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A afirmação hodierna da realidade insular madeirense, não poderá ser reduzida a uma conquista
deste findar do século pois que é o corolário de todo um processo de labuta com mais de
quinhentos anos. Hoje, nós somos os lídimos usufrutuários deste quotidiano e cultura por que tão
afanosamente lutaram os nossos avoengos. Esta forma acabada, em permanente recriação, toma
corpo nas múltiplas conjunturas políticas e económicas que marcaram o devir do nosso processo
histórico. Ai um conjunto restrito de produtos agrícolas detêm uma função primordial, como
catalisadores da animação social e económica, ou definidores de uma diversa realidade societal.
Nos primeiros momentos de ocupação do solo, o vinho, o trigo, em primeiro lugar e, depois, o
açúcar, surgem ai como elementos aglutinadores dum quotidiano com inevitáveis implicações
políticas e urbanísticas. Os primeiros materializam a necessária garantia das condições de
subsistência e do ritual cristão, enquanto o ultimo encerra a ambição e voracidade mercantil da
nova burguesia atlantico-mediterranica, que fez da Madeira o principal pilar para afirmação na
economia atlântica e mundial.
O processo é irreversível de modo que em consonância com os movimentos económicos sucede-
se uma catadupa de produtos, com valor utilitário para a sociedade insular, ou com capacidade
adequada para activar as trocas com o mercado externo. Se na primeira fase o domínio pertenceu
à economia agrícola, no segundo, que se aproxima da nossa vivência, ele reparte-se em serviços
industrias artesanais (vimes e bordado) e de novo produtos agrícolas. O seu enquadramento e
afirmação económica não é pacífico, sendo feito de embates permanentes entre essa necessária
manutenção de subsistência e da animação comercial externa. Desse afrontamento resultou a
afirmação, num ou noutro momento, do produto que adquire maior pujança e numero de
defensores nessa dinâmica. É nesta luta permanente de produtos de uma subsistência familiar,
local e insular com os impostos pela permanente solicitação externa que se alicerçou a economia
da ilha até ao limiar do século XIX. Estes produtos são os pilares mais destacados para a
compreensão da realidade socio-económica madeirense, ao longo destes quinhentos anos, com
reflexos inevitáveis na actualidade.
A definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e económicos
derivados da conjuntura expansionista europeia mas também das condições internas, oferecidas
pelo meio. Elas tornam-se por demais evidentes quando estamos perante um conjunto de ilhas
dispersas no oceano. A Madeira apresentava-se como uma réplica mediterrânica, enquanto nos
dois arquipélagos meridionais eram manifestas as influências da posição geográfica, que
estabelecia um clima tropical seco ou equatorial. Daqui resultou a diversidade de formas de
valorização económica e social. Para os primeiros europeus que aí se fixaram a ilha oferecia
melhores requisitos, pelas semelhanças do clima com o de Portugal. Por fim é necessário ter em
conta as condições morfológicas, que estabelecem as especificidades de cada ilha e tornam
possível a delimitação do espaço e a sua forma de aproveitamento económico. Aqui o recorte e
relevo costeiro foram importantes. A possibilidade de acesso ao exterior através de bons
ancoradouros era um factor importante. É a partir daqui que se torna compreensível a situação da
Madeira definida pela excessiva importância da vertente sul em detrimento da norte. De um
modo geral estávamos perante a plena dominância do litoral como área privilegiada de fixação
ainda que, por vezes, o não fosse em termos económicos.
De acordo com as condições geo-climáticas é possível definir a mancha de ocupação humana e
agrícola. Isto conduziu a uma variedade de funções económicas, por vezes complementares.
Deste modo nos arquipélagos constituídos por maior número de ilhas a articulação dos vectores
da subsistência com os da economia de mercado foi mais harmoniosa e não causou grandes
dificuldades. O processo de povoamento das ilhas, já atrás abordado, definiu-lhes uma vocação
de áreas económicas sucedâneas do mercado e espaço mediterrânicos. Assim o que sucedeu nos
séculos XV e XVI foi a lenta afirmação do novo espaço, tendo como ponto de referência as ilhas.
A tradição mediterranio-atlantica, que define a realidade peninsular, repercute-se,
inevitavelmente na estrutura agrária e por consequência no impacto ecológico que acompanha a
expansão atlântica. Dai saíram as sementes, utensílios e homens que lançarão as bases dessa
nova vivência insular e atlântico., mas também se situavam as principais solicitações e
orientações. A par disso o confronto com as novas realidades civilizacionais americanas e indicas
contribuiu para um paulatino desencravamento planetário da ecologia e cardápio dos séculos
XVI e XVII, com inevitáveis repercussões na economia e hábitos alimentares do europeu. Da
Europa saíram os cereais (centeio, cevada e trigo), as videiras e as socas de cana, enquanto da
América e índia aportaram ao velho continente o milho, a batata, o inhame. o arroz. Nesse
contexto as ilhas atlânticas, pela sua posição charneira no relacionamento entre esses mundos,
surgem como viveiros da aclimatação desses produtos às novas condições eco-sistémicas que se
acolhem. A Madeira deteve uma posição importante, afirmando-se no século XV como o viveiro
experimental das culturas que a Europa pretendia implantar no Novo Mundo - os cereais, o
pastel, a vinha e a cana de açúcar.
A expansão europeia desde o século XV veio revolucionar o cardápio europeu enriqueceu-se,
aumentando a gama de produtos e condimentos. Todavia esta assimilação não foi fácil, pois a
tradição culinária europeia foi destronada pelo exotismo das novas sensações gustativas que
acabaram por afeiçoar o paladar. Mas ate que isso se generalizasse tornava-se necessário
conduzir aos locais mais recônditos o cereal e o vinho. Assim as embarcações que sulcavam o
oceano levavam nos seus porões, para alem das manufacturas e bugigangas aliciadoras das
populações autóctones, inúmeras pipas de vinho e barris de farinha ou biscoito. Se o cereal
poderá encontrar similar, como o milho e a mandioca, o mesmo não acontecia com o vinho que
era desconhecido e incapaz de se adaptar as novas condições mesológicas oferecidas pela
colónias europeias. Desta forma o vinho foi conduzido da Europa ou das ilhas, onde ele se afirma
com essa finalidade aos mais recônditos espaços em que se fixou o europeu. Este era o
inseparável companheiro dos mareantes, expedicionários, bandeirantes e colonizadores. Aos
primeiros servia de antídoto ao escorbuto, aos segundos saciava a sede, enquanto aos últimos
servia como recordação ou devaneio hilariante da terra-mãe. O vinho é assim um dos principais
traços de união das gentes europeias na gesta de expansão além-Atlântico.
No imaginário e devir histórico madeirense paira sempre essa visão tripartida da sua faina
agrícola: o vinho e o cereal que a tradição impõe como necessários ao quotidiano espiritual e
alimentar, o açúcar que se afirma como provento excedentário capaz de atrair a atenção dos
mercados europeus e de trazer a ilha as manufacturas que necessita. Todavia essa harmónica
trifuncionalidade produtiva pela sua extrema dependência as dinâmicas e directrizes europeias
será sujeita a diversos sobressaltos que contribuirão para uma desmesurada desarticulação do
quotidiano e economia madeirenses. Assim a concorrência do aguçar americano lança o pânico
na ilha e obriga a uma necessária afirmação da cultura da vinha, cujo derivado, o vinho, se
afirmara como a moeda de troca, substitutiva do açúcar. O mesmo sucedera nas primeiras
décadas oitocentistas em que o vinho perde a sua posição preferencial nas trocas com o exterior.
Aqui, como aquém, depara-se com uma conjuntura difícil, dominada pela fome e emigração.
Essa precariedade da economia madeirense não deriva apenas da sua posição dependente em
relação ao velho continente, mas também radica nas diminutas possibilidades de usufruto dos
741 Km2 de superfície. Todavia o lançamento e afirmação de uma sociedade em moldes
europeus nesse espaço dependeria das possibilidades de afirmação simultânea desse conjunto de
produtos; motores da expansão atlântica e da europeização do seu espaço insular.
Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se com o processo
atlântica, não puseram de parte a tradição agrícola e os incentivos comerciais dos mercados de
origem. Por isso na bagagem dos primeiros cabouqueiros insulares foram imprescindíveis as
cepas, as socas de cana, alguns grãos do precioso cereal, de mistura com artefactos e
ferramentas. A afirmação das áreas atlânticas resultou deste transplante material e humana de
que os peninsulares foram os principais obreiros. Este processo foi a primeira experiência de
ajustamento das arroteias às directrizes da nova economia de mercado. A aposta preferencial foi
para uma agricultura capaz de suprir as faltas do velho continente, quer os cereais, quer o pastel e
açúcar, do que o usufruto das novidades propiciadas pelo meio.
Ao nível do sector produtivo deverá ter-se em conta a importância assumida, por um lado, pelas
condições geofísicas e, por outro, pela política distributiva das culturas. É da conjugação de
ambas que se estabelece a necessária hierarquia. Os solos mais ricos eram reservados para a
cultura de maior rentabilidade económica (o trigo, a cana de açúcar, o pastel), enquanto os
medianos ficavam para os produtos hortícolas e frutícolas, ficando os mais pobres como pasto e
área de apoio aos dois primeiros. A esta hierarquia definida pelas condições do solo e
persistência do mercado podemos adicionar para a Madeira outra de acordo com a geografia da
ilha e os microclimas que a mesma gera.
No processo de labuta, mais do que uma revolução ecológica, assiste-se a outra humana e
técnica. Se as condições eco-sistemicas favoreceram a transplantação das primeiras sementes;
primeiro ergueram os socalcos (poios), depois adaptaram as técnicas e as alfaias agrícolas aos
condicionalismos do novo espaço cultivado. A testemunhar tudo isso perduram os poios,
ladeados de levadas, que bem podem ser considerados entre as principais realizações do homem
sobre a terra. A homenagem deverá ser concedida ao cabouqueiro, colono que recebe das
principais gentes da ilha o encargo de valorizar economicamente as parcelas que estas receberam
como benesse. Esse investimento da sua capacidade de trabalho terá justificação jurídica nas
chamadas benfeitorias, que englobavam paredes, casas de habitação, lagares ou lagariças,
arvores de fruto, latadas, etc. é, assim, o colono que lança as bases desta revolução tecnico-
agricola e um dos principais obreiros dessa harmoniosa paisagem rural os proprietários preferiam
os bulício ribeirinhos da cidade ou do burgo que tentam erguer, fazendo com que a arquitectura e
viver quotidiano se adaptassem a medida volume dos reditos acumulados com o comércio do
açúcar e vinho; estava-lhes reservado o usufruto da vida no espaço urbano, empenhados nas lides
administrativas ou entretidos nos jogos de pela e canas.
A persistência de alguns lavradores, a celebridade da sua superior qualidade e a sua solicitação
pela doçaria e casquinha madeirenses fizeram com que a cultura se mantivesse por largos anos
atingindo, em momentos de crise dos mercados americanos, alguma pujança. Mas,
irremediavelmente condenada a sua cultura o madeirense vê-se forçado a canalizar todas as suas
atenções nas vinhas, fazendo-as assumir o espaço abandonado pelas socas de cana. Desta forma
os canaviais fazem-se substituir pelas latadas, enquanto os engenhos dão lugar aos lagares e
armazéns.
Essa mudança na estrutura produtiva provocará alterações na dinâmica económica da ilha; o
açúcar definia apenas um complexo industrial, o engenho, onde decorria a respectiva safra, o
vinho necessitara de dois espaços distintos. O lagar onde as uvas dão lugar ao saboroso mosto e
os armazéns da cidade onde este fermenta e é preparado para atingir o necessário aroma e
bouquet. Deste modo o agricultor, colono ou não, detém apenas o controle da viticultura, ficando
reservado ao mercador o moroso processo de vinificação. Por mais de dois séculos a vinha e o
vinho surgem como os principais aglutinadores das actividades económicas da ilha; dando ao
meio rural e urbano desusada animação; o Funchal cresce em monumentalidade e as principais
famílias reforçam a sua posição económica.
A conjuntura da primeira metade de oitocentos. demarcada pelos conflitos europeus, guerra de
independência das colónias, associada aos factores de origem botânica (oidio-1852, filoxera-
1872) conduziram ao paulatino degenerescimento da pujança económica do vinho. Como
corolário, desse inevitável processo, sucedem-se as fomes, nos anos quarenta, e a sangria
emigratória nas décadas de 50 e 80, para o continente americano, onde o madeirense vai
substituir o escravo nas plantações. Por um período de mais de setenta anos a confusão
institucional e económica alarga-se ao domínio social e alimentar. Assim sucedem-se novos
produtos de importação do Novo Mundo que ganham uma posição de relevo na culinária
madeirense. Destes destacam-se o inhame e a batata. A par disso definem-se políticas de
reconversão e ensaios de novos produtos com valor comercial (tabaco, chá,...)
Em pleno apogeu da indústria vinhateira temos a paulatina afirmação de um novo sector de
serviços. Na segunda metade do século XVIII a ilha assume um outro papel com a revelação da
Madeira como estância para o turismo terapêutico, mercê das então consideradas qualidades
profiláticas do seu clima na cura da tuberculose, o que cativou a atenção de novos forasteiros. A
tísica propiciou-nos, ao longo do século dezanove, o convívio com poetas, escritores, políticos e
aristocratas. Não obstante a polémica causada em torno das possibilidades deste sistema de cura a
ilha permaneceu por muito tempo como local de acolhimento destes doentes, sendo considerada a
primeira e principal estância de cura e convalescença do velho continente.
Foi a presença, cada vez mais assídua, deste doentes que provocou a necessidade de criação de
infra-estruturas de apoio: sanatórios, hospedagens e agentes, que serviam de intermediários entre
estes forasteiros e os proprietários de tais espaços de acolhimento. Este último é o prelúdio do
actual agente de viagens. Então o turismo, tal como hoje o entendemos, dava os seus primeiros
passos. E foi como corolário disso que se estabeleceram as primeiras infra-estruturas hoteleiras e
que o turismo passou a ser uma actividade organizada e com uma função relevante na economia
da ilha. E mais uma vez o inglês é o principal protagonista. No passado foram as condições do
meio que fizeram da ilha um dos principais motivos de atracção turística. Hoje o turista é outro e
por isso também as exigências são diferentes. Assim aos motivos ambientais aliam-se os
culturais, passando os dois a andar de braço dado. No fundo é a simbiose do “grand tour”
europeu com o turismo terapêutico insular.
Nos últimos anos a Madeira adquiriu uma posição desusada no “ranking” da comunidade
cientifica. A ilha continua a fascinar cientistas e visitantes. O clima, o endemismo, as
particularidades do processo histórico, o protagonismo na História do Atlântico fazem dela,
ontem como hoje, um pólo chave para o conhecimento científico. Hoje a ilha é tema de debate
nos diversos areópagos científicos e cada vez mais se sentem o apelo da comunidade cientifica
para o seu conhecimento e divulgação. Em certa medida esta próxima realidade vai ao encontro
daquilo que foi a História do arquipélago. Na verdade, o passado histérico da ilha, relevado
quase sempre pelos aspectos económicos e sociais, esquece uma componente fundamental da
nossa aportação: a inovação e divulgação tecnológica que transformou a rotina das tarefas
económicas e revolucionou o quotidiano dos nossos avoengos. Mais do que isso, o madeirense,
além de exímio inventor — na inevitável tarefa de encontrar solução para as questões e
dificuldades do dia a dia —, foi também um eficaz divulgador da sua tecnologia. A Madeira foi a
primeira terra revelada do novo mundo, escala para a navegação e expansão dos produtos
europeus no mundo atlântico. Com o século XVIII a ilha transforma-se em escala obrigatória das
expedições científicas que fizeram saciar a curiosidade inata do Homem das Luzes.
Hoje a realidade e os desafios são outros e a todos nós resta dar continuidade a essa aquisição de
mais-valia que reverta em nosso favor e não de estranhos. Ao nível científico deparam-se-nos
inúmeros desafios que deverão ser tidos em conta. O suporte institucional, através da plena
afirmação das instituições que dão corpo a esta nova realidade, é uma opção inadiável. Por isso,
se queremos ganhar todos estes desafios e corresponder ao apelo do protagonismo que o passado
nos acalenta, há que permitir a “rédea solta” destas instituições, dotá-las de meios adequados à
sua existência e afirmação. Caso contrário estamos a sacrificar o nosso futuro e a desvalorizar
todo o trabalho destes últimos dez anos de aposta do processo autonómico. Consolidar a
autonomia, nesta conjuntura de contratempos, implica um profundo mergulho nas profundezas
da nossa identidade. A aposta no conhecimento, na cultura é a via inevitável se queremos vencer
os desafios do futuro e atribuir à ilha o novo protagonismo no espaço Atlântico, fazendo jus à
tradição histórica de que, afinal, somos todos herdeiros.
A água tem uma função fundamental no curso da História. Ela é a fonte da vida e da História.
Aproxima povos e civilizações. Faz medrar as culturas verdejantes nos campos e substitui-se ao
homem em algumas das suas árduas tarefas. Ela assume um papel fundamental na História
material, orientando as formas de vida e desenvolvimento económico das populações que dela se
podem servir. A água foi e continua a ser um elemento vital ao progresso e bem estar do
Homem. Mas, o seu uso não foi fácil. Mobilizou povos, monarcas engenheiros e trabalhadores
para grandes obras de engenharia. Em alguns casos, estamos perante as sociedades hidráulicas.
E, segundo alguns estudiosos marxistas, definiu uma forma peculiar de estruturação de algumas
sociedades, que ficaram conhecidas como modo de produção asiático. É de salientar que na
Madeira os grandes empreendimentos hidráulicos são da responsabilidade dos particulares,
cabendo à coroa apenas a função de criar as condições para este investimento, com a
obrigatoriedade de todos os colonos à permissão de passagem das levadas. A intervenção do
estado é recente e surge a partir da década de quarenta com a Comissão de Aproveitamentos
Hidráulicos da Madeira. Mesmo assim a Madeira não ficou alheia a esta situação, uma vez que o
seu progresso inicial deveu-se à abundância da água. Hoje, a Ilha da Madeira apresenta-se com
duas áreas hidrográficas distintas: as vertentes norte e sul. Mas isto é, todavia, resultado das
condições orográficas da ilha mas também da intervenção do Homem no corte da densa floresta
que a cobria, aquando do encontro pelos europeus.
Nos séculos XV a XVII a água corria nas ribeiras, em abundância na vertente norte. No sul os
caudais eram, na época estival, quase todos desviados para as levadas A maior concentração
populacional e aposta agrícola assim o definiram. Os cronistas são disso testemunho. O caso
mais evidente encontramos em Gaspar Frutuoso Seguindo o seu testemunho podemos afirmar
que a existência ou não de água condicionou o assentamento dos primeiros povoadores em todo
o espaço da ilha. Aliás, a atenção do portugueses: e não viam mais que correntes, ribeiras, fontes
e regatos, que, por entre ele, vinham com grande frescura deferir ao mar”. E é o mesmo quem,
depois de um descrição exaustiva da ilha conclui: “toda ela se rega com grande abundância das
águas que tem, que, como veias em corpo humano, a estão humedecendo e engrossando e
mantendo, com que se faz rica, fresca, formosa e lustrosa.”. A partir daqui podemos afirmar que
o sucesso do povoamento e valorização económica da ilha são resultado do facto de a ilha ser
“toda regada com água”, como refere o historiador das ilhas.
As ribeiras exerceram aqui um papel fundamental. Foi por elas que entraram os primeiros
europeus que reconheceram a ilha e nelas se assentaram os primeiros núcleos de povoamento. É,
na verdade, no leito e margens das ribeiras que se joga a nossa História. A sua bravura, tão pouco
atemorizou os colonos, como sucedeu com a sua fixação no local da Ribeira Brava, que foi
buscar o nome a isso mesmo”. Note-se que isto causou inúmeros transtornos aos madeirenses,
que viveram, a partir do século XVII, sob a ameaça das aluviões. É durante este século que se
insiste na necessidade de muralhas de protecção no Funchal” e Ribeira Brava cidade dá-se conta
do dilúvio de 22 de Janeiro de 1605, que destruiu 130 casas e as três pontes. Aqui convém
salientar por um lado a ilha da Madeira e, por outro o Porto Santo, isto porque na primeira as crises
de seca são reduzidas e de menor influências, enquanto na segunda elas perduram ao longo do
século XVIII e XIX, provocando as mais graves crises de fome e de abandono da ilha. A primeira
referência a uma seca prolongada na ilha da Madeira, no período invernal data de 1798, pois que em
carta de 31 de Janeiro o Senado da Câmara da cidade em carta ao bispo implora que se façam preces
públicas"Os tempos que tem e concorrem com geral falta de chuva, nos promete notável
esterilidade, nos frutos no presente ano, por impedirem aos lavradores a semearem seus trigos, e a
outros haver nascido as plantas do que a terra tem entregue para a multiplicaçäo, motivo porque
ansiosos desejam deprecar a Deus Nosso Senhor para do mesmo Deus alcançarem o remédio a tanto
mal ameaçado.
E nós por bem de todos somos conformes a pedir a Vossa Exa. se digne determinar três dias de
preces nessa catedral do Santíssimo Sacramento, concorrendo a elas as colegiadas e mais clero, para
que o Altíssimo Deus nos conceda o remédio necessário como temos recebido, quando nestas
deprecações o imploramos. Determinando-nos Vossas Senhorias com a brevidade possível, o dia,
que dão princípio às ditas rogativas para nós concorrermos com juntamento todo o povo desta ilha".
As secas surgindo em momento do ano, em que os factores meteorológicos têm pouca influência no
desenvolvimento da videira e dos novos rebentos, pouco teria sido sua acção face uma crise, ela
apenas faria sentir os seus efeitos sobre as culturas feitas nessa época, ou em vias de germinação.
No entanto cá ficam atestando um momento de crise agrícola. A ilha do Porto Santo, mais propícia
às estiagens prolongadas, devido ao seu posicionamento geográfico, à falta de arvoredos, pautou-se,
desde muito cedo, como uma ilha seca e pobre, sujeita a prolongadas estiagens. Estas são uma
constante ao longo do período que medeia o nosso estudo. Assim em 1770, temos a primeira seca,
seguindo-se outras em 1802, 1806, 1815, 1815, 1829, 1847, 1850, 1854, 1855, 1883. Como
podemos ver são crises intervaladas num máximo de 32 anos e no mínimo de 1 a 3 anos, de que
resulta em média uma crise por decénio. Se tivermos em conta que a cada crise de seca se segue
outra mais prolongada de fome e abandono dos campos com a fuga para a Madeira, teremos então
uma visão do que foram estas crises.
Em contraste com as estiagens prolongadas do Porto Santo, temos na ilha da Madeira a afluência
espaçada das aluviões e tempestades que ao longo dos séculos XVIII e XIX assolaram esta: 18 de
Novembro de 1724, 18 de Novembro de 1765, 9 de Outubro de 1803, 26 de Outubro de 1815, 24 de
Outubro de 1842, 19/20 de Novembro de 1848, 5/6 de Janeiro de 1856. De todas estas aluviões os
mais catastróficos e lesivos para a viticultura foram sem dúvida o de 1803, que atingiu toda a ilha e
de modo especial o Funchal, Machico, Santa Cruz, Campanário, Ribeira Brava e Calheta; e o de
1848 que inundou o concelho de Santana, tendo sido arrastadas pelas águas as benfeitorias
produtivas mais importantes. No entanto temos a considerar a acção dos aluviões que alastraram a
cidade do Funchal em 1765, 1803, 1815, 1842, provocando graves danos nas lojas de vinhos,
deteriorando o vinho armazenado. Mais temos a destruição das estufas, muitas delas situadas junto
das ribeiras da cidade. Se face às secas era lícito implorar a clemência e intercessão divina por meio
de preces públicas, com as chuvadas nada havia a fazer para conter a queda das bátegas de chuva,
mais do que fazer preces, o madeirense optou neste domínio pela tomada de medidas que
minorassem os seus efeitos, através de projectos de rearborização, desentulhamento das ribeiras.
À fúria da água das ribeiras deverá juntar-se o deslizamento de terras, situação constante num
espaço geográfico como a ilha da Madeira marcado por um acentuado declive das encostas.
Várias das fajãs do litoral são prova disso. O testemunho mais antigo é do século XV e anota a
morte trágica de Henrique Alemão, sesmeiro do Paul do Mar considerado o imperador da
Polónia, numa derrocada no Cabo Girão. Nova derrocada ocorreu no mesmo sítio em 1930. Mas
a mais mortífera de todas ocorreu em 1929 na Vargem em S. Vicente. A 6 de Março pelas 10 h
da manhã uma quebrada vitimou 29 famílias e causou danos, avaliados em mais de dois mil
contos. Os dados assim o provam: 40 mortos, perda de 100 palheiros e igual número de cabeças
de gado. O tema correu por toda a ilha e foi manchete, por algum tempo nos jornais locais,
obrigando o Governador Civil a deslocar-se ao concelho a 8 de Março. Não parou por aqui a
fúria do tempo pois que em 28 de Outubro de 1934 e Janeiro de 1952 novas trombas de água se
abateram sobre a ilha provocando elevados prejuízos materiais e a destruição de inúmeras
estradas e pontes, nomeadamente nos concelhos do Norte da Ilha, que só foi possível recuperar
com apoio de subsídios da Junta Geral e do Governo Central. Termina aqui o medo do vicentino
face às ribeiras. Desde então não mais estas transbordaram de forma violenta molestando os
residentes, destruindo caminhos e pontes. O clima parece ter mudado com também a força do
homem para enfrentar a natureza.
Ao homem estava atribuída a dura tarefa proceder ao encanamento das ribeiras e de desviar o
curso das suas águas. A intervenção no sentido de amansar e controlar o curso das ribeiras
acontece desde o século XV mas foi no século XIX com as diversas aluviões que se lançaram as
grandes obras de engenharia. Assim em 1804 chegou à ilha o Engenheiro Reynaldo Oudinot com
o objectivo de proceder ao levantamento das ribeiras da cidade e de apresentar um projecto para
o seu encanamento, sendo seguido por Paulo Dias de Almeida. Todavia a solução com segurança
estava na mudança da cidade para o alto no Parque de Santa Catarina, mas a solução de um
cidade nova não ganhou o necessário consenso, não obstante a repetição da calamidade.
As levadas estabeleciam a ligação entre os cursos das ribeiras e os canaviais, engenhos, moinhos
e serras de água. O sistema permitiu um maior aproveitamento dos socalcos e o alívio do homem
em algumas tarefas, como sejam, o moer do grão ou da cana e o serrar das madeiras. Moinhos,
engenhos e serras convivem pacificamente usufruindo da água que corre na mesma levada. A
estes vieram juntar-se no século XX as centrais hidroeléctricas. A orografia da ilha ao mesmo
tempo que dificultava a condução da água favorecia este aproveitamento, pela força motriz
atribuída pelos declives acentuados.
Este foi um trabalho hercúleo, referido muitas vezes pelos visitantes e recordado com apreço
pelos especialistas, como o Eng. Amaro da Costa:... a levada, de limitadas proporções no início;
mas já a denotar arrojo para mais largos voos indo sempre mais longe e mais acima até aos
recônditos das serranias; furou as montanhas; riscou as muralhas rochosas talhadas a pique em
centenas de metros de altura; debruçou-se nos abismos; venceu as cristas; saltou nos
despenhadeiros; dobrou-se nos refegos das ravinas; amansou-se nas chãs; e, por fim, exausta,
entregou-se a todos, através de uma rede vascular tão densa, que torna maravilhosa a chegada ao
termo. Mas a mingua no fim da caminhada é por vezes tamanha, que dolorosamente contrasta
com tanta luta
0 USO E ABUSO DA ÁGUA. A ilha é abundante em água e lenhas pelo que a cana de açúcar
tem condições para ser promissora. Em face disto as doações de terra não fazem expressa
referencia à repartição da água. Esta, no primeiro momento dá e sobra, os problemas com a sua
falta e a necessidade de regulamentar o seu uso e posse, surgem depois.
Na Madeira a água corria nas ribeiras, em abundância na vertente norte. No sul os caudais eram,
na época estival, quase todos desviados para as levadas. A maior concentração populacional e
aposta agrícola assim o definiram, sendo os cronistas testemunho. O caso mais evidente
encontramos em Gaspar Frutuoso. Seguindo a sua informação podemos afirmar que a existência
ou não de água condicionou o assentamento dos primeiros povoadores em todo o espaço da ilha.
As ribeiras exerceram assim um papel fundamental. Foi por elas que entraram os primeiros
europeus que reconheceram a ilha e nelas se assentaram os primeiros núcleos de povoamento. É,
na verdade, no seu leito e margens que se joga a nossa História. A sua bravura, tão pouco
atemorizou os colonos, como sucedeu com a sua fixação no local da Ribeira Brava, que foi
buscar o nome a isso mesmo. Facto significativo é o de também as principais freguesias terem à
cabeceira uma ou mais ribeiras. O Funchal, principal assentamento da ilha, é cortado por três
ribeiras.
Ao homem estava atribuída a dura tarefa de desviar o curso das ribeiras fazendo com que
movessem engenhos, moinhos e irrigassem os canaviais e demais culturas. Para isso, traçaram
kilómetros de canais para a sua condução, que ficaram conhecidos, na ilha, como levadas. O
sistema permitiu um maior aproveitamento dos socalcos e o alívio do homem em algumas
tarefas, como sejam, o moer do grão e da cana e o serrar das madeiras. Moinhos, engenhos e
serras convivem pacificamente usufruindo da água que corre na mesma levada. A orografia da
ilha ao mesmo tempo que dificultava a condução da água favorecia este aproveitamento, pela
força motriz atribuída pelos declives acentuados.
As águas e nascentes são consideradas, nos primeiros documentos emanados para a ilha, como
domínio público. Assim, o entendia D. João I no capítulo de um regimento dado a João
Gonçalves Zarco onde considerava nesta situação as «fontes, tornos e olhos de agua... praias e
costas do mar, rios e ribeiras». Todavia, a água foi um problema ao longo da História da ilha,
pois desde o começo surgiram açambarcadores a reivindicar para si a posse exclusiva deste bem
comum.
Em 1461 coloca-se a primeira dificuldade nesta repartição das águas, no que o Duque responde
que, o almoxarife mais dois homens ajuramentados, repartam “as aguas a cada hum para seus
açucares e lugares seguindo cada hum merecer”. Mesmo assim, continuaram as demandas sobre
as águas pelo que em 1466” o duque decidiu mandar à ilha, Dinis Anes de Sã, seu ouvidor, com
intuito de resolver esta e outras questões. Aqui o monarca recomendava: “acerca destas aguas
tereis grande cuidado de as repartirdes de guisa que se aproveite toda a terra que se poder
aproveitar guardando nisso justiça e o comum proveito».
Nas áreas de maior concentração populacional e aproveitamento do solo, como foi o caso do
Funchal, a água das ribeiras não era suficiente para suprir as solicitações dos vizinhos. Deste
modo, em 1485 o Duque D. Manuel recomendava que as águas da Ribeira de Santa Luzia fossem
usadas apenas nos engenhos, moinhos e benfeitorias que dela se serviam não podendo ser
desviadas para outro destino. Idêntica recomendação repete-se em 1496”. Note-se que esta
ribeira servia vários engenhos e os moinhos” do capitão do Funchal.
É, todavia, com D. João II que ficaram definidos os direitos sobre a água que perduraram até ao
século XIX”. Por cartas de 7 e 8 de Maio” ficou estabelecido, de uma vez por todas, “que
particular algum tenha direito domínio nem acção nas fontes, olhos e tornos de agua que nas suas
terras nascerem e jamais em tempo algum posam ter nem adquirir posto que sejam senhores das
terras com as quais as fontes não passarão e as não poderão nem ainda por suas terras mudar nem
divertir e correrem de modo, guisa e maneira que tomarão seu caminho e corrente até darem e se
meterem nos rios e ribeiras nas quais juntas as ditas águas que das fontes correrem se tirarão as
levadas». As águas ficavam património comum, sendo distribuídas pelo capitão e oficiais da
câmara, entre todos os proprietários, pois que “sem as águas as terras se não podiam aproveitar”.
A partir daqui ficou estabelecido a água como propriedade pública, sendo o seu usufruto para
aqueles que possuíam terras e delas necessitavam. Todavia, desde finais do século quinze, a água
passou a ser negociada, a exemplo do que sucedia com a terra”. É com o regimento de D.
Sebastião, em 1562 que se processa uma alteração ao sistema primitivo. As águas, numa forma
de reconhecimento e disciplinar a prática corrente, podem ser vendidas ou arrendadas, o que veio
a permitir um fosso entre a propriedade da terra e da água. Contra isto militaram as medidas
pombalinas, levadas a cabo pelo governador José António de Sá Pereira”. O documento de 1493
determina de forma evidente a importância assumida pelas levadas no sistema de distribuição de
águas. Destas há a considerar as públicas e as privadas. As últimas eram de iniciativa particular,
precisando de uma autorização. Neste caso temos em 1495 a licença a Pêro Fernando para tirar
água da Ribeira de Água d’Alto (Ponta Sol).
Uma das tarefas que ocupou os primeiros colonos foi a tiragem das levadas. Por isso elas são os
imemoriais testemunhos do labor do homem insular que ficam na ilha, a exemplo dos
imponentes aquedutos peninsulares”. Em 1496 parece que, ao menos no Funchal, estava
delineado o sistema de regadio pelo que na Ribeira de Santa Luzia não se permitia mais a
abertura de novas levadas ou a tiragem da água, acima das já existentes. Esta situação resulta da
pretensão de alguns heréus de um destas quererem tirá-la mais acima das já existentes no sentido
de aproveitar terras acabadas de arrotear. Mas, a coroa insiste na proibição em nova levada em
cota superior”, punindo os infractores com pesadas penas. Na verdade, segundo nos conta Gaspar
Frutuoso, a Ribeira de Santa Luzia servia várias levadas, sendo uma delas para os cinco moinhos
do capitão e um engenho. Mas, o Funchal ficou servido, ainda, por outras como a dos Piornais,
do Pico do Cardo e Castelejo. É de salientar que esta água das levadas tinha um elevado
aproveitamento, pois, para além do seu uso industrial e do regadio, era canalizada para o
consumo das casas e limpeza das ruas da cidade. Os poços existiam um pouco por toda a
cidade”, mas não eram suficientes para as suas necessidades. Destes, destaca-se aquele que
servia toda a população em Santa Maria, situado no hoje Largo do Poço, construído por Afonso
Fernandes.
Em 1566, após o assalto dos franceses à cidade, as ruas ficaram imundas pelo que “se soltaram
depois as levadas, que regam os açúcares, e lavaram toda aquela sujidade”. De acordo com as
posturas sabe-se que o município procedia à limpeza das ruas da cidade entre as tardes de sábado
e de domingo, ficando assim proibido o uso das águas das ribeiras da cidade”.
Os conventos, como os dos jesuítas, de Santa Clara e S. Francisco eram servidos por água destas
levadas. As freiras de Santa Clara tinham um aqueduto próprio que em 1663 foi danificado o que
resultou grande prejuízo “por não terem água alguma de que pudessem beber e cozinhar e se
servirem para o fabrico de seus doces”. Fora do Funchal, Gaspar Frutuoso, refere a levada
mandada construir por Rafael Catanho que servia Machico e Caniçal, em que gastou cem mil
cruzados. Também na Ribeira dos Socorridos temos outras levadas de iniciativa particular: a do
engenho de Luís de Noronha que lhe custou 20.000 cruzados; a de António Correia para as terras
da Torrinha. Outro problema, não menos importante, foi o da partição da água. Desde o início
que a coroa recomendara todo o cuidado nisso, ficando com tal encargo o almoxarife, auxiliado
por dois homens escolhidos”. Sabemos que estas eram distribuídas por toda a semana, excepto o
domingo que ficava comum a todos, pois tal como refere a coroa em 1491 era “contra
comçiencia Na Ponta de Sol, a vereação convocava todos os anos os heréus para a limpeza das
duas levadas existentes e eleição dos levadeiros. Estes, depois de eleitos, deveriam jurar perante
os vereadores que procederiam bem à distribuição da água e limpeza das levadas.
A manutenção das levadas foi outra preocupação a que o capitão deveria tomar em conta,
conforme ordem de D. Catarina de 1562. Mais se recomendava que aqueles que não tivessem
necessidade das águas que dispunham não as podiam arrendar a ninguém, não ser para se regar
os canaviais. Apenas, os que haviam tirado levadas próprias podiam dar ou vender as águas.
Neste momento a coroa apoiou a reparação das levadas da Ribeira dos Socorridos, dos Piornais e
Castelejo com o intuito de incrementar de novo a cultura dos canaviais, que tinham preferência
nesta nova redistribuição das águas.
A tradição de traçar levadas fez com que os madeirenses se tivessem transformado nos seus
exímios construtores, levando a tecnologia para todo o lado onde se fixaram. Primeiro, foi as
Canárias e, depois, na América. Esta perícia e engenho dos madeirenses está evidenciada na
reclamação de Afonso de Albuquerque para que o rei lhe mandasse madeirenses «que cortavam
as serras pera fazerem levadas, com que se regam as canas de açúcar”, para desviar o curso do
rio Nilo”.
O plano de levadas da ilha não ficou concluído no século XVII foi apenas adiado pela afirmação
da vinha, uma cultura de sequeiro, e, por isso mesmo, quando a cana retornou à ilha, no século
XIX, de novo se pôs a questão das levadas para irrigar os canaviais e mover os engenhos. A
centúria oitocentista foi marcada por uma forte aposta no delineamento de levadas para o regadio
de novas áreas. É de salientar a levada do Rabaçal cuja concretização foi morosa. Em 1823 era
evidente a necessidade desta obra, pois era considerada uma mais valia para a ilha pela
possibilidade que dava de regar 1440 alqueires de terra. Todavia as obras iniciaram-se em 1834 e
só ficou concluída em 1890.
A água adquire de novo uma dimensão económica importante, levando as autoridades a nova
intervenção no sentido da sua regulamentação e do traçar de novas levadas para alargar a área de
regadio e, por consequência, dos canaviais. É de salientar que o regime jurídico das águas,
estabelecido em 1493 por D. João II, perdurou até 1867, altura em que foi aprovado um novo
Código Civil. A partir de então água e terra são duas realidades distintas, vindo a agravar a
situação, por ser favorável à especulação, situação que foi atacada por leis de 1914 e 1931. Seis
anos após o governo avançou com uma política específica da água que chegou à Madeira em
1939. A criação da Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira
(1943) foi o ponto de partida para esta mudança na política da água e das áreas de regadio na
ilha.
Dos objectivos da comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidroeléctricos da Madeira,
donde se destacou a iniciativa do Eng. Amaro da Costa, releva-se a intenção de estabelecer um
amplo sistema de regadio, de construções de centrais hidroeléctricas. As obras iniciaram-se
durante a guerra, e por isso ocuparam muitos desempregados, mas só se concluíram após o
conflito, nos inícios da década de cinquenta: em 1929 foi a abertura do sistema de regadio de
Machico, Caniçal, em 1952 a levada do Norte e a Central Salazar e 1955 na Calheta.
As levadas são ainda hoje uma constante na paisagem madeirense, transformando-se em locais
aprazíveis para os passeios a pé. Note-se que elas, desde muito cedo, despertaram a atenção dos
visitantes, que não se cansam em louvar o trabalho hercúleo do madeirense na sua construção.
AS SERRAS DE ÁGUA. A par dos engenhos temos as serras de água, que não são criação
madeirense, pois a tecnologia foi importada do reino”. Estas surgem, por vezes ligadas aos
engenhos de açúcar. É o caso de Diogo de Teive em 1454 com ambos engenhos na Ribeira de
Santa Luzia, então conhecida como ribeira da serra de água e em 1492 de Bartolomeu de Paiva
na Ribeira de S. Bartolomeu. Elas tiveram um grande incremento no início da ocupação da ilha,
fruto da exploração das madeiras, para exportação ao reino, uso nos engenhos e construção de
habitações. Esta foi, aliás, a primeira riqueza com que os primeiros colonos se depararam. Deste
modo, nas cartas de doação das capitanias esta é considerada uma fonte de receita para o capitão,
que recebe duas tábuas por semana ou dois marcos de prata ao ano, e senhorio, com a dízima
disso.
As serras de água existiram em toda a ilha, em especial no recinto da capitania de Machico, que
detinha uma importante mancha florestal. Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI, refere aí
cinco em laboração, de que descreve a do Faial: Está nesta freguesia uma serra de água, que foi
um grande e proveitoso engenho, em que dois ou três homens chegam por engenho um pau de
vinte palmos de comprido e dois e três de largo à serra, e, por arte, um só homem, que é o
serrador, com um só pé (como faz o oleiro, quando faz a loiça) leva o pau avante e a serra
sempre vai cortando e, como chega ao cabo com o fio, com o mesmo pé dá para trás, fazendo
tornar o pau todo, e torna a serra a tomar outro fio; de maneira que quem vir esta obra julgará por
muito grande e necessária invenção a serra de água naquela ilha, onde não era possível
serrarem-se tão grandes paus, como nela há, com serra de braços, nem tanta soma de tabuado,
como se faz para caixas de açúcar, que se fazem muitas, e para outras do mais serviço, que vem
ser cada ano muito grande soma.”
Foi, na realidade, no Norte da ilha que as mesmas persistiram nestes cinco séculos. Ainda hoje,
em S. Jorge, são visíveis alguns vestígios desta indústria, onde ainda funciona uma. Para além
disso a sua memória perpetua-se na designação atribuída a uma freguesia e a algumas localidades
na Calheta, Seixal e S. Vicente.
A par das azenhas é de notar a presença das atafonas e dos moinhos de vento, principalmente na
ilha do Porto Santo. O facto de esta ilha não dispor de cursos de água conduziu. Mas estas
também existiram na Madeira referindo Gaspar Frutuoso que o capitão tinha uma dentro da
Fortaleza de S. Lourenço. É de salientar na primeira metade do século XVI a autorização dada
pela coroa para que dois porto-santenses pudessem concretizar as suas inovações tecnológicas na
construção de atafonas no Porto Santo: João Henrique(1501) e Afonso Garro(1545). Este
apresentava um projecto de um complexo de moagem servido de quatro moinhos que tanto
podiam ser movidos por animais ou água. Estas perduraram até ao nosso século sendo ainda
visível nos anos cinquenta duas na Serra de Fora e no Campo de Cima. Mas foi dos moinhos de
vento que ficou o registo até aos nossos dias. Em 1791 surge o projecto de uma unidade
municipal que só foi concretizada seis anos depois e que teve dificuldades em ganhar a confiança
dos habitantes da ilha. Em 1827 eram bem visíveis do mar os dois únicos moinhos de vento e
quase sem anos depois, em 1927, temos 29 moinhos activos em toda a ilha, cifrando-se na
década de cinquenta em 23 com as velhas defraldadas.
No século dezanove surgiram algumas unidades industriais motorizadas e depois o advento e a
expansão da energia eléctrica a partir dos anos quarenta conduziu à electrificação de muitas
unidades. Aliás em princípios do século é evidente uma tendência para a centralização da
industria de moagem nas unidades que souberam inovar. É o caso da Companhia Insular de
Moinhos no Funchal, alvo da fúria dos populares em 1931 face ao decreto que regulava o
comércio e transformação dos cereais. Esta começou por ser conhecida com a Fábrica de
Moagem dos Lavradores, sendo propriedade da família Blandy. É de salientar ainda a firma da
viúva de Romano Gomes & Filhos Lda dedicada à moagem do milho conjuntamente com a de
Marques Teixeira & Co Lda na Ponta de Sol.
A baldeação da aguardente de França, primeiro, e depois da terra foi uma prática muito tardia no
tratamento dos vinhos de canteiro, pois só nos surge documentada a partir de meados do século
XVIII: “O que porém, parece averiguado é que, na segunda metade do século XVIII, os vinhos
da Madeira superiores eram já adubados com aguardente de França para o mesmo fim”. As
aguardentes são ao longo do século XIX motivo de polémica, pois que as aguardentes francesas
comummente usadas para adubar os vinhos ora surgem como adubo necessário e precioso dos
vinhos, ora como prejudiciais ao mesmo vinho. Dessa polémica daremos conta quando tratarmos
da questão das aguardentes.
AS ESTUFAS. A origem das estufas deve ser procurada, por um lado, na determinação de uma
determinada conjuntura favorável ao escoamento rápido do vinho, que adveio com as guerras
napoleónicas, com consequente esgotamento dos stocks, criando a necessidade de um trato
rápido dos vinhos novos para satisfazer as encomendas do mercado, o que só seria possível com
as estufas; por outro lado advêm dum facto ocasional, - por motivo da constatação de que os
vinhos da Madeira quando sofriam a influência do calor dos trópicos ao navegarem nos porões
das naus que iam e vinham das Índias ocidentais e orientais, adquiriam um trago especial e
envelheciam. Mais do que isso estamos certos que o madeirense ligado ao conhecimento
científico, não desconhecia esse sistema de tratamento já usado pelos antigos romanos e, até
mesmo os gregos. Quanto ao primeiro facto comenta D. João da Câmara Leme: - “Estamos em
fins do século XVIII. A exportação dos vinhos da Madeira tem aumentado, muito principalmente
para a Inglaterra, porque, em razão da guerra, lhe estão fechados os portos da Europa. As
reservas de vinhos em boas condições de embarque estão esgotados. O sistema do canteiro não é
processo aplicável a um largo e importante consumo com a perspectiva de grandes lucros”
.Quanto ao segundo destaca A. A. Sarmento: “Pelo final do século XVIII, notaram os
negociantes exportadores de vinho da Madeira, que este sujeito a longa viagem batido pelo
balanço da embarcação, aquecido às abafadas temperaturas que se notam nos porões, tomava
características especiais de aromatização, um todo precocemente envelhecido, pelo que
mandavam muitas pipas à Índia com frete de torna-viagem, para lá voltar melhorado o vinho,
que ficou sendo chamado de roda do mundo ou simplesmente vinho de roda”.
Constatado este facto houve desde logo um rápido aproveitamento deste meio de envelhecimento
que, mesmo assim, ainda era oneroso e demorado para as exigências de um mercado
momentâneo apressado. Em 1818 a própria Junta dá o exemplo ao carregar 50 pipas no brigue-
escuna Maria do capitão José A. Martim de Sá. Tendo-se dado ordem de embarque a 21 de Abril.
Em aviso ao deputado escrivão da Junta de Cabo Verde se dá conta da remessa de vinho para
envelhecer e depois terá o destino que S. M. desejar, recomendando ao dito “o cuidado e
vigilância de sua existência, de maneira que receba o muito calor possível de Verão futuro e não
haja extravio”.Noutro aviso a J. de Araújo Barros em Cabo Verde dá-se conta da remessa “para
os fazer pôr nessa ilha e voltarem a vir depois de passado o Verão futuro... lhe rogo o maior
desvelo e cuidado na boa guarda e vigilância do dito vinho a fim de que não haja extravio casual
nem voluntário e obtenha aquele grau de melhora que se espera”.
Em 1826 essa prática havia-se generalizado e todo o vinho de roda era reembolsado dos direitos
pagos à saída ou levantada a fiança. Assim em 21 de Fevereiro Philip Noailles Searle solicita o
desconto dos direitos de 3 quartos e 10 meias quartolas de vinho de roda que havia tido
autorização para tal acto em 8 de Junho de 1825. Um ano depois essa prática era geral e causava
graves incómodos à administração da alfândega, daí ter-se embargado tal pratica:- “Havendo-se
nesta ilha introduzido o costume de embarcar vinho com faculdade de voltar a ela para na
viagem ganhar melhoramento, foi sempre tolerado em pequenas proporções. De tal uso passou a
fazer-se abuso, pois que os negociantes para ganharem maior prazo no pagamento dos direitos,
figuravam em muitas das suas especulações os embarques do vinho para vir de roda, dando a sua
fiança, e a final quando passava o prazo marcado para a entrada do vinho, e este não chegava, se
lhes carregavam os direitos, cuja arrecadação ia ter a demora que as mais ordens terminam a
favor dos assinantes. Resultava deste meio acharem-se muitos direitos por cobrar, poderem
ometer-se outros dolos que esta Junta por bem da fazenda entendeu dever prevenir e subtrair na
continuação de tal prática”. Este informe vem a propósito de um requerimento de Philip Noailles
Searle & Ca. em que solicitava o reembolso dos direitos de 50 pipas de vinho de roda.
Nos registos de embarque de vinho entre 1823/30 assinala-se essa modalidade, que durante esta
fase permissiva atingiu grandes proporções. Assim em 1823 saíram 1650 pipas de vinho de roda
e em 1824, 366. Destacam-se aqui os comerciantes ingleses John Howard March & Ca. e Philip
Noailles Searle, e poucos portugueses, de que se destacam as casas madeirenses mais
importantes como Monteiros & Ca., Luís de Ornelas Vasconcelos, João Oliveira & Ca.
Já os Gregos e Romanos tinham conhecimento da acção do calor dos porões dos barcos... e dele
se serviram para trato dos seus vinhos tal como nos refere Plínio, entre outros. No entanto na
Madeira essa prática é tardia, remontando a 1730. Daí às estufas o salto foi rápido: “Viäo os
comerciantes que o calor dos navios e dos climas mais ardentes beneficiaram considerável e
visivelmente os vinhos em toda a sua qualidade, tanto de sabor como de cheiro, logo pela razão,
a mais bem deduzida, se persuadiram, e se convencerão de que o vinho Madeira se aperfeiçoava
e mesmo se requintava com o calor: ocorreu logo, que sendo possível tratá-lo em terra com uma
precisa quentura para o seu benefício seriam grandes os proveitos que colheria o comércio, o
público, e não menos S. A. Real”. Assim temos o primeiro ensaio de estufa com vinhos novos,
enquanto outro que aquecia dia e noite um armazém com vinhos novos, enquanto outro
comerciante colocava no seu armazém canos de ar quente. “A primeira estufa levantada nesta
ilha se fabricou no ano de 1794 e 1795, e depois dela se levantavam sucessivamente muitas
outras que todas tem trabalhado até os últimos meses passados”. Em 1802 segundo John Leacock
“estufas are now become general”.Numa carta de 1800, o mesmo descreve a sua primeira estufa
que teve na ilha, dando conta do movimento das estufas, e da discussão sobre o vinho estufado:
“We are erecting an estufa & hope to have it furnished in two or three weeks we shall stard in
need of two common thermometheos. good but the lerst expeensive, in order that we may
regulate the heat; we therefore by you will send out a couple very carefully packed we hope this
new mode of treating wine will answer, but the correspondants of those who ship its - they are
now common of all the houses use estufas - several of them have built them & others put their
wine into hired estufas, where they pay 5 mas. p. pipa for 3 months sterwing. We are not yet
perfectly satisfied of all the effects produced by the application of heat to the wine, but think in
general they keep too fierce a degree of heat, nicke keeps the wine constantly boiling, and in
rather insipid of weak. We are of opinion that a mon moderate temperature will succed better &
shall proloy the paiod to six instead of three months as we have see. However the great test will
be, how it is approved by those who are no good judges, the new wine with three months estufa
imitates wine of 4 or 5 years old & we dont think that the deception will be easily discovered-
perhaps prejudice the character of madeira wine. Wall hot climates its improves much quichet
than in gold over: twelve months in the East or West Indies ha me effect than 3 years here, or
four or five years in England - there for the heat must be on benefit & we must make a climate”.
Em 1877 Henry Vizetelly de visita à Madeira conheceu o complexo vinícola da firma de Menrs
Cossart Gordon & Ca., dando conta da sua estufa do seguinte modo: “The estufa stors os Menrs.
Cossart, Gordon & Ca. comprise a black of buildings of two stories, divided into four distinct
compartments. In the first of these common wines are subjected a temperature of 140 dg.
Gahrenheit - derived from flues, heated with anthracite coal for the space of three monts in the
next compartment wines of an intermediate quality are heated up to 130 deg. for a period of four
and half months; whele the third is set apart for superior wines heated variously from 110 to 120
dg. for the term of six months. The fourth compartment, known as the “calor”, possesses no
flues, but derives its heat, varying from 90 to 100 deg., exclusively form the compartments
adjacet, and here only high-class wines are placed... In the estufas I am now describing-wich, if
packed full, are placed on end in sacks of four, with smaller casks do not leak, as when subjected
to great heat they are naturally indined to do. A hole about the sixth of an inch in diameter has
been previously bored in the being of each pipe to allow the hot vapour to escape, otherwise the
pipe would burst. As it patches in various parts of the floor, rendering it necessary for the
different compartments of the estufa to be inpected once during the daytime and during the nigth,
in order that any mishap of thair kind may be at once rectified. Each compartments is provided
with double folding-doors, and after is is filled with wine the inner doors are coated over with
lime, so as to close up any chance apectures. When it is necessary to enter the estufa the outer
doors only are opened, anda a small trap in the inner door I pushed back to allow of the entrance
of the man in charge, who passes bet wen the various stacks of casks, tapping them one after the
other to satisfy himself that not leakage is going on. On coming out of the estufa , after a stay of
a full hour, he instantly wraps himself in a blanket, drinks a tumbler full of wine, and then shuts
himself up in a closet, into wich no cool as penetrates, provided for the purpose”.
Em casa de Krohn Brothers viu no seu complexo uma estufa de sol onde o vinho era aquecido
sob “the influence of sun’s ray’s”. Mas as estufas tiveram os seus percalços, pois em todos
acreditavam no auxílio benéfico das mesmas, tal como aconteceu com o governador D. José
Manuel da Câmara que por editais de 23 de Agosto de 1802 e 6 de Novembro de 1803 proíbe as
estufas por serem prejudiciais à boa reputação dos vinhos. Mas face à reacção da maioria dos
comerciantes nacionais e estrangeiros da região e do Senado da Câmara. O que levou o mesmo
em 14 de Fevereiro de 1804 a oficiar ao Conde de Anadia, dando conta do sucedido e da
pretensão dos locais para que fosse levantada a suspensão de modo a poderem aviar as
encomendas. Por ordem régia de 7 de Maio, do mesmo ano, foi expedido aviso para ser
levantada a proibição. Mesmo assim a questão das estufas não terminou, pois que em todos os
debates das estufas. O próprio Senado da Câmara cuja composição heterogénea mudava, A
opinião desfavorável destaca que tal processo de tratamento de vinho está na origem da
decadência da fama e comércio do vinho, sendo igualmente prejudicial às suas propriedades
conhecidas, retirando-lhes as qualidades “balsâmicas”, ou alterando-lhe o sabor e dando-lhe o
gosto torrado, queimado “muito desagradável”. Desta forma se faz eco de modo sarcástico, em
1851 no “Correio da Madeira”: “O vinho estufado, cozido, fervido, frito, assado e agrilhoado é a
causa suficiente da decadência do nosso comércio e o abatimento da nossa agricultura... As
estufas são somente próprias para o vinho mão, e o que é essencialmente mau, não há forças
humanas que o façam bom.
O vinho bom carece de estufa, logo as estufas só servem para o ordinário: que se deve ferver
para aguardente, e consumir nas tabernas. O cheiro, o sabor do vinho estufado são péssimos, são
repugnantes e asquerosos: o vinho não sabe à uva, parece sumo das aduelas, das vasilhas, que o
tiveram em fermentação. Nada mais ingrato, nada mais desgostoso ao paladar. O vinho de estufa
ataca o cérebro, afecta o bofe, excita sede insaciável, provoca almorreimas, produz puxos,
tenesmos, frenesim, delírios, loucura. E uma calamidade pública esta funesta descoberta; que
fazendo exportar o vinho mau, deixa o bom, e óptimo estagnado, arruinado o nosso crédito”.
Contrapondo-se a esta opinião muito generalizada na época, temos outra opinião que pugnava
pela qualidade doo vinho produzido por este trato, que surge como medida útil e barata para o
trato e, consequente escoamento do vinho com maior rapidez para os centros consumidores.
Assim o referem os comerciantes locais em 1804: “Granjeou o comerciante o fruto preciso dos
seus cuidados, dos seus cálculos, e da sua bem atendida vigilância, pois que com o novo método
de melhorar, e adiantar os seus vinhos de 5 a 6 meses apronta toda a quantidade de vinho, que é
preciso para os seus embarques, não sendo obrigados a esperar o espaço seguro de 4 a 5 anos”.
Em 1834 ainda a Câmara do Funchal desfaz as acusações contra as estufas apontadas como
causa primeira da ruína do comércio local, antes notando o seu efeito benéfico e incentivador do
mesmo:”Ora devendo-se considerar a invenção das estufas como admirável processo por meio
do qual se melhora rapidamente a qualidade dos vinhos, apressando sua maturação, ao mesmo
passo que se evitam grandes embates de capital; e sendo este aliás o único método que nos pode
habilitar a competir com os vinhos de outras nações nos quais a cultura dos vinhos é mui pouco
dispendiosa...” .Da mesma opinião é P. P. da Câmara: “Seria inepto julgar, que foi o processo da
estufa que desacreditou este género, e diminuiu o seu consumo... a não ser esta providência que
tanto veio a baratear a única produção que aviventa a Madeira, o que seria hoje d’ella, se este
método não tivesse facilitado a sua exportação, barateando o seu custo?... O sistema das estufas
veio facilitar a sua extracção, assim como dar-lhe velhice e fortaleza para resistir ao gelo do
norte, recebeu nova incubação e sangue desta ilha...” .
No Funchal, principal centro vinícola da ilha, se procedia ao tratamento do vinho por meio das
estufas, que aí começaram a surgir desde 1795/6. Estas eram distribuídas indiscriminadamente
por toda a cidade situando-se nos terrenos anexos as adegas, que se situavam na área
circunvizinha do cabrestante. Por editais de 23 de Agosto de 1802 e 6 de Novembro de 1803 se
havia proibido a construção de estufas no recinto da cidade, argumentando o juiz do povo os
inconvenientes que delas advinha para a saúde pública, em razão do fumo e constante perigo de
incêndio no período de laboração. Contra ela se manifestaram os comerciantes da praça do
Funchal, alegando os prejuízos que daí adviria e os argumentos infundados do referido juiz do
povo. Na realidade como eles referem, só houve até 1803 três ameaços de incêndio e, de
incêndios apenas encontramos referência a um na estufa de Phelps Page & Ca. em 29 de Outubro
de 1806. Se as estufas não eram um perigo para a saúde pública, tornavam-se, no entanto
prejudiciais à pouca salubridade do burgo oitocentista e mais em pleno centro do burgo e nos
eixos de maior atracção em redor do porto do Funchal: é o caso da área da Sé do Funchal,
próxima da Alfândega e do cabrestante, onde entre 1809/34 laboraram as estufas de Gordon
Duff, & Ca., respectivamente no Beco do Assucar e Rua do Esmeraldo. Aliás se tivermos em
conta que a freguesia da Sé se situa na área central da cidade teremos uma ideia clara da sua
implantação no burgo, pois que entre 1839/40 existiam 15 estufas, a que se seguiam 9 na
freguesia de S. Pedro, denotando assim uma forte concentração das estufas na área circunvizinha
da Alfândega e Porto do Funchal o que, em parte, se justifica para um fácil transporte do vinho a
ser embarcado.
De notar entre 1839/40 uma forte concentração das estufas no Beco dos Aranhas (4 e 5) e em S.
Paulo (3 e 1), área ribeirinha ao mar pelo lado da Pontinha e sobranceira à ribeira de S. João. No
termo da cidade as estufas localizavam-se em Santa Luzia, no Caminho da Torrinha, Torreão... e
em Santa Maria Maior na Rua dos Balcões, Rua Bela de Santiago, Rochinha... Fora da área do
Funchal, encontramos apenas 2 estufas em Santa Cruz em 1840, uma em S. Fernando de
Joaquim Telles de Menezes e outra na Rua Direita de Augusto César de Oliveira, prova
insofismável da forte concentrção das estufas e lojas na cidade e termo. Entre 1805/16 nota-se
uma certa estabilização no número de estufas, com variantes reduzidas para mais ou menos,
marcando o período de hesitação de novos estabelecimentos, em razão das medidas proibitivas e
da discussão contrária à sua implantação e utilidade. Passado esse período ganha uma certa
estabilidade, a que se seguiu, depois de solucionada a crise um forte impulso entre 1817/1829.
Entrando-se então em queda, que se acentua a partir de 1832, tendo-se atingido em 1834 número
idêntico. O período que decorre de 1834/44 é marcado por uma certa estabilidade no número de
estufas em laboração, apenas se notando um salto isolado em 1839 em que se atingem valores
idênticos aos médios dos anos evidencia (1817/29). Desde 1845 a tendência é para subir,
atingindo-se em 1851 o número máximo, mas desde 1852 é marcante uma descida que se
acentuará a partir de 1860.
D. João da Câmara Leme, especialista em assuntos enológicos teve oportunidade de, em França
entrar em contacto com os sistemas de aquecimento aí usados desde o primeiro quartel do século
XIX, nomeadamente aos sistemas em vaso fechado dados por Appert, ervais, Verguette, Cemotte
e Pasteur. De regresso à Madeira tomou contacto com o processo de estufagem então praticado,
tendo notado que o “sistema de aquecimento lento com comunicação com ar ambiente” dava ao
vinho um “sabor torrado de queimado muito desagradável” ao mesmo tempo que lhe retirava as
propriedades essenciais:”Um sistema que priva os vinhos novos das suas melhores qualidades
naturais e lhes introduz efeitos persistentes; que lhes tira o açúcar, álcool, óleos essenciais, e lhes
introduz, um sabor desagradável que o carvão vegetal empregado lhes não pode nunca tirar de
tudo, e que os impede de adquirir a finura tão assinalada nos antigos vinhos de canteiro...“Na
destilação do vinho de garapa despreza-se o vinham e guardam-se líquidos alcoólicos, éteres, e
sais e guarda-se o vinham”. Perante a constatação deste facto houve que tomar providências,
optando por um sistema de aquecimento em vaso fechado, de modo especial, o método Pasteur,
conhecido por pasteurização. Feitas as devidas experiências com este processo constatou D. João
da Câmara Leme “que o gosto de novo desaparecia muito pouco para que o vinho Madeira
pudesse ser embarcado em pouco tempo como vinho mais velho, e que os seus outros caracteres
não tinham suficientemente melhorado”.
Com seis anos de estudo ponderado, eis que ao fim de 10 anos de ensaios e experiências, em
1889 estabelece um sistema de aquecimento e afinamento dos vinhos, que tomou o nome de
sistema canavial, que adoptava o novo método de “aquecimento rápido e arrefecimento lento,
demorado ou não, em recipiente fechado” (163), salientando que “este processo de aquecimento
e afinamento dos vinhos, ou processo de aquecimento e de arrefecimento demorado, em
recipiente fechado, é o mais próprio para vinhos superiores ou medianos, é o mais próprio para o
vinho Madeira e Para todos os vinhos especiais”.”O vinho que vai ser aquecido entre, depois de
medido, num reservatório superiormente disposto, donde desde, pelo seu próprio peso, por um
cano de estanho, no qual é elevado, em banho-maria e o abrigo do contacto do ar à temperatura
de 158º F. (70º C), continuando depois a descer, sem encontrar nada no caminho que lhe apresse
o aperfeiçoamento; e chegando finalmente, depois de ter marcado num termómetro a uma
temperatura adquirida, ao fundo da mesma pipa donde sairá pouco antes, e cuja boca, disposta de
modo a impedir perda de vapores, é fechada logo que termina a operação (...).
O vinho gasta cerca de 3 minutos no tratamento do seu aquecimento, que para uma pipa de 450
litros, exige hora e meia. O calor, comunicado pelo vinho ao interior da pipa, manifesta-se em
breve exteriormente. Os Arcos alargam-se, e precisam de ser rebatidos. O vinho assim aquecido
não é nunca voluntariamente arrefecido: e, quando se lhe não demora o arrefecimento, deixa-se
que ele se faça naturalmente, mais ou menos, lentamente segundo a diferença entre a temperatura
da pipa e a do meio ambiente; gastando, geralmente, cerca de três dias.
É o mais curto arrefecimento do vinho rapidamente aquecido pelo sistema canavial.
Quem observar este vinho pouco depois do aquecimento, ou no fim do arrefecimento, tendo-se
conservado a pipa sempre bem fechada, nota que ele não fermenta; que não tem cheiro que
indique a presença de enxofre; e que o aroma de novo se tornou mais agradável; nota que o gosto
está também sensivelmente mudado, e que parece de vinho de mais idade; e uma operação
destilatória, feita antes e depois do aquecimento, mostra que a percentagem alcoólica é igual.
Houve, pois neste aquecimento, um notável melhoramento; e não houve prejuízo (...).
É baseado em tais princípios que este estabelecimento organizou casas, ou estâncias, próprias
para demorar o arrefecimento do vinho. Quando, pois, uma pipa de vinho é destinada ao
afinamento numa destas estancias, é para lá transportada, hermeticamente fechada, logo depois
de terminado o aquecimento; e assim permanece, durante meses, num recinto onde a temperatura
é moderada, mas constante e bem regulada.
Cinco fornalhas introduzem ar quente em canos que dão três voltas nas estancias; e que são
guarnecidos de chapas de ferro para facilitarem a transmissão do calor, sempre bem regulado e
facilmente observado por termómetros que se podem bem ler de fora.
As estancias, que são sempre cuidadosamente revistadas para serem as pipas oportunamente
rebatidas, são a princípio, mantidas na temperatura de 120º F. (50º C); mas depois de ter o vinho
arrefecido suficientemente para se pôr em equilíbrio com o meio ambiente, essa temperatura vai
lentamente descendo, e fazendo paradas convenientes, até ao fim do afinamento.
O vinho assim aquecido e afinado conserva todas as qualidades naturais, apresenta qualidades
próprias do vinho de canteiro que tem cinco ou seis anos e uma notável finura muito apreciável;
sem apresentar nenhum mau sabor, nem defeito algum, sendo convenientemente tratado, pode
logo ser lotado com outros vinhos aquecidos e conservados livres de fermentos, e mesmo ser
embarcado, sem risco de se alterar, e com grande economia d’alcool”.
Este é o único processo de tratamento por estufa que anima a qualidade do vinho fazendo-o
manter sempre as suas características; e adquire qualidades próprias capazes deste modo de
rivalizar com os melhores vinhos de canteiro. Este é o vinho canavial preparado normalmente
com o boal, que se apresenta com as seguintes propriedades-digestivo, anticéptico, medicinal,
alimentício.
Muito antes de D. João da Câmara Leme temos já notícia de um invento de estufagem até então
usado, ou se apresenta como inovador, pois que as referências apenas nos dão indicação de que o
novo método se dava nos vinhos “comunicando-lhes o calor internamente e de os fazer assim
vermelhos em pouco tempo”. Será este o mesmo sistema do praticado em França, nomeadamente
a pasteurização? . Tudo indica que assim seja, uma vez que o dito foi a França várias vezes,
donde trouxe alambiques de destilação contínua e travou contacto com as inovações da técnica
francesa de destilação e aquecimento do vinho.
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O COMEÇO........
Na Madeira, até à década de setenta do século quinze, a paisagem agrícola foi dominada pelas
searas, decoradas de parreiras e canaviais. A cultura cerealífera dominava a economia
madeirense, gerando grandes excedentes com que se abasteciam os portos do reino, as praças
africanas e a costa da Guiné. Tudo isso foi resultado da elevada fertilidade do solo provocada
pelas queimadas para abrir caminho às primeiras arroteias.
As condições em que se estabeleceram as primeiras arroteias fizeram com que as sementes de
cereal, lançadas sobre as cinzas das queimadas, frutificassem em abundância. Diz Jerónimo Dias
Leite que de um alqueire semeado se colhiam sessenta, enquanto Diogo Gomes refere “que uma
medida dava cinquenta e mais”. Cadamosto corrobora o primeiro mas anota que esta relação foi
baixando devido à deterioração do solo. Ainda, segundo ele, a ilha produzia 3000 moios de trigo
de que só tinha necessidade de um quarto. O demais era exportado para o reino, tal como o diz
Diogo Gomes: “E tinham ali tanto trigo que os navios de Portugal, que por todos os anos ali iam,
quase por nada o compravam”. Em data, que desconhecemos, estabeleceu o infante D. Henrique
ou o rei a obrigatoriedade de envio de mil moios para a Guiné, o que era considerado, na década
de sessenta um vexame para os funchalenses, que prontamente reclamaram ao novo senhor da
ilha, no que não tiveram grande acolhimento por ser “trato de el-rei”. Até à década de 70, a
paisagem agrícola madeirense foi dominada pelas searas, decoradas de parreiras e canaviais. A
cultura cerealífera dominava, então, a economia madeirense. A este propósito refere Fernando
Jasmins Pereira que no período henriquino os cereais constituíram a base da colonização da ilha.
A fertilidade do solo, resultante das queimadas, fez com que esta cultura atingisse níveis de
produção espectaculares, que a historiografia quatrocentista e quinhentista anuncia com
assiduidade, notando que o cereal se exportava para o reino e praças africanas. Em meados do
século, segundo Cadamosto, a ilha produzia 3000 moios de trigo, que excedia em mais de 65%
as necessidades da parca população. Este excedente, avaliado em cerca de 2/3 da produção, era
exportado para o reino e, segundo os cronistas, vendido ao preço de quatro reais. Desde 1461,
1000 moios foram suprir as carências dos assentamentos africanos, ficando conhecidos como o
saco da Guiné.
A partir da década de 60, com a valorização do comércio do açúcar, as searas diminuíram em
superfície e a produção cerealífera passou a ser deficitária. Por isso, a partir de 1466, a ilha
precisava de importar trigo para sustento dos seus vizinhos, sendo impossível manter as
escápulas estabelecidas. Em 1479, referia-se que a produção dava apenas para quatro meses.
Tudo isto derivou da acção dominadora dos canaviais, aliada ao rápido esgotamento do solo e
inadequação da cultura, resultante de uma exploração intensiva, sem recurso a qualquer técnica
de arroteamento. O agravamento do défice cerealífero nas décadas de 70 e 80, que conduziu à
fome em 1485, foi a principal preocupação das autoridades locais e centrais. Primeiro procurou-
se colmatar a falta com o recurso à Berbéria, Porto, Setúbal, Salónica; depois foi necessário
definir uma área externa produtora, capaz de suprir as necessidades dos madeirenses. Assim
sucedeu, desde 1508, com a definição dos açores como principal área cerealífera do Atlântico
português: as ilhas açorianas actuam como o celeiro de provimento da Madeira e capaz de a
substituir no fornecimento às praças africanas. A Madeira, que se havia afirmado no período
henriquino, como um importante mercado de fornecimento de trigo, passou no governo
fernandino à situação de comprador, adquirindo mais de metade do seu consumo nas ilhas
vizinhas: açores, Canárias. Felizmente que a crise cerealífera madeirense é concomitante com a
sua afirmação no solo açoriano. O rápido incentivo do povoamento deste arquipélago nas
décadas de 60 e 70, conduziu ao igual desenvolvimento da cultura cerealífera, de modo que esta
se afirmava, em finais do século, como a principal área produtora de trigo do Novo Mundo.
A insuficiente colheita cerealífera insular, acompanhada da incidência de crises de produção,
conduziram à valorização da componente leguminosa e frutícola na dieta insular. Assim a
fruticultura e horticultura apresentar-se-ão como componentes importantíssimas na economia de
subsistência. Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI, alude com frequência às hortas e
quintais, que ornamentavam a paisagem humanizada, onde se produzia um conjunto variado de
legumes e frutas. Estes, para além do uso na dieta alimentar, eram também valorizados pelo uso
no provimento das caravelas que aportavam com assiduidade ao porto do Funchal.
Até a década de setenta a Madeira firma a sua posição de celeiro atlântico, perdendo-a, depois
em favor dos Açores que emergem desde então, com uma posição dominante na política e
economia frumentária do Atlântico. Na Madeira inverte-se a situação; a ilha de área excedentária
passa a uma posição de dependência em relação ao celeiro açoriano, canário e europeu. O
estabelecimento de uma rota obrigatória, a partir do fornecimento de cereal açoriano à Madeira,
criará as condições necessárias à afirmação da cultura da cana sacarina, produto tão
insistentemente solicitado no mercado europeu. O empenho do senhorio e coroa na cultura deste
novo produto conduziu a afirmação preferencial de uma nova vertente da economia atlântico-
insular. A partir de então os interesses mercantis dominam a dinâmica agrária madeirense. Na
ilha as searas deram lugar aos canaviais, enquanto as vinhas mantém-se de modo insistente numa
posição de destaque. A coroa havia estabelecido em 1508 que os Açores eram o celeiro do
mundo atlântico, suprindo as carências da Madeira e substituindo-a no fornecimento às praças
africanas e cidade de Lisboa. Na verdade a crise cerealífera madeirense coincidiu com o
incremento da mesma cultura em solo açoriano, tendo-se determinado, nomeadamente em S.
Miguel, um travão ao avanço da cultura do pastel.
As dificuldades de abastecimento de cereais manteve-se como uma constante até à
contemporaneidade. Tudo isto porque a ilha por mais que apostasse no seu cultivo nunca
conseguiu assegurar o necessário cereal consumido e também porque os circuitos de
fornecimento, nas ilhas, colónias e América estiveram sujeitas a inúmeras conjunturas. O corso
atlântico e as guerras europeias condicionaram este abastecimento. A primeira metade do século
XX pode ser considerada um momento crítico. As dificuldades no abastecimento de farinhas
levou as autoridades a intervir, através de medidas de controle das importações, da moagem e da
promoção da cultura cerealífera. No mesmo objectivo se enquadra o plano de alargamento das
terras de regadio, tendo-se alcançado em 1939 3600 ha, situação que foi alargada na década de
quarenta com a Comissão dos Aproveitamentos Hidráulicos.
A campanha do trigo começou ao nível nacional em 1929 e chegou à ilha em nos anos quarenta.
Através de prémios aos agricultores procurava-se promover o aumento da produção cerealífera
diminuindo a dependência ao mercado externo. Esta campanha abrangeu em 1942 144
proprietários que semearam 713660 ha. Mesmo assim a ilha estava longe de conseguir a sua
libertação dos mercados abastecedores externos uma vez que nos princípios da década de
cinquenta apenas estavam garantidos 11% do trigo e 6,4/ do milho. A média de importação de
milho na década de quarenta era superior a vinte toneladas. Algumas destas medidas não foram
bem entendidas pela população como foi o caso do decreto 19275 de 1931, conhecido como do
proteccionismo cerealífero, que provocou uma revolta popular, a célebre revolta da Farinha. Esta
medida de disciplina das moagens foi entendida como uma forma de favorecimento da família
Blandy e de criação de um monopólio. Primeiro em 1934 foi criado o Grémio do Milho Colonial
Português que em 1938 deu lugar à Junta de Exportação dos Cereais que passou a dispor de uma
delegação na Madeira no ano imediato, mantendo-se até 1962. A esta estrutura estava atribuída a
missão de abastecimento do mercado e de fixação dos preços. O papel da Junta ficou
demonstrado na ilha durante a Segunda Guerra Mundial, momento crítico de abastecimento da
ilha.
Se o cereal pouco contribuía para aumentar os reditos dos seus intervenientes o mesmo não se
poderá dizer em relação ao açúcar e vinho que, a seu tempo contribuíram para o enriquecimento
das gentes da ilha. A própria coroa e senhorio fizeram depender grande parte das suas despesas
ordinárias dessa fonte de receita. A par disso o enobrecimento da vila, mais tarde, cidade do
Funchal fez-se à custa desses dinheiros. O Funchal avança para poente e adquire fama de novos e
potenciais mercados. Todavia esta opulência foi de vida efémera. Desde a terceira década do
século XVI o açúcar madeirense é destronado da posição cimeira no mercado europeu, perdendo
a preferência em favor do canário ou brasileiro, de menor qualidade, mas que ai aparecem com
preços mais baratos.
A exploração agrícola na ilha estava limitada à superfície arável e as condições que o mesmo
oferecia. A orografia era o óbice mais importante e conduzia a que pouco mais de trinta por
cento da superfície podia ser dedicada à agricultura. Por outro lado a sua disposição em altitude
levou a que a sua distribuição estivesse limitada a patamares. Perante isto seremos confrontados
com uma exploração extensiva do solo e uma valorização escalonada das culturas. Deste modo
em cada época as culturas dominantes ocupavam os melhores e mais ricos solos agrícolas. Ainda
de acordo comas condições agro-climáticas de cada produto teremos uma diversidade de culturas
a moldar a policromia da paisagem.
É de prever, contudo, que a produção de açúcar tenha sido alvo de novo incentivo neste final do
século, pois em informação apresentada em 1698 ao novo governador D. António Jorge de Melo,
refere-se a existência de 41 engenhos que rendiam à coroa 8.000 arrobas. Este testemunho é
contrariado em finais da década anterior, por dois estrangeiros que passaram pela ilha. Em 1687
Hans Sloane é peremptório na caracterização da conjuntura açucareira:" Esta ilha é muito fértil
tendo antigamente produzido grandes quantidades de açúcar aqui cultivado e de excelente
qualidade. O que agora possuem é bom, mas muito escasso, devido à existência de muitas
plantações açucareiras nas Índias Ocidentais(...) Assim, embora consigam um produto de maior
cotação, acham que lhes é muito proveitoso dedicarem-se aos vinhos, pelo que apenas produzem
o açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil,
às suas próprias plantações." Dois anos após é idêntico o testemunho de John Ovington: " o
açúcar... raramente é exportado, devido à sua escassez, mal chegando para as necessidades da
ilha".
No século dezoito esta cultura é conduzida para um plano secundário, deixando de ter a real
importância que teve na economia madeirense. Para A. SILBERT o fim do "ciclo do açúcar" na
Madeira tem lugar em meados do século XVIII. Esta opinião é aliás corroborada pelo cônsul
francês na ilha, que em 1777 refere a cultura como abandonada. A mesma ideia poderá ser a
razão da inexistência de livros do oitavo a partir de 1766. A produção de açúcar torna-se
conhecida através dos tributos que recaem directamente sobre o produto. No caso da Madeira
tivemos o quarto e, depois, o quinto que oneravam todos os lavradores de cana de acordo com os
valores de produção estabelecidos à saída do estendal para os canaviais. Por todo o século XVIII
a aposta preferencial foi apenas na vinha, que retirou espaço aos canaviais. Mesmo assim estes
tiveram continuidade, uma vez que existem dados que documentam a existência de canaviais e
sabe-se que o engenho dos Socorridos manteve-se em funcionamento por todo o século XVIII.
A conjuntura económica de finais do século dezanove trouxe a cultura de regresso à Madeira,
como solução para reabilitar a economia que se encontrava profundamente debilitada com a crise
do comércio e produção do vinho. Todavia a situação, que se manteve até à actualidade, não veio
atribuir ao produto a mesma pujança económica de outrora. Outro facto evidente da centúria
oitocentista foi a presença de inúmeros madeirenses em Demerara como mão-de-obra
substitutiva dos escravos, cuja situação, entretanto, havia mudado. A última década do século
dezanove e as duas primeiras da presente centúria podem ser consideradas de horas amargas para
todos os madeirenses. Parte disso é resultado do processo porque passou o açúcar. A
generalização do seu consumo provocou um redobrado empenho na sua reimplantação entre nós.
No início, as dificuldades do tradicional mercado americano, envolto em guerras pró-
independência, e ainda não refeito do impacto do abolicionismo, propiciaram a afirmação da
cultura nos primeiros espaços, ou a aposta nas alternativas, como a beterraba, que na ilha nunca
resultou. Todavia, num segundo momento a concorrência tornou-se feroz. Entre nós a do açúcar
de beterraba açoriano ou de cana de Angola e Moçambique foi bastante evidente e levou ao
estabelecimento de medidas restritivas da circulação do melaço e do açúcar, ou de favorecimento
da indústria local. Elas enquadram-se na política europeia definida pelo convénio de alguns
países produtores assinado a 5 de Março de 1903. Esta última situação conduz, por vezes, ao
monopólio. Como, na realidade, sucedeu entre nós.
A toda esta complexa conjuntura junta-se a dificuldade extrema no recrutamento de mão-de-obra
barata - o escravo era então coisa do passado - o que levava a um investimento desusado na
tecnologia. A intenção era clara: substituir-se ao homem, baratear e facilitar a rapidez do
processo de laboração. Umas das grandes questões em debate neste segundo momento do açúcar
prende-se com as dificuldades em concorrer com outras áreas produtoras, onde os custos eram
reduzidos a metade e a qualidade da sacarose da cana também superior. Esta conquista de
inovação tecnológica era custosa e só foi conseguida à custa de medidas proteccionistas. Sucedeu
assim em todo o lado. Entre nós foi a questão Hinton. Este foi sem dúvida o problema que mais
apaixonou a opinião pública, nas vésperas e durante a República; publicaram-se inúmeros
folhetos, os jornais encheram-se de opiniões contra e a favor. Cesário Nunes(1940) documenta
esta situação de forma lapidar: “Em Portugal nenhuma questão económica atingiu tão alta
preponderância e trouxe e tão grandes embaraços legislativos às entidades governativas como o
problema sacarino da Madeira. “Tudo começou em 23 de Março de 1879 com a inauguração da
Companhia Fabril do Açúcar Madeirense. Era uma fábrica de destilação de aguardente e de
fabrico de açúcar sita à Ribeira de S. João. Demarcou-se das demais com o recurso a tecnologia
francesa, usufruindo dos inventos patenteados em 1875 pelo Visconde de Canavial. O cónego
Feliciano João Teixeira(1873), sócio deste empreendimento no discurso de inauguração afirma
ser este um “grandioso monumento, que abre uma época verdadeiramente nova e grande na
História da industria fabril madeirense”. Mas isto era apenas o princípio de um conflito indus-
trial, onde imperou a lei do mais forte. Tal como o afirmava em 1879, no momento encerramen-
to, José Marciliano da Silveira “ a fábrica de São João foi cimentada com o veneno da maldade;
era o seu fim dar cabo de todas as que existiam...” acabou por cavar o fosso da sua ruína.
Tudo começou com o plágio por parte da família Hinton, da invenção do Visconde Canavial.
Este havia patenteado em 1875 um invento que consistia em lançar água sobre o bagaço, o que
propiciava um maior aproveitamento do suco da cana. Constava da patente o uso exclusivo pela
fábrica de S. João, mas o engenho do Hinton cedo se apressou a copiar o sistema. Com isso o
lesado moveu em 1884 uma acção civil contra o contrafactor. Mas a família Hinton estava
fadada para singrar na industria açucareira e conseguir uma posição de monopólio. Segurada na
influência das autoridades diplomáticas britânicas, da intervenção pessoal junto da coroa e,
depois, das hostes republicanas, conseguiu atingir os seus objectivos. A visita de El Rei D.
Carlos à ilha em 1901, poderá ser entendida como um momento crucial dessa actuação.
As medidas que favoreciam a entrada de melaço estabelecidas pela lei de 1895, associado ao
decreto de 1903, um regulamento anexo a este decreto determinava a forma de matricula das
fábricas. As condições eram de tal modo lesivas que só duas - Hinton e José Júlio Lemos o
conseguiram fazer. As cerca de meia centena de fábricas que existiam na ilha ficaram numa
situação periclitante. Entretanto a lei de 24 de Novembro de 1904 dava a machadada final ao
estabelecer a referida matrícula por 15 anos. Entretanto, caía a monarquia e sucedeu a República,
que parecia querer fazer ouvidos moucos às regalias conquistadas no anterior regime. Mas de
novo as influências moveram-se a família Hinton conseguiu pelo decreto de 11 de Março de
1911 assegurar o monopólio do fabrico do açúcar e regalias na importação de açúcar das
colónias.
Os anos seguintes foram de plena afirmação deste monopólio e de luta sem tréguas às fábricas de
aguardente. Note-se que o consumo excessivo da aguardente era o inimigo número um da saúde
pública, sendo a Madeira, por essa situação, definida como a ilha da aguardente. As leis de 1927,
1928, 1934, 1937 actuam no sentido do controlo da produção e comércio de aguardente,
conduzindo inexoravelmente a um paulatino abandono da cultura. Dos 1800 ha de 1915, que
produziam 55.000 toneladas, passou-se aos 1420 do ano de 1952. Depois foi o que se viu até que
em 1985 agonizou em definitivo o império do açúcar do Hinton, construído com pés de barro,
sustentado pelos favores políticos, vegetando à custa da exploração dos lavradores de cana.
A área de cultura de cana sacarina foi-se reduzindo inexoravelmente a pequenos nichos de
socalcos na vertente sul. Todavia a partir de meados do século XIX a mesma foi paulatinamente
conquistando terreno a norte e a sul. Assim J. Mason(1850) refere que a mesma se fazia de modo
extensivo, ocupando metade da terra arável. Opinião distinta tem R. White(1851) que diz ser
ainda pouco cultivada e apenas usada para o fabrico de mel. Na verdade, a cultura era ainda uma
auspiciosa esperança para os madeirenses. Nicolau Ornelas e Vasconcelos(1855), que fora
trabalhador de cana em Demerara diz-nos: “... olha-se para a cultura da cana de açúcar como um
grande produto agrícola que oferece grandes vantagens, que podem em certo modo adoçar o mal
geral, o aspecto aterrador de nossas finanças...” Passados dez anos a cana continua a ser uma
aposta forte, mas tardava o momento da sua plena pujança de acordo com Eduardo Grande(1865)
a cana ocupava apenas 357 ha (2%), isto é uma magra fatia do solo arável. A aposta nas décadas
de cinquenta e sessenta estava a afirmação desta nova cultura, capaz de reabilitar a economia da
ilha.
Neste segundo momento de afirmação dos canaviais podemos estabelecer dois momentos
distintos: O primeiro decorre de 1852 a 1884, culminando com o ataque do bicho da cana, em
1885 e 1890, que levou à sua quase total destruição. Para atalhar esta dificuldade importaram-se
novos tipos de cana: a cana bourbon introduzida de Caiena(1847) e Cabo Verde, também atacada
pelo bicho, foi substituída por outras castas da Mauricia, yuba do Natal(1897) e POJ de
Angola(1938). Para isso foi criada uma estação experimental(em 1888) e estabeleceu-se um
conjunto de medidas proteccionistas em 1895. Esta aposta definiu o segundo momento. A
alteração significativa deste panorama só sucedeu na viragem do século, quando a cana atingiu
cerca de 1000 ha, valor que continua a subir para as 6500ha em 1939. A partir daqui foi a quebra
resultante das medidas restritivas ao fabrico e consumo de aguardente. Na década de quarenta do
nosso século a cana ocupava ainda 34% da área cultivada, mas este era já um momento de
quebra acentuada da sua área de cultivo, que na vertente sul foi paulatinamente substituída pela
bananeira. Deste modo em 1952 fala-se apenas 1420ha, enquanto mais próximo de nós, em 1986,
só existem 119,9ha. Esta evolução dos canaviais, com maior incidência na vertente meridional,
área tradicional do seu cultivo, significa um maior volume de produção que empurra a evolução
do número de engenhos. Foi no período de 1910 a 1930 que se atingiu os valores mais elevados,
que aproximaram a ilha dos tempos áureos do século XV, apenas em termos de produção e
nunca de riqueza. Todavia, a partir desta data sucedem-se medidas limitativas da expansão da
área dos canaviais, que conduzem inevitavelmente à sua desvalorização na economia rural e que
em certa medida favorecem a expansão da banana, cultura, predominantemente da vertente sul,
deixando a agricultura do norte num estado de total abandono, o que abriu as portas a uma
desenfreada emigração. Tenha-se em atenção que “a agricultura, toda a economia da Madeira, a
própria administração publica, ficariam mais do que nunca na dependência das fabricas de açúcar
e álcool”.
Facto inédito foi a tentativa de implantação da cultura no Porto Santo. Primeiro foi a frustrada
introdução do sorgo, depois a cana, documentada a partir de 1883. A sua produção era diminuta,
sendo as canas exportadas para o Funchal ou espremidas num engenho movido por bois, ou
moinho de vento. Também na Madeira se cultivou o sorgo com a mesma finalidade desde 1856.
Ainda, deverá atender-se ao facto de se ter experimentado outras formas de produção de açúcar
na Madeira, nomeadamente a beterraba, que não teve êxito. A par disso é de realçar também a
insistência das gentes do norte, representadas através dos municípios de S. Vicente e Santana, em
pretenderem furar as limitações impostas pelas autoridades para a área de produção de cana, que
não acautelavam esta vertente devido o baixo teor de sacarose, levando a Junta Geral em 1955 a
contrariar as ordens do Ministério do Interior, ao implantar dois campos experimentais em S.
Vicente e Santana. Esta situação é resultado do facto de a cana ser um complemento importante
da pecuária e um dos poucos meios de assegurar a subsistência dos lavradores, tendo em conta a
total desvalorização da vinha.
OS PREÇOS DO AÇÚCAR. Não é fácil estabelecer com clareza a evolução dos preços do
açúcar no mercado insular porque não existem núcleos documentais que permitam a
reconstituição de séries. Os dados disponíveis são avulsos e desconexos. Em primeiro lugar está
a falta crónica de moeda nas ilhas e o recurso ao açúcar como meio de troca, a que se associa nos
séculos XV e XVI a sua insistente desvalorização. O açúcar, como moeda de troca, é uma
realidade quer na Madeira, quer nas Canárias, mas foi neste último arquipélago que adquiriu
melhor expressão. É necessário ter ainda em conta que a lei da oferta e da procura condicionava
de forma evidente a evolução do preço do açúcar ao longo do ano. Deste modo, é de notar uma
variação mensal de acordo com o período da safra do açúcar e da presença de embarcações
interessadas no seu trato. Daqui resulta que os preços mais elevados surjam nos meses de Junho
e Julho, precisamente no momento em que se disponibilizava o primeiro açúcar do ano e, por
isso, a afluência de mercadores era maior. É de notar, ainda, outras variações sazonais no próprio
mês de acordo, como é óbvio, com a lei da oferta e da procura.
O açúcar branco apresentava dois preços, consoante fosse de uma ou duas cozeduras. Na
Madeira o último preço correspondia em 1496 a quase o dobro do primeiro. Se tivermos em
conta, que em 15 000 arrobas da primeira cozedura ficava apenas 10 000 na segunda, nota-se
uma forte valorização do produto final. Esta insistência no açúcar de segunda cozedura é
considerada condição necessária para a valorização do produto, impedindo que chegasse ao
mercado europeu em más condições, mas acima de tudo era uma medida benéfica que reduzia
para metade a oferta do açúcar, o que favorecia a competitividade do produto numa altura que o
mercado se pautava por excedentes.
A partir da década de setenta o preço do açúcar entrou em quebra acentuada. Esta ideia está
testemunhada nas intervenções do senhorio a partir de 1469 que insiste na solução do monopólio
para o comércio. A negação dos madeirenses a semelhante solução levou o Duque D. Manuel a
avançar com novas medidas. Assim em 1496 fixa os preços em 350 réis para o açúcar da
primeira cozedura e 600 ao da segunda, e passados dois anos opta por estabelecer uma cota
máxima de exportação que se cifrava em 120.000 arrobas. Os dados disponíveis revelam este
movimento de quebra do açúcar. O primeiro açúcar feito em Machico vendeu-se a 2000 réis
arroba. Já em 1469 o seu preço estava em 500 arrobas para o de uma cozedura e 750 para o de
duas, Em 1472 temos a notícia que subiu para 1000 réis a arroba, mas esta deverá ser uma
situação particular resultante da quebra acentuada da moeda, pois que em 1478 regressou à
normalidade. O movimento de queda foi uma constante até princípios do século XVI e só a
revolução dos preços inverteu a situação, evidente na década de vinte em ambos os arquipélagos.
Esta última conjuntura é comum à Madeira e Canárias. Em ambos os casos é evidente uma
inversão de marcha a partir da década de trinta que pode ser entendida com a presença
concorrencial de açúcar de outras áreas, nomeadamente do continente americano. Todavia a
tendência nas Canárias inverte-se na década de quarenta, certamente como resultado da
galopante inflação.
A oferta não se resumia apenas ao açúcar branco, pois a ele devem juntar-se os subprodutos,
como as escumas, rescumas, mel, remel, mascavado e mel mascavado e depois alguns derivados,
como as conservas e casquinha, que em qualquer dos arquipélagos tiveram grande importância.
Em Tenerife as escumas e rescumas eram cotadas a metade do preço do branco, enquanto na
Madeira e Gran Canaria essa relação só é possível com as rescumas, uma vez que as escumas são
muito mais valorizadas. É, ainda, possível estabelecer uma relação entre estes subprodutos e o
açúcar branco, expressa nos níveis de produção e preço. Em Gran Canaria no século XVI essa
relação fazia-se da seguinte forma: em 2500 arrobas de açúcar correspondem 60% ao branco,
12% às escumas, 8% de rescumas e 20% de açúcar refinado. O mesmo sucede na Madeira no
período de 1520 a 1537.
Diogo Fernandes Branco parece ter sido o principal interveniente do comércio com os portos
nórdicos, quase só baseado na exportação de casca e conservas. Para o curto período que dura a
correspondência é evidente a importância assumida pelo dito comércio. Assim em 1649, não
obstante o açúcar da produção local ser de mau qualidade, a falta de cidra e tardar a vinda dos
navios do Brasil, a procura manteve-se activa, gerando dificuldades aos fornecedores, como
Diogo Fernandes Branco, que tiveram que socorrer-se de todos os meios para poder satisfazer a
encomenda. Ista conjuntura conduzia inevitavelmente ao aumento do preço do produto. Esta
situação continuou de modo que em Novembro de 1651 carregaram na ilha 9 navios franceses.
No ano imediato inverteu-se a situação: a casca abundou e em Outubro ainda tardavam em
chegar os navios para a levar ao seu destino, o que era motivo para preocupação. A
correspondência de William Bolton refere-nos, também, que a conserva de citrinos estava em
grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo usada para o abastecimento
das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas para Lisboa, Holanda e França. Duarte
Sodré Pereira surge, nos anos imediatos, como o continuador do comércio deste produto. A sua
actividade mercantil, neste lapso de tempo, esteve dedicada, também ao comércio do açúcar do
Brasil e à exportação de casca para o norte da Europa, nomeadamente, Amesterdão. A partir da
sua correspondência comercial sabe-se que exportou a seguinte quantidade de casca:
No fabrico das conservas e doces variados merecem a nossa atenção as freiras do Convento de
Santa Clara, da Encarnação e Mercês. Aliás em 1687 Hans Sloane referia-se de forma elogiosa
aos doces e compotas que comeu no Convento de Santa Clara, e ao referir que "nunca vi coisas
täo boas". Num breve relance pelos livros de receita e despesa do Convento da Encarnação,
Misericórdia do Funchal, e Recolhimento do Bom Jesus, constata-se as assíduas despesas com a
compra de açúcar da ilha ou do Brasil para o consumo interno. A Misericórdia do Funchal para
além das esmolas que recebia em açúcar ou marmelada, consumia açúcar que comprava. Do
primeiro tanto se poderia dar aos doentes ou vender para fora. Em 1636 gastaram-se 6.180 réis
na compra de 3 arrobas de açúcar para os doces da procissão das Endoenças. Ademais são
conhecidas outras despesas na compra de abóbora, ginjas, peras, marmelos para o fabrico de
doce. Em 4 de Junho de 1700 a Misericórdia do Funchal gastou 101.500 réis na compra de 34
arrobas para o fabrico de doces a serem consumidos ao longo do ano. Para o período de 1694 a
1700 a mesma instituição gastou 634.400 réis na compra de 227 arrobas de açúcar e 14 canadas
de mel. Maior e mais assíduo foi o consumo de açúcar no Convento da Encarnação. Aí, de
acordo com o registo mensal dos gastos com as compras de produtos para a dispensa do
convento pode-se ficar com uma ideia da sazonalidade do consumo da doçaria. No caso deste
convento destacam-se a Quinta-Feira de Endoenças e o Natal. Nesta última festividade
distribuía-se a cada freira, para a Consoada, 8 libras de açúcar. Além disso parte significativa do
açúcar de várias qualidades, era usado para o "tempero do comer" e fazer conserva. No total
despenderam-se 190 arrobas de açúcar por estes vinte e dois anos para um total aproximado de
seis dezenas de recolhidas.
Junto ao cereal plantou-se também os bacelos donde se extraía o saboroso vinho de consumo
corrente ou usado nos actos litúrgicos. O ritual cristão fez valorizar ambos os produtos que, por
isso mesmo, acompanharam o avanço da Cristandade. Em ambos os casos foi fácil a adaptação
às ilhas aquém do Bojador o mesmo não sucedendo com as da Guiné. Todavia a videira
conseguiu ainda penetrar neste último espaço, se bem que tenha adquirido uma importância
diminuta. Na Madeira a cultura da vinha surge já com grande evidência no começo do
povoamento, sendo uma importante moeda de troca com o exterior. Cadamosto em meados do
século XV fica admirado com a qualidade e valores de produção das cepas madeirenses. Na
verdade a cultura da vinha havia imediatamente adquirido uma extensa parcela do terreno
arroteado na frente sul, alastrando depois a toda a área agrícola da ilha, a partir de finais do
século XV. Mas o seu desenvolvimento foi entravado pela dominância dos canaviais e por isso
mesmo a afirmação plena só terá lugar a partir do momento em que surgiram as primeiras
dificuldades no comércio do açúcar.
A evolução da safra vitivinícola madeirense dos séculos quinze e dezasseis só pode ser
conhecida através do testemunho de visitantes estrangeiros, uma vez que é escassa a informação
nas fontes diplomáticas. Hans Standen definia em 1547 a economia madeirense pelo binómio
vinho/açúcar, passados vinte e três anos só se falará do vinho como principal factor do sistema
de trocas com o exterior. Os trigais e canaviais deram lugar às latadas e balseiras. A vinha
tornou-se a cultura quase que exclusiva do colono madeirense. Deste modo vinho adquiriu o
primeiro lugar na economia madeirense, mantendo-se assim por cerca de três séculos.
A rápida e plena afirmação do vinho da Madeira no mercado atlântico derivou do elevado teor
alcoólico que lhe favoreceu a expansão em todo o mundo. Ele conseguia chegar em condições
desejáveis aos destinos mais inóspitos e impróprios para a sua conservação. Em Cabo Verde, S.
Tomé ou Brasil o vinho madeirense era preferido aos demais por ser o único que resistia ao calor
tórrido a que estava sujeito. Os mestres e tripulantes das embarcações, que demandavam a região
equatorial, não escondiam também a sua preferência, pelo que escalavam com assiduidade o
Funchal para se abastecerem de vinho. Este era dos poucos, talvez o único vinho que não
avinagrava à passagem nos trópicos, antes pelo contrário, adquiria propriedades gustativas, o que
muito os alegrava.
O vinho da Madeira é inevitável pelo simples facto de que é o resultado não só das propriedades
comuns a cada casta, mas também às condições do solo e à variedade de microclimas, que
determinam em última instância as suas peculiaridades, baseadas numa elevada acidez que o
favorecem no seu processo de envelhecimento. As condições orográficas da ilha, definida por
uma forma piramidal de cordilheira montanhosa espraia-se em duas vertentes distintas definidas
por uma costeira abrupta, aqui e acolá entremeada de poucas áreas planas altas (Paul da Serra,
Santo) e algumas Fajãs, (isto é, áreas planas junto ao mar). Daqui resultam vários aspectos de
particular interesse para a fauna viti-vinicola. Ao homem que aqui apostou nos princípios do
século XV restava ainda um importante labor da sua humanização. Desbravou a floresta e sobre
as ravinas e encostas ergueu paredes para aplainar a terra e nelas poder lançar as sementes.
O solo é pobre, o que implica o insistente recurso aos fertilizantes. Os solos deste espaço agrícola
são resultado da desagregação das rochas vulcânicas sendo compostos de basalto, traquite, tufo
escórias e conglomerados. A falta de calcário, potássio e azoto obrigam o homem a intervir no
sentido de lhe atribuir os suplementos adequados de minerais para que as culturas possam
medrar. Acresce ainda que esta composição do solo varia conforme se sobe a encosta,
estabelecendo assim em altitude diversos níveis de minerais, que conjuntamente com a variedade
climática vão definir patamares ideais para as diversas culturas. Daqui resultará condições
diversas que influenciam decisivamente as parreiras aí implantadas. É certo que a vinha tinha no
sul nos terrenos situados entre os 330 e 750 metros de altitude as melhores condições para
mediar. Mas o homem fê-la espalhar por toda a ilha, ignorando essas condições ideais e
sujeitando-se à qualidade do fruto que daí advinha. A miragem do lucro mais fácil e
compensador da sua faina. O escoamento interno para as tabernas ou queima para fabrico de
aguardente, atribuem-lhe também um espaço privilegiado. Por outro lado a vinha é uma cultura
de convívio fácil com as demais. Deste modo vemos erguer-se latadas e sob o solo livre plantar-
se batatas, abóboras e outras culturas que contribuem, por vezes, para a adubação do solo. Foi
contra esta situação que se insurgiu em 1817 a Junta de melhoramento Agrícola por a considerar
lesiva da vinha.
Aos vinhos das uvas colhidas nas áreas do litoral é atribuído a melhor qualidade, que perdem
conforme se avança para a montanha ou para a vertente norte. Deste modo os preços do mosto
desde o século XVI eram estabelecidos de acordo com estes patamares ideais de cultura. A
vereação do Funchal define dois níveis de preços: os vinhos das meias terras abaixo, os
melhores; e os vinhos das meias terras acima, os de inferior qualidade. Outro óbice prende-se
com a extensão do solo de aproveitamento. Esta deveria situar-se abaixo dos 900 metros e
ocupava uma ínfima área do total da ilha. Em 1868 referem-se apenas 18.381 ha, estando apenas
19 ha ocupado com a vinha. Já em 1949 Orlando Ribeiro define a área cultivável da ilha em 225
Km2, o que corresponde a 30% do total da ilha.
A relação do homem com a terra fez-se na ilha de uma forma diferente, que ficou conhecida
como contrato de colonia. De acordo com este contrato a terra apresenta dois proprietários: o
senhorio e o colono. O senhorio é o legitimo proprietário que recebeu a terra de dadas, por
compra ou herança e por sua vez a entrega ao dito colono para a tornar arável ficando depois
com o direito à metade de sua produção. Deste modo o colono está obrigado a criar as
benfeitorias necessárias a que a terra se torne produtiva, ficando seu proprietário. No que respeita
à vinha este contrato, regido por normas consuetudinárias, estabelecia que o senhorio tinha
direito a metade do mosto à bica do lagar, sendo encargos do colono a construção das latadas e
lagar, a plantação e cuidados da vinha e a vindima. Esta situação perdura em algumas das
freguesias até 1976 altura em que foi abolida por decreto da Assembleia Regional da Madeira.
Uma videira depois de plantada sujeitava-se a três anos de crescimento e só então estava em
condições de produzir os luzidios cachos, encontrando a sua maturidade aos 8 anos e poderá
atingir os 15 anos.
A forma da sua organização mais comum para o sul é o sistema de latadas, enquanto que no
Norte eram as balseiras ou barradas. No Sul as latadas a partir dos 400 metros de altitude davam
lugar às vinhas de pé e embarrados. As latadas existem desde o século XV e são descritas em
1811 pela Vereação funchalense como mais um pesado fardo para o viticultor. Todavia o
espectáculo das latadas que cobrem os passeios e balcões que circundam as imponentes casas de
habitação é algo que chama a atenção do visitante. Com as balseiras alivia-se o esforço do
homem no permanente reparo da latada, mas surgem outros cuidados suplementares e o vinho
não é dos melhores. A cultura da vinha faz-se no distrito de duas formas diferentes; em balseiras,
ou embarrados, na região do norte; e em latadas e corredores na parte do sul. Note-se que esta
não é uma realidade restrita ao arquipélago pois foi mais uma aportação dos colonos oriundos do
Norte do país, onde era dominante e assumia a designação de uveiras. Qualquer árvore com uma
copla ampla poderia servir de suporte. Assim temos o castanheiro, faia, carvalho, loureiro. O
oídio acabou com as balseiras do Norte pela impossibilidade de subir as árvores a fazer o
tratamento. Deste modo as balseiras são hoje uma realidade do passado só visualizável nas
gravuras inglesas. A latada, hoje de arame, domina toda a área vitícola.
A casta que deu nome ao vinho da Madeira é a malvasia e surge desde os inícios da ocupação da
ilha. A tradição anota que foi o Infante D. Henrique que mandou vir os bacelos do Mediterrâneo.
Os testemunhos de vários visitantes dos séculos XV e XVI apenas anotam a malvasia. Somente
em 1687 Hans Sloane diferencia três variedades de uvas: branca, vermelha, muscadinea ou
malvasia. A mais famosa das malvasias surgiu na Fajã dos Padres, mas a sua área estendia-se ao
Paul do Mar, Jardim do Mar, Arco da Calheta, Madalena, Sítio do Lugar (Ribeira Brava), Anjos
(Canhas). Os melhores vinhos da Madeira são produzidos nas freguesias de Câmara de Lobos,
São Martinho e São Pedro, nas partes mais baixas de Santo António, no Estreito de Câmara de
lobos, Campanário, São Roque e São Gonçalo. As partes mais altas das últimas cinco freguesias
produzem apenas vinhos de segunda e terceira qualidade. Os melhores Malvasia e Sercial são da
Fajã dos Padres no sopé do Cabo Girão e do Paul e Jardim do Mar.
A estas castas eram atribuídas diversos níveis de qualidade, tal como nos refere P. Perestrelo de
Câmara em 1841. Assim são definidas quatro qualidades, sendo o sercial o de primeira
qualidade, ficando a malvasia no segundo nível. A estas seguem-se em terceiro lugar o boal e o
bastardo e em quarto o tinta negra mole. Sem classificação ficam as canaria, peringó, muscatel,
ferral e negrinha. O sercial, que terá sido importado do Reno, teve uma expansão a toda a ilha:
Funchal, Câmara de Lobos, Fajã dos Padres, Campanário, Paul do Mar, Fajã (Ponta do Pargo). O
Boal, trazido certamente da Bretanha, teve a sua dominância em Campanário, Câmara de Lobos,
Santo António, Estreito de Câmara de Lobos, Paul do Mar e Fajã (Ponta do Pargo). Por fim a
tinta negra mole teve em Santo António, Câmara de Lobos, Estreito de Câmara de Lobos e S.
Martinho a de primeira qualidade, enquanto a de segunda era colhida no Porto Moniz, Santa
Cruz e Gaula. A tradição imortalizou estas áreas pelos seus vinhos, como é o caso da Fajã dos
Padres. O Paul do Mar e o Jardim do Mar com a malvasia e sercial. Por outro lado os
estrangeiros, nomeadamente os ingleses mais atentos ao vinho, delimitam as melhores áreas de
vinho. Em 1851 Edward V. Harcourt refere que os melhores vinhos são os de Câmara de Lobos,
S. Martinho, S. Pedro, partes baixas de Santo António, Estreito de Câmara de Lobos, S. Roque,
S. Gonçalo e Campanário. Para Henry Vizetelly (1884) em S. Martinho encontra-se um vinho de
“elevada categoria” enquanto a melhor área se situava na Torre em Câmara de Lobos. O facto
mais saliente da relação de Eduardo Grande(1854) é o aparecimento das castas americanas que
chegaram à Europa pela fama de sua resistência ao oídio mas que trouxeram nas raízes as larvas
de outro mal, isto é a filoxera. Deste modo a situação que se vive a partir de meados do século
XIX é definida por uma mudança radical no espectro vitícola da ilha. As castas tradicionais
europeias tornam-se improdutivas com o oídio ou definham com o ataque da filoxera às suas
raízes. Os produtos químicos não resolvem cabalmente a situação e só o recurso às diversas
castas americanas vindas directamente dos EUA ou através da Europa, conseguem assegurar a
reposição dos stocks de vinho e assegurar o seu mercado de consumo interno e externo.
A filoxera a partir de 1872 a solução estava no recurso às castas americanas que passam a
intervir como produtores directos ou de cavalos porta enxertos. O Governo criou dois viveiros
para o efeito: Torreão e Ribeirinho. Com isto lançou-se mãos ao desesperado plano de reposição
das vinhas tendo-se distribuído em 1883 60.000 bacelos americanos das mais distintas
variedades: riparia, jaquez, hebermont, rupestris solonis, taylor, clinton, ebimbro, york madeira.
A estas vieram juntar-se depois outras como cunningham, viale, elvira, othelo, cineree, back
pearle, gaston bazile, etc. A partir de então generalizou-se o consumo do chamado vinho
americano que ganhou fama entre os vinhos de consumo corrente. Ficaram famosos os jacquez
de S. Vicente, Ponta Delgada, Seixal, Porto Moniz e Arco de S. Jorge e o vinho americano do
Porto da Cruz. Não obstante o governo ter determinado em 30 de Março de 1936 o arranque das
videiras americanas produtoras de vinho, o certo é que elas se mantiveram até ao presente e só a
partir de 1978 ficou estabelecido um plano de reconversão das vinhas da Madeira que pretende
reconstituir o aspecto vitícola anterior ao oídio e filoxera.
Nem todos os colonos e lavradores na ânsia de uma rápida vindima, aguardavam pelo total
amadurecimento dos cachos. Deste modo as autoridades foram obrigadas a regulamentar esta
fase da faina viti-vinicola através do regimento das vindimas publicado em 12 de Agosto de
1785. A vindima passará a ser autorizada por inspectores nomeados para todas as freguesias,
ficando os infractores sujeitos à pena de prisão e ao sequestro das uvas. Concluída a apanha das
uvas a animação transferia-se para a beira do lagar onde os homens esmagavam as uvas para
extrair o mosto. Noite fora, até que fosse concluída a tarefa, o bulício continua com desusada
animação. Feito o vinho o mosto era então transportado ao seu destino que tanto poderia ser a
loja do viticultor, ou o armazém dos comerciantes no Funchal. No caso deste último tanto
poderia acontecer por via terrestre, nas regiões próximas da cidade, ou marítima, quando é
proveniente das diversas freguesias. Era afinal no Funchal que a fase seguinte tinha lugar. Além
desta situação das casas exportadoras é de salientar o facto de muitas vinhas serem terras de
colonia em que o senhor residia no Funchal e entregava a terra a colonos a troco da dimidia.
Aqui, tendo em conta as condições geográficas da ilha e a situação da rede viária, a única e mais
adequada forma de transporte do mosto encontrada pelos madeirenses foi o borracho. O borracho
ou odre é um recipiente feito com pele de cabrito que depois de preparado pode ser cheio de
vinho. A sua maleabilidade faz com que se adapte ao dorso do Homem, servindo as patas
enlaçadas de suporte da testa.
O uso dos odres para o transporte do vinho está testemunhado desde a Antiguidade e tem na
cerâmica grega algumas evidências. A sua presença entre nós está testemunhada desde o século
XVI, sendo possível a aportação através das Canárias, onde os guanches os tinham mas com uso
distinto. Eram os zurrones para guardar o gofio e leite de cabra. Entre nós ganharam fama e
foram um dos elementos pitorescos que mais chamou à atenção dos estrangeiros que deles
deixaram importante testemunho. O espectáculo dos borracheiros é hoje um dado do passado e
dele só ficou a célebre canção dos borracheiros e alguns lagares perdidos em casas antigas. Hoje
a realidade é distinta. A partir da década de quarenta o automóvel ocupou o lugar do homem no
transporte do vinho ao Funchal. Às filas intermináveis de borracheiros sucedeu o desusado
movimento de furgonetas com pipas em pé a transbordar de mosto. No presente mudou também
o processo. As casas exportadoras passaram nos últimos anos a adquirir as uvas directamente aos
viticultores, através de uma rede de agentes em toda a ilha. Deste modo a vindima resume-se
quase só ao rotineiro gesto do apanhar das uvas. Esta nova forma de intervenção das empresas
permite controlar todo o processo de vinificação, adequando-o às novas exigências do mercado e
recomendações legislativas.
As áreas de produção são definidas de acordo com a mesma orientação da qualidade dos vinhos.
Deste modo na vertente sul dominada na sua quase totalidade pelo espaço da primitiva capitania
do Funchal encontramos o melhor vinho, enquanto na vertente Norte área quase exclusiva da
capitania de Machico é onde se produz mais vinho mas de pior qualidade que raramente saia da
ilha. De acordo com os dados de 1787 o arquipélago produziu 22.053 pipas de vinho
maioritariamente na Madeira, uma vez que no Porto Santo temos apenas 179 pipas. O restante
valor é maioritariamente da capitania de Machico que surge com 68%. Aqui o de São Vicente
era o principal produtor com 3.898 pipas, logo seguido do Porto da Cruz com 1245. No Sul a
maior e melhor produção de vinho incidia no Funchal e freguesias limítrofes. Era daqui que saía
o vinho de exportação. Esta relação de subordinação da viticultura à vertente norte acentuou-se
na primeira metade do século XIX, mercê da incessante solicitação destes vinhos para
exportação ou destilação nos alambiques. As medidas proibitivas à entrada das aguardentes de
França, foram favoráveis à alambicação dos vinhos do norte que actuarão deste modo como
fortificantes dos vinhos do sul.
A evolução da cultura da vinha adequa-se às exigências do mercado e à influência da
comunidade britânica na ilha que foi quem definiu um destino privilegiado para ele. Deste modo
a partir de meados do século XVII a produção de vinho entra na curva ascendente que só parou
na década de vinte do século XIX. O golpe mortal foi dado na segunda metade da centúria tendo
origem nas diversas doenças que assolaram a vinha. Em 1852 tivemos o oídio e desde 1872 a
filoxera. O oídio deverá ter chegado à ilha em Fevereiro de 1851 em castas trazidas de França. E
rapidamente alastrou a doença a toda a ilha, atingindo de modo especial o Funchal e Machico. As
soluções tardaram e por isso mesmo os seus efeitos cedo se fizeram sentir na produção de vinho
da ilha em barris. Tal como informa João Andrade Corvo no relatório feito em 1854 à Academia
de Ciências de Lisboa as perdas foram elevadas, sendo contabilizadas em 1.137.990$00 réis,
fruto de uma quebra de 132.454,7 barris de vinho.A busca desesperada por soluções para debelar
a crise levou os agricultores a socorrerem-se dos bacelos de Izabella, resistentes ao oídio, que
começaram a chegar à ilha em 1865. Só que eram portadores de uma larva - a filoxera vastatrix -
que atacava a raiz das videiras europeias fazendo-as definhar. Os primeiros sintomas da doença
surgiram em S. Gonçalo e S. Roque no ano de 1872, mas cedo a praga alastrou a toda a ilha e
manteve-se activa até 1908.
Só em 1882 a ilha teve uma comissão anti-filoxérica distrital que se encarregou dos tratamentos
e replantio da vinha com bacelos americanos distribuídos gratuitamente aos agricultores. Em
1883 foram distribuídas 60.000 bacelos. Todavia não foi fácil a recuperação da cultura. O
desânimo do madeirense, o abandono das casas inglesas, a conturbada situação das colónias
inglesas, principal destino do nosso vinho, fizeram retardar o necessário restabelecimento da
cultura. Em 1883 apenas 500 ha dos 2500 que havia aquando a vinha foi atacada pela filoxera
estavam plantados. A par disso esta conjuntura conduziu ao quase total desaparecimento
daquelas castas que deram fama ao vinho Madeira. A malvasia só se salvou na Fajã dos Padres.
Note-se que a incidência das castas americanas ocorre nos concelhos do norte, com especial
destaque para S. Vicente, enquanto as europeias têm uma incidência particular no sul. Apenas
com o verdelho e o sercial se altera a situação em favor do Porto Moniz, a principal área de
ambas as castas.A total reconversão da vinha para as castas europeias só começou a ganhar
forma na década de setenta com o impulso do recém-criado Instituto do Vinho da Madeira. Tudo
isto como resultado de directivas comunitárias que proibiram a partir de 1996 os vinhos de
híbridos produtores directos.
Feita a vindima e escorrido todo o mosto sucede-se uma nova fase de vida que fará deste pastoso
líquido o vinho Madeira. Este é um processo que tem lugar na cidade onde se encontram os
armazéns dos mercadores servidos de amplas adegas. Para aí eram escoados todos os vinhos.
Todavia esta situação prejudicial aos bons vinhos, por norma baldeados com os de inferior
qualidade vindos do norte da ilha. Deste modo, em face de reclamação dos mercadores, a
Vereação do Funchal aprovou em 9 de Janeiro de 1737 uma postura proibindo essa prática ao
interditar a entrada desses vinhos de inferior qualidade. Mais tarde, em 1768 o Governador e
Capitão General Sá Pereira retoma estas medidas estabelecendo a proibição de entrada dos
vinhos do Norte no Sul até Maio. Por outro lado defende os vinhos das melhores áreas, que é
como quem diz de Câmara de Lobos, Canhas, Calheta, Arco da Calheta, Prazeres e Fajã da
Ovelha, interditando a sua baldeação com outros vinhos inferiores. Em 1785 ficou estabelecido
que todos os vinhos do Norte deveriam ser aí encascados até Janeiro. Caso fosse intenção de
alguém proceder ao seu envio deveria fazê-lo mediante guia passada pelo Juiz do Lugar ou
comandante do distrito militar. Estas medidas não colheram grandes apoios junto dos
proprietários. A vinha a norte e a sul estava quase toda sujeita ao contrato de colonia. O senhorio
da terra residia no Funchal e era aí que se encontravam os seus armazéns e pipas para encascar os
vinhos. Por outro lado o colono não tinha loja nem cascos para a metade dos seus vinhos,
vendendo-o todo à bica do lagar, por norma a mercadores do Funchal.
O Funchal era o centro privilegiado para o processo de vinificação. As casas exportadoras,
servidas de amplas adegas, são o palco desta actividade. Isto manteve-se sem alteração por muito
tempo. O sistema, conhecido como de canteiro era simples. As pipas descansavam cheias de
vinho sob duas traves e aí procedia-se à sua clarificação e múltiplas trasfegas. A clarificação
ocorria num período de 19 meses e tinha lugar entre 6 ou 8 vezes, usando-se para tal goma de
peixe, clara de ovo e sangue. Somente a partir de meados do século XVIII temos notícia do uso
da aguardente para “adubar” os vinhos. Primeiro usam-se as afamadas aguardentes de França,
mas num segundo momento apostou-se na aguardente local. Esta pratica de fortificação do vinho
foi provocada pelos ingleses que também fizeram chegar até nós as ditas aguardentes. A partir de
1822 proíbe-se a entrada dessa aguardente que será substituída pela da ilha feita com os vinhos
do norte. Pois tal como se proclama em 1821 era “um erro capital na economia política receber
de fora as produções e manufacturas de que o país não carece, antes abunda”. Esta medida
favoreceu o desenvolvimento dos alambiques, especialmente na zona norte, o que favoreceu de
forma vantajosa o vinho daí de inferior qualidade. Severiano de Freitas Ferraz foi um dos
destacados interventores neste processo tendo descoberto um maquinismo avançado de
destilação contínua. Em meados do século XIX a ilha estava servida de 13 alambiques que
ferviam em media 7 a 8.0000 pipas de vinho. O resultado desta aposta é evidente, uma vez que
em 1821 foram assinalados apenas 3 alambiques.
A generalização do uso da aguardente como bebida e produto para adubar os vinhos é, entre nós,
uma realidade apenas na segunda do século XVIII. Foram os ingleses que introduziram tal uso,
oferecendo-nos as aguardentes de França. Eles estavam habituados a beber os vinhos franceses
fortificados, mas, impossibilitados pela guerra, foram buscá-los a outros destinos. Note-se que no
período de ocupação da ilha pelas tropas britânicas (1801-1802, 1807-1814) generalizou-se entre
os madeirenses o hábito do consumo de aguardente e demais bebidas espirituosas. A Madeira
ficou conhecida como a ilha da Aguardente. O alcoolismo tornou-se numa praga social e para o
combater tivemos, após a saída dos ingleses, inúmeras proibições, mas a aguardente continuou a
entrar por via do contrabando e a encontrar consumidor.Entretanto o madeirense começou a
alambicar os seus vinhos e a dispor der aguardente local para consumo nas tabernas e
fortificação dos vinhos. As dificuldades na saída dos vinhos a partir de 1814 veio aumentar as
possibilidades de recurso aguardente local e a guerra aberta às aguardentes de França, proibidas
desde 1822. A generalização do consumo de aguardente nas tabernas e o seu uso na fortificação
do vinho de exportação criaram as condições para o aparecimento de alambiques na ilha, uma
vez que era abundante a colheita de vinho de baixa qualidade, apropriado a isso. De França
vieram as aguardentes mas também os primeiros alambiques. Desde 1821 está documentada a
presença de 3 alambiques a que se juntou, desde 1822, uma fábrica de destilação contínua,
propriedade de Severiano Alberto de Freitas Ferraz.
Tendo em conta que eram os vinhos de baixa qualidade os queimados nos alambiques e que eles
eram produzidos na vertente Norte é óbvia a generalização destes engenhos industriais nas
freguesias do Norte da Ilha, como São Vicente e São Jorge. O decreto-lei de 11 de Março de
1911 acabou com os alambiques para dar lugar ao monopólio do engenho do Hinton, com a
aguardente de cana de açúcar, que se manteve até 1974. Durante este período a aguardente vínica
era um segredo escondidos dos habituais apreciadores. Ao ancestral sistema de canteiro veio
juntar-se em finais do século XVIII a estufagem. Tal como afirmava D. João da Câmara Leme “o
sistema de canteiro não é processo aplicável a um largo e importante consumo com a perspectiva
de grandes lucros”. Deste modo em finais do século XVIII quando a procura pelo nosso vinho
aumentou tornou-se urgente o apressar do processo de envelhecimento.
O vinho da roda é considerado um feliz acaso. O vinho em questão fazia o percurso desde a
Madeira à Índia e o seu retorno à Inglaterra. A passagem pelos trópicos e o calor dos porões
atribuía-lhe um rápido envelhecimento notado pelos ingleses que se tornaram eram usuais
adeptos deste vinho. De imediato o vinho da roda ganhou fama e começou a embarcar-se pipas
nos porões dos navios com essa finalidade. Em 1818 a Junta de real fazenda no Funchal dá o
exemplo com o envio de 50 pipas para Cabo Verde que aí faziam o estágio do Verão. Só em
1823 saíram 1650 pipas do porto do Funchal com essa finalidade. Daqui deu-se o salto para a
concretização deste processo de envelhecimento prematuro do vinho localmente. As pipas
passaram a ser expostas ao sol ou colocadas por cima dos fornos de pão expostas ao calor. Ao
mesmo tempo construíram-se as primeiras estufas, isto é recintos fechados onde circulava o ar
quente por canos. A primeira é de Pantaleão Fernandes e data de 1794.
Nos inícios do século levantou-se um movimento contra as estufas porque consideradas
prejudiciais ao vinho. Disso fez eco o Governador que estabeleceu a sua proibição em 1802. Mas
contra isto levantaram-se os mercadores e a própria Vereação do Funchal e a medida foi retirada
em 1804. Face à discussão havida, D. João da Câmara Leme procedeu a estudos em França para
conseguir definir o melhor processo deste envelhecimento prematuro do vinho. Em 1889 era
apresentado o novo sistema que ficou conhecido com o vinho canavial. O vinho era submetido a
um aquecimento rápido e a um arrefecimento demorado em recipiente fechado.
As estufas não morreram, apenas foram aperfeiçoadas com o tempo. Os mecanismos a vapor
substituíram as fornalhas de lenha e propiciam uma constante temperatura de 45 graus de acordo
com o tempo estipulado que vai até 3 meses. No presente o sistema de canteiro convive de modo
cordial com as estufas. Ambos os sistemas persistem e são usados pelas diversas empresas de
acordo com o tipo de vinhos que se pretenda. Os chamados vinhos novos de 5 anos surgem quase
sempre da estufa, enquanto os demais são de canteiro. Apenas uma empresa - Artur Barros &
Sousa Lda. - continua fiel à tradição do canteiro que serve para todos os seus vinhos.
O GADO. As riquezas da terra completam-se com a fauna trazida pelos europeus e que
rapidamente se transformou numa importante receita dos colonos. Embora a tradição aponte a
assiduidade dos castelhanos no Porto Santo onde faziam carnagem, não está provada a existência
de animais de grande porte em ambas as ilhas. As referências dos cronistas do século XV vão
apenas para alguns rastejantes e abundância de aves, pelo que também estas cabras deveriam ter
sido lançadas pelos próprios castelhanos. A riqueza de carne nas ilhas é uma referência comum a
Cadamosto e aos demais cronistas do século XV. Ele juntamente com Zurara referem ainda a
importância que assumiu o mel e a cera que eram exportados para o reino e estrangeiro.
O processo de fundação de colónias de povoamento por europeus implicava obrigatoriamente a
migração de sementes, plantas e animais. E a Madeira não foge à regra, tal como o testemunham
os cronistas. Assim Francisco Alcoforado refere que o Infante D. Henrique no Verão enviava
para a ilha sementes e gado, enquanto Diogo Gomes refere entre estes vacas, porcos, ovelhas e
outros animais domésticos. Aliás, ligado a este processo está aquele que é considerado o
primeiro desastre ecológico provocado pela acção do homem. Os primeiros coelhos trazidos
pelos povoadores para o Porto Santo tornaram-se rapidamente numa praga que entravou a
fixação de colonos. A memória disso ficou na designação do ilhéu dos Coelhos.
O gado de diversas espécies trazido, um foi lançado livremente e outro manteve-se estabulado
pela necessidade de aproveitamento do estrume. Em pouco tempo o primeiro transformou-se
numa importante riqueza usada por todos. Depois começaram a delimitar-se as coutas que
passaram para domínio dos particulares. Assim o Caniçal foi uma destas da família dos
donatários de Machico, onde estes se eximiam na caça à perdiz, ao javali. Note-se que a caça ao
porco bravo vem desde o século XV.
Só dispomos de informação concreta sobre a dimensão assumida pelas diversas espécies na
economia da ilha a partir da segunda metade do século XIX, com os recenseamentos pecuários, é
evidente uma tendência para a afirmação do gado suíno e bovino em detrimento do caprino e
ovino. Tendo em conta as limitadas possibilidades da ilha em termos de pastagem rapidamente
se atingiu em fins desta centúria o máximo das suas possibilidades. De um total de 87.930
hectares estavam disponíveis cerca de seis mil para pastagens e as culturas agrícolas, como a
cana sacarina, batata doce, contribuíam com um suplemento importante. Mesmo assim as ervas
não eram suficientes todo o ano para alimentar o gado bovino estabulado, de cerca de trinta mil
cabeças, socorrendo-se dos ramos de folhado e til. Maior destaque teve o gado de grande porte,
mercê do uso da sua força motriz no transporte e actividades agrícolas. A importância para o
madeirense do gado bovino está registada também em alguns acidentes geográficos. Assim no
Porto Santo temos o Vale do Touro, enquanto na Madeira surgem as Achadas da Vaca, da
Malhada e do Moreno.
A valorização do gado graúdo é evidente para a economia da ilha. A utilização da força motriz
na actividade agrícola manteve-se por muito tempo sendo de considerar que ainda em 1862 dos
trinta e cinco engenhos de açúcar que funcionava na Madeira temos quinze movidos pela força
motriz dos bois. A orografia da ilha tornava indispensável a presença de mulas e cavalos, que até
ao advento do século vinte foram o imprescindível meio de transporte no interior das ilhas. O
próprio movimento de forasteiros a partir do século XVIII obrigou à definição de um serviço de
aluguer de cavalos. E tendo em conta que estes circulavam por toda a ilha havia necessidade de
assegurar um serviço de apoio para apoio alimentar, reparo dos arreios e ferraduras. Em 1888 a
Junta Geral estabeleceu uma caudelaria na Fajã da Ovelha, mas rapidamente a cavalariça cedeu
lugar à garagem.
O gado bovino teve também um papel fundamental na economia da ilha. A sua valorização é
polivalente. Serve-se nas tarefas agrícolas, de lavra, espremer a cana e debulha dos cereais, e
transporte, como se extraia importante riqueza alimentar com as carnes, leite, queijos e manteiga,
mas também industrial com o aproveitamento dos couros. O facto de permanecer estabulado
obrigava o homem a redobrados esforços na apanha da erva, mas também revertia-se numa mais
valia para os agricultores uma vez que assim produzia o estrume necessário para fertilizar as
plantações agrícolas. Isto é importante tendo em conta a exiguidade e elevados preços dos
adubos de importação. Aliás, na década de cinquenta é evidente o incremento do bovino e ovino
em currais, fruto da dificuldade em encontrar adubos químicos para fertilizar as terras. Em 1940
tínhamos 28.861 bovinos que passados dez anos se situavam em 34.246. Já no caso dos ovinos
que em 1940 eram de16.664 passam em 1950 para 26.000.
O aproveitamento do leite foi por muito tempo mantido por uma industria caseira. Só no século
XIX se avançou para um processo de industrialização. A primeira fábrica surgiu em 1895 no
Santo da Serra, sendo propriedade de Adolfo Burnay. Até à década de setenta o gado bovino
manteve-se como uma destacada riqueza da economia familiar, mercê da venda do leite. A
indústria dos lacticínios foi importante desde finais do século XIX, surgindo em toda a ilha
fábricas e postos para desnatação do leite. Note-se que em 1920 a ilha produzia dez milhões de
litros de leite consumido pela população ou desnatado nas 22 fábricas. As exportações de
manteiga eram de 450 toneladas, sendo o consumo local de 110. Em 1928 eram 170.000 as vacas
de ordenha que produziam 20 milhões de litros de leite para laboração em 163 fábricas e 1087
postos de desnatação. O Funchal consumia uma média de quatro mil litros de leite por dia.
A produção de manteiga evolui também rapidamente de acordo com o surto pecuário,
suplantando as necessidades locais. Os primeiros dados da exportação para Lisboa são de 1866,
mas as condições e higiene e acondicionamento não eram as melhores o que fazia com que
muitas vezes chegasse aio continente em mau estado. Isto condicionou alguns investimentos no
sector a partir de 1894 com o aparecimento de novas fábricas em Porto Moniz, Calheta, Ponta
de Sol. A indústria de fabrico de manteiga teve um notável incremento a partir da década de
oitenta no século XIX, tendo como principal mercado a metrópole. Em 1881 foram apenas 129
kg conduzido-as a Lisboa, mas em 1892 este valor subira para 48.124 kgs, atingindo os 965.664
kgs entre 1941-42.
A segunda metade do século XIX é um momento de plena afirmação da pecuária. É evidente o
incremento do gado bovino. Assim das 21.720 cabeças de gado de 1873 passámos para 28.861
em 1940, subindo para 34.246 no ano. Não deverá descurar-se a importância que assume o gado
ovino e caprino, como o prova a disputa por um das áreas mais privilegiadas de pastoreio no
século XIX. Também em todas as habitações rurais o chiqueiro era inseparável e indispensável
da economia familiar. O grupo de suínos em 1873 situava-se em 23.510, baixando em 1940 para
16.462 para voltar a subir em 1950 a valores próximos do século XIX. Este incremento pecuário
repercutiu-se na industria de lacticínios conduzindo à valorização da manteiga e consequente
volume de exportação, que foi facilitado na década de noventa com a redução dos impostos e
revisão das pautas alfandegárias. Esta situação conduziu a que em princípios do século a
participação da exploração pecuária no rendimento familiar é superior à agrícola. Note-se que era
com o leite que o agricultor conseguia o pouco dinheiro para proceder ao pagamento às
contribuições, à compra do vestuário e outros produtos, serviços e impostos que só poderiam ser
pagos em moeda.
O número de bovinos era superior a trinta mil de que resultava anualmente dezassete milhões de
litros de leite. O Funchal consumia cerca de doze mil que eram distribuídos por 320 leiteiros. No
fabrico de manteiga ocupavam-se 64 fábricas que produziam 840 toneladas de manteiga de que
660 eram para exportação. Aqui é evidente ainda a existência de pequenas unidades industriais e
de um excesso de postos de desnatação, muitos deles com graves problemas de higiene. Perante
este panorama as autoridades determinaram pelo decreto-lei nº.26655 de 4 de Junho de 1936 a
criação da Junta de Lacticínios da Madeira com o objectivo de estabelecer regras no sector,
ficando responsável pela administração dos postos de desnatação, pelo pagamento do leite e
rateio pelas fábricas. Uma primeira medida foi a fixação do número de postos de desnatação em
320, com o encerramento consequente de 788. Contra o decreto levantou-se uma onda de
protestos em S. Roque do Faial, Machico, Ribeira Brava, que ficou conhecida como a revolta do
leite. Todavia, estas medidas tiveram efeitos positivos na economia da ilha e numa melhoria
substancial do sector pecuário e leiteiro. A higiene foi a maior evidencia nos estábulos, no
processo de mungição , nos postes de desnatação e transporte. Por outro lado apostou-se na
selecção e cruzamento de espécies no sentido de conseguir-se uma melhoria da espécie leiteira.
E, por fim, surgiu a marca oficial dos lacticínios da Madeira.
Os gados ovino e caprino tiveram igual importância na vida dos insulares. As cabras foram
trazidas do Algarve e das Canárias, sendo lançadas nos ilhéus e ilhas.. Note-se que a cabra das
Canárias, de que ainda hoje persistem algumas sobreviventes, estão documentadas desde 1481.
Para além do seu valor alimentar é de referir o uso da pele do macho no fabrico de borrachos
para o transporte de vinho. A valorização dos ovinos ocorreu a partir do século XVIII com a
introdução de espécies lanígeras de Leicester. Note-se que o fabrico da lã branca e preta era
indispensável, conjuntamente com o linho, no fabrico dos panos para o vestuário.
Na economia familiar, para além das aves, o porco assume um lugar cimeiro. À sua volta existia
todo um ritual da matança pelo S. João e Dezembro. Também a orografia testemunha a sua
presença. É o caso da Ribeira do Porco em Boaventura e do Porto dos Porcos e Ribeiro Cochino
no Porto Santo. Na verdade nele incidia o fundamental da subsistência familiar. A sua carne
salgada, os enchidos, as banhas foram por muito tempo o essencial da alimentação do meio rural.
AS INDUSTRIAS E ARTESANATO. A sociedade madeirense era dominada pelo grupo de
mando, de ócio e façanhas bélicas no norte de África. A eles associa-se uma numerosa plêiade
de subordinados (rendeiros, assalariados, mesteres e escravos), que contribuía para o progresso
agrícola e mercantil da ilha. Aliás, a sua importância na sociedade madeirense reforçava-se com
o progresso económico da ilha. Todavia só em 1484 os mesteres fazem ouvir a sua voz na
vereação por meio de criação da Casa dos Vinte e Quatro; dois anos mais tarde foi-lhes atribuída
uma participação activa na procissão do Corpo de Deus. O lugar que os mesteres nela ocupavam
poderá significar uma hierarquização dos ofícios, que se fazia de acordo com o estabelecido em
1453 para Lisboa. A relação dos mordomos dos ofícios, feita no ano de 1486 pela vereação,
indica a estrutura sócio-profissional; pedreiros, sapateiros, alfaiates, barbeiros, vinhateiros,
tecelões, besteiros, hortelães, almueiros, pescadores, mercadores, almocreves, ourives, tabeliães
e tanoeiros. Para os anos imediatos surgem dados referentes à fiança e aos juízes dos ofícios
(ferradores, ferreiros, barbeiros e moleiros) que testemunham a dimensão adquirida pela
estrutura oficinal, mercê da exigência da sociedade para serem asseguradas as necessidades
básicas, pois o isolamento e as dificuldades de contacto com a Europa impossibilitava o
abastecimento dos artefactos de uso corrente aí produzidos. A importância e a fixação dos
mesteres em determinadas áreas do burgo veio dar origem a ruas com o nome dos diversos
ofícios aí sedeados como a dos ferreiros, a dos tanoeiros, a dos caixeiros, etc.
A valorização económica da ilha só foi possível com a definição de uma ajustada estrutura sócio-
profissional capaz de satisfazer as necessidades fundamentais da sociedade e gerir mais riqueza
para alimentar o comércio externo. Diversas actividades de carácter artesanal completam o
processo económico madeirense, atribuindo uma evidente mais-valia à ilha e aqueles que nele
participam. Muitas destas faziam-se por necessidades dos próprios, mas outras houve que tinham
por objectivo o mercado externo. Neste caso é de salientar a obra de vimes e o bordado. Ambas
as actividades foram uma importante forma de gerar riqueza e um complemento importante ao
trabalho rural. O nível de desenvolvimento destas actividades na década de quarenta do século
XIX era muito incipiente. A exposição realizada em 1849 pelo governador civil José Silvestre
Ribeiro documenta este estádio e pode ser considerada o principal impulso para o necessário
avanço.
Sabemos qual o ponto da situação das actividades artesanais na cidade em 1847. A grande
incidência continua ainda nas actividades transformadoras de apoio às actividades económicas
dominantes e aquelas que iam ao encontro das necessidades básicas quotidianas. Estamos numa
época em que o vinho domina as exportações e, por isso mesmo, os tanoeiros são um grupo
fundamental no recinto urbano onde se encontram as empresas de exportação. Das aduelas
importadas dos Estados Unidos fazem as pipas que conduzem o vinho ao seu destino. Já a outro
nível é notória a presença dos sapateiros e carpinteiros. A preocupação de José Silvestre Ribeiro
pela animação industrial da cidade não será muito notória. Mantêm-se os ofícios tradicionais,
isto é, sapateiros, carpinteiros e marceneiros. Apenas a crise do vinho retirou importância à
maioria dos tanoeiros que tiveram que se converter a outras actividades ou foram forçados a
emigrar. Na área dos serviços destacam-se os barqueiros e os boeiros, o que poderá ser indício da
maior circulação de gentes e produtos. Aqui não deverá esquecer-se a presença do forasteiro, seja
doente da tísica ou cientista. Na verdade, o turismo veio propiciar um conjunto de ofícios deles
dependentes.
Ao mesmo tempo surgiram outras actividades que permitiram a revitalização da economia. O
bordado madeirense não é uma invenção britânica, mas sim fruto de um tradição portuguesa
trazida para a ilha pelos primeiros colonos e que persistiu em muitas famílias como forma de
valorização do fato acabou por adquirir a partir de meados do século XIX uma função
fundamental na economia da ilha e um suplemento familiar. A ligação do inglês surge a partir de
1854 com Miss Phelps que definiu os mecanismos adequados para a sua comercialização em
Inglaterra. A primeira promoção do bordado e outras actividades artesanais aconteceu em 1850
numa exposição industrial feita no Funchal por iniciativa do Governador Civil, José Silvestre
Ribeiro, repetindo-se depois na Exposição Universal de Londres. Este lançamento foi importante
para que o produto rapidamente entra-se no mercado pela mão dos próprios ingleses, os
principais interessados na sua compra. Assim para além do arranque de Miss Elizabeth
Phelps(1820-1863) releva-se a presença de dois comerciantes britânicos, Roberto e Franck
Wilkinson, pois os bordados da Madeira rapidamente se transformaram numa moda em
Inglaterra.
Os anos cinquenta foram o momento de rápida afirmação do bordado. Os dados estatísticos
assim o confirmam. Em 1862 temos 1029 bordadeiras cujas toalhas bordadas renderam nas
exportações cerca de sete contos. Aos poucos começam a surgir novos mercados. Em 1863 sabe-
se que se exportava já para os Estados Unidos, enquanto na década de oitenta abre-se o mercado
alemão. Rapidamente este último mercado adquire uma posição dominante mercê com regalias
aduaneiras na ilha e no principal porto de destino, que era o porto franco de Hamburgo Estes
valores continuam a subir sendo em 1906 trinta mil as bordadeiras e dois mil profissionais nas
oito casas que contribuíam com 242.342$180 réis. Já em 1912 temos 34.500 bordadeiras. O novo
século inicia-se com uma diversificação dos mercados e uma profunda alteração na matéria
prima. Assim o algodão e a cambraia cedem lugar ao linho cru e a linha dominante passa a ser
castanha. Assim juntam-se o Brasil os EUA, Canadá, França e Africa do Sul. Os alemães
mantiveram até 1914 uma posição dominante neste comércio, onde vinham conquistando terreno
desde 1880. Esta situação conduziu ao aumento do número de casas dedicadas ao comércio do
bordado. Em 1920 são já sessenta e uma, mas a crise económica e a guerra mundial conduziram
a uma redução para quase metade em 1948, passando a trinta e quatro. Ao mesmo tempo os
alemães perdem importância em favor dos sírios Na década de cinquenta a crise do cruzeiro
levou à perda do mercado brasileiro, mas a tradição do bordado manteve-se em algumas cidades
brasileiras por mãos de madeirenses que para aí emigraram. O Brasil cedeu lugar à Venezuela e
Itália, enquanto os EUA continuará a ser um dos mais destacados mercados. A maioria destes
mercados estavam na mão de um grupo restrito de comerciantes, oriundos do país de destino do
grosso das exportações e entre eles e o mercado de destino existia uma relação de dependência
que se alargava até ao tipo de bordado, padrões e tecidos, como sucedia com os mercados
americano e alemão. Por outro lado estes artefactos podiam ser laborados na ilha ou no próprio
local de destino por mãos hábeis de mulheres madeirenses. Foi isso que aconteceu no Brasil e
Hawai.
Na ilha o bordado é uma actividade que ocupa mão de obra em toda a ilha. Isto acontece desde o
século XIX. Deste modo se na década de sessenta as bordadeiras estavam restritas ao Funchal e
Câmara de Lobos já na década de noventa a actividade estava em toda a ilha da Madeira e havia
chegado ao Porto Santo. Note-se que em 1862 das 1029 bordadeiras existentes em toda a ilha a
maioria situava-se no Funchal e Câmara de Lobos, respectivamente com 844 e 152. De acordo
com a evolução do mercado cresce o número de bordadeiras. Assim em 1906 eram 30.000 as
bordadeiras subindo para 45.000 em 1924, atingindo-se em 1950 as sessenta mil bordadeiras. O
facto desta actividade ser maioritariamente executada em casa das bordadeiras, permitia conciliar
o acto de bordar com a actividade agrícola e caseira. E aos mesmo tempo atribuía um precário
suplemento em dinheiro para a economia caseira. Em 1952 o bordado distribuía 47.252 contos
por cerca de 60.000 bordadeiras. Deste modo Ramon Honorato Rodrigues(1955) afirmava que o
bordado a indústria “mais importante desta ilha, pelo volume dos salários e remunerações, pelo
pessoal empregado e pela endosme de divisas – dólar correspondente à maioria dos artigos
produzidos.” A crise da década de oitenta levou ao encerramento da maior parte das casas de
bordados e este deixou de assumir o papel que tinha na economia familiar e da ilha. Mesmo
assim ainda persiste mais como memória emblemática e identificadora da ilha mais por força do
turismo sempre sedente dos chamados souvenirs.
Na década de trinta a conjuntura económica conduziu à criação do Grémio dos Industriais de
Bordado da Ilha da Madeira(1935) com o objectivo de orientar a industria e promover o seu
comércio. De acordo com um relatório deste Grémio de 1952 o bordado ocupava mais de
cinquenta mil famílias, o que significa mais de metade das famílias, nomeadamente do meio
rural. O retrato da bordadeira, da sua vivência e das casas de bordado deu motivo suficiente para
que Horácio Bento de Gouveia dedica-se um dos seus romances. Em Lágrimas Correndo
Mundo(1959) estas vivências rurais ficaram registadas para a posteridade. Já em 1922 Elmano
Vieira fizeram deles o tema da sua opereta “as meninas dos Bordados” e o Feiticeiro do Norte,
Manuel Gonçalves(1858-1927) havia dedicado um folheto de trovas populares “As Raparigas
dos Bordados”.
Outra actividade importante no domínio do artesanato foi a obra de vimes. Desde o século XVI
que sabemos do fabrico de cestos de verga para os trabalhos agrícolas e serviço de casa. O
cultivo do vimeiro adquire importância na segunda metade do século XIX. A cultura teve um
incremento na freguesia da Camacha e rapidamente se espalhou no Funchal alargando-se às
freguesias do norte, nomeadamente a de Boaventura. Deste modo a cultura e obra de vimes estão
presentes e persistem em ambas as localidades. Os vimes eram transformados na ilha ou então
exportados em bruto para os Estados Unidos e Europa. Na ilha o vime era usado para o fabrico
de cestos de uso caseiro e agrícola, como é o caso dos barreleiros, gigos, da pesca, com os
ceirões e covos, dos carros de cesto que descem do Monte e de inúmeras peças de mobiliário,
como cadeiras, canapés, mesas, cestas, tão do agrado dos residentes como dos visitantes. Note-se
que desde meados do século XIX os bomboteiros já se vendiam obra de vimes aos vapores que
aportavam ao Funchal. E no ano de 1848-49 sabemos da saída de verga em obra, cestos de palha
e verga para os portos nacionais e estrangeiro(Canárias, Brasil, Demerara, Inglaterra). Todavia a
obra de vimes sempre enfrentou dificuldades de escoamento pelo que o principal mercado era o
dos bomboteiros.
A partir da década de vinte do século XX foi notório o incremento da indústria de obra de vimes.
Todavia a partir da década de trinta foi notória a mudança para a exportação do vime em bruto
os Estados Unidos e Continente. Senão vejamos. Em 1920 a ilha exportava 162.057 kg de obra
de vimes e 76.520 kg em bruto. Passados dez anos a situação inverte-se, sendo o vime em bruto
de 175.441 kg e a obra em 84.548 kg. Todavia a partir da década de cinquenta o negócio em
torno da obra de vimes voltou a subir, atingindo 518.980 kgs. Esta situação repercutiu-se no
volume de negócios. Assim, dos cerca de trezentos contos na década de trinta, passa-se para mais
de dez mil contos em 1945 e passado dez anos atingiu o dobro. Estas exportações destinavam-se
a dois mercados preferenciais: continente e Estados Unidos. Assim, em 1953 o continente
recebia mais de setenta por cento do vime em bruto e a Inglaterra com 22%, enquanto na obra de
vimes os Estados Unidos absorviam noventa por cento. A partir da década de cinquenta a
concorrência da Jugoslávia, Hungria, Hong-Kong e Japão repercutiu-se de forma negativa,
provocando uma quebra em 1954. Na década de oitenta o vime parece que sucumbiu face à
concorrência, diminuiu a exportação em bruto e em obra, o que se repercutiu na área de cultivo.
Hoje o principal mercado do vime está na venda de obra na ilha aos locais e turistas. A par destas
indústrias que assumiram um papel de relevo na economia da ilha é necessário considerar os
diversos ofícios e actividades artesanais que contribuem para a pujança dos diversos sectores e
melhoria do conforto humano. A maior parte dos artefactos e produtos daqui resultantes tinham
como destinatário o mercado local, todavia alguns encontram mercado na exportação. Foi o caso
dos embutidos, das flores de penas, chapéus de palha. Estes últimos tinham em 1874 uma
importante oficina na rua da Alfandega, propriedade de Lacerda & Irmão.
Ao nível das actividades subsidiárias merece a nossa atenção as que se prendem com os sectores
dominantes no processo económico. Assim no caso do vinho é necessário ter em conta a
actividade do tanoeiros, de que ficou memória numa rua da cidade. Note-se que, durante muito
tempo, a exportação do vinho era feita a granel havendo necessidade do vasilhame de madeira.
Normalmente a madeira de carvalho era importada dos Estados Unidos, de Charleston por
exemplo, e aqui na ilha procedia-se ao fabrico das pipas em oficinas anexas às lojas de vinhos ou
independentes. Em 1862 eram 52 as oficinas de tanoaria em laboração com mais de duzentos
operários, situadas maioritariamente na cidade. Paralelamente o trabalho da madeira tinha outros
ofícios como era o caso dos carpinteiros e marceneiros. A oficina de marcenaria trabalhava com
as madeiras da ilha ou importadas, sendo de notar a ideia vigente a partir do século XVII com a
madeira das caixas de açúcar se faziam móveis, como foi o caso de armários e contadores, que
ficaram designados como de caixas de açúcar. A concentração destes ofícios era
maioritariamente na cidade, assim em 1863 trabalhavam na cidade 92 dos cento e vinte
marceneiros de toda a ilha, enquanto nos carpinteiros o Funchal apresentava 112 do total de 196.
O embutidor trabalha em paralelo com os ofícios anteriores, sendo-lhe atribuída a missão de dar
às pequenas peças de mobília o aspecto apelativo. Através de um jogo de cor de diferentes
madeiras era e é possível traçar retratos, flores, construções geométricas que decoram tampos de
mesas, cofres, caixas e caixinhas. As referências mais antigas a este ofício reportam-se ao século
XVII mas foi na segunda metade do século XIX que esta arte ganhou fama na ilha e fora dela. Os
embutidos foram motivo de atracção na exposição industrial do Funchal de 1850 e desde então
não mais parou a marcha para o sucesso, sendo o preferido para os presentes às individualidades
que visitavam a ilha. Em 1901 o rei D. Carlos foi presenteado com uma mesa de embutidos. A
fama do embutido e a sua procura levaram à criação de oficinas especializadas. A primeira foi
criada em 1770 na fortaleza do Pico, mas sem dúvida quem deu maior alento aos embutidos foi a
escola de desenho industrial em 1889, que teve a oficialização da oficina em 1916.
De entre as diversas actividades artesanais que contribuem para o conforto das populações
devemos salientar as que se prendem com o vestuário, incluído a tecelagem e tinturaria, o
curtume e o fabrico de botas, de produtos de cozinha e higiene, como os utensílios de barro e
folha, o sabão, e alimentares, onde se incluíam as massas e as bebidas alcoólicas. Junta-se ainda
outras actividades como o fabrico de cal e telha para a construção de habitações, ou de
acessórios, com de chapéus de feltro e palha e flores de penas.
A presença de barro na ilha é evidenciada pela toponímia mas mesmo assim parece que nunca foi
suficiente para as necessidades da ilha, uma vez que à sua procura para o fabrico de utensílios
domésticos, telha dita romana havia que juntar nos séculos XV e XVI a sua procura para o
fabrico de açúcar, quer para formas, quer na fase de purificação. Esta situação obrigou a coroa a
tomar medidas na defesa dos barreiros e lamaceiros da ilha. Terminada a exploração açucareira
ficou o fabrico de loucas e utensílios para uso doméstico. De acordo com as posturas do século
XVI podiam-se adquirir potes, alguidares, panelas tijelas, vasos, púcaros, fogareiros, potes,
luminárias, cangirões, mialheiros, talha(...) No Funchal existiam olarias e o testemunho desta
actividade ficou lavrado numa rua da cidade, a rua da Olaria. No século XIX existiam olarias no
Funchal, Machico Santa Cruz, Ponta de Sol, Calheta e Boaventura. É de notar a olaria de José
Francisco de Sousa em Santa Luzia que em 1825 fabricava loiça, considerada tão boa com a do
reino. De nota é também a fábrica de Francisco José Nogueira Guimarães(1874) na Achada que
produzia louça de barro ordinário e vidrada, com barro importado de Lisboa. Em 1862 eram
cinco as olarias a laborar na ilha.
Nas indústrias subsidiárias da construção temos os fornos de telha, onde se coziam as telhas de
barro e os de cal onde se preparava a cal. Enquanto nos primeiros temos cinco fornos no Funchal
e três no Porto Santo, no segundo são apenas 10 moinhos no Porto Santo, não obstante ter
existido outros no Funchal, Santa Cruz, Câmara de Lobos e S. Vicente. A Madeira apresentava
em 1845 quatro fornos, passando para cinco em 1863. Os da vertente sul laboravam a pedra
calcária vinda do Porto Santo, tornando-a mais vantajosa pela falta de lenhas. Apenas em S.
Vicente, desde o século XVI, dispensava-se a pedra calcária portossantense, pela existência de
um filão e cal na zona dos Lameiros que foi explorada em época recente mas que hoje, a
exemplo do Porto Santo deixou de ter importância. Foi na ilha do Porto Santo e nomeadamente
no ilhéu de Baixo que a exploração da cal se transformou numa importante fonte de riqueza. No
século XV o senhorio da ilha interessado em manter sem sobressaltos a industria açucareira
proibiu a sua exploração, obrigando os madeirenses a importá-la do continente. Todavia no
século XVI a quebra do açúcar e a necessidade desta para a construção de fortificações levou ao
incremento da indústria da cal no Porto Santo, que se manteve activa até à década de setenta do
século XX. Note-se que em 1928 em todo o arquipélago funcionavam 10 fábricas de cal.
Em termos geológicos a freguesia de S. Vicente apresenta uma particularidade em relação às
demais, isto é, uma intercalação calcárea marinha, que só tem caso parecido nas Ilhas de Santa
Maria e Porto Santo. A exploração da pedreira calcarea remonta a meados do século XVII. A
pedreira fora adquirida pelo vigário de S. Vicente, Francisco Pestana, que depois a doou à
Confraria do Santíssimo Sacramento. Foi ele que iniciou a sua exploração, construindo nas
imediações do filão um forno. No último quartel do século XVIII estão documentados dois
fornos: um no cabo da Ribeira do Mato, propriedade de Manuel Pestana de Andrade e outro na
Vila, nas proximidades da Igreja, pertença da Confraria do Santíssimo Sacramento. Este filão
calcário foi de grande importância no decurso dos séculos XVIII e XIX. As necessidades de cal
para a construção, evidenciada com o delineamento, a partir de meados do século XVI, de uma
linha de defesa, composta por diversas fortalezas e uma cortina de muralha, tornaram necessária
a valorização das pedreiras do arquipélago, que apenas existiam no Porto Santo e S. Vicente.
Todavia, a falta de lenhas no Porto Santo impediram aí o seu desenvolvimento, que só teve lugar
em meados do século passado com o carvão de pedra. S. Vicente, ao invés, dispunha da matéria-
prima, necessária à laboração da cal -- a pedreira e as lenhas -- e, por isso mesmo, a industria
teve grande incremento a partir de meados do século XVII. O seu desenvolvimento nas centúrias
seguintes é atestado pela existência de três fornos de cal. A sua presença e valor económico
permaneceu até à presente centúria, pois em 1903 temos um novo forno no sítio do Barrinho,
propriedade de João Pedro Faria. Note-se que em 1888 Manuel da Costa Lira apontava a
necessidade de traçar uma estrada desde a pedreira ao mar para facilitar o escoamento da cal. Isto
demonstra o valor deste recurso no comércio com o sul, nomeadamente o Funchal, onde a cal
tinha maior procura. A par disso em 1888 aponta-se este recurso como um meio possível a
explorar na economia nortenha da ilha. Nos anos sessenta foi ainda o retorno à exploração do
calcário, pois um parecer do Laboratório Minerológico e Geológico da Faculdade de Ciências de
Lisboa informava que as amostras analisadas eram de óptima qualidade, sendo de grande
interesse económico para o concelho a exploração o que na realidade veio a acontecer.
De entre os produtos básicos de higiene destaca-se o sabão. A sua produção e comercialização
era um privilégio do infante D. Henrique que a cedeu aos seus capitães no espaço das capitanias.
Esta situação persistiu até 1766 altura em que todas as saboarias passaram para a administração
da Fazenda Real, acabando por ser extinto monopólio em 1857. A cidade recorda ainda hoje esta
situação através da Rua do Sabão, que foi buscar o nome ao depósito do mesmo. A partir do
momento do fim do monopólio surgiram diversas fábricas na ilha sendo de salientar em 1860 as
de Constantino Cabral de Noronha e José Joaquim de Freitas, que produziam respectivamente
16524 kg e 12.395 kg. Para o fabrico do sabão necessitava-se de barrilha, que existia em
abundância nas ilhas Desertas. Anualmente as duas fábricas consumiam quase 200 toneladas e
precisavam 132 carradas e lenha de pinho, urze e castanho. Esta última situação foi responsável
pelo atraso da indústria dos sabões na ilha,
Desde o início da ocupação da ilha que foram evidentes as dificuldades com a venda de sabão.
Primeiro foi o preço elevado que obrigou a uma intervenção do duque e à decisão em 1486 de
permitir o seu fabrico na ilha, situação que foi revogada em 1516 pelo elevado dispêndio de
lenha, tão necessária para o fabrico do açúcar. Perante estas condicionantes a população rural
socorria-se de produtos alternativos como a barrilha e cinzas. Entretanto na primeira metade do
século dezanove as senhoras compravam os sabonetes estrangeiros de contrabando nas lojas
inglesas.
O tabaco não vingou como cultura na ilha, mas isto não impediu que com a liberalização do seu
comércio e produção não surgissem fábricas na ilha no último quartel do século dezanove. A
mais antiga é a Fabrica de Tabacos Madeirense do visconde de Monte Bello fundada em 1877.
Esta produzia cigarros, charutos, rapé e tabaco picado resultante da produção da ilha e da
importação de Cuba, Porto Rico e Estados Unidos. Note-se que esta fabrica laborava quatro
toneladas de tabaco da ilha e apenas quatrocentos quilos importado.
No meio rural surgiam algumas actividades caseiras específicas com objectivo de satisfazer as
necessidades da casa. Neste caso é de destacar o cultivo do linho e a tecelagem, o fabrico de
azeite de loiro. O azeite de loiro, feito a partir da baga de loureiro apresentava-se de grande
utilidade como combustível para as candeias de barro, como lubrificante e na medicina caseira.
Em 1862 estão documentados 47 lagares de azeite loiro com forte incidência nos concelhos de
Porto Moniz e Calheta.
O fabrico de panos para cobrir o corpo era igualmente uma actividade de tipo caseiro. A matéria-
prima fundamental, linho, lã de ovinos e materiais de tinturaria, era de produção local, o que
fazia com que muitas das peças de lã, linho e estopa fossem mais barata que os tecidos de
garridas cores vendidos pelos adelos. A presença dos adelos, nome dado aos vendedores de
tecidos que percorriam o meio rural com a sua mercadoria, está documentada desde o século
XVII. A ilha também importava linho de diversos destinos, nomeadamente da Inglaterra,
Alemanha e da América do Norte. Todavia, a maior quantidade de linho consumido era de
produção local. E desde os inícios do povoamento que a cultura deveria existir na ilha. As
posturas do século XVI referem a prática corrente de alagar o linho nas ribeiras da cidade com
muito dano das suas águas, pelo que se recomenda o uso de poços separados. A sua cultura
espalhou-se por toda a ilha, ganhando uma posição de destaque nas freguesias do norte, como
foi o caso de S. Jorge e Santana.
O século XVIII é considerado um momento de crise desta cultura, havendo necessidade de
importação da América pelo que as autoridades municipais tomaram medidas no sentido da
promoção do seu cultivo. Deste modo foi possível com esta matéria produzir toda a roupa branca
que a ilha necessitava. Todavia a partir de meados do século XIX a ilha foi assolada por uma
invasão de tecidos estrangeiros vistosos e a preços muito em conta que destronaram o linho da
terra e acabaram com os tormentos da população. Note-se que o trabalho de preparação do linho
era muito custoso, sendo considerado como o fadário do linho. Alguns estrangeiros testemunham
esta realidade, dando-nos imagens da mulher nos seus momentos de lazer a fiar numa roca. Ao
linho juntava-se a lã fruto da tosquia dos ovinos. É no decurso do século XVIII que se assiste a
uma aposta nesta matéria-prima através da promoção do pastoreio e criação e ovelhas, de forma
especial as meirinhas por serem as que produzem as melhores lãs. Os ovinos de raça irlandesa
surgiram na ilha em finais do século XVIII, permitindo um melhor aproveitamento das lãs. Em
1862 a ilha dispunha de 44.186 cabeças de gado ovelhum, maioritariamente distribuído no
Funchal, que produziam 39 toneladas de lã branca e cerca de 8 da preta. A estas duas matérias-
primas fundamentais junta-se ainda a seda de menor dimensão. A sua presença na ilha está
documentada desde o século XV, estando isenta de qualquer direitos desde 1485. Na segunda
metade do século XVIII foi evidente a aposta na seda com incentivos da coroa ao plantio de
amoreiras. Note-se que o próprio Marquês de Pombal fez uma aposta na sericultura ordenando a
criação de uma fábrica de fiação na ilha, mas a primeira notícia que temos a uma destas é de
1813. Uma vez disponível a matéria-prima era necessário de teares e as aos hábeis das tecedeiras
para poder dispor-se dos panos com os quais os alfaiates e costureiros depois iam faziam o corte
do vestuário. De acordo com informação de 1862 o número de teares de linho e lã na Madeira
era de 559 e o de tecedeiras de 359, havendo uma incidência na Calheta, Santana e Funchal. Em
1908 o número de teares havia subido para 559, mas paulatinamente foram desaparecendo como
também a disponibilidade do linho e lã de ovelha. Hoje a sua persistência está localizada na Ilha
e Ponta do Pargo, mas apenas com valor etnográfico. De acordo com uma taxa estabelecida em
1862 às tecedeiras do Porto Moniz ficámos a saber que o concelho produzia 3300 metros de pano
de linho, 550 de lã preta e 110 de lã branca. É de salientar que os alfaiates têm uma forte
incidência na cidade do Funchal, o que poderá significar que no meio rural o corte do vestuário
era caseiro. Aliás, é aqui que encontrámos maior informação sobre esta actividade nas posturas
municipais. O município não só estabelecido regras que regulamentava o feitio das diversas
peças de vestuário, mas também, os seus preços de fabrico
Os curtumes em ligação com o calçado mantiveram-se sempre com grande evidência na vida das
populações, estando dependente da disponibilização de gado, ovino, caprino e,
fundamentalmente, bovino e do consumo de carne. Mesmo assim poderá dizer-se que esta
actividade nunca foi deficitária de matéria-prima que dava para o consumo interno havendo lugar
ainda à exportação. Esta indústria existe desde os primórdios da ocupação da ilha. As
intervenções do município contra a poluição das ribeiras por esta actividade, nomeadamente do
Funchal, eram constantes. Os pelames e alcaçarias, por necessidade de água abundante situavam-
se quase sempre no leito das ribeiras. Na Tabua e Serra de Água surgem algumas construções.
Consideradas popularmente com construções mouriscas, que nos parecem ter a ver com esta
actividade. Tenha-se em conta que esta área teve um papel importante nos curtumes.
No decurso do século XVII o estado desta indústria deveria ser decadente face à disponibilidade
de couros e solas brasileiros de superior qualidade. Face a esta crise o município de Machico
apostou em 1780 na reanimação da indústria. Na segunda metade do século XIX o incremento da
pecuária deverá ter contribuído para o reforço da actividade. Em 1863 temos notícia de 61
oficinas em que trabalhavam 532 surradores e curtidores. É evidente nesta actividade uma
acentuada concentração na Calheta e Ponta de Sol, que surgem, respectivamente, com 17 e 19.
Em 1908 as oficinas de curtir couros eram 61 passando para 38 em 1910, o que demonstra
estarmos perante uma redução da matéria-prima. Todavia em 1928 Peres Trancoso testemunha
uma valorização da actividade com a plena laboração de 203 fábricas. A curtimenta fazia-se com
sumagre, casca de aderno e faia, sendo habitualmente realizada no leito das ribeiras com grande
prejuízo das águas que todos se serviam. Esta riqueza de couros repercutia-se no número de
oficinas de sapateiro. A sua presença está documentada desde os primórdios do povoamento,
com particular incidência no Funchal. De acordo com a regulamentação das posturas podemos
saber qual o calçado fabricado na ilha. Para Homem temos botas, sapatos, botas de montar e
botas mouriscas. Já no calçado feminino temos chapins, botinas e pantufas. Em 1862 laboravam
346 sapateiros, sendo 156 no Funchal, que descem para mais de metade em 1906 e voltam a
subir para 215 passados dez anos.
Hoje o espectro dos ofícios mudou. Muitos dos atrás referidos desapareceram ou estão em vias
de extinção. Por outro lado a reestruturação do sector produtivo no post segunda guerra mundial
conduziu a uma forma diferente de organização e valorização dos ofícios. As oficinas
desapareceram dando lugar às industrias alimentadas por empresas sectoriais onde os ofícios se
estruturam de forma diferente. Os proprietários deixam de ser operários especializados e a ideia
de aprendiz é cada vez mais uma situação caduca.
A COR DO DINHEIRO
A MOEDA. Uma das maiores dificuldades da economia das ilhas prende-se com a insistente
falta de meios monetários. Ligado a isto está o uso da moeda castelhana e a diferença do valor
entre a moeda corrente nas ilhas e o reino. Tudo isto está em relação directa com a balança de
comércio que pende quase sempre a favor do exterior, mercê da dificuldade em assegurar
contrapartidas para as trocas. No caso da Madeira as trocas com os Açores e as Canárias não
encontravam qualquer contrapartida nos cereais, tendo em conta que o nosso vinho era
dispensado nessas ilhas. Para o período de 1800 a 1831 temos que 51% das embarcações do
Funchal que chegaram a Ponta Delgada vinham em lastro. Daqui resulta que as autoridades da
ilha não viam com bons olhos esses contratos. A agravar esta situação está o facto de o comércio
com o vinho ser, na sua quase totalidade, feito a troco de bens alimentares e manufacturas,
adiantadas pelos ingleses aos lavradores.
A EUROPA E AS ILHAS. O comércio insular com a Europa definia-se por uma multiplicidade
de produtos, agentes, rotas e mercados. Neste aspecto a península ibérica apresentar-se-á como o
principal mercado consumidor ou redistribuidor para as principais praças europeias. Não
obstante persistir uma tendência centralizadora nos portos de Lisboa e Sevilha, o certo é que a
sua expressão real, nomeadamente, no caso português foi muito mais ampla, abrangendo os
principais portos de comércio a sul (Lagos e Silves) e a norte do país (Caminha, Viana, Porto e
Vila do Conde). Nos primeiros decénios a presença de mercadores estrangeiros, empenhados no
comércio dos produtos insulares portugueses, estava limitada à cidade de Lisboa, mercê das
dificuldades impostas no início do século XV à intervenção directa nos mercados produtores.
Mas isto não poderia manter-se por muito mais tempo e cedo apareceram os primeiros
estrangeiros avizinhados ou com licença para fazer comércio e fixar residência. Depois abriram-
se-lhes as portas, como forma de promover o comercio excedentário do açúcar. Mesmo assim a
troca esteve, por muito tempo, sujeita a inúmeros impedimentos que impediam a livre circulação
dos agentes e da mercadoria.
Para um arquipélago como a Madeira, que sempre fez depender a sua situação de mecanismos
externos, alheios ao seu quotidiano e fora do alcance. Ontem como hoje a situação económica da
ilha esteve e continuará a permanecer sob a dependência do mundo continental que nos envolve,
tendo o Atlântico como caminho. Somente num outro período da centúria quatrocentista (entre
1419 e 1470) a Madeira conseguiu assegurar internamente o seu abastecimento: o suficiente para
alimentar os residentes, abastecer as caravelas que por cá passaram e gerar um elevado
e»’cedente capaz de satisfazer as necessidades da cidade de Lisboa, das praças africanas e da
Guiné. Mas a partir deste momento o pão passou a ser insuficiente para o número de bocas a
alimentar. A ilha, de mercado abastecedor, passou a consumidor. Perante esta situação houve
necessidade de cri ar condições a este fornecimento por meio de uma cultura capaz de servir de
contrapartida: primeiro, o açúcar, depois, o vinho. Mas tudo isso só seria possível se o mar
estivesse livre e não houvesse piratas, corsários e guerras a entravar esta via. Por outro lado era
necessário assegurar o mercado para os produtos de troca, o que nem sempre sucedia. Perante
esta situação das ilhas os conflitos locais e mundiais repercutem-se, de modo evidente, nesta
conjuntura, definindo uma situação de crise, secundada, quase sempre pela fome e emigração.
Foi isso que sucedeu nas décadas de quarenta e cinquenta do século dezanove, com a crise do
comércio do vinho, e que se repetiu mais tarde com o deflagrar dos conflitos mundiais (1914-
1919 e 1959-1945). Deste modo, passado um século retornou à ilha o espectro fatídico da fome e
imigração. Mas a situação vivida no (último momento, provocada por factores externos, foi
muito mais difícil para os madeirenses: durou o tempo da guerra e prolongou-se para além desta.
Na década de quarenta a situação económica da ilha não se manifestava favorável. Ela saíra de
uma crise que a envolvera numa série de convulsões sociais que culminaram em 1951 com -A
Revolta da Farinha e depois na impropriamente definida, revolta da Madeira (dela tivemos
ocasião de apresentar a nossa visito que, por certo, não agradou a alguns dos nossos habituais
leitores). Para trás haviam ficado os anos difíceis da década de trinta e a memória das
dificuldades da primeira guerra. Deste modo o deflagrar de novo conflito na Europa, atormentou
os madeirenses, sendo a política de neutralidade saudada por todos. Mesmo assim mantiveram-se
os boatos de uma quebra desta opção e do alinhamento pelo tradicional aliado, a Inglaterra. Tais
boatos sucederam-se ao longo dos cinco anos do conflito, gerando uma situação de expectativa,
só desfeita com o fim da guerra. Aqui a única esperança foi de que o conflito não ultrapassou o
estreito de Gibraltar, deixando aberto o oceano e o continente americano. Foi isso que realmente
valeu ao madeirense: o Atlântico abriu-lhe o caminho de fuga à guerra, à fome e ao sofrimento; a
América (Brasil, E.U.A., Venezuela, Curaçau) reanimam-se para ele como o refugio ou ,melhor,
o E1 Dorado.
Durante o período da guerra a América, que dois séculos atrás se afirmara como o preferencial
consumidor do vinho, será o ,único mercado a comprar os nossos produtos (vinho, vimes e
bordados) e a abrir as suas portas aos nossos emigrantes. Entretanto das províncias africanas
chegava o milho, o alimento dos madeirenses. Na primeira metade da presente centúria a
economia madeirense definia-se por uma multiplicidade de produtos que garantiam as
exportações: ia longe a época dos produtos dominantes (os ciclos para alguns aventureiros de
História). 0 vinho, o bordado, os vimes (e os artefactos dele derivados) mantinham a animação
comercial com o exterior, enquanto o turismo completava a realidade ao nível interno. Toda esta
animação não derivava apenas da disponibilidade de serviços e produtos mas acima de tudo da
função exercida pelo porto do Funchal como importante escala oceânica: ai aportavam os
vapores da carreira do Cabo, Brasil, Colónias Portuguesas e E.U.A. Em todos os comentários,
feitos nos periódicos da época, sobre a situação económica do arquipélago estava subjacente esta
realidade. Dois desses veredictos, lavrados por letra anónima no D.N. são disso prova. 0 primeiro
foi lavrado a 28 de Fevereiro, nos inícios da campanha “produzir e poupar”, as palavras,
testemunham com rigor a real idade: “A Madeira viveu sempre na estreita dependência dos
mercados externos e bastaram já três anos e meio de guerra para deixarem na sua vida e na sua
fisionomia cicatrizes fundas e perduráveis.
Foram o comércio, a navegação, o turismo, os grandes propulsores do desenvolvimento insular.”
0 segundo surge no ano imediato a 2¢) de Agosto, alguns dias após a passagem do Cardeal
Cerejeira pela ilha, aí o retrato é claro: “A guerra veio ferir profundamente toda a economia local
precisamente pela paralisação do turismo. Fecharam-se os hotéis, faltou o trabalho a multas
classes, deixou de entrar na ilha um caudal avultado e constante de TURISTAS. Devido a esta
posição charneira da ilha o comércio externo com o continente americano prosperou. Deste
modo, quer o bordado, quer a obra de vimes continuaram a ser comerciados nos; anos de guerra:
perdeu-se o mercado britânico e alemão mas conquistou-se o americano. 0 principal atingido
com a situação foi o turismo: os cruzeiros deixaram de sulcar o oceano e passaram a estar ao
serviço da guerra. A par disso as companhias de turismo(Blue Star Lines, Royal Mail, Union
Castle) perderam os seus navios nas batalhas navais e por isso mesmo o turismo cessou, mesmo
para além da guerra, até que se recuperasse a fruta de cruzeiros ou surgisse novos meios de
transporte, como o hidroavião(1949)s ou então a tão proclamada construção de um aeródromo. A
15 de Abril de 1941 o articulista do Eco do Funchal resumia de forma lapidar a situação: “A
ausência de navegação que demandava o nosso porto constitui evidentemente o motivo
primordial de crise em que nos debatemos. 0 Turismo extinguiu-se automaticamente lançando
para a inacção milhares de braços que dele dependiam”.
Os cerca de 150.000 turistas que visitavam a ilha anualmente deixavam receitas no valor de 8 a
9.000 contos: eles deixaram de aparecer, lançando para o desemprego centenas de trabalhadores
e privando a ilha de uma importante fonte de receita. Consequência disso foi o encerramento de
todos os hotéis que só reabriram após a guerra. Um dos primeiros a fazê-lo foi o Reid’s em 8 de
Dezembro de 1949. Os primeiros sinais favoráveis para o turismo madeirense começaram a
surgir na passagem do fim-de-ano de 1945 com o aparecimento dos primeiros forasteiros vindos
do continente. Depois a 4 de Novembro de 1946 o vapor sueco Saga e em Setembro de 1948
anunciava-se que a agência B1andy se preparava para reatar as carreiras com Londres, trazendo à
ilha inúmeros turistas no navio Vénus: a 23 de Dezembro chegaram os primeiros 140 turistas,
que se juntaram e outros 600 vindos do continente, numa organização da Casa da Madeira em
Lisboa. 0 registo de navios de turismo durante o período em questão atesta esta real idade: em
19.~9 receberam-se os últimos 44 cruzeiros, que só regressaram em número de sete em 1946,
aumentando para o dobro nos dois anos imediatos, para atingir o número de 24 em 1949.
Todavia deverá referir-se que eles eram maioritariamente de escala com destino a outras
paragens. Note-se, ainda, que nos anos de guerra o grupo de passageiros em trânsito no porto do
Funchal é reduzido, sendo na quase totalidade portugueses. Os ingleses e alemães ausentaram-se
por algum tempo: na década de trinta os primeiros representavam 54% e os segundos 17%,
passando, na década seguinte, apenas a estar representados os ingleses, como é óbvio, com ~2%.
~ de salientar também que nos anos da guerra o movimento representou apenas 12% do total da
década em questão.
As festas comemorativas da passagem do ano, conheci das como as festas da cidade, tinham já
tradição na ilha e eram motivo de atracção para visitantes nacionais e estrangeiros. A sua
organização corria a cargo dos comerciantes, do município, sendo coordenadas pela Delegação
de Turismo. Veio a guerra desapareceram os turistas e o fogo deixou de abrilhantar as noites do
31 de Dezembro. Aliás na ilha praticamente todos os momentos festivos perderam o seu
colorido: acabou-se o fim-de-ano, o Carnaval, a festa das vindimas (...); o madeirense não era
mais o mesmo, o Machete, as castanholas emudeceram. Com o fim da guerra regressou a alegria
esfuziante, as festividades, com particular destaque para o fim do ano: pelo quinze de Agosto
voltou-se a subir ao Monte e pelo trinta e um de Dezembro o fogo regressou à baia do Funchal.
Neste primeiro fim-de-ano após a guerra a azáfama e a expectativa eram grandes, mas pouco o
dinheiro para a queima do fogo e diversões na feira popular da Quinta Vigia. Deste modo o
editorial do “Diário de Noticias” apelava em 30 de Dezembro as participação das populações:“0
fim-do-ano da Madeira é um acontecimento de que todos os madeirenses se orgulham. Justo é
pois que no momento de que se procura revi vè-lo, todos lhe dE°em um pouco do seu interesse e
do seu entusiasmo para que volte a ser, simultaneamente, expressão de beleza inolvidável e
motivo, sem par, de reclame e propaganda da nossa linda terra”.
As dificuldades porque passava a Madeira não se resumiam apenas à ausência dos turistas para
abrilhantar o fim-de-ano. Esta derivava fundamentalmente da quase inexistência da navegação
no porto do Funchal, que se repercutia no abastecimento da Madeira em alimentos (cereais) e nas
exportações disponíveis: a situação repercutiu-se no número de navios de cruzeiro mas também
os de carga. Os primeiros desapareceram e os segundo entraram em curva ascendente: dos 680
navios de carga com passageiros e 491 de carga, que escalaram o Porto do Funchal em 1938,
passou-se, respectivamente, para 87 e 90 em 1942. 0 movimento só se restabeleceu a partir de
1946, mas sem atingir os valores de antes da guerra: a guerra levou à destruição de alguns destes
navios e tardou algum tempo a reposição da frota mercante. A par disso a tonelagem bruta dos
navios evidencia uma forte quebra. Assim de 1.810.655 toneladas, dos navios de carga, de 19.58
passa-se para apenas 172.872 em 1943. Este decréscimo acentuado repercutia-se nas importações
e exportações da ilha. Logo no Verão de 1940 a situação começou a agudizar-se. sendo fatal o
prognóstico ditado pelo D.N. “A Madeira sofre dura e intensamente os efeitos da guerra, as suas
repercussões e consequências pode dizer-se, com absoluta verdade, em todos os ramos da sua
economia. Desapareceram, em grande parte, os nossos mercados consumidores, baixaram as
exportações, quasi que parai i sou a navegação estrangeira e, desde a declaração da guerra até
hoje o turismo dei;.’ou de ser aquele que derrama por rodas as actividades e que era um dos
grandes pulmões da vida regional “. Perante isto o comércio do bordado, vinho e vimes entrou
em crise. Apenas as exportações do bordado conseguiram manter-se em plena actividade, para
gáudio das cerca de 130. 000 bordadeiras (entre 1942-1946), mercê da aposta preferencial do
mercado dos Estados Unidos, que recebiam então 72% deste comércio, os demais produtos
entravam em grande agonia. Aliás a tendência do bordado foi para subida nos anos de guerra.
Pior que a ausência de exportação para os produtos da terra foi a falta de entrada dos cereais que
serviram para alimentar os madeirenses.
As dificuldades sentidas pelos madeirenses não derivaram apenas da ausência dos produtos que
faziam o seu sustento. Assim , entre Setembro de 1939 e igual mês de 1941 os preços subiram
70%. Se compararmos os valores de 1914 com os de 1946 o aumento é de 250%. Em Dezembro
de 1945 as queixas eram grandes contra o preço elevado da fruta e legumes, necessários à
confecção da mesa farta de Natal, mas em Setembro de 1946, passadas já as amarguras da
guerra, a situação evoluía favoravelmente, repercutindo-se na baixa do preço da semilha, peixe e
pão. 0 papel, com que se razia os jornais, que todos os dias davam as noticias da guerra, foi um
dos mais atingidos por esta conjuntura altista, pois o seu valor aumentou de 500%. Deste modo
se torna compreensível, quando folheamos os periódicos da época, como o Diário de Noticias, a
magra “ração” de papel distribuída quotidianamente aos assíduos leitores: uma folha tablóide não
bastava para expressar os horrores da guerra, mas era o que a situação permitia. Também os
suplementos de domingo perderam o colorido das fotografias que enchiam todo o espaço da
primeira página, as palavras eram de tal modo expressivas da realidade que tornavam
desnecessário o dispêndio de tinta.
A situação a que a ilha ficou sujeita, após o deflagrar da guerra, obrigava a tomada de medidas
rápidas e eficazes de modo a não repetir-se o sucedido entre 1914-1919. Deste modo lodo o dia
16 de Novembro, 15 dias após o inicio do conflito, o Governador Civil do Distrito determinou
algumas medidas de controlo dos preços e intensificação do cultivo da terra, para, quinze dias
mais tarde, estabelecer comissões de socorro capaz de assegurar trabalho aos desempregados.
Tais medidas foram e aplicadas em nota oficiosa do seguinte modo: “Parece que se aproximam
para o Mundo horas graves. A Madeira há-de sentir e sofrer os seus reflexos; mais não lhe faltará
nem valor nem espírito de sacrifício para vencem 1 os”. Estas medidas foram secundadas no
Verão do ano imediato com o Decreto-Lei nº. 30 605. Deste plano fazia parte um projecto
hidroeléctrico e a intensificação dos projectos de obras públicas. No caso da Madeira o plano de
aproveitamento hidroeléctrico foi aprovado em 21 de Outubro de 194.3 por meio da criação da
Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidroeléctricos da Madeira.
No comentário lavrado no D.N. de 21 de Junho alguém lançava em pinceladas breves a situação
trágica com que se debatia a economia madeirense, a ilha estava moribunda: “ A Madeira sofre
dura e intensamente os efeitos da guerra, as suas repercussões e consequências, pode dizer-se,
com absoluta verdade, em todos os ramos de sua economia. Desapareceram, em grande parte, os
nossos mercados consumidores, baixaram as exportações, quási que paralisou a navegação
estrangeira e, desde a declaração da guerra até hoje, o turismo deixou de ser aquele elemento de
beneficiação e de riqueza que se derramou por rodas as actividades e que era um dos grandes
fulcros da vida regional” Sempre e sempre as mesmas lamentações: turistas que não chegam; os
navios que tardaram em aparecer na linha do horizonte; apenas as batidas do telégrafo da
Marconi a atormentar-nos com as noticias da guerra.
Dentro do plano de obras públicas foi relevante a abertura de novas estradas que criaram e
viabilizaram as comunicações terrestres dentro da ilha: traçaram-se estradas por toda a ilha que
estabeleciam a ligação com o Funchal. Mas a disponibilidade de uma importante rede viária
esbarrava com a falta de combustíveis, de componentes e mesmo de automóveis. Por isso o
Butio, o Gavião e demais vapores costeiros continuaram a ser a única esperança para muitos
madeirenses. A sua chegada a qual quer porto costeiro era sempre saudada com um multidão de
famintos. Deste modo só a partir dai:: en’k~{o foi possível avançar a política de promoção da
agricultura madeirense. As moitas terras abandonadas só se podia cultivar se até ai se fizesse
chegar água. Note-se que a promoção da agricultura foi uma das apostas das entidades locais e
nacionais para suprir as carências de mantimentos. Já em Dezembro de 1941, nas “vésperas” das
sementeiras, a Junta Geral lançara uma campanha deste tipo. Aos agricultores seriam atribuídos
prémios de acordo com o número de hectares de terra cultivados de cereal. Esta campanha
atingiu em Novembro do ano imediato 144 proprietários, que semearam 713.660 m2. A 22 de
Dezembro de 1941 um editorial do Diário de Noticias exortava todos os madeirenses ao cultivo
das terras “Os agricultores devem lançar o seu braço à terra, fecundando-a até nas suas terras
mais insignificantes (...). Produzir, produzir muito, produzir o melhor”. Entretanto em Janeiro de
1944 o governo central lançava uma nova campanha sob o lema: “Poupar sempre, produzir o
máximo”. Para isso distribuía sementes adequadas e prémios pecuniários.
Em 1952, passados alguns anos sobre o fim da guerra, Ramon H. Correia Rodrigues continuava
apensar que a solução para a crise económica com que se debatia a Madeira estava “no
aproveitamento máximo dos recursos da terra, no desenvolvimento daquelas aptidões e na defesa
dos produtos regionais”. Mais do que promover o bordado, os vimes, interessava garantir na ilha
a subsistência: coisa difícil para uma ilha acidentada e onde a faina agrícola era árdua. Por outro
lado o arquipélago defrontava-se com o incremento do movimento demográfico comprovado no
senso de 1940: houve um aumento de 1~’”o/.. Perante isto apenas a emigração continuava, ainda,
a ser a solução possível.
O DEVE E O HAVER DA RIQUEZA DA ILHA. Uma das questões mais usuais do debate
político entre as ilhas e o rectângulo continental prende-se com o pretenso despesismo das ilhas,
sustentado ao que dizem pelas receitas do continente português. Não nos queremos intrometer no
debate, porque escasseia dados que o esclareça, mas podemos remeter a questão para o passado
histórico e aferir ao longo dos últimos cinco séculos como se comportou essa relação financeira.
É o deve e haver das contas entre a Madeira e o reino que nos evidenciam que a relação do
passado foi pautada por uma forte participação financeira da ilha nas finanças do reino. Foram os
nossos av6s financiaram as exorbitâncias da Coroa, as viagens a Índia e as elevadas despesas de
manutenção e defesa das praças africanas. Hoje somos n6s que recorremos ao velho continente a
reivindicar a cobrança desses “empréstimos”, mas no passado era a coroa que recorria as receitas
madeirenses para colmatar o incessante deficit das finanças publicas.
O primeiro e mais rudimentar orçamento que se conhece data de 1526 e foi recentemente
estudado por J. Cordeiro Pereira; neste orçamento as receitas fiscais orçaram em 166.347.611
reais, sendo 12 000.000 (=7,2%) referentes apenas a Madeira, que conjuntamente com as demais
possessões fora da Europa totalizavam 37.630.000 (=23%). E de salientar que a cidade de Lisboa
que apenas arrecadava 5% dessas receitas, absorvia 17% das despesas, o que implicava esse
financiamento externo a este meio com o recurso aos reditos arrecadados pela Coroa,
nomeadamente na Madeira, Açores e Costa da Guine. Por norma as finanças do reino foram
demarcadas por um permanente deficit dai que a coroa tivesse necessidade de se socorrer a
diversas meios para saldar essa diferença. Desde o século XIV que a forma mais usual de o
solucionar era o recurso a pedidos e empréstimos; era com essas formas de financiamento que a
coroa cobria esse deficit e cobria as despesas bélicas, casamento dos príncipes.
Ficou celebre o empréstimo de sessenta milhões lançado em 1478 para cobrir as despesas da
guerra com Castela; desses um milhão e duzentos mil reais foram lançados sobre os madeirenses,
isto e 2% desse valor (valor altamente significativo se tivermos em conta a capitação media),mas
os madeirenses mostraram-se renitentes ao pagamento desse imposto, argumentando a difícil
situação da ilha em termos do abastecimento de cereais e o facto de terem já feito um
empréstimo a coroa de 400 arrobas. O desfecho final desta questão saldou-se numa redução do
referido empréstimo para metade. Desta forma os madeirenses manifestavam o seu repudio as
exorbitantes despesas do reino e faziam valer as franquias que corporizaram o inicial processo de
ocupação. Nessa época os principais sorvedouros de dinheiro eram a Casa Real, a carreira da
Índia e as praças marroquinas. Apenas no período de 1445 a 1481 os gastos da coroa em dotes e
casamentos suplantaram as 812.500 dobras, enquanto que nas guerras com Castela se
despenderam 336.000 e na defesa das praças marroquinas 378.000 dobras; entretanto no período
de 1522 a 1551, as despesas com a perda das naus da carreira da Índia, por naufrágio ou corso,
atingiram 352.150 dobras.
A Madeira foi uma importante fonte de receita para travar esse endividamento e manter a
opulência da casa senhorial e real. Primeiro foi o infante D. Henrique em que nas rendas da sua
casa contavam-se 1.500.000 reais da Madeira. Aliás o próprio D. Manuel entendeu perfeitamente
este papel da Madeira e em 1497 ao fazer a ilha realenga justifica que esta “é uma das principais
e proveitosas coisas que noz, e real coroa de nosso reinos temos para ajudar, e suportamento de
estado real, e encargos de nossos reinos”. Na primeira metade do século XVII, se compararmos a
despesa e receita dos arquipélagos da Madeira e Açores chegaremos a conclusão de que os
nossos vizinhos açorianos eram muito mais gastadores do que n6s; assim de uma receita de
40.000$000 reais eles despenderam 18.180S476 em ordenados, enquanto na Madeira para uma
receita de 21.400$000 reais gastou-se apenas 8.670$376 reais em ordenados, tenças e despesas
ordinárias; isto e, na Madeira sobrou 41% do total das receitas arrecadadas que a Coroa utilizou
nos seus gastos no reino e col6nias.
Ate a década de trinta do século XVI os reditos fiscais resultantes da produção e comercio do
açúcar asseguravam parte importante dessas fontes de financiamento do reino e projectos
expansionistas; esse rendimento entre 1497 e 1506 oscilou entre as 18.507 arrobas e 31.876
arrobas. Deste açúcar depois de retirada a redizima, isto e, a decima parte que era propriedade do
capitão do donatário, era utilizado pela coroa de formas diversas, como meio de pagamentos dos
salários, esmolas aos conventos (Santa Maria de Guadalupe, Jesus de Aveiro, Conceição de
Braga) e miseric6rdias (Funchal, Lisboa, Ponta Delgada), benesses a príncipes e infantes da Casa
Real e despesa aduaneira desta ilha, enquanto a parte sobrante era vendida, directamente em
Flandres pelos feitores do rei, ou por mercadores, por vezes, a troco de pimenta. A par disso
surgiam, ainda, as despesas eventuais como a construção da Se e alfândega do Funchal, que
receberam, respectivamente, 1.000 e 3.000 arrobas de açúcar. Neste grupo, mas com um carácter
quase permanente, poder-se-á incluir o pagamento dos inúmeros pedidos socorro e
abastecimento das praças marroquinas e o provimento das armadas da Índia, por norma, em
vinho. Sobre as assíduas despesas com o socorro as praças africanas podemos citar, a titulo de
exemplo, o concedido entre 1508 2 1514 a Safim; nesse período gastaram-se mil arrobas de
açúcar e 83.815 reais, enquanto em 1531 o provimento de vinhos as armadas da Índia orçou em
124.490 reais. Em 1529 com o Tratado de Saragoça foi encontrada uma solução provisória e que
a curto prazo parece agradar a ambas as partes. D. João III viu-se forçado a pagar 350.000
ducados para assegurar a posse das Molucas que afinal se encontravam dentro da área de
influência de Portugal.
Mais uma vez é possível assinalar uma ligação à Madeira, pois terá sido, segundo alguns, o
madeirense António de Abreu o seu primeiro explorador. A dúvida todavia subiste em face de
vários homónimos contemporâneos. E deste modo a opinião mais abalizada anota que esse
António de Abreu que abordou as Molucas e terá estado na Austrália não é o madeirense, filho
de João Fernandes do Arco, mas sim o do fidalgo Garcia de Abreu, de Avis. Por outro lado os
madeirenses contribuíram com avultada quantia de empréstimo para o pagamento do referido
contrato. Manuel de Noronha ficou com o encargo de arrecadar a contribuição madeirense. João
Rodrigues Castelhano é referenciado também como recebedor do referido empréstimo, tendo
desembolsado da sua fazenda 300.000 réis. A este juntam-se Fernão Teixeira com 150.000 réis e
Gonçalo Fernandez5 com 200.000 réis. O seu pagamento fez-se nos anos de 1530-31 à custa dos
dinheiros resultantes dos direitos da coroa sobre o açúcar. Pelos dados fiscais de 1531 pode-se ter
ideia da evolução da receita e despesa da ilha; as rendas do açúcar renderam 6.990.573 reais de
que se gastaram 10% dos vencimentos do clero da capitania do Funchal e 7% no pagamento do
empréstimo de João Rodrigues Castelhano a Coroa para pagar o contrato das Molucas; mais de
cinquenta por cento dessas receitas iam directamente para o reino a engrossar os cofres da
Fazenda Real. A partir desta informação, ainda que avulsa, conclui-se que os madeirenses foram
activos protagonistas da expansão lusíada dos séculos XV e XVI emprestando a sua própria vida
e reditos, arrecadados com a safra do açúcar, no financiamento desse projecto e das exorbitâncias
e caprichos quotidianos da Casa Real. Esta evidência torna-se clara também para os estrangeiros.
Deste modo em 1768 James Cook refere que a coroa arrecada na ilha 20.000 libras por ano.
Outro súbdito inglês em 1827 apontava o destino dessa receita: “o rei pagava todas as despesas
das legações no estrangeiro [isto antes de 1820] com o excedente dos seus rendimentos da
Madeira. Todos os anos era transferida para Londres com esse fim uma quantia de 50 a 80.000
Libras.”
O século XVIII demonstrava de forma evidente esta assimetria no gerar e aplicar da riqueza da
ilha. OS governadores, maioritariamente do reino, são testemunhos disso e não se cansam de o
relembrar nas suas missivas oficiais. As dificuldades da ilha assim o reclamavam. Foi isso o que
sucedeu com João Gonçalves da Câmara ao constatar que a coroa tem os rendimentos “mais
pingues, que talvez hajam em dezoito léguas de terreno de qualquer outro domínio português”.
Mas nada disto transparecia na ilha, a realidade era diferente. O estado de prostração e abandono
em que estava era uma evidência. Os imóveis públicos eram o espelho desta realidade. A casa da
câmara, estavam em ruína e a vereação endividada e sem meios para acudir.
O período que decorre a partir do último quartel do século XIX é marcado pelo revigoramento
dos ideais autonomistas em que os seus arautos batem sempre na mesma tecla. As receitas da
região são sorvidas pelo poder central, sem qualquer benefício para os locais. Em 1883 o
deputado madeirense Manuel Vieira enfrenta o açoriano Hintze Ribeiro, ministro das Obras
Públicas. A receita líquida do distrito dos últimos dez anos é computada em 1.172.000$000 réis
que são canalizados para obras no continente. Em plena euforia do movimento autonomista na
década de vinte o grande combate é de novo a drenagem do ouro e riqueza madeirense para
Lisboa. Em 1935 Salazar, colocado perante a realidade do desagravo dos madeirenses ao
continente, afirma que é falsa a ideia que se criou na ilha do abandono pelo poder central. Os
dados da receita e despesa do estado para o período que decorre de 1874 a 1921 reportam a
mesma realidade, uma vez que a despesa quedava-se quase sempre por metade da receita,
atingindo-se em princípios do nosso século um quinto. Assim no ano económico de 19123-14 a
receita foi de 1125721$08, enquanto a despesa foi de 258558$51.
As evidências estão aí e revelam que é chegado o momento de a Madeira cobrar os juros dessa
contribuição, fazendo com que a marcha dos meios financeiros se inverta. A sua concretização
não é uma esmola, tão pouco um ónus ao erário nacional, mas tão só o resultado desse equilíbrio
harmonioso entre o deve e o haver que faz esbater as assimetrias que a conjuntura económica,
por vezes nos coloca.
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