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A família morreu.

Viva a família!
O irreversível falhanço da família nuclear está a dar lugar
a novas formas de coabitação. Bem-vindos à família alargada,
onde nem todos os laços são biológicos. Por David Brooks

A Revista do Expresso

+
EDIÇÃO 2476
10/ABRIL/2020

Entrevista
Javier Cercas,
o escritor catalão
que sabe dizer não
Por Luciana
Leiderfarb,
em Barcelona

© Todos os direitos reservados. A cópia ou distribuição não autorizada é proibida. Ficheiro gerado para o utilizador 1724617 - homero.f.figueiredo@gmail.com - 172.17.21.101 (09-04-20 23:35)
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PLUMA CAPRICHOSA

RAPARIGA BONITINHA PRECISA-SE

T
AS MULHERES NÃO ESTÃO APENAS EM MINORIA EM TODAS AS REPRESENTAÇÕES, AS MULHERES SÃO UMA ÍNFIMA PARTE DO
ESPAÇO PÚBLICO E SÃO USADAS PARA ILUSTRAÇÃO DE TRÊS COISAS: FAMÍLIA, TRABALHO CONSIDERADO FEMININO E LIMPEZA
pai e filha. A fotografia da possível abertura das Papers”, que o Expresso e o Consórcio Internacional
escolas? Um grupo de rapazes. de Jornalistas publicaram, ela revela uma “paixão
Entretanto, esta semana morreu uma Bond girl, filantrópica” pelos lusitanos e pelo torrão nacional,
Pussy Galore, com quase 100 anos, e teve destaque onde tem investimentos. Tal como a Fosun, do Partido
nas respetivas homepages, porque Pussy Galore é Comunista Chinês, que também doou material médico
um protótipo feminino velho como o mundo. A aos portugueses. Ming, figura nebulosa, recorda-me
Bond girl, bonitinha e inútil. Mesmo que nada disto dois aforismos. O primeiro: a cavalo dado não se olha o
se aplique hoje à nossa sociedade, a Pussy teve mais dente, com um ponto de interrogação. O segundo: não
fotos do que a presidente da Comissão Europeia, há almoços grátis.
Ursula von der Leyen. Tal como Isabel dos Santos, que por aí continua
Vamos ao “Diário de Notícias”. Conto 45 fotos de nos rodapés, figuras femininas como as de Ming
homens, incluindo publicidade, e 23 de mulheres, Hsu ou outras, e há muitas, atraem leitores, mas
incluindo uma promoção à Portugal Mobi Summit, este tipo de notícias, reportagens ou investigações
que usa mulheres profissionais como ilustração. são minoritárias. O grosso do que é produzido nos
Para ilustrar a defesa das mulheres da limpeza do media, e não apenas portugueses, é supervisionado
erça-feira, 7 de abril de 2020, 13h. Luxemburgo lá vem uma mulher de vassoura. E no por homens para ser consumido por homens, visto e
Abro a homepage de quatro jornais, o “Público”, fabrico de máscaras lá está a máquina de costura. lido por homens. Boys will be boys. O preconceito está
o “Diário de Notícias”, o “Observador” e o meu Na opinião, o “DN” dá voz a várias especialistas de tão arreigado que nem as mulheres o notam. Sempre
jornal, o Expresso. Todos os dias faço este exercício, circunstância, incluindo uma que ensina a sobreviver que é necessário produzir uma opinião de potestade,
para ver se me engano. Conto as fotografias aos filhos. Numa rubrica, uma mulher aparece o homem é convocado. A mulher é relegada para a
publicadas dos homens e das mulheres, incluindo agarrada ao telemóvel com o título “Esta não é a opinião de nicho, moda e design, cozinhados (mas não
as de publicidade ou promoção, as colunas de altura de mandar mensagens ao ex”. O lugar-comum de chefe, categoria superior), família, filhos, crianças,
opinião, as notícias nacionais e internacionais. da ex-namorada histérica e que não larga o osso, cuidados, limpezas. Nessa disciplina essencial que
Corro tudo. Corro a homepage até ao fim e faço assediando ex-namorados. é a economia, ou a gestão do dinheiro e da banca,
a contagem. Excluo as fotografias de grupo Num momento histórico em que o abuso e a as mulheres foram relegadas para o secretariado e a
confusas e os conjuntos de futebolistas, mas não violência doméstica estão a aumentar devido ao máquina de café. Olhe-se para a composição do Banco
as repetições, porque as repetições ajudam a confinamento, não há sobre isto muitas linhas nos de Portugal ou dos conselhos de administração das
compreender o fenómeno da omnipresença. As jornais portugueses, ao contrário do que fez “The empresas. Quando Cláudia Azevedo, filha de Belmiro
mulheres não estão apenas em minoria em todas as Guardian”. Em compensação, a notícia da série de de Azevedo, sucedeu ao irmão, Paulo Azevedo, como
representações, as mulheres são uma ínfima parte televisão “A Espia” tem no “Público” a melhor foto de CEO da Sonae, as ações desceram, num sinal de
do espaço público e são usadas para ilustração mulheres, uma rapariga bonita e fresca. Os homens desconfiança, entretanto recuperando. Apesar de
de três coisas básicas: família ou casal, trabalho velhos aparecem em todo o lado. As mulheres velhas tudo, o Governo de António Costa é mais ou menos
considerado feminino, como coser ou cuidar dos raramente são vistas em página. Falta de fotogenia. representativo do “eterno feminino”, mas o PSD de
filhos, e limpeza. As exceções são Lagarde, que aperta os cordões da Rui Rio é um imenso patriarcado.
Vamos ao dia em que escrevo, terça-feira, 13h. bolsa, e Merkel, pela mesma razão. De Jane Austen para cá, parece às vezes que nada
No “Público”, um jornal com fama de feminista, No “Observador”, temos 50 fotos de homens, com mudou. E nem falo da discriminação salarial. As
conto 39 fotos de homens, onde se incluem chefes repetições, e Cristiano Ronaldo, António Costa e mulheres são quem mais consome informação e
políticos, e quatro, 4, fotografias de mulheres. Marcelo Rebelo de Sousa são os reis da repetição cultura, quem compra mais livros e quem mais lê. E
Mesmo as ilustrações de notícias covid, as prisões, em todos os jornais, e 14 fotos de mulheres, com votam. Façam as contas. b
a quarentena, quem morre no hospital, fotografias algumas repetições. Lá anda por entre as notícias a
genéricas incluem mais homens do que mulheres, nossa Pussy Galore. Um anúncio da Cofidis, “Conta
e temos também o homem mais velho do mundo. Connosco”, tem um homem por ilustração, porque
Haverá uma mulher? sabemos que pedir dinheiro emprestado, tal como
A app da empresa Idealista, publicidade, tem comprar casas, é privilégio masculino. Na opinião do
como ilustração um homem, género normalmente “Observador”, as mulheres são clara minoria. Em
escolhido pela publicidade para tudo o que não compensação, a opinião masculina abunda e orneia,
seja detergente ou cosmética. As fotografias de como diria o Eça ao Camilo.
banqueiros? Homens. De autarcas? Homens. Até a No Expresso, conto, às 13h06, 44 fotografias de
ilustração de uma rua de Londres traz um homem homens e 19 de mulheres, incluindo um torso
numa trotinete. A opinião masculina tem um feminino a ilustrar uma notícia. O destaque feminino / CLARA
destaque fotográfico que a opinião feminina muitas
vezes não merece. Tenho vindo a investigar estas
vai para uma interessantíssima peça sobre Ming Hsu,
a milionária chinesa que doou quase cinco milhões
FERREIRA
discriminações há muitos meses, desde antes da de euros de material médico a Portugal. Este perfil ALVES
covid, sei do que falo. Nos conteúdos comerciais, estava em primeiro lugar nos mais lidos, o que
as mulheres são largamente postas de lado, exceto demonstra que as boas peças sobre mulheres
na venda de carne a peso, caso das raparigas que poderosas são lidas. Mas Ming não é apenas
entretêm o olhar masculino ou de celebridades. uma mulher poderosa, é apresentável e
Uma ilustração de sem-abrigo traz um homem, e sobretudo, a avaliar, muitíssimo generosa.
um abraço plastificado, covid recomenda, é entre Apesar de Ming constar dos “Paradise

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SUMÁRIO
EDIÇÃO 2476 | 10/ABRIL/2020

ALEXEI DRUZHININ/KREMLIN POOL/SPUTNIK/EPA


fisga +E Culturas Vícios
7 | Poluição
A pandemia da covid-19
fez maravilhas pelo
ambiente a curto prazo
10 | Diário da Peste
22 | Família
O confinamento
social trouxe de novo
a família para o centro
das nossas vidas
57 | Paixão de Cristo
Os museus estão fechados
e até as missas foram
canceladas. Mas ainda
há maneira de ver como
a arte portuguesa
75 | Nova vida para os jogos
A proliferação de soluções
online abre novas
possibilidades para
os jogos de tabuleiro
40
Vladimir Putin
Após 20 anos de poder,
Edição semanal 34 | Ensino representou a Páscoa 78 | Receita
das crónicas publicadas A pandemia fez com que Por João Rodrigues já é o novo ‘czar’
no Expresso online as escolas fechassem 60 | Livros da Rússia, o herdeiro
Por Gonçalo M. Tavares e mergulhassem no oceano “Sobre o Autoritarismo 79 | Vinhos
Por João Paulo Martins
de imperadores russos
digital. E uma nova telescola, Brasileiro”, de Lilia
12 | O Que Eu Andei trazida para o século XXI, Moritz Schwarcz
e líderes soviéticos.
para Aqui Chegar está para surgir 80 | Entregas ao Domicílio E agora prepara
Ming Chu Hsu 64 | Televisão De “Boa Cama Boa Mesa”
a perpetuação
46 | Margaret Atwood “Killing Eve”, o regresso
13 | Déjà Vu Como é que o mundo da série britânica 82 | Design na liderança
O discurso da Rainha inteiro se desmoronou à HBO Portugal Por Guta Moura Guedes
Por Bruno Vieira Amaral tão depressa? A escritora
68 | Música 83 | Moda
canadiana deve ter feito Por Gabriela Pinheiro
14 | Planetário esta pergunta, inventando ’Murder Most Foul’,
Estreias em casa de seis de Bob Dylan
filmes e um festival
mundos que já não nos 85 | Passatempos
parecem ser distopias
Por Nuno Galopim 72 | Teatro & Dança FICHA
50 | Javier Cercas “Mundo Novo”, TÉCNICA
16 | Passeio Público “Vivemos numa ditadura de Carlos J. Pessoa
40 Minutos com... do presente”, garante Diretor
Deborah Harris nesta entrevista o escritor 73 | Exposições João Vieira Pereira
espanhol, que ousa dizer “Instructions for Life Among Diretor-Adjunto
18 | Pimenta na Língua Invisible Barriers”, na Galeria Miguel Cadete
+ Batata Quente não, mesmo que isso
não o salve Madragoa, em Lisboa mcadete@impresa.pt
Diretor de Arte
Marco Grieco
Editor
Jorge Araújo
jmsaraujo@expresso.impresa.pt

Coordenadores
Ricardo Marques
rmarques@expresso.impresa.pt

CRÓNICAS Luís Guerra


lguerra@blitz.impresa.pt

3 Pluma Caprichosa por Clara Ferreira Alves | 19 Cartas Abertas por Comendador Marques de Correia Coordenadores Gerais de Arte
Jaime Figueiredo (Infografia)
56 Fraco Consolo por Pedro Mexia | 74 O Mito Lógico por Luís Pedro Nunes João Carlos Santos (Fotografia)
84 Diário de Um Psiquiatra por José Gameiro | 86 Que Coisa São as Nuvens por José Tolentino Mendonça Mário Henriques (Desenho)

FOTOGRAFIA DA CAPA: ALAMY

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Uma nova década
Um novo desafio

Fique em casa,
fique informado.

A proteção de todos também passa


por uma informação séria e credível.

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“QUEM SABE TUDO É PORQUE ANDA MUITO MAL INFORMADO”

A poluição também
está em quarentena
A PANDEMIA DA COVID-19 FEZ MARAVILHAS PELO AMBIENTE A CURTO PRAZO, MAS A RESSACA DA CRISE
SANITÁRIA PODE SIGNIFICAR MÁS NOTÍCIAS PARA O FUTURO DAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS
TEXTO TIAGO SOARES INFOGRAFIA SOFIA MIGUEL ROSA ILUSTRAÇÃO CRISTIANO SALGADO

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PARTÍCULAS PM10, 5 ABRIL 2020 NO2 (DIÓXIDO DE NITROGÉNIO), 5 ABRIL 2020

A
s estimativas variam consoante a fonte, eco: a China teve pouco mais de 80 mil casos
mas os números são sempre pesados. de covid-19 até agora. É uma comparação que
REDUÇÃO DOS NÍVEIS
Segundo o relatório “State of Global Air impressiona, mas Burke sublinha no final do DE PM10 NA ATMOSFERA
2019”, morrem na China cerca de 1,2 milhões seu trabalho: “(...) os efeitos calculados são Entre 1 de março e 1 de abril de 2020
de pessoas prematuramente com uma única apenas os benefícios na saúde das mudanças (média diária de emissões)
causa de morte: o ar que respiram. Ano, após na poluição do ar, e não têm em conta as
ano, após ano. A potência asiática é o país com consequências negativas a curto ou longo prazo -78,5% Funchal
mais poluição atmosférica do mundo, e onde da disrupção social e económica [da pandemia]; -74% Matosinhos
a covid-19 matou cerca de 3400 pessoas, mais estes danos podem exceder quaisquer vantagens -67,8% Almada
ou menos 0,28% das mortes associadas todos da redução da poluição. (...) Não estou de todo a -66,6% Leiria
os anos à fraca qualidade do ar. Tal como o dizer que as pandemias são boas para a saúde.” -66,6% Lisboa (Entrecampos)
novo coronavírus, os causadores da poluição Na Índia, outro dos piores países em termos -58,9% Portimão
atmosférica podem ser mortíferos uma vez de poluição atmosférica (das 30 cidades mais -54,5% Sines
instalados no aparelho respiratório: gases de poluídas do mundo, a grande maioria são
efeito de estufa como o dióxido de azoto (NO2, indianas), a quarentena obrigatória começou a FONTE: AGÊNCIA PORTUGUESA DO AMBIENTE (QUALAR);
DADOS PROVISÓRIOS
associado à queima de combustíveis fósseis), e 22 de março, e os níveis de NO2 e PM2,5 no ar
partículas finas poluentes como as PM10, PM5 e atingiram recordes mínimos poucos dias depois,
PM2,5, invisíveis, inaláveis, perigosas. segundo dados do site World’s Air Pollution, que do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar)
Na China e depois em todo o mundo, a covid-19 mede em tempo real a qualidade do ar em vários tem analisado e tratado essa informação, sendo
fez diminuir a concentração destes agentes pontos do globo. hoje possível traçar um retrato da poluição
poluentes na atmosfera. As medidas aplicadas atmosférica em Portugal antes e depois da
para conter a doença obrigaram milhões a ficar ANTES E DEPOIS DA COVID-19 covid-19. Os dados que o GEMAC disponibilizou
em casa, aviões a permanecer em terra, fábricas Em Portugal, as últimas estimativas indicam ao Expresso mostram dois padrões claros no
a parar de produzir: um desastre económico que a poluição atmosférica é responsável por tempo. “O primeiro vai desde o dia 1 de janeiro
e um fenómeno ambiental ao mesmo tempo. cerca de 15 mil mortes. A Agência Portuguesa até 15 de março, e o segundo começa a 16 de
Enquanto que as consequências do primeiro do Ambiente, através do sistema QualAr, março, com o encerramento das atividades
ainda não são totalmente conhecidas, os mede diariamente a qualidade do ar em 68 letivas” e o início do estado de emergência,
benefícios imediatos do segundo são já visíveis estações espalhadas por todo o país. Desde o explica Myriam Lopes, uma das investigadoras.
do espaço. início de 2020, um grupo de investigadoras Entre um momento e o outro foram registadas
Marshall Burke, investigador na Universidade da Universidade da Aveiro (GEMAC, parte do “reduções da ordem dos 40%-90% nas
de Stanford dos “impactos sociais e económicos Departamento de Ambiente e Ordenamento e concentrações de NO2, nas estações de tráfego
das mudanças ambientais”, usou dados da NASA [automóvel, associado ao NO2] de todo o
para comparar os níveis de poluição na China país”, refere a análise subsequente que as
durante os primeiros dois meses de 2016 e 2020. investigadoras fizeram a pedido do Expresso.
Concretamente, procurou medir a quantidade De 1 de janeiro a 15 de março, a média das
de partículas finas PM2,5 na atmosfera de concentrações de NO2 situou-se quase sempre na
quatro cidades chinesas: Chengdu, Shanghai, ordem das 40 microgramas por metro quadrado
Guangzhou, e Pequim. Destas quatro cidades,
MAIS PESSOAS EM CASA (µg/m3), o valor limite para a proteção da saúde
apenas Pequim não apresentava uma descida SIGNIFICA QUE OS BARULHOS humana segundo a lei. Depois dessa data baixou
“substancial” nos níveis de poluição, havendo ALHEIOS DEIXARAM DE SER UMA consideravelmente, para as 20µg/m3.
alguns períodos de 2020 em que a quantidade No caso das partículas PM10, um dos poluentes
de partículas finas PM2,5 no ar era superior ao REALIDADE TERMINADA NO “mais críticos em Portugal e na Europa, com
registado em 2016. FINAL DO DIA DE TRABALHO, excedências ao valor limite registadas todos os
Contas feitas, Burke estimou que dois meses de PARA PASSAREM A SER UM anos”, a situação muda: não existiu uma redução
ar mais limpo salvaram a vida a cerca de 80 mil generalizada, pois as PM10 são “um poluente
pessoas, incluindo quatro mil crianças e 73 mil PROBLEMA CONSTANTE, associado também a outras fontes de emissão,
adultos com mais de 70 anos. A estimativa faz IRRITANTE, DIÁRIO nomeadamente ao aquecimento doméstico,

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MARÇO 2019 14-25 MARÇO 2020

MARÇO 2019
indústria, e ainda a fontes naturais”, incluindo que embora reconhecendo o impacto humano
movimentações de poeira vindas do deserto do e económico da pandemia, assume: “Temos a
Sara para toda a Europa. Em alguns locais do sensação que a natureza regressou e tomou de
país verificaram-se diminuições da ordem dos novo posse da cidade.”
20%-30%, mas noutras estações as medições Tal como uma parte da população mundial,
mantiveram-se inalteradas. a poluição está de quarentena. Em ambos os
No caso específico da poluição sonora, até casos será provisória. A China, a levantar-se
aqui um problema crescente em cidades da covid-19, tem sinalizado que as emissões
como Lisboa, estas mudanças são agridoces: poluentes voltarão em força para recuperar
os bares encerrados e os eventos cancelados o tempo e o dinheiro perdido. “A supervisão
têm dado descanso noturno aos moradores ambiental deve ser ajustada de acordo com
dos centros históricos, mas o ruído tornou- as necessidades práticas e sociais da situação
se diurno e caseiro. É uma inevitabilidade da económica”, disse um alto responsável do 14-25 MARÇO 2020
quarentena: mais pessoas em casa significa Ministério da Ecologia e do Ambiente chinês.
que os barulhos alheios deixaram de ser uma Ao mesmo tempo, vários especialistas têm
realidade terminada no final do dia de trabalho, apontado os ensinamentos da história: é
para passarem a ser um problema constante, justamente depois das crises que a poluição
irritante, diário. Nas últimas semanas, o mais sobe. “As alterações climáticas têm-
Expresso tem recebido vários relatos de cidadãos se tornado uma grande prioridade para os
que se queixam dos “sons altos” dos vizinhos, votantes nos últimos anos (...) Mas no meio
mas também das “obras” nos edifícios onde de uma crise económica e de saúde pública é
vivem; neste último caso, perguntam se o estado compreensível que as pessoas se foquem mais
de emergência trouxe “restrições horárias”, ou nas preocupações de saúde imediatas e nos
se “o ruído pode ser permanente”. Segundo o problemas financeiros — o seu emprego, as suas
decreto do Governo, as atividades de construção poupanças, as suas casas. Os perigos a longo
não estão suspensas, por isso todas as obras prazo das alterações climáticas iriam ocupar
1 - 20 JAN. 2020 10 - 25 FEV. 2020
podem continuar durante este período. uma posição secundária”, lê-se num artigo
da “MIT Technology Review”, que enumera,
PANDEMIA NÃO É SOLUÇÃO no entanto, alguns pontos de esperança
A tendência é global. As quarentenas tornaram para o futuro do ambiente: a diminuição das
o ar mais limpo em Itália, Espanha ou França, viagens aéreas ou o possível crescimento do
entre muitos outros países. Além disso, foi teletrabalho, por exemplo.
devolvida vida às cidades desertas: os animais Myriam Lopes é otimista: “Se mudarmos
ocuparam as ruas, devido à diminuição da algumas coisas nas nossas vidas e continuarmos
poluição atmosférica, visual e sonora típica a investir em energias renováveis, podemos tirar
do acelerado dia a dia humano. Em Itália, as [desta crise] alguns fatores positivos.” Aponta às
águas dos canais de Veneza surgiram mais metas já existentes: por exemplo, o compromisso
cristalinas do que nunca, tornando-se um de mais de 60 países perante as Nações Unidas
símbolo dos efeitos nefastos da poluição de tentar eliminar as emissões de carbono até
na beleza da natureza. Porém, a diferença 2050, apesar de alguns dos maiores emissores Gráficos e imagens de satélite da China e da Europa
repentina na claridade das águas não se deve à como a China, a Índia ou os Estados Unidos não mostram que as medidas de isolamento decretadas
diminuição da poluição, mas sim “à ausência fazerem parte desse grupo. Do que será o futuro um pouco por todo o mundo provocaram a redução
de transportes motorizados, o que por norma do ambiente, uma coisa já é certa: nenhuma na emissão de partículas poluentes para a atmosfera
agita o fundo lamacento dos canais”, explica pandemia irá resolver a nossa pegada ecológica
o “The Guardian”, citando declarações de um no planeta. Myriam Lopes finaliza: “Neste
investigador ambiental italiano. Ainda assim, o momento, o ar está mais limpo, mas também
mesmo jornal deu voz a um habitante da cidade, não estamos a usufruir dele...” b

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fisga
DIÁRIO DA PESTE
DOIS SÉCULOS TEM ESTE SÉCULO

POR
GONÇALO
M. TAVARES

1 de Abril Em casa, um apetite tremendo.


Somos estômago e dois olhos.
Encaixar a esfera no espaço vazio correspondente
à esfera.
(...) O tráfego parou, evaporou-se. O paralelepípedo no espaço vazio correspondente
Para grande parte das pessoas, o exterior está Os carros estão recolhidos — como animais que a essa forma.
guardado num armazém. fugiram por medo de um ciclone para os seus Depois de dois anos e meio, os bebés começam a
Um verso: “Aguardo deus com gula.” casulos. fazer isso nas calmas.
Rimbaud e a sífilis em redor. A gasolina desce de preço, que simpáticos que Mas vista de cima a preparação do cemitério de
As doenças mudam de nome, talvez seja um são. São Paulo parece um jogo adulto demais para ser
disfarce. Os Estados Unidos testaram há menos de uma suportado.
Um amigo de Espanha, tradutor, diz-me que tem semana um míssil hipersónico, mais rápido do Não há maior peso do que o peso de um corpo
um amigo nos cuidados intensivos. que a velocidade do som. morto, escreveu uma vez Heidegger.
Tem 51 anos e nenhuma doença associada. O som já está lento demais para o século XXI. Imagino o peso que os coveiros já transportaram.
Os discursos, pôr as mãos nos ouvidos. A velocidade do som está lenta nos dias da peste. (...)
“Certos espíritos são comboios tão rápidos que É difícil o som chegar a quem te pode salvar. “Dizem que as flores de Ameixoeira não devem
não temos tempo de ver que estão vazios.” Experimenta gritar se precisares de socorro. vender o seu perfume.”
É preciso fazer parar o comboio. (...) Um filme coreano.
Com uma meia na boca, aparece a Roma. Escrevi a frase no meu caderno quadriculado.
Pastora de objectos perdidos. A Rainha Isabel II fala ao país no próximo
A Jeri vê, maravilhada, aquilo que há cinco
minutos viu, maravilhada. 3 de Abril domingo, a partir do Palácio de Buckingham.
Tem 93 anos.
Está fascinada com as sombras. (...) Numa entrevista, Amyr Klink diz que prefere
Aperto o casaco, chove demasiado. No “Washington Post” e no “Estadão”, jornal tubarões ao tédio.
Por vezes, mesmo o exército cercado fica feliz por do Estado de São Paulo: imagem aérea do maior Vou procurar saber quem é Amyr Klink.
não poder sair. cemitério da América Latina. A internet não funciona, tento uma vez e outra e
Aprender a perder, um dia e depois outro. Neste cemitério Vila Formosa, em São Paulo, depois esqueço.
já se estão a preparar centenas de covas com o É preciso continuar a trabalhar a crença.
tamanho certo para um humano. Levantar cedo para ter tempo para trabalhar a

2 de Abril Contrataram 250 coveiros.


Visto de cima parece um campo agrícola para
crença.

Alguém diz que o pico será no dia tal. os frutos mais estranhos do mundo. Os menos
Aplica-se as leis da física e da velocidade dos
materiais à biologia.
desejados.
A uma distância certa, não demasiado próximos, 4 de Abril
Movimento uniformemente acelerado da como se ainda se pudessem contagiar. (...)
maldade. Covas com a forma com que se arruma por fim Um drone em cima de cada aluno até o aluno
Mas a maldade não é como a bondade. um corpo. aprender tudo.
A bondade é previsível. Penso na imagem do jogo de encaixe das crianças De A a Z e do zero ao infinito.
A maldade não é previsível. com 12 meses. Se o aluno não aprender, o drone envia um
Isso de certeza. Encaixar o cubo no espaço vazio que corresponde pequeno choque eléctrico — diz alguém.
Fala-se de achatar a montanha má, a montanha à forma do cubo. Ideia sensata, mas difícil tecnicamente — diz
da peste. outro.
Bater em cheio na cabeça da montanha má até Ideias perversas para um novo século que está
esta ficar pequena e quase inofensiva ou até ansioso por começar antes do tempo.
inerte. Nos Estados Unidos, em duas semanas,
Diz Roberto, um menino. 10 milhões de novos desempregados.
Transformar a montanha num tapete. Hans Magnus Enzensberger:
Colocá-lo ao sol, longe dos humanos. “Que alguma coisa tem de ser feita e já
(...) isso já sabemos
Tentar correr o mais rápido possível, mas com CINCO PASSOS PARA A FRENTE que porém ainda é cedo para fazer alguma coisa
uma venda nos olhos. que porém é tarde demais para fazer alguma coisa
Aqui estamos. Velocidade e cegueira. E CINCO PASSOS PARA TRÁS PARA isso já sabemos.”
Fazer pelo menos um buraco na venda. VER SE FICAMOS NO MESMO SÍTIO. Exigir na via pública drones que transmitam
Ver de um olho, ver uma parte, perceber uma NÃO FICAMOS NO MESMO SÍTIO. música.
parte. Pelas ruas de Londres, Paris, Roma, Nova Iorque,
Mortos em Espanha, Estados Unidos, Itália: o JÁ NÃO É POSSÍVEL Buenos Aires e Madrid.
susto torna-se assustador; o assustador, hábito. FICAR NO MESMO SÍTIO Alguém me recomenda ‘Twist and Shout’ dos

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Beatles, mas sem tirar os pés do chão. Jacob Steinberg, poeta israelita: “Nós parecemos
Um homem dança a dois uma salsa esta noite uma cidade que arde.”
diante de um espelho alto. Espelho (...)
com altura bípede e largura certa. O bom soldado Svejk e a descrição do
Dança consigo próprio, mas está manicómio:
entusiasmado. “Um inventor muito instruído (...) que passava a
Toca no espelho como se o espelho vida a tirar macacos do nariz e só dizia uma vez
também tivesse mão. por dia: acabei de inventar a electricidade.”
Sem espelhos, estar em casa seria Depois disto acabar, o exterior vai estar repleto de
bem mais duro. loucos, inventores diários da electricidade.
A minha amiga grega manda-me Em Itália, o governo aprovou a passagem de ano
uma mensagem. de todos os alunos.
“O meu pai (saída por motivo 4) Na Suécia teme-se milhares de mortes por
recebe-me todos os dias no seu pátio covid-19.
(já não entro em casa) com um cálice Alguém pergunta: se perdesses o desejo, ias
de aguardente.” procurá-lo?
Chama-se rakí, a aguardente. Onde?
Os pais sabem, ainda assim, receber Alexander Kluge fala de uma boneca “onde os
os filhos. olhos” indicam as horas.
Ver as horas certas pelos olhos da boneca.
Ver as horas certas pelos olhos de alguns homens

5 de Abril velhos na televisão.


Em certos momentos, os relógios parecem deixar
Hoje troquei mensagens com muitas pessoas. de funcionar.
Muitas pessoas dessas muitas pessoas estão a Apenas funcionam os olhos humanos.
quebrar. (...)
Muitas pessoas dessas muitas pessoas depois de Há dois dias na Índia: “Milhares de pessoas em
quebrar vão de novo estar fortes. fuga para fugir à fome.”
Mas algumas dessas muitas pessoas não. As fábricas fecharam, quase tudo de quarentena.
Essas algumas pessoas vão quebrar e ficar Milhares abandonam a capital e regressam à aldeia.
quebradas e vai ser difícil voltar à casa de partida. Mas não há autocarros suficientes.
Já não há casa de partida. Relatos no “The Guardian”. Muitos tiveram de
Alguém destruiu essa hipótese do recomeço a zero. regressar a pé.
Boris Johnson foi internado no hospital e a Rainha 200 quilómetros desde Nova Deli.
lembrou a separação de pais e filhos na Segunda “A estrada parecia infindável e os meus filhos
Guerra Mundial. Ainda o filme “Embriagado de Mulheres e de faziam pequenas pausas para dormir no chão”,
A NBA pondera cancelar a época e um incêndio Pintura”, de Im Kwon-taek. contou Mamta.
florestal está a aumentar a radiação em “Que tipo de jarrões desejas?”, pergunta o pintor “A única coisa que nos fez continuar foi o facto de
Chernobyl. ao dono da olaria. não termos outro lugar para ir”, disse Mamta.
Perto do Cais do Sodré, em Lisboa, dizem-me que Os dois a olharem para o forno enquanto as peças A única coisa.
os sem-abrigo correm quando vêem uma pessoa. cozem. “A cada dia um renascer mais profundo”, dizia o
Porque é muito raro verem uma pessoa. O dono da olaria responde: pintor, citando um mestre.
E pedem dinheiro ou comida. “Os pintores do teu calibre querem que a limalha No dia seguinte, no mesmo sítio, porém mais
Os dealers que vendem droga fajuta agora agarre para que os desenhos ganhem vida; afundado.
também correm atrás dos clientes para que eles os vidradores desejam que o vidrado se espalhe Só com a cabeça de fora.
percebam qual é o seu produto. de forma uniforme; Assim se aprende: só com a cabeça de fora.
Já não sussurram, às vezes gritam. os donos das olarias esperam vir a sair delas uma Boris Johnson foi internado nos cuidados
Mas vêm com máscaras. ou duas obras-primas. intensivos.
Um entusiasta, Philipp Klein, faz uma Mas as coisas não saem forçosamente como O ministro dos Negócios Estrangeiros, Dominic
curta-metragem, na sala, simulando subir uma desejamos. Raab, vai substituí-lo.
enorme montanha branca feita de lençóis. Estamos sujeitos aos caprichos do fogo.” Fala-se de 15 milhões de novos desempregados
Uns Himalaias privados. Muitas pessoas querem muitas coisas diferentes, nos Estados Unidos.
Na cidade podes abrir a janela, mas não há mas é o fogo que decide. Volto ao livro.
endireitas como havia na aldeia. O fogo é aquilo que não controlamos. “Dê cinco passos para a frente e cinco passos
Que colocavam no sítio, à força, um osso para trás”, diz um médico no manicómio do bom
deslocado. soldado Svejk.
Há muitas pessoas que abrem a janela a pedir
um endireita ou a pedir para voltarem à casa de 6 de Abril É um teste para ver se um homem é louco ou não.
Tento fazer isso.
partida, mas não há ninguém no exterior. O humano número 486 morreu num hospital de Todos devíamos fazer isso.
A casa de partida é a casa dos pais. Madrid. Cinco passos para a frente e cinco passos para trás
Uma ou outra cabeça vai quebrar por dentro. Listas de mortos. para ver se ficamos no mesmo sítio.
Nenhuma ortopedia mental de emergência vai Listas de livros escolhidos. Não ficamos no mesmo sítio.
poder pôr certas peças do puzzle de novo juntas. Lista de locais a visitar depois da peste, quando se Já não é possível ficar no mesmo sítio. b
(...) afugentar a ansiedade e não os corpos.
Faço festas à Roma e à Jeri, companheiras ao lado Dez páginas no jornal com retratos de pessoas Gonçalo M. Tavares escreve de acordo
de outros companheiros humanos. com duas datas. com a antiga ortografia

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O QUE EU ANDEI PARA AQUI CHEGAR
UM CURRÍCULO VISUAL

Ming Chu Hsu


Os passos da misteriosa empresária chinesa que não quer tornar-se
figura pública e que ofereceu a Portugal 4,6 milhões de euros em equipamento
médico destinado a várias instituições hospitalares nacionais
para combater o coronavírus. / ANA SOROMENHO

2020
?
Doação extraordinária
Nascer e crescer
em Taiwan Doou um conjunto de materiais de
proteção médica ao Hospital de Santa
Nasceu em Taiwan, onde Maria, em Lisboa, e “organizou um
cresceu até aos 17 anos, altura consórcio de empresas luso-chinesas que
em que foi viver para Nova já reuniram mais de 200 mil euros para
Iorque, nos Estados Unidos. entregar a entidades oficiais portuguesas”.
A sua promotora imobiliária, a Reformosa,
ofereceu equipamento médico a Portugal
no valor de 4,6 milhões de euros, onde
se incluem 80 ventiladores, um milhão
de máscaras, 22 mil fatos de proteção,
100 mil pares de luvas, 100 mil óculos de
proteção e 10 mil toucas.

1992
Sonho americano
Formou-se em Matemática e
Finanças e recebeu o MBA pela
Columbia Business School e 2018
durante as duas décadas seguintes Filantropia de futuro
viveu nos Estados Unidos.
Foi inaugurada em Carcavelos a Nova
School of Business & Economics (Nova
SBE), à qual Ming Chu Hsu doou dois
milhões de euros, a maior contribuição
entre os milhares de donativos individuais,
assumindo-se como uma empresária
com apetências filantrópicas. Faz parte
do Conselho de Curadores da Fundação
Alfredo de Sousa, que gere a Nova SBE, e
referiu no site da faculdade que procura
continuamente projetos comprometidos
? com a sociedade e com o mundo
corporativo que possam ser um passo em
Wall Street e eventos direção ao futuro.
Trabalhou em Wall Street e
integrou a TexComm, uma 2013
empresa de media e de
produção de eventos fundada O encanto
pelo jornalista especialista em português
relações públicas Tex McCrary. Criou a imobiliária
Reformosa, com
sede em Lisboa,
? através da qual fez
Volta ao mundo
vários investimentos 2017
em Lisboa, Cascais
Fundou a sua própria empresa, a TRM, ligada ao sector e Setúbal. Entre os Fora de pé
imobiliário, juntando em simultâneo uma série de cargos projetos que fomentou O seu nome consta na base de dados de empresas
executivos em empresas em Inglaterra, Hong Kong e em Portugal, tentou offshore do “Paradise Papers”, revelado pelo Consórcio
África do Sul, ligadas às indústrias mineiras, aerospaciais, de comprar campos de Internacional de Jornalistas de Investigação, do qual
publicidade, marketing e imobiliário. A maioria delas está golfe do Grupo Espírito o Expresso faz parte. Terá também criado a empresa
sediada em Hong Kong. Tem dois filhos e vive com o marido, Santo, mas a aquisição Maformosa, através da Lestela International, outra
norte-americano, entre Nova Iorque, Hong Kong e Lisboa, foi impedida por ordem offshore, localizada nas Ilhas Virgens Britânicas.
onde também tem casa e passa grande parte do tempo. judicial.

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DÉJÀ VU
O FUTURO FOI ONTEM
em 2002, lembrando um século de privações e pelo cargo, a Rainha demorou a perceber que a
alegrias, de guerras e de progresso. Falou na co- fleuma britânica e a frieza institucional contras-
memoração do jubileu de diamante, assinalando tavam, para alguns de forma chocante, com a
os 60 anos do seu reinado e congratulando-se temperatura emocional da nação. Nos dias se-
POR pelas manifestações de admiração e respeito. guintes, os jornais, e não só os tabloides, deram
BRUNO E falou na véspera do funeral da princesa Dia- voz à indignação do povo com manchetes a exi-
VIEIRA na, em 1997. De todas as mensagens, esta terá gir uma reação da monarca: “Mostre-nos que se
AMARAL sido a mais difícil. O ano de 1992 é geralmente preocupa” ou “Onde está a nossa Rainha?” Era
apontado como o annus horribilis da família real sabido que a Rainha estava em Balmoral, na Es-
O discurso britânica. Divórcios, mortes, escândalos, como
as fotografias em topless de Sarah Ferguson ou
cócia, com os netos e que a sua preocupação
era protegê-los. No entanto, o povo exigia mais

da Rainha as revelações íntimas da princesa Diana, e, para


terminar em grande, um incêndio no Castelo de
do que recolhimento e silêncio. Finalmente, cin-
co dias após a morte de Diana, a Rainha dirigiu-
Windsor levaram a que muitos se perguntassem -se à nação numa mensagem transmitida em
se a monarquia britânica poderia resistir a tan- direto do Palácio de Buckingham. Para não dei-
tas desgraças. Porém, o pior estava para vir. Se a xar dúvidas sobre os seus sentimentos e para se
Ao longo dos seus 66 anos de reinado, a Rainha morte trágica de Diana Spencer a elevou ao es- reconciliar com o povo, Isabel II falou do fundo
Isabel II tem sido parca em intervenções tele- tatuto de “princesa do povo”, ao mesmo tempo do coração, não só como Rainha mas como avó
visivas. Além da tradicional mensagem de Na- virou a opinião pública contra os vilões, sobre- dos dois netos que tinham perdido a mãe. Se,
tal, só por quatro vezes, até agora, a Rainha de tudo Carlos e a outrora amante Camilla Parker- em 1997, até os fanáticos da monarquia ficaram
Inglaterra resolvera dirigir-se aos seus súbdi- -Bowles e, por tabela, a Rainha. Gerou-se uma à espera das palavras da Rainha para a julgar,
tos numa mensagem difundida pela televisão. onda de ressentimento contra a família real e a hoje, em tempos de pandemia e no dia em que
Por curiosidade, todas ocorreram nos últimos forma insensível como teria tratado Diana. Pela o primeiro-ministro Boris Johnson foi interna-
30 anos. Isabel falou aos britânicos no início da primeira vez durante o seu reinado, Isabel II sen- do com covid-19, até os republicanos agrade-
primeira Guerra do Golfo, em 1991, elogian- tiu que não estava em sintonia com o seu povo. ceram a serenidade e a força que emanaram do
do as Forças Armadas e desejando um desfe- Sempre fiel ao protocolo, às regras rígidas da discurso da Rainha. Mudam-se os tempos, Isa-
cho rápido. Falou quando a rainha-mãe morreu monarquia e à contenção sentimental exigida bel II permanece. b

1997

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PLANETÁRIO
NO CAMINHO DAS ESTRELAS

POR
NUNO GALOPIM

MUSEUS EM 2019

O mais visitado
foi o Louvre
O Museu do Louvre foi o mais visto em todo o mundo em
2019 com um total de 9,6 milhões de visitantes. Segundo
a lista anualmente apresentada pelo “The Art Newspaper”, CINEMA

Estreias em casa para seis


o museu parisiense superou os 7,39 milhões do Museu
Nacional da China e os 6,88 milhões dos Museus do
Vaticano, estes últimos retirando ao Metropolitan Museum

filmes e um festival
o terceiro lugar obtido em 2018, descendo o museu nova-
iorquino para a quarta posição (6,48 milhões). Três museus
londrinos surgem depois entre o quinto e o sétimo lugares
da lista, todos eles com crescimentos face a 2018. São
eles o Museu Britânico (6,24 milhões), a Tate Modern (6,1)
e a National Gallery (6,01). A tabela dos dez museus mais
visitados inclui ainda o Com as salas fechadas os consumos essa altura os filmes que agora terão
Museu do Hermitage, de cinema estão agora sobretudo estreia virtual serão editados em
em São Petersburgo concentrados em consultas a suporte de DVD.
(4,96), o Museu Reina arquivos (a Cinemateca Portuguesa, Este lote de estreias virtuais da Bold
Sofía, em Madrid (4, 43), por exemplo, tem um serviço vai ser inaugurado a 23 de abril com
e a National Gallery of digital), em ofertas por streaming, “Monos” (na imagem), de Alejandro
Art, de Washington D.C. como as que têm surgido Landes, filme que nos transporta a
(4,07). Os números do semanalmente no site da Medeia, em uma montanha, algures na América
Louvre ficam mesmo plataformas especializadas de VOD Latina, na qual um grupo rebelde
assim aquém dos 10,2 (video on demand), como a Filmin, de adolescentes faz treinos militares
milhões obtidos no ano que aumentou consideravelmente e embarca depois numa missão
anterior, valor que se o volume de utilizadores, ou por que, aos poucos, começa a colapsar.
mantém como o recorde videoclubes também em VOD. E Seguem-se “Salve Satanás”, de
de visitantes por ano a é por estes últimos espaços que Penny Lane (30 de abril), “Rainha
um museu. A quebra de começam a surgir novidades. de Copas”, de May el-Toukhy (7
visitantes no Louvre, que A Bold acaba de anunciar seis de maio), “100% Camurça”, de
se verifica também em estreias. Serão “necessariamente, Quentin Dupieux (14 de maio),
outros museus de Paris, é apontada pelo mesmo artigo como estreias virtuais”, mas mantendo “Liberdade”, de Kirill Mikhanovsky
podendo dever-se aos protestos nas ruas que a cidade foi alguns hábitos, como as antestreias (21 de maio), e “Ema”, de Pablo
conhecendo ao longo do ano. com os seus “habituais parceiros, Larraín (28 de maio).
Uma outra lista apresentada também pelo “The Art também elas a decorrer online”. Entretanto, o Festival de Cinema
Newspaper” refere as exposições mais populares do ano. E Os filmes estarão disponíveis Italiano, que estaria a decorrer
as que obtiveram melhor média diária de visitantes tiveram “numa primeira passagem só nas por estes dias (depois de Lisboa
lugar no Brasil. Foram elas “Dreamworks”, no Centro Cultural plataformas VOD e videoclubes haveria as extensões a mais 12
Banco do Brasil (primeiro no Rio de Janeiro, depois em Belo das televisões (Filmin, Meo, NOS, cidades), desviou a sua atividade
Horizonte) e “Ai Weiwei — Root”, na mesma instituição. Nowo e Vodafone)”. A distribuidora para a plataforma Filmin e os canais
Todas elas tinham entrada gratuita. Em números absolutos a reconhece, em comunicado, TVCine. A edição virtual do festival
exposição mais visitada, segundo esta lista, foi “Diane Arbus: A que o seu “compromisso” se faz incluiu as estreias dos documentários
Box of Ten Photographs”, que esteve patente no Smithsonian contudo “com a experiência da “Selfie”, de Agostinho Ferrante, e “A
American Art Museum, em Washington D.C., também com sala de cinema, é, e será sempre, Febre Ferrante”, de Giacomo Durzi.
entrada gratuita. Logo a seguir surge “Toutânkhamon: Le Trésor insubstituível” e por isso deixa a Além das estreias, a programação
du Pharaon”, em La Vilette, que ali chamou mais de 1,4 milhões “promessa de que todos os filmes virtual do festival inclui filmes
de pessoas. Esta corresponde à exposição com bilhetes pagos serão exibidos, logo que possível, premiados em edições anteriores
que chamou uma maior quantidade de visitantes. num cinema de referência”. Por e clássicos de nomes como Fellini,

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FLASHES LIVROS

Livrarias independentes
juntam-se e lançam campanhas

Ficar em casa e receber livros sem


pagar os portes. É uma das propostas
MÚSICA da RELI, uma rede que junta livrarias
Durante 18 anos Brian e Roger Eno independentes de todo o país “sem
foram trocando mensagens na ligação a redes e cadeias dos grandes
forma de música. Roger, pianista, grupos editoriais e livreiros”, como nos
lançava as ideias. E depois Brian explica o texto de apresentação no seu
sugeria, sobretudo, os espaços ao site. Há livrarias integradas nesta rede
redor do piano. Destes diálogos em Algés, Aveiro, Braga, Évora, Figueira

ILUSTRAÇÃO MATILDE FEITOR


nasceu agora “Mixing Colours”. da Foz, Guimarães, Lisboa, Óbidos,
É um disco tranquilo e contem-
Oeiras, Porto, Setúbal, Sines e Vila
plativo, assinalando o reencontro
Real. O site da rede, em reli.pt tem uma
dos irmãos que, em conjunto (e
contando ainda com Daniel Lanois),
listagem das livrarias já associadas, com
são os autores do clássico “Apollo indicação dos respetivos contactos,
— Atmospheres and Soundtracks”. ligações de cada uma a redes sociais e
links para os respetivos sites.
“Fique em Casa Mas Não Fique Sem
Livros” é uma das duas campanhas troca são questões “a combinar com
Rossellini, Visconti e Scola, num LEILÃO já lançadas por esta rede. Esta é, cada livreiro”. Também aqui o site da
total de 114 filmes. O Palácio do Correio Velho basicamente, uma “campanha de rede indica quais as livrarias que se
A nível internacional, a Universal (Lisboa) adiou para 6 de maio o encomenda de livros” com “oferta associaram a esta campanha.
Pictures, que avançou no calendário leilão do espólio de Luiz Miguel dos portes de envio”. A listagem das Esta rede procura criar “uma
algumas estreias maiores — como Rosa Dias, sobrinho e herdeiro de livrarias associadas a esta ideia está coordenação de esforços para
por exemplo o novo filme com os Fernando Pessoa. A data está, igualmente no site. A outra campanha enfrentar a crise no mercado livreiro,
Mínimos — começou, entretanto, a mesmo assim, sujeita a alteração, em curso apresenta-se como “Livros que vem comprometendo a existência
como anuncia o site da leiloeira,
explorar nos EUA as possibilidades às Cegas” e abre espaço à surpresa. de pequenas livrarias em todo o país”
acrescentando que “o leilão per-
do VOD para lançar novos filmes. “Escolha um livreiro, peça-lhe livros de sobretudo “agora neste período de
manecerá no site sujeito a ofertas”.
“The Hunt”, de Craig Zobel, ou Entre o espólio há objetos pessoais olhos fechados e receba um pacote pandemia”. O principal objetivo é o
“Emma”, de Autumn de Wilde, são de Fernando Pessoa como um pisa- surpresa em casa” é o desafio lançado. de coordenar uma “comunicação
aí dois exemplos de estreias virtuais -papéis em mármore com um mo- Cada um pode selecionar a livraria e conjunta” e “ter acesso às iniciativas
(cada um com aluguer do filme nograma, dois pares de óculos, um o valor que quiser (com um mínimo de todos”, ou seja, “campanhas
a €18,5), abrindo espaço a uma agrafador, um porta canetas, uma de €15). Neste caso as entregas, de promoções, feiras do livro” ou
reflexão dentro do meio. Será este o boquilha e uma cómoda papeleira. o pagamento e possibilidade de lançamentos, entre outras.
caminho a seguir? O Expresso soube
junto da Cinemundo, que entre nós
representa a Universal Pictures,
que a possibilidade de fazer estreias
por VOD não está a ser ponderada. PHOTO
Filmes como “Fátima” e “Troll” MATON
foram adiados para, respetivamente,
agosto e outubro. E tanto “The
Hunt” como “Emma” não estavam
sequer nos planos de estreia em sala
para Portugal.
O caso da Cinemundo não é único
entre nós. Luís Apolinário, da LIVRO
Alambique, explicou ao Expresso A Gradiva publicou “Cosmos:
MUSACCHIO-IANNIELLO-PASQUALINI

que, nas estreias online da Bold, Mundos Possíveis”, de Ann Druyan,


o que acontece é uma inversão sequela da aventura de divulgação
da ordem habitual das coisas, científica que Carl Sagan (com
“começando pelo VOD e acabando quem a autora viveu) registou
com a passagem em sala”. Mas numa série de televisão que foi
sublinha que “tudo o que é ‘grande’ exibida em 181 países. Neste novo
ou ‘sério’ está a ser adiado”. volume, de 424 páginas, a autora
reflete sobre “o futuro inspirador
A Leopardo Filmes também
que ainda podemos ter neste mun-
confirmou ao Expresso que não fará
do, se acordarmos a tempo de usar
estreias online e notou que o filme a nossa ciência e a alta tecnologia
“Mosquito”, que está já disponível com sabedoria”. O livro serve ainda A Deutsche Grammophon vai lançar no próximo dia 15 “Must The Devil Have
no Filmin, já tinha estreado quando de companheiro a uma nova tem- All The Good Tunes?”, gravação de um novo concerto para piano do compo-
as salas fecharam. A Midas Filmes porada de episódios que está sitor norte-americano John Adams (na foto). A obra foi estreada em 2019 e
deixou também claro que fará em exibição no canal surge agora em disco numa versão interpretada pela Filarmónica de Los An-
apenas as suas estreias em sala. National Geographic. geles, dirigida por Gustavo Dudamel, e com a pianista Yuja Wang como solista.

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PASSEIO PÚBLICO
40 MINUTOS COM

DEBORAH HARRIS ENTREVISTA CATARINA NUNES

Por que razão decidiu mudar-se para Lisboa quando

“NOVA IORQUE E vivia no maior centro artístico, Nova Iorque?


Durante a minha carreira, que começou em Nova
Iorque nos anos 80 (primeiro como diretora de

LONDRES NÃO SÃO


publicidade e publisher em revistas de arte e
depois como diretora do The Armory Show), viajei
nos Estados Unidos e na Europa e, mais tarde, na

MAIS A LIGAÇÃO
Ásia e em África, mas nunca vim a Portugal. Há
sete anos passei duas semanas de férias, entre
Lisboa e o Algarve oriental, e foi uma revelação.

AO MUNDO DA ARTE”
Apaixonei-me pelas pessoas, cultura, cozinha,
história e, obviamente, pelo tempo. Visitei a Galeria
Vera Cortês e, um ano depois, a Vera foi a Nova
Iorque participar no The Armory Show e tornámo-
nos amigas. Fiquei com a ideia de regressar e
A EX-DIRETORA-ADJUNTA DO THE ARMORY SHOW, EM NOVA IORQUE, E ATUAL viver aqui, pelo menos durante um ano ou dois. A
oportunidade surgiu quando saí do The Armory
CURADORA DA GALERIA MUÑOZ CARMONA, EM LISBOA, FALA SOBRE A MUDANÇA Show e, depois de considerar outras cidades na
PARA PORTUGAL E OS DESAFIOS DO MERCADO DA ARTE FACE À PANDEMIA Europa, decidi mudar-me para Lisboa, onde já

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PASSEIO PÚBLICO

“VEJO DEFINITIVAMENTE A INTERNET


A ASSUMIR UM PAPEL MAIOR
NO NEGÓCIO DA ARTE, SEJA NO
SECTOR PRIVADO OU NO PÚBLICO”

conhecia algumas pessoas e o cenário artístico Podem funcionar como incubadoras, descobrindo Estou otimista de que as coisas estejam a mudar,
florescente me entusiasmava. e encorajando jovens talentos, apresentando em particular as atitudes e as práticas nos locais de
o trabalho de artistas com carreiras médias e trabalho. Ter consciência é o primeiro passo e penso
O que é que Lisboa tem de diferente de outras mostrando trabalhos que estão fora do mundo da que é importante que quem tem uma carreira
cidades? arte contemporânea tradicional, como o design e mais longa oriente os jovens no sentido de facilitar
Tem muito para oferecer e a qualidade de vida a arquitetura, e desenvolver relações com novos essas mudanças. Vejo uma grande alteração no
é uma grande vantagem. Felizmente, o ritmo de colecionadores de forma mais íntima e pessoal. Sem comportamento das pessoas mais novas, é uma
vida é mais lento e as pessoas têm sido muito dúvida que o custo de fazer negócios atualmente mudança social em andamento.
acolhedoras e incrivelmente generosas. Há tempo é elevado e as feiras de arte são uma despesa
para visitar exposições e estúdios de artistas e grande, que faz com que muitas galerias pequenas A arte contemporânea depende de feiras de arte,
ter conversas significativas, algo que é raro em lutem para se conseguirem mostrar. Tem de haver inaugurações de exposições, leilões e contactos
Nova Iorque. Consigo usufruir dos eventos e das um equilíbrio entre estes dois tipos de galerias e pessoais. Como é que este modelo se pode adaptar
atividades que a cidade tem para oferecer. O repensar os custos de participação nestas feiras. ao isolamento imposto com o coronavírus?
cenário artístico em Lisboa faz-me lembrar Nova No curto prazo haverá uma mudança dramática
Iorque nos anos 80, jovem e vibrante, colaborativa e O que é que traz da sua experiência no The Armory para fazer os negócios através da internet.
com um espírito inclusivo. Show? As leiloeiras já estavam a fazer isso e muitas
Tive a oportunidade de criar uma plataforma feiras de arte agendadas para esta primavera
Qual é a sua visão da arte contemporânea para galerias modernas numa feira de arte desenvolveram, rapidamente, formatos online
portuguesa e quais são os artistas que destaca? contemporânea já estabelecida (a primeira edição para os seus expositores. Galerias e negociantes,
Está a crescer e tem um enorme potencial. Há foi em 1913 – a primeira mostra de arte moderna bem como consultores de arte e artistas, estão a
vários artistas com grandes carreiras fora de nos Estados Unidos — e contou com a participação utilizar o correio eletrónico e as redes sociais para
Portugal e que já me eram familiares, como o Pedro de Amadeo de Souza-Cardoso). Colocar artistas comunicarem e conectarem-se com clientes e
Cabrita Reis, Julião Sarmento, José Pedro Croft, contemporâneos no contexto dos grandes mestres parceiros. Há o desejo e necessidade de comunicar
Helena Almeida, Leonor Antunes, Lourdes Castro, modernos foi uma missão importante do The num nível mais íntimo e pessoal. As grandes feiras
Joana Vasconcelos, Fernanda Fragateiro e Vhils Armory Show-Modern e deu um equilíbrio ao corporativas, por outro lado, já estão em crise, com
(Alexandre Farto). Tenho conhecido e seguido o lado contemporâneo da feira. Tive a possibilidade as galerias sob pressão financeira para aguentarem
MANUEL MANSO

trabalho de Vasco Araújo, João Pedro Vale/Nuno de estar envolvida em projetos criativos como o as viagens e os esforços necessários para
Alexandre Ferreira, Ângela Ferreira, Luís Lázaro Armory Focus, que apresentou artistas e galerias participarem entre duas até 20 feiras por ano.
Matos, Joana Escoval, Rita GT, Mónica Miranda, da América Latina, China e África. Conheci
Alexandre Estrela, Nuno Sousa Vieira, Pedro Vaz, colecionadores maravilhosos e apaixonados, Como é que os artistas e as galerias podem
Paulo Lisboa, Sara Bichão, Jorge Santos, Luísa curadores, escritores e galeristas de todo o lado. sobreviver, no curto, médio e longo prazo, neste
Jacinto, Jaime Welch, Carla Cabanas e Susana Nova Iorque e Londres não são mais a ligação ao novo contexto?
Mendes Silva, entre muitos outros. mundo da arte. Esta é a pergunta para um milhão de dólares e se
tivesse uma bola de cristal podia dar-lhe a resposta.
Está a fazer a curadoria da Galeria Muñoz Carmona, Em 2017 apresentou queixa contra Benjamin Imagino e espero que haja uma grande mudança,
em Lisboa. Qual é o lugar da arte contemporânea Genocchio, na época o diretor executivo do The para melhor. Talvez haja um movimento de regresso
portuguesa no mundo? Armory Show, por comportamento sexual impróprio às galerias, com as pessoas a irem a inaugurações e
Inicialmente planeio apresentar projetos de artistas no local de trabalho. Porquê? a visitarem galerias ao fim de semana, menos feiras
internacionais que nunca tenham feito exposições Isso já foi discutido na imprensa e não considero que de arte no geral e uma ênfase nas feiras regionais
em Portugal, oferecer-lhes uma oportunidade seja um momento que defina a minha carreira. Foi e em eventos, como o Berlin Gallery Weekend e a
para estarem em contacto com a comunidade uma situação que exigiu ação e não estou certa de Lisbon Art Week. Poderá haver um modelo diferente
artística local e criar um diálogo entre eles. Alguns que o teria feito se fosse mais jovem e estivesse a para as feiras de arte, com as próprias galerias a
dos projetos têm uma relação direta com Lisboa e começar. Não tinha nada a perder, a minha carreira organizarem (como foi no início em Basileia, Colónia
Portugal. Tomara que seja benéfico para ambos e e reputação eram sólidas, e acreditei que a questão e Maastricht). A feira de arte CONDO e a Future
que crie novos canais para expor lá fora. devia ser falada. Lembre-se que isto foi antes das Fair em Nova Iorque (que estava para ser inaugurada
alegações contra Harvey Weinstein terem sido em maio) são exemplos de um novo modelo. Vejo
Como é que uma pequena galeria pode prosperar tornadas públicas. definitivamente a internet a assumir um papel maior
num mercado dominado pelas grandes galerias no negócio da arte, seja no sector privado ou no
internacionais? O mundo da arte é um lugar onde o sexismo e os público. Historicamente, sempre que houve uma
As pequenas galerias são uma parte essencial abusos são mais fortes? mudança sísmica mundial, os artistas responderam
e necessária do ecossistema da arte. Muitas Não vejo que seja mais prevalecente ou com um trabalho fortemente dirigido aos temas
vezes conseguem correr riscos maiores e mostrar disseminado. Há sexismo, mas imagino que não sociais e políticos. Isto será, provavelmente, o legado
trabalhos que as galerias maiores não mostram. seja diferente de outros ambientes de trabalho. do vírus. b

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BATATA
QUENTE
PERGUNTAS
IMPERTINENTES

Quando
regressa
o campeonato
de futebol?
PIMENTA NA LÍNGUA Sete dias após o primeiro caso con-
firmado de covid-19 no país, a Liga
FRASES DA SEMANA Portuguesa calendarizou o que ainda
falta jogar da I Liga de futebol. A 2
“A cultura vai ter de ocupar as ruas, de maio haveria clássico entre Por-
to e Sporting. Em poucas semanas, a

vai ter de ocupar as cidades” realidade suplantou o otimismo. Ainda


não sabemos tudo o que vai acontecer,
GRAÇA FONSECA, MINISTRA DA CULTURA
mas já sabemos que em abril não há
campeonato, como quase não houve
Pedindo à cultura que nos dê “a alegria de podermos voltar a estar juntos” quando a epidemia passar
em março e não haverá em maio.
e aludindo ao receio que muitas pessoas, segundo ela, terão de “voltar a salas”
A Federação Portuguesa de Futebol
decidiu entretanto cancelar as compe-
tições dos escalões de formação. Não
“Se o coelho da Páscoa não chegar há campeões, não há subidas, não há
descidas. Para as I e II Ligas, porém, a
a ir a vossa casa, tem de compreender Liga de Clubes tem planos diferentes:
que talvez seja um pouco difícil quer que as equipas voltem a treinar
neste momento para o coelho no início de maio, dando aos jogadores
uma “minipré-época” que os habilite a
chegar a todo o lado” voltar à competição no fim do mês. Os
jogos disputar-se-iam depois num blo-
JACINDA ARDERN, PRIMEIRA-MINISTRA DA NOVA ZELÂNDIA
co de oito semanas, incluindo jornadas
Numa comunicação feita às crianças do seu país, durante a qual anunciou a meio da semana, fechando a época
que tanto o coelho da Páscoa como a fada dos dentes foram considerados em julho. Acontece que o plano foi fei-
“trabalhadores essenciais” durante o período de confinamento to a contar com a data de 3 de agosto,
supostamente dada pela UEFA como
limite para indicar que clubes jogam as

“Acho que é um ato miserável próximas competições europeias. Um


limite que a própria UEFA desmentiu, o

e indigno, que o oportunista


que mostra a elasticidade do plano. Ou
prova que o plano é não ter plano.

Ventura está a fazer”


Tudo depende da curva. E o facto de
a portuguesa estar a crescer a um
ritmo menor do que outras faz crer na
PEDRO MARQUES LOPES, COMENTADOR E GESTOR hipótese de que até julho se joguem as
Acusando o deputado do Chega de se demitir de líder do partido para se recandidatar como forma de chamar a atenção. Francisco dez jornadas em falta e o campeonato
Louçã, por sua vez, disse que Ventura anda “a brincar às casinhas” durante a epidemia e que se mantém “num escritório de advogados termine com as 34 que conhecemos.
especialista em ajudar clientes ricos nas suas manobras fiscais”, não cumprindo a promessa de ficar em exclusividade na AR Mas não da forma que conhecemos: seja
em que data for, as bancadas continu-
arão despidas. Isto se o plano não for
apenas um desejo. Se há lição a guardar
“Considerei e explorei leis de direitos da experiência da covid-19 é a de que o
humanos para mudar o meu nome futuro é incerto. / JOÃO DIOGO CORREIA

e desaparecer noutro país e tornar-me


uma florista ou qualquer coisa, para deixar
o meu passado atrás de mim e não
incomodar ninguém com ele,
carregá-lo sozinha”
DUFFY, CANTORA E ATRIZ GALESA
Descrevendo pensamentos que teve depois de ter sido raptada
e violada, num longo post em que conta essa experiência.
A violação, diz, é como “estarmos vivos, mas mortos”

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C A RTA S A B E RTA S

NUNCA BAIXAREMOS A GUARDA.


ACHATAREMOS O PICO E FAREMOS

T
OBRAS DE GRANDE ALCANCE
HÁ UM CONSENSO POLÍTICO À VOLTA DE ACHATAR O PICO E NUNCA BAIXAR
A GUARDA. NÃO SÓ ME ASSOCIO COMO TENHO IDEIAS DE OUTRAS BOAS OBRAS

êm-nos dito e repetido, de Sua se aplanarmos o Pico, acabamos por ter estes resultados
Excelência o Presidente da República fantásticos que aqui descrevo. Penso que é mesmo razão para
ao não menos nosso excelêncio o nos congratularmos todos pelo esforço coletivo.
senhor primeiro-ministro, passando Ocorre-me que há muitas outras coisas que se podem fazer
pelas excelentíssimas e doutíssimas pelo nosso país. Por exemplo, não assorear o Porto; não perder
ministra da Saúde e diretora-geral da as Chaves; não derreter Manteigas; não mudar o tempo verbal
Saúde, que — e cito para que não restem de Leiria (para Leirá ou Leirou); não enxertar a Figueira da
mal-entendidos — “não podemos baixar Foz (nem qualquer outra Figueira, penso, como a de Castelo
a Guarda!”. Quero dizer que nada me Rodrigo); não alcatroar as Lajes (sejam as do Pico, sejam as das
deixaria mais de acordo do que este Flores); não aguçar Ponta Delgada; não orientar o Nordeste;
propósito politicogeográfico, partilhado não secularizar o Porto Santo; não republicanizar Vila Real;
por tanta e diversa gente de todos os não desolfatar Faro; não passar a chamar Giestes a Silves, nem
quadrantes da sociedade e da política, incluindo as forças Morenes a Loures, nem Isaltinândia a Oeiras (embora talvez
vivas, civis, militares e religiosas. merecesse), ou Caslevantas a Cascais.
A minha total oposição a que se baixe a Guarda fundamenta-se Ou seja, há muito a fazer para clarificar o nosso país, combater
em duas razões e numa terceira que me emprestou o dr. Luís a desigualdade, as alterações climáticas e a gentrificação. Não
Marques Mendes (que também é a favor de não baixar a sei se será este o melhor momento, mas entendo que devemos
Guarda): colocar este ponto na agenda quanto antes, de modo a que
1) A Guarda, como cidade mais alta do país, não pode ser jamais nos esqueçamos dele.
rebaixada. Não faria sentido que a cidade mais alta fosse uma Com o esforço de todos está-se a achatar o Pico, e todos nos
sem frio, sem neve, sem montanha; congratulamos. Salvo uns tantos, de que a polícia se encarrega,
2) Ao rebaixar a Guarda, corremos o risco de soterrar, já não mais pedagogicamente ou mais à bastonada, de impedir que
digo a Covilhã, mas por exemplo Valhelhas, onde um afilhado se baixe a Guarda. Estamos com a Guarda na altitude ideal.
meu tem uma casa de trás da orelha, onde se passam serões Valhelhas não está salva, mas é hoje um local muito mais
muito agradáveis, além de a localidade contar com dois seguro do que antes desta campanha. E, além disso, passa lá
restaurantes muito atrativos e simpáticos. Seria, pois, uma o rio Zêzere ainda antes de chegar à Barragem do Cabril, que
dupla perda baixar a Guarda e esmagar Valhelhas, ou mesmo nunca deve ser considerada do Redil, tal como a outra grande
que fosse Manteigas, Gouveia ou Seia, coisa que não desejamos; barragem do mesmo rio, a do Castelo de Bode, não pode ser do
3) A terceira razão é a que o dr. Luís Marques Mendes me Palácio do Carneiro. Não podemos, de modo nenhum, manter
fornece para ter sempre três razões para as coisas. É certo que indecisões num tempo de guerra em que não se limpam
ando a treinar para ter cinco razões, como o professor Marcelo, armas, porque não se pode. Elas são a nossa guarda e nunca
mas ainda não consigo. Será talvez mais fácil ter, como o dr. devemos baixá-la. b
António Costa, “dversas razões”, sem as enumerar, mas parece
menos científico... Adiante!
Os mesmos e outros próceres do regime salientam, com
ênfase, a necessidade de achatar ou aplanar o Pico. Sou
também favorável a essa demanda, por “dversas razões”. Em
primeiro lugar, a medida beneficia claramente os habitantes
da cidade da Horta, na ilha do Faial, que veem as suas casas e
ruas ensombradas pela majestade do Pico; em segundo lugar,
o Pico fica longe, muito mais longe do que a Torre, na serra da
Estrela, que passaria a ser, com o achatamento do Pico, o lugar
mais alto de Portugal; em terceiro lugar, no Pico não se podem / COMENDADOR
praticar desportos de inverno, coisa que na Torre é possível, o
que viria melhorar bastante o afluxo turístico à região. (Olha,
MARQUES
afinal, são três razões, como faz o dr. Marques Mendes, e não DE CORREIA
“dversas”, à António Costa.)
Seja como for — e, no geral, as coisas acabam sempre por
ser como são —, a estratégia política dos nossos líderes é,
neste caso, muito coerente. Se não baixarmos a Guarda e

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O regresso
da família
alargada
O confinamento social trouxe de novo
a família para o centro das nossas vidas.
O reconhecimento de que a família
nuclear foi um erro está a ser
acompanhado pelo surgimento de
novos paradigmas e pela descoberta
de formas melhores de se viver

FOTOGRAFIAS ALAMY

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É
uma cena que muitos de nós presenciámos algures inicial dessa fragmentação, a família nuclear, não
na história da nossa família. Dezenas de pessoas a parecia assim tão mau. Mas a seguir, como a família
celebrarem o Dia de Ação de Graças ou outro feriado nuclear era bastante frágil, a fragmentação continu-
qualquer numa fila improvisada de mesas familiares ou. Em muitos sectores da sociedade, as famílias nu-
— irmãos, primos, tias, tios, tias-avós. Os avós con- cleares fragmentaram-se em famílias de um único
tam as velhas histórias de família pela 37ª vez. “Foi o progenitor, e famílias de um único progenitor em fa-
lugar mais bonito que alguma vez vimos na vida”, diz mílias caóticas, ou não-famílias de todo.
um, recordando o seu primeiro dia na América. “Ha- Se quisermos resumir as mudanças na estrutu-
via luzes por todo o lado... Era uma celebração da luz! ra da família ao longo do último século, a coisa mais
Eu pensava que eram para mim.” verdadeira que podemos dizer é isto: tornámos a vida
Os mais velhos começam a discutir sobre qual de- mais livre para os indivíduos e mais instável para as
les tem melhor memória. “Estava frio naquele dia”, famílias. A vida ficou melhor para os adultos mas pior
diz um sobre qualquer recordação longínqua. “Do para as crianças. Passámos de famílias grandes, in-
que é que estás a falar? Era maio, fim de maio”, diz terconectadas e extensas, que ajudavam a proteger os
outro. As crianças estão sentadas, de olhos abertos, mais vulneráveis dos choques da vida, para famílias
absorvendo a tradição familiar e tentando reconsti- nucleares mais pequenas, isoladas (um casal e os seus
tuir a história das gerações. filhos), que dão aos mais privilegiados da sociedade
Após a refeição, há pilhas de pratos no lava-lou- espaço para maximizar os seus talentos e expandir
ças, esquadrões de crianças a conspirar malandrices os seus horizontes. Essa mudança, em última análi-
na cave. Grupos de pais jovens conversam num hall, se, levou a um sistema familiar que protege os ricos e
fazendo planos. Os velhos dormitam em sofás, à es- devasta a classe operária e os pobres.
pera da sobremesa. É a família alargada em toda a sua Este artigo é sobre esse processo, e sobre a destru-
glória, entrelaçada e cheia de amor. ição que causou — e sobre como os americanos estão
Esta família em particular é a representada num agora a tentar construir novos tipos de famílias e des-
filme de Barry Levinson, “Avalon” (1990), baseada na cobrir formas melhores de viverem.
sua própria infância em Baltimore. Cinco irmãos vie-
ram do leste da Europa para a América por volta da I Parte I
Guerra Mundial e construíram uma empresa de papel A ERA DOS CLÃS ALARGADOS
de parede. Durante algum tempo, fizeram tudo jun- Nas fases iniciais da história americana, a maioria das
tos, como no seu país de origem. Mas à medida que o pessoas viviam naquilo que, pelos padrões atuais,
filme avança, a família alargada começa a cindir-se. eram lares grandes e extensos. Em 1800, três quar-
Alguns membros mudam-se para os subúrbios, em tos dos trabalhadores americanos eram agricultores.
busca de paz e privacidade. Um parte para outro es- A maioria do outro quarto trabalhava em pequenos
tado onde arranjou um emprego. A grande explosão negócios familiares, como lojas de secos e molhados.
acontece a propósito de algo que parece trivial mas Uma data de braços eram necessários para operar es-
não é: o mais velho dos irmãos atrasa-se a chegar a ses negócios. Não era invulgar os casais terem sete ou
um jantar de Ação de Graças e descobre que a família oito crianças. Além disso, podia haver um ou outro tio
começou a comer sem ele. ou tia, primos, além de criados que não eram paren-
“Cortaram o peru sem mim?”, grita. “O sangue tes, aprendizes, trabalhadores rurais (nalguns propri-
do vosso sangue! Cortaram o peru?” O ritmo da vida edades do sul, claro, escravos afro-americanos tam-
está a acelerar. Conforto, privacidade e mobilidade são bém eram parte integral da produção e do trabalho).
mais importantes do que lealdade familiar. “A ideia de Steven Ruggles, professor de História e Estudos
que comiam antes de o irmão chegar era um sinal de de População na Universidade do Minnesota, chama
desrespeito”, disse-me Levinson recentemente quan- a isto “famílias corporativas” — unidades sociais or-
do lhe perguntei sobre essa cena. “Foi a verdadeira ganizadas em torno de um negócio familiar. Segundo
racha na família. Quando se viola o protocolo, toda Ruggles, em 1800, 90% das famílias americanas eram
a estrutura da família começa a entrar em colapso.” desse tipo. Até 1850, cerca de três quartos dos ameri-
À medida que os anos passam no filme, a família canos com mais de 65 anos viviam com os seus filhos
alargada desempenha um papel cada vez mais redu- e netos. As famílias nucleares existiam, mas estavam
zido. Nos anos 60, já não se junta no dia de Ação de rodeadas por famílias alargadas ou corporativas.
Graças. É só um pai e uma mãe jovens com o seu fi- As famílias alargadas têm duas grandes vanta-
lho e a sua filha, a comer peru em tabuleiros defronte gens. Uma é a resiliência. Uma família alargada é uma
da televisão. Na cena final, o personagem principal ou mais famílias numa rede de suporte. O cônjuge e
está a viver sozinho num lar, perguntando-se o que os filhos vêm primeiro, mas também há primos, so-
aconteceu. “No final, gasta-se tudo o que jamais se gros e genros, avós — uma complexa rede de relações
poupou, vende-se tudo o que jamais se teve, só para entre, digamos, sete, dez ou vinte pessoas. Se morre
existir num lugar como este.” uma mãe, irmãos, tios, tias e avós estão lá para inter-
“Na minha infância”, contou-me Levinson. “jun- vir. Se a relação entre um pai e um filho se rompe, ou-
távamo-nos à volta dos avós e eles contavam as histó- tros podem preencher o fosso. As famílias alargadas
rias de família. Agora as pessoas sentam-se à volta da têm mais gente para partilhar os fardos inesperados
televisão a ver as histórias de outras famílias.” O tema — quando um filho adoece a meio do dia ou um adul-
principal de “Avalon”, disse-me, é “a descentraliza- to perde inesperadamente o emprego.
ção da família. E isso hoje ainda continua a aumen- Uma família nuclear isolada, por contraste, é um
TEXTO
tar. Em tempos, as famílias juntavam-se à volta da conjunto intenso de relações entre, digamos, quatro
DAVID BROOKS televisão. Agora cada pessoa tem o seu próprio ecrã.” pessoas. Se uma relação se quebra, não há amortece-
COLUNISTA DO “THE NEW YORK TIMES” Isto é a história do nosso tempo — a história da dores do choque. O fim do casamento significa o fim
DESDE 2003. É O AUTOR DE “O ANIMAL família, que era um denso aglomerado de muitos ir- da família como antes era entendida.
SOCIAL” (2012) E “O CAMINHO mãos e demais parentela, fragmentando-se em for- A segunda grande vantagem das famílias alar-
PARA O CARÁTER” (2016) mas cada vez mais pequenas e frágeis. O resultado gadas é a sua força socializadora. Múltiplos adultos

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ajudam as crianças a distinguir o bem e o mal, como Durante este período, um certo ideal da família
se comportarem com outras pessoas, como serem gravou-se nas nossas mentes: um par casado com 2,5
gentis. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a industria- filhos. Quando pensamos na família americana, mui-
lização e as mudanças culturais começaram a amea- tos de nós ainda regressamos a este ideal. Quando te-
çar formas tradicionais de vida. Muita gente na Grã- mos debates sobre como fortalecer a família, estamos
-Bretanha e nos Estados Unidos apostou ainda mais a pensar na família nuclear com dois progenitores,
na família alargada como refúgio moral num mun- provavelmente habitando uma casa autónoma nalgu-
do sem coração. Segundo Ruggles, a prevalência de ma rua dos subúrbios. Assumimo-la como a norma,
famílias alargadas a viverem juntas mais ou menos embora ela não tenha sido a forma como a maioria
duplicou entre 1750 e 1900, e esta forma de vida era dos humanos viveram durante dezenas de milhares
então mais comum do que em qualquer outra época, de anos antes de 1950, e não seja a forma como a mai-
antes ou depois. oria dos humanos têm vivido nos últimos 55 anos.
Durante a era vitoriana, a ideia de “casa e famí- Atualmente, só uma minoria dos lares americanos
lia” tornou-se um ideal cultural. A casa é “um lugar são famílias nucleares tradicionais com dois progeni-
sagrado, um templo vestal, um templo da lareira vi- tores, e só um terço dos americanos vivem nesse tipo
giado pelos deuses da casa, ante cujas faces ninguém de família. Essa janela entre 1950-1965 não foi nor-
pode vir senão os que eles acolhem com amor”, es- mal. Foi um momento histórico bizarro em que toda
creveu o grande crítico social britânico John Ruskin. a sociedade conspirou, conscientemente ou não, para
A mudança foi conduzida pela classe média-alta, que ocultar a fragilidade essencial da família nuclear.
estava a começar a ver a família menos como uma Desde logo, a maioria das mulheres foram relega-
unidade económica e mais como uma unidade emo- das para o lar. A maioria das empresas, até meados do
cional e moral, uma casa paroquial para a formação século XX, impediam as mulheres casadas de traba-
de corações e almas. lhar. Podiam contratar mulheres solteiras, mas se elas
Mas embora as famílias alargadas tenham van- casassem tinham de ir embora. O tratamento humi-
tagens, também podem ser cansativas e asfixian- lhante e incapacitante das mulheres era generalizado.
tes. Permitem pouca privacidade; temos de estar em As mulheres passavam imensas horas presas dentro
contacto direto com pessoas que não escolhemos. Há de casa sob a direção do marido, criando filhos.
mais estabilidade mas menos mobilidade. Os laços de Por outro lado, as famílias nucleares desta época
famílias são mais densos, mas a escolha individual di- estavam muito mais ligadas às outras famílias nucle-
minui. Na era vitoriana, as famílias eram patriarcais, ares do que estão hoje — constituindo uma “família
favorecendo os homens em geral e os primogénitos alargada modificada”, como lhe chama o sociólogo
em particular. Eugene Litwak, “uma coligação de famílias nucleares
Quando as fábricas abriram nas grandes cidades num estado de dependência mútua”. Ainda nos anos
dos EUA, no fim do século XIX e inícios do XX, ho- 50, antes de a televisão e o ar condicionado se terem
mens e mulheres jovens deixaram as suas famílias massificado, as pessoas continuaram a viver nos al-
alargadas para perseguir o sonho americano. Casa- pendres umas das outras e eram parte das respetivas
vam logo que podiam. Um jovem numa quinta po- vidas. Os amigos sentiam-se à vontade para discipli-
deria esperar até aos 26 anos para se casar; na cidade nar os filhos dos outros.
solitária, era aos 22 ou 23 anos. Entre 1890 e 1960, a No seu livro “The Lost City” (A Cidade Perdida),
idade média do primeiro casamento baixou 3,6 anos o jornalista Alan Ehrenhalt descreve a vida em Chi-
para os homens e 2.2 para as mulheres. cago e nos seus subúrbios em meados do século: “Ser
As famílias que criavam eram famílias nucleares. um jovem proprietário num subúrbio como Elmhurst
O declínio das famílias multigeracionais em coabi- nos anos 50 era participar num empreendimento co-
tação reflete exatamente o declínio em emprego na munitário a que só os solitários mais empedernidos
agricultura. As crianças já não eram criadas para as- poderiam escapar: barbecues, encontros para tomar
sumirem papéis económicos — eram criadas para que café e conversar, jogos de voleibol, cooperativas de
na adolescência pudessem voar do ninho, tornar-se baby-sitting e uma constante troca de objetos domés-
independentes e procurar os seus próprios parceiros. ticos, educação de crianças pelos pais que estivessem
Não eram criadas para a integração mas para a auto- mais próximos, vizinhos a entrar pela porta dentro a
nomia. Por volta dos anos 20, a família nuclear com qualquer hora sem bater — tudo isto eram esquemas
um ganha-pão do sexo masculino tinha substituído através dos quais os jovens adultos instalados no de-
a família corporativa como a forma familiar domi- serto dos bairros residenciais construíam uma comu-
nante. Em 1960, 77,5% de todas as crianças viviam nidade. Era uma vida vivida em público.”
com os seus pais, que eram casados, e afastadas da Por último, as condições na sociedade em geral
sua família alargada. eram ideais para a estabilidade familiar. O pós-guerra
foi um período em que ir à igreja, a sindicalização, a
A VIDA CURTA E FELIZ DA FAMÍLIA ALARGADA confiança social e a prosperidade de massas estavam
Durante algum tempo, pareceu funcionar. Entre 1950 em alta — tudo coisas em correlação com a coesão
e 1965, as taxas de divórcio baixaram, as de fertilidade da família. Um homem podia com relativa facilidade
subiram, e a família nuclear americana parecia estar encontrar um emprego que lhe permitisse ser o úni-
em ótima forma. E a maioria das pessoas pareciam co ganha-pão de uma família. Em 1961, o americano
prósperas e felizes. Durante esses anos, formou-se médio do sexo masculino entre os 25 e os 29 anos de
uma espécie de culto à volta desse tipo de família — idade ganhava cerca de 400 por cento mais do que o
aquilo a que a “McCall’s”, a principal revista femini- seu pai tinha ganho na mesma idade.
na da altura, chamava “togetherness” (estar junto). Em suma, o período entre 1950 e 1965 demonstrou
Pessoas saudáveis viviam em famílias com dois pro- que é possível construir uma sociedade estável em
genitores. Numa sondagem de 1957, mais de meta- torno de famílias nucleares — desde que as mulhe-
de dos inquiridos dizia que as pessoas solteiras eram res fossem relegadas para o lar, as famílias nucleares
“doentes”, “imorais” ou “neuróticas”. estivessem tão interligadas que fossem basicamente

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famílias alargadas com outro nome, e todas as con- Ao longo das últimas duas gerações, as pessoas meritocracia; ao reduzirem o stresse e os compromis-
dições económicas e sociológicas funcionassem em têm vindo a passar cada vez menos tempo num ca- sos de tempo dos pais, preservam a cordialidade no
conjunto para apoiar a instituição. samento — casam mais tarde, se é que casam, e di- casamento. Os conservadores prósperos costumam
Mas estas condições não duraram. A constelação vorciam-se mais. Em 1950, 27% dos casamentos ter- dar-se palmadinhas nas costas por terem famílias
de forças que tinham temporariamente suportado a minavam em divórcio; hoje, são 45%. Em 1960, 72% estáveis, e pregam que toda a gente também devia
família nuclear começaram a cair, e a família prote- dos americanos adultos eram casados; em 2017, quase ser como eles. Mas ignoram as principais razões pelas
gida dos anos 50 foi suplantada pela família stressada metade são solteiros. Segundo um relatório do Urban quais as suas famílias são estáveis: podem-se permi-
de todas as décadas posteriores. Alguns dos stresses Institute, em 2014 cerca de 90% das baby boomers e tir comprar o apoio que a família alargada costumava
eram económicos. A partir de meados dos anos 70, os 80% das mulheres da geração-X casavam por vol- fornecer — e que as pessoas às quais pregam, muito
ordenados dos jovens desceram, pressionando as fa- ta dos 40, e previa-se que apenas 70% das millenni- abaixo delas na escala de rendimento, não podem.
mílias da classe trabalhadora, em particular. Outros als o viessem a fazer — a taxa mais baixa da história Em 1970, as estruturas familiares dos ricos e dos
stresses eram culturais. A sociedade tornou-se mais americana. E embora mais de 4/5 dos adultos ame- pobres não diferiam assim tanto. Hoje há um fosso
individualista e mais orientada para si própria. As ricanos dissessem num inquérito do Pew Research entre elas. Em 2005, 85% das crianças nascidas em
pessoas davam mais valor à privacidade e à autono- Center que casar não era essencial para ter uma vida famílias de classe média-alta viviam com ambos os
mia. Um movimento feminista em ascensão ajudou preenchida, não é só a instituição do casamento que pais biológicos quando a mãe tinha 40 anos. Entre as
a atribuir às mulheres mais liberdade para viverem e eles estão a rejeitar. Em 2004, 33% dos americanos famílias de classe trabalhadora, a percentagem era
trabalharem como entendessem. entre os 18 e os 34 anos viviam sem um companhei- 30%. Segundo um relatório do Centro Nacional para
Um estudo das revistas femininas entre 1900 e ro, segundo a General Social Survey (inquérito social as Estatísticas de Saúde em 2012, entre mulheres dos
1979 feito pelos sociólogos Francesca Cancian e Ste- geral). Em 2018, esse número era de 51%. 22 aos 44 anos com um curso universitário, a proba-
ven L. Gordon descobriu que os temas que colocavam Ao longo das duas últimas gerações, as famílias bilidade de que o primeiro casamento dure pelo me-
a família acima da vontade própria dominavam nos também ficaram muito mais pequenas. A taxa geral nos 20 anos é de 78%. Para as mulheres na mesma
anos 50: “Amor significa autossacrifício e compro- de fertilidade é metade do que era nos anos 60. Em banda etária que só terminaram o liceu ou nem isso,
misso.” Nos anos 60 e 70, pôr-se a si mesma antes da 2012, a maioria dos lares americanos não tinha cri- a percentagem é 40%. Entre os americanos dos 18 aos
família era proeminente: “O amor significa autoex- anças. Há mais lares com animais domésticos do que 55 anos, só 26% dos pobres e 39% dos americanos de
pressão e individualidade.” Os homens também ab- com filhos. Em 1970, cerca de 20% dos lares tinham classe trabalhadora são casados atualmente. No seu
sorveram estes temas culturais. A principal tendência cinco ou mais pessoas; em 2012, só 9,6%. livro “Generation Unbound” (Geração à Solta), Isa-
na cultura baby boomer era geralmente a libertação: Nas duas últimas gerações, o espaço físico a sepa- bel Sawhill, economista na Brookings Institution, cita
‘Free Bird’, ‘Born to Run’, ‘Ramblin’ Man’. rar as famílias nucleares alargou-se. Antigamente, as pesquisas segundo as quais as diferenças na estru-
Eli Finkel, psicólogo e estudioso do casamento na cunhadas cumprimentavam-se em voz alta a partir tura familiar “aumentaram em 25% a desigualdade
Universidade Northwestern, tem afirmado que, des- dos respetivos alpendres. As crianças corriam de casa de rendimentos”. Se os Estados Unidos voltassem às
de os anos 60, a cultura familiar dominante tem sido em casa e comiam do frigorífico que estivesse mais taxas de casamento de 1970, a pobreza infantil seria
o “casamento autoexpressivo”. “Os americanos”, próximo. Mas os relvados tornaram-se mais amplos 20% mais baixa. Andrew Cherlin, sociólogo na Uni-
escreveu, “cada vez mais procuram no casamento a e a vida no alpendre decaiu, criando um tampão que versidade Johns Hopkins, disse em tempos: “São os
autodescoberta, a autoestima e o desenvolvimento separa a casa e a família de todas as outras. Confor- americanos privilegiados que se estão a casar, e casar
pessoal”. O casamento, segundo os sociólogos Kath- me notou recentemente Mandy Len Catron na revis- ajuda-os a permanecerem privilegiados.”
ryn Edin e Maria Kefalas, “já não tem a ver com ter e ta “The Atlantic”, os casais têm menos probabilidade Juntando tudo, estamos a passar por aquela que é
criar filhos antes de tudo o m. Agora tem sobretudo a de visitar parentes e irmãos, e menos inclinação para provavelmente a mudança mais rápida da estrutura
ver com realização pessoal dos adultos”. os ajudar com tarefas ou os apoiar emocionalmen- familiar na história humana. As causas são ao mesmo
Esta alteração cultural foi muito boa para alguns te. Prevalece um código de autossuficiência familiar: tempo económicas, culturais e institucionais. Pessoas
adultos, mas não tão boa como isso para as famílias mãe, pai e filhos estão por si mesmos, com uma bar- que crescem numa família nuclear tendem a ter uma
em geral. Há menos parentes presentes em alturas de reira em torno da ilha que é a sua casa. mentalidade mais individualista do que pessoas que
stresse para ajudar um casal. Quando o casamento foi Por fim, ao longo das duas últimas gerações, as crescem num clã multigeracional alargado. Pessoas
por amor, permanecer junto faz menos sentido se o famílias tornaram-se mais desiguais. A América tem com uma mentalidade individualista tendem a estar
amor desaparece. Esta atenuação dos laços matrimo- agora dois regimes familiares completamente dis- menos dispostas a sacrificarem-se pela família, e o
niais poderá ter começado nos finais do século XIX. tintos. Entre as pessoas com formação elevada, os resultado é mais disrupçāo familiar. Pessoas que cres-
O número de divórcios aumentou quinze vezes en- padrões familiares são quase tão estáveis como eram cem em famílias quebradas têm mais dificuldade em
tre 1870 e 1920, e a seguir foi subindo mais ou menos nos anos 50; entre os menos afortunados, a vida de conseguir a educação de que necessitam para terem
continuamente durante as primeiras décadas da fa- família é com frequência um caos total. Existe uma carreiras prósperas. Pessoas sem carreiras prósperas
mília nuclear. Conforme notou o historiador intelec- razão para essa diferença: as pessoas prósperas têm têm dificuldade em construir famílias estáveis, devi-
tual Christopher Lasch nos anos 70, a família ameri- recursos para comprarem uma família alargada que do aos desafios financeiros e outros fatores de stres-
cana não começou a quebrar-se nos anos 60; tinha-se os apoia. Pense-se em todo o trabalho de criação de se. As crianças nessas famílias ficam mais isoladas e
“começado a quebrar há mais de cem anos”. filhos agora contratado pelos pais com dinheiro mas mais traumatizadas.
Hoje os americanos têm menos família do que ja- que costumava ser feito por parentes: babysitting, Muitas pessoas a crescer nesta era não têm ne-
mais tiveram. De 1970 a 2012, a percentagem de lares cuidado profissional de crianças, tutores, coaching, nhuma base segura a partir da qual se possam lança,
que consistem num matrimónio com filhos desceu terapia, programas pós-escolares dispendiosos. (Já e nenhum caminho bem definido para a idade adul-
para metade. Em 1960, segundo dados do censo, ape- agora, pense-se como os ricos podem contratar tera- ta. Para os que dispõem do capital humano necessá-
nas 13% de todos os lares eram de pessoas solteiras. peutas e life coaches para si mesmos, como substitutos rio para explorar, cair e ter a queda amortecida, isso
Em 2018, esse número era 28%. Em 1850, 75% dos de parentes ou amigos próximos.) Estes instrumentos significa mais liberdade e oportunidade. Para quem
americanos com mais de 65 anos viviam com paren- e serviços não se limitam a apoiar o desenvolvimen- não tem esses recursos, tende a implicar grande con-
tes; em 1990, só 18%. to das crianças e a prepará-las para competirem na fusão, desvios e dor.

No último século tornámos a vida mais livre para os


indivíduos e mais instável para as famílias. A vida
ficou melhor para os adultos, mas pior para as crianças
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Nos últimos 50 anos, governos ao nível federal e são comuns — ganham menos e morrem mais cedo família que resulta para elas. E claro que devem. Mas
estatal têm tentado mitigar os efeitos negativos des- do que os casados. a maioria das novas formas não resultam bem para
tas tendências. Tentaram fazer subir as taxas de casa- Para as mulheres, a estrutura da família nuclear a maioria das pessoas, e, embora as elites progres-
mento e descer as de divórcio, aumentar a fertilida- impõe pressões diferentes. Embora as mulheres te- sistas digam que todas as estruturas familiares são
de e tudo o resto. O foco tem sido sempre fortalecer nham ganho imenso com o relaxamento das estru- boas, o seu próprio comportamento sugere que acre-
a família nuclear, não a alargada. Ocasionalmente, turas familiares tradicionais — têm mais liberdade ditam noutra coisa. Conforme o sociólogo W. Brad-
há um programa discreto com resultados positivos, para escolher as vidas que desejam — muitas mães ford Wilcox notou, progressistas altamente educados
mas o aumento da desigualdade familiar continua que decidem criar os seus filhos pequenos sem uma podem ter uma conversa tolerante sobre estruturas
imparável. família alargada próxima descobrem que escolheram de família quando falam da sociedade em geral, mas
As pessoas que sofrem mais com o declínio do um estilo de vida brutalmente duro e isolador. A si- têm expectativas extremamente estritas para as suas
apoio familiar são os vulneráveis, em especial as cri- tuação é exacerbada pelo facto de as mulheres ainda próprias famílias. Quando Wilcox perguntou aos seus
anças. Em 1960, cerca de 5% nasciam de mães soltei- passarem significativamente mais tempo do que os estudantes na Universidade da Virginia se achavam
ras. Hoje são 40%. O Pew Research Center reportou homens em tarefas domésticas e a tratar dos filhos, que ter um filho fora do casamento era errado, 62%
que 11% das crianças viviam afastadas do seu pai em segundo dados recentes. Donde a realidade que ve- disseram que não. Quando lhes perguntou como se
1960. Em 2010, eram 27%. Atualmente, cerca de me- mos à nossa volta: mães stressadas e cansadas que sentiriam os seus próprios pais se eles tivessem um fi-
tade das crianças americanas passarão a sua infância tentam equilibrar o trabalho e a educação dos filhos, lho fora do casamento, 97% disseram que os pais “fi-
com ambos os pais biológicos. 20% dos jovens adul- e que têm de remarcar trabalho quando a vida fami- cariam malucos”. Num recente inquérito do Instituto
tos não têm nenhum contacto com o seu pai (embora liar se atrapalha. para Estudos da Família, californianos com formação
nalguns casos seja por ele ter morrido). As crianças Sem as famílias alargadas, os americanos mais superior entre os 18 e os 50 anos tinham menos pro-
americanas têm uma probabilidade maior de vive- velhos também sofreram. Segundo a AARP [a maior babilidade do que os não-formados de achar que ter
rem com um único progenitor do que as crianças de associação de reformados nos Estados Unidos], 35% um filho fora do casamento era errado. Mas tinham
qualquer outro país. dos americanos com mais de 45 anos dizem que estão maior probabilidade de dizer que pessoalmente não
Todos nós conhecemos famílias com um único cronicamente solitários. Muitas pessoas mais velhas aprovavam ter filhos fora do casamento.
progenitor que são estáveis e cheias de amor. Mas são agora “órfãos idosos”, sem parentes próximos Por outras palavras, enquanto os socialmen-
em média, os filhos de pais solteiros ou não casa- ou amigos que tomem conta delas. Em 2015, o diário te conservadores têm uma filosofia da vida familiar
dos tendem a apresentar piores indicadores de sa- “The New York Times” publicou um artigo intitulado que não podem operacionalizar, porque já não é re-
úde, tanto físicos como mentais, menos sucesso “A morte solitária de George Bell”, sobre um homem levante, os progressistas não têm nenhuma filosofia
académico, mais problemas de comportamento de 72 anos sem família que morreu sozinho e apo- de vida, por não querem dar ideia que estão a fazer
e taxas maiores de absentismo escolar do que as dreceu durante tanto tempo no seu apartamento em julgamentos. A revolução sexual veio e foi-se, deixan-
crianças que vivem com ambos os pais biológicos. Queens que, na altura em que a polícia o encontrou, do-nos sem normas para a vida familiar, sem valores
Segundo trabalho efetuado por Richard V. Reeves, o seu corpo estava irreconhecível. condutores, sem ideais articulados. Neste tema tão
codiretor do Centro para Crianças e Famílias na Em 2004, a jornalista e urbanista Jane Jacobs pu- central, a nossa cultura com frequência nada tem a
Brookings Institution, quem nasce na pobreza e é blicou o seu último livro, uma análise da sociedade dizer. E assim, as coisas têm vindo a desmoronar-se.
criado por pais casados tem 80% de hipóteses de americana chamada “Dark Age Ahead” (Era Negra à A boa notícia é que os seres humanos se adaptam,
escapar dela. Para quem nasce na pobreza e é cri- Frente). Na essência do seu argumento estava a ideia mesmo quando a política é lenta a fazê-lo. Quando
ado por uma mãe solteira, a probabilidade de não de que as famílias estavam “viciadas para falhar”. As uma forma de família deixa de funcionar, as pessoas
progredir é 50%. estruturas que em tempos apoiavam a família deixa- vão à procura de outra — às vezes, encontrando-a em
Não é só a falta de relações que prejudica as cri- ram de existir, escrevia ela. Jacobs era demasiado pes- algo muito antigo.
anças; é a agitação. Segundo um estudo de 2003 que simista em relação a muitas coisas, mas para milhões
Andrew Cherlin cita, 12% das crianças americanas de pessoas a mudança de famílias grandes e/ou alar- Parte II
viveram em pelo menos três “relações parentais” an- gadas para famílias nucleares foi de facto um desastre. REDEFININDO O PARENTESCO
tes dos 15 anos. Os momentos de transição, quando Com a decadência das estruturas sociais que apoi- No início era o bando. Durante dezenas de milhares
o anterior parceiro da mãe vai embora ou o novo en- avam a família, o debate sobre ela assumiu um tom de anos, as pessoas viviam comummente em peque-
tra em cena, são os mais duros para as crianças, de- quase mítico. Conservadores sociais insistem que é nos grupos de, digamos, 25 pessoas, que se ligavam
monstra Cherlin. possível regressar à família nuclear. No entanto, as com talvez outros 20 grupos para formar uma tribo.
Embora as crianças sejam o grupo vulnerável mais condições que permitiam a estabilidade dessas fa- As pessoas no bando saíam à procura de comida e
obviamente afetado pelas recentes mudanças na es- mílias nos anos 50 jamais voltarão. Os conservado- traziam-na de volta para partilhar. Caçavam juntas,
trutura da família, não foram o único. res nada têm a dizer ao miúdo cujo pai foi embora, travavam guerras juntas, faziam roupa uns para os
Considerem-se os homens solteiros. Nas famílias cuja mãe teve outros três filhos com pais diferentes; outros, tomavam conta dos filhos uns dos outros. Em
alargadas os homens beneficiavam das influências “vai viver numa família nuclear” não é realmente um todas as áreas da vida, confiavam na sua família alar-
fortificantes da solidariedade masculina e do com- conselho relevante. Se apenas uma minoria dos lares gada e no seu parentesco mais amplo.
panheirismo feminino. Hoje, muitos americanos do são famílias tradicionais, isso significa que a maio- Só que não definiam parentesco como nós hoje o
sexo masculino vivem os primeiros 20 anos das suas ria deles são alguma outra coisa: pais solteiros, pais fazemos. Pensamos em parentes como gente biolo-
vidas sem um pai, e os 15 seguintes sem uma esposa. que nunca casaram, famílias mistas, famílias enca- gicamente ligada a nós. Mas ao longo da maior par-
Kay Hymowitz, do Manhattan Institute, tem passa- beçadas pelos avós, relações em série, e por aí adi- te da história humana, o parentesco era algo que se
do boa parte da sua carreira a examinar a destruição ante. As ideias conservadoras não acompanharam podia criar.
provocada pelo declínio da família americana, e cita esta realidade. Os antropólogos discutem há décadas o que é exa-
provas de que, na ausência da conexão e do signifi- Os progressistas, entretanto, ainda falam como tamente o parentesco. Estudando sociedades tradi-
cado que a família providencia, os homens solteiros individualistas autoexpressivos dos anos 70: as pes- cionais, encontraram grandes variedades de paren-
são menos saudáveis — o álcool e o abuso de drogas soas devem ter a liberdade de escolher a forma de tesco criado entre diferentes culturas. Para a tribo

Uma das grandes vantagens da família alargada


é a sua força socializadora. Múltiplos adultos ajudam
as crianças a distinguir o bem e o mal
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relativamente individualista existia ao lado da cultura
bastante comunitária dos americanos nativos. No seu
livro “Tribe” (Tribo), Sebastian Junger descreve o que
aconteceu a seguir: embora colonos europeus fossem
saindo da sua sociedade para irem viver com tribos
nativas, quase nenhuns americanos nativos alguma
vez fizeram o percurso inverso. Os europeus às vezes
capturavam americanos nativos e obrigavam-nos a ir
viver com eles. Ensinavam-lhes inglês e instruíam-
-nos no modo ocidental de fazer as coisas. Mas quase
sempre que podiam, os indígenas americanos fugi-
am. Colonos europeus eram às vezes capturados por
americanos nativos durante guerras e ficavam a viver
em comunidades nativas. Raramente tentavam fugir.
Isto incomodava os europeus. Se eles tinham uma ci-
vilização superior, por que é que as pessoas queriam
ir viver noutro lugar?
Quando lemos esses relatos, não podemos deixar
de pensar se a nossa civilização não terá, de alguma
forma, cometido um erro gigantesco.
Não podemos voltar para trás, claro. Os individu-
alistas ocidentais já não são o tipo de pessoas que vi-
vem em bandos pré-históricos. Talvez já nem sejamos
o tipo de pessoas que aparecem nas cenas iniciais de
“Avalon”. Valorizamos demasiado a liberdade e a li-
berdade individual.
A nossa cultura, estranhamente, ficou presa. Que-
remos estabilidade e raízes, mas também mobilidade,
capitalismo dinâmico, e liberdade de adotar o estilo
de vida que escolhermos. Queremos famílias próxi-
mas, mas não os constrangimentos legais, culturais
e sociológicos que as tornavam possíveis. Vimos a
destruição deixada pelo colapso da família nucle-
ar isolada. Vimos a subida do suicídio, da depressão,
da desigualdade — tudo produtos, em parte, de uma
estrutura familiar que é demasiado frágil, e de uma
sociedade que é demasiado separada, desconectada
e desconfiada. No entanto, não podemos regressar a
um mundo mais coletivo. As palavras que os histo-
riadores Steven Mintz e Susan Kellog escreveram em
1988 ainda são mais verdadeiras hoje: “Muitos ame-
ricanos andam em busca de um novo paradigma da
vida familiar americana, mas entretanto reina um
profundo sentido de ambivalência e confusão.”

A MUDANÇA EM CURSO
Porém, sinais recentes sugerem pelo menos a possibi-
lidade de que um novo paradigma da família esteja a
emergir. Muitas das estatísticas que citei são terríveis.
llongot das Filipinas, pessoas que migraram juntas próximos uns dos outros. Num estudo de 32 socieda- Mas descrevem o passado — o que nos trouxe até onde
para algum lado são parentes. Para o povo do vale des caçadoras-recolectoras atuais, os parentes próxi- agora nos encontramos. Evidência acumulada suge-
de Nebilyer na Nova Guiné, o parentesco é criado es- mos — pais, irmãos e crianças — normalmente cons- re que, em reação ao caos da família, a priorização da
fregando gordura — a força da vida que se encon- tituíam menos de 10% de um grupo residencial. Fa- família está a começar a voltar. Os americanos estão
tra no leite materno ou na batata-doce. Os chuuke- mílias alargadas em sociedades tradicionais podiam a experimentar novas formas de parentesco e família
se da Micronesia têm uma expressão: “O meu irmão ou não ser biologicamente próximas, mas eram pro- alargada, em busca de estabilidade.
da mesma canoa”; se dois indivíduos sobrevivem a vavelmente mais próximas em termos emocionais do Normalmente, o comportamento muda antes de
uma prova perigosa no mar, tornam-se parentes. Na que a maioria de nós pode imaginar. Num belo ensaio constatarmos que emergiu um novo paradigma cul-
costa norte do Alasca, os inupiat dão aos seus filhos sobre parentesco, Marshall Sahlins, antropólogo na tural. Imaginem centenas de milhões de pequenas se-
os nomes de pessoas mortas, e eles são considerados Universidade de Chicago, diz que o parentesco em tas. Em alturas de transformação social, elas mudam
membros da família dessas pessoas. muitas dessas sociedades partilha uma “mutualida- de direção — inicialmente só umas poucas, a seguir
Por outras palavras, durante vastas extensões da de de ser”. O falecido estudioso de religiões J. Prytz- muitas delas. Durante algum tempo ninguém repa-
história humana, as pessoas viviam em famílias alar- -Johansen escreveu que o parentesco é sentido como ra, mas as pessoas acabam por reconhecer que emer-
gadas, consistindo não apenas em pessoas relaciona- uma “solidariedade interior” das almas. A falecida giu um novo padrão, e um novo conjunto de valores.
das com elas mas em pessoas com quem escolhiam antropóloga sul-africana Monica Wilson descreveu Isso pode estar a acontecer agora — em parte por
cooperar. Uma equipa internacional de investigado- parentes como “misticamente dependentes” uns dos necessidade mas também por escolha. Desde os anos
res fez recentemente uma análise genética de pesso- outros. Pertencem uns aos outros, escreve ela, pois 60, e em especial desde a recessão de 2008, as pres-
as que foram enterradas juntas — e portanto, presu- veem-se como “membros uns dos outros”. sões económicas têm levado os americanos a depen-
mivelmente, viviam juntas — há 34 mil anos no que Nos séculos XVII e XVIII, quando os protestantes der mais da família. A partir de 2012, a percentagem
é agora Rússia. Descobriram que não eram parentes europeus chegaram à América do Norte, a sua cultura de filhos que vivem com pais casados começou a

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subir. E os estudantes universitários têm mais con- site CoAbode, mães solteiras podem encontrar ou- japoneses descobriu que as mulheres nos lares multi-
tacto com os pais do que tinham há uma geração. tras mães solteiras interessadas em partilhar casa. geracionais no Japão tinham um risco maior de doen-
Tendemos a criticar isto falando em “pais-helicóp- Por todo o país, encontram-se projetos de coabitação, ça cardíaca do que as que vivam apenas com maridos,
tero” e em “lançamentos falhado” [i.e. filhos que não nos quais grupos de adultos vivem como membros de provavelmente devido ao stresse. Mas hoje os arran-
conseguem tornar-se adultos autónomos, às vezes uma família alargada, com quartos separados e áre- jos domésticos das famílias alargadas têm papéis de
por excesso de atenção dos pais], e tem os seus ex- as comunitárias partilhadas. Common, uma empre- género muito mais diversos.
cessos. Mas o processo educacional é hoje mais lon- sa de imobiliário estabelecida em 2015, opera mais de E contudo, pelo menos num aspeto, as novas fa-
go e dispendioso, portanto, faz sentido os adultos jo- 25 comunidades de coabitação em seis cidades, onde mílias que os americanos estão a formar pareceriam
vens dependerem dos seus pais mais tempo do que jovens solteiros podem viver dessa forma. Common familiares aos nossos antepassados caçadores-reco-
anteriormente. também se aliou recentemente a outro promotor, letores de eras remotas. É que são famílias escolhidas
Em 1980, apenas 12% dos americanos viviam em Tishman Speyer, para lançar Kin, uma comunidade — transcendem linhas tradicionais de parentesco.
lares multigeracionais. A crise de 2008 levou a um de coabitação para pais jovens. Cada família tem o O moderno movimento da família escolhida ga-
grande aumento, e hoje 20% — 64 milhões de pes- seu próprio espaço de habitação, mas as instalações nhou proeminência em São Francisco nos anos 80
soas, o número mais elevado de todos os tempos — também disponibilizam espaços infantis partilhados, entre gays e lésbicas, muitos dos quais se haviam
vivem num lar desse tipo. serviços de cuidados infantis e eventos e saídas ori- afastado das suas famílias biológicas e apenas se ti-
O renascimento da família alargada foi em grande entados para a família. nham uns aos outros para se apoiarem a lidar com
parte devido aos jovens adultos que regressam a casa. Estas experiências, e outras como elas, sugerem o trauma da crise da sida. No seu livro “Families We
Em 2014, 35% dos homens americanos entre os 18 e que, embora as pessoas ainda queiram flexibilidade Choose: Lesbians, Gays, Kinship” (As Famílias que
os 34 anos viviam com os seus pais. Com o tempo, e alguma privacidade, andam em busca de formas Escolhemos: Lésbicas, Gays, Parentesco), a antropó-
esta mudança pode revelar-se como essencialmente de vida mais comunitárias, guiadas por um conjunto loga Kath Weston escreve: “As famílias que vi gays e
saudável, impelida não só pela necessidade econó- de valores ainda em desenvolvimento. Em Temescal lésbicas criarem na Bay Area tendiam a ter fronteiras
mica como por impulsos sociais beneficentes; dados Commons, uma comunidade de coabitação em Oak- extremamente fluidas, algo como a organização de
de sondagens sugerem que muitos jovens já preveem land, Califórnia, os 23 membros, com idades entre um parentesco entre setores dos afro-americanos, dos
ajudar os seus pais na velhice. e 83 anos, vivem num complexo com 23 unidades de índios americanos e da classe operária branca.”
Outra parte desse renascimento é atribuível aos habitação. Isto não é nenhuma comuna rica de hips- Tal como os seus equivalentes heterossexuais,
seniores que vão viver com os seus filhos. A percenta- ters na Bay Area, em São Francisco. Os apartamentos a maioria dos gays e das lésbicas insistiam que os
gem de seniores a viver sozinhos atingiu um pico por são pequenos, e os residentes são pessoas de classe membros da família eram gente que estava “ali para
volta de 1990. Agora, mais de um quinto dos america- média ou trabalhadora. Têm um pátio partilhado e te ajudar”, pessoas em quem se contava, emocional
nos acima dos 65 anos vivem em lares multigeracio- uma cozinha de dimensões industriais, onde os re- e materialmente. “Eles tomam conta de mim”, disse
nais. Isto não inclui a larga fatia de idosos que se mu- sidentes preparam um jantar comum nas noites de um homem. “Eu tomo conta deles.”
dam para perto dos netos mas não para a mesma casa. quinta-feira e domingo. A manutenção é uma res- Estes grupos são o que Daniel Burns, cientista po-
O regresso da coabitação multigeracional já está ponsabilidade comum. Os adultos partilham as ta- lítico da Universidade de Dallas, chama “famílias for-
a mudar a paisagem construída. Um inquérito de refas de babysitting, e todos emprestam açúcar e leite jadas”. A tragédia e o sofrimento juntaram as pessoas
uma empresa de consultoria imobiliária em 2016 uns aos outros. Quando membros desta família alar- de uma forma que é mais profunda do que um mero
constatou que 44% dos compradores de casa procu- gada tiveram fases de desemprego ou grandes crises arranjo doméstico de conveniência. Elas tornam-se,
ravam uma onde pudessem ter os seus pais idosos, e de saúde, todo o clã se juntou para ajudar. como dizem os antropólogos, “parentes fictícios”.
42% queriam uma onde pudessem receber os seus Courtney E. Martin, uma autora que se foca no Ao longo das últimas décadas, o declínio da famí-
filhos adultos que regressassem. Os construtores re- modo como as pessoas estão a redefinir o sonho ame- lia nuclear criou uma epidemia de trauma — milhões
agem edificando casas que são aquilo a que a firma ricano, é residente em Temescal Commons. “Adoro ficaram à deriva por se ter quebrado aquilo que de-
de construção Lennar chama “duas casas sob um realmente que os nossos filhos cresçam com dife- via ter sido a relação mais segura e cheia de amor das
teto”. Essas casas são cuidadosamente construídas rentes versões de que é ser adulto à volta deles, em suas vidas. Lentamente, mas com frequência cada vez
de modo a que os membros da família possam pas- especial diferentes versões de masculinidade”, dis- maior, esses indivíduos à deriva foram-se juntando
sar tempo juntos e ao mesmo tempo preservar a sua se-me. Martin tem uma filha de três anos, Stella, que para criar famílias forjadas. Essas famílias têm o sen-
intimidade. Muitas dessas casas têm uma peque- formou uma ligação especial com um jovem na casa tido de um compromisso determinado. Os membros
na divisão à entrada onde as pessoas podem deixar dos 20 que jamais teria criado raízes fora desta es- da nossa família escolhida são as pessoas que estarão
os sapatos e os casacos, uma lavandaria e uma área trutura de família alargada. “Stella fá-lo rir, e David presentes quando for preciso, seja como for. No Pin-
partilhada. Mas a “suíte dos sogros”, o lugar dos pais acha fantástico que esta miúda de três anos o adore”, terest, podemos encontrar placards para pendurar na
idosos, tem a sua própria entrada, kitchenette e área diz Martin. Isto é o tipo de magia que a riqueza não parede da cozinha onde se reúnem as famílias forja-
de refeições. A “suíte dos millennials”, o lugar dos fi- pode comprar, conclui. Só podemos tê-la com tempo das: “A família não é apenas sangue. São as pessoas
lhos que regressam, também tem a sua própria ram- e compromisso, juntando-nos a uma família alarga- na tua vida que te querem na deles; as que te aceitam
pa e entrada. Estes desenvolvimentos, obviamente, da. Este tipo de comunidade quebrar-se-ia se os re- pelo que és. As que farão tudo par te ver sorrir & te
destinam-se a quem pode à partida comprar casa, sidentes se mudassem. Mas isso não acontece, pelo amarão aconteça o que acontecer.”
mas exprimem uma perceção geral: os membros de menos neste caso. Há dois anos, comecei algo chamado Weave: The
gerações diferentes têm de fazer mais para se apoi- Enquanto Martin falava, constatei uma diferença Social Fabric Project (Tecer: o projeto do tecido soci-
arem uns aos outros. essencial entre as velhas famílias alargadas como as al). Weave existe para apoiar e chamar a atenção para
As famílias alargadas mais interessantes são as que aparecem em “Avalon” e as novas de hoje em dia: pessoas e organizações que estão a construir comu-
que se estendem através de linhas de parentesco. o papel das mulheres. A família alargada de “Avalon” nidade pelo país fora. Com o tempo, eu e os meus
Os últimos anos têm visto o surgimento de arran- prosperava porque todas as mulheres estavam fecha- colegas percebemos que uma coisa que a maioria
jos domésticos que trazem parentes não-biológicos das na cozinha, alimentando 25 pessoas de cada vez. dos weavers têm em comum é fornecerem o tipo de
para a família ou para relações do tipo família. No Em 2008, uma equipa de investigadores americanos e cuidados para não-parentes que a maioria de nós só

As famílias alargadas podem ser cansativas e asfixiantes.


Permitem pouca privacidade; temos de estar em contacto
direto com pessoas que não escolhemos
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O declínio da família nuclear criou uma epidemia de
trauma — milhões ficaram à deriva por se ter quebrado
a relação mais cheia de amor das suas vidas
fornecemos aos parentes — o tipo de apoio que cos- atacava, angariando dinheiro para as propinas uni- mais cruel. Danifica o coração. No final, a desigual-
tumava ser fornecido pela família alargada. versitárias. Quando uma jovem do nosso grupo pre- dade familiar até mina a economia que era suposto a
Lisa Fitzpatrick, antiga executiva na área da saú- cisou de um rim, David deu-lhe um dos seus. família nuclear servir. Crianças que crescem no caos
de em New Orleans, é uma weaver. Um dia, estava no Tínhamos as nossas famílias biológicas primári- têm mais tarde dificuldade em tornar-se qualificadas,
lugar do passageiro de um carro quando reparou em as, que vinham primeiro, mas também tínhamos esta estáveis e socialmente móveis.
dois rapazes, de 10 ou 11 anos, a levantar um objeto família. Agora os jovens dela andam na casa dos 20 Quando o hiperindividualismo arrancou a sério
pesado. Era uma arma. Usaram-na para a alvejar na e precisam menos de nós. David e Kathy deixaram nos anos 60, as pessoas experimentaram novas ma-
cara. Era um ritual de iniciação nos gangues. Quan- Washington, mas estão em contacto permanente. Os neiras de viver que abraçavam os valores individua-
do recuperou, ela percebeu que fora apenas um dano jantares ainda acontecem. Os anos de comermos jun- listas. Hoje, rastejamos para fora dos destroços desse
colateral. As vítimas reais eram os jovens que tinham tos e irmos pela vida juntos criaram um laço. Se uma hiperindividualismo — que deixou muitas famílias
de disparar sobre alguém para pertencer a uma famí- crise atingir alguém, todos aparecemos. A experiência isoladas e sem apoio — e as pessoas experimentam
lia, o seu gangue. convenceu-me de que toda a gente devia ser membro formas de viver mais conectadas, novas formas e va-
Deixou o seu emprego e começou a trabalhar com de uma família forjada com pessoas completamente riedades de famílias alargadas. Apoios oficiais podem
membros de gangues. Abriu a sua casa a miúdos que diferente de si mesma. ajudar a alimentar essa experimentação, em especial
de outra forma se teriam juntado a gangues. Num sá- Desde que comecei a trabalhar neste artigo, um para as classes trabalhadoras e os pobres, com me-
bado à tarde, 35 deles andavam a circular pela casa. gráfico tem-me vindo a perseguir. Mostra a percen- didas como bonificações fiscais pelas crianças, pro-
Ela perguntou-lhes porque estavam a passar um dia tagem de população a viver sozinha num país, contra gramas de treino para melhorar capacidades paren-
tão agradável na casa de uma pessoa de meia-ida- o PIB dessa nação. Há uma forte correlação. Nações tais em famílias com dificuldades, subsídios ao pré-
de. Resposta: “Você foi a primeira pessoa que abriu onde um quinto das pessoas vivem sozinhas, como -escolar e licenças parentais expandidas. Embora as
a porta.” a Dinamarca e a Finlândia, são muito mais ricas do mudanças mais importantes sejam culturais, e de-
Podia contar centenas de histórias como esta, so- que aquelas onde quase ninguém vive sozinho, como terminadas por escolhas individuais, a vida familiar
bre organizações que levam veteranos traumatizados as da América Latina e de África. As nações ricas têm está sob tanto stresse social e pressão económica nas
a cenários de famílias alargadas, ou lares que alojam famílias mais pequenas do que as nações pobres. O camadas mais pobres da sociedade americana que
escolas da pré-primária, de modo a que cidadãos ido- alemão médio vive numa casa com 2,7 pessoas. O nenhuma recuperação parece provável sem alguma
sos e crianças pequenas possam ir juntos pela vida. gambiano médio, numa com 13,8. ação por parte do governo.
Em Baltimore, uma organização não-lucrativa cha- Esse gráfico sugere duas coisas, em especial no A família com dois progenitores não está prestes
mada Thread (Fio) rodeia estudantes de baixo apro- contexto americano. Primeiro, que o mercado quer a extinguir-se. Para muita gente, em especial quem
veitamento com voluntários, alguns dos quais são que vivamos juntos ou só com algumas pessoas. As- tem recursos financeiros e sociais, é uma grande for-
chamados “avós”. Em Chicago, Becoming a Man sim, com mobilidade e sem ligações ou compromis- ma de viver e de criar filhos. Mas está a emergir um
(tornar-se um homem) ajuda jovens de meios não- sos, podemos dedicar um enorme número de horas novo ethos mais comunitário, consistente com a rea-
-privilegiados a formar laços uns com os outros. Em aos nossos empregos. Segundo, quando as pessoas lidade e os valores do século XXI.
Washington D.C., encontrei-me recentemente com criadas em países desenvolvidos conseguem dinhei- Quando discutimos os problema que o país en-
um grupo de mulheres cientistas de meia-idade — ro, compram privacidade. frenta, não falamos o suficiente da família. Senti-
entre elas uma reputada bióloga celular dos Institu- Para os privilegiados, isto funciona mais ou me- mos que isso seria fazer juízos de valor. Demasiado
tos Nacionais de Saúde e uma astrofísica — que vivem nos. O esquema permite aos ricos dedicarem mais desconfortável. Talvez até demasiado religioso. Mas
juntas uma comunidade católica de leigos, agregando horas ao trabalho e ao e-mail, sem compromissos fa- o bruto facto é que a família nuclear se vem desmo-
os seus recursos e partilhando as suas vidas. A varie- miliares que os impeçam. Podem permitir-se contra- ronando em câmara lenta há décadas, e muitos dos
dade de famílias forjadas na América de hoje em dia tar pessoas para fazer o trabalho que a família alar- nossos outros problemas — como a educação, a saúde
é interminável. gada costumava fazer. Mas permanece uma tristeza mental, a adição, a qualidade da força laboral — pro-
Você também pode ser parte de uma família for- à espreita, uma consciência de que a vida é emocio- vêm desse desmoronamento. Deixámos para trás o
jada. Eu sou. Em 2015, fui convidado para visitar um nalmente vazia quando a família e os amigos próxi- paradigma da família nuclear de 1955. Para a maio-
casal, Kathy e David, que criou um grupo tipo famí- mos não se encontram fisicamente presentes, quan- ria das pessoas, ele não vai regressar. Os americanos
lia alargada em Washington D.C. — All Our Kids (to- do os vizinhos, geográfica ou metaforicamente, não anseiam por viver em famílias alargadas e forjadas,
dos os nossos miúdos), ou AOK-DC. Uns anos antes, estão suficientemente perto para nos encostarmos a em formas que são novas e antigas ao mesmo tempo.
Kathy e David tinham tido um filho nas escolas pú- eles, ou para eles se encostarem a nós. A atual crise Isto é uma oportunidade significativa, uma chance de
blicas de Washington D.C. que tinha um amigo cha- de conexão flui do empobrecimento da vida familiar. densificar e alargar as relações familiares, de permi-
mado James que muitas vezes não tinha nada para Pergunto frequentemente a amigos africanos que tir a mais adultos e crianças viverem e crescerem sob
comer nem sítio para ficar. Portanto, sugeriram que emigraram para a América o que mais os impressio- o olhar carinhoso de uma dúzia de pares de olhos, e
ficasse com eles. Esse rapaz tinha um amigo em cir- nou quando chegaram. A resposta é sempre uma va- serem sustidas, quando caem, por uma dúzia de pa-
cunstâncias similares, e esses amigos tinham ami- riação do mesmo tema: a solidão. É a rua suburbana res de braços. Ao longo de décadas, temos vindo a co-
gos. Na altura em que me juntei a eles, uns 25 miúdos vazia a meio do dia, talvez com uma mãe solitária a mer em mesas cada vez mais pequenas, com menos
jantavam todas as quintas-feiras, e vários deles dor- empurrar um carrinho de bebé no passeio, sem mais e menos parentes.
miam na cave. ninguém à volta. É tempo de encontrar formas de trazer de volta as
Juntei-me à comunidade e nunca saí — eles tor- Para os que não são privilegiados, a era da famí- mesas grandes. b
naram-se a minha família escolhida. Jantamos jun- lia nuclear isolada tem sido uma catástrofe. Levou a
tos à quinta, celebramos os feriados juntos e fazemos famílias partidas, ou nem sequer famílias; as famí- Publicado originalmente na revista “Atlantic”
férias juntos. Os miúdos chamam mãe e pai a Kathy lias-carrosséis que deixam as crianças traumatiza-
e David. No início, os adultos do nosso clã serviam de das e isoladas; a cidadãos seniores que morrem so- e@expresso.impresa.pt
figuras parentais aos jovens — substituindo os seus te- zinhos numa sala. Todas as formas de desigualdade
lemóveis partidos, apoiando-os quando a depressão são cruéis, mas a desigualdade familiar poderá ser a Tradução Luís M. Faria

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Aprender sem
sair de casa
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FOTOMONTAGENS COM FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES E ARQUIVO EXPRESSO
TEXTO
LUCIANA
LEIDERFARB

No espaço de um mês, a pandemia fez com


que as escolas fechassem e mergulhassem
no oceano digital. E uma nova telescola, trazida
para o século XXI, está para surgir

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A
pelos seus intervenientes. Colocou a fasquia mais
alta no que toca ao investimento no parque tecno-
lógico escolar e nas ferramentas para uma verda-
deira cidadania digital. Não, 15 dias depois não es-
tamos no mesmo patamar em que estávamos. No
mínimo, vemos mais.
Cada época traz consigo uma palavra, e talvez
daqui a uns anos possamos dizer que a covid-19 nos
fez ir à procura de um termo antigo, ainda que do-
tando-o dos métodos e conhecimentos dos nossos
dias. Basta exercitar um pouco a memória e recuar
aos anos 60, quando em Portugal foi implementa-
da a telescola, em que os alunos acediam aos con-
teúdos letivos por meio da televisão. Em princípio,
no dia 14 de abril e durante o 3º período, os alunos
até ao 9º ano irão permanecer em casa e voltarão
a ter disponíveis conteúdos escolares pela TV. Para
isso contarão com canais da TDT (Televisão Digital
Terrestre), a RTP2 e a RTP Memória, que são gra-
notícia era esperada, mas nem por isso resultou tuitos e de acesso universal, a emitirem “conteú-
menos chocante. Numa quinta-feira, depois de dias dos pedagógicos temáticos” organizados do 1º até
de especulações e palpites, António Costa contra- ao 9º ano, numa grelha de segunda a sexta-feira. O
riou a recomendação do Conselho Nacional de Edu- pré-escolar terá também programas próprios, mais
cação e comunicou ao país que iria encerrar as es- especificamente via RTP2.
colas na segunda seguinte. A causa — a contenção “A ideia não é replicar a antiga telescola. É pre-
do coronavírus, que não parava de alastrar — seria ciso ter cuidado ao comparar este novo recurso
a mesma que, pouco mais tarde, sustentou a decla- com a telescola que existiu no passado em Portu-
ração pelo Presidente da República de um estado de gal, pois essa era semipresencial, com os alunos
emergência como não se via desde 1975. presentes em sala de aula e com um professor-
Nessa quinta-feira, a normal noção do quoti- -monitor, também presencial, a acompanhar as
diano estilhaçou-se. Durante tempo indetermina- aprendizagens, sendo difundidas as matérias re-
do, as crianças não pisariam a escola, e aquilo que motamente através da TV. O que temos agora é di-
viesse a ser colocado como alternativa era do do- ferente: é uma estratégia complementar para coad-
mínio do enigma. Cada escola faria como pudesse juvar o precioso trabalho que tem sido feito pelos
ou soubesse, cada professor veria colocada à prova nossos professores”, disse ao Expresso o ministro
a sua literacia tecnológica e a capacidade de trans- da Educação, Tiago Brandão Rodrigues. “Estes re-
cender ou não as aulas presenciais. Qual músicos cursos pedagógicos são um complemento e um re-
a quem é retirada a partitura, tiveram de improvi- curso de apoio, primeiramente, para que os alunos
sar, e foi o salve-se quem puder: de facto, naque- sem conectividade ou equipamento possam bene-
les 15 primeiros dias confusos, houve de tudo um ficiar das aprendizagens aí disponibilizadas, inde-
pouco, de aulas virtuais mais ou menos estrutura- pendentemente de outras utilizações que possam
das e uso escorreito das plataformas virtuais a TPC ser feitas pelos docentes”, notou. “Sabemos que
mandados por e-mail em catadupa; de sessões de as escolas têm encontrado soluções de acesso, com
esclarecimentos por WhatsApp a power points ex- os alunos recorrendo às novas tecnologias. No en-
plicativos; de pedidos de trabalhos escritos a ou- tanto, compreendendo que é importante chegar a
tros de apresentações orais. Cada professor lançou todos os nossos alunos. Acreditamos que a adoção monitorizadas em ambiente escolar por um do-
mão do que tinha mais à mão. A noção de um cer- de meios mais tradicionais, como os canais de TV — cente do 1º ciclo. Esse teor misto do ensino nos an-
to excesso instalou-se, como se a falta de presen- que estão, simultaneamente, na TDT e no Cabo —, tigos 5º e 6º anos poderá ser agora recriado, até ao
ça física só pudesse ser colmatada com uma chuva implicará um acesso generalizado. De certa forma, 9º, com a alternância de TV e meios digitais, estes
torrencial de propostas que prendessem os alunos a TV chega à generalidade da população, e temos últimos repondo uma presença ou a presença pos-
ao computador e à rede. aqui também a possibilidade de universalizar e po- sível em tempos de confinamento social.
Passados os tais 15 dias, independentemente do der chegar a todos”, especificou Tiago Brandão Ro-
que vier a acontecer — e já se sabe que o fim das fé- drigues, frisando que a solução “não é uma pana- ASSUMIR UM ATIVISMO DIGITAL
rias da Páscoa trará uma segunda dose —, a escola ceia nem resolve todas as questões, mas é mais uma “Há muito tempo que integramos na agenda edu-
nunca mais será a mesma. A instauração repentina ferramenta que permite alargar o espectro dos alu- cativa a educação e a cidadania digital, mas até hoje
de um modelo à distância pôs em evidência falhas, nos que podem aceder a conteúdos pedagógicos”. não houve a consciência de que era preciso fazer
lacunas e competências. Criou necessidades an- Só extinta no novo milénio e, portanto, vigen- um pacto social à volta desta questão”, diz Luísa
tes despercebidas ou não levadas suficientemente te durante mais de três décadas, a telescola foi Aires, professora do Departamento de Educação e
a sério e transferiu para o virtual as desigualdades um projeto que surgiu com o objetivo de colma- Ensino à Distância da Universidade Aberta, ao Ex-
do terreno, mostrando que em Portugal, no século tar a falta de professores após o alargamento em presso. Sendo “expectável” que surgisse uma di-
XXI, nem todas as crianças têm os meios ou o aces- dois anos da escolaridade obrigatória, correspon- versidade de respostas perante a emergência que
so. Permitiu, portanto, traçar um retrato do que dente ao ensino preparatório. E se, em certos ca- vivemos e sendo claro que não houve tempo para
seria o ensino se todos os instrumentos com que sos, supria mesmo a presença da escola física, em delinear um plano ou antecipar cenários, “se as-
conta estivessem à disposição e fossem dominados muitos outros (a maioria), as matérias dadas eram sumíssemos um ativismo digital, no sentido de se

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promover a educação digital para todos, consegui- de suportes prontos a serem utilizados consoante as ensino tradicional não é transferível, como por
ríamos transformar um problema num horizonte faixas etárias. Nas mais novas (até ao 9º ano), em magia, para o universo virtual”, diz António José
imenso de possibilidades”. Para esta docente, tra- que “um ensino totalmente digital não é realista”, Osório. Este investigador do Centro de Investigação
ta-se em primeiro lugar de “aprender com isto”, de requer-se que além das orientações da tutela sobre em Educação da Universidade do Minho chama a
modo a que a oportunidade criada — por exemplo, “procedimentos genéricos” se permita que “cada atenção para o facto de existirem muitas institui-
de “democratizar o acesso à internet e aos equipa- escola tenha autonomia na definição dos seus pla- ções em que os fundamentos da educação à dis-
mentos” — não seja desperdiçada. nos de ação e de como os concretizar”. No secun- tância já estavam a ser experimentados e que, por
De repente, o conceito de ‘educação à distância’ dário, aí sim, é necessário um pensamento digital. esta razão, se revelaram mais preparadas para lidar
“passou a ser uma expressão usual no discurso de “Não é uma missão impossível. Se reconhecermos com o fecho das escolas. “É injusto dizer que não há
toda a gente”. Porém, não está uniformizada. E o que este é um movimento nacional para o qual to- qualquer experiência ou que todos estavam na esta-
que é? Assente num princípio de democraticidade dos — autarquias, ONG, empresas — têm de dar o ca zero. É porque havia alguma experiência que se
no acesso ao ensino de adultos, hoje usufrui dos be- seu contributo, doar um tablet ou um portátil não conseguiu fazer os mínimos em 15 dias”, observa. E
nefícios de uma sociedade digital. “Existe o mito da é um gesto exagerado. Seria possível que todos ti- as instituições de formação reagiram melhor, com
educação à distância como sendo um estudo solitá- vessem uma ferramenta de trabalho e uma pen de maior eficácia, quanto mais experiências anterio-
rio, mas num ensino que é interativo e participativo acesso à internet”, opina a professora. res tivessem no currículo. Do outro lado da moeda,
isso já não se coloca. Há presença, embora não seja A questão das condições e dos equipamentos muitos professores estão “demasiado formatados
física”, explica Luísa Aires. E se uma escola digital é com certeza crucial. Mas também o é o modo no sentido de cumprir o programa” e demasiadas
a funcionar em velocidade de cruzeiro “leva tem- como se encara este ensino. “Não se pode nem se vezes carecem de “imaginação ou de ferramentas
po”, não deixa de contar com uma multiplicidade deve dizer: ‘Vamos fazer tudo como era antes.’ O para ir mais longe do que mandar trabalhos”. “O

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que é uma escola? São quatro paredes ou é algo propostas que os alunos receberam no início. “Va- que, a partir de agora, após a “formação contínua e
que estrutura o processo de aprendizagem? Defen- mos usar o Zoom e o Google Classroom”, adianta rápida” que professores, pais e alunos tiveram, não
do que a escola é mais processo do que estrutura e a docente, que já elaborou um plano de ação: “No se pode deixar de retirar aprendizagens, como, por
que é possível encontrar uma plataforma ou espa- caso da Matemática, a ideia é mandar no início da exemplo, a necessidade de “um coordenador” para
ço digital para a aprendizagem”, explica o docente, semana uma espécie de sumário para as famílias monitorizar o excesso de trabalho e, em termos de
ressalvando que “não deveríamos precisar de estar se organizarem, além do material que vai ser dado. conteúdo, “dar mais importância ao perfil de com-
em tempo de crise para pensar nisto”. De seguida, servimo-nos do Zoom para explicar e petências para o qual se devem adaptar as apren-
do Classroom para colocar exercícios de consoli- dizagens do que ao cumprimento do programa”,
A CULTURA DELES dação. No fim da semana haverá outro Zoom para ou seja, “pôr os alunos sobretudo a pensar e a ler”.
Para Cristina Ponte, o problema reside em que a esclarecer dúvidas.” “Penso que fazê-los refletir sobre o momento his-
própria cultura digital da maioria das escolas se O agrupamento de escolas de Cego do Maio, na tórico que estamos a viver será essencial, mais do
resume a “passar power points”. “Temos a ideia de Póvoa de Varzim, também já delineou uma abor- que falhar ou não alguns itens programáticos. Da-
que o facto de as escolas estarem equipadas — e dagem e vai utilizar as mesmas plataformas. E é o qui a uns anos vai-se falar do antes e do depois do
muitas estão — muda a dinâmica da sala de aula. seu diretor, também professor de Educação Visual, aparecimento do coronavírus, e vale a pena eles to-
Mas não é assim. Em geral, o professor ensina e quem diz que a desigualdade entre as famílias será marem consciência disso do ponto de vista cogni-
o aluno ouve, e raramente se modifica este pa- um dos maiores obstáculos. O levantamento feito tivo, histórico e literário. Há muitos materiais que,
drão”, diz esta professora catedrática do Instituto aponta para 20% dos alunos sem computador e 5% não sendo escolares, são igualmente educativos”,
de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa. desprovidos de acesso à rede. Do outro lado está um comenta Maria Emília Brederode Santos.
No entanto, o desafio das aulas à distância pode parque tecnológico escolar “fraco e antigo”, que Seja como for, o impacto nas famílias da escola
vir a “mudar a nossa relação com a tecnologia”. em janeiro deixou de poder ser atualizado e hoje à distância não será despiciendo. “Este novo regi-
O smartphone, até aqui tido como o “inimigo” do se tornou obsoleto. “Mesmo que estejamos bem me representa um apelo a uma maior autonomia
ensino, pode tornar-se um aliado, um “meio para preparados, vamos ter uma margem de alunos que e responsabilidade por parte dos alunos. Porém,
chegar a todos e um recurso que favorece a inte- não vão acompanhar”, desabafa Arlindo Ferreira, os mais novos — e em especial aqueles com me-
ração entre professores e alunos”. A rede EU Kids, acrescentando que, até agora, o ME “se limitou a nos sucesso no processo de aprendizagem — terão
de que Cristina Ponte é coordenadora em Portugal, mandar informação sobre as plataformas disponí- naturalmente uma maior necessidade da figura do
concluiu que acima de 80% das crianças com mais veis sem dar orientações claras”. adulto, de um esquema mais formal e aproximado
de 9 anos têm telemóvel com acesso à internet. E da aprendizagem que já conhecem”, especifica So-
talvez este seja o momento tão esperado para que a COMPETÊNCIAS EM VEZ DE PROGRAMA fia Nunes da Silva, psicóloga familiar no Hospital
cultura “livresca, expositiva e presencial” das es- Mas se há uma coisa que este mês tornou visível é de Santa Maria, em Lisboa. Num tempo em que a
colas se aproxime finalmente da cultura digital dos uma listagem identificadora dos problemas. “Hou- maioria dos pais desempenha a sua atividade em
seus alunos. “A escola ainda não se adaptou. E está ve uma confusão entre TPC e ensino à distância, regime de teletrabalho e em que as fronteiras do
a enfrentar uma situação em que a tecnologia não houve desigualdades que ficaram à vista, como o plano profissional e familiar se encontram mais
pode deixar de ser usada. Há aqui uma oportuni- acesso aos meios tecnológicos, e houve também esbatidas, o desafio aumenta exponencialmente:
dade para repensar o que é o próprio processo de uma diferença na resposta dos alunos, em que os “Há globalmente uma pressão aumentada nesta
aprendizagem: que cultura têm os jovens e quais menos autónomos terão tido maiores dificulda- altura sobre os pais, que têm muitas vezes de res-
as potencialidades que existem nela, como podem des”, sublinha Maria Emília Brederode Santos. A ponder a chefias que mantêm o mesmo grau de
os professores tirar partido destes recursos e fo- presidente do Conselho Nacional de Educação diz exigência e cujas tarefas se veem acrescidas pela
mentarem a literacia digital”, reflete a especialista. presença dos filhos em casa. É importante que, en-
“O nosso sistema educativo não está prepara- quanto sociedade, possamos dar voz ao risco que
do para aulas não presenciais e não expositivas. isto pode representar no aumento de pressão so-
Não só em termos de programas: a maior parte dos
professores não domina os mecanismos para lidar “A ideia não é bre as famílias e em favorecer a escalada de con-
flitos ou violência.”
com uma situação que não seja chegar à sala e de-
bitar conhecimentos. O professor deveria apren- replicar a antiga Se tudo isto demonstra que o ensino presencial
“não é substituível”, pois não o são “a partilha,
der como é que pode dar aulas à distância, e isso
deveria estar integrado nos cursos universitários”, telescola. O que a solidariedade, o pluralismo de ideias no grupo
em presença física”, como refere a psicóloga; e se
analisa Fernanda Tavares, ela própria professora
das disciplinas de Matemática e TIC (Tecnologias temos agora “nada se assemelha ao trabalho do professor em
sala de aula”, como frisa Arlindo Ferreira, a verda-
de Informação e Comunicação) na Escola 31 de Ja-
neiro, uma IPSS no concelho de Cascais. Porém, é diferente: é de é que a imersão num mundo novo não deixará a
escola incólume. Nada voltará a ser igual, ou pelo
este processo formativo que obrigou os docentes a
adquirir à pressa novas competências “é algo que, uma estratégia menos espera-se que não o seja. “Se faz sentido
aprender com a experiência, faz. Se o vamos fazer
uma vez lançado, não volta atrás”. 15 dias a rela-
cionar-se com os alunos à distância e outras duas complementar de uma forma estruturada e abrangente, tirando
lições positivas e partido do que se conseguiu, isso
semanas de férias a procurar soluções para o que
aí vem tornaram a comunidade escolar em que se para coadjuvar já não sei”, pontua António José Osório.
Mas Luísa Aires, especialista em ensino à dis-
insere mais apta para enfrentar o desafio. Acima
de tudo, encontrou-se uma forma mais homogénea o trabalho dos tância, acredita que vamos agarrar esta oportuni-
dade: “Tenho a certeza de que, daqui a uns meses,
de, a partir de agora e enquanto for preciso, inte-
ragir com os alunos. Com apenas um mês de teste, professores”, vamos ter equipas de professores mais formadas,
pais mais preparados, alunos mais despertos, um
a escola já está noutro patamar.
E uma das decisões tomadas foi a de escolher diz o ministro ensino com mais flexibilidade e uma maior cidada-
nia digital. E isto não é ser demasiado otimista.” b
plataformas comuns a todos os professores da es-
cola, de modo a evitar o bombardeio desigual de da Educação lleiderfarb@expresso.impresa.pt

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HAVERÁ TEMPO...

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A MÃE R
Dos príncipes
de Moscovo
a Vladimir Putin
Após 20 anos de poder, Vladimir Putin já é o
novo ‘czar’ da Rússia, o herdeiro de imperadores
russos e líderes soviéticos. Considera-se o “pai
do povo” e a personificação da alma russa.
Agora prepara uma revisão constitucional que
vai permitir que se perpetue no poder

TEXTO
LOURENÇO PEREIRA COUTINHO

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RÚSSIA

ALEXEY NIKOLSKY/AFP VIA GETTY IMAGES

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A
escandinava, desde a idade média que o elemen-
to étnico preponderante é o eslavo. No século X, os
russos converteram-se ao cristianismo ortodoxo. A
Mãe Rússia nasceu, pois, da síntese do elemento es-
lavo com o credo ortodoxo, e reclama-se protetora
de ambos.
No século XIII, a Rússia europeia foi invadida pe-
los mongóis vindos das estepes, que depois a domi-
naram por mais de 200 anos. Ao contrário dos es-
candinavos e dos polacos, os mongóis não se mis-
cigenaram com os russos, que conservaram os seus
costumes e o seu credo. Porém, o domínio mongol
não deixou de ser cruel. A servidão e os castigos cor-
porais severos foram uma das suas heranças, assim
como práticas políticas despóticas, e o isolamento e
desconfiança face ao ocidente. A “cortina de ferro”
não é pois um conceito do século XX, mas antes uma
tendência multissecular, só contrariada por Pedro, o
Grande, e por alguns dos seus sucessores. Este iso-
lamento e desconfiança crónica do ocidente explica
encenação repete-se anualmente. Durante o verão, em parte porque, numa primeira fase, a expansão
Vladimir Putin, Presidente da Rússia, parte de férias russa se dirigiu preferencialmente para as grandes
para a Sibéria. Ali, passa os dias no meio da nature- estepes eurasiáticas. A Sibéria começou a ser ocupa-
za, em caminhadas, a pescar e a andar a cavalo. De- da no séc. XVI e, no séc. XVII, os russos alcançaram
pois, a propaganda do Kremlin faz o resto. Divulga o Pacífico. Na Europa, a Rússia aproveitou a curva
imagens de Putin de binóculos a observar paisagens descendente do antes próspero Estado polaco-litu-
distantes; deitado na floresta com a águia russa bor- ano para assumir o controlo de boa parte da Ucrânia
dada no casaco; e a montar a cavalo em tronco nu. (séc. XVII), mas só passou a ter comunicação maríti-
Enquanto Trump se entretém a jogar golfe no seu re- ma com o resto do continente no séc. XVIII, quando
sort, Putin faz questão de mostrar ao mundo as suas chegou ao Báltico e, depois, ao Mar Negro.

UNIVERSAL HISTORY ARCHIVE/GETTY IMAGES


férias sóbrias e viris. A Mãe Rússia de espírito messiânico, carácter
Tal como os czares Romanov, o Presidente da misterioso, grandioso e cruel, protetora dos eslavos e
Rússia assume-se como o “pai do povo” e a personi- do credo ortodoxo, e credora de um espaço vital que
ficação da alma russa. E, à semelhança do soviético se estende por uma área quase infinita, é a tradução
Estaline, também ele é frio, enigmático, e gosta de imaterial de um conceito que atravessou séculos e
vincar os contrastes com o ocidente, que considera que se mantém vivo no imaginário do seu povo. A
fraco e decadente. Se boa parte dos czares e dos lí- História russa confirma-o, e permite identificar uma
deres soviéticos morreu em funções, também Putin linha de continuidade surpreendentemente coerente
está decidido a perpetuar-se. Para tal, prepara uma entre regimes tão díspares quanto a autocracia dos
revisão constitucional que, na prática, lhe permitirá czares, o totalitarismo soviético, ou o autoritarismo
manter-se no poder até 2036. Justificada em nome de Putin.
da estabilidade, esta revisão constitucional fortalece
os poderes do Presidente e do Conselho de Estado, A ÁGUIA DE DUAS CABEÇAS
exalta os feitos russos, e reafirma valores como o ca- Depois de décadas de tentativas frustradas, os tur-
samento tradicional e a crença em Deus. cos otomanos conquistaram Constantinopla no ano
Putin recusa um mundo dominado pelos princí- de 1453. Antes, já haviam tomado grande parte dos
pios do ocidente. Tal como os czares foram autocra- territórios balcânicos, que depois governariam até ao
tas, e os soviéticos totalitários, ele defende a demo- século XIX. Aos olhos dos russos, os otomanos afir-
cracia iliberal como o sistema que melhor se adequa mavam-se como os principais inimigos dos eslavos
às especificidades russas. Este misto de autoritarismo e dos cristãos ortodoxos e, também, como os dest-
e altivez não anda, pois, muito distante das práticas ruidores do império romano do oriente (bizantino),
dos líderes que o antecederam. Além do mais, Vladi- que perdurara por mais de mil anos. A queda de
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mir Putin é tão misterioso quanto aqueles. No tem- Constantinopla deu um sentido grandioso à missão
po soviético, será que este antigo agente do KGB era da Rússia. Foi então que se assumiu como herdeira
mesmo um convicto comunista ou, pelo contrário, do império bizantino, e protetora dos eslavos e dos
mantinha em segredo a sua condição de cristão or- cristãos ortodoxos.
todoxo, e admirador da Rússia imperial? Esta é uma Poucos anos após a queda de Constantinopla,
das muitas perguntas que só Putin poderá responder. Ivan III, príncipe de Moscovo, conseguiu unificar os
principados russos. Em 1472, casou-se com Sofia, so-
A MÃE RÚSSIA brinha e parente mais próxima do último imperador
A Rússia é um país imenso, um império continental bizantino. Foi a partir de então que surgiu a figura da
contínuo que se estende da Europa ao Oceano Pací- águia bicéfala, com uma cabeça a olhar para orien-
fico, e que tem fronteiras com vizinhos tão díspares te, e outra para ocidente, símbolo que hoje se man-
como a Noruega, China, Coreia do Norte ou Afega- tém na bandeira e nas armas da Rússia. Umas déca-
nistão. Apesar da sua geografia eurasiática, a origem das mais tarde, o neto de Ivan III, o célebre Ivan IV,
política da Rússia é essencialmente europeia, tendo- o Terrível, adotou o título de czar (césar), de forma
-se consolidado primeiro com o principado de Kiev a vincar a sua condição de herdeiro dos imperado-
e, depois do fim do domínio mongol, com o prin- res bizantinos.
cipado de Moscovo. Apesar dos primeiros seden- Mas a Rússia dos começos da idade moderna
tários que se fixaram no território serem de origem (século XVI), não tinha capacidade para vingar os

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bizantinos, nem para afirmar-se no contexto euro-
peu. A servidão era a condição inalterável da maio-
ria dos camponeses, e os conflitos entre os boiardos
(nobreza russa) eram constantes. Para agravar o ce-
nário, a Rússia foi invadida no começo do século XVII
por dois estados então mais poderosos, a Suécia e a
Polónia-Lituânia. Num contexto de vazio de poder e
de domínio inimigo, o poder central entrou em ero-
são, e os boiardos decidiram eleger um novo czar,
Miguel Romanov, então ainda uma criança. Apesar
das grandes dificuldades enfrentadas pelos primei-
ros czares Romanov, esta dinastia acabou por vin-
gar, e manteve-se no trono russo até ao século XX.
No século XVII, os russos continuavam a ser um
povo fechado e misterioso. Os czares, tinham hábi-
tos bizarros para os padrões ocidentais, como o de

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escolher noiva entre dezenas de camponesas sadias
que, para o efeito, eram deslocadas para Moscovo; e
costumes cruéis, como o de projetar anões pelo ar, e
medir a distância que estes percorriam.
Pedro, o Grande (1682 -1721) foi o primeiro a
romper o isolamento russo. Era um homem de uma
altura descomunal para a época (media quase dois
metros), e tinha tanto de visionário e enérgico,
quanto de cruel. Não só mandou decapitar o amante
de sua mulher Catarina, para depois lhe entregar a
cabeça num frasco, como deu ordens para prender e
açoitar o seu próprio filho e herdeiro, Alexei.
Há relatos que afirmam que Pedro I conseguia
passar a noite a beber e, depois, começar a traba-
LÍDERES Retrato da família imperial russa, no início do século XX. Ao centro,
lhar pela manhã como se tivesse dormido como uma
rodeados de oficiais do Exército, estão o czar Nicolau II e a czarina
Alexandra Fyodorovna; Vladimir Lenine e Josef Estaline, juntos, em 1919, na criança. Excessos à parte, Pedro, o Grande afirmou a
alvorada de um regime comunista que duraria mais de sete décadas; Rússia como grande potência europeia. Fez viagens
Retrato do czar Alexandre II, da Rússia (1818-1881); Pedro, o Grande (1672 de estudo à Alemanha, Inglaterra e Holanda, don-
-1725) foi o primeiro a romper o isolamento russo. Tinha tanto de visionário e de trouxe conceitos e práticas que adaptou à políti-
enérgico, quanto de cruel e afirmou a Rússia como grande potência ca, ao exército e à economia. Sobretudo, conseguiu
europeia; Retrato da czarina Catarina II (1729-1796) derrotar os suecos, então a maior potência da Euro-
pa do norte. E, com o controlo do Báltico, a Rússia
obteve por fim uma via de comunicação marítima
com o resto da Europa. A cidade de São Petersbur-
go permanece como o principal legado imóvel deste
feito marcante.
Esta nova etapa não esteve, contudo, isenta de
contras. Gradualmente, acentuou-se a distância
entre as elites “europeias” e os camponeses, liga-
dos a hábitos centenários. Enquanto a corte absor-
via a cultura, ciência, e “luz da razão” ocidental, a
maioria dos russos continuava presa a laços anacró-
nicos de servidão. Para piorar o contexto, os suces-
sores imediatos de Pedro I não foram talhados para
grandes feitos.
Em 1740, a Rússia participou pela primeira vez
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num conflito entre as grandes potências europeias


(guerra de sucessão do império austríaco). O imenso
império euro-asiático era já um Estado importante
no concerto europeu. No entanto, teve de esperar até
1762 para voltar a ter outro líder marcante.
Catarina II, a Grande (1762-1796) foi uma prin-
cesa alemã que afastou o seu marido, o inepto Pe-
dro III, para depois escrever um capítulo de peso na
História da Rússia. Culta, “iluminada” e orientada,
Catarina II foi tão insensível quanto os czares que a
antecederam. Chegou a mandar colocar painéis com
paisagens nas margens das estradas por onde passa-
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va, para que ela e os seus convidados não tivessem


contacto com a miséria camponesa; e não hesitou em
invadir e partilhar a Polónia, então governada por
Estanislau II, seu antigo amante. Apesar das excen-
tricidades, Catarina II foi uma czarina competente,
que governou de acordo com princípios iluministas,

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e teve na conquista da Crimeia aos otomanos, e no e um fardo pesado. Durante os anos do seu reinado, governação enquanto permanecia na frente militar,
desejado acesso ao mar negro, o principal feito do resistiu a todas as tentativas de reformas políticas e ainda era menos dotada para a política que o mari-
seu reinado. económicas, manteve a linha autocrática dos seus do. Neste contexto, não é difícil enumerar as cau-
Depois de décadas de “ocidentalização”, o séc. antecessores, e reforçou a hegemonia russa sobre as sas da revolução de fevereiro de 1917, altura em que
XIX marcou o regresso do culto das velhas tradições. diversas nacionalidades que compunham o Estado. a águia imperial foi apeada dos pedestais, e o Go-
O império, liderado por Alexandre I, um czar a prin- Ao contrário do que se passava no Ocidente, o Gover- verno foi assumido por um misto de reformistas e
cípio liberal mas que depois regressou à autocracia no não era um órgão colegial solidário, e cada minis- sociais-democratas.
mística dos seus antecessores, teve um papel deter- tro reunia e respondia apenas perante o czar, que ti-
minante na derrota de Napoleão, e no equilíbrio eu- nha o poder de os nomear e demitir individualmente. IMPÉRIO SOVIÉTICO
ropeu que depois se desenhou (Congresso de Viena, Apesar do descontentamento e dos anacronis- No início do século XX, os bolcheviques eram ape-
1815). A “Santa Aliança” juntou a Prússia, a Áustria mos, a imensa Rússia permanecia profundamente nas uma parte do Partido Operário Social Democrata
e a Rússia na defesa dos valores conservadores. Os conservadora e religiosa. A primeira guerra mundial Russo. Apesar de alguma popularidade junto do ope-
russos não esqueciam a sua condição de protetores acabou por mudar tudo. Na frente oriental, os rus- rariado, o seu peso político era praticamente nulo.
dos ortodoxos e apoiaram a independência da Gré- sos (aliados de franceses e ingleses) sofreram pesa- Como foi que esta fação alcançou o poder em 1917?
cia do império otomano, então já longe do brilho de das baixas frente ao exército alemão. Em 1915, o czar Apesar do seu ideal coletivista, a ascensão bol-
outros tempos (1830). cometeu o erro de assumir pessoalmente o comando chevique deveu-se sobretudo a um homem, Vladi-
A partir de 1830, a Santa Aliança entrou em ero- do exército. Nicolau II estava muito longe de ser um mir Lenine. Inteligente, pragmático, enérgico e ca-
são. A Rússia reprimiu com brutalidade a revolta génio militar. Pela segunda vez em poucos anos, o rismático, Lenine foi o principal guia intelectual e
nacionalista polaca (1831), e começou a enfrentar a czar mostrou-se incapaz de evitar tanto a humilha- operacional da revolução. Em abril de 1917, regressou
oposição de França e Reino Unido, as potências li- ção, quanto terríveis baixas nas suas forças armadas. do exílio na Suíça, e rapidamente traçou os objetivos
berais. Este antagonismo ficou patente na guerra da Pior, os russos deixaram de confiar na capacidade de e táticas dos bolcheviques: nenhuma cumplicidade
Crimeia (1853-1856), onde os russos perderam para “proteção” do seu imperador. com o Governo provisório que integrava liberais e
ingleses e franceses a disputa pelo acesso ao medi- Enquanto o czar perdia os papéis na frente orien- sociais democratas; fim da guerra “imperialista” e
terrâneo, e pelo controlo do próximo oriente. tal, o regime desmoronava-se em São Petersburgo e negociação com os alemães de uma paz separada;
Em meados do século XIX, a Rússia encontrava- Moscovo. Intelectuais e burgueses reclamavam um e todo o poder aos sovietes, que identificou como o
-se de novo afastada do ocidente. O czar Alexandre regime liberal, e o operariado exigia soluções para a “braço armado” dos bolcheviques.
II procurou alterar o rumo, e introduziu reformas sua situação miserável. Para cúmulo, a czarina Ale- Aproveitando a desunião do Governo provisório
que fomentaram o ensino e permitiram uma justiça xandra, a quem Nicolau II entregou os destinos da e a sua impotência para pôr fim à guerra, os bolche-
mais transparente. O seu maior legado foi, contudo, viques, auxiliados pelos sovietes, assumiram o poder
a libertação dos servos (1861), o que atraiu às cida- em outubro de 1917. Então, puseram de imediato fim
des muitos camponeses livres. Mas estas não tinham à participação russa na guerra “burguesa” (tratado
muito para lhes oferecer, além do duro trabalho nas de Brest-Litovsk, que implicou a perda de vastos ter-
incipientes indústrias russas. De então até 1917, a
História política russa ficou marcada pela tensão
Há uma linha ritórios). No entanto, a influência destes revolucioná-
rios ficou circunscrita aos grandes centros urbanos. A
entre reformas e autocracia e pela alternância entre de Rússia profunda permanecia fiel às suas tradições de

continuidade
“russificação” e “ocidentalização”. Em paralelo, al- sempre, e os bolcheviques (que depois assumiram a
guns intelectuais começam a reclamar mais direitos designação de “comunistas”), tiveram de vencer uma

entre a
para os trabalhadores, a quem, timidamente, pro- sangrenta guerra civil para conseguir impor a sua lei.
curavam politizar. A vitória comunista deveu-se sobretudo a Trotsky, o
Na década de 1870, o apoio da Mãe Rússia aos
“irmãos” eslavos e ortodoxos acabou por dar resul- autocracia organizador e comandante do Exército Vermelho.
Lenine transformou a Rússia (República nucle-
tado. Depois da guerra entre russos e otomanos, o
congresso de Berlim (1878), reconheceu a indepen- dos czares, o ar da União Soviética, entidade instituída em 1922)
num Estado totalitário de um só partido, onde as
dência da Sérvia, Montenegro, Roménia e Bulgária.
Em paralelo com os triunfos políticos, a Rússia totalitarismo antigas tradições russas e manifestações religiosas
estavam proibidas, onde não existia liberdade de
viveu então uma época de esplendor artístico e fi-
losófico. Mas as nuvens negras não tardariam a re- soviético, imprensa, e onde os opositores eram presos e tor-
turados de forma sumária. Apesar deste panorama
gressar. No final do século (1888), a Alemanha de
Guilherme II começou a desafiar o equilíbrio euro- eo sombrio, o pós-guerra civil enquadrou tímidos si-
nais de abertura, como a permissão de pequenos
peu. Como forma de contrabalançar esta ameaça,
os russos aproximaram-se dos franceses, com quem autoritarismo negócios privados.
De há muito doente, a morte de Lenine (1924)
assinaram uma aliança (1894). Em paralelo, as idei-
as revolucionárias espalhavam-se entre o operari- de Putin iniciou uma conturbada luta pela sucessão. De iní-
cio, Estaline, um obscuro alto dirigente do partido,
ado desprotegido das grandes cidades, que não se não era o mais bem colocado para lhe suceder. En-
podia organizar em sindicatos. Por sua vez, alguns tre outras, a candidatura de Trotsky, suportado pelo
intelectuais pediam o fim da autocracia, a liberali- Exército Vermelho, teria mais probabilidades de ven-
zação do regime, e a instauração de uma monarquia cer. Mas Estaline evidenciava já as características que
constitucional. o fizeram alcançar e depois perpetuar-se no poder.
O ano de 1905 foi fatídico. Em São Petersburgo, Calculista, dissimulado e implacável, ele baralhou as
uma manifestação pacífica de cem mil trabalhado- previsões iniciais e acabou por prevalecer.
res foi brutalmente esmagada pela guarda imperial. Estaline foi o governante russo/soviético que per-
Poucos meses depois, as ambições no mar do Japão maneceu mais tempo no poder durante o século XX.
e sobre a península coreana foram cortadas quan- A sua liderança afinou estratégias e táticas, e apon-
do a armada russa foi derrotada pela japonesa. Foi a tou novos rumos à União Soviética. Ainda em 1920,
primeira vez que uma potência asiática venceu uma contrariou as teorias iniciais do marxismo, e defen-
europeia. deu que a ditadura do proletariado não era uma cur-
O último czar, Nicolau II (1894-1917), foi um ho- ta fase transitória, mas antes uma etapa que deveria
mem bem intencionado mas apenas mediano. Sen- prolongar-se por tempo indeterminado.
tia, com sinceridade, ter sido escolhido por Deus para Mais do que apoiar a revolução internacional,
governar a Rússia, algo que encarava como um dever que Trotsky defendia, Estaline estava decidido em

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solidificar o poder comunista na União Soviética. conflito mundial, de consequências previsivelmen- galopante, entregou o poder às máfias e oligarqui-
Também, queria mostrar as vantagens do modelo te fatais. Genericamente, os líderes que lhe sucede- as, e fez a Rússia afundar-se em corrupção. Quando
comunista sobre o capitalista. Para tal, iniciou pla- ram seguiram a mesma tendência. Depois da mor- Boris Ieltsin renunciou à Presidência da Rússia (de-
nos quinquenais, com o objetivo de tornar o seu es- te de Estaline, e de um interlúdio liderado por um zembro de 1999), Putin, que era primeiro-ministro
tado a maior potência industrial do mundo. Estaline triunvirato, Nikita Khrushchov assumiu a lideran- há pouco mais de seis meses, assumiu poderes pre-
condicionou tudo em função deste desígnio. Cada ça soviética (primeiro secretário do PCUS). Era um sidenciais, sufragados nas eleições de abril de 2000.
vez mais paranoico, desconfiava de tudo e de todos. homem mais acessível e natural do que Estaline, re- Desde então, Putin controlou revoltas (Tchetché-
De forma gélida, não hesitou em mandar prender e cusou o “endeusamento”, e procurou uma coexis- nia, 1999, ainda como primeiro-ministro),relançou
matar familiares e amigos, e de ordenar purgas no tência equilibrada com o Ocidente. Mas os soviéti- a economia, recentrou prioridades diplomáticas e, o
partido e no exército. cos rapidamente perceberam que para manterem o mais importante para os russos, devolveu protago-
A União Soviética ficou fechada sobre si, com Es- controlo interno e sobre os seus satélites, tinham de nismo ao país. Não é pois de admirar que tenha al-
taline a exigir produtividades impossíveis, e a criar continuar a governar com mão de ferro. Depois das cançado elevadas taxas de aprovação interna.
um clima de terror generalizado. Contudo, a ascen- revoltas na RDA (1953), Hungria e Polónia (1956), Claro que todos estes êxitos tiveram um reverso
são nazi obrigou-o a olhar para a política europeia do corte de relações com a China de Mao, e da crise da medalha. Putin é um líder autoritário, que con-
com mais atenção. Depois de nazis e soviéticos terem dos mísseis de Cuba (1962), Khrushchov foi substi- diciona a liberdade de expressão e usa práticas in-
estado em lados opostos da barricada na Guerra Civil tuído sem alarido. toleráveis, como a destabilização e interferência se-
de Espanha, e contra todas as previsões, os dois regi- Durante as décadas de 60 e 70, a União Soviética creta nos países ocidentais. Internamente, faz “de-
mes totalitários assinaram um pacto de não-agres- continuou a apostar fortemente no desenvolvimento saparecer” inimigos, impede opositores de concorrer
são em agosto de 1939. Hitler sentiu-se então com as do seu arsenal militar e nuclear, com a Guerra Fria a às eleições, e interpreta a lei de acordo com os seus
mãos livres para invadir a Polónia. estender-se não só a todo o globo, como também ao interesses. Entre 2008 e 2012, voltou a ser primeiro-
Mas nem Hitler confiava em Estaline nem Esta- espaço. Brejnev (1964-1982), oriundo da linha dura -ministro, como forma de contornar o imperativo
line em Hitler. Em 1941, a Alemanha declarou guer- do PCUS, reprimiu com mão de ferro todas as ten- constitucional que o impedia de recandidatar-se a
ra e invadiu a União Soviética (Operação Barbaros- tativas feitas pelos estados satélites para saírem da um terceiro mandato presidencial.
sa). A propaganda apresentou então Estaline como órbita soviética (como a Primavera de Praga, 1968). Apesar dos seus métodos implacáveis, Putin é
o “protetor do povo”, e o seu defensor incontestado Em paralelo, incentivou ainda com maior vigor as um líder inteligente, capaz e prudente. Apostou em
contra a ameaça nazi. A partir de 1941, todos os re- revoltas “anti-imperialistas” (Vietname, guerrilhas explorar eficazmente os recursos naturais, e afirmar
cursos do Estado — exército, indústria, e povo — fo- africanas, Irão). Quando Brejnev morreu, em 1982, o país como uma grande potência energética. Tam-
ram canalizados para derrotar o invasor. Os sovi- o mundo estava longe de sonhar que o império so- bém, procura promover a Rússia como destino cul-
éticos experimentaram um sofrimento atroz, com viético, a ‘Mãe Rússia’ comunista, se iria desmoronar tural e lúdico (Mundial de Futebol de 2018). Prag-
terríveis baixas. Entre 1941 e 1944, Estaline insistiu em pouco tempo. mático, não hesitou em aproximar-se de rivais his-
continuamente com os seus aliados circunstanciais, Mas sucedia que a União Soviética estava a per- tóricos, como a China e a Turquia (Estado com que
Reino Unido e Estados Unidos, para que estes abris- der a Guerra Fria. O avanço tecnológico do Ociden- mantém uma relação ambígua, veja-se o caso da Sí-
sem outras frentes de guerra, de forma a minorar o te era inquestionável, assim como as vantagens do ria), contra o que considera um mal maior.
sacrifício da exaurida União Soviética. seu sistema político, económico e social. No interi- Putin é intransigente na defesa do espaço vital da
A II Guerra Mundial terminou em 1945 com o or da cortina de ferro, de há muito que a frustração ‘Mãe Rússia’. Quando os pró-ocidentais venceram
triunfo dos Aliados. Estaline reclamou então os terri- era uma realidade (Polónia, 1981). Então, deu-se o as eleições na Ucrânia, invadiu o país e reclamou a
tórios perdidos para o Japão em 1905, e recuperou os acaso de dois homens de envergadura coincidirem Crimeia. Igualmente, é um firme opositor do alarga-
cedidos com a paz separada de Brest-Litovsk de 1917. na liderança de cada uma das superpotências. Ro- mento da NATO aos países da antiga cortina de fer-
Mas esta aliança contranatura entre Estados liberais nald Reagan (1980-1988) estava decidido em acabar ro. Para ele, o grande inimigo da Rússia é o Ocidente
e um Estado comunista formou-se apenas para der- com a guerra fria, e Michael Gorbatchov (1985-1991), (Estados Unidos e Europa ocidental), o seu sistema
rotar um inimigo comum. apostou no desanuviamento nuclear e em verdadei- político e os seus valores.
Em 25 anos, a Rússia/União Soviética foi invadida ras reformas (glasnost e perestroika). Apesar de toda a propaganda interna sobre os
por três vezes pelo Ocidente: na I Guerra Mundial; Gorbatchov enfrentou resistências tenazes da li- seus feitos, mantém reserva sobre a sua vida pesso-
na Guerra Civil, quando as potências ocidentais au- nha dura do PCUS. E, tal como os seus antecessores, al. Poucos devem saber que, até 2014, foi casado com
xiliaram o exército “branco”; e na II Guerra Mundial. percebeu que qualquer sinal de desanuviamento in- Lyudmila Shkrebneva, e que tem duas filhas, Maria
Estaline estava decidido a impedir que tal voltasse terno acabaria por implodir o Estado comunista. Em e Ekaterina. E pouco se sabe sobre o seu património,
a acontecer, e a criar um “anel de segurança” en- 1986, o terrível acidente nuclear de Chernobyl (Ucrâ- mas correm rumores de que é proprietário de uma
tre as potências ocidentais e a União Soviética. Este nia) destapou a obsolescência tecnológica soviética, casa de causar espanto, situada na fronteira entre a
foi constituído pela maioria dos países da Europa de e confirmou o perigo fatal de uma guerra atómica. As Rússia e a Finlândia.
Leste. Começava assim a Guerra Fria, um conflito reformas de Gorbatchov enfraqueceram o controlo Como seria de esperar de um antigo alto quadro
entre as duas superpotências que se afirmaram no estatal do PCUS, e encorajaram as nacionalidades do KGB, Putin é um adepto da inteligência artificial
pós guerra, e que nunca se viriam a enfrentar dire- soviéticas e Estados satélites a reclamar a sua eman- e das suas potencialidades com instrumento ao ser-
tamente. Dentro da “cortina de ferro”, a União Sovi- cipação. A URSS caminhava a passos largos para o viço do Estado. Será, pois, um entusiasta dos algo-
ética liderava os países do Pacto de Varsóvia (1955), fim, que viria a acontecer em 1991. A multissecular ritmos que gerem e segmentam a informação con-
a resposta comunista à NATO (1949). ‘Mãe Russia’, dos czares imperiais e dos “czares ver- sumida no mundo. Putin é, também, um mestre na
Após a II Guerra Mundial, Estaline voltou a rea- melhos”, tinha de voltar a reinventar-se. propaganda. Sobre a pandemia da covid-19, afirmou
justar a sua estratégia. O esforço passou a estar con- que os seus efeitos estão controlados na Rússia. Para
centrado no plano militar, e em dotar a União Sovi- O CZAR PUTIN ele, esta será, por certo, mais uma oportunidade
ética de soluções que lhe permitissem competir com Tal como Estaline no início da década de 20, Vladi- para vincar a importância de um controlo apertado
os Estados Unidos, a outra superpotência. Por ironia, mir Putin manteve-se discretamente perto do poder de fronteiras.
o discurso anti-imperialista dos primeiros anos so- durante quase toda a década de 90. Aliás, como con- Após 20 anos de poder, Putin já é o novo ‘czar’
viéticos foi substituído por um controlo férreo das vinha a um antigo alto quadro do KGB. Após o co- da Rússia, o herdeiro de imperadores russos e líde-
diferentes nacionalidades, que formavam um im- lapso da União Soviética, a Rússia mergulhou numa res soviéticos. Frio, implacável, inteligente e miste-
pério ainda maior do que o da Rússia czarista. Indi- profunda crise de identidade. O país, que fora peça rioso como muitos dos seus antecessores, é um ho-
retamente, a União Soviética também controlava os essencial do xadrez internacional desde Pedro, o mem decidido a perpetuar-se no poder, a restaurar
países da cortina de ferro, e apoiava mundialmente Grande, transformou-se num Estado despersonali- a grandeza da ‘Mãe Rússia’, e a fazer a águia de duas
as revoluções comunistas, e os Estados que se opu- zado e descredibilizado. cabeças levantar voo, para voltar a pairar sobre o
nham às democracias ocidentais. As reformas de Boris Ieltsin (1991-1999), falha- Oriente e o Ocidente.Será que o vai conseguir? b
No entanto, Estaline era suficientemente argu- ram em toda a linha. A “liberalização”, desejada mas
to e prudente para excluir a provocação de um novo mal planeada e executada, provocou uma inflação e@expresso.impresa.pt

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ISOLDE OHLBAUM/IAIF

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A história
não se
U ma vez lançado no mundo, o vírus transmitia-se
pelo ar. O desejo e o medo eram universais; entre
eles só havia os coveiros.” Retiremos as palavras
“pelo ar”, porque as últimas evidências científi-
cas, divulgadas pela Organização Mundial da Sa-
úde sobre a propagação da covid-19, desmentem
essa forma de disseminação. Coloquemos o pon-
to final a seguir ao “transmitia-se”, e acredite-

repete,
mos que o desejo se alimenta de esperança; e que
o medo não se irá transformar em terror. O medo
já nos é intolerável.
Estamos entre o desejo de voltarmos ao que éra-
mos e o medo de perdermos o que tínhamos por

mas rima
garantido. Felizmente, não temos apenas coveiros.
Mesmo que os coveiros faltem em Itália, e na sua
vez estejam os militares. Entre o medo e o desejo,
temos fé. Acreditamos no esforço concertado dos
nossos cientistas, médicos, enfermeiros e enge-
nheiros. Mas sabemos que o momento é tão disrup-
tivo que as leituras sobre tudo o que foi escrito até
agora correm o risco de ser inevitavelmente outras.
É o que acontece com o romance de onde foi retira-
Como é que o mundo inteiro da esta citação. “Órix e Crex — O Último Homem”,
publicado por Margaret Atwood em 2003, é a his-
se desmoronou tão depressa? tória de uma pandemia mundial provocada por um
vírus. A ficção é a realidade. A realidade ultrapassa
Margaret Atwood deve ter feito a ficção. Esboroa-se.
Apesar dos seus 80 anos, Margaret Atwood é
esta pergunta muito antes frequentadora assídua do Twitter. Há dias, alguém
preocupado com a possibilidade de ela vir a ser
de nós a colocarmos, uma vítima da covid-19 ofereceu-lhe ajuda. A es-
critora respondeu: “Obrigada! Mas sou forte, tão
inventando mundos que já não forte como um boi velho de conserva e tenho o sis-

nos parecem ser distopias tema imunitário de uma suricata, além de encher
o nariz de pétalas de rosa e bater em estranhos que

TEXTO
CRISTINA MARGATO

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se aproximam demasiado com bastões de ski. Logo, é, por isso, uma bruxa, capaz de lançar profecias. É Uma Serva”, o grande compromisso entre escrito-
devo ficar bem. A menos que caia na banheira.” O alguém que tem feito perguntas que só agora alguns ra e produtores foi o de não poder ser introduzido
humor, dizem os jornalistas que já a entrevistaram, de nós fazemos, na urgência de um novo paradig- nenhum elemento narrativo que não tivesse pre-
sempre foi um dos seus atributos. A agudeza tam- ma de pensamento: como é que o mundo inteiro se cedentes na linha cronológica da nossa História.
bém. Outros seguidores do Twitter desafiaram-na transformou tão depressa? Quando é que nos tor- Ou seja, Margaret Atwood não quer inventar nada
a confessar o que pensa sobre o momento em que námos um perigo uns para os outros? Para onde va- de raiz. Opta antes por baralhar e voltar a lançar
vivemos. Mas isso foi algo que foi fazendo nos seus mos? Seremos os mesmos depois disto? Quem nos os dados que tem em cima da mesa, obtendo as-
livros, que de algum modo acabam inevitavelmen- convenceu de que nada nos faria parar? Parar de sim um novo resultado. É uma perscrutadora do
te por se aproximarem de certos elementos da re- evoluir. De crescer. Parar de produzir. Quem acre- mundo, sagaz e arguta. E as suas distopias, como
alidade. No “Ano do Dilúvio” (2009), por exem- ditaria que grande parte dos aviões poderia deixar ela afirma, resultam de “especulações” que faz a
plo, uma praga criada em laboratório pelo homem de voar por um dia que fosse? partir de elementos muito concretos.
extermina a humanidade, deixando apenas duas No universo ficcional da escritora canadiana, o
mulheres como sobreviventes; em “Órix e Crex”, nosso mundo, a nossa democracia, nem sempre são O PROTOFEMINISMO
ainda numa vida pré-apocalipse, o clima é agres- tidos como certos. Na outra face da bondade pode No ano passado, as personagens de “A História
sivo para a vida humana e o homem quer atingir a estar a crueldade. A vítima pode ser vilã. A vilã, de Uma Serva” saltaram literalmente para a rua,
imortalidade. Em laboratório desenvolvem-se por- vítima. Margaret Atwood é “apenas” uma mulher transformando-se num símbolo feminista. A noto-
cos transgénicos que servem de hospedeiros de ór- atenta ao seu mundo, quando cria uma narrativa riedade que o livro teve com a adaptação realizada
gãos a transplantar para seres humanos. Um só ho- que tem por base o aparecimento de um vírus que pela Netflix, em 2017, na qual a própria participou
mem coloca a hipótese de destruir a civilização tal rapidamente se propaga a nível mundial, geran- (na primeira temporada) não só como argumen-
como a conhecemos, bastando, para isso, “eliminar do o caos (“Órix e Crex”) ou quando escreve sobre tista mas também como produtora, terá sido uma
uma geração” e transformar o planeta numa “vasta homens que querem dominar o corpo das mulhe- das razões. A outra, como a própria reconheceu em
experiência incontrolável”. Este livro, finalista do res, com a ajuda de outras mulheres (“A História de entrevistas, foi o momento político. Nomeadamen-

No ano passado, as personagens de “A História de Uma Serva” saltaram

A escritora canadiana não é uma bruxa, capaz de


Booker Prize, tem, na verdade, como muitos outros Uma Serva”). O que ela tem por base na construção te, o cerrar das fileiras da direita, após a eleição de
de Atwood, pouco de ficção científica, apesar de ter destes cenários é a consciência da vulnerabilidade Trump, que fez com que no estado norte-america-
sido considerado, na altura, pela crítica da revista da nossa espécie — apesar da nossa sensação de no do Alabama fosse aprovada uma lei que crimi-
“The New Yorker”, melhor do que Orwell, o autor domínio sobre o planeta, sobre os outros animais naliza a interrupção voluntária da gravidez. Cin-
de “1984”. Basta ler a nota de agradecimento do ro- e sobre os mais fracos entre nós — e também das quenta e quatro anos depois da publicação do seu
mance que Margaret Atwood colocou no fim: “Ao fissuras que existem nas estruturas que criámos primeiro romance, “A Mulher Comestível”, no qual
longo dos anos foi-me inadvertidamente fornecida, para sobreviver. Margaret Atwood explora os estereótipos de géne-
por muitas revistas, jornais e autores de textos ci- No final de “Órix e Crex”, na mesma nota de ro, exibindo aquilo que ela não considera feminis-
entíficos que fui encontrando, uma contextualiza- agradecimento, Margaret Atwood vai ao ponto de mo mas “protofeminismo”, e trinta e quatro anos
ção profunda para esta obra.” Ou seja, em latência, elencar os artigos que leu e de os disponibilizar depois da publicação de “A História de Uma Serva”,
o mundo distópico deste romance sempre existiu. num site da Internet. O perigoso vírus hemorrági- algumas das suas personagens, e também a autora,
Em latência, esta pandemia covid-19 sempre exis- co que dá origem ao apocalipse de “Órix e Crex” é transformaram-se em símbolos públicos da luta fe-
tiu. Em latência, as pragas existem. Também em uma espécie de híbrido entre o ébola, conhecido minista. No entanto, quando perguntam a Atwood
potência como acontece neste momento em África. desde 1976, e o vírus de Marburg, desde 1967; e a se é feminista, esta responde com outra pergunta:
As democracias sempre estiveram sob ameaça. Os febre espanhola, de 1918, e a peste negra de Idade “De que feminismo está a falar?”
ditadores estão sempre à espreita. O terror ajuda a Média constituem eventos inspiradores para a es- A indumentária imposta às servas de Gileade
impor a ditadura. O medo pode paralisar a huma- critora. Depois, há ainda a SARS, detectado no fi- (toucas que não permitem visão periférica, e lon-
nidade. Os homens e as religiões sempre caíram na nal de 2002, na China — um ano antes de ela lan- gas túnicas vermelhas, símbolos de fertilidade)
tentação de querer regular o corpo das mulheres. çar o livro. A toxicidade do nosso modo de vida e a despontou, um pouco por todo lado, em manifes-
Os sequiosos de poder autocrático sempre procu- guerra química e biológica também não são novi- tações feministas, usada por mulheres que empu-
raram os momentos excecionais, para redobrar o dades, nem as tentativas de clonagem ao longo de nham cartazes nos quais reclamam o desejo de que
seu poder, como é o caso, neste momento, de Vik- anos, que culminaram na ovelha “Dolly”. Na série o mundo de Atwood volte a pertencer ao domínio
tor Orbán, na Hungria. A escritora canadiana não da Netflix que foi feita a partir de “A História de da ficção.

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Sendo Gileade uma ficção, não é totalmente uma longe delas. Depois há as Marthas, criadas de ser- autora admite, dificilmente responderá a todas. “As
ficção. Nem nunca o foi. O cenário que Margaret At- vir, que cozinham e limpam nas casas dos Coman- respostas foram mudando à medida que a própria
wood descreve nunca deixou de existir, ainda que dantes, e as mulheres que são usadas em trabalhos sociedade mudava e as possibilidades se tornavam
com diferenças, para muitas mulheres em vários forçados, em territórios contaminados. As Esposas factualidades. Os cidadãos de muitos países, in-
pontos do mundo onde imperam ditaduras e religi- e as Tias são, contudo, colaboracionistas, ou opor- cluindo os Estados Unidos da América, estão agora
ões que privam as mulheres da igualdade de género, tunistas, na medida em que aceitam e defendem sob maior tensão do que há três décadas,” escreve
dos direitos fundamentais e da liberdade de decidi- o sistema que subjuga as outras mulheres, as Ser- na nota final. Afirmação que se torna mais interes-
rem sobre os seus direitos reprodutivos. Há nesta so- vas. Um mundo patriarcal, bastante musculado, no sante se pensarmos que “A História de Uma Serva”
ciedade ditatorial, autocrática, muitos elementos de qual as mulheres não podem aprender a ler nem a acaba com esta frase: “Alguém tem perguntas?”
verdade. “Precedentes”, como ela diz. Atwood ba- fazer exercício. Seria interessante ouvi-la agora. Em 2008, em
ralha, volta a dar, e coloca uma lente macro sobre al- “Os Testamentos”, sequela de “A História de plena crise financeira, Margaret Atwood refletiu
guns elementos, extrapolando-os, para logo a seguir Uma Serva”, que Margaret Atwood lançou no ano profundamente sobre o conceito de dívida, em pa-
os deformar; chamando a nossa atenção para a faci- passado, e à qual foi atribuído o Booker Prize, que lestras e textos emitidos na rádio CBC, e nos quais
lidade com que podemos negligenciar os primeiros partilhou com Bernardine Evaristo, é um convite fez uma análise histórica e literária sobre a forma
sinais que antecipam o monstro, aceitando a perda para entrar na cabeça de uma dessas mulheres. A como a dívida foi percecionada ao longo de séculos
de direitos elementares em nome do bem comum. tia Lydia é a única personagem que transita de um por diferentes culturas literárias, civilizações e re-
Um processo que, a jusante, e nos piores cenários, livro para o outro. Lydia é uma figura-chave, o cé- ligiões. Mais tarde, estas reflexões foram reunidas
poderá levar à substituição da democracia pela dita- rebro desta sociedade que põe fim à poligamia em num livro: “Desforra — A Dívida e o Lado Sombrio
dura, como acontece em Gileade. Como ela escreve: série, ao “amor ao virar da esquina”, “às mulhe- da Riqueza”. Fará o mesmo acerca da pandemia?
“A Humanidade é tão adaptável (...). É verdadeira- res perdidas” e lhes impõe como único objetivo de Na sua conta de Twitter, tem-se limitado a cha-
mente espantoso, aquilo a que as pessoas se acos- vida cumprir o seu destino biológico, “devolvendo mar a atenção para alguns artigos, nomeadamente
tumam, desde que haja algumas compensações.” as coisas à norma da natureza”. É juíza, ou foi. Uma um em que se noticia que os indígenas de todo o

literalmente para a rua, transformando-se num símbolo feminista

lançar profecias. É alguém que tem feito perguntas


No romance, fanáticos cristãos tomam o poder mulher ambiciosa e esperta, que teve de lutar para mundo, reunidos numa conferência em Nova Ior-
e queimam a Constituição norte-americana, ins- escapar a uma família pouco letrada. Apanhada no que realizada no dia 13 de março, afirmam que por
talando-se no poder e criando a República de Gile- início da ditadura, como todas as restantes mu- trás da covid-19 estão “as alterações climáticas, a
ade, através da prática de execuções em série e de lheres que não fazem parte da elite que preparou a desflorestação e a não proteção da biodiversidade”.
uma apertada vigilância policial. De um dia para fundação da República de Gileade, apercebe-se de O seu ativismo ambiental é bem conhecido e, num
o outro, um mundo muito parecido com o que tí- que a decisão que tem de tomar é entre uma vida encontro de escritores realizado no ano passado,
nhamos até há algumas semanas desaparece. Uma colaboracionista ou a morte. Escolhe a primeira. É, confessou ter alguma esperança na possibilidade
nova ordem, que reúne fanáticos (que, tal como portanto, tal como todos os colaboracionistas, uma de Greta Thunberg dar origem a um exército de jo-
todos os fanáticos, acreditam nas suas próprias oportunista que não quer desistir do poder, e que se vens que não permitirá que políticos negacionistas
boas intenções), quer inverter o sentido das coi- transforma num elemento fundamental no topo da sejam mantidos no poder.
sas, e reverter a baixa natalidade e a elevada taxa cadeia de poder de Gileade, e da sua elite. As res- “A história não se repete, mas rima. (...) Temos
de mortalidade à nascença, depois de anos e anos tantes personagens são duas raparigas: uma jovem de continuar a relembrar as manobras erradas do
de contaminação ambiental. As mulheres, subju- que cresceu fora de Gileade, no Canadá, e outra que passado, para não as repetirmos,” escreve na nota
gadas pelo terror ao poder dos homens, que é dis- não conhece outra realidade senão a do regime au- final de “Os Testamentos”. É provável que agora,
cricionário, são então divididas em categorias que toritário. O livro vive dessas três narradoras, desses ou daqui a uns tempos, olhemos para o passado de
correspondem a uma hierarquia. No topo da esca- três testemunhos, que alternadamente vão dando uma outra forma, da mesma forma que agora olha-
la feminina estão as Esposas, casadas com os Co- visões muito diferentes desse mesmo mundo. Três mos para os livros de Margaret Atwood encontran-
mandantes que governam a nação, e as Tias, mu- perspetivas da mesma realidade que, no final, aca- do todos os sinais que antes nos passaram desper-
lheres mais velhas responsáveis pela “educação” barão por se intersetar. Escrito para dar resposta às cebidos. Teremos então o mesmo sentimento do úl-
das crianças e pela “domesticação” das Servas, perguntas que os leitores lhe foram fazendo acer- timo homem de “Órix e Crex”? Tudo nos preparou
mulheres que já provaram ser férteis, e que serão ca de Gileade, nomeadamente sobre o que aconte- para isto. Nada nos preparou para isto. b
violadas mensalmente em frente às Esposas, até ce depois de o final enigmático de “A História de
engravidarem e darem à luz bebés que crescerão Uma Serva”, “Os Testamentos”, como a própria cmargato@expresso.impresa.pt

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GERAINT LEWIS/EYEVINE

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Entrevista
Javier Cercas

Vivemos
numa
ditadura do
presente”
Pisar terreno novo aos 57 anos não é
coisa para qualquer um. Mas o espanhol
Javier Cercas fê-lo, sob pena de
morrer como escritor. Do mesmo
modo, tomou partido na crise catalã,
porque a um cidadão não é permitida a
ambiguidade. É um homem que diz não,
mesmo que isso não o salve

POR LUCIANA LEIDERFARB


ENVIADA A BARCELONA

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C
ombinamos no Bar Irlandês da Rua
Mandri, a oeste de Barcelona, num
bairro abastado e tranquilo não longe
de Gràcia, onde tem o seu escritório.
Ainda a pandemia de covid-19 é um
difuso horizonte. São cinco da tar-
de, a hora limite para pedir um café,
que vem para a mesa ‘cortado’ e com
açúcar. Com o ruído de fundo de ou-
tras vozes e a luz do crepúsculo a es-
morecer atrás dele, na janela, Javier
Cercas mostrou a sua fibra de con-
versador, o gosto por um bom argu-
mento. Falou de escrita e de política,
e de como ambas estão (ou não) liga-
das. De como o último livro, “Terra
Alta” — com saída em Portugal pre-
vista para junho, pela Porto Editora,
quando iniciará em Cascais uma resi-
dência literária a convite da Fundação
D. Luís — teve a crise catalã a definir-
-lhe os contornos, de como esta crise,
esses dois meses cruciais de 2017, lhe
mudaram a vida, a ele, catalão adoti-
vo nascido em Cáceres que se sentiu
“traído” por um movimento que di-
vidiu a sociedade e que não considera
democrático.
Falou, porque é generoso, do momen-
to em que um escritor começa a repe-
tir-se e da coragem de, aos 57 anos,
aventurar-se a pisar terrenos novos.
Javier Cercas, Prémio Planeta 2019,
autor de livros grandes como “Solda-
dos de Salamina”, “Anatomia de um
Instante”, “As Leis da Fronteira” ou
“Monarca das Sombras”, que quin-
zenalmente mantém uma coluna de
opinião no jornal “El País”, diz que o
escritor prefere a ambiguidade, mas
que o homem tem de tomar posição,
sim ou não. De preferência, e o mais
possível — mesmo que o mundo im-
ponha o contrário —, ‘não’.

Um dia li que se tivesse de resumir


a sua obra numa palavra escolheria
‘não’. Porquê?
Há uns anos, o jornal “Le Monde” pe-
GERAINT LEWIS/EYEVINE

diu a vários escritores para dizerem


qual era a palavra mais importante
para cada um. No início pareceu-me
absurdo, mas depois ocorreu-me que
a minha é ‘não’. Então escrevi um tex-
to onde citava “O Homem Revoltado”,

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de Camus, segundo o qual um homem de que sou o homem menos provoca- é ou não popular. Se o for, por sistema, nada ser inventado. Por outro lado, ha-
rebelde é um homem que diz ‘não’. No dor que existe. é má. Há muito preconceito. Agora, via uma mistura de géneros — história,
fundo, os heróis são homens que di- pensemos um bocado: nada melhor jornalismo, biografia, autobiografia.
zem não quando toda a gente diz que Continua a pensar que, em literatu- pode acontecer à literatura do que ser Havia um narrador que muitas vezes
sim — enquanto os anti-heróis são os ra, o que conta é a verdade e não a popular e relevante para as pessoas. se chamava Javier Cercas. O processo
que o tentam e fracassam. Todas as beleza? era importante: o romance era a his-
minhas personagens giram em torno A verdade e a beleza são a mesma coi- Disse de “Monarca das Sombras” [o tória, mas também o relato de como a
desta palavra. O soldado de “Solda- sa. Disse-o Keats num poema célebre: seu penúltimo romance] que foi o história tinha sido contada. Tudo isto
dos de Salamina” decide não matar “Truth is beauty/ beauty is truth/ that único livro que realmente quis escre- foi, agora, posto de parte. “Terra Alta”
um líder franquista quanto tudo con- is all you know/ that is all you need to ver. Como é isso? é mais formal, mais clássico, tem uma
flui para que o mate. O protagonista de know.” O que penso é que a literatu- É mesmo assim. É aquele que queria aparência de thriller, de policial. E uso
“Anatomia de um Instante” é o presi- ra é o que não parece literatura, o que escrever ainda antes de o ter escrito. a terceira pessoa em vez da primei-
dente de um Governo que, no dia 23 de não soa a belo. A literatura vai ao osso, Porque era a história da minha família. ra. Portanto, há uma distância. Volto à
fevereiro de 1961, quando lhe exigem nunca soa a literatura, soa a verdade. ‘ficção pura’ — embora, de facto, a fic-
que se atire ao chão sob pena de levar E procura uma verdade que não é a do Mas sentiu que, depois de o escrever, ção pura não exista.
um tiro, não o faz. Em grande parte, os jornalismo ou a da História, mas uma algo acabou.
meus livros são uma investigação so- verdade diferente, moral, universal. Este romance é aquele que eu queria Já está a polemizar.
bre o que é um herói. E a primeira con- A literatura escreve-se contra aquilo ter escrito primeiro, para o qual des- Mas é verdade. Vou mais longe: essa
dição para o ser é dizer não quando to- que, a cada momento, convencional- de sempre me estive a preparar. En- terceira pessoa, que parece mais dis-
dos à sua volta dizem que sim. mente, é considerado literatura. É uma tão, quando finalmente o escrevi, senti tante e muito separada de mim, per-
reação a isso. Sempre foi assim. Sha- que algo tinha acabado. Percebi que, se mitiu-me dizer coisas que a primeira
‘Não’ é das primeiras palavras que se kespeare não soava a literatura, soava continuasse pela mesma via, corria o pessoa nunca me deixou dizer, coisas
aprendem. a entretenimento. pior dos perigos que um escritor pode muito mais íntimas.
É vital. Há um poema de Cavafis que correr, que é o de repetir-se, de con-
diz: ‘mais tarde ou mais cedo, a toda a E Cervantes? verter-se num imitador de si mesmo. E como tem a certeza de que não se
gente lhe chega o momento do gran- Igual. O seu livro mais genial — o “D. Você dir-me-á: isso acontece. É o mais repetiu?
de sim ou do grande não’. Eu acres- Quixote” — é um livro que, à época, normal, ainda para mais se se estiver Neste caso foi simples. Ano e meio de-
centaria: aquele que diz sim parece não tinha género. Nem sequer se cha- perto dos 60 anos. Há muitos escritores pois de acabar o livro anterior, pensa-
salvar-se mas na verdade condena- mava romance, porque romance era que se dedicam a repetir as suas pró- va que nunca mais voltaria a escrever.
-se, e aquele que diz não parece con- outra coisa. Cervantes não era um es- prias descobertas. Mas a partir desse Quer dizer, fazia os meus artigos e en-
denar-se mas na realidade salva-se. critor importante. Shakespeare tam- momento estão mortos. saios, mas de romance, nada. Até que
O soldado de “Soldados de Salamina” bém não. Hoje são, mas no seu tem- um dia ouvi uma música diferente.
não tem recompensa, morre sozinho, po os intelectuais desprezavam-nos. Como se identifica esse momento? Posso dizer-lhe qual é a primeira frase
ninguém sabe quem é. Não há recom- Cervantes nunca teria ganho o Prémio Isso depende de cada um, o meu acon- deste romance, que hoje pertence ao
pensa para o não, mas um homem que Cervantes. teceu quando acabei aquele livro. E, segundo capítulo: “Chamava-se Mel-
não mata quando deve matar salva-se, por isso, o que agora escrevi é muito chor, porque a primeira vez que a sua
e salva-nos. Porque era popular? diferente. mãe o viu, recém-saído do seu ventre
Em parte, sim. A literatura popular é e escorrendo sangue, disse que parecia
Há que tomar posição? Não se pode suspeita para os intelectuais. Repare “Terra Alta” não é, como os anterio- um rei mago. A sua mãe chamava-se
ficar a meio caminho? que os maiores idiotas do mundo são res, um ‘romance sem ficção’? Rosario e era puta.” Quando isto me
Em circunstâncias normais, sim. Em intelectuais. Porém, há literatura po- Não. Desde “Soldados de Salamina” ocorreu, sabia que estava num terreno
circunstâncias extremas, não. Há situ- pular boa e má. “D. Quixote” era exce- até “Monarca das Sombras”, os meus distinto. Como quem abre uma porta e
ações em que isso não é possível, como lente, assim como “Madame Bovary”. romances eram-no. Tinham muitos percebe que nunca antes tinha estado
numa guerra. Os críticos, em vez de dizerem se uma elementos em comum, nomeadamen- ali. Não é algo racional, é a sensação
obra é boa ou má, preferem apontar se te o facto de tudo vir da realidade, de de ter começado a colonizar um ter-
E Javier Cercas diz muito que não? ritório novo.
Oxalá. Não vou aqui ser pretensioso. A
primeira condição de um herói é ser Mesmo em terreno novo, a Catalunha
capaz de dizer não. A segunda é que, se está muito presente.
alguém lhe pergunta se é um herói, ele O livro não trata da crise catalã. Porém,
nunca o reconheça [risos]. Não é mo- ela é o seu combustível. A “Metamor-
déstia: a virtude, ou é secreta ou não é fose”, de Kafka, é sobre um homem
virtude. No instante em que a virtude que se levanta de manhã transformado
se torna pública, converte-se em puro num inseto. Mas o que a impulsiona é

Não há recompensa
exibicionismo. a incapacidade de Kafka para se rela-
cionar com o mundo, o seu profundo
Podendo escrever sobre ‘coisas bo- desenraizamento vital. No livro, a cri-
nitas’, escreve sobre temas contro-
versos. Está sempre a pôr o dedo na
ferida.
para o não, mas se catalã surge num par de pinceladas
— para já, na localização em Terra Alta,
que é uma vila da Catalunha rural, ári-
Não o faço deliberadamente. Não pro-
curo o escândalo. O meu lema é uma
frase de António Machado: em paz
um homem que não da e pobre. O ‘outono catalão’ [setem-
bro e outubro de 2017] apanhou-me em
plena escrita. Porém, nesses meses, pa-
com todos e em guerra comigo mes-
mo. O problema é que, aos 57 anos, mata quando deve rei tudo e dediquei-me a angustiar-me
e a combater com os meus humildes

matar salva-se,
descobri que estou em guerra com to- meios — falando com a imprensa es-
dos. Sem ter procurado a polémica, trangeira e escrevendo artigos — o di-
dou-me conta de que a gero constan- lúvio de mentiras que se estava a aba-
temente, com os livros, com os artigos.
Mas dou-lhe a minha palavra de honra e salva-nos” ter sobre a Catalunha. O que vivi e ex-
perimentei naqueles dois meses nunca

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antes o tinha vivido. Tinha-o visto nos Qual é a pergunta deste livro?
filmes, mas nunca pensei que fosse É legítima a vingança quando a justiça
acontecer num dos lugares mais pri- não faz justiça? Posso vingar-me de al-
vilegiados do mundo. O mais impor- guém que me fez algo terrível se a jus-
tante historiador catalão, Josep Fon- tiça não o castigou? Posso fazer justiça
tana, recentemente falecido e filo-in- pelas minhas mãos? A nossa resposta
dependentista na velhice, disse que, imediata seria: ‘não’. Mas os escritores
nesse período, na Catalunha viveu-se nos dedicamos a baralhar as certezas
um ambiente pré-bélico. Refiro-me a
uma sociedade que se quebra e onde Mais de metade do leitor. Se tiver feito bem o meu tra-
balho, quando o leitor acabar o livro

da Catalunha não
tudo entra em crise. Isso mudou-me. dirá: ‘bom, talvez sim’.

Porquê? Essa questão da ambiguidade lem-


Os escritores são recicladores de lixo.
Num mundo feliz não existiriam ro-
mancistas — talvez poetas, mas muito
existe para as bra a ‘zona cinzenta’ de Primo Levi,
onde as vítimas se transformam em
carrascos.
maus. Os romancistas trabalham com
a discórdia, com a dor, com o confli-
to. Por isso, aqueles meses que foram
pessoas que Um escritor trabalha com essa ideia.
Recordo-me de um poema de [Ri-
chard] Browning, que diz [procura na
atrozes enquanto cidadão, foram bes-
tiais enquanto escritor. Este livro está dirigem este país. Internet]: “O nosso interesse está no
extremo perigoso das coisas. O ladrão

E talvez nunca
cheio de fúria, de ódio, de coisas que honesto. O assassino terno. O ateu su-
não se podem expressar num artigo. persticioso.” Ou seja, a zona cinzenta.
Porque ou teria de me exilar, ou não Porque os seres humanos somos sim
as quero dizer de tão venenosas e tó-
xicas que são. Só a literatura me per-
mite dizê-las.
tenha existido” ou não, mas a literatura opera sempre
na ambiguidade. Por isso, a convivên-
cia entre o romancista e o cidadão é
arriscada. São opostos. O romancista
Numa crónica do “El País”, falou do lida com o “extremo perigoso das coi-
processo catalão como uma “grande acreditar que este é um problema entre dos motores fundamentais da história. sas”, com os paradoxos. Mas o cidadão,
traição”. a Catalunha e Espanha. Nada mais fal- No entanto, a razão mais importante mais tarde ou mais cedo, tem de dizer
Essa crónica teve um impacto impres- so: é um problema entre catalães, mais para tudo isto é a crise económica: se sim ou não. Se o cidadão se impõe ao
sionante. Sentia-me profundamente de metade dos quais dissemos, através a de 1929 consolidou os totalitarismos escritor, este pode converter-se num
traído e, por ousar dizer isto, eu era o de todas as eleições possíveis — muni- e provocou a Segunda Guerra Mundi- pedagogo, num propagandista. Eu sou
diabo. Cheguei à Catalunha com qua- cipais, autonómicas —, que não. Este al, a de 2008 gerou o nacional-popu- dos que acreditam que a literatura é
tro anos e os meus pais disseram-me: é um movimento profundamente an- lismo, que é uma máscara pós-mo- útil, enquanto não se propuser sê-lo.
vamos ser catalães. Fiz-me catalão, tidemocrático e reacionário, de ricos derna do totalitarismo — diferente, No instante em que o quer ser, deixa
aprendi o catalão. Sentia-me catalão. contra pobres: os ricos catalães contra pois aparenta defender a democracia. de ser literatura e perde a utilidade. O
E, de repente, quando tudo isto acon- os pobres estremenhos e andaluzes. A história nunca se repete da mesma cidadão e o escritor têm de estar em
tece, aqueles que não concordávamos São sempre os ricos os que se querem forma, recorre a máscaras diversas. É guerra permanente. É preciso muita
com a separação — porque não se tra- separar dos pobres, e não o contrário. um erro gravíssimo acreditar que são energia para isso — e se calhar um dia
ta de independência — não éramos A grande armadilha é que, antigamen- menos perigosas. vou-me cansar.
catalães, não contávamos. A maioria te, os antidemocráticos diziam que es-
dos catalães, de repente, não éramos tavam contra a democracia. Agora são Em “Terra Alta” escreve que a justi- Várias vezes disse que escreve sobre o
nada. Tratou-se de uma brutal agres- mais subtis: dizem que são a favor. E ça absoluta pode ser a mais absolu- presente do passado, que ambos são o
são à democracia em nome da demo- isto não é exclusivo da Catalunha, está ta das injustiças. Tudo pode ser o seu mesmo. Como é isso?
cracia. Mais de metade da Catalunha a acontecer em todo o mundo. Chama- oposto. Um dos aspetos decisivos do nosso
não existe para as pessoas que dirigem -se nacional-populismo. Winston Churchill, que derrotou o fas- tempo é que vivemos numa ditadura
este país. E talvez nunca tenha existi- cismo na Europa, disse: “Os próximos do presente, em grande parte gerada
do. Senti-me ferido e este livro é o re- O separatismo é um problema pró- fascistas vão apresentar-se como an- pelos meios de comunicação. O que
sultado dessa dor. prio de uma sociedade privilegiada, tifascistas.” Hoje, os inimigos da de- não é de hoje, desta manhã, já é pas-
que não tem outras coisas com que se mocracia reclamam ser os seus defen- sado. O que se passou há três semanas
Acha que aquilo que há dois anos se ocupar? sores. O maior autoritarismo pode ser é pré-história. Isto cria uma visão to-
quebrou na sociedade catalã a man- Privilegiada e entediada. Isto é resul- vendido como democracia. Dou-lhe talmente falsificada da realidade, por-
tém dividida hoje? tado do tédio, do privilégio e do bem- um exemplo: os referendos, o ‘Brexit’. que, na realidade, o passado — e so-
Sim, claro. Construir é difícil, mas des- -estar. Há muita gente cuja vida tinha A frase da justiça que citou é funda- bretudo aquele de que há memória e
truir é muito fácil. Agora a situação acabado, que se tinha reformado, e mental porque este meu livro trata de testemunhas — é uma dimensão ativa
está mais tranquila, porque esta gen- que não tinha mais nada a fazer além temas que nunca antes havia aborda- do presente, sem a qual o presente está
te, que tentou agredir o Estado demo- de dar de comer aos pombos. E que, de do. O protagonista é um jovem furio- mutilado. Nos meus livros, digo: esse
crático, embateu contra o Estado de- repente, encontrou uma grande aven- samente sedento de justiça, ao ponto passado está aqui. Não simplifique-
mocrático, que resultou ser mais forte tura, uma causa para defender — grá- de confundir justiça com vingança. O mos o presente, ao ponto de deixar de
do que ela acreditava. Mas a sociedade tis, porque sabe que nada lhe vai acon- bem levado ao extremo pode transfor- o compreender.
continua dividida e vai demorar muito tecer. Consequências só houve para os mar-se em mal. No fundo, escrever um
tempo a voltar a unir-se. Eu não estarei políticos que arremeteram contra as romance é formular uma pergunta do É por isso que disse que o presente de
aqui para o ver. E repare que esta era liberdades de todos e que agora estão modo mais complexo possível. E não Espanha começa em 1936?
uma sociedade coesa, onde ninguém na cadeia. Neste período, houve pes- a responder, pelo menos não de um Sim. E o da Europa em 1939, com a II
te obrigava a escolher se eras espanhol, soas que se divorciaram, que encon- modo claro, taxativo e unívoco, mas de Guerra Mundial. Quando era jovem, eu
catalão ou o que quer que fosse. De re- traram novos amores. Que encontra- uma forma ambígua, poliédrica e iró- acreditava que o meu país era uma ex-
pente, uns senhores disseram que ha- ram uma nova missão, em defesa da nica — a resposta é a própria procura ceção, que só nós tínhamos dificulda-
via que escolher. Em Portugal, podem liberdade e da utopia. O tédio é um de uma resposta. des com o passado. Mas, ao ficar mais

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velho, e menos parvo, e com mais es- Porque a ditadura era brutal. Nos anos Quem tem a razão política? Sem dúvi- Há uma visão elitista da UE, a perce-
tudos, percebi que não. Todos os países 40, os antifranquistas estavam nos ce- da, os republicanos. Isso significa que ção de que é algo de longínquo e sem
as têm. O presente espanhol começa mitérios, a monte ou no exílio. Dizer todos os republicanos, além da razão repercussões sobre a vida diária, mas
em 1936, e para compreender o que se que toda a gente o era é uma forma de política, tinham a razão moral? Não. não há nada mais falso. Tudo o que a
passa hoje — mesmo a crise catalã — é adoçarmos o passado. Por isso é que Os republicanos que, num episódio la- UE decide tem impacto nas nossas vi-
preciso recuar até aí. os meus livros enervam as pessoas: mentável, assassinaram mais de 6 mil das.Somos a primeira geração de eu-
porque gostamos das mentiras. É mais padres e freiras a sangue frio, estavam ropeus que não teve uma guerra. O
Em “Monarca das Sombras” escavou bonito dizer que todos foram heróis da do lado correto da história, estavam a meu pai conheceu a guerra. O meu
no seu próprio passado familiar. O resistência. defender uma república democráti- avô também. Só o facto de se conseguir
passado herda-se? ca, tinham a razão política. Mas não preservar a paz num continente que
É muito difícil enfrentar o pior do pas- Escreveu sobre um jovem que está do tinham a razão moral, eram uns ca- teve mil anos de guerra permanente
sado. Coletiva e pessoalmente, todos lado errado da história. Por vezes, tu- nalhas. Chamo-lhes ‘os canalhas das é um milagre. Estamos no local mais
temos uma má e uma boa herança. do se resume a isso? boas causas’. próspero do mundo. Sem UE, só a Go-
Com a boa herança sabemos o que fa- Manuel Mena, o protagonista de “Mo- ogle e o Facebook nos esmagariam. E
zer. Mas a pergunta fundamental é o narca das Sombras” e meu tio, estava E o contrário? Os bons das causas não temos consciência disso.
que fazer com a má herança. Escon- do lado errado da história. As melho- canalhas?
demo-la? Inventamos uma herança res pessoas podem cometer os piores Esses também existiram. Pessoas que No entanto, Jonathan Littell disse-
alternativa? Ou enfrentamo-la? erros, as piores barbaridades. Com- politicamente estavam do lado erra- -nos, numa entrevista, que 70 anos
parativamente, o erro dos separatis- do — do lado dos franquistas, dos que de paz parece ser o tempo máximo
“A minha família era franquista”, co- tas catalães é de menor dimensão — apoiaram um golpe de Estado — mas para manter uma memória da guerra.
mo se diz isto? há quem se imole e mate centenas de que acreditavam que aquela era a úni- Concorda?
A imensa maioria das famílias espa- pessoas. O inferno está cheio de boas ca solução para o país. Que, naque- Está a acontecer. Voltamos a acreditar
nholas era franquista. Mas nem todas intenções. la encruzilhada, não havia outra saí- nos líderes carismáticos, nas soluções
o diziam. E nós somos a nossa herança, da melhor. Aos 17 anos, Manuel Mena fáceis a problemas complexos. Repe-
somos os nossos pais, os nossos ante- O que conduz um homem comum, alista-se nas tropas de Franco e, de- timos uma crise apenas comparável
passados. Se conheces a tua herança que poderíamos ser nós, à barbárie, pois de combater durante três anos nas com a de 1929. A história não se repe-
e a compreendes, podes governá-la. ao crime ou ao fascismo? frentes mais duras da guerra, é ferido te, mas os seres humanos não mudam.
Senão, ela governa-te a ti. O resultado Esta é mesmo a pergunta. Mas nada cinco vezes e morre em combate. Pas- Claro que a experiência nos ensina al-
disso é repetir, uma e outra vez, os er- disto é estranho: é normal. Pensamos sei a vida a investigar sobre este rapaz. guma coisa. A transição da ditadura
ros já cometidos. A minha família foi que só as más pessoas se colocam do Ele enganou-se politicamente, mas para a democracia em Espanha funci-
franquista, sim. Todo o meu país o foi. lado errado. Orwell disse: onde estão não posso dizer que fosse pior pessoa onou porque as pessoas ainda tinham
as boas pessoas quando acontecem do que eu. Mais: tenho todas as razões memória da guerra. Hoje já ninguém
O antifranquismo é uma mentira coisas más? Quando acontecem coi- para pensar o contrário, entre outras tem essa memória, nem sequer a nível
histórica? sas más, as boas pessoas ou estão ca- coisas porque fez uma coisa que nunca da Europa, e as pessoas voltam a sen-
É uma enorme, monstruosa, menti- ladas ou estão a agir mal. Eu costumo me vi obrigado a fazer, nem sei se seria tir-se aventureiras. O desprezo pela
ra histórica. Houve antifranquistas, distinguir entre razão política e razão capaz: arriscar a vida e perdê-la a de- democracia é uma das características
mas muito poucos. Vázquez Montal- moral. Colocando o exemplo espanhol: fender aquilo em que acredita. do nosso tempo.
bán, um grande escritor espanhol, co- em 1936, em Espanha há uma demo-
munista, disse que os antifranquistas cracia pobre, frágil, que pouca gente Na mesma linha, como é que os fas- Considera-se um escritor compro-
cabiam num autocarro. Eu diria que apoia. Há um golpe de Estado, por uma cistas hipnotizaram milhares de metido com o seu tempo?
houve épocas em que cabiam num parte do exército, a igreja e a metade pessoas? Quando era jovem, detestava a ideia
minibus. Eram poucos, sabe porquê? do país — incluindo a minha família. Banalizar o fascismo é justamente di- de uma literatura comprometida. As-
zer que é monstruoso. O resultado foi sociava-a à propaganda e ao populis-
monstruoso, mas o fascismo era muito mo. Mas se a literatura comprometida
atrativo e fascinou muita gente. Apre- é, como dizia Michel Leiris, uma li-
sentava-se como antissistema, como teratura com a qual me comprometo
anticapitalista e revolucionário, estava por inteiro, que coloca os problemas
na moda. E acreditar que todos os in- profundos, políticos e humanos, en-
telectuais se lhe opuseram é ingénuo: tão sou um escritor comprometido. Na
muitos manifestaram oposição, mas verdade, todos os grandes escritores o
muitos outros aderiram em massa, en- são. Jorge Luis Borges é o escritor mais
tre eles algumas das cabeças mais in- importante em língua espanhola des-

Hoje, as pessoas teligentes da Europa, como Heidegger. de Cervantes e Quevedo. E é profunda-


mente político, não só na escrita como

voltam a sentir-se
Como vê esta Europa em que os naci- na vida. Como não considerar político
onais-populismos começam a sair da o ter sido castigado pelo peronismo e
casca? ter assinado manifestos? Enganou-se

aventureiras. Alguns até governam, como Viktor


Orbán. Felizmente, existe algo ao qual
quase não damos importância mas que
na causa, mas comprometeu-se.

Já percebi de onde vem. Para onde

O desprezo pela é vital: a União Europeia. Sem ela, na


Catalunha provavelmente teria havido
uma guerra. Dito isto, tal como exis-
vai?
Não faço ideia. E acho ótimo. Litera-
riamente, aconteceu-me uma coisa

democracia é uma te, a UE é insuficiente. Sou a favor de


um estado federal — da dissolução dos
maravilhosa. Encontrei um território
novo. Nunca me tinha ocorrido, mas o

das características
atuais Estados num só. meu último livro vai ter continuidade.
As personagens não quiseram morrer,
Será que a UE consegue chegar às quiseram continuar vivas. b

do nosso tempo” pessoas? Ou só comunica ao nível das


elites? lleiderfarb@expresso.impresa.pt

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FRACO CONSOLO

“Cristo Carregando a
Cruz”, de Paolo Veronese
(1528-1588)

U
ÚLTIMAS PALAVRAS
AO LONGO DOS SÉCULOS, AS PALAVRAS DE JESUS NA CRUZ
INSPIRARAM DONNE, HAYDN, HOPKINS, ATÉ JOYCE

m artigo no “The New York acentua-se o equívoco da acusação formulada pelas autoridades romanas
Times” a propósito de política e e defende-se o perdão de quem nos ofendeu. “Em verdade te digo que
pandemia chamou-me a atenção hoje estarás comigo no Paraíso”, a promessa dirigida ao Bom Ladrão,
para Jon Meacham. Professor na companheiro de martírio, indica a possibilidade de redenção até ao
Universidade Vanderbilt, jornalista, último segundo. Uma frase dirigida a Maria, “mulher, eis aí o teu filho”,
biógrafo de três Presidentes e outra ao discípulo predilecto, João, “eis aí a tua mãe”, é ao mesmo
americanos, vencedor de um tempo uma hierarquia dos afectos, um testamento das coisas do mundo
Pulitzer, Meacham, dizia a nota e um legado à comunidade dos primeiros cristãos. “Meu Deus, meu
biográfica, tinha acabado de Deus, porque me abandonaste?”, a interrogação mais chocante de toda
publicar um livro sobre as últimas a Bíblia, lembra que estamos perante um homem que vive totalmente o
palavras de Jesus. Encomendei-o desespero humano, não “um deus a fingir que morria”. “Tenho sede” é
logo, até porque estamos na Páscoa, também um humaníssimo pedido de Jesus, com o efeito essencialmente
e numa Páscoa diferente de todas as outras que vivemos, fechados em retórico de reforçar o facto de os soldados lhe darem a beber vinagre,
casa à espera de tempos mais propícios. como acontece a tantos humilhados e ofendidos. “Está consumado”
Os sete curtos ensaios que compõem o “The Hope of Glory” nasceram parece querer dizer que a morte é a conclusão de um projecto há muito
como sermões proferidos numa congregação episcopaliana nova-iorquina estabelecido, e que aquele projecto específico exigia um sacrifício. “Pai,
(os episcopalianos são os anglicanos americanos, que os sociólogos nas tuas mãos entrego o meu espírito”, finalmente, é uma aceitação que
tendem a identificar com uma elite sofisticada e liberal). O mote dos institui um mistério.
sermões é a pergunta de Pilatos a Jesus: “O que é a verdade?”, pergunta a Segundo Jon Meacham, estas últimas palavras de Jesus são sobretudo a
que Jesus não respondeu. Meacham define “a verdade” como o caminho sofrida reiteração de uma outra frase, dita em tom profético, e que João nos
para a superação do sofrimento e a libertação do mal. Para o cristianismo, transmitiu assim: “Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no
a resposta à pergunta “o que é a verdade” passa necessariamente pela mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo.” b
história que todos os anos a Páscoa evoca: a traição, prisão, flagelação, pedromexia@gmail.com
crucifixão, morte e ressurreição de Jesus. Mas que espécie de “verdade” Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
é essa que se baseia em episódios antiquíssimos, nebulosos, e que propõe
uma hipótese que violenta a experiência empírica e a racionalidade?
O cristianismo, segundo Meacham, distingue-se por não depender
de “provas” mas de “testemunhas”, na medida em que a fé se baseia
nos textos que os discípulos escreveram, e em especial naquilo que
escreveram sobre a Páscoa. Essa é “a verdade da cruz”: uma verdade de
factos documentados e conclusões indocumentáveis, a verdade horizontal
da História associada à verdade vertical da Teologia, a verdade de um caso
e a verdade de um “acontecimento”.
Ao longo dos séculos, as palavras de Jesus na cruz inspiraram Donne,
Haydn, Hopkins, até Joyce. “The Hope of Glory” sustenta que essas
palavras são em si mesmas sermões, fragmentados mas decisivos, com
/ PEDRO
aquele estatuto mítico que atribuímos às “últimas palavras”. Perseguido MEXIA
como um revoltoso político, condenado a uma morte ignóbil, que fosse
castigo e aviso, pregado a uma cruz no Gólgota, Jesus diz as suas sete
últimas frases. Em “Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem”,

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“Ecce Homo”, reprodu-
ção do século XVI, de
autor desconhecido, que
faz parte da exposição
permanente do Museu
Nacional de Arte Antiga.
Outras cópias existem no
Museu de Beja e no
Museu de Setúbal

A Paixão de
Cristo em casa
Os museus estão fechados e até as missas foram
canceladas. Mas ainda há maneira de ver como
a arte portuguesa representou a Páscoa
TEXTO ANTÓNIO VALDEMAR

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A
Páscoa tem profundas tradições na
civilização ocidental. Não se esgota
na paixão, na morte e na ressurreição
de Cristo. A sua origem relaciona-
se com a herança de Abraão e de
Moisés, a terra do Egito, a libertação
do povo de Israel e a passagem do
Mar Vermelho. A Bíblia, quer no
Antigo Testamento quer no Novo
Testamento, descreve as etapas da
festa judaica. E, também, a génese
das cerimónias que o catolicismo
foi adotando, através dos relatos
dos Evangelhos e das Epístolas e de
acordo com as posições doutrinais
introduzidas desde o Concílio de
Niceia até ao Concílio de Trento.
Acrescente–se, a tudo isto, a
profusão de todas as formas de culto
das outras igrejas cristãs.
Mas não é, apenas, na literatura, na
efabulação narrativa, no universo
da criação poética e na exegese
histórica, filosófica e teológica que a
Páscoa se reflete na área da cultura.
As artes plásticas registaram, ao
longo dos séculos, o ritual das
sinagogas, a prática litúrgica
orientada pela hierarquia católica ou,
ainda, as manifestações populares
que decorrem ao sabor dos usos e
dos costumes de cada país e, dentro
de cada um, das várias regiões que o
constituem.

A VISÃO DE ÁLVARO PIRES


A pintura portuguesa dos séculos
XV e XVI, à semelhança dos grandes
centros da Europa ou através da sua
influência, consagrou as motivações
relativas à Semana Santa e à Páscoa.
Reconstituiu a vida terminal de
Cristo, que principia ao ser julgado
por Pilatos, que se prolonga à tortura
no Calvário e até à descida da cruz
para o sepulcro. Finalmente, emerge
na apoteose da Ressurreição.
A recente exposição de Álvaro Pires,
no Museu Nacional de Arte Antiga “Cristo Ressuscitado Abençoan- século XV. Permitiu uma análise cidades da Toscana: Prato, Lucca,
— um dos acontecimentos artísticos do”, de Álvaro Pires de Évora, circa comparativa do percurso de Álvaro Pisa e Volterra. Interpretou o ciclo
mais significativos, das últimas 1430-1435. Da coleção do Museu Pires em face de grandes mestres da da Natividade e o ciclo da Paixão da
décadas, que fica na história do de Belas Artes de Budapeste, época representados na exposição, Morte e da Ressurreição de Cristo.
Museu e que se inscreve no exercício exposto recentemente em Lisboa facto que a tornou ainda mais Mestre entre mestres tem o domínio
da atual direção de Joaquim Caetano relevante. e virtuosismo da composição,
e de Anísio Franco —, aproximou- Álvaro Pires nasceu em Évora, por através da nitidez do desenho e da
nos da quase totalidade da obra volta de 1370-1380. Radicou-se em energia da cor que se associam à
do notável pintor português que Itália, a partir de 1410. A sua obra sagacidade do olhar e à capacidade
se afirmou em Itália no começo do encontra-se, por exemplo, em quatro de análise e de síntese. Integra-se

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no contexto da pintura italiana, na significativas assinalam-se as obras Contudo, quando se fala de Frei

A Páscoa na arte portuguesa


véspera do Renascimento. Sendo o de Vasco Fernandes, que se radicou Carlos, o que vem à memoria é
primeiro pintor português de quem em Viseu, na primeira metade do a famosa oficina no Espinheiro
se conhecem obras não deixa de ser século XV. A “Última Ceia” que está onde havia, em 1834, por ocasião
também um pintor de acentuada em Viseu é uma das suas obras mais da extinção das ordens religiosas,
feição italiana. empolgantes. Fez para Lamego o muitos dos quadros que vieram
retábulo do Sé. Esteve em Coimbra ÚLTIMA CEIA (C. 1535) a pertencer ao fundo do Museu
O CRISTO DAS JANELAS VERDES e passou em Lisboa pela oficina de Nacional de Arte Antiga.
Vasco Fernandes
Uma das mais enigmáticas obras Jorge Afonso. Dos trabalhos da sua Museu Nacional Grão Vasco, Viseu
da pintura, o “Ecce Homo” — antes autoria, ou que lhe são atribuídos CARÁCTER PRÓPRIO
das investigações de Joaquim salientam-se, também os 16 painéis Évora também possui um retábulo
Caetano e que alteraram a erudição da igreja matriz de Freixo de Espada alusivo à Paixão. Terá sido,
acumulada —, permaneceu, durante à Cinta e o o tríptico oferecido, inicialmente, da capela da Piedade,
largas décadas, no Museu Nacional em 1945, ao Museu Nacional de mais conhecida pela capela do
de Arte Antiga, na mesma sala — e Arte Antiga pelos herdeiros do Esporão. Mais tarde, deu entrada na
por se julgar ser da mesma época colecionador inglês Herbert Cook Sé de Évora, por determinação do
— dos “Painéis de São Vicente de (visconde de Monserrate). donatário, D. Manuel de Vasconcelos
Fora”. O “Ecce Homo” inspira-se no Estas obras correspondem a e no cumprimento de um voto de sua
Evangelho de São João, e faz reviver o períodos diferenciados. Mas sem DEPOSIÇÃO NO TÚMULO esposa D. Helena de Noronha.
Cristo flagelado, a coroa de espinhos e nunca deixarem de estabelecer (C. 1521-30) As hipóteses, quanto à fatura e
o manto de púrpura sobre os ombros. um confronto direto com o artista Cristóvão de Figueiredo à origem, são várias: Raczynski
É a primeira estação da Via Sacra. vigoroso, de amplos recursos técnicos, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa indicou analogias com Memling;
É a imagem do condenado que tem para comunicar, através da pintura José de Figueiredo emitiu outra
numa das mãos uma vara e daí o povo religiosa, os grandes problemas e as opinião, seria de um pintor de
chamar-lhe o Senhor da Cana Verde. grandes angústias humanas. Lovaina. Próximo de nós, Dagoberto
Todavia, a tábua do Museu de Arte Markl alertou para influências dos
Antiga é um prodígio de simplicidade A TRAGÉDIA DO CALVÁRIO pintores de Gand e de Bruges, com a
e de clareza. É uma figura hierática, O itinerário da Cruz, as sequências predominância de Gerard David.
reduzida ao essencial, que transmite da Via Sacra atingem, naturalmente, Évora tornou-se ponto de
uma carga emotiva surpreendente. maior dramatismo e, quantas convergência de personalidades
TRÍPTICO DA PAIXÃO
O mistério que envolve os olhos vezes, a dimensão da tragédia ao emblemáticas da cultura e da arte
DE CRISTO (C. 1510-40)
cobertos elevou o conteúdo simbólico pormenorizar o encontro de Cristo europeias. Quando, em 1428, Van
Nardon Pénicaud
e incutiu tamanho fascínio em com a mãe; a ajuda de Cireneu, o Eyck se deslocou a Portugal, por
Museu Nacional Frei Manuel
Almada Negreiros que considerava ser pranto das mulheres de Jerusalém; do Cenáculo, Évora indicação de Filipe III de Borgonha,
a mais bela e a mais impressionante a Verónica, a limpar o sangue; o a fim de retratar a infanta D. Isabel,
de todas as pinturas que vira. suplício no Gólgota e, por último, a filha de D. João I, e depois, duquesa
Os estudos publicados nas primeiras descida para o túmulo. de Borgonha, visitou a corte instalada
décadas do século XX da autoria O “Calvário”, de Vasco Fernandes, nos Paços Reais de Évora.
de José de Figueiredo, de Reinaldo é uma das obras-primas da pintura Por outro lado, Francisco Henriques,
dos Santos e de Jaime Cortesão, no Museu Grão Vasco. Outro artista que se presume natural da Flandres
entre muitos outros, consolidaram que se distinguiu na conceção e no e casou em Portugal com uma irmã
o renome nacional e internacional. imaginário da paixão e da morte de do pintor Jorge Afonso, não se pode
Ficou denominado, inclusive na Cristo foi Cristóvão de Figueiredo. dissociar, igualmente, de Évora, haja
classificação do próprio museu, o Ignoram-se as datas e locais do em vista os retábulos que lhe são
Cristo das Janelas Verdes, enaltecido nascimento e da morte. Mas sabe- atribuídos e destinados para o altar-
não apenas por historiadores e se que trabalhou em Coimbra, em mor e os altares laterais da igreja de
críticos de arte mas, também, Lamego e em Lisboa. Cunhado de CALVÁRIO (1535-40) São Francisco.
por inúmeros poetas e escritores Isabel Pires, mulher do imaginário Vasco Fernandes A problemática religiosa, da Semana
Museu Nacional Grão Vasco, Viseu
portugueses e estrangeiros. francês João de Ruão, tinha laços de Santa e da Páscoa, na obra dos
parentesco com os pintores Jorge pintores portugueses dos séculos XV
A ÚLTIMA CEIA Afonso, Francisco Henriques, Garcia A ARTE É UMA PONTE e XVI reveste-se de características
O tema da Última Ceia ficou, Fernandes e Gregório Lopes. QUE NOS UNE específicas. O desenvolvimento do
universalmente, celebrado por Divergem os investigadores e os Trata-se do programa do Museu tema e a subordinação do artista a
Leonardo da Vinci, num painel, eruditos a propósito da identificação Nacional de Arte Antiga que teve determinados pressupostos verificam-
em que a instituição da eucaristia de painéis que dizem ser de Frei início logo que foi imposto o estado de se na composição, no tratamento da
perante os apóstolos se caracteriza Carlos, oriundo da Flandres. Não emergência, o mesmo é dizer desde cor — e como destacou a corrente
pela harmonia cromática, pela restam, contudo, dúvidas de que que viu as suas portas encerradas. Os nacionalista da História de Arte —,
técnica sóbria e pela contenção do exerceu atividade, entre nós, e é um seus diretores, Joaquim Caetano e na incorporação das arquiteturas
sentimento na essência e nas formas. dos maiores pintores da época. Anísio Franco, apresentam em vídeo regionais e nas referências objetivas
Nos primórdios desta representação Um dos factos averiguados da algumas das mais emblemáticas obras de costumes, de tradições e de
do museu que posteriormente são
iconográfica avultam o mosaico de biografia de Frei Carlos reside no paisagens portuguesas. Tudo quanto
disponibilizadas nas redes sociais
Sant’Apollinare Nuovo, em Ravena, ingresso no Convento do Espinheiro, contribui para definir alguns dos
(Facebook, YouTube, Instagram). Não
e as três miniaturas do Evangeliário próximo de Évora. Admite-se a é exclusivamente dedicado à Paixão traços fundamentais do carácter e do
de Rossano, com a ceia, o lava-pés, a passagem por outros mosteiros, de Cristo mas já existem, entre outros, temperamento do homem português.
repartição do pão e a distribuição do como Santa Marinha da Costa, em episódios sobre o “Ecce Homo”, a Quer seja na conceção do mundo,
vinho. Guimarães, e os Jerónimos, em “Última Ceia”, de Francisco Henriques, quer seja na atitude perante a vida,
Entre nós, podem citar-se Lisboa. Terá falecido em Alenquer, no ou a “Deposição no Túmulo”, de quer seja, ainda, na relação que
numerosas figurações. Entre as mais Convento do Mato, perto daquela vila. Cristóvão de Figueiredo. mantém com o sobrenatural. b

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Li
vros
Isto não
Coordenação Luciana Leiderfarb
lleiderfarb@expresso.impresa.pt
é de agora
As raízes profundas
do autoritarismo na
sociedade brasileira,
segundo a historiadora
Lilia Moritz Schwarcz
TEXTO LUÍS M. FARIA
RENATO PARADA

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N
a última campanha Como se uma solução autoritária O núcleo de “Sobre o Autoritarismo cordialidade, explica ela. “O Brasil
presidencial brasileira, fosse a única esperança, ou pelo Brasileiro” é composto por oito pode ser considerado o segundo
muitas pessoas ficaram menos a única que muita gente ensaios sobre outros tantos maior país de população negra
chocadas com a possibilidade vislumbrava. De facto, Bolsonaro temas. A historiadora Lilia originária de África, só perdendo
de poder ser eleito presidente do conseguiu encarnar essa esperança Moritz Schwarcz, já conhecida o pódio para a Nigéria. E, se por
país um deputado que defendia a para um número suficiente de em Portugal por “As Barbas do um lado essa mescla gerou uma
ditadura militar, indo ao ponto de pessoas, e tornou-se Presidente. Imperador” (Assírio & Alvim) e sociedade definida por ritmos,
dedicar a um dos mais conhecidos Mas, conforme mostra Lilia como coautora do monumental artes, aromas, culinárias, desportos
torcionários desse regime o seu Moritz Schwarcz, a violência e a “Brasil: Uma Biografia (Temas misturados, por outro produziu
voto a favor do impeachment de corrupção têm as mesmas raízes e Debates), faz uma abordagem uma nação que naturaliza a
Dilma Rousseff, que foi torturada profundas na história brasileira transversal, a vol de oiseau mas desigualdade racial, na figura
durante a ditadura. Outras que o autoritarismo. E este não relativamente rica tanto em das empregadas domésticas,
pessoas manifestaram-se nada proporciona menos a corrupção histórias como em estatísticas, de dos trabalhadores manuais, da
surpreendidas, invocando os nem facilita menos a violência. elementos originários do país que ausência de negros nos ambientes
altos níveis de corrupção durante Basta ver como Bolsonaro e os sobrevivem e ajudam a explicar as corporativos e empresariais, nos
o Governo do PT, bem como a seus aliados se empenharam em suas atuais disfunções. A perspetiva teatros, nas salas de concerto,
taxa galopante de homicídios. ‘flexibilizar’ a venda de armas de é de uma progressista, com apoio nos clubes e nas áreas sociais. O
fogo. A chamada “bancada da bala” em factos. A propósito do poder das país, também, pratica outra forma
— os parlamentares que apoiam famílias, por exemplo, Schwarcz de exclusão racial quotidiana,
essas medidas — chegou a propor faz uma geografia sumária dos delegando na polícia o papel de
o aumento das armas de fogo que clãs mais influentes em várias desempenhar a discriminação,
cada civil pode ter em casa, das regiões, alguns deles ainda hoje nos famosos ‘atos de intimidação’:
seis que um decreto de Bolsonaro presentes no Congresso brasileiro as batidas policiais que escolhem
pretendeu autorizar para até nove, — os Sarneys, os Ferreiras Gomes, sempre mais negros do que
apesar de estudos que provam uma os Alves, os Caiados, os Vianas, a brancos e os humilham a partir da
forte relação entre as armas de fogo família de Renan Calheiros... Sem apresentação pública do poder e da
e a taxa de homicídios. esquecer a dinastia Bolsonaro, com hierarquia.”
Parece um contrassenso querer dois filhos do atual Presidente na (Nota: num livro que abre tantas
combater a violência extrema Câmara e no Senado. portas para a observação e a reflexão,
com uma facilitação do acesso aos Isto vem num capítulo sobre é pena o lapso que constatamos
meios que a permitem, bem como aquilo a que Schwarcz chama logo ao início, quando a autora
com discursos de apologia do ‘mandonismo’, um fenómeno que, dedica três páginas a comentar
assassínio (“polícia que não mata a par com o patrimonialismo (a aquilo que diz ser a imagem da
não é polícia”) feitos por Bolsonaro tendência para tratar o património capa: uma foto de 1860 a ilustrar
durante a campanha. Mas o apelo público como se fosse privado) as possíveis nuances de uma
da mensagem tem força, num país marca há muito a política brasileira. relação entre escravos e os seus
onde a queda para o autoritarismo Também associado, obviamente, proprietários. Schwarcz fala de
se enraíza na tradição. Um país está o fenómeno da corrupção, que uma senhora dentro de uma liteira
construído sobre a escravatura em muitos casos nem sequer é vista transportada por dois negros, um
padece de uma doença original como tal, mas apenas como a forma deles humildemente reclinado e
difícil de apagar, e ainda de uma normal de gerir as coisas. Afinal, com o chapéu nas mãos, o outro
série de outras doenças associadas. já nos tempos da velha monarquia em posição contrastante, com o
Ligada à escravatura estava uma portuguesa o rei não se importava seu “corpo esguio” muito direito e
estrutura de propriedade que que os seus homens na colónia apoiando-se na liteira, “relaxado
potenciava enormes concentrações enriquecessem no cargo, desde que e irreverente”. A imagem da capa
de riqueza, as quais, por sua tratassem dos interesses da Coroa. não mostra isso. Mas na internet
vez, permitiam aos proprietários Outros capítulos são dedicados à é possível encontrar outra foto da
comportarem-se quase como desigualdade (que atinge negros e mesma época que corresponde à
monarcas absolutos nos seus mulheres, entre outros grupos, e descrição precisa feita pela autora.) b
domínios, estendendo o seu para a qual o remédio está sobretudo
mando a áreas muito diversas na educação, segundo Schwarcz)
da vida social e adquirindo um e a violência (com um subcapítulo
peso considerável na política à parte para os assassínios de
nacional. Nada disto desaparece indígenas em torno de disputas
de um dia para o outro, ou pela terra). Por último, um capítulo
mesmo de um século para o específico sobre racismo e outro
outro. A cultura da escravatura sobre o atual clima de intolerância.
não termina simplesmente por No primeiro, Schwarcz refere que
ela ser abolida — e o Brasil fê-lo quase metade dos óbitos de pessoas
bastante tarde — prolongando-se do sexo masculino entre os 15 e os
em práticas extensas, nem sempre 24 anos são resultado de assassínios,
declaradas mas visíveis, de racismo e que há mães de jovens negros que
sistemático. Quanto aos níveis se antecipam às eventuais despesas QQQQ
A historiadora brasileira de desigualdade económica e à de um funeral adquirindo um SOBRE O AUTORITARISMO
Lilia Moritz Schwarcz concentração de poder em cidadãos “carnê-enterro”. BRASILEIRO
escreveu também privados, que é como quem diz, em Tudo isto desmente uma ideia há Lilia Moritz Schwarcz
“Brasil: Uma Biografia” famílias, têm igual tendência para muito promovida sobre o Brasil Objetiva, 2020, 304 págs., €17,90
se prolongar. como o país da tolerância e da Ensaio

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romance “Bússola”, dedica
várias páginas a Hedayat e sobre
“O Mocho Cego” diz tratar-se
de um “livro feito de ópio”. De
facto, o simples ato de atravessar
as muitas camadas oníricas
da narrativa, com as suas
incongruências e alucinações,
provoca uma espécie de efeito
narcótico. Tanto nos eleva por
QQQQ QQQQQ
vezes a uma espécie de êxtase, ÚLTIMA MENSAGEM LOURENÇO É NOME DE JOGRAL
como nos empurra, a maior — 100 POEMAS Fernanda Botelho
parte do tempo, para os abismos Edwin Morgan Abysmo, 2020, 216 págs., €17
de sofrimento e perturbação não (edições), 2020, Romance
psíquica do protagonista. trad. de Ricardo Marques, 200 págs., €19
Poesia
Desde as primeiras páginas,
o narrador promete-nos a
descrição do conjunto de No ano em que se assinala o centená- No prefácio a esta reedição, Paulo
incidentes traumáticos (cujo rio do nascimento de Edwin Morgan Alexandre Pereira situa “Lourenço é
clímax é um crime de sangue) (1920-2010), um dos mais importantes Nome de Jogral” (1971) entre o “exibi-
que lhe deixaram uma “cicatriz poetas escoceses do século XX, em cionismo egofânico” das personagens
de mau augúrio”, capaz de boa hora nos chega às mãos esta preci- e a sensação de “malogro geracional”.
“inquinar” toda a vida que lhe osa antologia bilingue de cem poemas, Com efeito, se os diferentes narradores
resta. Porém, ao não controlar selecionados por João Concha (editor) vão ensaiando, cada um a seu modo,
a realidade do que acontece e Ricardo Marques (tradutor). Enquanto formas de estar no mundo, num registo
O romance de culto à sua volta, e menos ainda do objeto, o livro é belíssimo: da capa às loquaz, ácido, sofisticado, lúbrico,
do iraniano Sadeq que se passa dentro da cabeça, ilustrações nas guardas, passando pela niilista, revolucionário ou rancoroso, não
Hedayat foi traduzido o modesto pintor de tampas de paginação muito cuidada. Já a esco- nos esquecemos que pertencem a um
diretamente do persa estojos para caneta afunda-se lha de uma centena exata de poemas, tempo específico, ou a um intervalo de
no “abismo assustador” que o cobrindo todos os livros e fases da tempo, onde ainda existem viscondes
afasta dos outros, condenando-o escrita de Morgan, faz todo o sentido e “velhos republicanos” e já houve o

Sombra à solidão e à loucura, fechado


num quarto estreito semelhante
neste ano em que o poeta cumpriria um
século, já que o próprio publicou, aos 70
Maio parisiense, a queda de Salazar e a
liberalização dos costumes. Lourenço,

na parede
a um caixão, prestando contas anos, um livro com 70 poemas, além de um advogado céptico, é o insubmisso
à sua própria sombra em forma um poema intitulado ‘Sete Décadas’, jogral no meio de prestáveis trovado-
de mocho, “uma sombra que se com sete estrofes de dez versos cada. res, política e existencialmente mais
mantém numa posição inclinada De resto, o Tempo — tanto o da História desesperançado do que os outros,

H
á livros que transportam na parede e que parece estar a como o da existência pessoal é um dos mais livre também. Lourenço morreu,
consigo uma aura engolir vorazmente tudo aquilo — temas a que Morgan regressa uma e talvez suicida, e o que aconteceu é-nos
maldita, uma mitologia que escrevo”. outra vez, obsessivamente. Se tivésse- contado por ele, numa condição ainda
de negrume. É o caso dos “Cantos A narrativa divide-se em duas mos de isolar um aspeto definidor desta pré-póstuma, pelo filho dele e por ami-
de Maldoror”, de Lautréamont. partes que são o reverso uma obra, além da espantosa diversidade gos e amantes, em capítulos alternados,
É o caso também de “O Mocho da outra, simétricas em quase dos seus registos (que vão do expe- descoincidentes, que desfazem a con-
Cego”, obra-prima do escritor tudo, embora contem a mesma rimentalismo dos poemas visuais ao sistência dos factos e a substância das
iraniano Sadeq Hedayat — por história de obsessão amorosa e ímpeto torrencial da Geração Beat, do personagens, quase à Robbe-Grillet. A
muitos considerado o pai da frustração sexual. “O Mocho Cego” lirismo que nasce de situações absur- força do romance, que se quer mais de-
literatura modernista persa. merece ser lido não por causa do das ao imaginário da ficção científica), senvolto do que elegante, deriva desse
Publicado originalmente na Índia “chamamento da morte” que o seria a capacidade de ignorar os limites gesto de submeter o tédio devasso e
(Bombaim), em 1937, o livro foi percorre e lhe justifica a fama, mas estanques que as várias escalas do real descontente da burguesia lisboeta a
várias vezes proibido no Irão e o pelo brilhantismo da sua estrutura nos costumam impor. Para Morgan, uma violenta desestruturação interna.
regime islâmico chegou a espalhar e o arrojo da escrita vivíssima de tudo pode ser objeto, ou sujeito, de Já lemos outros romances de finais do
a notícia falsa de que o romance Hedayat. / JOSÉ MÁRIO SILVA um poema: uma partícula subatómica; salazarismo sobre “estratificações con-
induzia os seus leitores ao suicídio, o cigarro “no cinzeiro de um não-fu- suetudinárias” e “amantes hebdoma-
à imagem do que terá sucedido na mador”, fixado na memória do amante; dárias”, sobre a “ortodoxia do comércio
Europa do final do século XVIII entrevistas imaginárias; figuras huma- conjugal” e a “desenganada lucidez”, ou
com o “Werther”, de Goethe. O nas (Oscar Wilde, Marilyn Monroe, Che sobre gerações perdidas e progressistas
facto de o autor se ter suicidado, Guevara) ou momentos históricos desencantados; mas “Lourenço é Nome
em 1951, vedando as janelas e (o terramoto de Lisboa, o festival de de Jogral” vai mais longe, fragmentando
abrindo o gás do seu apartamento Woodstock); deusas da mitologia gre- a análise social em solilóquios deca-
em Paris, só contribuiu ainda mais ga; uma hiena; o cometa Halley; o amor dentes, delirantes, marcados por uma
para a lenda. gay quando já não se vai para novo. vivacidade sexual impensável no 1971
Agora que nos chega uma Como insinua o título de um dos seus português. E se Lourenço promete um
tradução feita diretamente do QQQQ livros mais importantes, a poesia de “caderno de capa preta” onde escreveu
persa, vale a pena deixar de O MOCHO CEGO Morgan vai de Glasgow a Saturno; isto as suas justificações, põe-se depois
lado o ruído em torno do que Sadeq Hedayat é, do quotidiano corriqueiro ao que fica a hipótese de que não haja caderno
é exterior e concentrarmo-nos E-Primatur, 2020, trad. de Carimo para lá da nossa experiência concreta. E nenhum, Lourenço nenhum, justificação
no texto propriamente dito. Mohomed, 140 págs., €13,90 nesse caminho dilata-se, vibra, refrata nenhuma: “Não precisamos de absolvi-
Mathias Énard, no extraordinário Romance uma luz antiga. / J.M.S. ção, e nem a queremos.” / PEDRO MEXIA

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RUA DE PARIS EM

E ainda...

JOHANNES KROEMER/GETTY IMAGES


DIA DE CHUVA
Isabel Rio Novo
D. Quixote, 2020,
228 págs., €15,90

Da autora que, em 2019, publicou


a biografia da Agustina Bessa-Lu-
ís, que foi duas vezes finalista do
QQ QQQQQ prémio Leya e que é doutorada em
O DOMÍNIO DE ANGOLA A MAIS PRECIOSA Literatura Comparada, surge agora
Estelle Maussion MERCADORIA um romance de forte impulso histó-
Oficina do Livro, 2020, trad. de Jean-Claude Grumberg rico que segue os passos do pintor
Isabel Pedrome, 160 págs., €16,90 Dom Quixote, 2020, trad. de Luísa Benvinda Gustave Caillebotte pela capital
Ensaio Álvares, 118 págs., €9 francesa.
Ficção
RECORDAÇÕES DO FUTURO
Quem ainda se lembrar de como os Lu- Começa com o clássico ‘era uma vez’ Siri Hustvedt AARON KLEIN
D. Quixote, 2020, 399 págs., €19,90 Paulo José Miranda
anda Leaks (Consórcio Internacional de e logo se transforma numa poderosa,
Abysmo, 2020,
Jornalistas e Expresso) tomaram as man- emocionante e grande história de amor “Um romance de formação intenso
288 págs., €18
chetes dos jornais em janeiro perceberá contada num livro de pequeno for- e completo”, disse dele o “Finan-
que o livro de Estelle Maussion “O Domí- mato e com poucas páginas. Um casal cial Times”. É o novo livro de Siri Um livro polifónico,
nio de Angola — Um Retrato do Poder de de lenhadores miseráveis vive numa Hustvedt, em 2019 Prémio Princesa trespassado por per-
José Eduardo dos Santos” foi lançado na floresta onde passam comboios muito das Astúrias das Letras, que analisa sonagens reais, como Helder Ma-
altura certa (fevereiro). Ao lê-lo agora, estranhos. A lenhadora tem o sonho de o papel da mulher na sociedade cedo, George Steiner ou Fernando
quando o mundo inteiro se encontra ter filhos e todas as noites reza intensa- patriarcal e onde vários ‘eus’ se Gil. O romance, no qual se dissolvem
dominado pelo noticiário e modo de vida mente para ser abençoada com a graça sobrepõem. as barreiras da ficção e do ensaio,
imposto pelo coronavírus, imagina-se de ser mãe. Olha os comboios desvane- conta a história de Aaron Klein, um
que o livro desta ex-correspondente da cida e intrigada com o mistério por eles judeu nascido em Lisboa e a esta
agência France Presse em Luanda não transportado. Um dia de inverno, com DIÁRIO 1941-1943 cidade regressado depois de anos a
tenha tido longa vida nos escaparates. as terras cobertas de neve, os deuses Etty Hillesum viver em Israel.
Assírio & Alvim, 2020,
Nesta altura, poderá interessar a quem atendem-lhe as preces. De um com-
341 págs., €19,80
procure um resumo com uma adver- boio que atravessa a floresta é atirado
tência em mente à cabeça: “Parte desta um pequeno embrulho. Uma pequena Com prefácio de José
obra resulta de uma interpretação e é e preciosa mercadoria. A felicidade da Tolentino Mendonça, Top Livros Semana
De 23/3 a 29/3
apresentada de uma forma ficcionada, no lenhadora é a angústia e o drama de um esta é a reedição de um conjunto de
Ficção
sentido de responder ao desejo da autora casal de judeus a caminho de Ausch- textos que se tornou num docu-
Semana
de restituir algo do ambiente do país, para witz. Têm dois filhos gémeos e o pai, mento literário ímpar e insubs- anterior

isso dando voz aos pensamentos íntimos para desespero da mãe, resolve tentar tituível, escrito aos 27 anos por A Rapariga Nova
1 1
dos membros da família, na esperança salvar pelo menos um. Não escolhe uma mulher judia que morreria em Daniel Silva
de os tornar assim mais compreensíveis.” entre o rapaz e a rapariga. Pega naquele Auschwitz antes dos 30. Ganhei Uma Vida Quando Te Perdi
2 2
Maussion escreve a partir dos anos em em que primeiro a sua mão toca, envol- Raul Minh’Alma
que viveu e trabalhou em Angola, de ve-o num xaile precioso e, na melhor 3 3 O Tatuador de Auschwitz
2012 a 2015, e usa o valor acrescentado oportunidade, atira-o. Apenas com um REFLEXÕES DE UM Heather Morris
que é ter estado presente em cerimónias gesto para a mulher parada, ajoelhada
CINEASTA Foi Sem Querer Que Te Quis
4 -
Serguei Eisenstein Raul Minh’Alma
oficiais. O livro segue o fio da História em na neve. Jean-Claude Grumberg, 80
Book Builders, 2020, 332 Imortal
traço largo e tenta fazer uma reconstru- anos, francês, autor de várias peças de 5 5
págs., €16,90 José Rodrigues dos Santos
ção do processo de consolidação do po- teatro, coautor dos diálogos do filme
As categorias consideradas para a elaboração deste top
der da família presidencial, sempre com “O Último Metro”, de François Truffaut, José Fonseca e Costa foram: Literatura; Infantil e Juvenil; BD e Literatura Importada
José Eduardo dos Santos no centro da ele próprio filho de um deportado no escreveu a introdução e traduziu
ação. Para quem tenha algum conheci- comboio número 49 para o Campo este livro, em que o realizador fala Não ficção
mento desta matéria, vê-se que a autora de Drancy, constrói uma emocionante sobre técnica e teoria do cinema, Semana
anterior
não disfarça a sua irritação com o statu fábula sobre o desejo de família, e o sobre os seus contemporâneos e
A Arte Subtil de Saber Dizer Que...
quo que descreve. “O hábito da lisonja, a poder de um amor parental, que por sobre si mesmo. 1 1 Mark Manson
bajulação, é uma das características do vezes tem de ser feito de abnegação. + Vida + Saúde + Tempo
partido presidencial, o MPLA” [pág. 36]. Na aparência dirigido apenas a crianças, 2 2 Manuel Pinto Coelho
Será verdade. Mais difícil de levar a sério com uma linguagem devedora de uma O OLHAR
DO OUTRO Estamos Grávidos. E Agora?
3 3
são os “pensamentos” que Maussion certa ideia de minimalismo, Grumberg Carmen Ferreira
Maria Filomena Mónica
mistura na prosa, como o da pág. 39: “O concentra em poucas páginas uma pro-
4 As Gémeas de Auschwitz
Relógio D’Água, 2020, 4
ex-Presidente recorda com emoção o digiosa capacidade de construir opos- Eva Mozes Kor e Lisa Rojany Buccieri
365 págs., €19,50
sentimento de poder de outros tempos. tos. Por um lado, a ternura de quem está Está Tudo F*dido
5 -
Ser temido por todos. Ter o país a seus ávida de, não obstante a sua miséria “Estrangeiros em Mark Manson
pés. Imaginar-se presidente vitalício e absoluta, dar aconchego a uma nova Portugal: Do Século XVIII ao Século As categorias consideradas para a elaboração deste top
foram: Ciências; História e Política; Arte; Direito,
saber que nada nem ninguém pode im- vida. Por outro, a brutalidade de um XX” é o subtítulo deste volume, que Economia e Informática; Turismo, Lazer e Autoajuda

pedi-lo. ‘Era sem dúvida o que acontecia’, horror que marcou a Europa, assente não pretende ser “um retrato de Estes tops foram elaborados pela GfK Portugal,
através do estudo de um grupo estável de pontos
pensa com os seus botões nesse início numa voragem de morte, e materializa- Portugal”, mas da forma como “os de venda e de dois canais de distribuição: livrarias/outros
(hipermercados e supermercados). Esta monitorização
de 2018.” Como é que Estelle Maussion do numa palavra que ainda hoje sangra: visitantes estrangeiros contribuíram é feita semanalmente, após a recolha da informação
eletrónica (EPOS) do sell-out dos pontos de venda.
pode saber? / CRISTINA PERES Holocausto. / VALDEMAR CRUZ para a formação de estereótipos”. A cobertura estimada do total do mercado é de 80%

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Q
uando ouviu falar de “Killing a agora showrunner em declarações uma grande responsabilidade, mas
Eve” pela primeira vez, disponibilizadas ao Expresso. Estava garante ter feito tudo para honrar o
Suzanne Heathcote soube longe de imaginar que viria a ser a compromisso, mantendo-se “fiel à
logo que era para si. Não que principal responsável pelos novos história que está a ser contada há já
estivesse próxima do projeto ou capítulos da história da assassina duas temporadas. O segredo para o
conhecesse muito mais do que os Villanelle (Jodie Comer) e da ex- sucesso numa terceira parte passa
nomes sonantes que o integravam, agente do MI6, Eve (Sandra Oh). A por “avaliar de onde vieram estas
pelo que era como telespectadora primeira pensa que a segunda está personagens e para onde queremos
que a série lhe interessava. “Vi morta, e isso é um descanso para que elas vão. Depois há que
tudo o que [Phoebe Waller-Bridge] ambas, mas não durará muito.
escreveu, e quando ouvi falar do Suzanne Heathcote sabe que dar
‘Killing Eve’, já era uma grande fã continuidade à história destas
da Sandra [Oh] e também conhecia duas mulheres — “com um
o trabalho da Jodie [Comer], então longo passado e obcecadas uma
Coordenação João Miguel Salvador fiquei muito intrigada com isto. pela outra, que tentam agora
jmsalvador@expresso.impresa.pt Assim que comecei a ver, fiquei desesperadamente viver as suas
instantaneamente viciada”, recorda vidas”, avança a HBO Portugal — é

Uma
obsessão
sem
limites
Protagonizada por Jodie Comer e Sandra Oh,
a série britânica “Killing Eve” está de regresso
à HBO Portugal para a terceira temporada.
Os novos episódios da criação de Phoebe
Waller-Bridge, agora com assinatura de
Suzanne Heathcote, chegam segunda-feira
TEXTO JOÃO MIGUEL SALVADOR

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A terceira temporada “encontrar novas notas e levá-las a ferozmente inteligentes”.
vai revelar novas lugares onde não as vimos” mas que Depois de Emerald Fennell assinar
facetas de Villanelle, a elas até podem até já ter percorrido. a segunda temporada, foi Suzanne
assassina interpretada Agora com um pormenor que pode Heathcote (conhecida pelo seu
por Jodie Comer mudar o rumo dos acontecimentos: trabalho em séries de sucesso como
a morte chocante de alguém próximo “Fear the Walking Dead”) a assumir
vai pô-las de novo em contacto e o comando nesta terceira leva de
esse será o gatilho para o que se episódios — com estreia marcada
segue, numa trama que ganhará para segunda-feira em streaming
novos nomes. Suzanne Heathcote na HBO Portugal. Seguir-lhe-á as
justifica a escolha com a necessidade pisadas Laura Neal, convidada a
de levar as protagonistas a lidar com tomar as rédeas na quarta parte de
novas situações, pô-las a enfrentar “Killing Eve” (depois de ter escrito
novos desafios, sem que isso as tire para “Sex Education” e “Turn
do centro da narrativa. Up Charlie”, ambas na Netflix),
“Estou verdadeiramente mas não se pense que isso será
entusiasmada com a jornada da um problema para a série — que
Villanelle nesta temporada. Acho encontra nesta estratégia uma
que vamos ver elementos do seu forma de renovação contínua.
carácter que nunca vimos até Habituada a mudanças repentinas
agora e vamos começar a perceber e já completamente terminada, foi
quem ela é enquanto pessoa. E a escolhida para entrar mais cedo
[sinto] o mesmo em relação à Eva, em antena (a série coproduzida pela
vamos conseguir ver camadas BBC America é exibida nos Estados
mais profundas dela, de acordo Unidos pelo AMC) quando os
com quem é agora. Ela mudou imprevistos causados pela pandemia
para sempre por causa do que obrigaram a reagendar várias séries.
lhe aconteceu e do que passou”, O último episódio da décima
considera Suzanne sobre as temporada de “The Walking Dead”
personagens que Phoebe Waller- será transformado num especial a
Bridge levou para a televisão — a apresentar mais tarde no ano (em
partir do original “Killing Eve — Portugal na FOX) e “The Walking
Nome de Código Villanelle”, de Luke Dead: The World Beyond” (esta no
Jennings (editado pela Almedina). AMC), que viu os trabalhos de pós-
produção serem adiados, também
UMA ASSINATURA POR ficou sem data de estreia definida.
TEMPORADA Já a temporada final de “Empire”
Tornou-se uma estrela em menos de (FOX Life) será mais curta do que
nada e o seu nome está por toda a previsto. Por cá, as mudanças
parte. Phoebe Waller-Bridge, que já levaram a que “Dispatches from
tinha dado que falar por “Crashing” Elsewhere”, criada por Jason Segel
(Channel 4, disponível na Netflix), (o Marshall Eriksen de “Foi Assim
tornou-se mundialmente conhecida Que Aconteceu”), lhe tomasse o
com “Fleabag” (BBC, comprada lugar já este mês. Vai estrear-se já
depois pela Amazon). Mas o sucesso no próximo dia 20 no AMC, numa
repentino não a fez abrandar. Criou altura em que cresce o consumo
também “Killing Eve”, nesta que é de televisão enquanto todas as
a terceira série que escreve, produz produções estão paradas. Quanto
e interpreta (desta vez não como a Phoebe Waller-Bridge, já estará
protagonista), e aventura-se agora a pensar nas suas próximas séries.
no argumento de “007: Sem Tempo O contrato de exclusividade que
Para Morrer”, que coassina. Só que assinou com a Amazon, no valor
tudo isto, somado à produção de de 20 milhões de dólares por ano
“Run”, obrigou-a a fazer cedências. (€18,3 milhões, aproximadamente)
E a deixar que outras lhe tomassem apenas para a criação e produção
o lugar. — se acontecer, a interpretação terá
A decisão foi prontamente aprovada um valor à parte —, já está em vigor.
pela presidente do AMC Networks É tempo de se isolar e escrever. b
Entertainment Group e dos AMC
Studios, Sarah Barnett, que pensou
fazer de “Killing Eve” uma série
sempre com assinatura feminina, ao
HOME BOX OFFICE, INC.

ritmo de uma nova showrunner por KILLING EVE


ano. “Estão alinhadas em torno de De Phoebe Waller-Bridge
uma visão coerente, mas trazem o e Suzanne Heathcote
seu brilho específico” para a série, Com Jodie Comer e Sandra Oh
considera Barnett em comunicado HBO Portugal, estreia segunda
sobre o seu “esquadrão de escritoras (Temporada 3)

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Talvez rir, Parteira!”)... E o inesperado amor
acontece.

talvez
A relação de Mae e George
rapidamente ganha uma
intensidade que tem efeitos

chorar inesperados numa e noutra. A


primeira, para quem o amor se
tinha tornado uma droga depois de
largar as substâncias químicas, não

A
ssistir (de rajada) a “Feel sabe como reagir a um sentimento
QQ QQQ
Good” é como escapar mais profundo. A segunda, AFTER TRUTH: UGLY DELICIOUS
da loja de horrores onde até então habituada a relações DISINFORMATION AND THE De David Chang e Morgan Neville
entrámos nos últimos meses para heterossexuais, não consegue lidar COST OF FAKE NEWS Com David Chang
embarcar numa montanha russa com a pressão da sociedade nem De Andrew Rossi Netflix, em streaming
de emoções que dificilmente com a descredibilização do amor Com Jack Berkman (Temporada 2)
HBO Portugal, em streaming
associaríamos a uma série provocada pelo casamento desfeito
Documentário M/12
apresentada, de forma bastante dos pais. A visita inesperada
solta, como uma comédia. Criada dos progenitores de Mae, Linda
e protagonizada pela humorista e Malcolm, generosamente É um documentário sobre as notícias A nova temporada de “Ugly Delicious”,
canadiana Mae Martin, a interpretados por Lisa Kudrow falsas e, sem surpresa, move-se no a série de gastronomia protagonizada
história, com assumidos detalhes (a hilariante e eterna Phoebe de terreno delas: o da especulação. As por um dos mais famosos afilhados de
autobiográficos, é contada, na “Friends”) e Adrian Lukis (que ditas fake news ganharam particular Anthony Bourdain, tem tudo para ser
primeira pessoa, ao longo de seis também vimos em “The Crown” e relevo com o desenvolvimento das um sucesso. Mas é muito provável que
intensos episódios de 25 minutos. “Black Mirror”), só vem baralhar redes sociais da última década e desde não seja. Na entrevista de fundo a Dave
Nesta ‘semificção’, tal como na ainda mais as emoções do casal. que Donald Trump atiçou plateias com Chang publicada na revista do “New
realidade, Martin pega nas suas “Feel Good” não é apenas ‘mais o termo na campanha eleitoral de 2016, York Times”, o cozinheiro americano de
experiências pessoais, como a uma comédia televisiva’, é um usando-o como arma de arremesso nos ascendência coreana confessava que
sua mudança do Canadá para o exercício genial de transposição seus comícios contra a imprensa que a indústria da restauração poderia ter
Reino Unido (onde a narrativa de sentimentos de frustração, não o apoiava. Novidade? Nem por isso. recebido o seu golpe de misericórdia
tem lugar), na sua androginia, amor pelo próximo, ansiedade e Já de fake news o Império Romano era com esta pandemia. A ironia não podia
na falta de sorte em estabelecer pura patetice da realidade para feito. O que é novo é a potência que as ser maior: no primeiro destes quatro
relações duradouras, nos seus a ficção. Aqui, entre o rir de redes sociais hoje lhes dão, espalhando- episódios, Dave Chang confessa que en-
problemas de dependência, para forma espalhafatosa e o chorar -as como um vírus a uma escala global. gravidou a mulher e que “não estava pre-
criar espetáculos de stand-up copiosamente vai uma distância “After Truth: Disinformation and the parado para isso”. E segue em frente num
comedy num bar onde atuam muito curta. / MÁRIO RUI VIEIRA Cost of Fake News (2020)” centra-se registo ultranarcísico e superamericano,
maioritariamente homens com numa série de teorias da conspiração aquele em que nada ultrapassa o poder
um humor bem diferente do seu. que deram que falar, a mais bizarra é das celebridades. Afinal, tal como Donald
As suas tiradas autodepreciativas porventura a do caso Pizzagate, que Trump, mas em simpático. A produção
não convencem um público terminou com um insano conservador a é extraordinária (e cara), com inúmeros
mais habituado a piadolas fáceis, QQQQ invadir de espingarda em punho um res- convidados e muitas viagens a lugares
mas Mae encontra uma fã em FEEL GOOD taurante da capital Washington, D.C. em tomados como exóticos, mas sem nunca
George, personagem interpretada De Mae Martin e Joe Hampson cuja cave, supostamente, Hillary Clinton chegar aos calcanhares do mestre. E,
por Charlotte Ritchie (que já Com Mae Martin, Charlotte Ritchie, Lisa e outros democratas mantinham uma claro, estão lá os tiques de Chang: o sa-
conhecíamos da hilariante sitcom Kudrow, Sophie Thompson rede de pedofilia... O papel do Facebook bor acima de tudo — ainda que já exista
“Fresh Meat”, mas também Netflix, em streaming no meio de tudo isto e o escândalo de espaço para a ética na produção de
marcou presença em “Chamem a (Temporada 1) fuga de informação que levou Zucker- gado, como demonstra numa visita à ex-
berg a desculpar-se também não são ploração de carne de José Gordon, em
esquecidos: “Eles foram mestres em Espanha, ou quando se apresta a ouvir
sugar toda a informação do que fazemos os seus convidados, em Mumbai, sobre a
e pensamos e souberam retirar provei- variedade das cozinhas regionais india-
to disso”, diz às tantas a jornalista Kara nas. Se a ética não é relevante, o aspeto
Swisher, fundadora do site Recode. Sem da comida também não: aqui é preciso
esconder o seu plano inclinado pró- recordar o hilariante episódio da anterior
-democrata em antecipação de outra temporada, em que René Redzepi, guru
campanha presidencial que se avizinha, da cozinha nórdica e titular do Noma
“After Truth...” é um daqueles documen- em Copenhaga, é humilhado. Chang faz
tários com vontade de ‘abrir a pestana’ tudo para provar que é politicamente
aos ingénuos. Usa e abusa da informa- incorreto, o que até lhe dá alguma graça,
ção, debita-a e sai prejudicado por isso. mas soçobra quando se verga ao estre-
Contudo, não deixa de ser um espelho lato como modo de vida. Sem prestar
da América e dos tempos de desinfor- vassalagem à alta cozinha, mas também
mação em que vivemos. O melhor é não sem enaltecer a qualidade dos produtos,
esquecer aquele desconfiado armeiro “Ugly Delicious” é televisão em modo
do Texas que responde a outra teoria da reality show. Tudo serve para construir
conspiração (Jade Helm) com um lema uma narrativa que autoglorifica Chang
de vida: “Não acredites no que ouves e e, claro, o seu restaurante bandeira, o
A humorista canadiana Mae Martin interpreta Mae nesta semificção acredita só em metade do que vês...” Momofuku. Ainda fará sentido nos dias
em que se apaixona por George (Charlotte Ritchie) / FRANCISCO FERREIRA que correm? / MIGUEL CADETE

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E ainda...
ONE CHILD NATION
De Nanfu Wang e Zhang Lynn
Amazon Prime Video, em streaming
CASTLE ROCK Vencedor do Grande Prémio do Júri
QQ QQQQ De J. J. Abrams de Sundance, o premiado documen-
FOLLOWERS ZEROZEROZERO TVCine Action, quartas, 22h10
tário das cineastas chinesas expõem
De Mika Ninagawa De Stefano Sollima, Leonardo Fasoli e (Temporada 2)
as consequências da política do filho
Com Miki Nakatani, Elaiza Ikeda, Mauricio Katz Série que junta vários universos de único na China. Uma experiência
Mari Natsuki, Yuka Itaya Com Andrea Riseborough, Dane Dehaan, Stephen King apresenta agora uma social inédita.
Netflix, em streaming Gabriel Byrne, Harold Torres disputa entre dois clãs, com a ação
(Temporada 1) HBO Portugal, em streaming
a passar também pelo refúgio de
(Temporada 1)
vampiros da cidade vizinha.

É a primeira série que a cineasta japo- É uma narrativa com três polos. De um
nesa Mika Ninagawa realiza e, a medir lado a Calábria, onde um velho capo
pelo que se viu e pelos rostos familiares mafioso sai de um esconderijo subter-
que trouxe, não está nada mal. No início, râneo onde se acoitara longamente e,
parece tudo um chorrilho de futilidades como forma de manter o poder, resolve
adolescentes com miúdas sideradas encomendar toneladas de pó branco a MR. MERCEDES
pelo star system, olhos colados ao tele- um cartel mexicano para presentear as DIGGSTOWN De David E. Kelley
De Floyd Kane AXN Now, em streaming
móvel, teme-se o pior. Elas querem ter ‘famílias’ que lhe prestam vassalagem. Do
AXN White, estreia quinta, 21h25 (Temporada 3)
êxito, claro. Estamos no centro de Tó- outro, os seus fornecedores, no México,
(Temporada 1)
quio. Natsume, muito bonita do alto dos que acoitam a droga no fundo de latas de Brendan Gleeson protagoniza a
seus 21 anos e com ares de dark lady fruta de conserva, enchem um contentor História de Marcie Diggs (Vinessa série sobre Bill Hodges. O misteri-
(papel de Elaiza Ikeda, a miúda punk e expedem-no, por via marítima, para um Antoine), uma advogada que muda oso thriller de ficção científica foi
que aparecia no “Isle of Dogs”, de Wes porto calabrês. No meio a empresa de o rumo da sua carreira após uma tra- criado a partir da trilogia de Stephen
Anderson), está inscrita numa agência, transportes, americana, de Nova Orle- gédia familiar. Vai assumir a missão King. História de um psicopata e do
quer ser atriz, mas só lhe dão papéis ães, gerida por um homem de negócios de lutar pelos mais indefesos. detetive que o procura.
sangrentos e sem falas em que ela faz que faz inúmeras cargas legítimas, mas
mais figuração que outra coisa: ora de cujos lucros se fundam sobretudo no
morta ora de suicida. Mas Natsume não tráfego especial que a série reporta. “Ze-
se queixa, como não o costumam fazer roZeroZero”, produção de base italiana
as japonesas. Prefere diluir-se na frené- com elenco e realização multinacionais
tica Shibuya, que tem as ruas e os cru- (o italiano Sergio Sollima, o dinamarquês
zamentos mais agitados do mundo, ou Janus Metz e o argentino Pablo Trape-
deixar-se levar pela melancolia sob um ro — tudo nomes de peso a dirigir), é a A GUERRA NO CHARITÉ
pomar de cerejeiras em flor iluminadas a história da travessia dessa carga que vale De Dorothee Schön e Sabine SNOWFALL
Thor-Wiedemann De Dave Andron, Eric Amadio
néon numa bela noite. Perturbada pelas milhões, onde se espelham lutas pelo
RTP Play, em streaming e John Singleton
mesmas cerejeiras está Limi Nara, fo- poder que se vão desenrolando dos dois
(Temporada 1) FOX +, em streaming
tógrafa de moda que já víramos antes a lado do Atlântico. Em Itália, o neto do
(Temporada 2)
mirar a Torre de Tóquio, 38 anos, hiper- patrão da Máfia desenvolve uma conjura Sequela de “Charité', o drama
famosa — e aqui sim, vêm memórias do para se vingar (o velho matou-lhe o pai) histórico de seis episódios passa-se Série sobre a origem da epidemia
cinema, porque a atriz que a interpreta é e para tomar o poder — e, para tanto, agora em 1943. A ação decorre num de crack em Los Angeles, durante
a ótima Miki Nakatani que conhecemos é imperioso que o carregamento de hospital alemão durante a Segunda o início dos anos 80. Ganhar poder,
de “Loft” e de “Real”, filmes de Kiyoshi droga não chegue. No México, um grupo Guerra Mundial. dinheiro e influência é o objetivo de
Kurosawa. Natsume tropeça depois no de militares de elite, empenhado no quem entra neste mundo.
caminho de Limi. Esta fotografa-a e põe combate contra o narcotráfico, resol-
a cara dela no Instagram. Para a miúda, é ve começar a agir por conta própria e
como sonhar acordada. Fica de repente alterar o equilíbrio de poderes entre os
com milhares de seguidores. E mais não cartéis que dominam o mercado. No mar,
se diz, só isto: Natsume começa então a a filha e o filho do homem de negócios
viver como se andasse um palmo acima americano, agora a gerir a empresa fa-
da Terra. A partir do segundo episódio, miliar de transportes marítimos, acom- SNU
outra surpresa: aparece Asano Tada- panham a carga para garantir que chega AMERICAN HOUSEWIFE De Patrícia Sequeira
nobu, que tantos filmes fez com Shinji a bom porto. Em todos esses terrenos De Sarah Dunn NOS Play, em streaming
Aoyama desde “Helpless” e que, no final não há piedade, o negócio é duro e a FOX Comedy, estreia segunda, 23h25
dos anos 90, era o rosto da juventude vida não se compadece dos mais fracos. (Temporada 3) Ficção inspirada em factos re-
da sua geração. Não é má ideia seguir “ZeroZeroZero” é, ao longo dos seus oito ais, o filme retrata a história de
“Followers” e ‘ir para Tóquio’ nestes episódios que se veem numa fona, uma Comédia familiar sobre uma mãe amor entre o primeiro-ministro
tempos em que não podemos ir para narrativa violenta, febril, executada com excêntrica com três filhos, numa ci- português, Francisco Sá Carnei-
lado nenhum. Até porque estar em Tó- preciosidade por gente do cinema que dade em que tudo é perfeito. Agora ro (Pedro Almendra), e a editora
quio — e quem já lá foi sabe-o bem — é sabe o que é eficácia e o que é elegância. é tempo de Katie (Katy Mixon) dinamarquesa, Snu Abecassis (Inês
como estar noutro planeta. / F.F. / JORGE LEITÃO RAMOS regressar ao trabalho. Castel-Branco).

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Coordenação Rui Tentúgal
rtentugal@expresso.impresa.pt

À meia-noite de 27 de
março, sem aviso, oito anos
após “Tempest”, Bob Dylan
editou ‘Murder Most Foul’,
uma canção de 17 minutos
WILLIAM CLAXTON

QQQQQ
MURDER MOST FOUL
Bob Dylan
Single Columbia/Sony

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Um raio de luz
Esperámos 57 anos até que Bob Dylan soltasse para o mundo ‘Murder Most Foul’,
um dilúvio de palavras e música cujo gatilho narrativo é o dia em que JFK foi morto
TEXTO JOÃO LISBOA

J
ohn F. Kennedy visitou Duluth, escrito. Não compreendia nada. meia-noite de 27 de março, sem desde o arranque foi inquietada pela
no Minnesota, três vezes. Duas Para mim, era tudo uma loucura.” aviso, oito anos após “Tempest”, incessante interferência, explícita
durante a campanha para a sua Quando regressou a Greenwich Bob Dylan soltasse para o mundo ou dissimulada, de dezenas de
eleição como Presidente dos EUA, Village, ele e a namorada, Suze ‘Murder Most Foul’, um dilúvio de referências históricas, literárias
em 1960, e outra, em setembro Rotolo, como quase toda a gente na palavras e música de 17 minutos — a e musicais, títulos e citações de
de 1963, dois meses antes de ser América, durante o fim de semana sua mais longa canção de sempre filmes, autocitações, ecos, uma
assassinado em Dallas, no Texas. A e na segunda-feira do funeral, não — cujo gatilho narrativo tem lugar jangada de palavras e imagens à
propósito da segunda visita, a 2 de tiraram os olhos da tragédia que em Dallas, a 22 de novembro de deriva ou uma outra “Waste Land”
outubro de 1960, em “Chronicles: passava na televisão: “A morte de 1963: “Twas a dark day in Dallas, na qual abril já não é “the cruellest
Volume One”, Bob Dylan escreve: Oswald, o funeral, as repetições November ’63, a day that will live month”, mas sim novembro. E, de
“A minha mãe contava que 18 mil contínuas da morte de Kennedy, a on in infamy, President Kennedy súbito, tudo muda: invocando o
pessoas tinham comparecido para o confirmação do novo Presidente, a was a-ridin’ high, good day to be fantasma do lendário DJ Wolfman
ver no Veterans Memorial Building, recusa da viúva em tirar o vestido livin’ and a good day to die, being Jack — “Wolfman Jack, he’s
umas na rua, outras trepando aos ensanguentado para que o mundo led to the slaughter like a sacrificial speaking in tongues (...) play me
postes, e que Kennedy era um raio pudesse ver o sangue do marido.” lamb.” a song, Mr. Wolfman Jack” —,
de luz e compreendia perfeitamente Dylan pouco falou. Bebeu um pouco Construída como uma articulação segue-se uma interminável playlist
a região onde se encontrava. de vinho e escutou o “Requiem” de de duas canções diferentes, ‘Murder do acervo musical da América e
Proferiu um discurso heroico, Berlioz uma e outra vez. Mas nunca Most Foul’ — título retirado de do mundo, espécie de “people’s
dizia ela, e trouxe uma esperança escreveu uma canção sobre esse uma cena do primeiro ato de history” alucinada ou sequência
enorme a muita gente. A Iron Range funesto momento histórico. “Hamlet” — situa-se, inicialmente, errática de episódios da “Theme
era uma área à qual muito poucos Outros o fariam. Acima de todos, no interior do Lincoln Continental Time Radio Hour”, na qual, como
políticos de projeção nacional ou Phil Ochs, no devastador delírio que conduz John Kennedy ao na totalidade dos 17 minutos, sobre
gente famosa se arriscavam a ir... eletrónico de ‘Crucifixion’ (1966). açougue, enumerando em detalhe um fundo musical discretamente
fora eu tipo de votar em eleições, Mas também Byrds (‘He Was a cada ponto do trajeto (Love Field, cénico, Dylan recita mais do que
teria votado em Kennedy apenas Friend of Mine’, 1965), Beach Boys Grassy Knoll, Dealey Plaza, Elm canta esta longuíssima litania.
por ele ter ido lá. Gostava de poder (‘The Warmth of the Sun’, 1964), Street, Trinity River, Parkland Mas por que motivo terá sido
tê-lo visto.” Quando JFK foi morto, Lou Reed (‘The Day John Kennedy Hospital), mas, qual sonho febril, necessário esperar quase seis
a 22 de novembro de 1963, Dylan Died’, 1982), Misfits (‘Bullet’, 1978), décadas para que Bob Dylan, numa
tinha 22 anos e acabara de gravar Pearl Jam (‘Brain of J.’, 1998), Tori altura em que, no mundo, tudo se
“The Times They Are a-Changin’”, Amos (‘Jackie’s Strength’, 1998) ou encontra em apavorada suspensão,
o terceiro álbum, que publicaria Postal Service (‘Sleeping In’, 2003). tivesse, enfim, decidido abordar o
dois meses mais tarde. Segundo Dylan, porém, manteve-se em assunto? Na verdade, não poderia
o seu biógrafo, Anthony Scaduto, silêncio. Não que lhe escasseasse a ser mais apropriado: no terrível
no dia a seguir ao assassínio, Bob vocação ou sequer o treino: olhara, momento em que, à beira da
tinha um concerto marcado em repetidamente, para o abismo em catástrofe, os EUA são comandados
Ithaca ou Buffalo: “Havia uma
atmosfera realmente depressiva.
‘A Hard Rain’s a-Gonna Fall’ (“I’ve
walked and I’ve crawled on six
Mas por que por um dos mais desprezíveis e
perigosos exemplares da espécie
Mas não podia cancelar, tinha de crooked highways, I’ve stepped in motivo Bob Dylan, humana, em cujas palavras é
subir ao palco. Para minha grande the middle of seven sad forests, I’ve impossível acreditar mesmo antes
surpresa, a sala estava cheia. A been out in front of a dozen dead
numa altura em de sequer pronunciar a primeira
canção de abertura era ‘The Times oceans, I’ve been ten thousand que, no mundo, sílaba, Dylan recorda, em trágico
They Are a-Changin’’ e pensei: miles in the mouth of a graveyard”), contraste, aquela figura que, ainda
‘Como vou eu ser capaz de a cantar ‘All Along the Watchtower’ (“There tudo se encontra que imperfeitamente, encarnou o
com palavras como ‘there’s a battle
outside and it’s ragin’, it’ll soon
must be some way out of here,
said the joker to the thief, there’s
em apavorada “raio de luz” de que a mãe, Beatrice,
falava. “The day that they killed him,
shake your windows and rattle your too much confusion, I can’t get no suspensão, decidiu someone said to me, ‘Son, the age of
walls’? Mas tinha de a cantar, todo relief”) ou ‘Jokerman’ (“Nightsticks the Antichrist has just only begun’”,
o concerto partia dali.” A reação do and water cannons, tear gas, abordar a morte de canta ele agora, acrescentando: “I
público não poderia ter sido mais padlocks, Molotov cocktails and John F. Kennedy? said the soul of a nation been torn
surpreendente: “Qualquer coisa rocks, behind every curtain, false- away, and it’s beginning to go into a
tinha virado o país do avesso, e hearted judges dying in the webs Na verdade, slow decay.” Os dois últimos pedidos
aplaudiram-na entusiasticamente.
Não percebia porque batiam palmas
that they spin, only a matter of time
’til night comes steppin’ in”). Seria
não poderia ser a Wolfman Jack são “Play ‘The Blood
Stained Banner’, play ‘Murder Most
nem percebia porque a tinha preciso esperar 57 anos até que, à mais apropriado Foul’.” b

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Misty na Elbphilharmonie
de Hamburgo com a sua banda
e a Neue Philharmonie Frankfurt

moldadas não só pela orquestra


como pela banda de oito músicos
que habitualmente acompanha
Josh Tillman na estrada, o que
QQQQ QQQQ
salta à vista é a riqueza do ROOM FOR ALL BACH: THE WELL-TEMPERED
cancioneiro que, em meia dúzia Monday CONSORT — I
de anos, o nosso anfitrião soube EP Cat Falcão Phantasm, Laurence Dreyfus (d)
construir. Está cá tudo, num /Street Mission Records Linn/Distrijazz
alinhamento que serve quase
como best of não oficial: a pureza Insinua-se desde o final do ano Por mais que um motivo, manda a tradição
alucinogénica dos primórdios (ou passado, em suaves prestações, que, neste dia, de Bach, se evoque antes
seja, da estreia “Fear Fun”), com tendo-se cristalizado pouco antes a “Paixão Segundo São Mateus”. Se é
canções como ‘Nancy from Now da quarentena em jeito de bonança essa a questão, consumado está, como
On’ a receberem da orquestra não anunciada — como se este 2020 diria Jesus Cristo na cruz (até, porque, do
um brilho de western technicolor; pandemónico estivesse virado do oratório, na BIS, há nova edição digna de
os momentos mais atrevidos avesso. Só se pode começar por nota: a do Bach Collegium Japan, dirigida

Prenda de “I Love You, Honeybear” a


ganharem calor com os sopros
‘Little Fish’, terceiro momento de
um extended play de seis entradas,
por Masaaki Suzuki, com Benjamin Bruns
e Carolyn Sampson). Tudo isto, claro,

de luxo
ao rubro (‘Chateau Lobby #4’, primeiro na ordem com que tudo porque não só a obra — estreada na
mas também o tema-título); as (isto é, os elementos que viriam a Sexta-Feira Santa de 1727 — acompanha
think pieces desse mesmo álbum compor o sucessor do LP “One”, de a crucificação e morte no Calvário do seu
revestidas de seriedade mas 2018) nos foi dado a conhecer: voz protagonista como, também, represen-

N
uma altura em que a mantendo o humor que é pedra de torneada, uma económica infusão ta um muitíssimo figurado regresso ao
pandemia de covid-19 toque na obra de Misty (não por de R&B, sintetizadores eighties mundo dos vivos do seu autor (o que se
afeta todas as áreas, muitos acaso, entre os momentos mais semiadormecidos e uma guitarra deu em março de 1829, quando Men-
artistas têm procurado soluções aplaudidos estão ‘I Went to the dedilhada com soneira matinal em delssohn, a contragosto das plateias do
ora para continuarem a ter Store One Day’, combinando de quarto vazio (indie britânico dos anos seu tempo, a tornou a incluir numa folha
rendimento, ora para ajudarem forma sublime a vida mundana 80, uma nesga de sol a encontrar de sala, de certa forma pondo em marcha
o sector em que se inserem, e a sobre-humanidade do amor, o seu caminho entre as lâminas do um processo de reabilitação crítica que
paralisado pelo cancelamento de ou ‘Holy Shit’). Em hora e meia, estore, uma longínqua lembrança não mais parou). Daí resulta um terreno
concertos e festivais. Foi o que há ainda tempo para polir pérolas dos Felt — sim, dos Felt) e um fértil para testar o que na avaliação da
fez Josh Tillman, o homem que subvalorizadas, como ‘A Bigger aconchego benfazejo a caminho natureza dos solos se apelida de limites
desde 2012 alimenta o alter ego Paper Bag’ ou ‘The Palace’. Mas dos dois minutos, quando as duas de consistência: ou seja, sim, desde então,
Father John Misty com belíssimos o que mais impressiona, à luz do colheres de açúcar já foram mexidas Bach tornou-se permeável a todas as
álbuns, repletos de canções tão presente, é o tour de force que é sem que sobre resto no fundo da reconfigurações possíveis e imaginári-
charmosas como desconcertantes. “Pure Comedy”, o álbum de 2017 chávena. Enganos são, por estes dias, as (basta esquadrinhar o YouTube que
Em pausa editorial desde 2018, ano em que Mr. Tillman parece ter vícios caros, e é com convicção que independentemente de géneros musicais
do mais recente “God’s Favorite antevisto o cenário distópico em o proclamamos: está aqui a melhor se dá por opúsculos seus interpretados
Customer”, o norte-americano que nos encontramos. Há muitos canção que 2019 não teve tempo em ocarinas, copos de cristal, harmónicas,
interrompeu um silêncio profundo mais motivos para nos deleitarmos de abraçar, que 2020 — quando for flautas de pã, cavaquinhos, instrumentos e
(há muito que se retirou das redes com “Off-Key in Hamburg”, possível sonhar — quererá beijar com gente dos quatro cantos do planeta). Por
sociais, onde em tempos foi um mas ouvir em repeat ‘Things It a timidez que mais a favorece. Tudo isso, e porque, este ano, ao que parece, a
autêntico espalha-brasas) para Would Have Been Helpful to Know em redor brilha intensamente, sem Páscoa foi cancelada, em boa hora e de
lançar “Off-Key in Hamburg”, Before the Revolution’ seria razão o aparato da vaidade, com o peso modo muito apropriado surge o Phantasm
um disco ao vivo com propósitos suficiente. Olá, 2020: “Industry certo nas palavras, naquela guitarra a propor transcrições para viola da gamba
solidários. Para escuta gratuita no and commerce toppled to their que só sabe pincelar (‘Out-In’), na voz de páginas extraídas a “O Cravo Bem
Bandcamp, o álbum — gravado knees/ The gears of progress que caminha sozinha, na irrecusável Temperado”, “Oferenda Musical” e, com
na Alemanha no passado verão, halted/ The underclass set free/ melancolia líquida (o último minuto uma ou outra cantata pelo meio, ao trans-
com a Filarmónica de Frankfurt The super-ego shatters with our de ‘Convictions’) e no trajeto telúrico cendente terceiro volume de “Pequeno
— pode também ser adquirido, ideologies/ The obscene injunction (‘Room for All’). Mesmo quando se Livro para Órgão”. Dir-se-ia que os seus
digitalmente, com todas as verbas to enjoy life/ Disappears as in a embala a si próprio (‘Whenidie’) ou integrantes aspiravam ao mesmo que a
a serem entregues a um fundo de dream.” / LIA PEREIRA procura beliscar o outro (‘I’m Sleepy’), pianista mongol Odgerel Sampilnorov,
ajuda aos afetados pela covid-19, “Room for All” é valioso. Monday conforme o relato de Sophy Roberts, em
nos Estados Unidos (não só é Cat Falcão, metade do duo “The Lost Pianos of Siberia”: “Bach diz-nos
músicos como funcionários de português Golden Slumbers, mais como expressar a dor e a tragédia. Quan-
todos os negócios que permitem folk do que a sua incursão solitária, do leio acerca da Ressurreição não sinto
que o espetáculo vá para a frente, almejando neste segundo volume a grande coisa, mas quando toco [uma ária]
como salas de concertos, bares ou solo uns anos 80 subaquáticos, lugar ganho vida. Bach ensinou-me a respirar!”
hotéis). idealizado onde a vivacidade dos Aqui, basta escutar o “Prelúdio Nº 22”,
Independentemente do nobre sentimentos faz das dúvidas urgência BWV 867, ou “Kyrie, Gott heiliger Geist”,
propósito, “Off-Key in Hamburg” QQQQ de comunicação. Um disco de BWV 671, que se pressente o equivalente
é um notável documento e uma OFF-KEY IN HAMBURG acalmia antes de grandes tormentas à primeira golfada de ar que um mergu-
oferenda generosa de Father John Father John Misty — estará à nossa espera quando lhador de apneia dá ao regressar à super-
Misty. Ao longo de 20 canções, Edição de autor disponível no Bandcamp conseguirmos voltar. / LUÍS GUERRA fície. Habemus Páscoa. / JOÃO SANTOS

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CLASSIC ALBUMS AT HOME

E ainda...
www.facebook.com/
ClassicAlbumSundays, domingo, 20h
MARC-ANDRÉ HAMELIN
Quarta-feira, 17h30 Discos comentados por especialistas
www.92y.org
ou pelos músicos (as Sister Sledge,
Nick Mason ou Steve Hackett já
De modo a angariar fundos na luta participaram). Este domingo, Barbie
contra a covid-19, diz Lionel Richie que Bertisch apresenta “Journey in Satchi-
urge tornar a gravar ‘We Are the World’. dananda”, de Alice Coltrane. Pede-se
Bom, nem que seja pelo interesse aos participantes que de seguida
THE QUARANTINE

FRAZER HARRISON/GETTY IMAGES


puramente didático da coisa, faz mais escutem o álbum nas suas casas,
sentido pôr artistas do mundo inteiro a
CONCERTS sem interrupções e abstendo-se de
ess.org/the-quarantine-concerts
cantar ‘Amor Secreto’, de Wando, no fazer outra coisa ao mesmo tempo,
FaceTime: “Hoje vou ficar em casa/ O site do Experimental Sound Stu- incluindo falar. No final, regressam ao
Vou tirar a roupa/ Vou te amar em dio, em Chicago, está a transbordar Facebook para debater a experiência.
pensamento/ Vou ter febre louca// de eventos de música ao vivo com
Mesmo te querendo muito/ Não vou cerca de 30 minutos de duração,
te encontrar/ Vou te amar em fanta- durante os quais é possível fazer WASH YOUR
sia/ Pra não machucar.” De forma mais doações aos músicos participantes.
HANDS SAY YEAH
www.facebook.com/
ou menos eufemística, no YouTube, Por exemplo, hoje, dia 10, a partir da
Twitter, Instagram ou Facebook, é o que COACHELLA: 1h da madrugada haverá um pro-
washyourhandssayyeah, domingo, 12h
tem virtualmente demonstrado gente
20 YEARS IN THE DESERT grama com curadoria de Ben Vida Segundo live stream do festival
De Chris Perkel
como Joyce DiDonato, Daniel Hope, (compositor e ex-fundador dos português, com a participação de
Hoje, dia 10, 20h
Igor Levit, Yo-Yo Ma, Gautier Capuçon Town & Country). O guitarrista de Frankie Chavez, The Dirty Coal Train,
www.youtube.com/coachella
e Alisa Weilerstein. Nessa perspetiva, o Chicago Daniel Wyche toca segun- Suave, Adolfo Luxúria Canibal com
ponto alto da agenda semanal virá por da-feira com convidados; e na terça Marta Abreu, Terry Lee Hale, Budda
cortesia de Marc-André Hamelin (na O festival norte-americano de Co- teremos Eduardo F. Rosário, artista Guedes, Ash Lewis, Rapaz Impro-
foto), um pianista que se revela incapaz achella tornou-se, nas últimas duas sonoro de Porto Rico, residente em visado e Oclaire. Apresentação de
de ceder ao pânico mesmo quanto tem décadas, um dos maiores eventos de Chicago. Nuno Calado.
em mãos as mais complicadas partituras música do mundo. Amado pelos muitos
e que, ao vivo, desde a sua sala de estar, que se pelam por atuações históricas
propõe um programa que passa por C. de uma lista infindável de grandes ar-
P. E. Bach, Enescu, Liszt e Scriabin e que tistas — pelo grande palco do deserto
arrisca a transcendência no “Noturno Nº californiano passaram, ao longo dos
6”, de Fauré (que marcou o regresso do anos, nomes tão incontornáveis quanto
compositor ao piano após um interreg- Radiohead, Prince, Roger Waters, Ma-
no de seis anos e que se ouve como se donna, Outkast, Guns N’Roses, Amy
alguém tivesse decidido resumir em Winehouse, Beyoncé ou... o holograma
dez minutos a dor e a alegria entretanto de Tupac Shakur —, odiado por tantos
vividas) e numa seleção do segundo livro outros, que o acusam de ser uma
de “Prelúdios”, de Debussy, que inclui fogueira de vaidades, o festival é hoje
“La terrasse des audiences du clair de visto como uma espécie de “rito de
lune”. Quem também se porá a evocar passagem para os millennials” norte-
a lua, embora tocando à uma da tarde, -americanos. A história de uns 20 anos
amanhã, na sua página de Facebook, é o que começaram menos bem (a primei-
notável pianista holandês Dante Boon, ra edição, em 1999, não atraiu gente
que inicia o live com a meditativa “Early suficiente para viabilizar a continuação
Night”, de Michael Vincent Waller. E à no ano seguinte, regressando para uma
cata de luz, por alturas da “Sinfonia da segunda tentativa apenas em 2001)
Ressurreição”, andava Mahler, um pro- é agora contada no documentário “Co-
digioso praticante de isolamento social achella: 20 Years in the Desert”. Entre
— quinta, às 19h30, a London Sympho- entrevistas, excertos de concertos e
ny Orchestra emitirá no seu canal de histórias de bastidores, são exibidas
YouTube uma recente interpretação da imagens exclusivas e inéditas de um
obra dirigida por Semyon Bychkov. “Não festival que, como exclama a jovem
foi em vão que sofreste”, ouvir-se-á. Billie Eilish (na foto), mais nova do
Quem quiser que acredite. / J.S. que o próprio evento, no curto trailer,
“toda a gente conhece, mesmo que
não queira saber de música”. A estreia,
marcada para a noite deste 10 de abril,
coincide com o dia em que arrancaria
SIM CANNETY-CLARKE

a edição de 2020, entretanto adiada


para outubro devido à pandemia do
novo coronavírus e de cujo extenso
cartaz farão parte os Rage Against the
Machine, Travis Scott e Frank Ocean.
/ MÁRIO RUI VIEIRA

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Novo mundo

E ainda...
na Garagem POCILGA
De John Romão
O “videoteatro” de Carlos J. Pessoa vimeo.com/johnromao

em tempos de pandemia O filme “Pocilga” de Pier Paolo Paso-


lini é de 1969. Em 2015, o encenador
Coordenação Cristina Margato
cmargato@expresso.impresa.pt TEXTO CLAUDIA GALHÓS português John Romão (também
diretor artístico da BoCA — Bienal
de Artes Contemporâneas) criou a
sua versão teatral, com um elenco
que incluía Albano Jerónimo, Ana
Bustorff ou João Lagarto. Mais pe-
ças de Romão podem ser vistas no
canal Vimeo acima referido.

FILIPE FERREIRA
AGAMÉMNON
De Tiago Rodrigues

A
As gravações foram vimeo.com/tndmii
questão é velha, lembra na arte”. Nessa escrita havia já “um
feitas uma a uma
nas casas dos atores Carlos J. Pessoa: O que surgiu sentimento de horror, um mal- Para hoje, às 21h, a Sala Online
primeiro? A realidade ou a estar, uma sensação de ameaça”. O do Teatro D. Maria II programou
ficção? É uma pequena variação teatro como “um espelho onde se “Agamémnon”, uma das três tra-
desse enigma antigo da galinha e condensa a respiração da história” gédias gregas que Tiago Rodrigues
do ovo e, neste caso, aplica-se ao tem marcado a identidade da reescreveu em 2015. São as “sextas
espetáculo “Mundo Novo” que o Garagem e concretizou-se em peças trágicas” do TNDMII em tempo de
Teatro da Garagem acaba de estrear como “Pentateuco — Manual de quarentena.
online, em versão de 16 episódios. Sobrevivência para o Ano 2000”
Hoje, sexta-feira, estreia-se o último (1997) ou “O Mundo em que
(na RTP Play) e, a partir de amanhã Vivemos” (2011). Também já havia
ficam todos disponíveis no site da no teatro ao vivo a convivência com
companhia. o recurso ao universo virtual, levado
Há mais de um ano que Carlos J. para cena por via do vídeo — foi o
Pessoa (diretor do Teatro da Garagem, caso de “Teatro Twitter” (2014) —,
VÍTOR FERREIRA
encenador e autor dos textos de que gerou uma estética que agora
teatro) tinha começado a escrever se torna reconhecível nos episódios
este “Mundo Novo”, inicialmente deste “Mundo Novo”. É certo que
com estreia prevista no Teatro desta vez não foi uma opção, foi uma
Taborda, em Lisboa, a 26 de março. contingência. As filmagens foram
A covid-19 mudou-lhe os planos e, feitas com cada ator na própria casa TRISTÃO E ISOLDA
para não cancelar o espetáculo — o e editadas a posteriori. E que não Da Companhia de Dança
Contemporânea de Évora
101º do repertório da companhia —, haja engano, “isto não é teatro”, diz
www.cdce.pt, até quarta-feira
criou uma versão online. Este “Mundo Carlos. “O teatro como o conhecemos
Novo” está pleno de sintomas de um é importante que volte, porque o A CDCE — Companhia de Dança
colapso social, de sinais de alerta, teatro como o conhecemos acontece Contemporânea de Évora
MUNDO NOVO que à luz da pandemia ganham quando estamos juntos.” Ainda assim, disponibiliza, a cada semana, uma
De Carlos J. Pessoa/ uma nova atualidade. Carlos não chamou-lhe “videoteatro”, porque há das peças coreografadas,
Teatro da Garagem alterou nada do texto. É um daqueles algo do teatro que subsiste, a começar nos últimos quatro anos, por
teatrodagaragem.com acasos. Ou, como ele prefere dizer, por essa afirmação evidente: “Porque Nélia Pinheiro. Depois de “Tristão
(a partir de sábado) “há sempre uma dimensão oracular nós somos do teatro”... b e Isolda”, segue-se “Eros e Psiquê.

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E ainda...
TENTAÇÕES
DE SANTO ANTÃO
Hieronymus Bosch
Museu Nacional de Arte Antiga,
Lisboa
www.museudearteantiga.pt
Coordenação Alexandra Carita
acarita@expresso.impresa.pt Rever a forma como na Idade
Média se lidava com a tentação
e a solidão do homem perante
Uma das salas da
o mal e o diabólico. Uma das cole-
exposição que
pode ser vista online ções de pintura europeia da página
através de fotografias eletrónica do MNAA.

Consciência do limite AURORA: DESENHOS


E OUTROS MATERIAIS
Pedro A. H. Paixão

L
Galeria 111, Lisboa
Uma exposição imite, alteridade, contaminação,
exclusão. Neste momento
sobre metal de Rodrigo Hernández
mostra três homens do lá de cá de
111.pt

coletiva que ronda da nossa vida global deve uma janela como se olhassem um Oportunidade para ver de perto os
haver poucas pessoas a quem este exterior inalcançável; na obra de últimos desenhos do artista, uma
os temas da vocabulário seja estranho. De alguma Renato Leotta vemos o rasto lumínico articulação entre retrato e estudos
clausura e da forma, a pandemia veio tornar
maciça uma consciência da figura da
de um vaga-lume sobre um papel. Na
verdade, são obras que transparecem
sobre a África Central. Oito obras
“ambientadas numa dimensão
travessia em vítima. Sem referências diretas a ela, um desencaixe, uma inadequação onírica”.
a exposição coletiva “Instructions de posição ou desfuncionalidade,
tempos de for Life Among Invisible Barriers” que se pode manifestar de modo
trabalha mecanismos que a evocam abstrato (Sara Chang Yan) ou
pandemia mas que já se manifestavam em definindo um equilíbrio precário
TEXTO CELSO MARTINS outras realidades antes de o ‘inimigo’ (como com as pedras de Kate Newby).
se tornar invisível, transversal e Mais direta é a fotografia da sul-
omnipresente. A mostra reúne um africana Buhlebezwe Siwani em que
conjunto heterodoxo de trabalhos em a artista emerge das águas num ato
meios diversos e propósitos distintos, comemorativo do “SS Mendi”, o
uma diferenciação que não inibe uma barco britânico carregado de militares
confluência temática. A fotografia de negros que afundou em 1905; ou a
Augusto Alves da Silva, na qual um imagem lúgubre da polaca Joanna
grupo de homens olha num estádio Piotrowska que mostra a jaula vazia TESOUROS
para uma bola que parece suspensa de um jardim zoológico.
DA COLEÇÃO
Museu do Dinheiro, Lisboa
no ar estabelece uma imagem de Uma tela de Enzo Cucchi que sugere
www.museudodinheiro.pt
alienação e de alienação se pode uma quase osmose com a natureza e a
QQQQ falar também a propósito da pintura pintura de Luís Lázaro de Matos, que Viagem ao mundo mais desconhe-
INSTRUCTIONS FOR LIFE com licra de Yuli Yamagata. À sua traz o sugestivo título “The Functional cido do dinheiro, um mundo onde o
AMONG INVISIBLE BARRIERS frente, uma escultura de Belén Uriel Passengers”, dão um sentido redentor caminho não passa só pelas moedas
Galeria Madragoa, Lisboa, até 2 de maio exibe um banco de vidro encaixado a uma exposição em que estados de troca. Na Guiné, os panos Kuba
(online) numa estrutura de metal onde não claustrofóbicos procuram sempre um (na fotografia) tinham a mesma
www.galeriamadragoa.pt nos podemos sentar. Uma gravura mais além. b função. Um percurso interativo.

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O MITO LÓGICO

MASTURBAÇÃO, SIM.

A
SEXO, NEM PENSAR
O DIABO DOS VÍRUS SÃO SEMPRE MORALISTAS.
DISTANCIAMENTO SOCIAL EQUIVALE A SEXTING, VIDEOSEXO...

cho que anda por aí um engano. Tenho sabe, produz uma clarividência emocional que ajuda neste momento.
lido que daqui a uns meses vai chegar Além de melhorar o sistema imunitário. Eu, que nem sou de teorias da
uma onda de ‘coronabebés’ devido conspiração, acho que vamos voltar a entrar numa época de promoção
ao confinamento. Tenho grandes do onanismo e de reprovação social do sexo, por ser transmissor de
dúvidas. Para já, o que constatei de doenças. Já vivi isso nos anos 90 e não me apetecia agora, que estou a
mais palpável é que as autoridades gastar os últimos cartuchos, voltar ao mesmo.
de saúde irlandesas recomendaram Assim que a covid-19 apareceu, um dos sectores que foi ao ar foi o das
a todos a masturbação e o sexting. orgias e festas de sexo. Os empresários do ramo ficaram logo sem gente
E com a seguinte explicação: é mais disposta a ir para a molhada. Acredito que um mero espirro fosse o fim
higiénico, desde que haja lavagem das da macacada. Mas o sector da prostituição — o que atualmente existe
mãos antes e depois (não especificaram em Portugal sob a forma de acompanhantes na net e casas de massagens
quantos segundos). “Há que considerar — também deve ter tido um grande rombo. Uma pequena busca online
uma pausa na interação cara a cara, mas poderá fazer uso de chats, permite-me ver que essas casas estão fechadas, mas que há dezenas
videochamadas, mas sempre com a devida higienização dos teclados.” de mulheres que continuam dispostas a arriscar. Não deixa de ser uma
A entidade de saúde da cidade de Nova Iorque foi no mesmo sentido, bizarria estar em confinamento e recorrer a este tipo de serviços. Há
pedindo aos cidadãos que se abstivessem de sexo no sentido tradicional, quem garanta que já se vive uma pandemia de ‘ansiosexualidade’ —
pouco dado a distâncias de pelo menos dois metros, e se optasse pela sexualidade inflada pela ansiedade —, e eu acredito. Se acredito.
sua forma mais genérica: a masturbação. Mas Nova Iorque é Nova Iorque Mas quem diz que estamos tipo ‘época medieval’ não sabe o que diz.
e, além de práticas que descrevem com texto e emojis (algumas bem Tenho aqui uma “GQ” inglesa que ensina como fazer sexo pelo FaceTime.
kinkys), também lembraram a necessidade de lavar os sex toys com Eu, que estou com medo de ir aparecer dentro de 15 dias na TV por
sabão. Tenho para mim que até o ‘fdp’ do vírus se vai meter nestas coisas Skype de minha casa, não deixo de mandar um grande saravá para esses
do sexo. Os vírus, já os topei, são sempre moralistas. E o sexo, pela sua rapazes e raparigas que se dispõem a algo assim. A revista alerta para
natureza, exige o contrário de distanciamento social. Mas aqui estamos. uma série de detalhes que não me parecem despicientes. O background
No primeiro semestre de 2020 a tratar desta abordagem do assunto sob o deve estar minimamente arrumado, e não esquecer que, se quer mostrar
prisma ‘faça você mesmo’. E desinfete de seguida. a melhor versão erótica de si, deverá ver como está a iluminação e se não
Houve, claro, quem se tivesse prevenido. Há sempre. O rei da Tailândia, aparece na imagem algo indesejado ou que não vão surgir notificações às
que anda nas coisas do ‘playboyismo’ há mais de meio século, fechou-se pizzas durante esse momento mágico. Aconselham vivamente um tripé,
num hotel da Alemanha com um pequeno harém de 20 mulheres. Sendo porque as duas mãos irão ser necessárias. Os conselhos seguintes passam
que mais de uma centena de pessoas do seu séquito foi recambiada, o por explicar como ‘ser o show’, como não ter medo de grandes planos e
que deve ter deixado o rei com tanta falta de pessoal que ainda acaba a como desembestar o ator porno que há em cada um de nós. O meu está
fazer gelinho de unha às namoradas. Para mais sendo um hotel de quatro de quarentena.
estrelas. Os meus pensamentos estão com ele, até porque quero voltar à De toda a maneira, eu acredito que um dia o toque noutro ser humano
Tailândia e dizer mal do rei dá 15 anos de prisão. voltará a ser permitido. E será uma maluqueira. b
Mas regressando às nossas misérias. Assim que começou o confinamento lpnunesxxx@gmail.com
houve uma brutal procura de ‘pornocovid’. Parece mentira, mas não é.
O motor de busca Pornhub, que é usado nestas coisas para fazer umas
tiradas sociológicas sobre o lado sombrio da natureza humana ou meras
contabilidades das práticas onanísticas da civilização, explica que os
vídeos com batas e máscaras tiveram uma explosão de procura. Mas
também houve material novo produzido logo no início da pandemia. Até
há um ‘pov’ (point of view — tem de ler as minhas crónicas...) em que
um ‘investigador’ de fato verde vai à China e descobre a marosca. Parece
de mau gosto agora. Mas já passaram dois meses. Uma eternidade. As
pessoas têm de trabalhar. E, aproveitando o facto de muito consumidor,
digamos, estar 24/7 fechado em casa, dispararam os serviços pagos
/ LUÍS
XXX a oferecer uma semaninha de borla. Estou a ler. Desde strips ao PEDRO
vivo a serviços plus e toda uma parafernália porno ao vivo e em direto,
porque se tem de dar o número do cartão de crédito. É o dás. Mas agora a
NUNES
masturbação é cool. E há quem não resista. Deduzo.
De volta ao Departamento de Saúde de Nova Iorque. Na sua diretiva sobre
a covid-19, relembra que a masturbação é um excelente mecanismo
de alívio de stresse e que ajuda a lidar com os problemas quotidianos.
Em moderação. E que, como qualquer adolescente no pico hormonal

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vícios
“PESSOAS SEM VÍCIOS TÊM POUCAS VIRTUDES”

Nova vida
para os jogos
de tabuleiro

GETTY IMAGES

Depois de um
renascimento de
entusiasmo no mundo ‘real’
a que assistimos nos últimos
anos, a proliferação de soluções
‘online’ abre novas possibilidades
para os jogos de tabuleiro,
mesmo quando, agora, vivemos
separados uns dos outros
TEXTOS NUNO GALOPIM

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N
os últimos anos assistimos a
um reencontro com um ve-
lho hábito: o de estarmos com
amigos, horas a fio, em frente a jo-
gos de tabuleiro. O interesse cresceu
ao ponto de terem surgido novos jo-
gos, assim como versões alternativas
para outros já com história. Surgi-
ram associações, encontros regulares
de jogadores e espaços noturnos nos
quais os jogos de tabuleiro revelavam
ser um motivo diferente para sair de
casa. A Comic Com Portugal tem de-
dicado atenção a este universo, não
só com uma zona de venda de jogos
mas também com uma multidão de
mesas nas quais tem sido possível ex-
perimentar novidades e aprender os
truques. Na mais recente edição, hou-
ve até workshops e masterclasses sobre
como jogar... E de repente o mun-
do mudou. Ficámos em casa e longe
dos amigos. Mas os jogos de tabuleiro
não deixaram de nos acompanhar. Na
verdade, ao longo dos últimos anos,
têm vindo a surgir espaços online que
permitem jogar com amigos ou des-
conhecidos, quer morem a uma rua
de distância ou no outro lado do glo-
bo. E nas últimas semanas o acesso às
plataformas online dedicadas aos jo-
plataformas a visitar por quem quiser
jogar. Alguns destes sites são gratui-
Ao longo dos confusão estar a explicar”. Um pon-
to positivo dos jogos online é, contu-
gos de tabuleiro conheceu um cresci- tos, outros têm zonas pagas e nas res- últimos anos do, “a velocidade de jogo, porque está
mento avassalador. petivas apresentações referem quem tudo otimizado”.
Gregory Isabelli, fundador e CEO são as equipas que os criaram e man- surgiram espaços Hugo Jesus, engenheiro informá-
da Board Game Arena, a maior pla-
taforma online destinada a jogos de
tém ativos, sublinhando a obtenção
de autorizações para poder alojar ali
online que tico de 34 anos que vive no Carregado
é sobretudo jogador de Terraforming
tabuleiro, contou ao Expresso que “o as versões online dos jogos e que to- permitem jogar Mars. Joga ainda Stone Age e Catan.
tráfego maior começou a 12 de mar-
ço, o dia em que Itália aplicou medi-
dos eles são propriedade dos respeti-
vos publishers. Quem quiser continu-
com amigos ou Encontrou os jogos através de mo-
tores de busca e procurando na App
das restritivas”. Em dois ou três dias ar a explorar este mundo (bem vasto) desconhecidos, Store, “embora alguns jogos de tabu-
o “tráfego vindo de Itália multipli- pode espreitar o portal BBG, ou seja, leiro físicos tenham no seu interior a
cou-se por seis ou sete. Mas depois, à Board Game Geek. quer morem publicidade à sua versão online”. Re-
medida que outros países começaram
a aplicar medidas semelhantes, hou-
Uma questão importante: com
que equipamentos podemos jogar?
a uma rua de fere ainda o Tabletop Simulator, “que
permite criar qualquer jogo de tabu-
ve um crescimento exponencial”. Há Há quem jogue com os seus compu- distância ou no leiro para os mais aventureiros, sen-
um mês, recorda, “havia cerca de 25
mil jogos a serem jogados diariamen-
tadores e quem prefira antes usar os
telemóveis, o que, explica Gregory
outro lado do globo do que todas as ações terão que ser
programadas”.
te”. Na última semana foram “joga- Isabelli, “depende muito dos jogos”. Ricardo Simões, profissional na
dos 130 mil jogos” a cada dia. Para “jogos mais complexos, com área comercial na Marinha Grande,
A Board Game Arena é uma das muita informação no ecrã, um com- com 39 anos, também joga Stone Age
várias plataformas online para quem putador será a melhor opção”, expli- e acrescenta, entre as suas sugestões
gosta de jogos de tabuleiro. Está aces- ca. Mas “os mais simples são fáceis Targi, Palaces of Carrara e Jaipur. A seu
sível para vários browsers, em 35 lín- de jogar nos telemóveis e há muitos ver a “única diferença, que até se re-
guas, e permite jogar diretamente jogadores a fazê-lo” neste momento. vela facilitadora”, face aos jogos reais,
jogos como Carcassonne, 7 Wonders, Antero Fernandes, estudante e “é que o computador faz a reposição
Stone Age, Sushi Go!, Saboteur, Clãs profissional de marketing, tem 25 dos componentes no tabuleiro, garan-
da Caledónia ou Exploradores (Lost anos, vive na Maia e é um dos muitos te que jogamos com as regras certas e
Cities), entre outros mais, muitos utilizadores da Board Game Arena. exatas dos originais” e a maior dife- faz o cálculo automático da pontua-
deles igualmente disponíveis em ou- Descobriu “os jogos através de um rença “está na velocidade de apren- ção”. No seu caso, a descoberta dos
tros sites. Outro destino possível é amigo” com quem joga também no dizagem”. No jogo de tabuleiro “real” jogos fez-se “através das comunidades
o Tabletop Simulator, um programa Yucata e tem Stone Age, Clãs da Ca- o jogador está “mais envolvido com de jogos de tabuleiro que existem nas
que recria ambientes de vários jogos. ledónia, Puerto Rico, Power Grid, 7 o ambiente de jogo e tem alguém a redes sociais”. Todos os jogos “estão
Para jogos de estratégia, sobretudo Wonders e Keyflower, que estão entre explicar presencialmente, o que me- acompanhados de tutoriais no You-
de guerra, a plataforma Vassal é ou- os seus jogos favoritos. Antero expli- lhora substancialmente a aprendi- Tube, para que seja mais fácil entrar
tra hipótese, acrescentando regular- ca que, face aos jogos equivalentes no zagem”. No online “só podemos jo- neste mundo, que pode não ser muito
mente vários módulos. Yucata, Boîte mundo real, “em termos práticos de gar jogos que já conhecemos ou ir acessível a quem só conheça os jogos
à Jeux, Brettspiel Welt, Happy Mee- regras é tudo igual”. Normalmente os para a sessão com a lição de casa bem familiares como o Monopólio, Trivial
ple e Tabletopia são mais exemplos de jogos de tabuleiro online “são réplicas estudada”. Caso contrário “é uma Pursuit ou Pictionary”.

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Nas últimas semanas,
o acesso às plataformas
PLATAFORMAS
online dedicadas aos jogos E JOGOS
de tabuleiro conheceu um
crescimento avassalador

Board Game Arena Boîte à Jeux


É a maior das plataformas. Tem Plataforma gratuita disponível
conselhos sobre como melhorar no inúmeros jogos, entre os quais em francês, alemão e inglês.
jogo”. Rafael Nogueira também não Stone Age, Puerto Rico, Race Inclui jogos como Alhambra,
conhece pessoalmente aqueles com for the Galaxy, 7 Wonders ou Dixit, Agricola, Vanuatu ou
quem interage. Joga “com pessoas Carcassonne, e está disponível Dungeon Lords, entre outros.
de todo o mundo”, diz, sublinhan- em 35 línguas, incluindo
do: “Qual seria a probabilidade de, o português. O acesso é
num mesmo local, jogar com um gratuito, embora haja uma
americano, um grego, um bielor- zona premium, que dá acesso
russo e um sul-africano?” Já Ricar- a algumas características
do Simões conta que joga online com adicionais.
os mesmos amigos com quem jogava
habitualmente de forma presencial.
No entanto, nota, “é possível a qual-
quer um juntar-se a uma mesa aber-
ta e jogar com desconhecidos”, ob-
Rafael Nogueira, estudante de 27 servando ainda que “a comunidade
anos residente em Lisboa, joga Rento de jogadores tem crescido bastante
Fortune, “isto é, Monopólio”, explica, nos últimos tempos”. Antero Fer-
notando haver diferenças entre a ver- nandes tem um grupo de WhatsApp
são online e a de tabuleiro. “Não há as com cerca de dez amigos com quem
ruas portuguesas”, o que o entriste- joga. “Antes do aparecimento do ví-
Yucata Brettspeil Welt
É uma plataforma de Plataforma alemã
ce ,“pois durante centenas de horas” rus e chegarmos a esta situação”, jo- dimensões consideráveis, com (habitualmente referida como
jogou com a “Av. de Roma e a Estação gavam “todas as semanas em casa de bastantes jogos, entre os quais BSW) com algumas indicações
de São Bento”. um amigo em Paranhos. Mas agora, Alchemists, Imhotep, Kahuna, em inglês. Ali há jogos como
Outra questão que se coloca, além confinados a estar em casa”, jogam Mystic Vale ou The Castles of Caylus, Power Grid, Trans
dos jogos em si e de onde os podemos “praticamente todos os dias”. Já é, Burgundy. É também de acesso America, Pantheon ou Half Pint
encontrar, é a da identidade de quem reconhece, “um ritual para passar gratuito e está disponível em Heroes. O acesso é gratuito.
connosco pode jogar. Na Board Game o tempo, jogar e pôr a conversa em inglês ou alemão.
Arena “75% são homens”, diz Gre- dia através do Discord”. E conclui:
gory Isabelli, referindo que o núme- “É como se tivéssemos todos juntos,
ro era, antes na casa dos 80% “e que todos os dias.”
tende a decrescer”. A maioria dos Gregory Isabelli reconhece que
jogadores tem ali entre os 25 e os 25 “os jogos de tabuleiro foram feitos
anos. “Os mais novos preferem jogos para serem jogados na vida real”,
vídeo”, comenta. Depois dos 50 anos mas nota que os utilizadores da sua
há menos jogadores. Gregory crê que plataforma o fazem por várias ra-
assim é porque “pertencem a uma zões, seja para “jogar com amigos
geração que não vê os jogos de tabu- que estão longe, para desafiar jogado-
leiro como um hobby para adultos”. res muito fortes (que podem não ter
Tabletopia Happy Meeple
Plataforma com simulação de Plataforma inclui Lost Cities,
Na distribuição geográfica, metade entre o seu grupo de companheiros) 3D nos tabuleiros e perto de Hanamikoji, Circle the Wagons,
dos utilizadores da plataforma são ou encontrar parceiros para jogar se 600 jogos, dos quais o nível Keltis Card, Siberia Card ou
europeus, seguindo-se 25% da Amé- não tiverem quem o possa fazer em básico de cerca de 400 pode Glastonbury, entre outros. Está
rica do Norte e 20% da Ásia. casa”. Com o aumento de consumo ser jogado gratuitamente. disponível em inglês, francês,
Hugo Jesus joga normalmen- de jogos de tabuleiro online, poderá Inclui CO2, Castle Panic, Terra alemão, espanhol e turco.
te com pessoas que não conhece, esta pandemia mudar a nossa rela- Mystica, Sub Terra, Scythe ou
“embora por vezes jogue com ami- ção com este tipo de hobby? Gregory Love Letter, entre outros.
gos”. Há chats “nas próprias aplica- confessa que “é difícil responder”.
ções ou sites que permitem conver- A situação que estamos a viver “era
sar com outros jogadores, e muitas imprevisível e estamos a ter dificul-
das vezes” são usados “para defi- dades em lidar com ela”. Para já, diz
nir que jogo jogamos ou variações que sente “felicidade” e até “orgu-
como o limite do tempo de jogo, de lho” ao poder “prestar um serviço a
jogada, etc.” Durante ou após o jogo quem gosta de jogos de tabuleiro de
“por vezes, fala-se de estratégias ou todo o mundo”. b

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R ECE I TA
POR JOÃO RODRIGUES
(PROJECTO MATÉRIA)

TIAGO MIRANDA
Silarcas, túberas PRODUTOS & PRODUTORES

e queijo Túbera Silarca


ou Amanita
de vaca curado
Túbera é um fungo da família das tube-
ráceas, de aparelho esporífero subter-
râneo, e de constituição tubercular. Em Ponderosa
regra, aromáticos e comestíveis.
É uma espécie comestível de carne
Tempo de preparação 30 minutos Surgem em Portugal entre o fim de
fevereiro e o início de maio.
branca, grossa e consistente que apa-
Tempo de confeção 15 minutos As túberas não prosperam em todos os
rece nos meses invernais, mas também
pode ser encontrada na primavera.
tipos de terrenos. Em Portugal podem
Frutifica em azinhais e sobreirais.
ser encontradas em muitas zonas do
De sabor suave e odor a terra. No
SILARCAS E TÚBERAS SALTEADAS momento, adicione os dentes de alho Ribatejo e do Alentejo. Zonas em que
início tem forma hemisférica, depois
400 g de silarcas / 320 g de túberas; 3 dentes esmagados, o tomilho e as túberas. normalmente os terrenos são formados
convexo e por fim plano, bastante
de alho com casca / azeite q.b.; 1 g de tomilho Depois de bem coradas de um lado por aluvião, argilosos, os quais tenham
carnudo, ao emergir da volva é de cor
fresco / 120 g de queijo de vaca curado; e de outro, tempere de sal e pimenta areia, podem ser encontradas junto a
esbranquiçada, depois passando a tons
sal q.b. / pimenta q.b. preta moída e salteie bem. sobreiros, azinheiras, oliveiras, pinheiros
ocre-rosados, para finalmente ficar
ou arbustos.
Aquecer bem uma frigideira com Sirva logo de seguida, terminando castanho-avermelhado.
Normalmente encontram-se com faci-
azeite, e colocar primeiro as silarcas com lascas de queijo curado por cima Pé grosso, completo e cheio. Só é
lidade, dado que começam a aparecer
cortadas em fatias grossas (bem lim- dos cogumelos (sugiro usar um queijo bolboso na base e a sua cor varia entre
ao cimo da terra quando estão no auge
branco e tons mais rosado, mas sempre
pas de terra e passadas por duas águas de São Jorge com mais cura, ou mes- da sua maturação.
mais claro que o chapéu. Possui um anel
para remover o que possa ter fica- mo um queijo estrangeiro, tipo Gou- branco muito fugaz e uma volva grande,
do de excedente). Quando começa- da, Emental, Beaufort, etc.) persistente e membranosa, de cor
rem a ganhar cor, vire-as, para cozi- Pode fazer uns cubos de pão frito se branca, no entanto, sempre manchada
nharem também do outro lado. Nesse quiser, para juntar ao prato. b de terra.

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VI N H OS
POR JOÃO PAULO MARTINS

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Verdades e novidades
É só mais um mistério da Natureza

U
ma das sugestões desta semana, o tinto marca, custa cerca de €200 a garrafa o 2010. custará menos de €10 mil a garrafa; o Quinta
Vinhas Improváveis, tem na ficha técni- Parece então haver aqui uma contradição, do Noval Vintage Nacional 1931 corresponde
ca, não disponibilizada ao consumidor, mas esse é o mistério que referimos no título: também a este modelo, uma vez que a vinha
uma informação curiosa. Ali conta-se que a é verdade que das vinhas velhas vêm os me- foi replantada em finais dos anos 20, e foi ‘só’
vinha tem agora 10 anos e que a primeira edi- lhores vinhos e é novidade que as vinhas ao considerado um dos melhores vinhos do sé-
ção foi em 2014, ou seja, quando as cepas ti- quarto ano estejam na plenitude da pujan- culo XX. Mas, atenção, não se espere que de
nham apenas quatro anos. A seguir tecem-se ça juvenil. Quando a vinha cresce em idade, qualquer vinha com quatro anos saia um vi-
considerações sobre o enorme potencial que muitos produtores optam por uma monda de nho grandioso. Para desgosto de todo o pro-
as vinhas têm com aquela idade, dando dois cachos para diminuir a produção, mas aos dutor, a velha máxima continua válida: é a
exemplos emblemáticos. A esses já lá vamos, quatro anos tal não é necessário, a vinha ain- localização da vinha a principal responsável
agora é bom que se explique um pouco me- da não produz muito, até porque ao segundo e pelo que de lá se vai colher. Ora isso não de-
lhor a ideia. Tal explicação é necessária por- terceiro anos precisa de ser formada (e orien- pende do investimento, da qualidade da ade-
que todos os consumidores já leram ou ouvi- tada), e aí há lugar a uma ‘poda de formação’, ga ou das barricas ou do que se paga ao enólo-
ram dizer que é das vinhas velhas que vêm os digamos assim. Energia, fulgor, robustez para go. É, em última instância, um milagre da Na-
melhores vinhos e provavelmente já ouviram aguentar a carga e carácter são tudo caracte- tureza ou, como qualquer francês gostaria de
a história incrível que as meninas do enotu- rísticas que a vinha tem naquela jovem idade. dizer, “é o terroir, estúpido!” Ficamos então
rismo contam, em Bordéus, aos visitantes no Por isso é possível, contrariando o senso co- a saber que a maioria dos grandes vinhos do
Château Latour. Segundo elas, só quando as mum, produzir um vinho extraordinário. Na mundo vem de vinhas velhas, mas que às ve-
cepas da propriedade atingem os 45 anos de tal ficha técnica fala-se de dois deles, emble- zes os milagres acontecem nas que são mui-
idade é que as respetivas uvas entram para a máticos: o Le Pin (Pomerol), que à primeira to novas. Quando ler que um vinho vem de
primeira marca, precisamente Château La- edição, ainda nos anos 70, exatamente com a vinhas novas não fique, por isso, de pé atrás.
tour. Até lá integram a segunda marca, Les jovem idade que falamos, originou um vinho Quem sabe se a localização é a certa e tem em
Forts de Latour, que, apesar de ser segunda que custa hoje milhares de euros, e o 82 não mãos uma pérola vínica... b
(OS PREÇOS, MERAMENTE INDICATIVOS,
CORRESPONDEM A VALORES DE MERCADO)

Desalmado tinto 2013 Vinhas Improváveis Tons de Duorum tinto 2017


Região: DOC do Tejo Reserva tinto 2017 Região: Douro
Produtor: Adega Cooperativa Região: Douro Produtor: Duorum Vinhos
do Cartaxo Engarrafador e Distribuidor: Direct Wine Castas: Touriga Franca, Touriga
Castas: Seis variedades Castas: Touriga Nacional, Touriga Nacional e Tinta Roriz
Enologia: Pedro Gil Franca e Tinta Roriz Enologia: José Maria Soares Franco
PVP: €28 Enologia: Raul Riba d’Ave PVP: €4,99
6600 garrafas. Esta é das PVP: €16,50 A coleção Tons abrange também
pouquíssimas adegas cooperativas Segunda edição deste tinto, sucedendo o branco e, agora, o rosé. Funciona
que mantém uma atividade ao 2014. A vinha tinha em 2017 sete como gama de entrada da marca
dinâmica e inovadora ano após ano anos de idade. Álcool excessivo (15%), Duorum. Tem a vantagem de ter grande
Dica: Tem concentração mas assunto a rever em próximas edições disponibilidade no mercado
também tem frescura com grande Dica: Muito bom o perfume duriense, Dica: Um grande companheiro do
equilíbrio entre fruta, acidez, denso, cheio de fruta negra e com um quotidiano, descontraído e muito
corpo e madeira. Muito bem feito toque de madeira. Um belo tinto, a polivalente à mesa. Deste é mesmo
o trabalho de vinha e adega preço bem convidativo caso para dizer: todos gostam

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especial entregas ao domicílio
O GAVETO Porto Palácio
Porto. Tel. 226 086 600

Mariscos e cabrito
para a Páscoa
Como sempre, a qualidade dos ingredientes e das confeções
está assegurada. Cada dia da semana continua a corresponder O menu especial de Páscoa conta
a pratos específicos, como o bacalhau à Gomes de Sá à com camarão cozido com molho
sexta, tripas à moda do Porto ao sábado e cabrito assado ao cocktail, salmão marinado com
domingo. Sempre que apeteça, o famoso arroz de mariscos ervas e citrinos e natas ácidas
para duas pessoas. Além disso, O Gaveto desenhou vários para entrada, com cabrito assado
menus que harmonizam pratos e vinhos, para que não tenha de no forno aos sabores tradicionais,
se preocupar com mais do que fazer um simples telefonema: barriga de leitão assada, bacalhau
filetes de pescada com salada russa e Maria Izabel douro DOC com crosta de broa de milho e
azeitona e garoupa assada com
2018, bacalhau à moda de Braga e pessegueiro Aluzé Douro
legumes. Para adoçar o almoço há
DOC Branco 2018 ou lombinhos de vitela com ervilhas e
lampreia de ovos, papos de anjo
Pombal do Vesúvio Doc Douro 2017, entrecosto de boi para com frutos vermelhos, pudim de
duas pessoas e Niepoort “O Gaveto” Douro DOC Tinto 2016 ovos e pão de ló húmido. A recolha
são algumas harmonias possíveis. Além de criteriosamente do almoço tem de ser feita no
escolhidos, os vinhos da carta contam agora, na opção take- próprio hotel. A partir de €20.
away, com um desconto de 20%. Encomende todos os dias
através do tel. 229 378 796 ou, então, pelo site do restaurante Aqualuz Lagos Suite
O Gaveto. O serviço de take-away funciona entre as 12h e as Hotel Apartamentos
14h30 e entre as 19h30 e as 22h. Lagos. Tel. 282 770 620
Em regime de take-away, com
marcação prévia até 24 horas,
os clientes contam ainda com o
páscoa D’Bacalhau
Lisboa. Tel. 218 941 296
Aki-D’El-Mar
Caldas da Rainha/Nazaré.
Restaurante Ignácio
Braga. Tel. 911 739 926
compromisso de sustentabilidade
do hotel, que utiliza embalagens
Volver de Carne Y Alma ou Uber Eats Tel. 262 824 300 Há cabrito assado no forno, com com zero plástico. Há um menu
Lisboa. Tel. 217 598 980 Há pastéis de bacalhau, patanis- A pensar na Páscoa há uma arroz parolo e grelos salteados, composto pelo cabrito assado
cas com arroz de feijão, à Brás, à seleção de vários tamanhos de pernil fumado com batatinhas e no forno para dois, acompanhado
lagareiro, com broa e um menu camarão, já preparados, bem como arroz da avó, lombo de bacalhau com batata no forno à camponesa,
familiar, com 4 pratos, 4 sobre- sapateira e santola recheadas, à lagareiro com cebolada de alho, grelos salteados, arroz de miúdos,
mesas, 4 pastéis de bacalhau e 1 maionese de lagosta, salada de bacalhau à lagareiro e arroz de pão da aldeia aromatizado e uma
garrafa de vinho. Em encomendas búzio e de lingueirão. Pode ainda tamboril com gambas. Para a so- garrafa de vinho selecionada da
superiores a €15, oferecem uma escolher mexilhão, amêijoa, berbi- bremesa há pão de ló, toucinho do garrafeira do restaurante. As en-
dose de bacalhau com natas. A gão, ostras, sapateira e santola. A céu, pudim Abade de Priscos ou comendas podem ser levantadas
partir de €10. partir de €20. bolo de bolacha. A partir de €15. na receção. A partir de €27,75.
Tem disponível em serviço de
take-away as empanadas salteñas Pizzarias Luzzo
de carne, o chorizo artesal argen- Glovo e Uber Eats
tino, o arroz ‘porteño’ envelhecido As pizzas, confecionadas em forno
— risotto carnaroli, cogumelos de lenha, seguem a base da pizza TABERNA DO CALHAU queijo de cabra do “Adolfo”, entre outras delícias
silvestres y óleo de trufa —, o romana, de massa fina e crocante, como azeite, enchidos e, claro, os vinhos.
hamburguer black angus argentina
com molho volver y pickles arte-
combinadas com ingredientes e
sabores portugueses. Além das O Calhau Rolante Encomende a partir de uma vasta seleção
(conjunto de três desde €28), que pode
sanais. As recolhas “sem contacto” pizzas, existem ainda entradas, consultar na página de Facebook da Taberna do
são entre as 19h e as 21h. Para saladas e sobremesas. As entregas Calhau. As reservas podem ser feitas através do
encomendas superiores a €60, estão disponíveis nas lojas da Agora chama-se Calhau Rolante este projeto tel. 215 851 937 ou e-mail tabernadocalhau@
oferece-se uma garrafa de vinho zona de Lisboa, Loulé, Guimarães, de Leopoldo Garcia Calhau que leva a casa os gmail.com com alguma antecedência. “A ideia
argentino Malbec. Figueira da Foz e Tavira. A partir melhores petiscos da Mouraria, em Lisboa. Há é promover o que está disponível nas 48 e 24
de €15. refeições “para as pessoas finalizarem em casa, horas antes, e produzir na véspera e na manhã
Jaquinzinho guarnições várias, caldos e molhos”. A carta dos dias da entrega”, explicam. Há descontos
Lisboa. Tel. 213 950 100 e Glovo A Tendinha não é fixa, recomenda-se uma passagem pelas para quem levantar na Taberna.
Choco frito, tártaro de dourada Sintra. Tel. 916 172 030
redes sociais do restaurante, já que vai variando
com picado de manga, gelado Há camarão à guilho e espetada
de maracujá e chuchu braseado mista à Tendinha. Mas aqui o des-
consoante aquilo que “houver no mercado”,
ou lascas de robalo, com arroz de taque vai para as mariscadas para explica Leopoldo Garcia Calhau. Mas deixamos
tinta de choco, molho tailandês e dois. A simples leva amêijoas, sa- ideias como as migas de espargos, a barriga de
berbigão, são algumas das opções pateira, camarão cozido, mexilhão, porco bísaro cozida e seu caldo, as bochechas
disponíveis. Acompanhe com percebes, ostras e arroz do mar. Há de vaca estufada, os tordos depenados para
cocktails como o Barba Rija, a as opções com lavagante ou com fritar, ou a cabeça de borrego assada desfiada.
Maresita ou o Sem Espinhas. lagosta. A partir de €20. Também há pão alentejano, queijo fresco e

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Saiba mais sobre estas e outras sugestões em
boacamaboamesa.expresso.pt

bebidas Peixaria Centenária


Lisboa. Tel. 934 130 738
Brejinho da Costa
Leiria.
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Estão disponíveis os Colheita
branco e tinto, a gama Selec­
tion, o Exclusive Alvarinho e o
Exclusive Cabernet Sauvignon.
Conte ainda com os Reserva tinto
e branco e com os topo de gama CERVEJA LETRA Garantem que saiu da lota à noite
Comendador, igualmente tinto e e que pode estar à mesa para
branco. Como novidade, há ainda
o Orgânico branco. As entregas na
Para provar de A a G o almoço. Basta ir à página da
internet e escolher, que ele chega
região de Leiria são grátis. A partir a casa, com todas as garantias
de €20. Apesar de a última letra deste alfabeto apresentam no mercado quatro gamas de segurança. Há robalo, bifes de
cervejeiro, a G, estar quase a esgotar, principais de cerveja. A Letra de A a G é atum, ovas de pescada, chocos e
O Açude há boas razões para passar a Páscoa na a gama base, a Letra on Oak apresenta douradas. Se pretender, o peixe é
Coimbra. Tel. 912 214 682 companhia destas cervejas. Uma delas é cervejas envelhecidas em diferentes amanhado à vontade do freguês
Além de já servirem o melhor
a Words to Live By, uma cerveja perfeita barricas de madeira e a Letra Craft ou até apresentado sob a forma de
que a cozinha produz, a grande
novidade é a venda de vinhos da
para os fãs das IPA, feita em colaboração Trials são cervejas experimentais e um fishburger de atum. As entre­
fantástica garrafeira, numa espé­ com a Alefarm Brewing. A Words to exclusivas. Termina o portefólio a Letra gas são feitas apenas no concelho
cie de escolha cega. Por €30 ou Live By é uma Double IPA DDH com Collabs, criadas em colaborações com de Lisboa, A partir de €40.
€40, recebe em casa seis garrafas 30g/l de lúpulos em Dry Hopping. O outras marcas e projetos. A partir de
à escolha da casa ou, então, pode projeto cervejeiro surgiu em Vila Verde 12 garrafas, os portes são grátis. As A Vaca by L’Vivo
na página da internet verificar a e demorou três anos só de investigação encomendas, no mínimo de 6, podem Lisboa. Tel. 916 944 471
disponibilidade e encomendar os e desenho da estratégia de marca. Já ser feitas pela internet ou pelo tel. 253 Nesta altura de Páscoa, a atenção
vinhos que pretenda. A partir de: ganharam 15 prémios internacionais e 321 424 . A partir de €20. é dada ao cabrito nacional, ven­
€30. dido inteiro ou, em alternativa, ao
cabrito estonado, já pronto para ir
Real Garrafeira
Batalha. Tel. 911 700 624
mais local Licor de Fátima, com
apenas um clique. Há centenas
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Torres Vedras
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de carne e não aprecie cabrito
de vinhos em catálogo, onde se A generalidade dos vinhos estão Caxamar pode sempre contar com uma
destacam os champanhes e os disponíveis para entrega em casa, Seiça. Tel. 249 543 063 vasta seleção de carne maturada
espumantes, bem como a vasta mas a gama Dory tem uma cam­ A recentemente inaugurada de alta qualidade pronta a entre­
oferta de Moscatel e de Vinho do panha simbólica de 10% de des­ loja online em caxamar.pt tem gar. Agora as entregas são a nível
Porto. O catálogo abrange a ge­ conto. Estes vinhos Dory evocam lombos gourmet, lombos salgados nacional. A partir de €17.
neralidade do país, com propostas a força, coragem e resiliência dos secos e lombos para demolhar,
de produtores mais exclusivos. antigos pescadores. Encomende bem como samos, bochechas e Irmãos Simões
Para uma Páscoa verdadeiramente São entregues em pouco mais através do e-mail enoturismo@ línguas de bacalhau à disposição. Frutas e Legumes
diferente, encomende Barca Ve­ de 24 horas em qualquer zona do adegamae.pt. As entregas são A seleção do chefe apresenta Sintra. Tel. 917 611 757
lha, Louis Roederer Cristal ou um país. A partir de €20. grátis. A partir de €35. caixas de cinco kg de lombos sal­
gados secos ou mais confortáveis
caixas de 600 gramas. Pode ainda
encomendar pastéis de bacalhau,
Casa dos Frangos em caixas de 12 unidades. A partir
de Moscavide de €20.
Rua Luís de Camões,
10, Lisboa. Mercearia dos Açores
Tel. 926 862 152 Lisboa. Tel. 218 880 070 O cabaz de Páscoa inclui uma alface,
Dizem já ter “muitos anos a
Há produtos de cada uma das agrião, alho francês, espinafres,
virar frangos” e assim é, uma vez
nove ilhas do arquipélago, do cebolas, alho, courgette, limão lom­
que a primeira destas casas que
todos os lisboetas conhecem já famoso Sumo Kima Maracujá aos bardo, abóbora, maçã, bananas, mo­
celebrou 50 anos de portas aber- bolos lêvedos e às conservas de rangos, clementinas, manga, papaia,
tas. Começou tudo com o frango atum de praticamente todos os framboesas, peras, laranjas, abacaxi,
assado, mas hoje já pode pedir produtores locais. O Chá Gorrea­ rúcula, rabanetes, manjericão, co­
entremeada, salsichas, espetadas na Verde Hysson e a Manteiga gumelos, mirtilos e batata para assar.
ou piano. Há também menus, com Artesanal da Ilha das Flores e a Custa €75. Mas pode escolher
acompanhamentos à escolha e Manteiga Artesanal Rainha do sempre o cabaz económico, o cabaz
bebidas incluídas. A partir de €10. Pico são outras das propostas. médio, fazer o seu próprio cabaz ou
Mas nenhum cabaz fica completo optar por um completo cabaz famí­
SELO DE QUALIDADE Em parceria com o Recheio, este sem o famoso Licor Maracujá do lia. As encomendas devem ser feitas
símbolo é a garantia de que o restaurante em destaque utiliza Ezequiel da ilha de São Miguel e até às 14h e são entregues no dia a
produtos das melhores origens e criteriosamente selecionados
sem os queijos de São Jorge e do seguir na região de Sintra e Lisboa. A
Faial. A partir de €10. partir de €15.

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D ESI GN
POR GUTA MOURA GUEDES

VICTOR PAPANEK LINA BO BARDI


Trouxe a ecologia e Arquitecta, humanista, radicada
sustentabilidade para o design e no Brasil, as suas obras não só
foi um verdadeiro activista propunham novas forma de
político. As suas ideias de habitar e viver, como tinham
inclusão, de justiça, de profundas raízes sociais.
igualdade, de responsabilidade
social e ambiental definiram
novos caminhos.

BUCKMINSTER FULLER
“Se não podes prever o futuro,

Desenhar o futuro
desenha-o.” Eclético e
integrador, tudo menos
NINA SIMONE
especialista, é considerado o pai
Livre pensadora, lidando
da consciência planetária, o
diariamente com a sua doença,
não só inovou de forma singular o Vamos precisar de quem pense de modo livre e visionário. primeiro grande defensor da
sustentabilidade, inovando em
universo musical como lutou
pelas causas políticas e sociais
De quem seja pragmático, rápido e responsável todos os campos do design,
engenharia e arquitectura.
do seu tempo.

A
manhã, sábado 11 de Abril, faz 25 anos futuro num mundo que mudou de forma ra-
que nasceu o meu filho mais novo, o dical e que sabemos agora ser muito menos
Manel. Já tinha o meu filho mais ve- controlável do que achávamos. O ser humano
lho, Rui Maria, feito 4 anos. Ambos assistiram, não está no comando do ecossistema Terra,
sem o terem escolhido, à criação da experi- está na sua dependência. As conquistas tec-
mentadesign e à escolha que fiz relativamen- nológicas e científicas, o poder do dinheiro e
te à disciplina que já na altura eu acreditava da imagem, deram-nos a falsa sensação de
ser uma das mais importantes para o futuro que dominávamos a vida e o planeta. Nada
da Humanidade, o design. Ambos cresceram disso se passa. Um vírus, e a forma primá-
RAY BRADBURY num mundo que embora tenha sofrido evo- ria que temos para o combater, fez soçobrar RAY E CHARLES EAMES
Brilhante escritor de ficção luções complexas, nunca se cruzou com com quase tudo aquilo que até agora nos servia de Revolucionários,
científica, anteviu — juntamente uma crise tão globalmente letal e transforma- estrutura e que ensinámos aos nossos filhos inventores, designers, criadores
com outros — muitos dos dora como esta. até Março de 2020. imparáveis, numa exploração
cenários e soluções que vivemos Tudo o que se anteviu como sendo as ca- Desenhar o futuro num contexto assim é constante de materiais e
actualmente. racterísticas mais importantes do design tem obra. Vamos precisar de quem pense de modo técnicas e um olhar atento
sido comprovado ao longo destes anos. E du- livre e visionário. De quem seja pragmático, sobre a sociedade.
rante esta crise, por muitos inimaginável, a rápido e responsável. Vamos precisar da eco-
contribuição do design tem sido expressiva, nomia mas igualmente da cultura e da ética.
mesmo que muitas vezes não saibamos que a De todos os que percebam a dinâmica impla-
origem da forma como atacaram este proble- cável entre acção e consequência, entenden-
ma tenha sido esta disciplina. do a cadeia de relações e de causas e efeitos
Sabendo que uma das soluções mais efi- que nos une dentro de um ecossistema em
cazes no que toca à propagação deste vírus que nós, humanos, somos apenas um dos ele-
é o confinamento, sabemos também que as mentos. Vamos precisar de aprender com os
consequências desta pandemia não são só que tiveram a coragem de mudar o mundo. E
MARIA MONTESSORI
Educadora, revolucionou a forma ao nível da saúde. Ao nível económico e so- de começar a desenhar. E de agir. HELEN KELLER
como a criança era vista e cial serão profundíssimas. Mais lentas, even- Embora pareça, não vamos ficar sempre Educadora, cega e surda desde
compreendida, criando um tualmente, do que a propagação geométrica em casa. b os dois anos, é um símbolo de
método de educação da covid-19, mas — se não fizermos nada — coragem, tendo-se dedicado às
alternativo, atento aos novos igualmente devastadoras. Vamos ser obriga- Guta Moura Guedes escreve de acordo causa humanistas, sociais e de
contextos e novas necessidades. dos, quer queiramos quer não, a desenhar o com a antiga ortografia defesa dos direitos humanos.

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M O DA
POR GABRIELA PINHEIRO

Dicas & Regras

O reinado da lingerie
É a revelação da estação que se avizinha.
Para usar e mostrar sem medo, com elegância
e confiança, preparando dias melhores

P
oucas peças ganharam tanta atenção Ainda é cedo para mostrar o efei-
ou viram o seu estatuto tão profun- to, porque a quarentena fechou-nos em
damente alterado quanto a lingerie. casa e vamos ter de esperar para estre-
Derrubado o tabu, aquilo que era para fi- ar esta combinação. Mas enquanto es-
car escondido aos poucos foi ganhando tamos confinados, podemos e devemos
visibilidade e onde antes víamos um erro continuar a dar muita atenção à lingerie
de styling, um desleixo ou até uma ex- que usamos, porque mais do que nunca é
cessiva provocação, passámos a ver uma importante manter alguma normalidade,
das mais poderosas tendências de moda. para nós próprios e também para o nosso
Mostrar a lingerie e usá-la para fazer um parceiro ou parceira.
upgrade do seu visual passou a ser regra. No top de tendências de roupa interior
Esta tendência reveladora mantém- encontramos os bodys rendados que além
-se cada vez mais forte no verão que se de serem extremamente sexy e elegantes,
avizinha, e a novidade esta estação é que também se transformam, caso não sejam

FOTOGRAFIAS GETTY IMAGES


podemos arriscar um pouco mais. Quem demasiado transparentes, em tops para
tem boa forma e coragem para arriscar uma saída mais arrojada. Outro must have
deve investir em usar apenas um blazer são os sutiãs coloridos e até em cores flú-
com um sutiã por baixo, de preferência or. Não deixe de aproveitar estes dias em
um sutiã não transparente e com algum casa para testar algumas destas ideias.
detalhe, como renda ou bordados, assu- Em breve vamos poder sair de casa e sur-
mido como peça exterior. preender o mundo com novos visuais. b

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DIÁRIO DE UM
PSIQUIATRA
POR JOSÉ GAMEIRO

ÍCONES
Quatro amigos
EM ‘SPRAY’ em isolamento
De Narciso Rodriguez, o nome por
detrás do icónico perfume For Her,
Preocupamo-nos com o futuro, não o nosso, mas
chega uma nova forma de aplicar dos nossos e dos que mais vão sofrer com tudo isto

S
quatro fragrâncias da sua linha
através de um novo frasco com um omos um puzzle complexo sem nunca me pedirem conselhos
vaporizador especial e um formato que de laços afetivos, no tempo. médicos. Seria um pouco como falar
convida a usar e abusar. “Uma forma Dois já nos conhecemos há 50 com um curandeiro, após tantos anos
de intensificar a experiência e de a anos, com o tempo ficámos amigos. longe da “verdadeira medicina”.
tornar ainda mais sensual”, garante Este meu amigo conhece os outros No fim, entre pagar a conta e
o criador americano de origem cubana.
dois, há cerca de 25 anos. Estes sairmos, por vezes, passava uma hora,
narcisorodriguez.com
dois também se conhecem desde marcávamos o próximo.
o mesmo ano. Eu conheço um dos Dois são quase infoexcluídos,
outros três há 25 anos. O quarto, ainda usam agenda de papel. Várias
que já conhecia os outros dois, só o vezes fizemos corridas, quem
conheço há um ano. conseguia marcar primeiro. Os do
REGRESSO Complicado, não é, mas é assim papel ganharam sempre, os dos
AO DOBRÁVEL que se constroem relações, mesmo
quando já todos temos “alguma
telefones perderam sempre...
Depois veio a pandemia.
Já aqui tínhamos trazido o Galaxy S20 idade”. Desde o início dos almoços que
Ultra, mas na mesma altura foi ainda Entre os quatro sempre existiram já tínhamos um grupo no WhatsApp.
apresentado um novo Samsung que encontros cruzados, mas só há cerca Era pouco utilizado.
recupera o conceito concha. O Galaxy de um ano começámos a fazer um Mal o isolamento social começou,
Z Flip dobra-se para caber no bolso almoço mensal. disparou. Enviamos fotos, dos
e fá-lo através de um vidro flexível. Sempre no mesmo restaurante e passeios matinais, das refeições, do
A forma, extremamente compacta, sempre a comer a mesma coisa. Para que estamos a fazer, do que vamos
é o que salta à vista, mas este quê mudar, quando se gosta muito fazer, do que pensamos de tudo isto,
pequeno smartphone tem grandes de um prato. Coisa de velhos, dirão de artigos da imprensa nacional e
características, destacando-se um alguns, experiência da vida diremos estrangeira que são sérios, de piadas
impressionante ecrã AMOLED nós. mais e menos picantes. Apesar de
de 6,7 polegadas. Estes repastos chegavam sermos um grupo de homens —
samsung.com a demorar três horas, sempre preconceito claramente machista, que
procurámos marcá-los para um dia eu assumo —, filtramos as brejeirices,
em que não tivéssemos compromissos acho que tenho três amigos pouco
apertados no tempo. dados a enviar fotos mais arrojadas.
Falava-se de tudo, até se fofocava, O futebol acabou, resta-nos a
DOCE PÁSCOA quem pensa que é apanágio das política.
mulheres está completamente Claro que não pensamos o
Como tornar mais doces estes dias de isolamento social? A Joana Reymão
enganado. Uns com mais novidades, mesmo, mas, nas questões de fundo,
Nogueira Doçarias tem a resposta e propõe um cheesecake de framboesa,
outros mais discretos e ouvintes, estamos quase sempre de acordo.
um merengado de noz e amêndoa ou um chiffon de chocolate. Estes são
ríamo-nos muito e gozávamos uns Comentamos os nossos líderes,
apenas três doces exemplos do que lhe pode entrar, casa adentro, nesta
com os outros. contamos pequenas histórias que
Páscoa. A JRN recorre às tradicionais receitas de família, com sabores para
O futebol era garantido para picar vamos sabendo, preocupamo-nos
todos os gostos e ingredientes que vão da fruta às compotas caseiras,
dois de nós. Um é adepto ferrenho de com o futuro, não o nosso, mas dos
passando pela massa crocante e chocolate belga. Pode encomendar-se
um clube que só lhe causa dissabores, nossos e dos que mais vão sofrer
online na internet em jrn-docarias.com, por correio eletrónico através do
outro de um clube que mantém ainda com tudo isto. Há uma coisa em que
endereço encomendas@jrn-docarias.com ou contactando o 914 303 881.
a esperança de voltar a ser um grande estamos todos de acordo, mesmo que,
jrn-docarias.com
clube. antes, tivéssemos sido críticos. Agora,
Os outros dois não percebem nada admiramos o estoicismo e a coragem
de futebol, mas sabem o suficiente de quem consegue manter um ar
para pequenas provocações. Depois calmo e que nos dá confiança.
quando falam de golos e jogadas que O que começou por ser um puzzle
se passaram há muitos anos, quando é hoje um grupo sólido de amigos,
os seus clubes sabiam jogar futebol, que, apesar de terem uma média de
ficamos calados... idades de cerca de 70 anos, se adaptou
Claro que íamos sabendo das perfeitamente às redes sociais e,
nossas famílias, contando pequenas assim, quebram o isolamento social.
histórias dos nossos filhos, dos Viva a amizade. b
nossos achaques de saúde, felizmente josemanuelgameiro@sapo.pt

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PASSAT E M POS
POR MARCOS CRUZ

Sudoku Fácil Palavras cruzadas nº 2316

2 4
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
5 7 6
3 9 8 1
1 5 7 6 8 3 4
2
4 1
8 7 5 9 1 6 3 3
3 9 7
4
9 8 6
4 2 5

Sudoku Difícil 6
4 5 7
7
1 6 9 7 8
2 6 8
7
9
5 1 4 8
9 10
4 9
8 5 1 3 9 11
9 3 2
Horizontais Verticais Soluções nº 2315
1. Guardiões de dinheiro alheio 1. Santa de Lurdes 2. Conduz a voar. HORIZONTAIS
Soluções 2. Viveu no paraíso. Indica uma Grande fúria de baixo para cima 1. Resistência 2. Oliveira;
Fácil Difícil quantidade 3. Grande em São Miguel. 3. Legume da família das couves. DS 3. cibernautas
4. Ásia; fada 5. mil;
6 1 8 5 9 2 4 3 7 2 5 1 7 6 4 3 8 9
Os muçulmanos adoram-no Apagam velas 4. País escolhido
patrões 6. boato; ea
4 2 3 6 7 8 9 1 5 9 3 4 1 5 8 6 7 2
4. Nega à partida. Penso como pelos duques de Sussex 5. Não se
7. OS; alargada
7 9 5 4 1 3 8 2 6 8 7 6 9 2 3 1 4 5
3 6 1 9 5 7 2 8 4 5 2 9 6 3 7 4 1 8 Descartes 5. Já foi coligação. repete. É masculino 6. Fica para cá
8. farmácia 9. Ester;
8 5 7 1 2 4 3 6 9 6 8 7 4 9 1 2 5 3 D. Sancho II 6. Uma flor com muitas dos Urais. A imaginação tem-nas
Idos 10. arte; torce
2 4 9 3 8 6 7 5 1 4 1 3 2 8 5 7 9 6 cores. A quanto obrigas 7. Voa sem 7. Representação visual 8. A parte
11. aliastes; os
5 7 2 8 4 1 6 9 3 1 6 8 5 4 2 9 3 7
tripulação nem telecomando. Peças de trás. Desprovido de argumento
de embarcação 8. O golpe que dedutivo 9. Arte de falar. O generoso VERTICAIS
9 8 6 7 3 5 1 4 2 3 4 2 8 7 9 5 6 1

1. Rocambole 2. Elísios;
1 3 4 2 6 9 5 7 8 7 9 5 3 1 6 8 2 4
derruba governos mas mantém fá-lo com gosto 10. República
regimes 9. Antes das noites 10. Faz fantoche que Mussolini estabeleceu sal 3. sibila; tri 4. ivea;
como o canhão. Modernas de Antero no Norte de Itália. Passado recente tafetá 5. ser; polares
de Quental 11. Aqui está. Pode levar 11. A pura é virgem. Sem rugas. 6. tinta; ar 7. era; térmite
Palavras Cruzadas Premiados do nº 2314 8. naufragados 9. tão;
ao abuso. Tem alfinete próprio Como um pero
“Encontra-me”, de André Aciman, para açor 10. idade; disco
Francisco Branco, de Ovar; “História de Uma 11. assas; aa; es
Família Decente”, de Rosa Ventrella, para Pedro
Chaves, de Benavente; “Génesis”, de Edward
O. Wilson, para José Carvalho, de Guimarães. Participe no passatempo das Palavras Cruzadas enviando as soluções por correio para
Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos ou por e-mail para passatempos@expresso.impresa.pt

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Q U E CO I SA SÃO AS N UVE N S

O
A PERGUNTA DECISIVA
A FREQUÊNCIA COM QUE OS TERMOS CATÁSTROFE E TRAUMA APARECEM
CITADOS TESTEMUNHA COMO O GRAU DE SOFRIMENTO COLETIVO CRESCEU.
E, INFELIZMENTE, CONTINUARÁ A CRESCER
devastador impacto da covid-19 O segundo é o “axioma de Cyrulnik”. Boris Cyrulnik é um
sobre as nossas sociedades tem neuropsiquiatra francês, de origem judaica, que viu os pais
sido colhido, tanto por peritos morrer em Auschwitz, e tem hoje uns belos 82 anos. A sua tese
como na perceção popular, como sobre o trauma é que ele, se não é certamente reversível, pode
uma catástrofe e um trauma. São ser, no entanto, reparável. Tal implica não pretender regressar ao
palavras com um sentido preciso estado precedente, mas pacientemente passar para uma etapa
sobre o qual convém refletir. nova. A ferramenta que Cyrulnik propõe é a resiliência, uma
Uma catástrofe ocorre quando categoria que ele recupera da Física. Trata-se ali da capacidade
a maior parte ou a totalidade de de um metal resistir a choques sem se despedaçar. Também nós
uma comunidade é fortemente humanos precisamos de resiliência para que, uma vez feridos,
condicionada por uma disrupção isso não nos retire completamente a confiança na vida, nem
inesperada: as rotinas ficam inviabilizadas, o conjunto da obstaculize para sempre a alegria de que somos herdeiros.
estrutura social estremece e a comunidade não consegue, com Foi estes dias publicada, em Itália, a primeira sondagem sobre
os recursos próprios, fazer frente às gravíssimas necessidades a espiritualidade em tempos de pandemia. Um primeiro dado
que emergem. Quanto ao trauma, pode ser útil recordar o verificável é que não aconteceu uma deserção dos crentes,
que dizia Freud: um trauma é uma agressão que, por ser que continuam nos 70%, nem os não crentes alteraram
imprevisível, nos encontra sem defesas, e traz por arrasto a substancialmente o seu posicionamento, mantendo-se os
implosão violenta da nossa representação ordinária do mundo, 27% da população. Mas há uma curiosa pontuação em duas
confinando-nos a um incapacitante estado de angústia. A afirmações: naquela que defende que este é um tempo propício
frequência com que os termos catástrofe e trauma aparecem para sermos mais humanos e solidários; e naquela que afirma
citados testemunha como o grau de sofrimento coletivo cresceu. que a atual situação provoca, com maior intensidade, a que nos
E, infelizmente, continuará a crescer, pois os danos provocados coloquemos a questão sobre o sentido da vida. Os axiomas de
alteram a fisionomia da nossa existência comum. Porém, Quarantelli e de Cyrulnik são ajudas importantes no imediato,
muitos se começam a interrogar, com razão, sobre como será o mas ainda têm a ver com as realidades penúltimas. A busca
pós-covid-19. do sentido da vida pede, porém, que levemos o coração até
Nas ciências humanas, há dois axiomas esperançosos para àquela última. E essa é que representa para todo o ser humano a
o tempo de reconstrução que se reabrirá. O primeiro é o pergunta decisiva.
“axioma de Quarantelli”. Enrico Quarantelli (1924-2017) foi um Os cristãos, em cada Páscoa, é isso que fazem: expõem-se
importante sociólogo norte-americano, que se especializou no à radical pergunta pelo sentido das suas vidas e da vida do
estudo de reação aos desastres. As suas conclusões sublinham mundo. E, no anúncio que as mulheres vêm fazer aos discípulos,
que as catástrofes geram mais cooperação que conflito, de que o sepulcro de Jesus está vazio, tateiam uma verdade
avizinham as pessoas como nunca, democratizam a vida social definitiva que resgata a vida e a morte. Pois, como explicou
e fortalecem a identidade comum. Há novas organizações (ad São João no Livro do Apocalipse (21:4-5), as coisas como eram
hoc ou mais estáveis) que se criam, reforçando a coesão da anteriormente passaram: em Cristo Ressuscitado, Deus faz novas
sociedade para uma resposta concreta e eticamente qualificada. todas as coisas. b

PRECISAMOS DE
RESILIÊNCIA PARA QUE,
UMA VEZ FERIDOS, ISSO
NÃO NOS RETIRE
COMPLETAMENTE A
CONFIANÇA NA VIDA, NEM
OBSTACULIZE PARA / JOSÉ
SEMPRE A ALEGRIA DE TOLENTINO
QUE SOMOS HERDEIROS MENDONÇA

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Até quando
ficaremos isolados?
Informação credível para um debate sério.

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É para a vida.
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por

Atividades para fazer em


casa, em FAMÍLIA
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JANELA PARA A RUA
CONCERTO
A música continua!
No site da Fundação Gulbenkian podes ver e ouvir
concertos, documentários, vídeos educativos sobre
os instrumentos da Orquestra Gulbenkian e os
bastidores do Grande Auditório.
www.gulbenkian.pt/musica/a-musica-continua
COVID-19 TROCADA POR MIÚDOS
BAILADO
A Perna Esquerda de Tchaikovski
AFETOS EM TEMPO DE CORONAVÍRUS A convite da Companhia Nacional de Bailado, Tiago
Rodrigues escreve e dirige uma peça em torno da
memória do corpo da bailarina Barbora Hruskov. Ao
Estamos todos juntos na luta contra o aumento dos efeitos da covid-19. Como tal, é preciso som do piano de Mário Laginha, o espetáculo está
continuarmos atentos à forma como este novo coronavírus se comporta e fazer o que está ao disponível de 10 a 17 de abril.
nosso alcance: lavar muitas vezes as mãos, ficar em casa, manter a calma e cuidar da família www.facebook.com/CNBportugal

J á te questionaste sobre o nome da


doença que nos está a obrigar a todos
a ficar em casa? “Covi” significa coro-
navírus, “d”, doença, e “19” é o ano em que foi
detetada pela primeira vez (2019).
PASSEAR O CÃO NA RUA
É importante que leves o teu cão à rua, embora
sempre acompanhado pelos teus pais ou pelo
teu irmão mais velho. Há algumas regras que
devem ser cumpridas: passeia-o num local mais
CINEMA
Curtas em casa
O Cinanima - Festival Internacional de Cinema de
Animação de Espinho lançou em canal aberto, na
plataforma Vimeo, todos os filmes realizados no
Estamos sempre a ouvir dizer que a covid-19 isolado, com poucas pessoas; evita o contac- projeto Crianças Prime1rº. Este programa contem-
afeta principalmente pessoas idosas e com to com outros animais e também com outras pla 21 curtas-metragens.
doenças mais sérias, mas o vírus que origina pessoas na rua; recolhe os seus dejetos e coloca-os www.vimeo.com/showcase/6917864
esta doença, o SARS-CoV-2, pode infetar no lixo, com muito cuidado; lava as patas do teu
pessoas de todas as idades. Embora seja ainda animal com água e sabão, bem como as tuas
incerto, não se exclui a hipótese de poder mãos, assim que chegarem a casa. HORA DO CONTO
afetar também os animais. Há notícia de um Aqui há Gato
gato diagnosticado com covid-19 na Bélgica. DISTÂNCIA DE SEGURANÇA Para animar a casa, a livraria Aqui há Gato transmite
As pessoas com infeção por covid-19 não devem em direto, todos os dias, no Facebook e no Instagram.
ANIMAIS E RISCO DE TRANSMISSÃO estar perto dos animais, evitando fazer-lhe uma hora do conto bem divertida, às 11h30 e às 21h. .
Um grupo de especialistas da Organização festas, por uma questão de precaução, já que www.facebook.com/aquihagato.livraria
Mundial da Saúde, que tem estudado muito ainda não existem pistas suficientes que compro-
esta nova doença e as suas consequências, vem que a doença não se transmita das pessoas
defende que não existem pistas suficientes, para os animais. Por agora, certifica-te que o teu MUSEU
que comprovem a possibilidade de os animais animal de estimação tem alimentação por algu- Uma viagem pela arte moderna
transmitirem a covid-19. Até então, a doença mas semanas e que está confortável. Cuida dele Ao longo de 12 semanas, o Museu Coleção Berardo
só passa de pessoa para pessoa. e dos que te rodeiam. Esta é a altura em que tens apresenta diferentes folhas de sala que te levam
de ser um verdadeiro guardião da família. numa viagem pelos movimentos de arte moderna,
IR AO VETERINÁRIO: SIM OU NÃO? incluindo informações sobre alguns dos artistas
Se tiveres alguma suspeita de que o teu cão, presentes na coleção. Clica em MCB_OnlineKids.
o teu gato, o teu coelho, o teu porqui- www.museuberardo.pt/educacao/atividades
nho-da-índia, ou outro animal de ALERTA ESTADO DE EMERGÊNCIA
estimação, tenham sido infetados, O estado de emergência no país foi alargado
informa de imediato os teus pais. até 17 de abril: uma das medidas foca-se nas
A lógica aqui é a mesma do que deslocações. Para impedir que as famílias saiam
a dos adultos. Primeiro, devem da segurança da sua casa, o Governo decidiu
ligar para a clínica veteriná- que não se pode viajar para fora do concelho de
ria, altura em que será feito um residência, até 13 de abril. Além disso, reforçou a
pequeno teste (triagem) por tele- importância de respeitar as autoridades e todas
fone ou por uma videochamada e, só as outras regras estabelecidas.
depois, será tomada uma decisão.
OFICINAS E JOGOS
A minha casa é um laboratório
No site da Ciência Viva encontras atividades cien-
FICHA TÉCNICA: Diretora-geral: Madalena Nunes Diogo | madalena.lampreia@estrelaseouricos.pt tíficas para fazer dentro de casa. Da cozinha à casa
Editora Executiva: Joana Leitão | joana.leitao@estrelaseouricos.pt; Redatoras: Inês Almeida, Cemiclay Santos; Estagiária: Maria Calderón
Projeto gráfico e paginação: Sara Rosa; Fotografias: Istockphoto de banho, passando pela garagem, nenhuma divisão
Estrelas & Ouriços, Lda R. Calvet de Magalhães, 242 | 2770-022 Paço de Arcos | NIPC: 508 194 195 | Empresa Jornalística nº 223 768 fica de fora. Aqui, há também jogos educativos,
www.estrelaseouricos.sapo.pt virtuais ou de tabuleiro, livros e curiosidades.
www.cienciaviva.pt/ciencia-viva-em-casa

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FAZ UMA HORTA EM CASA!
É mais um incentivo à alimentação saudável e uma forma de poupar.
Ter uma mini-horta doméstica e cultivar os próprios legumes evita
também as idas ao supermercado. Toma nota do que precisas para
avançar com este projeto e dos cuidados que deves ter

TUDO COMEÇA NA ALIMENTAÇÃO

C onsumir produtos biológicos é a esco-


lha de muitas famílias e têm efeitos
positivos a vários níveis. Além de
terem mais nutrientes e vitaminas, não têm
pesticidas nem adubos químicos, tornando
florestas verdes, hoje habitam hectares de
campos de cultivo, que levaram à erosão do
solo. E mais: os pesticidas usados poluem os
lençóis de água existentes no subsolo. Esta é,
aliás, das indústrias que polui mais e que conso-
mais saudável tanto a alimentação como o me mais água potável.
ecossistema agrícola. Resumindo: os produtos biológicos são a
É importante saberes que a produção agrícola melhor opção para dar energia ao teu corpo e PREPARAR. Faz pequenos furos na
em massa tem vários prejuízos para o nosso ao planeta. Para dares o teu contributo neste base do vaso ou do objeto que tenhas
planeta. Onde, em tempos, se encontravam processo, faz uma mini-horta em casa! escolhido, para que a água que usares
para regar possa escoar e não deixar a
raiz apodrecer.
DA IDEIA À HORTA: ONDE PLANTAR?
PLANTAR. Enche a base com uma
O QUE É PRECISO? Escolhe um canto da casa que tenha luz solar direta porção de terra (rica em nutrientes e em
Independentemente do que escolheres plantar, e que seja arejado - as plantações precisam de matéria orgânica), coloca as sementes e
os elementos necessários são sempre os mesmos: pólen para fertilizarem. De seguida, pensa onde vais volta a cobri-las com terra. Se, em vez de
sementes - se tiveres oportunidade de comprar é o optar por plantar: em vasos, garrafas ou garrafões de sementes, utilizares uma raiz ou um pé de
ideal, mas também podes usar as que encontras dentro plástico (cortados ao meio), baldes, floreiras, caixas de planta ainda em fase de crescimento, faz
dos vegetais e da fruta, por exemplo no morango e no madeira ou outros objetos. As opções são muitas. Até um pequeno buraco na terra para enter-
pepino; água q.b.; uma porção de terra, de preferência as botas impermeáveis do teu irmão mais velho podem rares apenas a raiz.
com adubo orgânico e área bem iluminada de luz natural. ser adaptadas a vasos, com uma pintura e uns toques
originais e criativos! Se tiveres a sorte de ter um jardim REGAR. Deves tratar da tua planta-
ou quintal com espaço, planta as sementes direta- ção diariamente, regando-a de manhã
O QUE PLANTAR? mente na terra. cedo ou à noite, de forma a deixar a terra
húmida. Cuidado com o excesso de água!
A primavera é uma excelente estação para as plan- A exposição à luz solar deve ser de, pelo
tações. Nesta altura do ano, podes plantar pepinos, menos, cinco horas.
alfaces, tomates, rabanetes, brócolos, espinafres,
agrião, entre muitos outros legumes. Só precisas de ter COLHER. Como o espaço é limitado,
em atenção o espaço de que dispões e quais os legu- Arranja uma batata-doce ou um caroço de abaca- não deixes que a plantação chegue ao seu
mes que mais se consomem em casa. te e um copo de vidro cheio de água. De seguida, pico de crescimento, uma vez que a raiz
As plantações mais fáceis de cuidar são as ervas espeta alguns palitos na batata e mergulha-a não vai ter espaço para se desenvolver e
aromáticas, como a hortelã, a salsa e os coentros. Estas no recipiente. Os palitos vão permitir que fique acabará por morrer. O mais natural é que
aliadas perfeitas para uma refeição equilibrada podem à superfície. Em apenas alguns dias, verás folhas nas tuas refeições entrem mini alfaces e
substituir o sal. verdes a brotar. pequenos rabanetes!

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Como um verdadeiro investigador, procura as pistas, finta os erros, vira as palavras do avesso e
encontra-lhes sentidos. Descobre as letras que subiram ao sótão e põe os pontos nos “is”

1. PERDIDOS EM CASA
2. ENCONTRA AS LETRAS
Encontra as 10 palavras começadas por “ca” na casa das letras
O sótão da avó Lucinda está cheio de objetos interessantes.
Será que encontras todos os que começam com as letras do
CAIXA nome da avó?
CAMISA
CARRO
CANTAR
H FML S CA RRO T CAJU
C U P V I N J
A AMA R I C CAFÉ
MA L U F C R ANCA CANDEEIRO
É I S CCAN TA RN
L O A R A I C GO H D CAMÉLIA
I U C QWX E A R T E CALÇADO
AYUA I AO P J Á E
S D F GMH J K L U I CANOA
Ç Z XCV I B NCMR
MC K I U B S CA É O
CA L ÇA DOAN L I
R F L O P WXO J A
R É U I S E RA Í O

2.Soluções: Lupa; Urso de peluche; Carro; Io-io; Novelo; Dado; Ampulheta

3. PALAVRAS BARALHADAS
Que confusão! A lista de compras da mãe caiu ao 4. LETRAS IGUAIS PALAVRAS DIFERENTES
chão e as letras ficaram todas baralhadas. Organiza-a
e descobre que alimentos é necessário comprar Com cada um destes grupos de quatro letras constrói cinco palavras
1.
A S SAl 2.
O L
L C G A
LISTA 4.Soluções: 1.Sal, Casa, Saca, Asa, Lasca | 2.Lago, Gola; Galo; Olga; Algo

AFTRU
EILET
ETNMAIAG 5. CORRIGE O TEXTO
ZAIETE Alguém baralhou a pontuação do texto da professora de português.
Assinala a que está errada e corrige
GEMLUSE
XEPIE O macaco Juliano foi às compras com a mãe ao mercado! Quando
chegou ao balcão deixou cair a fruta toda no chão: Pum. Que
grande estrondo? Juliano ficou envergonhado e pediu desculpa à
3.Soluções: Fruta, Leite, Manteiga, Azeite, Legumes, Peixe
mãe que perguntou. O que se passa contigo meu rapaz…

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À conversa com...
, ! No Parapeito
da Janela
H á três semanas que o António espreitava o mundo através
da janela do seu quarto. A rua onde, muitos dias antes, as
crianças jogavam à bola, estava agora vazia, em silêncio.
- Estás bem, António?
A mãe falava incrivelmente baixo, por aqueles dias. Já a ele,
ENTREVISTA SARA RODI parecia que lhe tinham tirado o som. A mãe estava preocupada,
e o António sabia, sem que ninguém lho tivesse explicado, que
não devia interromper as preocupações dos adultos. Podia aliviar
“A IMAGINAÇÃO as preocupações, isso sim, se abraçasse a mãe ou a ajudasse a
PODE SER UMA BOA fazer o que tinha de fazer. Mas sem palavras. Devia guardá-las
para o momento certo. O problema é que a mãe não parava de
FORMA DE LIDARMOS se preocupar, e o seu momento certo nunca mais chegava...
Foi assim que o António aprendeu a falar para dentro. Falava
COM TUDO ISTO” para dentro com a mãe, mas também falava para dentro
com o limoeiro da sua rua. Afinal de contas, ele também
falava para dentro. Estava, tal como ele, preso àquele lugar.
Ele do lado de dentro da sua casa, o limoeiro do lado de fora.
Também estranhando, certamente, a ausência do riso das
crianças e das bolas a saltar...
Estava colado ao vidro da janela, pensativo, quando um
Sara Rodi nasceu no Porto, em 1978, rodeada de histórias que a mãe lhe caracol se abeirou do parapeito da sua janela. O António
lia e que as vizinhas lhe contavam. Descobriu cedo a magia da escrita olhou-o, curioso, e disse-lhe “olá” em silêncio. Mas o cara-
col estava com fome de conversa...
e nunca mais a largou: é escritora, argumentista e mãe de quatro filhos. - Porque é que as ruas estão tão vazias?
- Não sabes? – perguntou o António, falando por fim. – As
Expressinho (E) - Escreveu o primeiro livro apanho, elas continuam a sua viagem e vão ruas tornaram-se perigosas. Temos todos de ficar em casa.
aos seis anos. O que a motivou? A partir daí, bater à porta de outra pessoa qualquer. - A sério? – lamentou-se o caracol. – Mas eu ainda agora saí
nunca mais se separou desta paixão… Temos de estar recetivos. E ser proativos. da minha. Acabei de acordar para receber a primavera.
Sara Rodi (SR) – Sempre fui uma criança - Ah, hibernaste? – percebeu o António.
sonhadora, que imaginava mundos à sua E - Com quatro filhos, como gere o dia a - Sim, estava muito frio. Então eu fiquei quietinho, dentro da
volta. Aos seis anos tive um sonho especial, dia para conciliar o trabalho e a família, minha casa, à espera do bom tempo.
com um pico que eu tirava do dedo e se nomeadamente no tempo em que esta- - Eu também estou fechado em casa, à espera da altura
tornava meu amigo, e decidi transformar mos a viver? certa para sair. Mas não posso ficar muito quieto. A minha
essa história em “livro”, com a ajuda da SR – Os meus filhos são uma enorme fonte mãe diz que tenho de fazer exercício. E comer bons alimen-
minha mãe. Entregá-lo depois às pessoas de inspiração. Roubam-me muito tempo e tos, para ficar forte e saudável.
de quem mais gostava foi outra experiên- energia para escrever para os adultos, mas - Eu não como, quando estou hibernado. Só fico parado.
cia mágica. Percebi que as palavras não fizeram-me descobrir a escrita para crian- - E em que é que pensas, quando paras? – questionou o
tinham só impacto em mim. Podiam mudar ças. Os tempos que vivemos são estranhos António.
também a vida dos outros, fazê-los sorrir, para todos, mas acredito que a imaginação - Penso no dia em que vou sair da minha casa, e vou estar
torná-los melhores... pode ser uma boa forma de lidarmos com com os outros caracóis.
tudo isto. Todos os dias fazemos o nosso - Então temos isso em comum...
E - Até onde vai o poder da palavra e, momento de leitura, em família, e eu parti- - E dizes tu que é melhor enfiar-me novamente em casa? –
neste sentido, qual o papel mais nobre do lho muito com os meus filhos as ideias que questionou o caracol.
escritor? tenho para os próximos livros. - Tu não precisas. São só os humanos.
SR – Os escritores podem escrever por - Ah! Mas não te preocupes. Um dia também vai chegar o teu
muitos motivos. Às vezes, só porque preci- E – Das dezenas de livros que já escreveu, momento certo para saíres de casa. Só tens de ser paciente.
sam de escrever. Mas, entendendo o poder qual deles se adaptaria melhor à fase que - Tu deves ter muita paciência, caracol. És tão lento!
das palavras, e o impacto que elas terão estamos a (ultra)passar? - Sabes que a pressa nem sempre nos leva onde podemos
nos outros, não há como não respeitá-las SR – Ironicamente, escrevi em tempos um ir. E não nos deixa saborear a viagem.
e cuidar delas muito bem. Há muitos livros livro chamado “Para onde foram as crian- - E para onde vais tu agora, caracol?
que mudam vidas, e há inclusive livros que ças?”, onde um grupo de idosos se juntava - Vou por aí, na direção daquele limoeiro que vês ali ao fundo.
mudam o curso da História. para trazer as crianças de volta à rua. Hoje, - Então levas-lhe um recado meu? Diz-lhe que tenho gostado
pedimos às crianças que fiquem em casa. muito de conversar com ele.
E - A inspiração pode chegar fora de Mas espero que, quando tudo isto passar, - Aposto que ele também
horas? De onde surge? elas voltem a brincar nas ruas e voltem a tem gostado muito de te
SR – “De onde vêm as ideias?”, pergun- fazer as delícias dos mais velhos. ouvir. Mas olha... sabes que eu
tam-me muitas vezes os mais novos, Outra coleção que recomendo, a partir dos sou muito lento. Se esperares
quando faço sessões nas escolas. Não 8-10 anos, é a “Escola das Artes”, com três pelo momento certo para
tenho resposta para essa pergunta. O que volumes publicados. Conta a história de saíres de casa, talvez ainda
lhes digo é que devem ler bastante, obser- quatro irmãos que, por circunstâncias fami- chegues lá primeiro do que eu!
var bastante, pensar bastante... e é possível liares adversas, vão ter de se mudar para um Que assim seja...
que, dentro ou fora deles, lhes surjam boas colégio interno. A forma como eles lidam
ideias. As minhas chegam sem aviso. Às com as adversidades, e se unem para supe- Conto: Sara Rodi
vezes a horas impróprias, sim. Muitas vezes rar as dificuldades, pode dar algumas pistas Ilustração: Cristiana Resina
até em sonhos. E, às vezes, se eu não as para os tempos que se avizinham... Em exclusivo para o Expressinho

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O teu animal de estimação está contigo em todos os momentos.
Garante-lhe o conforto que merece! Mimos da semana: uma
cama e uma coleira feitas em família

COLEIRA
Uma sugestão de presente de aniversário ou de bom
comportamento!

O QUE É PRECISO:
Tecido
Fita corcel ou percinta de nylon com 3 cm de largura
Terminal de plástico
Argola

COMO FAZER:
. Tirar a medida do pescoço do cão ou do gato.
. Cortar dois tecidos com mais 5 cm de comprimento
e mais 2 cm de largura. Colocar os tecidos frente com
frente e costurar de ambos os lados no comprimento.
. Virar pela frente e fazer passar por dentro a fita ou a
percinta.
. Fazer uma costura de cada lado do comprimento.
. Colocar a argola e os terminais, dobrar a fita e refor-
çar as costuras.
. A coleira pode ser decorada!

CAMA OU TAPETE
É tão fácil deixar o pet mais confortável: uma cama ou um tapete podem ser
a solução.

O QUE É PRECISO: COMO FAZER:


Tecido . Cortar dois pedaços de tecido com a medida que
Cobertor ou Drakalon o cão/gato ocupa quando está deitado e cortar
Máquina de costura um pedaço de cobertor ou Drakalon com a mesma
Tesoura e fita métrica medida.
Alfinetes . Juntar os tecidos face com face e colocar, de
seguida, o cobertor por baixo (usar alfinetes).
. Coser os dois tecidos e o cobertor juntos à volta,
deixando uma abertura de pelo menos 15 cm para
poder virar os tecidos.
. Virar os tecidos para fora, colocando a mão entre
os dois tecidos.
. Coser a abertura e fazer um pesponto à volta do
tecido.
SUGESTÃO:
Joana Nobre Garcia
www.rosapomposa.com

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A obrigatoriedade de ficar em casa está a prolongar-se, mas, com estas sugestões de
atividades em família, o aumento do tempo de quarentena vai ser inversamente proporcional
ao teu tédio. Um desafio por dia, sabemos o bem que te fazia!

#DESAFIO2
#DESAFIO1 SÁBADO,11 ABR.
Cozidos ou vazios? Juntem os
SEXTA , 10 ABR . pincéis e as tintas para colorirem
Hoje é dia de participar no passatempo “Como o Expresso os vossos ovos da Páscoa.
me deu tempo de qualidade em família”. Pensem em todas as Coloquem-nos num cesto a
pessoas que se sentariam à mesa convosco no domingo de enfeitar a casa até domingo,
Páscoa e desenhem essa memória no saco do Expresso virado dia em que há
do avesso. Façam, de seguida, a publicação no outros desafios
Instagram pessoal, com a tag @jornalexpresso. pela frente...
Os três melhores trabalhos recebem jogos
para a família do Ludicenter, um espaço especializado em brinquedos
educativos e sustentáveis. Fiquem atentos: os vencedores vão ser
publicados no Instagram do Expresso a 2 de maio.
#DESAFIO3
DOMINGO,12 ABR.
Levantem-se cedo, lavem muito bem
as mãos, ponham os aventais e façam
a vossa melhor receita de folar da
Páscoa. À tarde, idealizem uma caça
#DESAFIO4 aos ovos (bem escondidos) pela casa.
SEGUNDA, 13 ABR.
Imaginem tomar uma refeição como se não se conhecessem… Quais
seriam os temas de conversa? Como reagiriam uns com os outros?
Preparem o melhor banquete e simulem um jantar onde são
#DESAFIO8
todos desconhecidos. Divirtam-se! SEXTA , 17 ABR .
O fim de semana está a chegar!
Com os pais mais disponíveis,
nada melhor do que preparar um
acampamento na sala. Vão
#DESAFIO6 buscar os lençóis e as mantas,
#DESAFIO5
Q UARTA , 15 ABR . montem uma tenda e
TERÇA,14 ABR . Hoje é dia de fazer rádio. O que querem contar divirtam-se numa noite
Escrevam num papel os aos vossos ouvintes? Quais são as músicas que de histórias e, quem sabe,
nomes de todos os membros vão passar? Quem vão entrevistar? Divirtam-se com direito a jantar/festa
da família e retirem um à a criar e a ouvir o vosso programa de rádio piquenique?
sorte. O desafio é tratar essa familiar, que precisa de um nome, claro!
pessoa de forma especial,
durante todo o dia, tentando
que passe o melhor tempo da
sua semana! Ao
jantar, revelam-se #DESAFIO7
os amigos Q U I NTA , 16 ABR .
secretos.
Pensem numa pessoa querida da vossa família e
Sejam criativos!
escrevam-lhe uma carta (com papel e caneta).
A quarentena pode ser uma oportunidade para
fortalecer laços e criar pontos de união com
quem faz parte da nossa vida.

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O Poupas quer sempre muitas coisas, mas ainda não aprendeu a poupar.
Apesar de já ter recebido a semanada que os pais lhe deram, para fazer o
jantar especial que tanto deseja para a família, faltam-lhe poupar 35 euros.
Vai ser preciso gerir e organizar! Dá-lhe uma ajuda e pensa com ele qual a
melhor maneira de o fazer

1. NECESSIDADES E DESEJOS 2. LABIRINTO DA POUPANÇA


Vamos começar por perceber o que é um desejo e uma necessidade. A nossa aventura continua! Aqui, tens o desafio de me ajudares a
Necessidades são bens essenciais, absolutamente necessários para poupar ao longo do labirinto! Sempre que encontrares uma moeda,
viver, e desejos são bens que gostaríamos de ter, mas são dispensáveis. assinala na respetiva situação a opção “Estou a Poupar” ou “Não
Para melhor compreendermos estes conceitos pinta a VERDE as estou a poupar”. Por cada resposta certa, ganhamos 5 euros para a
necessidades e de AZUL os desejos. nossa poupança (verifica nas soluções*).

desafio2: a)poupar, b)não poupar, c)poupar, d) poupar (5 euros, cada)


Soluções desafio1: 6 desejos (chocolate -skate -gelado -telemóvel -cinema -brinquedo) e 7 Necessidades (casa -água -luz -comida -roupa -saúde –educação)
Por cada resposta certa, ganhamos 2 euros para a nossa poupança
(verifica nas soluções*).
3

e
l at
co
Cho 4

1. Estou a poupar para fazer um jantar para a família,


então não vou ao cinema este mês.
Estou a poupar Não estou a poupar
2. Estou a poupar para fazer um jantar para a família, por isso vou
Quanto dinheiro poupámos? € querer comprar umas sapatilhas novas para o dia do jantar.
Estou a poupar Não estou a poupar
3. CONSEGUI POUPAR? 3. Estou a poupar para fazer um jantar para a família, mas quis um
Estamos quase a chegar ao final da nossa aventura financeira e está na jogo e tirei dinheiro do mealheiro.
altura de saber quanto poupámos. Para isso, basta somares todos os Estou a poupar Não estou a poupar
valores que conseguiste nos dois desafios. Será que conseguimos os 4. Estou a poupar para fazer um jantar para a família, então vou
35€ necessários para o meu jantar? colocar 1€ todos os dias no mealheiro.
Estou a poupar Não estou a poupar
€+ €= € poupados Quanto dinheiro poupámos? €

CRIA O TEU MEALHEIRO E CONTINUA A POUPAR!


Obrigada pela tua ajuda! Sem ela, teria sido impossível perceber o mundo financeiro. Acabou por ser muito divertido poupar, mas não podia despedir-me
sem te lançar um último desafio. O que achas de construíres um mealheiro, com materiais recicláveis, em conjunto com a tua família, onde poderás poupar
para a realização de um desejo ou um sonho? Estou muito curioso para ver o teu mealheiro e conhecer o sonho que vais realizar com o dinheiro que vais
poupar. Partilha comigo, enviando uma fotografia do mealheiro, com o teu nome, idade e localidade para o email - orientate@ageas.pt.

EM PARCERIA COM:

www.concursorientate.pt

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