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VIEIRA, Alberto (1999),

Economia da Madeira-dados históricos

COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO:

VIEIRA, Alberto (1999), Economia da Madeira-dados históricos, Funchal, CEHA-Biblioteca Digital,


disponível em: http://www.madeira-edu.pt/Portals/31/CEHA/bdigital/avieira/Economia2.pdf, data da
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A afirmação hodierna da realidade insular madeirense, não poderá ser reduzida a uma conquista
deste findar do século pois que é o corolário de todo um processo de labuta com mais de
quinhentos anos. Hoje, nós somos os lídimos usufrutuários deste quotidiano e cultura por que tão
afanosamente lutaram os nossos avoengos. Esta forma acabada, em permanente recriação, toma
corpo nas múltiplas conjunturas políticas e económicas que marcaram o devir do nosso processo
histórico. Ai um conjunto restrito de produtos agrícolas detêm uma função primordial, como
catalisadores da animação social e económica, ou definidores de uma diversa realidade societal.
Nos primeiros momentos de ocupação do solo, o vinho, o trigo, em primeiro lugar e, depois, o
açúcar, surgem ai como elementos aglutinadores dum quotidiano com inevitáveis implicações
políticas e urbanísticas. Os primeiros materializam a necessária garantia das condições de
subsistência e do ritual cristão, enquanto o ultimo encerra a ambição e voracidade mercantil da
nova burguesia atlantico-mediterranica, que fez da Madeira o principal pilar para afirmação na
economia atlântica e mundial.
O processo é irreversível de modo que em consonância com os movimentos económicos sucede-
se uma catadupa de produtos, com valor utilitário para a sociedade insular, ou com capacidade
adequada para activar as trocas com o mercado externo. Se na primeira fase o domínio pertenceu
à economia agrícola, no segundo, que se aproxima da nossa vivência, ele reparte-se em serviços
industrias artesanais (vimes e bordado) e de novo produtos agrícolas. O seu enquadramento e
afirmação económica não é pacífico, sendo feito de embates permanentes entre essa necessária
manutenção de subsistência e da animação comercial externa. Desse afrontamento resultou a
afirmação, num ou noutro momento, do produto que adquire maior pujança e numero de
defensores nessa dinâmica. É nesta luta permanente de produtos de uma subsistência familiar,
local e insular com os impostos pela permanente solicitação externa que se alicerçou a economia
da ilha até ao limiar do século XIX. Estes produtos são os pilares mais destacados para a
compreensão da realidade socio-económica madeirense, ao longo destes quinhentos anos, com
reflexos inevitáveis na actualidade.
A definição dos espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e económicos
derivados da conjuntura expansionista europeia mas também das condições internas, oferecidas
pelo meio. Elas tornam-se por demais evidentes quando estamos perante um conjunto de ilhas
dispersas no oceano. A Madeira apresentava-se como uma réplica mediterrânica, enquanto nos
dois arquipélagos meridionais eram manifestas as influências da posição geográfica, que
estabelecia um clima tropical seco ou equatorial. Daqui resultou a diversidade de formas de
valorização económica e social. Para os primeiros europeus que aí se fixaram a ilha oferecia
melhores requisitos, pelas semelhanças do clima com o de Portugal. Por fim é necessário ter em
conta as condições morfológicas, que estabelecem as especificidades de cada ilha e tornam
possível a delimitação do espaço e a sua forma de aproveitamento económico. Aqui o recorte e
relevo costeiro foram importantes. A possibilidade de acesso ao exterior através de bons
ancoradouros era um factor importante. É a partir daqui que se torna compreensível a situação da
Madeira definida pela excessiva importância da vertente sul em detrimento da norte. De um
modo geral estávamos perante a plena dominância do litoral como área privilegiada de fixação
ainda que, por vezes, o não fosse em termos económicos.
De acordo com as condições geo-climáticas é possível definir a mancha de ocupação humana e
agrícola. Isto conduziu a uma variedade de funções económicas, por vezes complementares.
Deste modo nos arquipélagos constituídos por maior número de ilhas a articulação dos vectores
da subsistência com os da economia de mercado foi mais harmoniosa e não causou grandes
dificuldades. O processo de povoamento das ilhas, já atrás abordado, definiu-lhes uma vocação
de áreas económicas sucedâneas do mercado e espaço mediterrânicos. Assim o que sucedeu nos
séculos XV e XVI foi a lenta afirmação do novo espaço, tendo como ponto de referência as ilhas.
A tradição mediterranio-atlantica, que define a realidade peninsular, repercute-se,
inevitavelmente na estrutura agrária e por consequência no impacto ecológico que acompanha a
expansão atlântica. Dai saíram as sementes, utensílios e homens que lançarão as bases dessa
nova vivência insular e atlântico., mas também se situavam as principais solicitações e
orientações. A par disso o confronto com as novas realidades civilizacionais americanas e indicas
contribuiu para um paulatino desencravamento planetário da ecologia e cardápio dos séculos
XVI e XVII, com inevitáveis repercussões na economia e hábitos alimentares do europeu. Da
Europa saíram os cereais (centeio, cevada e trigo), as videiras e as socas de cana, enquanto da
América e índia aportaram ao velho continente o milho, a batata, o inhame. o arroz. Nesse
contexto as ilhas atlânticas, pela sua posição charneira no relacionamento entre esses mundos,
surgem como viveiros da aclimatação desses produtos às novas condições eco-sistémicas que se
acolhem. A Madeira deteve uma posição importante, afirmando-se no século XV como o viveiro
experimental das culturas que a Europa pretendia implantar no Novo Mundo - os cereais, o
pastel, a vinha e a cana de açúcar.
A expansão europeia desde o século XV veio revolucionar o cardápio europeu enriqueceu-se,
aumentando a gama de produtos e condimentos. Todavia esta assimilação não foi fácil, pois a
tradição culinária europeia foi destronada pelo exotismo das novas sensações gustativas que
acabaram por afeiçoar o paladar. Mas ate que isso se generalizasse tornava-se necessário
conduzir aos locais mais recônditos o cereal e o vinho. Assim as embarcações que sulcavam o
oceano levavam nos seus porões, para alem das manufacturas e bugigangas aliciadoras das
populações autóctones, inúmeras pipas de vinho e barris de farinha ou biscoito. Se o cereal
poderá encontrar similar, como o milho e a mandioca, o mesmo não acontecia com o vinho que
era desconhecido e incapaz de se adaptar as novas condições mesológicas oferecidas pela
colónias europeias. Desta forma o vinho foi conduzido da Europa ou das ilhas, onde ele se afirma
com essa finalidade aos mais recônditos espaços em que se fixou o europeu. Este era o
inseparável companheiro dos mareantes, expedicionários, bandeirantes e colonizadores. Aos
primeiros servia de antídoto ao escorbuto, aos segundos saciava a sede, enquanto aos últimos
servia como recordação ou devaneio hilariante da terra-mãe. O vinho é assim um dos principais
traços de união das gentes europeias na gesta de expansão além-Atlântico.
No imaginário e devir histórico madeirense paira sempre essa visão tripartida da sua faina
agrícola: o vinho e o cereal que a tradição impõe como necessários ao quotidiano espiritual e
alimentar, o açúcar que se afirma como provento excedentário capaz de atrair a atenção dos
mercados europeus e de trazer a ilha as manufacturas que necessita. Todavia essa harmónica
trifuncionalidade produtiva pela sua extrema dependência as dinâmicas e directrizes europeias
será sujeita a diversos sobressaltos que contribuirão para uma desmesurada desarticulação do
quotidiano e economia madeirenses. Assim a concorrência do aguçar americano lança o pânico
na ilha e obriga a uma necessária afirmação da cultura da vinha, cujo derivado, o vinho, se
afirmara como a moeda de troca, substitutiva do açúcar. O mesmo sucedera nas primeiras
décadas oitocentistas em que o vinho perde a sua posição preferencial nas trocas com o exterior.
Aqui, como aquém, depara-se com uma conjuntura difícil, dominada pela fome e emigração.
Essa precariedade da economia madeirense não deriva apenas da sua posição dependente em
relação ao velho continente, mas também radica nas diminutas possibilidades de usufruto dos
741 Km2 de superfície. Todavia o lançamento e afirmação de uma sociedade em moldes
europeus nesse espaço dependeria das possibilidades de afirmação simultânea desse conjunto de
produtos; motores da expansão atlântica e da europeização do seu espaço insular.
Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-se com o processo
atlântica, não puseram de parte a tradição agrícola e os incentivos comerciais dos mercados de
origem. Por isso na bagagem dos primeiros cabouqueiros insulares foram imprescindíveis as
cepas, as socas de cana, alguns grãos do precioso cereal, de mistura com artefactos e
ferramentas. A afirmação das áreas atlânticas resultou deste transplante material e humana de
que os peninsulares foram os principais obreiros. Este processo foi a primeira experiência de
ajustamento das arroteias às directrizes da nova economia de mercado. A aposta preferencial foi
para uma agricultura capaz de suprir as faltas do velho continente, quer os cereais, quer o pastel e
açúcar, do que o usufruto das novidades propiciadas pelo meio.
Ao nível do sector produtivo deverá ter-se em conta a importância assumida, por um lado, pelas
condições geofísicas e, por outro, pela política distributiva das culturas. É da conjugação de
ambas que se estabelece a necessária hierarquia. Os solos mais ricos eram reservados para a
cultura de maior rentabilidade económica (o trigo, a cana de açúcar, o pastel), enquanto os
medianos ficavam para os produtos hortícolas e frutícolas, ficando os mais pobres como pasto e
área de apoio aos dois primeiros. A esta hierarquia definida pelas condições do solo e
persistência do mercado podemos adicionar para a Madeira outra de acordo com a geografia da
ilha e os microclimas que a mesma gera.
No processo de labuta, mais do que uma revolução ecológica, assiste-se a outra humana e
técnica. Se as condições eco-sistemicas favoreceram a transplantação das primeiras sementes;
primeiro ergueram os socalcos (poios), depois adaptaram as técnicas e as alfaias agrícolas aos
condicionalismos do novo espaço cultivado. A testemunhar tudo isso perduram os poios,
ladeados de levadas, que bem podem ser considerados entre as principais realizações do homem
sobre a terra. A homenagem deverá ser concedida ao cabouqueiro, colono que recebe das
principais gentes da ilha o encargo de valorizar economicamente as parcelas que estas receberam
como benesse. Esse investimento da sua capacidade de trabalho terá justificação jurídica nas
chamadas benfeitorias, que englobavam paredes, casas de habitação, lagares ou lagariças,
arvores de fruto, latadas, etc. é, assim, o colono que lança as bases desta revolução tecnico-
agricola e um dos principais obreiros dessa harmoniosa paisagem rural os proprietários preferiam
os bulício ribeirinhos da cidade ou do burgo que tentam erguer, fazendo com que a arquitectura e
viver quotidiano se adaptassem a medida volume dos reditos acumulados com o comércio do
açúcar e vinho; estava-lhes reservado o usufruto da vida no espaço urbano, empenhados nas lides
administrativas ou entretidos nos jogos de pela e canas.
A persistência de alguns lavradores, a celebridade da sua superior qualidade e a sua solicitação
pela doçaria e casquinha madeirenses fizeram com que a cultura se mantivesse por largos anos
atingindo, em momentos de crise dos mercados americanos, alguma pujança. Mas,
irremediavelmente condenada a sua cultura o madeirense vê-se forçado a canalizar todas as suas
atenções nas vinhas, fazendo-as assumir o espaço abandonado pelas socas de cana. Desta forma
os canaviais fazem-se substituir pelas latadas, enquanto os engenhos dão lugar aos lagares e
armazéns.
Essa mudança na estrutura produtiva provocará alterações na dinâmica económica da ilha; o
açúcar definia apenas um complexo industrial, o engenho, onde decorria a respectiva safra, o
vinho necessitara de dois espaços distintos. O lagar onde as uvas dão lugar ao saboroso mosto e
os armazéns da cidade onde este fermenta e é preparado para atingir o necessário aroma e
bouquet. Deste modo o agricultor, colono ou não, detém apenas o controle da viticultura, ficando
reservado ao mercador o moroso processo de vinificação. Por mais de dois séculos a vinha e o
vinho surgem como os principais aglutinadores das actividades económicas da ilha; dando ao
meio rural e urbano desusada animação; o Funchal cresce em monumentalidade e as principais
famílias reforçam a sua posição económica.
A conjuntura da primeira metade de oitocentos. demarcada pelos conflitos europeus, guerra de
independência das colónias, associada aos factores de origem botânica (oidio-1852, filoxera-
1872) conduziram ao paulatino degenerescimento da pujança económica do vinho. Como
corolário, desse inevitável processo, sucedem-se as fomes, nos anos quarenta, e a sangria
emigratória nas décadas de 50 e 80, para o continente americano, onde o madeirense vai
substituir o escravo nas plantações. Por um período de mais de setenta anos a confusão
institucional e económica alarga-se ao domínio social e alimentar. Assim sucedem-se novos
produtos de importação do Novo Mundo que ganham uma posição de relevo na culinária
madeirense. Destes destacam-se o inhame e a batata. A par disso definem-se políticas de
reconversão e ensaios de novos produtos com valor comercial (tabaco, chá,...)
Em pleno apogeu da indústria vinhateira temos a paulatina afirmação de um novo sector de
serviços. Na segunda metade do século XVIII a ilha assume um outro papel com a revelação da
Madeira como estância para o turismo terapêutico, mercê das então consideradas qualidades
profiláticas do seu clima na cura da tuberculose, o que cativou a atenção de novos forasteiros. A
tísica propiciou-nos, ao longo do século dezanove, o convívio com poetas, escritores, políticos e
aristocratas. Não obstante a polémica causada em torno das possibilidades deste sistema de cura a
ilha permaneceu por muito tempo como local de acolhimento destes doentes, sendo considerada a
primeira e principal estância de cura e convalescença do velho continente.
Foi a presença, cada vez mais assídua, deste doentes que provocou a necessidade de criação de
infra-estruturas de apoio: sanatórios, hospedagens e agentes, que serviam de intermediários entre
estes forasteiros e os proprietários de tais espaços de acolhimento. Este último é o prelúdio do
actual agente de viagens. Então o turismo, tal como hoje o entendemos, dava os seus primeiros
passos. E foi como corolário disso que se estabeleceram as primeiras infra-estruturas hoteleiras e
que o turismo passou a ser uma actividade organizada e com uma função relevante na economia
da ilha. E mais uma vez o inglês é o principal protagonista. No passado foram as condições do
meio que fizeram da ilha um dos principais motivos de atracção turística. Hoje o turista é outro e
por isso também as exigências são diferentes. Assim aos motivos ambientais aliam-se os
culturais, passando os dois a andar de braço dado. No fundo é a simbiose do “grand tour”
europeu com o turismo terapêutico insular.
Nos últimos anos a Madeira adquiriu uma posição desusada no “ranking” da comunidade
cientifica. A ilha continua a fascinar cientistas e visitantes. O clima, o endemismo, as
particularidades do processo histórico, o protagonismo na História do Atlântico fazem dela,
ontem como hoje, um pólo chave para o conhecimento científico. Hoje a ilha é tema de debate
nos diversos areópagos científicos e cada vez mais se sentem o apelo da comunidade cientifica
para o seu conhecimento e divulgação. Em certa medida esta próxima realidade vai ao encontro
daquilo que foi a História do arquipélago. Na verdade, o passado histérico da ilha, relevado
quase sempre pelos aspectos económicos e sociais, esquece uma componente fundamental da
nossa aportação: a inovação e divulgação tecnológica que transformou a rotina das tarefas
económicas e revolucionou o quotidiano dos nossos avoengos. Mais do que isso, o madeirense,
além de exímio inventor — na inevitável tarefa de encontrar solução para as questões e
dificuldades do dia a dia —, foi também um eficaz divulgador da sua tecnologia. A Madeira foi a
primeira terra revelada do novo mundo, escala para a navegação e expansão dos produtos
europeus no mundo atlântico. Com o século XVIII a ilha transforma-se em escala obrigatória das
expedições científicas que fizeram saciar a curiosidade inata do Homem das Luzes.
Hoje a realidade e os desafios são outros e a todos nós resta dar continuidade a essa aquisição de
mais-valia que reverta em nosso favor e não de estranhos. Ao nível científico deparam-se-nos
inúmeros desafios que deverão ser tidos em conta. O suporte institucional, através da plena
afirmação das instituições que dão corpo a esta nova realidade, é uma opção inadiável. Por isso,
se queremos ganhar todos estes desafios e corresponder ao apelo do protagonismo que o passado
nos acalenta, há que permitir a “rédea solta” destas instituições, dotá-las de meios adequados à
sua existência e afirmação. Caso contrário estamos a sacrificar o nosso futuro e a desvalorizar
todo o trabalho destes últimos dez anos de aposta do processo autonómico. Consolidar a
autonomia, nesta conjuntura de contratempos, implica um profundo mergulho nas profundezas
da nossa identidade. A aposta no conhecimento, na cultura é a via inevitável se queremos vencer
os desafios do futuro e atribuir à ilha o novo protagonismo no espaço Atlântico, fazendo jus à
tradição histórica de que, afinal, somos todos herdeiros.

TÉCNICAS E FONTES DE ENERGIA. O aproveitamento económico da ilha implicava a


disponibilidade de instrumentos e técnicas capazes de fazerem com que da terra brotassem as
culturas. Estes são preciosos auxiliares do homem que se aperfeiçoam de acordo com as
necessidades, a disponibilidade de materiais e o seu engenho e arte. A agricultura implica um
nível elevado de conhecimento tecnológico adequado às diversas tarefas de lavrar e plantar a
terra, canalizar a água e transporte das riquezas dela extraídas. Também aqui vamos encontrar
uma vinculação directa ao Norte de Portugal, o que não é de espantar tendo em conta que a
maioria dos povoadores é originária desta região. As duas formas de enxada usadas na ilha para
cavar a terra, o arado radial que se usou em Santana, Ponta do Pargo, S. Jorge, Ponta de Sol e
Porto Santo, encontram as mesmas filiações. Tudo isto evidencia que os primeiros portugueses
que lançaram as bases da economia agrícola da ilha eram lavradores bem preparados e
equipados.

A água tem uma função fundamental no curso da História. Ela é a fonte da vida e da História.
Aproxima povos e civilizações. Faz medrar as culturas verdejantes nos campos e substitui-se ao
homem em algumas das suas árduas tarefas. Ela assume um papel fundamental na História
material, orientando as formas de vida e desenvolvimento económico das populações que dela se
podem servir. A água foi e continua a ser um elemento vital ao progresso e bem estar do
Homem. Mas, o seu uso não foi fácil. Mobilizou povos, monarcas engenheiros e trabalhadores
para grandes obras de engenharia. Em alguns casos, estamos perante as sociedades hidráulicas.
E, segundo alguns estudiosos marxistas, definiu uma forma peculiar de estruturação de algumas
sociedades, que ficaram conhecidas como modo de produção asiático. É de salientar que na
Madeira os grandes empreendimentos hidráulicos são da responsabilidade dos particulares,
cabendo à coroa apenas a função de criar as condições para este investimento, com a
obrigatoriedade de todos os colonos à permissão de passagem das levadas. A intervenção do
estado é recente e surge a partir da década de quarenta com a Comissão de Aproveitamentos
Hidráulicos da Madeira. Mesmo assim a Madeira não ficou alheia a esta situação, uma vez que o
seu progresso inicial deveu-se à abundância da água. Hoje, a Ilha da Madeira apresenta-se com
duas áreas hidrográficas distintas: as vertentes norte e sul. Mas isto é, todavia, resultado das
condições orográficas da ilha mas também da intervenção do Homem no corte da densa floresta
que a cobria, aquando do encontro pelos europeus.
Nos séculos XV a XVII a água corria nas ribeiras, em abundância na vertente norte. No sul os
caudais eram, na época estival, quase todos desviados para as levadas A maior concentração
populacional e aposta agrícola assim o definiram. Os cronistas são disso testemunho. O caso
mais evidente encontramos em Gaspar Frutuoso Seguindo o seu testemunho podemos afirmar
que a existência ou não de água condicionou o assentamento dos primeiros povoadores em todo
o espaço da ilha. Aliás, a atenção do portugueses: e não viam mais que correntes, ribeiras, fontes
e regatos, que, por entre ele, vinham com grande frescura deferir ao mar”. E é o mesmo quem,
depois de um descrição exaustiva da ilha conclui: “toda ela se rega com grande abundância das
águas que tem, que, como veias em corpo humano, a estão humedecendo e engrossando e
mantendo, com que se faz rica, fresca, formosa e lustrosa.”. A partir daqui podemos afirmar que
o sucesso do povoamento e valorização económica da ilha são resultado do facto de a ilha ser
“toda regada com água”, como refere o historiador das ilhas.
As ribeiras exerceram aqui um papel fundamental. Foi por elas que entraram os primeiros
europeus que reconheceram a ilha e nelas se assentaram os primeiros núcleos de povoamento. É,
na verdade, no leito e margens das ribeiras que se joga a nossa História. A sua bravura, tão pouco
atemorizou os colonos, como sucedeu com a sua fixação no local da Ribeira Brava, que foi
buscar o nome a isso mesmo”. Note-se que isto causou inúmeros transtornos aos madeirenses,
que viveram, a partir do século XVII, sob a ameaça das aluviões. É durante este século que se
insiste na necessidade de muralhas de protecção no Funchal” e Ribeira Brava cidade dá-se conta
do dilúvio de 22 de Janeiro de 1605, que destruiu 130 casas e as três pontes. Aqui convém
salientar por um lado a ilha da Madeira e, por outro o Porto Santo, isto porque na primeira as crises
de seca são reduzidas e de menor influências, enquanto na segunda elas perduram ao longo do
século XVIII e XIX, provocando as mais graves crises de fome e de abandono da ilha. A primeira
referência a uma seca prolongada na ilha da Madeira, no período invernal data de 1798, pois que em
carta de 31 de Janeiro o Senado da Câmara da cidade em carta ao bispo implora que se façam preces
públicas"Os tempos que tem e concorrem com geral falta de chuva, nos promete notável
esterilidade, nos frutos no presente ano, por impedirem aos lavradores a semearem seus trigos, e a
outros haver nascido as plantas do que a terra tem entregue para a multiplicaçäo, motivo porque
ansiosos desejam deprecar a Deus Nosso Senhor para do mesmo Deus alcançarem o remédio a tanto
mal ameaçado.

E nós por bem de todos somos conformes a pedir a Vossa Exa. se digne determinar três dias de
preces nessa catedral do Santíssimo Sacramento, concorrendo a elas as colegiadas e mais clero, para
que o Altíssimo Deus nos conceda o remédio necessário como temos recebido, quando nestas
deprecações o imploramos. Determinando-nos Vossas Senhorias com a brevidade possível, o dia,
que dão princípio às ditas rogativas para nós concorrermos com juntamento todo o povo desta ilha".

Em 1850 novamente a seca no período invernal e o mesmo sentimento de impotência, de submissão


ao Divino, levou o governador civil José Silvestre Ribeiro ao implorar em carta de 6 de Fevereiro ao
bispado preces públicas: "Desgraçadamente tem continuado a falta de chuva, e é bem claro que, ou
não poderão lançar-se as sementes à terra ou as que tiverem sido e forem sendo lançadas não
poderão frutificar, nem tão pouco os campos poderão produzir pastos para os gados. Nesta apurada
situação, em que as providências humanas se apresentam ineficazes, a alguém tem ocorrido apelar
para a misericórdia divina e seguir os exemplos de outros tempos, nos quais em idênticas
circunstâncias costumavam os povos correr aos templos, e dirigir a quem tudo manda fervorosas
preces para que Deus se compadecesses da desgraça dos homens". Em carta do mesmo, dirigida aos
administradores do concelho da Ponta do Sol se dá conta das razões deste pedido ao bispo: "Quando
as calamidades públicas excedem as faculdades humanas, só resta invocar a misericórdia divina, e
neste caso nos encontramos hoje, tendo que deplorar o temeroso flagelo da seca, que se continuar
pode acarretar-nos horrores de fome, como V. S. tão judiciosamente antevê - uma filosofia
desdenhosa e altiva pergunta nestas circunstâncias se a Natureza não obedece, por ventura, a leis
gerais e imprescritíveis, - e argumenta com esse facto para rejeitar a submissão ao omnipotente. Sim
a Natureza obedece a leis gerais: mas quem prescreveu essas leis? Foi Deus. Humilhemo-nos, pois
ante os seus decretos e não nos envergonhemos de lhe pedir socorro nas nossas atribulações. E
ainda quando esta piedosa crença deixasse de assentar em sólidas convicções do espírito, conviria,
em todo o caso não arrancar aos infelizes a consolação única, que nos dolorosos transes da vida
pode ter o desgraçado".

As secas surgindo em momento do ano, em que os factores meteorológicos têm pouca influência no
desenvolvimento da videira e dos novos rebentos, pouco teria sido sua acção face uma crise, ela
apenas faria sentir os seus efeitos sobre as culturas feitas nessa época, ou em vias de germinação.
No entanto cá ficam atestando um momento de crise agrícola. A ilha do Porto Santo, mais propícia
às estiagens prolongadas, devido ao seu posicionamento geográfico, à falta de arvoredos, pautou-se,
desde muito cedo, como uma ilha seca e pobre, sujeita a prolongadas estiagens. Estas são uma
constante ao longo do período que medeia o nosso estudo. Assim em 1770, temos a primeira seca,
seguindo-se outras em 1802, 1806, 1815, 1815, 1829, 1847, 1850, 1854, 1855, 1883. Como
podemos ver são crises intervaladas num máximo de 32 anos e no mínimo de 1 a 3 anos, de que
resulta em média uma crise por decénio. Se tivermos em conta que a cada crise de seca se segue
outra mais prolongada de fome e abandono dos campos com a fuga para a Madeira, teremos então
uma visão do que foram estas crises.

Em 15 de Junho de 1770 o governador João António Correia de Sá em ofício dirigido a Martinho de


Mello e Castro dá conta da deplorável situação dos povos da ilha do Porto Santo em resultado das
prolongadas estiagens, da invasão das areias, da esterilidade do solo, do excesso populacional em
relação aos recursos da região... acentuando a necessidade de lhes acudir com medidas eficazes. Em
27 de Outubro a Câmara da ilha em carta ao mesmo governador faz ver a situação da ilha clamando
auxílio. Prontamente o governador respondeu, seguindo as orientações régias, com um regulamento
preciso de medidas que deu ao capitão Pedro Telles de Menezes, para aí executar, solicitando ao
povo a obediência ao seu representante. A estas medidas se juntaram outras por provisão régia de 13
de Outubro. Mesmo assim ainda em 1783 a situação pouco se havia alterado, o que obrigava, ao
folgazão governador, D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, mandar em diligência o sargento-mor
Manuel da Câmara Bettencourt Noronha e o seu ajudante Diogo Luís Drumond. Em 1829 grave
período de estiagem, provocado por falta de chuvas durante 4 anos consecutivos, provocou nova
crise de fome a que acudiu o governador José Maria Monteiro. Esta estiagem provocou uma grave
quebra na produção do vinho, pois que das 1000 pipas que a ilha produzia entre 1815/6, ficava-se
por 600 em 1829. Em conclusão podemos afirmar que a seca sendo muito prolongada torna-se
lesiva à cultura da vinha, provocando um decréscimo na sua produção, devido ao definhamento das
parreiras. Mas sendo extemporâneas e em determinadas épocas do ano propícias à manutenção da
uva, tornam-se úteis e benéficas à boa qualidade da colheita. Pelo menos assim se exprimia em 1851
nas "Notícias Agrícolas" do "Agricultor Madeirense", quando se aludia que o referido ano era seco
nas freguesias do norte:- "Sítios há onde nunca se viu uva cerejada como este ano, ou seja madura, a
novidade não é das grandes, mas também não das escassas, e os vinhos devem ser excelentes para a
sua qualidade".

Em contraste com as estiagens prolongadas do Porto Santo, temos na ilha da Madeira a afluência
espaçada das aluviões e tempestades que ao longo dos séculos XVIII e XIX assolaram esta: 18 de
Novembro de 1724, 18 de Novembro de 1765, 9 de Outubro de 1803, 26 de Outubro de 1815, 24 de
Outubro de 1842, 19/20 de Novembro de 1848, 5/6 de Janeiro de 1856. De todas estas aluviões os
mais catastróficos e lesivos para a viticultura foram sem dúvida o de 1803, que atingiu toda a ilha e
de modo especial o Funchal, Machico, Santa Cruz, Campanário, Ribeira Brava e Calheta; e o de
1848 que inundou o concelho de Santana, tendo sido arrastadas pelas águas as benfeitorias
produtivas mais importantes. No entanto temos a considerar a acção dos aluviões que alastraram a
cidade do Funchal em 1765, 1803, 1815, 1842, provocando graves danos nas lojas de vinhos,
deteriorando o vinho armazenado. Mais temos a destruição das estufas, muitas delas situadas junto
das ribeiras da cidade. Se face às secas era lícito implorar a clemência e intercessão divina por meio
de preces públicas, com as chuvadas nada havia a fazer para conter a queda das bátegas de chuva,
mais do que fazer preces, o madeirense optou neste domínio pela tomada de medidas que
minorassem os seus efeitos, através de projectos de rearborização, desentulhamento das ribeiras.

ENFRENTAR A NATUREZA E A FÚRIA DAS RIBEIRAS. A orografia da ilha condiciona


de modo evidente a vida dos vicentinos, sendo agravada esta condição com as condições
climáticas. A ilha foi assolada ao longo da história por inúmeras aluviões. Ao norte mercê das
encostas íngremes, da grande quantidade de água, a época invernosa foi sempre um quebra-
cabeças para os seus moradores. A realidade repete-se ao longo do tempo e quase todos os anos é
necessário, após o Inverno, reparar os caminhos, refazer as pontes e levantar as quebradas. Os
séculos XIX e XX são na verdade marcados pelas aluviões. Para o século dezoito não se
registam notícias destas calamidades para além da de 1724 e 1765. É de salientar a primeira
metade do século dezanove com três aluviões de efeitos catastróficos em toda a ilha: 1803, 1815
e 1842. O primeiro assume uma posição cimeira neste conjunto de calamidades que fustigaram a
ilha, tendo em conta o número de mortos, as perdas de bens materiais e a destruição de casas. Os
efeitos nas lojas comerciais foram iguais, sendo de destacar a perda de seis mil pipas de vinho. Já
na presente centúria são notórios os efeitos das aluviões de que se destacam em 1939 na
Madalena do Mar, em 1956 em Santa Cruz e Machico, em 1970 na Ribeira Brava e Serra de
Água e em 1981 no Funchal. Mas o de mais recente e triste memória ocorreu em 1993 no
Funchal.
As aluviões são o símbolo da tragédia que sempre espreitou o madeirense desde o primeiro dia
em que decidiu escolher as terras de aluvião da foz das diversas ribeiras, que riscam os vales da
ilha, para assentar a sua morada. O povoamento da ilha, devido à orografia do terreno faz-se
através das ribeiras que abrem as portas ao assentamento e oferecem as melhores terras de
cultura. Deste modo podemos afirmar que o madeirense sempre viveu com o perigo à espreita.
Nas planícies que marginalizam ou fazem a foz da ribeira está sempre presente nas épocas de
invernia a força da água, enquanto fora do seu alcance expõe-se aos precipícios. As principais
freguesias terem à cabeceira uma ou mais ribeiras. O Funchal, principal assentamento da ilha, é
cortado por três ribeiras: João Gomes, Santa Luzia e S. João. Gaspar Frutuoso refere que: “ ...
deleitoso vale ao mar três grandes e frescas ribeiras, ainda que não tão soberbas, na aparência,
como a de Machico; eram, porém, muito formosas por todas virem acabar ao mar, saídas deste
vale.”

À fúria da água das ribeiras deverá juntar-se o deslizamento de terras, situação constante num
espaço geográfico como a ilha da Madeira marcado por um acentuado declive das encostas.
Várias das fajãs do litoral são prova disso. O testemunho mais antigo é do século XV e anota a
morte trágica de Henrique Alemão, sesmeiro do Paul do Mar considerado o imperador da
Polónia, numa derrocada no Cabo Girão. Nova derrocada ocorreu no mesmo sítio em 1930. Mas
a mais mortífera de todas ocorreu em 1929 na Vargem em S. Vicente. A 6 de Março pelas 10 h
da manhã uma quebrada vitimou 29 famílias e causou danos, avaliados em mais de dois mil
contos. Os dados assim o provam: 40 mortos, perda de 100 palheiros e igual número de cabeças
de gado. O tema correu por toda a ilha e foi manchete, por algum tempo nos jornais locais,
obrigando o Governador Civil a deslocar-se ao concelho a 8 de Março. Não parou por aqui a
fúria do tempo pois que em 28 de Outubro de 1934 e Janeiro de 1952 novas trombas de água se
abateram sobre a ilha provocando elevados prejuízos materiais e a destruição de inúmeras
estradas e pontes, nomeadamente nos concelhos do Norte da Ilha, que só foi possível recuperar
com apoio de subsídios da Junta Geral e do Governo Central. Termina aqui o medo do vicentino
face às ribeiras. Desde então não mais estas transbordaram de forma violenta molestando os
residentes, destruindo caminhos e pontes. O clima parece ter mudado com também a força do
homem para enfrentar a natureza.

Ao homem estava atribuída a dura tarefa proceder ao encanamento das ribeiras e de desviar o
curso das suas águas. A intervenção no sentido de amansar e controlar o curso das ribeiras
acontece desde o século XV mas foi no século XIX com as diversas aluviões que se lançaram as
grandes obras de engenharia. Assim em 1804 chegou à ilha o Engenheiro Reynaldo Oudinot com
o objectivo de proceder ao levantamento das ribeiras da cidade e de apresentar um projecto para
o seu encanamento, sendo seguido por Paulo Dias de Almeida. Todavia a solução com segurança
estava na mudança da cidade para o alto no Parque de Santa Catarina, mas a solução de um
cidade nova não ganhou o necessário consenso, não obstante a repetição da calamidade.
As levadas estabeleciam a ligação entre os cursos das ribeiras e os canaviais, engenhos, moinhos
e serras de água. O sistema permitiu um maior aproveitamento dos socalcos e o alívio do homem
em algumas tarefas, como sejam, o moer do grão ou da cana e o serrar das madeiras. Moinhos,
engenhos e serras convivem pacificamente usufruindo da água que corre na mesma levada. A
estes vieram juntar-se no século XX as centrais hidroeléctricas. A orografia da ilha ao mesmo
tempo que dificultava a condução da água favorecia este aproveitamento, pela força motriz
atribuída pelos declives acentuados.
Este foi um trabalho hercúleo, referido muitas vezes pelos visitantes e recordado com apreço
pelos especialistas, como o Eng. Amaro da Costa:... a levada, de limitadas proporções no início;
mas já a denotar arrojo para mais largos voos indo sempre mais longe e mais acima até aos
recônditos das serranias; furou as montanhas; riscou as muralhas rochosas talhadas a pique em
centenas de metros de altura; debruçou-se nos abismos; venceu as cristas; saltou nos
despenhadeiros; dobrou-se nos refegos das ravinas; amansou-se nas chãs; e, por fim, exausta,
entregou-se a todos, através de uma rede vascular tão densa, que torna maravilhosa a chegada ao
termo. Mas a mingua no fim da caminhada é por vezes tamanha, que dolorosamente contrasta
com tanta luta

0 USO E ABUSO DA ÁGUA. A ilha é abundante em água e lenhas pelo que a cana de açúcar
tem condições para ser promissora. Em face disto as doações de terra não fazem expressa
referencia à repartição da água. Esta, no primeiro momento dá e sobra, os problemas com a sua
falta e a necessidade de regulamentar o seu uso e posse, surgem depois.
Na Madeira a água corria nas ribeiras, em abundância na vertente norte. No sul os caudais eram,
na época estival, quase todos desviados para as levadas. A maior concentração populacional e
aposta agrícola assim o definiram, sendo os cronistas testemunho. O caso mais evidente
encontramos em Gaspar Frutuoso. Seguindo a sua informação podemos afirmar que a existência
ou não de água condicionou o assentamento dos primeiros povoadores em todo o espaço da ilha.
As ribeiras exerceram assim um papel fundamental. Foi por elas que entraram os primeiros
europeus que reconheceram a ilha e nelas se assentaram os primeiros núcleos de povoamento. É,
na verdade, no seu leito e margens que se joga a nossa História. A sua bravura, tão pouco
atemorizou os colonos, como sucedeu com a sua fixação no local da Ribeira Brava, que foi
buscar o nome a isso mesmo. Facto significativo é o de também as principais freguesias terem à
cabeceira uma ou mais ribeiras. O Funchal, principal assentamento da ilha, é cortado por três
ribeiras.
Ao homem estava atribuída a dura tarefa de desviar o curso das ribeiras fazendo com que
movessem engenhos, moinhos e irrigassem os canaviais e demais culturas. Para isso, traçaram
kilómetros de canais para a sua condução, que ficaram conhecidos, na ilha, como levadas. O
sistema permitiu um maior aproveitamento dos socalcos e o alívio do homem em algumas
tarefas, como sejam, o moer do grão e da cana e o serrar das madeiras. Moinhos, engenhos e
serras convivem pacificamente usufruindo da água que corre na mesma levada. A orografia da
ilha ao mesmo tempo que dificultava a condução da água favorecia este aproveitamento, pela
força motriz atribuída pelos declives acentuados.
As águas e nascentes são consideradas, nos primeiros documentos emanados para a ilha, como
domínio público. Assim, o entendia D. João I no capítulo de um regimento dado a João
Gonçalves Zarco onde considerava nesta situação as «fontes, tornos e olhos de agua... praias e
costas do mar, rios e ribeiras». Todavia, a água foi um problema ao longo da História da ilha,
pois desde o começo surgiram açambarcadores a reivindicar para si a posse exclusiva deste bem
comum.
Em 1461 coloca-se a primeira dificuldade nesta repartição das águas, no que o Duque responde
que, o almoxarife mais dois homens ajuramentados, repartam “as aguas a cada hum para seus
açucares e lugares seguindo cada hum merecer”. Mesmo assim, continuaram as demandas sobre
as águas pelo que em 1466” o duque decidiu mandar à ilha, Dinis Anes de Sã, seu ouvidor, com
intuito de resolver esta e outras questões. Aqui o monarca recomendava: “acerca destas aguas
tereis grande cuidado de as repartirdes de guisa que se aproveite toda a terra que se poder
aproveitar guardando nisso justiça e o comum proveito».
Nas áreas de maior concentração populacional e aproveitamento do solo, como foi o caso do
Funchal, a água das ribeiras não era suficiente para suprir as solicitações dos vizinhos. Deste
modo, em 1485 o Duque D. Manuel recomendava que as águas da Ribeira de Santa Luzia fossem
usadas apenas nos engenhos, moinhos e benfeitorias que dela se serviam não podendo ser
desviadas para outro destino. Idêntica recomendação repete-se em 1496”. Note-se que esta
ribeira servia vários engenhos e os moinhos” do capitão do Funchal.
É, todavia, com D. João II que ficaram definidos os direitos sobre a água que perduraram até ao
século XIX”. Por cartas de 7 e 8 de Maio” ficou estabelecido, de uma vez por todas, “que
particular algum tenha direito domínio nem acção nas fontes, olhos e tornos de agua que nas suas
terras nascerem e jamais em tempo algum posam ter nem adquirir posto que sejam senhores das
terras com as quais as fontes não passarão e as não poderão nem ainda por suas terras mudar nem
divertir e correrem de modo, guisa e maneira que tomarão seu caminho e corrente até darem e se
meterem nos rios e ribeiras nas quais juntas as ditas águas que das fontes correrem se tirarão as
levadas». As águas ficavam património comum, sendo distribuídas pelo capitão e oficiais da
câmara, entre todos os proprietários, pois que “sem as águas as terras se não podiam aproveitar”.
A partir daqui ficou estabelecido a água como propriedade pública, sendo o seu usufruto para
aqueles que possuíam terras e delas necessitavam. Todavia, desde finais do século quinze, a água
passou a ser negociada, a exemplo do que sucedia com a terra”. É com o regimento de D.
Sebastião, em 1562 que se processa uma alteração ao sistema primitivo. As águas, numa forma
de reconhecimento e disciplinar a prática corrente, podem ser vendidas ou arrendadas, o que veio
a permitir um fosso entre a propriedade da terra e da água. Contra isto militaram as medidas
pombalinas, levadas a cabo pelo governador José António de Sá Pereira”. O documento de 1493
determina de forma evidente a importância assumida pelas levadas no sistema de distribuição de
águas. Destas há a considerar as públicas e as privadas. As últimas eram de iniciativa particular,
precisando de uma autorização. Neste caso temos em 1495 a licença a Pêro Fernando para tirar
água da Ribeira de Água d’Alto (Ponta Sol).
Uma das tarefas que ocupou os primeiros colonos foi a tiragem das levadas. Por isso elas são os
imemoriais testemunhos do labor do homem insular que ficam na ilha, a exemplo dos
imponentes aquedutos peninsulares”. Em 1496 parece que, ao menos no Funchal, estava
delineado o sistema de regadio pelo que na Ribeira de Santa Luzia não se permitia mais a
abertura de novas levadas ou a tiragem da água, acima das já existentes. Esta situação resulta da
pretensão de alguns heréus de um destas quererem tirá-la mais acima das já existentes no sentido
de aproveitar terras acabadas de arrotear. Mas, a coroa insiste na proibição em nova levada em
cota superior”, punindo os infractores com pesadas penas. Na verdade, segundo nos conta Gaspar
Frutuoso, a Ribeira de Santa Luzia servia várias levadas, sendo uma delas para os cinco moinhos
do capitão e um engenho. Mas, o Funchal ficou servido, ainda, por outras como a dos Piornais,
do Pico do Cardo e Castelejo. É de salientar que esta água das levadas tinha um elevado
aproveitamento, pois, para além do seu uso industrial e do regadio, era canalizada para o
consumo das casas e limpeza das ruas da cidade. Os poços existiam um pouco por toda a
cidade”, mas não eram suficientes para as suas necessidades. Destes, destaca-se aquele que
servia toda a população em Santa Maria, situado no hoje Largo do Poço, construído por Afonso
Fernandes.
Em 1566, após o assalto dos franceses à cidade, as ruas ficaram imundas pelo que “se soltaram
depois as levadas, que regam os açúcares, e lavaram toda aquela sujidade”. De acordo com as
posturas sabe-se que o município procedia à limpeza das ruas da cidade entre as tardes de sábado
e de domingo, ficando assim proibido o uso das águas das ribeiras da cidade”.
Os conventos, como os dos jesuítas, de Santa Clara e S. Francisco eram servidos por água destas
levadas. As freiras de Santa Clara tinham um aqueduto próprio que em 1663 foi danificado o que
resultou grande prejuízo “por não terem água alguma de que pudessem beber e cozinhar e se
servirem para o fabrico de seus doces”. Fora do Funchal, Gaspar Frutuoso, refere a levada
mandada construir por Rafael Catanho que servia Machico e Caniçal, em que gastou cem mil
cruzados. Também na Ribeira dos Socorridos temos outras levadas de iniciativa particular: a do
engenho de Luís de Noronha que lhe custou 20.000 cruzados; a de António Correia para as terras
da Torrinha. Outro problema, não menos importante, foi o da partição da água. Desde o início
que a coroa recomendara todo o cuidado nisso, ficando com tal encargo o almoxarife, auxiliado
por dois homens escolhidos”. Sabemos que estas eram distribuídas por toda a semana, excepto o
domingo que ficava comum a todos, pois tal como refere a coroa em 1491 era “contra
comçiencia Na Ponta de Sol, a vereação convocava todos os anos os heréus para a limpeza das
duas levadas existentes e eleição dos levadeiros. Estes, depois de eleitos, deveriam jurar perante
os vereadores que procederiam bem à distribuição da água e limpeza das levadas.
A manutenção das levadas foi outra preocupação a que o capitão deveria tomar em conta,
conforme ordem de D. Catarina de 1562. Mais se recomendava que aqueles que não tivessem
necessidade das águas que dispunham não as podiam arrendar a ninguém, não ser para se regar
os canaviais. Apenas, os que haviam tirado levadas próprias podiam dar ou vender as águas.
Neste momento a coroa apoiou a reparação das levadas da Ribeira dos Socorridos, dos Piornais e
Castelejo com o intuito de incrementar de novo a cultura dos canaviais, que tinham preferência
nesta nova redistribuição das águas.
A tradição de traçar levadas fez com que os madeirenses se tivessem transformado nos seus
exímios construtores, levando a tecnologia para todo o lado onde se fixaram. Primeiro, foi as
Canárias e, depois, na América. Esta perícia e engenho dos madeirenses está evidenciada na
reclamação de Afonso de Albuquerque para que o rei lhe mandasse madeirenses «que cortavam
as serras pera fazerem levadas, com que se regam as canas de açúcar”, para desviar o curso do
rio Nilo”.
O plano de levadas da ilha não ficou concluído no século XVII foi apenas adiado pela afirmação
da vinha, uma cultura de sequeiro, e, por isso mesmo, quando a cana retornou à ilha, no século
XIX, de novo se pôs a questão das levadas para irrigar os canaviais e mover os engenhos. A
centúria oitocentista foi marcada por uma forte aposta no delineamento de levadas para o regadio
de novas áreas. É de salientar a levada do Rabaçal cuja concretização foi morosa. Em 1823 era
evidente a necessidade desta obra, pois era considerada uma mais valia para a ilha pela
possibilidade que dava de regar 1440 alqueires de terra. Todavia as obras iniciaram-se em 1834 e
só ficou concluída em 1890.
A água adquire de novo uma dimensão económica importante, levando as autoridades a nova
intervenção no sentido da sua regulamentação e do traçar de novas levadas para alargar a área de
regadio e, por consequência, dos canaviais. É de salientar que o regime jurídico das águas,
estabelecido em 1493 por D. João II, perdurou até 1867, altura em que foi aprovado um novo
Código Civil. A partir de então água e terra são duas realidades distintas, vindo a agravar a
situação, por ser favorável à especulação, situação que foi atacada por leis de 1914 e 1931. Seis
anos após o governo avançou com uma política específica da água que chegou à Madeira em
1939. A criação da Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira
(1943) foi o ponto de partida para esta mudança na política da água e das áreas de regadio na
ilha.
Dos objectivos da comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidroeléctricos da Madeira,
donde se destacou a iniciativa do Eng. Amaro da Costa, releva-se a intenção de estabelecer um
amplo sistema de regadio, de construções de centrais hidroeléctricas. As obras iniciaram-se
durante a guerra, e por isso ocuparam muitos desempregados, mas só se concluíram após o
conflito, nos inícios da década de cinquenta: em 1929 foi a abertura do sistema de regadio de
Machico, Caniçal, em 1952 a levada do Norte e a Central Salazar e 1955 na Calheta.
As levadas são ainda hoje uma constante na paisagem madeirense, transformando-se em locais
aprazíveis para os passeios a pé. Note-se que elas, desde muito cedo, despertaram a atenção dos
visitantes, que não se cansam em louvar o trabalho hercúleo do madeirense na sua construção.

A ÁGUA E AS INDUSTRIAS. A água, mais do que a sua indispensável utilização no regadio,


tinha na ilha uma função industrial relevante. O declive das encostas, sobranceiras às ribeiras,
aliado à habilidade do homem na sua canalização pelas levadas, conduziu à grande aposta na sua
força motriz: moinhos ou azenhas, engenhos e serras. O progresso das indústrias açucareira e
madeiras deve-lhe muito. Note-se que no início da ocupação da ilha estes eram propriedade do
senhorio da ilha que depois cedeu parte dos privilégios aos capitães nas suas capitanias. Desta
forma o controle dos meios de produção era apertado e os proventos da sua exploração uma das
mais destacadas fontes de rendimento. O incremento da cultura da cana de açúcar obrigou a uma
mudança nesta situação, cedendo o senhorio o seu direito de propriedade em favor do progresso
da cultura e em contrapartida de um direito. Por arroba de açúcar laborado. Já no caso dos
moinhos o privilégio mantêm-se nas mãos dos capitães e seus descendentes até à Revolução
Liberal, pois uma lei de 1821 acabou com os direitos banais.

AS SERRAS DE ÁGUA. A par dos engenhos temos as serras de água, que não são criação
madeirense, pois a tecnologia foi importada do reino”. Estas surgem, por vezes ligadas aos
engenhos de açúcar. É o caso de Diogo de Teive em 1454 com ambos engenhos na Ribeira de
Santa Luzia, então conhecida como ribeira da serra de água e em 1492 de Bartolomeu de Paiva
na Ribeira de S. Bartolomeu. Elas tiveram um grande incremento no início da ocupação da ilha,
fruto da exploração das madeiras, para exportação ao reino, uso nos engenhos e construção de
habitações. Esta foi, aliás, a primeira riqueza com que os primeiros colonos se depararam. Deste
modo, nas cartas de doação das capitanias esta é considerada uma fonte de receita para o capitão,
que recebe duas tábuas por semana ou dois marcos de prata ao ano, e senhorio, com a dízima
disso.
As serras de água existiram em toda a ilha, em especial no recinto da capitania de Machico, que
detinha uma importante mancha florestal. Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI, refere aí
cinco em laboração, de que descreve a do Faial: Está nesta freguesia uma serra de água, que foi
um grande e proveitoso engenho, em que dois ou três homens chegam por engenho um pau de
vinte palmos de comprido e dois e três de largo à serra, e, por arte, um só homem, que é o
serrador, com um só pé (como faz o oleiro, quando faz a loiça) leva o pau avante e a serra
sempre vai cortando e, como chega ao cabo com o fio, com o mesmo pé dá para trás, fazendo
tornar o pau todo, e torna a serra a tomar outro fio; de maneira que quem vir esta obra julgará por
muito grande e necessária invenção a serra de água naquela ilha, onde não era possível
serrarem-se tão grandes paus, como nela há, com serra de braços, nem tanta soma de tabuado,
como se faz para caixas de açúcar, que se fazem muitas, e para outras do mais serviço, que vem
ser cada ano muito grande soma.”
Foi, na realidade, no Norte da ilha que as mesmas persistiram nestes cinco séculos. Ainda hoje,
em S. Jorge, são visíveis alguns vestígios desta indústria, onde ainda funciona uma. Para além
disso a sua memória perpetua-se na designação atribuída a uma freguesia e a algumas localidades
na Calheta, Seixal e S. Vicente.

AS AZENHAS e ATAFONAS. A importância dos cereais na alimentação na dieta alimentar dos


madeirenses desde a ocupação da ilha conduziu à valorização dos meios de transformação destes
em farinha. No arquipélago assinalam-se quatro processos distintos: os moinhos de mão,
atafonas, azenhas e moinhos de vento. Aqui daremos o merecido destaque às azenhas. Até 1821
os moinhos continuam a ser um privilégio exclusivo dos capitães do donatário. Resquício disso é
o largo dos Moinhos no Funchal onde o capitão detinha um conjunto de azenhas que se serviam
da água da ribeira de Santa Luzia. O último moinho foi destruído em 1910 e hoje só resta a
memória na toponímia dos arruamentos do local. Na verdade de acordo com as cartas de doação
os moinhos ficavam em poder dos capitães que cobravam sobre todos os que aí moessem os
cereais a maquia, isto é um alqueire em doze. Desde o início do povoamento que estão
documentadas as insistentes queixas dos moradores pelo mau funcionamento destas infra-
estruturas. Em 1461 era evidente a falta e má qualidade do serviço pelo que o senhorio, o Infante
D. Fernando, determinou o melhor cuidado neste serviço. Esta situação deverá ter perdurado até
1821, altura em que se abriu à iniciativa particular a construção de novos moinhos deste modo
em 1863 temos em toda a ilha 365 moinhos, sendo 79 no Funchal.

A par das azenhas é de notar a presença das atafonas e dos moinhos de vento, principalmente na
ilha do Porto Santo. O facto de esta ilha não dispor de cursos de água conduziu. Mas estas
também existiram na Madeira referindo Gaspar Frutuoso que o capitão tinha uma dentro da
Fortaleza de S. Lourenço. É de salientar na primeira metade do século XVI a autorização dada
pela coroa para que dois porto-santenses pudessem concretizar as suas inovações tecnológicas na
construção de atafonas no Porto Santo: João Henrique(1501) e Afonso Garro(1545). Este
apresentava um projecto de um complexo de moagem servido de quatro moinhos que tanto
podiam ser movidos por animais ou água. Estas perduraram até ao nosso século sendo ainda
visível nos anos cinquenta duas na Serra de Fora e no Campo de Cima. Mas foi dos moinhos de
vento que ficou o registo até aos nossos dias. Em 1791 surge o projecto de uma unidade
municipal que só foi concretizada seis anos depois e que teve dificuldades em ganhar a confiança
dos habitantes da ilha. Em 1827 eram bem visíveis do mar os dois únicos moinhos de vento e
quase sem anos depois, em 1927, temos 29 moinhos activos em toda a ilha, cifrando-se na
década de cinquenta em 23 com as velhas defraldadas.
No século dezanove surgiram algumas unidades industriais motorizadas e depois o advento e a
expansão da energia eléctrica a partir dos anos quarenta conduziu à electrificação de muitas
unidades. Aliás em princípios do século é evidente uma tendência para a centralização da
industria de moagem nas unidades que souberam inovar. É o caso da Companhia Insular de
Moinhos no Funchal, alvo da fúria dos populares em 1931 face ao decreto que regulava o
comércio e transformação dos cereais. Esta começou por ser conhecida com a Fábrica de
Moagem dos Lavradores, sendo propriedade da família Blandy. É de salientar ainda a firma da
viúva de Romano Gomes & Filhos Lda dedicada à moagem do milho conjuntamente com a de
Marques Teixeira & Co Lda na Ponta de Sol.

OS ENGENHOS. As técnicas de cultivo e transformação da cana atravessaram o Atlântico. Na


Madeira as condições geo-hidrográficas foram propícias à generalização dos engenhos de água,
de que os madeirenses foram exímios criadores. 0 primeiro foi patenteado em 1452 por Diogo de
Teive, o que levou alguns a apontarem este como o primeiro engenho de açúcar movido a água
12. Aliás, na ilha estavam criadas as condições para a afirmação da cultura: inúmeros cursos de
água e de uma vasta área de floresta, disponibilizando lenha para as fornalhas e madeira de pau
branco para a construção dos eixos do engenho.
Não existem dados exactos sobre os engenhos industriais movidos pela força motriz da água. A
primeira informação possível sobre estes engenhos temo-la no estimo de 149411 em que são
mencionados dezasseis. Destes, apenas em onze se conhece o proprietário: Gonçalo Anes de
Avelossa, João Afonso dos Bois, Fernão Lopes da Lombada, Filipa Gil, Fernão Domingues do
Arco, Álvaro Eanes do Arco, Álvaro de Figueira, Comes Pacheco, Pedro Álvares, Álvaro Eanes
do Arco, Fernão Comes. Mais tarde, em finais do século XVI, surge nova relação dos engenhos,
apresentada por Gaspar Frutuoso 14. No total, são 34 engenhos em toda a ilha, numa extensa
área da vertente sul, que vai desde o Porto da Cruz à Calheta.
A partir do século XVII é reduzido o número de engenhos em laboração de modo que na década
de quarenta houve necessidade de levar a cabo um plano de reconstrução com alguns incentivos
financeiros por parte da coroa. Mas cedo se esvaneceu esta esperança de recuperação da cultura,
ficando estes de novo votados ao abandono. No século XVIII, só está referenciado um destes
engenhos. Na segunda metade do século XIX, com a nova aposta na cultura da cana, os
engenhos de água renascem em concorrência com os movidos a vapor. Em 1907, de acordo com
o relatório do engenheiro Vitorino José dos Santos”, existiam na ilha 47 fábricas, sendo 26 a
água, 3 mistas e 18 a vapor. É de salientar que o Funchal surge apenas com engenhos movidos a
vapor, sendo os de água, maioritariamente, da Ponta de Sol, S. Vicente e Santana.
Os cronistas, excepção feita ao Porto Santo, não se cansam de enunciar duas riquezas
fundamentais para fazer medrar os canaviais e a industria subsequente. A ilha é abundante em
água e lenhas pelo que a cana de açúcar tem condições para ser promissora. Em face disto as
doações de terra não fazem expressa referencia à repartição da água. Esta, no primeiro momento
dá e sobra os problemas com a sua falta, e a necessidade de regulamentar o seu uso e posse,
surgem num segundo momento. Tendo em conta a importância que a água assume para a cultura
a safra do açúcar é necessário não esquecer a forma da sua distribuição e posse.
Ao homem estava atribuída a dura tarefa de desviar o curso das ribeiras fazendo com que as suas
movessem engenhos, moinhos e irrigar os canaviais e demais culturas. Para isso, traçaram
kilómetros de canais para a sua condução, que ficaram conhecidos, na ilha, como levadas. O
sistema permitiu um maior aproveitamento dos socalcos e o alívio do homem em algumas
tarefas, como sejam, o moer do grão e da cana e o serrar das madeiras. Moinhos, engenhos e
serras convivem pacificamente usufruindo da água que corre na mesma levada. A orografia da
ilha ao mesmo tempo que dificultava a condução da água favorecia este aproveitamento, pela
força motriz atribuída pelos declives acentuados.
A moenda e o consequente processo de transformação da guarapa em açúcar, mel, álcool ou
aguardente projectaram as áreas produtoras de canaviais para a linha da frente das inovações
técnicas, no sentido de corresponderem às cada vez maiores exigências. A madeira e o metal são
a matéria-prima que dá forma a capacidade inventiva dos senhores de canaviais e engenhos. Na
moenda da cana utilizaram-se vários meios técnicos comuns ao mundo mediterrânico. A
disponibilidade de recursos hídricos conduziu à generalização do engenho de água. Na Madeira,
o primeiro que temos conhecimento foi patenteado em 1452 por Diogo de Teive. Este processo
resultou apenas nas áreas onde foi possível dispor da força motriz da água, enquanto noutros fez-
se uso da força animal ou humana. Os últimos eram conhecidos como trapiches ou almanjaras.
Não conhecemos qualquer dado que permita esclarecer os aspectos técnicos deste engenho.
Apenas se sabe, segundo Giulio Landi, que na década de trinta do século XVI funcionava um
com o sistema semelhante ao usado no fabrico de azeite: “Os lugares onde com enorme
actividade e habilidade se fabrica o açúcar estão em grandes herdades, e o processo é o seguinte:
primeiramente, depois que as canas cortadas foram levadas para os lugares acima referidos,
põem-nos debaixo de uma mó movida a água, a qual triturando e esmagando a cana, extrai-lhes
todo o suco”.
Uma das questões que mais tem gerado polémica prende-se com a evolução da tecnologia do
fabrico do açúcar, concretamente a passagem do trapiche ao engenho de cilindros. O primitivo
Trapettum era usado na Roma antiga para triturar azeitonas e sumagre, sendo, segundo Plínio,
inventado por Aristreu, Deus dos Pastores. Mas este tornou-se um meio pouco eficaz nas grandes
plantações, tendo-lhe sucedido o engenho de eixo e cilindros. É aqui que as opiniões divergem.
Existe uma versão que aponta esta evolução como uma descoberta mediterrânica: Noel Derr e F.
O. Von Lippmann atribuíram a descoberta a Pietro Speciale, prefeito da Sicília; a Historiografia
castelhana encara isso como um invento de Gonzalo de Veloza, vizinho da ilha de La Palma, que
teria apresentado o seu invento em 1515 na ilha de S. Domingos. David Ferreira Gouveia refere
esta como resultado do invento do madeirense Diogo de Teive, patenteado em 1452. Outros
apontam para a sua origem chinesa. O engenho de três eixos surge mais tarde no Brasil,
considerado também uma invenção portuguesa, inegavelmente ligada aos madeirenses aí
radicados.
Na Madeira a primeira referência aos eixos para o engenho data já do último quartel do século
XV. Em 1477 Álvaro Lopes tem autorização do capitão do Funchal para que “faça hum engenho
de fazer açúcar que seja de moo ou d’alçapremas, ou doutra arte...o qual engenho será de agua
com sua casa e casa de caldeiras...”. Depois, em 1485, D. Manuel isentava da dizima “quaisquer
teixos que forem necessários para eixos esteios casas latadas dos engenhos e tapumes...”. Em
1505 Valentim Fernandes refere que o pau branco era usado no fabrico de “eixos e parafusos
para os engenhos de açúcar”. A isto associa-se o inventário do engenho de António Teixeira, no
Porto da Cruz em que são referidos como aprestos: rodas eixos, prensas, fornalhas espeques (...).
A palavra trapiche entrou depois no vocabulário do açúcar a designar todos os tipos de engenhos
de cilindros usados para moer cana. Nos arredores do Funchal existe uma localidade com este
nome, o que prova ter existido aí um engenho deste tipo. As condições geo-hidrográficas foram
propícias à generalização dos engenhos de água, de que os madeirenses foram exímios criadores.
Aliás, aqui estavam criadas as condições para a afirmação da cultura. Enquanto a primeira
desfrutava de inúmeros cursos de água e de uma vasta área de floresta, disponibilizando lenha
para as fornalhas e madeira de pau branco para a construção dos eixos do engenho.
Toda a animação sócio-económica gerada pelo açúcar foi dominada pelo engenho, mas isto não
significou que a existência de canaviais fosse sempre sinónimo da presença próxima de um
engenho. Aqui, mais do que no Brasil, são inúmeros os proprietários incapazes de dispor de
meios financeiros para montar semelhante estrutura industrial e por isso socorriam-se dos
serviços de outrem. No estimo da produção da capitania do Funchal para o ano de 1494 são
referenciados apenas 14 engenhos para um total de 209 usufrutuários, dispondo de 431 canaviais.
Não é fácil estabelecer o número exacto de engenhos que laboraram na ilhas As informações
disponíveis são, em muitos dos casos, díspares. Em 1494 são referenciados apenas 14 engenhos,
quando noutro documento de 1493 se dava conta da existência de 80 mestres de açúcar. Note-se
ainda que Edmund von Lippermann refere para o Funchal 150 engenhos no início do século
XVI, número que não se coaduna com os valores razoáveis para a extensão arável da ilha e a
produção dos canaviais. Depois, em finais do século XVI, Gaspar Frutuoso refere-nos 34
engenhos, sendo nove na capitania de Machico e os restantes na do Funchal. A sua localização
geográfica permite aferir das áreas de maior incidência da cultura no século XVI. No século
dezassete o número de engenhos era reduzido. Assim, em 1602, Pyrard de Laval refere a
existência de 7 a 8 engenhos em laboração. Esta aposta na cultura levou ao necessário o
estabelecimento de alguns incentivos à sua reparação, como sucedeu em 1649. Nesta década
fala-se apenas de quatro engenhos, destes dois foram construídos em 1650. Daí derivaram,
enormes dificuldades em conseguir moer a cana por falta de engenhos suficientes. No Funchal o
de André de Betancor há três anos que não funcionava e seria difícil que o fizesse pelo estado em
que se encontrava. Ademais, do abandono dos engenhos registava-se o das levadas como sucedia
com a do Pico do Cardo e Castelejo em S. Martinho que há trinta anos não era tirada. Para repor
a cultura a coroa preparou um plano de recuperação dos engenhos, com empréstimos e a isenção
do pagamento do quinto por cinco anos. Estes concentravam-se no Funchal e Câmara de Lobos,
o que implicava redobradas dificuldades para a maioria dos lavradores das partes da Calheta,
Ponta de Sol e Ribeira Brava.
O preço de montagem de semelhante estrutura industrial não estava ao nível da bolsa de todos os
proprietários. De acordo com a avaliação, para inventário, do engenho de António Teixeira no
Porto La Cruz em 1535 esta benfeitoria estava avaliada em duzentos mil reais. Noutro
documento de 1547 refere-se que os canaviais, engenho e água de servidão dos mesmos orçavam
os 461.000 reais. Mas em 1600 João Berte de Almeida vendeu a Pedro Gonçalves da Câmara, no
Funchal, um engenho pelo valor de 700.000 reais. Em 1644 o engenho de Gaspar Betencourt na
Ribeira dos Socorridos foi avaliado em 500.000 rs e no ano imediato o engenho de Baltazar
Varela de Lira foi vendido por 422.000 rs.
Os valores de produção dos engenhos insulares são muito distintos dos americanos. Para a
Madeira em finais do século XV são referenciados apenas 12 engenhos para um total de 233
proprietários de canaviais. Estes situam-se todos nas partes do fundo, não havendo qualquer
referência para os que funcionavam na área do Caniço a Câmara de Lobos. Tomando em conta,
apenas as Partes do Fundo, nota-se que a cada engenho estariam atribuídas mais de cinco mil
arrobas, valor elevado se tivermos em conta o estado da tecnologia usada. Também é de referir
que estes proprietários de engenho não se situam entre os mais importantes detentores de
canaviais. Apenas Fernão Lopes surge com 1600 arrobas, havendo caso de lavradores com
valores superiores que não são proprietários de engenho. Note-se, ainda, que Fernão Lopes
apresentava mais 2000 arrobas em conjunto com João Esmeraldo. Na primeira metade do século
XVI estes valores desceram a mais de um terço, pois a média é de 1478 arrobas. Por outro lado é
de salientar que os grandes proprietários de canaviais não são sinónimo de engenho. No século
dezasseis alguns situam-se entre os principais produtores, mas a maioria surge com valores de
produção muito inferiores, como é o caso de João de Ornelas que em 1530 declarou apenas 70
arrobas de açúcar no Funchal. Deste modo podemos afirmar que estamos perante duas realidades
distintas que geram uma dinâmica particular na estrutura produtiva da cana de açúcar: os
proprietários de canaviais e os de engenho.
Com o decorrer dos anos escasseiam os engenhos, mas também os canaviais. Assim em 1698
insiste-se na escassez de engenhos, em 1730 refere-se a existência de poucos, enquanto no
período de 1750 a 1782 é referenciado apenas um engenho em laboração. Durante o século
XVIII e até princípios da centúria seguinte existiu apenas um engenho em funcionamento à
Ribeira dos Socorridos. A partir da década de cinquenta o panorama é distinto e a cana volta de
novo a ocupar um lugar de destaque, ocupando ½ da superfície cultivada em 1850. Deste modo
aumenta o número de engenhos, sendo referenciado em 1851 quatro fábricas de refinação de
açúcar, quatro engenhos de moer cana e três fábricas de aguardente. Em Câmara de Lobos a
cultura teve grande incremento uma vez que são referenciados três novos engenhos em 1854.
Esta situação alastrou a toda a ilha e levou a promoção de novos engenhos ou à reactivação de
antigos, uma vez que em 1856 temos já 80 e 10 fábricas de destilar aguardente. Aqui há que
distinguir as fábricas de moer cana e os engenhos para fabrico de açúcar e destilação de
aguardente. Os engenhos de moer apresentavam duas rodas na disposição horizontal, enquanto
os movidos por bois tinham estas na posição vertical.

Os séculos XIX e XX marcam o momento da grande inovação tecnológica dos engenhos e da


forma de fabrico do açúcar. A revolução industrial foi provocada pela abolição da escravatura e
pela crise que atingiu o mercado internacional do açúcar a partir de 1880. O uso de máquina a
vapor teve lugar em Jamaica em 1768 mas foi só a partir de meados do século XIX que a mesma
se generalizou. Esta inovação técnica é favorecida pela concentração destas estruturas
industriais, resultado de uma política governamental que tem na década de vinte da presente
centúria a sua máxima expressão. No Brasil deu origem aos chamados engenhos centrais,
enquanto na Madeira foi o princípio da total afirmação do engenho Hinton. De acordo com D.
João da Câmara Leme o avanço da cultura na ilha só será possível com “a fundação de fábricas
com os aparelhos modernos e aperfeiçoados”. Enquadrava-se neste espírito a Companhia Fabril
de Açúcar Madeirense criada em 1866 e inaugurada em 1873, que se saldou num verdadeiro
fracasso e motivo de acesa polémica. Por outro lado é de salientar as iniciativas tecnológicas do
próprio D. João da Câmara Leme que em 1875 apresentou o seu novo invento de aproveitamento
do açúcar que fica no bagaço nomeadamente usado por W. Hinton. As inovações introduzidas
por este último ocorreram após a licença de 1872 para a construção de uma fábrica de extracção
e cristalização de açúcar.
A política de proteccionismo e favorecimento do engenho do Torreão afastou todos os demais
desta industria, levando a sua maioria ao encerramento. Em 1934 um decreto estabelece
claramente essa situação: proíbe-se a construção de mais engenhos até 1953 e os demais
existentes não podiam laborar açúcar, actividade exclusiva do engenho do Torreão, apenas são
autorizados os melhoramentos. Pior foi o que sucedeu em 1954 com o decreto que determina a
concentração de todos os fabricantes de aguardente em apenas três fábricas. Os engenhos do
norte ficaram reunidos na companhia dos engenhos do norte com sede no Porto da Cruz.
O preço de montagem de semelhante estrutura industrial não estava ao nível da bolsa de todos os
proprietários. Em 1535, de acordo com a avaliação, para inventário, o engenho de António
Teixeira no Porto da Cruz estava avaliado em duzentos mil reais. Noutro documento de 1547
refere-se que os canaviais, engenho e água de servidão dos mesmos orçavam os 461.000 reais.
Mas em 1600 João Berte de Almeida vendeu a Pedro Gonçalves da Câmara, no Funchal, um
engenho pelo valor de 700.000 reais. Em 1644 o engenho de Gaspar Betencourt na Ribeira dos
Socorridos foi avaliado em 500.000 rs e no ano imediato o engenho de Baltasar Varela de Lira
foi vendido por 422.000 rs. O primeiro deverá ser o mesmo que em 1780 pertencia a D.
Madalena Guiomar de Sá Vilhena, que o arrendou ao capitão Francisco Esmeraldo Betencourt
por 10.000 réis ano.
Para os séculos XIX e XX a construção de um engenho para fabrico de açúcar, de acordo com as
inovações tecnológicas, era uma aposta impossível para qualquer industrial caso não fossem
garantidos os financiamentos e apoios governamentais. Esta neste caso o favorecimento dado ao
engenho do Torreão, que levou ao quase monopólio da sua laboração. Daqui resultou que a
maioria apostou em manter a tecnologia tradicional, servindo-se da tracção animal e da força
motriz da água.
A situação arcaica das fabricas de moer cana era intolerável perante o incessante aumento da
produção, por isso foi necessário a aposta num estabelecimento moderno, capaz de minorar os
custos de laboração e de corresponder à oferta de cana. Enquadra-se neste objectivo a novel
Companhia de Açúcar Madeirense, criada em 1868. Por outro lado, tendo em conta a grande
dificuldade do fabrico do açúcar e os elevados custos do investimento, denota-se nesta época
dois tipos de complexos: para produção de açúcar e destilação de aguardente. Em meados do
século a distinção entre a moenda da cana, o fabrico de açúcar e aguardente é claro. A partir de
então a tendência foi para a aposta nas fábricas de destilação de aguardente, tendo em conta o
atrás referido e o facto da sua procura para o consumo corrente e no processo de vinificação.
Destas temos indicações dos custos da sua instalação. Em 1857 Diogo de Ornelas Frazão gastou
14.3000.000 réis na construção de uma fábrica de aguardente no estreito da Calheta e no ano
imediato o Conde Carvalhal montou engenho semelhante no Paul do Mar por 8.800.000 réis. De
acordo com inventário industrial feito em 1863 é possível fazer uma ideia das infraestruturais
existentes e do seu valor.

AS CENTRAIS HIDROELÉCTRICAS. A orografia da ilha foi propícia à utilização da força


motriz da água. Isto aconteceu desde o século XV ao nível agrícola e a partir do nosso século
assumiu outra função para a produção de energia hidroeléctrica. As primeiras experiências são de
iniciativa particular e acontecem no meio rural. As pequenas centrais hidroeléctricas surgiram
nos Canhas, Ponta de Sol, Porto Moniz, S. Vicente e Boaventura.
S. Vicente foi um concelho pioneiro na utilização deste serviço, pois desde muito cedo tivemos
algumas iniciativas particulares. A primeira tentativa data de 1917, altura em que Benjamim
Teixeira de Aguiar e João Francisco de Andrade solicitaram à Câmara a cedência da água da
levada velha das Feiteiras para montagem de uma turbina hidráulica para o fornecimento de
energia eléctrica. A este junta-se o do Dr. Gregório Dinis, facultativo do concelho, que por esta
altura deveria ter montado uma central hidroeléctrica no sítio do Pé de Corrida, com material
importado directamente de Alemanha. A Central produzia energia para iluminação das ruas do
sítio das Feiteiras a casa do proprietário e alguns vizinhos e serragem de Carlos França, que
funcionava no sítio do Teatro, e outra do próprio proprietário junto da casa de habitação.

Em Novembro de 1931 a Vereação vicentina manifestava-se interessada numa instalação de


energia eléctrica para iluminação da Vila. Na mira deveria estar a central do Dr. Gregório Dinis,
que faleceu em 20 de Dezembro desse ano. Tanto assim era que em Dezembro de 1932 a Câmara
decide negociar com a família e o Banco Nacional Ultramarino a sua compra. A 5 de Março de
1933 a Vereação, mediante proposta do seu presidente, João Nunes de Freitas, decidiu adquirir a
central hidroeléctrica do sítio da Corrida e sua rede, solicitando para o efeito o apoio financeiro
da Junta Geral, onde se salientava "a necessidade e vantagens de aproveitar uma tal oportunidade
de realização de um tão grande benefício público". Para essa compra a câmara necessitava de
100.000$00, mas a Junta Geral só avançou com um décimo pelo que o processo se foi atrasando.
Entretanto a central havia já sido tomada pelo Banco Nacional Ultramarino por hipoteca,
decorrendo as negociações da venda com esta entidade. A câmara em 1937 ofereceu apenas
40.000$00 o que não satisfez os responsáveis do banco e levou ao seu desmantelamento e venda
para a Ponta de Sol.

Ainda, na freguesia de S. Vicente a tradição popular e alguns vestígios evidentes testemunham a


existência de outras quatro pequenas centrais para usufruto privado: Cooperativa dos Lacticínios
do Norte no Passassol, Manuel Filipe de Andrade no Passo, Manuel Francisco Faria na Vargem e
José Martinho de Freitas nos Lameiros. Em Vereação apenas está documentada outra iniciativa
mas em Boaventura para fornecimento de energia eléctrica à Igreja paroquial. Sabemos da sua
existência pelo simples facto de a estrada municipal entre S. Cristóvão e a Achada do
Castanheiro ter atravessado a sua conduta de água1. Isto obrigou a um desvio da conduta, no que
reverteu numa quebra de rendimento na produção de energia, pelo que o pároco solicitou uma
indemnização.
A iniciativa particular foi o incentivo para o governo avançar na década de quarenta com um
plano de aproveitamento hidroeléctrico da ilha da Madeira, nomeado para o efeito um grupo de
trabalho que depois se transformou em comissão para a execução do plano estabelecido. A
Comissão tinha como missão proceder à electrificação do arquipélago, socorrendo-se da energia
produzia pelas centrais. Em 1953 foram inauguradas as primeiras centrais hidroeléctricas na
Serra de Água e Calheta e em 1962 tivemos o início dos trabalhos da Fajã da Nogueira(1971) e
Ribeira da Janela. Concomitante com isto procedeu-se de forma faseada à electrificação rural da
ilha, plano que só ficou concluída na década de oitenta. Depois disto tivemos a central de
Inverno da vila da Calheta(1990) e central dos Socorridos.
Ainda no sentido do aproveitamento das fontes de energia não-poluente é de destacar o
aproveitamento da energia eólica com a construção dos parques do Paul da Serra e Caniçal.

1. Vereação de 9 de Maio de 1963.


A TECNOLOGIA DA VINIFICAÇÃO- DO LAGAR AO CANTEIRO. A cultura da vinha
conduziu igualmente ao desenvolvimento de uma tecnologia adequada à valorização sócio-
económica da cultura. Várias actividades artesanais giram em torno dos lagares e adegas.
Primeiro a construção do lagar estrutura imprescindível para início do processo, depois, a
construção de pipas e o prolongado sistema de vinificação do mosto.
A presença do lagar foi, durante muito tempo, sinónimo de uma importante área de vinhas.
Note-se que nem todos os viticultores tinham meios para o dispor e que a maior parte dos
caseiros se serviam do lagar do seu senhor. O seu usufruto implicava o pagamento de uma taxa,
conhecida na Idade Média como lagaragem. Hoje o lagar é uma peça de museu, sendo
substituído pela moderna tecnologia, mas tempos houve em que ele era um instrumento
imprescindível para o fabrico do vinho. Na Madeira está documentada a presença de três tipos: 1.
as lagariças de pedra, onde o cocho é escavado na rocha, dispondo de vara e fuso em madeira
para exercer pressão sobre o bagaço; 2. lagariças de madeira, em que o cocho é escavado num
tronco de madeira; 3. o lagar de madeira calafetada. Depois, mais próximo de nós foram estes
lagares substituídos por outros em cimento, prensas manuais e mecânicas. Hoje a ilha dispõe já
da mais avançada tecnologia para o fabrico do vinho. Lagares ou prensas existem para a
laboração do vinho caseiro.
Feito o vinho no lagar era depois transportado às adegas pelos carreteiros em borrachos (uma
pele de cabra curtida e voltada do avesso) . Muitas vezes era transportado directamente ao
Funchal, por via marítima ou terrestre ficando aí a fermentar nas grandes lojas. Temos três fontes
que comprovam de modo directo o que vimos afirmando e explicitam as razões de tal
procedimento:
A 1ª é-nos dada num documento de 1777, em que se salienta que na ilha não se procede de modo
idêntico como no reino:- “não se praticam as colheitas como no reino que vão passando dos
lagares a encubar nas adegas, mas como as terras estão aqui divididas em porções módicas de
colonos, estes pisando suas módicas porções que logo imediatamente conduzem a meia parte
respectiva ao senhorio para a cidade, nem dão lugar a tirar guias, o que é impraticável por ser a
condução em barris de dois almudes, ou odres sobre ombros de homens, porque a escabrosidade
dos caminhos faz impraticáveis outras conduções”, 2ª surge-nos de modo idêntico em documento
de 1779: - “... os moradores são avulsos por não haver na ilha povoações, ou lugares, nem os
colonos encubam os vinhos em suas adegas, porque não tem, e cada um em sua casa em
lagariças de pau faz o vinho que daí se transporta por homens rústicos muitas léguas para as dos
senhorios pela escalosidade dos caminhos, tais que nem cavalgaduras o podem transportar,
quanto mais vasos ou pipas”. 3ª é dada noutro documento de 1789.- “... no campo não se acham
adegas suficientes para o vinho, porque a parte dos senhorios habitantes nesta cidade, todo é
transportado para esta e a maior parte do vinho dos caseiros, é vendido à bica a infinitos
habitantes também desta cidade para onde igualmente transportam”. Será então no Funchal que,
de ordinário, o vinho fermenta nas adegas sendo depois sujeito à trasfega e trato em canteiro ou
estufa. As adegas madeirenses, não eram edifícios preparados, mas sim qualquer um que fosse
extenso e escuro, junto das quais se situavam as estufas e a oficina de tanoaria.
De acordo com D. João da Câmara Leme”Os vinhos da Madeira que hoje aparecem, geralmente
nos mercados, são muito diferentes desses vinhos afamados, e que a Madeira exportava antes dos
fins do século XVIII.A ilha da Madeira não mudou... o que mudou foi o sistema de tratamento”.
Deste modo temos que desde os finais do século XVIII se deu profundas alterações no processo
de vinificação madeirense ao nível do trato. Alteração essa provocada, quer pelo uso das estufas
para aceleração do envelhecimento do vinho, quer pelo uso imoderado de aguardentes, primeiro
de França, depois da terra, para fortificar os vinhos mais fracos. O método antigo, de canteiro,
anteve-se, mas cada vez menos solicitado, por ser mais demorado e dispendioso e fora do
alcance das solicitações do mercado internacional do vinho nesta época, o que só poderia ser
feito com as estufas e o trato das aguardentes, processos rapidíssimos e muito baratos. Por isso
temos a partir de então a generalização dos três métodos, com a afirmação dos dois últimos.
D. João da Câmara Leme já em meados do século XIX tomou contacto com os processos de
vinificação utilizados no trato e cedo se apercebeu da deficiência do uso das aguardentes e das
estufas, daí ter encarado uma nova solução mais rápida e eficaz de trato - o sistema canavial. A
partir de então escalonou os diversos processos do seguinte modo: “1º - sistema sem
aquecimento; 2º - sistema com aquecimento lento, ficando o vinho em comunicação com o ar
ambiente; 3º - sistema com aquecimento rápido e arrefecimento lento, demorado ou não, em
recipiente fechado”.
Este sistema era o dominante até finais do século XVIII e aquele que dava ao vinho da Madeira o
trago especial, que lhe valeu fama mundial, à sombra do qual vegetou por algum tempo o vinho
da estufa adubado. Feito o vinho era transportado à adega onde fermentava no vasilhame
instalado sobre o canteiro, ou seja “duas traves na altura de dois ou três palmos”, fermentado e
retiradas as borras, o que é para velho é trasfegado após ter sofrido o processo de clarificação
com goma de peixe, clara de ovo, sangue, repetindo-se este processo por seis ou oito vezes no
decurso de 19 meses, posteriormente no momento da trasfega começou a adicionar-se aguardente
. Além os elementos fornecidos por P. P. da Câmara fomos encontrar nalguns documentos o
modo como se tratava em Lisboa os vinhos que para aí eram enviados após a fermentação. Aí
nos armazéns do Arsenal da Marinha se procedia ao trato do vinho; clarificação com goma de
peixe e trasfegas. Tal prática encontra-se documentada, apenas a partir de 1832.
Em Abril a Junta da Fazenda do Funchal envia a Lisboa o vinho do sequestro feito nos armazéns
do morgado João de Carvalhal Esmeraldo, pronunciado na devassa de 1828 e ausente em
Londres. Juntamente com o vinho é enviado o escrivão da Alfândega, Manuel António Serrão
para proceder aí ao devido trato, pois que o “trato dos vinhos deste país é inteiramente diferente
daquele que se pratica em Portugal, sendo necessário cuidá-lo de contínuo”.
Já em Lisboa o dito representa que “aonde se acham os vinhos da Madeira, não é aquela
comodidade necessária para os beneficiar, e fazer caldas que é preciso ser em mais particular, da
mesma forma não há nas sete casas a dita comodidade... o único lugar onde tal seria possível era
o armazém no sítio da Boavista, que já antes servira tal fim e ora encontrava-se cheio de tabaco”
.Maria José Joaquim Rosa Coelho, do Arsenal da Marinha não agradou tal relutância do
madeirense e por isso em representação, chama-o de “impostor refinado”:”Tratei imediatamente
de fazer despejar dois armazéns, os mais inxulados (sic), fi-los limpar, pôr canteiros, arrecadar
neles o vinho que se tem recebido, e guardei em meu poder as chaves ficando desta maneira o
vinho acondicionado de forma que é costume desde que no mundo há vinho, e a coberto de toda
e qualquer fraude, que ele pudesse ter, (...) o encarregado de os tratar perguntou em um dos
armazéns se era fresco, respondeu-se-lhe que era que sim, desaprovou-o logo, porque deve ser
quente, passou imediatamente ao outro e fez a mesma pergunta, respondeu-se-lhe que era quente,
reprovou-o porque devia ser frio. Reprovava os canteiros que não são outra coisa, mais do que
uns paus sobre os quais se estivão as pipas, para não estarem no chão, por conseguinte o homem
reprovava tudo, e por tal motivo confirmo a opinião que dele faço, e digo a V. Exa. que neste
arsenal só pode haver armazéns quentes como ele quer, metendo-lhe dentro alguma estufa, e
frescos talvez também como ele deseja tendo-lhe a porta aberta”.
Em Agosto são escolhidos 5 homens para o trabalho de lotação do vinho da Madeira, pagos a
300 reis por dia, iniciando-se de imediato os trabalhos. Na altura da trasfega deu-se pela falta de
2 almudes em cada pipa das 40 pipas trasfegada, o que o encarregado do seu trato de imediato
deu conta, ilibando-se de qualquer responsabilidade: “Eu não sei se é dos navios que conduziram
os vinhos, donde esta falta procede, eu não sei, só o que sei que falta, eu não estou para
responder a V. Exa. por faltas dos outros”.

Durante os meses de Agosto/Setembro, nos armazéns de vinho do Arsenal da Marinha, onde se


encontrava o vinho, laborava-se com grande intensidade, ora armazenando/envasilhando o vinho
novo, ora trasfegando o velho ao mesmo tempo que se clarificava e tratava com aguardente e
baldeação de alguma malvasia velha. Assim em 5 de Agosto é feito o trato a lotes de vinho
sercial de 1820, de 1823/5, tendo-se clarificado com goma de peixe 28 tonéis e 1 pipa, e a
trasfega de um lote particular de 1244 pipas, um lote de 1824 com 7 tonéis e 12 pipas e outro de
1826 com 6 tonéis e 8 pipas. Entre 27 de Agosto e 10 de Setembro foram clarificados e
trasfegados outros lotes de vinho totalizando 32 tonéis e 399 pipas. A 15 de Setembro clarificou-
se vinho Madeira Particular de primeira qualidade ao mesmo tempo que foram tratados 46 tonéis
e 369 pipas com efusão de Malvasia. Seguindo-se mais 220 pipas clarificadas com goma de
peixe. A 17 de Setembro fez-se a trasfega e clarificação de 39 pipas, e a 14 de Outubro 228
tonéis e 459 pipas de Sercial. A 14 de Outubro, Manuel António Serrão dava por terminados os
trabalhos, e descrevia de modo sumário o processo de trato usado: “Achando-se acabado as
lotações do vinho de que vim encarregado pelo Exmo. Governador e Capitão General da ilha da
Madeira, sendo do meu dever como encarregado de uma tal comissão e para crédito de tais
vinhos, uma vez que sejam exportados para países estrangeiros, exceptuando deste o da Rússia,
que é aonde tem menor preço por não gostarem senão de vinhos baixos e estufados, com bastante
aguardente, e como estes sejam vinhos, sejam criados de canteiro, tem por sua idade adquirido
cheiro balsâmico por isso se fizeram dois lotes, como já fiz patente a V. Exa. por um mapa que
remeti e agora por o que vai junto e, que pertence ao segundo lote, sendo estes dois lotes de
primeira e segunda qualidade, que pouco diferem do primeiro, a que ficará tudo igual logo que
leve a sua competente aguardente, e como esta só haja própria na ilha da Madeira dos mesmos
bens socrestados, onde se acha preparada e concertada com malvasia, que era já para adubar
estes mesmos vinhos. E por isso de certo não se poderá dispensar o ela vir, não só para que dê
mais valor aos mesmos vinhos, como também para interesse da Real Fazenda, cujos vinhos já se
acham clarificados, e prontos a entrar na sua trasfega. logo que aguardente venha para se deitar
aquela porção que for suficiente, segundo o clima do país e ficarem de todo prontos. E por isso
julgava de necessidade que V. Exa. mandasse vir da dita ilha, a qualidade de 180 a 200 galões
d’aguardente já acima indicada. E achando-se a malvasia ainda por concertar, não se poderá
fazer sem vir a dita aguardente, pois na ocasião de ser concertada é que leva a sua competente
porção...” .

A baldeação da aguardente de França, primeiro, e depois da terra foi uma prática muito tardia no
tratamento dos vinhos de canteiro, pois só nos surge documentada a partir de meados do século
XVIII: “O que porém, parece averiguado é que, na segunda metade do século XVIII, os vinhos
da Madeira superiores eram já adubados com aguardente de França para o mesmo fim”. As
aguardentes são ao longo do século XIX motivo de polémica, pois que as aguardentes francesas
comummente usadas para adubar os vinhos ora surgem como adubo necessário e precioso dos
vinhos, ora como prejudiciais ao mesmo vinho. Dessa polémica daremos conta quando tratarmos
da questão das aguardentes.

AS ESTUFAS. A origem das estufas deve ser procurada, por um lado, na determinação de uma
determinada conjuntura favorável ao escoamento rápido do vinho, que adveio com as guerras
napoleónicas, com consequente esgotamento dos stocks, criando a necessidade de um trato
rápido dos vinhos novos para satisfazer as encomendas do mercado, o que só seria possível com
as estufas; por outro lado advêm dum facto ocasional, - por motivo da constatação de que os
vinhos da Madeira quando sofriam a influência do calor dos trópicos ao navegarem nos porões
das naus que iam e vinham das Índias ocidentais e orientais, adquiriam um trago especial e
envelheciam. Mais do que isso estamos certos que o madeirense ligado ao conhecimento
científico, não desconhecia esse sistema de tratamento já usado pelos antigos romanos e, até
mesmo os gregos. Quanto ao primeiro facto comenta D. João da Câmara Leme: - “Estamos em
fins do século XVIII. A exportação dos vinhos da Madeira tem aumentado, muito principalmente
para a Inglaterra, porque, em razão da guerra, lhe estão fechados os portos da Europa. As
reservas de vinhos em boas condições de embarque estão esgotados. O sistema do canteiro não é
processo aplicável a um largo e importante consumo com a perspectiva de grandes lucros”
.Quanto ao segundo destaca A. A. Sarmento: “Pelo final do século XVIII, notaram os
negociantes exportadores de vinho da Madeira, que este sujeito a longa viagem batido pelo
balanço da embarcação, aquecido às abafadas temperaturas que se notam nos porões, tomava
características especiais de aromatização, um todo precocemente envelhecido, pelo que
mandavam muitas pipas à Índia com frete de torna-viagem, para lá voltar melhorado o vinho,
que ficou sendo chamado de roda do mundo ou simplesmente vinho de roda”.

Constatado este facto houve desde logo um rápido aproveitamento deste meio de envelhecimento
que, mesmo assim, ainda era oneroso e demorado para as exigências de um mercado
momentâneo apressado. Em 1818 a própria Junta dá o exemplo ao carregar 50 pipas no brigue-
escuna Maria do capitão José A. Martim de Sá. Tendo-se dado ordem de embarque a 21 de Abril.
Em aviso ao deputado escrivão da Junta de Cabo Verde se dá conta da remessa de vinho para
envelhecer e depois terá o destino que S. M. desejar, recomendando ao dito “o cuidado e
vigilância de sua existência, de maneira que receba o muito calor possível de Verão futuro e não
haja extravio”.Noutro aviso a J. de Araújo Barros em Cabo Verde dá-se conta da remessa “para
os fazer pôr nessa ilha e voltarem a vir depois de passado o Verão futuro... lhe rogo o maior
desvelo e cuidado na boa guarda e vigilância do dito vinho a fim de que não haja extravio casual
nem voluntário e obtenha aquele grau de melhora que se espera”.

Em 1826 essa prática havia-se generalizado e todo o vinho de roda era reembolsado dos direitos
pagos à saída ou levantada a fiança. Assim em 21 de Fevereiro Philip Noailles Searle solicita o
desconto dos direitos de 3 quartos e 10 meias quartolas de vinho de roda que havia tido
autorização para tal acto em 8 de Junho de 1825. Um ano depois essa prática era geral e causava
graves incómodos à administração da alfândega, daí ter-se embargado tal pratica:- “Havendo-se
nesta ilha introduzido o costume de embarcar vinho com faculdade de voltar a ela para na
viagem ganhar melhoramento, foi sempre tolerado em pequenas proporções. De tal uso passou a
fazer-se abuso, pois que os negociantes para ganharem maior prazo no pagamento dos direitos,
figuravam em muitas das suas especulações os embarques do vinho para vir de roda, dando a sua
fiança, e a final quando passava o prazo marcado para a entrada do vinho, e este não chegava, se
lhes carregavam os direitos, cuja arrecadação ia ter a demora que as mais ordens terminam a
favor dos assinantes. Resultava deste meio acharem-se muitos direitos por cobrar, poderem
ometer-se outros dolos que esta Junta por bem da fazenda entendeu dever prevenir e subtrair na
continuação de tal prática”. Este informe vem a propósito de um requerimento de Philip Noailles
Searle & Ca. em que solicitava o reembolso dos direitos de 50 pipas de vinho de roda.

Nos registos de embarque de vinho entre 1823/30 assinala-se essa modalidade, que durante esta
fase permissiva atingiu grandes proporções. Assim em 1823 saíram 1650 pipas de vinho de roda
e em 1824, 366. Destacam-se aqui os comerciantes ingleses John Howard March & Ca. e Philip
Noailles Searle, e poucos portugueses, de que se destacam as casas madeirenses mais
importantes como Monteiros & Ca., Luís de Ornelas Vasconcelos, João Oliveira & Ca.
Já os Gregos e Romanos tinham conhecimento da acção do calor dos porões dos barcos... e dele
se serviram para trato dos seus vinhos tal como nos refere Plínio, entre outros. No entanto na
Madeira essa prática é tardia, remontando a 1730. Daí às estufas o salto foi rápido: “Viäo os
comerciantes que o calor dos navios e dos climas mais ardentes beneficiaram considerável e
visivelmente os vinhos em toda a sua qualidade, tanto de sabor como de cheiro, logo pela razão,
a mais bem deduzida, se persuadiram, e se convencerão de que o vinho Madeira se aperfeiçoava
e mesmo se requintava com o calor: ocorreu logo, que sendo possível tratá-lo em terra com uma
precisa quentura para o seu benefício seriam grandes os proveitos que colheria o comércio, o
público, e não menos S. A. Real”. Assim temos o primeiro ensaio de estufa com vinhos novos,
enquanto outro que aquecia dia e noite um armazém com vinhos novos, enquanto outro
comerciante colocava no seu armazém canos de ar quente. “A primeira estufa levantada nesta
ilha se fabricou no ano de 1794 e 1795, e depois dela se levantavam sucessivamente muitas
outras que todas tem trabalhado até os últimos meses passados”. Em 1802 segundo John Leacock
“estufas are now become general”.Numa carta de 1800, o mesmo descreve a sua primeira estufa
que teve na ilha, dando conta do movimento das estufas, e da discussão sobre o vinho estufado:
“We are erecting an estufa & hope to have it furnished in two or three weeks we shall stard in
need of two common thermometheos. good but the lerst expeensive, in order that we may
regulate the heat; we therefore by you will send out a couple very carefully packed we hope this
new mode of treating wine will answer, but the correspondants of those who ship its - they are
now common of all the houses use estufas - several of them have built them & others put their
wine into hired estufas, where they pay 5 mas. p. pipa for 3 months sterwing. We are not yet
perfectly satisfied of all the effects produced by the application of heat to the wine, but think in
general they keep too fierce a degree of heat, nicke keeps the wine constantly boiling, and in
rather insipid of weak. We are of opinion that a mon moderate temperature will succed better &
shall proloy the paiod to six instead of three months as we have see. However the great test will
be, how it is approved by those who are no good judges, the new wine with three months estufa
imitates wine of 4 or 5 years old & we dont think that the deception will be easily discovered-
perhaps prejudice the character of madeira wine. Wall hot climates its improves much quichet
than in gold over: twelve months in the East or West Indies ha me effect than 3 years here, or
four or five years in England - there for the heat must be on benefit & we must make a climate”.

Em 1877 Henry Vizetelly de visita à Madeira conheceu o complexo vinícola da firma de Menrs
Cossart Gordon & Ca., dando conta da sua estufa do seguinte modo: “The estufa stors os Menrs.
Cossart, Gordon & Ca. comprise a black of buildings of two stories, divided into four distinct
compartments. In the first of these common wines are subjected a temperature of 140 dg.
Gahrenheit - derived from flues, heated with anthracite coal for the space of three monts in the
next compartment wines of an intermediate quality are heated up to 130 deg. for a period of four
and half months; whele the third is set apart for superior wines heated variously from 110 to 120
dg. for the term of six months. The fourth compartment, known as the “calor”, possesses no
flues, but derives its heat, varying from 90 to 100 deg., exclusively form the compartments
adjacet, and here only high-class wines are placed... In the estufas I am now describing-wich, if
packed full, are placed on end in sacks of four, with smaller casks do not leak, as when subjected
to great heat they are naturally indined to do. A hole about the sixth of an inch in diameter has
been previously bored in the being of each pipe to allow the hot vapour to escape, otherwise the
pipe would burst. As it patches in various parts of the floor, rendering it necessary for the
different compartments of the estufa to be inpected once during the daytime and during the nigth,
in order that any mishap of thair kind may be at once rectified. Each compartments is provided
with double folding-doors, and after is is filled with wine the inner doors are coated over with
lime, so as to close up any chance apectures. When it is necessary to enter the estufa the outer
doors only are opened, anda a small trap in the inner door I pushed back to allow of the entrance
of the man in charge, who passes bet wen the various stacks of casks, tapping them one after the
other to satisfy himself that not leakage is going on. On coming out of the estufa , after a stay of
a full hour, he instantly wraps himself in a blanket, drinks a tumbler full of wine, and then shuts
himself up in a closet, into wich no cool as penetrates, provided for the purpose”.

Em casa de Krohn Brothers viu no seu complexo uma estufa de sol onde o vinho era aquecido
sob “the influence of sun’s ray’s”. Mas as estufas tiveram os seus percalços, pois em todos
acreditavam no auxílio benéfico das mesmas, tal como aconteceu com o governador D. José
Manuel da Câmara que por editais de 23 de Agosto de 1802 e 6 de Novembro de 1803 proíbe as
estufas por serem prejudiciais à boa reputação dos vinhos. Mas face à reacção da maioria dos
comerciantes nacionais e estrangeiros da região e do Senado da Câmara. O que levou o mesmo
em 14 de Fevereiro de 1804 a oficiar ao Conde de Anadia, dando conta do sucedido e da
pretensão dos locais para que fosse levantada a suspensão de modo a poderem aviar as
encomendas. Por ordem régia de 7 de Maio, do mesmo ano, foi expedido aviso para ser
levantada a proibição. Mesmo assim a questão das estufas não terminou, pois que em todos os
debates das estufas. O próprio Senado da Câmara cuja composição heterogénea mudava, A
opinião desfavorável destaca que tal processo de tratamento de vinho está na origem da
decadência da fama e comércio do vinho, sendo igualmente prejudicial às suas propriedades
conhecidas, retirando-lhes as qualidades “balsâmicas”, ou alterando-lhe o sabor e dando-lhe o
gosto torrado, queimado “muito desagradável”. Desta forma se faz eco de modo sarcástico, em
1851 no “Correio da Madeira”: “O vinho estufado, cozido, fervido, frito, assado e agrilhoado é a
causa suficiente da decadência do nosso comércio e o abatimento da nossa agricultura... As
estufas são somente próprias para o vinho mão, e o que é essencialmente mau, não há forças
humanas que o façam bom.
O vinho bom carece de estufa, logo as estufas só servem para o ordinário: que se deve ferver
para aguardente, e consumir nas tabernas. O cheiro, o sabor do vinho estufado são péssimos, são
repugnantes e asquerosos: o vinho não sabe à uva, parece sumo das aduelas, das vasilhas, que o
tiveram em fermentação. Nada mais ingrato, nada mais desgostoso ao paladar. O vinho de estufa
ataca o cérebro, afecta o bofe, excita sede insaciável, provoca almorreimas, produz puxos,
tenesmos, frenesim, delírios, loucura. E uma calamidade pública esta funesta descoberta; que
fazendo exportar o vinho mau, deixa o bom, e óptimo estagnado, arruinado o nosso crédito”.
Contrapondo-se a esta opinião muito generalizada na época, temos outra opinião que pugnava
pela qualidade doo vinho produzido por este trato, que surge como medida útil e barata para o
trato e, consequente escoamento do vinho com maior rapidez para os centros consumidores.
Assim o referem os comerciantes locais em 1804: “Granjeou o comerciante o fruto preciso dos
seus cuidados, dos seus cálculos, e da sua bem atendida vigilância, pois que com o novo método
de melhorar, e adiantar os seus vinhos de 5 a 6 meses apronta toda a quantidade de vinho, que é
preciso para os seus embarques, não sendo obrigados a esperar o espaço seguro de 4 a 5 anos”.

Em 1834 ainda a Câmara do Funchal desfaz as acusações contra as estufas apontadas como
causa primeira da ruína do comércio local, antes notando o seu efeito benéfico e incentivador do
mesmo:”Ora devendo-se considerar a invenção das estufas como admirável processo por meio
do qual se melhora rapidamente a qualidade dos vinhos, apressando sua maturação, ao mesmo
passo que se evitam grandes embates de capital; e sendo este aliás o único método que nos pode
habilitar a competir com os vinhos de outras nações nos quais a cultura dos vinhos é mui pouco
dispendiosa...” .Da mesma opinião é P. P. da Câmara: “Seria inepto julgar, que foi o processo da
estufa que desacreditou este género, e diminuiu o seu consumo... a não ser esta providência que
tanto veio a baratear a única produção que aviventa a Madeira, o que seria hoje d’ella, se este
método não tivesse facilitado a sua exportação, barateando o seu custo?... O sistema das estufas
veio facilitar a sua extracção, assim como dar-lhe velhice e fortaleza para resistir ao gelo do
norte, recebeu nova incubação e sangue desta ilha...” .

No Funchal, principal centro vinícola da ilha, se procedia ao tratamento do vinho por meio das
estufas, que aí começaram a surgir desde 1795/6. Estas eram distribuídas indiscriminadamente
por toda a cidade situando-se nos terrenos anexos as adegas, que se situavam na área
circunvizinha do cabrestante. Por editais de 23 de Agosto de 1802 e 6 de Novembro de 1803 se
havia proibido a construção de estufas no recinto da cidade, argumentando o juiz do povo os
inconvenientes que delas advinha para a saúde pública, em razão do fumo e constante perigo de
incêndio no período de laboração. Contra ela se manifestaram os comerciantes da praça do
Funchal, alegando os prejuízos que daí adviria e os argumentos infundados do referido juiz do
povo. Na realidade como eles referem, só houve até 1803 três ameaços de incêndio e, de
incêndios apenas encontramos referência a um na estufa de Phelps Page & Ca. em 29 de Outubro
de 1806. Se as estufas não eram um perigo para a saúde pública, tornavam-se, no entanto
prejudiciais à pouca salubridade do burgo oitocentista e mais em pleno centro do burgo e nos
eixos de maior atracção em redor do porto do Funchal: é o caso da área da Sé do Funchal,
próxima da Alfândega e do cabrestante, onde entre 1809/34 laboraram as estufas de Gordon
Duff, & Ca., respectivamente no Beco do Assucar e Rua do Esmeraldo. Aliás se tivermos em
conta que a freguesia da Sé se situa na área central da cidade teremos uma ideia clara da sua
implantação no burgo, pois que entre 1839/40 existiam 15 estufas, a que se seguiam 9 na
freguesia de S. Pedro, denotando assim uma forte concentração das estufas na área circunvizinha
da Alfândega e Porto do Funchal o que, em parte, se justifica para um fácil transporte do vinho a
ser embarcado.
De notar entre 1839/40 uma forte concentração das estufas no Beco dos Aranhas (4 e 5) e em S.
Paulo (3 e 1), área ribeirinha ao mar pelo lado da Pontinha e sobranceira à ribeira de S. João. No
termo da cidade as estufas localizavam-se em Santa Luzia, no Caminho da Torrinha, Torreão... e
em Santa Maria Maior na Rua dos Balcões, Rua Bela de Santiago, Rochinha... Fora da área do
Funchal, encontramos apenas 2 estufas em Santa Cruz em 1840, uma em S. Fernando de
Joaquim Telles de Menezes e outra na Rua Direita de Augusto César de Oliveira, prova
insofismável da forte concentrção das estufas e lojas na cidade e termo. Entre 1805/16 nota-se
uma certa estabilização no número de estufas, com variantes reduzidas para mais ou menos,
marcando o período de hesitação de novos estabelecimentos, em razão das medidas proibitivas e
da discussão contrária à sua implantação e utilidade. Passado esse período ganha uma certa
estabilidade, a que se seguiu, depois de solucionada a crise um forte impulso entre 1817/1829.
Entrando-se então em queda, que se acentua a partir de 1832, tendo-se atingido em 1834 número
idêntico. O período que decorre de 1834/44 é marcado por uma certa estabilidade no número de
estufas em laboração, apenas se notando um salto isolado em 1839 em que se atingem valores
idênticos aos médios dos anos evidencia (1817/29). Desde 1845 a tendência é para subir,
atingindo-se em 1851 o número máximo, mas desde 1852 é marcante uma descida que se
acentuará a partir de 1860.
D. João da Câmara Leme, especialista em assuntos enológicos teve oportunidade de, em França
entrar em contacto com os sistemas de aquecimento aí usados desde o primeiro quartel do século
XIX, nomeadamente aos sistemas em vaso fechado dados por Appert, ervais, Verguette, Cemotte
e Pasteur. De regresso à Madeira tomou contacto com o processo de estufagem então praticado,
tendo notado que o “sistema de aquecimento lento com comunicação com ar ambiente” dava ao
vinho um “sabor torrado de queimado muito desagradável” ao mesmo tempo que lhe retirava as
propriedades essenciais:”Um sistema que priva os vinhos novos das suas melhores qualidades
naturais e lhes introduz efeitos persistentes; que lhes tira o açúcar, álcool, óleos essenciais, e lhes
introduz, um sabor desagradável que o carvão vegetal empregado lhes não pode nunca tirar de
tudo, e que os impede de adquirir a finura tão assinalada nos antigos vinhos de canteiro...“Na
destilação do vinho de garapa despreza-se o vinham e guardam-se líquidos alcoólicos, éteres, e
sais e guarda-se o vinham”. Perante a constatação deste facto houve que tomar providências,
optando por um sistema de aquecimento em vaso fechado, de modo especial, o método Pasteur,
conhecido por pasteurização. Feitas as devidas experiências com este processo constatou D. João
da Câmara Leme “que o gosto de novo desaparecia muito pouco para que o vinho Madeira
pudesse ser embarcado em pouco tempo como vinho mais velho, e que os seus outros caracteres
não tinham suficientemente melhorado”.

Com seis anos de estudo ponderado, eis que ao fim de 10 anos de ensaios e experiências, em
1889 estabelece um sistema de aquecimento e afinamento dos vinhos, que tomou o nome de
sistema canavial, que adoptava o novo método de “aquecimento rápido e arrefecimento lento,
demorado ou não, em recipiente fechado” (163), salientando que “este processo de aquecimento
e afinamento dos vinhos, ou processo de aquecimento e de arrefecimento demorado, em
recipiente fechado, é o mais próprio para vinhos superiores ou medianos, é o mais próprio para o
vinho Madeira e Para todos os vinhos especiais”.”O vinho que vai ser aquecido entre, depois de
medido, num reservatório superiormente disposto, donde desde, pelo seu próprio peso, por um
cano de estanho, no qual é elevado, em banho-maria e o abrigo do contacto do ar à temperatura
de 158º F. (70º C), continuando depois a descer, sem encontrar nada no caminho que lhe apresse
o aperfeiçoamento; e chegando finalmente, depois de ter marcado num termómetro a uma
temperatura adquirida, ao fundo da mesma pipa donde sairá pouco antes, e cuja boca, disposta de
modo a impedir perda de vapores, é fechada logo que termina a operação (...).
O vinho gasta cerca de 3 minutos no tratamento do seu aquecimento, que para uma pipa de 450
litros, exige hora e meia. O calor, comunicado pelo vinho ao interior da pipa, manifesta-se em
breve exteriormente. Os Arcos alargam-se, e precisam de ser rebatidos. O vinho assim aquecido
não é nunca voluntariamente arrefecido: e, quando se lhe não demora o arrefecimento, deixa-se
que ele se faça naturalmente, mais ou menos, lentamente segundo a diferença entre a temperatura
da pipa e a do meio ambiente; gastando, geralmente, cerca de três dias.
É o mais curto arrefecimento do vinho rapidamente aquecido pelo sistema canavial.
Quem observar este vinho pouco depois do aquecimento, ou no fim do arrefecimento, tendo-se
conservado a pipa sempre bem fechada, nota que ele não fermenta; que não tem cheiro que
indique a presença de enxofre; e que o aroma de novo se tornou mais agradável; nota que o gosto
está também sensivelmente mudado, e que parece de vinho de mais idade; e uma operação
destilatória, feita antes e depois do aquecimento, mostra que a percentagem alcoólica é igual.
Houve, pois neste aquecimento, um notável melhoramento; e não houve prejuízo (...).
É baseado em tais princípios que este estabelecimento organizou casas, ou estâncias, próprias
para demorar o arrefecimento do vinho. Quando, pois, uma pipa de vinho é destinada ao
afinamento numa destas estancias, é para lá transportada, hermeticamente fechada, logo depois
de terminado o aquecimento; e assim permanece, durante meses, num recinto onde a temperatura
é moderada, mas constante e bem regulada.
Cinco fornalhas introduzem ar quente em canos que dão três voltas nas estancias; e que são
guarnecidos de chapas de ferro para facilitarem a transmissão do calor, sempre bem regulado e
facilmente observado por termómetros que se podem bem ler de fora.
As estancias, que são sempre cuidadosamente revistadas para serem as pipas oportunamente
rebatidas, são a princípio, mantidas na temperatura de 120º F. (50º C); mas depois de ter o vinho
arrefecido suficientemente para se pôr em equilíbrio com o meio ambiente, essa temperatura vai
lentamente descendo, e fazendo paradas convenientes, até ao fim do afinamento.
O vinho assim aquecido e afinado conserva todas as qualidades naturais, apresenta qualidades
próprias do vinho de canteiro que tem cinco ou seis anos e uma notável finura muito apreciável;
sem apresentar nenhum mau sabor, nem defeito algum, sendo convenientemente tratado, pode
logo ser lotado com outros vinhos aquecidos e conservados livres de fermentos, e mesmo ser
embarcado, sem risco de se alterar, e com grande economia d’alcool”.

Este é o único processo de tratamento por estufa que anima a qualidade do vinho fazendo-o
manter sempre as suas características; e adquire qualidades próprias capazes deste modo de
rivalizar com os melhores vinhos de canteiro. Este é o vinho canavial preparado normalmente
com o boal, que se apresenta com as seguintes propriedades-digestivo, anticéptico, medicinal,
alimentício.
Muito antes de D. João da Câmara Leme temos já notícia de um invento de estufagem até então
usado, ou se apresenta como inovador, pois que as referências apenas nos dão indicação de que o
novo método se dava nos vinhos “comunicando-lhes o calor internamente e de os fazer assim
vermelhos em pouco tempo”. Será este o mesmo sistema do praticado em França, nomeadamente
a pasteurização? . Tudo indica que assim seja, uma vez que o dito foi a França várias vezes,
donde trouxe alambiques de destilação contínua e travou contacto com as inovações da técnica
francesa de destilação e aquecimento do vinho.

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O COMEÇO........

O progresso e a riqueza económica da ilha causaram a estupefacção de todos aventureiros e


foram um forte incentivo à presença de novos colonos e de avanço do processo de
reconhecimento das ilhas e litoral Atlântico. Tudo isto, segundo Gaspar Frutuoso, resultou do
espírito empreendedor dos primeiros colonos madeirenses, que sob as ordens dos capitães
empenharam-se em “cultivar e beneficiar a terra para dar fruto”.
João Gonçalves Zarco, após o reconhecimento da costa meridional da ilha, fixou-se no Funchal
enquanto Tristão Vaz recolhe-se ao vale de Machico. É a partir destes dois pólos, mais tarde
sedes das capitanias, que irradiou a força dos cabouqueiros. O processo foi rápido, tal como o
testemunham os cronistas. Zurara refere-nos que “em breve tempo foi grande parte daquela terra
aproveitada”, sendo corroborado por Gaspar Frutuoso: “Foi assim tudo tanto em crescimento em
ambas as jurisdições, com boa diligência de seus capitães, que em breve tempo se povoou e
enobreceu a ilha toda (...). Crescendo as povoações e moradores com a fama da sua fatalidade...”
Desde o início da ocupação é evidente o contraste entre as ilhas do Porto Santo e Madeira.
Assim, segundo Zurara na primeira “não se pode em ela fazer lavra”. A principal dificuldade
estava, segundo Valentim Fernandes, no “não haver aguas a terra em si estéril”, o que implicou
que “não se fez tanta obra nela como em a ilha de Madeira...”. Aliás, esta última era “mais nobre
e mais rica e mais abundante”. A falta de águas só permitiu as culturas de sequeiro e a
valorização do pastoreio. Para Zurara a sua importância está na criação de gado. É ele quem
refere a praga dos coelhos e a constatação de que “criam-se ali muitos gados”. Note-se que foi
com a carta de doação da capitania do Porto Santo que o infante se deu conta da importância do
gado bravo e apastorado. A estas duas junta-se a Deserta, que segundo Zurara era “intenção de a
mandar povoar com as outras”, lançando-se para isso gado.
Distribuídas as primeiras terras, um longo trabalho esperava os primeiros colonos: as queimadas,
a construção de paredes encosta fora, para retenção da terra, o delineamento das levadas para o
regadio e aproveitamento da força motriz nos moinhos, serras de água e, depois, engenhos
açucareiros. Á mão de todos estavam as madeiras resultantes do abundante arvoredo que cobria a
ilha da Madeira. O arroteamento das terras implicava o seu desbaste. E foi aí que o colono
encontrou uma das primeiras riquezas, verdadeira dádiva da natureza. Com as madeiras foi
possível avançar na construção naval e civil, beneficiando a marinha e a cidade de Lisboa. Assim
o refere Jerónimo Dias Leite: “E neste tempo pela muita madeira que daqui levavam para o reino
começarão com ela a fazer navios de gávea, e castelo da vante, porque dantes não havia no
reino...” Todavia, esta riqueza e preciosidade das madeiras foi efémera. Em pouco tempo aquilo
que existia em abundância passou a ser uma raridade, contribuindo para isso a necessidade de
desbravar a densa floresta para abrir as arroteias.
As queimadas comuns na Europa tiveram aqui lugar e foram responsáveis por um duradoiro
incêndio. É o que refere João de Barros: “...assim tomou o fogo posse da roça e do mais
arvoredo, que sete anos andou vivo no bravio daquelas grandes matas que a natureza tinha criado
avia tantas centenas de anos. A qual destruição de madeira posto que foi proveitosa para os
primeiros povoadores logo em breve começarem lograr as novidades da terra: os presentes
sentem bem este dano, por a falta que tem de madeira e lenha: porque mais queimou aquele
primeiro fogo do que lentamente ora poderá delepar força de braço e machado. Coisa que o
infante muito sentiu e parece que como profecia viu esta necessidade presente que a ilha tem de
lenha: porque dizem que mandava que todos plantassem matas,...”. Algumas das fontes insistem
na durabilidade do incêndio que ateou na ilha o próprio João Gonçalves Zarco para abrir
clareiras. Todos os autores referem o terrível espectáculo do fogo e o facto de Zargo e
companheiros terem fugido de terra, abandonando os seus haveres.
Hoje todos estão de acordo que este incêndio não durou sete nem nove anos, devendo ser
entendido como o sucedâneo de queimadas para abrir clareiras onde lançar a semente e construir
a casa de habitação. Este fogo certamente que não atingiu a encosta norte da ilha, que
permaneceu por muito tempo como uma densa floresta, aos poucos desbastada para retirar a
lenha necessária como combustível e as madeiras para construir habitações e engenhos. A
importância das madeiras está bem patente no facto de o infante ter determinado, nas cartas de
doação e lembranças e regimentos, de tributar o seu aproveitamento. Ele tinha direito ao dizimo
das madeiras usadas na construção de habitações e latadas, das lenhas para uso caseiro e
industrial. Todas estas, mesmo em terras de sesmaria, eram sua propriedade, como se pode
inferir da doação na Madalena a Henrique Alemão: “com condição que das ditas terras e lugar
não pague senão o dizimo de tudo o que seus der em ele, salvando paus de teixo, vinho, canas e
quaisquer tintas que houver e gomas, que tudo seja para mim”. Contra isto reclamaram em 1461
os moradores do Funchal ao infante D. Fernando no que não tiveram qualquer apoio. também
nas cartas de doação das capitanias refere-se a esta importante industria. Assim aqueles que
construíssem serras de água deveriam entregar ao capitão “um marco de prata em cada um ano
ou seu certo valor ou duas tábuas cada semana das que costumarem serrar”, enquanto ao infante
era devido “o dizimo de todas as ditas serras segundo pagam das outras coisas o que serrar as
ditas serras”. Acresce que nos capítulos do regimento atribuído a D. João I está valorizada esta
actividade ligada ao aproveitamento das madeiras. Aí alude-se os “de menos, que vivam do seu
trabalho e de cortar de talhar madeiras...”, o que quererá significar que foi uma actividade muito
importante no primeiro momento de ocupação da ilha. A par disso é de notar o aproveitamento
de outros recursos que na Época tinham grande valor comercial. Referimo-nos ao sangue de
drago. Em ambas as ilhas eram abundantes os dragoeiros, mas especialmente no Porto Santo ele
mereceu maior atenção dos povoadores, por ser o primeiro e principal recurso disponível.
Outra importante fonte de riqueza terá sido a criação de gado. Não obstante, alguns cronistas
referirem a existência de gado selvagem no Porto Santo, onde os castelhanos faziam carnagem, o
certo é que nas ilhas não se encontrava qualquer espécie animal indígena com utilidade para o
homem. É por isso que aqui, a exemplo do que virá a suceder nos açores, o processo de
povoamento inicia-se com o lançamento de gado trazido do reino. Isto era uma forma, não só de
testar a capacidade de sobrevivência dos seres vivos, mas também de assegurar um primeiro
suplemento alimentar aos primeiros colonos. Daqui resultou que a criação de gado se
transformou numa das primeiras e principais riquezas. Assim o testemunha, em meados do
século XV, Cadamosto. Quanto ao Porto Santo ele refere que “é abundante de carne de vaca,
porcos selvagens e infinitos coelhos”, enquanto a Madeira é “abundante em carnes”. Esta reserva
de pastos propiciava o desenvolvimento da pecuária, provocada pelo uso na alimentação dos
primeiros habitantes da ilha, mas também para o abastecimento das embarcações que
demandavam a costa africana que, desde 1455, segundo nos informa Zurara, tinham aqui escala
obrigatória na ilha.
A vinha e o vinho assumem particular destaque na caracterização do processo histórico
madeirense ao longo destes quase seiscentos anos de labuta. Desde os primórdios da ocupação da
ilha até a actualidade este produto manteve a mesma vivacidade na vida agrícola e comercio da
ilha. Dos mais não houve capacidade suficiente para resistir a concorrência desenfreada de novos
e potenciais mercados Fornecedores de aquém e além-mar. Os cereais tiveram saque fácil nos
Açores, Canárias, Europa e, depois América, sofrendo, mais tarde, a concorrência do abundante
fornecedor americano. Apenas o vinho resistiu a concorrência do dos Açores, Canárias, Europa e
Cabo da Boa Esperança, mantendo o tradicional grupo de apreciadores no velho e novo Mundo.
No principio da ocupação da ilha as necessidades do cardápio e ritual cristão comandaram a
selecção das sementes que acompanharam os primeiros povoadores. As do precioso cereal
acompanham os primeiros cavalos de cepas peninsulares nesse processo de transmigração
vegetativa. A fertilidade do solo, resultante do seu estado virgem e das cinzas fertilizadoras das
queimadas, fizeram elevar a produção a níveis inatingíveis, criando excedentes que supriram as
necessidades de mercados carentes, como foi o caso de Lisboa e praças do norte de África.
Para que tudo isto tivesse lugar de forma ordenada houve necessidade, por parte do senhorio e da
coroa, de definir normas para o aproveitamento dos recursos agrícolas dos novos espaços. Daí
resultaram inúmeras medidas regulamentadoras das actividades produtivas. Esta política esboça-
se já com a entrega de terras, onde se estabelecem, muitas vezes, os produtos mais adequados
para o seu cultivo. Na Madeira em 1492 elas apontavam para a preservação das searas, mas em
1508 a prioridade estava nos canaviais. O mesmo sucedia nos Açores, onde em S. Miguel se
estabeleceu em 1532 uma divisão equitativa do solo em searas e terras de pastel. No caso de
Cabo Verde a doação das ilhas pequenas tinha como finalidade a criação de gado, mais pela
riqueza das suas peles do que pelo valor alimentar.
Não se esgotava aqui a iniciativa das autoridades no ciclo produtivo uma vez que a fase de
transformação dos produtos era outro domínio a cativar o seu empenho. Tudo isto é proporcional
ao volume e especialização das tarefas. Assim no caso do açúcar, cujo processo de era moroso,
havia um apertado controlo e regulamentos para as tarefas, por meio de regimentos e posturas
específicos. Maior e mais evidente era a actuação ao nível do sector comercial. Neste caso as
autoridades intervinham com o duplo objectivo de assegurar, por um lado, o comércio
monopolista da burguesia nacional, por outro, da normalização dos circuitos. A par disso deverá
referir-se as posturas municipais que defendem, única e exclusivamente, interesses dos
concidadãos. Isto é, garantir o abastecimento do mercado local de produtos essenciais.
Um dos iniciais objectivos que norteou o povoamento da Madeira foi a possibilidade de acesso a
uma nova área produtora de cereais, capaz de suprir as carências do reino e depois as praças
africanas e feitorias da costa da Guiné. A última situação era definida por aquilo a que ficou
conhecida como o “saco de Guiné”. Entretanto os interesses em torno da cultura açucareira
recrudesceram e a aposta na cultura era óbvia. Esta mudança só se tornou possível quando se
encontrou um mercado substitutivo. Assim sucedeu com os Açores que, a partir da segunda
metade do século dezasseis passaram a assumir o lugar da Madeira.
O cereal foi o produto que conduziu a uma ligação harmoniosa dos espaços insulares, o mesmo
não sucedendo com o açúcar, o pastel e o vinho, que foram responsáveis pelo afrontamento e
uma crítica desarticulação dos mecanismos económicos. A par disso todos os produtos foram o
suporte, mais que evidente, do poderoso domínio europeu na economia insular. Primeiro o
açúcar, depois o pastel e o vinho exerceram uma acção devastadora no equilíbrio latente na
economia das ilhas.
A incessante procura e rendoso negócio conduziram à plena afirmação, quase que exclusiva
destes produtos, geradora da dependência ao mercado externo. Este para além de ser o
consumidor exclusivo destas culturas, surge como o principal fornecedor dos produtos ou
artefactos de que os insulares carecem. Perante isto qualquer eventualidade que pusesse em causa
o sector produtivo era o prelúdio da estagnação do comércio e o prenúncio evidente de
dificuldades, que desembocavam quase sempre na fome.
A estrutura do sector produtivo da ilha moldou-se de acordo com isto, podendo definir-se em
componentes da dieta alimentar (cereais, vinha, hortas, fruteiras, gado) e de troca comercial
(pastel, açúcar e algodão). Em consonância com a actividade agrícola verificou-se a valorização
dos recursos disponibilizados por cada ilha, que integravam a dieta alimentar (pesca e
silvicultura) ou as trocas comerciais (urzela, sumagre, madeiras).
A presença na ilha de um grupo de colonos, oriundos de uma área em que as componentes
fundamentais da alimentação se baseavam nos cereais, definiu para eles uma função primordial
na abertura das frentes de arroteamento. No começo tudo foi moldado à imagem e semelhança do
rincão de origem e, onde isso se tornava difícil era quase impossível recrutar e fixar gentes.
Assim surgiram as searas, os vinhedos, as hortas e as fruteiras dominadas pela casa de palha e,
mais tarde, pelas luxuosas vivendas senhoriais.
A partir do século dezassete o Atlântico foi devassado por novas culturas dos espaços recém-
conhecidos, que passaram a fazer parte da dieta alimentar das populações: primeiro o milho,
depois, o inhame e a batata. Todavia a sua presença na agricultura insular variou de arquipélago
para arquipélago. O milho chegou cedo aos Açores e a S. Tomé, enquanto na Madeira o seu
aparecimento só teve lugar no século dezanove. A batata começou a ter aceitação na Madeira na
segunda metade do século dezassete.
O PÃO NOSSO DE CADA DIA...

Na Madeira, até à década de setenta do século quinze, a paisagem agrícola foi dominada pelas
searas, decoradas de parreiras e canaviais. A cultura cerealífera dominava a economia
madeirense, gerando grandes excedentes com que se abasteciam os portos do reino, as praças
africanas e a costa da Guiné. Tudo isso foi resultado da elevada fertilidade do solo provocada
pelas queimadas para abrir caminho às primeiras arroteias.
As condições em que se estabeleceram as primeiras arroteias fizeram com que as sementes de
cereal, lançadas sobre as cinzas das queimadas, frutificassem em abundância. Diz Jerónimo Dias
Leite que de um alqueire semeado se colhiam sessenta, enquanto Diogo Gomes refere “que uma
medida dava cinquenta e mais”. Cadamosto corrobora o primeiro mas anota que esta relação foi
baixando devido à deterioração do solo. Ainda, segundo ele, a ilha produzia 3000 moios de trigo
de que só tinha necessidade de um quarto. O demais era exportado para o reino, tal como o diz
Diogo Gomes: “E tinham ali tanto trigo que os navios de Portugal, que por todos os anos ali iam,
quase por nada o compravam”. Em data, que desconhecemos, estabeleceu o infante D. Henrique
ou o rei a obrigatoriedade de envio de mil moios para a Guiné, o que era considerado, na década
de sessenta um vexame para os funchalenses, que prontamente reclamaram ao novo senhor da
ilha, no que não tiveram grande acolhimento por ser “trato de el-rei”. Até à década de 70, a
paisagem agrícola madeirense foi dominada pelas searas, decoradas de parreiras e canaviais. A
cultura cerealífera dominava, então, a economia madeirense. A este propósito refere Fernando
Jasmins Pereira que no período henriquino os cereais constituíram a base da colonização da ilha.
A fertilidade do solo, resultante das queimadas, fez com que esta cultura atingisse níveis de
produção espectaculares, que a historiografia quatrocentista e quinhentista anuncia com
assiduidade, notando que o cereal se exportava para o reino e praças africanas. Em meados do
século, segundo Cadamosto, a ilha produzia 3000 moios de trigo, que excedia em mais de 65%
as necessidades da parca população. Este excedente, avaliado em cerca de 2/3 da produção, era
exportado para o reino e, segundo os cronistas, vendido ao preço de quatro reais. Desde 1461,
1000 moios foram suprir as carências dos assentamentos africanos, ficando conhecidos como o
saco da Guiné.
A partir da década de 60, com a valorização do comércio do açúcar, as searas diminuíram em
superfície e a produção cerealífera passou a ser deficitária. Por isso, a partir de 1466, a ilha
precisava de importar trigo para sustento dos seus vizinhos, sendo impossível manter as
escápulas estabelecidas. Em 1479, referia-se que a produção dava apenas para quatro meses.
Tudo isto derivou da acção dominadora dos canaviais, aliada ao rápido esgotamento do solo e
inadequação da cultura, resultante de uma exploração intensiva, sem recurso a qualquer técnica
de arroteamento. O agravamento do défice cerealífero nas décadas de 70 e 80, que conduziu à
fome em 1485, foi a principal preocupação das autoridades locais e centrais. Primeiro procurou-
se colmatar a falta com o recurso à Berbéria, Porto, Setúbal, Salónica; depois foi necessário
definir uma área externa produtora, capaz de suprir as necessidades dos madeirenses. Assim
sucedeu, desde 1508, com a definição dos açores como principal área cerealífera do Atlântico
português: as ilhas açorianas actuam como o celeiro de provimento da Madeira e capaz de a
substituir no fornecimento às praças africanas. A Madeira, que se havia afirmado no período
henriquino, como um importante mercado de fornecimento de trigo, passou no governo
fernandino à situação de comprador, adquirindo mais de metade do seu consumo nas ilhas
vizinhas: açores, Canárias. Felizmente que a crise cerealífera madeirense é concomitante com a
sua afirmação no solo açoriano. O rápido incentivo do povoamento deste arquipélago nas
décadas de 60 e 70, conduziu ao igual desenvolvimento da cultura cerealífera, de modo que esta
se afirmava, em finais do século, como a principal área produtora de trigo do Novo Mundo.
A insuficiente colheita cerealífera insular, acompanhada da incidência de crises de produção,
conduziram à valorização da componente leguminosa e frutícola na dieta insular. Assim a
fruticultura e horticultura apresentar-se-ão como componentes importantíssimas na economia de
subsistência. Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI, alude com frequência às hortas e
quintais, que ornamentavam a paisagem humanizada, onde se produzia um conjunto variado de
legumes e frutas. Estes, para além do uso na dieta alimentar, eram também valorizados pelo uso
no provimento das caravelas que aportavam com assiduidade ao porto do Funchal.
Até a década de setenta a Madeira firma a sua posição de celeiro atlântico, perdendo-a, depois
em favor dos Açores que emergem desde então, com uma posição dominante na política e
economia frumentária do Atlântico. Na Madeira inverte-se a situação; a ilha de área excedentária
passa a uma posição de dependência em relação ao celeiro açoriano, canário e europeu. O
estabelecimento de uma rota obrigatória, a partir do fornecimento de cereal açoriano à Madeira,
criará as condições necessárias à afirmação da cultura da cana sacarina, produto tão
insistentemente solicitado no mercado europeu. O empenho do senhorio e coroa na cultura deste
novo produto conduziu a afirmação preferencial de uma nova vertente da economia atlântico-
insular. A partir de então os interesses mercantis dominam a dinâmica agrária madeirense. Na
ilha as searas deram lugar aos canaviais, enquanto as vinhas mantém-se de modo insistente numa
posição de destaque. A coroa havia estabelecido em 1508 que os Açores eram o celeiro do
mundo atlântico, suprindo as carências da Madeira e substituindo-a no fornecimento às praças
africanas e cidade de Lisboa. Na verdade a crise cerealífera madeirense coincidiu com o
incremento da mesma cultura em solo açoriano, tendo-se determinado, nomeadamente em S.
Miguel, um travão ao avanço da cultura do pastel.
As dificuldades de abastecimento de cereais manteve-se como uma constante até à
contemporaneidade. Tudo isto porque a ilha por mais que apostasse no seu cultivo nunca
conseguiu assegurar o necessário cereal consumido e também porque os circuitos de
fornecimento, nas ilhas, colónias e América estiveram sujeitas a inúmeras conjunturas. O corso
atlântico e as guerras europeias condicionaram este abastecimento. A primeira metade do século
XX pode ser considerada um momento crítico. As dificuldades no abastecimento de farinhas
levou as autoridades a intervir, através de medidas de controle das importações, da moagem e da
promoção da cultura cerealífera. No mesmo objectivo se enquadra o plano de alargamento das
terras de regadio, tendo-se alcançado em 1939 3600 ha, situação que foi alargada na década de
quarenta com a Comissão dos Aproveitamentos Hidráulicos.
A campanha do trigo começou ao nível nacional em 1929 e chegou à ilha em nos anos quarenta.
Através de prémios aos agricultores procurava-se promover o aumento da produção cerealífera
diminuindo a dependência ao mercado externo. Esta campanha abrangeu em 1942 144
proprietários que semearam 713660 ha. Mesmo assim a ilha estava longe de conseguir a sua
libertação dos mercados abastecedores externos uma vez que nos princípios da década de
cinquenta apenas estavam garantidos 11% do trigo e 6,4/ do milho. A média de importação de
milho na década de quarenta era superior a vinte toneladas. Algumas destas medidas não foram
bem entendidas pela população como foi o caso do decreto 19275 de 1931, conhecido como do
proteccionismo cerealífero, que provocou uma revolta popular, a célebre revolta da Farinha. Esta
medida de disciplina das moagens foi entendida como uma forma de favorecimento da família
Blandy e de criação de um monopólio. Primeiro em 1934 foi criado o Grémio do Milho Colonial
Português que em 1938 deu lugar à Junta de Exportação dos Cereais que passou a dispor de uma
delegação na Madeira no ano imediato, mantendo-se até 1962. A esta estrutura estava atribuída a
missão de abastecimento do mercado e de fixação dos preços. O papel da Junta ficou
demonstrado na ilha durante a Segunda Guerra Mundial, momento crítico de abastecimento da
ilha.

O MAR E OS RECURSOS PISCÍCOLAS. A alimentação dos insulares não se


resumia apenas a estes dois produtos basilares da economia, pois que a eles se poderiam juntar as
leguminosas e as frutas, que participaram na luta a favor da subsistência. fruticultura e
horticultura definem-se como componentes importantes na economia de subsistência, sendo
referenciadas com grande insistência por Gaspar Frutuoso em finais do século XVI. As
leguminosas e frutas, para além do uso no consumo diário, eram também valorizados pelo
provimento das naus que aportavam com assiduidade aos portos insulares. A alimentação dos
insulares completava-se com o aproveitamento dos recursos disponíveis no meio e que adquiriam
valor alimentar, isto é a caça e pesca e os derivados da actividade pecuária, como a carne, o
queijo e o leite. A pesca terá sido uma importante actividade das populações ribeirinhas, que
usufruíam de uma grande variedade de mariscos e peixe.
A descoberta do mar confunde-se com a da ilha, tendo com protagonista João Gonçalves Zarco
Tudo começou quando ele decidiu proceder ao reconhecimento da costa. Este momento merece
ser referenciado, não só por ser o primeiro encontro com a costa madeirense, mas também pelas
revelações que lhe permite no baptismo dos diversos acidentes da costa. A atenção dos
marinheiros direcciona-se para a terra e o mar. Na primeira busca-se boas oportunidades de
abordagem e de fixação, enquanto no segundo a sua atenção move-se para a fauna marinha. Um
bando de garajaus deu nome a uma ponta: Ponta do Garajau. Os lobos marinhos deram nome à
Câmara de Lobos.
No ano imediato tratou-se do assentamento mas a curiosidade por reconhecer terra que ficara no
desconhecimento tinha agora lugar, com “o correr a costa” até ao seu limite a Ponta do Pargo,
assim chamada pelo facto de aí terem pescado um pargo enorme: “e o maior que até aquelle
tempo tinham visto, pela rezão do qual peixe ficou nome aquela Ponta à do Pargo”. O facto da
toponímia da costa revelar algumas associações à fauna marinha é revelador do interesse que os
navegadores depositam nesta riqueza e o empenho com que a observavam: Porto das Salemas (P.
Santo), Baixa da Badajeira (Madeira). Na verdade o Atlântico era desde a antiguidade um espaço
privilegiado de pesca, descoberto desde o século VI A. C. pelos cartagineses. E aquilo que
buscavam os portugueses não era só novas terras, mas acima de tudo riquezas no mar e em terra.
Tenha-se em atenção, por exemplo, que os primeiros frutos do reconhecimento da costa africana
estão no mar, é o óleo e pele de lobo marinho das expedições posteriores à de 1436 ao Rio do
Ouro, tal como o documenta Gomes Eanes de Zurara. Note-se ainda que alguns autores fazem
eco da riqueza em peixe dos mares da Madeira. Assim Cadamosto, em meados do século XV,
refere ser a ilha rica “em garoupas, dourados e outros bons peixes”.
A revelação e descoberta do mar adquiriram interesse devido à possibilidade de fruição das
riquezas piscícolas. Todavia a atenção do europeu quanto ao mar não se orienta apenas neste
sentido. O mar é a sua via de comunicação e para se servir dela é preciso conhecê-la, através dos
sistemas de correntes e ventos, além do conhecimento dos acidentes da costa, os baixios, etc. O
conhecimento do mar vai ainda permitir uma evolução no sistema de construção das
embarcações na definição do velame. Tudo isto acompanhado de roteiros e cartas que asseguram
o traçado ideal permite navegar com maior segurança e rapidez. Note-se que no caso da Madeira
o calado das embarcações dos primórdios do século XV não permitiam suportar as invernias pelo
que a ilha ficava isolada do reino por cerca de seis meses. Mas aos poucos esse isolamento
quebrou-se com o volume das embarcações e as soluções engendradas para fugir às tempestades.
Note-se que nos séculos XVII e XVIII inúmeras embarcações da carreira do Brasil, de regresso
ao reino com açúcar ou tabaco, sendo vítimas de tempestade aportam ao Funchal para reparação
do velame e mastros e cura dos doentes. A costa da ilha não oferece grandes enseadas de abrigo
e desembarque e o Funchal, que se afirmou como o principal porto, encontra-se situado numa
zona da costa que não oferece as melhores condições de abrigo na estação invernosa devido aos
ventos que sopravam do quadrante sul. Mesmo assim para o período de 1727 a 1802 só estão
registados e conhecidos 52 naufrágios.
O mar é hoje incontestavelmente um recurso importante. A sua presença é cada vez mais
evidente no nosso quotidiano, como via de comunicação, espaço de lazer e recurso económico.
Se nos reportarmos ao passado mais evidente se torna a sua presença para espaços como as ilhas.
Até ao advento dos meios aéreos o mar foi para os ilhéus aquilo que os aproximava ou afastava
de outras ilhas e espaços continentais. O mar foi e continua a ser a via fundamental de
comunicação. Daí advém que o mar está preso à vista do ilhéu e é uma presença permanente no
seu quotidiano. A sua ausência gera saudade. O ilhéu por muito tempo teve no mar o seu cordão
umbilical. Perante isto o ilhéu olha o mar com um misto de devoção e medo. Esta atracção pelo
mar condicionou desde o início a vocação do madeirense. Deste modo a Madeira foi terra
descoberta, mas também de descobridores. Na verdade, a Madeira, arquipélago e ilha, afirma-se
no processo da expansão europeia pela singularidade da sua intervenção.
O mar não é só a via que leva o ilhéu à aventura da descoberta, pois está sempre presente no dia
à dia da ilha. Também as condições orográficas da ilha o arrastaram para outra ligação ao mar,
como via fundamental do desenvolvimento interno. Toda a economia madeirense é dominada
pelo mar e define-se pela litoralidade da sua implantação sócio-geográfica. A insuficiência das
comunicações terrestres, que perdura até ao nosso século, evidencia a importância de actuação
das vias marítimas materializadas numa teia complicada de rotas de cabotagem. A sua
preferência é muitas vezes relativizada em face dos acidentes e adversidades da costa e do mar,
pois os ventos e as correntes marítimas dificultam a sua utilização. A Madeira, devido aos
condicionalismos de ordem geográfica e climática, apresentava reduzidas possibilidades para o
desenvolvimento das vias e meios de comunicação terrestres e marítimas. Esta condição limitou
as possibilidades de desenvolvimento económico, fazendo restringir essa actuação à faixa litoral
sul entre Machico e a Calheta, espaço recheado de enseadas e calhetas para o necessário
movimento de cabotagem. Assim surgem portos em Machico, Santa Cruz, Funchal, Ribeira
Brava, Ponta de Sol e Calheta. O transporte da produção de açúcar da Calheta do ano de 1509
para o Funchal fez-se por barqueiros, em conjunto ou individualmente; executava-se ao longo de
todo o ano, mas habitualmente no período da safra e de maior exportação, entre Março e Julho.
Até 1508 todo o movimento com o exterior era feito a partir do Funchal. daí que existisse um
contínuo movimento de cabotagem, entre este porto e os restantes da ilha, para o escoamento do
açúcar. A partir de então, ao ser permitida a carga e descarga para a exportação do açúcar,
contribuiu-se para a valorização dos portos das partes do fundo em detrimento do Funchal. Esta
situação manteve-se por pouco tempo, pois no ano imediato a medida foi revogada. O porto do
Funchal surge no dealbar do século XVI como o principal entreposto madeirense do comércio
atlântico. A zona ribeirinha do burgo funchalense, em redor da alfândega nova, era o pólo
principal de animação. Aí convergiam mercadores, carreteiros, barqueiros, mareantes e curiosos.
No calhau havia-se instalado em 1488 o cabrestante, cuja exploração foi concedida em regime de
monopólio a João Fernandes Mouzinho, com o foro anual de cem reais. Desde 1568 a sua
exploração seria entregue a uma sociedade, passando em finais do Século a ser explorado por
diversos mareantes que Aí construíram um número variado de cabrestantes. O município aforava
não só a instalação do cabrestante, mas também as casas e os chãos necessários para a actividade
desses mareantes e barqueiros. O foro de um cabrestante variava entre duzentos a trezentos reais,
enquanto o de um chão ou casa se cifrava em trezentos reais.
Perante a evidência do mar no quotidiano madeirense será necessário descobrir os testemunhos
dos seus agentes ao longo da História. Note-se que o centro principal de incidência dos homens
do mar se situava na zona ribeirinha do Funchal. Aí deparamo-nos com 82% dos barqueiros e
98% dos mareantes. Muitos destes encontravam-se temporariamente ao serviço de embarcações
que aportavam ao Funchal. Desses 12% são do reino, nomeadamente de Tavira, Faro, Lagos,
Alcácer do Sal, Santarém, Porto, Esposende, Sesimbra, Gaia. Viana, Barcelos e Vila do Conde.
Sendo assim, o movimento de embarcações entre a Madeira e o reino era intenso, salientando-se
neste último o litoral algarvio, a região de Lisboa e a costa norte. A existência de mareantes fora
do Funchal - Calheta, Santa Cruz, Machico (3%) - evidencia também a existência de contactos
dessas embarcações de comércio a longa distância nestas zonas costeiras.
A acostagem de navios e o serviço de carga e descarga foi por muito tempo um problema
insolúvel para o porto do Funchal. No século dezoito insiste-se na necessidade de um molhe. Os
estudos começaram em 1755 mas este só foi concluído no reinado de D. José. O advento do
século XIX, acarreta novas exigências, mas a reivindicação de um porto capaz foi-se arrastando
até à presente centúria. Nos séculos seguintes continuou a apostar-se no mar como a via mais
fácil e rápida de comunicação, quer na vertente sul quer a norte. A atestar esta valorização das
comunicações marítimas está a construção de cais nos principais centros desse trafico. Assim
temos na vertente Sul Ponta de Sol(1850), Santa Cruz(1870), Lazareto e Machico(1874),
Faial(1901), Câmara de Lobos e Porto da Cruz(1903), Ribeira Brava(1904-1908), Ponta da
Oliveira e Caniço(1909), Ponta da Cruz(1910). E para a vertente norte surgem os de S.
Jorge(1910), Porto Moniz e Seixal(1916) .
A pesca, ao contrário do que hoje acontece não era a actividade exclusiva de alguns núcleos do
sul, pois se alargava a toda a ilha. A afirmação desta actividade levou à criação de núcleos
piscatórios que se afirmaram ao longo dos tempos e que evidenciaram a importância da vertente
sul. O desenvolvimento de algumas indústrias no nosso século levou à sua valorização. Em 1909
Adolfo Loureiro assinala os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Aldonça,
Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, S. Jorge, Ponta Delgada, S. Vicente,
Seixal, Porto Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar,
Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara Lobos e
Porto Santo.
A presença dos grandes cetáceos está também testemunhada na Madeira desde muito cedo. A
primeira baleia conhecida na baía do Funchal é de 1595, enquanto em 1692 uma outra capturada
rendeu 64 000 réis, mas já em 1899, ficou por menos de metade, isto é, 30.000 réis. Em 1741
Nicolau Soares pretendia estabelecer uma fábrica de transformação de baleia na Madeira, mas a
resistência das indústrias da Baía, temerosos da concorrência, impediu-o de levar por diante tal
objectivo. A indústria em questão só terá lugar após a grande guerra, conhecendo -se três
fábricas: Garajau, Ribeira Janela e Caniçal. A conserva de peixes torna-se numa realidade nos
primeiros anos da presente centúria: fábrica da Ponta da Cruz de João A. Júdice Fialho (1909),
fábrica do Paul do Mar de António Rodrigues Brás (1912), transferida em 1928 para a Praia
Formosa; Fábrica de Pedra Sina em S. Gonçalo de Maximiano Antunes (1939); Fábrica de
Machico (1949) de D. Catarina Andrade Fernandes Azevedo, Francisco António Tenório e Luís
Nunes Vieira; Fábrica do Porto Santo (1944). A partir daqui o pescado da ilha passará assim a ter
dois destinos: o consumo público e a indústria de conservas, o que veio permitir um aumento das
capturas. Até então o único destino era o consumo público sob a forma de fresco ou salgado.
tenha-se em conta o interesse nas salinas em Câmara de Lobos e Praia Formosa de que existem
testemunhos desde o século XVIII mas nunca adquiriram grande dimensão e interesse.
Desde o início da ocupação da ilha que o peixe é um recurso destacado. Deste modo sobre ele
recai um imposto, isto é, o dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca. No
Campanário, Ribeira Brava e Tabua esse dizimo era cobrado pelos jesuítas, que desde a segunda
metade do século XVI tiveram assento na ilha. O pescado acudia com maior assiduidade ao
Funchal onde tinha escoamento imediato e um preço mais favorável. Deste modo sucedia que as
diversas localidades da vertente sul, embora dispondo de núcleos piscatórios, debatiam-se quase
sempre com a sua falta, por os pescadores preferirem a sua venda na cidade. Face aos produtos
as autoridades municipais foram forçadas a tomar medidas. Em Machico os pescadores da vila
estavam obrigados a aí venderem ¼ do pescado, passando em 1640 para 1/3. Já na Ponta do Sol
a Câmara proibiu em 1704 a sua venda para fora do concelho e em 1727 obrigava os pescadores
a irem todos os dias ao mar sob pena de 2 000 réis. Mesmo assim o Funchal não estava
devidamente abastecido de pescado, necessitando importar arenque salgado de Inglaterra. A
prova disso está no facto do foral de 1516 os isentar do pagamento do dizimo.
Os madeirenses também iam pescar às costas da Berbéria, um dos melhores bancos de peixe do
Atlântico. Disso se conclui face a uma reclamação dos pescadores em 1596 face ao tributo que
pagavam a João Gonçalves de Ataíde pelo peixe que daí traziam. A par disso sucedem-se
medidas intimidatórias aos pescadores de Câmara de Lobos, obrigando-os, de acordo com
mandato de 1713, a descarregar o seu pescado no Funchal. Esta e outras situações levaram o
corregedor a organizar em 1783 um regulamento para as pescas nas ilhas - Estabelecimento das
Pescarias das ilhas da Madeira e Porto Santo - que não teve efeito. A par disso sucederam-se
medidas de defesa desta industria através de regulamentos que delimitavam a forma da pescada,
quanto às redes a usar e no século XIX o uso abusivo de bombas, testemunhadas no norte da ilha
e Ponta de Sol, situação que levou a uma portaria de 1877 recomendando ao governador medidas
contra essa prática. A venda do pescado era feita na praça de acordo com condições estabelecidas
pelas posturas. Todo o peixe deveria ser aí vendido a preços tablados e a todos os que o
procuravam, de modo a evitar o uso abusivo dos mais ricos que através dos seus escravos
procuravam tirar o peixe à força às vendedeiras.
O mareante e o barqueiro, tal como o pescador, assentaram morada na zona ribeirinha pelo apego
ao mar, junto do burburinho do calhau, onde poderiam ouvir o marulhar das ondas. A zona do
calhau, hoje Corpo Santo, acolhia o maior número de marinheiros, barqueiros e pescadores. A
sua influência foi dominante nesta área citadina. Em Machico, Santa Cruz, Ribeira Brava,
Calheta e na ilha do Porto Santo havia igualmente uma diminuta comunidade de homens do mar
com morada fixa junto ao calhau ou aos ancoradouros. A pesca ocupava em 1914 mais de mil e
quinhentos pescadores com 537 embarcações, já em 1931 temos 1500 pescadores servidos de 24
embarcações a motor e de 508 à vela ou a remos. Mas a tendência parece ter sido no sentido
inverso na década de quarenta. Não obstante assinalarmos a captura de 2471 toneladas é evidente
uma redução do número de embarcações a vela e remos em favor das motorizadas. Das primeiras
assinalam-se 327 e das segundas 46.
O interesse pelo mar não se reduziu apenas à junção dos seus recursos económicos. Também é
de registar uma aposta nos estudos científicos a partir do século XVII. A passagem de alguns
cientistas ingleses pela Madeira propiciou uma primeira descoberta das raridades da sua fauna
marinha.. Tenha-se em conta as expedições de Hans Sloane(1687) e James Cook(1768 e 1772).
Já no decurso do século XIX aumentou o interesse pela ilha, por parte de súbditos ingleses
residente ou de passagem. Destes podemos destacar os estudos de Richard Lowe(1833-1846),
interrompidos com a sua morte num naufrágio em 1874. James Yate Johnson seguiu-lhe o
encalço e publicou alguns estudos até à sua morte em 1900.
O empenho dos madeirenses neste estudo poderá ser assinalado com João José Barbosa du
Bocage. O primeiro a apelar a isso foi José Silvestre Ribeiro quando em 1850 criou o Gabinete
de História Natural., que se apagou com a sua saída em 1852. Todavia a aposta no estudo e
divulgação dos recursos marinhos viria só a acontecer mais tarde com a criação do Aquário do
Museu Municipal, que abriu ao público em 1951.A publicação do Boletim do Museu Municipal
desde 1945, os estudos de Adão Nunes, Adolfo César de Noronha e Gunter Maul vieram a dar
conta de quão rico é o nosso património marinho.
Nas comunidades piscatórias a devoção religiosa adquire dimensão particular. Esta poderá
incidir em qualquer dos santos patronos - S. Pedro o pescador, S. Pedro Gonçalves Telmo - ou
nos oragos do lugar, como é o caso de Nª Senhora da Piedade para o Caniçal, do Senhor dos
Milagres para Machico, de Nª Senhora da Conceição no Porto Moniz e do Senhor Bom Jesus de
Ponta Delgada(...). Santelmo era a invocação óbvia em momentos de tempestade. A ele
associava-se as centelhas luminosas que apareciam nas extremidades dos mastros dos navios,
provocadas pela electricidade atmosférica. Este fenómeno ficou conhecido como o fogo de
Santelmo. A devoção ao santo ocorria com particular incidência no Funchal, ao cabo do Calhau,
e em Câmara de Lobos. Em ambos os portos piscatórios existe uma capela da sua invocação,
cujo culto era assegurado por uma confraria da responsabilidade dos mesmos pescadores.
Todavia a confraria em questão apostava mais no auxílio mútuo aos pescadores e familiares.
Cada barco deveria entregar uma cotização à confraria que este administrava depois no auxílio
em caso de naufrágio ou morte. Assim sucedeu no Funchal, Câmara de Lobos e Calheta, onde
funcionou esta confraria. Já no presente século todo esse apoio passou, desde 1939, a estar
centralizado na Casa dos Pescadores.
Olhando à história da ilha denota-se que o mar, embora obrigatoriamente sempre presente, não
adquire a dimensão que deveria merecer. No início, os madeirenses são mais aventureiros do que
marinheiros e, depois, continuam quase que a ignorar o mar e os seus recursos. Para isso deverá
ter contribuído a política centralista da coroa, que sempre estabeleceu limitações a essa
redescoberta do mar a partir das ilhas. São os entraves ao desenvolvimento da construção naval e
os segredos que medeiam os conhecimentos sobre o mar. Perante tudo isto o madeirense afirma-
se como agricultor e aventureiro, que faz-se transportar e às suas riquezas por outrem. De entre,
os homens que têm por palco o mar, são um grupo reduzido, o que gera algumas dificuldades
nomeadamente no aproveitamento dos seus recursos para a alimentação. No passado foi
insistente a falta de pescado para abastecimento do mercado local, tornando-se indispensável a
sua importação. De igual forma o madeirense deixou entregue a mãos alheias a tarefa de estudo e
conhecimento do mar. Foram os ingleses que tiveram o condão de nos revelar quão rico era o
mar que nos rodeiam.
A RIQUEZA ARRANCADA À TERRA

Se o cereal pouco contribuía para aumentar os reditos dos seus intervenientes o mesmo não se
poderá dizer em relação ao açúcar e vinho que, a seu tempo contribuíram para o enriquecimento
das gentes da ilha. A própria coroa e senhorio fizeram depender grande parte das suas despesas
ordinárias dessa fonte de receita. A par disso o enobrecimento da vila, mais tarde, cidade do
Funchal fez-se à custa desses dinheiros. O Funchal avança para poente e adquire fama de novos e
potenciais mercados. Todavia esta opulência foi de vida efémera. Desde a terceira década do
século XVI o açúcar madeirense é destronado da posição cimeira no mercado europeu, perdendo
a preferência em favor do canário ou brasileiro, de menor qualidade, mas que ai aparecem com
preços mais baratos.
A exploração agrícola na ilha estava limitada à superfície arável e as condições que o mesmo
oferecia. A orografia era o óbice mais importante e conduzia a que pouco mais de trinta por
cento da superfície podia ser dedicada à agricultura. Por outro lado a sua disposição em altitude
levou a que a sua distribuição estivesse limitada a patamares. Perante isto seremos confrontados
com uma exploração extensiva do solo e uma valorização escalonada das culturas. Deste modo
em cada época as culturas dominantes ocupavam os melhores e mais ricos solos agrícolas. Ainda
de acordo comas condições agro-climáticas de cada produto teremos uma diversidade de culturas
a moldar a policromia da paisagem.

A CANA DE AÇÚCAR. A rota do açúcar, na transmigração do Mediterrâneo para o


Atlântico, tem na Madeira a principal escala. Foi na ilha que a planta se adaptou ao novo
ecossistema e deu mostras da elevada qualidade e rendibilidade. Deste modo a quem quer que
seja que se abalance a uma descoberta dos canaviais e do açúcar, na mais vetusta origem no
século XV, tem obrigatoriamente que passar pela ilha. A Madeira manteve uma posição
relevante, por ter sido a primeira área do espaço atlântico a receber a nova cultura. E por isso
mesmo foi aqui que se definiram os primeiros contornos desta realidade, que teve plena
afirmação nas Antilhas e Brasil. Foi na Madeira que a cana-de-açúcar iniciou a diáspora
atlântica. Aqui surgiram os primeiros contornos sociais (a escravatura), técnicos (engenho de
água) e político-económicos (trilogia rural) que materializaram a civilização do açúcar. Por tudo
isto torna-se imprescindível uma análise da situação madeirense, caso estejamos interessados em
definir, exaustivamente, a civilização do açúcar no mundo atlântico.
A história do açúcar na Madeira confunde-se com a conjuntura de expansão europeia e dos
momentos de fulgor do arquipélago. A sua presença é multissecular e deixou rastros evidentes na
sociedade madeirense. Dos séculos XV e XVI ficaram os imponentes monumentos, pintura e a
ourivesaria que os embelezou e que hoje jaz quase toda no Museu de Arte Sacra. Do século XIX
e do primeiro quartel da nossa centúria perduram ainda a maioria dos engenhos desta nova vaga
de cultura dos canaviais. Aqui, a cana diversificou-se no uso industrial, sendo geradora do álcool,
aguardente e, raras vezes, o açúcar. Foi certamente neste momento que surgiu a tão afamada
poncha, irmã do ponche de Cabo Verde e da caipirinha no Brasil.
A Europa sempre se prontificou a apelidar as ilhas de acordo com a oferta de produtos ao seu
mercado. Deste modo, sucedem-se as designações de ilhas do pastel, do açúcar e do vinho. O
açúcar ficou como epíteto da Madeira e de algumas das Canárias, onde a cultura foi a varinha de
condão que transformou a economia e vivência das populações. Também do outro lado do
oceano elas se identificam com o açúcar, uma vez que serviram de ponte à passagem do
Mediterrâneo para o Atlântico. Daqui resulta a relevância que assume o estudo do caso
particular, quando se pretende fazer a reconstituição da rota do açúcar. A Madeira é o ponto de
partida, por dois tipos de razões. Primeiro, porque foi pioneira na exploração da cultura e, depois,
na expansão ao espaço exterior próximo ou longínquo, incluído as Canárias.
O açúcar é de todos os produtos que acompanharam a diáspora europeia aquele que moldou, com
maior relevo, a mundividência quotidiana das novas sociedades e economias que, em muitos
casos, se afirmaram como resultado dele. A cana sacarina, pelas especificidades do seu cultivo,
especialização e morosidade do processo de transformação em açúcar, implicou uma vivência
particular, assente num específico complexo sócio-cultural da vida e convivência humana.
Gilberto Freyre foi o primeiro em 1971 a chamar a atenção dos estudiosos para esta realidade,
quando definiu as bases daquilo que a que designou de Sociologia do Açúcar: A publicação em
1933 de “Casa-Grande & Senzala” foi o prelúdio de nova preocupação e domínio temático para a
Sociologia e a História.
A cana sacarina, ao contrário do que sucedeu com os demais produtos e culturas (vinha, cereais),
não se resumiu apenas à intervenção no processo económico. Ela foi marcada por evidentes
especificidades capazes de moldarem a sociedade, que dela se serviu para firmar a sua dimensão
económica. A importância a que o sector comercial lhe atribuía conduziu a que fosse uma cultura
dominadora de todo (ou quase todo) o espaço agrícola disponível, capaz também de estabelecer
os contornos de uma nova realidade social. Foi precisamente esta tendência envolvente que levou
a Historiografia a definir o período da afirmação como o Ciclo do Açúcar. Aqui não estávamos
perante uma aplicação da teoria dos ciclos económicos, mas pretendia-se subordinar esta
tendência para a afirmação da cultura na vida económica e social com este conceito. A
omnipresença da cultura, as múltiplas implicações que gerou nos espaços em que foi cultivada
levou alguns investigadores a estabelecer um novo modelo de análise: os ciclos de produção
assentes na monocultura
O grande erro da Historiografia europeia foi ter encarado a economia açucareira da Madeira ou
das Canárias como um retrato em miniatura. O confronto das duas realidades, coisa que ainda
ninguém se atreveu a fazer, comprova que a situação não existe, não passando de mera ficção as
análises que são colocadas ao nosso dispor. O facto de ambos os arquipélagos terem sido meios
de ligação da nova cultura económica do atlântico ocidental, não quer dizer que houve uma
transplantação total e igual para os novos espaços. As condições ambientais, os obreiros da
transformação eram outros como diversa foi a realidade que o produto gerou. Tudo isto deverá
resultar das ciladas do método de análise do processo histórico de forma retrospectiva, onde, por
vezes, o facto surge-nos como a imagem e consequência. Tal como o provaram os estudos
recentes sobre a situação da economia açucareira do Mediterrâneo Atlântico, a conjuntura deste
espaço é diversa da americana, seja ela insular ou continental. Também não se poderá colocar ao
mesmo nível o caso de São Tomé que, embora situado no sector ocidental do oceano, aproxima-
se mais da realidade antilhana do que dos arquipélagos da Madeira e das Canárias. De acordo
com esta ideia, de que a civilização do açúcar teve apenas uma única forma de expressão no
Atlântico Ocidental e Oriental, partiu-se para a afirmações precipitadas na análise da economia e
sociedade que lhe serviu de base. Ao açúcar associou a Historiografia, desde muito cedo, a
escravatura, fazendo jus à afirmação de Antonil em 1711, de que “os escravos são as mãos e os
pés do senhor de engenho”. Aqui também a relação não nos surge tão transparente como à
primeira vista pode parecer.
As cruzadas, de acordo com a Historiografia europeia, foram o princípio da expansão da cultura
açucareira e da vinculação aos escravos. Deste modo nas colónias italianas do Mediterrâneo
Oriental surgem os primeiros resquícios da nova dinâmica social que passaria à Sicília e, depois
à Madeira, donde se expandiram no Atlântico. Diz-se, ainda, que a ligação do escravo, negro ou
não, à cultura dos canaviais foi uma invenção do ocidente cristão, não havendo lugar no mundo
muçulmano. Neste contexto surgiu o conceito Plantation, ou plantagem para os brasileiros, a
definir a organização social, económica e política da agricultura que tinha por base este produto.
Sidney Greenfield em 1979, partindo desta ideia, estabeleceu para o arquipélago madeirense uma
função primordial na afirmação da escravatura e relações económico-sociais envolventes: A
Madeira foi o elo de ligação entre “Mediterranean Sugar Production” e a “Plantation Slavery”,
questão que voltaremos no final.
Sucede que a escravatura da Madeira, tal como teremos oportunidade de o afirmar, não assumiu
uma posição similar à de Cabo Verde, São Tomé, Brasil ou Antilhas, não obstante o surto
evidente de produção açucareira. Aqui, ao invés daquilo que tem lugar, o escravo não dominou
as relações sociais de produção: ele existiu, sob a condição de operário especializado ou não,
mas a posição não era dominante, tal como sucedia nas áreas supracitadas. Por fim acresce que
esta hiper-valorização do açúcar na História da Madeira levou alguns aventureiros e progenitores
de teorias de vanguarda a estabelecer também uma forma peculiar de urbanização do Funchal, de
acordo com a presença do açúcar. Deste modo ao Funchal do século XVI chamam-lhe, sem
saberem e explicarem porquê, “cidade do açúcar”, quando na realidade, a expressão urbanística
da cana-de-açúcar é manifestada pela ruralidade. A esta e às demais questões atrás enunciadas
propomo-nos ver qual o fundamento e a possibilidade de vinculação às manifestações conhecidas
da civilização do açúcar na Madeira.
O açúcar, acima de tudo, era um complemento fundamental na vida económica da ilha. Sucedeu
assim até meados do século XVI e, depois, a partir de finais do século XIX, tudo mudou. A
riqueza cumulou os proprietários mas também a arraia-miúda, sendo um factor de progresso
social. Com ele ergueram-se igrejas - a Sé do Funchal é um exemplo disso -, amplos palácios que
se rechearam de obras de arte de importação, testemunhos evidentes estão no actual Museu de
Arte Sacra. A arte flamenga na ilha é um dom do açúcar. O Progresso sócio-económico da ilha, o
seu protagonismo na expansão atlântica—nos descobrimentos e defesa das praças africanas—só
foi conseguida à custa da elevada riqueza acumulada pelos madeirenses. Todos, sem diferença
de condição social, fruíram desta riqueza. Até a opulência e luxúria da própria coroa, lá longe no
reino, foi conseguida, por algum tempo, com o açúcar que a coroa arrecadava na ilha.
Mas a implantação dos canaviais não deriva apenas da disponibilidade de uma reserva florestal e
de água para a laboração dos engenhos. A isso deverá juntar-se, necessariamente, as condições
oferecidas pelo clima e orografia. Neste contexto as ilhas da América Central e do Golfo da
Guiné estarão em melhores condições que a Madeira ou as Canárias. Deste modo em ambos os
arquipélagos a orografia estabeleceu um travão à afirmação da cultura extensiva dos canaviais.
De acordo com estas condições a produção madeirense dos séculos XV e XVI nunca ultrapassou
as 1584,7 toneladas, atingidas em 1510. apenas no presente século, com a expansão dos
canaviais, de novo a toda a ilha, se conseguiu suplantar este valor, tendo-se atingido em 1916 as
4943,6 toneladas. Este incremento da produção açucareira foi travado nos anos imediatos por
meio dos decretos de 1934-1935 e 1937 regulamentadores da área de produção. Em S. Tomé os
canaviais tiveram melhores condições para se afirmarem e suplantarem a produção madeirense:
na primeira metade do século dezasseis a ilha, com uma extensão de 857 m2, (mais que a
Madeira - 728) produzia o dobro, cifrando-se este valor, na primeira metade do século XVI, em
4950 toneladas o clima, o solo fazem com que a produção de açúcar em S. Tomé cedo
suplantasse a madeirense: aí as canas cresciam três vezes mais que na Madeira e colhem-se duas
culturas.
Os canaviais aparecem, num segundo momento, por iniciativa do infante que os mandou vir da
Sicília. Neste caso os testemunhos são claros, sendo de referir Cadamosto: “E por ser banhada
por muitas águas, o dito senhor mandou pôr nesta ilha muitas canas de açúcar, que deram muito
boa prova”. Isto é documentado, mais tarde em 1511, por Simão Gonçalves da Câmara: que
vendo a calidade da terra desta ilha e a temperança dela pareceu-lhe que se podia dar açucares e
sabendo a aspereza da terra e os grandes trabalhos que os primeiros povoadores tinham em a
romperem determinou como muito virtuoso ajudar a seus lavradores e também pelo proveito que
lhe disso seguia de mandar trazer a planta das canas a esta terra e ordenou e quis que pondo ele a
dita planta em cada um ano e os lavradores pudessem o esmoutar e tirar e lavrar e plantar. A
primeira plantação teve lugar no Funchal, num terreno do infante, conhecido como o campo do
duque. Daqui os canaviais foram levados para Machico, onde se fabricou o primeiro açúcar - 13
arrobas -, que foi vendido a cinco cruzados a arroba.
Sabe-se que o infante permitiu aos povoadores a construção de engenhos para a laboração do
açúcar sujeitando-se ao pagamento de 1/3 da produção. Destes apenas temos notícia do
construído por Diogo Teive, conforme autorização escrita do próprio infante de 1452. Daqui se
infere da existência de um lagar propriedade do senhor infante. O fabrico do açúcar fazia-se em
exclusivo neste lagar já existente e no novo engenho de água, pois “que eu não dá lugar a
ninguém que possa fazer outro semelhante e não se podendo todo fazer que eu dá lugar a quem
me prover que faça outro”. Do primeiro açúcar começou a fazer-se exportação. Assim,
Cadamosto dá conta da promissora produção: “... e fabricaram-se açúcares pela quantidade de
quatrocentos cântaros, tanto na primeira cozedura, como da mistura e pelo que posso perceber,
far-se-á com o tempo maior quantidade (...). Fazem-se ali também muitos doces cobertos com
suma perfeição”. Para Diogo Gomes os da ilha “fabricam açúcar em tal quantidade que é
exportado para as regiões orientais e ocidentais”.
A tradição anota que as primeiras socas de cana saíram de La Gomera. Todavia a cultura
encontrava-se aí nesse momento em expansão, enquanto na Madeira estava já consolidada. Note-
se que ainda estão por descobrir as razões que conduziram Colombo, no decurso da Terceira
viagem, a fazer um desvio na sua rota para escalar o Funchal. Na verdade, a Madeira foi a
primeira área do Atlântico onde se cultivou a cana-de-açúcar que, depois, partiu à conquista das
ilhas (Açores, Canárias, Cabo Verde, S. Tomé e Antilhas) e continente americano. Por isso
mesmo o conhecimento do caso madeirense assume primordial importância no contexto da
História e geografia açucareira dos séculos XV a XVII.
O açúcar da Madeira ganhou fama ao nível do mercado europeu. A sua qualidade diferenciava-o
dos demais e fê-lo manter-se como o preferido de muitos consumidores europeus. Deste modo o
aparecimento de açúcar de outras ilhas ou do Novo Mundo veio a gerar uma concorrência
desenfreada ganha por aquele que estivesse em condições de ser oferecido ao melhor preço. Um
testemunho disso surge-nos com Francisco Pyrard de Laval: “Não se fale em França senão no
açúcar da Madeira e da ilha de S. Tomé, mas este é uma bagatela em comparação do Brasil,
porque na ilha da Madeira não há mais de sete ou oito engenhos a fazer açúcar e quatro ou cinco
na de S. Tomé”. E refere que no Brasil laboravam 400 engenhos que rendiam mais de cem mil
arrobas que, segundo o mesmo, são vendidas como da Madeira.
O mais significativo desta situação do novo mercado produtor de açúcar é que o madeirense
encontra-se indissociavelmente ligado. Na verdade, a Madeira foi o ponto de partida do açúcar
para o Novo Mundo. O solo madeirense confirmou as possibilidades de rentabilização e de
abertura de novo mercado para o açúcar. Também o incola foi capaz de agarrar esta opção,
tornando-se no obreiro da sua difusão no mundo Atlântico. A tradição anota que foi a partir da
Madeira que o açúcar chegou aos mais diversos recantos do espaço atlântico e que os técnicos
madeirenses foram responsáveis pela sua implantação. O primeiro exemplo encontramos em Rui
Gonçalves da Câmara, quando em 1472 comprou a capitania da ilha de S. Miguel. Na sua
expedição de posse da sua capitania fez-se acompanhar de canas da sua Lombada, que entretanto
vendera a João Esmeraldo, e dos operários para a tornar produtiva. A estes seguiram-se outros
que corporizaram diversas tentativas frustradas para fazer vingar a cana de açúcar nas ilhas de S.
Miguel, Santa Maria e Terceira.
Em sentido contrário avançou o açúcar em 1483, quando o governador D. Pedro de Vera quis
tornar produtiva a terra conquistada nas Canárias. De novo a Madeira surge disponibilizar as
socas de cana para que aí surgissem os canaviais. Todavia, o mais significativo é a forte presença
portuguesa no processo de conquista e adequação do novo espaço a economia de mercado. Os
portugueses em especial o Madeirense surge com frequência nestas ilhas ligando-se ao processo
de arroteamento das terras, como colonos que recebem datas de terras na condição de
trabalhadores especializados a soldada, ou de operários especializados que construíram os
engenhos e os colocam em movimento.
O avanço do açúcar para sul ao encontro do habitat que veio gerar o boom da produção, deu-se
nos anos imediatos ao descobrimento das ilhas de Cabo Verde e S. Tomé. Todavia, só nesta
última, pela disponibilidade de água e madeiras, os canaviais encontraram condições para a sua
expansão. Deste modo em 1485 a coroa recomendava a João de Paiva que procedesse à
plantação de cana do açúcar. Para o fabrico do açúcar refere-se a presença de “muitos mestres da
ilha da Madeira”. A partir do século XVI a concorrência do açúcar das Canárias e S. Tomé
aperta o cerco do açúcar madeirense o que provocou a natural reacção dos agricultores
madeirenses. Deste modo sucedem-se as queixas junto da coroa, que ficou testemunho em 1527.
Em vereação reuniram-se os lavradores de cana para reclamar junto da coroa contra o prejuízo
que lhes causava o progressivo desenvolvimento desta cultura em S. Tomé. A resposta do rei, no
ano imediato, remete para uma análise dos interesses em jogo e só depois, no prazo de um ano,
seria tomada uma decisão, que parece nunca ter vindo. Note-se que a exploração fazia-se
directamente pela coroa e só a partir de 1529 surgem os particulares interessados nisso. Enquanto
isto se passava, do outro lado do Atlântico davam-se os primeiros passos no arroteamento das
terras brasileiras. E, mais uma vez, é notada a presença dos canaviais e dos madeirenses como os
seus obreiros.
A coroa insistiu junto dos madeirenses no sentido de criarem as infra estruturas necessárias ao
incremento da cultura. Aliás, o primeiro engenho aí erguido por iniciativa da coroa contou com a
participação dos madeirenses. Em 1515 a coroa solicitava os bons ofícios de alguém que pudesse
erguer no Brasil o primeiro engenho, enquanto em 1555 foi construído pelo madeirense João
Velosa um engenho a expensas da fazenda real. Esta aposta da coroa na rentabilização do solo
brasileiro através dos canaviais levou-a condicionar a forja de mão-de-obra especializada, que
então se fazia na Madeira. Assim, em 1537 os carpinteiros de engenho da ilha estavam o
proibidos de ir à terra dos mouros. Com tais condicionantes e colocados perante o paulatino
decréscimo da produção açucareira na ilha, muitos madeirenses são forçados a seguir ao
encontro dos canaviais brasileiros. Deste modo em Pernambuco e na Baia, entre os oficiais e
proprietários de engenho, pressente-se a presença madeirense. É de salientar que alguns destes
madeirenses se tornaram em importantes proprietários de engenho como foi o caso de Mem de
Sá, João Fernandes Vieira, o libertador de Pernambuco. É a partir daqui que se estabelece um
vínculo com a Madeira, continuado através do trafico ilegal de açúcar para o Funchal ou então ao
mercado europeu com a designação da Madeira. Este movimento seguia as ancestrais ligações
entre os que do outro lado do Atlântico via florescer a cultura e aqueles que na ilha ficavam sem
os seus benefícios. Contra isso intervêm os madeirenses e a coroa proibindo a importação deste
açúcar para revenda na ilha. Depois sucederam-se outras medidas do município, proibindo a
qualquer dos seus membros a compra de açúcar do Brasil. Todavia, o aparecimento do bicho da
cana em 1610 os madeirenses tiveram de se conformar com a entrada do açúcar brasileiro, por
isso a edilidade estabeleceu em 1611 um contrato com os mercadores em que estes se
comprometem expedir do Funchal uma caixa de açúcar de ilha com outro do Brasil. Situação que
nunca foi cumprida, uma vez que em 1620 nas 1178 caixas saídas da alfândega do Funchal
temos 23560 arrobas de açúcar do Brasil e 1992 da Madeira. Perante esta situação a capacidade
concorrencial do açúcar insular estava irremediavelmente perdida. Os canaviais foram
desaparecendo paulatinamente das terras, dando lugar aos vinhedos. Apenas a conjuntura da
segunda metade do século dezanove permitiu o seu retorno. Mas foram efémeras as tentativas
para a produção de açúcar, só possível mediante uma política proteccionista. Os canaviais
perderam a sua função de produtores do açúcar, o ouro branco dos insulares, mas em
contrapartida favoreceram uma produção alternativa de mel e aguardente. Daqui resulta as
actuais sobrevivências da cultura na Madeira e Canárias.

PROPRIETÁRIOS DE CANAVIAIS E ENGENHOS. A cultura da cana coloca inúmeras


questões em termos da propriedade da terra e da água. Dois dados indissociáveis da sua
afirmação. O conhecimento do regime de propriedade requer um estudo aturado, assente nas
fontes documentais que atestem o sistema de relações estabelecido na posse e produção da parca
superfície arável. A historiografia preocupa-se, única e exclusivamente, com as condições
jurídicas que regularam a distribuição das terras e depois a degradação do sistema com o
alheamento do proprietário da parcela arroteável e a sua fixação no meio urbano. Esta última
situação contribuiu na Madeira para a definição do conhecido contrato de colonia. Não
interessava conhecer quem e como se recebiam as terras de sesmaria, que tipo de propriedade
condicionou esta política de doação e distribuição de terras, qual a evolução desta estrutura e as
suas cambiantes, de acordo com as condições mesológicas do solo arável. O equacionar da
problemática em estudo não poderá desligar-se, como é óbvio, da evolução do sistema de
propriedade. O povoamento insular mereceu, desde muito cedo a atenção da historiografia
nacional que aponta o carácter peculiar deste processo evidenciado pela sua concretização num
solo inexplorado com carácter experimental. A ilha da Madeira, porque virgem , apresentava as
condições necessárias para o primeiro ensaio de colonização europeia fora do continente. E daí
partiram os processos, as técnicas e os produtos para as restantes ilhas do Atlântico e Brasil.
O sistema de propriedade ficou definido pela distribuição de terras aos povoadores e, depois,
pela venda, troca ou nova doação. Num e noutro caso as situações são idênticas, variando apenas
a forma da sua expressão consoante o processo de povoamento e as peculiaridade de cada ilha.
Todas estas doações eram feitas de acordo com normas estabelecidas pela coroa e seguiam o
modelo já definido para o repovoamento da Península. Para além da condição social do
contemplado, das indicações, por vezes imprecisas, da área de cultivo e para erguer benfeitorias,
estabelecia-se também o prazo para as arrotear. Assim, dos dez anos iniciais passa-se para cinco
a partir de 1433, o que se manteve não obstante as reclamações dos moradores, que anotavam a
dificuldade no arroteamento. Assim, na Madeira dos dez anos iniciais passou-se para cinco, a
partir de 1433, o que se manteve não obstante as reclamações dos moradores, que apontavam a
dificuldade no seu arroteamento. Nas Canárias, também os alargados prazos iniciais foram sendo
reduzidos.Estas condições revelam que o principal intuito desta distribuição de terras era
fomentar o povoamento das ilhas.
O processo das Canárias não é idêntico ao da Madeira. Enquanto o arquipélago madeirense, que
se resume a duas ilhas, foi entre 1439 e 1497 senhorio da ordem de Cristo, que estabeleceu como
seus representantes três capitães: João Gonçalves Zarco no Funchal (1450), Tristão Vaz em
Machico (1440) e Bartolomeu Perestrelo no Porto Santo (1446). Nas Canárias encontramo-nos
perante ilhas realengas (Gran Canaria, La Palma e Tenerife) e de senhorio (Fuerteventura,
Lanzarote, La Gomera e El Hierro). Acresce, ainda, neste arquipélago a presença de uma
população autóctone que fez atrasar o processo de ocupação e colocou os povoadores perante um
novo pretendente à distribuição de terras, isto é os indígenas que aceitaram a soberania
castelhana.
Nas ilhas portuguesas a distribuição de terras foi regulamentada, desde o início, pela coroa e,
mais tarde, pelo senhorio da ilha, o infante D. Henrique. No primeiro o monarca D. João I
ordenara aos capitães que as terras seriam “dadas forras e sem pensão alguma aqueles de maior
qualidade e a outros que posanças tiverem para as aproveitar. E aos de menor que vivão de seu
trabalho de cortar e pilhar madeiras e das criações de gado...”. Depois, João Gonçalves Zarco,
fazendo uso das prerrogativas atribuídas reservou para si e descendentes um importante pecúlio
de terras no Funchal e Ribeira Brava. Outras foram concedidas, de acordo com o regimento
afonsino, aos que estavam em condições de as aproveitar pois caso contrário perdiam o seu
direito de posse. Isto foi o princípio de diferenciação social dos primeiros colonos e a abertura à
afirmação da grande propriedade. Também, nas Canárias é patente esta diferenciação social dos
agraciados com dadas de terras que, de acordo com cédula real de 1480,Pedro de Vera deveria
concede-las aos conquistadores “segun sus merecimientos”.
A concessão de terras de sesmaria e a legitimação da posse geraram alguns conflitos que
implicaram a intervenção do senhorio ou o arbítrio do seu ouvidor. Em 1461 os madeirenses
reclamaram contra a redução do prazo para aproveitamento das terras de sesmaria, dizendo que
eram “bravas e fragosas e de muitos arvoredos”. Contudo, o infante D. Fernando não abdicou do
foral henriquino e apenas concedeu a possibilidade de alargamento do prazo mediante análise
circunstanciada de cada caso pelo almoxarife. Passados cinco anos os mesmos contestaram de
novo o regime de concessão de terras de arvoredos e o modo de as esmontar, pelos efeitos
nefastos que causava à safra açucareira. Perante isto o senhorio ordenou aos capitães e
almoxarifes que cumprissem os prazos estabelecidos e que fosse interdito o uso do fogo. No
entanto, em 1483, o capitão de Machico continuava a distribuir de sesmarias os montes próximos
do Funchal, com excessivo prejuízo para os lavradores do açúcar e, por isso mesmo, D. Manuel
repreende-o, solicitando que tais concessões deveriam ser feitas na presença do provedor.
Finalmente, em 1485, o mesmo proibiu a distribuição de terras de sesmaria nos montes e
arvoredos do norte da Ilha, para em princípios do século XVI (1501 e 1508) acabar
definitivamente com a concessão de terras em regime de sesmaria. A única ressalva estava nas
terras que pudessem ser aproveitadas em canaviais e vinhedos.
Em qualquer dos arquipélagos a prepotência dos capitães e governadores no processo de
distribuição das terras gerou inúmeras desavenças que mereceram a intervenção da coroa. Na
Madeira o senhorio enviou em 1466 Dinis de Grãa, seu procurador, com plenos poderes para
resolver as causas pendentes das reclamações chegadas ao reino, entre as quais as referentes às
terras e águas. Também em Canárias sucederam-se queixas sobre a forma como se procedeu à
distribuição de terras e a coroa viu-se na necessidade de enviar representantes seus para repor a
legalidade em todo o processo, com poderes para reformar as partidas de terras. Em 1506 surge o
licenciado Juan Ortiz de Zarate nas três ilhas realengas que foi substituído por Lope de Sousa em
1509.
Na Madeira são poucas as doações de terra que resistiram ao correr dos tempos e que ficaram a
testemunhar e legitimar a posse do solo arável ilha. Destas temos notícia de uma de 1457 a
Henrique Alemão. Aqui especifica-se a obrigação do sesmeiro de construir casa e de as terras
concedidas serem ocupadas com vinhas, canaviais e horta. Noutra de 1470 determina-se que as
terras dadas deviam ser plantadas de canaviais. Por felicidade, no caso das Canárias são muitas
as dadas de terras que persistiram no tempo, existindo em Tenerife o livro de datas, já publicado
e estudado. Note-se que também aqui se repetem as mesmas recomendações da Madeira, quanto
aos produtos e benfeitorias a lançar sobre a terra. A tudo isto há que referir, ainda, que as ilhas
Canárias onde se implantou a cultura dos canaviais apresentavam um ecossistema distinto do
madeirense. Assim, na Madeira os cronistas, excepção feita ao Porto Santo, não se cansam de
enunciar duas riquezas fundamentais para medrar os canaviais e a industria subsequente. A ilha é
abundante em água e lenhas pelo que a cana de açúcar tem condições para se afirmar. Em face
disto as doações de terra não fazem expressa referencia à repartição da água. Esta, no primeiro
momento, dá e sobra . Os problemas com a sua falta e a necessidade de regulamentar o seu uso e
posse surgem depois. Diferente é, todavia, a situação das Canárias.
Tendo em conta a importância que a água assume para a cultura a safra do açúcar é necessário
não esquecer a forma da sua distribuição e posse. Se no caso da Madeira este não foi um
problema, no início, devido à abundância da mesma, nas Canárias, ao contrario a sua escassez
levou a que se estabelecesse logo a sua posse. Deste modo temos dadas de terras com e sem
água. Na Madeira a água corria nas ribeiras, em abundância na vertente norte. No sul os caudais
eram, na época estival, quase todos desviados para as levadas. É, na verdade, no seu leito e
margens que se joga a História da ilha. Facto significativo é o de também as principais freguesias
terem à cabeceira uma ou mais ribeiras. O Funchal, principal assentamento da ilha, é cortado por
três ribeiras.
Nas áreas de maior concentração populacional e de intensivo aproveitamento do solo, como foi o
caso do Funchal, a água das ribeiras não foi suficiente para suprir as solicitações dos vizinhos.
Deste modo, em 1485 o Duque D. Manuel recomendava que as águas da Ribeira de Santa Luzia
fossem usadas apenas nos engenhos, moinhos e benfeitorias que dela se serviam não podendo ser
desviadas para outro fim. Idêntica recomendação repete-se em 1496. Note-se que esta ribeira
servia vários engenhos e os moinhos do capitão do Funchal. Foi com D. João II que ficaram
definidos os direitos sobre a água, que perduraram até ao século XIX. Por cartas de 7 e 8 de
Maio estabeleceu-se, de uma vez por todas, que as águas eram património comum sendo
distribuídas pelo capitão e oficiais da câmara, entre todos os proprietários pois que “sem as águas
as terras se não podiam aproveitar”. A partir daqui a água é propriedade pública sendo o usufruto
para os que possuíssem terras e dela necessitassem. Todavia, desde finais do século quinze, a
água passou a ser negociada a exemplo do que sucedia com a terra. É com o regimento de D.
Sebastião em 1562 que se procede a uma alteração no sistema primitivo. As águas podem ser
vendidas ou arrendadas, o que permitiu aumentar o fosso entre a propriedade da terra e da água.
Outro problema, não menos importante, foi o da partição da água. Desde o início que a coroa
recomendara todo o cuidado nisso, ficando com tal encargo o almoxarife, auxiliado por dois
homens eleitos para este fim. A sua distribuição era feita para toda a semana, excepto o domingo
que ficava comum a todos, pois tal como refere a coroa em 1493 era “contra consciência”. A sua
manutenção foi outra preocupação a que o capitão deveria tomar conta, conforme ordem de D.
Catarina de 1562. Mais se recomendava que aqueles que não tivessem necessidade das águas que
dispunham não as podiam arrendar a ninguém a não ser para se regar os canaviais. Apenas, os
que haviam tirado levadas próprias podiam dar ou vender as águas. Neste momento a coroa
apoiou a reparação das levadas da Ribeira dos Socorridos, dos Piornais e Castelejo com o intuito
de incrementar de novo a cultura dos canaviais, que tinham preferência nesta nova redistribuição
das águas.
A evolução do movimento demográfico acompanhado da valorização das zonas aráveis com as
culturas de exportação conduziram a profundas alterações na distribuição e posse das terras. Os
mercados interno e externo condicionaram um maior aproveitamento do solo arroteável,
tornando-se urgente um adequado reajustamento da estrutura fundiária à nova situação. O
aparecimento de capitais estrangeiros e nacionais conduziu à intensificação do arroteamento das
terras e provocou alterações na sua posse por meio de transacções por compra, aforamento e
arrendamento. Note-se que na Madeira em 1494 generalizou-se o aforamento dos canaviais na
capitania do Funchal, com especial incidência nas partes do fundo e em Câmara de Lobos. Para o
século dezasseis os livros referentes ao quinto dão-nos apenas nove rendeiros na Calheta (1509,
1513-14), Ponta de Sol (1517) e Ribeira Brava (1536). É de salientar o caso da Calheta com sete
rendeiros.
A lei de 9 de Outubro de 1501 pôs termo à concessão de terras de sesmarias, como forma de
impedir a diminuição do parque florestal, tão necessário à laboração do açúcar. A partir deste
momento, toda a aquisição de terras só poderia fazer-se por compra, aforamento ou transmissão
por via familiar, por meio da herança, sucessão e dote. Enquanto a compra e venda surgem como
mecanismos de concentração da propriedade nas mãos da aristocracia e burguesia enriquecidas
com os proventos da primeira fase de colonização, ou dos estrangeiros recém-chegados, a
herança e dote actuam no sentido inverso conduzindo à desintegração da grande propriedade. A
primeira situação documenta-se com a maior acuidade no século XVI e mesmo em finais do
século anterior, sendo disso prova a escritura de 28 de Janeiro de 1498 em que João Esmeraldo,
fidalgo flamengo, compra a Rui Gonçalves da Câmara, filho de João Gonçalves Zarco, as suas
terras na Lombada da Ponta de Sol. Em consonância com estas mutações surge a afirmação do
sistema de vinculação da terra, no reinado de D. Manuel, que veio dar origem ao contrato de
colonia.
Na Madeira desde a segunda metade do século XV que se generalizaram os contratos de
aforamento e meias que evoluem no século XVI para o contrato de colonia. Este último é uma
situação específica na Madeira, que tem a característica de se orientar pelo direito
consuetudinário. Note-se que os diversos contratos de arrendamento que chegaram até nós não
são uniformes no compromisso entre ambas as partes, pois o senhorio tanto poderia contribuir
com as benfeitorias, ou deixar esse serviço para o colono, reservando, no entanto, a sua posse
sem qualquer encargo no fim. A norma era um contrato de duração limitada, obrigando-se o
colono ao pagamento de uma renda anual ou a metade da sua produção. No Convento de Santa
Clara conhecem-se vários contratos de arrendamento de meias, alguns referem-se a serrados de
canaviais, estabelecendo a forma de intervenção das partes e de torna-los rentáveis. Este
convento, mercê das doações recebidas ao longo do século XVI, transformou-se no maior
proprietário da ilha. Assim, em 1644 o seu poderio alargou-se a toda a ilha com 408 propriedades
declaradas, transformando-se, por isso mesmo, numa importante empresa agro-pecuária.
O primeiro grupo de colonos é eminentemente nacional, pois só num segundo momento surgem
os estrangeiros. Esta situação contraste com as Canárias, onde o estrangeiro está comprometido
com a conquista e início da ocupação das ilhas. João Esmeraldo é um exemplo entre muitos os
estrangeiros que, entre finais do século XV e meados do século XVI, fixaram morada nas
principais áreas de canaviais da vertente meridional. Todos eles, atraídos pelo comércio do
açúcar, acabaram investindo os seus proventos em canaviais, engenhos e levadas. Estes, bem
relacionados com a alta finança europeia e com os principais centros do comércio europeu,
cativaram rapidamente a tenção da aristocracia e burguesia insulares com quem se relacionaram
por meio de laços de parentesco. O casamento, com o apetecido dote, foi muitas vezes a forma
de alargarem os seus domínios e de firmarem a sua posição na sociedade insular. Assim sucedeu
com Benoco Amador que casou com Petronilha Gonçalves Ferreira, viúva de Esteves Eanes
Quintal detentor de uma grande quinta em Santo António e terras na Ponta de Sol, e que, por isso
mesmo, em poucos anos transformou-se num grande proprietário cuja fazenda foi resultado de
compra, casamento e arrendamento, por um lado, e o comércio, arrematação das rendas e
empréstimos, por outro. Idêntica situação surge com João Esmeraldo, Simão Acciaioly, Pedro
Berenguer, João Drumond, Urbano Lomelino, João Salviati e Micer Batista. Este último era
casado com a filha de Tristão Vaz, capitão do donatário na capitania de Machico.
De acordo com o estimo de 1494 é patente um sistema de cultura dos canaviais organizado em
regime de média e pequena propriedade pois que a média de produção oscila entre 117,23
arrobas do Funchal e as 632,73 das Partes do Fundo, perfazendo no geral 345,28. No período
subsequente (1509-1537) atinge-se uma média de 470,27 arrobas nas duas capitanias, sendo de
171,08 na de Machico e de 537,98 na do Funchal. A área definida pela capitania de Machico
surge com o valor mais baixo enquanto na do Funchal e, nomeadamente, nas comarcas da
Ribeira Brava e Calheta este valor é 9 vezes superior. Todavia o seu aumento não ficou a dever-
se à colheita da comarca do Funchal, onde este se mantém em 307,96 ou 197,56, mas sim das
comarcas das Partes do Fundo. Aí, especialmente na Calheta e Ribeira Brava, chega a atingir,
respectivamente 1867,32 e 1376,17 em 1509.
A conjuntura deprecionária da economia açucareira madeirense conduziu a profundas alterações
na estrutura fundiária, contribuindo para a concentração dos canaviais nos grandes proprietários.
Os de poucos recursos financeiros vêm-se obrigados a abandonar os canaviais, a substituí-los
pelos vinhedos ou então a penhorá-los e vendê-los aos grandes proprietários e mercadores. Esta
situação contribuiu para o reforço do grande proprietário das Partes do Fundo, nomeadamente
nas comarcas da Calheta e Ribeira Brava. Note-se que esta tendência acentuara-se já na transição
do século XV para o XVI. A mutação da posse dos canaviais no período de 1494 a 1537 poderá
ser aferida pela variância do nome dos proprietários. Entre finais do século XV e a primeira
metade do século XVI verifica-se a manutenção de trinta e dois nomes (11%), enquanto no
período de 1509 e 1537 apenas se mantiveram dezanove (6%). Estes números poderão significar
que a mutação é mais evidente no período de crise que na fase ascendente, por outro lado
indicam a maior incidência nas Partes do Fundo, pois que no Funchal permanecem 17 nomes,
isto é, 53% do total de nomes em causa.
Se é certo que o estimo de 1494 confirma a tendência para a afirmação da pequena e média
propriedade no Funchal, Câmara de Lobos e, em parte, da grande propriedade nas Partes do
Fundo, também é certo que os dados em estudo para os anos de 1509 a 1537 confirmam a grande
propriedade nas Partes do Fundo e da média no Funchal e Câmara de Lobos (comarca do
Funchal). Em 1494 no Funchal e Câmara de Lobos os vinte proprietários (15%) representavam
metade da produção global da área. Destes apenas dois excediam as 700 arrobas. Nas Partes do
Fundo o mesmo número de proprietários (20%) produziu metade do total da capitania. Em 1509,
no Funchal, apenas quinze (21%) surgem com metade da produção desta comarca, enquanto nas
Partes do Fundo apenas os cinco principais (18%) apresentam-se com 65% da produção global.
No cômputo geral da capitania estes contribuem com 55%.
A grande propriedade quase inexistente em 1494 com grande destaque na primeira metade do
século XVI, nomeadamente nos primeiros decénios. Em 1494 apenas surgem proprietários com
mais de 1000 arrobas nas Partes do Fundo e em número reduzido (22%) na zona e 10% no global
da capitania). No século XVI estes surgem na capitania do Funchal em número superior com
18% na capitania e 14% no global. Na capitania de Machico esta é quase inexistente uma vez
que apenas há notícia de um proprietário com mais de 1000 arrobas. A posição da capitania do
Funchal deve-se fundamentalmente aos proprietários sedeados nas comarcas da Calheta (35%) e
Ribeira Brava (42%). Em 1494, na capitania do Funchal surgem apenas 12 proprietários (5%)
com uma produção superior a 1500 arrobas e, no período subsequente (1509-1537) 24 (8%). Os
últimos são na sua maioria, oriundos da Ribeira Brava e Calheta. Para 1494 os valores mais
elevados são de James Timor (2270 arrobas) e João de França (2500). No período imediato, do
século XVI, duplicam, como sucede com Pedro Gonçalves de Bairros da Ribeira Brava que, em
1509, produziu 5 376 arrobas de açúcar, isto é, 28% da comarca e 8% da capitania. Com uma
produção superior a 2000 arrobas temos, no período de 1509 a 1537 quinze proprietários
maioritariamente oriundos da Calheta e Ribeira Brava, com um valor global de 37% da capitania,
enquanto em 1494 eram apenas três, produzindo 9%. Perante esta evidência será legítimo afirmar
que na Madeira dominou o sistema de pequena e média propriedade com a cultura do açúcar? Se
a conclusão se torna legítima para finais do século XV o mesmo já não poderá dizer-se para a
primeira metade do seguinte. Estamos perante a principal modificação na estrutura açucareira
neste lapso de tempo de 43 anos.
Segundo Virgínia Rau e Jorge de Macedo, “a produção do açúcar beneficiava camadas amplas
da população, encontrando-se entre os produtores, além do pequeno e médio lavrador, sapateiros,
carpinteiros, barbeiros, mercadores, cirurgiões, moleiros, ao lado de fidalgos funcionários,
concelhios e outros, participando por migalhas nos benefícios desta rica produção, [...]. Toda esta
miuçalha de pequenos produtores se aproveitava de um organismo montado na ilha, para tornar
rentável a sua pequeníssima produção”. Vitorino Magalhães Godinho, por seu turno, reforça esta
caracterização da realidade social madeirense apontando a tendência para a concentração dos
canaviais num número reduzido de insulares. A situação da primeira metade do século XVI
apresenta-se diferente pois que o número limitado de proprietários reforça a ideia da
concentração dos canaviais nos grupos sociais privilegiados da sociedade insular: aristocracia,
mercadores, artesãos e funcionários locais e régios. Em ambos os momentos este grupo de
proprietários representava apenas 1% da população da ilha. Esta tendência concentracionista
acentua-se na passagem do século XV para o XVI, uma vez que houve a redução do número de
proprietários nas comarcas circunscritas às Partes do Fundo. Aliás, aqui é notória a manutenção
dos proprietários, sendo reduzido a mutação por compra e venda, dote ou aforamento. A
imutabilidade da propriedade deve-se fundamentalmente à sua vinculação. Assim, entre 1509-
1537, 18% dos canaviais das comarcas das Partes do Fundo estavam vinculados, enquanto no
Funchal são só 17%. Estas terras representam 38% da produção da capitania do Funchal.
A caracterização da realidade social da estrutura fundiária açucareira é igualmente diversa, sendo
definida pela forte participação dos estrangeiros, mercadores e funcionários. O grupo de
estrangeiros que surgia já em 1494 com uma forte participação no sector produtivo açucareiro
com 17%, reforçará a sua posição, na primeira metade do século XVI, atingindo 20%. Esta
situação é reforçada pelo testemunho de Gaspar Frutuoso. A sua relativa participação em 1494
explica-se pela xenofobia dos mercadores do reino e ilhas e pela ambiguidade da acção da coroa
e do senhorio. Até 1498 altura em que o monarca autoriza a permanência dos estrangeiros na
ilha, a situação mantinha-se muito precária e os seus interesses molestados pela oposição da
burguesia insular e nacional. Deste modo, a estabilidade e privilégios concedidos aos mesmos
contribuíram para a sua rápida fixação na ilha, justificando-se de modo preciso a sua forte
participação no sector produtivo na primeira metade do século XVI.
Sendo o Funchal o principal centro do comércio madeirense, lógico será de supor a fixação do
estrangeiro no burgo e arredores. Assim temos 43% deste grupo na comarca do Funchal e
arredores. Na sua maioria são grandes proprietários, uma vez que mais de 50% detém canaviais
com produção superior a 1000 arrobas. A sua acção alargou-se depois, a algumas comarcas
periféricas com forte incidência na economia açucareira, como Ribeira Brava, Ponta de Sol e
Calheta, onde assumem uma posição importante na produção e destacando-se como os principais
proprietários, dispondo de extensos canaviais, engenho e numerosos escravos. Destes salientam-
se João de Bettencourt na Ribeira Brava com 2450 arrobas de açúcar, João de França, na Calheta
com 3632 arrobas e João Esmeraldo na Ponta de Sol com 3277,5 arrobas. No Funchal, é certo,
temos grandes proprietários, como Simão Acciaioly, Benoco Amador e João de Bettencourt mas,
em contraste, a sua posição no quadro geral não atinge o nível dos supracitados. Aliás, é na
Ribeira Brava e Ponta de Sol que estes apresentam a percentagem mais elevada da produção. Em
síntese, podemos afirmar que o estrangeiro avizinhado não se preocupou apenas com o sector
produtivo, pois o comércio e transporte dos produtos, que os atraíram mantiveram-se como a
actividade principal. Este raramente surge na condição de proprietário mas com o triplo estatuto
de proprietário-mercador-prestamista.
A classe mercantil atraída pela opulência do açúcar fixou-se nas principais comarcas de
produção e comércio do ouro branco. O Funchal, como principal centro de tráfego açucareiro,
apresentará condições propícias à sua residência. Note-se que cerca de 60% tinham os seus
canaviais nesta comarca. De igual modo sendo a capitania do Funchal definida pela melhor área
de canaviais, eles preferem-na às terras de Machico, onde apenas atingem 13% do total. Não
obstante, a sua fraca representação numérica na última capitania surgem com 35% do açúcar
enquanto no Funchal ficam-se pelos 20%. O mercador nacional ou estrangeiro não se dedicava
em exclusivo ao comércio, pois repartia a sua actividade por uma multiplicidade de produtos de
importação e exportação e alargava-a outros sectores, como o administrativo e produtivo. Assim,
estes são em simultâneo proprietários e funcionários concelhios ou régios, com uma forte
presença na exploração dos canaviais onde representavam, na primeira metade do século XVI,
24% do total dos proprietários, comparticipando com 30% da produção. A estrutura
administrativa das duas capitanias subordinava-se à febre açucareira, sendo definida pelo
almoxarifado e provedoria da fazenda. A própria administração local ajustou-se a esta ambiência,
sendo a vereação a tribuna de debate das principais questões ligadas ao produto. Ao mercador ou
proprietário interessava deter uma posição nesta complexa estrutura administrativa de forma a
fazer valer os seus reais interesses nas ordenanças ou posturas municipais, que regulamentavam a
safra e comércio do açúcar. Não será por acaso que muitos dos principais proprietários são nas
duas capitanias como oficiais régios ou concelhios. Destes registam-se pelo menos trinta e três,
na sua maioria da capitania do Funchal, com uma produção de 21%. Sendo a vereação o local de
debate e deliberação das principais questões ligadas à safra e comércio açucareiro lógico será
admitir a sua participação com assiduidade nas mesmas, como oficiais eleitos ou homens-bons.
Note-se que neste grupo 61% são homens-bons. Os elementos mais influentes da classe
possidente madeirense incluíam-se em qualquer destes grupos. O usufruto da dupla situação
social conduziu à sua afirmação no grupo de proprietários de canaviais. Assim 30% dos
funcionários e 19% dos mercadores situam-se no grupo com uma produção superior a 1000
arrobas.
No século XVII a estrutura fundiária é distinta. Assim, na Madeira dominam os pequenos
proprietários de canaviais, o que demonstra ser esta uma cultura subsidiária, que medrava ao lado
das outras, talvez pela sua necessidade familiar ou interna. O quadro que a seguir se apresenta é
testemunho da diminuta importância dos canaviais na estrutura fundiária madeirense de então.
Para 1600 são cento e nove proprietários com 3656 arrobas, o que equivale a uma média de
33,54 arrobas. Esta situação demonstra que a segunda metade do século XVI foi pautada pelo
paulatino abandono dos canaviais e a sua substituição pela vinha.
A conjugação dos vínculos ou legados pios, do duplo estatuto social com as alianças
matrimoniais ou extra matrimoniais poderá ser apontada como o principal mecanismo de reforço
da grande propriedade na economia açucareira. Esta é uma conjuntura premente no momento de
crise da primeira metade do século XVI. Note-se que a intervenção da infanta D. Catarina foi no
sentido da manutenção dos canaviais através da regulamentação das heranças. Assim, em 1559
foi eleito um procurador para tratar da herança dos canaviais que levou à decisão em 1562 de
apostar no regime de morgadio para os canaviais.
No século XVII a estrutura fundiária é distinta. Assim, dominam os pequenos proprietários de
canaviais, o que demonstra ser esta uma cultura subsidiária, que medrava ao lado das outras pela
sua necessidade familiar ou interna. O quadro que a seguir se apresenta é testemunho da
diminuta importância dos canaviais na estrutura fundiária madeirense de então. Para 1600 temos
109 proprietários com 3656 arrobas, o que equivale a uma média de 33,54 arrobas. Esta Situação
demonstra que a segunda metade do século XVI foi pautada pelo paulatino abandono dos
canaviais e a sua substituição pela vinha.

DOS CANAVIAIS AO ENGENHO. A cana-de-açúcar na sua primeira experiência além


Europa demonstrou as possibilidades de rápido desenvolvimento fora do habitat mediterrânico.
Gaspar Frutuoso testemunha isso mesmo ao referir que “esta planta multiplicou de maneira na
terra, que he o assucar dela o melhor que agora se sabe no mundo, o qual com o beneficio que se
lhe faz tem enriquecido muitos mercadores forasteiros e boa parte dos moradores da terra”. Tal
evidência catalisou as atenções do capital estrangeiro e nacional que apostou no seu crescimento
e promoção, pois só assim se poderá compreender o rápido arranque da mesma. Esta que, nos
primórdios da ocupação do solo insular, se apresentava como uma cultura subsidiária, passou de
imediato a cultura e produto dominante, situação que manteve por pouco tempo.
Na Madeira a cana sacarina, usufruindo do apoio e protecção do senhorio e coroa, conquista o
espaço ocupado pelas searas, atingindo todo o solo arável da ilha em duas áreas: a vertente
meridional (de Machico à Calheta), com um clima quente e abrigada dos alísios, onde os
canaviais atingem 400 m de altitude, dominado pelas plantações da capitania de Machico (Porto
da Cruz e Faial até Santana), solo em que as condições mesológicas não permitem a sua cultura
além dos 200 metros numa produção idêntica à primeira área. Deste modo a capitania do Funchal
agregava no seu perímetro as melhores terras para a cultura da cana-de-açúcar, ocupando a quase
totalidade do espaço da vertente meridional. À de Machico restava apenas uma ínfima parcela
área e todo um vasto espaço acidentado impróprio para a cultura. Esta diferenciação das duas
capitanias torna-se mais visível quando analisamos os dados da produção. Assim, em 1494, do
açúcar produzido na ilha apenas 20% é proveniente da capitania de Machico e o sobrante da
capitania do Funchal. Em 1520 a primeira atinge 25% e a segunda os 75%. Fernando Jasmins
Pereira, numa análise comparada da produção das duas capitanias entre 1498 e 1537, discorda da
relação até então estabelecida (3:1) pois, de acordo com a sua análise, a razão situa-se em 4:1
para os primeiros decénios do século XVI, descendo entre 1521-1524 para 3:1 e recuperando na
segunda metade do decénio para 4:1.
Na capitania do Funchal os canaviais distribuíam-se de modo irregular, de acordo com as
condições mesológicas da área. Assim, em 1494 a maior safra situava-se nas partes de fundo,
englobando as comarcas da Ribeira Brava, Ponta de Sol e Calheta com 64%, enquanto o Funchal
e Câmara de Lobos tinham apenas 16%. Em 1520, não obstante uma ligeira alteração, a
diferença mantém-se, pois a primeira surge com 50%, e a segunda apresenta 25%, valor idêntico
ao total da capitania de Machico, com 25%. Uma análise em separado das diversas comarcas da
capitania do Funchal, na mesma data, evidencia a importância do Funchal em 33%, seguindo-se
a Calheta com 27%. As da Ribeira Brava e Ponta de Sol surgem numa posição secundária com
20% cada.
Criadas as condições a nível interno por meio do incentivo ao investimento de capitais na cultura
da cana-de-açúcar e comércio de seus derivados, do apoio do senhorio, da coroa e da
administração local e central, a cana estava em condições de prosperar e de se tornar, por algum
tempo, no produto dominante da economia madeirense. O incentivo externo do mercado
mediterrânico e nórdico aceleraram este processo expansionista. Assim em meados do século
XV os canaviais são motivo de deslumbramento para Cadamosto e Zurara. O primeiro refere que
os açúcares “deram muita prova”, enquanto o segundo dá conta dos “vales todos cheios de
açúcar de que aspergiam muito pelo mundo”.
A fase ascendente, que poderá situar-se entre 1450 e 1506, não obstante a situação deprecionária
de 1497-1499, é marcada por um crescimento acelerado que, entre 1454-1472, se situava na
ordem dos 240% e no período subsequente até 1493 em 1430%, isto é uma média anual de 13%
no primeiro caso e de 68% no segundo. No período seguinte após o colapso de 1497-1499 a
recuperação é rápida de tal modo que em 1500-1501 o aumento é de 110% e entre 1502-1503 de
205%. Esta forte aceleração do ritmo de crescimento nos primeiros anos do século XVI irá
marcar o máximo, atingindo em 1506, bem como o rápido declínio nos anos imediatos. Note-se
que apenas em quatro anos atinge-se valor inferior ao do início do século. A situação agrava-se
nas duas centúrias seguintes, baixando a produção na capitania de Funchal, entre 1516-1537, em
60%. Na capitania de Machico a quebra é lenta, sendo sinónimo do depauperamento do solo e da
crescente desafeição do mesmo à cultura. Mas, a partir de 1521 a tendência descendente é global
e marcante, de modo que a produção do fim do primeiro quartel do século situava-se a um nível
pouco superior ao registado em 1470. Na década de trinta consumava-se em pleno a crise da
economia açucareira e o ilhéu viu-se aos poucos na necessidade de abandonar os canaviais e de
os substituir pelos vinhedos. Mesmo assim Giulio Landi, que na década de trinta visitou a ilha,
refere que os madeirenses, levados pela ambição da riqueza dedicam-se “apenas ao fabrico do
açúcar, pois deste tiram maiores proventos”.
A historiografia tem apresentado múltiplas explicações para esta crise assentes
fundamentalmente na actuação de factores externos. No entanto, Fernando Jasmins Pereira com
o seu estudo sobre Açúcar Madeirense contraria esta opinião definindo a crise açucareira
madeirense como resultado das condições ecológicas e sócio-económicas da ilha:”...a decadência
da produção madeirense é, primordialmente, motivada por um empobrecimento dos solos que,
dada a limitação da superfície aproveitável na cultura, vai reduzindo inexoravelmente a
capacidade produtiva”. Deste modo a crise da economia açucareira madeirense não é apenas
resultado da concorrência do açúcar das Canárias, Brasil, Antilhas e S. Tomé mas deriva, acima
de tudo, da conjugação de vários factores de ordem interna: a carência de adubagem, a
desafeição do solo à cultura e as alterações climáticas. A concorrência do açúcar das restantes
áreas produtoras do Atlântico, bem como a peste (em 1526) e a falta de mão-de-obra apenas
vieram agravar a situação de queda. A tudo isto acresce em finais do século os efeitos do bicho
sobre os canaviais, como é testemunhado para os anos de 1593 e 1602. Deste modo o último
quartel do século foi o momento de viragem para culturas de maior rendibilidade, como a vinha.
A documentação testemunha esta mudança. Assim, em 1571 Jorge Vaz, de Câmara de Lobos,
declara em testamento um chão que “sempre andou de canas e agora mando que se ponha de
malvasia para dar mais proveito...”. Depois, em 1583 Álvaro Vieira vende a Diogo Pires no
Caniço um serrado que fora de canas “e agora anda de pão”.

A tradição historiográfica tem defendido erradamente a ideia de que os canaviais sucumbiram, na


primeira metade do século XVI, com a concorrência das produções de outras ilhas e,
nomeadamente, do Brasil. O açúcar não desapareceu dos nossos poios e quotidiano. Ele casou
com o madeirense e acompanhou-o na ilha e fora dela. A par disso há uma tradição da industria
açucareira, assente na laboração do açúcar por meio das conservas ou casquinha, nas tecnologias,
que persistiu, quase até à actualidade. E hoje de novo a cultura parece querer regressar aos
nossos campos.
No começo a cultura foi alvo de mil cuidados. Era a coqueluche das plantas que acompanharam
os primeiros colonos na diáspora atlântica. Esta realidade está evidenciada na permanente
intervenção da coroa, do senhorio e município nas fases de cultivo, transformação e comércio.
Nunca uma cultura e produto final foram alvo de tão apertada regulamentação e vigilância. Esta
luta materializa-se na defesa e manutenção da qualidade do produto colhido no solo insular, no
que foi acompanhada pelos demais como o vinho e o pastel. A todos definiam-se, por regimentos
específicos, as tarefas de cultivo, cuidado e laboração final do produto, de modo a que este se
apresentasse nas condições e quantidades necessárias para a sua comercialização. Na Madeira e
Canárias o açúcar foi alvo de constantes regulamentações e de um controlo assíduo dos
alealdadores para o efeito eleitos em vereação.
Nos séculos XVI e XVII a intervenção das autoridades resultava apenas da necessidade de
garantir ao açúcar da ilha uma posição dominante no mercado interno e a situação concorrencial
nos mercados nórdico e mediterrânico. A concorrência do açúcar brasileiro será, por algum
tempo, o motivo de discórdia entre os vários interesses em jogo. A incidência destas medidas é
pontual e resulta do incentivo que a cultura mereceu em finais do século XVI. A conjuntura da
década de quarenta da centúria seguinte foi demarcada por novo incremento da cultura, sem
necessidade de recurso às medidas proteccionistas, uma vez que o mercado do Nordeste
brasileiro se encontrava sob controlo holandês.Com isso fechou-se a rota do açúcar brasileiro: a
correspondência de Diogo Fernandes Branco refere a ausência destes navios nos anos de 1649 a
1650. Neste último ano dizia-se que há dezoito anos que o pau-brasil e o açúcar não vinham de
Pernambuco. Aqui a intervenção vai no sentido de promover a cultura através de uma política de
incentivos, materializada nos apoios à reconstrução dos engenhos. Este conjunto de medidas
culmina em 1688 com a redução dos direitos que oneravam a produção, passando de um quinto
para um oitavo.
A cana, desde muito cedo, ganhou uma posição privilegiada no solo madeirense, conquistando as
mais importantes arroteias da vertente meridional e o Nordeste. A capitania do Funchal agregava
no seu perímetro as melhores áreas para a cultura dos canaviais. Nos séculos XVII e XVIII os
poucos canaviais que persistiram pertencem também à área desta capitania. Em Machico os
poucos canaviais que persistiram, principalmente em Santa Cruz, haviam desaparecido por
completo em 1674. Em auto lavrado em câmara refere-se que a lavoura cessara na vila de
Machico, sendo as terras semeadas de trigo, cevada e vinhas. Os livros do oitavo disponíveis não
é fácil definir as principais áreas de produção, uma vez que poucos são aqueles em que está
identificada a localidade. Mesmo assim é possível definir-se algumas áreas produtoras de maior
evidência, como sejam, Câmara de Lobos, Calheta, Estreito da Calheta, Canhas.
A conjuntura do século dezassete foi favorável ao retorno da cultura. Algumas terras de vinha ou
searas cederam lugar às socas de cana. Mas estas pouco ultrapassaram, num primeiro momento,
a valoração da área agrícola circunvizinha do Funchal. Assim o comprova o livro do quinto do
ano de 1600, que nos 108 proprietários de canaviais apresenta um grupo maioritariamente desta
área. Este livro é quase único quanto à produção de açúcar na ilha no século dezassete, pois só
teremos novas informações a partir de 1689, com a arrecadação do oitavo. Neste ano de 1600 é
bastante evidente a retracção da área ocupada pelos canaviais. Aqui a média propriedade cede
lugar à pequena e mesmo de muito pequenas dimensões. A maioria (isto é 89%) produz entre 5 e
50 arrobas, o que demonstra estarmos perante uma cultura vocacionada para suprir as carências
caseiras, no fabrico de conservas, doçaria e compotas.
Os anos seguintes foram de promoção da cultura o que propiciou um aumento da produção,
mantendo-se a mesma incidência das áreas em questão, sendo de realçar a Ribeira dos
Socorridos, onde no século dezoito se manteve em actividade um dos poucos engenhos de açúcar
existentes na ilha. No período de 1689 a 1766 deparamo-nos com algumas quantidades de açúcar
na Ribeira Brava, Funchal, Ponta do Sol, Santa Cruz e Calheta. Todavia a situação é totalmente
distinta daquela que se viveu nos séculos XV e XVI. Na Calheta, por exemplo, iam longe os
tempos áureos, agora a produção de açúcar era quase ridícula. Assim entre 1689 e 1705 foram só
29 arrobas e 2 libras. Note-se aqui o recurso a medidas de capacidade de pequeno, que por certo
adquiriam muita importância para a situação da época. Era uma agricultura de jardinagem. De
acordo com Álvaro Rodrigues de Azevedo o ano de 1748 é o marco que assinala o fim da
primeira época do açúcar na Madeira: "acabou, por então o açúcar na ilha da Madeira. A cana
doce, somente como mera curiosidade, continuou cultivada, fazendo-se dela pouco mel, para
consumo domestico..."
No decurso do século XVII os canaviais das ilhas perderam paulatinamente importância. Apenas
na Madeira é notada uma curta época de reafirmação quando se apaga a concorrência do
brasileiro. A conjuntura do século foi favorável ao retorno da cultura. Mas esta pouco
ultrapassou, num primeiro momento, a área agrícola circunvizinha do Funchal. Assim o
comprova o livro do quinto do ano de 1600, que nos 108 proprietários de canaviais apresenta um
grupo maioritariamente desta área. Este é quase o único elemento comprovativo da produção de
açúcar na ilha no século dezassete, pois só voltamos a ter novas informações a partir de 1689,
com a arrecadação do oitavo. No ano de 1600 é bastante evidente a retracção da área ocupada
pelos canaviais. A média propriedade cede lugar à pequena e, mesmo, de muito pequenas
dimensões. A maioria (isto é 89%) produz entre 5 e 50 arrobas, o que demonstra estarmos
perante uma cultura vocacionada para suprir as carências caseiras, no fabrico de conservas,
doçaria e compotas.
Com a ocupação holandesa do nordeste brasileiro, a cultura foi reabilitada como forma de
responder à sua solicitação na Europa e pela necessidade resultante das indústrias de conserva e
casquinha. Até 1640 o movimento descendente havia-se agravado com a presença, cada vez mais
assídua de açúcar brasileiro no porto do Funchal. Em 1616 para garantir o escoamento da
produção local e que à saída se fizesse uma distribuição equitativa de ambos os açúcares. Mas a
partir desta data com a ocupação holandesa das terras a cultura renasceu na ilha. Em 1643 o
número de engenhos existentes era insuficiente para dar vazão à produção dos canaviais. Até
1640 o movimento descendente agravou-se com a presença, cada vez mais assídua de açúcar
brasileiro no porto do Funchal. Em 1616 para garantir o escoamento da produção local e que à
saída se fizesse uma distribuição equitativa de ambos os açúcares. A ocupação holandesa das
terras a cultura fez renascer na ilha os canaviais para responder à solicitação na Europa e
necessidade das indústrias de conserva e casquinha. Em 1643 o número de engenhos existentes
era insuficiente para dar vazão à produção dos canaviais.
A coroa, de acordo com a provisão régia de 1 de Julho de 1642, pretendia promover de novo o
cultivo da cana-de-açúcar por meio de incentivos à reparação dos engenhos, com a isenção do
quinto por cinco anos ou a metade por dez anos. Usufruíram deste apoio o capitão Diogo
Guerreiro, Inácio de Vasconcelos, António Correa Betencourt e Pedro Betancor Henriques. A
situação favoreceu a cultura, afirmando Diogo Fernandes Branco em 10 de Fevereiro de 1649
que as canas estavam “formosas”, prevendo-se uma grande colheita. Em Outubro goraram-se as
expectativas, pois o açúcar lavrado era de má qualidade.
O progresso continuou no ano imediato, sendo testemunhado ela construção de dois novos
engenhos. Esta foi no entanto uma recuperação passageira uma vez que na década seguinte o
reaparecimento do açúcar brasileiro no porto do Funchal trouxe de volta a anterior situação. O
açúcar madeirense estava, mais uma vez, irremediavelmente perdido, mercê da concorrência.
Ainda, em 1658 procurou-se apoiar os canaviais ao reduzir-se os direitos sobre a produção para
um oitavo, mas a crise era inevitável. A estes incentivos acresce-se o facto de os direitos do
quinto do açúcar entre 1643 e 1675 não serem devidamente cobrados, pelo que neste último ano
se recomendou maior atenção nisso. Depois, por alvará de 15 de Outubro de 1688, a coroa
determinou que os direitos que oneravam a produção passassem para um oitavo da colheita
sendo a medida mais uma vez definida como uma forma de promover a cultura. Para o período
de 1620 a 1670 dispomos de algumas cartas de quitação dos almoxarifes das alfândegas do
Funchal e Machico que nos permite testemunhar os níveis de produção em algum dos anos.

É de prever, contudo, que a produção de açúcar tenha sido alvo de novo incentivo neste final do
século, pois em informação apresentada em 1698 ao novo governador D. António Jorge de Melo,
refere-se a existência de 41 engenhos que rendiam à coroa 8.000 arrobas. Este testemunho é
contrariado em finais da década anterior, por dois estrangeiros que passaram pela ilha. Em 1687
Hans Sloane é peremptório na caracterização da conjuntura açucareira:" Esta ilha é muito fértil
tendo antigamente produzido grandes quantidades de açúcar aqui cultivado e de excelente
qualidade. O que agora possuem é bom, mas muito escasso, devido à existência de muitas
plantações açucareiras nas Índias Ocidentais(...) Assim, embora consigam um produto de maior
cotação, acham que lhes é muito proveitoso dedicarem-se aos vinhos, pelo que apenas produzem
o açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil,
às suas próprias plantações." Dois anos após é idêntico o testemunho de John Ovington: " o
açúcar... raramente é exportado, devido à sua escassez, mal chegando para as necessidades da
ilha".
No século dezoito esta cultura é conduzida para um plano secundário, deixando de ter a real
importância que teve na economia madeirense. Para A. SILBERT o fim do "ciclo do açúcar" na
Madeira tem lugar em meados do século XVIII. Esta opinião é aliás corroborada pelo cônsul
francês na ilha, que em 1777 refere a cultura como abandonada. A mesma ideia poderá ser a
razão da inexistência de livros do oitavo a partir de 1766. A produção de açúcar torna-se
conhecida através dos tributos que recaem directamente sobre o produto. No caso da Madeira
tivemos o quarto e, depois, o quinto que oneravam todos os lavradores de cana de acordo com os
valores de produção estabelecidos à saída do estendal para os canaviais. Por todo o século XVIII
a aposta preferencial foi apenas na vinha, que retirou espaço aos canaviais. Mesmo assim estes
tiveram continuidade, uma vez que existem dados que documentam a existência de canaviais e
sabe-se que o engenho dos Socorridos manteve-se em funcionamento por todo o século XVIII.
A conjuntura económica de finais do século dezanove trouxe a cultura de regresso à Madeira,
como solução para reabilitar a economia que se encontrava profundamente debilitada com a crise
do comércio e produção do vinho. Todavia a situação, que se manteve até à actualidade, não veio
atribuir ao produto a mesma pujança económica de outrora. Outro facto evidente da centúria
oitocentista foi a presença de inúmeros madeirenses em Demerara como mão-de-obra
substitutiva dos escravos, cuja situação, entretanto, havia mudado. A última década do século
dezanove e as duas primeiras da presente centúria podem ser consideradas de horas amargas para
todos os madeirenses. Parte disso é resultado do processo porque passou o açúcar. A
generalização do seu consumo provocou um redobrado empenho na sua reimplantação entre nós.
No início, as dificuldades do tradicional mercado americano, envolto em guerras pró-
independência, e ainda não refeito do impacto do abolicionismo, propiciaram a afirmação da
cultura nos primeiros espaços, ou a aposta nas alternativas, como a beterraba, que na ilha nunca
resultou. Todavia, num segundo momento a concorrência tornou-se feroz. Entre nós a do açúcar
de beterraba açoriano ou de cana de Angola e Moçambique foi bastante evidente e levou ao
estabelecimento de medidas restritivas da circulação do melaço e do açúcar, ou de favorecimento
da indústria local. Elas enquadram-se na política europeia definida pelo convénio de alguns
países produtores assinado a 5 de Março de 1903. Esta última situação conduz, por vezes, ao
monopólio. Como, na realidade, sucedeu entre nós.
A toda esta complexa conjuntura junta-se a dificuldade extrema no recrutamento de mão-de-obra
barata - o escravo era então coisa do passado - o que levava a um investimento desusado na
tecnologia. A intenção era clara: substituir-se ao homem, baratear e facilitar a rapidez do
processo de laboração. Umas das grandes questões em debate neste segundo momento do açúcar
prende-se com as dificuldades em concorrer com outras áreas produtoras, onde os custos eram
reduzidos a metade e a qualidade da sacarose da cana também superior. Esta conquista de
inovação tecnológica era custosa e só foi conseguida à custa de medidas proteccionistas. Sucedeu
assim em todo o lado. Entre nós foi a questão Hinton. Este foi sem dúvida o problema que mais
apaixonou a opinião pública, nas vésperas e durante a República; publicaram-se inúmeros
folhetos, os jornais encheram-se de opiniões contra e a favor. Cesário Nunes(1940) documenta
esta situação de forma lapidar: “Em Portugal nenhuma questão económica atingiu tão alta
preponderância e trouxe e tão grandes embaraços legislativos às entidades governativas como o
problema sacarino da Madeira. “Tudo começou em 23 de Março de 1879 com a inauguração da
Companhia Fabril do Açúcar Madeirense. Era uma fábrica de destilação de aguardente e de
fabrico de açúcar sita à Ribeira de S. João. Demarcou-se das demais com o recurso a tecnologia
francesa, usufruindo dos inventos patenteados em 1875 pelo Visconde de Canavial. O cónego
Feliciano João Teixeira(1873), sócio deste empreendimento no discurso de inauguração afirma
ser este um “grandioso monumento, que abre uma época verdadeiramente nova e grande na
História da industria fabril madeirense”. Mas isto era apenas o princípio de um conflito indus-
trial, onde imperou a lei do mais forte. Tal como o afirmava em 1879, no momento encerramen-
to, José Marciliano da Silveira “ a fábrica de São João foi cimentada com o veneno da maldade;
era o seu fim dar cabo de todas as que existiam...” acabou por cavar o fosso da sua ruína.
Tudo começou com o plágio por parte da família Hinton, da invenção do Visconde Canavial.
Este havia patenteado em 1875 um invento que consistia em lançar água sobre o bagaço, o que
propiciava um maior aproveitamento do suco da cana. Constava da patente o uso exclusivo pela
fábrica de S. João, mas o engenho do Hinton cedo se apressou a copiar o sistema. Com isso o
lesado moveu em 1884 uma acção civil contra o contrafactor. Mas a família Hinton estava
fadada para singrar na industria açucareira e conseguir uma posição de monopólio. Segurada na
influência das autoridades diplomáticas britânicas, da intervenção pessoal junto da coroa e,
depois, das hostes republicanas, conseguiu atingir os seus objectivos. A visita de El Rei D.
Carlos à ilha em 1901, poderá ser entendida como um momento crucial dessa actuação.
As medidas que favoreciam a entrada de melaço estabelecidas pela lei de 1895, associado ao
decreto de 1903, um regulamento anexo a este decreto determinava a forma de matricula das
fábricas. As condições eram de tal modo lesivas que só duas - Hinton e José Júlio Lemos o
conseguiram fazer. As cerca de meia centena de fábricas que existiam na ilha ficaram numa
situação periclitante. Entretanto a lei de 24 de Novembro de 1904 dava a machadada final ao
estabelecer a referida matrícula por 15 anos. Entretanto, caía a monarquia e sucedeu a República,
que parecia querer fazer ouvidos moucos às regalias conquistadas no anterior regime. Mas de
novo as influências moveram-se a família Hinton conseguiu pelo decreto de 11 de Março de
1911 assegurar o monopólio do fabrico do açúcar e regalias na importação de açúcar das
colónias.
Os anos seguintes foram de plena afirmação deste monopólio e de luta sem tréguas às fábricas de
aguardente. Note-se que o consumo excessivo da aguardente era o inimigo número um da saúde
pública, sendo a Madeira, por essa situação, definida como a ilha da aguardente. As leis de 1927,
1928, 1934, 1937 actuam no sentido do controlo da produção e comércio de aguardente,
conduzindo inexoravelmente a um paulatino abandono da cultura. Dos 1800 ha de 1915, que
produziam 55.000 toneladas, passou-se aos 1420 do ano de 1952. Depois foi o que se viu até que
em 1985 agonizou em definitivo o império do açúcar do Hinton, construído com pés de barro,
sustentado pelos favores políticos, vegetando à custa da exploração dos lavradores de cana.
A área de cultura de cana sacarina foi-se reduzindo inexoravelmente a pequenos nichos de
socalcos na vertente sul. Todavia a partir de meados do século XIX a mesma foi paulatinamente
conquistando terreno a norte e a sul. Assim J. Mason(1850) refere que a mesma se fazia de modo
extensivo, ocupando metade da terra arável. Opinião distinta tem R. White(1851) que diz ser
ainda pouco cultivada e apenas usada para o fabrico de mel. Na verdade, a cultura era ainda uma
auspiciosa esperança para os madeirenses. Nicolau Ornelas e Vasconcelos(1855), que fora
trabalhador de cana em Demerara diz-nos: “... olha-se para a cultura da cana de açúcar como um
grande produto agrícola que oferece grandes vantagens, que podem em certo modo adoçar o mal
geral, o aspecto aterrador de nossas finanças...” Passados dez anos a cana continua a ser uma
aposta forte, mas tardava o momento da sua plena pujança de acordo com Eduardo Grande(1865)
a cana ocupava apenas 357 ha (2%), isto é uma magra fatia do solo arável. A aposta nas décadas
de cinquenta e sessenta estava a afirmação desta nova cultura, capaz de reabilitar a economia da
ilha.
Neste segundo momento de afirmação dos canaviais podemos estabelecer dois momentos
distintos: O primeiro decorre de 1852 a 1884, culminando com o ataque do bicho da cana, em
1885 e 1890, que levou à sua quase total destruição. Para atalhar esta dificuldade importaram-se
novos tipos de cana: a cana bourbon introduzida de Caiena(1847) e Cabo Verde, também atacada
pelo bicho, foi substituída por outras castas da Mauricia, yuba do Natal(1897) e POJ de
Angola(1938). Para isso foi criada uma estação experimental(em 1888) e estabeleceu-se um
conjunto de medidas proteccionistas em 1895. Esta aposta definiu o segundo momento. A
alteração significativa deste panorama só sucedeu na viragem do século, quando a cana atingiu
cerca de 1000 ha, valor que continua a subir para as 6500ha em 1939. A partir daqui foi a quebra
resultante das medidas restritivas ao fabrico e consumo de aguardente. Na década de quarenta do
nosso século a cana ocupava ainda 34% da área cultivada, mas este era já um momento de
quebra acentuada da sua área de cultivo, que na vertente sul foi paulatinamente substituída pela
bananeira. Deste modo em 1952 fala-se apenas 1420ha, enquanto mais próximo de nós, em 1986,
só existem 119,9ha. Esta evolução dos canaviais, com maior incidência na vertente meridional,
área tradicional do seu cultivo, significa um maior volume de produção que empurra a evolução
do número de engenhos. Foi no período de 1910 a 1930 que se atingiu os valores mais elevados,
que aproximaram a ilha dos tempos áureos do século XV, apenas em termos de produção e
nunca de riqueza. Todavia, a partir desta data sucedem-se medidas limitativas da expansão da
área dos canaviais, que conduzem inevitavelmente à sua desvalorização na economia rural e que
em certa medida favorecem a expansão da banana, cultura, predominantemente da vertente sul,
deixando a agricultura do norte num estado de total abandono, o que abriu as portas a uma
desenfreada emigração. Tenha-se em atenção que “a agricultura, toda a economia da Madeira, a
própria administração publica, ficariam mais do que nunca na dependência das fabricas de açúcar
e álcool”.
Facto inédito foi a tentativa de implantação da cultura no Porto Santo. Primeiro foi a frustrada
introdução do sorgo, depois a cana, documentada a partir de 1883. A sua produção era diminuta,
sendo as canas exportadas para o Funchal ou espremidas num engenho movido por bois, ou
moinho de vento. Também na Madeira se cultivou o sorgo com a mesma finalidade desde 1856.
Ainda, deverá atender-se ao facto de se ter experimentado outras formas de produção de açúcar
na Madeira, nomeadamente a beterraba, que não teve êxito. A par disso é de realçar também a
insistência das gentes do norte, representadas através dos municípios de S. Vicente e Santana, em
pretenderem furar as limitações impostas pelas autoridades para a área de produção de cana, que
não acautelavam esta vertente devido o baixo teor de sacarose, levando a Junta Geral em 1955 a
contrariar as ordens do Ministério do Interior, ao implantar dois campos experimentais em S.
Vicente e Santana. Esta situação é resultado do facto de a cana ser um complemento importante
da pecuária e um dos poucos meios de assegurar a subsistência dos lavradores, tendo em conta a
total desvalorização da vinha.

O ENGENHO E A PRODUÇÃO. Os valores de produção dos engenhos insulares são muito


distintos dos americanos. Para a Madeira em finais do século XV são referenciados apenas 12
engenhos para um total de 233 proprietários de canaviais. Estes situam-se todos nas partes do
Fundo, não havendo qualquer referência para os que funcionavam na área do Caniço a Câmara
de Lobos. Tomando em conta, apenas as Partes do Fundo, nota-se que a cada engenho estariam
atribuídas mais de cinco mil arrobas, valor elevado se tivermos em conta o estado da tecnologia
usada. Também é de notar que estes proprietários de engenho não se situam entre os mais
importantes detentores de canaviais. Apenas Fernão Lopes surge com 1600 arrobas, havendo
caso de lavradores com valores superiores que não são proprietários de engenho. Note-se, ainda,
que Fernão Lopes apresentava mais 2000 arrobas em conjunto com João Esmeraldo. Na primeira
metade do século XVI estes valores desceram a mais de um terço, pois a média é de 1478
arrobas. Outro aspecto de relevo é a relação entre os proprietários de engenho e canaviais. Nesta
fase, marcada por profundas alterações na estrutura produtiva, o desfasamento entre ambos os
grupos. Deste modo a distinção entre lavradores de cana e proprietários de engenho é muito
clara. Note-se que neste grupo surgem seis com valores superiores a 1000 arrobas.
Por outro lado é de salientar que, não obstante os engenhos estarem associados aos grandes
proprietários de canaviais não os poderemos considerar sinónimo de engenho. No caso do século
dezasseis alguns situam-se entre os principais produtores, mas a maioria surge com valores de
produção muito inferiores, como é o caso de João de Ornelas que em 1530 declara apenas 70
arrobas de açúcar no Funchal. Deste modo podemos afirmar que estamos perante duas realidades
distintas que geram uma dinâmica particular na estrutura produtiva em torno da cana de açúcar.
No decurso do século dezanove é cada vez mais evidente esta dissociação do engenho dos
canaviais. em 1863 temos indicação dos preços de pagamento da moenda da cana e destilação da
guarapa: por 30 Kg de cana pagava-se entre 70 a 90 réis e na destilação de 17 litros de guarapa
de 100 a 110 réis. Aqui a média de laboração dos engenhos nos quatro meses da safra era em
média de 7917241 Kg de cana, produzindo-se 117.600 Kg.

O ESCRAVO E O AÇÚCAR. As ilhas tal qual se apresentavam aos primeiros europeus


conduziram a um relacionamento particular do Homem na exploração e aproveitamento do solo.
Desse casamento entre a força de vontade dos primeiros europeus e a agressividade dos declives
foi possível construir a Europa no Atlântico. A Madeira, mercê da configuração geográfica, foi
definida por uma paisagem agrária específica, diferente dos grandes espaços continentais. O
excessivo parcelamento das áreas agrícolas (poios), única forma possível de aproveitamento do
solo arável e a ampla disseminação na vertente sul e norte condicionaram o sistema de
arroteamento e de posse de terras. As grandes e iniciais concessões de terreno foram-se dividindo
de acordo com o aumento da população e as experiências agrícolas. A primeira exploração
extensiva deu lugar ao intensivo aproveitamento do solo assente nos inúmeros poios construídos
pelos proprietários, arrendatários ou meeiros.
Em face de tudo isto é difícil, senão impossível, definir a grande propriedade de canaviais, se nos
situarmos ao mesmo nível do mundo americano. No caso americano os canaviais avançaram a
partir do engenho e estão, quase sempre, ligados indissociavelmente. Isto não sucede na Madeira.
Aqui, são muitos os proprietários de canaviais mas poucos os de engenho. Outra peculiaridade da
Madeira é a concentração dos engenhos em áreas de maior facilidade de contactos com o
exterior, nomeadamente no Funchal, o que nem sempre correspondia às de maior importância no
cultivo dos canaviais. Esta diferente estrutura da faina açucareira condicionou outro
posicionamento do escravo. Ainda, na exploração agrícola insular torna-se necessário distinguir
dois grupos de proprietários: aqueles que haviam entregue as terras a foreiros ou arrendatários e
os proprietários plenos. Esta forma de dupla posse da terra marcou de modo evidente a
actividade agrícola e favoreceu na Madeira o aparecimento e afirmação do contrato de colonia, a
partir do século XVI. Por outro lado, a extensão reduzida dos canaviais não obrigava à existência
de um engenho para a transformação da cana, tão pouco de um grupo numeroso de escravos. Por
tudo isto, a posição dos escravos na estrutura agrária madeirense deverá ser equacionada de
acordo com esta dinâmica do sistema de propriedade na ilha. Se é certo que na exploração
directa ou no arrendamento se estabeleceu uma posição clara para o escravo, o mesmo não se
poderá dizer com o contrato de colonia.
Também nas Canárias, nas ilhas de Gran Canaria, Tenerife, La Palma e La Gomera, a ligação do
escravo à economia açucareira e a dimensão dos canaviais têm de ter em conta algumas
especificidades do meio. A conquista propiciou os primeiros escravos de entre os indígenas
conhecidos como guanches, como presa de guerra, e a proximidade do continente africano
favoreceu o acesso ao mercado de escravos negros fazendo com que estes assumissem alguma
importância na sociedade. Acresce, ainda, que a evolução de estrutura fundiária esteve
dependente do processo inicial de conquista, que conduziu ao domínio da grande propriedade,
depois partilhada por arrendamento, compra e venda ou sucessão. Os dados disponibilizados
pelo valioso acervo de protocolos notariais são reveladores da perpetuação de algumas
importantes fazendas associadas a engenhos. Coisa que não encontramos na Madeira . Vemos
isso em Tenerife e La Palma .
A presença do escravo na constituição das sociedades insulares, desde o século XV, não é um
fenómeno isolado, enquadrando-se no contexto sócio-económico em que emergiram: a falta de
mão-de-obra braçal para as novas arroteias e a maior necessidade dela por parte de culturas como
a cana sacarina geraram a procura; a iniciativa descobridora do Atlântico, em que os madeirenses
foram activos protagonistas, e a proximidade do mercado gerador propiciaram o seu encontro.
Foi de acordo com esta conjuntura que a escravatura ganhou importância e é aqui que deveremos
encontrar a explicação para tal posição.
A Madeira, porque próxima do continente africano e envolvida no seu processo de
reconhecimento, ocupação e defesa do controlo lusíada, tinha as portas abertas a este vantajoso
comércio. Deste modo a ilha e os madeirenses demarcaram-se nas iniciais centúrias pelo
empenho na aquisição e comércio de tão pujante e promissora mercadoria do espaço atlântico. À
Madeira chegaram os primeiros escravos guanches, marroquinos e africanos, que contribuíram
para o arranque económico do arquipélago. Por um lado a safra açucareira implicava uma maior
disponibilidade de mão-de-obra, que à falta de livre deveria socorrer-se da escrava, por outro, a
proximidade do mercado de origem desta mão-de-obra e o propositado envolvimento dos
insulares neste trafico levaram a que as ilhas fossem um dos primeiros destinos até que outros
mais florescentes o destronassem. Note-se, por exemplo, a perfeita sintonia entre a curva
evolutiva da produção de açúcar e da libertação dos escravos. O número de libertos evoluiu de
acordo com a conjuntura açucareira.
Na Madeira , a crise da produção e comércio de açúcar, a partir do final do último quartel do
século XVI, vai ao encontro do aumento do número de alforrias, cuja curva ascendente se
verifica a partir da década de vinte, culminando no final da centúria. O movimento inverso, na
primeira metade do século XVII, poderá associar-se também a novo incremento da cultura da
cana-de-açúcar. Tudo isto foi provocado pela ocupação holandesa do estado de Pernambuco.
Este momento de afirmação dos canaviais foi curto e repercutiu-se na curva das alforrias da
segunda metade da centúria. Ao invés a expressão geográfica das alforrias é dissonante com a
mancha principal dos canaviais. Por isso é mais evidente no Funchal, Câmara de Lobos e Caniço,
áreas que estão muito longe de ser as de maior afirmação dos canaviais.
É o proprietário quem estabelece a forma de intervenção do escravo na sociedade e economia e,
como tal, adquire uma posição chave na definição e expressão da escravatura. Nos registos
paroquiais ao nome do escravo e origem étnica associa-se sempre o nome do proprietário. A sua
distribuição geográfica adequa-se à mancha da expressão da escravatura no arquipélago
madeirense. Assim, a capitania do Funchal tem a supremacia com 86% dos proprietários e 87%
dos escravos, adquirindo maior expressão no século XVI. No global da circunscrição definida
pela capitania do Funchal, temos, mais uma vez, o recinto do Funchal numa posição cimeira com
74% dos proprietários. A par disso a cidade, com as duas freguesias principais de que existe
documentação - Sé e São Pedro - apresentam 64% do número de proprietários, distribuindo-se os
restantes pelas outras da capitania do Funchal (23%), Machico (11%) e Porto Santo (2%).
Quando estabelecemos uma comparação entre o número de proprietários de escravos e o de
canaviais verificamos que em todas as áreas o primeiro grupo é superior ao segundo. Este facto
poderá ser considerado um indicativo seguro de que nem todos os proprietários de escravos se
dedicavam à safra açucareira e que nem todos os escravos existiam para isso. A diferença entre
os dois grupos é mais acentuada no Funchal, onde o número de proprietários de escravos é três
vezes superior ao de canaviais. Nas “Partes do Fundo” ela não ultrapassa o dobro, no século
XVI, e nas comarcas da Calheta, Ponta do Sol e capitania de Machico apresentava valor inferior.
O mesmo sucede quando comparamos o número de escravos com o dos proprietários de
canaviais e engenhos de açúcar. No século XV esta proporção é diminuta, mas na centúria
seguinte, excepto em Ponta do Sol e Machico, atinge valores elevados, sendo a média no Funchal
de dez escravos por proprietário, quatro na Ribeira Brava e três na Calheta.
Quando comparamos os escravos existentes na ilha com o número de engenhos verificámos
diferenças com aquilo que acontece no mundo americano. Nas Antilhas e América do Sul o valor
por engenho oscila entre os 800 e 100, aqui, no global, não ultrapassaria os 30, sendo a média
mais elevada no Funchal (com 77 escravos) e Ribeira Brava (com 24 escravos). É de salientar,
ainda, que, no total de 46 proprietários de engenhos, dezasseis são do Funchal. Os dados
disponibilizados pela investigação levam-nos a concluir o seguinte: num total 502 produtores de
açúcar apenas setenta e oito(16%) são possuidores de escravos. Para o século dezassete é maior o
número (39%) de proprietários de canaviais com escravos, sem existir qualquer relação de causa
e efeito entre ambas as realidades. Assim, por exemplo, Maria Gonçalves, viúva de António de
Almeida, é quem surge com o maior número de escravos, sendo diminuta a produção de açúcar.
Na Madeira a tendência era para a existência de um reduzido número de escravos por
proprietário. Com um ou dois escravos temos 58% e com mais de cinco a percentagem não
ultrapassa os 11%. O grupo daqueles que possuem mais de dez escravos não suplanta os 2%.
Estes destacados proprietários surgem, mais uma vez, no Funchal, entendido como o conjunto
das duas freguesias e comarca. O perfil do proprietário de escravos define-se pelo reduzido
número, pois 89% possuem entre um e cinco escravos. A par disso, se enquadrarmos os escravos
na estrutura fundiária dos proprietários, concluiremos pela fraca vinculação à cultura do açúcar:
em 104 detentores em simultâneo de escravos e bens fundiários, apenas nove são possuidores de
terras com canaviais. Os restantes, na sua maioria, detêm searas e vinhedos. Depois nos
signatários de canaviais merece apenas referência Bartolomeu Machado, no Funchal, com dez
escravos.
O escravo nas ilhas está indissociavelmente ligado à cultura dos canaviais nestas ilhas, embora
sem atingir a proporção de S. Tomé ou do Brasil. Os dados avulsos compilados na
documentação, quer da Madeira quer das Canárias testemunham essa relação. Em 1496 a coroa
dava conta desta simbiose para a Madeira ao estabelecer a proibição de venda, por dívidas, de
bens de raiz “nem escravos nem escravas”, animais e aparelhos de engenho, permitindo apenas a
troca nas “novidades” arrecadadas. Noutro documento de 1502, acerca das águas de regadio, o
monarca refere que era hábito os proprietários mandarem “os escravos e homens de soldada que
tem de reger seus canaviais”.
A ligação do escravo à fase de cultivo e amanho dos canaviais também pode ser atestada pela
presença nas diversas tarefas ligadas à laboração do engenho. O regimento dos alealdadores de
1501 refere que os mestres e lealdadores que fizessem açúcar quebrado sujeitavam-se a severas
penas e ordena-se que, caso eles fossem cativos, a coima correria por conta do proprietário. Aqui
o serviço dos escravos poderia assumir duas situações distintas: ajudante dos oficiais da safra, ou
os mesmos operários especializados. Em 1482, numa demanda sobre a qualidade do açúcar
“temperado”, depõem perante a vereação do Funchal os mestres de açúcar, Vaz e André Afonso:
o primeiro referia que, por ter estado ausente nas Canárias, um homem, seu cativo, havia
temperado o açúcar, enquanto o segundo, também fora da ilha, havia entregue o mesmo trabalho
a um moço que o servia de soldada.
A estes testemunhos, denunciadores da participação do escravo, como serventes, na cultura e
fabrico do açúcar também poderão juntar-se outros que demonstram terem eles actuado na
qualidade de oficiais de engenho: primeiro tivemos os escravos canários que se apresentaram na
ilha como exímios mestres de açúcar, como se poderá verificar pela cautela posta em 1490 e
1505, quanto à sua expulsão. Desta época apenas temos notícia de dois escravos que foram
mestres de engenho, e não sabemos se eram ou não guanches: em 1486 Rodrigo Anes, o Coxo,
da Ponta do Sol, estabeleceu em testamento a alforria de Fernando, mestre de engenho, e em
1500 no testamento de João Vaz, escudeiro, refere-se um escravo seu, Gomes Jesus, como
mestre de açúcar. Mais tarde, em 1605, é Jorge Rodrigues, homem baço, forro, quem reclama de
Pedro Agrela de Ornelas três mil réis de serviço que fizera no seu engenho em 1604. Em 1601
Jean Moquet dá conta de que os escravos tinham uma activa intervenção na faina dos engenhos,
uma vez que o mesmo terá visto um “grand nombre d’esclaves noirs qui travaillent aux sucres
dehors la ville”. Certamente que a única particularidade do serviço dos escravos nos engenhos
madeirenses residia no facto de eles trabalharem de parceria com homens livres ou libertos,
destacando-se aqui os trabalhadores de soldada: em 1578 António Rodrigues, trabalhador,
declara em testamento que havia trabalhado sob as ordens de Manuel Rodrigues, feitor do
engenho de D. Maria.
Em síntese, poderemos afirmar que, na Madeira, a exemplo do que sucedeu nas Canárias, a mão-
de-obra utilizada nos engenhos era mista, sendo composta por escravos, libertos e livres, os quais
executavam tarefas diferenciadas, sendo os serviços pagos em dinheiro ou açúcar. Neste grupo
de escravos incluíam-se os que pertenciam ao proprietário do engenho mas também outros que aí
serviam como gente de soldada. Também no Brasil a mão-de-obra era mista, mas acontece que
os escravos dominavam estes serviços. Eles tanto podiam ser pertença do proprietário do
engenho de canaviais, ou de outrem, que os alugava. É aqui que se radica a principal diferença
entre a ligação do escravo ao açúcar nestas ilhas e do outro lado do Atlântico. O panorama da
geografia açucareira na segunda metade do século XIX é distinto. A abolição da escravatura
provocou uma transformação da estrutura social e conduziu inevitavelmente a inovações
técnicas. O fim da escravatura conduziu a uma desenfreada busca de mão de obra livre através de
contratos, sendo os novos colonos recrutados entre os chineses, indianos e madeirenses. O
sistema e forma decorrente não estão longe da escravatura, razão porque ficou conhecido na
imprensa madeirense da época como escravatura branca. Este sistema vigorou até 1927. Neste
momento o grande suporte da estrutura produtiva madeirense que deu suporte à nova vaga dos
canaviais é o contrato de colonia, responsável nos séculos anteriores pelo total parcelamento do
solo em minúsculos poios.

OS PREÇOS DO AÇÚCAR. Não é fácil estabelecer com clareza a evolução dos preços do
açúcar no mercado insular porque não existem núcleos documentais que permitam a
reconstituição de séries. Os dados disponíveis são avulsos e desconexos. Em primeiro lugar está
a falta crónica de moeda nas ilhas e o recurso ao açúcar como meio de troca, a que se associa nos
séculos XV e XVI a sua insistente desvalorização. O açúcar, como moeda de troca, é uma
realidade quer na Madeira, quer nas Canárias, mas foi neste último arquipélago que adquiriu
melhor expressão. É necessário ter ainda em conta que a lei da oferta e da procura condicionava
de forma evidente a evolução do preço do açúcar ao longo do ano. Deste modo, é de notar uma
variação mensal de acordo com o período da safra do açúcar e da presença de embarcações
interessadas no seu trato. Daqui resulta que os preços mais elevados surjam nos meses de Junho
e Julho, precisamente no momento em que se disponibilizava o primeiro açúcar do ano e, por
isso, a afluência de mercadores era maior. É de notar, ainda, outras variações sazonais no próprio
mês de acordo, como é óbvio, com a lei da oferta e da procura.
O açúcar branco apresentava dois preços, consoante fosse de uma ou duas cozeduras. Na
Madeira o último preço correspondia em 1496 a quase o dobro do primeiro. Se tivermos em
conta, que em 15 000 arrobas da primeira cozedura ficava apenas 10 000 na segunda, nota-se
uma forte valorização do produto final. Esta insistência no açúcar de segunda cozedura é
considerada condição necessária para a valorização do produto, impedindo que chegasse ao
mercado europeu em más condições, mas acima de tudo era uma medida benéfica que reduzia
para metade a oferta do açúcar, o que favorecia a competitividade do produto numa altura que o
mercado se pautava por excedentes.
A partir da década de setenta o preço do açúcar entrou em quebra acentuada. Esta ideia está
testemunhada nas intervenções do senhorio a partir de 1469 que insiste na solução do monopólio
para o comércio. A negação dos madeirenses a semelhante solução levou o Duque D. Manuel a
avançar com novas medidas. Assim em 1496 fixa os preços em 350 réis para o açúcar da
primeira cozedura e 600 ao da segunda, e passados dois anos opta por estabelecer uma cota
máxima de exportação que se cifrava em 120.000 arrobas. Os dados disponíveis revelam este
movimento de quebra do açúcar. O primeiro açúcar feito em Machico vendeu-se a 2000 réis
arroba. Já em 1469 o seu preço estava em 500 arrobas para o de uma cozedura e 750 para o de
duas, Em 1472 temos a notícia que subiu para 1000 réis a arroba, mas esta deverá ser uma
situação particular resultante da quebra acentuada da moeda, pois que em 1478 regressou à
normalidade. O movimento de queda foi uma constante até princípios do século XVI e só a
revolução dos preços inverteu a situação, evidente na década de vinte em ambos os arquipélagos.
Esta última conjuntura é comum à Madeira e Canárias. Em ambos os casos é evidente uma
inversão de marcha a partir da década de trinta que pode ser entendida com a presença
concorrencial de açúcar de outras áreas, nomeadamente do continente americano. Todavia a
tendência nas Canárias inverte-se na década de quarenta, certamente como resultado da
galopante inflação.
A oferta não se resumia apenas ao açúcar branco, pois a ele devem juntar-se os subprodutos,
como as escumas, rescumas, mel, remel, mascavado e mel mascavado e depois alguns derivados,
como as conservas e casquinha, que em qualquer dos arquipélagos tiveram grande importância.
Em Tenerife as escumas e rescumas eram cotadas a metade do preço do branco, enquanto na
Madeira e Gran Canaria essa relação só é possível com as rescumas, uma vez que as escumas são
muito mais valorizadas. É, ainda, possível estabelecer uma relação entre estes subprodutos e o
açúcar branco, expressa nos níveis de produção e preço. Em Gran Canaria no século XVI essa
relação fazia-se da seguinte forma: em 2500 arrobas de açúcar correspondem 60% ao branco,
12% às escumas, 8% de rescumas e 20% de açúcar refinado. O mesmo sucede na Madeira no
período de 1520 a 1537.

CONSUMOS. O princípio fundamental que regeu o movimento de circulação do açúcar foi a


necessidade de suprir as carências de alguns mercados europeus, em substituição do oriental,
cada vez mais de difícil acesso. Foi esta conjuntura que impôs a nova cultura no espaço atlântico
e ditou as regras do seu mercado. Deste modo o consumo interno de açúcar é uma exigência
tardia, gerada por novos hábitos alimentares ou das contingências do mercado do produto. Neste
último caso assume importância o dispêndio de açúcar na industria de conservas e casca. Parte
significativa do açúcar produzido na ilha e, mais tarde, importado do Brasil, era usado no fabrico
de conservas e de doçaria. Esta indústria manteve-se nos séculos XVII e XVIII, suportada com o
pouco açúcar da produção local ou com as importações dele do Brasil. Neste último caso sabe-se
que em 1680 foram importadas 2.575 arrobas para o fabrico de casca. Aliás, de acordo com uma
informação dada ao governador da ilha, D. António Jorge de Melo referia-se que "é a casquinha
negócio muito grande porque há ano que se carregam com aquela terra mais de 20 embarcações
de um só doce para o qual é necessário comprar açúcar da terra ou manda-lo vir do Brasil". Parte
significativa desse movimento comercial pode ser reconstituída através da correspondência
comercial de dois mercadores: Diogo Fernandes Branco(1649-1652), William Bolton(1696-
1715) e Duarte Sodré Pereira(1710-1712).

Diogo Fernandes Branco parece ter sido o principal interveniente do comércio com os portos
nórdicos, quase só baseado na exportação de casca e conservas. Para o curto período que dura a
correspondência é evidente a importância assumida pelo dito comércio. Assim em 1649, não
obstante o açúcar da produção local ser de mau qualidade, a falta de cidra e tardar a vinda dos
navios do Brasil, a procura manteve-se activa, gerando dificuldades aos fornecedores, como
Diogo Fernandes Branco, que tiveram que socorrer-se de todos os meios para poder satisfazer a
encomenda. Ista conjuntura conduzia inevitavelmente ao aumento do preço do produto. Esta
situação continuou de modo que em Novembro de 1651 carregaram na ilha 9 navios franceses.
No ano imediato inverteu-se a situação: a casca abundou e em Outubro ainda tardavam em
chegar os navios para a levar ao seu destino, o que era motivo para preocupação. A
correspondência de William Bolton refere-nos, também, que a conserva de citrinos estava em
grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo usada para o abastecimento
das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas para Lisboa, Holanda e França. Duarte
Sodré Pereira surge, nos anos imediatos, como o continuador do comércio deste produto. A sua
actividade mercantil, neste lapso de tempo, esteve dedicada, também ao comércio do açúcar do
Brasil e à exportação de casca para o norte da Europa, nomeadamente, Amesterdão. A partir da
sua correspondência comercial sabe-se que exportou a seguinte quantidade de casca:
No fabrico das conservas e doces variados merecem a nossa atenção as freiras do Convento de
Santa Clara, da Encarnação e Mercês. Aliás em 1687 Hans Sloane referia-se de forma elogiosa
aos doces e compotas que comeu no Convento de Santa Clara, e ao referir que "nunca vi coisas
täo boas". Num breve relance pelos livros de receita e despesa do Convento da Encarnação,
Misericórdia do Funchal, e Recolhimento do Bom Jesus, constata-se as assíduas despesas com a
compra de açúcar da ilha ou do Brasil para o consumo interno. A Misericórdia do Funchal para
além das esmolas que recebia em açúcar ou marmelada, consumia açúcar que comprava. Do
primeiro tanto se poderia dar aos doentes ou vender para fora. Em 1636 gastaram-se 6.180 réis
na compra de 3 arrobas de açúcar para os doces da procissão das Endoenças. Ademais são
conhecidas outras despesas na compra de abóbora, ginjas, peras, marmelos para o fabrico de
doce. Em 4 de Junho de 1700 a Misericórdia do Funchal gastou 101.500 réis na compra de 34
arrobas para o fabrico de doces a serem consumidos ao longo do ano. Para o período de 1694 a
1700 a mesma instituição gastou 634.400 réis na compra de 227 arrobas de açúcar e 14 canadas
de mel. Maior e mais assíduo foi o consumo de açúcar no Convento da Encarnação. Aí, de
acordo com o registo mensal dos gastos com as compras de produtos para a dispensa do
convento pode-se ficar com uma ideia da sazonalidade do consumo da doçaria. No caso deste
convento destacam-se a Quinta-Feira de Endoenças e o Natal. Nesta última festividade
distribuía-se a cada freira, para a Consoada, 8 libras de açúcar. Além disso parte significativa do
açúcar de várias qualidades, era usado para o "tempero do comer" e fazer conserva. No total
despenderam-se 190 arrobas de açúcar por estes vinte e dois anos para um total aproximado de
seis dezenas de recolhidas.

O COMÉRCIO ATLÂNTICO E O AÇÚCAR. O desenvolvimento sócio-económico do


mundo insular articula-se de modo directo, com as solicitações de economia euro-atlântica:
primeiro região periférica do centro de negócios europeus, ajustaram o seu desenvolvimento
económico às necessidades do mercado europeu e às carências alimentares europeias, depois,
mercado consumidor das manufacturas de produção continental em condições vantajosas de
troca para o velho continente e, finalmente, intervém como intermediário nas ligações entre o
Novo e Velho Mundo. Note-se que, a partir de princípios do século XVI, 0 Mediterrâneo
Atlântico define-se como centro de contacto e apoio ao comércio africano, Índico e americano.
A tudo isto acresce que os interesses da burguesia e aristocracia dirigente peninsular
entrecruzam-se no processo de ocupação e valorização económica das novas sociedades e
economias insulares. Esta componente peninsular é reforçada com a participação da burguesia
mediterrânica, atraída por novos mercados e pela fácil e rápida expansão dos seus negócios. Por
isso, um grupo de italianos, mais ou menos ligados às grandes sociedades comerciais
mediterrânicas, participa activamente no processo de reconhecimento, conquista e ocupação do
novo espaço atlântico. Com efeito, eles interessaram-se pela conquista do arquipélago canário,
expedições portuguesas de exploração geográfica e o comércio ao longo da costa ocidental
africana. A sua penetração no mundo insular ficou assim facilitada o que os levou a alcançar uma
posição muito importante na sociedade e economia insulares. O investimento de capital de
origem mercantil, nacional ou estrangeiro surgiu apenas numa óptica da nova economia,
afirmando-se como gerador de novas riquezas adequadas a um aproveitamento comercial.
Assim, o comércio foi o denominador comum para os produtos a introduzir, sendo valorizados
aqueles activadores da nova economia de mercado. Aqui, a cana de açúcar e o cobiçado produto
final, o açúcar, detém uma posição cimeira.
A Madeira foi no começo o mais importante entreposto. Os descobrimentos aliam-se ao
comércio e, por isso, desde meados do século XV, manteve-se um trato assíduo com o reino,
activado com as madeiras, urzela, trigo e, depois, com o açúcar e o vinho. Este movimento
alargou-se às cidades nórdicas e mediterrânicas, com o aparecimento de estrangeiros interessados
no comércio do açúcar. O arquipélago canário, tardiamente associado ao domínio europeu,
manteve desde o século XVI um activo comércio com a Península. Neste tráfico intervêm os
peninsulares e italianos. Após a conquista, castelhanos, portugueses e italianos repartem entre si
o comércio das ilhas. Os flamengos e ingleses, que delinearão as rotas de ligação ao mercado
nórdico, surgem num segundo momento. Na Madeira ele assumiu uma posição dominante na
produção e comércio entre 1450 e 1550, enquanto que nas restantes praças surge apenas em
princípios do século XVI, tendo assumido idêntica posição na década de trinta.
O regime do comércio do açúcar madeirense nos séculos XV e XVI, segundo opinião de
Vitorino Magalhães Godinho, “vai oscilar entre a liberdade fortemente restringida pela
intervenção quer da coroa quer dos poderosos grupos capitalistas, de um lado, e o monopólio
global, primeiro, posteriormente um conjunto de monopólio cada qual em relação com uma
escápula de outra banda”. Deste modo o comércio apenas se manteve em regime livre até 1469,
altura em que a baixa do preço veio condicionar a intervenção do senhorio, que estipulou o seu
exclusivo aos mercadores de Lisboa. Ao madeirense, habituado a negociar com os estrangeiros,
isto não agradou. Mesmo assim o Infante D. Fernando decidiu em 1471 estabelecer o monopólio
a uma companhia formada por Vicente Gil, Álvaro Esteves, Baptista Lomelim, Francisco Calvo
e Martim Anes Boa Viagem. Desta decisão resultou um aceso conflito entre a vereação e os
referidos contratadores. Passados vinte e um anos a ilha debatia-se ainda com uma conjuntura
difícil no comércio açucareiro, pelo que a coroa retomou em 1488 e 1495 a pretensão do
monopólio, mas apenas conseguiu impor um conjunto de medidas regulamentadoras da cultura,
safra e comércio, que ocorrem em 1490 e 1496. Esta política, definida no sentido da defesa do
rendimento do açúcar, irá saldar-se mais uma vez num fracasso, pelo que em 1498 foi tentada
uma nova solução, com o estabelecimento de um contingente de cento e vinte mil arrobas para
exportação, distribuídas por diversas escápulas europeias.
Estabilizada a produção e definidos os mercados do açúcar, a economia madeirense não
necessitava de tão rigorosa regulamentação, pelo que em 1499 o monarca acabou com algumas
das prerrogativas estipuladas no ano anterior, mantendo-se, no entanto, até 1508 o regime de
contrato para a sua venda, pois só nesta data foi revogada toda a legislação anterior, ficando o
seu trato em regime de total liberdade. Assim o definiu o foral da capitania do Funchal, em 1515,
ao enunciar que “Os ditos açúcares se poderão carregar para o Levante e Poente e para todas
outras partes que os mercadores e pessoas que os carregarem aprouver sem lhe isso ser posto
embargo algum”. Nas Canárias depara-se-nos uma situação diferente, pois o comércio do açúcar
fundamenta-se numa política de abertura a todos os mercados e agentes. Apenas é de notar as
restrições impostas pela conjuntura de afrontamento político e religioso, que tem incidência
particular no movimento com a Flandres e a Inglaterra, no último quartel do século XVI. As
condições especiais em que sucedeu o processo de conquista favoreceu a abertura a todos os
intervenientes interessados e, por consequência, facilitou o relacionamento das ilhas com as
cidades italianas e flamengas.
As mudanças operadas no mercado mundial, resultantes primeiro de concorrência da beterraba e,
depois, da conturbada conjuntura política, levaram ao estabelecimento de uma política
proteccionista que atingiu também o mercado. Em 1931 criou-se “international sugar agreement”
em Bruxelas. A II Guerra mundial provocou uma inversão da tendência, levando à liberalização
do mercado livre evidente a partir de 1953. Na Madeira também se sentiu os reflexos dessa
política que ficou conhecida como o proteccionismo sacarino. Assim apostou-se na promoção da
cultura através de medidas limitativas à concorrência dos produtos sacarinos importados que em
1855 foram onerados nos direitos de importação. Por outro lado facilitou-se a exportação dos
nossos produtos para o continente e Açores por meio de uma redução das taxas alfandegárias
(1870) e depois da sua abolição (1876) por períodos de cinco anos até 1886 culminando em 1895
com o decreto de 30 de Dezembro que pretende assegurar um mercado para o açúcar madeirense,
dando à sua indústria condições para laborar em condições concorrenciais com as indústrias
doutros países. Neste sentido facilita-se a importação de melaço com taxa de 30 reis ao quilo, a
isenção de impostos, tendo apenas a obrigatoriedade de adquirir a cana a preço mínimo de 400 e
450 reis por cada trinta quilos. Note-se que estas medidas são simultâneas das medidas de
protecção do açúcar das colónias.
O único senão que escondia esta medida era o facto de só se aplicarem às fábricas matriculadas,
isto é, a de W. Hinton & Sons e do seu comparsa José Júlio de Lemos, deixando de fora as
restantes que serão forçadas a encerrar portas, levando a industria do açúcar para um regime de
monopólio do engenho do Torreão, situação que se manteve até 1985, ano em que deixou de
laborar e de fabricar-se o produto.

MERCADORES, BOTICAS E CONSUMIDORES. A Madeira atraiu a primeira vaga de


mercadores forasteiros, mercê da prioridade atribuída à cultura dos canaviais no processo de
ocupação. Só o impediram as ordenanças limitativas da sua residência na ilha. Todavia, em
meados do século XV a coroa facultou a entrada e fixação de italianos, flamengos, franceses e
bretões, por meio de privilégios especiais, como forma de assegurar um mercado europeu para o
açúcar. Mas, o impacto e a influência destes foi lesivo para os mercadores nacionais e coroa,
pelo que se foi necessário impedir que os mesmos pudessem “asy soltamente tratar todos”, pelo
que o senhorio proibiu a sua permanência na ilha como vizinhos. A questão foi levada às cortes
de Coimbra de 1472-1473 e de Évora em 1481, reclamando a burguesia do reino contra o
monopólio de facto, dos mercadores genoveses e judeus no comércio do açúcar, propondo a sua
exploração nesse regime a partir de Lisboa. O monarca comprometido com esta posição
vantajosa dos estrangeiros, mercê dos privilégios que lhes concedera actuou de modo ambíguo
procurando salvaguardar os compromissos anteriormente assumidos e as solicitações dos
moradores do reino ao estabelecer limitações à sua residência no reino e fazendo-a depender de
licenças especiais. Quanto à Madeira foi a impossibilidade da sua vizinhança sem licença
expressa da coroa e a interditação da revenda no mercado local. A Câmara, por seu turno,
baseada nestas ordenações e no desejo expresso dos seus moradores ordenara a sua saída até
Setembro de 1480, no que foi impedida pelo senhorio. Somente em 1489 foi reconhecida a
utilidade da presença dos mercadores estrangeiros na ilha, ordenando D. João II ao duque D.
Manuel, então Duque de Beja, que os estrangeiros fossem considerados como “naturais e
vizinhos de nossos reinos”.
Na década de noventa, de novo, os problemas do mercado açucareiro conduziram ao
ressurgimento desta política xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro
meses, entre Abril e meados de Setembro, para comerciar os seus produtos, não podendo ter loja
e feitor na cidade. Somente em 1493 D. Manuel reconheceu o prejuízo que as referidas medidas
causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou todas
interdições anteriormente impostas. As facilidades concedidas à estadia destes forasteiros
conduziram à sua assiduidade bem como à fixação e intervenção na estrutura fundiária e
administrativa.
A comunidade de mercadores estrangeiros na Madeira foi dominada pela presença de italianos,
flamengos e franceses, que surgem no Funchal atraídos pelo tão solicitado “ouro branco”. Os
primeiros e de entre eles os florentinos e genoveses foram, desde meados do século XV, os
principais agentes do comércio do açúcar alargando depois a sua actuação ao domínio fundiário,
possível por meio da compra e laços matrimoniais. Na década de setenta, mediante o contrato
estabelecido com o senhorio da ilha, detinham já uma posição maioritária na sociedade criada
para o comércio do açúcar, sendo representados por Baptista Lomellini, Francisco Calvo e Micer
Leão. No último quartel do século juntaram-se Cristóvão Colombo, João António Cesare,
Bartolomeu Marchioni, Jerónimo Sernigi e Luís Dória. A este grupo seguiu-se, em princípios do
século XVI, outro mais numeroso que alicerçou a comunidade italiana residente, destacando-se,
aqui, Lourenço Cattaneo, João Rodrigues Castigliano, Chirio Cattano, Sebastião Centurione,
Luca Salvago, Giovanni e Lucano Spínola. O estrangeiro para manter a amplitude de operações
comerciais nas ilhas contava com um grupo de feitores ou procuradores: Gabriel Affaitati, Luca
António, Cristóvão Bocollo, Matia Minardi, Capella e Capellani, João Dias, João Gonçalves e
Mafei Rogell. Note-se que o grupo inicial é, na sua maioria, constituído por italianos, ligados ao
comércio do açúcar, e que os segundos pertencem a algumas famílias mais influentes da ilha.
Os mercadores-banqueiros de Florença destacaram-se nas transacções comerciais e financeiras
do açúcar madeirense no mercado europeu. A partir de Lisboa, onde usufruíam uma posição
privilegiada junto da coroa, controlaram uma extensa rede de negócios que abrange a Madeira e
as principais praças europeias: primeiro conseguiram da Fazenda Real o quase exclusivo do
comércio do açúcar resultantes dos direitos reais por contrato directo a que se seguiu o exclusivo
dos contingentes estabelecidos pela coroa em 1498. Assim, tivemos Bartolomeu Marchioni,
Lucas Giraldi e Benedito Morelli com uma intervenção marcante no trato do açúcar, na primeira
metade do século XVI. A manutenção desta rede de negócios foi assegurada pela acção directa
dos mercadores, dos seus procuradores ou agentes substabelecidos. Benedito Morelli em 1509-
1510 tinha na ilha, como agentes para o recebimento do açúcar dos quartos, Simão Acciaiuolli,
João de Augusta, Benoco Amador Cristóvão Bocollo e António Leonardo. Marchioni em 1507-
1509 fazia-se representar em operações idênticas por Feducho Lamoroto. João Francisco
Affaitati, cremonês, agente em Lisboa de uma das mais importantes companhias comerciais da
época, participou activamente neste comércio entre 1502 e 1526, por meio de contratos de
compra e venda dos açúcares dos direitos reais (1516-1518, 1520-1521 e 1529) e pagamentos em
açúcar a troco de pimenta. O mesmo actuou, ainda, em sociedade com Jerónimo Sernigi, João
Jaconde, Francisco Corvinelli e Janim Bicudo, quer isoladamente, tendo para o efeito como
feitores e procuradores na ilha, Gabriel Affaitati, Luca António, Cristóvão Bocollo, Capela de
Capellani, João Dias, João Gonçalves, Matia Manardi e Maffei Rogell.
A penetração deste grupo de mercadores na sociedade madeirense foi muito acentuada. O
usufruto de privilégios reais, o relacionamento familiar favoreceram a sua mistura com a
aristocracia terra tenente e administrativa. A sua intervenção é notada na estrutura administrativa,
abrangendo os domínios mais elementares do governo, como a vereação e as repartições da
fazenda, todas com intervenção directa na economia açucareira. São maioritariamente
proprietários e mercadores de açúcar. Instalaram-se nas terras de melhor e maior produção e
tornaram-se nos mais importantes proprietários de canaviais. Assim, sucedeu com Rafael
Cattano, Luís Dória, João e Jorge Lomelino, João Rodrigues Castelhano, Lucas Salvago,
Giovanni Spínola, João Antão, João Florença e Simão Acciaiuolli e Benoco Amatori.
Também, os franceses e flamengos, a exemplo dos italianos, surgem na ilha, desde finais do
século XV, atraídos pelo rendoso comércio do açúcar. No entanto, não se enraizaram na
sociedade insular, mantendo uma condição errante. O seu interesse é única e exclusivamente a
aquisição do açúcar a troco dos seus artefactos, alheando-se da realidade produtiva e
administrativa. O caso de João Esmeraldo é a excepção. Os franceses afirmaram-se pelas
operações de troca em torno do açúcar, enquanto os flamengos mantiveram uma posição
subalterna e mesmo como grupo interveniente no mercado madeirense. Os franceses tiveram
uma presença muito activa no comércio do açúcar, na primeira metade do século XVI. Eles
surgem com frequência nas comarcas do Funchal, Ponta do Sol, Ribeira Brava e Calheta, onde
adquiram grandes quantidades de açúcar que transportavam aos portos franceses nas suas
embarcações. Neste trato evidenciaram-se mestre António, Archelem, António Coyros, António
Caradas e Francisco Lido. Os últimos aliavam à Madeira a rede de negócios das Canárias, que
surge como ramificação das praças nórdicas e andaluzas.
As escápulas, até 1504, e o produto dos direitos reais eram canalizados ao mercado europeu, quer
por carregação directa, quer ainda, por negócio livre ou a troco de pimenta. Este açúcar era
arrendado por mercadores ou sociedades comerciais, sedeados em Lisboa, sendo de destacar a
actuação dos italianos, como João Francisco Affaitati e Lucas Salvago. As operações comerciais
em torno do açúcar, no período de 1501 e 1504, estiveram centralizadas em mercadores ou
sociedades comerciais que, a partir de Lisboa, controlaram esse trato por meio de uma
complicada rede de feitores ou procuradores. A sua intervenção, que se apresentava dominante
nos três primeiros decénios do século, decresceu de forma acentuada na última década. Isto
atesta que os mercadores estrangeiros, em face da conjuntura de instabilidade do mercado
açucareiro madeirense nos primeiros trinta anos abandonaram o seu comércio fazendo-o
substituir pelo de outras origens.
A comunidade italiana controlava a quase totalidade do comércio do açúcar com as principais
praças europeias sendo seguida da portuguesa e da castelhana. Os mercadores nórdicos não
apresentam uma posição de relevo nestas operações. Isto demonstra, mais uma vez, que a rota e
mercado flamengo mantiveram-se sob o controlo da nossa feitoria. No período que decorre de
1490 a 1550, verifica-se que os italianos detiveram o exclusivo do comércio na primeira década e
uma posição dominante nas duas seguintes, sendo substituídos pelos portugueses na década de
trinta, e também por castelhanos e franceses. Ainda, no grupo dos mercadores estrangeiros nota-
se uma tendência concentracionista, pois apenas os cinco principais detêm 71% do açúcar
transaccionado. Todos eles apresentam valores superiores a dez mil arrobas, enquanto nos
nacionais apenas um tem mais de 1080 arrobas. João Francisco Affaitati, mercador cremonês de
família nobre, chefe da sucursal em Lisboa da companhia Affaitati, uma das principais dessa
praça, surge no período de 1502 a 1529 como o principal activador do comércio do açúcar
madeirense, tendo transaccionado sete vezes mais açúcar que todos os portugueses. Durante este
período, arrematou em 1502, as escápulas de Águas Mortas, Liorne, Roma e Veneza.
Conjuntamente com Jerónimo Sernigi, João Jaconde e Francisco Cornivelli conseguiu a venda
do açúcar dos direitos (1512-1518, 1520-1521, 1529) e actuou em operações diversas de compra
directa de açúcar e da sua troca por pimenta ou dívidas. Para manter esta amplitude de
actividades comerciais contava na ilha com um grupo numeroso de feitores ou procuradores:
Gabriel Affaitati, Luca António, Cristóvão Bocollo, Matia Manardi, Capella de Capellani, João
Dias, João Gonçalves e Mafei Rogell. Por outro lado aceitou procuração de Garcia Pimentel,
Pedro Afonso de Aguiar e João Rodrigues de Noronha.
A rede de negócios funchalense, em torno do trato do açúcar, foi criada e incentivada pelo
mercador estrangeiro, alemão ou italiano, que aí aportou depois da reconfortante e vantajosa
escala em Lisboa. Ele controlou as principais sociedades intervenientes no comércio açucareiro,
não obstante ter morada fixa em Lisboa, Flandres ou Génova. O seu domínio atinge, não só, as
sociedades criadas no exterior com intervenção na ilha, mas também, o grupo de agentes ou
feitores e procuradores substabelecidos no Funchal. A sua escolha é criteriosa: primeiro os
familiares, depois os compatrícios enraizados na sociedade e só, depois, os madeirenses ou
nacionais. As principais casas intervenientes no trato açucareiro madeirense podem ser definidos
de acordo com o número de representantes, destacando-se então, Baptista Morelli, B. Marchioni,
Welser, Claaes, Charles Correa, Pero de Ayala e Pero de Mimença. Os Welsers e Claaes
actuaram na praça do Funchal por intermédio de agente estabelecido em Lisboa,
respectivamente, Lucas Rem e Erasmo Esquet, que depois substabelecem feitores. O primeiro
tinha como interlocutores no Funchal, em princípios do século XVI, João de Augusta, Bono
Bronoxe, Jorge Emdorfor, Jácome Holzbuck, Leo Ravenspurger e Hans Schonid.
Os procuradores e feitores, na sua condição de interlocutores dos mercadores europeus não se
ligam apenas a uma sociedade, pois distribuíram a sua acção por um grupo numeroso de
societários. E estes por sua vez não se prendem apenas a um representante, concedendo-os a um
grupo variado de feitores e procuradores. Na primeira situação tivemos Benoco Amatori que
representava B. Marchionni, B. Morelli, Álvaro Pimentel e Jerónimo Sernigi. E, na segunda,
João Francisco Affaitati que, entre 1500-1529, estava representado por Gabriel Affaitati, Luca
António, Cristóvão Bocollo, Capella de Capellani, João Dias, João Gonçalves, Matia Manardi,
Mafei Rogell e Lucas Giraldi.
Na segunda metade do século XVII o açúcar madeirense foi paulatinamente substituído pelo
brasileiro. Neste circuito de escoamento e comércio é evidente a intervenção de madeirenses e
açorianos. A oferta de vinho ou vinagre era compensada com o acesso ao rendoso comércio do
açúcar, tabaco e pau-brasil. Mas o trajecto destas rotas comerciais ampliava-se até ao trafico
negreiro, cobrindo um circuito de triangulação. Para isso os madeirense criaram a sua própria
rede de negócios, com compatrícios fixos em Angola e Brasil. Diogo Fernandes Branco é o
exemplo perfeito da nova situação. A sua actividade incidia, preferencialmente, na exportação de
vinho para Angola, onde trocava por escravos que, depois, ia vender ao Brasil por açúcar. O
circuito de triangulação fechava-se com a chegada à ilha das naus, vergadas sob o peso das
caixas de açúcar ou rolos de tabaco. Depois seguia-se outro processo de transformação do
produto em casca ou conservas. Esta era uma tarefa caseira que ocupava muitas mulheres na
cidade e arredores. Os mercadores, como Diogo Fernandes Branco, coordenavam todo o
processo, de acordo com as encomendas que recebiam, uma vez que o produto depois de
laborado deveria ter rápido escoamento. Os principais portos de destino situavam-se no norte da
Europa: Londres, St Malo, Amburgo, Rochela, Bordéus. Ele foi o interlocutor directo dos
mercadores das praças de Lisboa (no caso Manuel Martins Medina), Londres, Rochela ou
Bordéus, satisfazendo a sua solicitação de vinho e derivados do açúcar a troco de manufacturas,
uma vez que o dinheiro e as letras de cambio, raramente encontravam destinatário na ilha. A par
disso manteve a sua rede de negócios, apoiado em alguns mercadores de Lisboa, e das principais
cidades brasileiras. São múltiplas as operações comerciais registadas na sua documentação
epistolar. À primeira vista parece-nos que o mesmo se especializou em duas actividades
paralelas: o comércio de vinho para Angola e Brasil e o de açúcar e derivados para adocicar os
manjares dos repastos da mesa europeia.
As actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco não são de modo algum episódicas, no
contexto da estrutura comercial madeirense da segunda metade do século dezassete, pois
comprovam uma das dominantes estruturais: a ilha com intermediária entre os interesses da
burguesia comercial do Novo e Velho Mundo. Um dos componentes deste puzzle era o porto do
Funchal, onde uma chusma de pequenos burgueses que aguardam a oportunidade de singrar em
tais negócios. Angola, Brasil são os outros dois vértices deste triângulo. Episodicamente surge-
nos Barbados, que só singrou a partir da afirmação hegemónica da burguesia comercial britânica
no mundo atlântico.

O CONSUMO DO AÇÚCAR. O princípio fundamental que regeu o movimento de circulação


do açúcar foi a necessidade de suprir as carências de alguns mercados europeus, em substituição
do oriental, cada vez mais de difícil acesso. Esta conjuntura impôs a nova cultura no espaço
atlântico e ditou as regras do seu mercado. Deste modo o consumo interno de açúcar é uma
exigência tardia, gerada por novos hábitos alimentares ou das contingências do mercado do
produto. Neste último caso assume importância o dispêndio de açúcar na industria de conservas e
casca como resultado da solicitação dos veleiros que demandavam o Funchal.

O DISPENDIO DO AÇÚCAR DOS DIREITOS. O açúcar e derivados dele que se produziam


na Madeira tinham um consumo variado. Assim a maior e melhor qualidade era canalizada para
a exportação aos principais mercados estrangeiros. Do açúcar laborado há que distinguir aquele
que pertence aos proprietários de canaviais e engenho e o que é da coroa, por arrecadação do
almoxarifado dos quartos ou da Alfândega, resultante dos direitos que oneravam a produção
(quarto/quinto/oitavo) e saída na Alfândega (dízima). Enquanto a cobrança deste último era feita
directamente nas alfândegas do Funchal e Santa Cruz, o primeiro poderia ser recolhido pela
estrutura institucional criada para o efeito o almoxarifado dos quartos (1485-1522) ou o
cargo da anterior. Ainda, nesta situação poderia suceder a sua arrecadação por contratadores,
maioritariamente estrangeiros, que oscilava entre as 18.507 e 31.876 arrobas entre 1497 e 1506.
Este açúcar arrecadado pela coroa, tal como nos elucida F. J. Pereira, era gasto em despesas
ordinárias, na carregação directa e nas vendas feitas aos mercadores e/ou sociedades comerciais.
Na primeira despesa estavam incluídos, a redízima dos capitães, os gastos pessoais do monarca,
da Casa Real, as esmolas, para além das despesas com os soldos dos funcionários, do transporte
e embalagem do açúcar. Esta despesa variou entre as 1.070 e 2.114 arrobas, sendo a média anual
no período de 1501 a 1537 de 1622 arrobas. No caso das esmolas é de realçar as que se faziam às
Misericórdias Funchal (1512), Ponta Delgada em S. Miguel (1515), Todos os Santos em
Lisboa (1506 -, Conventos - Santa Maria de Guadalupe (1485), Jesus de Aveiro (1502),
Conceição de Évora. A par disso também se regista a utilização temporária destes lucros
arrecadados pela Coroa no custeamento das despesas com os socorros às praças africanas ou no
provimento das armadas. A contrapartida estará na política de ofertas estabelecida por D. Manuel
I, que em muito contribuiu para o enriquecimento do património artístico da Madeira.

AS CONSERVAS E DOÇARIA. Parte significativa do açúcar produzido na ilha, e mais tarde


importado do Brasil, era usado no fabrico de conservas e de doçaria. São vários os testamentos
denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes produtos. Em meados do século
quinze Cadamosto refere a feitura de “muitos doces brancos perfeitíssimos”, enquanto em 1567
Pompeo Arditi dá conta da “conserva de açúcar” que se fazia no Funchal “de óptima qualidade e
muita abundância”. E, esta tradição perpetuou-se na ilha para além do fulgor da produção
açucareira local pois, segundo Hans Sloane em 1687, o madeirense produzia “açúcar
indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil”. Dois
anos após John Ovington refere a indústria da conserva de citrinos que se exportava para França.
Tal como se deduz de um documento de 1469 o fabrico de conservas era indústria importante
para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava “mulheres de boas pessoas e
muytos pobres que lavraram os açuquares baixos em tantas maneiras de conservas e alfeni e
confeitos de que am grandes proveitos que dam remédio a suas vidas e dam grande nome a terra
nas partes onde vam...”. Os livros do quarto e quinto do açúcar informam-nos sobre o dispêndio
que dele se fazia no fabrico de conservas, frutas seca e marmelada. Nisso gastaram-se cerca de
quatrocentas arrobas de açúcar de vários tipos, sendo na sua maioria para consumo dos
proprietários do referido açúcar.
A fama da arte da confeitaria madeirense espalhou-se por toda a Europa e teve o seu expoente
máximo na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao Papa. Segundo Gaspar
Frutuoso compunha-se de “muitos mimos e brincos da ilha de conservas, e o sacro palácio todo
feito de assucar, e os cardiais todos feitos de alfenim, dornados a partes, o que lhes dava muita
graça, e feitos de estatura de hum homem”. São vários os testemunhos denunciadores da mestria
dos madeirenses no fabrico destes produtos. Segundo Hans Sloane em 1687 o madeirense
produzia “açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo
ao Brasil”. Dois anos depois John Ovington refere a indústria da conserva de citrinos ou cidra
que se exportavam para a França e Holanda. A cidra existia em abundância na Ponta de Sol,
Ribeira Brava, Machico e Câmara de Lobos (Ribeira dos Socorridos), quase desaparecendo em
finais do século XVIII e arrastando inevitavelmente esta industria para o seu fim.
Um dos factores de promoção desta indústria ao nível das conservas foi a importância assumida
pelo Funchal como porto de escala de abastecimento para a navegação atlântica. Muitas
embarcações aportavam aí com o intuito de se fornecerem de conservas de citrinos para a sua
dieta de bordo. Mas, sem dúvida, o consumidor preferencial das conservas e doçaria madeirense
era a Casa Real portuguesa. D. Manuel foi o seu consumidor preferencial e aquele que divulgou
as suas qualidades na Europa. Assim ficaram como o seu principal presente, dentro e fora do
reino, sendo o seu exemplo seguido por Vasco da Gama, que também ofertou o xeque de
Moçambique com conservas da ilha. No período de 1501 a 1561 a Casa Real consumiu 1129
arrobas e 58 barris de açúcar em conservas e frutas secas. A par disso o rei havia estabelecido a
partir de 1520 o envio anual de 10 arrobas de conserva para o feitor de Flandres.
Esta indústria manteve-se por todo o século XVII, suportada com o pouco açúcar da produção
local ou com as importações dele do Brasil. Neste último caso sabe-se que em 1680 foram
importadas 2.575 arrobas para o fabrico de casca. Aliás, de acordo com uma informação dada ao
governador da ilha, D. António Jorge de Melo referia-se que “é a casquinha negócio muito
grande porque há ano que se carregam com aquela terra mais de 20 embarcações de hum só doce
para o qual he necessario comprar açúcar da terra ou manda-lo vir do Brasil”. A correspondência
de William Bolton refere-nos que a conserva de citrinos estava em grande prosperidade na
década de noventa do século XVII, sendo usada para o abastecimento das embarcações que
demandavam a ilha, ou exportadas para Lisboa, Holanda e França. Parte significativa desse
movimento comercial pode ser reconstituída através da correspondência comercial de dois
mercadores: Diogo Fernandes Branco (1649-1652), William Bolton (1696-1715) e Duarte Sodré
Pereira (1710-1712).
Diogo Fernandes Branco parece ter sido o principal interveniente do comércio com os portos
nórdicos, quase só baseado na exportação de casca e conservas. Para o curto período que dura a
correspondência é evidente a importância assumida pelo dito comércio. Assim em 1649, não
obstante o açúcar da produção local ser de mau qualidade, a falta de cidra e tardar a vinda dos
navios do Brasil, a procura manteve-se activa, gerando dificuldades aos fornecedores, como
Diogo Fernandes Branco, que tiveram que socorrer-se de todos os meios para poder satisfazer a
encomenda. A conjuntura conduziu inevitavelmente ao aumento do preço do produto. Esta
situação continuou de modo que em Novembro de 1651 carregaram na ilha 9 navios franceses.
No ano imediato inverteu-se a situação: a casca abundou e em Outubro ainda tardavam em
chegar os navios para a levar ao seu destino, o que era motivo para preocupação.
A correspondência de William Bolton refere-nos, também, que a conserva de citrinos estava em
grande prosperidade na década de noventa do século XVII, sendo usada para o abastecimento
das embarcações que demandavam a ilha, ou exportadas para Lisboa, Holanda e França. Duarte
Sodré Pereira surge, nos anos imediatos, como o continuador do comércio deste produto. A sua
actividade mercantil, neste lapso de tempo, esteve dedicada, também ao comércio do açúcar do
Brasil e à exportação de casca para o norte da Europa, nomeadamente, Amesterdão.
No fabrico das conservas e doces variados merecem a nossa atenção as freiras do Convento de
Santa Clara, da Encarnação e Mercês. Aliás, em 1687 Hans Sloane referia-se de forma elogiosa
aos doces e compotas que comeu no Convento de Santa Clara, e ao referir que “nunca vi coisas
tão boas”. Num breve relance pelos livros de receita e despesa do Convento da Encarnação,
Misericórdia do Funchal, e Recolhimento do Bom Jesus, constata-se as assíduas despesas com a
compra de açúcar da ilha ou do Brasil para o consumo interno. A Misericórdia do Funchal para
além das esmolas que recebia em açúcar ou marmelada, consumia açúcar que comprava. Do
primeiro tanto se poderia dar aos doentes ou vender para fora. Em 1636 gastaram-se 6.180 réis
na compra de 3 arrobas de açúcar para os doces da procissão das Endoenças. Ademais são
conhecidas outras despesas na compra de abóbora, ginjas, peras, marmelos para o fabrico de
doce. Em 4 de Junho de 1700 a Misericórdia do Funchal gastou 101.500 réis na compra de 34
arrobas para o fabrico de doces a serem consumidos ao longo do ano. Para o período de 1694 a
1700 a mesma instituição gastou 634.400 réis na compra de 227 arrobas de açúcar e 14 canadas
de mel.
Maior e mais assíduo foi o consumo de açúcar no Convento da Encarnação no período de 1671 a
1693. Aí, de acordo com o registo mensal dos gastos com as compras de produtos para a
dispensa do convento pode-se ficar com uma ideia da sazonalidade do consumo da doçaria, que
consistia em coscorões, batatada, talhadas, queijadas, arroz-doce e bolos. No caso deste convento
destacam-se a Quinta-Feira de Endoenças, Páscoa, Espírito Santo, Nossa Sra. Encarnação e do
Carmo, Natal. Nesta última festividade distribuía-se a cada freira, para a Consoada, 8 libras de
açúcar. Além disso parte significativa do açúcar de várias qualidades, era usado para o “tempero
do comer” e fazer conserva. No total gastaram-se 190 arrobas de açúcar por estes vinte e dois
anos para um total aproximado de seis dezenas de recolhidas. Extintos os conventos quase que
também desapareceu a tradição da doçaria. Hoje, o único testemunho que resta dessa importante
industria do doce madeirense é o bolo de mel. O alfenim manteve-o a tradição dos ex-votos das
festas do espírito Santo na ilha Terceira, único local onde ainda persiste esta tradição.
O açúcar é de todos os produtos resultantes da guarapa aquele que requer um mais demorado
período de laboração e uma requintada e custosa tecnologia. Mais fácil se torna a extracção do
mel e aguardente. Neste sentido, o regresso da cana no século XIX fez-se mais por esta aposta na
necessária produção de aguardente, tão necessária para a industria viti-vinicola, não obstante as
medidas impostas no sentido de uma produção equilibrada de aguardente, álcool e açúcar. O
tratamento do vinho para exportação fazia-se no início com aguardentes de fora, depois
queimaram-se os vinhos de inferior qualidade, a que se seguiu o recurso a aguardente de cana.
Note-se que em 1865 os quatro engenhos em laboração são usados apenas para o fabrico de
aguardente. Esta abundância de aguardente levou ao consumo desusado, provocando graves
problemas sanitários na ilha pelo que as autoridades foram obrigadas a intervir para o seu
controle, procurando retirar-lhe o epíteto de ilha da aguardente. Foi essa a função do decreto de
11 de Março de 1911 que procurou estabelecer um travão, com a expropriação das fábricas de
aguardente não matriculadas. Todavia, a quebra dos compromissos deste decreto levou a que as
fábricas de aguardente se mantivessem. A machadada final nas fábricas de aguardente foi dada
em 1928 com a criação da Companhia da Aguardente da Madeira, que detêm o contrato
exclusivo de produção de aguardente por vinte e cinco anos. Esta medida, saudada por muitos,
que tinha como objectivo reduzir o consumo da aguardente, conduziu inevitavelmente ao
encerramento das fábricas de aguardente.

O COMÉRCIO DO OURO BRANCO. O comércio do açúcar destaca-se no mercado


madeirense dos séculos XV e XVI como o principal animador das trocas com o mercado
europeu. Durante mais de um século a riqueza das gentes da ilha e o fornecimento de bens
alimentares e artefactos dependeu do comércio do produto. O mesmo sucedeu nas Canárias, a
partir do século XVI. Todavia, neste período a sua venda e valor sofreram diversas oscilações,
mercê da conjuntura do mercado consumidor e da concorrência dos mercados insulares e
americanos.
O dispêndio do açúcar do lavrador fazia-se de forma diversificada. As vendas directas aos
mercadores, muitas vezes de antemão, associam-se os pagamentos de dívidas ou por trocas de
produtos e serviços. Na Madeira, os livros do quarto e do quinto, como forma de controlo dos
direitos em jogo, contabilizam o modo como os lavradores despendiam o seu açúcar. Apenas
para a Madeira, na primeira metade do século dezassete é possível estabelecer com clareza essa
forma de dispêndio do açúcar conseguido por proprietários de canaviais e engenhos. No global
tivemos cerca de 81.280 arrobas distribuídas por 2.492 compradores. A tendência é para a
disseminação pelos pequenos compradores, acabando com os interesses monopolistas de
algumas casas comerciais, que haviam dominado o comércio na época de apogeu. Note-se que o
lavrador de canas e o proprietário do engenho serviam-se usualmente do produto da sua safra
para o pagamento da mão de obra assalariada que necessitavam. Entre 1509 e 1537 há referência
a diversos pagamentos em açúcar por serviços prestados na lavoura e laboração do engenho e,
mesmo na compra de qualquer manufactura ou prestação de serviço artesanal. O pagamento dos
serviços da safra do açúcar atingem 31,41%, sendo 16,62% no cultivo e apanha da cana e
14,59%, sendo dominados pelos sapateiros (27,62%) e ferreiros (24,48%). Por fim, registe-se
que esta distribuição diversificada dos lucros acumulados por proprietários de canaviais e
mercadores de açúcar contribuiu para um manifesto progresso da sociedade madeirense no
século dezasseis, com evidentes reflexos no quotidiano e panorama artístico e arquitectónico.
É de salientar nas Canárias a antecipação do dinheiro ou produtos pelos mercadores aos
lavradores a troco da entrega do açúcar na altura da safra, o que permitia uma perfeita vinculação
ou subordinação do sector produtivo. Também aqui, não obstante algumas posturas limitativas,
os pagamentos dos trabalhadores da safra fazia-se em açúcar o que permitia uma redistribuição
do produto entre os seus diversos intervenientes. E no caso de Tenerife, aos poucos e poucos,
passou a servir de meio de pagamento e de troca.
O açúcar foi, durante mais de um século, o principal activador das trocas da Madeira com o
exterior. As dificuldades sentidas com a penetração no mercado europeu levaram a coroa a
intervir no sentido de manter um comércio controlado, que a partir de 1469 passou a ser feito sob
o permanente olhar do senhorio e coroa. A situação manteve-se até 1508, altura em que a coroa
aboliu o regime de contrato. A partir de uma das medidas tomadas pela coroa (o
contingentamento de 1498) para defesa do mercado do açúcar madeirense poder-se-á fazer uma
ideia dos principais mercados consumidores. As praças do mar do norte dominavam o comércio,
recebendo mais de metade das escápulas estabelecidas: aqui a Flandres adquire uma posição
dominante, o mesmo sucedendo com os portos italianos para o espaço mediterrânico. Se
compararmos estas escápulas com o açúcar consignado às diversas praças europeias no período
de 1490 e 1550, verifica-se que o roteiro não estava muito aquém da realidade. As únicas
diferenças relevantes surgem nas Praças da Turquia, França e Itália, sendo de salientar na última
um reforço acentuado de posição, que poderá resultar da actuação das cidades italianas como
centros de redistribuição no mercado levantino e francês.
Os dados disponíveis para o comércio do açúcar na Madeira evidenciam a constância dos
mercados flamengo e italiano. O reino, circunscrito aos portos de Lisboa e Viana do Castelo
surge em terceiro lugar com apenas 10%. Observe-se que o porto de Viana do Castelo adquiriu,
desde 1511, grande importância neste circuito e daí com Espanha e Europa nórdica. Aliás, no
período de 1581 a 1587 Viana é o único porto do reino mencionado nas exportações de açúcar,
mantendo, todavia, uma posição inferior à 1490-1550. Esta função redistribuidora dos portos a
norte do Douro ficara, já evidenciada entre 1535 e 1550, pois das cinquenta e seis embarcações
entradas no porto de Antuérpia com açúcar da Madeira, dezasseis são do norte e apenas uma de
Lisboa. Na primeira 50% são provenientes de Vila do Conde, 31% do Porto e 19% de Viana do
Castelo. Aliás, em 1505 o monarca considerava que os naturais desta região tinham muito
proveito no comércio do açúcar da ilha. Em 1538 este trato era assegurado por um numeroso
grupo de grupos de mercadores daí oriundos. Entre eles estavam Aires Dias, Baltazar Roiz,
Diogo Alvares Moutinho e Joham de Azevedo. O mesmo sucede nas trocas com o mundo
mediterrânico onde se contava com os entrepostos de Cádiz e Barcelona, que surgem no período
de 1493 a 1537 com os portos de apoio ao comércio com Génova, Constantinopla, Chios e
Águas Mortas.
Os dados da exportação para o período de 1490 a 1550, testemunham esta realidade: a Flandres
surge com 39% e a Itália com 52%. Todavia, é de salientar a posição dominante dos mercadores
italianos na condução deste açúcar, uma vez que eles foram responsáveis pela saída de 78% do
açúcar. Note-se que no início foram inúmeras as dificuldades para a presença de estrangeiros.
Somente a partir da década de oitenta do século XV surgiram os primeiros como vizinhos, que se
comprometeram com a cultura e comércio do açúcar. Para a segunda metade do século dezasseis
escasseiam os dados sobre o comércio do açúcar madeirense. Somente entre 1581 e 1587 temos
nova informação. Neste período a ilha exportou 199.300 arrobas de açúcar para o estrangeiro e
4830 para o porto de Viana do Castelo. A partir de princípios do século XVI o comércio do
açúcar diversifica-se. A Madeira que na centúria de quatrocentos surgira como o único mercado
de produção, debater-se-á, a partir de finais desse século, com a concorrência do açúcar das
Canárias, de Berberia, de S. Tomé e, mais tarde, do Brasil e das Antilhas. Esta múltipla possibili-
dades de escolha, por parte dos mercadores e compradores, condicionou a evolução do comércio
açucareiro. Todavia, o açúcar madeirense manteve uma situação preferencial no mercado
europeu (Florença, Anvers, Ruão), sendo o mais caro. Talvez, devido a este favoritismo
encontramos com frequência referências à escala na Madeira de embarcações que faziam o seu
comércio com as Canárias, Berberia e S. Tomé. Esta situação deveria, de igual modo, explicar a
venda de açúcar madeirense em Tenerife, no ano de 1505.
O comércio açucareiro na primeira metade do século XVI era dominado na Europa do Norte
pelas ilhas e litoral do Atlântico, nomeadamente, entre as primeiras, a Madeira, Tenerife, Gran
Canaria e La Palma. Assim, na década de trinta os navios normandos ocupados neste comércio
dirigiam-se preferencialmente a esta área. Convém anotar que a maioria das embarcações que
rumavam a Marrocos, com escala na Madeira à ida e no regresso, o que valorizou a Madeira no
comércio com a Normandia. A situação dominante do mercado madeirense perdurou nas décadas
seguintes, não obstante a forte concorrência da ilha de S. Tomé que se firmou, entre 1536 e 1550,
como o principal fornecedor de açúcar à Flandres. Todavia, esta posição cimeira da ilha de São
Tomé só é patente a partir de 1539.
A Madeira, que até à primeira metade do século dezasseis havia sido um dos principais mercados
do açúcar do Atlântico, cede lugar a outros (Canárias, S. Tomé, Brasil e Antilhas). Deste modo
as rotas desviam-se para novos mercados, colocando a ilha numa posição difícil. Os canaviais
foram abandonados na quase totalidade, fazendo perigar a manutenção da importante industria
de conservas e doces. O porto funchalense perdeu a animação que o caracterizara noutras épocas.
É aqui que surge o arquipélago vizinho. O comércio canário, baseado nos mesmos produtos que
o madeirense, será um forte concorrente na disputa dos mercados nórdico e mediterrânico. Os
produtos dos dois arquipélagos surgem, lado a lado, nas praças de Londres, Anvers, Ruão e
Génova. A única vantagem do madeirense resultava de ter sido o primeiro a penetrar com o
açúcar e o vinho no mercado europeu, ganhando a preferência de muitos vendedores e
consumidores.
A solução possível para debelar a crise da industria açucareira madeirense, desde a segunda
metade do século dezasseis, foi o recurso ao açúcar brasileiro, usado no consumo interno ou
como animador das relações com o mercado europeu. Por isso os contactos com os portos
brasileiros adquiriram uma importância fundamental nas rotas comerciais madeirenses do
Atlântico Sul. Tal como o refere José Gonçalves Salvador as ilhas funcionaram, no período de
1609 a 1621, como o “trampolim para o Brasil e Rio da Prata”. É o mesmo quem esclarece que
este relacionamento poderia ter lugar de modo directo, ou indirecto, sendo este último rumo
através de Angola, S. Tomé, Cabo Verde ou Costa da Guiné. Aqui definia-se um circuito de
triangulação, de que são exemplo as actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco, no
período de 1649 a 1652. Note-se que desde finais do século dezasseis estava documentado o
comércio do açúcar, servindo os portos do Funchal e Angra como entrepostos para a sua saída
legal ou de contrabando para a Europa.
O comercio do açúcar do Brasil, por imperativos da própria coroa ou por solicitação dos
madeirenses, foi alvo de frequentes limitações. Assim em 1591 ficou proibida a descarga do
açúcar brasileiro no porto do Funchal, medida que não produziu qualquer efeito, pois em
vereação de 17 de Outubro de 1596 foi decidido reclamar junto da coroa a aplicação plena de tal
proibição. Desde 1596 é evidente uma activa intervenção das autoridades locais na defesa do
açúcar de produção local, prova evidente de que se promovia esta cultura. Em Janeiro deste ano
os vereadores proibiram António Mendes de descarregar o açúcar de Baltazar Dias. Passados três
anos o mesmo surge com outra carga de açúcar da Baía, sendo obrigado a seguir o seu porto de
destino, sem proceder a qualquer descarga. O não acatamento das ordens do município implicava
a pena de 200 cruzados e um ano de degredo. Esta situação repete-se com outros navios nos anos
subsequentes até 1611: Brás Fernandes Silveira em 1597, António Lopes, Pedro Fernandes o
grande e Manuel Pires em 1603, Pero Fernandes e Manuel Fernandes em 1606 e Manuel
Rodrigues em 1611.
A constante pressão dos homens de negócio do Funchal envolvidos neste comercio veio a
permitir uma solução de consenso para ambas as partes. Em 1612 ficou estabelecido um contrato
entre os mercadores e o município em que os primeiros se comprometiam a vender um terço do
açúcar de terra. Note-se que desde 1603 estava proibida a compra e venda deste açúcar, sendo os
infractores punidos com a perda do produto e a coima de 200 cruzados. Mas a partir de
Dezembro de 1611 ficou estipulado que a venda de açúcar brasileiro só seria possível após o
esgotamento do da terra. Para assegurar este controlo, os escravos e barqueiros foram avisados
que, sob pena de 50 cruzados ou dois anos de degredo para África, não poderiam proceder ao
embarque de açúcar sem autorização da câmara. Em 1657 a proporção de cada açúcar era de
metade.
Após a Restauração da independência de Portugal o comércio com o Brasil foi alvo de múltiplas
regulamentações. Primeiro foi a criação do monopólio do comércio com o Brasil, através da
Companhia para o efeito criada, depois o estabelecimento do sistema de comboios para maior
segurança da navegação. A esta situação, estabelecida em 1649, ressalva-se o caso particular da
Madeira e Açores, que a partir de 1650 passaram a poder enviar, isoladamente dois navios com
capacidade para 300 pipas com os produtos da terra, que seriam depois trocados por tabaco,
açúcar e madeiras. Mais tarde, ficou estabelecido que os mesmos não podiam suplantar as 500
caixas de açúcar. O movimento das duas embarcações da Madeira fazia-se com toda a descrição,
conforme recomendava o Conselho da Fazenda, mediante as licenças e a sua entrega deveria ser
feita no sentido de favorecer todos os mercadores da ilha. Alguns destes navios, fora do número
estabelecido para a ilha, declaram sempre serem vitimas de um naufrágio ou de ameaças de
corsários, o que não os impedem de descarregarem sempre algumas caixas de açúcar. Será esta
uma forma de iludir as proibições estatuídas ? Todavia os infractores sujeitavam-se a prisão.
Desde meados do século XIX que o açúcar voltou a entrar paulatinamente nas exportações
madeirenses. Assim, em 1854 temos referência à saída de 238 Kg que passam para 527.883 em
1871.Não existem dados concludentes sobre o comércio do açúcar da ilha neste período, mas
pelas medidas que favoreciam a sua saída (em 1870-1887) sabemos da necessidade de garantir
uma quota de mercado nos Açores e Continente. No primeiro quartel da presente centúria o
açúcar de produção local era excedentário, sendo exportado para Lisboa. Após a segunda guerra
mundial a produção do açúcar não foi suficiente para cobrir as carências da ilha, tornando-se
necessária a sua importação.

O AÇÚCAR HOJE. A persistência de alguns lavradores, a celebridade da sua superior


qualidade e a sua solicitação pela doçaria e casquinha madeirenses fizeram com que a cultura se
mantivesse por largos anos atingindo, em momentos de crise dos mercados americanos, alguma
pujança. Mas, irremediavelmente condenada a sua cultura o madeirense vê-se forçado a canalizar
todas as suas atenções nas vinhas, fazendo-as assumir o espaço abandonado pelas socas de cana.
Desta forma os canaviais fazem-se substituir pelas latadas, enquanto os engenhos dão lugar aos
lagares e armazéns. Essa mudança na estrutura produtiva provocará alterações na dinâmica
económica da ilha; o açúcar definia apenas um complexo industrial, o engenho, onde decorria a
respectiva safra, o vinho necessitara de dois espaços distintos. O lagar onde as uvas dão lugar ao
saboroso mosto e os armazéns da cidade onde este fermenta e é preparado para atingir o
necessário aroma e bouquet. Deste modo o agricultor, colono ou não, detém apenas o controle da
viticultura, ficando reservado ao mercador o moroso processo de vinificação.

A TRADIÇÃO CULTURAL e O AÇÚCAR. Tal como o enunciámos ao princípio à expansão


da cultura da cana-de-açúcar ligam-se tradições culturais europeio-africanas. Na verdade a cana-
de-açúcar propiciou o confronto da cultura europeia com a africana, sendo exemplo cabal disso
as sociedades geradas em seu torno nas Antilhas e Brasil. Neste último espaço são evidentes os
aspectos sincréticos da cultura que veio a dar origem à designação de Afro-brasileira: os estudos
de Gilberto Freire e Roger Bastide(1969) são bastante expressivos a esse nível. Mas aqui insiste-
se nas aportações culturais resultantes do confronto com a população africana, aí conduzida
como escrava para a safra do açúcar. Por outro lado insiste-se que a expansão da cultura da cana-
de-açúcar propiciou a divulgação de determinadas tradições lúdicas: representações teatrais e
festivas. Está neste caso o “tchiloli” nome dado a peça “A Tragédia do Marquês de Mântua e do
Imperador Carlos Magno”, atribuída ao madeirense Baltazar Dias. Esta é uma peça teatral o ciclo
carolíngio, muito representada no século XVI, que teria sido levada para S. Tomé pelos
plantadores e mestres de engenhos da Madeira. A tradição perpetuou-se e ainda hoje se apresenta
o “Tchiloli” para celebrar um acontecimento importante ou um dia santo. Na ilha Terceira
persiste na actualidade as afamadas danças do Entrudo, que segundo opinião de alguns
estudiosos se filia na tradição do Bumba-meu-boi brasileiro. À volta disso estabeleceu Luís
Fagundes Duarte(1984) uma teoria que aponta para a existência de uma tradição lúdica
canavieira, que acompanhou o percurso de expansão do açúcar no Atlântico, marcada por
representações e danças de carácter dramático com “sabor” vicentino. Por outro lado, é de
salientar que A safra açucareira teve também implicações na política de urbanização do espaço
rural, condicionando uma forma peculiar de ligação do espaço agrícola -industrial com as
estruturas de mando e controle social. A célebre trilogia rural, tão bem definida por Gilberto
Freire, teve o seu primeiro aparecimento aqui na Madeira, sendo testemunho actual disso a
célebre lombada de João Esmeraldo (Ponta do Sol). Mas outros mais exemplos poderíamos
referenciar na ilha que, lamentavelmente, se estão perdendo. Talvez por estas implicações do
açúcar se define ao espaço rural, ou por outras razões que desconhecemos, se definiu para o
Funchal epítetos pouco expressivos da realidade. Assim a partir da publicação do livro de
António Aragão(1988) sobre a cidade do Funchal ficou estabelecido que ela era a “primeira
cidade construída por Europeus fora a Europa” e dentro da sua malha urbana de uma “cidade do
açúcar” e outra do “vinho”. Esta aventureira definição não colhe argumentos a seu favor.
O pioneirismo aventureiro desta ideia com a segurança e afirmações resultantes das pesquisas
promovidas nos Açores, Canárias, Brasil e Antilhas, onde ninguém, até hoje, teve a ousadia de
avançar com semelhante perspectiva reducionista da realidade arquitectónica e urbana. Todos
são unânimes em afirmar a adaptação do modelo europeu às condições geo-humanas dos novos
espaços e a forte vinculação às directivas régias e à mão-de-obra especializada da península. O
desenvolvimento económico, assente na produção ou comércio de certos produtos surge em
todas as áreas, não como factor definidor da traça urbana e arquitectónica, mas sim como meio.
O açúcar, o vinho surgem na Madeira como produtos catalizadores da actividade sócio-
económica madeirense e não como princípios geradores das cidades ou do espaço urbanizado.
Eles foram apenas os suportes financeiros necessários a este desenvolvimento e embelezamento
do espaço urbano. A maioria dos mestres que orientaram a construção do espaço urbanizado são
recrutados no reino e enquadram-se nos padrões peninsulares de humanização do espaço. Por
outro lado os monarcas intervêm com assiduidade nessa política arquitectónica, enviando
regimentos e planos sobre o modo porque se deverá proceder à construção. Tenha-se em atenção
as recomendações dadas por D. Manuel para a construção da cerca e muros conforme o sistema
delineado em Setúbal. Por outro lado o mesmo monarca ao ordenar em 1485 a construção dos
paços do concelho, da igreja, alfândega e praça, pretendia dar ao Funchal uma dimensão
peninsular. Terá sido esse espaço urbanizado à custa dos proventos do açúcar que conduziu à
errada formulação dos princípios geradores do urbanismo funchalense.
Se tivermos em conta que a economia açucareira madeirense não assumiu a mesma proporção da
brasileira ou mexicana e que nestas últimas áreas não se fala de uma urbanização do açúcar mas
sim das implicações sociológicas e arquitectónicas deste produto teremos por anacrónica a
definição no Funchal de uma cidade do açúcar. Confrontados os estudos sobre a história das
cidades das demais ilhas atlânticas e do Novo Mundo, onde a cana-de-açúcar foi dominante, não
encontrámos qualquer definição deste tipo para a malha arquitectónica urbana. Tenha-se como
exemplo o caso de Canárias onde é evidente também um extremo seguidismo aos cânones
peninsulares. Por isso não entendemos a forma despropositada com que se tem defendido a
existência no Funchal de uma cidade do açúcar. Mas do açúcar é a única coisa que se poderá
dizer é que a imagem do açúcar ficou apenas o registo nas armas da cidade a partir do século
XVI, a que se juntou a videira no século dezanove. Não obstante o facto de aquele espaço, que é
hoje o centro da cidade, ter sido no século XV uma área de canaviais (o Campo do Duque), as
alterações que se produziram a partir da década de oitenta do século XV conduziram à sua
adequação aos modelos arquitectónicos peninsulares. É a imposição lançada em 1485 sobre o
vinho, surgiu única e exclusivamente com o intuito de criar um fundo municipal para o
“enobrecimento” da vila. Com isto não queremos excluir a função relevante dos proventos
arrecadados pela economia açucareira na valorização do património urbano, mas apenas
referenciar que não houve uma ligação directa entre as duas situações.
Em boa verdade se diga, que o recinto urbano, que emerge a partir da década de sessenta entre as
ribeiras de João Gomes e Santa Luzia e, depois, para além desta última, foi o princípio da futura
cidade, dominada pelos mercadores do açúcar. As residências de João Esmeraldo, de D. Mécia,
do capitão do donatário, bem como os conventos (Encarnação, S. Francisco e Santa Clara) e
igrejas (Sé, Capela dos Reis Magos, Madre de Deus e matrizes de Machico, Ponta do Sol,
Calheta e Ribeira Brava) foram erguidas e embelezadas artisticamente a partir dos proventos
acumulados com a safra do açúcar. Mas uma coisa é o açúcar ser fonte de receita, participadora
deste processo e outra é o resultar daí implicações urbanísticas e plásticas. Na verdade a vila que
é elevada em 1508 à categoria de cidade deve apenas ser considerada como a cidade dos
mercadores de açúcar e nunca a cidade do açúcar.
A VINHA E O VINHO

Junto ao cereal plantou-se também os bacelos donde se extraía o saboroso vinho de consumo
corrente ou usado nos actos litúrgicos. O ritual cristão fez valorizar ambos os produtos que, por
isso mesmo, acompanharam o avanço da Cristandade. Em ambos os casos foi fácil a adaptação
às ilhas aquém do Bojador o mesmo não sucedendo com as da Guiné. Todavia a videira
conseguiu ainda penetrar neste último espaço, se bem que tenha adquirido uma importância
diminuta. Na Madeira a cultura da vinha surge já com grande evidência no começo do
povoamento, sendo uma importante moeda de troca com o exterior. Cadamosto em meados do
século XV fica admirado com a qualidade e valores de produção das cepas madeirenses. Na
verdade a cultura da vinha havia imediatamente adquirido uma extensa parcela do terreno
arroteado na frente sul, alastrando depois a toda a área agrícola da ilha, a partir de finais do
século XV. Mas o seu desenvolvimento foi entravado pela dominância dos canaviais e por isso
mesmo a afirmação plena só terá lugar a partir do momento em que surgiram as primeiras
dificuldades no comércio do açúcar.
A evolução da safra vitivinícola madeirense dos séculos quinze e dezasseis só pode ser
conhecida através do testemunho de visitantes estrangeiros, uma vez que é escassa a informação
nas fontes diplomáticas. Hans Standen definia em 1547 a economia madeirense pelo binómio
vinho/açúcar, passados vinte e três anos só se falará do vinho como principal factor do sistema
de trocas com o exterior. Os trigais e canaviais deram lugar às latadas e balseiras. A vinha
tornou-se a cultura quase que exclusiva do colono madeirense. Deste modo vinho adquiriu o
primeiro lugar na economia madeirense, mantendo-se assim por cerca de três séculos.
A rápida e plena afirmação do vinho da Madeira no mercado atlântico derivou do elevado teor
alcoólico que lhe favoreceu a expansão em todo o mundo. Ele conseguia chegar em condições
desejáveis aos destinos mais inóspitos e impróprios para a sua conservação. Em Cabo Verde, S.
Tomé ou Brasil o vinho madeirense era preferido aos demais por ser o único que resistia ao calor
tórrido a que estava sujeito. Os mestres e tripulantes das embarcações, que demandavam a região
equatorial, não escondiam também a sua preferência, pelo que escalavam com assiduidade o
Funchal para se abastecerem de vinho. Este era dos poucos, talvez o único vinho que não
avinagrava à passagem nos trópicos, antes pelo contrário, adquiria propriedades gustativas, o que
muito os alegrava.
O vinho da Madeira é inevitável pelo simples facto de que é o resultado não só das propriedades
comuns a cada casta, mas também às condições do solo e à variedade de microclimas, que
determinam em última instância as suas peculiaridades, baseadas numa elevada acidez que o
favorecem no seu processo de envelhecimento. As condições orográficas da ilha, definida por
uma forma piramidal de cordilheira montanhosa espraia-se em duas vertentes distintas definidas
por uma costeira abrupta, aqui e acolá entremeada de poucas áreas planas altas (Paul da Serra,
Santo) e algumas Fajãs, (isto é, áreas planas junto ao mar). Daqui resultam vários aspectos de
particular interesse para a fauna viti-vinicola. Ao homem que aqui apostou nos princípios do
século XV restava ainda um importante labor da sua humanização. Desbravou a floresta e sobre
as ravinas e encostas ergueu paredes para aplainar a terra e nelas poder lançar as sementes.
O solo é pobre, o que implica o insistente recurso aos fertilizantes. Os solos deste espaço agrícola
são resultado da desagregação das rochas vulcânicas sendo compostos de basalto, traquite, tufo
escórias e conglomerados. A falta de calcário, potássio e azoto obrigam o homem a intervir no
sentido de lhe atribuir os suplementos adequados de minerais para que as culturas possam
medrar. Acresce ainda que esta composição do solo varia conforme se sobe a encosta,
estabelecendo assim em altitude diversos níveis de minerais, que conjuntamente com a variedade
climática vão definir patamares ideais para as diversas culturas. Daqui resultará condições
diversas que influenciam decisivamente as parreiras aí implantadas. É certo que a vinha tinha no
sul nos terrenos situados entre os 330 e 750 metros de altitude as melhores condições para
mediar. Mas o homem fê-la espalhar por toda a ilha, ignorando essas condições ideais e
sujeitando-se à qualidade do fruto que daí advinha. A miragem do lucro mais fácil e
compensador da sua faina. O escoamento interno para as tabernas ou queima para fabrico de
aguardente, atribuem-lhe também um espaço privilegiado. Por outro lado a vinha é uma cultura
de convívio fácil com as demais. Deste modo vemos erguer-se latadas e sob o solo livre plantar-
se batatas, abóboras e outras culturas que contribuem, por vezes, para a adubação do solo. Foi
contra esta situação que se insurgiu em 1817 a Junta de melhoramento Agrícola por a considerar
lesiva da vinha.
Aos vinhos das uvas colhidas nas áreas do litoral é atribuído a melhor qualidade, que perdem
conforme se avança para a montanha ou para a vertente norte. Deste modo os preços do mosto
desde o século XVI eram estabelecidos de acordo com estes patamares ideais de cultura. A
vereação do Funchal define dois níveis de preços: os vinhos das meias terras abaixo, os
melhores; e os vinhos das meias terras acima, os de inferior qualidade. Outro óbice prende-se
com a extensão do solo de aproveitamento. Esta deveria situar-se abaixo dos 900 metros e
ocupava uma ínfima área do total da ilha. Em 1868 referem-se apenas 18.381 ha, estando apenas
19 ha ocupado com a vinha. Já em 1949 Orlando Ribeiro define a área cultivável da ilha em 225
Km2, o que corresponde a 30% do total da ilha.
A relação do homem com a terra fez-se na ilha de uma forma diferente, que ficou conhecida
como contrato de colonia. De acordo com este contrato a terra apresenta dois proprietários: o
senhorio e o colono. O senhorio é o legitimo proprietário que recebeu a terra de dadas, por
compra ou herança e por sua vez a entrega ao dito colono para a tornar arável ficando depois
com o direito à metade de sua produção. Deste modo o colono está obrigado a criar as
benfeitorias necessárias a que a terra se torne produtiva, ficando seu proprietário. No que respeita
à vinha este contrato, regido por normas consuetudinárias, estabelecia que o senhorio tinha
direito a metade do mosto à bica do lagar, sendo encargos do colono a construção das latadas e
lagar, a plantação e cuidados da vinha e a vindima. Esta situação perdura em algumas das
freguesias até 1976 altura em que foi abolida por decreto da Assembleia Regional da Madeira.
Uma videira depois de plantada sujeitava-se a três anos de crescimento e só então estava em
condições de produzir os luzidios cachos, encontrando a sua maturidade aos 8 anos e poderá
atingir os 15 anos.
A forma da sua organização mais comum para o sul é o sistema de latadas, enquanto que no
Norte eram as balseiras ou barradas. No Sul as latadas a partir dos 400 metros de altitude davam
lugar às vinhas de pé e embarrados. As latadas existem desde o século XV e são descritas em
1811 pela Vereação funchalense como mais um pesado fardo para o viticultor. Todavia o
espectáculo das latadas que cobrem os passeios e balcões que circundam as imponentes casas de
habitação é algo que chama a atenção do visitante. Com as balseiras alivia-se o esforço do
homem no permanente reparo da latada, mas surgem outros cuidados suplementares e o vinho
não é dos melhores. A cultura da vinha faz-se no distrito de duas formas diferentes; em balseiras,
ou embarrados, na região do norte; e em latadas e corredores na parte do sul. Note-se que esta
não é uma realidade restrita ao arquipélago pois foi mais uma aportação dos colonos oriundos do
Norte do país, onde era dominante e assumia a designação de uveiras. Qualquer árvore com uma
copla ampla poderia servir de suporte. Assim temos o castanheiro, faia, carvalho, loureiro. O
oídio acabou com as balseiras do Norte pela impossibilidade de subir as árvores a fazer o
tratamento. Deste modo as balseiras são hoje uma realidade do passado só visualizável nas
gravuras inglesas. A latada, hoje de arame, domina toda a área vitícola.
A casta que deu nome ao vinho da Madeira é a malvasia e surge desde os inícios da ocupação da
ilha. A tradição anota que foi o Infante D. Henrique que mandou vir os bacelos do Mediterrâneo.
Os testemunhos de vários visitantes dos séculos XV e XVI apenas anotam a malvasia. Somente
em 1687 Hans Sloane diferencia três variedades de uvas: branca, vermelha, muscadinea ou
malvasia. A mais famosa das malvasias surgiu na Fajã dos Padres, mas a sua área estendia-se ao
Paul do Mar, Jardim do Mar, Arco da Calheta, Madalena, Sítio do Lugar (Ribeira Brava), Anjos
(Canhas). Os melhores vinhos da Madeira são produzidos nas freguesias de Câmara de Lobos,
São Martinho e São Pedro, nas partes mais baixas de Santo António, no Estreito de Câmara de
lobos, Campanário, São Roque e São Gonçalo. As partes mais altas das últimas cinco freguesias
produzem apenas vinhos de segunda e terceira qualidade. Os melhores Malvasia e Sercial são da
Fajã dos Padres no sopé do Cabo Girão e do Paul e Jardim do Mar.
A estas castas eram atribuídas diversos níveis de qualidade, tal como nos refere P. Perestrelo de
Câmara em 1841. Assim são definidas quatro qualidades, sendo o sercial o de primeira
qualidade, ficando a malvasia no segundo nível. A estas seguem-se em terceiro lugar o boal e o
bastardo e em quarto o tinta negra mole. Sem classificação ficam as canaria, peringó, muscatel,
ferral e negrinha. O sercial, que terá sido importado do Reno, teve uma expansão a toda a ilha:
Funchal, Câmara de Lobos, Fajã dos Padres, Campanário, Paul do Mar, Fajã (Ponta do Pargo). O
Boal, trazido certamente da Bretanha, teve a sua dominância em Campanário, Câmara de Lobos,
Santo António, Estreito de Câmara de Lobos, Paul do Mar e Fajã (Ponta do Pargo). Por fim a
tinta negra mole teve em Santo António, Câmara de Lobos, Estreito de Câmara de Lobos e S.
Martinho a de primeira qualidade, enquanto a de segunda era colhida no Porto Moniz, Santa
Cruz e Gaula. A tradição imortalizou estas áreas pelos seus vinhos, como é o caso da Fajã dos
Padres. O Paul do Mar e o Jardim do Mar com a malvasia e sercial. Por outro lado os
estrangeiros, nomeadamente os ingleses mais atentos ao vinho, delimitam as melhores áreas de
vinho. Em 1851 Edward V. Harcourt refere que os melhores vinhos são os de Câmara de Lobos,
S. Martinho, S. Pedro, partes baixas de Santo António, Estreito de Câmara de Lobos, S. Roque,
S. Gonçalo e Campanário. Para Henry Vizetelly (1884) em S. Martinho encontra-se um vinho de
“elevada categoria” enquanto a melhor área se situava na Torre em Câmara de Lobos. O facto
mais saliente da relação de Eduardo Grande(1854) é o aparecimento das castas americanas que
chegaram à Europa pela fama de sua resistência ao oídio mas que trouxeram nas raízes as larvas
de outro mal, isto é a filoxera. Deste modo a situação que se vive a partir de meados do século
XIX é definida por uma mudança radical no espectro vitícola da ilha. As castas tradicionais
europeias tornam-se improdutivas com o oídio ou definham com o ataque da filoxera às suas
raízes. Os produtos químicos não resolvem cabalmente a situação e só o recurso às diversas
castas americanas vindas directamente dos EUA ou através da Europa, conseguem assegurar a
reposição dos stocks de vinho e assegurar o seu mercado de consumo interno e externo.

A filoxera a partir de 1872 a solução estava no recurso às castas americanas que passam a
intervir como produtores directos ou de cavalos porta enxertos. O Governo criou dois viveiros
para o efeito: Torreão e Ribeirinho. Com isto lançou-se mãos ao desesperado plano de reposição
das vinhas tendo-se distribuído em 1883 60.000 bacelos americanos das mais distintas
variedades: riparia, jaquez, hebermont, rupestris solonis, taylor, clinton, ebimbro, york madeira.
A estas vieram juntar-se depois outras como cunningham, viale, elvira, othelo, cineree, back
pearle, gaston bazile, etc. A partir de então generalizou-se o consumo do chamado vinho
americano que ganhou fama entre os vinhos de consumo corrente. Ficaram famosos os jacquez
de S. Vicente, Ponta Delgada, Seixal, Porto Moniz e Arco de S. Jorge e o vinho americano do
Porto da Cruz. Não obstante o governo ter determinado em 30 de Março de 1936 o arranque das
videiras americanas produtoras de vinho, o certo é que elas se mantiveram até ao presente e só a
partir de 1978 ficou estabelecido um plano de reconversão das vinhas da Madeira que pretende
reconstituir o aspecto vitícola anterior ao oídio e filoxera.
Nem todos os colonos e lavradores na ânsia de uma rápida vindima, aguardavam pelo total
amadurecimento dos cachos. Deste modo as autoridades foram obrigadas a regulamentar esta
fase da faina viti-vinicola através do regimento das vindimas publicado em 12 de Agosto de
1785. A vindima passará a ser autorizada por inspectores nomeados para todas as freguesias,
ficando os infractores sujeitos à pena de prisão e ao sequestro das uvas. Concluída a apanha das
uvas a animação transferia-se para a beira do lagar onde os homens esmagavam as uvas para
extrair o mosto. Noite fora, até que fosse concluída a tarefa, o bulício continua com desusada
animação. Feito o vinho o mosto era então transportado ao seu destino que tanto poderia ser a
loja do viticultor, ou o armazém dos comerciantes no Funchal. No caso deste último tanto
poderia acontecer por via terrestre, nas regiões próximas da cidade, ou marítima, quando é
proveniente das diversas freguesias. Era afinal no Funchal que a fase seguinte tinha lugar. Além
desta situação das casas exportadoras é de salientar o facto de muitas vinhas serem terras de
colonia em que o senhor residia no Funchal e entregava a terra a colonos a troco da dimidia.
Aqui, tendo em conta as condições geográficas da ilha e a situação da rede viária, a única e mais
adequada forma de transporte do mosto encontrada pelos madeirenses foi o borracho. O borracho
ou odre é um recipiente feito com pele de cabrito que depois de preparado pode ser cheio de
vinho. A sua maleabilidade faz com que se adapte ao dorso do Homem, servindo as patas
enlaçadas de suporte da testa.
O uso dos odres para o transporte do vinho está testemunhado desde a Antiguidade e tem na
cerâmica grega algumas evidências. A sua presença entre nós está testemunhada desde o século
XVI, sendo possível a aportação através das Canárias, onde os guanches os tinham mas com uso
distinto. Eram os zurrones para guardar o gofio e leite de cabra. Entre nós ganharam fama e
foram um dos elementos pitorescos que mais chamou à atenção dos estrangeiros que deles
deixaram importante testemunho. O espectáculo dos borracheiros é hoje um dado do passado e
dele só ficou a célebre canção dos borracheiros e alguns lagares perdidos em casas antigas. Hoje
a realidade é distinta. A partir da década de quarenta o automóvel ocupou o lugar do homem no
transporte do vinho ao Funchal. Às filas intermináveis de borracheiros sucedeu o desusado
movimento de furgonetas com pipas em pé a transbordar de mosto. No presente mudou também
o processo. As casas exportadoras passaram nos últimos anos a adquirir as uvas directamente aos
viticultores, através de uma rede de agentes em toda a ilha. Deste modo a vindima resume-se
quase só ao rotineiro gesto do apanhar das uvas. Esta nova forma de intervenção das empresas
permite controlar todo o processo de vinificação, adequando-o às novas exigências do mercado e
recomendações legislativas.
As áreas de produção são definidas de acordo com a mesma orientação da qualidade dos vinhos.
Deste modo na vertente sul dominada na sua quase totalidade pelo espaço da primitiva capitania
do Funchal encontramos o melhor vinho, enquanto na vertente Norte área quase exclusiva da
capitania de Machico é onde se produz mais vinho mas de pior qualidade que raramente saia da
ilha. De acordo com os dados de 1787 o arquipélago produziu 22.053 pipas de vinho
maioritariamente na Madeira, uma vez que no Porto Santo temos apenas 179 pipas. O restante
valor é maioritariamente da capitania de Machico que surge com 68%. Aqui o de São Vicente
era o principal produtor com 3.898 pipas, logo seguido do Porto da Cruz com 1245. No Sul a
maior e melhor produção de vinho incidia no Funchal e freguesias limítrofes. Era daqui que saía
o vinho de exportação. Esta relação de subordinação da viticultura à vertente norte acentuou-se
na primeira metade do século XIX, mercê da incessante solicitação destes vinhos para
exportação ou destilação nos alambiques. As medidas proibitivas à entrada das aguardentes de
França, foram favoráveis à alambicação dos vinhos do norte que actuarão deste modo como
fortificantes dos vinhos do sul.
A evolução da cultura da vinha adequa-se às exigências do mercado e à influência da
comunidade britânica na ilha que foi quem definiu um destino privilegiado para ele. Deste modo
a partir de meados do século XVII a produção de vinho entra na curva ascendente que só parou
na década de vinte do século XIX. O golpe mortal foi dado na segunda metade da centúria tendo
origem nas diversas doenças que assolaram a vinha. Em 1852 tivemos o oídio e desde 1872 a
filoxera. O oídio deverá ter chegado à ilha em Fevereiro de 1851 em castas trazidas de França. E
rapidamente alastrou a doença a toda a ilha, atingindo de modo especial o Funchal e Machico. As
soluções tardaram e por isso mesmo os seus efeitos cedo se fizeram sentir na produção de vinho
da ilha em barris. Tal como informa João Andrade Corvo no relatório feito em 1854 à Academia
de Ciências de Lisboa as perdas foram elevadas, sendo contabilizadas em 1.137.990$00 réis,
fruto de uma quebra de 132.454,7 barris de vinho.A busca desesperada por soluções para debelar
a crise levou os agricultores a socorrerem-se dos bacelos de Izabella, resistentes ao oídio, que
começaram a chegar à ilha em 1865. Só que eram portadores de uma larva - a filoxera vastatrix -
que atacava a raiz das videiras europeias fazendo-as definhar. Os primeiros sintomas da doença
surgiram em S. Gonçalo e S. Roque no ano de 1872, mas cedo a praga alastrou a toda a ilha e
manteve-se activa até 1908.
Só em 1882 a ilha teve uma comissão anti-filoxérica distrital que se encarregou dos tratamentos
e replantio da vinha com bacelos americanos distribuídos gratuitamente aos agricultores. Em
1883 foram distribuídas 60.000 bacelos. Todavia não foi fácil a recuperação da cultura. O
desânimo do madeirense, o abandono das casas inglesas, a conturbada situação das colónias
inglesas, principal destino do nosso vinho, fizeram retardar o necessário restabelecimento da
cultura. Em 1883 apenas 500 ha dos 2500 que havia aquando a vinha foi atacada pela filoxera
estavam plantados. A par disso esta conjuntura conduziu ao quase total desaparecimento
daquelas castas que deram fama ao vinho Madeira. A malvasia só se salvou na Fajã dos Padres.
Note-se que a incidência das castas americanas ocorre nos concelhos do norte, com especial
destaque para S. Vicente, enquanto as europeias têm uma incidência particular no sul. Apenas
com o verdelho e o sercial se altera a situação em favor do Porto Moniz, a principal área de
ambas as castas.A total reconversão da vinha para as castas europeias só começou a ganhar
forma na década de setenta com o impulso do recém-criado Instituto do Vinho da Madeira. Tudo
isto como resultado de directivas comunitárias que proibiram a partir de 1996 os vinhos de
híbridos produtores directos.
Feita a vindima e escorrido todo o mosto sucede-se uma nova fase de vida que fará deste pastoso
líquido o vinho Madeira. Este é um processo que tem lugar na cidade onde se encontram os
armazéns dos mercadores servidos de amplas adegas. Para aí eram escoados todos os vinhos.
Todavia esta situação prejudicial aos bons vinhos, por norma baldeados com os de inferior
qualidade vindos do norte da ilha. Deste modo, em face de reclamação dos mercadores, a
Vereação do Funchal aprovou em 9 de Janeiro de 1737 uma postura proibindo essa prática ao
interditar a entrada desses vinhos de inferior qualidade. Mais tarde, em 1768 o Governador e
Capitão General Sá Pereira retoma estas medidas estabelecendo a proibição de entrada dos
vinhos do Norte no Sul até Maio. Por outro lado defende os vinhos das melhores áreas, que é
como quem diz de Câmara de Lobos, Canhas, Calheta, Arco da Calheta, Prazeres e Fajã da
Ovelha, interditando a sua baldeação com outros vinhos inferiores. Em 1785 ficou estabelecido
que todos os vinhos do Norte deveriam ser aí encascados até Janeiro. Caso fosse intenção de
alguém proceder ao seu envio deveria fazê-lo mediante guia passada pelo Juiz do Lugar ou
comandante do distrito militar. Estas medidas não colheram grandes apoios junto dos
proprietários. A vinha a norte e a sul estava quase toda sujeita ao contrato de colonia. O senhorio
da terra residia no Funchal e era aí que se encontravam os seus armazéns e pipas para encascar os
vinhos. Por outro lado o colono não tinha loja nem cascos para a metade dos seus vinhos,
vendendo-o todo à bica do lagar, por norma a mercadores do Funchal.
O Funchal era o centro privilegiado para o processo de vinificação. As casas exportadoras,
servidas de amplas adegas, são o palco desta actividade. Isto manteve-se sem alteração por muito
tempo. O sistema, conhecido como de canteiro era simples. As pipas descansavam cheias de
vinho sob duas traves e aí procedia-se à sua clarificação e múltiplas trasfegas. A clarificação
ocorria num período de 19 meses e tinha lugar entre 6 ou 8 vezes, usando-se para tal goma de
peixe, clara de ovo e sangue. Somente a partir de meados do século XVIII temos notícia do uso
da aguardente para “adubar” os vinhos. Primeiro usam-se as afamadas aguardentes de França,
mas num segundo momento apostou-se na aguardente local. Esta pratica de fortificação do vinho
foi provocada pelos ingleses que também fizeram chegar até nós as ditas aguardentes. A partir de
1822 proíbe-se a entrada dessa aguardente que será substituída pela da ilha feita com os vinhos
do norte. Pois tal como se proclama em 1821 era “um erro capital na economia política receber
de fora as produções e manufacturas de que o país não carece, antes abunda”. Esta medida
favoreceu o desenvolvimento dos alambiques, especialmente na zona norte, o que favoreceu de
forma vantajosa o vinho daí de inferior qualidade. Severiano de Freitas Ferraz foi um dos
destacados interventores neste processo tendo descoberto um maquinismo avançado de
destilação contínua. Em meados do século XIX a ilha estava servida de 13 alambiques que
ferviam em media 7 a 8.0000 pipas de vinho. O resultado desta aposta é evidente, uma vez que
em 1821 foram assinalados apenas 3 alambiques.
A generalização do uso da aguardente como bebida e produto para adubar os vinhos é, entre nós,
uma realidade apenas na segunda do século XVIII. Foram os ingleses que introduziram tal uso,
oferecendo-nos as aguardentes de França. Eles estavam habituados a beber os vinhos franceses
fortificados, mas, impossibilitados pela guerra, foram buscá-los a outros destinos. Note-se que no
período de ocupação da ilha pelas tropas britânicas (1801-1802, 1807-1814) generalizou-se entre
os madeirenses o hábito do consumo de aguardente e demais bebidas espirituosas. A Madeira
ficou conhecida como a ilha da Aguardente. O alcoolismo tornou-se numa praga social e para o
combater tivemos, após a saída dos ingleses, inúmeras proibições, mas a aguardente continuou a
entrar por via do contrabando e a encontrar consumidor.Entretanto o madeirense começou a
alambicar os seus vinhos e a dispor der aguardente local para consumo nas tabernas e
fortificação dos vinhos. As dificuldades na saída dos vinhos a partir de 1814 veio aumentar as
possibilidades de recurso aguardente local e a guerra aberta às aguardentes de França, proibidas
desde 1822. A generalização do consumo de aguardente nas tabernas e o seu uso na fortificação
do vinho de exportação criaram as condições para o aparecimento de alambiques na ilha, uma
vez que era abundante a colheita de vinho de baixa qualidade, apropriado a isso. De França
vieram as aguardentes mas também os primeiros alambiques. Desde 1821 está documentada a
presença de 3 alambiques a que se juntou, desde 1822, uma fábrica de destilação contínua,
propriedade de Severiano Alberto de Freitas Ferraz.
Tendo em conta que eram os vinhos de baixa qualidade os queimados nos alambiques e que eles
eram produzidos na vertente Norte é óbvia a generalização destes engenhos industriais nas
freguesias do Norte da Ilha, como São Vicente e São Jorge. O decreto-lei de 11 de Março de
1911 acabou com os alambiques para dar lugar ao monopólio do engenho do Hinton, com a
aguardente de cana de açúcar, que se manteve até 1974. Durante este período a aguardente vínica
era um segredo escondidos dos habituais apreciadores. Ao ancestral sistema de canteiro veio
juntar-se em finais do século XVIII a estufagem. Tal como afirmava D. João da Câmara Leme “o
sistema de canteiro não é processo aplicável a um largo e importante consumo com a perspectiva
de grandes lucros”. Deste modo em finais do século XVIII quando a procura pelo nosso vinho
aumentou tornou-se urgente o apressar do processo de envelhecimento.
O vinho da roda é considerado um feliz acaso. O vinho em questão fazia o percurso desde a
Madeira à Índia e o seu retorno à Inglaterra. A passagem pelos trópicos e o calor dos porões
atribuía-lhe um rápido envelhecimento notado pelos ingleses que se tornaram eram usuais
adeptos deste vinho. De imediato o vinho da roda ganhou fama e começou a embarcar-se pipas
nos porões dos navios com essa finalidade. Em 1818 a Junta de real fazenda no Funchal dá o
exemplo com o envio de 50 pipas para Cabo Verde que aí faziam o estágio do Verão. Só em
1823 saíram 1650 pipas do porto do Funchal com essa finalidade. Daqui deu-se o salto para a
concretização deste processo de envelhecimento prematuro do vinho localmente. As pipas
passaram a ser expostas ao sol ou colocadas por cima dos fornos de pão expostas ao calor. Ao
mesmo tempo construíram-se as primeiras estufas, isto é recintos fechados onde circulava o ar
quente por canos. A primeira é de Pantaleão Fernandes e data de 1794.
Nos inícios do século levantou-se um movimento contra as estufas porque consideradas
prejudiciais ao vinho. Disso fez eco o Governador que estabeleceu a sua proibição em 1802. Mas
contra isto levantaram-se os mercadores e a própria Vereação do Funchal e a medida foi retirada
em 1804. Face à discussão havida, D. João da Câmara Leme procedeu a estudos em França para
conseguir definir o melhor processo deste envelhecimento prematuro do vinho. Em 1889 era
apresentado o novo sistema que ficou conhecido com o vinho canavial. O vinho era submetido a
um aquecimento rápido e a um arrefecimento demorado em recipiente fechado.
As estufas não morreram, apenas foram aperfeiçoadas com o tempo. Os mecanismos a vapor
substituíram as fornalhas de lenha e propiciam uma constante temperatura de 45 graus de acordo
com o tempo estipulado que vai até 3 meses. No presente o sistema de canteiro convive de modo
cordial com as estufas. Ambos os sistemas persistem e são usados pelas diversas empresas de
acordo com o tipo de vinhos que se pretenda. Os chamados vinhos novos de 5 anos surgem quase
sempre da estufa, enquanto os demais são de canteiro. Apenas uma empresa - Artur Barros &
Sousa Lda. - continua fiel à tradição do canteiro que serve para todos os seus vinhos.

O MERCADO DO VINHO. Os mercados para o vinho Madeira diversificaram-se ao longo dos


tempos. E, de todos, apenas o britânico manteve a fidelidade ao nosso vinho. Este país foi um
dos primeiros a apreciar o vinho da ilha, documentando-se, desde o século XV, o comércio para
aí. No conjunto da evolução dos mercados do vinho Madeira podemos definir três momentos: 1.
séculos XV e XVI, em que domina a Europa , nomeadamente França e Inglaterra; 2.séculos
XVII-XIX - momento de afirmação das colónias europeias na América e índia, sendo o vinho
Madeira um companheiro inseparável dos colonos; 3. partir de 1830 - o retorno do vinho à
Europa com o desfrute entre os mercados londrino e russo.
O vinho da ilha cedo ganhou fama em toda a Europa Ocidental, que se expandiu rapidamente de
viva-voz pelos seus apreciadores. Já em meados do século XV o genovês Cadamosto refere que
os vinhos da ilha “são em tanta quantidade, que chegam para os da ilha e se exportam muitos
deles”. Em pleno século XVI Giulio Landi (1530) refere que os madeirenses não costumavam
beber vinho, “vendem-no a mercadores, que o levam para a Península Ibérica e para outros
países setentrionais”. E em finais desta centúria Gaspar Frutuoso dá conta que “o vinho malvasia
é o melhor que se acha no Universo e leva-se para a Índia e para muitas partes do mundo (...)”. O
malvasia madeirense ganhou fama de imediato granjeando apreciadores na Europa e nos espaços
que foram sendo revelados por estes a partir do século XV. A primeira referência à saída de
vinho é de 1508 quando Diogo de Azambuja conduziu 21 pipas de vinho para a praça de Safim.
Mas é na Europa que neste momento o vinho da Madeira tem o seu mercado. Os britânicos são
os mais evidentes apreciadores que o teriam descoberto a partir do século XV. Shakespeare nas
suas peças insiste na sua presença nas tabernas e à mesa da aristocracia. Todavia a referência
mais antiga à sua exportação é para Rouen e Orleans em 1532.
No século XVIII expande-se o mercado colonial europeu. As colónias europeias afirmam-se
como um novo e prometedor mercado para o vinho. As colónias portuguesas em África ou no
Brasil são um destino preferencial. Em 1589 Simão Pires levou 12 pipas de vinho para Cabo
Verde, avaliadas em 140.000 reais. Para estas ilhas seguiram mais 50 pipas por ordem de Vicente
Gomes. Cedo o vinho Madeira ganhou fama pela sua capacidade de adaptação ao calor tórrido
dos trópicos. Note-se que em 1634 o capitão mor da Mina recomendava apenas o envio de
vinhos da Madeira porque os demais se degradavam. Talvez por isso mesmo o vinho madeirense
era muito apreciado em Angola. Para aí foram enviadas 3 pipas de vinho da ilha usado nas
missas pelos Carmelitas. Na verdade, o vinho de Madeira adquire um estatuto especial no Novo
Mundo. É servido à mesa das autoridades e grandes latifundiários, como no acto litúrgico que dá
expressão à prática religiosa dos Cristãos. Era vinho de mesa e de missa.
O continente americano, o mundo Índico são duas novas apostas do vinho Madeira no século
XVII. Alguns dos viajantes ingleses dão conta da realidade no último quartel do século. Hans
Sloane(1687) evidencia esta conquista de novos mercados através das suas desusadas
propriedades: “É exportado em grandes quantidades para as plantações das Índias Ocidentais e,
ultimamente, para o Ocidente, pois não há nenhuma espécie de vinho que se mantenha tão bem
em climas quentes”. A mesma ideia é corroborada em 1689 por John Ovington que dá conta da
exportação de 8 mil pipas “principalmente para as Índias Ocidentais, especialmente Barbados,
onde tem mais aceitação que os vinhos europeus”. É na verdade nas colónias criadas pelos
ingleses na América no decurso da segunda metade do século XVII que encontrámos um dos
primeiros e melhores mercados do vinho Madeira. O Brasil em parceria com ele sendo então o
principal destino nacional do nosso vinho. As mais antigas referências da presença do vinho
Madeira no Brasil datam da segunda metade do século XVI. Em 1572 rumaram para aí 36 pipas
de vinho branco, a que se juntaram em 1587 outras 98 para o Espírito Santo e Rio de Janeiro, a
serem trocadas por açúcar. Abriu-se assim esta rota do vinho Madeira que continuará na centúria
seguinte mercê das facilidades concedidas aos navios de frete do Brasil e a possibilidade da ilha
intervir no processo com o envio de duas embarcações directas.
O vinho tem lugar de destaque na mesa do senhor de engenho como sucede em 1626 no de
Sergipe do Conde que recebeu duas pipas. Para o período de 1638 a 1655 o Brasil, através da
Baía, Pernambuco e Rio de Janeiro, recebeu 6.602 pipas de vinho de Madeira. Note-se que só em
1663 Eduard Barlow conduziu 500 pipas ao Rio de Janeiro, porque este era o melhor vinho a
conduzir aos locais quentes. Acresce ainda o consumo que era feito do vinho Madeira no
abastecimento às armadas da Índia. Assim em 1651 o Provedor da Fazenda no Funchal,
Francisco de Andrade, providenciou o envio de 400 pipas de vinho para Lisboa com essa
finalidade.
A política mercantilista inglesa havia estabelecido que todo o movimento para os portos das
colónias britânicas deveria ser feito por barcos com pavilhão inglês, sendo a partida e regresso de
Londres. Todavia a ordenança de 1663 estabelecia uma excepção às ilhas da Madeira e Açores
que ficaram com o exclusivo do fornecimento de vinho, por via directa. William Bolton é o
primeiro mercador inglês que se enquadra neste espírito e cuja actividade comercial pode ser
acompanhada através das cartas que nos deixou. As colónias inglesas das Antilhas e América do
Norte são o seu objectivo e o vinho o principal negócio. Daqui resulta que o vinho da Madeira
tinha no mercado colonial britânico um destino privilegiado. A América do Norte surge desde a
década de quarenta do século XVII como um dos principais destinos. Em 1645 o vinho da ilha
vende-se já em Boston, chegando a Nova York em 1687. Todavia é no século XVIII que se
consolida este e os demais mercados do mundo colonial inglês.
A Madeira tornou-se uma referência obrigatória. O seu vinho e as castas que o originavam foram
motivo de admiração. A malvasia foi levada em 1736 pelo Dr. William Houston para Charleston,
enquanto em 1773 Joseph Aleston fez aí chegar novas castas com igual sucesso. Aliás, a segunda
metade do século é o momento de plena afirmação do vinho madeirense nestas paragens. O facto
de alguns dos heróis do movimento pró-independência dos EUA serem seus apreciadores fez
com que o vinho Madeira ficasse a simbolizar a libertação. O “tea party” que esteve na origem
disso está ligado à Madeira. A defesa da entrada livre de mercadorias, contra o pagamento dos
direitos de entrada teve o seu primeiro incidente em 1768 com 100 pipas de vinho trazidas da
Madeira para Boston por John Hancock. Acresce ainda que o acto de declaração da
independência dos EUA a 4 de Julho de 1776 foi brindado com um cálice de Madeira. Por outro
lado os seus presidentes não se fizeram rogados e contam-se entre os mais devotos apreciadores:
Benjamim Franklin, George Washington, John Adams e Thomas Jefferson integram-se neste
grupo.
A evolução do mercado madeirense do vinho adequa-se à evolução da conjuntura político e
económica europeia e colonial. Neste contexto para além da necessidade de assinalar os
apontamentos europeus ou americanos torna-se imprescindível entender qual foi a posição
assumida pela Madeira no mundo colonial britânico. A Inglaterra através dos diversos tratados, a
partir do século XVII conduziu a Madeira para a esfera do seu mundo colonial fazendo dela uma
peça chave. A Madeira será assim no decurso dos séculos XVIII e XIX a escala necessárias de
apoio à sua navegação no Atlântico, até que em meados da centúria oitocentista a abertura do
canal do Suez veio retirar-lhe parte significativa deste protagonismo. O facto de a ilha se situar
no meio do Atlântico acarretou inúmeras vantagens. Por um lado transformou-se em porto de
escala fundamental do tráfico oceânico. Por outro ficou à margem dos conflitos que assolaram a
Europa, como sejam a guerra de sucessão da Áustria (1740-1748), a guerra dos sete anos, a
revolução francesa (1789) e o consequente bloqueio continental (1806). Apenas a guerra de
independência dos EUA (1776-90) teve reflexos inevitáveis na Madeira uma vez que a
instabilidade atingiu um dos melhores mercados do vinho Madeira e a convulsão se orienta
contra aqueles agentes que o dominavam. Os reflexos foram inevitáveis para a economia e
sociedade madeirense. Esta situação é reveladora da extrema fragilidade da economia
madeirense, assente desde muito cedo na dominância de apenas um produto de exportação. Em
1777 o vinho é considerado a grande riqueza da ilha, mas mesmo assim as 112 mil pipas não
fazem “o equilíbrio vantajoso à terra, por depender esta da introdução de tudo quanto necessita
para a sua subsistência indispensável e por isso excede a exportação”. A presença e dominância
inglesa no comércio da ilha ficou reforçada nos inícios do século XIX com a ocupação da ilha e
os tratados que entretanto foram estabelecidos. Assim de acordo com o tratado de 1810 os
ingleses ficaram autorizados a adquirirem o vinho em mosto, o que até então estava vedado,
favorecendo a sua posição.
Os dados disponíveis sobre a exportação do vinho Madeira, ainda que por vezes avulsos,
evidenciam uma tendência para a subida a partir de 1640 que só será invertida, passado mais de
um século, em 1814. O período de 1794 a 1801, se excluirmos o ano de 1798, pauta-se por uma
alta das exportações de vinho. Isto demonstra que a conjuntura de finais do século XVIII e
princípios do seguinte foi favorável ao comércio do vinho Madeira. As guerras europeias
fecharam ao mundo colonial os mercados europeus. As ilhas ficaram de fora disso e
aproveitaram a oportunidade única para venda dos seus vinhos. Deste modo na Madeira
esgotaram-se os stocks de vinho de exportação e, face à incessante procura, deu-se também
rápido escoamento dos vinhos de inferior qualidade do norte, quase sempre consumidos
localmente ou queimados para aguardente. Para corresponder a esta desusada procura apostou-se
de novo na cultura, descuidou-se o sistema de tratamento e envelhecimento dos vinhos. As
estufas são o resultado mais evidente desta conjuntura e firmam-se como a solução adequada
para corresponder à incessante procura. Com elas apressa-se o processo de envelhecimento do
vinho com calor de modo a não impacientar os exportadores e ávidos bebedores. Esta conjuntura
favoreceu ainda a expansão da cultura. Acontece que quando os mercados europeus voltaram à
normalidade a Madeira entrou em colapso. O período de 1819 a 1823 é muito critico para a
economia da ilha. A denúncia da realidade é evidente numa representação às cartas de 1823. “o
comércio decaiu, mais de vinte mil pipas de vinho se acham em suas mãos, dos proprietários e
negociantes…“.
Enquanto tardavam as soluções os campos eram abandonados mercê da emigração dos
agricultores. A cultura entrava em franco declínio, acelerado com a praga do oídio em 1852 e da
filoxera em 1872. O grande mercado do vinho da Madeira estava nas colónias inglesas da
América e Índia. A Madeira estava na rota dos grandes comboios da Índia e das Antilhas. Note-
se, por exemplo, que o de 1788 com 70 navios carregou 2.000 pipas, e outro em 1799 com 69
navios levou 3.041 pipas. A primeira metade do século XIX foi pautada por evidentes mudanças
no mercado consumidor do vinho da Madeira. É o período de ruptura do Velho com o Novo
Mundo. Isto é: o mercado colonial cede lugar ao europeu. As colónias agora em processo rápido
de quebrar os vínculos europeus afastam-se dos circuitos de distribuição do vinho Madeira. A
ilha terá de acompanhar este processo indo ao encontro dos seus apreciadores que estão de
regresso ao velho continente.
Os portos da Índia, Antilhas e EUA dão agora lugar aos europeus: Londres, Hamburgo, S.
Petersburgo, Amsterdão. Assim o testemunha Álvaro Rodrigues de Azevedo em 1873 ao afirmar
que este vinhos na década de 1830 a 1840, se foram de mais em mais acreditando nos mercados
das cidades hanseáticas, Rússia, Holanda e outros portos da Europa, nos Estados Unidos da
América”. Os dados referentes à exportação confirmam esta viragem do mercado a partir de
1831.
O mercador tinha uma função importante na economia viti-vinicola, pois a ele não se solicitava
apenas a definição dos circuitos comerciais do vinho, mas também a sua preparação para ser
exportado. Esta foi uma situação nova a partir do século XVII resultado da intervenção do inglês.
Ele passou a intervir no processo de vinificação, adquirindo o vinho em mosto para depois
proceder aos tratamentos adequados de acordo com os seus mercados de exportação. Os diversos
tratados luso-britânicos asseguraram a hegemonia da feitoria britânica sobre o comércio do vinho
da Madeira. Deste modo não foi ocasional a ocupação inglesa na ilha nos primeiros anos do
século XIX. A defesa dos interesses da feitoria passou-se ao reforço da sua acção, consignada no
tratado de 1810. Por isso os ingleses surgem nos anos imediatos com uma posição cimeira nas
exportações, controlando mais de 50% do vinho saído. A crise oitocentista provocou a
debandada geral do mercado inglês ou americano, e só ficaram aqueles com interesses noutros
sectores. Como corolário disso tivemos o desaparecimento das sociedades familiares e o
aparecimento de associações, como a Madeira Wine Association (1925) que absorveu, nos anos
imediatos, mais de trinta casas.
Na actualidade o comércio do vinho é assegurado por novas empresas, criadas no rescaldo da
crise do comércio do vinho, sendo apenas três (Henriques & Henriques Ldª, H. M. Borges
Sucessores Ldª, Vinhos Justino Henriques Ldª) elo de continuidade com o passado. As demais
(Madeira Wine Company, Veiga França Vinhos Ldª, Vinhos Barbeito Madeira Ldª, Pereira
d’Oliveira Vinhos Ldª, Artur Barros & Sousa Ldª e Silva Vinhos) foram criadas a partir dos
escombros de vetustas casas ou adegas particulares. Os mercados para o vinho Madeira
diversificaram-se ao longo dos tempos. E, de todos, apenas o britânico manteve a fidelidade ao
nosso vinho. Este país foi um dos primeiros a apreciar o vinho da ilha, documentando-se, desde o
século XV, o comércio para aí.
No conjunto da evolução dos mercados do vinho Madeira podemos definir três momentos: 1.
séculos XV e XVI, em que domina a Europa , nomeadamente França e Inglaterra; 2.séculos
XVII-XIX - momento de afirmação das colónias europeias na América e índia, sendo o vinho
Madeira um companheiro inseparável dos colonos; 3. partir de 1830 - o retorno do vinho à
Europa com o desfrute entre os mercados londrino e russo. Na actualidade, após a prolongada
crise de prostração a que esteve sujeito o vinho, há uma tendência para a diversificação dos
mercados, surgindo o Japão como um potencial mercado.
A presença de vinho da Madeira na América do Norte é muito antiga, remontando aos
primórdios de colonização inglesa na primeira metade do século XVII. As referências mais
recuadas apontam para a sua existência em 1640 na Nova Inglaterra, 1642 em New Haven e
1645 em Boston. Todavia só em meados da centúria seguinte o vinho da Madeira tornou-se
numa moda para os norte-americanos, sendo o seu consumo um factor de prestígio social. O
vinho Madeira está, inexoravelmente ligado à História dos Estados Unidos da América. Desde o
século XVII que os colonos ingleses se haviam afeiçoado a este vinho que ficará, por muito
tempo, como o seu preferido. Por isso em momentos de dificuldade lutaram pela presença do
vinho Madeira no seu dia-a-dia. Sucedeu assim em 1768 quando J. Hancock se recusou a pagar
os novos direitos sobre as 127 pipas de vinho do navio Liberty, que fazia entrar em Boston.
Idêntica atitude repetiu-se em 1773 com um carregamento de chá da índia, situação conhecida
como o Tea Party, aclamada com o despertar do movimento pró-independência da América do
Norte. A ela aderiram os presidentes do jovem país. George Washington reclamara em 1759 uma
pipa do velho Madeira, este era um consumidor diário dele preferindo-o a qualquer outro. Em
1762 é Benjamim Franklin na sua viagem à Europa a não prescindir de uma visita Madeira e de
se acompanhar de uns lotes de vinho. Além disso o mesmo procurou recolher todo o tipo de
informações sobre esta cultura no sentido de a promover em terras americanas, o que veio a
dar-se, mais tarde, com grande sucesso. John Adams em 1784 exaltou as propriedades deste
vinho, sendo seguido em 1786 por Thomas Jefferson.
O testemunho dos ilustres americanos bastou para assegurar no novo país um mercado
preferencial para o vinho Madeira. Por isso a década de sessenta é o momento de afirmação,
surgindo o Madeira com 29% do mercado, sendo N. York o destino preferencial. Nas
exportações de 1785-87 metade seguia para este mercado americano. Todavia a guerra de
secessão, a partir de 1770, condicionou essa evolução: a quebra acentua-se nas duas décadas
seguintes, atingindo em 1794 o máximo. Note-se que o movimento de independência foi
marcado por um bloqueio aos tradicionais circuitos comerciais sob domínio de ingleses. Esta
situação foi catastrófica para a Madeira. O madeirense, habituado a receber o seu sustento em
trigo, milho e farinhas dos portos americanos, tendo neles um destino preferencial para os seus
vinhos, vê-se privado tudo isso. A fome era inevitável, sendo os anos de 1795-96 e 1799 de
autêntico flagelo.
O século dezanove definiu um novo rumo para o vinho madeirense. Os portos americanos
continuaram a recebê-lo mas já não com aquela assiduidade que os caracterizou na centúria
anterior. O vinho está de regresso ao velho continente e avançou à conquista do mercado
nórdico. Num ápice passou do calor tórrido para o frio da Sibéria, sem se constipar, isto é, sem se
deteriorar. Depois foram os efeitos da lei seca, entre 1876 e 1919, que criou inúmeras
dificuldades à circulação do Madeira e privou os apreciadores da sua degustação. Os poucos que
se mantiveram fiéis criaram os Madeira Party, isto é, clubes onde se reuniam, em segredo, para
beber o vinho Madeira. Destes ficou célebre em Savanas o Madeira Club, que ainda hoje,
levantada a lei seca, se reúne ritualmente no onze de Novembro para saudar a ilha com um cálice
de vinho. O grupo de ilhas da América Central, nomeadamente aquelas onde havia, desde o
século XVII, assentamentos ingleses e franceses, foram um importante consumidor do vinho da
Madeira. Ao longo do século XVIII os inúmeros comboios de embarcações com destino a elas
faziam escala na Madeira. O Madeira corria nos serões de quase todas as ilhas, mas em especial
Jamaica, Barbados, Martinica, Santa Cruz, St. Eustachio, St. Vicente.
A partir do século XVII os navios das companhias inglesa e holandesa das Índias Ocidentais
faziam escala na Madeira, onde se abasteciam de vinho, especialmente Bual. A casa Cossart
Gordon & Ca., no decurso do século XIX e primeira metade da presente centúria, manteve um
activo negócio de vinhos para as terras do indico tendo como objectivo fornecer as messes e os
clubes dos oficiais ingleses. No total são 60 distribuídos por diversas regiões, em especial na
Índia. A Inglaterra terá sido um dos primeiros destinos do vinho Madeira. A sua presença está aí
documentada desde o século XV. Todavia foi no século XVII, mercê dos tratados com a coroa
portuguesa, que ele destino se afirmou e que os ingleses assumiram uma dimensão importante na
sociedade madeirense e comércio do vinho da ilha, controlando as saídas para Inglaterra e
colónias inglesas na América e indico.
William Shakespeare, na sua importante obra de dramaturgo, transmite-nos o quotidiano da
vivência privada e das tabernas da época. E aí as referências ao vinho, em especial ao malvasia,
são frequentes. Também surgem indicações explícitas ao vinho Madeira e de Canárias.
Em 1478 Eduardo IV, rei de Inglaterra ordenou a execução de Jorge Plantageneta, Duque de
Clarence, irmão do futuro rei Ricardo III, por atender contra a soberania régia. De acordo com a
lenda o duque preferiu morrer afogado numa pipa de malvasia. A situação é dramatizada, mais
tarde por Shakespeare, tendo como pano de fundo a Torre de Londres. Diz-se que a malvasia em
que se afogou o malogrado duque era oriunda da Madeira. Mas o dramaturgo refere apenas ao
vinho Madeira quando na peça sobre Henrique IV, coloca John Falstaff a vender a sua alma “por
um copo de Madeira e uma perna de capão”.Note-se, ainda, que a plena afirmação da Grã-
Bretanha como mercado preferencial do vinho Madeira surge no século XIX altura em que,
perdidas algumas das importantes colónias, toda a atenção do mercado inglês virou-se para a sua
terra natal. Para o período de 1831 a 1885 a disputa pelo primeiro lugar nas exportações de vinho
Madeira estava entre Londres e S. Petersburgo. A Rússia foi um importante mercado consumidor
do vinho madeirense, por todo o século XIX. S. Petersburgo, a capital do império e do fausto
russo, terá descoberto o vinho Madeira no último quartel do século XVIII, mas só na primeira
metade do seguinte aí ancoraram, com assiduidade os barcos com o Madeira. Os fortemente
alcoolizados, nomeadamente o boal, passaram a ter neste rincão um consumidor preferencial. A
presença na ilha, desde 1812, de José Agostinho Borel, como primeiro cônsul, deverá ser o
indício de que os contactos comerciais eram já assíduos. Assim entre 1832 a 1839 a Rússia
adquiriu uma posição cimeira nas exportações. Nesta década o total de pipas exportadas para S.
Petersburgo representava 23% do total de saída, situação que se alterará em finais do século,
entre 1882-1885, 11% do vinho transaccionado no porto do Funchal foi alegrar os serões da
aristocracia russa.
Um dos principais obreiros deste relacionamento foi William John Krohn, que passou à Madeira
em 1849, onde fundou em 1858 uma casa de vinhos - Krohn Brothers & Co - de sociedade com o
seu irmão Nicholas. Ambos eram naturais de S. Petersburgo, embora de ascendência
dinamarquesa. O seu avô era privado da corte imperial russa, o que poderá estar na origem desta
grande predilecção da casa imperial pelo nosso vinho. W. J. Krohn foi vice-cônsul da Rússia no
Funchal no período de 1866 a 1880. Esta situação fez com que a sua casa de vinhos se
especializasse no comércio com a Rússia, sendo por isso a que mais sofreu com o corte desse
comércio a partir de Outubro de 1916. Deste modo a firma que se situava em segundo lugar no
volume de exportações de vinho viu-se relegada para segundo plano, sendo forçada a aderir à
Madeira Wine Association Ldª de quem havia sido um dos maiores opositores. Assim terminava
uma época de esplendor para a firma Krohn Brothers & Cº., quando em 1916 os revolucionários
se serviram deste vinho para matar por envenenamento o místico Gregon Rapustine, privado da
corte de Nicolau II. Ditava-se aqui o golpe de finados para a presença do nosso vinho.
Por mais de dois séculos a vinha e o vinho surgem como os principais aglutinadores das
actividades económicas da ilha; dando ao meio rural e urbano desusada animação; o Funchal
cresce em monumentalidade e as principais famílias reforçam a sua posição económica. A
conjuntura da primeira metade de oitocentos. demarcada pelos conflitos europeus, guerra de
independência das colónias, associada aos factores de origem botânica (oidio-1852, filoxera-
1872) conduziram ao paulatino degenerescimento da pujança económica do vinho. Como
corolário, desse inevitável processo, sucedem-se as fomes, nos anos quarenta, e a sangria
emigratória nas décadas de 50 e 80, para o continente americano, onde o madeirense vai
substituir o escravo nas plantações. Por um período de mais de setenta anos a confusão
institucional e económica alarga-se ao domínio social e alimentar. Assim sucedem-se novos
produtos de importação do Novo Mundo que ganham uma posição de relevo na culinária
madeirense. Destes destacam-se o inhame e a batata. A par disso definem-se políticas de
reconversão e ensaios de novos produtos com valor comercial (tabaco, chá,...)
AS PLANTAS TINTUREIRAS. O interesse do homem em colorir os tecidos levou-o a ir ao
encontro das plantas que tivessem essa função. Algumas delas, como o sangue de drago, a
urzela, o pastel e a cochonila adquiriram um grande valor comercial. Outras mantiveram-se, com
a ruivinha, fustete, indigo, casca de noz apenas na tinturaria caseira. A disponibilidade de outras
plantas tintureiras, como a urzela (donde se tirava um tom castanho-avermelhado) e o sangue de
drago, conduziu ao aparecimento de italianos e flamengos, interessados no comércio, que por sua
vez nos legaram a nova planta tintureira: o pastel.
A urzela foi um dos primeiros produtos a ser comercializado nas ilhas. Com ela conseguia-se
uma cor amarela ocre e castanha. A sua exploração manter-se-á activa até ao século XIX, mas foi
no século dezoito que revelou a sua importância económica. Esta planta era abundante nas
Selvagens, Desertas, Porto Santo e na Madeira, nomeadamente na Ponta de S. Lourenço. O facto
de esta existir na rocha íngreme do litoral tornava a operação de apanha um trabalho arriscado.
Diogo Gomes e Valentim Fernandes referem que o Infante concedeu a sua exploração e
exportação para a Inglaterra e Flandres. No século XVIII a sua exploração era feita por contrato,
havendo um oficial da Fazenda Real, conservador da erva urzela na ilha da Madeira, que o
coordenava e fiscalizava. A partir de 1773 foi proibida a apanha da urzela pela sua má qualidade
e concorrência com a de Cabo Verde. Todavia o contrabando obrigou o legislador a abrir de
novo o mercado em 1807, mas em 1815 retornou ao monopólio régio. Não obstante as
reclamações para a sua apanha livre só em 1850 surgiu a medida favorável a esta reclamação.
O sangue de drago teve grande exploração nas ilhas antes da ocupação portuguesa, uma vez que
alguns cronistas referem que os castelhanos procediam no século XIV à extracção deste na ilha
do Porto Santo. A seiva do dragoeiro era usada tanto na farmacopeia como na tinturaria. A sua
abundância nas ilhas levou a um aproveitamento desusado que deve estar na origem do rápido
desaparecimento da planta.
O pastel aparece na economia insular em condições idênticas ao açúcar. Foi uma cultura
introduzida pelos europeus para satisfazer as carências do mercado de têxteis. O feito deve-se ao
infante D. Henrique Até ao século XVII com a introdução do anil na Europa ele foi a principal
planta da tinturaria europeia, donde se extraia as cores preta e azul. O pastel foi primeiro
cultivado na Madeira, e depois nos Açores e nas Canárias. Mas só no arquipélago açoriano
atingiu maior dimensão económica. A toponímia regista-se a sua presença e define os espaços do
seu cultivo. Na Madeira refere-se a cultura e comércio no século XV. Os italianos teriam sido os
principais interessados no comércio o que os levou a considerarem a Madeira como a ilha do
pastel. No século XVI está documentada a sua saída para Flandres. Mas os dados documentais
são escassas as referências denunciadoras da sua presença, o que poderá resultar da
secundarização na economia madeirense em favor de outros produtos, como o vinho e o açúcar,
dominantes e granjeadores de elevados proventos.
A memória da cultura do pastel está presente na toponímia com os sítios do Pastel em Santo
António e Boaventura. Por outro lado, na actualidade ainda é possível encontrar algumas plantas
de pastel na Fajã dos Padres, Cabo Girão, Ribeira Brava e Levada dos Piornais. A exploração do
pastel foi curta uma vez que rapidamente as ilhas açorianas apresentavam o terreno para esta
cultura vingar com sucesso. Mesmo assim a cultura deverá ter persistido por muito tempo na ilha
de modo a satisfazer as necessidades da tinturaria local. O pastel deverá ter convivido com outras
matérias primas da tinturaria, com foi o caso da cochonilha. Aliás, foi o sucesso da sua criação
nas Canárias que levou o madeirense Miguel Camacho Almeida a tentar a sua sorte em 1837.
Esta e outra experiência de 1854 em Santa Cruz permitiram a exportação com sucesso para
Lisboa, mas a generalização das tintas minerais retirou-lhe o mercado.A tinturaria artesanal
servia-se ainda de diversas plantas para atingir as cores desejadas. Assim o preto conseguia-se
com a ruivinha, hera e a casca de noz e azevinho.

OUTROS RECURSOS E RIQUEZAS DA TERRA.... A busca de produtos capazes de


colorir os tecidos foi insistente. A descoberta das ilhas trouxe a revelação do sangue de drago.
Valentim Fernandes e Gaspar Frutuoso referem-nos a abundância de dragoeiros na ilha do Porto
Santo, que por muito tempo foram o principal suporte económico. Note-se que o Ilhéu de Cima
foi no passado conhecido como o ilhéu dos Dragoeiros. O dragoeiro era um planta que medrava
em abundância nas ilhas e cedo os europeus se aperceberam da sua importância económica, com
a extracção da sua seiva e do uso dado aos próprios troncos na construção de embarcações e
utensílios de uso caseiro. Esta tradição manteve-se por muito tempo. Assim, em 1843 com o
tronco de um dragoeiro milenar, derrubado pelo vento, fez-se um barco.
No âmbito da silvicultura sobressaem, ainda, o aproveitamento das madeiras, necessárias à
construção de barcos, casas, engenhos e meios de transporte e das lenhas, usadas como
combustível caseiro e industrial (nos engenhos e forjas), do pez para a calafetagem de navios. A
floresta foi para muitas ilhas a sua principal riqueza. E a Madeira não foge à regra. O seu nome é
resultado do espectáculo da exuberante floresta que acolheu os europeus desde o século XIV.
A insistente solicitação de madeiras e lenhas, nomeadamente, nas ilhas onde a cultura dos
canaviais adquiriu alguma importância, foi desastrosa para o equilíbrio ecológico, não poupando
mesmo a Madeira, que mereceu tal nome pela abundância e esplendor do arvoredo. Isto levou os
municípios a tomarem medidas de controlo no desbaste florestal, que surgiram com maior
evidência na Madeira, onde o parque florestal foi desgastado pela safra açucareira.
Valentim Fernandes, em princípios do século dezasseis, e mais tarde Gaspar Frutuoso, celebram
a riqueza do arquipélago madeirense neste recurso. As madeiras de pau-branco, barbuzano, teixo,
cedro, til e aderno serviam as necessidades da industria local e exportavam-se para o reino e
praças mediterrânicas. Dizia-se até, no século XV, que as madeiras da ilha revolucionaram a
construção civil de Lisboa, permitindo o aparecimento de construções com mais de um piso.
No sentido de defender este rico património estabeleceram-se regimentos em que se
regulamentava o corte de madeiras e lenhas. A ilha que no início da ocupação havia atemorizado
os povoadores pelo denso arvoredo era agora na vertente sul uma escarpa em vias de
desertificação. Não foi o inicial incêndio, que a tradição diz ter durado quinze anos, o motivo
desta situação, mas sim a incessante procura de lenhas para o fabrico de açúcar. Paulatinamente a
flora indígena foi desaparecendo face ao impiedoso esforço do machado e do fogo. As
necessidades agrícolas e do quotidiano das gentes assim o obrigavam. Mas, ao mesmo tempo
que se derrubava a flora indígena, a ilha era invadida de plantas com valor alimentar e comercial,
oriundas da Europa ou do Novo Mundo. Em pouco tempo a floresta da ilha foi enriquecida de
novas espécies. De entre estas merecem especial referência as árvores de fruta europeias e
exóticas. A Europa legou-nos a cerejeira, as nogueiras, o castanheiro, figueira, pereira, enquanto
de além atlântico recebemos a papaia, a banana, a pereira abacate.
Em algumas localidades persistiu uma ligação a estas árvores fruteiras. Assim o Curral das
Freiras e Serra de Água ficaram conhecidos como a terra dos castanheiros e das cerejeiras. A
sobrevivência disto está no facto de no Jardim da Serra se celebrar a Festa da Cereja e no Curral
das Freiras a da castanha. Hoje a pouca mancha de flora indígena que persiste, de forma especial
no norte da ilha, está preservada mediante a aposta na criação do Parque Natural da Madeira. Os
espaços envolventes perderam a animação desusada do seu derrube para acolherem veraneantes e
turistas amantes da natureza.
Um recurso de não menor importância, que a exemplo do abate de madeiras era também gerido
pelo município, era a feiteira. Nos diversos concelhos rurais, como era o caso de Porto Moniz,
Ponta de Sol e Calheta, a feiteira do Paúl da Serra era uma riqueza de grande importância pelo
seu uso na cama do gado e adubação das sementeiras.

O GADO. As riquezas da terra completam-se com a fauna trazida pelos europeus e que
rapidamente se transformou numa importante receita dos colonos. Embora a tradição aponte a
assiduidade dos castelhanos no Porto Santo onde faziam carnagem, não está provada a existência
de animais de grande porte em ambas as ilhas. As referências dos cronistas do século XV vão
apenas para alguns rastejantes e abundância de aves, pelo que também estas cabras deveriam ter
sido lançadas pelos próprios castelhanos. A riqueza de carne nas ilhas é uma referência comum a
Cadamosto e aos demais cronistas do século XV. Ele juntamente com Zurara referem ainda a
importância que assumiu o mel e a cera que eram exportados para o reino e estrangeiro.
O processo de fundação de colónias de povoamento por europeus implicava obrigatoriamente a
migração de sementes, plantas e animais. E a Madeira não foge à regra, tal como o testemunham
os cronistas. Assim Francisco Alcoforado refere que o Infante D. Henrique no Verão enviava
para a ilha sementes e gado, enquanto Diogo Gomes refere entre estes vacas, porcos, ovelhas e
outros animais domésticos. Aliás, ligado a este processo está aquele que é considerado o
primeiro desastre ecológico provocado pela acção do homem. Os primeiros coelhos trazidos
pelos povoadores para o Porto Santo tornaram-se rapidamente numa praga que entravou a
fixação de colonos. A memória disso ficou na designação do ilhéu dos Coelhos.
O gado de diversas espécies trazido, um foi lançado livremente e outro manteve-se estabulado
pela necessidade de aproveitamento do estrume. Em pouco tempo o primeiro transformou-se
numa importante riqueza usada por todos. Depois começaram a delimitar-se as coutas que
passaram para domínio dos particulares. Assim o Caniçal foi uma destas da família dos
donatários de Machico, onde estes se eximiam na caça à perdiz, ao javali. Note-se que a caça ao
porco bravo vem desde o século XV.
Só dispomos de informação concreta sobre a dimensão assumida pelas diversas espécies na
economia da ilha a partir da segunda metade do século XIX, com os recenseamentos pecuários, é
evidente uma tendência para a afirmação do gado suíno e bovino em detrimento do caprino e
ovino. Tendo em conta as limitadas possibilidades da ilha em termos de pastagem rapidamente
se atingiu em fins desta centúria o máximo das suas possibilidades. De um total de 87.930
hectares estavam disponíveis cerca de seis mil para pastagens e as culturas agrícolas, como a
cana sacarina, batata doce, contribuíam com um suplemento importante. Mesmo assim as ervas
não eram suficientes todo o ano para alimentar o gado bovino estabulado, de cerca de trinta mil
cabeças, socorrendo-se dos ramos de folhado e til. Maior destaque teve o gado de grande porte,
mercê do uso da sua força motriz no transporte e actividades agrícolas. A importância para o
madeirense do gado bovino está registada também em alguns acidentes geográficos. Assim no
Porto Santo temos o Vale do Touro, enquanto na Madeira surgem as Achadas da Vaca, da
Malhada e do Moreno.
A valorização do gado graúdo é evidente para a economia da ilha. A utilização da força motriz
na actividade agrícola manteve-se por muito tempo sendo de considerar que ainda em 1862 dos
trinta e cinco engenhos de açúcar que funcionava na Madeira temos quinze movidos pela força
motriz dos bois. A orografia da ilha tornava indispensável a presença de mulas e cavalos, que até
ao advento do século vinte foram o imprescindível meio de transporte no interior das ilhas. O
próprio movimento de forasteiros a partir do século XVIII obrigou à definição de um serviço de
aluguer de cavalos. E tendo em conta que estes circulavam por toda a ilha havia necessidade de
assegurar um serviço de apoio para apoio alimentar, reparo dos arreios e ferraduras. Em 1888 a
Junta Geral estabeleceu uma caudelaria na Fajã da Ovelha, mas rapidamente a cavalariça cedeu
lugar à garagem.
O gado bovino teve também um papel fundamental na economia da ilha. A sua valorização é
polivalente. Serve-se nas tarefas agrícolas, de lavra, espremer a cana e debulha dos cereais, e
transporte, como se extraia importante riqueza alimentar com as carnes, leite, queijos e manteiga,
mas também industrial com o aproveitamento dos couros. O facto de permanecer estabulado
obrigava o homem a redobrados esforços na apanha da erva, mas também revertia-se numa mais
valia para os agricultores uma vez que assim produzia o estrume necessário para fertilizar as
plantações agrícolas. Isto é importante tendo em conta a exiguidade e elevados preços dos
adubos de importação. Aliás, na década de cinquenta é evidente o incremento do bovino e ovino
em currais, fruto da dificuldade em encontrar adubos químicos para fertilizar as terras. Em 1940
tínhamos 28.861 bovinos que passados dez anos se situavam em 34.246. Já no caso dos ovinos
que em 1940 eram de16.664 passam em 1950 para 26.000.
O aproveitamento do leite foi por muito tempo mantido por uma industria caseira. Só no século
XIX se avançou para um processo de industrialização. A primeira fábrica surgiu em 1895 no
Santo da Serra, sendo propriedade de Adolfo Burnay. Até à década de setenta o gado bovino
manteve-se como uma destacada riqueza da economia familiar, mercê da venda do leite. A
indústria dos lacticínios foi importante desde finais do século XIX, surgindo em toda a ilha
fábricas e postos para desnatação do leite. Note-se que em 1920 a ilha produzia dez milhões de
litros de leite consumido pela população ou desnatado nas 22 fábricas. As exportações de
manteiga eram de 450 toneladas, sendo o consumo local de 110. Em 1928 eram 170.000 as vacas
de ordenha que produziam 20 milhões de litros de leite para laboração em 163 fábricas e 1087
postos de desnatação. O Funchal consumia uma média de quatro mil litros de leite por dia.
A produção de manteiga evolui também rapidamente de acordo com o surto pecuário,
suplantando as necessidades locais. Os primeiros dados da exportação para Lisboa são de 1866,
mas as condições e higiene e acondicionamento não eram as melhores o que fazia com que
muitas vezes chegasse aio continente em mau estado. Isto condicionou alguns investimentos no
sector a partir de 1894 com o aparecimento de novas fábricas em Porto Moniz, Calheta, Ponta
de Sol. A indústria de fabrico de manteiga teve um notável incremento a partir da década de
oitenta no século XIX, tendo como principal mercado a metrópole. Em 1881 foram apenas 129
kg conduzido-as a Lisboa, mas em 1892 este valor subira para 48.124 kgs, atingindo os 965.664
kgs entre 1941-42.
A segunda metade do século XIX é um momento de plena afirmação da pecuária. É evidente o
incremento do gado bovino. Assim das 21.720 cabeças de gado de 1873 passámos para 28.861
em 1940, subindo para 34.246 no ano. Não deverá descurar-se a importância que assume o gado
ovino e caprino, como o prova a disputa por um das áreas mais privilegiadas de pastoreio no
século XIX. Também em todas as habitações rurais o chiqueiro era inseparável e indispensável
da economia familiar. O grupo de suínos em 1873 situava-se em 23.510, baixando em 1940 para
16.462 para voltar a subir em 1950 a valores próximos do século XIX. Este incremento pecuário
repercutiu-se na industria de lacticínios conduzindo à valorização da manteiga e consequente
volume de exportação, que foi facilitado na década de noventa com a redução dos impostos e
revisão das pautas alfandegárias. Esta situação conduziu a que em princípios do século a
participação da exploração pecuária no rendimento familiar é superior à agrícola. Note-se que era
com o leite que o agricultor conseguia o pouco dinheiro para proceder ao pagamento às
contribuições, à compra do vestuário e outros produtos, serviços e impostos que só poderiam ser
pagos em moeda.
O número de bovinos era superior a trinta mil de que resultava anualmente dezassete milhões de
litros de leite. O Funchal consumia cerca de doze mil que eram distribuídos por 320 leiteiros. No
fabrico de manteiga ocupavam-se 64 fábricas que produziam 840 toneladas de manteiga de que
660 eram para exportação. Aqui é evidente ainda a existência de pequenas unidades industriais e
de um excesso de postos de desnatação, muitos deles com graves problemas de higiene. Perante
este panorama as autoridades determinaram pelo decreto-lei nº.26655 de 4 de Junho de 1936 a
criação da Junta de Lacticínios da Madeira com o objectivo de estabelecer regras no sector,
ficando responsável pela administração dos postos de desnatação, pelo pagamento do leite e
rateio pelas fábricas. Uma primeira medida foi a fixação do número de postos de desnatação em
320, com o encerramento consequente de 788. Contra o decreto levantou-se uma onda de
protestos em S. Roque do Faial, Machico, Ribeira Brava, que ficou conhecida como a revolta do
leite. Todavia, estas medidas tiveram efeitos positivos na economia da ilha e numa melhoria
substancial do sector pecuário e leiteiro. A higiene foi a maior evidencia nos estábulos, no
processo de mungição , nos postes de desnatação e transporte. Por outro lado apostou-se na
selecção e cruzamento de espécies no sentido de conseguir-se uma melhoria da espécie leiteira.
E, por fim, surgiu a marca oficial dos lacticínios da Madeira.
Os gados ovino e caprino tiveram igual importância na vida dos insulares. As cabras foram
trazidas do Algarve e das Canárias, sendo lançadas nos ilhéus e ilhas.. Note-se que a cabra das
Canárias, de que ainda hoje persistem algumas sobreviventes, estão documentadas desde 1481.
Para além do seu valor alimentar é de referir o uso da pele do macho no fabrico de borrachos
para o transporte de vinho. A valorização dos ovinos ocorreu a partir do século XVIII com a
introdução de espécies lanígeras de Leicester. Note-se que o fabrico da lã branca e preta era
indispensável, conjuntamente com o linho, no fabrico dos panos para o vestuário.
Na economia familiar, para além das aves, o porco assume um lugar cimeiro. À sua volta existia
todo um ritual da matança pelo S. João e Dezembro. Também a orografia testemunha a sua
presença. É o caso da Ribeira do Porco em Boaventura e do Porto dos Porcos e Ribeiro Cochino
no Porto Santo. Na verdade nele incidia o fundamental da subsistência familiar. A sua carne
salgada, os enchidos, as banhas foram por muito tempo o essencial da alimentação do meio rural.
AS INDUSTRIAS E ARTESANATO. A sociedade madeirense era dominada pelo grupo de
mando, de ócio e façanhas bélicas no norte de África. A eles associa-se uma numerosa plêiade
de subordinados (rendeiros, assalariados, mesteres e escravos), que contribuía para o progresso
agrícola e mercantil da ilha. Aliás, a sua importância na sociedade madeirense reforçava-se com
o progresso económico da ilha. Todavia só em 1484 os mesteres fazem ouvir a sua voz na
vereação por meio de criação da Casa dos Vinte e Quatro; dois anos mais tarde foi-lhes atribuída
uma participação activa na procissão do Corpo de Deus. O lugar que os mesteres nela ocupavam
poderá significar uma hierarquização dos ofícios, que se fazia de acordo com o estabelecido em
1453 para Lisboa. A relação dos mordomos dos ofícios, feita no ano de 1486 pela vereação,
indica a estrutura sócio-profissional; pedreiros, sapateiros, alfaiates, barbeiros, vinhateiros,
tecelões, besteiros, hortelães, almueiros, pescadores, mercadores, almocreves, ourives, tabeliães
e tanoeiros. Para os anos imediatos surgem dados referentes à fiança e aos juízes dos ofícios
(ferradores, ferreiros, barbeiros e moleiros) que testemunham a dimensão adquirida pela
estrutura oficinal, mercê da exigência da sociedade para serem asseguradas as necessidades
básicas, pois o isolamento e as dificuldades de contacto com a Europa impossibilitava o
abastecimento dos artefactos de uso corrente aí produzidos. A importância e a fixação dos
mesteres em determinadas áreas do burgo veio dar origem a ruas com o nome dos diversos
ofícios aí sedeados como a dos ferreiros, a dos tanoeiros, a dos caixeiros, etc.

Aos ofícios juntavam-se os trabalhadores braçais ou assoldadados, que se dedicavam a diversas


tarefas no campo e no burgo. O seu serviço era onerado com a redízima; este tributo, prejudicial
ao exercício dessas actividades, punha em causa a segurança da terra, pois, segundo se dizia em
1466, tal situação conduzia ao aumento dos escravos; a mesma preocupação evidencia-se em
1489, apontando-se a saída de homens para as campanhas africanas como um perigo para a
segurança da ilha, devido o elevado número de escravos que nela havia. Verifica-se, portanto,
que o grupo servil surgiu com uma importância relevante na sociedade madeirense na segunda
metade do século XV; o seu peso gerou preocupação e tornou necessária a regulamentação dos
seus movimentos e do seu espaço de convívio; daí a exigência dos nele incluídos usarem um
sinal, de se recolherem à casa do senhor, ao mesmo tempo que se ordenou a explosão dos forros,
com excepção dos canários. Os escravos negros surgem como assalariados, vendedores de fruta
dos seus senhores, enquanto os guanches eram pastores e mestres de engenho.
O desenvolvimento das pequenas industrias e dos grupos oficinais foi evidente no decurso do
século XVI e paulatinamente as diversas corporações oficinais foram ganhando importância
social, económica e política. A sua presença na vereação passa a ser assídua, para defender os
interesses da classe e intervir na regulamentação da sua actividade. Note-se que a vereação tinha
uma intervenção constante na regulamentação dos ofícios e também na qualidade do serviço
prestado e tabela de preços das diversas tarefas e produtos daí resultantes. Cada ofício tinha um
juiz que se encarregava de examinar os demais aprendizes, sendo a garantia da qualidade do
serviço a prestar. Por outro lado a tendência para a fixação dos mesmos em arruamentos
determinados resulta da necessidade de um maior controle. Também estes, de acordo com o
número de oficiais e a importância na sociedade, liga-se a estruturação em corporações, a
presença na vida política local e a posição atribuída na posição do Corpo de Deus. O elo de união
estava no santo patrono, a quem se invocava em qualquer momento. No calendário litúrgico o
dia do santo era de redobrada festa para os associados.

A valorização económica da ilha só foi possível com a definição de uma ajustada estrutura sócio-
profissional capaz de satisfazer as necessidades fundamentais da sociedade e gerir mais riqueza
para alimentar o comércio externo. Diversas actividades de carácter artesanal completam o
processo económico madeirense, atribuindo uma evidente mais-valia à ilha e aqueles que nele
participam. Muitas destas faziam-se por necessidades dos próprios, mas outras houve que tinham
por objectivo o mercado externo. Neste caso é de salientar a obra de vimes e o bordado. Ambas
as actividades foram uma importante forma de gerar riqueza e um complemento importante ao
trabalho rural. O nível de desenvolvimento destas actividades na década de quarenta do século
XIX era muito incipiente. A exposição realizada em 1849 pelo governador civil José Silvestre
Ribeiro documenta este estádio e pode ser considerada o principal impulso para o necessário
avanço.
Sabemos qual o ponto da situação das actividades artesanais na cidade em 1847. A grande
incidência continua ainda nas actividades transformadoras de apoio às actividades económicas
dominantes e aquelas que iam ao encontro das necessidades básicas quotidianas. Estamos numa
época em que o vinho domina as exportações e, por isso mesmo, os tanoeiros são um grupo
fundamental no recinto urbano onde se encontram as empresas de exportação. Das aduelas
importadas dos Estados Unidos fazem as pipas que conduzem o vinho ao seu destino. Já a outro
nível é notória a presença dos sapateiros e carpinteiros. A preocupação de José Silvestre Ribeiro
pela animação industrial da cidade não será muito notória. Mantêm-se os ofícios tradicionais,
isto é, sapateiros, carpinteiros e marceneiros. Apenas a crise do vinho retirou importância à
maioria dos tanoeiros que tiveram que se converter a outras actividades ou foram forçados a
emigrar. Na área dos serviços destacam-se os barqueiros e os boeiros, o que poderá ser indício da
maior circulação de gentes e produtos. Aqui não deverá esquecer-se a presença do forasteiro, seja
doente da tísica ou cientista. Na verdade, o turismo veio propiciar um conjunto de ofícios deles
dependentes.
Ao mesmo tempo surgiram outras actividades que permitiram a revitalização da economia. O
bordado madeirense não é uma invenção britânica, mas sim fruto de um tradição portuguesa
trazida para a ilha pelos primeiros colonos e que persistiu em muitas famílias como forma de
valorização do fato acabou por adquirir a partir de meados do século XIX uma função
fundamental na economia da ilha e um suplemento familiar. A ligação do inglês surge a partir de
1854 com Miss Phelps que definiu os mecanismos adequados para a sua comercialização em
Inglaterra. A primeira promoção do bordado e outras actividades artesanais aconteceu em 1850
numa exposição industrial feita no Funchal por iniciativa do Governador Civil, José Silvestre
Ribeiro, repetindo-se depois na Exposição Universal de Londres. Este lançamento foi importante
para que o produto rapidamente entra-se no mercado pela mão dos próprios ingleses, os
principais interessados na sua compra. Assim para além do arranque de Miss Elizabeth
Phelps(1820-1863) releva-se a presença de dois comerciantes britânicos, Roberto e Franck
Wilkinson, pois os bordados da Madeira rapidamente se transformaram numa moda em
Inglaterra.
Os anos cinquenta foram o momento de rápida afirmação do bordado. Os dados estatísticos
assim o confirmam. Em 1862 temos 1029 bordadeiras cujas toalhas bordadas renderam nas
exportações cerca de sete contos. Aos poucos começam a surgir novos mercados. Em 1863 sabe-
se que se exportava já para os Estados Unidos, enquanto na década de oitenta abre-se o mercado
alemão. Rapidamente este último mercado adquire uma posição dominante mercê com regalias
aduaneiras na ilha e no principal porto de destino, que era o porto franco de Hamburgo Estes
valores continuam a subir sendo em 1906 trinta mil as bordadeiras e dois mil profissionais nas
oito casas que contribuíam com 242.342$180 réis. Já em 1912 temos 34.500 bordadeiras. O novo
século inicia-se com uma diversificação dos mercados e uma profunda alteração na matéria
prima. Assim o algodão e a cambraia cedem lugar ao linho cru e a linha dominante passa a ser
castanha. Assim juntam-se o Brasil os EUA, Canadá, França e Africa do Sul. Os alemães
mantiveram até 1914 uma posição dominante neste comércio, onde vinham conquistando terreno
desde 1880. Esta situação conduziu ao aumento do número de casas dedicadas ao comércio do
bordado. Em 1920 são já sessenta e uma, mas a crise económica e a guerra mundial conduziram
a uma redução para quase metade em 1948, passando a trinta e quatro. Ao mesmo tempo os
alemães perdem importância em favor dos sírios Na década de cinquenta a crise do cruzeiro
levou à perda do mercado brasileiro, mas a tradição do bordado manteve-se em algumas cidades
brasileiras por mãos de madeirenses que para aí emigraram. O Brasil cedeu lugar à Venezuela e
Itália, enquanto os EUA continuará a ser um dos mais destacados mercados. A maioria destes
mercados estavam na mão de um grupo restrito de comerciantes, oriundos do país de destino do
grosso das exportações e entre eles e o mercado de destino existia uma relação de dependência
que se alargava até ao tipo de bordado, padrões e tecidos, como sucedia com os mercados
americano e alemão. Por outro lado estes artefactos podiam ser laborados na ilha ou no próprio
local de destino por mãos hábeis de mulheres madeirenses. Foi isso que aconteceu no Brasil e
Hawai.
Na ilha o bordado é uma actividade que ocupa mão de obra em toda a ilha. Isto acontece desde o
século XIX. Deste modo se na década de sessenta as bordadeiras estavam restritas ao Funchal e
Câmara de Lobos já na década de noventa a actividade estava em toda a ilha da Madeira e havia
chegado ao Porto Santo. Note-se que em 1862 das 1029 bordadeiras existentes em toda a ilha a
maioria situava-se no Funchal e Câmara de Lobos, respectivamente com 844 e 152. De acordo
com a evolução do mercado cresce o número de bordadeiras. Assim em 1906 eram 30.000 as
bordadeiras subindo para 45.000 em 1924, atingindo-se em 1950 as sessenta mil bordadeiras. O
facto desta actividade ser maioritariamente executada em casa das bordadeiras, permitia conciliar
o acto de bordar com a actividade agrícola e caseira. E aos mesmo tempo atribuía um precário
suplemento em dinheiro para a economia caseira. Em 1952 o bordado distribuía 47.252 contos
por cerca de 60.000 bordadeiras. Deste modo Ramon Honorato Rodrigues(1955) afirmava que o
bordado a indústria “mais importante desta ilha, pelo volume dos salários e remunerações, pelo
pessoal empregado e pela endosme de divisas – dólar correspondente à maioria dos artigos
produzidos.” A crise da década de oitenta levou ao encerramento da maior parte das casas de
bordados e este deixou de assumir o papel que tinha na economia familiar e da ilha. Mesmo
assim ainda persiste mais como memória emblemática e identificadora da ilha mais por força do
turismo sempre sedente dos chamados souvenirs.
Na década de trinta a conjuntura económica conduziu à criação do Grémio dos Industriais de
Bordado da Ilha da Madeira(1935) com o objectivo de orientar a industria e promover o seu
comércio. De acordo com um relatório deste Grémio de 1952 o bordado ocupava mais de
cinquenta mil famílias, o que significa mais de metade das famílias, nomeadamente do meio
rural. O retrato da bordadeira, da sua vivência e das casas de bordado deu motivo suficiente para
que Horácio Bento de Gouveia dedica-se um dos seus romances. Em Lágrimas Correndo
Mundo(1959) estas vivências rurais ficaram registadas para a posteridade. Já em 1922 Elmano
Vieira fizeram deles o tema da sua opereta “as meninas dos Bordados” e o Feiticeiro do Norte,
Manuel Gonçalves(1858-1927) havia dedicado um folheto de trovas populares “As Raparigas
dos Bordados”.
Outra actividade importante no domínio do artesanato foi a obra de vimes. Desde o século XVI
que sabemos do fabrico de cestos de verga para os trabalhos agrícolas e serviço de casa. O
cultivo do vimeiro adquire importância na segunda metade do século XIX. A cultura teve um
incremento na freguesia da Camacha e rapidamente se espalhou no Funchal alargando-se às
freguesias do norte, nomeadamente a de Boaventura. Deste modo a cultura e obra de vimes estão
presentes e persistem em ambas as localidades. Os vimes eram transformados na ilha ou então
exportados em bruto para os Estados Unidos e Europa. Na ilha o vime era usado para o fabrico
de cestos de uso caseiro e agrícola, como é o caso dos barreleiros, gigos, da pesca, com os
ceirões e covos, dos carros de cesto que descem do Monte e de inúmeras peças de mobiliário,
como cadeiras, canapés, mesas, cestas, tão do agrado dos residentes como dos visitantes. Note-se
que desde meados do século XIX os bomboteiros já se vendiam obra de vimes aos vapores que
aportavam ao Funchal. E no ano de 1848-49 sabemos da saída de verga em obra, cestos de palha
e verga para os portos nacionais e estrangeiro(Canárias, Brasil, Demerara, Inglaterra). Todavia a
obra de vimes sempre enfrentou dificuldades de escoamento pelo que o principal mercado era o
dos bomboteiros.
A partir da década de vinte do século XX foi notório o incremento da indústria de obra de vimes.
Todavia a partir da década de trinta foi notória a mudança para a exportação do vime em bruto
os Estados Unidos e Continente. Senão vejamos. Em 1920 a ilha exportava 162.057 kg de obra
de vimes e 76.520 kg em bruto. Passados dez anos a situação inverte-se, sendo o vime em bruto
de 175.441 kg e a obra em 84.548 kg. Todavia a partir da década de cinquenta o negócio em
torno da obra de vimes voltou a subir, atingindo 518.980 kgs. Esta situação repercutiu-se no
volume de negócios. Assim, dos cerca de trezentos contos na década de trinta, passa-se para mais
de dez mil contos em 1945 e passado dez anos atingiu o dobro. Estas exportações destinavam-se
a dois mercados preferenciais: continente e Estados Unidos. Assim, em 1953 o continente
recebia mais de setenta por cento do vime em bruto e a Inglaterra com 22%, enquanto na obra de
vimes os Estados Unidos absorviam noventa por cento. A partir da década de cinquenta a
concorrência da Jugoslávia, Hungria, Hong-Kong e Japão repercutiu-se de forma negativa,
provocando uma quebra em 1954. Na década de oitenta o vime parece que sucumbiu face à
concorrência, diminuiu a exportação em bruto e em obra, o que se repercutiu na área de cultivo.
Hoje o principal mercado do vime está na venda de obra na ilha aos locais e turistas. A par destas
indústrias que assumiram um papel de relevo na economia da ilha é necessário considerar os
diversos ofícios e actividades artesanais que contribuem para a pujança dos diversos sectores e
melhoria do conforto humano. A maior parte dos artefactos e produtos daqui resultantes tinham
como destinatário o mercado local, todavia alguns encontram mercado na exportação. Foi o caso
dos embutidos, das flores de penas, chapéus de palha. Estes últimos tinham em 1874 uma
importante oficina na rua da Alfandega, propriedade de Lacerda & Irmão.
Ao nível das actividades subsidiárias merece a nossa atenção as que se prendem com os sectores
dominantes no processo económico. Assim no caso do vinho é necessário ter em conta a
actividade do tanoeiros, de que ficou memória numa rua da cidade. Note-se que, durante muito
tempo, a exportação do vinho era feita a granel havendo necessidade do vasilhame de madeira.
Normalmente a madeira de carvalho era importada dos Estados Unidos, de Charleston por
exemplo, e aqui na ilha procedia-se ao fabrico das pipas em oficinas anexas às lojas de vinhos ou
independentes. Em 1862 eram 52 as oficinas de tanoaria em laboração com mais de duzentos
operários, situadas maioritariamente na cidade. Paralelamente o trabalho da madeira tinha outros
ofícios como era o caso dos carpinteiros e marceneiros. A oficina de marcenaria trabalhava com
as madeiras da ilha ou importadas, sendo de notar a ideia vigente a partir do século XVII com a
madeira das caixas de açúcar se faziam móveis, como foi o caso de armários e contadores, que
ficaram designados como de caixas de açúcar. A concentração destes ofícios era
maioritariamente na cidade, assim em 1863 trabalhavam na cidade 92 dos cento e vinte
marceneiros de toda a ilha, enquanto nos carpinteiros o Funchal apresentava 112 do total de 196.
O embutidor trabalha em paralelo com os ofícios anteriores, sendo-lhe atribuída a missão de dar
às pequenas peças de mobília o aspecto apelativo. Através de um jogo de cor de diferentes
madeiras era e é possível traçar retratos, flores, construções geométricas que decoram tampos de
mesas, cofres, caixas e caixinhas. As referências mais antigas a este ofício reportam-se ao século
XVII mas foi na segunda metade do século XIX que esta arte ganhou fama na ilha e fora dela. Os
embutidos foram motivo de atracção na exposição industrial do Funchal de 1850 e desde então
não mais parou a marcha para o sucesso, sendo o preferido para os presentes às individualidades
que visitavam a ilha. Em 1901 o rei D. Carlos foi presenteado com uma mesa de embutidos. A
fama do embutido e a sua procura levaram à criação de oficinas especializadas. A primeira foi
criada em 1770 na fortaleza do Pico, mas sem dúvida quem deu maior alento aos embutidos foi a
escola de desenho industrial em 1889, que teve a oficialização da oficina em 1916.
De entre as diversas actividades artesanais que contribuem para o conforto das populações
devemos salientar as que se prendem com o vestuário, incluído a tecelagem e tinturaria, o
curtume e o fabrico de botas, de produtos de cozinha e higiene, como os utensílios de barro e
folha, o sabão, e alimentares, onde se incluíam as massas e as bebidas alcoólicas. Junta-se ainda
outras actividades como o fabrico de cal e telha para a construção de habitações, ou de
acessórios, com de chapéus de feltro e palha e flores de penas.
A presença de barro na ilha é evidenciada pela toponímia mas mesmo assim parece que nunca foi
suficiente para as necessidades da ilha, uma vez que à sua procura para o fabrico de utensílios
domésticos, telha dita romana havia que juntar nos séculos XV e XVI a sua procura para o
fabrico de açúcar, quer para formas, quer na fase de purificação. Esta situação obrigou a coroa a
tomar medidas na defesa dos barreiros e lamaceiros da ilha. Terminada a exploração açucareira
ficou o fabrico de loucas e utensílios para uso doméstico. De acordo com as posturas do século
XVI podiam-se adquirir potes, alguidares, panelas tijelas, vasos, púcaros, fogareiros, potes,
luminárias, cangirões, mialheiros, talha(...) No Funchal existiam olarias e o testemunho desta
actividade ficou lavrado numa rua da cidade, a rua da Olaria. No século XIX existiam olarias no
Funchal, Machico Santa Cruz, Ponta de Sol, Calheta e Boaventura. É de notar a olaria de José
Francisco de Sousa em Santa Luzia que em 1825 fabricava loiça, considerada tão boa com a do
reino. De nota é também a fábrica de Francisco José Nogueira Guimarães(1874) na Achada que
produzia louça de barro ordinário e vidrada, com barro importado de Lisboa. Em 1862 eram
cinco as olarias a laborar na ilha.
Nas indústrias subsidiárias da construção temos os fornos de telha, onde se coziam as telhas de
barro e os de cal onde se preparava a cal. Enquanto nos primeiros temos cinco fornos no Funchal
e três no Porto Santo, no segundo são apenas 10 moinhos no Porto Santo, não obstante ter
existido outros no Funchal, Santa Cruz, Câmara de Lobos e S. Vicente. A Madeira apresentava
em 1845 quatro fornos, passando para cinco em 1863. Os da vertente sul laboravam a pedra
calcária vinda do Porto Santo, tornando-a mais vantajosa pela falta de lenhas. Apenas em S.
Vicente, desde o século XVI, dispensava-se a pedra calcária portossantense, pela existência de
um filão e cal na zona dos Lameiros que foi explorada em época recente mas que hoje, a
exemplo do Porto Santo deixou de ter importância. Foi na ilha do Porto Santo e nomeadamente
no ilhéu de Baixo que a exploração da cal se transformou numa importante fonte de riqueza. No
século XV o senhorio da ilha interessado em manter sem sobressaltos a industria açucareira
proibiu a sua exploração, obrigando os madeirenses a importá-la do continente. Todavia no
século XVI a quebra do açúcar e a necessidade desta para a construção de fortificações levou ao
incremento da indústria da cal no Porto Santo, que se manteve activa até à década de setenta do
século XX. Note-se que em 1928 em todo o arquipélago funcionavam 10 fábricas de cal.
Em termos geológicos a freguesia de S. Vicente apresenta uma particularidade em relação às
demais, isto é, uma intercalação calcárea marinha, que só tem caso parecido nas Ilhas de Santa
Maria e Porto Santo. A exploração da pedreira calcarea remonta a meados do século XVII. A
pedreira fora adquirida pelo vigário de S. Vicente, Francisco Pestana, que depois a doou à
Confraria do Santíssimo Sacramento. Foi ele que iniciou a sua exploração, construindo nas
imediações do filão um forno. No último quartel do século XVIII estão documentados dois
fornos: um no cabo da Ribeira do Mato, propriedade de Manuel Pestana de Andrade e outro na
Vila, nas proximidades da Igreja, pertença da Confraria do Santíssimo Sacramento. Este filão
calcário foi de grande importância no decurso dos séculos XVIII e XIX. As necessidades de cal
para a construção, evidenciada com o delineamento, a partir de meados do século XVI, de uma
linha de defesa, composta por diversas fortalezas e uma cortina de muralha, tornaram necessária
a valorização das pedreiras do arquipélago, que apenas existiam no Porto Santo e S. Vicente.
Todavia, a falta de lenhas no Porto Santo impediram aí o seu desenvolvimento, que só teve lugar
em meados do século passado com o carvão de pedra. S. Vicente, ao invés, dispunha da matéria-
prima, necessária à laboração da cal -- a pedreira e as lenhas -- e, por isso mesmo, a industria
teve grande incremento a partir de meados do século XVII. O seu desenvolvimento nas centúrias
seguintes é atestado pela existência de três fornos de cal. A sua presença e valor económico
permaneceu até à presente centúria, pois em 1903 temos um novo forno no sítio do Barrinho,
propriedade de João Pedro Faria. Note-se que em 1888 Manuel da Costa Lira apontava a
necessidade de traçar uma estrada desde a pedreira ao mar para facilitar o escoamento da cal. Isto
demonstra o valor deste recurso no comércio com o sul, nomeadamente o Funchal, onde a cal
tinha maior procura. A par disso em 1888 aponta-se este recurso como um meio possível a
explorar na economia nortenha da ilha. Nos anos sessenta foi ainda o retorno à exploração do
calcário, pois um parecer do Laboratório Minerológico e Geológico da Faculdade de Ciências de
Lisboa informava que as amostras analisadas eram de óptima qualidade, sendo de grande
interesse económico para o concelho a exploração o que na realidade veio a acontecer.
De entre os produtos básicos de higiene destaca-se o sabão. A sua produção e comercialização
era um privilégio do infante D. Henrique que a cedeu aos seus capitães no espaço das capitanias.
Esta situação persistiu até 1766 altura em que todas as saboarias passaram para a administração
da Fazenda Real, acabando por ser extinto monopólio em 1857. A cidade recorda ainda hoje esta
situação através da Rua do Sabão, que foi buscar o nome ao depósito do mesmo. A partir do
momento do fim do monopólio surgiram diversas fábricas na ilha sendo de salientar em 1860 as
de Constantino Cabral de Noronha e José Joaquim de Freitas, que produziam respectivamente
16524 kg e 12.395 kg. Para o fabrico do sabão necessitava-se de barrilha, que existia em
abundância nas ilhas Desertas. Anualmente as duas fábricas consumiam quase 200 toneladas e
precisavam 132 carradas e lenha de pinho, urze e castanho. Esta última situação foi responsável
pelo atraso da indústria dos sabões na ilha,
Desde o início da ocupação da ilha que foram evidentes as dificuldades com a venda de sabão.
Primeiro foi o preço elevado que obrigou a uma intervenção do duque e à decisão em 1486 de
permitir o seu fabrico na ilha, situação que foi revogada em 1516 pelo elevado dispêndio de
lenha, tão necessária para o fabrico do açúcar. Perante estas condicionantes a população rural
socorria-se de produtos alternativos como a barrilha e cinzas. Entretanto na primeira metade do
século dezanove as senhoras compravam os sabonetes estrangeiros de contrabando nas lojas
inglesas.
O tabaco não vingou como cultura na ilha, mas isto não impediu que com a liberalização do seu
comércio e produção não surgissem fábricas na ilha no último quartel do século dezanove. A
mais antiga é a Fabrica de Tabacos Madeirense do visconde de Monte Bello fundada em 1877.
Esta produzia cigarros, charutos, rapé e tabaco picado resultante da produção da ilha e da
importação de Cuba, Porto Rico e Estados Unidos. Note-se que esta fabrica laborava quatro
toneladas de tabaco da ilha e apenas quatrocentos quilos importado.
No meio rural surgiam algumas actividades caseiras específicas com objectivo de satisfazer as
necessidades da casa. Neste caso é de destacar o cultivo do linho e a tecelagem, o fabrico de
azeite de loiro. O azeite de loiro, feito a partir da baga de loureiro apresentava-se de grande
utilidade como combustível para as candeias de barro, como lubrificante e na medicina caseira.
Em 1862 estão documentados 47 lagares de azeite loiro com forte incidência nos concelhos de
Porto Moniz e Calheta.
O fabrico de panos para cobrir o corpo era igualmente uma actividade de tipo caseiro. A matéria-
prima fundamental, linho, lã de ovinos e materiais de tinturaria, era de produção local, o que
fazia com que muitas das peças de lã, linho e estopa fossem mais barata que os tecidos de
garridas cores vendidos pelos adelos. A presença dos adelos, nome dado aos vendedores de
tecidos que percorriam o meio rural com a sua mercadoria, está documentada desde o século
XVII. A ilha também importava linho de diversos destinos, nomeadamente da Inglaterra,
Alemanha e da América do Norte. Todavia, a maior quantidade de linho consumido era de
produção local. E desde os inícios do povoamento que a cultura deveria existir na ilha. As
posturas do século XVI referem a prática corrente de alagar o linho nas ribeiras da cidade com
muito dano das suas águas, pelo que se recomenda o uso de poços separados. A sua cultura
espalhou-se por toda a ilha, ganhando uma posição de destaque nas freguesias do norte, como
foi o caso de S. Jorge e Santana.
O século XVIII é considerado um momento de crise desta cultura, havendo necessidade de
importação da América pelo que as autoridades municipais tomaram medidas no sentido da
promoção do seu cultivo. Deste modo foi possível com esta matéria produzir toda a roupa branca
que a ilha necessitava. Todavia a partir de meados do século XIX a ilha foi assolada por uma
invasão de tecidos estrangeiros vistosos e a preços muito em conta que destronaram o linho da
terra e acabaram com os tormentos da população. Note-se que o trabalho de preparação do linho
era muito custoso, sendo considerado como o fadário do linho. Alguns estrangeiros testemunham
esta realidade, dando-nos imagens da mulher nos seus momentos de lazer a fiar numa roca. Ao
linho juntava-se a lã fruto da tosquia dos ovinos. É no decurso do século XVIII que se assiste a
uma aposta nesta matéria-prima através da promoção do pastoreio e criação e ovelhas, de forma
especial as meirinhas por serem as que produzem as melhores lãs. Os ovinos de raça irlandesa
surgiram na ilha em finais do século XVIII, permitindo um melhor aproveitamento das lãs. Em
1862 a ilha dispunha de 44.186 cabeças de gado ovelhum, maioritariamente distribuído no
Funchal, que produziam 39 toneladas de lã branca e cerca de 8 da preta. A estas duas matérias-
primas fundamentais junta-se ainda a seda de menor dimensão. A sua presença na ilha está
documentada desde o século XV, estando isenta de qualquer direitos desde 1485. Na segunda
metade do século XVIII foi evidente a aposta na seda com incentivos da coroa ao plantio de
amoreiras. Note-se que o próprio Marquês de Pombal fez uma aposta na sericultura ordenando a
criação de uma fábrica de fiação na ilha, mas a primeira notícia que temos a uma destas é de
1813. Uma vez disponível a matéria-prima era necessário de teares e as aos hábeis das tecedeiras
para poder dispor-se dos panos com os quais os alfaiates e costureiros depois iam faziam o corte
do vestuário. De acordo com informação de 1862 o número de teares de linho e lã na Madeira
era de 559 e o de tecedeiras de 359, havendo uma incidência na Calheta, Santana e Funchal. Em
1908 o número de teares havia subido para 559, mas paulatinamente foram desaparecendo como
também a disponibilidade do linho e lã de ovelha. Hoje a sua persistência está localizada na Ilha
e Ponta do Pargo, mas apenas com valor etnográfico. De acordo com uma taxa estabelecida em
1862 às tecedeiras do Porto Moniz ficámos a saber que o concelho produzia 3300 metros de pano
de linho, 550 de lã preta e 110 de lã branca. É de salientar que os alfaiates têm uma forte
incidência na cidade do Funchal, o que poderá significar que no meio rural o corte do vestuário
era caseiro. Aliás, é aqui que encontrámos maior informação sobre esta actividade nas posturas
municipais. O município não só estabelecido regras que regulamentava o feitio das diversas
peças de vestuário, mas também, os seus preços de fabrico
Os curtumes em ligação com o calçado mantiveram-se sempre com grande evidência na vida das
populações, estando dependente da disponibilização de gado, ovino, caprino e,
fundamentalmente, bovino e do consumo de carne. Mesmo assim poderá dizer-se que esta
actividade nunca foi deficitária de matéria-prima que dava para o consumo interno havendo lugar
ainda à exportação. Esta indústria existe desde os primórdios da ocupação da ilha. As
intervenções do município contra a poluição das ribeiras por esta actividade, nomeadamente do
Funchal, eram constantes. Os pelames e alcaçarias, por necessidade de água abundante situavam-
se quase sempre no leito das ribeiras. Na Tabua e Serra de Água surgem algumas construções.
Consideradas popularmente com construções mouriscas, que nos parecem ter a ver com esta
actividade. Tenha-se em conta que esta área teve um papel importante nos curtumes.
No decurso do século XVII o estado desta indústria deveria ser decadente face à disponibilidade
de couros e solas brasileiros de superior qualidade. Face a esta crise o município de Machico
apostou em 1780 na reanimação da indústria. Na segunda metade do século XIX o incremento da
pecuária deverá ter contribuído para o reforço da actividade. Em 1863 temos notícia de 61
oficinas em que trabalhavam 532 surradores e curtidores. É evidente nesta actividade uma
acentuada concentração na Calheta e Ponta de Sol, que surgem, respectivamente, com 17 e 19.
Em 1908 as oficinas de curtir couros eram 61 passando para 38 em 1910, o que demonstra
estarmos perante uma redução da matéria-prima. Todavia em 1928 Peres Trancoso testemunha
uma valorização da actividade com a plena laboração de 203 fábricas. A curtimenta fazia-se com
sumagre, casca de aderno e faia, sendo habitualmente realizada no leito das ribeiras com grande
prejuízo das águas que todos se serviam. Esta riqueza de couros repercutia-se no número de
oficinas de sapateiro. A sua presença está documentada desde os primórdios do povoamento,
com particular incidência no Funchal. De acordo com a regulamentação das posturas podemos
saber qual o calçado fabricado na ilha. Para Homem temos botas, sapatos, botas de montar e
botas mouriscas. Já no calçado feminino temos chapins, botinas e pantufas. Em 1862 laboravam
346 sapateiros, sendo 156 no Funchal, que descem para mais de metade em 1906 e voltam a
subir para 215 passados dez anos.
Hoje o espectro dos ofícios mudou. Muitos dos atrás referidos desapareceram ou estão em vias
de extinção. Por outro lado a reestruturação do sector produtivo no post segunda guerra mundial
conduziu a uma forma diferente de organização e valorização dos ofícios. As oficinas
desapareceram dando lugar às industrias alimentadas por empresas sectoriais onde os ofícios se
estruturam de forma diferente. Os proprietários deixam de ser operários especializados e a ideia
de aprendiz é cada vez mais uma situação caduca.

A COR DO DINHEIRO

A MOEDA E MEIOS DE CRÉDITO.

A MOEDA. Uma das maiores dificuldades da economia das ilhas prende-se com a insistente
falta de meios monetários. Ligado a isto está o uso da moeda castelhana e a diferença do valor
entre a moeda corrente nas ilhas e o reino. Tudo isto está em relação directa com a balança de
comércio que pende quase sempre a favor do exterior, mercê da dificuldade em assegurar
contrapartidas para as trocas. No caso da Madeira as trocas com os Açores e as Canárias não
encontravam qualquer contrapartida nos cereais, tendo em conta que o nosso vinho era
dispensado nessas ilhas. Para o período de 1800 a 1831 temos que 51% das embarcações do
Funchal que chegaram a Ponta Delgada vinham em lastro. Daqui resulta que as autoridades da
ilha não viam com bons olhos esses contratos. A agravar esta situação está o facto de o comércio
com o vinho ser, na sua quase totalidade, feito a troco de bens alimentares e manufacturas,
adiantadas pelos ingleses aos lavradores.

O COMÉRCIO. O sistema de trocas, no amplo e multifacetado mundo insular, dependeu de um


múltiplo conjunto de factores, activadores ou não do intercâmbio. Neste contexto valorizamos os
produtos, mas é necessário ter em conta que eles não foram por si só suficientes para a manter o
sistema de trocas. Para que isto tivesse lugar foi necessária a existência de condições que as
favorecessem, como os meios e as vias de contacto, a presença de agentes capazes de
corresponder aos diversos desafios e os instrumentos de pagamento adequados ao volume e
duração das trocas.
O comércio é, em simultâneo, a causa e o corolário da conjugação harmoniosa deste conjunto de
factores que conduziram ao progresso da sociedade e economia insulares. O processo histórico
evidencia de forma clara esta realidade. Terá sido o surto do comércio açucareiro que
condicionou o desenvolvimento de infra-estruturas portuárias e que implicou o nível de
progresso dos centros urbanos. Esta actividade, que mereceu o pleno apoio dos insulares e aí
encontrou os mecanismos adequados para isso, não estava alheia às venalidades da economia
atlântica, bem como aos obstáculos humanos e naturais. Foi o europeu quem definiu os circuitos
comerciais e procurou mantê-los sob controlo. As ilhas foram, portanto, encaradas como espaços
periféricas que dependiam umbilicalmente do centro europeu. Por outro lado as coroas
peninsulares, empenhadas em definir um comércio monopolista, intervêm, com assiduidade,
regulamentando de forma exaustiva as actividades económicas e delimitando o espaço de
manobra dos seus agentes.
A excessiva intervenção da coroa, aliada às intempéries sazonais, tempestades marítimas, peste,
pirataria e corso, foram principais responsáveis em determinados momentos pelo bloqueio dos
circuitos comerciais. A tudo isto se poderá juntar o permanente empenho no controlo e
regulamentação do sistema de trocas, que derivou, em primeiro lugar, da ingente necessidade de
preservar para a coroa o monopólio do comércio de determinados produtos em áreas definidas e,
em segundo, da necessária acção com o objectivo fundamental assegurar o abastecimento local e,
ao mesmo tempo, definir os produtos adequados a uma troca no mercado atlântico-mediterrâneo.
As instituições da fazenda real (o almoxarifado e, depois, a Provedoria da Fazenda) com os
municípios ditavam as ordens necessárias para tal política económica e controlavam a sua
execução. Esta atitude é constante e abrange todos os sectores de actividade.
As autoridades intervêm na produção, processo transformador das matérias-primas, na
distribuição e comércio dos produtos, locais ou de fora. Enquanto o município legisla sob a
forma de postura, a coroa actua por meio de alvarás e regimentos. Deste modo os produtos e as
actividades que definiam a economia insular regiam-se pelos princípios básicos da comunidade
insular que ia no sentido de assegurar o abastecimento, qualidade, preço, peso e medida
adequados. Por outro lado as repartições régias afirmavam-se, muitas vezes, como mecanismos
coercivos, tendo como finalidade básica a defesa do património da coroa. Aqui a luta incidia,
preferencialmente, no combate às situações fraudulentas e lesivas do património. O contrabando
surge neste circuito, ao mesmo tempo, como causa e consequência da apertada estrutura de
controlo dos produtos no mercado insular, pois a excessiva regulamentação dos mecanismos de
troca, para além de a entorpecer e retardar, criava ou tornava necessário o recurso a circuitos
paralelos.
Ao mercador insular e europeu não satisfaziam as medidas intervencionistas da coroa e
município, pois limitavam-lhe o restrito campo de manobra e oneravam a sua acção. Daí a
atitude deles no sentido de intervirem activamente na formulação de tais normas, caso contrário
restava-lhe o recurso a múltiplos subterfúgios para contrariar aqueles que lhes eram lesivos.
O comércio é assim o corolário de todos os circunstancialismos incentivadores ou não do sistema
de trocas. E deste modo as trocas nesta vasta área só podem ser entendidas mediante um correcto
equacionar do mercado de cada ilha, arquipélago ou do espaço atlântico. No último espaço
existiu um intricado liame de rotas comerciais que ligavam o mercado europeu ao Novo Mundo.
O desenvolvimento sócio-económico espaço insular articula-se de modo directo com as
solicitações da economia atlântico-europeia. As ilhas como região periférica do centro de
negócios europeus ajustaram o desenvolvimento económico às necessidades do mercado e às
carências alimentares europeias. Depois actuaram como mercado consumidor de manufacturas,
cuja troca era muito favorável ao europeu. E, finalmente, intervêm como intermediário nas
ligações entre o Novo e o Velho Mundo. É nesta tripla função que se deverá entender a economia
insular e buscar o fundamento para a sua frágil estrutura.
De acordo com isto é comum definir-se a economia das ilhas pelo carácter periférico, mas
necessária para a afirmação dos interesses hegemónicos além-Atlântico. Deste modo o mercado
insular definiu-se pela carência de identidade e de estruturas ou meios que lhe possibilitassem
suplantar tal posição.Uma análise mais aprofundada dos mecanismos sócio-económicos insulares
revela-nos que nas sociedades insulares se desenvolveram actividades económicas fora da alçada
dos vectores dominantes. Em certa medida as relações inter-insulares, derivadas da
complementaridade, são o exemplo mais evidente disso. Com base nisto emerge a estrutura
comercial dos arquipélagos, definida pela heterogeneidade, expressa numa variedade de áreas,
produtos, circuitos e agentes comerciais, que deram origem a três formas do sistema de trocas:
1.o comércio de cabotagem interna e inter-insular, englobando as comunicações e contactos
comerciais no mercado interno, ao nível local, regional e inter-regional, definindo o último os
contactos entre as ilhas do mesmo arquipélago;
2.o comércio inter-insular, estabelecendo as conexões ao nível dos arquipélagos atlânticos;
3.o comércio atlântico, circunscrito aos contactos de longa ou curta distância com os
mercados europeu, africano e americano.
À permanente e sempre actuante comunidade peninsular associaram-se desde o início os
elementos mais proeminentes do tráfico internacional nórdico e mediterrânico, que conduziram à
excessiva vinculação das ilhas aos grandes espaços continentais. Assim, assumem particular
importância as colónias italiana e flamenga. Eles esqueceram por algum tempo os conflitos
religiosos e uniram-se em prol de uma causa comum: o comércio. O interesse fundamental foi o
açúcar. A rota de ligação do mundo insular às origens europeias foi, sem dúvida, a mais
importante do comércio externo nos séculos XV e XVI. Mais tarde a ela sobrepöem-se as de
contacto ao mercado americano, que tiveram uma importância especial para as ilhas da costa e
golfo da Guiné. A permanência e fortalecimento destes contactos foi resultado da existência de
produtos e mercados adequados à troca com estes destinos.
Ao europeu as ilhas foram, acima de tudo, um mercado capaz de suprir as necessidades
alimentares, de produtos industrias e mão-de-obra escrava. A isso acresce a possibilidade de os
mesmos serem os consumidores dos excedentes das manufacturas europeias. A disponibilidade
desta última fazia aumentar os lucros das transacções comerciais e definia uma extrema
dependência dos mercados insulares, agravada pela troca desigual.

COMÉRCIO DE CABOTAGEM. A disposição das áreas ocupadas de acordo com as


condições orográficas foram factores preponderantes no estabelecimento da rede de contactos
entre os vários núcleos de povoamento. O facto de estarmos perante ilhas em que o mar era
acima de tudo a via privilegiada e a dificuldade crescente dos meios e possíveis vias de
comunicação terrestres, levou a que os circuitos de cabotagem fossem importantes. A primazia
das vias marítimas era atenuada naquelas ilhas em que a orografia permitia uma fácil circulação
interna.
Na Madeira as vias de comunicação terrestre só foram uma realidade a partir do século
dezanove. Deste modo a economia agrícola da ilha teve que obedecer às possibilidades da via
marítima, sendo definido pela orla litoral. O mar dominou os contactos e o quotidiano. O rumo
traçado pelos primeiros povoadores, quando do reconhecimento da ilha no século quinze,
perdurou por muito tempo. Esta situação condicionou a forma de progresso do povoamento e
economia, que se fez a partir das enseadas e ancoradouros. Perante isto surgiram os locais de
povoamento—Funchal, Machico, Santa Cruz, Ponta de Sol, Calheta—que adquiriram uma
importância no processo económico e social da ilha. Foi em torno destas localidades, com um
estatuto institucional definido, que girou todo o movimento de mercadorias e pessoas. A rede de
escoamento do açúcar é exemplar e a expressão mais perfeita da realidade. Não obstante existir
uma alfândega em cada capitania, o porto do Funchal manteve-se como a porta de entrada e
saída da Madeira. A de Santa Cruz foi de vida efémera e a coroa sempre se preocupou em manter
o sistema de trocas de cada ilha centrado numa localidade portuária importante. Assim sucedeu
com o Funchal, Ponta Delgada, Angra e Ribeira Grande (mais tarde Praia), respectivamente, na
Madeira, S. Miguel, Terceira e Santiago.
Em todos os lugares as várias tentativas descentralizadoras foram prejudiciais em termos de
controlo da Fazenda Real. Em face disto, no caso da Madeira, a saída do açúcar, principal
produto em troca para os séculos quinze e dezasseis, fazia-se a partir do porto do Funchal,
devendo toda a produção das comarcas de Ponta de Sol, Ribeira Brava, Calheta e mesmo de
Machico ser para ali conduzida e depois despachada na alfândega para os múltiplos destinos. Por
isso mesmo era ao Funchal que se acolhiam os mercadores interessados no comércio do produto
e era também aqui que se recebiam o cereal e as manufacturas, que depois eram canalizadas, no
sentido inverso, para as localidades da ilha. No caso da Ribeira Brava, Gaspar Frutuoso refere-
nos que é “uma fresca quintä donde os moradores da cidade acham e lhe vai o melhor trigo,
frutas, caças, carnes e em maior abundância que em toda a ilha; e pode-se com razão chamar
celeiro do Funchal, como a ilha de Sicília se chama de Itália”. Para manter este circuito era
necessário um grupo numeroso de barqueiros. O Funchal e demais localidades estavam em
condições de satisfazer tal procura.

O COMÉRCIO INTER-INSULAR. O comércio entre as ilhas dos três arquipélagos atlânticos


resultava não só da complementaridade económica, definida pelas assimetrias propiciadas pela
orografia e clima, mas também da proximidade e assiduidade dos contactos. O intercâmbio de
homens, produto e técnicas, dominou o sistema de contactos entre os arquipélagos. A Madeira,
mercê da posição privilegiada entre os Açores e as Canárias e do parcial alheamento das rotas
indica e americana, apresentava melhores possibilidades para o estabelecimento e manutenção
deste tipo de intercâmbio. Os contactos com os Açores resultaram da forte presença madeirense
na ocupação e da necessidade de abastecimento em cereais, que o arquipélago dos Açores era um
dos principais produtores. Com as Canária as imediatas ligações foram resultado da presença de
madeirenses, ao serviço do infante D. Henrique, na disputa pela posse do arquipélago e da
atracção que elas exerceram sobre os madeirenses. Tudo isto contrastava com as hostilidades
açorianas à rota de abastecimento de cereais à Madeira. Acresce, ainda, que o Funchal foi por
muito tempo um porto de apoio aos contactos entre as Canárias e o velho continente. Os
contactos assíduos entre os arquipélagos, evidenciados pela permanente corrente emigratória,
definem-se como uma constante do processo histórico dos arquipélagos, até ao momento que o
afrontamento político ou económico os veio separar. A última situação emerge na segunda
metade do século dezassete como resultado da concorrência do vinho produzido, em simultâneo,
nos três arquipélagos.
O trigo foi, sem dúvida, o principal móbil das conexões inter-insulares. Segundo os testemunhos
de Giulio Landi (1530) e Pompeo Arditi (1567) os cereais foram os principais activadores e
suportes do sistema de trocas entre a Madeira e os arquipélagos vizinhos, que, por isso mesmo,
foram considerados o celeiro madeirense. A rota de abastecimento de cereais teve a sua máxima
expressão em princípios do século dezasseis. A referência mais antiga ao envio de trigo de
Canárias para a Madeira data de 1504 para La Palma e 1506 para Tenerife, enquanto a presença
do açoriano só está documentada a partir de 1508, ano em que a coroa definiu a obrigatoriedade
do fornecimento à Madeira. O comércio do cereal a partir das Canárias firmou-se através da
regularidade dos contactos com a Madeira, sendo apenas prejudicado pelos embargos
temporários, enquanto dos Açores foi imposto pela coroa, uma vez que a burguesia e aristocracia
açorianas, nomeadamente de S. Miguel, não se mostravam interessadas em manter esta via. Todo
o empenho dos açorianos estava canalizado para o comércio especulativo com o reino ou dos
contratos de fornecimento das praças africanas. Desde 1521 o preço e a forma de transporte do
cereal açoriano na Madeira estavam sob o controlo do município. Deste modo era difícil a
especulação por parte dos rendeiros e mercadores micaelenses.A garantia do abastecimento
interno de cereais, que havia sido uma palavra de ordem no início do povoamento da Madeira,
não resistiu ao assalto das culturas europeias para exportação, que em pouco tempo invadiram
quase todo o território arável. O arquipélago composto apenas por duas ilhas, sendo uma delas de
fracos recursos, tinha que assegurar, necessariamente, o abastecimento fora, socorrendo-se para
isso das ilhas vizinhas. Em 1546 dos doze mil moios consumidos apenas 1/3 foi produzido
localmente, sendo o restante importado das ilhas próximas ou da Europa.
Nos séculos dezasseis e dezassete a oferta de cereal insular, das Canárias e dos Açores,
representou cerca de metade das entradas. Para o caso açoriano ele era quase todo proveniente de
S. Miguel e do Faial, enquanto nas Canárias se evidenciaram as ilhas de Lanzarote,
Fuerteventura e Tenerife. A permanência desta rota de abastecimento de cereais implicou o
alargamento das trocas comerciais entre os três arquipélagos, uma vez que ao comércio do cereal
se associaram outros produtos, como contrapartida favorável às trocas. Aos Açores os
madeirenses tinham para oferecer o vinho, o açúcar, conservas, madeiras, eixos e aduelas de
pipa, reexportação de artefactos e outros produtos de menor importância. Para as Canárias a
oferta alargava-se à fruta verde, liaças de vime, sumagre e panos de estopa, burel ou liteiro.
As ilhas açorianas foram no começo um consumidor preferencial do vinho madeirense e canário.
Tudo isto pela necessidade de encontrar uma contrapartida rentável ao comércio de cereais e pelo
facto de o vinho que produziam ser de fraca qualidade. Pois o afamado vinho do Pico afirmou-se
apenas a partir da segunda metade do século dezassete. Para o ano de 1574 o vinho da Madeira
desembarcado no porto de Ponta Delgada representava 42% das importações vinícolas, sendo o
mais cotado no mercado micaelense. O mesmo sucedia em Angra na segunda metade do século.
No século dezassete o maior incremento da viticultura das ilhas do grupo central e a crescente
melhoria de qualidade contribuíram para a subalternização do produto no sistema de trocas com
a Madeira e as Canárias. Em finais da centúria o produto continuava ainda a ser referenciado nas
entradas da alfandega de Ponta Delgada.
O comércio entre a Madeira e as Canárias era muito anterior ao estabelecimento dos primeiros
contactos com os Açores. O relacionamento iniciara-se em meados do século quinze, activado
pela disponibilidade no arquipélago de escravos, carne, queijo e sebo. Mas a insistência dos
madeirenses nos contactos com as Canárias não terá sido do agrado ao infante D. Fernando,
senhor da ilha, interessado em promover os contactos com os Açores. Apesar disso eles
continuaram e a rota adquiriu um lugar relevante nas relações externas da ilha, valendo-lhe para
isso a disponibilidade de cereal e carne, que eram trocados por artefactos, sumagre e escravos
negros. Esta última e peculiar situação surge na primeira metade do século dezassete, com certa
evidência nos contactos entre a Madeira, Lanzarote e Fuerteventura. Do relacionamento dos dois
arquipélagos com os do Mediterrâneo Atlântico é evidente o empenho dos últimos no tráfico
negreiro, com maior evidência para os madeirenses e canarios. Os madeirenses que aí aparecem
foram favorecidos pelo comprometimento com as viagens de exploração e comércio ao longo da
costa africana e da presença, ainda que temporária, do porto do Funchal no traçado das rotas. Ao
invés, os Açores mantiveram-se por muito tempo como portos receptores das caravelas que
faziam a rota de retorno ao velho continente.
A posição privilegiada da Madeira e Canárias, a insistente procura de mão-de-obra para o
arroteamento das diversas clareiras entretanto abertas, geraram um desvio da rota do comércio
dos escravos, surgindo o Funchal e Las Palmas como dois importantes eixos do tráfico E assim
se mantiveram até à plena afirmação das rotas americanas. Por outro lado o relacionamento das
ilhas africanas com o Mediterrâneo Atlântico foi facilitado pelos benefícios fiscais atribuídos
pela coroa em 1507. E sabemos, por pedido dos moradores de Santiago, que a contrapartida
comercial se baseava no fornecimento de cereal: primeiro da Madeira, depois dos Açores.
Entretanto no que se refere à Madeira a coroa concedeu em 1562 e 1567 facilidades aos
madeirenses para o comércio de escravos de Cabo Verde e Rios de Guiné, como forma de suprir
a crise açucareira, o que deverá ter contribuído para um aumento dos contactos.
A comunidade madeirense residente em Santiago deveria ser numerosa a atestar pelos
testamentos que chegaram à nossa mão. Destes merece referência especial Francisco Dias,
morador na Ribeira Grande que, pelo testamento de 1599, é apresentando como um dos mais
importante mercadores de escravos, empenhados no tráfico com a Madeira e Antilhas. O mesmo
se poderá dizer quanto aos açorianos, embora referenciados em menor escala. A permuta
baseava-se pelo lado africano em escravos, a que se vieram juntar os produtos da terra, como o
algodão, milho, cuscuz, chacinas, courama e sal, recebidos a troco de vinho, cereais e artefactos.

O COMÉRCIO ATLÅNTICO. Tal como o referimos, mas nunca é demais repeti-lo, o


posicionamento periférico do mundo insular condicionou a subjugação do seu comércio aos
interesses hegemónicos do velho continente. Os europeus foram os cabouqueiros, responsáveis
pela transmigração agrícola, mas também os primeiros a usufruir da qualidade dos produtos
lançados à terra e a desfrutar dos elevados réditos que o comércio propiciou. Daí resultou a total
dependência dos espaços insulares ao velho continente, sendo a vivência económica moldada de
acordo com as necessidades, que, por vezes, se apresentavam estranhas. Por isso é evidente a
preferência do velho continente nos contactos com o exterior dos arquipélagos. Isto é a tal
relação umbilical com a velha Europa de que falámos. Só depois surgiram as ilhas vizinhas e os
continentes africano e americano.
Do velho rincão de origem vieram os produtos e instrumentos necessários para a abertura das
arroteias, mas também as directrizes institucionais e comerciais que os materializaram. O
usufruto das possibilidades de um relacionamento com outras áreas continentais, no caso do
Mediterrâneo Atlântico, foi consequência de um aproveitamento vantajoso da posição geográfica
e em alguns casos uma tentativa de fuga à omnipresente rota europeia. Fora disso encontrava-se
a Madeira, a partir de finais do século XV. Por muito tempo este comércio foi apenas uma
miragem. E só se tornou uma realidade quando o vinho começou a ser o preferido das gentes que
embarcaram na aventura indica ou americana. Perante isto o vinho madeirense afirmar-se-á em
pleno a partir da segunda metade do século dezassete.

A EUROPA E AS ILHAS. O comércio insular com a Europa definia-se por uma multiplicidade
de produtos, agentes, rotas e mercados. Neste aspecto a península ibérica apresentar-se-á como o
principal mercado consumidor ou redistribuidor para as principais praças europeias. Não
obstante persistir uma tendência centralizadora nos portos de Lisboa e Sevilha, o certo é que a
sua expressão real, nomeadamente, no caso português foi muito mais ampla, abrangendo os
principais portos de comércio a sul (Lagos e Silves) e a norte do país (Caminha, Viana, Porto e
Vila do Conde). Nos primeiros decénios a presença de mercadores estrangeiros, empenhados no
comércio dos produtos insulares portugueses, estava limitada à cidade de Lisboa, mercê das
dificuldades impostas no início do século XV à intervenção directa nos mercados produtores.
Mas isto não poderia manter-se por muito mais tempo e cedo apareceram os primeiros
estrangeiros avizinhados ou com licença para fazer comércio e fixar residência. Depois abriram-
se-lhes as portas, como forma de promover o comercio excedentário do açúcar. Mesmo assim a
troca esteve, por muito tempo, sujeita a inúmeros impedimentos que impediam a livre circulação
dos agentes e da mercadoria.

O COMÉRCIO COM O REINO. Os contactos entre a Madeira e o reino eram constantes e


faziam-se com maior frequência a partir dos portos de Lisboa, Viana e Caminha. Os portos do
norte mantiveram uma acção muito importante no período de apogeu da safra açucareira, uma
vez que os marinheiros e mercadores daí oriundos controlavam uma parte importante do tráfico
comercial, sendo eles que abasteciam a ilha de carne e panos, levando em troca o açúcar para os
mercados nórdicos. A Madeira tinha para oferecer ao mercador do reino um grupo restrito de
produtos, mas capaz de cativar o seu interesse. No começo foram as madeiras, o sangue de drago
e os excedentes da produção cerealífera, depois o açúcar que fez redobrar a oferta e, finalmente,
o vinho, exportado para Lisboa, muitas vezes, com a finalidade de abastecer as naus das rotas do
Brasil ou outros destinos. A ilha recebia em troca da limitada mas rica oferta um conjunto
variado de produtos, de que se destacam as manufacturas imprescindíveis ao uso e consumo
quotidianos: louça, telha de Setúbal, Lisboa e Porto, panos, azeite e carne do norte. Além disso o
porto do Funchal actuava, muitas vezes, como intermediário entre os portos do reino e as
feitorias africanas, sendo de referir o comércio de peles, escravos e algodão de Cabo Verde.
No início do povoamento da Madeira o produto que de imediato cativou a atenção dos
portugueses foi aquele que deu nome à ilha, isto é as madeiras. Estas eram de alta qualidade
tendo usos múltiplos na ilha e fora dela. Muitas foram exportadas para o reino e também para as
praças africanas (Mogador e Safim) e portos europeus (Ruäo). Tal como nos elucidam os
cronistas estas madeiras revolucionaram o sistema de construção civil e naval no reino. A trama
de relações com o velho continente não se resumia apenas aos portos reinóis, uma vez que as
culturas locais cativaram o interesse dos mercados mediterrânicos e nórdicos: primeiro a urzela e
outras plantas tintureiras como o sangue de drago e o pastel, depois o açúcar e o vinho foram
produtos que estiveram na mira dos mercadores estrangeiros. A par disso o reino não dispunha
de todos os artefactos solicitados pelas gentes insulares, cada vez mais exigentes na sua
qualidade. As riquezas acumuladas com este comércio apelavam para um luxo ostensório no
ornamento da casa, que só poderia ser conseguido nas praças de Ypres, Ruäo e Londres.
A opulência da aristocracia madeirense e açoriana estava bem patente no recurso desnecessário a
artefactos de luxo, testemunhado por Gaspar Frutuoso em finais do século dezasseis. A origem
disso era clara: no Funchal os proventos do açúcar, em Ponta Delgada do pastel. Esta
circunstância condicionou inevitavelmente a presença de mercadores oriundos das praças
europeias. Oferecia-se o açúcar, o pastel e urzela, o algodão e escravos, recebendo-se em troca
panos, por vezes, cereais, peixe seco e salgado. O madeirense, ao inverso do açoriano, nestes
séculos XV e XVI estava orientado para o tradicional mercado Mediterrâneo, tendo como
principal aposta o açúcar. Neste caso surgem três áreas: as praças espanholas de Sevilha,
Valência e Barcelona, as cidades italianas (Génova, Veneza e Livorno) e os portos do
Mediterrâneo Oriental (Chios e Constantinopla). As primeiras foram imprescindíveis para este
comércio, funcionando como praças de redistribuição para o mercado levantino.
O comércio do açúcar surge no mercado madeirense como o principal animador das trocas, no
decurso dos séculos XV e XVI, com o mercado europeu. Durante mais de um século a riqueza
das gentes e a contrapartida para o suprimento de bens alimentares e artefactos. O seu regime de
comércio é definido por Vitorino Magalhães Godinho “entre a liberdade fortemente restringida
pela intervenção quer da coroa quer dos poderosos capitalistas, de um lado, e o monopólio”.
Deste modo o comércio do açúcar só se manteve em regime livre até 1469, altura em que a
quebra do preço condicionou a acção do senhorio, que estipula o exclusivo aos mercadores de
Lisboa. Esta política de controle e monopólio do comercio não contou com o apoio dos
madeirenses que sempre manifestaram a sua opinião contraria. Todavia ela havia de persistir até
1508, altura em que foi revogada toda a legislação comercial, restritiva da livre intervenção de
madeirenses e estrangeiros. Em 1498 no sentido de controlar esse comércio estabeleceu-se como
limite de exportação 120.000 arrobas, divididas pelas principais mercados do Mediterrâneo e
norte da Europa. Pensámos que este estabelecimento das escápulas em 1498 deveria definir com
precisão o mercado consumidor do açúcar madeirense, que se circunscrevia a três áreas distintas:
o reino, a Europa nórdica e mediterrânica. As praças do norte dominavam esse movimento,
recebendo mais de metade do açúcar. Aí evidenciam-se as praças circunscritas à Flandres,
enquanto no Mediterrâneo a posição cimeira é atribuída a Veneza conjuntamente com as praças
levantinas de Chios e Constantinopla.
Se compararmos os valores desta escápula com os dados referentes ao açúcar saído da ilha entre
1490 e 1550 nota-se uma similitude nos mercados. A diferença mais significativa surge com as
cidades italianas, que surge com uma posição dominante neste comércio. Todavia ela poderá
resultar de os italianos dominaram mais de 2/3 do comércio de todo esse açúcar, actuando os
portos e cidades italianos como centros de redistribuição. À parte isso é bastante evidente a
posição hegemónica dos mercadores oriundos das diferentes cidades italianas, neste comércio
com 78% do açúcar movimentado. A partir dos dados compilados na documentação podemos
concluir pela constância dos mercados italiano e flamengo. A isto acresce os portos do reino,
nomeadamente de Lisboa e Viana do Castelo,, que surge em terceiro lugar, com 10%. A partir da
segunda metade do século a concorrência do açúcar americano retirou à Madeira esta situação
preferencial no mercado europeu. Todavia o açúcar, ou seus derivados, como as conservas e
casca, continuaram a activar um activo movimento com estes mercados. Para isso usava-se o
pouco açúcar produzido na ilha ou então o importado do Brasil. Neste momento é pouco o
açúcar exportado, mas abundante os produtos dele derivados. Estamos na época do comércio de
casca e de conservas. Ao açúcar juntaram-se depois as madeiras (nomeadamente de vinhático e
cedro), a urzela, o pastel, o couro e os escravos, que se trocavam por panos, trigo e objectos de
luxo.
O comércio das ilhas com o litoral africano, exceptuando o caso de Cabo Verde e S. Tomé, fazia-
se com maior assiduidade a partir das Canárias do que da Madeira ou dos Açores. Mesmo assim
a Madeira, mercê da posição charneira no traçado das rotas quatrocentistas, teve aí um papel
relevante. Os madeirenses participaram activamente nas viagens de exploração geográfica e
comércio no litoral africano, surgindo o Funchal, nas últimas décadas do século XV, como um
importante entreposto para o comércio de dentes de elefante. Além disso a iniciativa madeirense
bifurcou-se. Dum lado as praças marroquinas a quem a ilha passará a fornecer os homens para a
defesa, os materiais para o construção das fortalezas e os cereais para sustento dos homens aí
aquartelados. Do outro a área dos Rios e Golfo da Guiné, onde se abastecia de escravos, tão
necessários que eram para assegurar a força de trabalho na safra do açúcar. O açoriano ficou
afastado destas áreas pelas dificuldades de acesso e também forma de exploração económica a
que foram sujeitas, que o faziam prescindir dos produtos oferecidos pelo trato da zona. A maior
assiduidade dos contacto com o continente africano fez-se por necessidade de abastecer as praças
do Norte de África e mesmo a área da costa da Guiné de cereal, substituindo a Madeira a partir
de finais do século XV. Mesmo aqui o abastecimento fazia-se, muitas vezes, a partir da Madeira.
Os contactos entre a Madeira e o litoral americano desenvolveram-se, após a quebra da cultura
da cana de açúcar, com o incremento do comércio do vinho madeirense. Ambos os produtos
estavam, de facto, ligados. A pouca oferta de açúcar na Madeira e a incessante procura levaram
os madeirenses a especular com o açúcar brasileiro, fazendo-o passar como da Madeira.
Conhecida a fraude o monarca exarou a sua proibição em 1591, alheando-se das reclamações dos
munícipes. Mais tarde, com o abandono definitivo da cultura da cana de açúcar, não havia
motivo para impedir este comércio. Somente o sistema de comboios marítimos condicionou, por
algum tempo, a presença madeirense.
A criação em 1649 da Companhia Geral do Estado do Brasil, detentora do exclusivo comércio
para esta área, motivou protestos dos funchalenses e angrenses, os principais prejudicados com
isso, o que levou a coroa a atribuir em 1650 ordem especial para o envio de duas embarcações do
Funchal e três dos Açores com capacidade para 300 pipas de produtos da terra que seriam depois
trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Mais tarde ficou estabelecido que os mesmos não
podiam suplantar as 500 caixas de açúcar. O movimento das duas embarcações madeirenses
fazia-se com toda a descrição, conforme recomendava o Conselho da Fazenda, mediante as
licenças e a sua entrega deveria ser feita no sentido de favorecer todos os mercadores da ilha.
Para estes navios havia uma escrituração à parte na alfandega. Mas o açúcar brasileiro tinha
destino diverso. Na Madeira ele era utilizado na indústria de conservas e casquinha, enquanto
nos Açores era reexportado depois pelos mercadores estrangeiros, nomeadamente franceses, para
os portos europeus. Neste comércio assumiu uma posição privilegiada Diogo Fernandes Branco.
Ele foi em 1676 administrador dos direitos de comboio dos navios que iam ao Brasil, mas
também, activo participante nesse negócio. O mesmo havia estabelecido um verdadeiro circuito
de triangulação para os seus negócios: da Madeira levava vinho para Angola que trocava por
escravos negros, que, por sua vez servia de moda de troca para adquirir o açúcar. Com o açúcar
fabricava-se as conservas que o mesmo exportava para os portos da Europa do Norte. Ninguém
como ele se comprometeu de corpo inteiro com este liame de circuitos comerciais do Atlântico
do século XVII. Esta situação das actividades comerciais de Diogo Fernandes Branco não é de
modo algum episódica, no contexto da estrutura comercial madeirense da segunda metade do
século dezassete, pois ela comprova uma das dominantes deste processo: a ilha como
intermediária entre os interesses da burguesia comercial do Novo e Velho Mundo. Um dos
componentes base deste puzzle é constituído pelo porto do Funchal.
Entretanto novos mercados foram surgindo no espaço americano, nomeadamente as colónias
inglesas das Antilhas e da costa do norte, que se afirmaram como potenciais espaços
consumidores do vinho madeirense e açoriano. O vinho, que até então tinha como destino
exclusivo o Brasil, passou também a ser conduzido para os novos mercados, que assumiram um
lugar dominante a partir de finais da centúria. Aos portos de Pernambuco, Rio de Janeiro, Baía
vieram juntar-se os de New England, New York, Pensylvania, Virginia, Maryland, Bermuda,
Barbados, Jamaica, Antigua e Curaçau. No período de 1686 a 1688 das seiscentos e oitenta e oito
pipas entradas em Boston temos duzentos e sessenta e seis da Madeira e quatrocentos e vinte e
uma do Pico. Esta situação espelha uma realidade que marcará o comércio nas centúrias
seguintes: os açorianos abasteciam, preferencialmente, os portos da América do norte, levados
pelo rumo dos baleeiros, enquanto os madeirenses faziam incidir os seus contactos nas Antilhas
inglesas e francesas.
Para a Madeira a correspondência comercial de William Boltom para o período de 1696 a 1714
permite reconstituir parte desse circuito comercial que dominou no século XVIII. Aqui é
evidente a definição de um circuito comercial dominante, delimitado pelos portos ingleses e das
colónias da América Central e do Norte.
A COBIÇA DA RIQUEZA MADEIRENSE. O século quinze marca o início da afirmação do
Atlântico, novo espaço oceânico revelado pelas gentes peninsulares. O mar, que até meados do
século quatorze se mantivera alheio à vida do mundo europeu, atraiu as suas atenções e em
pouco tempo veio substituir o mercado e via mediterrânicos. A abertura, como vimos, foi
titubeante, mas geradora, no início, de inúmeros conflitos: primeiro foi a disputa pela posse das
Canárias, que se alargou, depois, ao próprio domínio do mar oceânico. Portugueses e castelhanos
entraram em aceso confronto, servindo o papado de árbitro nesta partilha. Os franceses, ingleses
e holandeses que, num primeiro momento, foram apenas espectadores atentos, entraram também
na disputa a reivindicar um mare liberum e o usufruto das novas rotas e mercados. Nestas
circunstâncias o Atlântico não foi apenas o mercado e via comercial, por excelência, da Europa,
mas também um dos principais palcos em que se desenrolaram os conflitos que definem as
opções políticas das coroas europeias, expressas por meio da guerra de corso. É esta contenda
político-económica, que o oceano gerou, o tema que prenderá agora a nossa atenção. Aqui
faremos um breve sumário das questões, pondo em evidência as que nos parecem
imprescindíveis para a compreensão do protagonismo dos espaços insulares. Na realidade, como
teremos oportunidade de ver, as ilhas foram os principais pilares da estratégia de domínio do
oceano, e por isso mesmo todas as iniciativas neste âmbito repercutiram-se de modo evidente
nelas.
Quando os portugueses se lançaram, no século XV, à exploração do oceano encontraram, à
partida, um primeiro obstáculo. As Canárias, que tão necessárias se apresentavam para o controlo
exclusivo do oceano, estavam já a ser conquistadas por Jean Betencourt, um estranho navegador,
financiado pelos mercadores de Sevilha. Esta foi a primeira dificuldade, que causou inúmeros
problemas à plena afirmação do mare clausum lusitano. Em face disso, só havia uma
possibilidade: tomar posse de uma das ilhas por conquistar (La Gomera, por exemplo) e avançar
com o povoamento da Madeira, que poderia funcionar como área suplementar no apoio ao
avanço das viagens para o Sul. A esta seguiram-se outras dificuldades de igual importância que
entravaram o progresso das viagens para Sul. A procura de uma rota de regresso da costa
africana além do Bojador, preocupou os marinheiros e entravou a progresso das viagens para Sul.
A volta pelo largo com a passagem pelos Açores foi a soluço mais indicada, mas tardou em ser
descoberta. Em 1434, ultrapassado o Bojador, o principal problema não estava no avanço das
viagens, mas sim na forma de assegurar a exclusividade a partir daí, já que na área aquém deste
limite isso não fora conseguido. Primeiro foi a concessão em 1443 ao infante D. Henrique do
controlo exclusivo das navegações e o direito de fazer guerra a sul do mesmo cabo. Depois a
procura do beneplácito papal, na qualidade de autoridade suprema estabelecida pela "res publica
christiana" para tais situações. As bulas de Eugénio IV (1445), Nicolau V (1450 e 1452)
preludiaram o que veio a ser definido pela célebre bula "Romanus Pontifex" de 8 de Janeiro de
1454 e "inter coetera" de 13 de Março de 1456. Nela se legitimava a posse exclusiva aos
portugueses dos mares além do Bojador pelo que a sua ultrapassagem para nacionais e
estrangeiros só seria possível com a anuência do infante D.Henrique.
A presença de estrangeiros, a partir deste momento, foi considerada um serviço ao referido
infante, como sucedeu com Cadamosto, António da Noli, Usodimare, Valarte e Martim Behaim,
ou uma forma de usurpar o domínio e afronta ao papado. Na última situação surgem os
castelhanos a partir da década de setenta, procurando intervir na costa da Guiné como forma de
represália às pretensões portuguesas pela posse das Canárias. Não obstante as medidas
repressivas definidas em 1474 contra os intrusos no comércio da Guiné a presença castelhana
continuará a ser um problema de difícil soluço, apenas alcançado com cedências mútuas através
do tratado exarado em 1479 em Alcáçovas e depois confirmado a 6 de Março do ano seguinte em
Toledo. A cedência portuguesa estabeleceu a primeira partilha política do oceano, sancionada
pelo papa Sixto IV por bula "Aeterni patris" de 21 de Junho de 1481. A partir de então ficava
legitimada a posse exclusiva para Portugal do mar além do Bojador. A esta partilha do oceano,
de acordo com os paralelos, sucedeu mais tarde outra no sentido dos meridianos, provocada pela
viagem de Colombo. O encontro do navegador em Lisboa com D. Joäo II, no regresso da
primeira viagem, despoletou, de imediato, o litígio diplomático, uma vez que o monarca
português entendia estarem as terras descobertas na sua área de domínio. Mas, apressadamente,
os reis católicos tiraram partido da presença de um castelhano à frente do papado ——
Alexandre VI —— e procuraram legitimar a posse das terras descobertas como pertencendo à
sua fatia do Atlântico, por bula de 4 de Maio de 1493, alterada, depois, por outra de 26 de
Setembro.
O conflito só encontrou soluço com novo tratado, assinado em 7 de Julho de 1494 em
Tordesilhas e ratificado pelo papa Júlio II em 24 de Janeiro de 1505. A partir de então ficou
estabelecida uma nova linha divisória do oceano, a trezentos e setenta léguas de Cabo Verde.
Para os demais povos europeus, habituados desde muito cedo às lides do mar, só lhes restava
uma reduzida franja do Atlântico, a norte, e o Mediterrâneo. Mas tudo isto seria verdade se fosse
atribuída força de lei internacional às bulas papais, o que na realidade não sucedia. O cisma do
Ocidente, por um lado, e a desvinculação de algumas comunidades da alçada papal, por outro,
retiraram aos actos jurídicos a medieval plenitude "potestatis". Deste modo em oposição a tal
doutrina definidora do mare clausum antepöe-se a do mare liberum, que teve em Grócio o
principal teorizador. A última visão da realidade oceânica norteou a intervenção de franceses,
holandeses e ingleses neste espaço.
A guerra de corso teve uma incidência preferencial nos mares circunvizinhos do Estreito de
Gibraltar e ilhas, e levou ao domínio de múltiplos espaços de ambas as margens do Atlântico.
Em especial, podemos definir dois espaços de permanente intervenção destes: os Açores e a
Costa da Guiné e da Malagueta. Os ingleses iniciaram em 1497 as sucessivas incursões no
oceano, ficando célebres as viagens de W.Hawkins (1530), John Hawkins (1562-1568) e Francis
Drake (1578, 1581-1588). Entretanto os franceses fixaram-se na América, primeiro no Brasil
(1530, 1555-1558), depois em San Lorenzo (1541) e Florida (1562-1565). Os huguenotes de La
Rochelle afirmaram-se como o terror dos mares, tendo assaltado em 1566 a cidade do Funchal.
A última forma de combate ao exclusivismo do atlântico peninsular foi a que ganhou maior
adesão dos estados europeus no século XVI. A partir de princípios da centúria o principal perigo
para as caravelas não resultou das condições geo-climáticas, mas sim da presença de intrusos,
sempre disponíveis para assalta-las. Deste modo a navegação foi dificultada e as rotas comerciais
tiveram de ser adequadas a uma nova realidade: surgiu a necessidade de artilha-las e uma
armada para as comboiar até porto seguro. As insistentes reclamações, nomeadamente dos
vizinhos de Santiago, levaram a coroa a estabelecer um conjunto de armadas para protecção e
defesa das áreas e rotas de comércio: costa ocidental do reino, litoral algarvio, dos Açores, da
costa e golfo da Guiné, do Brasil. Eis algumas das preocupações dos peninsulares nos séculos
XVI e XVII.
Cedo os franceses começaram a infestar os mares circum-vizinhos da Madeira (1550, 1566) e
depois seguiram-lhe o encalço os ingleses e holandeses. Os primeiros fizeram incidir
preferencialmente a sua acção nos arquipélagos da Madeira e Açores. A partir da união
peninsular sucederam-se inúmeros assaltos franceses à Madeira, no que tiveram a pronta resposta
de Tristão Vaz da Veiga.
A presença de corsários nos mares insulares deve ser articulada, por um lado, de acordo com a
importância que estas ilhas assumiram na navegação atlântica e, por outro, pelas riquezas que as
mesmas geraram, despertadoras da cobiça destes estranhos. Mas se estas condições definem a
incidência dos assaltos, os conflitos políticos entre as coroas europeias justificam-nos à luz do
direito da época. Deste modo na segunda metade do século XVI o afrontamento entre as coroas
peninsulares definiu a presença dos castelhanos, enquanto os conflitos entre as famílias régias
europeias atribuíam a legitimidade necessária a estas iniciativas, fazendo-as passar de mero
roubo a acção de represália: primeiro foi, desde 1517, o conflito entre Carlos V de Espanha e
Francisco I de França, depois os problemas decorrentes da união ibérica a partir de 1580. Esta
última situação é uma dado mais no afrontamento entre as coroas castelhana e inglesa
despoletado a partir de 1557. O período que decorre nas duas décadas finais do século XVI é
marcado por inúmeros esforços da diplomacia europeia no sentido de conseguir a solução para as
presas do corso. Para isso Portugal e França haviam acordado em 1548 a criação de dois
tribunais de arbitragem, cuja função era anular as autorizações de represália e cartas de corso.
Mas a sua existência não teve reflexos evidentes na acção dos corsários. Note-se que é
precisamente em 1566 que temos notícia do mais importante assalto francês a um espaço
português. Em Outubro de 1566 Bertrand de Montluc ao comando de uma armada composta de
três embarcações perpetrava um dos mais terríveis assaltos à vila Baleira e à cidade do Funchal.
Acontecimento parecido só o dos argelinos em 1616 no Porto Santo e Santa Maria, ou dos
holandeses em S. Tomé.
A mui nobre e rica cidade do Funchal durante quinze dias ficou a mando destes corsários, que
roubaram os produtos agrícolas (vinho e açúcar), profanaram as igrejas (a Sé do Funchal) e
aprisionaram muitos escravos. Parte desta presa foi leiloada no momento da partida com os
residentes, ou então vendida na ilha de La Palma, onde fizeram escala. Deste assalto ficaram
alguns relatos e testemunhos presenciais, mas o mais pungente e pormenorizado foi o de Gaspar
Frutuoso, que no livro das "Saudades da Terra" dedicado à Madeira descreve de modo sucinto os
acontecimentos e condena o descuido das suas gentes. Tal como refere a cidade estava " mui rica
de muitos açucares e vinhos, e os moradores prósperos, com muitas alfaias e ricos enxovais,
muito pacífica e abastada, sem temor nem receio do mal que não cuidavam".
Uma das principais consequências deste assalto foi o maior empenho da coroa e autoridades
locais nos problemas da defesa da ilha e, principalmente, da sua cidade, que por estar cada vez
mais rica e engalanada despertava a cobiça dos corsários. O desleixo na arte de fortificar e
organizar as hostes custou caro aos madeirenses e, por isso, foi geral o desejo de defender a ilha.
Reactivaram-se os planos e recomendações anteriores no sentido de definir uma eficaz defesa da
cidade a qualquer ameaça. O regimento das ordenanças do reino (1549) teve aplicação na ilha a
partir de 1559, enquanto a fortificação teve regimentos (1567 e 1572) e um novo mestre de
obras, Mateus Fernandes.
O corso a partir da década de oitenta tomou outro rumo, sendo as diversas iniciativas uma forma
de represália à união das duas coroas peninsulares. Ele ficou expresso na intervenção de diversas
armadas: Francis Drake (1581-85), Conde de Cumberland (1589), John Hawkins, Martin
Forbisher, Thomas Howard, Richard Greenville e o Conde Essex (1597). Elas não se limitavam
apenas ao assalto às embarcações peninsulares que regressavam à Europa carregadas de ouro,
prata, açúcar e especiarias, pois a sua acção foi também extensiva à terra firme onde intervinham
à procura de um abastecimento de víveres e água ou do volumoso saque, como sucedeu em 1585
em Santiago e em 1587 na ilha das Flores. Perante a incessante investida de corsários no mar e
em terra firme houve necessidade de definir uma estratégia de defesa adequada. No mar optou-se
pelo necessário artilhamento das embarcações comerciais e pela criação de uma armada de
defesa das naus em trânsito. Esta ficou conhecida como a armada das ilhas, fixa nos Açores e
que daí procedia ao comboiamento das naus até porto seguro. Em terra foi o delinear de um
incipiente linha de defesa dos principais portos, ancoradouros e baías, capaz de travar o possível
desembarque destes intrusos.
O sistema de defesa costeiro surge neste contexto com a dupla finalidade: desmobilizar ou barrar
o caminho ao invasor e de refúgio para populações e haveres. Por isso a norma foi a construção
de fortalezas após uma ameaça e nunca de uma acção preventiva, pelo que após qualquer assalto
de grandes proporções sucedia, quase sempre, uma campanha para fortificar os portos e
localidades e organizar as milícias e ordenanças. É disso exemplo o assalto dos huguenotes à
cidade do Funchal em 1566, que provocou de imediato uma reacção em cadeia das autoridades
locais e da coroa na defesa do burgo. Na verdade foi só a partir deste assalto que se pensou em
organizar de forma adequada o sistema defensivo da ilha. Primeiro foi a reorganização das
milícias (1549), vigias (1567) e ordenanças (1570), depois o plano para fortificar da cidade do
Funchal (1572) a cargo de Mateus Fernandes. Isto repetiu-se nas demais ilhas, sem nunca se ter
conseguido definir uma estrutura defensiva eficaz. As ilhas tiveram sempre as portas abertas ao
exterior, sujeitando-se, por isso mesmo, à presença destes intrusos.
A instabilidade provocada pela permanente ameaça dos corsários, a partir do último quartel do
século XV, condicionou o delineamento de um plano de defesa do arquipélago, assente numa
linha de fortificação costeira e de um serviço de vigias e ordenanças. Até ao assalto de 1566
pouca ou nenhuma atenção foi dada a esta questão ficando a ilha a as suas gentes entregues à sua
sorte. Em termos de defesa este assalto teve o mérito de empenhar a coroa e os locais na
definição de um adequado plano de defesa. Desde 1475, com o avolumar das ameaças do corso,
que os madeirenses solicitaram ao senhor da ilha que se empenhasse na defesa da sua ilha com a
construção de uma fortaleza na vila do Funchal. Mas só em 1493 D. Manuel, Duque de Beja e
senhor da ilha, estabeleceu um regimento para que se fizesse uma "çerca e muros" na vila, a
exemplo do que se havia feito em Setúbal. Os madeirenses entenderam esta ordem como uma
opressão o que levou ao adiamento da obra e só em 1513 começou a traçar-se esse plano sob
orientação de João Cáceres, mestre de obras reais na ilha. A primeira fase foi concluída em 1542,
constando de um baluarte e uma cortina de muralha.
O assalto francês de 1566 veio a confirmar a ineficácia destas fortificações e a reivindicar uma
maior atenção por parte das autoridades. Assim realmente aconteceu, pois pelo regimento de
1572 foi estabelecido um plano de defesa a ser executado por Mateus Fernandes, fortificador e
mestre de obras. Daqui resultou o reforço do recinto abaluartado da fortaleza velha, a construção
de outra junto ao pelourinho e um lanço de muralha entre as duas. O plano de defesa do Funchal
completou-se no período da união das duas coroas peninsulares com a construção da Fortaleza de
Santiago (1614-1621) consequente aumento do troço de muralha costeira, e do Castelo de S.
Filipe do Pico (1582-1637).
O espaço insular não poderá considerar-se uma fortaleza inexpugnável, pois a disseminação por
ilhas, servidas de uma extensa orla costeira impossibilitou uma iniciativa concertada de defesa.
Qualquer das soluções que fosse encarada, para além de ser muito onerosa, não satisfazia uma
necessária política de defesa. Perante isto ela era sempre protelada até que surgissem ameaças
capazes de impelir à sua concretização. Na Madeira foi o assalto de 1566. Nos Açores foi temor
de idêntico assalto que levou à sua definição nas ilhas Terceira e Faial. Esta preocupação
defensiva demonstra que o oceano deixou de ser o mare clausum luso-castelhano passando a
mare liberum de todos os europeus, com especial evidência para os holandeses, ingleses e
franceses, que se afirmaram como os principais agentes do novo empório oceânico. No caso
inglês a posição hegemónica foi conquistada, em parte, à custa dos tratados de amizade,
celebrados com Portugal (1654, 1661).
No século dezassete os mecanismos comerciais estavam em mudança, afirmando-se, cada vez
mais, uma tendência para o proteccionismo económico, definida pelas companhias comerciais e
de legislação restritiva: os holandeses criaram em 1629 a companhia das Índias Ocidentais, os
portugueses em 1649 a Companhia Geral do Comércio para o Brasil e os ingleses em 1660 a
Royal Adventuress in to Africa e, depois, em 1672, a Royal Campany of England. A política
monopolista e proteccionismo dos ingleses iniciou-se em 1651 com o Acto de Navegação e teve
continuidade nos actos posteriores de 1661 a 1696. Em França a política do cardeal Richelieu
(1624-1642) havia dado o mote para a nova realidade político comercial. O mar que séculos atrás
fora apenas um privilégio dos peninsulares era agora património dos diversos empórios
marítimos europeus. A anterior divisão política deixou de ser uma realidade e deu lugar à era dos
imperativos económicos.
As mudanças no domínio político e económico operadas ao longo dos séculos dezoito e
dezanove não retiraram às ilhas a função primordial de escala e espaço de disputa do mar
oceano. A frequência de embarcações manteve-se enquanto o corso ficou marcado por uma forte
escalada, entre finais da primeira centúria e princípios da seguinte. Aos tradicionais corsários de
França, Inglaterra, Holanda vieram juntar-se os americanos do norte e sul. Nestas
circunstâncias as ilhas foram de novo confrontadas com uma conjuntura de instabilidade,
idêntica à de um século antes. Ela foi má para o comércio e segurança das populações insulares.
Entre 1763 a 1831 as ilhas da Madeira e Açores foram confrontadas com as ameaças e
intervenção do corso europeu (franceses, ingleses e espanhóis) e americano, salientando-se nos
últimos a represália dos insurgentes argentinos. Ambos os arquipélagos evidenciaram-se como a
encruzilhada de intercepção do fogo resultante da guerra de represália americana e europeia. Por
isso os interesses económicos insulares foram molestados, nos períodos de maior incidência.
O corso europeu incidia preferencialmente sobre as embarcações espanholas e francesas e
motivava uma resposta violenta das partes molestadas, como sucederá com a investida francesa
contra os ingleses em 1793, 1797, 1814. Mas os últimos foram de todos aqueles que actuaram
com maior segurança, pois haviam montado um plano de domínio do Atlântico, servindo-se do
Funchal como principal porto de apoio para as suas incursões. O mar açoriano era o alvo
preferencial dos corsários americanos pelo que a maioria dos seus assaltos têm aí lugar. As
principais vítimas do corso americano foram os portugueses e espanhóis. A presença dos
corsários americanos surge como consequência da Guerra da Independência dos Estados Unidos
da América do Norte (1770-1790) a que se aliaram, a partir de 1816, os insurgentes das colónias
castelhanas. Enquanto na Madeira a actividade do insurgente é mais evidente na década de
oitenta do século XVIII, nos Açores demarca-se no período de 1814 a 1816, ficando célebre a
batalha naval da Horta em 1814. A permanente ameaça de corsários redobrou o empenho nas
obras de defesa, que resultaram várias campanhas, entre finais do século dezoito e princípios do
seguinte. Concluídas as obras de restauro das fortificações, apaziguado o ímpeto dos corsários,
viveu-se, a partir da década de trinta, um período de relativa acalmia, seguido nas décadas de
cinquenta e sessenta com novas campanhas de rectificação dos recintos fortificados, conforme os
princípios orientadores da Engenharia Militar. Isto não tem paralelo nas ilhas de Cabo Verde,
onde as dificuldades económicas com que as populações se deparavam inviabilizaram tais
medidas, não obstante o interesse demonstrado por alguns governadores.
Desde o último quartel do século XVIII, a Engenharia Militar havia adquirido um novo fôlego,
procurando adequar os recintos fortificados aos avanços da poliorcética e pirobalística. Nos
diversos estudos e levantamentos realizados reconheceu-se a urgência da sua rectificação. Em
1798 enunciava-se que as fortificações açorianas eram alheias aos mais elementares princípios da
arte de fortificar, ao mesmo tempo que se tomaram medidas rigorosas quanto ao restauro ou
reconversão, punindo os que actuavam de modo contrário ao estabelecido. Com o alvorecer do
século XIX, as intervenções da Engenharia Militar iam no sentido de as adequar aos princípios
da teoria de fortificação e conjuntura insular. Em 1815, numa memória sobre o porto de Angra,
dizia-se que um plano de defesa deveria ter em conta os seguintes aspectos: conhecimento do
terreno, qualidade e disposição do recinto fortificado, forças, artilharia e munições disponíveis.
E, trinta e nove anos depois, afirmava-se, de modo peremptório, que "não basta ter grandes
baterias e muitas obras de fortificação, é preciso que tudo isto seja disposto e construído segundo
as regras fundamentais da ciência e da arte em harmonia com os meios de agressão", daí a
necessidade da referida visita e de um plano adequado de defesa.
A partir daqui surgiram as campanhas de reparo e rectificação das fortificações da área costeira.
No século XIX o estado daquelas disponíveis para os três arquipélagos era de tal modo
lastimável que muitos tiveram que ser abandonados, pelo estado de ruína em que se encontravam
ou pela inadequação ao fins que estavam vocacionadas. Exemplo disso é a ilha de S. Jorge onde
apenas dois baluartes estavam em estado conveniente. Todavia é necessário dizer que as
campanhas da engenharia militar neste período quase que se resumiu a verificar o facto, sendo
poucas ou nulas as medidas de valorização do parque defensivo costeiro. Na verdade a linha de
defesa disponível assumia pouco utilidade numa época em que toda a acção dos corsários se
desenrolava no mar.
Os CONFLITOS MUNDIAIS E A ILHA

Fome SÉC. xviii E xix

Para um arquipélago como a Madeira, que sempre fez depender a sua situação de mecanismos
externos, alheios ao seu quotidiano e fora do alcance. Ontem como hoje a situação económica da
ilha esteve e continuará a permanecer sob a dependência do mundo continental que nos envolve,
tendo o Atlântico como caminho. Somente num outro período da centúria quatrocentista (entre
1419 e 1470) a Madeira conseguiu assegurar internamente o seu abastecimento: o suficiente para
alimentar os residentes, abastecer as caravelas que por cá passaram e gerar um elevado
e»’cedente capaz de satisfazer as necessidades da cidade de Lisboa, das praças africanas e da
Guiné. Mas a partir deste momento o pão passou a ser insuficiente para o número de bocas a
alimentar. A ilha, de mercado abastecedor, passou a consumidor. Perante esta situação houve
necessidade de cri ar condições a este fornecimento por meio de uma cultura capaz de servir de
contrapartida: primeiro, o açúcar, depois, o vinho. Mas tudo isso só seria possível se o mar
estivesse livre e não houvesse piratas, corsários e guerras a entravar esta via. Por outro lado era
necessário assegurar o mercado para os produtos de troca, o que nem sempre sucedia. Perante
esta situação das ilhas os conflitos locais e mundiais repercutem-se, de modo evidente, nesta
conjuntura, definindo uma situação de crise, secundada, quase sempre pela fome e emigração.
Foi isso que sucedeu nas décadas de quarenta e cinquenta do século dezanove, com a crise do
comércio do vinho, e que se repetiu mais tarde com o deflagrar dos conflitos mundiais (1914-
1919 e 1959-1945). Deste modo, passado um século retornou à ilha o espectro fatídico da fome e
imigração. Mas a situação vivida no (último momento, provocada por factores externos, foi
muito mais difícil para os madeirenses: durou o tempo da guerra e prolongou-se para além desta.
Na década de quarenta a situação económica da ilha não se manifestava favorável. Ela saíra de
uma crise que a envolvera numa série de convulsões sociais que culminaram em 1951 com -A
Revolta da Farinha e depois na impropriamente definida, revolta da Madeira (dela tivemos
ocasião de apresentar a nossa visito que, por certo, não agradou a alguns dos nossos habituais
leitores). Para trás haviam ficado os anos difíceis da década de trinta e a memória das
dificuldades da primeira guerra. Deste modo o deflagrar de novo conflito na Europa, atormentou
os madeirenses, sendo a política de neutralidade saudada por todos. Mesmo assim mantiveram-se
os boatos de uma quebra desta opção e do alinhamento pelo tradicional aliado, a Inglaterra. Tais
boatos sucederam-se ao longo dos cinco anos do conflito, gerando uma situação de expectativa,
só desfeita com o fim da guerra. Aqui a única esperança foi de que o conflito não ultrapassou o
estreito de Gibraltar, deixando aberto o oceano e o continente americano. Foi isso que realmente
valeu ao madeirense: o Atlântico abriu-lhe o caminho de fuga à guerra, à fome e ao sofrimento; a
América (Brasil, E.U.A., Venezuela, Curaçau) reanimam-se para ele como o refugio ou ,melhor,
o E1 Dorado.
Durante o período da guerra a América, que dois séculos atrás se afirmara como o preferencial
consumidor do vinho, será o ,único mercado a comprar os nossos produtos (vinho, vimes e
bordados) e a abrir as suas portas aos nossos emigrantes. Entretanto das províncias africanas
chegava o milho, o alimento dos madeirenses. Na primeira metade da presente centúria a
economia madeirense definia-se por uma multiplicidade de produtos que garantiam as
exportações: ia longe a época dos produtos dominantes (os ciclos para alguns aventureiros de
História). 0 vinho, o bordado, os vimes (e os artefactos dele derivados) mantinham a animação
comercial com o exterior, enquanto o turismo completava a realidade ao nível interno. Toda esta
animação não derivava apenas da disponibilidade de serviços e produtos mas acima de tudo da
função exercida pelo porto do Funchal como importante escala oceânica: ai aportavam os
vapores da carreira do Cabo, Brasil, Colónias Portuguesas e E.U.A. Em todos os comentários,
feitos nos periódicos da época, sobre a situação económica do arquipélago estava subjacente esta
realidade. Dois desses veredictos, lavrados por letra anónima no D.N. são disso prova. 0 primeiro
foi lavrado a 28 de Fevereiro, nos inícios da campanha “produzir e poupar”, as palavras,
testemunham com rigor a real idade: “A Madeira viveu sempre na estreita dependência dos
mercados externos e bastaram já três anos e meio de guerra para deixarem na sua vida e na sua
fisionomia cicatrizes fundas e perduráveis.
Foram o comércio, a navegação, o turismo, os grandes propulsores do desenvolvimento insular.”
0 segundo surge no ano imediato a 2¢) de Agosto, alguns dias após a passagem do Cardeal
Cerejeira pela ilha, aí o retrato é claro: “A guerra veio ferir profundamente toda a economia local
precisamente pela paralisação do turismo. Fecharam-se os hotéis, faltou o trabalho a multas
classes, deixou de entrar na ilha um caudal avultado e constante de TURISTAS. Devido a esta
posição charneira da ilha o comércio externo com o continente americano prosperou. Deste
modo, quer o bordado, quer a obra de vimes continuaram a ser comerciados nos; anos de guerra:
perdeu-se o mercado britânico e alemão mas conquistou-se o americano. 0 principal atingido
com a situação foi o turismo: os cruzeiros deixaram de sulcar o oceano e passaram a estar ao
serviço da guerra. A par disso as companhias de turismo(Blue Star Lines, Royal Mail, Union
Castle) perderam os seus navios nas batalhas navais e por isso mesmo o turismo cessou, mesmo
para além da guerra, até que se recuperasse a fruta de cruzeiros ou surgisse novos meios de
transporte, como o hidroavião(1949)s ou então a tão proclamada construção de um aeródromo. A
15 de Abril de 1941 o articulista do Eco do Funchal resumia de forma lapidar a situação: “A
ausência de navegação que demandava o nosso porto constitui evidentemente o motivo
primordial de crise em que nos debatemos. 0 Turismo extinguiu-se automaticamente lançando
para a inacção milhares de braços que dele dependiam”.
Os cerca de 150.000 turistas que visitavam a ilha anualmente deixavam receitas no valor de 8 a
9.000 contos: eles deixaram de aparecer, lançando para o desemprego centenas de trabalhadores
e privando a ilha de uma importante fonte de receita. Consequência disso foi o encerramento de
todos os hotéis que só reabriram após a guerra. Um dos primeiros a fazê-lo foi o Reid’s em 8 de
Dezembro de 1949. Os primeiros sinais favoráveis para o turismo madeirense começaram a
surgir na passagem do fim-de-ano de 1945 com o aparecimento dos primeiros forasteiros vindos
do continente. Depois a 4 de Novembro de 1946 o vapor sueco Saga e em Setembro de 1948
anunciava-se que a agência B1andy se preparava para reatar as carreiras com Londres, trazendo à
ilha inúmeros turistas no navio Vénus: a 23 de Dezembro chegaram os primeiros 140 turistas,
que se juntaram e outros 600 vindos do continente, numa organização da Casa da Madeira em
Lisboa. 0 registo de navios de turismo durante o período em questão atesta esta real idade: em
19.~9 receberam-se os últimos 44 cruzeiros, que só regressaram em número de sete em 1946,
aumentando para o dobro nos dois anos imediatos, para atingir o número de 24 em 1949.
Todavia deverá referir-se que eles eram maioritariamente de escala com destino a outras
paragens. Note-se, ainda, que nos anos de guerra o grupo de passageiros em trânsito no porto do
Funchal é reduzido, sendo na quase totalidade portugueses. Os ingleses e alemães ausentaram-se
por algum tempo: na década de trinta os primeiros representavam 54% e os segundos 17%,
passando, na década seguinte, apenas a estar representados os ingleses, como é óbvio, com ~2%.
~ de salientar também que nos anos da guerra o movimento representou apenas 12% do total da
década em questão.
As festas comemorativas da passagem do ano, conheci das como as festas da cidade, tinham já
tradição na ilha e eram motivo de atracção para visitantes nacionais e estrangeiros. A sua
organização corria a cargo dos comerciantes, do município, sendo coordenadas pela Delegação
de Turismo. Veio a guerra desapareceram os turistas e o fogo deixou de abrilhantar as noites do
31 de Dezembro. Aliás na ilha praticamente todos os momentos festivos perderam o seu
colorido: acabou-se o fim-de-ano, o Carnaval, a festa das vindimas (...); o madeirense não era
mais o mesmo, o Machete, as castanholas emudeceram. Com o fim da guerra regressou a alegria
esfuziante, as festividades, com particular destaque para o fim do ano: pelo quinze de Agosto
voltou-se a subir ao Monte e pelo trinta e um de Dezembro o fogo regressou à baia do Funchal.
Neste primeiro fim-de-ano após a guerra a azáfama e a expectativa eram grandes, mas pouco o
dinheiro para a queima do fogo e diversões na feira popular da Quinta Vigia. Deste modo o
editorial do “Diário de Noticias” apelava em 30 de Dezembro as participação das populações:“0
fim-do-ano da Madeira é um acontecimento de que todos os madeirenses se orgulham. Justo é
pois que no momento de que se procura revi vè-lo, todos lhe dE°em um pouco do seu interesse e
do seu entusiasmo para que volte a ser, simultaneamente, expressão de beleza inolvidável e
motivo, sem par, de reclame e propaganda da nossa linda terra”.
As dificuldades porque passava a Madeira não se resumiam apenas à ausência dos turistas para
abrilhantar o fim-de-ano. Esta derivava fundamentalmente da quase inexistência da navegação
no porto do Funchal, que se repercutia no abastecimento da Madeira em alimentos (cereais) e nas
exportações disponíveis: a situação repercutiu-se no número de navios de cruzeiro mas também
os de carga. Os primeiros desapareceram e os segundo entraram em curva ascendente: dos 680
navios de carga com passageiros e 491 de carga, que escalaram o Porto do Funchal em 1938,
passou-se, respectivamente, para 87 e 90 em 1942. 0 movimento só se restabeleceu a partir de
1946, mas sem atingir os valores de antes da guerra: a guerra levou à destruição de alguns destes
navios e tardou algum tempo a reposição da frota mercante. A par disso a tonelagem bruta dos
navios evidencia uma forte quebra. Assim de 1.810.655 toneladas, dos navios de carga, de 19.58
passa-se para apenas 172.872 em 1943. Este decréscimo acentuado repercutia-se nas importações
e exportações da ilha. Logo no Verão de 1940 a situação começou a agudizar-se. sendo fatal o
prognóstico ditado pelo D.N. “A Madeira sofre dura e intensamente os efeitos da guerra, as suas
repercussões e consequências pode dizer-se, com absoluta verdade, em todos os ramos da sua
economia. Desapareceram, em grande parte, os nossos mercados consumidores, baixaram as
exportações, quasi que parai i sou a navegação estrangeira e, desde a declaração da guerra até
hoje o turismo dei;.’ou de ser aquele que derrama por rodas as actividades e que era um dos
grandes pulmões da vida regional “. Perante isto o comércio do bordado, vinho e vimes entrou
em crise. Apenas as exportações do bordado conseguiram manter-se em plena actividade, para
gáudio das cerca de 130. 000 bordadeiras (entre 1942-1946), mercê da aposta preferencial do
mercado dos Estados Unidos, que recebiam então 72% deste comércio, os demais produtos
entravam em grande agonia. Aliás a tendência do bordado foi para subida nos anos de guerra.
Pior que a ausência de exportação para os produtos da terra foi a falta de entrada dos cereais que
serviram para alimentar os madeirenses.
As dificuldades sentidas pelos madeirenses não derivaram apenas da ausência dos produtos que
faziam o seu sustento. Assim , entre Setembro de 1939 e igual mês de 1941 os preços subiram
70%. Se compararmos os valores de 1914 com os de 1946 o aumento é de 250%. Em Dezembro
de 1945 as queixas eram grandes contra o preço elevado da fruta e legumes, necessários à
confecção da mesa farta de Natal, mas em Setembro de 1946, passadas já as amarguras da
guerra, a situação evoluía favoravelmente, repercutindo-se na baixa do preço da semilha, peixe e
pão. 0 papel, com que se razia os jornais, que todos os dias davam as noticias da guerra, foi um
dos mais atingidos por esta conjuntura altista, pois o seu valor aumentou de 500%. Deste modo
se torna compreensível, quando folheamos os periódicos da época, como o Diário de Noticias, a
magra “ração” de papel distribuída quotidianamente aos assíduos leitores: uma folha tablóide não
bastava para expressar os horrores da guerra, mas era o que a situação permitia. Também os
suplementos de domingo perderam o colorido das fotografias que enchiam todo o espaço da
primeira página, as palavras eram de tal modo expressivas da realidade que tornavam
desnecessário o dispêndio de tinta.
A situação a que a ilha ficou sujeita, após o deflagrar da guerra, obrigava a tomada de medidas
rápidas e eficazes de modo a não repetir-se o sucedido entre 1914-1919. Deste modo lodo o dia
16 de Novembro, 15 dias após o inicio do conflito, o Governador Civil do Distrito determinou
algumas medidas de controlo dos preços e intensificação do cultivo da terra, para, quinze dias
mais tarde, estabelecer comissões de socorro capaz de assegurar trabalho aos desempregados.
Tais medidas foram e aplicadas em nota oficiosa do seguinte modo: “Parece que se aproximam
para o Mundo horas graves. A Madeira há-de sentir e sofrer os seus reflexos; mais não lhe faltará
nem valor nem espírito de sacrifício para vencem 1 os”. Estas medidas foram secundadas no
Verão do ano imediato com o Decreto-Lei nº. 30 605. Deste plano fazia parte um projecto
hidroeléctrico e a intensificação dos projectos de obras públicas. No caso da Madeira o plano de
aproveitamento hidroeléctrico foi aprovado em 21 de Outubro de 194.3 por meio da criação da
Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidroeléctricos da Madeira.
No comentário lavrado no D.N. de 21 de Junho alguém lançava em pinceladas breves a situação
trágica com que se debatia a economia madeirense, a ilha estava moribunda: “ A Madeira sofre
dura e intensamente os efeitos da guerra, as suas repercussões e consequências, pode dizer-se,
com absoluta verdade, em todos os ramos de sua economia. Desapareceram, em grande parte, os
nossos mercados consumidores, baixaram as exportações, quási que paralisou a navegação
estrangeira e, desde a declaração da guerra até hoje, o turismo deixou de ser aquele elemento de
beneficiação e de riqueza que se derramou por rodas as actividades e que era um dos grandes
fulcros da vida regional” Sempre e sempre as mesmas lamentações: turistas que não chegam; os
navios que tardaram em aparecer na linha do horizonte; apenas as batidas do telégrafo da
Marconi a atormentar-nos com as noticias da guerra.
Dentro do plano de obras públicas foi relevante a abertura de novas estradas que criaram e
viabilizaram as comunicações terrestres dentro da ilha: traçaram-se estradas por toda a ilha que
estabeleciam a ligação com o Funchal. Mas a disponibilidade de uma importante rede viária
esbarrava com a falta de combustíveis, de componentes e mesmo de automóveis. Por isso o
Butio, o Gavião e demais vapores costeiros continuaram a ser a única esperança para muitos
madeirenses. A sua chegada a qual quer porto costeiro era sempre saudada com um multidão de
famintos. Deste modo só a partir dai:: en’k~{o foi possível avançar a política de promoção da
agricultura madeirense. As moitas terras abandonadas só se podia cultivar se até ai se fizesse
chegar água. Note-se que a promoção da agricultura foi uma das apostas das entidades locais e
nacionais para suprir as carências de mantimentos. Já em Dezembro de 1941, nas “vésperas” das
sementeiras, a Junta Geral lançara uma campanha deste tipo. Aos agricultores seriam atribuídos
prémios de acordo com o número de hectares de terra cultivados de cereal. Esta campanha
atingiu em Novembro do ano imediato 144 proprietários, que semearam 713.660 m2. A 22 de
Dezembro de 1941 um editorial do Diário de Noticias exortava todos os madeirenses ao cultivo
das terras “Os agricultores devem lançar o seu braço à terra, fecundando-a até nas suas terras
mais insignificantes (...). Produzir, produzir muito, produzir o melhor”. Entretanto em Janeiro de
1944 o governo central lançava uma nova campanha sob o lema: “Poupar sempre, produzir o
máximo”. Para isso distribuía sementes adequadas e prémios pecuniários.
Em 1952, passados alguns anos sobre o fim da guerra, Ramon H. Correia Rodrigues continuava
apensar que a solução para a crise económica com que se debatia a Madeira estava “no
aproveitamento máximo dos recursos da terra, no desenvolvimento daquelas aptidões e na defesa
dos produtos regionais”. Mais do que promover o bordado, os vimes, interessava garantir na ilha
a subsistência: coisa difícil para uma ilha acidentada e onde a faina agrícola era árdua. Por outro
lado o arquipélago defrontava-se com o incremento do movimento demográfico comprovado no
senso de 1940: houve um aumento de 1~’”o/.. Perante isto apenas a emigração continuava, ainda,
a ser a solução possível.
O DEVE E O HAVER DA RIQUEZA DA ILHA. Uma das questões mais usuais do debate
político entre as ilhas e o rectângulo continental prende-se com o pretenso despesismo das ilhas,
sustentado ao que dizem pelas receitas do continente português. Não nos queremos intrometer no
debate, porque escasseia dados que o esclareça, mas podemos remeter a questão para o passado
histórico e aferir ao longo dos últimos cinco séculos como se comportou essa relação financeira.
É o deve e haver das contas entre a Madeira e o reino que nos evidenciam que a relação do
passado foi pautada por uma forte participação financeira da ilha nas finanças do reino. Foram os
nossos av6s financiaram as exorbitâncias da Coroa, as viagens a Índia e as elevadas despesas de
manutenção e defesa das praças africanas. Hoje somos n6s que recorremos ao velho continente a
reivindicar a cobrança desses “empréstimos”, mas no passado era a coroa que recorria as receitas
madeirenses para colmatar o incessante deficit das finanças publicas.
O primeiro e mais rudimentar orçamento que se conhece data de 1526 e foi recentemente
estudado por J. Cordeiro Pereira; neste orçamento as receitas fiscais orçaram em 166.347.611
reais, sendo 12 000.000 (=7,2%) referentes apenas a Madeira, que conjuntamente com as demais
possessões fora da Europa totalizavam 37.630.000 (=23%). E de salientar que a cidade de Lisboa
que apenas arrecadava 5% dessas receitas, absorvia 17% das despesas, o que implicava esse
financiamento externo a este meio com o recurso aos reditos arrecadados pela Coroa,
nomeadamente na Madeira, Açores e Costa da Guine. Por norma as finanças do reino foram
demarcadas por um permanente deficit dai que a coroa tivesse necessidade de se socorrer a
diversas meios para saldar essa diferença. Desde o século XIV que a forma mais usual de o
solucionar era o recurso a pedidos e empréstimos; era com essas formas de financiamento que a
coroa cobria esse deficit e cobria as despesas bélicas, casamento dos príncipes.
Ficou celebre o empréstimo de sessenta milhões lançado em 1478 para cobrir as despesas da
guerra com Castela; desses um milhão e duzentos mil reais foram lançados sobre os madeirenses,
isto e 2% desse valor (valor altamente significativo se tivermos em conta a capitação media),mas
os madeirenses mostraram-se renitentes ao pagamento desse imposto, argumentando a difícil
situação da ilha em termos do abastecimento de cereais e o facto de terem já feito um
empréstimo a coroa de 400 arrobas. O desfecho final desta questão saldou-se numa redução do
referido empréstimo para metade. Desta forma os madeirenses manifestavam o seu repudio as
exorbitantes despesas do reino e faziam valer as franquias que corporizaram o inicial processo de
ocupação. Nessa época os principais sorvedouros de dinheiro eram a Casa Real, a carreira da
Índia e as praças marroquinas. Apenas no período de 1445 a 1481 os gastos da coroa em dotes e
casamentos suplantaram as 812.500 dobras, enquanto que nas guerras com Castela se
despenderam 336.000 e na defesa das praças marroquinas 378.000 dobras; entretanto no período
de 1522 a 1551, as despesas com a perda das naus da carreira da Índia, por naufrágio ou corso,
atingiram 352.150 dobras.
A Madeira foi uma importante fonte de receita para travar esse endividamento e manter a
opulência da casa senhorial e real. Primeiro foi o infante D. Henrique em que nas rendas da sua
casa contavam-se 1.500.000 reais da Madeira. Aliás o próprio D. Manuel entendeu perfeitamente
este papel da Madeira e em 1497 ao fazer a ilha realenga justifica que esta “é uma das principais
e proveitosas coisas que noz, e real coroa de nosso reinos temos para ajudar, e suportamento de
estado real, e encargos de nossos reinos”. Na primeira metade do século XVII, se compararmos a
despesa e receita dos arquipélagos da Madeira e Açores chegaremos a conclusão de que os
nossos vizinhos açorianos eram muito mais gastadores do que n6s; assim de uma receita de
40.000$000 reais eles despenderam 18.180S476 em ordenados, enquanto na Madeira para uma
receita de 21.400$000 reais gastou-se apenas 8.670$376 reais em ordenados, tenças e despesas
ordinárias; isto e, na Madeira sobrou 41% do total das receitas arrecadadas que a Coroa utilizou
nos seus gastos no reino e col6nias.
Ate a década de trinta do século XVI os reditos fiscais resultantes da produção e comercio do
açúcar asseguravam parte importante dessas fontes de financiamento do reino e projectos
expansionistas; esse rendimento entre 1497 e 1506 oscilou entre as 18.507 arrobas e 31.876
arrobas. Deste açúcar depois de retirada a redizima, isto e, a decima parte que era propriedade do
capitão do donatário, era utilizado pela coroa de formas diversas, como meio de pagamentos dos
salários, esmolas aos conventos (Santa Maria de Guadalupe, Jesus de Aveiro, Conceição de
Braga) e miseric6rdias (Funchal, Lisboa, Ponta Delgada), benesses a príncipes e infantes da Casa
Real e despesa aduaneira desta ilha, enquanto a parte sobrante era vendida, directamente em
Flandres pelos feitores do rei, ou por mercadores, por vezes, a troco de pimenta. A par disso
surgiam, ainda, as despesas eventuais como a construção da Se e alfândega do Funchal, que
receberam, respectivamente, 1.000 e 3.000 arrobas de açúcar. Neste grupo, mas com um carácter
quase permanente, poder-se-á incluir o pagamento dos inúmeros pedidos socorro e
abastecimento das praças marroquinas e o provimento das armadas da Índia, por norma, em
vinho. Sobre as assíduas despesas com o socorro as praças africanas podemos citar, a titulo de
exemplo, o concedido entre 1508 2 1514 a Safim; nesse período gastaram-se mil arrobas de
açúcar e 83.815 reais, enquanto em 1531 o provimento de vinhos as armadas da Índia orçou em
124.490 reais. Em 1529 com o Tratado de Saragoça foi encontrada uma solução provisória e que
a curto prazo parece agradar a ambas as partes. D. João III viu-se forçado a pagar 350.000
ducados para assegurar a posse das Molucas que afinal se encontravam dentro da área de
influência de Portugal.
Mais uma vez é possível assinalar uma ligação à Madeira, pois terá sido, segundo alguns, o
madeirense António de Abreu o seu primeiro explorador. A dúvida todavia subiste em face de
vários homónimos contemporâneos. E deste modo a opinião mais abalizada anota que esse
António de Abreu que abordou as Molucas e terá estado na Austrália não é o madeirense, filho
de João Fernandes do Arco, mas sim o do fidalgo Garcia de Abreu, de Avis. Por outro lado os
madeirenses contribuíram com avultada quantia de empréstimo para o pagamento do referido
contrato. Manuel de Noronha ficou com o encargo de arrecadar a contribuição madeirense. João
Rodrigues Castelhano é referenciado também como recebedor do referido empréstimo, tendo
desembolsado da sua fazenda 300.000 réis. A este juntam-se Fernão Teixeira com 150.000 réis e
Gonçalo Fernandez5 com 200.000 réis. O seu pagamento fez-se nos anos de 1530-31 à custa dos
dinheiros resultantes dos direitos da coroa sobre o açúcar. Pelos dados fiscais de 1531 pode-se ter
ideia da evolução da receita e despesa da ilha; as rendas do açúcar renderam 6.990.573 reais de
que se gastaram 10% dos vencimentos do clero da capitania do Funchal e 7% no pagamento do
empréstimo de João Rodrigues Castelhano a Coroa para pagar o contrato das Molucas; mais de
cinquenta por cento dessas receitas iam directamente para o reino a engrossar os cofres da
Fazenda Real. A partir desta informação, ainda que avulsa, conclui-se que os madeirenses foram
activos protagonistas da expansão lusíada dos séculos XV e XVI emprestando a sua própria vida
e reditos, arrecadados com a safra do açúcar, no financiamento desse projecto e das exorbitâncias
e caprichos quotidianos da Casa Real. Esta evidência torna-se clara também para os estrangeiros.
Deste modo em 1768 James Cook refere que a coroa arrecada na ilha 20.000 libras por ano.
Outro súbdito inglês em 1827 apontava o destino dessa receita: “o rei pagava todas as despesas
das legações no estrangeiro [isto antes de 1820] com o excedente dos seus rendimentos da
Madeira. Todos os anos era transferida para Londres com esse fim uma quantia de 50 a 80.000
Libras.”
O século XVIII demonstrava de forma evidente esta assimetria no gerar e aplicar da riqueza da
ilha. OS governadores, maioritariamente do reino, são testemunhos disso e não se cansam de o
relembrar nas suas missivas oficiais. As dificuldades da ilha assim o reclamavam. Foi isso o que
sucedeu com João Gonçalves da Câmara ao constatar que a coroa tem os rendimentos “mais
pingues, que talvez hajam em dezoito léguas de terreno de qualquer outro domínio português”.
Mas nada disto transparecia na ilha, a realidade era diferente. O estado de prostração e abandono
em que estava era uma evidência. Os imóveis públicos eram o espelho desta realidade. A casa da
câmara, estavam em ruína e a vereação endividada e sem meios para acudir.
O período que decorre a partir do último quartel do século XIX é marcado pelo revigoramento
dos ideais autonomistas em que os seus arautos batem sempre na mesma tecla. As receitas da
região são sorvidas pelo poder central, sem qualquer benefício para os locais. Em 1883 o
deputado madeirense Manuel Vieira enfrenta o açoriano Hintze Ribeiro, ministro das Obras
Públicas. A receita líquida do distrito dos últimos dez anos é computada em 1.172.000$000 réis
que são canalizados para obras no continente. Em plena euforia do movimento autonomista na
década de vinte o grande combate é de novo a drenagem do ouro e riqueza madeirense para
Lisboa. Em 1935 Salazar, colocado perante a realidade do desagravo dos madeirenses ao
continente, afirma que é falsa a ideia que se criou na ilha do abandono pelo poder central. Os
dados da receita e despesa do estado para o período que decorre de 1874 a 1921 reportam a
mesma realidade, uma vez que a despesa quedava-se quase sempre por metade da receita,
atingindo-se em princípios do nosso século um quinto. Assim no ano económico de 19123-14 a
receita foi de 1125721$08, enquanto a despesa foi de 258558$51.
As evidências estão aí e revelam que é chegado o momento de a Madeira cobrar os juros dessa
contribuição, fazendo com que a marcha dos meios financeiros se inverta. A sua concretização
não é uma esmola, tão pouco um ónus ao erário nacional, mas tão só o resultado desse equilíbrio
harmonioso entre o deve e o haver que faz esbater as assimetrias que a conjuntura económica,
por vezes nos coloca.

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