ação de qu alquer a parato cultur a1 ou do a1- ou
Na análise de Lévi-Strauss, a comida é não apenas "boa ,
para comer", mas também "boa para pensar". Com isso, ele da a, gua _ é a posição neuh·a. Cozer envo1ve agua, ie . duz o
.
alimento cm a um estado que é simil a 1 ,
a d ecom o 1ça- o do
quer dizer que a comida é portadora de significados simbó : � �
apodrecimento natur al e exige algum tipo de rec1p1ente.
licos e pode atuar como significante. Para Lévi-Strauss, o
ato de cozinhar representa a típica transformação da natu A defumação não exige mediação cultural. Ela envolve
a adição prolongada de ai; m as não de água. O ahme to
_
reza em cultura . Com base nesse argumento, ele analisou _n
as estruturas subjacentes dos mitos e dos sistemas de cren assado é o alimento festivo preparado para celebraçoes,
ça, argumentando que eles se expressam por meio daquilo enquanto o alimento cozido é m ais utilizado no consumo
que ele chama de "triângulo culinário". Todo alimento, ar cotidiano e pode ser dado às crianças, aos doentes e aos
velhos. O esquema de Lévi-Strauss pode parecer complic _ a
gumenta ele, pode ser dividido de acordo com este esquema
cl assificatório (Figura 1): do e até mesmo um pouco forçado. Entretanto, em ter os
n:i
gerais, as análises estruturalistas de Lévi Strauss têm sido
: , _
CRU extremamente influentes, e este exemplo e uhl para h mar
:, :
a atenção para a importância cultural do alime to : Sao as
/�
� _
convenções da sociedade que decretam o que e alm ento e
:
0 que não é, e que tipo de alimento , deve ser com do em
�
quais ocasiões" (Leach, 1974, p. 32). E p pel do alimento
COZIDO------- � :
PODRE na construção de identidades e a mediaçao da cult ra na
Figura l: O triângulo culinário de �
Lévi-Strauss (forma primária) (Fonte: ba transformação do natural que é importante nesse desv10 que
seado em Leach, 1974, p. 30).
fizemos pelos caminhos da cozinha.
Outro aspecto importante da teorização de Lévi-Strauss
é sua análise de como a cultura classifica os alimentos em
comestíveis e não-comestíveis. É por meio dessa distinção
44
45
e de outras diferenças que a ordem social é produzida e Os dias da semana, com sua seqüência regular, seus nomes
mantida. Como argumenta Mary Douglas: e sua singularidade, além de seu valor prático na identifi
cação das divisões do tempo, têm, cada um deles, um
Separar, purificar, demarcar e punir transgressões têm significado que faz parte de um padrão. Cada dia tem seu
como sua principal função impor algum tipo de sistema próprio significado e se existem hábitos que marcam a
a uma experiência inerentemente desordenada. É ape identidade de um dia particular, essas observâncias regu
nas exagerando a diferença entre o que está dentro e o lares têm o efeito do ritual. O domingo não é apenas um
que está fora, acima e abaixo, homem e mulher, a favor dia de descanso. É o dia que vem antes da segu nda-feira ...
e contra, qye se cria a aparência de algu ma ordem (Dou- Em um certo sentido, não podemos experimentar a terça
-
glas, 1966, p. 4). feira se por alguma razão não tivermos formalmente nota
Isso sugere que a ordem social é mantida por meio de do que passamos pela segunda-feira. Passar por uma parte
oposi ões binárias, tais como a divisão entre "locais" (insi do padrão é um ato necessário para se estar consciente da
próxima parte (Douglas, 1966, p. 64).
ders) e "forasteiros outsi ers . pro ução e ca egorias
pelas quais os indivíduos que transgridem são relegados ao Douglas utiliza o exemplo da poluição e, em particular,
status de "forasteiros", de acordo com o sistema social vi de nossa percepção sobre o que conta como "sujo". Segundo
gente, garante um certo controle social. A classificação ela, nossas concepções sobre "sujeira" são "compostas de
simbólica está, assim, intimamente relacionada à ordem duas coisas: cuidado com a higiene e respeito pelas conven
social. Por exemplo, o criminoso é um "forasteiro" cuja ções" (ibid., p. 7). Ela argumenta que a sujeira ofende a
transgressão o exclui da sociedade convencional, produzin ordem, mas que não existe nada que se ·possa chamar de
do uma identidade que, por estar associada com a transgres
são da lei, é vinculada ao perigo, sendo separada e
�-----------:- -
sujeira absoluta. A sujeira é "matéria fora de lugar".
vemos nada de errado com a terra que encontramos no
.,__ Não
marginalizada. A produção da identidade do "forasteiro" jardim, mas ela "não está no lugar certo" quando a encon
tem como referência a identidade do "habitante C!õ1õCãl": tramos no tapete da sala. Nossos esforços para retirar a
Como foi sugerido no exemplo das identidades nacionais, sujeira não são movimentos simplesmente negativos, mas
uma identidade é sempre produzida em relação a uma outra. tentativas positivas P!lra organizar o ambiente - para excluir
Douglas sugere, utilizando o exemplo dos dias da sema a matéria que esteja fora de lugar e purificai; assim, o
na, que nós só podemos saber o significado de uma ambiente. Ela argumenta ainda que "uma reflexão sobre a
palavra por meio de sua relação com uma outra. Nossa sujeira envolve uma reflexão sobre a relação entre ordem e
compreensão dos conceitos depende de nossa capacida desordem, o ser e o não-ser, o formado e o in-formado, a vida
de de vê-los como fazendo parte de uma seqüência. e a morte" (ibid., p. 5). Assim, as categorias do limpo e do
Aplicar esses conceitos à vida social prática, ou organizar não-limpo, tal como as distinções entre "forasteiros" e "lo-
a vida cotidiana de acordo com esses princípios de clas J cais", s-ª9 produtos de si�as culturais de classificação
sificação e de diferença, envolve, muito freqüentemente, .cujo objetivo é a criação da ordem. o "? í--2:, é /-1 (
um comportamento social repetido ou ritualizado, isto é, um Poderíamos afirmar, talvez, que esses teóricos tendem a
conjunto de práticas simbólicas partilhadas: exagerar o papel do simbólico às custas do material. Afinal,
ao considerar os alimentos que as pessoas comem e aqueles
46 47
que elas evitam, é também importante tratar das restrições de acordo com a classe social. O peixe é percebido como
materiais. Há alimentos que você gostaria de comer, mas impróprio para os homens da classe operária, sendo visto
pode não ter o dinheiro para comprá-los. Historicamente, a como "comida leve", mais apropriada para as crianças e os
escolha dos alimentos tem se desenvolvido no contexto de inválidos. Recentes campanhas promocionais da indús
sua escassez ou de sua superabundância relativas. Nossa tria de carne bovina britânica, planejadas para conter
escolha dos alimentos - quando temos alguma escolha - qualquer tendência ao vegetarianismo, parece confirmar
desenvolve-se também em contextos econômicos particula isso, ao sugerir que somente os fracos comem vegetais e
res. Embora essas restrições econômicas e mate1iais possam peixes ("Homens verdadeiros comem carne"; "Os ho
ser muito importantes, elas não enfraquecem necessaria mens precisam de carne"). As ansiedades sobre os riscos
mente o argumento sobre a centralidade dos sistemas sim do consumo de carne bovina britânica, desde a crise da
bólicos ou classificatórios. O "gosto" não é simplesmente "vaca louca", podem, entretanto, prejudicar esse tipo de
determinado pela disponibilidade ou não de recursos mate campanha. Bourdieu argumenta que o corpo se desen
riais. Os fatores econômicos sozinhos - sem a cultura - não volve por meio de uma inter-relação entre a localização-
são determinantes. Mary Douglas argument� no inte e c asse o indivíduo e o gos . o e e m1 o pelas
iiül de uma sõc"Íedade com as mesmas restrições econômi formas.-pelas quais os indivíduos se apropriam de esco as
cas, cada casa "desenvolve um padrão regular de horários e ��·ênçias que são o produto de restrições materiais;
de alimentação, de bebida e comida para as crianças, de daquilo que ele chama de habitus.
bebida e comida para os homens, de comida festiva e comida Esta seção analisou algumas das formas pelas quais as
cotidiana" (1982, p. 85). Seja lá qual for o nível relativo de culturas fornecem sistemas classificatórios, estabelecendo
pobreza ou riqueza, a bebida atua como um marcador de fronteiras simbólicas enh·e o que está incluído e o que está
gênero da "identidade pessoal e das fronteiras da inclusão excluído, definindo, assim, o que constih1i uma prática cultu
e da exclusão" (ibid. ). Existem proibições que impedem que as ralmente aceita ou não. Essa classificação ocone, ·como vimos,
mulheres tomem "bebidas fortes", mas os homens da mesma por meio da marcação d_a diferença enh·e catego1ias. Examina
classe e do mesmo grnpo de rendimento são julgados, em remos, na próxima seção, a imp01tância paiticular da diferença
contextos particulares (Douglas cita os homens que trabalham na construção de significados e, poitanto, de identidades.
nos portos, mas selia possível pensar em muitos outros exem
plos), "de acordo com a maneira correta ou errada como eles
3.2. A diferença
carregam sua bebida" (Douglas, 1987, p. 8).
Ao analisa�no as identidades são construídah,_sugeri
Os sistemas de alimentação estão, assim, sujeitos às
queefas são formadas relativamente a outras identidade5.,_
classificações do processo de ordenação simbólica bem
rehttiVcrnleTite·ao ''forasteiro" ou ao 'outro'�elativa
como às distinções de gênero, idade e classe. Existem, obvia
-mente ao que não é. Essa construção aparece, mais comu-
mente, diferenças de classe social em nosso gosto pela co
-mente, sob a forma de oposições binárias. A teoria lin-
mida. Como argumenta� Bo�u (1984), certos ali
güística saussureana sustenta que as oposições binárias - a
mentos são associados com as rmillieres ou com os homens,
forma mais extrema de marcar a diferença - são essenciais
48 49
para a produção do significado (Hall, 1997a). Esta seçã o d1. vis � s sociais, especialmente daquela que existe entre
· oe
analisará a questão da diferença, especialmente a sua pro homens e mulheres:
dução por meio de oposições binárias. Essa concepção de O pensamento sempre
diferença é fundamental para se compreender o processo funcionou por oposição.
de construção cultural das identidades, tendo sido adotada fala/Escrita
por muitos dos ''novos movimentos sociais" anteriormente Alto/Baixo ...
Isso significa alguma coisa?
dis idos. IA. diferença pode ser construída negativamente
(Cixous, 1975, p. 90).
por meio da exclusão ou da marginalização daquelas
pessoas que são definidas como "outros" ou forasteiros. Por Cixous argumenta que não se trata apenas do fato de que
outro lado, ela pode ser celebrada como fonte de diversida o Pensamento é construído em termos de oposições biná-
de, heterogeneidade e hibridismo, sendo vista como enri · s, mas que nesses dualismos um dos termos e, sempre
na
quecedora: é o caso dos movimentos sociais que buscam valorizado mais que o outro: um é a norma e o outra e, 0
resgatar as identidades sexuais dos constrangimentos da "outro" -visto com?desviante ou de fora''. Se pensamos a
norma e celebrar a diferença (afirmando, por exemplo, que cu tura em termos de "alto" e "baixo"; que tipos e ativi ade
"sou feliz em ser gay"). associam�s com "alta cultura"? Ópera, balé, teatro? Que
atividades são identificadas, de forma estereotipada, como
Uma característica comum à maioria dos sistemas de sendo de "baixa cultura"? Telenovelas, .música popular?
pensamento parece ser, portanto, um compromisso com os Esse é um terreno polêmico e uma dicotomia bastante
dualismos pelos quais a diferença se expressa em termos de questionável nos E · · as o argu��n:o co�-
oposições cristalinas -natureza/cultura, corpo/mente, pai . siste em enfatizar que os dois membros dessas divisoes nao
xão/razão. As autoras e os autores que criticam a oposição recebem peso igual e, em particular, que essas divisões estão
binária argumentam, entretanto, que os termos em oposição relacionadas com o gênero.
recebem uma importância diferencial, de forma que um dos
elementos da dicotomia é sempre mais valorizado ou mais Cixous dá outros exemplos de oposições binárias, per
forte que o outro. Assim, Derrida argumenta que a �o guntando de que forma elas estão relacionadas com o gê�ero
entre os dois. mimos de Úma oposição binária envolve um � e especialmente com a posição das mulheres no dualismo
.Q__esequilíbrio necessário de �r eutrn eles. em questão:
Onde está ela?
Uma das mais freqüentes e dominantes dicotomias é, Atividade/passividade,
como vimos no exemplo de Lévi-Strauss, a que existe entre Sol/Lua,
natureza e cultura. A escritora feminista francesa Hélene Cultura/Natureza,
Cixous adota o argumento de Derrida sobre a distribuição Dia/Noite,
desigual de poder entre os dois termos de uma oposição Pai/Mãe,
Cabeça/coração,
binária, mas concentra-se nas divisões de gênero e argu Inteligível/sensível,
menta que essa oposição de poder também é a base das Homem/Mulher
(ibicl., p. 90).
50 51
Cixous sugere que as mulher es estão associa -se argumentado que a desigualdade de
natureza e não com a cultura, com o "coração " e as
das com a
ri me iro l g , tem ndência a identificar as
emoçõ
P t�a li�gada à te mulhe res com
e não com a "cabeçá' e a racion alid
ad e. A tendên cia
es gênero. es os l1 mens com a cu1tura (a opos·1çao - fun damen-
e
p ara anatuieza .
0
classificar o mundo em uma opos ição entre princíp u t m c m b se d a v1"d a saci al ) .
ios mas al, aquela que Lévi-Str a ss o a o o a
culinos e femininos, identificada por Cixous, está t - a- 0 centra-se na s estruturas soc·iai·s: aqm· as
com as análises esh·uturalistas baseadas em Sau
de acordo A segun da pos1ç
_ ·dentific a das com a arena pnvada da casa e
quais vêem o contraste como um princípio da
ssure, as JllUIheres sao 1
ssoai · s e o s h omens com a aren a pu 'bl"1c a do
estrutura das re1 ções pe. . dencia
lingüística (Hall, 1997a). Mas, enq uanto para Saussur ,.i e�10 ' da piodtiç ão d p lítica. A ev ntr op ol o
A • ,
e essas come
e a o i a
oposições binárias estão ligadas à ló ica subj acent . entI·etanto ' q ue a divisão entre natureza e
g e de toda gica m os_tra,, r ,
linguagem e de todo pensamento, para Cixous a univers al. O q uestion amento q ue Moore 1az a
força psí cultu.ra_ nao e . 1 -
quica dessa duradoura estrutura de pensamento
deriva de oposiçao bi· ária entre naturez a e cultura, em sua ie açao
uma red e histórica de determin
ações culturais. om a oposiç � a- o entre mulheres e h omens, possibilita anali-
e r as especificidades da d iferença.
Quão inevitávei s são essas op osições? São elas pa rte da sa
lógica de pensamento e da linguagem como Sau ssure e E sta seça-0 d·iscutiu a s op osições binárias, um el emento
.a-
estruturali stas tais como Lévi-Strauss parecem sug erir? Ou essenci·aI dª lingüí stica saussur ea , na adotada pelo estrntm
,
.
. evi-Strauss. El a tambem tratou das cnhc · as d esses
são elas impostas à cultura, como part e d o pro ce sso de hsmo de L'
.
excl usão? Estão essas dicotomias organizadas para desvalo dualismo s con1o, por exemplo' a. d_e De. rn ·da. O quest10n
, .
· a-
rizar um dos elementos? Tal como feministas como, por menta que Derrid a faz d a s o p osi ç oes bm a n as su e re que a
, n· a di. cotoinia é um d os m eios pelo s quais . g
.
prop o s1gm·f·icad o
exemplo, Simone d e B eauvoir e, mais recentemente, Luce .
e, fi' xadº.:..--E' p r m io d s dicotomia qu o pen samento,
Iiigaray, têm argumentado, é por meio desses dualismos que o e essa s e
- �__.p ens� gaiantJ·rio �
.
as mulheres são conshuídas como "ouh·as", de fo1ma que as especia ___ -
p.ermanenda das r_ elaçõe s de poder exi st entes. D ern·da
mulheres são apenas aquilo que os homens não são, como . nou as visões estruturahstas à:e -Sa:ussm:e...e L,ev1-
A
quest10 ·
ocorre na te01ia psicanalítica l acaniana. Podem as mulheres ser ,
S .
ha , u erind q · si nificad o es t a pre nte c m m
diferentes dos homens sem serem opostas a eles? liigaray
ue o se
.
uss s g o g o o u
52 53
3. 3. Sumário da seção 3 identidade, mas não explicamos por que as pessoas assumem
Os sistemas classificatórios por meio dos quais o signi essas identidades. Voltamo-nos agora para a última grande
ficado é produzido dependem de sistemas sociais e simbó questão deste capítulo.
licos. As percepções e a compreensão da mais material das
necessidades são construídas por meio de sistemas simbó 4. Por que investimos nas identidades?
licos, os quais distinguem o sagrado do profano, o limpo
do sujo e o cru do cozido. Os sistemas classificatórios são, 4.1. Identidade e subjetividade
assim, construídos, sempre, em torno da diferença e das Os termos "identidade" e "subjetividade" são, às vezes,
formas pelas quais as diferenças são marcadas . Nossa dis utilizados de forma intercambiável. Existe, na verdade, uma
cussão procurou teorizar as formas pelas quais os sistemas considerável sobreposição entre os dois. "Subjetividade"
simbólicos e sociais atuam para produzir identidades, isto sugere a compreensão que temos sabre anosso eu. {1termo
é, para produzir posições que podem ser assumidas, enfati e�ensamentos e as emoções conscientes e incons
zando as dimensões sociais e simbólicas da identidade. Esta cientes que constituem nossas concepções sobre "quem nós
seção b�cou demonstrar que a diferença é marcada em somos". A subjetividade envolve nossos sentimentos e pen
..@lação à identid"àêre. Analisamos também o pensamento samentos mais pessoais. Entretanto, nós vivemos nossa sub
que se baseia em oposições binárias tais como natureza/cul jetividade em um contexto social no qual ll. linguagem e a
tura e sexo/gênero. Mostramos que os termos ue formam cultura dão significado à experiência que temos de nós
esse · smos recebem, na verda e esos desiguais es mesmos e no qual nós adotamos uma identidade. Quaisquer
t�itamente vinculados a relações de poder. Esta que sejam os conjuntos de significados construídos pelos
seção também buscou questionar a perspectiva de que discursos, eles só podem ser eficazes se eles nos recrutam
adotar uma posição política e defender ou reivindicar uma como sujeitos. Os s.ujri!:os são, assim, sujeitados ao discurso
posição de identidade necessariamente envolve um apelo à e devem, eles r' rios, assumi-lo como indivíduos u ,
autenticidade e à verdade enraizadas na biologia. Discuti dessa forma, se posicionam a si próprios. As posições que
mos também as possíveis alternativas a esse essencialismo, assumimos e com as quais nos identificamos constituem
argumentando em favor de um reconhecimento da posicio nossas identidades. A subjetividade inclui as dimensões
nalidade e de uma política de localização que, como argu inconscientes do eu, o que implica a existência de contradi
menta Henrietta Moore, inclui diferenças de "raça", classe, ções, como vimos no exemplo das tentativas do soldado
sexualidade, etnia e religião entre as mulheres. sérvio para reconciliar sua experiência cotidiana com as
A diferença é marcada por representações simbólicas mudanças políticas. A subjetividade pode ser tanto racional
que atribuem significado às relações sociais, mas a explora quanto irracional. Podemos ser - ou gostaríamos de ser -
ção da diferença não nos diz por que as pessoas investem pessoas de cabeça fria, agentes racionais, mas estamos su
nas posições que elas investem nem por que existe esse jeitos a forças que estão além de nosso controle. O conceito
investimento pessoal na identidade. Descrevemos alguns de subjetividade permite uma exploração dos sentimentos
dos processos envolvidos na construção das posições de que estão envolvidos no processo de produção da identida-
54 55
... . ..
de e do investimento pessoal que fazemos em posições o poema continua, descrevendo a visita que a institui-
específicas de identidade. Ele nos permite explicar as razões ão de adoção fez à casa da futura mãe adotiva e as prepa
pelas quais nós nos apegamos a identidades particulares. ;ações que a mãe - branca - faz a fim de se apresentar - e
A fim de explorar um pouco mais algumas das idéias à sua casa - sob o ângulo mais favorável possível, conside
sobre subjetividade e identidade, gostaria de analisar urn rando-se suas ansiedades sobre não ser vista como o tipo
poema que é parte de uma série sobre a questão da adoção certo de mãe:
de crianças. A poeta negra Jackie Kay, ela própria adotada Achei que tinha escondido tudo,
que não tinha deixado à vista
explora seus próprios sentimentos sobre a questão da ado�
nada que pudesse me denunciar.
ção, em uma série de poemas intitulada Documentos de
Botei Marx, Engels, Lenin (nenhum Trotsky )
adoção (1991), utilizando uma série de diferentes "vozes" no arrnário da cozinha - ela não ia
(por exemplo, a voz da mãe natural e a da mãe adotiva). Esse conferir os panos de prato, isso era certo.
poema está escrito na voz da primeira pessoa de uma Os exemplares do Diário Operário
mulher que quer adotar um bebê e expressa seus sentimen Eu botei embaixo da almofada do sofá,
tos relativamente aos discursos da maternidade, os quais são a pomba da paz eu tirei do banheiro.
aqui apresentados como parte de pressupostos culturais Tirei da cozinha
partilhados, em particular sobre o que se espera de uma Um pôster de Paul Robeson
que dizia: dêem-lhe seu passaporte.
"boa mãe". Inicialmente, Jackie Kay descreve sua experiên
cia ao se inscrever em várias instituições de adoção, em Deixei uma pilha de Bum,
meus contos policiais
suas tentativas para adotar uma criança:
e as Obras Completas de Shelley.
A primeira instituição à que fui
Ela chegou às 11:30 exatamente.
não queria nos colocar na sua lista
Servi-lhe café nas minhas
não morávamos suficientemente próximos
novas xícaras de louça húngara
nem freqüentávamos qualquer igreja
e tolamente rezei pra ela
(mas nos calamos sobre o fato de que éramos comunistas).
não perguntar de onde vinham.
A segunda nos disse que nossa renda não era suficiente
H-ancamente, esse bebê
mente alta.
está me subindo à cabeça.
A terceira gostou de nós
Ela cruza as pernas no sofá
mas tinham uma lista de espera de cinco anos.
Ouço na minha cabeça o ruído
Passei seis meses tentando não olhar
do Diário Operário embaixo dela
para balanços nem para carrinhos de bebê,
para não pensar que essa criança que eu queria Bem, diz ela, você tem uma casa interessante.
poderia ter agora cinco anos. Ela vê minhas sobrancelhas se erguerem.
A quarta instituição estava com as vagas esgotadas. É diferente, acrescenta ela.
A sexta disse sim, mas, de novo, não havia nenhum bebê. Droga, eu tinha gastado toda a manhã
Quando eu já estava na porta, tentando fazer com que parecesse uma casa comum,
Eu disse olha a gente não liga pra cor. uma casa adorável para o bebê.
E foi assim que, de repente, a espera acabou.
56 57
nesse
�la abotoa seu casaco toda son-isos. mente sua identidade política, associada,
des, especial ra
fico pensando: agora preferências políticas de esquerda. A futu
vamos para o tour da casa. caso, com suas feliz. O
conflito psíquico, mas há um final
mãe vivencia um
Mas assim que chegamos ao último canto afinal, ser algo aceitável nesse caso. Dar
pacifismo parece, ,
ma pode ser apenas uma licença poética
o olho dela cai em cima ao mesmo tempo que o
de uma fileira de vinte distintivos pela paz mun�� um final feliz ao poe
ontrar uma identidade pode ser
mas também sugere que enc
Claro como uma foice e um martelo na parede.
um conflito psíquico e uma expressão
_
Ah, diz ela, você é contra aimas nucleares? um meio de resolver
se é que essa resolução é possível.
de satisfação do desejo -
A�ar, seja º qu� Deus quiser. Com bebê ou sem bebê. as formas pelas quais as identida
.
Sun, eu digo Sim. Sim, sim, sim. O poema também indica
Isso é mostrado por um
Gostaria que esse bebê vivesse em um mundo sem pengo des mudam ao longo do tempo.
ico, o jornal comunista O
nuclear. símbolo historicamente específ
resenta tudo que pode ser
Ah! Seus olhos se acendem. Diário Operário, que também rep
mães adotivos .
Também sou a favor da paz, diz ela, indesejável em possíveis pais e
e se senta pra mais uma xícara de café que os tempos
(Kay, 1991, p. 14-16). Entretanto, há também a sugestão de
que a identidade mater
estão mudando, tornando aceitável
Em casos de adoção, tornamo-nos agudamente cons tica - neste caso, uma
. nal possa incluir uma posição polí
cientes sobr� o que constitui identidades maternais ou identidade maternal na
. posição pacifista. Trata-se de uma
p�ternais socialmente aceitáveis. Existe, aqui, um reconhe r um investimento e
qual o sujeito (a mãe/poeta) pode faze
cimento claro s�bre a existência de uma identidade mater er. Embora ela repre
com a qual ela pode se compromet
n�J. Que sentimentos essa mãe/poeta traz para esses , um papel que ela vê
sente, perante a inspetora de adoção
discursos sobr� maternidade? Que posição de identidade uma identidade ma
como necessário para a simulação de
ela �ue� ass�m1r? Que outras identidades estão envolvidas? por essa posição-de
ternal aceitável, ela não é interpelada
�uais sao as ide�tidades que estão, aqui, em conflito? Como conforma com sua
sujeito, mas por uma posição que se
sao el�s negociadas? Quais são as contradições entre a termo utilizado por
. . posição política. "Interpelação" é o
sub1etiv1dade e a identidade, apresentadas no poema? a forma pela qual os
Louis Althusser (1971) para explicar
: "sim, esse sou eu"
O p�ema de Kay indica algumas das formas pelas quais sujeitos - ao se reconhecerem como tais
. posições-de-sujeito.
as identid ade� sociais são construídas bem como as formas - são recrutados para ocupar certas
_ iente e é uma forma
pelas q�ais �os as negociamos. Este poema ilustra as dife Esse processo se dá no nível do inconsc
am por adotar posi
rent�s identidades, mas, de forma crucial, uma delas em de descrever como os indivíduos acab
a de incorporar a
p�rt:cuJai� que a mãe/po:ta i:�conhece como tendo predo-
_ , ções-de-sujeito particulares. É uma form
limita a descrever
mmancia cultural: a da boa mãe, da mae - "normaJ", tem dimensão psicanalítica, a qual não se
. � . licar por que posições
uma i es�onancia particularmente forte nesse caso. Trata-se sistemas de significado, mas tenta exp
sociais podem expli
?e uma identidade que ela parece assumü� embora ela este particulares são assumidas. Os fatores
_ ernidade, especial-
Ja consciente de que está em conflito com outras identida- car uma construção particular de mat
58 59
mente a de "boa mãe", neste momento histórico, mas não práticas e processos simbólicos. Ocupar uma posição-de-su
explicam qual o investimento que os indivíduos fazem em jeito dete1minada como, por exemplo, a de cidadão patrió
posições particulares e os apegos que eles desenvolvem tico, não é uma questão simplesmente de escolha pessoal
por essas posições. consciente; somos, na verdade, recrutados para aquela po
sição ao reconhecê-la por meio de um sistema de repre
sentação. O investimento que nela fazemos é, igualmente,
4. 2. Dimensões psicanalíticas
um elemento central nesse processo.
Althusser desenvolveu sua teoria da subjetividade no A teoria marxista enfatiza o papel do substrato material
contexto de um paradigma marxista que buscava trazer das relações de produção e da ação coletiva, especialment�
algumas das contribuições da psicanálise e da lingüística da solidariedade de classe, na formação das identidades
estrutural para o materialismo marxista. O trabalho de Al
-
sociais, em vez da autonomia individual ou da autodete1mi
thusser foi extremamente importante para a revisão do nação. Os fatores materiais não podem, entretanto, explicar
modeh_marxista baseado nas noções e ase e de su r s totalmente o investimento que os sujeitos fazem em posições
trutura. Nesse�odelo, a base é definida como a fundação de identidade. Teorizações pós-marxistas como, por exem
material, econômica, da sociedade. De acordo com essa plo, o ensaio de Althussei� enfatizam os sistemas simbólicos
perspectiva, essa base econômica determina as relações sugerindo que os sujeitos são também recrutados e produ�
sociais, as instituições políticas e as formações ideológicas. zidos não apenas no nível do consciente, mas também no
Althusser também reformulou o conceito de ideologia ini nível do inconsciente. Para desenvolver sua teoria da subje
cialmente elaborado por Marx. Em seu ensaio sobre "a tividade, Althusser baseou-se na versão da psicanálise freu-
ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado", Althusser
(1971) enfatiza o papel da ideologia na reproduçâõciâs �-
relações sociais, destacando os rituais e as práticas institu O que distingue a teoria da psicanálise de Freud e a
cionais envolvidos nesse processo. Ele concebe as ideolo �eorização posterior de Lacan de outras teorias psicológicas
gias como sistem as de repre sentaç ão, fazend o uma e o lugar que elas concedem ao conceito de inconsciente. O
complexa análise de como os processos ideológicos funcio inconsciente, de acordo com a psicanálise, é formado de
nam e de como os sujeitos são recrutados pelas ideologias, fortes desejos, freqüentemente insatisfeitos, que surgem da
mostrando que a subjetividade pode ser explicada em ter intervenção do pai na relação entre o filho ou a filha e sua
mos de estruturas e práticas sociais e simbólicas. Para Al mãe. Ele está enraizado em desejos insatisfeitos, em desejos
thusser, o sujeito não é a mesma coisa que a pessoa humana, que foram reprimidos, de forma que o conteúdo do incons
mas uma categoria simbolicamente construída: ''A ideolo ciente torna-se censurado pela mente consciente, passando
gia ... 'recruta' sujeitos entre os indivíduos ... ou 'transforma' a ser-lhe inacessível. Entretanto, esses desejos reprimidos
os indivíduos em sujeitos ( ...) por esta operação muito pre acabam encontrando alguma forma de expressão como, por
cisa a chamei de interpelação" (1971, p. 146). Esse proce sso ex�mplo, por meio de sonhos e enganos (lapsos freudianos).
de inte11)elação nomeia e, ao mesmo tempo, posiciona o O inconsciente pode ser, assim, conhecido, embora não por
sujeito que é, assim, reconhecido e produzido por meio de um acesso direto. A tarefa do psicanalista consiste em des-
60 61
cobrir suas verdades e ler sua linguagem. O inconsciente é cessidades e desejos inconscientes. Em vez de um todo
o repositório dos desejos reprimidos, não obedecendo às leis unificado, a psique compreende o inconsciente (o id); o
da mente consciente: ele tem uma energia independente e supereu, que age como uma "consciência'', representando
segue uma lógica própria. Como argumenta Lacan (1977), as restrições sociais; e o ego, que tenta fazer alguma conci
ele é estruturado como uma linguagem. Ao dar primazia a liação entre os dois primeiros. Ela está, assim, em um estado
essa concepção do inconsciente, Lacan caracteriza-se como constante de conflito e fluxo. A experiência que temos dela
um seguidor de Freud, mas faz uma radical reformulação pode ser vivida como dividida ou fragmentada.
das teorias freudianas, ao enfatizar o simbólico e a lingua
A teoria psicanalítica lacaniana amplia a análise que
gem no desenvolvimento da identidade.
Freud fez dos conflitos inconscientes que atuam no interior
A "descoberta" do inconsciente, de uma dimensão psí do assim chamado sujeito soberano. A ênfase que Lacan
quica que funciona de acordo com suas próprias leis e com coloca na linguagem como um sistema de significação é,
uma lógica muito diferente da lógica do pensamento cons neste caso, um elemento central. Ele privilegia o significan
ciente do sujeito racional, tem tido um considerável impac te como aquele elemento que determina o curso do desen
to sobre as teorias da identidade e da subjetividade. A idéia volvimento do sujeito e a direção de seu desejo. A iden
de um conflito entre os desejos da mente inconsciente e as tidade é moldada e orientada externamente, como um efeito
demandas das forças sociais, tais como elas se expressam do s1gmficante e da articulação do desejo. Para Lacan, o
naquilo que Freud chamou de supereu, tem sido utilizada �to humano unificado é sem re um mito. O sentimento
para explicar comportamentos aparentemente irracionais e de identi a e de uma criança surge da internalização das
o investimento que os sujeitos podem ter em ações que visões exteriores que ela tem de si própria. Isso ocorre,
podem ser vistas como inaceitáveis por outros, talvez até sobretudo, no período que Lacan chamou de "fase do espe
mesmo pelo eu consciente do sujeito. Podemos estar muito lho". Essa fase vem depois da "fase imaginária", que é
bem informados sobre um determinado domínio da vida anterior à entrada na linguagem e na ordem simbólica,
social mas mesmo assim acabamos nos comportando contra quando a criança ainda não tem nenhuma consciência de si
nossos melhores interesses. Apaixonam - elas essoas própria como separada e distinta da mãe. Nessa fase inicial,
erradas, gastamos dinheiro que não temos, deixamos d os o infante é uma mistura de fantasias de amor e ódio, con
� atar a empregos �ríamos conseguir e nos_ centrando-se no corpo da mãe. O início da formação da
· -
candidatamos para em re os r ! identidade ocorre quando o infante se dá conta de que é
quer chance. Chegamos até mesmo ao ponto de realizar separado da mãe. A entrada na linguagem é, assim, o resul
� podem ameaçar nossas vidas apenas para afirmar tado de uma divisão fundamental no sujeito (Lacan, 1977),
uma determinada identidade. Sentimos emoções ambiva quando a união primitiva da criança com a mãe é rompida.
lentes - raiva para com as pessoas que amamos e, alguma3 A criança reconhece sua imagem refletida, identifica-se com
vezes, desejo por pessoas ue nos opriment. A psicanálise ela e torna-se consciente de que é um ser separado de sua
freudiana ornece um meio e vincu ar comportamentos mãe. A criança, que nessa fase infantil é um conjunto mal
aparentemente irracionais como esses à repressão e a ne- coordenado de impulsos, constrói um eu baseado no seu
62 63
l
reflexo em um verdadeiro espelho ou no espelho dos olhos inclui a si própria e a mãe, é rompido pela entrada do pai ou
de ouh·os. Quando olhamos para o espelho vemos uma daquilo que Lacan chama de "a lei do pai". O pai representa
ilusão de unidade. A fase do espelho de Lacan representa a uma intromissão externa; o pai representa o tabu contra o
primeira compreensão da subjetividade: é quando a criança incesto, o qual proíbe a fantasia que a criança tem de se casar
se torna consciente da mãe como um objeto distinto de si com a mãe bem como a vontade da mãe em ter a criança
mesma. De acordo com Lacan, o primeiro encontro com 0 como o objeto de seu desejo. O pai separa a criança de suas
processo de construção de um "eu", por meio da visão do fantasias, enquanto o desejo da mãe é reprimido para o
reflexo de um eu corporificado, de um eu que tem fronteiras, inconsciente. Esse é o momento em que o inconsciente é
prepara, assim, a cena para todas as identificações futuras. criado. À medida que a criança entra na linguagem e na lei
O infante chega a algum sentimento do "eu" apenas quando do pai, ela se torna capaz, ao mesmo tempo, de assumir uma
encontra o ''eu" refletido por algo fora de si pró r� elo identidade de gênero, já que este é o momento em que a
outro: a partir o u ou ro". Mas ele sente a si mesmo criança reconhece a diferença sexual. Assim que esse mun
(CT)mo se o eu·, o sentimento do eu, fosse produzido -2or do do imaginário e do desejo pré-edipiano pela mãe é
u�ntidade unificada- a partir de seu próprio interi�r. deixado de lado, é a linguagem e o simbólico que passam a
fornecer alguma compensação, ao proporcionar pontos de
Dessa forma, argumenta Lacan, a subjetividade é divi--
apoios lingüísticos nos quais se torna possível ancorar a
dida e ilusória. P · depender · · ade de algo fora
identidade. O pai - ou o pai simbólico, simbolizado pelo
de si m�, a identi ade surge a partir de uma falta, isto
phallus - representa a diferença sexual. O phallus é, assim,
é, de um desejo elo retorno da unidade com a mãe ue era�
o significante primeiro porque é aquele que primeiro intro
parte a primeira infância, mas que.só pode ser ilusória uma
duz a diferença (isto é, a diferença sexual) no universo
farítàsia, dado � a separação�al já ocorreu. 9 sajeito
simbólico da criança, o que lhe dá um poder que é, entre
ainda anseia pelo eu unitário e pela unidade com a mãe da
tanto, "falso", porque, como argumenta Lacan, o phalliis
fase imaginária, e esse anseio, esse desejo, produz a tendên
apenas parece ter poder e valor por causa do peso positivo
cia para se identificar com figuras poderosas e significativas
da masculinidade no dualismo masculino/feminino. Mesmo
fora de si próprio. Existe, assim, um contínuo processo de
que o poder do phalliis seja uma "piada", como afirma
identificação, no qual buscamos criar alguma compreensão
Lacan, a criança é obrigada a reconhecê-lo como um signi
sobre nós próprios por meio de sistemas simbólicos e nos
ficante tanto do poder quanto da diferença. Outros tipos de
identificar com as formas pelas quais somos vistos por ou
diferença são construídos de acordo com a analogia da di
tros. Tendo, inicialmente, adotado uma identidade a partir
ferença sexual-isto é, um termo (o masculino) é privilegia
do exterior do eu, continuam�s identificar com aquilo
do em relação a outro (o feminino). Isso também significa
que queremos sei� mas aquilo ue uere� está se a-
que, para Lacan, a entrada das garotas na linguagem se faz
rado eu, orma que o eu está
de forma muito diferente da dos garotos. As garotas são
dividido no seu próprio interior.
posicionadas negativamente-como "faltantes". Mesmo que
É nessa fase edipiana da entrada na linguagem e nos o poder do phallus seja ilusório, os garotos entram na ordem
sistemas simbólicos que o mundo de fantasia da criança, que simbólica positivamente valorizados e como sujeitos dese-
64 65
jantes. As garotas têm a posição negativa, passiva - são sim uma outra dimensão da identidade, sugerindo um outro
plesmente "desejadas". quadro teórico para se analisar algumas das razões pelas
O trabalho de Lacan é importante sobretudo por causa quais investimos em posições de identidade.
de sua ênfase no simbólico e nos sistemas representacionais,
p��estague d� à diferença e por sua teoriz�ção �o co� Conclusão
_
éeito do inconsciente. Ele enfatiza a construçao da identi
Este capítulo apresentou alguns dos importantes con
dade de gê�ito, ou seja, a construção simbólica
ceitos relacionados à questão da identidade e da diferença,
da diferença e da identidade sexuada. O "fracasso" desse
desenvolvendo, assim, um quadro de referência para sua
processo de construção da identidade e a fragmentação da
análise. Discutimos as razões pelas quais é importante tratar
subjetividade tornam possível a mudança pessoal. Como
dessa questão e analisamos de que forma ela surge nesse
conseqüência, a teoria lacaniana de formação da subjetivi
ponto do "circuito" da produção cultural. Analisamos, além
dade pode ser incorporada ao conjunto de teorias que
disso, os processos envolvidos na produção de significados
questionam a idéia de que existe um sujeito fixo, unificado.
por meio de sistemas representacionais, em sua conexão
As teorias psicanalíticas de Freud e de Lacan têm sido com o posicionamento dos sujeitos e com a construção de
bastante questionadas, sobretudo por feministas que assi identidades no interior de sistemas simbólicos.
nalam as limitações de uma perspectiva sobre a produção
A identidade tem se destacado como uma questão cen
da identidade de gênero que afirma o privilegiamento mas
tral nas discussões contemporâneas, no contexto das recons
culino no interior da ordem simbólica, na qual o pha llus é o
truções globais das identidades nacionais e étnicas e da
significante-chave do processo de significação. Apesar das
emergência dos "novos movimentos sociais", os quais estão
afirmações em contrário de Lacan, o pha llus corresponde
preocupados com a reafirmação das identidades pessoais e
ao pênis, na medida em que significa a "lei do pai" e não da
culturais. Esses processos colocam em questão uma série
mãe. Ele realmente argumenta que as mulheres entram na
de certezas tradicionais, dando força ao argumento de que
ordem simbólica de forma negativa - isto é, como "não-ho
existe uma crise da identidade nas sociedades contemporâ
mens" e não como "mulheres". Mesmo que o sujeito unifi
neas[À discussão da extensão na qual as identidades são
cado tenha sido abalado pela teoria psicanalítica, parece
contestadas no mundo contemporâneo nos levou a urna
também verdade que as mulheres não são, nunca, plena
análise da importância da diferença e das oposições na
mente aceitas ou incluídas corno sujeitos falantes. O que é
construção de posições de identidade.�
importante, aqui, é a subversão que as teorias psicanalíticas \
fazem do eu unificado, bem como a ênfase que colocam no A diferença é um elemento central dos sistemas classi-
papel dos sistemas culturais e r�presentacionais noyrocesso ficatórios por meio dos quais os significados são produzidos.
ele construção da identidade. E importante tambem a pos Examinamos as análises estruturalistas de Lévi-Strauss e de
sibilidade que elas oferecem de se analisar o papel tanto dos Mary Douglas, ao discutir os processos de marcação da
desejos conscientes quanto elos inconscientes nos processos diferença e da construção do "forasteiro" e do "outro", efe
ele identificação. O conceito ele inconsciente aponta para tuados por meio de sistemas culturais. Os sistemas sociais e
66 67
-�
simbólicos produzem as estruturas classificatórias que dão
um certo sentido e uma certa ordem à vida social e as
distinções fundamentais - entre nós e eles, entre o fora e o
dentro, entre o sagrado e o profano, entre o masculino e o
,...., _p_or _d-uç-ão--,
feminino - que estão no centro dos sistemas de significação
da cultura. Entretanto, esses sistemas classificatórios não
podem explicai� sozinhos, o grau de investimento pessoal
que os indivíduos têm nas identidades que assumem. A
discussão das teorias psicanalíticas sugeriu que, embora as
consumo 1
dimensões sociais e simbólicas da identidade sejam impor
tantes para compreender como as posições de identidade
são produzidas, é necessário estender essa análise, buscan Figura 2 - O circuito da cultura, segundo Paul de Gay et alii (1997).
K
do compreender aqueles processos que asseguram o inves 2. Refere-se ao grupo de mulheres que organizou, em agosto-setembro de 1981,
uma demonstração de protesto contra a decisão da OTAN (Organização do
timento do sujeito em uma identidade. Tratado do Atlântico Norte) de armazenar mísseis nucleares na base aérea
estadunidense de Greenham Common, na Inglaterra. Após ter canúnhado cerca
de 50 quilômetros, desde Cardiff, no País de Gales, até a base de Greenham
Notas Commom, situada em Bekshire, Inglaterra, o grupo de mulheres acampou
l. A autora refere-se ao esquema representado na Figura 2, desenvolvido por próximo ao po1ião principal da base (N. do T.).
Paul du Gay, Stuart Hall, Linda Janes, Hugh Mackay e Keith Negus (1997). De
acordo com as explicações da autora deste ensaio em sua introdução ao livro de
onde ele foi extraído, Iclentity and clifference, "no estudo cultural do Walkman Referências bibliográficas
como um artefato cultural, Paul du Gay e seus colegas argumentam que, para
se obter uma plena compreensão de um texto ou miefato cultural, é necessário ALEXANDER, J. (org.). Durkheimian Sociology: cultural studies.
analisar os processos de representação, identidade, produção, consumo e regu Camb1idge: Cambridge University Press, 1990.
lação. Como se trata de um circuito, é possível começar em qualquer ponto; não
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se trata de um processo linear; seqüencial. Cada momento do circuito está
também inextricavelmente ligado a cada um dos outros, mas, no esquema, eles -. Lenin and Philosophy, and other Essays. Londres: Left Books,
aparecem como separados para que possamos nos concentrar em momentos 1971.
específicos. A representação refere-se a sistemas simbólicos (textos ou imagens
visuais, por exemplo) tais como os envolvidos na publicidade de um produto ANDERSON, B. lmagined Communities: reflections on the od
como o Walkman. Esses sistemas produzem significados sobre o tipo de pessoa gins spread of nationalis11i. Londres: Verso, 1983.
que utiliza um tal miefato, isto é, produzem identidades que lhe estão associa
das. Essas identidades e o artefato com o qual elas são associadas são produzi AZIZ, R. F'eminism and the challenge of racism: deviance or
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1992.
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de mais_ nada, ter uma teoria sobre
a rod ã0 da I.d n h"d que estou fazendo referência a uma identida de que se es
�e d a dife · . pli. c ações política
? Qua1·s a s im ade
s d e conc e1-
. gota em si mesma. "S ou brasileiro" - ponto. Entretanto, eu
to s como difere_nça, 1·den ti.da de .
, di ver sida de , alter ida só preciso fazer essa afirmação porque existem outros seres
O que esta, em J og o na iden tid de .?
ad e·? Co rn o se c onf· humanos que não são brasileiros. Em um mundo imaginário
uma : ed �gog1�· e urn c urríc ul 1gu a ria
o que esti vesse m c totalmente homogêneo, no qual todas as pessoas partilhas
r
e ntra dos
não a divers1 dade , mas n a dif
eren ça ' c on ce bida
. co mo sem a mesma identidade, as afirmações de identidade não
pro cess o, um a ped agogi. a e um -
currículo q�e nª-2.. se 1_1m · 1..- fariam sentido. De certa forma, é exatamente isto que ocorre
tassem a lebrar a identI·da .
de e a dif erença, mas ue com nossa identidade de "humanos". É apenas em c ircuns
uscassem problematizá-las ? E
pai.a questo- es como essas tâncias muito raras e especiais que precisamos a irmar que
quese volta o p resente ensa�o
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• • •
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conti�d: -sufi�-1c�1��
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ª mática ajuda, mas também esconde.
N�-�1esma linha de raciocínio
�
, também a diferença é Da mesma forma, as afirm ações sobre diferença só fa
co ce I a c omo um
a entidade independe� - zem sentido se compreendidas em sua relação com as afir
te caso em o osição à identi . A, en�s, nes
.
dade, a difei.ença e aqmlo que mações sobre a identidade. Dizer que "ela é chinesa'' significa
o out 10· e'.. "eJa e, 1t· a 1.ana � dizer que "ela não é argentina'', "ela não é japonesa'' etc.,
ca �, eia e n· on1osse-
xual", "ela e velhá', "e I a e,'n1uIh incluindo a afirn1ação de que "ela não é brasileira'', isto é, que
er · a 111 esma orma que
identidade, a d11 · e1.en ça e, , nesta p eI.specb.
r ela não é o que eu sou. As afü111ações sobre diferença também
va, conce bida
a
como auto-referenci ,
ada, como "algo que dependem de uma cadeia, em geral oculta, de declarações
remete a si p1o . p1.·1a.
Adu·rerença , tal como a identidad . negativas sobre (outras) identidades. Assim como a identidade
e, sm1 . pIesmente existe.
,
� compreender entre� depende da diferença, a diferença depende da identidade.
. que identidade e dif;e
i ença estao em uma relação de Identidade e diferença sao, p01s, mseparave1s.
est. ·
i e1 ta depenclênc.i.a. A E .
ma afiirmati va como expressam Em geral, consideramos a diferença como um produto
os a identidad1e te�,
de a em-
s-
";--
conder essa relação. Quando . derivado da identidade. N esta perspectiva, a identidade é a
digo "so u bI.as1· eir o parece
referência, é o ponto original relativamente ao qual se define
.
74 75
a diferença. Isto refl
ete a tendênci
mos como sen do a no a a tomar aquilo qu
rma pela qual descre e so
a identid . ade e a diferença têm que ser nomeadas.� apenas
mos aquilo que não so vemos ou aval
mos. Por sua vez, na ia de atos �e fala q le instituímo s a id entidade e a
venho tentand o dese perspectiva qu Por meio � .
nvolvei� identidade
e diferença
e diferença con:o tais A defimça-o da identidade brasileira,
vistas co mo mutuam sã
ente determin
adas. Numa visão
o por exemplo, e o res�ltado da criação de variados e comple-
radical, entre tanto , s m a is
eria p ossível
dizer que, c ontraria xos atos lingüístico s qu� a d�fmem como sendo diferente de
à primeira perspect mente
iva, é a diferença qu
e vem em pr
outras I·<lentidades nac1ona1s.
lugar. Para iss o seria imeiro
preciso c onsiderar C omo ato lmgms� . o , a identidade e a diferença estao
sim plesmente co m a diferença não . .. , ic
Ç; o resultado d
e um process
o, � s
. - a certas propnedades que caracterizam a linguagem
uJeitas
--f\ processo mesmo pcl.Q__ , v
qual tanto a identid o
em gera1. Por exem lo , segundo o lingüista sm o rer d'man
rrJ chleren a c om ree ade quantQ_ a , .
ndida, aqui, como re de Saussur. é , a linguag em , n ent m nt u iste a
JJ zidas. Na origem esta sultado) são du-
e e e
ria a · erença-com ,
r enças. ós já haviamos e::ontrado esta idéia quan-
t(1 co �o ou ro cess preendida, agora, de di. ier .
o de diferenc . de e da diferença como e1ement os
2 noção ue e iação . É precisament do falamos da i�entid�
e essa , A
0- diferença, como v n eituação lingüístic
a de que so tem sentido n o mte110r
. .. ,
.· de uma cadeia de diferencia-
7�--...:...:________ eremos adiant
e. _ ção 1 mgms f 1ca ("s
" "não ser mais
e r ist
.
o ,, ·r·
.
s1gm
.
ica "não ser isto,, e "na- o se1.
·1
aqu1 0 e aqm10 ,, e assim por diante) .
Identidade e difere
nça: criaturas da lin De acordo co m Sauss_ ure; os elementos - os sign · os - que
guagem
Além de serem inte .
rdependentes, iden constituem uma língua nao tem qualquer valor absoluto, não
ça partilham uma im tidade e diferen . . .
portante característ
ica: elas são o resul fazem sentido se considerado s 1so1adamente · Se cons1dera-
tado de atos de criaçã .
o lingüística. Dizer qu mos apenas. o aspecto matena1 de um signo ' seu aspecto
ele atos de criação sig e sã o o resulta
nifica dizer que não do gráfico ou r . 1 g1a
io ne'fico (o sma -'f·1co "vaca'' , por exemplo, ou
ela natureza, que nã são "elementos" , .
o sã o essênci seu equivalente fonetlco) ' não há nele nada intrínseco que
�stejam simplesment as, que não são coisa
e aí, à espera
s que , e1a c01sa . que reconhecemos c om o sendo uma
de s r m remeta aqu
clescobertas, respeita e e r e veladas ou .
das ou toleradas A vaca - e1e podena, · de forma 1gua1mente arbitrária' remeter
�iferença têm � . identidade e a ,
r ativamente prod�� a um outro o bjeto como, pOI. exemplo uma faca. E le so
Ctiaturas do mundo E�o são
tal, mas do na tural ou de um mun adquire va1or - ou sentido _ numa ca<leia infinita de o utras
mundo cultural e s do tr anscenden , .
o cial. Som os
nó marcas gra'f·icas ou foneticas que sa-0 diferentes dele. O
bbcamos, no c onte s que as fa . . .
iclentidade xto de relações cultu mesmo ocorre se consideramos o sigm·ficado que constitui
e a diferença são cr ra is e sociais. A . ,
iações so ciais e cultu um determinado signo, is:? e s c nsideramos seu aspecto
Dizei� p or sua vez, rais. . , � �
qu id conceitua1. O coneeito de vaca so f:az sentido numa cadeia
r(:sultado d e e nt idade e diferença sã
e ato s de cria
ção lingüística signi o o infinita de concei·tos que na- o sao- " vaca" · ......= :;;;._-:----
Tal como oc orre
elas
são criadas p or meio fica dizer que 1 .
de atos de linguagem com o concei "·to "sou bras1· eiro ,, , a Palavra "vaca" é apenas
Utn.a obviedade. M . Isto parece .- . ,. ,
as como tendemos uma maneira conveniente e abreviada de dizer "isto nao e
da.s, como a tomá-las c omo da , ,
"fato s da vida", com porco,, ' "nao- e árvo re, na- o e casa,, e assim por diante. Em
freqüência esquece , '
mos que Outras palavras, a lmgua nao - passa de um sistemae d --kf,
ui e-
76
77
para que o signo funcione
renças. ,-Reencontramos, aqm,· em contraste com a idéia de sença". E ssa "ilusão " é necessária
o e stá no lugar de alguma outra coisa.
dI·tie1enç
. a como produto' a noção de d·r
ue1.e-
nça como a 0 pe_:. como tal: afinal, o sign omessa da pre
- nte realizada, a pr
raçao ou o proces so básica de fimçjonam
- ento da I'mgua e Embora nunca plename outras
- · . te da idéia de signo. Em
por extensao, de mshtuições culturais e sociais como a iden� sença é parte integran resença
com Derrida, que a plena p
f1dade, p01 exemplo. palavr as, podemos dizei; adiada.
o signo é indefinidament
(da "coisa", do conceito) n
e
, � a identidade bra
cisa<mente isso que teo, nc · os pos-estruturalistas com J da dif er ença - "não sou
italiano ", "não ous
tra ç d ut , pre- o
(ou a identidade) porta sem
o o ro
ques Derri�a vêm tentando dizer nos últimos anos : 1::
o
chinês " etc. lD!)esmidade
guagem vacila. Ou '. nas �aIavras d� 1.mgüista Edward S apir diferença).
, tr aço da outridade (ou da
(1921) ' "t0das as giamahcas vazam'. o dicionário talv
ez ajude a
O exemplo da consulta a e da diferença
Essa i ndeterminação fatal da 1.mguagem decorre de uma estões da presença
, . compreender melhor as qu
caractens hca fundamental do . no. O sig
r sig
,
. no e um sinal ndo consultamos
uma palavra no dicioná
' em Derrida. Qua
uma I arca, um traço que está no lugar de uma outra coisa for ne ce uma definição o
u um sinônimo
rio, o dic i ná i nos
. um dos casos, o dicionário
s
a quar pode ser um obj eto concreto (o o b�etO "gato ") , um
o r o no
.
cuIturais. N a medida em qu
. e são defi·mi"das em aos b ens sociais. A identidade e a difer ença estao, pois, em
e
me10 da Iing �- - - - .
--..:...: =-- ::i. parte. nor
. uagem tidade e a diºfierenç ' estreita conexão com r elações de poder. O poder de definir
d. ix a na -o � adem
ai. de s .
�
.
instab·1 ·d d - Vio1 temos, uma '
ambém pe1 m ª . d .
eternunação e pe à 0 a identidade e de marcar a diferença não pode ser separ ado
vez mais, ao nosso exem o /'V das relações mais amplas de poder. A identidade e a dife
identidade brasileira. A ide a
. ntidade "sei. b1.asi·1eu-o . € na-o rença não são, nunca, inocentes._
pode, como vm10s, ser compr . de um
eendid fima
ª
de produça- o sim .
· bo'I·ica e discursiva, em qu pro cesso . �demos dizer qu e onde existe diferenciação - ou sej a,
.1 o" na- o e o "ser brasilei- identidade e diferença - aí está presente o poder. A difer en
tem nenhum referente natura
sol�to que e�ista anteriorme l ou fixo não é �ciação é o processo central pelo qual a identiaade e a di
�-�a o _te n à linguag em � fora d:i: ferença são produzidas. Há, entretanto, uma série de outros
sentido em relação com uma
te
çao ;mm� cadei a de significa� processos que traduzem essa diferenciação ou que com ela
a a por outras ide
n ida d s n cionais que, poi. sua
vez, tampouco sa- o Eix · guardam uma estreita relação. São outras tantas m arcas da
t e a
as, naturais ou pr e
. .
su a,� identidade e a difer determinadas. .,Em. presença do poder: incluir/excluir ("estes pertencem, aque
· � ença são tão indete
n eis quanto a ingua
rminadas e es não"); demarcar front eiras " , s e eles ; c ass1 1car
� gem a qual d ependem. "
-------------- ("bons e m aus ; puros e impuros ; "desenvolvidos e primi-
80
81
_!ivos"; "racionais e irracionais");
. nom1 alizar (" , s somo �n�liso� �e�alha�amente esse proces�o. Para �le, as
is ; eles sã an rm ais" .) -- -- ---..:...�
� , o p o s1ç o es bmanas nao
expre ssam uma s1111ples divisã o �
s
o sição·
1-
caso, simples distinções gra . i.s. dasformas privilegiadas de hierarquização das identidades
,, . matica Os pronomes "no, s ,, e
"e1es não são, aqui, simples cate - go11as .· gra . matica .
. mas
is, edas diferenças. A normalização é um dos rocessos mais
.
evidentes indicadoi·es de pos1ç oes-de _ SUJe · it r
· o 10rtemente sutis pelos quais o po er se mani esta no campo da identi
marcadas p or relaço s -ede poder. dãcle e daâlierença. Normalizar significa eleger - �
� Dividir o mundo social entre . 1�idade específica como o arâme1i·o em
"nós" e "e1es" s1gn
classificar. O processo de I ass1'fi _ , ific� re ação ao gual as outras identidades são avaliadas e hierar
icaçao e central na vida·
social. Ele p ode ser ent ndi�o c �orrnalizar significa atribuir a essa identidade
omo um ato de significa
pelo qual dividimos e o/denamos o mu ção todas as características positivas possíveis, em relação às
ndo s-oeia
em classes. A identidade e a difere
· 1 en� grupos, quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma
nça eStao estreitamente
relacionadas às foI.mas peIas qua . negativa. A identidade normal é "natural", desejável, única.
is a sociedade pi.oduz e
uti·11za
· classific . . ações . As elassrnc A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é
·r.· aç_o_ es sã..__
pftrtlr. do ponto de vist · o sempI.e �
vista como uma identidade, mas simplesmente como a iden
a d 1'denti'dade Isto é, as eI asses
quais o mundo social é d·1v1.dI.do na_ · . nas tidade. Paradoxalmente, são as outras identidades que são
ª
f,,;f-nn n
-.
. , o sa_ o s1m
tos s1metricos. -D·1v1·d·. . ar sianifica,
ples agr.upamen- marcadas como tais. Numa sociedade em que impera a su
11 e e 1ass1fic. -:--
�, m hiera g · . b neste casQ... premacia branca, por exemplo, "ser branco" não é conside
Dete1. o pnv11e'g·10 de eIass·f·
nifica também deter O pnv , . 1 1car sig- rado uma identidade étnica ou racial. Num mundo gover
.· i. 1eg10 de atribuir dI·[ie1.
1ores aos grupos assü11 class·f·
entes va- nado pela hegemonia cultural estadunidense, "étnica" é a
1 1cados. música ou a comida dos outros países. É a sexualidade
A mais im Jortante forma de- clas
. sificaçao e ,-
a uela u homossexual que é "sexualizada", não a heterossexual. A
se estrutura em torno
de o os1 oes mar . ias is to e, , em torno força homogeneizadora da identidade normal é diretamente
de duas classes polarizadas . O fl , r
I oso10 r..
11ances Jacques Der-
A pro porcional à sua invisibilidade.
82 83
Na medida em que é uma ope ração d e dife renciação, de de gênero (quando se justifica a dominação masculina por
produção de diferença, o anormal é inteiramente constitu-" meio de argumentos biológicos, por exemplo), ele é menos
tivo do normal. Assim como a definição da identidade de utilizado nas tentativas de estabelecimento das identidade s
pende da diferença, a definição do normal depende da de nacionais, onde são mais comuns e ssencialismos culturais.
finição do anormal. Aquilo que é deixado de fora é sempre
No caso das identidades nacionais, é extre mame nte co
parte da definição e da constituição do "dentro". A definição
mum, por exemplo, o apelo a mitos fundadores. As identi
daquilo que é considerado aceitável, desejável, natural é
dades nacionais funcionam, em grande parte, por meio
inteirame nte dependente da definição daquilo que é consi
daquilo que Benedith Ande rsen chamou de "comunid��es
de rado abje to, rejeitável, antinatural. A identidade hegemô
imaginadas". Na medida e m que não existe nenhuma co
nica é pe 1mane nte mente assombrada pelo seu Outro, sem .
munidade natural" em torno da qual se possam re umr as
cuja existência ela não faria sentido. Como sabemos de sde
pessoas que constituem um determinado agru:pamento n�
o início, a difere nça é parte ativa da fo1mação da iden.tidade. ,
cional, ela precisa ser inventada, imaginada. E necessano
criar laços imaginários que permitam "ligar" pessoas que,
Fixando a identidade sem ele s, se riam simplesmente indivíduos isolados, sem
O processo de produção da ide ntidade oscila entre dois nenhum "sentimento" de terem qualque r coisa e m comum.
movime ntos: de um lado, estão aqueles processos que ten A língua tem sido um dos elementos centrais de sse
dem a fixar e a estabilizar a identidade; d e outro, os proces processo - a história da imposição d: s naçõ�s mod:rnas
sos que te ndem a subvertê-la e a dese stabilizá-la. É um _ . _
coincide, e m grande parte , com a h1stona da 1mpos1çao de
processo semelhante ao que ocorre com os mecanismos uma língua nacional única e comum. Juntamente com a
discursivos e lingüísticos nos quais se sustenta a produção língua, é central a construção de símbolos nacionais: hinos,
da identidade. Tal como a linguagem, a tendência da ide n bandeiras, brasões. Entre e sses símbolos, destacam-se � s
tidade é para a fixação. Entretanto, tal como ocorre com a chamados "mitos fundadores". Fundamentalmente, um 1m
linguagem, a ide ntidade está sempre escapando. A fixação to fundador re me te a. um mome nto crucial do passado e m
é uma tendência e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade. que algum ge sto, algum acontecimento, em ge ral he rói
A teoria cultural e social pós-e struturalista tem percor co, épico, monumental, em ge ral iniciado ou exe cutado
rido os dive rsos territórios da ide ntidade para tentar descre por alguma figura "provide ncial", inaugurou as base s de
ve r tanto os processos que tentam fixá-la quanto aqueles que uma suposta identidade nacional. Pouco importa se os
impedem sua fixação. 1êm sido analisadas, assim, as ide nti fatos assim narrados são "ve rdadeiros" ou não; o que im
dades nacionais, as identidade s de gênero, as identidade s porta é que a narrativa fundadora funciona para dar à
sexuais, as identidades raciais e étnicas. Embora e stejam em identidade nacional a liga sentimental e afetiva que lhe
funcionamento, nessas diversas dimensões da identidade garante uma certa e stabilidade e fixação, sem as quais ela
cultural e social, ambos os tipos de processos, eles obede não te ria a mesma e necessária eficácia.
cem a dinâmicas diferente s. Assim, por exemplo, e nquanto Os mitos fundadore s que tendem a fixar as identidades
o recurso à biologia é evidente na dinâmica da identidade nacionais são, assim, um exe mplo importante de essencia-
84 85
lisrno cul�m�al: Embora aparentemente baseadas em argu mente teóricos; eles são parte integral da dinâmica da pro
mentos b10log1cos, as tentativas de fixação da identidade que dução da identidade e da diferença.
apelam para a natureza não são menos culturais. Basear a
O hibridismo, por exemplo, tem sido analisado, sobre
infe1i01ização das mulheres ou de celios grupos "raciais" ou
tudo, em relação com o processo de produção das identida
. 1cos
e' tn " nalgurna suposta característica natural ou biológica n-ao
, · des nacionais, raciais e étnicas. Na perspectiva da temia cul
1
� snn� �srnente um erro "científico", mas a demonsh·ação da
ttrral contemporânea, o hibridismo - a mistura, a conjunção, o
1mpos1çao de uma eloqüente grade cultural sobre uma nature
intercurso enti·e diferentes nacionalidades, entre diferentes
za que, em si mesma, é - culturalmente falando - silenciosa.
etnias enti· iferentes raças - coloca em xeque aqueles pro
As chamadas interpretações biológicas são, antes de seren
cessos que tendem a conceber as identidades como fundamen
�iológ�c�s, interpretações, isto é, elas não são mais do que ;
talmente separadas, divididas, segregadas. O processo de bi
1rnpos1çao de uma mahiz de significação sobre urna matéria
bddização confunde a suposta pureza e insolubilidade dos
que, sem elas, não tem qualquer significado. Todos os essen
Mºs que se reúnem sob as diferentes identidades nacionais,
cialisrnos são, assim, culturais. Todos os essencialismos nas
rãciais ou étnicas. A identidade que se forma por meio do
cem do movimento de fixação que caracteriza o processo de
hibridismo não é mais integralmente nenhuma das identi-
produção da identidade e da diferença.
dades originais, embora guarde traços delas.
Subvertendo e complicando a identidade Não se pode esquecer, entretanto, que a hibridização se
dá entre identidades situadas assimetricamente em relação
M�is interessantes, enh·etanto, são os movimentos que
ao poder. Os processos de hibridização analisados pela teo
conspiram para complicar e subverter a identidade. A teoria
ria cultural contemporânea nascem de relações conflituosas
culhrral contemporânea tem destacado alguns desses movi
entre diferentes grupos nacionais, raciais ou étnicos. Eles
mentos. Aliás, as metáforas utilizadas para descrevê-los
estão ligados a histórias de ocupação, colonização e destrui
recorrem, quase todas, à própria idéia de movimento de
ção. Trata-se, na maioria dos casos, de uma hibridização
viagem, de deslocamento: diáspora, cruzamento de fro�tei
forçada. O que a teoria cultural ressalta é que, ao confundir
ras nomadismo. A figura dôjlaneur, descrita por Baudelaire
..? a estabilidade e a fixação da identidade, a hibridização, de
e retomada por Benjamin, é constantemente citada corno
alguma forma, também afeta o poder. O "terceiro espaço"
exernp�ar de identidade móvel. Embora de forma i�a,
(Bhabha, 1996) que resulta da hibridização não @ deten+ú
as metaforas da �bridização, da miscigenação, do sincretis
n�nca, unilateralmente, pela identidade hegemónica:
mo e do travestismo também aludem a alguma esp�e
---
ele introduz uma diferença que constitui a possibilidade de
mobihdade entre os diferentes territórios da identi e. As
seu questionamento. _
meta oras que buscam en atizar os processos que compli
cam e subvertem a identidade querem enfatizar - em con 0 hibridismo está ligado aos movimentos demográficos
traste com o processo que tenta fixá-las- aquilo que trabalha que permitem o contato entre diferentes identidades: as
para contrapor-se à tendência a essencializá-las. De acordo diásporas, os deslocamentos nômades, as viagens, os cruza
com essas perspectivas, esses processos não são simples- mentos de fronteiras. Na perspectiva da teoria cultural con
temporânea, esses movimentos podem ser literais, como na
86 87
1
J
diás ora forçada dos povo ··canos por meio da escraviza Se o movimento entre fronteiras coloca em evidência a
ção, por exemp o, ou podem ser simp esmen e meta oncos. instabilidade da identidade, é nas próprias linhas de fron
"Cruzar fronteiras", por exemplo, pode significar simples teira, nos limiares, nos interstícios, que sua precariedade se
mente mover-se livremente enh·e os territórios simbólicos torna mais visível. Aqui, mais do que a partida ou a chegada,
de diferentes identidades. "Cruzar fronteiras" significa não é cruzar a fronteira, é estar ou permanecer na fronteira, que
respeitar os sinais que demarcam - "artificialmente" - os é o acontecimento crítico. Neste caso, é a teorização cultural
limites entre os tenitó1ios das diferentes identidades. · " contemporânea sobre gênero e sexualidade que ganha cen
Mas é no movimento literal, concreto, de grupos em tralidade. Ao chamar a atenção para o caráter cultural e
movimento, por obrigação ou por opção, ocasionalmente ou construído do gênero e da sexualidade, a teoria feminista e
constantemente, que a teoria cultural contemporânea vai a teoria queer contribuem, de forma decisiva, para o ques
buscar inspiração para teorizar sobre os processos que ten tionamento das oposições binárias - masculino/feminino,
dem a desestabilizar e a subverter a tendência da ídentidade heterossexual/homossexual - nas quais se baseia o processo
-----
à fixação. piásporas, como a dos negros africanos escraviza de fixação das identidades de gênero e das identidades sexuais.
dos, por exemplo, ao colocar em cõmato diferéÍÍtes culturas A possibilidade de "cruzar fronteiras" e de "estar na fronteira",
.._ de ter uma identidad�-ambígua, indefinida, é uma demonsh·a
e ao favorecer processos de misdgeirução, colocam em mo-
vime�cessos de hibridi�, smcretismo ·· uliza- ção do caráter "aitificialmente" imposto das identidades fixas.
çã�ultural que, forçosamente, transformam, desestabili O "cruzamento de fronteiras" e o cultivo propositado de iden
zam e deslocam as1âenndades originais. Da mesma forma, tidades ambíguas é, enh·etanto, ao mesmo tempo uma podero
movimentos rmgratórios em gera[, como os que, nas últimas sa estratégia política de questionamento das operações de
décadas, por exemplo, deslocaram grandes contingentes fixação da identidade. A evidente artificialidade da identi
populacionais das antigas colônias para as antigas metrópo dade das pessoas travestidas e das que se apresentam como
les, favorecem processos que afeta nto as identidades drag-queens, por exemplo, denuncia a - menos evidente -
subordinadas quanto as hegemônicas. inalmente, é a viagem artificialidade de todas as identidades.
em geral que é tomada como metáfora do caráter necessaiia
mente móvel da identidade. Embora menos h·aumática que a Identidade e diferença: elas têm que ser
diáspora ou a migração forçada, a viagem ob1iga quem viaja a representadas
sentir-se "estrangeiro", posicionando-o, ainda que tempora1ia Já sabemos que a identidade e a diferença estão estrei
mente, como o "ouh·o". A viagem proporciona a expe1iência do tamente ligadas a sistemas de significação. A identidade é
"não sentir-se em casa" que, na perspectiva da te01ia culhiral um significado - cultural e socialmente atribuído. A teoria
contemporânea, caracteiiza, na verdade, toda identidade cul cultural recente expressa essa mesma idéia por meio do
tural. Na viagem, podemos experimentar, ainda que de conceito de representação. Para a teoria culh1ral contempo
forma limitada, as delícias - e as inseguranças - da instabi rânea, a identidade e a diferença estão estreitamente asso
lidade e da precariedade da identidade. ciadas a sistemas de representação.
88 89
O conceito d e representação tem uma longa história, o
sentação mental ou interior. Alepresenta§âQ é, aqui, sempre
que lhe confere uma multiplicidade de significados. Na marca ou traço visível, exterior.
históiia da filosofia ocidental, a idéia de representação está
· Em segundo lugar, na perspectiva pós-estruturalista, o
ligada à busca de fonnas apropiiadas de tomar o "real" presen
te - de apreendê-lo o mais fi elmente possível por meio de conceito de representação incorpora todas as características
de indeterminação, ambigüidade e instabilidade atribuídas
sistemas de significação. Nessa história, a representação tem-se
90 91
culares dessas conexões entre �<lentidade e representação. posições fazem com que algo se efetive, se realize. Austin
A pedag ogia e o currículo d eve riam ser capazes de oferecer chama a essas proposições de "performativas". São exem
oportuni dad e s para que as crianças e os/as jovens desen plos típicos de proposições performativas: "Eu vos declaro
volvessem capacidades de crítica e questionamento dos marido e mulher", "Prometo que te pagarei no fim do mês",
sistemas e das formas dominantes de representação da iden "Declaro inaugurado este monumento".
tidade e da diferença. Em seu sentido estrito, só podem ser consideradas per
formativas aquelas proposições cuja enunciação é absoluta
Identidad e e diferença como performatividade mente necessária para a consecução do resultado que anun
Remeter a ide ntidade e a diferença aos processos dis ciam. Entretanto, muitas sentenças descritivas acabam
cursivos e lingüísticos que as produzem pode significai� funcionando como peiformativas. Assim, por exemplo, uma
en treta n to, o uh·a vez, simplesmente fixá-las, se nos limitar sentença como "João é pouco inteligente", embora pareça
mos a compreender a representação de uma forma pura ser simplesmente descritiva, pode funcionar - em um sen
mente descritiva. Será o conceito de pe1formatividade, tido mais amplo - como performativa, na medida em que
desenvolv id o, neste context o , sobretudo pela teórica J\J.m!h. sua repetida enunciação pode acabar produzindo o "fato"
�e nos pem1itirá contornar esse problema. que supostamente apenas deveria descrevê-lo. ltm:._ecisa
O conceit o de performatividade desloca a ênfase na identi mente a partir desse sentido ampliado d ·" rfmmativida
dade com o descrição, como aquilo que é - uma ênfase que de" Butler analisa a produção a iden
é, de certa f01ma, mantida pelo conceito de representação
- para a idé ia de "tornar-se", para uma concepção da iden
___________
tidade como nma questão de per ormativ1 a e.
----,,.
Em geral, ao dizer algo sobre certas caract�ticas iden
tidade com o movimento e transformação. titárias de algum grupo cultural, achamos que estamos sim
A formulação inicial do conceito de "performatividade" plesmente descrevendo uma situação existente, um "fato"
deve-se a J.A. Austin (1998). Segundo Austin, contrariamen do mundo social. O que esquecemos é que aquilo que di
te à visão que geralmente se tem, a linguagem não se limita zemos faz parte de uma rede mais ampla de atos lingüís
a proposições que simple sme nte descrevem uma ação, uma ticos que, em seu conjunto, contribui para definir ou
situação ou um estado de coisas. Assim, se nos pedirem para reforçar a identidade que supostamente apenas estamos
dar um exemplo de uma proposição típica, provavelmente descrevendo. Assim, por exemplo, quando utilizamos
n o s sairíamos com algo como "O livro está sobre a mesa". uma palavra racista como "negrão" para nos referir a uma
Trata-se, tipicam e nte, de uma proposição que Austin chama pessoa negra do sexo masculino, não estamos simples
de " co nstatativ a" ou "descritiva". Ela simplesmente descre mente fazendo uma descrição sobre a cor de uma pessoa.
ve uma situa ção. Mas a linguagem tem pelo menos uma Estamos, na verdade, inserindo-nos em um sistema lin
outra categ oria de prop o siçõe s que não se ajustam a essa güístico mais amplo que contribui para reforçar a negativi
de finição: são aquelas pr o posições que não se limitam a dade atribuída à identidade "negra".
descrever um estado de coisas, mas que fazem com que Esse exemplo serve também para ressaltar outro ele
alguma coisa aconteça. Ao serem pronunciadas, essas pro- mento importante do aspecto perforrnativo da produção da
92 93
identidade. A eficácia produtiva dos enunciados perfonna .e i. et·n·ad a d e um determ
inado contexto e inserida em
se m p 1
rente.
tivos ligados à identidade depende de sua incessante repe um contexto dife
tição. E m t e rmos d a produção d a id e ntida de, a E, e,xata mente e:.:=--- ssa "citacionalidade " da linguagem que_
ocorrência de urn a única sente nça desse tipo não teTia . seu caráte r IJ erfonnativo • ara faz e-1 a tra-
A
se comb ma Com e
nenhum efeito importa nt e . É de sua repe tição e, sobre de produção da iden�1dade. Quando
balhar no processo ara m e refenr a um homem
tudo, da possibilidade de sua repetição, que ve m a força 1zo a e xpressão "negrão" p . - o
utl-1� nif est ando uma opmi-
que um ato lingüístico desse tipo tem no p rocesso de u sim pl sm ent ma a
neg1. 0, na-o esto
e
e
. h a mte . nça_ o, em
produção da id entidade. É a qui que e ntra outra noção exclusiva em mm
que te1n origem plena e a na- o e, a s1m · ples
semiótica importante, uma noção qu e foi esp ecia lmente . a con sciê nci a ou minha me nte. El .
re ssalta da por Jacque s Derrid a . Uma ca racterística es
m m h
r úni c
.
a de mmha sober an a e ivi
1 e o1:_1-·
·
e ressã o sin gul a e
sencia l do signo é qu e ele s ej a rep etív e l. Isto quer dizer efetuando uma operaçao
�o. Em um certo sentido, estou
nia
que quando encontro um signo como "vaca", eu devo ser Recorte: retiro a expressa- o do
de "recorte e colagem". e zes
capaz de reconhecê-lo como se referindo, de forma relati em que ela foi tanta s v
contexto social m;üs amplo no con to tex
vamente estável, sempre, à mesma coisa, apesar de variações .
enunciad a · Colage
m: insiro-a no novo contexto, · ·
"acidentais" - diferenças de ca ligrafia, por exemplo. S e as l re p r ece sob o disfarc e de
m1�11a exclus1�a
em qu e e a a a
pa lavras ou os signos que utilizamos para nos referir às -- como o resultado de minha exclusiva operaçao
. iao,
opm
coisas ou aos conceitos tivessem que ser reinventados, a v rd d e, estou ap enas citand
" o " · E' essa c 1t· aç-ao
m e nt al. N a e a . oi_ça
cada vez e por cada indivíduo - isto é, se não fossem re m ção o nun ci ado performat1vo que ref
que recoloc a e a e
petíveis - já não seriam signos tais como os concebemos. à ide ntidade negra de nosso
o aspecto ne. gativo atribuído
se é ap enas mais um a ocorrencia d e uma
A •
D errida (1991) estende essa idéia para a escrita, em exemp1 o.Mmh a f1·a . ema �a.is amplo de
um sist
particula1� e, mais geralmente, p ara a linguagen1: Para Der citação que tem sua origem em
· matividade e, fmalmente, de
rida, o que caracteriza a escrita é precisamente o fato de operaço- es de citaç-a0, de p eifor
. - identidade cultural.
que, para funcionar como tal, um; mensagem escrita qual defm.1ça- o, p1·oduça0 e reforço da
mesma repetibilidade
quer precisa ser reconh ecível e legível na ausência de quem S egundo Judith Butler (1999), a
que garante J eficácia dos atos
a escreveu e, na verdade, até mesmo na ausência de seu p_erf�1�mativos �ue reforç_ai�1
. ficar tambem a poss1b�-
suposto d e stin a tá rio. M a is radicalme nt e, ela é ind e as 1<lentidades existentes pode s1gm
pendente até mesmo de quaisquer supostas intenções que ades hegemomcas. A i�epeti-
A .
95
94
as diferenças instauradas, que toma possível pensar na pro identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsis
dução de novas e renovadas identidades. tente, inacabada. A identidade está ligada a estruhu-as dis
cursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de
Pedagogia como diferença representação. A identidade tem estreitas conexões com
relações de poder. j
Se prestarmos, pois, atenção à teorização cultural con
temporânea sobre identidade e diferença, não poderemos Como tudo isso se traduziria em termos de currículo e
abordar o multiculturalismo em educação simplesmente pedagogia? O outro cultural é sem re um roblema is
como uma questão de tolerância e respeito para com a coloca permanen emen e em xe ue nossa ró ria identida-
diversidade cultural. Por mais edificantes e desejáveis que e. questão da identid e da diferença e do outro é um
possam parecer, esses nobres sentimentos impedem que pro ema social ao mesmo tempo que é um problema pe
vejamos a identidade e a diferença como processos de dagógico e curricular. É3�_12.rnblema social porque, em um
produção social, como processos que envolvem relações de mundo heterogêneo, o encontro com o outro, com o estr_a
poder. Ver a identidade e a diferença como uma questão de nho, com o diferente, éinevitável. É um problema pedagó
produção significa tratar as relações entre as diferentes gicÔe curricular não apenas porque as crianças e os jovens,
culturas não como uma questão de consenso, de diálogo ou em uma sociedade atravessada pela diferença, forçosamente
comunicação, mas como uma questão que envolve, funda interagem com o outro no próprio espaço da escola, mas
mentalmente, relações de poder. A identidade e a diferença também porque a questão do outro e da diferença não pode
não são entidades preexistentes, que estão aí desde sempre deixar de ser matéria de preocupação pedagógica e curricu
ou que passaram a estar a aí a partir de algum momento lar. Mesmo quando explicitamente ignorado e reprimido, a
fundador, elas não são elementos passivos da cultura, mas volta do outro, do diferente, é inevitável, explodindo em
têm que ser constantemente criadas e recriadas. A identi conflitos, confrontos, hostilidades e até mesmo violência. O
dade e a diferença têm a ver com a atribuição de sentido ao reprimido tende a voltar - reforçado e multiplicado�
mundo social e com disputa e luta em torno dessa atribuição. problema é que esse."outro", numa sociedade em que a
identidade torna-se, cada vez mais, difusa e descentrada,
Nessa perspectiva, podemos fazer uma síntese descre
expressa-se por meio de muitas dimensões. O outro é o ou
vendo o que a identidade - tudo isso vale, igu;lme�te, para
tro gênero, o outro é a cor diferente, o outro é a outra
a diferença - não é e o que a identidade é.
sexualidade, o outro é a outra raça, o outro é a outra nac10-
Primeiramente, a identidade não é uma essência· não é . nalidade, o outro é o corpo diferente.
�m d�do ou �m, fato - sej,a da natureza, seja da cul;ura.K Uma primeira estratégia pedagógica possível, que po
identidade nao e fixa, estavel, coerente, unificada, perma
deríamos classificar como "liberal", consistiria em estimular
nente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva,
e cultivar os bons sentimentos e a boa vontade para com a
a�abada, idê�tica, transc�ndental. Por outro lado, J)ode1�s chamada "diversidade" cultural. Neste caso, o pressuposto
_
d1�r que a 1�entidade e uma c�nstrução, �m efei� básico é o de que a "natureza" humana tem uma variedade
('� _
,,, cesso de p1oduçao, uma relaçao, um ata per�o. A
� de formas legítimas de se expressar culturalmente e todas
96 97
deve m ser respeitadas ou toleradas - no exercício de uma grupO, exercícios corporais, dramatizações são estratégias
tolerância que pode variar desde um sentimento paternalis comuns nesse tipo de abordagem.
ta e superior até uma atitude de sofisticação cosmopolita de
Ern algum lugar intermediário entre essas duas aborda
convivência para a qual nada que é humano lhe é " estranho".
Pedagogicamente, as crianças e os jovens, nas escolas, se gens, situa-se a estratégia
. talvez
. mais comumente adotada .
na rot·na pedagógica e curricular das e scolas, que consist e
riam estimula dos a entrar e m contato, sob as mais va ria s e às stu ant s uma visao
ern apresentar aos estudant
i . _
98 99
identidades culturais e que as separam por meio da diferen cidade estende e multiplica, prolifera, dissemina. A diversi
�a cult�1ral. Ant�s de tolerar, respeitar e admitir a diferença, d� um dado - da natureza ou da cultura. A multiplicidade
e preciso explicar como ela e ativamente produzida. A é um movimento. A diversidade reafuma o idêntico. A multi
diversidade biológica pode ser um produto da natureza·' o plicidade estimula a diferença que se recusa a se fundir com
mesmo não se pode dizer da diversidade cultural. A diver- o idêntico. Como diz José Luis Pardo:
sidade cultural não é, nunca, um ponto de origem: ela é, em Respeitar a diferença não pode significar "deixar que o
vez disso, o ponto final de um processo conduzido por outro seja como eu sou" ou "deixar que o oub·o seja diferente
operações de diferenciação. Uma política pedagógica e cur de mim tal como eu sou diferente (do outro)", mas deixar que
ricular da identidade e da diferença tem a obrigação de ir o outro seja como eu não sou, deixar que ele seja esse ouh·o
que não pode ser eu, que eu não posso ser, que não pode ser
além das benevolentes declarações de boa vontade para com um (oub·o) eu; significa deixar que o outro seja diferente,
a diferença. Ela tem que colocar no seu centro uma teoria deixar ser uma diferença que não seja, em absoluto, diferença
que permita não simplesmente reconhecer e celebrar a di entre duas identidades, mas diferença da identidade, deixar
ferença e a identidade, mas questioná-las. ser uma outridade que não é oub·a "relativamente a mim" ou
"relativamenté ao mesmo", mas que é absolutamente dife
Por outro lado, os estudantes e as estudantes deveriam rente, sem relação alguma com a identidade ou com a
ser estimulados, nessa perspectiva, a explorar as possibili mesmidade (Pardo, 1996, p. 154).
dades de perturbação, transgressão e subversão das identi
Essas poderiam ser as linhas gerais de um currículo e
dades existentes. De que modo se pode desestabilizá-las
denunciando seu caráter construído e sua artificialidade? uma pedagogia da diferença, de um currículo e de uma
Um currículo e uma pedagogia da diferença deveriam ser pedagogia que representassem algum questionamento não
capazes de abrir o campo da identidade para as estratégias apenas à identidade, mas também ao poder ao qual ela está
que tendem a colocar seu congelamento e sua estabilidade esh·eitamente associada, um currículo e uma pedagogia da
em xeque: hibridismo, nomadismo, travestismo, cruzamen diferença e da multiplicidade. Em certo sentido, "pedago
to de fronteiras. Estimulai� em matéria de identidade o gia" significa precisamente "diferença": educar significa
impensado e o arriscado, o inexplorado e o ambíguo, em �ez introduzir a cunha da diferença em um mundo que sem ela
do consensual e do assegurado, do conhecido e do assenta se limitaria a reproduzir o mesmo e o idêntico, um mundo
do. Favorecer, enfim, toda experimentação que torne difícil parado, um mundo morto. É nessa possibilidade de abertura
o retorno do eu e do nós ao idêntico. para um outro mundo que podemos pensar na pedagogia
como diferença. Dessa forma, talvez possamos dizer sobre
Aproximar - aprendendo, aqui, uma lição da chamada
a pedagogia aquilo que Maurice Blanchot (1969, p. 115)
"filosofia da diferença" - a diferença do múltiplo e não do
disse sobre a fala e a palavra: fazer pedagogia significa
diverso. Tal como ocorre na aritmética, o múltiplo é sempre
"procurar acolher o outro como outro e o estrangeiro como
um processo, uma operação, uma ação. A diversidade é
estrangeiro; acolher outrem, pois, em sua irredutível dife
estática, é um estado, é estéril. A multiplicidade é ativa, é
um fluxo, é produtiva. A multiplicidade é uma máquina de rença, em sua estrangeiridade infinita, uma estrangeiridade
produzir diferenças - diferenças que são irredutíveis à tal que apenas uma descontinuidade essencial pode conser
--
identidade. A diversidade limita-se ao existente. A multipli- var a afirmação que lhe é própria".
100 101
Referências bibliográficas
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dós, 1998.
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BHABHA, Homi. O terceiro espaço (entrevista conduzida por Quem precisa da identidade?
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BLANCHOT, Maurice. Lentretien infini. Paris: Gallimard, 1969.
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos
Estamos observando, nos últimos anos, uma verdadeira
do "sexo", in: LOPES LOURO, Guacira (org.). O corpo edu
explosão discursiva em tomo do conceito de "identidade". O
cado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica,
1999: 151-172. conceito tem sido submetido, ao mesmo tempo, a uma severa
crítica. Como se pode explicar esse paradoxal fenômeno? Onde
DERRIDA, Jacques. Limited Inc. Campinas: Papiros, 1991.
nos situamos relativamente ao conceito de "identidade"? Está-se
PARDO, José Luis. El sujeto inevitable, in: CRUZ, Manuel (org.). efetuando uma completa desconshução das perspectivas iden
Tiernpo de subjetividad. Barcelona: Paidós, 1996: 133-154. titárias em uma variedade de áreas disciplinares, todas as quais,
SAPIR, Edward. Language. Nova York: Harcomt Brace, 1921. de uma fo1ma ou ouh·a, c1iticam a idéia de uma identidade
integral, 01iginária e unificada. Na filosofia tem-se feito, por
exemplo, a crítica do sujeito auto-sustentável que está no
cenh·o da metafísica ocidental pós-ca1tesiana. No discurso da
c1itica feminista e da crítica cultural influenciadas pela psica
nálise têm-se destacado os processos inconscientes de f01ma
ção da subjetividade, colocando-se em questão, assim, as
concepções racionalistas de sujeito. As perspectivas que te01i
zam o pós-modernismo têm celebrado, por sua vez, a existência
de um "eu" inevitavelmente pe1f01mativo. Tem-se delineado,
em suma, no contexto da crítica antiessencialista das concep
ções étnicas, raciais e nacionais da identidade cultural e da
"política da localização", algumas das concepções teóricas .
mais imaginativas e radicais sobre a questão da subjetivida
de e da identidade. Onde está, pois, a necessidade de mais
uma discussão sobre a "identidade"? Quem precisa dela?
Existem duas formas de se responder a essa questão. A
primeira consiste em observar a existência de algo que
distingue a crítica desconstrutiva à qual muitos destes con-
102 103
ceitos essencialistas têm sido submetidos. Diferentemente suas formas modernas - do significante "identidade" e de
daquelas formas de crítica que objetivam superar concei sua relação primordial com uma política da localização,
tos inadequados, substituindo-os por conceitos "mais quanto as evidentes dificuldades e instabilidades que
verdadeiros" ou que aspiram à produção de um conheci têm afetado todas as formas contemporâneas da chamada
mento positivo, a perspectiva desconstrutiva coloca certos "política de identidade". Ao falar em "agência", não quero
conceitos-chave "sob rasura". O sinal de "rasurá' (X) indica expressar nenhum desejo de retornar a uma noção não-me
que eles não servem mais - não são mais "bons para pensar" diada e transparente do sujeito como o autor centrado da
- em sua forma original, não-reconstruída. Mas uma vez que prática social, nem tampouco pretendo adotar uma aborda
eles não foram dialeticamente superados e que não existem gem que "coloque o ponto de vista do sujeito na origem de
outros conceitos, inteiramente diferentes, que possam subs toda historicidade - que, em suma, leve a uma consciência
tituí-los, não existe nada a fazer senão continuar a se pensar transcendental" (Foucault, 1970, p. XIV). ..-
com eles - embora agora em suas formas destotalizadas e Concordo com Foucault quando diz que o que nos falta,
desconstruídas, não se trabalhando mais no paradigma no neste caso, não é "uma teoria do sujeito cognoscente", mas
qual eles foram originalmente gerados (Hall, 1995). As duas "uma teoria da prática discursiva". Acredito, entretanto, que
linhas cruzadas (X) que sinalizam que eles estão cancelados o que este descentramento exige - como a evolução do
permitem, de forma paradoxal, que eles continuem a ser trabalho de Foucault claramente mostra - é não um aban
lidos. Derrida descreve essa abordagem como "pensando dono ou abolição mas uma reconceptualização do "sujeito".
no limite", como "pensando no intervalo", como uma espé É preciso pensá-lo em sua nova posição - deslocada ou des
cie de escrita dupla. "Por meio dessa escrita dupla, precisa centrada- no interior do paradigma. farece que é na tentativa
mente estratificada, deslocada e deslocadora, devemos de rearticular a re ·e su · eitos e ráticas discursivasque
também marcar o intervalo entre a inversão que torna baixo a questão da identidade-ou melho1� a questão a identi a.ção,
aquilo que era alto[... ] e a emergência repentina de um novo caso se prefira enfatizar o processo de subjetivação (em vez das
'conceito' que não se deixa mais - que jamais se deixou - práticas discursivas) e a política de exclusão que essa subjeti
subsumir pelo regime anterior" (Derrida, 1981, p. 42). A vação parece implicar - volta a aparecei:
identidade é um desses conceitos que operam "sob rasura",
no intervalo entre a inversão e a emergência: uma idéia que O conceito de "identificação" acaba por ser um dos
não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas conceitos menos bem desenvolvidos da teoria social e cul
questões-chave não podem ser sequer pensadas. tural, quase tão ardiloso - embora preferível - quanto o de
"identidade". Ele não nos dá, certamente, nenhuma garan
Um segundo tipo de resposta exige que observemos tia contra as dificuldades conceituais que têm assolado o
onde e em relação a qual conjunto de problemas emerge a último. Resta-nos buscar compreensões tanto no repertório
irredutibilidade do conceito de identidade. Penso que a discursivo quanto no psicanalítico, sem nos limitarmos a
resposta, neste caso, está em sua centralidade para a questão nenhum deles. 1l-ata-se de um campo semântico demasia
1
da agência e da política. Por "políticá' entendo tanto a damente complexo para ser deslindado aqui, mas é útil es
importância - no contexto dos movimentos políticos em tabelecei� pelo menos indicativamente, sua relevância para
104 105
a tarefa que temos à mão. Na linguagem do senso comum, O conceito de identificação herda, começando com seu
a identificação é construída a partir do reconhecimento de uso psicanalítico, um rico legado semântico. Freud chama-a
alguma origem comum, ou de características que são parti de "a mais remota expressão de um laço emocional com
lhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de outra pessoa" (Freud, 1921/1991). No contexto do complexo
um mesmo ideal. É em cima dessa fundação que ocorre o de Édipo, o conceito toma, entretanto, as figuras do pai e da
natural fechamento que forma a base da solidariedade e da mãe tanto como objetos de amor quanto como objetos de
fidelidade do grupo em questão. competição, inserindo, assim, a ambivalência no centro
Em contraste com o "naturalismo" dessa definição, a mesmo do processo. 'A identificação, na verdade, é ambiva
abordagem discursiva vê a identificação como uma constru lente desde o início" (Freud, 1921/1991: p. 134). Em Luto e
ção, como um processo nunca completado - como algo sem melancolia, ela não é aquilo que prende alguém a um objeto
pre "em processo". Ela não é, nunca, completamente deter que existe, mas aquilo que prende alguém à escolha de um
minada - no sentido de que se pode, sempre, "ganhá-la" ou objeto perdido. Trata-se, no primeiro caso, de uma "molda
"perdê-la"; no sentido de que ela pode sei� sempre, susten gem de acordo com o outro", como uma compensação pela
tada ou abandonada. �mbora tenha suas condições deter perda dos prazeres libidinais do narcisismo primai. Ela está
minadas de existência, o que inclui os recursos materiais e fundada na fantasia, na projeção e na idealização. Seu objeto
simbólicos exigidos para sustentá-la, a identificação é, ao fim tanto pode ser aquele que é odiado quanto aquele que é
adorado. Com a mesma freqüência com que ela é transpor
e ao cabo, condicional; ela está, ao fim e ao cabo, alojada na
tada de volta ao eu inconsciente, ela "empurra o eu para fora
contingência. Uma vez assegurada, ela não anulará a dife
de si mesmo". Foi em relação à idéia de identificação que
rença. A fusão total entre o "mesmo" e o "outro" que ela
Freud desenvolveu a importante distinção entre "ser" e
sugere é, na verdade, uma fantasia de incorporação (Freud
"ter" o outro. Ela se comporta "como um derivado da
sempre falou dela em termos de "consumir o outro", como
primeira fase da organização da libido, da fase oral, em que
veremos em um momento).
o objeto que prezamos e pelo qual ansiamos é assimilado
A identificação é, pois, um processo de articulação, uma pela ingestão, sendo dessa maneira aniquilado como tal"
suturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção. (Freud, 1921/1991: p. 135). 'As identificações vistas como
Há sempre "demasiado" ou "muito pouco" - uma sobrede um todo", observam Laplanche e Pontalis (1985), "não são,
terminação ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, de forma alguma, um sistema relacional coerente. Coexis
uma totalidade. Como todas as práticas de significação, ela tem no interior de uma agência como o superego [supereu],
está sujeita ao "jogo" da différance. Ela obedece à lógica do por exemplo, demandas que são diversas, conflituosas e
mais-que-um. E uma vez que, como num processo, a iden desordenadas. De forma simila1� o ego ideal é composto de
tificação opera por meio da différance, ela envolve um identificações com ideais culturais que não são necessaria
h·abalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras mente harmoniosos" (p. 208).
simbólicas, a produção de "efeitos de fronteiras". Para con
Não estou sugerindo que todas essas conotações devam
solidar o processo, ela requer aquilo que é deixado de fora
ser importadas em bloco e sem tradução ao nosso pensa
- o exterior que a constitui.
mento sobre a "identidade"; elas são citadas aqui para indi-
106 107
car os novos significados que o termo está agora recebendo. riam a manter uma certa correspondência. Elas têm a ver,
O conceito de identidade aqui desenvolvido não é, portanto, entretanto, com a questão da utilização dos recursos da
um conceito essencialista, mas um conceito estratégico e história, da linguagem e da cultura para a produção não
posicional. Isto é, de forma diretamente contrária àquilo daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos.
que parece ser sua carreira semântica oficial, esta concepção Tom a ver não tanto com as questões "quem nós somos" ou
de identidade não assinala aquele núcleo estável do eu que "de onde nós viemos", mas muito mais com as questões
passa, do início ao fim, sem qualquer mudança, por todas as "quem nós podemos nos tomar", "como nós temos sido
vicissitudes da história. Esta concepção não tem como refe representados" e "como essa representação afeta a forma
rência aquele segmento do eu que permanece, sempre e já, como nós podemos representar a nós próprios". Elas têm
"o mesmo", idêntico a si mesmo ao longo do tempo. Ela tanto a ver com a invenção da tradição quanto com a própria
tampouco se refere, se pensamos agora na questão da iden tradição, a qual elas nos obrigam a ler não como uma
tidade cultural, àquele "eu coletivo ou verdadeiro que se incessante reiteração mas como "o mesmo que se transfor
esconde dentro de muitos outros eus - mais superficiais ou ma" (Gilroy, 1994): não o assim chamado "retorno às raízes",
mais artificialmente impostos - que um povo, com uma mas uma negociação com nossas "rotas". 2 Elas surgem da
história e uma ancestralidade partilhadas, mantém em co narrativização do eu, mas a natureza necessariamente fic
mum" (Hall, 1990). Ou seja, um eu coletivo capaz de esta cional desse processo não diminui, de forma alguma, sua
bilizar, fixar ou garantir o pertencimento cultural ou uma eficácia discursiva, material ou política, mesmo que a sen
"unidade" imutável que se sobrepõe a todas as outras dife sação de pertencimento, ou seja, a "suturação à história" por
renças - supostamente superficiais. Essa concepção aceita meio da qual as identidades surgem, esteja, em parte, no
que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, imaginário (assim como no simbólico) e, portanto, sempre,
na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fra em parte, construída na fantasia ou, ao menos, no interior
turadas; que elas não não são, nunca, singulares, mas mul de um campo fantasmático.
tiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e É precisamente porque as identidades são constn![das
posições que podem se cruzer ou ser antagônicos. As iden de"Iitro e nao fora do discurso ue nós precisamos com-
tidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando idas em locais histoncos
preen ê- as
constantemente em processo de mudança e transformação. cionais específicos, no interio · de forma ões e praticas
Precisamos vincular as discussões sobre identidade a iscursivas específicas, por estratégias e iniciativas especi
todos aqueles processos e práticas que têm perturbado o ficas. Além disso, elas emergem no interior do jogo de
caráter relativamente "estabelecido" de muitas populações modalidades específicas de poder e são, assim, mais o pro
e culturas: os processos de globalização, os quais, eu argu duto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo
mentaria, coincidem com a modernidade (Hall, 1996), e os de uma unidade idêntica, naturalmente constituída, de uma
processos de migração f�ada (ou "livre") que têm se to.r/ "identidade" em seu significado tradicional - isto é, uma
nãao um fenôn:!§Da g)aha) do �sim chamado mundo pós-co mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras,
� identidades parecem invocar uma origem que inteiriça, sem diferenciação interna.
residiria em um passado histórico com o qual elas continua-
108 109
A cima de tudo, e de forma diretamente contrária àquela e da ex clusão; e las
são o r esultad o não de uma totalidade
pela qual elas são constantemente invocadas, a�dades n aturalinevitáv el ou primordial,
mas de um processo natu
são construídas por meio da diferença e não fora dela . Isso ralizado, sobredetermina do, de "fe chamento" (Bhabha,
i mplica o reconhecimento radicalrrU;nte p erturbador de 1994; Hall, 1993).
que é apena s por meio da relação com o Outro, da ão S e as "identidades" só podem ser lidas a contrapelo, i sto
com aqui o que não é, com precisamente aquilo que falta,
é, não como aquilo que fixa o jogo da diferença em um ponto
com aqmlo que tem sido chamado de seu · có,;;,stitu-
de origem e estabilidade, mas como aquilo que é construído
. o, que o si nificado " ositivo" de · teimo.-· e,
na différance ou por meio dela, sendo consta ntemente de
assim, sua "identidade" - pode se r construído (Derrida,
1981; Lacl au, 1990; Butle r, 1993). � identidades podem sestabilizadas por aquilo que deixam de fora, como pode
funcionar, ao longo de toda a sua história, como pontos de mos, então, compreender seu signifi cado e como podemos
idenfifícaçao e apegÕ apenas or causa de su�apacidade
teorizar sua emergência ? Avtar Bra h (1992, p. 143), em seu
para exc uir, para eixar e fora ra transformar o diferente importante a rtigo "Difere nça, diversidade e diferenciação",
em ''. xter ior�- Toda identidade tem, à sua "ma r levanta uma série de importantes questõ es que esses novos
�
g�esso, a1go a mais. A unidade, a homogeneidade modos de conceber a identidade colocam:
interna, que o termo "identidade" assume como fundacional Apesar ele J.<ànon, é ainda necessário trabalhar muito sobre
não é uma forma n atural, mas uma fo1ma construída de a questão de como o "outro" racializado é constituído no
fechamento: toda identidade tem n ecessidade daquilo que domínio psíquico. Como se deve analisar a subj etividade
lhe "falta'' - mesmo que esse outro que lhe falta seja um pós-colonial em sua relação com o gênero e com a raça? O
privilegiamento ela "diferença sexual" e ela primeira infân
outro silenciado e inarticulado. Laclau (1990) argumenta, cia na psicanálise limita seu valor explicativo para a
de forma persuasiva, que "a consíituição de uma identidade
--- compr eensão elas dimensões psíquicas ele fenômenos
-------:--- -------.,......-
socíaléum ato de poder",
pois s uma identidad consegu
e e e se afirmar é apenas por
sociais tais como o racismo? D e que forma a "diferença
s exual" e a ordem social se articulam no processo d e
meio da repressão daquilo que a ameaça. D errida mos formação do suj eito? Em outras palavras, de que forma se
trou como a constituição de uma identidade está sempre deve teorizar o vínculo entre a realidade social e a realida
baseada no ato de excluir algo e de estabelecer uma de psíquica? (1992, p. 142)
violenta hierarquia entre os dois pólos resultantes - O que se segue é uma tentativa de começar a responder
homem/mulher etc. Aquilo que é peculiar ao segundo
termo é assim reduzido - em oposição à essencialidade
a este conjunto crítico mas perturbador de questõ es.
elo primeiro - à função de um acidente. Ocor re a m esma Em meus trabalhos recentes sobre este tópico, fiz uma
coisa com a relação n egro/branco, na qual o branco é, apropr iação do termo "identidade" que não é, certamente,
obviamente, equivalente a "ser humano". "Mulher" e
"negro" são, assim, "marcas" (isto é, termos marcados) em
partilhada por muitas pessoas e pode ser mal compreendida .
contraste com os termos não-marcados "homem" e "bran Utilizo o termo "identidade" para significar o ponto de en
co" (Laclau, 1990: p. 33). contro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os di scursos
e as práticas que tentam nos "i nterpelar", nos fala r ou nos
Assim, as "unidades" que as identidade s pro cl amam
convocar pa ra que assumamos nossos lugares como os su-
são, na verdade, construídas no interior do jogo do poder
llO lll
jeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os da ideologia na reprodução das relações sociais de produção
processos que produzem subjetividades, que nos constroem (marxismo) quanto a função simbólica da ideologia na cons
como sujeitos aos quais se pode "falar". As identidades são tituição do sujeito (empréstimo feito a Lacan). Michele
pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeit� Barret deu, recentemente, uma importante contribuição
que as práticas discursivas constroem para nós (Hall, 1995). para essa discussão, ao demonstrar a "natureza profunda
Elas são o resultado de uma bem-sucedida articulação ou mente dividida e contraditória do argumento que Althusser
"fixação" do sujeito ao fluxo do discurso - aquilo que Stephen estava desenvolvendo". Segundo ela, "havia, naquele en
Heath, em seu pioneiro ensaio sobre "sutura", chamou de saio, duas soluções separadas, relativamente ao difícil pro
"uma intersecção" (1981, p. 106). "Uma teoria da ideologia blema da ideologia, duas soluções que, desde então, têm
deve começar não pelo sujeito, mas por uma descrição dos sido atribuídas a dois diferentes pólos" (Barret, 1991, p. 96).
efeitos de sutura, por uma descrição da efetivação da junção Não obstante, mesmo que não tivesse sido bem-sucedido,
do sujeito às estruturas de significação". Isto é, as identida o ensaio sobre os aparelhos ideológicos de Estado assinalou
des são as posições que o sujeito é obrigado a assumir, um momento altamente importante dessa discussão. Jac
embora "sabendo" (aqui, a linguagem da filosofia da cons queline Rose, por exemplo, argumenta no seu livro Sexua
ciência acaba por nos trair), sempre, que elas são repre lity in thefield ofvision (1986) que "a questão da identidade
sentações, que a representação é sempre conshuída ao longo - a forma como ela é constituída e mantida - é, portanto, a
de uma "falta", ao longo de uma divisão, a paitir do lugar do questão central por meio da qual a psicanálise entra no
Outro e que, assim, elas não podem, nunca, ser ajustadas - campo político":
idênticas - aos processos de sujeito que são nelas investidos. Esta [a questão da identidade] é uma das razões pelas quais
Se uma suturação eficaz do sujeito a uma posição-de-sujeito a psicanálise lacaniana chegou - via o conceito de ideolo
gia de Althusser e por meio de duas trajetórias: a do fe
exige não apenas que o sujeito seja "convocado", mas que minismo e a da análise do cinema - à vida intelectual
o sujeito invista naquela posição, então a suturação tem que inglesa. O feminismo, porque a questão da forma como
ser pensada como uma articulação e não como um processo os indivíduos se reconhecem a si próprios como mascu
unilateral. Isso, por sua vez, coloca, com toda a força, a linos ou femininos e a exigência de que eles assim o
identificação, se não as identidades, na pauta teórica. façam parece estar em uma relação extremamente fun
damental com as estruturas de desigualdade e subordi
As referências ao termo que descreve o "chamamento" nação que o feminismo se propõe a mudar. O cinema,
do sujeito pelo discurso - "interpelação" - nos fazem lem porque sua força como um aparelho ideológico reside
brar que essa discussão tem uma pré-história importante e nos mecanismos de identificação e fantasia sexual dos
incompleta nos argumentos que foram provocados pelo quais todos nós parecemos participar, mas que, fora do
cinema, são admitidos, na maioria das vezes , apenas no
ensaio de �: "Os aparelhos ideológicos de Estado" divã [do psicanalista]. Se a ideologia é eficaz é porque ela
(1971). Esse ensaio introduziu o conceito de interpelação e age nos níveis mais rudimentares da identidade e dos
a idéia de que a ideologia tem uma estrutura especulai� impulsos psíquicos (Rose, 1986, p. 5).
numa tentativa de evitar o economicismo e o reducionismo
das teorias marxistas clássicas sobre a ideologia, reunindo Entretanto, se não quisermos ser acusados de abando
em um único quadro explicativo tanto a função materialista nar um reducionismo economicista para cair diretamente
112
113
mento3 (o sujeito é, assim a resentado como sendo a fonte
em um reducionismo psicanalítico, precisamos acrescentar dos si n · ·ca os os quais, na verdade ele é e·to .
que se a ideologia é eficaz é porque ela age tanto "nos níveis mterpelação nomeia o mecanismo dessa estrutura de falso
rudimentares da identidade e dos impulsos psíquicos" reconhecimento; nomeia, na verdade, o lugar do sujeito
quanto no nível da formação e das práticas discursivas que no discursivo e no ideológico - o ponto de sua correspon
dência (1981, p. 101-2).
constituem o campo social; e que é na articulação desses
campos mutuamente constitutivos, mas não idênticos, Essa "conespondência", entretanto, continuava inco
que se situam os problemas conceituais reais. O termo modamente não-resolvida. Embora continuasse a ser usado
"identidade" - que surge precisamente no ponto de in como uma forma geral de descrever o processo pelo qual o
tersecção entre eles - é, assim, o local da dificuldade. Vale sujeito é "chamado a ocupar seu lugar", o conceito de
a pena acrescentar que é improvável que consigamos, algum interpelação estava sujeito à famosa crítica de Hirst. A
dia, estabelecer esses dois constituintes [o psíquico e o interpelação dependia - argumentava Hirst - de um reco
social] como equivalentes - o próprio inconsciente age nhecimento no qual, na verdade, se exigia que o "sujeito",
como a barra ou como o corte entre eles, o que faz do antes que tivesse sido constituído como tal pelo discursÕ,
inconsciente "um local de diferimento ou adiamento perpé tivesse a capacidade de agir como um sujeito. "Esse algo
tuo da equivalência'' (Hall, 1995), mas não é por essa razão que amda não é um sujeito deve já ter as faculdades neces
que ele deve ser abandonado. sárias para realizar o reconhecimento que o constituirá
como um sujeito" (Hirst, 1979, p. 65). Este argumento
O ensaio de Heath (1981) nos faz lembrar que foi Michel
mostrou-se muito convincente a muitos dos leitores subse
Pêcheux quem tentou desenvolver uma teoria do discurso
qüentes de Althusser, levando, na verdade, todo o campo de
de acordo com a perspectiva althusseriana e quem, na
investigaçãÓ a uma interrupção inesperada.
verdade, registrou o fosso intransponível entre a primeira e
a segunda metades do ensaio de Althusser, assinalando a Essa crítica era certamente impressionante, mas a inter
"forte ausência de urna articulação conceitual entre a ideo rupção, nesse momento, de toda investigação, mostrou-se
logia e o inconsciente" (citado em Heath, 1981, p. 106). prematura. A crítica de Hirst foi importante, ao mostrar que
Pêcheux tentou "descrever o discurso em sua relação com todos os mecanismos que constituíam o sujeito pelo discur
os mecanismos pelos quais os sujeitos são posicionados" so, por meio de uma interpelação e por meio da estrutura
(Heath, 1981, p. 101-2), utilizando o conceito foucaultia�o especular do falso reconhecimento, descrita de acordo com
de formação discursiva, definida como aquilo que "dete� a fase lacaniana do espelho, corriam o risco de pressupor
n�o que pode e deve ser dito". Na interpretação que Heath um sujeito já constituído. Entretanto, uma vez que ninguém
faz do argumento de Pêcheux: tinha proposto renunciar à idéia do sujeito como sendo
Os indivíduos são constituídos corno sujeitos pela forma constituído no discurso, como um efeito do discurso, ainda
ção discursiva, processo de sujeição no qual [aproveitando era necessário mostrar por meio de qual mecanismo - e de
a idéia do caráter especular da constituição da subjetivi um mecanismo que não fosse vulnerável à acusação de
dade que Althusser tomou emprestada de Lacan] o indi pressupor aquilo que queria explicar - essa constituição
víduo é identificado como sujeito para a formação
podia ser efetuada. O problema ficava adiado, mas não
discursiva por meio de urna esbLitura de falso reconheci-
115
114
resolvido. Pelo menos algumas das dificuldades pareciam que o "falso reconhecimento" é um atributo puramente
surgir do fato de se aceitar sem muita discussão a proposição cognitivo (ou, pior ainda, "filosófico") significa expressar
um tanto sensacionalista de Lacan de que tudo que é cons um pressuposto sem qualquer fundamento. Além disso, é
titutivo do sujeito não apenas ocorrepor meio desse �eca- · pouco provável que ele apareça na criança de um só golpe,
nismo de resolução da crise ediplana, mas ocorre num caracterizando um momento claramente marcado por um
mesmo momento. A "resolução" da crise edipiana, na lin "antes" e por um "depois".
guagem extremamente condensada dos evangelistas laca Parece que os termos da questão foram, aqui, inexplica
niaríos, era idêntica - e o or �io de um mecanismo velmente, formulados de uma forma um tanto exagerada.
eqmva ente - à submissão à Lei do Pai, à conso 1 açao da Não precisamos atribuir ao "animalzinho" individual a pos
diferenç3: sexual, a entrada na linguagem, à formação do se de um aparato filosófico completo para explicar a razão
inconsc1en e e apos t usser ao recrutamento as ideolo pela qual ele pode ter a capacidade para fazer um "reconhe
gias pa narcais as sociedades ocidentais de capitalismo cimento falso" de si próprio no reflexo do olhar do outro,
tarmol A idéia mais complexa de um sujeito-em-processo que é tudo o de que precisamos para colocar em movimento
fiéava perdida nessas discutíveis condensações e nessas a passagem entre o Imaginário e o Simbólico, para utilizar
equivalências hipoteticamente alinhadas (será que o sujeito os termos de Lacan. Afinal, de acordo com Freud, para que
é racializado, nacionalizado ou constituído como um sujeito se possa estabelecer qualquer relação com um mundo ex
empreendedor e liberal tardio também nesse momento [de terno, a catexia básica das zonas de atividade corporal e o
resolução da crise edipiana]?). aparato da sensação, do prazer e dá dor devem estar já "em
O próprio Hirst parecia pressupor aquilo que Michele ação", mesmo que em uma forma embrionária. Existe, já,
Barrett chamou de "Lacan de Althusser". Entretanto, como uma relação com uma fonte de prazer (a relação com a Mãe
diz ele, "o complexo e arriscado processo de forn1ação de no Imaginário), de forma que deve existir já algo que é capaz
um adulto humano a partir de um 'animalzinho' não corres de "reconhecer" o que é prazer. O próprio Lacan observou,
ponde necessariamente ao processo descrito pelo mecanis em seu ensaio sobre o estágio do espelho, que "o filhote do
mo da ideologia de Althusser (... )amenos que a Criança(... ) homem, numa idade em que, por um curto es�po,
permaneça na fase do espelho lacaniana, ou a menos que mas ainda assim por algum tempo, e superado em inteli ên-
nós forremos o berço da criança com pressupostos antropo a instrum c 1mpanzé, já reco ece não obstante
lógicos" (Hirst, 1979). Sua resposta a isso é um tanto per-· êOmo-tal süa imagem no espelho".
functória. "Não tenho nenhum problema com as Crianças, Além disso, a crítica parece estar formulada em uma
e não quero declará-las cegas, surdas ou idiotas, simples lógica binária: "antes/depois", "ou isto ou aquilo". A fase do
mente para negar que elas possuem as capacidades de espelho não é o começo de algo, mas a interrupção - a perda,
sujeitos filosóficos, que elas têm os atributos de sujeitos a falta, a divisão- que inicia o processo que "funda" o sujeito
cognoscentes, independentemente de sua formação e trei sexualmente diferenciado (e o inconsciente) e isso depende
namento como sujeitos sociais". O que está em questão, não apenas da formação instantânea de alguma capacidade
aqui, é a capacidade de auto-reconhecimento. Mas afirmar cognitiva interna, mas da ruptura e do deslocamento efetua-
116 117
dos pela imagem que é refletida pelo olhar do Outro. Para problemática relação entre o "indivíduo" e o sujeito (o que
Lacan, entretanto, isso é já uma fantasia - a própria imagem "é" o "animalzinho" individual que ainda não é um sujeito?).
que localiza a criança divide sua identidade em duas. Além
Pode-se acrescentar que a explicação de Lacan é apenas
disso, esse momento só tem sentido em relação com a pre
uma dentre as muitas teorizações sobre a formação da
sença e o olhar confortadores da mãe, a qual garante sua
realidade para a criança. Peter Osborne (1995) observa que, subjetividade que levam em conta os processos psíquicos
em "O campo do Outro", Lacan (1977b) descreve "um dos inconscientes e a relação com o outro. Além disso, agora que
pais segurando a criança diante do espelho". A criança lança o "dilúvio lacaniano" de alguma forma retrocedeu e não
um olhar em direção à mãe, como que buscando confirma existe mais o forte impulso inicial naquela direção dado pelo
ção: "ao se agarrar à referência daquele ue o olha num texto de Althusse1� a discussão se apresenta de uma forma
espelh�r, nao seu ideal do eu, mas seu um tanto diferente. Em sua recente e interessante discussão
e�l" (p. 257 [242]). Esse argumento, sugere Osborne, sobre as origens hegelianas do conceito de "reconhecimen
"explora a indeterminação que é inerente à discrepância to" antes referido, Peter Osborne critica Lacan pela "forma
entre, por um lado, a temporalidade da caracterização-feita pela qual, ao abstraí-la do contexto de suas relações com os
por Lacan - do encontro da criança com sua imagem corpo outros (particularmente, com a mãe), ele absolutiza a relação
ral no espelho como um 'estágio' e, por outro, o caráter da criança com sua imagem", tornando essa relação, ao
pontual da apresentação desse encontro como uma cena, me�mo tempo, constitutiva da "matriz simbólica de onde
cujo ponto dramático está restrito às relações entre apenas emerge um eu primordial". Ele discute, a partir dessa
dois 'personagens': a criança e sua imagem corporal". En crítica, as possibilidades de diversas outras variantes (Kris
tretanto, como diz Osborne, das duas uma: ou isso repre teva, Jessica Benjamin, Laplanche), as quais não estão con
senta um acréscimo crítico ao argumento do "estágio do finadas ao falso e alienado reconhecimento do drama
espelho" (mas, nesse caso, por que o argumento não é lacaniano. Esses são indicadores úteis para nos tirar do
desenvolvido?) ou isso introduz uma lógica diferente cujas impasse no qual, sob os efeitos do "Lacan de Althusser", essa
implicações não são absolutamente discutidas no trabalho discussão nos tinha deixado, quando víamos as meadas do
subseqüente de Lacan. psíquico e do discursivo escorregar de nossas mãos.
A idéia de que não existe, ali, nada do sujeito, antes do Eu argumentaria que Foucault também aborda o impas
drama edipiano, constitui um� leitura exagerada de Lacan. se que nos foi deixado pela crítica que Hirst faz de Althusse1�
A afirmação de que a subJ�tividade não está plenamente mas a partir da direção oposta, por assim dizer. Atacando,
constituída até que a crise edipiana tenha sido "resolvida" de forma enérgica, o "grande mito da interioridade", e im
não supõe uma tela em branco, uma tabula rasa, ou uma pulsionado por sua crítica tanto do hurr{anismo quanto da
concepção do tipo "antes e depois do sujeito", desencadeada filosofia da consciência e por sua leitura negativa da psica
por alguma espécie de coup de théâtre, mesmo que - como nálise, Foucault também efetua uma radical historicização
Hirst corretamente observou - isso deixe sem solução a �catégoria de sujeito. O sujeito é produzido como um
c...
ef�discurso e no discurso, no interior de formações
118
{r-�119
discursivas es ecíficas, não tendo qualquer existência pró formação regulativa e regulada, a entrada no qual é "deter
p� Não existe tampouco nenhuma continuidade de uma minada pelas (e constitutiva das) relações de poder que
posição-de-sujeito para outra ou qualquer identidade trans permeiam o domínio social" (McNay, 1994, p. 87), trazem a
cendental entre uma posição e outra. Na perspectiva de seu concepção que Foucault tem da formação discursiva para
trabalho "arqueológico" (A história da loucura, O nascimen mais perto de algumas das clássicas questões que Althusser
to da clínica, As palavras e as coisas, A arqueologia do saber), tentou discutir por meio do conceito de "ideologia" - sem,
os discursos constroem - por meio de suas regras de forma obviamente, seu reducionismo de classe, suas conotações
ção e de suas "modalidades de enunciação" - posições-de-su economicistas e seus vínculos com asserções de verdade.
jeito. Por mais convincentes e originais que sejam esses Persistem, entretanto, na área da teorização sobre o
trabalhos, a crítica que lhes é feita parece, a esse respeito, sujeito e a identidade, certos problemas. Uma das implica
justificada. Eles dão uma descrição formal da construção de ções das novas concepções de poder desenvolvidas no tra
posições-de-sujeito no interior do discurso, revelando mui balho de Foucault é a radical "desconstrução" do corpo - o
to pouco, em troca, sobreas razõespelas quais os indivíduo� último resíduo ou local de refúgio do "Homem" - e sua
ocupam certas posições-de-sujeito e não outras_ "reconsh·ução" em termos de formações históricas, genea
Ao deixar de analisar como as posições sociais dos indi lógicas e discursivas. O · o é construído e
víduos interagem com a conshução de ceitas posições-de-su re�ldado pela intersecção de uma variedade de práticas
jeito discursivas "vazias", Foucault introduz uma anti discursivas disciplinares. A tarefa da genealogia, procl;;;
nomia entre as posições-de-sujeito e os indivíduos que as F�lt, "é a de expor o corpo totalmente marcado pela
....,.
ocupam. Sua arqueologia dá, assim, uma descrição formal história, bem como a história que anuína o corpo (1984, p.
crítica, mas unidimensional, do sujeito do discurso. As po 6 . Em ora possames-aceita esse argumenío, com todas
sições-de-sujeito discursivas tornam-se categorias a priori, as suas implicações radicalmente "construcionistas" (o cor
as quais os indivíduos parecem ocupar de forma não-pro po torna-se infinitamente maleável e contingente), não es
blemática (McNay, 1994, p. 76-7). tou certo de que possamos ou devamos ir tão longe a ponto
de declarar como Foucault que "nada no homem- nem mes
A importante mudança no trabalho de Foucault, de um
método arqueológico para um método genealógico, contri �u co�ic�teme�stável para servirde base
J2.__ara o auto-reconhecimento on para a comp.mensão de
buiu muitíssimo para tornar mais concreto o "formalismo" outros homens". Isso não porque a carpa se constitua em
um tanto "vazio" dos trabalhos iniciais. Em especial, o uin referente realmente estável e verdadeiro para o processo
poder, que estava ausente da descrição mais formalista do de autocompreensão, mas porque, embora possa se tratar
discurso, é agora introduzido, ocupando uma posição cen de um "falso reconhecimento", é precisamente sob essa
tral. São importantes, igualmente, as estimulantes possibi -=
formaque o corpo tem Juncionació como o significante da>
lidades abertas pela discussão que Foucault faz do duplo condensação das subjetividades no indivíduo e essa função -
caráter - sujeição/subjetivação (assujettisement) - do pro nãÕpode ser descartada apenas porque, como Foucault tãÜ
cesso de formação do sujeito. Além disso, a centralidade da
eem mostra, ela não é "verdadeira".
questão do poder e a idéia de que o próprio discurso é uma
120 121
Além disso, o meu próprio sentimento é o de que, apesar questionar a concepção do próprio Foucault de que os
das afirmações em contrário de Foucault, sua invocação do sujeitos assim construídos são "corpos dóceis" e todas as
corpo como o ponto de aplicação de uma variedade de prá implicações que isso acarreta. Não há nenhuma teorização
ticas disciplinares tende a emprestar à sua teoria da regula sobre as razões pelas quais os corpos deveriam, sempre e
ção disciplinar uma espécie de "concretude deslocada ou incessantemente, estar a postos, na hora exata- exatamente
mal colocada", uma materialidade residual, a qual acaba, o ponto do qual a teoria marxista clássica da ideologia co
dessa forma, por agir discursivamente para "resolver" ou meçou a se desembaraçar e a própria dificuldade que Al
aparentar resolver a relação, indeterminada, entre o sujeito, thusser reintroduziu quando ele, normativamente, definiu
o indivíduo e o corpo. Para dizê-lo de forma direta, essa a função da ideologia como sendo a de "reproduzir as
"materialidade" junta, por meio de uma costura, ou de uma relações sociais de produção".
"sutura'', aquelas coisas que a teoria da produção discursiva Além disso, não há nenhuma teorização sobre os meca
de sujeitos, se levada a seus extremos, fraturaria e dispersa nismos psíquicos ou os processos interiores que podem
ria de forma irremediável. Penso que "o corpo" adquiriu, na fazer com que essas "interpelações" automáticas sejam pro
investigação pós-foucaultiana, um valor totêmico, precisa duzidas ou, de forma mais importante, que podem fazer com
mente por causa dessa posição quase mágica. É praticamen que elas fracassem ou encontrem resistência ou sejam ne
te o único traço que resta, no trabalho de Foucault, de um gociadas. Mesmo considerando o trabalho de Foucault, sem
"significante transcendental". dúvida, como estimulante e produtivo, podemos dizer que,
A crítica mais séria tem a vei� entretanto, com o proble nesse caso, ele "pula, muito facilmente, de uma descrição
ma que Foucault encontra ao teorizar a resistência na teoria do poder disciplinar como uma tendência das modernas
do poder desênvolvida em Vigiar e punir e em A história da formas de controle social para uma formulação do poder
sexualidade. Tem a ver também com a concepção do sujeito disciplinar como uma força monolítica plenamente instala
inteiramente autopoliciado emer e das odalidades da- uma força que satura todas as relações sociais. Isso leva
disciplinares, con essionais e pastorais de poder discutidas a uma superestimação da eficácia do poder disciplinar e a
ne --rr:-abalhos, bemcomõcom a ausênc' ual uer uma compreensão empobrecida do indivíduo, o que impede
c�ração o re Q..que poderia, de algmntlorma, int� �e possa explicar as experiências que escapam ao terre-
"' -
romper, im edir ou erturbar a · "ila ·nser ão dos indi no do 'corpo dócil (McNay, 1994, p. 104).
ví uos nas posições-d�uieito construídas por esses dis Que isso se tornou óbvio para Foucault torna-se eviden
cursos. Conceber o cor129 como submetido, por meio d� te na nítida e nova mudança em seu trabalho, representada
�a regimes de verdade n�·malizadores, �a ma pelos últimos (e incompletos) volumes da assim chamada
neira produtiva de se repensar a assim chamada "materiali "História da sexualidade" (O uso dos prazeres, 1987; O
dade" do corpo - uma tarefa ue tem sido rodutivamente cuidado de si, 1988, e, tanto quanto podemos deduzü� o
assumi a por i olas Rose e pela "escola da governamen volume inédito e importantíssimo - do ponto de vista da
talidade", bem como, de uma forma diferente, por Judith crítica que acabamos de revisar - sobre ''.As perversões").
Butler, em "/}adies that rnatter, 1993. Mas é difícil deixar de Pois, aqui, sem se afastar muito de seu inspirado trabalho
123
/
sobre o caráter produtivo do processo de regulação norma de verdade, do trabalho ético, dos regimes de auto-regula
tiva (nenhum sujeito fora da Lei, como expressa Judith ção e automodelação e das "tecnologias do eu" envolvidas
Butler), ele tacitamente reconhece que não é suficiente que na constituição do sujeito desejante. Não existe, aqui, cer
a Lei convoque, discipline, produza e regule, mas que deve tamente, nenhuma conversão, por parte de Foucault, que
haver também a correspondente produção de uma resposta re-instaure qualquer idéia de "agência", de intenção ou de
- e, portanto, a capacidade e o aparato da subjetividade - volição. Mas há, aqui.,_ sim, uma consideração das práticas
por parte do sujeito. Em sua introdução crítica ao livro O de libe ue odem impedir que esse sujeito se torne,
uso dos prazeres, Foucault faz uma lista daquelas coisas que, para sem re sim lesmente um cor o se
nesse momento, poderíamos esperar de seu trabalho ("a Há a produção do eu como um objeto do mundo, as
correlação entre campos de saber, tipos de normatividade e práticas de autoconstituição, o reconhecimento e a reflexão,
formas de subjetividade", em uma cultura particular), mas a relação com a regra, juntamente com a atenção escrupu
agora criticamente acrescenta losa à regulação normativa e com os constrangimentos das
as práticas pelas quais os indivíduos foram levados a pres regras sem os quais nenhuma "subjetivação" é produzida.
tar atenção a eles próprios, a se decifnu; a se reconhecer e Trata-se de um avanço importante, uma vez que, sem es
se confessar como sujeitos de desejo, estabelecendo de si
para consigo uma certa relação que lhes permite descobrir, quecer a existência da força objetivamente disciplinar, Fou
no desejo, a verdade de seu ser, seja ele natural ou decaído. cault acena, pela primeira vez em sua grande obra, à
Em suma, a idéia era a de pesquisar, nessa genealogia, de existência de alguma paisagem interior do sujeito, de alguns
que maneira os indivíduos foram levados a exercei; sobre mecanismos interiores de assentimento à regra, o que livra
eles mesmos e sobre os outros, uma hermenêutica do essa teoriza ão do "behaviorismo" e do objetivismo que
desejo (foucault, 1987, p. 5 [11]).
ameaçam certas...partes e igiar e punir. A etica e as práticas
Foucault descreve isso - corretamente, em nossa opi do eu são, muitas vezes, mais plenamente desclitas por Fou
nião - como uma "terceira mudança, uma mudança que cault, nas suas últimas obras, como uma "estética da existência",
permitiria analisar aquilo que se chama de "o sujeito". Pa como uma estilização deliberada da vida cotidiana. Além disso,
receu-lhe necessário examinar quais são as formas e as as tecnologias aí envolvidas aparecem mais sob a forma de
modalidades da relação com o eu pelas quais o indivíduo se práticas de autoprodução, de modos específicos de conduta,
constitui e se reconhece qua sujeito. Foucault, obviamente, constituindo aquilo que aprendemos a reconhecer, em in
não faria realmente uma coisa tão vulgar como a de invocar vestigações posteriores, como a de Judith.}3utler, por exem
o termo "identidade", mas com a "relação com o eu" e a plo, como uma espécie de pe1formativiclade.
constituição e o reconhecimento de "si mesmo" qua sujeito,
O que vemos aqui, pois, na minha opinião, é Foucault
estamos nos aproximando, penso eu, daquele território que,
sendo pressionado, pelo escrupuloso rigor de seu próprio
nos termos anteriormente estabelecidos, pertence, legiti
pensamento e por meio de uma série de mudanças concei
mamente, à problemática da identidade.
tuais, efetuadas em diferentes fases de seu trabalho, a se
Este não é o hrgar para explorar os muitos e produtivos mover em direção ao reconhecimento ,de !J_11e uma vez aue
insights que surgem da análise que Foucault faz dos jogos o descentramento do sujeito não significa a destruiçãod;
124 125
j� I I�
_p _,l-.yl/� 1
,,
-2,ujeito e uma vez quê_2 "centramento" na-E_:áqca discursiva ����-�
é impedido, obviamente, de recorrer a uma das pnnc1pa1s
. -=--��d_e funcionar sem a constituição de sujeitos -=-é
fontes de pensamento sobre esse negligenciado aspecto, isto
neces ·10 c mentar a teorizaçao a regu ação iscur é, a psicanálise; ele é impedido, pela sua própria crítica, de
siv disci inar com uma teorização as práticas de auto
ir naquela direção, já que ele via a psicanálise como sendo
constitu� subjetiva. Nunca foi su iciente- em arx, em
simplesmente mais uma rede de relações disciplinares de
Althusse1� em Foucault - ter simplesmente uma teoria de
po der. O que ele produz, em vez disso, é um.d,_enomenologia
como os indivíduos são convocados a ocupar seus lugares
d�o (voltando, assim, talvez, a fontes e In
por meio de estruturas discursivas. Foi, sempre, necessário
fluências iniciais, cuja influência sobre seu trabalho ele
ter também uma teorização de como os sujeitos são consti próprio, de alguma forma, subestimou) e uma genealogia
tuídos. Em seus últimos trabalhos, Foucault fez um avanço
das tecnologi(J,S do eu. Mas trata-se de uma fenomenologia
considerável, ao mostrar como isso se dá, em conexão com
que cone o risco de ser atropelada por uma ênfase exagera
práticas discursivas historicamente específicas, com a auto
da na intencionalida de - precisamente porque ela não pode
regulação normativa e com tecnologias do eu . A questão que
admitir o inconsciente. Para o bem ou para o mal, aquela
fica é se nós também precisamos, por assim dizei� diminuir
porta já estava, para ele, fechada.
o fosso entre os dois domínios, isto é, se precisamos de uma
teoria que descreva quais são os mecanismos pelos quais os Felizmente, ela não permaneceu fechada. Em Gender
indivíduos considerados como sujeitos se identificam (ou trouble (1990) e, mais especialmente, em Bodies that matter
não se identificam) com as "posições" para as quais são (1993), Judith Butler analisa, por meio de sua preocupação
convocados; que descreva de que fonna eles moldam, esti com "os limites discursivos do sexo" e com as políticas do
lizam, produzem e "exercem" essas posições; que explique feminismo, as complexas transações entre o sujeito, o corpo
por que eles não o fazem completamente, de uma só vez e e a identidade, ao reunü� em um único quadro analítico,
por to do o tempo, e por que alguns nunca o fazem, ou estão concepções foucaultianas e perspectivas psicanalíticas.
em um processo constante, agonística, de luta com as regras Adotando a posição de que o sujeito é discursivamente
·,,
normativas ou regulativas com as quais se confrontam e construído e de que não existe qualquer sujeito antes ou fora j
pelas quais regulam a si mesmos - fazendo-lhes resistência, · da Lei, Butler desenvolve o argumento de que
negocian do-as ou acomodando-as. Em suma, o que fica é a a categoria do "sexo" é, desde o início, normativa: ela é
exigência de se pensar essa relação do sujeito com as forma aquilo que Foucault chamou de "ideal regulatório". Nesse
sentido, pois, o sexo não apenas funciona como uma norma,
ções discursivas como uma articulação (todas as articulações
mas é pa1te de uma prática regulató1ia que produz os corpos
são, mais apropriadamente, relações "sem qualquer corres que governa, isto é, toda força regulató1ia manifesta-se com
pondência necessária", isto é, fundadas naquela contingên uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir -
cia que "reativa o histórico" [Laclau, 1990, p. 35]). . demarcar, circulai; diferenciar - os corpos que controla. O
w'-"sexo" é um construto ideal que é forçosamente materia
É, portanto, ainda mais fascinante observar que, quando lizado através do tempo (Butler, 1993, p. 1[153-4]).
Foucault, finalmente, não dá o passo decisivo nessa direção
(no trabalho que foi, então, tragicamente interrompido), ele A materialização é, aqui, repensada como um efeito de
poder. A visão de que o sujeito é pro duzido no curso de sua
126
127
,,,
materialização está fortemente fundamentada em uma teo A relevância do argumento de Butler é ainda mais
ria performativa da linguagem e do sujeito, mas a performa pertinente, entretanto, porque é desenvolvido no contexto
tividade é despojada de suas associações com a volição, com da discussão sobre o gênero e a sexualidade, feita no quadro
a escolha e com a intencionalidade, sendo relida (contra teórico do feminismo, remetendo, assim, diretamente, tanto
às questões sobre identidade e sobre política de identidade
��umas das interpretações equivocadas de Gendertrouble)
nao como o ato pelo qual um sujeito traz à existência aquilo quanto às questões sobre a função paradigmática da dife
que ela ou ele nomeia, mas, ao invés disso, como aquele rença sexual relativamente aos outros eixos de exclusão ' tal
poder reiterativo do discurso para produzir os fenômenos como ressaltado no trabalho de Avtar Brah, anteriormente
que ele regula e constrange" (Butle1� 1993, p. 2 [155]). mencionado. Butler apresenta, aqui, o convincente argµ
m�nto de que todas as identidades füncionam por meio da
A mudança decisiva, do ponto de vista do argumento exclusão, or meio da construção discursiva de um exterior
aqui desenvolvido, é, entretanto, a ligação que Butler faz do constitutivo e da produção e sujeitos abjetos e margina i
ato de '"assumir' um sexo com a questão da identificação e zados, aparentemente fora do campo do simbólico, do re
com os meios discursivos pelos quais o imperativo heteros present�el ("a produção de um 'exterior', de um domínio
sexual possibilita certas identificações sexuadas e impede de efeitos inteligíveis" [1993, p. 22]), o qual retorna, então,
ou nega outras identificações" (Butler, 1993, p. 5 [155]). Esse
para complicar e desestabilizar aquelas foraclusões que nós,
centramento da questão da identificação, juntamente com
prematuramente, chamamos de "identidades". Ela formula
a problemática do sujeito que "assume um sexo", abre, no
esse argumento, de forma eficaz, em relação à sexualização
trabalho de Butle1� um diálogo crítico e reflexivo entre Fou
e à racialização do sujeito - um argumento que precisa ser
cault e a psicanálise que é extremamente produtivo. É
desenvolvido, para que a constituição dos sujeitos por meio
verdade que Butler não fornece, em seu texto, um meta-ar
dos efeitos regulatórios do discurso racial adquira a impor
gumento teórico plenamente desenvolvido que descreva
tância até aqui reservada para o gênero e a sexualidade
como as duas perspectivas, ou a relação entre o discursivo
(embora, obviamente, seu exemplo mais trabalhado seja o
e o psíquico, devem ser "pensadas" de forma conjunta, além
de uma sugestiva indicação: "Pode haver uma forma de da produção dessas formas de abjeção sexual geralmente
sujeitar a psicanálise a uma reelaboração foucaultiana, mes "normalizadas" como patológicas ou perversas).
m� que o próprio Foucault tenha recusado essa possibilida-� Como observou James Souter (1995), "a crítica interna
,
de--:-De guãlguer forma, que Butler faz da política de identidade feminista e de suas
este texto aceita como ponto de partida a idéia de Foucault premissas fundacionais questiona a adequação de uma po
de que o poder regulatório produz os sujeitos que controla, lítica representacional cuja base é a universalidade e a
que o poder não é simplesmente imposto externamente, unidade presumíveis de seu sujeito - a categoria unificada
mas que funciona como o meio regulatório e normativo "'
sob o rótulo de 'mulheres . Paradoxalmente, tal como ocor
pelo qual os sujeitos são formados. O retorno à psicanálise
é orientado, pois, pela questão de como certas norn1as re com todas as outras identidades, quando são tratadas,
regulatórias formam um sujeito "sexuado", sob condições politicamente, de uma maneira fundacional, essa identida
que tornam impossível se distinguir entre a formação de "está baseada na exclusão das mulheres 'diferentes' e no
psíquica e a fonnação corporal (1993, p. 23).
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privilegiamento normativo das relaç��s hete �·os�e xua!s sí uico e do discursivo em sua constituição, forem plen
, , a
como a base de uma política feminista . Essa umdade , e inequivocamente recon
argumenta Souter, é uma "unidade fictícia", produzida _e
constrangida pelas mesmas estruturas de poder por me10
das quais a emancipação é buscada". Signifi�ativa�ente, Notas
l. 'i\gência" é, aqui, a tradução do termo "agency",
entretanto, como Souter também argumenta, isso nao leva literatura de teoria social anglo-saxônica para designar
amplamente utilizado na
Butler a argumentar que todas as noções de identid�de o elemento ativo da ação
individual. Ver Tomaz Tadeu da Silva. Teoria cultural
e educação. Um vocabu
deveriam, portanto, ser abandonadas, por serem teorica lário crítico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000 (N. do
T.).
mente falhas. Na verdade, ela aceita a estrutura especular 2. Jogo de palavras, intraduzível, entre "roots" (raízes
) e "routes" (rotas, cami
da identificação como sendo uma parte de seu argumento. nhos) (N. do T.).
Mas ela reconhece que um tal argumento sugere, de fato, 3. Em inglês, "rnisrecognition", equivalente ao francê
s "méconnaissance", tra
"os limites necessários da política de identidade": duzidos, ambos, em geral, na literatura psicanalítica,
por "desconhecimento".
Por considerar que o pmtuguês "desconhecimento"
não expressa a idéia de
Neste sentido, as identificações pertencem ao imaginário; "conhecimento" ou "reconhecimento" ilusório ou falso
que está contida na
elas são esforços fantasmáticos de alinhamento, de lealda palavra inglesa e na francesa, preferi traduzir por "falso
reconhecimento".
de, de coabitações ambíguas e intercorporais. El:,ts ?�ses
tabilizam o eu; elas são a sedimentação do nos na
constituição de qualquer eu; elas constituem a :strutura Referências bibliográficas
ção presente da alteridade, contida na formulaçao mesma ALTHUSSER, L. Lenin and Phílosophy and Other Essays. Lon
do eu. As identificações não são, nunca, plenam�n�e e
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finalmente feitas; elas são incessantemente reconshtmdas
e como tal estão sujeitas à lógica volátil da iterabilidade. BARRETI, M. The Politícs ofTruth. Cambridge:
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Elas sã ; uilo que é constantemente arre imentad�, BHABHA, H. The Other Question, The Locatíon
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consolidado, re uz1 o, contesta o e, ocasionalmente, obn Londres: Routledge, 1994.
ga�apitular (1993, p. 105).
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é constituído discursivamente - por meio do ideal normati
BROWN, B. & COUSINS, M. The linguistic fault, Econorny and
vo regulatório de um "eurocentrismo compulsivo" (por falta Society, 9(3), 1980.
de uma outra palavra) - não pode ser simplesmente en_xer
BUTLER, J. Gender Trouble. Londres: Routledge, 1990.
tado nos argumentos brevemente esquematizados acima.
Mas eles têm recebido um enorme e original impulso desse -. Bodies That Matter. Londres: Routledge, 1993 (o capítulo
enredado e inconcluso argumento, que demonstra, sem introdutó1io deste livro foi publicado, em po1tuguês, em Guacira
qual uer · de dúvida, que a questão e a teo�·izaç�� da Lopes Louro(org.). O corpo educado. Pedagogiasdasexualídade.
� Belo Hmizonte: Autêntica, 1999: p. 151-172, com o tfü1lo "Cor
identidade é um tema de consi erável importancia pobhca
pos que pesam: sobre os limites discursivos do 'sexo ).
"'
que só po era avançar quan o tanto a necessida e quan:º
a "impossibilidade" da identidade�suturaçao DERRIDA, J. Posítions, Chicago: University of Chicago Press, 1981.
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