Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
1. Notas introdutórias
1
Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Pesquisador do Núcleo de Direito,
Marxismo e Meio Ambiente (NudMarx). Advogado. Endereço de correio eletrônico
<igormendesbueno@outlook.com.br>.
bastante controverso, fazendo parte do debate jurídico nacional há pelo menos duas décadas e
por vezes retomado pelos noticiários – trata-se da possibilidade de aquisição de terras por
pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras ou por aquelas constituídas no Brasil com controle
acionário composto majoritariamente por capital estrangeiro. Nesse sentido, foram
recentemente noticiadas as pretensões do novo governo de liberação da venda de terras a
estrangeiros sem limite de área2, tal como atualmente o é pela legislação em vigor.
Dizemos que este é um tema relativamente antigo no debate jurídico-político nacional
porque tem sido foco de grandes disputas em âmbitos administrativo, legislativo e judicial,
contando com interpretações variadas de órgãos administrativos e também de pressões de
diversos atores sociais das esferas pública e privada. Na maioria das vezes, o debate no campo
jurídico diz respeito à adequação da atual legislação sobre o assunto a ordem constitucional
estabelecida em 1988, sobretudo em termos de conflito entre os princípios do livre exercício
das atividades econômicas, do direito de propriedade e à livre iniciativa, e as possíveis ameaças
à soberania decorrente da perda do controle nacional sobre o território. Cumpre, assim,
retomarmos quais os exatos termos dessa polêmica e promover uma leitura a partir do texto
constitucional – tal é o objetivo central deste trabalho.
Para tanto, será antes necessário entendermos o fenômeno da estrangeirização de terras
na atual dinâmica do capitalismo global e a problemática que envolve o assunto. No primeiro
capítulo, portanto, compreendemos o processo de estrangeirização da terra como uma das
características de um processo mais amplo e com características específicas no atual momento
histórico da globalização nos moldes neoliberais, e atualmente conhecido como land grabbing,
ou “corrida mundial por terras”, cujo debate tem se intensificado nos últimos anos em virtude
do quadro de crise econômica global. De outro lado, também será necessário fixar balizas sobre
qual a leitura adequada da Constituição da República de 1988 – de que forma podemos
compreender a problemática em questão a partir da ordem constitucional estabelecida pela
Carta Política. No terceiro capítulo, enfim, fixaremos os termos das disputas que têm se
desenrolado no campo jurídico-político em torno da estrangeirização da terra no Brasil e
procuraremos contribuir com o debate a partir da nossa leitura sobre a questão.
2
Nesse sentido, cf. ZAIA, Cristiano. Casa Civil quer venda de terra a estrangeiro sem limite de área. Valor
Econômico, 06/04/2017. Disponível em: <http://www.valor.com.br/agro/4928916/casa-civil-quer-venda-de-
terra-estrangeiro-sem-limite-de-area >. Acesso em 27 ago. 2017; TRUFFI, Renan. O governo Temer prepara MP
para a venda de terras a estrangeiros. Carta Capital, 16/02/2017. Disponível em:
<https://www.cartacapital.com.br/politica/governo-temer-prepara-mp-para-venda-de-terras-a-estrangeiros>.
Acesso em 27 ago. 2017.
2. A apropriação e a estrangeirização de terras como marco da globalização neoliberal
3
Entre os diversos autores pesquisados na revisão bibliográfica empreendida, existem aqueles que restringem ou
confundem a utilização do termo com os processos de grilagem (apropriação por vias ilegais) ou mesmo
unicamente em torno da estrangeirização da propriedade, este último que constitui nosso foco central neste
trabalho.
uma natureza de propriedade mais pública é cercada e seus usuários originais expulsos e
transformados em proletários, alienados daquele espaço agora privatizado (2016, p. 13).
Essas noções se coadunam à de “acumulação por espoliação”, de David Harvey, para
quem, na esteira de Rosa Luxemburgo, se tratam de processos não-capitalistas de acumulação,
mas que sobrevivem dentro da dinâmica própria do capitalismo. Dessa forma, expropriação e
espoliação constituem processos ainda em curso, que, “reeditados”, se acoplam às relações de
produção capitalistas e também permitem a acumulação de capital na contemporaneidade,
sobretudo em períodos de crise, através do controle e diminuição dos custos de insumos (terra,
recursos naturais, insumos intermediários e força de trabalho). (SAUER e BORRAS, 2016, p.
14)
Nesse sentido, sequer podemos dizer também que a apropriação de terras não é um
processo exatamente novo; ela se dá em ciclos, a depender da conjuntura regional e global da
dinâmica capitalista em um dado momento histórico. Todavia, a extensão e as características
de suas recentes manifestações lhe atribuem certas dimensões de novidade que convém serem
aqui ressaltadas. Uma delas se relaciona a uma de suas possíveis formas – que é de especial
interesse nesse trabalho –, qual seja, o processo de estrangeirização da terra a partir de sua
aquisição por empresas, governos e investidores estrangeiros em países periféricos. A recente
confluência de diversas crises, especialmente as crises alimentar (crise dos preços de
alimentos), energética e financeira, têm proporcionado um processo de busca por aplicações de
rentabilidade mais segura por investidores externos, sobretudo em países subdesenvolvidos ou
em desenvolvimento (SAUER e BORRAS, 2016, p. 15).
Esse processo de apropriação em larga escala de terras (e recursos naturais) tem ocorrido
através de diversos mecanismos ou processos de acumulação novos, que se relacionam ao atual
formato do capitalismo globalizado, nos moldes da hegemonia neoliberal: (a) o
desenvolvimento agrícola desigual, propiciando a capitalização e tecnicização de agricultores
que compram extensas áreas em outros países e continentes; (b) os investimentos em
infraestrutura que possibilitam a expansão do agronegócio e do extrativismo em áreas ainda
não exploradas; (c) o investimento em novas formas de extração de recursos e técnicas para a
superação da crise energética; (d) a disseminação do discurso da insegurança alimentar global
como motivação para o investimento em cultivos alimentares (muitos voltados para a produção
de combustível); (e) a criação de novos instrumentos financeiros para a redução dos riscos de
mercado, que permitem o lucro de investidores que especulam através das preocupações
generalizadas com a escassez de alimentos; (f) os novos mecanismos de mitigação e
compensação ambientais, que promovem a mercantilização da natureza em nome da
sustentabilidade e, em último grau, a apropriação e terras e recursos naturais, resultando em
fenômenos como a “expropriação verde” (green grabbing); e (g) os incentivos financeiros de
organizações multilaterais a determinados tipos de desenvolvimento, sobretudo para a
promoção de ajustes estruturais que enfraquecem as economias nacionais e favorecem as
exportações, contribuindo para “a corrida global por recursos” (SAUER e BORRAS, 2016, pp.
16-18; sobre estes últimos dois pontos, também cf. PORTO-GONÇALVES, 2006, pp. 299-
371).
Outro aspecto bastante importante sobre o atual formato do fenômeno da apropriação
de terras no mundo diz com o perfil dos novos apropriadores. De acordo com as recentes
pesquisas, percebe-se atualmente a entrada de novos atores na corrida mundial por terras, antes
avessos a esse tipo de transação: empresas do setor financeiro, fundos de pensão e fundos de
investimentos e empresas do ramo petrolífero. Nesse sentido, incentivos e subsídios agrícolas
tem propiciado a formação de uma “nova classe de ‘empresários apropriadores de terras’”,
como corretores de imóveis e especuladores em geral do mercado financeiro, o que traz diversas
(e problemáticas) consequências em torno das relações de propriedade e uso da terra
(BORRAS, FRANCO e PLOEG apud SAUER e BORRAS, 2016, p. 20). Essas mudanças tem
sido fundamentais, para criar ou aprofundar os processos de financeirização da agricultura e
das commodities, abrindo novas oportunidades para a realização de lucros no setor primário e
incentivando investimentos especulativos em terras.
Convém mencionar ainda que atualmente o fenômeno da apropriação de terras não
sentido apenas para a agricultura. De acordo com as recentes análises sobre o assunto, é
imprescindível considerá-la como um processo mais amplo, de apropriação e controle da água,
dos demais recursos naturais e dos usos e benefícios associados a eles. Nas palavras dos
pesquisadores,
Na linha de nossos trabalhos mais recentes (BUENO e SILVA, 2014; 2017), temos
sustentado uma concepção do constitucionalismo que se coaduna à compreensão materialista
do fenômeno do Estado capitalista e sua relação com os conflitos de classes e frações de classes
sociais no interior das formações sociais concretas. As Constituições se erigem assim como
reflexos de uma determinada correlação de forças; um espelho do quadro geral das forças
sociais em conflito, incluindo as contradições e fissuras decorrentes destas disputas – nas
palavras do professor Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, a Constituição é um momento do
realismo político (2012, p. 205).
Mas ao mesmo tempo a Constituição também cumpre uma função primordial de tentar
também cristalizar o essencial desse quadro geral de forças ao regular internamente os cálculos
precisos de sua própria modificação. Definindo as “regras do jogo”, ela também comporta as
regras básicas de transformação do próprio sistema jurídico, fazendo com que suas
modificações se tornem transformações reguladas no seio de seu sistema (POULANTZAS,
[1978] 2000, p. 89).
O constitucionalismo, portanto, deve ser vislumbrado em sua umbilical relação com a
teoria social, a história, a economia e a política, de modo que a “Constituição real” e a
“Constituição normativa” se mantêm em permanente contato (BERCOVICI, 2005, p. 41). A
Constituição é assim revelada tanto como o resultado de processos históricos de conflitos
políticos, como também objeto desses conflitos: assim que promulgada, ela própria, suas
contradições internas e a interpretação dada ao seu texto e ao sentido do sistema de normas que
ela irradia, se tornam objeto de disputa, a depender das correlações de forças sociais em um
dado momento político.
Durante o início do Século XX, sobretudo a partir da Primeira Guerra Mundial,
vislumbra-se uma tendência no sentido de internalização das questões econômicas dos Estados
às constituições nacionais, de cujos primeiros exemplos são as constituições do México (1917)
e – o mais famoso – de Weimar (1919). A este modelo chamamos, na teoria constitucional, de
Constituição Econômica. Segundo Bercovici, há ainda uma diferença fundamental que surge a
partir do “constitucionalismo social” do século XX e que marca o debate sobre a Constituição
Econômica: “o fato de que as Constituições não pretendem mais receber a estrutura econômica
existente, mas querem alterá-la”. Ou seja, a partir do que hoje entendemos como uma
“Constituição dirigente”, a Constituição Econômica pretende “uma nova ordem econômica;
quer alterar a ordem econômica existente, rejeitando o mito da auto-regulação do mercado”
(BERCOVICI, 2005, p. 33). Esse fenômeno, portanto, acompanha um processo de
hegemonização dos ideários de regulação econômica que repelem os primados liberais do
laissez-faire durante o início do século XX, e aprofundado a partir do período pós-guerra para
a reconstrução dos Estados nacionais.
No Brasil, o processo de “modernização conservadora” promovido pelos governos
desenvolvimentistas das décadas de 1930-1970 influenciou fortemente o constitucionalismo
nacional, na construção de modelos de Constituição e de Estado interventores na ordem
econômica, com vistas à satisfação dos “interesses nacionais” e à promoção do
“desenvolvimento”. Guardadas a extrema complexidade das correlações de forças e dos
conflitos sociais subjacentes a esse largo período de mais de quatro décadas, e mesmo das
diversas orientações desses governos que perpassaram democracias e ditaduras, pode-se dizer
que a tônica do período foi a construção de estruturas de Estado fortes, baseadas na soberania
nacional, e voltadas para a intervenção no campo econômico com vistas ao seu respectivo
ideário de desenvolvimento nacional.
Dessa forma, podemos considerar a Constituição de 1934 como a primeira
“Constituição Econômica” do Brasil, sendo fortemente influenciada pela orientação
desenvolvimentista do primeiro governo varguista: incluía um capítulo específico referente à
Ordem Econômica e Social, devendo ser organizada de acordo com princípios da justiça e
“necessidades da vida nacional”, possibilitava o monopólio de determinados setores da
economia pela União e fomentava a economia popular, separando ainda a propriedade do
subsolo à propriedade do solo e nacionalizando minas e jazidas. Além disso, criou uma nova
formatação ao federalismo brasileiro, estabelecendo uma estrutura de cooperação entre os entes
federados para o combate às endemias e às secas na região Nordeste (BERCOVICI, 2005, p.
17-18).
As ordens constitucionais posteriores foram igualmente influenciadas pelo contexto
desenvolvimentista da época, além das peculiaridades dos processos políticos em cada
momento histórico. A Carta de 1937 criava o Conselho da Economia Nacional, para a
regulamentação e a organização a economia nacional, a análise das condições de trabalho e da
produção nacional, também fomentava a economia popular, abrindo portas para o
desenvolvimento do direito concorrencial no país. A Constituição de 1946 consolidou a
estrutura cooperativa no federalismo brasileiro prevista desde 1934, com ênfase na redução dos
desequilíbrios regionais, consagrou a intervenção estatal na economia como forma de correção
dos desequilíbrios causados pelo mercado, possibilitando o projeto de evolução do Estado
desenvolvimentista como agente responsável pela transformação das estruturas econômicas
durante as décadas de 1950 e 1960, processo posteriormente interrompido pelo golpe de 1964.
Com as alterações das políticas econômicas promovidas durante a ditadura civil-militar, as
ordens jurídicas estabelecidas pelas Cartas outorgadas em 1967 e 1969 serviram ao projeto de
modernização centrado na intervenção para a criação de condições favoráveis ao crescimento
e do setor privado, de grandes empresas nacionais e – sobretudo – transnacionais (BERCOVICI,
2005, pp. 18-30).
O programa desenvolvimentista conservador da ditadura civil-militar, muito embora
tenha possibilitado uma alta taxa de crescimento econômico entre os anos de 1968 a 1973 (o
chamado “milagre econômico”), foi baseado no endividamento externo do País e no
desequilíbrio fiscal. Devido a uma diversidade de fatores, mas sobretudo ao cenário da escalada
das taxas de juros internacionais e da crise da dívida externa ao final dos anos 1970, a ditadura
passou então a enfrentar um grave quadro de crises econômicas que fortaleceram as lutas pela
abertura democrática. A conjuntura estabelecida e as medidas adotadas pelos governos militares
resultaram então num aumento exponencial de manifestações populares, com greves e
ocupações de terras por todo o país durante a segunda metade dos anos 1980 (SILVEIRA, 2009,
p. 76).
Esse quadro específico de conflitos acabou sendo também fundamental para influenciar
o processo constituinte de 1986-1988, através da relativa inserção e da unidade dos movimentos
populares e grupos políticos, que, apesar das derrotas4, foram capazes de imprimir à Carta
Política uma série de avanços, materializados em direitos e garantias individuais e sociais
(LIMA, 2009, p. 306). Ao final do processo constituinte, pode-se dizer que a Constituição da
República promulgada em 1988 somou à uma vasta e avançada carta de direitos individuais e
sociais – insertos sobretudo em seus artigos 5º, 6º e 7º – as estruturas basilares do modelo de
Estado desenvolvimentista e interventor construído durante as décadas anteriores, com
importantes inovações nesse campo, promovendo a preocupação com um modelo de
desenvolvimento social e ecologicamente equilibrado.
O Estado fundado pela Constituição de 1988 é capitalista, possui entre os fundamentos
da ordem econômica a propriedade privada, a defesa da livre iniciativa e da livre concorrência
(artigo 1º, inciso IV, e artigo 170, caput e incisos II e IV). Todavia, ela também compreende
4
A principal delas foi, sem dúvida, o estabelecimento de uma Assembleia Nacional Constituinte congressual. A
luta dos movimentos populares à época se deu, ao contrário, na defesa de uma Constituinte exclusiva, ou seja, uma
Constituinte apartada do Congresso Nacional, convocada com a tarefa única de produção do texto constitucional,
que se dissolveria logo após o seu cumprimento (BUENO e SILVA, 2014).
um modelo de Constituição Econômica (de Estado e de acumulação capitalista, portanto) que
impõe limites a tais princípios, sendo fortemente voltada para a transformação das estruturas
sociais, o que já é destacado pela redação de seu artigo 3º, que elege a garantia do
desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades
sociais e regionais como objetivos fundamentais da República. O Título VII, referente à Ordem
Econômica e Financeira (artigos 170 a 192) – que segundo Bercovici, não por acaso foi o trecho
onde se travaram os maiores embates políticos e ideológicos nas discussões da ANC (2005, p.
38) –, sistematiza importantes dispositivos relativos à atuação e a intervenção do Estado nesse
domínio e a configuração jurídica da economia, dispondo ainda sobre as políticas de
desenvolvimento urbano (artigos 182 a 183), política agrícola e a reforma agrária (artigos 184
a 191), e sobre o sistema financeiro nacional (artigo 192, hoje transfigurado pela Emenda
Constitucional nº 40, de 2003).
Entre os princípios da ordem econômica, destacamos a soberania nacional (eleita
também como fundamento primeiro da República, pelo artigo 1º, inciso I), a função social da
propriedade, a redução das desigualdades regionais e sociais e defesa do meio ambiente,
inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e
serviços e de seus processos de elaboração e prestação (artigo 170). Ademais, convém
mencionar que a redação original do artigo 171, posteriormente revogado pela Emenda
Constitucional nº 6, de 1995 – o que, como veremos, constitui um dos cernes da discussão
jurídica em torno da estrangeirização de terras no país –, criava a categoria de empresa
brasileira de capital nacional, caracterizada pelo controle acionário majoritário sob a
titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no país, conferindo a
esta diversas possibilidades de proteções e benefícios especiais. O artigo 172, ainda prevê a
disciplina em lei, com base no interesse nacional, dos investimentos de capital estrangeiro no
país. Ademais, além de prever a defesa do meio ambiente como um dos princípios basilares da
ordem econômica, o artigo 225 dispõe sobre a proteção do meio ambiente ecologicamente
equilibrado, com a definição, além de ações diretas de proteção ambiental pelo Estado, de
mecanismos de fiscalização, controle e intervenção sobre os sistemas produtivos.
Não bastasse, a Constituição reservou ainda dispositivo específico sobre a
estrangeirização de terras, matéria aqui em discussão, ao prever, em seu artigo 190, a disposição
em lei da regulação e limitação da aquisição ou arrendamento de propriedade rural por pessoa
física ou jurídica estrangeira, bem como o estabelecimento de casos que dependerão de
autorização do Congresso Nacional. Tal legislação, como veremos a seguir, já existia no
período anterior à Constituição, datando do início da década de 1970; os debates sobre sua
adequação ao novo texto constitucional constituem o cerne de uma controvérsia tão antiga
quanto, e que revelam grandes embates em torno da temática, hoje acirrados pela conjuntura
política global.
Muito embora aprovado pela Presidência da República, tal parecer não foi publicado à
época, não adquirindo assim força normativa perante toda a Administração Federal, obrigando
apenas as repartições interessadas no processo.
No ano seguinte o artigo 171 da Constituição, dispositivo que fundara a controvérsia
sobre a recepção, pela Carta Política, da regra extensiva constante da Lei 5.709/1971, acabou
inteiramente fulminado pela Emenda Constitucional nº 6, 15 de agosto de 1995. Este fato gerou
nova controvérsia no interior da Administração Pública Federal, suscitando nova apreciação da
matéria pela AGU através do Parecer nº GQ-181/1998. Neste segundo parecer, o órgão
entendeu que a conclusão obtida anteriormente seria no sentido da “revogação” do §1º do artigo
1º da Lei 5.709/1971 – muito embora tenha este parecer feito obrigar apenas as Pastas
ministeriais que à época suscitaram a controvérsia –, pela Constituição de 1988, sobretudo com
base na redação do (agora revogado) artigo 171. Todavia, com a revogação do dispositivo
constitucional, não haveria que se falar em “repristinação” da norma supostamente “revogada”,
o que é bem sintetizado pelo seguinte trecho:
Muito embora tais pareceres tenham gerado a possiblidade de que pessoas jurídicas
brasileiras com controle acionário estrangeiro pudessem adquirir ou arrendar imóveis sem as
limitações da Lei 5.709/1971, durante alguns anos a discussão no âmbito da Administração
Pública Federal pareceu enfim encerrada. Todavia, quase uma década depois do último parecer
da AGU, já sob a nova gestão à frente do Executivo Federal, a questão foi novamente trazida à
tona pelo órgão, através do Parecer CGU/AGU nº 01/2008 – RVJ, posteriormente aprovado
pelo então Advogado-Geral da União e pelo Presidente da República no ano de 2010 (Parecer
nº LA-01). Neste último parecer a AGU acabou revendo seu posicionamento inicial, passando
a admitir enfim a recepção do artigo 1º, §1º, da Lei 5.709/1971.
Com base em ampla e sistemática leitura do texto constitucional, o último Parecer da
AGU levanta diversos argumentos pela perfeita adequabilidade constitucional da norma
extensiva das limitações às empresas brasileiras de capital estrangeiro (§1º do artigo 1º da Lei
5.709/1971). Entre seus principais argumentos que convém aqui destacar, o Parecer sustenta
que: (a) a redação original do artigo 171 da Constituição em verdade afirmava que as empresas
brasileiras (de controle acionário estrangeiro) não poderiam atuar em setores estratégicos ou
imprescindíveis ao desenvolvimento tecnológico nacional, tratando-se de uma “restrição
genérica” que se compatibilizava com a norma infraconstitucional em comento; (b) a plena
compatibilidade da norma extensiva com o artigo 190 da Constituição da República; além da
(c) a compatibilidade da norma com os princípios da soberania e da independência nacional, a
garantia do desenvolvimento, o interesse nacional e a previsão constitucional sobre os
investimentos de capital estrangeiro no País (BRASIL, 2010).
Nesse sentido, a análise da AGU em seu mais recente parecer está em perfeita
consonância com nossa leitura sobre o modelo de acumulação capitalista e a forma de Estado
prevista pela Constituição da República, tal como descrito no capítulo anterior. Sendo a
“essência política” do modelo de globalização neoliberal, do qual emerge o novo processo de
apropriação e estrangeirização de terras a nível mundial, a ameaça à soberania e a
independência nacionais, este entra em patente contradição com o modelo de desenvolvimento,
os princípios da ordem econômica e os fundamentos da República emanados pela ordem
constitucional. Nesse sentido, o próprio parecer menciona que
127. Para Uadi Lammêgo Bullos, “A soberania nacional econômica diz respeito à
formação de um capitalismo nacional autônomo, sem ingerências externas”.
128. O vínculo do princípio da soberania relacionado à ordem econômica se
manifesta, também, quando posto em cotejo com o princípio da independência
nacional, princípio reitor do Brasil nas suas relações internacionais, consoante o inciso
I do art. 4º da Carta Magna.
129. O dispositivo legal em análise compatibiliza-se, ainda, com os objetivos
fundamentais da República, especialmente com o descrito no inciso II do art. 3º,
“garantir o desenvolvimento nacional”.
130. Esse conjunto de princípios, fundamentos e objetivos fundamentais postos na
Constituição Federal, e que exigem a integração da legislação infraconstitucional,
intencionam assegurar ao País as condições necessárias de desenvolvimento, levando-
se em consideração o estágio evolutivo de nossa economia, afastadas veleidades
ideológicas, preconceitos ou sentimentos xenófobos. O exercício exegético elaborado
neste parecer cinge-se, como dito anteriormente, aos ditames jurídico-constitucionais.
Dessa forma, tem-se claro que o entendimento exarado nos primeiros pareceres da AGU
acarretaria no completo esvaziamento de sentido da previsão de limitação da venda de terras a
estrangeiros pela Constituição. Nessa toada, ainda, a Procuradoria-Geral da República também
menciona a crítica de Edson Ferreira de Carvalho, para quem os Pareceres AGU/GQ-22/94 e
AGU/GQ-181/1998 instituíram verdadeira “aberração jurídica” frente ao tratamento da
matéria, eis que permitiu aos titulares estrangeiros de 99% do capital de empresas nacionais a
aquisição livre de áreas rurais no país. De acordo com o jurista, e como bem expusemos no
primeiro capítulo, os riscos envolvidos com a aquisição de terras por estrangeiros sem
limitações transcendem ao mero controle sobre o território, passando também pelo próprio risco
ambiental de modelos de exploração predatórios e sem controle dos recursos naturais:
Convém mencionar ainda que, junto à ADPF nº 342, também tramita no STF a Ação
Cível Originária 2.463/DF. A controvérsia nesta ação cinge-se sobre a adoção, através de
orientação normativa da Corregedoria-Geral de Justiça de São Paulo, da mesma conclusão
exarada nos primeiros pareceres da AGU, em virtude de decisão em mandado de segurança
julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo5, no mesmo sentido. Em vista da
colisão com o atual entendimento da AGU, contido no Parecer nº LA-01, a ação foi então
ajuizada pela União e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) visando
o reconhecimento do conflito federativo, da usurpação da competência federal para dispor sobre
a matéria e do risco à soberania nacional.
Recentemente o relator do caso, ministro Marco Aurélio, teve oportunidade de se
manifestar sobre o caso quando da decisão que deferiu medida cautelar pleiteada pelos autores,
suspendendo os efeitos do parecer da Corregedoria-Geral de Justiça paulista. Pela breve
decisão, o ministro adiantou seu exame sobre o conflito de princípios e interesses que envolvem
o caso, pontuando que
5
Trata-se do Mandado de Segurança nº 0058947-33.2012.8.26.000.
República:
[…]
A efetividade dessa norma pressupõe que, na locução “estrangeiro”, sejam
incluídas entidades nacionais controladas por capital alienígena. A assim não se
concluir, a burla ao texto constitucional se concretizará, presente a possibilidade
de a criação formal de pessoa jurídica nacional ser suficiente à observância dos
requisitos legais, mesmo em face da submissão da entidade a diretrizes
estrangeiras – configurando a situação que o constituinte buscou coibir.
(BRASIL, 2016, p. 8-9) [grifo nosso]
Por fim, cumpre finalmente mencionar ainda a existência de diversos projetos de lei
sobre a matéria, que se encontram atualmente em tramitação em regime de urgência no
Congresso Nacional. O primeiro desses projetos, o PL nº 2.289, de 2007, foi protocolado pelo
deputado Beto Faro (PT/PA), com vistas a fornecer nova regulamentação à matéria, revogando-
se a inteireza da atual Lei nº 5.709/1971. A este projeto de lei foram apensados outros seis
projetos6, entre alterações na atual legislação sobre a matéria, tanto para flexibilizar quanto para
promover maiores restrições a venda de terras para pessoas físicas e jurídicas estrangeiras.
Não cabe aqui uma análise minuciosa de cada um desses projetos, o que renderia um
estudo específico e exaustivo. Todavia, convém mencionar novas ameaças conferidas na
redação de alguns desses projetos, que se dão no mesmo sentido do cerne dos atuais embates
sobre a questão. Nesse sentido, por exemplo, o Projeto de Lei nº 4.059, de 2012, proposto pela
Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos
Deputados, prevê expressamente que as restrições previstas pela legislação não se aplicam às
pessoas jurídicas brasileiras, ainda que constituídas ou controladas direta ou indiretamente
por pessoas privadas, físicas ou jurídicas estrangeiras (artigo 1º, §2º). No mesmo sentido,
ainda o projeto proposto mais recentemente, o PL 6.379, de 2016, de autoria do deputado
Jerônimo Goergen (PP/RS), integrante da Frente Parlamentar da Agropecuária, se destina a
excluir das restrições as pessoas jurídicas nacionais das quais participem, a qualquer título,
pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam
ou tenham sede no Exterior, que utilizam para as suas atividades madeira de florestas
plantadas (artigo 2º).
Ora, como demonstrado, tal é justamente o cerne da controvérsia jurídica que se estende
por anos sobre a questão da estrangeirização da terra no Brasil. Como mencionado, também,
previsões como estas tem o condão de esvaziar por completo o sentido do comando
constitucional constante do artigo 190, que prevê a regulamentação e a limitação, por lei
ordinária, da aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, o que constitui clara violação aos
6
São eles o PLs nº 2.376/2007, 3.483/2008, 4.240/2008, 4.059/2012, 1.053/2015 e 6.379/2016.
princípios da soberania, da independência e do interesse nacional. Quaisquer normas que
venham no sentido de limitar tais restrições, pondo em risco o sentido do modelo de
desenvolvimento equilibrado e fundado na soberania, tal como previsto constitucionalmente,
hão de ser, portanto, consideradas flagrantemente inconstitucionais e de pronto repelidas do
ordenamento jurídico.
5. Conclusões
6. Referências
BRASIL. Lei no 5.709, de 7 de outubro de 1971. Regula a Aquisição de Imóvel Rural por
Estrangeiro Residente no País ou Pessoa Jurídica Estrangeira Autorizada a Funcionar no
Brasil, e dá outras Providências. Brasília, 7 out. 1971. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5709.htm>. Acesso em: 27 ago. 2017.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 2.289-B, de 2007 (Avulso da Matéria –
Republicado em 10/03/17 para inclusão de apensado). Regulamenta o art. 190 da
Constituição Federal, altera o art. 1º da Lei nº
4.131, de 3 de setembro de 1962, e dá outras providências. Brasília, 2007. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1532333&filena
me=Avulso+-PL+2289/2007>. Acesso em: 27 ago. 2017.
BUENO, Igor Mendes; SILVA, Maria Beatriz Oliveira. Constituinte e Lutas Populares: o
materialismo da Constituição e as lutas pela Constituinte Exclusiva. RCJ – Revista Culturas
Jurídicas, Vol. 1, Núm. 2, 2014. pp. 243-266. Disponível em:
<http://www.culturasjuridicas.uff.br/index.php/rcj/article/view/98>. Acesso em 29 ago. 2017.
LIMA, Luziano Pereira Mendes de. A atuação da esquerda no processo constituinte: 1986-
1988. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2009.
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra, [1978]
2000.
SAUER, Sérgio; BORRAS JR, Saturnino (Jun). ‘Land Grabbing’ e ‘Green Grabbing’: Uma
leitura da ‘corrida na produção acadêmica’ sobre a apropriação global de terras. Campo-
Território: Revista de Geografia Agrária, Edição especial, jun. 2016. p. 6-42. Disponível
em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/campoterritorio/article/view/35799>. Acesso em 27
ago. 2017.
SILVEIRA, Ramaís de Castro. Neoliberalismo: conceito e influências no Brasil – de
Sarney a FHC. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), 2009. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/16218>. Acesso em: 9 set.
2016.