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INTRODUÇÃO
As intrínsecas relações entre desigualdades e diferenças socioespaciais
requerem do pesquisador olhar atento para apreender as distinções entre esses
dois planos. Pesquisa realizada em cidades médias do Brasil revelam que a
acentuação das desigualdades socioespaciais vem sendo expressa por duas
dinâmicas: - afastamento socioespacial dos mais pobres, em direção a setores
da cidade menos dotados de meios de consumo coletivo: b) intensificação da
concentração espacial dos mais ricos em áreas mais distantes do centro, mas
fortemente servidas por bens e serviços públicos e privados.
Em função dessas duas dinâmicas, as desigualdades socioespacias revelam-se
como novas formas de diferenciação socioespacial, cujo conteúdo deixa de ser
positivo, ou seja, associado à ideia de respeito à diferença, para ser negativo,
visto que a condição espacial dos citadinos passa a ser base de suas
impossibilidades ou possibilidades limitadas de viver e se apropriar da cidade,
uma vez que condiciona suas práticas socioespaciais.
Para desenvolver essas ideias, o texto está organizado em três seções: Na
primeira, faço uma reflexão sobre as relações e distinções entre desigualdades
e diferenças, trazendo o debate sobre elas para o plano socioespacial; na
segunda parte, destaco um conjunto de elementos que auxiliam o
reconhecimento das particularidades das cidades médias, uma vez que os
processos gerais, ao se consubstanciarem em espaços urbanos de diferentes
estratos da rede urbana, revelam especificidades; por fim, busco mostrar com os
processos de segregação, autossegregação e fragmentação socioespaciais
desenvolvem-se nessas cidades .
Face ao caráter que escolhi atribuir ao texto – essencialmente discussão de
ideias – não trago elementos empíricos para demonstrá-las, mas elas emergem
Desse ponto de vista, ao mesmo tempo que podemos definir o conteúdo das
palavras ou os seus conteúdos, devemos prestar atenção para a relação entre
objetividade e subjetividade que contêm. Nem sempre os pesquisadores estão
atentos a essa relação entre uso rotineiro e uso científico das palavras,
preferindo ater-se ao segundo plano, o que é importante, mas insuficiente, porqu
é na relação entre ambos que se desvela o uso político das palavras e o modo
como objetiva e subjetivamente a sociedade as incorpora, vive e constrói suas
concepções de mundo, o que inclui sua visão sobre os outros e sobre o espaço,
especialmente importantes nesse texto. Sigo, então, o lembrete de Souza (2011,
p. 147), para quem:
3 Direta ou indiretamente decorrente deste debate uma série de textos foram publicados no
volume 4. Número 6 da revista científica Cidades, bem como no livro intitulado “A produção do
espaço urbano” (CARLOS, SOUZA e SPOSITO, 2011). Para aprofundar essa discussão e refletir
sobre as diferenças semânticas e conceituais da adoção do adjetivo socioespacial ou sócio-
espacial, ver Souza (2008) e Catalão (2011). Neste debate, alinho-me à posição de Catalão e
opto pelo socioespacial, compreendido por ele, como relação entre o espaço social e as relações
sociais, divergindo neste ponto de Souza e do que se registrou na apresentação do livro de
Carlos, Souza e Sposito (2011), do qual, como se vê facilmente, também sou organizadora,
mostrando o quanto é pleno de divergências e até de contradições este debate que, a meu ver,
ainda está em curso.
Neste sentido, o processo de diferenciação socioespacial desenvolve-se por
meio da reprodução de desigualdades socioespaciais, expressas a fundadas em
vários planos e diversas carências. Com razão, Carlos
Desse modo a prática socioespacial fundada na desigualdade concreta e real
propõe a realização da diferença num outro plano, contestando, de um lado, a
redução do humano e da vida na cidade ao mundo da mercadoria, que produz a
“cidade como negócio” (o crescimento como estratégia da reprodução espacial)
e de outro, mas a ela associado, o planejamento do espaço sob a lógica do
econômico posto que a condição do lugar na sua inserção à lógica global,
produtora (também ela) de iferenciações, aprofunda a contradição entre espaços
integrados/desintegrados à globalização, também traduzida pela contradição
centro-periferia, como apontada por Soja (1993). Portanto a diferenciação se
estabelece e se realiza, a partir do lugar, entre escalas e em cada uma delas.
4 As ideias contidas nessa seção do texto foram expostas oralmente no XIV Workshop da Rede
de Pesquisadores sobre Cidades Médias, ocorrido em 2017, em Chapecó, Brasil. Como não
foram publicadas são agora incluídas neste texto para um debate mais amplo.
são, também, adequados para o estudo de cidades de diferentes tamanhos,
graus de complexidade de papeis e posição na divisão interurbana do trabalho.
Refiro-me aos pares (1) quantidade – qualidade, (2) forma – processo, (3)
espaço – tempo; à tríade (4) geral, particular e singular5 e, por fim, (4) articulação
entre escalas geográficas6. Cito-os, pois, para tratar de variáveis importantes à
leitura da intermediação urbana, apoio-me neles, daqui para frente, ainda que
não vá, propriamente, ater-me a eles.
Um primeiro desafio que me parece relevante para apreender, antes mesmo de
compreender, cidades médias é o de fazer a delimitação da área que se toma
como referência para compreendê-la. No passado, não tão distante, o conceito
de região, fosse a natural, a polarizada, a homogênea ou..., era suficiente para
estabelecer tal delimitação. A cidade média (e não apenas a cidade de tamanho
médio) tinha seus papéis definidos pelo seu alcance regional (o domínio e a
oferta de bens e serviços às pequenas de um dado território) e pelos modos
como drenava riqueza para as metrópoles, delas recebia comando e com elas
estabelecia articulações. Poderia se afirmar que a delimitação da área com
significância para compreendê-la podia se apoiar na configuração da região que
ela comandava e articulava.
Sabemos, entretanto, que a internacionalização crescente da economia e a
globalização da produção e do consumo e, por decorrência dos valores e
práticas espaciais, promovem continuamente novas configurações espaciais.
Elas sobrepõem-se às anteriores, conformando novos contornos, mas,
sobretudo, este é o ponto que quero frisar, deixando, cada vez mais claro, que a
continuidade espacial tem que se combinar à descontinuidade espacial e há
diferenças entre elas e as continuidades e descontinuidades territoriais (Sposito,
2005). Esta ideia não é nova, muito ao contrário, uma vez que, abordando os
problemas e a evolução da Geografia Regional, Pierre George (1972) já afirmava
que:
Se substituirmos a ideia de pesquisa de um espaço finito pela ideia de
determinação de um complexo de forças de ação, a região deixará de exprimir-
se em termos de superfície delimitada e passará a fazê-lo em termos de fluxos
e tensões (p. 107).
É o mesmo autor quem adverte, entretanto, que “...não existe nada mais
impreciso do que os limites da zona de influência de uma cidade” (p. 108),
chamando atenção para fato de que a região, como “...processo em constante
mutação não precisa ser encerrada, nem teórica, nem concretamente, num
espaço finito...” (p. 109) o que, para ele, serviria apenas como uma projeção das
responsabilidades de gestão.
A ideia de região como espaço homogêneo e, em certa medida, como campo de
polarização, pôde ser superada, no plano teórico, pelas evidências da crescente
5 Esta tríade poderia enunciada como universal, particular e singular, mas tenho escolhido ‘geral’
no lugar de ‘universal’, uma vez que pode haver confusão entre universal e a ideia geográfica de
Mundo ou de Universo, que tem relação com a tríade, mas não é a mesma coisa que sua
categoria mais abrangente.
6 Estes fundamentos de método alicerçam a pesquisa enunciada na nota de rodapé 1.
tendência de se ampliarem as escalas geográficas segundo as quais territórios
e cidades se articulam no espaço e no tempo.
Estas considerações poderiam levar ao que considero como uma falsa
conclusão: não é mais importante delimitar territórios e, tampouco, apreender o
que se poderia chamar de alcance espacial de uma cidade média, ao efetuar a
intermediação urbana. Penso que, ao contrário, a delimitação territorial, mesmo
que provisória e continuamente mutante, como é próprio de todos os processos
deve, ainda, constituir-se como uma variável importante para o estudo das
cidades médias, desde que ela esteja sempre associada ao objeto da pesquisa.
Com esta afirmação, mais uma vez, faço questão de frisar (talvez respondendo
às críticas que os estudos sobre cidades médias recebem) que a força analítica
não está na ideia de ter a cidade média como o objeto em si, mas de tomá-la
como referência para o estudo de processos e dinâmicas que são significativas
para compreender o período atual. Deste ponto de vista, elas não são o fim da
pesquisa, mas um meio ou um plano, a partir do qual se compreende dado
processo, dinâmica ou fenômeno.
Invertendo o ponto de vista, ou seja, colocando a cidade média no movimento
de elaboração do pensamento, não como ponto de chegada, mas como dado de
realidade, capaz de oferecer elementos particulares ao entendimento do mundo
urbano e rural, a delimitação (portadora da ideia de continuidade-
descontinuidade territorial e espacial) deve sempre estar afeita ao objeto da
análise. Pensando assim, o objeto, ainda que construído a partir de dada
realidade, tem que ser elaborado abstratamente.
Assim pensando, não há delimitação, mas delimitações, não há região, mas
regiões, não há continuidades apenas, mas também descontinuidades.
O mesmo pode se aplicar à escala de cada cidade média, se queremos
apreender como DIFERENÇAS e DESIGUALDADES socioespaciais se estabelecem e
se conformam. Em grande medida, os pesquisadores têm enfrentado as
dificuldades de obtenção de dados a partir de diferentes delimitações atinentes
ao espaço urbano (setores censitários, áreas ou zonas de planejamento, setores
de definição do pagamento de tributos fundiários e imobiliários etc.). Tais
delimitações, por serem continentes dos dados, influem no tratamento da
informação e, sobretudo, na mensuração das DESIGUALDADES socioespaiciais,
gerando, por exemplo, estudos como os relativos aos mapas de inclusão e
exclusão sociais, espaciais ou socioespaciais.
De outro lado, os que têm como objeto de pesquisa algum problema na escala
da cidade, não sem frequência, enfrentam a dificuldade da delimitação para a
abordagem das DIFERENÇAS socioespaciais, que não podem ser compreendidas
segundo áreas, zonas ou setores desenhados para a produção de dados e
informações, visto que as DIFERENÇAS têm base nas relações sociais, no modo
como, no espaço, situamo-nos e nos relacionamos com os outros. São essas as
bases com as quais construímos nossa visão sobre os outros, a partir do espaço
que ocupam e, sobre a cidade, segundo esse mosaico de valores que se
estabelecem, mesmo quando eles não são mensuráveis (como podem ser no
caso das DESIGUALDADES), mas geram hierarquias que conformam nossa própria
representação social do espaço urbano.
A variável delimitação torna-se, assim, não apenas o desenho da área que se
toma como referência para compreender uma ou várias cidades médias, mas a
configuração que se institui como processo, como dinâmica ou fenômeno, estes
sim construídos como o objeto do pesquisador.
Se o leitor estiver de acordo com este primeiro ponto de chegada, posso passar
à segunda variável, que considero especialmente relevante ao estudo das
cidades médias, que é a extensão.
Igualmente, neste caso, como não poderia deixar de ser, esta variável não é
específica ao estudo das cidades médias, uma vez que estamos falando de um
modo de olhar o espaço, um recorte analítico, a partir do qual podem se
evidenciar os objetos geográficos. Trato, apenas, de chamar atenção para as
particularidades desta variável no estudo das cidades médias.
Enfoco-a, primeiramente, na escala geográfica das redes urbanas ou dos
sistemas urbanos, se queremos ultrapassar limites e fronteiras regionais e
nacionais. Fiquei sensível à consideração desta variável desde 2016, quando de
minha participação em dois eventos científicos7. No primeiro, onde havia
pesquisadores de vários países do mundo, e tendo que fazer uma síntese das
pesquisas brasileiras, tive dificuldades de levar os investigadores de países
menores ou de países densamente urbanizados a compreender, por que o
estudo das cidades médias era importante, a meu ver, para compreender a
urbanização brasileira. Em outros países seja pelo tamanho de seus territórios,
seja pelo contingente populacional que têm ou pela rede urbana que constituíram
historicamente, gerando maior ou menor densidade de ocupação, o estudo
desse estrato da rede urbana não é importante ou não foi reconhecido como tal.
No segundo, quando tive a chance de conhecer a cartografia de grande
qualidade feita pelo IBGE e pelo IPEA, que expuseram neste seminário suas
pesquisas, a questão das DESIGUALDADES regionais no Brasil, apareceu com
maior força que nunca, tornando mais visível o papel da extensão, no
enfrentamento das disparidades observadas no território nacional, na direção de
superá-las sem buscar homogeneidade ou o fim das DIFERENÇAS.
Devemos tratar essa variável também na escala da cidade e, nesse caso, há
especificidades das cidades médias a serem destacadas. Com frequência, a
extensão de seus tecidos urbanos, mesmo considerando as descontinuidades
territoriais não é grande, sobretudo comparada à das áreas metropolitanas,
classificadas como de porte regional o ou nacional. De qualquer dos pontos mais
periféricos dos tecidos urbanos de cidades médias (e, nesse caso, aplica-se
também para as que são apenas de tamanho demográfico médio, embora não
exerçam papéis importantes de intermediação na rede urbana) ao centro, temos
distâncias que são de, em média de no máximo 10 km, o que significa, mesmo
de transporte coletivo tempos de deslocamento que variam entre 20 e 30 minutos
do centro principal. Isso significa que é possível aos consumidores ter, em tese,
condições de se deslocar a qualquer ponto da cidade. Por outro lado, essa
mesma extensão, marcada por descontinuidades, face ao tamanho demográfico
7 IV World Planning Schools Congress, 2016, realizado no Rio de Janeiro, onde coorganizei a
sessão “Small and medium-sized towns: role and policy challenges in a globalized world”.
Workshop "Novas centralidades urbanas em apoio à Política Nacional de
Desenvolvimento Urbano”, 2016, realizado em Brasília, por iniciativa do Ministério da
Integração, onde estive como debatedora.
dessas cidades possibilita a existência de um estoque de terras
proporcionalmente mais importante do que o que é possível nas grandes cidades
e nos espaços metropolitanos, gerando condições aos incorporadores
imobiliários de reservarem extensas faixas de terra para a implantação de novos
loteamentos abertos ou fechados e controlados por sistemas de segurança e
vigilância para determinados estratos sociais de maior poder aquisitivo. Voltarei
a este ponto na próxima seção do texto.
A variável extensão contém a ideia de distância, ou seja, a extensão de uma
dada área pressupõe as distâncias entre os pontos que a constituem (como
contiguidade), mas também entre eles e tantos outros dispostos em outras áreas
(como continuidades espaciais ou como descontinuidades espaciais, nos termos
explicitados em Sposito, 2005). Quanto maior a extensão da área delimitada para
a compreensão de um dado processo, dinâmica ou fenômeno, maiores as
distâncias e, portanto, os papéis das cidades médias, a partir das quais se
analisa tal área, podem ser diversos, segundo a distância.
Entretanto, não podemos nos ater apenas à métrica, segundo a qual a extensão
e, correlatamente, as distâncias, podem ser apreendidas, uma vez que a “...
distância, que configura espacialmente os componentes do real, torna-se
inseparável de sua substância”8 (LÉVY e LUSSAULT, 2003, p. 268). Nestes
termos, para estes autores, não estamos falando apenas da distância euclidiana,
mas sim que a medida da distância deve ser pensada segundo cada realidade
social e, no plano teórico, podemos considerar que:
Para as sociedades, o problema do espaço pode ser visto como a gestão das
contradições engendradas pela distância, que impede a interação: entre os
limites do isolamento (distância infinita) e a ubiquidade (distância vencida), as
situações intermediárias podem ser tratadas segundo três modalidades: a co-
presença (distância anulada pela co-localização), a mobilidade (deslocamento
material para estabelecer a ligação entre duas realidades distantes), a
telecomunicação (transferência imaterial). (LÉVY e LUSSAULT, 2003, p. 269,
itálicos dos autores).9
8 Tradução nossa de “La distance, qui configure spatialment les composants du réel, devient
inséparable de leur substance”.
9 Tradução nossa de “Pour les sociétés, le problème de la distance, que empêche l’interaction:
entre les bornes d’enclavement (distance infinie) et la ubiquité (distance vaincue), les situations
intermédiares peuvent être traitées selon trois modalités: la coprésence (distance annulée par la
co-localisation), la mobilité (déplacement matériel pour établir un lien entre deux réalités
distantes), la télé-communication (transfer immatériel)”.
metrópoles, como possibilitar a articulação delas em escalas mais abrangentes
geograficamente, se suas situações espaciais e as lógicas e estratégias de seus
agentes, definirem-se nesta direção. Deste ponto de vista, se a mobilidade tinha,
antes, relação inversa à distância – quanto maior a distância mais presentes os
obstáculos à mobilidade – temos, hoje, com as telecomunicações, uma
pluralidade maior de situações, ainda que, de fato, o espaço não esteja anulado
pelo tempo.
A variável extensão deve, assim, ser vista como distância, tanto no plano
material como imaterial, nos âmbitos econômico, social e político. A distância
nestes termos não é geométrica, mas é resultado da combinação entre distância,
tempo e meios disponíveis e acessíveis para cada agente (indivíduos ou
instituições). Assim, penso que a extensão não pode ser vista como distância e
meios para vencê-la, mas, sobretudo, como espaço, no sentido de continente
tanto de objetos como de ações, para tomar o par consagrado por Santos (1996).
Deste segundo plano de aproximação deriva a terceira variável que gostaria de
abordar – a densidade.
A posição de uma cidade média em sua rede urbana e sua situação geográfica
vis-à-vis outras cidades desta rede e de outras redes urbanas tem vínculo direto
com as relações que potencialmente pode estabelecer e, mais ainda, com as
que consegue estabelecer. Deste ponto de vista, tanto a posição na rede (em
termos do estrato a que pertence hierarquicamente falando e de suas
articulações do tipo heterárquico10) como a situação geográfica (que a situa no
espaço, em suas articulações com outros objetos geográficos) exigem sempre
uma perspectiva relacional para que sejam compreendidas.
Em grande medida, o enfoque relacional já é familiar aos estudos sobre elas, na
medida em que as cidades médias sempre são vistas em relação aos outros
espaços urbanos, talvez com intensidade muito maior que as cidades pequenas
e as metrópoles (para tomar as duas pontas da hierarquia urbana). A
intermediação, função central das cidades médias na rede urbana exige, via de
regra, que a divisão interurbana do trabalho seja vista não apenas como posição
na hierarquia, mas também como conjunto de funções e papéis que elas
exercem. Este olhar possibilitaria, a meu ver, atentar para as diferenças entre
uma e outra e, sobretudo, para os graus maiores ou menores de especializações
que marcam o perfil de cada uma delas.
Os estudos da ReCiMe já demostraram que algumas têm visto seus papéis
econômicos se ampliarem, outras mantêm com maior destaque suas funções
sociais de oferecimento de serviços importantes aos habitantes do território que
conseguem drenar ou polarizar. Algumas recebem os vetores de agentes que
saltam escalas, como propugnou Neil Smith, outras seguem atinentes ao escopo
de interações espaciais mais estreitos, contidos em espaços de menor
abrangência.
Trazendo a discussão para a escala de cada cidade, com vistas à discussão
sobre DESIGUALDADES e DIFERENÇAS socioespaciais, sabemos que a distribuição
da densidade no espaço não é homogênea e nem estou defendendo que o fosse,
no entanto é mister verificar não apenas a relação entre os objetos geográficos
11 Como já esclarecido na seção primeira desse texto, adoto o adjetivo socioespacial, no lugar
de somente social ou somente espacial ou urbana etc. Além disso, como já expus em Sposito
(2013), não considero todas as formas de diferenciação socioespacial como formas de
segregação, razão pela qual nessa passagem do texto, apenas, adoto a terminologia da autora.
12
Em várias passagens do livro, os autores se referem a Buenos Aires e São Paulo, mas também
a Paris, Chicago, Grenoble e muitas outras cidades, pois o raciocínio que desenvolvem avança
por meio do reconhecimento das diferenças e semelhanças, mostrando o que é particular ao
subcontinente latino-americano e o que é geral, em termos de processo de urbanização.
urbanos que resultam, tanto quanto resultava a cidade fordista, predecessora da
atual, da associação entre:
1) las diferentes modalidades de producción y organización del espacio
urbanizado; 2) los diversos usos del espacio público y privado, 3) el tipo
específico de relaciones que éstos guardan entre si y 4) los conflitos dominantes
por el espacio (Duhai e Giglia, 2016, p. 30).
16 Tradução nossa: A literatura latino-americana sobre conjuntos residenciais seguros não faz a
economia dessas metáforas, esses termos são mais frequentemente usados para ilustrar teses
sobre fragmentação social e espacial ou fratura urbana. A cidade compacta e densa, dotada de
uma forte coesão social e uma riqueza de relações, teria dado lugar a uma metrópole "explodida",
frouxa, descontínua... (Capron, 2006, p. 22).
apenas, para ser também resultado de novas formas de separação 17,
tanto objetivas e físicas (como os muros) quanto subjetivas (sistemas de
controle e vigilância que geram intimidação e hierarquização social);
não há como tratar a segregação ou a autossegregação18 em si, porque
fazem parte do mesmo processo, o de promover distância socioespacial
entre diferentes classes sociais, razão pela qual têm que ser vistas como
um par dialético, uma vez que “O par segregação - autossegregação
implica pelo menos dois pontos de vista possíveis: os que segregam e os
que são segregados, os que estão nas áreas segregadas e aqueles fora
dela.” (SPOSITO, 2013 e SPOSITO e GÓES, 2013).
Segundo essa perspectiva, o par segregação-autossegregação é um elemento
essencial para compreender como, no plano do uso do solo residencial,
combinam-se DESIGUALDADES e DIFERENÇAS socioespaciais. Não há dúvida que,
em função da elevação potencial do preço da terra e dos imóveis nesses
espaços residenciais fechados, ampliando o gradiente entre o maior e o menor
preço da terra e dos imóveis urbanos, como indicamos em Sposito e Góes (2013)
e como frisa Rodrigues (2013), há ampliação das DESIGUALDADES socioespaciais.
Cada vez mais distantes das áreas da cidade melhor equipadas de meios de
consumo coletivo públicos e privados, os mais pobres não têm visto diminuição
do custo de moradia, seja por aquisição19, seja por locação, mas na direção
oposta, os estratos médios e altos têm se disposto a pagar progressivamente
mais20 para se afastar e/ou separar dos que ganham menos. Nas cidades
médias, pelo custo menor dos imóveis nesses novos habitats urbanos, quando
fazemos comparação com os mesmos tipos de áreas residenciais nas grandes
metrópoles, é maior a participação relativa dos estratos médios na aquisição de
imóveis nesses ambientes urbanos.
A produção de espaços residenciais fechados, além de ampliar as
DESIGUALDADES socioespaciais, tanto pela expansão do tecido urbano, quanto
17
Seabra (2004, p. 194) considera que “A autossegregação nada mais do que um recurso
estratégico que visa administrar a separação consumada nos territórios do urbano”.
18 Outros autores, entre eles Rodrigues (2013), não estabelecem essa distinção, mas
desenvolvem sua análise na mesma direção que vimos defendendo, ao considerar que esse é
um elemento novo na cidade, ao afirmar: “Os muros configuram, assim, as novas formas de
segregação socioespacial” (p. 157). Nesse capítulo de livro, os leitores encontram uma análise
importante sobre o processo de produção desses espaços residenciais destacando a
potencialização da “...realização da propriedade e a apropriação privada dos espaços públicos e
coletivos” (p. 164).
19 Podemos, no caso brasileiro, fazer exceção aos imóveis que foram adquiridos pelo Programa
Minha Casa Minha Vida, faixa 1, face ao subsídio oferecido pelo Governo Federal, fato positivo,
mas que não veio acompanhado de boa situação espacial dos conjuntos habitacionais para os
estratos sociais mais pobres, porque se reproduziu nesse, a tendência histórica dos demais
programas de habitação social no Brasil, desde a instituição do Sistema Financeiro Habitacional,
em 1968, de localizar os conjuntos em porções periféricas das cidades, via de regra mal servidas
de condições adequadas para a vida urbana (infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos).
20 Ainda é necessária uma pesquisa sistemática e ampla sobre esse ponto, mas há indicadores
confiáveis de que imóveis de nível semelhante (área do terreno, área construída, padrão de
construção, idade do imóvel etc.) custam, em média, 30% mais, em cidades médias que vimos
estudando, quanto estão dentro dos muros, do que aqueles que estão na “cidade aberta”.
pelo aumento do gradiente de preços dos imóveis, são responsáveis pela
produção de novas formas de DIFERENCIAÇÃO socioespacial.
Aqui a relação entre quantidade (mais expressa pelo gradiente das
DESIGUALDADES) transforma-se em qualidade (mais revelada pelas DIFERENÇAS).
Na pesquisa que originou o livro de Sposito e Góes (2013), inúmeros
entrevistados, em Marília, Presidente Prudente e São Carlos, três cidades
médias paulistas, no Brasil, em suas respostas utilizaram o par “aqui” (dentro
dos espaços residenciais fechados) e “lá” (fora dos muros) diferenciando a
cidade, segundo duas partes que se distinguem claramente. Alguns também
fizeram referência ao fato de que, embora muita gente pobre seja honesta, é
fundamental reforçar os sistemas de controle e vigilância sobre os que trabalham
nesses espaços residenciais fechados (empregadas domésticas, jardineiros,
pedreiros etc.) mostrando que a distinção de classe social é base ainda de
diferentes formas de discriminação, estigmatização e, nesse caso, segregação
socioespacial e, portanto, de diferenciação socioespacial, porque se estabelece
por esses mecanismos de controle e vigilância quem têm direito de acesso a
esses habitats e quem deve passar por revistas mais sistemáticas, em
decorrência de sua posição social21. Com práticas dessa natureza, não apenas
as distâncias objetivas e subjetivas se estabelecem, como a sociedade se
diferencia, por meio de mecanismos que reforçam a ideia de prestígio social.
Nessa direção, entrevistados também fizeram referência, ao justificar a opção
por residir nesses espaços, ao fato de que queriam oferecer aos filhos um
ambiente mais seleto, onde eles pudessem brincar e conviver com crianças
“iguais a eles”.
Entretanto, como já destaquei nesse texto, a existência desses novos habitats
não representa o único elemento novo que contribui para o avanço do plano das
formas urbanas para o dos processos, alcançado a substância da cidade
contemporânea, pois há que se considerar, também, que as formas de
separação ultrapassam os espaços residenciais e alcançam as outras
dimensões da vida urbana.
Se na cidade fordista, em grande medida, o consumo era feito em
estabelecimentos diferentes, voltados a estratos de poder aquisitivo,
cuidadosamente selecionados, ou por tipos de lojas e marcas, ou pelos andares
a partir dos quais se estratificava o consumo nos magazines, grandes espaços
de consumo originados no século XIX e de grande prestígio, sobretudo na
primeira metade do século XX; na cidade atual, a produção de espaços de
consumo e serviços, como resultado mais de interesses fundiários e imobiliários,
como são os shopping centers, gerou três novos fenômenos na cidade
contemporânea, o que vem ocorrendo, no início paulatinamente (em São Paulo
a dinâmica teve início no final dos anos de 1960 e passou a se disseminar em
cidades médias no final dos anos de 1980), mas agora de modo marcante:
21Sobre esse tema, ver em Sposito e Góes (2013), a seção intitulada “Os Outros”, que se inicia
na p. 253.
a) multiplicação da centralidade gerando progressiva separação social entre os
lugares de consumo, uma vez que os centros principais das cidades deixaram
de ser um espaço em que a separação social se dava por lojas e trechos de ruas,
para ser, cada vez mais, espaços dos que ganham menos na América Latina, já
que os que ganham mais optam pelos shopping centers mais próximas das áreas
residenciais mais caras e de mais prestígio social;
b) a tendência ao consumo22 ganhar centralidade no período contemporâneo,
tanto em face do processo de constituição de uma sociedade de indivíduos 23,
nos termos propostos por Bourdin (2005, p. 34 e 35, e 2009), ao analisar as
metrópoles sobretudo, como em decorrência da importância crescente que os
artefatos e espaços de consumo têm ganhado numa sociedade tardocapitalista
que se autodefine por meio do consumo, como destacam Duhai e Giglia (2016,
p. 16).
c) a transformação do sentido e do conteúdo de vários espaços públicos,
gerando, além do par espaço público – espaço privado, outras possíveis
categorizações: - “espaço públicos de uso coletivo privado”, como os espaços
compartilhados pelos moradores de espaços residenciais fechados que não são
proprietários das terras de uso comum, mas vetam o direito de apropriação e uso
delas pelos que moram fora dos muros, e - “espaços privados de uso coletivo”,
como os de shopping centers onde a esfera pública não se realiza de modo
completo, face ao direito de controle privado e a orientação sobre formas de
comportamento e ação24.
Essas constatações mostram que as formas contemporâneas de separação
socioespacial não se restringem aos espaços residenciais, alertando para o fato
de que o par segregação – autossegregação é uma ferramenta conceitual que
importante, mas, quando se trata de compreender a cidade (e não apenas os
ambientes residenciais) é necessário lançar mão de um conceito mais
abrangente, como o de fragmentação socioespacial, que não se refere
exclusivamente à disposição dos usos sobre o espaço, nem apenas às relações
sociais que o engendram, mas também às ações e às práticas que se
concretizam e dão novos sentidos aos múltiplos fragmentos que compõem a
cidade atual.
Inúmeros autores, especialmente interessados em analisar os processos
contemporâneos de estruturação espacial nas cidades latino-americanas, têm
contribuído para a construção do conceito de fragmentação socioespacial 25,
tomamos para essa análise espacialmente os textos de Prévôt-Schapira (2001)
22 Sobre esse tema, tomando como referência as cidades médias, ver a recente análise de Góes
et al (2019).
23
Duhai e Giglia (2016, p. 19) estabelecem relação entre fragmentação e individualização do
consumo.
24 Essas ideias estão desenvolvidas em Sposito e Góes (2013).
25 Destaco alguns: Poche (1998), Gervais-Lambony (2001), Salgueiro (2001) Prévôt-Schapira
(2001), Navez-Bouchanine (2002), Paquot (2002), Rémy (2002), Rhéin (2204), Prévôt-Schapira
e Pineda (2008), Séguin (2011), Gusmán e Hernándes (2013), Sposito (2013), Sposito e Góes
(2013), Catalão e Magrini (2016).
e Prévôt-Schapira e Pineda (2008), que apontam a polissemia do termo
fragmentação, o que já havia sido frisado por Lefebvre (1988), bem como ajudam
a revelar seu caráter multidimensional como indicou Navez-Bouchanine (2002).
Schapira e Pineda (2008) caracterizaram a fragmentação socioespacial, ao se referir à
América Latina, procurando nível de particularização do processo que é geral e
mostrando relativa polissemia do conceito, ao distinguir sua adoção em três planos
diferentes:
1) pelo papel das políticas públicas e “dos novos modos de governança das
metrópoles continentais”;
2) pelas “transformações associadas à globalização e às novas estratégias do
management empresarial”;
3) pela “relação, muitas vezes contraditória, entre mudança social e evoluções
da estrutura urbana” (PRÉVÔT-SCHAPIRA e PINEDA, 2008, p. 75).
Nesse texto, estamos trabalhando com esse conceito, conforme o terceiro plano,
embora os dois primeiros sejam dele indissociáveis.Tomando como referência a
realidade latino-americana, considero que a matriz socioeconômica tem forte
implicação na fragmentação sociespacial, o que não significa que dimensões
políticas e culturais não sejam relevantes para essa análise. Para Navez-
Bouchanine (2002, p. 65) a fragmentação, baseada nas diferenças
socioeconômicas, significa uma ‘reimbricação forte do econômico e do social’,
atuando sobre diversas formas de proximidade e de co-presença no espaço”
(NAVEZ-BOUCHANINE, 2002, p. 65).
Para Edward Soja, inspirado em Henri Lefebvre, as práticas modelam nossos
espaços de ação. Se elas estão restringidas pelo nosso afastamento
socioespacial, por um lado, ou pela nossa opção de morar em áreas fechadas e
controladas por sistemas de segurança, de outro, tais práticas são cada vez mais
segmentadas no plano social e político, revelando e reforçando uma sociedade
fraturada e uma cidade estruturada pelo processo de fragmentação
socioespacial.
A separação socioespacial não é, como busquei destacar, apenas aumento das
distâncias, mas mudança nas formas de viver a cidade, a partir de múltiplos
modos de constituição de DESIGUALDADES e DIFERENÇAS socioespaciais. Nestes
termos, a relativização do direito à mobilidade e à acessibilidade urbanas,
definidas segundo a condição socioespacial de cada citadino, orientam
processos de separação que ultrapassam a segregação e a autossegregação
para alcançar a fragmentação socioespacial.
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