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1 Cf., para a questác ero seu todo, Jürgen Habermas, Der philosophische 3 Urna tal ampliacáo da moral nos termos da teoria da subjetividade é
Diskursder Moderne. Frankfurt, 1985, cap. III. manifestamente o objetivo que Andreas Wildt vincula a sua reconstrucáo da
te interessado nas implicacóes da dourrina hegeliana para a teoria social; en- camente controlada de formas de reconhecimento, mediante a qual
quanro eu interpreto os escritos de lena como projetos teóricos sobre o desen- a proposta de Hegel pode ser examinada e, se for o caso, corrigida.
volvimento moral das sociedades (no sentido de Mead ou de Durkheim), Andreas
Wildt quer visivelmente entendé-los como forma embrionária de urna teoria da
3) Por fim, o modelo conceitual hegeliano encontra seu fecha-
formacáo moral do EIJ.. O sentido da "Iúta" é, por conseqüéncia, completamente
mento teórico na terceira tese, que reivindica para a série de tres
distinto nas duas abordagens interpretativas: em Wildt, referencia ao processo
conflituoso intrapsiquico; em meu trabalho, esboce de urna lógica dos confli- formas de reconhecimento a lógica de um processo de formacáo
tos sociais. Nao sem semelhanca no objetivo, embora menos pregnanre e, além mediado pelas etapas de urna [uta moral: no curso da formacáo de
disso, mais modesto no plano da filosofia moral, é a inrerpreracáo de Edith sua identidade e a cada etapa alcancada da comunitariza¡;ao, os
Düsing, lntersubiektíuítdt und Selbstbewuf5tseín. Colonia, 1986. sujeitos sao compelidos, de certa maneira transcendentalmente , a
essa direcáo evolutiva geral, como se sabe, recorrendo primeiramente que estáo inseridas no mesmo processo"!". Do material ilustrativo
a duas fases da atividade lúdica infantil: na etapa do play, do jogo concreto fornecido pela rnudanca no comportamento lúdico infan-
dos papéis, a crianca se comunica consigo mesma imitando o com- til, Mead extrai um mecanismo de desenvolvimento que deve estar
portamento de uro pareeiro concreto da interacáo, para depois rea- na base do processo de socializacáo do ser humano em seu todo. O
gir a isso complementariamente na própria acáo; por sua vez, a se- elo conceitual entre o campo rnais estreito e o mais amplo a ser ex-
gunda etapa, a do jogo de competicáo ou do game, requer da crianca plicado é representado para Mead pela categoria do "outro gene-
em desenvolvimento que ela represente ern si mesma, simultanea- ralizado": assim como a enanca, com a passagem para o game,
mente, as expectativas de comportamento de todos os seus cornpa- adquire a capacidade de orientar seu próprio comportamento por
nheiros de jogo para poder perceber o próprio papel no contexto urna regra que ela obteve da sintetizacáo das perspectivas de todos
da acáo funcionalmente organizado. A diferenca entre as duas eta- os companheiros, o processo de socializacáo em geral se efetua na
pas do jogo rnede-se pela diferenca no grau de universalidade das forma de urna interiorizacáo de normas de acáo, provenientes da
expectativas normativas de comportamento que a crianca tem de generalizacáo das expectativas de comportamento de todos os mern-
antecipar respectivamente em si mesrna: no primeiro caso, é o pa- bros da sociedade. Ao aprender a generalizar em si mesmo as ex-
dráo concreto de comportamento de urna pessoa social que serve pectativas normativas de um número cada vez maior de parceiros
de referencia, no segundo caso, ao contrário, sao os padrees s'oeial- de inreracáo, a ponto de chegar a representacáo das normas soeiais
mente generalizados de comportamento de todo um grupo que de- de acáo, o sujeito adquire a capacidade abstrata de poder partici-
vem ser incluídos na própria acáo como expectativas normativas, par nas interacóes normativamente reguladas de seu meio; pois aque-
exercendo urna espécie de controle. Porranto, na passagem da pri- las normas interiorizadas lhe dizem quais sao as expectativas que
meira asegunda etapa do jogo infantil, migram para dentro da auto- pode dirigir legitirnarnente todos os curros, assirn como quais sao
imagem prática da crianca em desenvolvimento as normas sociais as obrigacóes que ele tem de cumprir justificadamente em relacáo
de acáo de um outro generalizado: "A diferenca fundamental entre a eles. Em remissáo a quesráo de como o "Me" se altera no processo
volver urna identidade completa e possuir a que ele desenvolveu "18. cia que ele seja um membro dessa comunidade, urna vez que a ado-
Se o sujeito, pelo fato de aprender a assumir as normas sociais cáo da atitude dos outros garante que os próprios direitos sejam
de acáo do "outro generalizado", deve alcancar a idenridade de um reconhecidos. [oo.] Com isso recebe-se urna posicáo, consegue-se a
membro socialmente aceito de sua coletividade, cntáo tem todo o dignidade de ser membro da comunidade't-".
sentido empregar para essa relacáo intersubjetiva o conceito de "re- Nao é por acaso que Mead fala nessa passagem de "dignida-
conhecimento": na medida em que a crianca ern desenvolvimento de", com a qual um sujeito se ve dotado no momento em que ele,
reconhece seu s parceiros de interacáo pela via da interiorizacáo de pela conccssáo de direiros, reconhecido como um membro da so-
é
suas atitudes normativas, ela própria pode saber-se reconhecida ciedade; pois com a expressáo está implicitamente associada a afir-
como um membro de seu contexto social de cooperacáo. A própria a
macáo sistemática de que corresponde experiencia de reconheci-
pro posta de Mead é falar aqui de urna relacáo de reconhecimento mento um modo de auto-relacáo prática, no qual o individuo pode
rnútuo: "É esta identidade que se pode manter na comunidade, que estar seguro do valor social de sua identidade. O conceito geral que
é reconhecida na comunidade na medida em que ela reconhece as Mead escolhe para caracterizar urna tal consciencia do próprio
outras,,19. É claro que, nesse contexto, as explicacóes de Mead se valor o de "auto-respeito"; ele refere-se a atitude positiva para
é
aproximam bem mais do que foi visado por Hegel do que deixa consigo mesmo que um individuo pode adotar quando reconheci-
supor a mera coincidencia no uso do termo "reconhecimenro", pois, do pelos membros de sua coletividade como um determinado ge-
nao diferentemente de Hegel, ele também quer que a cornpreensáo nero de pessoa. Por sua vez, o grau de auto-respeito depende da
que aquele que aprende a conceber-se da perspectiva do outro ge- medida em que sao individualizadas as respectivas propriedades ou
neralizado tem de si mesmo seja entendida como a cornpreensáo de capacidades para as quais o sujeito encontra confirrnacáo por parte
urna pessoa de direito. Com a adocáo das normas sociais que regu- de seus parceiros de interacáo; visto que "direiros" sao algo por
lam as relacóes de cooperacáo da coletividade, o indivíduo em eres- meio do qual cada ser humano pode saber-se reconhecido em pro-
cimento nao aprende só quais obrigacóes ele tern de cumprir em
23 Mead, Geíst, Identitdt und Gesellschaft, ed. cit., p. 240. 24 Ibid., p. 248.
sociedade civilizada a partir da primitiva se deve ern grande parte a em seu curso nas passagens ande ele vem a falar sobre as transfor-
liberacáo social progressiva da identidade individual e de seu com- rnacóes sociais de épocas passadas. Seus exemplos se referem de
portamento, as mcdificacóes e refinamenros do processo social que hábito a situacóes históricas em que conceitos normativa mente am-
resulraram dai e que foram possibilitados por essa libeta,ao"27 pliados de comunidade social puderam tornar-se o cerne motiva-
Assim como Hegel em relacáo ao processo de forrnacáo da cional de movimentos sociais: a "iuta por reconhecimento" toma
"vontade comum", Mead concebe a evolucáo moral das socieda- seu ponto de partida de idéias morais em que personalidades dota-
des como um processo de arnpliacáo gradual dos conteúdos do re- das de carisma souberam ampliar o "outro generalizado" de seu
conhecimento jurídico; ambos os pensadores estáo de acordo quanto meio social, de um modo que estava em concordancia com as ex-
ao desencadeamento histórico do potencial da individualidade pela pectativas intuitivas dos contemporáneos; assim que essas inovacóes
via de um aumento do espaco de Iiberdade juridicamente concedi- intelectuais puderam influir sobre a consciencia de grupos rnaiores,
da. Da mesma maneira que Hegel, Mead também ve como motor procedeu daí urna luta por reconhecimento de pretensóes jurídicas,
dessas modificacóes geridas urna lura através da qual os sujeitos que acabou colocando em qucstáo a ordem institucionalizada. Mead
apela com énfase especial e repetidas vezes para a influencia so-'
ciorrevolucionária de jesus, a fim de ilustrar historicamente sua tese:
27 Ibid., pp- 265-6. "Foram grandes homens aqueles que, com seu papel na comunida-
29 Ibid., p. 249.
viduo em seu modo de vida individualmente escolhido. Para poder cepcío, hoje propagada, de que Hegel exagerou romanricamente, com seu con-
ceiro de eticidade, as tarefas de urna reoria normativa da sociedade; d. nesse
chegar a um "Me" que opere um semelhante resseguro ético, todo
sentido, por exemplo, Charles E. Larmore, Patterns arMara! Complexity. Cam-
sujeito tem de aprender a generalizar a tal ponto as conviccóes axio- bridge, 1987, p. 93 ss; a melhor defesa do conceito hegeliano de eticidade é hoje,
lógicas de todos os seus parceiros de interacáo, que ele acaba ob- ao meu ver, a investigacáo atualizadora de Charles Taylor, Hegel and Modern
tendo urna representacáo abstrata das finalidades comuns de sua Society. Cambridge, 1979 (particularmente o cap. 2.8).
melte Schriften (ed. de Günther Dux, Odo Marquard, Elisabeth Stróker}. Frank- 36 Cf. acerca disso Niklas Luhmann, Liebe als Passion. Zur Codierung
furt, 1981, vol. V, p. 7 ss. von lntimitdt. Frankfurt, 1982, cap. 13.
48 Winnicott, Donald W., "Ven der Abhangigkeir und Unabhángigkeit 50 Ibid., p. 56 ss.
in der Entwicklung des Individuums". In: Reifungsprozesse und [crdemde Um- 51 Winnicott, Donald W., "Ven der Abhangigkeit und Unabhangigkeir
welt, ed. cit., p. 108 ss. in der Entwicklung des Individuums". In: Reifungsprozesse und [ordernde Um-
49 Winnicott, "Die Theorie von der Beziehungzwischen Mutter und Kind". welt, ed. cit., p. 112.
In: Reifungsprozesse und [ordernde Umwelt, ed. cit., p. 63. 52 Ibid., p. 111 ss.
mecanismos foi tratado por Winnicott sob a rubrica de "destruicáo", cessária por causa de seu valor de sobrevivéncia, Ela é urna rnác-
o segundo é apresentado por ele no quadro de seu conceito de "fe- ambiente e, ao mesmo ternpo, urna máe-objero, o objeto do amor
nómenos transicionais". excitado. No último papel, ela é repetidamente destruída ou dani-
Em resposta a percepcáo gradual de urna realidade que resis- ficada. A enanca integra gradualmente esses dais aspectos da rnáe e
te a estar disponível, o bebe desenvolve logo urna disposicáo para gradualmente se torna capaz, ao rnesrno ternpo, de amar a rnáe so-
atos agressivos, dirigidos primariamente a rnáe, percebida agora brevivente com ternura"S5.
também corno independente; corno que para rebelar-se contra a Se concebemos dessa maneira o primeiro processo de desliga-
experiencia do desvanecimento da onipoténcia, ele procura destruir mento da enanca como o resultado de manifestacóes de comporta-
o corpo dela, vivenciado até aqui apenas como fonte de prazer, mento agressivo, entáo se revela justificada a proposta de [essica
aplicando-Ihe golpes, mordidas e ernpurróes. Nos enfoques interpre- Benjamín de aduzir aqui a "[uta por reconhecimento" descrita por
tativos convencionais, essas erupcóes de agressividade infantil sao
colocadas na maioria da vezes num nexo causal com frustracóes que
ocorrem devido aexperiencia da perda do controle onipotente; para
54 Cf. sobretudo: ibid., p. 104 ss; d. também a respeiro desse complexo:
Winnicott, ao contrário, elas representa m ern si acóes oportunas, Schreiber, Marianne, "Kann der Mensch Verantworrung für seine Aggressivi-
através das quaiso bebe testa de maneira inconsciente se o objeto, tát übernehmen? Aspekre aus der Psychologie D. W. Winnicotts und Melanie
Kleins". In: Alfred Schópf (org.), Aggression und Gewalt. Würzburg, 1983, p.
155 ss.
53 Winnicott, Donald W., "Objektverwendung und Identifizierung". lo: 55 Wionicott, Donald W., "Moral und Erziehung". In: Reifungsprozesse
Vom Spiel zur Kreatíuitat, ed. cit., p. 105. und [brdernde Umwelt, ed. cit., p. 133.
und das Problem der Macht. BasiléiaIFrankfurr, 1990, particularmente p. 39 ss. ne". In: Vom Spiel zur Kreativitiit, ed. cir., p. 23.
l 170
Luta por reconhecimento 171
que aquela esfera de mediacáo ontológica deve sua constituicáo a urna relacáo particular de reconhecimento, cabe urna importancia
solucáo de urna tarefa que continua a subsistir para os homens ao central a afirmacáo de Winnicott segundo a qual a capacidade de
longo de sua vida, ola o lugar psíquico da génese de todos os inte-
é estar só depende da confianca da enanca na durabilidade da dedi-
resses que o adulto demonstrará pelas objetivacóes culturais. Nao cacáo materna. A tese assim tracada fornece urna res posta acerca
sem senso para agudezas especulativas, Winnicott diz: "Afirmamos da espécie de auto-relacáo a que um sujeito pode chegar quando se
aqui que a tarefa de aceitacáo da realidade nunca é totalmente com- sabe amado por urna pessoa vivenciada como independente, pela
pletada, que nenhum ser humano está livre da pressáo de relacio- qual ele sente também, de sua parte, afeicáo ou amor.
nar realidade interna e externa, e que a libertacáo dessa pressáo é Se a rnáe soube passar pelo teste de seu filho, tolerando os
oferecida por um domínio de experiencia intermediária [... ] nao co- ataques agressivos sem a vinganca de privá-lo do amor, entáo, da
locada em questáo (arte, religiáo etc.). Esse domínio intermediário perspectiva dele, ela pertence de agora em diante a um mundo exte-
está em continuidade direra com o domínio lúdico das enancas pe- rior aceito com dor; pela primeira vez, como foi diro, ele terá de
quenas, que cstáo 'perdidas' no seu jogo"58. tomar consciencia agora de sua dependencia em relacáo a dedica-
Essa última frase dá também urna indicacáo de por que o con- cáo dela. Se o amor da máe é duradouro e confiável, a crianca é
ceito de "objetos transicionais" pode ser compreendido como urna capaz de desenvolver ao mesmo tempo, a sombra de sua confia-
arnpliacáo direta daquela interpretacáo do amor nos termos da teoria bilidade intersubjetiva, urna confianca na satisfacáo social de suas
do reconhecimento que se encontra nos escritos de Winnicott. Pois, próprias demandas ditadas pela carencia; pelas vias psíquicas aber-
de acordo com ele, a enanca só está em condicóes de um relaciona- ras dessa forma, vai se desdobrando nela, de maneira gradual, urna
mento com os objetos escolhidos no qua! "ola se perde" quando pode "capacidade elementar de estar só". Winnicott atribui a capacida-
demonstrar, mesmo depois da separacáo da máe, tanta confianca de da enanca pequena de estar a sós, no sentido de que eIa corneca
na continuidade da dedicacáo desta que ela, sob a prorecáo de urna a descobrir de maneira descontraída "sua própria vida pessoal", a
intersubjetividade sentida, pode estar a sós, despreocupada; a criati- experiencia da "existencia contínua de urna rnáe confiável,,6o: só
vidade infantil, e mesmo a faculdade humana de imaginacáo em na medida em que "há um bom objeto na realidade psíquica do
geral, está ligada ao pressuposto de urna "capacidade de estar só", indivíduo,,61 ele pode se entregar a seus impulsos internos, sem o
que por sua vez se realiza somente através da confianca elementar medo de ser abandonado, buscando entendé-los de um modo cria-
na disposicáo.da pessoa amada para a dedicacáo-", Daqui resultam tivo e aberto a experiencia.
discernimentos profundos acerca do nexo de criatividade e reconhe- O deslocamento do foco para aquela parte do próprio Sel] que
cimento, os quais, no entanto, nao térn mais interesse para nós neste Mead charnou de "Eu" pressupóe, por isso, urna confianca em que
lugar; em contrapartida, para a tentativa de reconstruir o amor como a pessoa amada preserve sua afeicáo mesmo que a própria atencáo
nao se direcione a ela, mas, por sua vez, essa seguranC;a é apenas o
lado exterior de urna certeza amadurecida de que as próprias ca-
58 [bid., pp. 23-4. rencias váo encontrar permanentemente satisfacáo por parte do
69 Cf., para urna visáo de conjunto, Leopold Pospisvil, Anthropologie des 70 Cf. Habermas, jürgen, "Überlegungen zum evolutionaren Srellenwert
Rechts. Recht und Gesellschaft in archaíschen und modernen Kulturen. Muni- des modernen Rechrs". In: Zur Rekonstruktion des Historischen Materialismus.
que, 1982, cap. 111, p. 65 ss. Frankfurr, 1976, p. 260 ss.
amor, isto é, o resseguro num ramo da pesquisa empírica; ero vez begriffs und zur Theorie der sittlichen Gefüh/e. Würzburg, 1897.
trutura do reconhecimento jurídico torno u-se urn pouco rnais trans- quais conclus6es se podem tirar preliminarmente da comparacáo
parente: confluem nela, por assim dizer, duas operacóes da cons- entre o reconhecimento jurídico e a estima social: em ambos os casos
ciencia, urna vez que, por um lado, ela pressupóe um saber moral como já sabemos, urn hornem respeitado em virtude de deterrni-
é
sobre as obrigacóes jurídicas que ternos de observar perante pessoas nadas propriedades, mas no prirneiro caso se trata daquela proprie-
autónomas, ao passo que, por outro, só urna interpretacáo empírica dade universal que faz dele urna pessoa; no segundo caso, pelo con-
da situacáo nos informa sobre se se trata, quanto a um defrontante t~ário, trata-se das propriedades particulares que o caracrerizam,
concreto, de um ser com a propriedade que faz aplicar aque1as obri- diferenrernsm¿ de outras pessoas. Daí ser central para o reconheci-
gacóes, Por isso, na estrutura do reconhecimento jurídico, justamente mento jurídico a questáo de como se determina aquela proprieda-
porque está constituída de maneira universalista sob as condicóes de constitutiva das pessoas como tais, enguanto para a estima so-
modernas, está infrangivelmente inserida a tarefa de urna aplicacáo cial se coloca a questáo de como se constitui o sistema referencial
específica a situacáo: urn direito universalmente válido deve ser ques- valorativo no interior do gual se pode medir o "valor" das proprie-
a
tionado, luz das descricóes empíricas da situacáo, no sentido de dades características.
saber a que círculo de sujeitos ele deve se aplicar, visto que eles Na forrnulacáo desse primeiro resultado interino, já está men-
pertencem a classe das pessoas moralmente imputáveis. Nessa zona cionado tambérn o segundo problema que se impusera a nós no que
de interpretacóes da siruacáo referidas a aplicacáo, as relacóes ju- concerne as propriedades estruturais do reconhecimento jurídico:
rídicas modernas constituem, como veremos, um dos lugares em que é preciso definir a capacidade pela qual os sujeitos se respeitam
pode suceder urna luta por reconhecirnento". mutuamente, quando se reconhecem como pessoas de direito. Urna
Do reconhecimento da pessoa enquanto tal se distingue entáo resposta a questáo assim colocada possui um peso tanto maior por-
a estima por um ser humano, porque está ern jogo nela nao a apli- que ela mantém a disposicáo, ao mesmo tempo, a chave para urna
cacáo empírica de normas gerais, intuitivamente sabidas, mas sim análise da funcáo que a adjudicacáo de direitos assume sob condi-
a avaliacáo gradual de propriedades e capacidades concretas; daí cóes pós-tradicionais; pois, após seu desligamento das atribuir;6es
de status, sua tarefa tem de estar talhada, ao que tu do indica, prin-
1986, p. 122 ss. 78 Darwall, Stephen L., "Two Kinds oí Respect", ed. cir., p., 254.
tacóes simbolicamente articulado, mas sernpre aberto e poroso, no depois que se desenvolveu a ponto de nao caber mais nas condicóes-
qual se formula m os valores e os objetivos éticos, cujo todo consti- limite das sociedades articuladas em estamentos. A mudanca estru-
tui a autocompreensáo cultural de urna sociedade; um sernelhante tural que isso pos em marcha é marcada, no plano de urna história
quadro de orientacóes pode servir de sistema referencial para a ava- conceitual, pela transicáo dos conceitos de honra as categorias da
liacáo de determinadas propriedades da personalidade, visto que seu "reputacáo" ou "prestígio" social.
"valor" social se me de pelo grau ern que elas parecem estar em Enquanto as concepcóes dos objetivos éticos da sociedade sao
condicóes de contribuir a realizacáo das predeterrninacóes dos ob- formuladas ainda de maneira substancial, e as suas concepcóes axio-
jetivos sociais 89 . A autocompreensáo cultural de urna sociedade lógicas correspondentes sao articuladas de maneira hierárquica, de
predetermina os critérios pelos quais se orienta a estima social das modo que se dá urna escala de formas de cornportamento de maior
pessoas, já que suas capacidades e realizacóes sao julgadas inter- ou menor valor, a medida da reputacáo de urna pessoa é definida
subjetivamente, conforme a medida em que cooperaram na imple- nos termos da honra social: a eticidade convencional dessas coleri-
mentacáo de valores culturalmente definidos; nesse sentido, essa vidades permite estratificar verticalmente os campos das tarefas so-
forma de reconhecimento recíproco está ligada também a pressu- ciais de acordo com sua suposta contribuicáo para a realizacáo dos
posicáo de uro contexto de vida social cujos membros constituem valores centrais, de modo que lhes podem ser atribuídas formas
urna comunidade de valores mediante a orientacáo por concepcóes específicas de conduta de vida, cuja observancia faz com que o in-
de objetivos comuns. Mas, se a estima social é determinada por divíduo alcance a "honra" apropriada a seu estamento. Nesse as-
concepcóes de objetivos éticos que predominam numa sociedade, pecto, o termo "honra" designa em sociedades articuladas em esta-
as formas que ela pode assumir sao urna grandeza nao menos variá- mentos a medida relativa de reputacáo social que urna pessoa é capaz
vel históricamente do que as do reconhecimento jurídico. Seu alcance de adquirir quando consegue cumprir habitualmente expectativas
social e a medida de sua simetria dependem entáo do grau de plura- coletivas de comportamento atadas "eticamente" ao status social:
lizacáo do horizonte de valores socialmente definido, tanto quanto "No plano do conteúdo", escreve Max Weber, "a honra estamental
do caráter dos ideais de personalidade aí destacados. Quanto mais encontra sua expressáo normalmente na imposicáo de urna condu-
as concepcóes dos objetivos éticos se abrem a diversos valores e ra de vida específica a qualquer um que queira pertencer ao CÍr-
quanto mais a ordenacáo hierárquica cede a urna concorréncia hori- culo,,90. As propriedades da personalidade pelas quais a avaliacáo
zontal, tanto mais a estima social assumirá um trace individualizante social de urna pessoa se orienta sob essas condicóes nao sao, por
e criará relacóes simétricas. Daí ser natural cornecar identificando isso, aquelas de uro sujeito biograficamente individuado, mas as de
as propriedades dessa forma específica de reconhecimento também um grupo determinado por status e culturalmente tipificado: é o seu
na mudanca histórica que ela experimentou na passagem das socie- "valor", resultante por sua vez da medida socialmente definida de
dades tradicionais para as modernas: assim como a relacáo jurídi- sua contribuicáo coletiva para a realizacáo das finalidades sociais,
aquilo por que se mede também o valor social de seus respectivos
"Honor", ed. cit., p. 507: "The reciprocal demonstrations of favor, wich might
brevemente o tipo de auto-relacáo individual que vai de par com a
be called mutual honoring, establish relationships of solidariry". [" As demons-
experiencia da estima social. tracóes recíprocas de favor, que poderiam ser chamadas de honramenro mú-
Enquanto a forma de reconhecimenro da estima é organizada tuo, estabelecem relacóes de solidariedade. "J
segundo estamentos, a experiencia da distincáo social que lhe cor-
99 É para isso que está recortada conceitualmente a famosa fórmula de
responde se refere em grande parte somente a identidade coletiva Sartre a respeito do grupo em fusáo; d. jean-Paul Sartre, Kritik der dialektischen
do próprio grupo: as realizacóes, para cujo valor social o indivíduo Vernunft, vol. 1. Reinbek, 1967, p. 369 ss.
sucedida, ele depende do reconhecimento intersubjerivo de suas namente de um estado penoso de excitacáo, já que ele pode encon-
capacidades e de suas realizacóes; se urna tal forma de assentimen- trar um solucáo adequada e feliz para um problema prático urgen-
to social nao acorre em alguma etapa de seu desenvolvimento, abre- te. Portanto, para Dewey, os sentimentos representam de modo geral
se na personalidade como que urna lacuna psíquica, na qual entram as reacóes afetivas no contrachoque do sucesso ou do insucesso de
as reacóes emocionais negativas como a vergonha ou a ira. Daí a nossas intencóes práticas.
experiencia de desrespeito estar sempre acompanhada de sentimen- Com esse ponto de partida geral, é possível encontrar urna via
tos afetivos que em princípio podem revelar ao indivíduo que de- para outras diferenciacóes, quando se trata de distinguir de maneira
terminadas formas de reconhecimento lhe sao socialmente dene- mais exata os tipos de "perrurbacóes" em que pode fracassar em
gadas. Para tornar plausível essa tese complexa pelo menos ero seu princípio o agir humano que veio a ser habitual. Urna vez que seme-
esboce, é recomendável reportar-se a urna concepcáo de sentimen- lhantes perturbacóes ou insucessos se medem em cada caso pelas
to humano como a que [ohn Dewey desenvolveu em sua psicolo- expectativas que váo a frente da acáo a ser efetuada, orientando-a,
gia pragmática. urna primeira subdivisáo rudimentar se oferece com base nos dais
Em alguns de seus primeiros ensaios, De~ey havia se dirigido
contra a concepcáo segundo a qual as excitacóes emocionais no ser
105 Cf. Dewey, John, "The Theory of Emotion", I. In: Psychological Re-
humano devem ser compreendidas como formas de expressáo de
view, 1894, p. 553 ss; "The Theory of Emorion", 11. In: Psychological Review,
estados anímicos internos; acerca dessa concepcáo, constatável tam-
1895, p. 13 ss; sobre a reoria dos sentimenros de Dewey, cf. a útil exposicáo de
bém em William James, ele quis mostrar que ela desconhece neces- Eduard Baumgarren, Die geistigen Grundlagen des amerikanischen Gemein-
sanamente a funcáo dos sentimentos ligada a acáo, visto que o pro- toesens, vol. 11, Der Pragmatismus: R. W. Emerson, W. James,]. Dewey. Frank-
cesso psíquico é desde o início anteposto, como algo "interno", as furt, 1938, p. 247 ss.
timidez da exposicáo do próprio corpo, visível e profundamente Psychoanalytic and a Cultural Study. Nova York, 1971, particularmente p. 23
ss; Heleo M. Lynd, On Shame and the Search for Identity, ed. cit., cap. 2; G.
ancorada no plano antropológico; nela nao está definido de ante-
Simmel tem em vista urna definicáo análoga em seu breve trabalho: "Zur Psy-
máo por quais aspectos da interacáo se transgride a norma moral
chologie der Scham" (1901). In: Schriften zurSoziologie (ed. por H.-J. Dahme
que, por assim dizer, falta ao sujeiro para o prosseguimento roti- e O. Rammsredr]. Frankfurt, 1983, p. 140 ss.
nizado de sua acáo. O conteúdo emocional da vergonha consiste,
107 Esse aspecto é subestimado pelos estudos de Sighard Neckel, de resto
como constatam em comum acordo as abordagens psicanalíticas e excelentes: Status und Scham. Zur symbolischen Reproduktion sozialer Un-
fenomenológicas, em urna espécie de rebaixamento do sentirnento gleichheit. Frankfurt, 1991.