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Sumário

Apresentação. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . • . . . . . . . . . . . 13
WILHELM H OFMEISTER

Prefácio à segunda edição .................. .. ..... ....... 15


LÚCIA AVELAR E AN T ÓN IO O CTÁV IO CI N TRA

Parte 1 Fundamentos da política e da sociedade brasileiras


1 Fundamentos da polftica e da sociedade brasileiras • .. . •.. 19
.JOSé MURILO DE CARVALHO

1. Os fundamentos, 1500-1930
2. Um novo Brasil, 193()..2000
3. O grande desafio: reduzir a desigualdade

Parte 2 Instituições e Sistema Politico: os poderes e suas inter-relações


1 Presidencialismo e parlamentarismo:
slo Importantes as instituiç0es7 . • . • • . . . • . . . • . . . . . . . 35
ANTONIO OC T ÁV IO C I NTRA

1. A importincia d as instituições
2. Presidencialismo e parLam entarismo
3. Governo de Assembh~ia: um perigo do parlamentari,mo
com sistema partidário fragmentado
4. O sistema semipresidencial
5. Parlamentarismo ou presidencialismo?

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o 2 O Sistema da Governo no Brasil • . . • . • • . . • . . • • . . . • • . . 59
·~

i ANTO N IO OCTÁVIO CINTRA

1. O contexto da opção prHidenciaiJsta


2. Parlamentarismo: tentativas de implanté-lo
3. Resistências
4. Com que ficamos: o presidencialismo brasileiro
S. Como funciona o presidencialismo brasileiro
6. A vfsAo de um ex·presldente da República
7. O presidencialismo estadual e municipal

3 Judlcl,rlo: entre a Justiça a a Polftlca •••... • , •. ••.••.. 81


ROGéR I O BASTOS ARANTES

1. Judlclirlo moderno: órgio de justiça ou poder poiltico7


2. A expanslo do Judlc16rio no s6culo XX: Justiça comum e papel politlco
3. Ativismo judicial e caminhos da reforma do Judiciilrio

4 Administração pOblica e burocracia •••••••••.••••••• 117


ANTONIO AUGUS T O PEREIRA PRA TES

1. Administrat;io pública e burocracia


2. O Estado e a sociedade civil: o público e o privado
3. Características da burocracia racional.legal
e sua emergência histórica na administração pública
4. A supremacia da meritocracia sobre o clientelismo:
o novo dilema do E$tado racional
5. Serviço público, ética e democraçia
6. A diversidade social brasileira e a democracia

5 O Poder Executivo. centro de gravidade


do sistema polftico brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131
OC T AVIO AMORIM N E TO

1. A formaçlo do governo
2. As prerrogativas legislativas do chefe do Poder Executivo
3. Conclusio

Material com direitos autorais


6 A ~mara dos Deputados na Nova República:
a visao da Ciência Polftica . . . . . .••••••••••.••••••• 143
ANTON I O OCTÁVIO CIN T RA E
MARCELO BARROSO L ACOMBE
1. A organização da Cimara dos Deputados
2. Composição da •classe polltica'"
3. Estrutura da Casa
4. A tramitaçio das proposições
5. A estrutura e o funcionamento da Casa, e seu papel
no sistema de governo, vistos pela Ciência Política
6. Os partidos políticos na Câmara
7. Outras lnterpretaç6es
8. AI. comis.s6es
9. Questões remanescentes

7 Agências reguladoras no Brasil . • . • • . . • . • ••. 163


EDSON NUNES . L EAN D RO MOLHA NO R I BE I RO
E VITOR PEIXOTO

1. Reforma do Estado e regulaçio


2. lndefiniçõe.s sobre o modelo emergente
3. Agências reguladoras como autarquias especiais
4. Difusão do modelo das aginclas reguladoras
5. Ouest6es em aberto: lndependincla. controle e modelo regulatório
6. Conclusão

Parte 3 Federalismo: as relações intergovernamentais


1 Federalismo . • . . • • . • . • . . • . • . • . • . • . • . • • • . • • • . • . 211
VALEAIANO COSTA

1. O que • federalismo
2. História e desenvolvimento do federalismo no Brasil
3. A$ bases constitucionais do federalismo no Brasil
4. ~ bases polfticas do federalismo no Brasil
5. As relações intergovemamentais
6. A Lei de Responsabilidade Fiscal
7. Problemas atuais do federalismo brasileiro

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2 Federaçao a relaçoas lntergovemamentals o o o o o o o o o o o o o 225
FÁT I MA ANASTASIA

1. Democracia, condlç6es e lnttitulçhs


2.. Aspectos procecUmentala
3. Aspectos substantivos
4. Instituições subnacionais e demoçraçia

3 O munlclplo na polftlca brasileira:


revlsttando Coronell.smo. enxada e voto. o o o o o o o o o o 243
LU IS A U RELIANO GAMA DE ANDRADE

1. O município no Brasil COlônia


2. O poder loeal na monarquia
3. O poder local na República
4. O poder local no autoritarismo
5. Da Constituição de 1988 aos nossos diat:
6. Conclusio

Parte 4 A relação Estado/Sociedade, a participação política e os atores


1 Particlpaçao polftlca o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o 261
LÚC IA AVE L AR

1. A emerg,ncia da participação política


2. O que ' participação potitica?
3. Mobilização e organização
4. O que leva os indivfduos a participar da politica7
5. As a9C)es afirmativas e a polftice de c:otu
6. Ampliando 1 portlclpoçio
7. Participação • d«nocracla

2 As elites polftlcaso o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o o . 261


OTÁV I O SOARES DULCI
1. A problem, tica das elites
2. A seleção social: a dinlimica das elites no Brasil
3. O aprendizado da polftica
4. A imagem do. poUticcn

Material com direitos autorais


3 O sistema eleitoral brasileiro ••. .•• . . • . . •. . • • . . •• .• 293
J AIRO NICOLAU

1. O sistema proporcional
2. O sistema majoridlrio
3. Os caminhos da reforma eleitoral

4 Os partidos polfticos •••••••.•.•.•.•.•.•••.•••.•• 303


DAV I D F L EISCHER

1. Primórdios
2. Redemocratização e pluripartidarismo, 1945-1965
3. O bipartidarismo, 1~ 1979

4. O novo pluripartidarismo, 1980-1997


6. Pe-r5odo mais reçente, 1997-2006
6. Conclusão: para onde vai o sistema partidlirto brasileiro?

5 Eleitorado brasileiro: composiçêo e grau de participação ••• 349


MONICA MATA MACHADO DE CASTRO

1. A composlçlo do eleitorado
2. Cidadania eleitoral e partlclpaçlo
3. O diagnóstico do eleitor: baixe sofisticação poUtica
4. A dlreçio do voto popular

6 Os sindicatos: representaçêo de interesses


e açlo polftica de capital e trabalho no Brasil.••••••.••. 369
AOALSERTO MORE IR A CARDOSO

1. Vargas e o corporativismo
2. Uberalizaçlo democr,tica e participaç:.lo polftica
3. Nova ditadura
4. Novo aindtcaliamo: renovaçio e peraiatAncia
5. Uma palavra sobre o dlilogo social

7 Os militaras a a polftica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 376


CLOVIS BAIGAGÁO E OOMICIO PROENÇA JR.

1. A percepçlo dos militares no Brasil


2. Seis perspectivas da açio militar na polltica brasileira

Material com direitos autorais


3. Uma perspe,ctiva que vem de longe:
periodizaç-ão histórico-política das Forças Armadas
4. Atualidade e rumos
5 . A lntervenfãO militar na garantia da lei e da ordem pública
6 . Panorama das forças singulares
7. Ministério e política de defesa

B A Igreja CatOiica e o Estado Brasileiro. . . . . . . 387


PAULO FERNANDO CARNEIRO DE ANDRADE

1. O Catolicismo colonial brasileiro


2. Reforma e restauraç.Ao católica no Brasil
3. A Igreja e o governo militar brasileiro
4. As Comunidades Eclesiais de Base
5. Um balanço final

Parte 5 A Política, a comunicação política e a opinião pública


1 Mfdia e oplniao pública . . . . . . . 403
LUfS FEL I PE MIGUEL

1. A centralidade da mfdia na comunicação polftica


2. A reconstruçAo do mundo social
3. O que é mfdia
4. Concentração da propriedade dos meios de comunicação
5. O trabalho jornalístico
6. Funções da imprensa
7. A mediação do discurso polftico
8. A influência dos meios de comunicação de massa sobre a opinião pública
9. Os meios de comunicação na politica brasileira

2 As sondagens de oplnlao. . . . . . . . . . . . .• . . . • 41 7
ALBERTO CARLOS ALMEIDA

1. A t6cnica
2. As sondagens politicas
3. A influência das sondagens sobre o eleitorado
4. A regulamentação das sondagens eleitorais

Material com direitos autorais


5. Os diferentes usos das sondagens politicas
6. As sondagens de opinião pública e o sistema político brasileiro

Parte 6 O Brasil e a ordem internacional


1 Evoluçêo do sistema internacional contemporâneo:
implicaçOes para a inserçêo internacional do Brasil. . . . . . 435
ANTONIO JORGE RAMALHO DA ROCHA

1. O Estado nacional moderno e o sistema internacional:


origens, consolidação, evolução
2. Anarquia
3. Soberania
4. Territorialidade
5. Cooperação e conflito
6 . A transformação do sistema Internacional
depois da Segunda Guerra Mundial
7. Maior interdependência, mais acelerado o ritmo da inovação
8. Politlea interna e pofftlca externa: funções, redefinições e perspectivas
9. Implicações para o Brasil

2 O Brasil e a ordem Internacional • . . • . . . . • . • . . . . • . . . . 451


LÚCIO REINER

1. Definições
2. Fundamentos da polftic-a externa
3. O Brasil no cenário internac-ional
4. Neussldade de um projeto nac·lonal
5. Perspectivas

Parte 7 Os desafios à democracia brasileira


1 Dilemas de democracia no Brasil. . . . . . . . . .. . . . . . • .. 467
FÁBIO WANDER LE Y R EIS

1. Política, sociedade e democracia


2. Democracia e capitalismo, globaliuç-ão, governabilidade
3. O eleitorado, o PT, o governo Lula e a crise
4. Reformas politicas

Material com direitos autorais


o
·~ Sobre os autores .... . .... ... ... .. .. .. ................. 491

f~ Créditos das fotos . . . . . . • . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 494

Ficha técnica ........................................ 494

.g
e
~

Material com direitos autorais


Capítulo 1
Fundamentos da política e
da sociedade brasileiras

JOSÉ MURILO DE CARVALHO

O problema político central do Brasil é nativas além do pau-brasil e de animais


construir um país que combine três coisas: exóticos. Os nativos não produziam mer-
liberdade, participação e justiça social. Te- cadorias aproveitáveis. A nova colônia não
mos liberdade, alguma participação e muita podia competir com as riquezas comerciais
desigualdade. A liberdade e a participação, das Índias Orientais. A necessidade, porém,
para sobreviverem, precisam gerar igualda- de defender a conquista dos ataques de ou-
de. Perseguindo esse tema central, o texto se tros europeus, sobretudo franceses e espa-
divide em duas partes. A primeira aponta as nhóis, forçou a Coroa portuguesa a dar iní-
principais características da formação social cio à colonização, trinta anos após a chega-
brasileira desde a colonização portuguesa até da da esquadra de Cabral. Colonização sig-
1930, quando o país começa a passar por nificava “produzir para o mercado euro-
mudanças aceleradas. Nesse longo período peu”.
de 430 anos houve grande continuidade na O produto que naquele momento se re-
economia, na composição das classes e gru- velou mais adaptável à região foi o açúcar.
pos sociais e nas relações sociais (como exem- Para sua produção eram necessários terra,
plo de mudança importante, pode-se citar capital e mão-de-obra. A terra, abundante e
apenas a abolição da escravidão em 1888). facilmente arrancada dos nativos, foi dis-
A segunda parte resume as grandes mudan- tribuída em vastas sesmarias. O capital veio
ças posteriores a 1930 e aponta os proble- de portugueses enriquecidos no comércio
mas não resolvidos em nossa trajetória para com as Índias e de capitalistas judeus. A
uma sociedade democrática. mão-de-obra foi buscada inicialmente na
escravização da população indígena. Entre-
tanto, como esta dificilmente suportava o
1. Os Fundamentos, 1500-1930 trabalho nos engenhos e era rapidamente
dizimada por guerras e epidemias, recor-
reu-se, já a partir da segunda metade do
1.1 A colonização portuguesa
século XVI, à importação de escravos da
Os conquistadores portugueses, como costa ocidental da África. Desenvolveu-se,
todos os outros do fim do século XV e iní- então, um vasto e duradouro tráfico de es-
cio do XVI, além de difundir a fé, estavam cravos que durou três séculos. Calcula-se
interessados em encontrar riquezas naturais que cerca de três milhões de escravos afri-
e mercadorias vendáveis na Europa. A co- canos tenham sido transportados para a
lônia americana apresentava poucas alter- América portuguesa até 1822 e mais um

21
Fundamentos da política e da sociedade brasileiras

milhão para o Brasil, até 1850. Vieram es- nos. Tinham desaparecido cerca de três mi-
cravos de várias etnias e de diferentes tradi- lhões de indígenas e entrado número seme-
ções culturais, saídos de regiões que iam da lhante de africanos escravizados. Embora não
baía de Benin, na costa ocidental da África, haja estatísticas a respeito, é certo que boa
onde hoje fica a Nigéria, em direção ao sul, parte da população livre era composta de
até Moçambique, já na parte oriental daquele mestiços de todos os tipos, sobretudo de bran-
continente. cos e negros (mulatos) e de brancos e índios
Grande propriedade, escravidão e pro- (caboclos). Independentemente das razões que
dução para o mercado externo foram traços levaram à mestiçagem, ela passou a caracteri-
definidores da colonização portuguesa na zar a população da colônia e do futuro país.
América. Essa composição demográfica foi altera-
da apenas na segunda metade do século XIX,
quando a abolição do tráfico de escravos
1.2 População (1850) e a da escravidão (1888) forçaram a
Portugal à época da conquista tinha uma busca de mão-de-obra, agora livre, em paí-
pequena população de cerca de um milhão ses europeus, sobretudo na Itália. A nova imi-
de habitantes. Tendo criado um vasto impé- gração, incentivada ou voluntária, a que se
rio no século XVI, que se estendia da Amé- acrescentou no século XX substancial com-
rica à África e à Ásia, não contava com gente ponente japonês, mudou a cara do país, so-
suficiente para colonizar as novas terras da bretudo no sul. O censo de 2000 registra a
América. Faltavam, sobretudo, mulheres presença de 52% de população branca, con-
brancas para a formação de famílias regula- centrada no sul e sudeste, 9% de população
res. Tirando vantagem de sua superioridade negra (nordeste e sudeste) e 39% de popula-
tecnológica, a minoria portuguesa impôs-se ção parda ou mestiça (nordeste e norte).
à população nativa, calculada em cerca de Pela maneira como se formou a popula-
quatro milhões, boa parte da qual foi dizi- ção nacional, não se pode falar em coope-
mada por doenças e guerras, à semelhança ração de três raças, ou de três culturas. Pri-
do que se passava na parte espanhola da meiro, porque houve um processo inicial
América. Como solução para a escassez de violento de submissão, pela escravização, de
mão-de-obra, os portugueses recorreram nativos e africanos, levado a cabo pelos
então à importação maciça de escravos afri- conquistadores. Segundo, porque tanto o con-
canos. Dada a escassez de mulheres brancas, tingente europeu quanto o nativo e o africa-
o colonizador miscigenava-se com mulheres no incluíam diferentes grupos étnicos e cul-
indígenas e africanas, processo em que estu- turais. A primeira razão ajuda a explicar os
pro e consentimento se misturavam de ma- preconceitos e as desigualdades sociais basea-
neira indistinguível. dos na cor das pessoas. A segunda revela
Três séculos depois da conquista, à época maior riqueza cultural do que a pretendida
da independência da colônia, a população do pelo mito das três raças. Não há entre nós
novo país foi calculada em torno de quatro uma cultura branca européia, mas várias, as-
milhões de habitantes, número semelhante ao sim como há várias culturas africanas. Além
de 1500. Desses quatro milhões, 800 mil eram disso, a geografia também responde por boa
indígenas e um milhão eram escravos africa- parte de diversidade cultural.

22
de melhor resultou da mineração foram as
cidades coloniais mineiras, com seus magní-
ficos exemplares de arte barroca.
À época da independência, a economia
colonial podia ser descrita de maneira
simplificada. Era composta por: grandes lati-
fúndios voltados para a produção de merca-
dorias exportáveis, como o açúcar, o tabaco,
o algodão; fazendas dedicadas à produção
agropecuária para o mercado interno (cere-
ais, leite e carne) e à criação de gado, estas
últimas sobretudo no norte e no sul; e cen-
tros mineradores já em fase de decadência.
Acrescente-se ainda grande número de pe-
quenas propriedades voltadas para a agri-
cultura e a pecuária de subsistência. Nas ci-
dades costeiras, capitais de províncias,
predominavam o grande e o pequeno comér-
cio. Os comerciantes mais ricos eram os que
se dedicavam ao tráfico de escravos.
A única alteração importante nessa eco-
Povo brasileiro – várias raças.
nomia foi uma troca de produtos de expor-
tação verificada com o desenvolvimento da
cultura do café. Já na década de 1830, esse
1.3 Economia
produto assumira o primeiro lugar nas ex-
portações, acima do açúcar e do tabaco. Mas
A produção de açúcar e tabaco em al- o café não mudou o padrão econômico an-
guns pontos da costa, o extrativismo e a pe- terior: era também um produto de exporta-
cuária no interior dominaram a economia ção baseado no trabalho escravo. Esse mo-
dos séculos XVI e XVII. No século XVIII, a delo sobreviveu ainda por mais cem anos.
descoberta de ouro e diamantes na região Só começou a ser desmontado após a Segun-
que hoje inclui os estados de Minas Gerais, da Guerra Mundial. As conseqüências da
Goiás e Mato Grosso acrescentou nova di- hegemonia do café foram principalmente
mensão à economia colonial. Pela primeira políticas. O fato de se ter ela estabelecido a
vez, grandes contingentes populacionais se partir do Rio de Janeiro ajudou a consolidar
deslocaram para o interior da colônia. Re- o novo governo do país sediado nessa pro-
sultou da nova economia um efeito impor- víncia. Se não fosse a coincidência do centro
tante de integração econômica: a vinda de político com o centro econômico, os esfor-
tropeiros do sul e do norte para o interior ços da elite política para manter a unidade
do país. A descoberta do ouro também pro- do país poderiam ter fracassado. Ao final do
vocou o deslocamento do centro adminis- século XIX, o deslocamento da produção do
trativo da colônia da Bahia para o Rio de café para São Paulo favoreceu a implantação
Janeiro. Além dessas conseqüências, o que da República e a introdução do federalismo.

23
Fundamentos da política e da sociedade brasileiras

1.4 Sociedade os profissionais liberais, padres e frades,


A economia colonial gerou uma divisão militares, pequenos comerciantes. Em segui-
de classes muito hierarquizada e bastante da, vinham pequenos burocratas, artesãos,
simples. No topo da pirâmide, estavam os costureiras, parteiras, operários, vendedores
grandes proprietários rurais e os grandes ambulantes, domésticas, prostitutas.
comerciantes das cidades do litoral. No meio, As mulheres ocupavam posição peculiar
localizavam-se os pequenos proprietários na sociedade colonial e imperial. As brancas
rurais e urbanos, os pequenos mineradores eram as únicas a constituírem famílias orga-
e comerciantes, além dos funcionários pú- nizadas e legalizadas. Tinham situação pri-
blicos. Mais abaixo, estavam os artesãos, vilegiada em relação às outras mulheres, so-
agregados das fazendas, capangas e popula- bretudo suas escravas, mas não escapavam
ções indígenas. Na base da pirâmide, ao sistema patriarcal, que as submetia ao
mourejavam os escravos. As relações entre poder do chefe da família. Eram excluídas
essas classes se baseavam em combinação va- da vida política e mesmo da vida civil, fi-
riada de violência e paternalismo. A violên- cando confinadas aos limites da casa gran-
cia predominava na relação senhor-escravo; de ou do sobrado. No extremo oposto, as
o paternalismo, entre ricos e pobres. mulheres escravas ocupavam a posição mais
No mundo rural, a grande propriedade baixa da escala social, inferior até mesmo à
resumia as relações entre as classes. Nela pre- do homem escravo. Além do trabalho for-
dominava inconteste o proprietário, a cuja çado, eram obrigadas a se submeter às
dominação todos se submetiam. Submetia- investidas sexuais dos senhores e dos filhos
se a ele a família imediata, formada por sua destes. As mulheres livres pobres, na maioria
mulher e filhos, assim como a parentela, não-brancas, embora não estivessem sujeitas
composta de genros, noras, sobrinhos, afi- aos constrangimentos sociais das brancas ri-
lhados. Submetiam-se ainda o padre, os cas e legais das escravas, não escapavam ao
agregados, moradores, artesãos, capangas. domínio de pais e companheiros, pois o
Finalmente, estava sob seu jugo toda a patriarcalismo impregnava a escala social de
escravaria. Na grande propriedade, fosse ela alto a baixo.
engenho de açúcar, fazenda de café ou de Ao lado da grande propriedade e da es-
gado, o senhor era a fonte do poder econô- cravidão, o patriarcalismo constituía uma
mico, social e político. Ele fornecia prote- terceira coluna no edifício que sustentava a
ção e distribuía castigos. Substituía o pró- sociedade.
prio Estado. A ação do governo se detinha
na porteira das fazendas. 1.5 Educação e religião
A população urbana era pequena, até
1920 apenas 17% dos brasileiros viviam em As condições em que se deu a coloniza-
cidades de 20 mil habitantes ou mais, mas ção não favoreciam a educação, uma das
apresentava composição mais complexa. condições indispensáveis para a formação de
Entre os ricos comerciantes e altos buro- cidadãos. No início, os jesuítas encarrega-
cratas, em um extremo, e os escravos, no ram-se da catequização dos índios e da edu-
outro, havia grande variedade de grupos cação popular. Os colégios jesuítas eram as
ocupacionais. Os mais bem colocados eram únicas escolas da colônia. Mas, além de ter a

24
catequização implicado a destruição da cul- A Coroa portuguesa, em contraste com a
tura indígena e a imposição do catolicismo, espanhola, não permitiu jamais a criação de
as escolas jesuítas eram muito poucas para universidades na colônia. Na época da Inde-
o tamanho da colônia e se localizavam nas pendência, havia 23 universidades na parte
cidades costeiras. Em 1759, houve um re- espanhola e nenhuma na parte portuguesa.
trocesso nessa situação já de si precária. Os Cerca de 150 mil pessoas haviam se forma-
jesuítas foram expulsos da metrópole e da do nas universidades coloniais espanholas,
colônia e a educação popular ficou nas mãos ao passo que apenas 1.242 brasileiros tinham
do Estado. Foram criadas aulas régias, a car- passado pela Universidade de Coimbra. O
go de professores pagos pelo governo. Mas, Brasil independente não alterou radicalmente
novamente, as aulas régias eram essa política. Apenas quatro escolas superio-
pouquíssimas para o tamanho do país e da res foram criadas até 1830 e as primeiras
população. universidades só apareceram no século XX.
A falta de escolas era agravada pelo fato A educação superior pública manteve sua
de não interessar aos senhores educar seus função de treinar elites.
escravos. Excetuando-se alguns africanos de Outra dimensão importante na formação
cultura muçulmana que eram alfabetizados, de nossa sociedade é a religião. A coloniza-
a totalidade dos escravos e libertos era anal- ção tinha como uma de suas justificativas a
fabeta. O patriarcalismo, por sua vez, era difusão da fé católica. O primeiro nome do
responsável pela não-educação das mulhe- país foi Terra de Vera Cruz. Lembre-se, no
res. Restritas a tarefas domésticas, as mu- entanto, que, em 1517, Martinho Lutero ini-
lheres eram excluídas da educação formal. ciou o movimento de Reforma religiosa. O
As brancas de famílias ricas podiam, no má- catolicismo ibérico reagiu fortemente con-
ximo, aprender a cantar ou tocar piano, para tra a renovação protestante, e a nova ordem
alegrar os saraus domésticos. dos jesuítas se colocou à frente da Contra-
O trágico resultado dessa falta de preo- reforma. Como havia união entre Igreja e
cupação com a educação popular apareceu Estado, junto com os conquistadores che-
no primeiro recenseamento nacional, feito garam à colônia muitos padres, sobretudo
em 1872. Meio século após a Independên- jesuítas e franciscanos. Os jesuítas ficaram
cia, só 16% da população era alfabetizada. famosos por seu esforço em converter os in-
Mais meio século depois, o censo de 1920 dígenas. Trabalhando juntos, Estado e Igreja
registrava 24% de alfabetizados, apenas 8% impuseram o catolicismo à população nati-
a mais do que em 1872. Fruto da escravi- va e posteriormente aos escravos africanos.
dão, do patriarcalismo e do obscurantismo, O resultado foi a formação de uma socieda-
o analfabetismo só fez reforçar as bases da de uniformemente católica, embora com boa
desigualdade social. Sintomaticamente, em dose de influência de religiões africanas e in-
1920, a taxa de alfabetização dos estran- dígenas.
geiros era o dobro da dos brasileiros natos. A união entre Estado e Igreja teve conse-
A educação superior mereceu mais aten- qüências importantes. A Coroa portuguesa
ção. Mas durante o período colonial ela se desfrutava do padroado, isto é, de privilégios
limitava aos que podiam viajar à metrópole concedidos pelo papa relacionados com o
para estudar na Universidade de Coimbra. governo da Igreja. Documentos papais de-

25
Fundamentos da política e da sociedade brasileiras

viam passar pela aprovação da Coroa e ca- 1.6 Política


biam também a ela a aprovação dos bispos
e a indicação de párocos. Os padres eram a) Patrimonialismo
funcionários públicos e recebiam ordenado
Duas características marcaram a forma-
do governo. A situação era vantajosa para
ção política do país, ambas relacionadas com
o Estado, que podia contar com a burocra-
a natureza da colonização portuguesa. A pri-
cia da Igreja para executar tarefas adminis-
meira foi o caráter estatal da empresa colo-
trativas, como o registro de nascimentos,
nial. A viagem de Cabral, e as que se segui-
casamentos e óbitos. Durante o Império, os
ram, foram patrocinadas pela Coroa portu-
párocos também faziam parte das mesas
eleitorais e das juntas de recrutamento mi- guesa. A ocupação e a exploração da terra
litar. O Estado podia, ainda, contar com a conquistada também se deram sob patrocí-
Igreja para pregar a submissão dos católi- nio oficial. No início, a Coroa tentou repas-
cos à autoridade secular. Para a Igreja Ca- sar a particulares a tarefa da colonização,
tólica, havia a vantagem de ser considerada utilizando o instrumento das capitanias he-
a religião oficial, fato que a protegia da com- reditárias. A experiência fracassou, porém,
petição de outras religiões. Mas o padroado e a Coroa recuperou o controle sobre todo
a tornava dependente do Estado, até mes- o território colonial. Até o final da colônia a
mo em seu governo interno. Um exemplo administração se fez sob o controle da me-
de conflito gerado por essa dependência foi trópole, que nomeava vice-reis, capitães-ge-
a Questão Religiosa, surgida na década de nerais, magistrados, padres e bispos. Como
1870, quando o governo imperial colocou disse um rei português, o Brasil era a vaca
na cadeia dois bispos que haviam tomado a leiteira da Coroa. A segunda característica
iniciativa de proibir os católicos de perten- está relacionada à escassez de recursos hu-
cer à maçonaria. manos de Portugal. A metrópole não dis-
Do ponto de vista político, a fusão de punha de gente suficiente para colonizar a
Igreja e Estado reforçava o poder e dificul- nova terra, nem tinha pessoal qualificado
tava o surgimento de oposição e mudanças. para administrá-la. A Coroa foi forçada a
Um exemplo disso foi a questão da escravi- recorrer à cooperação dos potentados ru-
dão. Em outros países, como Inglaterra e rais para expandir a colônia, manter a or-
Estados Unidos, foram igrejas ou seitas dis- dem e tocar a administração, sobretudo no
sidentes, como os quakers, que constituíram interior. A segurança no interior estava nas
a vanguarda do abolicionismo. No Brasil, em mãos das ordenanças, tropas comandadas
parte, sem dúvida, pelo fato de estar ligada por ricos proprietários. Mesmo na região
ao Estado, a Igreja Católica foi sempre coni- mais controlada pela Coroa, a das minas de
vente com a escravidão. O monopólio da re- ouro e diamantes, o concurso de particula-
ligião foi outro fator a dificultar a educação res se fazia indispensável. A coleta de im-
popular. A Igreja Católica, à exceção dos je- postos nas Minas Gerais estava entregue a
suítas, não se ocupou da tarefa. Além disso, contratadores que os recolhiam e repassa-
a ação das igrejas protestantes, tradicional- vam ao governo em troca de comissão.
mente preocupadas com a alfabetização, era Alguns dos envolvidos na Inconfidência
limitada. Mineira eram contratadores que se viram
em dificuldades de pagar a cota do gover-

26
no, por causa da queda na produção do ouro. candidatos do governo os votos de que ne-
As duas características parecem contra- cessitavam e o governo entregava-lhes o con-
ditórias, pois indicam um governo ao mes- trole dos cargos políticos locais. Esse siste-
mo tempo forte e sem recursos. Mas elas ma atingiu seu apogeu durante a Primeira
constituíram um aspecto essencial da políti- República (1889-1930). Formou-se uma pi-
ca brasileira: a mistura, o conluio, entre o râmide de poder que ia do coronel ao presi-
poder estatal e o poder privado. Essa mistu- dente da República, passando pelos gover-
ra leva o nome de patrimonialismo, pois sig- nadores dos estados. No melhor estilo
nifica que o Estado distribui seu patrimônio patrimonialista, o poder do Estado se aliava
– terras, empregos, títulos de nobreza e ao poder privado dos proprietários, susten-
honoríficos – a particulares em troca de co- tando-se os dois mutuamente, em detrimen-
operação e lealdade. Em um sistema to da massa dos cidadãos do campo e das
patrimonial não há cidadãos. Há súditos en- cidades que ficava à margem da política.
volvidos num sistema de trocas com o Esta- A dimensão da exclusão popular pode ser
do, regido pelo favorecimento pessoal do avaliada com auxílio dos dados do censo de
governante, de um lado, e pela lealdade pes- 1920. Os médios e grandes proprietários,
soal do súdito, de outro. O clientelismo e o donos de cem hectares ou mais, representa-
nepotismo, ainda fortes até hoje, são um re- vam naquela data apenas 180 mil pessoas,
síduo do patrimonialismo. numa população de 30,6 milhões. Esses 180
O patrimonialismo é a coluna política mil eram os coronéis da República, que man-
que se juntou às três outras na sustentação davam nos municípios e influenciavam os
de nossa sociedade. governos estaduais e nacional.

b) Coronelismo c) Estado e governo

Um dos melhores exemplos de como se Ao se tornar o país independente em


mesclaram entre nós o poder do Estado e o 1822, a elite política brasileira optou por uma
dos particulares é o coronelismo. O coronel monarquia representativa como forma de
era o comandante máximo da Guarda Nacio- governo, de acordo com o modelo francês
nal. Essa Guarda foi criada em 1831 e subs- da época. Monarquia, para facilitar a pre-
tituiu as ordenanças da época colonial. Não servação da unidade do país em torno da fi-
era paga pelo Estado e não fazia parte da gura do imperador e manter a ordem social.
burocracia oficial. Era sustentada pelos co- Representativa, para atender à oposição aos
mandantes, em geral proprietários rurais e governos absolutistas, muito forte desde a
comerciantes ricos. Os coronéis se trans- Revolução Francesa de 1789. A Constitui-
formaram em chefes políticos locais. Quan- ção de 1824, outorgada por D. Pedro I, con-
do a República introduziu o federalismo, os tinha todos os direitos civis e políticos reco-
governadores dos estados passaram a ser es- nhecidos nos países europeus. Afastava-se do
colhidos por eleição popular. Precisavam en- sistema inglês, modelo das monarquias re-
tão do apoio dos coronéis para vencer as elei- presentativas da época, pela adoção do Po-
ções. Surgiu, assim, um pacto entre governos der Moderador, que dava ao imperador
e coronéis, segundo o qual estes davam aos grande controle sobre o ministério. Essa

27
Fundamentos da política e da sociedade brasileiras

Constituição, com apenas uma alteração em da República. A própria República não ti-
1834, sobreviveu até 1889, sendo substituí- nha povo.
da pela Constituição Republicana de 1891, O fim do Império significou maior po-
que durou até 1930. der para os estados e também para os se-
O imperador era o chefe do governo e nhores de terra, dando origem ao sistema
do Estado. Escolhia os ministros entre os lí- coronelista. A proclamação da República
deres dos partidos Liberal e Conservador. Os também coincidiu com a ascensão de São
deputados gerais eram eleitos por quatro Paulo à posição de estado hegemônico da
anos, a não ser que a Câmara fosse dissolvi- federação, graças ao deslocamento da pro-
da, de acordo com os procedimentos do par- dução do café para novas terras e a entra-
lamentarismo. Os senadores eram eleitos por da de milhares de imigrantes italianos. Na
toda a vida em listas tríplices. As províncias ausência do Poder Moderador, a base de
tinham suas assembléias também eleitas, sustentação do regime republicano foi
mas seus presidentes eram escolhidos pelo transferida para um acordo entre os estados
governo central. As principais alterações mais ricos e mais populosos, sobretudo Mi-
introduzidas na República foram a intro- nas Gerais e São Paulo. Esse acordo levou o
dução do presidencialismo, a eleição popu- nome de Política dos Estados e durou até
lar do presidente para mandatos de quatro 1930. Quase todos os presidentes da Repú-
anos, e a dos governadores dos estados, de blica vieram dos dois grandes estados.
acordo com o sistema federal então intro-
duzido.
1.7 A Abolição
A realidade da vida política distava mui-
to dos dispositivos legais. O novo país só A principal mudança social ocorrida no
havia tido experiência representativa nas elei- Império foi a abolição do tráfico de escra-
ções municipais da época colonial e, mesmo vos, em 1850, e da escravidão, em 1888. Os
assim, nelas só votavam os chamados “ho- escravos africanos tinham sido a base da eco-
mens bons”, ou seja, os proprietários de ter- nomia nacional durante quase quatro sécu-
ra. A abertura do direito de voto a outras los. Eles eram indispensáveis nas fazendas,
camadas da população não resultou de ime- nos engenhos e também na economia urba-
diato no bom funcionamento do sistema re- na, onde exerciam variada gama de ativida-
presentativo. Mulheres e escravos não vota- des, desde o serviço doméstico, a cargo das
vam. A dependência social da população escravas, até trabalhos de rua exercidos por
impedia que os cidadãos exercessem com vendedores, artesãos, carregadores, prostitu-
autonomia o direito do voto. O controle dos tas. Os escravos de ganho eram o sustento de
senhores de terra no interior e a pressão das muitas pessoas pobres nas cidades.
autoridades nas cidades falseavam as eleições. A escravidão produzia riqueza para os
A situação agravou-se quando os analfabe- senhores e para o país, mas ao custo de ne-
tos foram proibidos de votar, em 1881. A gar ao escravo as condições de cidadão e de
partir de então, a participação eleitoral, mes- ser humano. Ao fazê-lo, comprometia a saú-
mo em eleições presidenciais, só superou 5% de política da sociedade como um todo. O
da população em 1930. Não se podia falar senhor de escravo era pessoalmente livre,
na existência de democracia representativa mas não tinha o sentido da liberdade civil,
no Brasil, nem mesmo após a proclamação pois não respeitava o direito à liberdade de

28
seus escravos. Era um cidadão aleijado. cidades, tanto operários como da classe mé-
Como conseqüência da generalização da es- dia. Os militares se revoltavam. Movimentos
cravidão no país, a liberdade civil não era culturais, como a Semana de Arte Moderna
um valor central da sociedade. Os próprios de 1922, desafiavam a tradição. Assim, em-
escravos, ao se libertarem, muitas vezes com- bora o movimento que derrubou o último pre-
pravam escravos. Como disse Joaquim sidente da Primeira República não tivesse sido
Nabuco, a escravidão afetou os valores do uma revolução no sentido estrito do termo,
próprio cidadão brasileiro, dentro de cuja precipitou, mesmo assim, mudanças que, a
cabeça conviviam o senhor e o escravo, a médio prazo, deslancharam profundas trans-
arrogância e a subserviência. formações políticas, sociais e econômicas no
A abolição significou um passo funda- país agrário-exportador-oligárquico que o
mental na história do país. Ela incorporou à Brasil tinha sido até então.
sociedade nacional parcela substancial de
pessoas antes excluídas. Só a partir da aboli-
ção é que se pôde falar na existência, ainda 2.2 Industrialização e urbanização
embrionária, de uma nação brasileira. A crise de 1929 e, dez anos mais tarde, a
Segunda Guerra Mundial aceleraram muito o
2. Um novo Brasil, 1930-2000
processo de substituição de importações ini-
ciado durante a Primeira Guerra. O país teve
que produzir os bens industrializados que an-
2.1 Divisor de águas tes sempre importara. O processo não mais
O ano de 1930 foi um divisor de águas. se interrompeu, avançando, na década de 1950,
Até então, as mudanças sociais e políticas ti- com a implantação da indústria automobilísti-
nham sido poucas e muito lentas. A partir ca e, na década de 1970, com a produção de
de 1930, houve grande aceleração nas mu- máquinas e equipamentos. Atualmente, o Bra-
danças, cujas principais causas foram exter- sil não pode mais ser definido como um país
nas. A primeira delas foi a Guerra Mundial essencialmente agrícola. O café ocupa papel
de 1914-1918, que provocou carestia, gre- modesto nas exportações. O agronegócio é
ves e início de substituição de importações. um setor próspero da economia, sobretudo
Em seguida, veio a Revolução Comunista de na produção de carnes, soja, suco de laranja,
1917, depois a implantação do fascismo na mas não representa mais o grosso da expor-
Itália e, já na década de 1930, a tomada do tação, localizado em bens industrializados,
poder pelos nazistas na Alemanha. Mas o como carros, máquinas, eletrodomésticos,
fator que mais influenciou nessas mudanças aviões, além de minérios e serviços.
foi a grande crise de 1929, causada pela que- Paralelamente ao processo de industria-
bra na bolsa de valores de Nova York. O lização, e mais rapidamente do que ele, ve-
impacto foi imediato na exportação de café, rificou-se uma transformação radical na lo-
e atingiu o coração da economia nacional. calização e ocupação do território pela po-
Houve, porém, também causas internas. pulação. Houve um deslocamento maciço de
A Política dos Estados não conseguia mais pessoas do campo para a cidade. Se, em 1920,
manter o controle sobre as oligarquias des- menos de 20% da população morava nas ci-
contentes e sobre os setores emergentes nas dades, em 1960 já eram 45%; em 1980,

29
Fundamentos da política e da sociedade brasileiras

68%; e, em 2000, mais de 80%, chegando a nha sido suprimido, foi eliminado o direito
90% no Sudeste. Inverteu-se completamen- de expressão e de organização, essenciais à
te a situação. O Brasil passou a ser um país participação política. Ao final da ditadura, a
urbano, comparável nesse ponto aos Esta- participação foi retomada e assumiu novas e
dos Unidos. Se o mundo rural que resta ain- variadas formas.
da possui traços do antigo, ele hoje repre- Um avanço importante na construção
senta pequena parcela da população. A gran- democrática se deu na década de 1960, quan-
de maioria dos brasileiros reside nas cidades do a Igreja Católica abandonou sua posição
e se emprega na indústria, no comércio e nos de aliada do Estado. Durante os governos
serviços ou engrossa o setor de desemprega- militares, ela cumpriu papel muito positivo
dos e subempregados. de opositora da ditadura e defensora dos per-
seguidos políticos, além de ter organizado as
comunidades de base. Nos anos recentes, o
2.3 A entrada do povo na política
crescimento rápido de outras religiões, sobre-
Desde a proclamação da República até tudo as pentecostais, alterou radicalmente o
1945, a participação eleitoral não passou de quadro religioso do país, tornando-o mais rico
5% da população. A partir dessa data, o cres- e diversificado e reduzindo a força popular
cimento do eleitorado foi rápido e constan- da Igreja Católica.
te, mesmo durante os governos militares,
quando não havia liberdade de oposição. Em
2.4 Ensaios de democracia
1960, votaram 18% dos brasileiros; em
1980, 47%, uma expansão de 161%. A Cons- Os esforços para organizar um sistema
tituição de 1988, ao permitir o voto do anal- de governo que incorporasse a participação
fabeto, mais de cem anos depois de sua ex- popular tiveram fracassos e êxitos. A primei-
clusão, e ao baixar para 16 anos a idade mí- ra tentativa (1945-1964) fracassou quando
nima para votar, deu o impulso final à de- as elites se juntaram aos militares para pôr
mocratização do voto. Hoje estão alistados fim ao regime democrático. Nova tentativa
126 milhões de eleitores, cerca de 70% dos teve início em 1985, ao fim do governo mi-
brasileiros, porcentagem que se compara fa- litar. O saldo da nova experiência tem sido
voravelmente com as dos países de mais lon- positivo. Instituições como sindicatos, par-
ga tradição democrática. tidos e imprensa têm exercido livremente
A entrada do povo na política não foi suas atividades; os poderes constitucionais,
tranqüila. Ela se deu, de início, dentro de Executivo, Legislativo e Judiciário, têm no
um processo chamado de populista, inicia- geral funcionado de acordo com a lei; os
do por Getúlio Vargas na década de 1940. rituais da democracia, eleições, debates,
Além de votar, o povo começou a manifes- campanhas, não têm sido interrompidos.
tar-se também nas organizações sindicais, nas Apesar de os resultados sociais do funcio-
greves operárias, nos comícios e em campa- namento da democracia política serem ain-
nhas nacionais, como a da defesa do petró- da insatisfatórios, é preciso levar em conta
leo. A participação foi interrompida em 1964 que a prática democrática é recente e preci-
e dificultada durante os 21 anos de duração sa de tempo para se aperfeiçoar.
da ditadura militar. Embora o voto não te-

30
2.5 A política social ciedade ainda pesam no presente sob a for-
A década de 1930 foi um marco tam- ma da desigualdade social. Apesar de ser a
bém no que se refere à mudança de postu- oitava economia do mundo, o Brasil está en-
ra do governo em relação aos direitos so- tre os países mais desiguais, isto é, entre aque-
ciais, mesmo na ausência da democracia les em que é maior a distância entre ricos e
política. Os sindicatos operários foram re- pobres. Tem havido algum progresso na re-
conhecidos, uma vasta legislação trabalhis- dução da pobreza a partir da introdução do
ta foi introduzida, culminando em 1943 com Plano Real em 1993, mudança acelerada
a Consolidação das Leis do Trabalho, e fo- pelas políticas sociais como a Bolsa Escola,
ram criados vários institutos de previdência depois mudada para Bolsa Família. Mas em
e aposentadoria. Pela primeira vez, os ope- 2005, os 50% mais pobres detinham apenas
rários urbanos foram objeto de atenção do 12% da renda nacional, ao passo que os 10%
governo. Posteriormente, foram também in- mais ricos ficavam com 46%. Cai o número
cluídos na legislação trabalhista e social os de pobres, mas a distância entre ricos e po-
trabalhadores rurais, as empregadas domés- bres quase não se altera. A desigualdade
ticas e os trabalhadores autônomos. Embora incide sobretudo sobre os grupos da popula-
o sistema ainda não funcione satisfatoriamen- ção mais vitimados ao longo da história, os
te, sua introdução constituiu mudança im- descendentes dos escravos, os trabalhadores
portante no sentido de estender a setores rurais, as mulheres, os nordestinos.
cada vez mais amplos da população a parti- Os resíduos da escravidão sobrevivem no
cipação na riqueza pública. preconceito racial e nas desigualdades entre
brancos e não-brancos no que se refere à ren-
da e à educação. O índice de analfabetismo
entre não-brancos é duas vezes superior ao
dos brancos. Estes têm, em média, dois anos
a mais de escolaridade que os primeiros.
Igualmente, a renda média dos brancos é o
dobro da dos não-brancos. Essa desigualda-
de é a razão da discussão atual sobre meios
de corrigir a injustiça histórica cometida con-
tra os escravos trazidos da África.
As desigualdades regionais também são
dramáticas. O analfabetismo no Nordeste
em 2000 era de 26%, mais que o dobro do
nacional. O analfabetismo funcional (qua-
tro anos ou menos de escolaridade) atinge
50% da população nordestina.
Apesar de as mulheres terem consegui-
3. O grande desafio: reduzir a
do superar a inferioridade no que se refere à
desigualdade
educação, até mesmo superando os homens
Apesar das grandes mudanças havidas, nesse campo, os salários pagos para igual tra-
as características da formação de nossa so- balho ainda são menores para elas. Segundo

31
Fundamentos da política e da sociedade brasileiras

o censo de 2000, o salário médio das mulhe-


res naquele ano ainda equivalia a apenas 71%
do salário médio dos homens. A pobreza
rural se reflete nas estatísticas de educação e
renda. A taxa nacional de analfabetismo em
2000 era de 12,8%, mas nas áreas rurais su-
bia para 28%. A renda média urbana era de
R$ 854,00, contra R$ 327,00 da renda ru-
ral. Outro resíduo do latifúndio é a existên-
cia dos trabalhadores sem-terra. Num país
imenso, chegamos ao século XXI sem re-
solver o problema da democratização da
propriedade rural.
O crescimento acelerado das cidades ge-
rou também uma grande população urbana
pobre, excluída do mercado formal de tra-
balho e vivendo em condições precárias, com
pouco acesso aos serviços públicos. A misé-
ria urbana facilitou a entrada do tráfico de
drogas nas comunidades, que, por sua vez,
causou o aumento da violência em nossas
grandes cidades, com índices de homicídios
só inferiores aos de países vítimas de guerra
civil. Um sistema policial inadequado e uma
justiça ineficiente contribuem para tornar a
segurança individual um dos problemas mais
sérios do país.
O grande teste da democracia política de
que gozamos desde 1985, e o grande desa-
fio dos brasileiros, será conceber e executar
políticas que gerem desenvolvimento e, em
conseqüência, reduzam a desigualdade que
nos separa e a violência que nos amedronta.
A desigualdade é hoje o equivalente da es-
cravidão no século XIX. José Bonifácio di-
zia da escravidão que ela era um câncer que
corroía as entranhas da nação e ameaçava
sua existência. O mesmo se pode dizer hoje
da desigualdade. Para isso se faz necessário
envolvimento cada vez maior dos cidadãos
na política e recuperação da crença nas ins-
tituições representativas, abalada por práti-
cas anti-republicanas.

32
Sugestões de leitura

FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.


CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
IGLÉSIAS, F. Trajetória política do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

33
Capítulo 1
Presidencialismo e parlamentarismo:
são importantes as instituições?*

ANTÔNIO OCTÁVIO CINTRA

As democracias contemporâneas não se- cia de país para país. Além, por exemplo, do
guem um único e rígido molde na organiza- presidencialismo dos Estados Unidos da
ção de seus governos, que, ao contrário, po- América – país que inventou o sistema – exis-
dem configurar-se em sistemas diversos, me- tem os presidencialismos dos países que su-
diante variações nos seus componentes e no cessivamente foram adotando essa configu-
modo como eles se combinam uns com os ração política na América Latina, ao longo
outros. do século XIX, mas com muitas variações
Assim, sobretudo sob o impulso da onda com respeito ao modelo inicial. O presiden-
de democratização das décadas finais do sé- cialismo, sob diversas formas, tem sido tam-
culo passado, o assunto “sistemas de gover- bém adotado em algumas das novas demo-
no” tem merecido crescente atenção no cam- cracias, entre elas as que sucederam às dita-
po da Ciência Política e dos estudos consti- duras do antigo bloco soviético.
tucionais nos últimos anos, tendo-se acirra- Nem se podem ignorar os sistemas hí-
do o debate sobre os méritos e deméritos do bridos, geralmente englobados na expressão
parlamentarismo e do presidencialismo. Fa- “semipresidencialismo”, à qual, contudo,
lar apenas de dois sistemas constitui, porém, alguns autores objetam, por ser rótulo único
grande simplificação.1 para conteúdos diversos.2
Tanto no campo do parlamentarismo, Finalmente, não se deve omitir o sistema
quanto no do presidencialismo, há uma boa de governo de assembléia ou convenção, pois
variedade de tipos. As diferenças entre, por em alguns momentos da história constitucio-
exemplo, o parlamentarismo da Grã- nal de vários países, sobretudo a França, as
Bretanha e o dos países escandinavos, o da concepções políticas que fundamentam esse
Itália ou o da Áustria, para nos restringir- sistema – entre elas a idéia da supremacia da
mos a uns poucos casos, são enormes. assembléia sobre um subserviente gabinete –
Também o “presidencialismo” se diferen- ganharam força.

* Agradeço a Marcelo Lacombe pela cuidadosa leitura da presente versão deste capítulo, com críticas e suges-
tões que procurei levar em conta na redação final.
1. A terminologia “sistemas de governo” para designar presidencialismo, parlamentarismo e modelos híbridos
segue a adotada pela Constituição Federal, no art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
2. Ver a observação a respeito na nota 37.

37
Presidencialismo e parlamentarismo: são importantes as instituições?

1. A importância das instituições Essas perguntas e suas correlatas tratam


de instituições, pois são instituições, nos
Tem importância essa problemática dos
seus diversos formatos, que a elas respon-
sistemas de governo? A freqüente resposta
dem. Uma coisa é certa: os participantes
negativa parece em boa parte derivar de ver
das rodadas de negociação que visaram à
os aspectos institucionais como superestru-
redemocratização não as consideravam
turas, ou seja, elementos da realidade social
irrelevantes para seu futuro político e, por-
condicionados por outros, mais decisivos que
tanto, não fugiram de enfrentá-las.
eles na hierarquia causal.
Para a moderna Ciência Política, as insti-
A moderna Ciência Política, porém, tem
tuições permitem às pessoas e grupos coo-
estudado as instituições políticas com reno-
perar, regular e permanentemente e, de
vado interesse, pois foi de instituições, em
modo confiável, em empreendimentos co-
última instância, que se tratou durante a vaga muns, necessários à vida em sociedade. As
de democratização presenciada no quartel instituições estimulam certos comportamen-
final do século XX. tos dos eleitores e dos próprios políticos e
Com a implosão das ditaduras, inclusive partidos, e desencorajam outros. Se os ho-
no Leste europeu, foi urgente definir como mens se organizam politicamente para lograr
iriam funcionar os novos governos. Foi pre- fins não alcançáveis fora da política, os com-
ciso redigir novas constituições. Os partici- portamentos induzidos pelos sistemas de
pantes das negociações de que elas resulta- governo e pelo sistema eleitoral vão facili-
ram tiveram de escolher a modalidade de tar-lhes a tarefa ou torná-la mais espinhosa.
governo democrático que desejavam, e res- Cada país democrático tem sua orga-
ponder a inúmeras indagações. Como seriam nização política peculiar, surgida do
selecionadas as autoridades executivas e os enfrentamento dos desafios deparados ao
representantes nas assembléias? Que siste- longo de sua história, mas há uma gran-
ma eleitoral seria adotado e que resultados de difusão internacional de modelos
se esperava de seu funcionamento em ter- institucionais entre as sociedades. Assim,
mos da representação política? Qual o grau por exemplo, os convencionais de Filadél-
de mútua dependência entre Executivo e fia, nos Estados Unidos, se inspiraram em
Legislativo? Quais os poderes e competên- Montesquieu, cujas idéias vieram de obser-
cias de cada um desses poderes? Como se vação e interpretação do governo inglês no
constituiriam os governos? O chefe de Esta- século XVIII. Em anos recentes, a Consti-
do e o chefe do governo seriam a mesma tuição democrática portuguesa (1976) se ins-
pessoa? Diante de quem seriam responsáveis pirou no semipresidencialismo da Constitui-
os governos? Teriam os governantes poder ção francesa de 1958 e a espanhola (1978)
para lidar com emergências, editando decre- buscou, na Lei Fundamental alemã, o insti-
tos com força de lei? Deveria estipular-se tuto da “moção de censura construtiva”.3
alguma “cláusula de barreira” para impedir As várias famílias de governo democrá-
a proliferação de partidos políticos? tico têm sido comparadas nos últimos anos,

3. Pela Lei Fundamental, o parlamento alemão retira a confiança de um gabinete pela eleição do que deve
substituí-lo, o que evita interregnos sem governo titular.

38
e seu desempenho tem sido avaliado à luz de c) seu mandato, bem como o dos parla-
diversos critérios. Há hoje muito mais infor- mentares, é prefixado, não podendo o
mação sobre elas do que vinte ou trinta anos presidente, exceto na hipótese do
atrás, quando se deduziam conseqüências impeachment, ser demitido pelo voto
políticas a partir da análise das características parlamentar, nem o Legislativo ser dis-
que os tipos ideais de cada sistema apresenta- solvido pelo presidente;
vam. A discussão é, hoje, sem dúvida, muito d) a equipe de governo (o ministério) é de-
mais bem informada empiricamente dos pon- signada pelo presidente e é responsável
tos fortes e fracos dos diversos sistemas, mas perante ele, não perante o Legislativo.5
longe ainda está de ser conclusiva para orien-
tar com segurança as eventuais escolhas
A matriz do presidencialismo são os Es-
institucionais das novas democracias.
tados Unidos, cujo sistema de governo tam-
A seguir, discutiremos os sistemas de
bém se conhece como sistema de separação
governo.
ou divisão de poderes, expressão esta que põe
ênfase em se elegerem independentemente
2. Presidencialismo e parlamentarismo o presidente, por um lado, e os deputados e
senadores, por outro lado, e em desempe-
2.1 O presidencialismo
nharem suas funções com relativa autono-
O presidencialismo é o sistema de go- mia recíproca.6 A eleição presidencial não
verno em que apenas se faz com bastante independência
a) há um presidente, ao mesmo tempo che- com relação à dos congressistas, mas, tam-
fe do governo e chefe de Estado;4 bém, pode ser independente dos próprios
b) o presidente é escolhido em eleição po- partidos políticos que vão representar-se no
pular; Legislativo.7

4. O chefe de Estado representa a nação no plano simbólico, e o chefe do governo exerce as funções principais
de governo. No parlamentarismo, o chefe de Estado, tanto um monarca quanto um presidente, não é, em
geral, popularmente eleito e não tem poderes de governo, conquanto possa exercer um papel moderador no
processo político e ter influência na opinião pública.
5. Nos Estados Unidos, chama-se gabinete à equipe de ministros, mas em geral tal termo reserva-se para o
ministério no parlamentarismo, que tem responsabilidade perante o parlamento. Como veremos mais adi-
ante, ao discutir o modelo semipresidencial, pode haver, nesse sistema, dupla responsabilidade do gabinete,
perante o parlamento, mas também perante o presidente. Observa Marcelo Lacombe, em comunicação
pessoal, haver exceção à característica (b) no presidencialismo boliviano, em que a eleição presidencial
pode, em algumas hipóteses, ser decidida pela legislatura. E a característica (d) tampouco está presente nos
presidencialismos do Peru e do Uruguai. Para ele, os critérios decisivos de definição do presidencialismo são
(a) e (c).
6. Para simplificar a exposição, estamos ignorando o terceiro poder, o Judiciário, cujo papel é crítico na orga-
nização política.
7. Nos Estados Unidos, o candidato à Presidência costuma constituir seu próprio comitê de campanha, à
margem do partido. Com o financiamento público da campanha presidencial para os candidatos que abdi-
quem do uso de recursos privados, os partidos podem perder importância até mesmo como provedores de
recursos financeiros para o candidato presidencial. Ademais, o sistema de primárias permite a aspirantes de
pouca expressão partidária e sem grande vivência da política nacional imporem-se como candidatos presi-
denciais, contra a vontade da cúpula do partido.

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Presidencialismo e parlamentarismo: são importantes as instituições?

Por outro lado, no presidencialismo, os governo bipartidário, os partidos não podem


parlamentares – deputados e senadores – ser rígidas organizações pautadas por ade-
não respondem pela implementação de po- são inamovível a uma ideologia. De modo
líticas e pelo exercício do governo, como geral, os partidos norte-americanos são prag-
acontece no sistema parlamentar, em que a máticos e pouco coesos, o que permite coo-
maioria – um só partido ou uma coligação peração por cima das linhas partidárias.8
de partidos – é co-responsável pela política Outras situações se produzem em países
governamental. presidencialistas como o Brasil, com um sis-
Trata-se de funções – legislar e implementar tema partidário de múltiplos partidos. Pode,
– bem distintas uma da outra no presidencia- nesses casos, haver governos minoritários,
lismo, em que o Legislativo vota leis, sem res- mas a situação mais freqüente tem sido a de
ponder, contudo, por sua implementação. os presidentes procurarem assegurar-se apoio
Quais as implicações do regime de sepa- de vários partidos, mediante coalizões em
ração de poderes para o funcionamento do que estes se tornam sócios na gestão do pró-
governo? Pode o Executivo ter eficácia sem prio Poder Executivo, em troca de assegu-
o apoio parlamentar, não obstante não ser rar-lhe apoio parlamentar. Trataremos desse
tal apoio indispensável à sua sobrevivência? caso em pormenor em outro capítulo do li-
São possíveis várias situações. Uma de- vro, dedicado ao sistema de governo brasi-
las é a que ocorre às vezes nos Estados Uni- leiro.
dos, quando há o “governo dividido”, isto Durante bastante tempo, a Ciência Polí-
é, a situação em que o presidente, num sis- tica e os constitucionalistas dedicaram mui-
tema de dois partidos nacionais, pertence a to menos esforço ao estudo do presidencia-
um deles, enquanto a maioria, em uma ou lismo, enquanto sistema de governo, do que
nas duas Casas do Congresso, é do outro. ao parlamentarismo. Nos últimos anos, no
Mas “governo dividido” não significa entanto, tem-se superado tal situação.
impasse insuperável e paralisia, porque o A produção acadêmica sobre o presiden-
presidente e o partido de oposição podem cialismo foi em boa parte deflagrada por um
negociar e chegar a acordos sobre políticas influente texto do cientista político Juan
básicas. Praticam, então, o chamado gover- Linz, que, no final dos anos 80, questionou
no bipartidário, o qual a opinião pública a adequação do sistema presidencial à con-
norte-americana muito louva. Para haver solidação e estabilidade democráticas.9

8. Contudo, surgem às vezes impasses nas negociações. Nessas circunstâncias, as duas partes buscam, cada
uma, ganhar a opinião pública para si e jogá-la contra o adversário. A briga partidária se converte numa
briga não apenas entre dois partidos, mas também entre os dois poderes. Nos Estados Unidos, as eleições de
congressistas dão-se a cada dois anos. Assim, a cada quatro anos, coincidem com as eleições presidenciais,
mas dois anos depois vêm as midterm elections, em que os presidentes podem ver seu apoio congressual
tanto aumentar, quanto diminuir, pelo ganho ou perda de cadeiras no Congresso. Neste último caso, é
grande a probabilidade de “governo dividido”.
9. O texto de Juan Linz circulou em versões preliminares no final da década de 1980. Uma versão em portugu-
ês se encontra em Lamounier (1991), sob o título “Presidencialismo ou Parlamentarismo: faz alguma dife-
rença?”, p.61-120. No final dos anos 50, o cientista político Douglas V. Verney fez uma comparação entre o
parlamentarismo e o presidencialismo (VERNEY, 1959) e, alguns anos antes, Carl Friedrich empreendera
um ambicioso esforço de comparação dos sistemas, com uma visão bastante positiva do presidencialismo
(FRIEDRICH, 1950).

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Os novos estudos mostram a diversida- O veto pode ser total ou parcial. Nos
de do governo presidencial.10 Diferenciam- Estados Unidos, por exemplo, o presidente
se os sistemas presidenciais uns dos outros, só pode vetar um projeto por inteiro. Em
por exemplo, em relação aos poderes à dis- outros países, como o Brasil, pode exercer o
posição do presidente da República. Alguns veto parcial,12 um poderoso instrumento,
desses poderes lhe são atribuídos de modo pois quando só o veto total é permitido, se
formal, nos textos constitucionais, e lhe pos- há partes do projeto com que o presidente
sibilitam influência na elaboração das leis. concorde,vetá-lo por inteiro significa jogar
Outros poderes lhe advêm da liderança so- fora o bebê com a água do banho.13
bre seu partido. Um presidente que lidera Entre os poderes presidenciais proativos,
um partido majoritário no Congresso esta- sobressai o de baixar decretos com força de
ria, em princípio, mais bem petrechado para lei. São exemplo as nossas “medidas provi-
fazer prevalecer suas posições nas tomadas sórias” e os decretos por razones de necesidad
de decisão do que um presidente afiliado a y urgencia da Constituição argentina (art.
uma pequena agremiação sem força parla- 99), nela introduzidos em reforma de 1994.
mentar. O Poder Executivo tende a ter, moder-
Os presidentes podem exercer influên- namente, dominância na arena administrati-
cia sobre a produção legal via poderes va, fruto do controle direto por parte de seu
reativos e proativos. O veto é o mais valioso titular sobre a administração. Esse poder é
poder reativo dos presidentes, mas há vetos ainda acrescido pelo poder formal, de que
de diversa natureza e força. Em alguns paí- pode estar o presidente investido, de editar
ses, basta uma maioria relativa para o Con- decretos-lei. Com isso, adquire muita vanta-
gresso derrubá-los. Em outros, nenhum pro- gem sobre os outros participantes do jogo
jeto, exceto o orçamento, se torna lei sem a político e uma alta capacidade ofensiva. Se,
concordância presidencial.11 O quorum mais por exemplo, entre nós, o presidente inunda
comum de derrubada de veto é o de maioria a pauta de decisões do Legislativo com “me-
absoluta, que adotamos (Constituição Fede- didas provisórias”, torna-se difícil a este po-
ral, art. 66 § 4º), mas a Argentina, o Chile e der deliberar antes de os efeitos dessas medi-
os Estados Unidos pedem quoruns ainda mais das se tornarem irreversíveis, uma dificulda-
altos (maioria qualificada de dois terços). de adicional para a sua derrubada.14

10. Nesta parte, seguimos Shugart e Carey (1992) e Mainwaring e Shugart (1997).
11. Caso do Equador, em que a alternativa, para o Congresso, é recorrer a um referendo popular sobre o
projeto vetado.
12. Art. 66, § 2º da Constituição Federal: “O veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de pará-
grafo, de inciso ou de alínea”. Durante o regime militar, a Constituição não fazia essa ressalva, de modo que
o veto podia, também, ser a partes de um desses elementos especificados no § 2º.
13. Cientes dessa dificuldade, os congressistas norte-americanos têm por hábito inserir, em projetos de interesse
presidencial, outros itens, de interesse deles, que não podem ser vetados singularmente, sob pena de vetar-se
o projeto inteiro. Assim, a contragosto, o presidente tem de aceitar os caronas indesejáveis na lei, se não quer
perder o que considera positivo nela. Observa Marcelo Lacombe que, no presidencialismo, com sua perma-
nência no poder, não sujeito aos votos de censura, e com o poder de veto, mesmo em situações minoritárias,
o presidente é sempre parte no processo decisório (comunicação pessoal).
14. Este tópico é analisado no capítulo “O sistema de governo no Brasil”, neste livro.

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Presidencialismo e parlamentarismo: são importantes as instituições?

Shugart e Mainwaring chamam também No que diz respeito ao grau de fragmen-


a atenção para o uso estratégico dos decre- tação, com um sistema fragmentado ou,
tos-lei pelos presidentes, que, por meio de- pelo menos, com um número muito grande
les, podem sondar até onde a maioria do de partidos, poderemos ter presidentes
Congresso aceita iniciativas de políticas e minoritários, com dificuldade de implementar
modificações no status quo. uma plataforma de governo. Precisarão eles
Além dos decretos-lei, os presidentes po- recorrer ao clientelismo para obter apoio ou
dem, também, ter a iniciativa legislativa em tentarão passar por cima do Congresso e dos
certas áreas críticas da política pública: o orça- partidos.17
mento, a política militar, a criação de novos Quanto à disciplina partidária, os auto-
órgãos e as leis relativas a tarifas e crédito.15 res observam que tanto os partidos muito
Em muitos sistemas presidencialistas li- disciplinados, quanto os com fraca discipli-
mita-se, ademais, o poder de emendar do na, suscitam problemas no presidencialismo.
Congresso. Tal se dá, entre nós, no tocante A disciplina fraca leva a negociações indivi-
ao projeto de lei do orçamento anual, só duais do Executivo com parlamentares e com
modificável por emendas compatíveis com lideranças regionais. Se há disciplina, os lí-
o plano plurianual e a lei de diretrizes orça- deres nacionais tornam-se os interlocutores
mentárias. Essas emendas devem indicar os preferenciais para as negociações, mas po-
recursos necessários para realizar o que pro- dem surgir conflitos sérios se o presidente
põem, recursos que devem, além disso, pro- não tiver maioria parlamentar.
vir da anulação de despesas.16 Nas novas constituições presidencialistas,
Nos recentes estudos sobre o presidencia- a ausência de um sistema partidário confiável
lismo, dá-se ênfase ao papel que nele exerce o parece haver induzido os constituintes a do-
sistema partidário. Mainwaring e Shugart tar os presidentes de poderes maiores, pre-
chamam a atenção tanto para sua fragmen- cisamente para evitar paralisia de decisões e
tação, quanto para a disciplina dos partidos permitir-lhe superar impasses sem infringir
nele presentes. as normas legais.

15. Para Shugart e Mainwaring, o poder privativo de iniciativa legislativa em certas áreas dá ao presidente um
poder negativo. Se ele não deseja mudar a política numa área em que a iniciativa legislativa é sua, simples-
mente pode “empurrar o assunto com a barriga” e não enviar um projeto ao Congresso. No Brasil, a Cons-
tituição Federal arrola, no seu art. 61, as leis de iniciativa privativa do presidente da República, entre outras
as que fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas ou disponham sobre criação de cargos, funções
ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração e, no caso dos
Territórios, sua organização administrativa e judiciária, matéria tributária e orçamentária, serviços públicos
e pessoais da administração.
16. Mesmo assim excluídas as que incidam sobre dotações para pessoal e seus encargos, serviço da dívida,
transferências tributárias constitucionais para Estados, Municípios e o Distrito Federal. Veja-se o art. 166, §
3º, III da CF. Para estudos que mostram como funcionam esses dispositivos, vejam-se Pereira e Mueller
(2002), Figueiredo e Limongi (2005). Um estudo pioneiro do processo orçamental sob a vigência da Cons-
tituição de 1988 é o de Castro Santos, Machado e Rocha (1997).
17. Cheibub, Przeworski e Saiegh discordam da inevitabilidade desse desfecho extremo, sob presidentes
minoritários, previsto por Shugart e Mainwaring (CHEIBUB, PZEWORSKI e SAIEGH, 2002). Mayhew
também fornece evidência empírica nesse sentido (MAYHEW, 1991).

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2.2 O parlamentarismo que centraliza as decisões, prevalece sobre o
Assim se caracteriza o parlamentarismo: Parlamento.
a) o governo tem legitimação indireta. Sur- No pólo oposto, dentro do conjunto dos
ge, não da votação popular, mas da as- sistemas parlamentares, houve as experiên-
sembléia, em geral de sua maioria, for- cias francesas durante as III e IV Repúblicas,
mada por um partido singular ou por nas quais se faziam e desfaziam os gabinetes
uma coalizão de partidos; com freqüência, em detrimento da percep-
b) o governo sobrevive enquanto conta com ção popular da seriedade e legitimidade do
a confiança da maioria da assembléia, sistema político.18
perante a qual é responsável; faltando a Entre esses tipos extremos de parlamen-
confiança, o governo cai; tarismo, há fórmulas intermediárias, como
c) a assembléia pode ser dissolvida antes do a alemã, que se aproxima da britânica em
término da legislatura, convocando-se alguns aspectos, mas que, diferentemente
novas eleições; desta, não repousa em apenas dois partidos
d) além da chefia do governo, existe a che- parlamentares, o que a torna mais depen-
fia de Estado – pelo presidente ou pelo dente de governos de coalizão.
monarca – que exerce funções simbóli- Assim como no caso do presidencialis-
cas e cerimoniais. mo, é essencial ver o sistema partidário que
dá base ao parlamentarismo. São ou não ne-
Diferentemente do presidencialismo, o cessárias coalizões de partidos para formar
sistema parlamentar busca uma integração o governo e exercer o poder, sempre com
orgânica entre Parlamento e Executivo. Em responsabilidade perante o parlamento e com
alguns casos, como na Grã-Bretanha, há pra- a confiança deste?
ticamente uma fusão dos poderes. Executivo O governo parlamentar é, teoricamente,
e Legislativo surgem de uma mesma base, o coletivo, exercendo o poder um grupo de
Parlamento, que indica, sustenta e, eventual- pares, unidos num ministério, conhecido
mente, desfaz o governo. como gabinete, podendo eles pertencer ou
Contudo, o conjunto dos sistemas parla- não a um mesmo partido. Mas o grau em
mentares é muito diversificado. Um sistema que o caráter coletivo do gabinete se materia-
como o italiano, por exemplo, chega, em liza no sistema parlamentar pode produzir três
alguns aspectos, a parecer mais próximo ao distintas configurações, de acordo com a po-
presidencialismo brasileiro do que, por sição nele ocupada pelo primeiro-ministro.
exemplo, ao parlamentarismo britânico. Assim, o primeiro-ministro pode estar
Uma das matrizes do sistema parlamen- acima dos demais ministros, como primei-
tar é, precisamente, o sistema britânico. Nele, ro sobre desiguais. Pode também ser o pri-
o Executivo, na figura do gabinete, na ver- meiro entre desiguais ou, finalmente, o primei-
dade comandado por um primeiro-ministro, ro entre iguais.19 Como se esclarecerá, a se-

18. O parlamentarismo assim exercido tende para um terceiro modelo de sistema de governo identificado na
literatura, o governo de assembléia ou convenção, sobre o qual discorreremos adiante.
19. Essas distinções são feitas por Sartori (1996).

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Presidencialismo e parlamentarismo: são importantes as instituições?

guir, essas configurações resultam, em boa O eleitorado britânico sabe, ao votar, que
parte, do tipo de sistema partidário existen- um dos partidos vai conquistar a maioria
te no país. Analisemo-las, pois. absoluta de cadeiras. Nesse sentido, a elei-
Analisemos, pois, as configurações. ção parlamentar britânica apresenta, com
Primeiro sobre desiguais: é a situação do clareza, a característica da identificabilidade,
primeiro-ministro britânico, sempre o líder ou seja, o eleitor sabe qual vai ser o primei-
do partido majoritário. Winston Churchill, ro-ministro, dependendo de que partido ga-
Harold Wilson, Margaret Thatcher ou Tony nhar a eleição. Sabe, finalmente, que os titu-
Blair, por exemplo, foram ou são os líderes lares das pastas ministeriais serão os mem-
de seus partidos e, por essa razão, chegaram bros do parlamento de maior destaque no
ao posto executivo supremo, quando o par- partido que fizer a maioria nas urnas.21 ma-
tido conquistou a maioria parlamentar. Di- joritário.
zemos “partido”, no singular, porque o sis- Os ministérios de hierarquia mais alta são
tema partidário britânico, apresenta dois comandados por deputados veteranos. Os
partidos dominantes, tendo os restantes pou- deputados calouros terão de aguardar sua vez
ca expressão parlamentar, mesmo os Demo- em futuras eleições.
crata-Liberais, que, apesar de razoavelmen- O primeiro-ministro escolhe os demais
te votados nacionalmente, não têm votos ministros e pode, também, demiti-los. Tem
suficientes para lograr a maioria relativa em status claramente superior ao deles.
muitos distritos eleitorais, não conquistan- No sistema britânico, por conseguinte,
do, portanto, cadeiras. o partido parlamentar majoritário governa,
Nesse modelo, o primeiro-ministro difi- e uma comissão de parlamentares desse par-
cilmente cai por um voto de desconfiança tido – o Gabinete – lidera a assembléia e di-
parlamentar. Pode ocorrer, porém, como se rige o Executivo. O sistema erige-se sobre
deu com Margaret Thatcher, de o próprio rígida disciplina partidária e parlamentar,
partido, por decisão interna, afastar o chefe produto da evolução histórica do sistema ao
do governo e designar outro líder para subs- longo do século XIX. Os partidos têm pro-
tituí-lo. No caso da primeira-ministra gramas, organização interna, liderança. No
Thatcher, foi ela substituída por John Major parlamento, configuram-se nitidamente si-
na liderança partidária e, em conseqüência, tuação e oposição, cujos membros se
na chefia do gabinete.20 hierarquizam em função de antiguidade e

20. Tal ocorre quando as lideranças partidárias começam a discordar da condução do governo pelo primeiro-
ministro, a qual possa levar à perda da maioria pelo partido nas eleições. Quando procedemos à revisão
deste texto, Tony Blair também foi obrigado a fixar a data de sua saída da chefia do governo, em boa parte
devido às discordâncias entre os líderes trabalhistas sobre, em particular, o modo como ele tem conduzido a
política externa britânica, sobretudo com o apoio à invasão do Iraque pelos Estados Unidos.
21. Sobre identificabilidade, Shugart e Carey (1992:45) e Cheibub (2006). Sobre o sistema eleitoral britânico, o
país é recortado em distritos eleitorais, cada um elegendo um deputado. O candidato que tiver mais votos
(pode ser uma maioria relativa) ganha a cadeira. Esse sistema tende, ao longo do tempo, a reduzir o número
de partidos, pois as agremiações menores não conseguem eleger representantes. Mesmo partidos com elei-
torados de tamanho expressivo nacionalmente, mas espalhados, como os Democratas-Liberais, ficam exclu-
ídos pela polarização distrital entre os dois maiores partidos, o Conservador e o Trabalhista. O nome técnico
do sistema eleitoral britânico é sistema majoritário uninominal de turno único.

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experiência, seja no governo, seja no “gabi- da maioria sabe que, sendo a matéria impor-
nete-sombra”.22 tante, não pode votar contra o governo de
Entrelaçam-se o Executivo e o Legislativo, seu partido, sob o risco de destituí-lo. A fi-
sendo grande número de parlamentares mi- delidade partidária é, pois, essencial, e a dis-
nistros e secretários de estado. O governo está ciplina rigidamente aplicada.25
presente no próprio parlamento e o parlamen- No sistema político britânico existe uma
to está no governo. Além disso, a função do carreira parlamentar. Os deputados novatos
parlamento, enquanto assembléia, é diferente devem passar por uma aprendizagem e só os
da que exerce em outros países parlamen- seniores aspiram a posto ministerial. Para ser
taristas, pois lhe cabe diminuto papel na ela- primeiro-ministro, o deputado precisa ter
boração legislativa. O trabalho nas comissões galgado a liderança partidária, numa cami-
é mínimo, por serem os projetos preparados nhada pelos postos ministeriais de segunda
pelas próprias burocracias ministeriais e, de e primeira grandezas. Não há, portanto, hi-
modo geral, não se espera do parlamento, pótese de um político sem carreira partidá-
enquanto assembléia, que lhes faça modifica- ria empolgar a direção do partido e, menos
ções substanciais. ainda, a chefia do gabinete.
O principal papel do parlamento, uma Primeiro entre desiguais: é a situação do
vez formado o gabinete, é o de foro de deba- chanceler alemão. Não tem ele o mesmo
te entre maioria e minoria.23 Uma importante poder que seu colega britânico. Diferente-
parte desse debate se dá semanalmente, quan- mente deste, não precisa ser o líder maior
do o primeiro-ministro vem ao parlamento do partido. Mas, chegando ao comando do
para uma sessão de inquirição, para expor governo, goza de mais poder do que os de-
as políticas adotadas e defender os atos do mais ministros. Escolhe-os e também pode
governo.24 demiti-los.
Em suma, o poder político está unifica- A Alemanha não tem um sistema
do e a responsabilidade da maioria, por meio bipartidário, mas afasta-se, também, da pul-
do gabinete, claramente fixada. O deputado verização partidária. Há três, quatro, no

22. O gabinete-sombra (Shadow Cabinet) é a organização da minoria, em que cada pasta do gabinete é acompa-
nhada por um parlamentar do partido de oposição. O gabinete-sombra funciona, pois, como se fora um
verdadeiro governo paralelo, que avalia e critica as políticas da maioria e está sempre pronto para assumir a
responsabilidade de governo, caso a maioria perca a eleição.
23. O cientista político norte-americano Nelson Polsby fala de parlamentos transformadores – que desempe-
nham papel importante em todas as fases da produção legislativa – e parlamentos arenas – que são, sobretu-
do, foros de debates das grandes questões, com menor papel na produção legislativa (POLSBY, 1975).
24. Contudo, não se pode exagerar a importância dessas sessões. Não raro, a maioria suscita, em prévio acordo
com o primeiro-ministro, perguntas que lhe permitem tomar praticamente todo o tempo das inquirições
respondendo sobre assuntos em que o governo se sai bem.
25. Se o deputado desobedece à orientação de voto do partido, sua posição dentro deste ficará seriamente
afetada. Em casos graves, sua carreira política pode ser encerrada, pois o partido tem estrito controle sobre
os candidatos e não o deixará competir na próxima eleição. Às vezes, pode forçar-lhe a renúncia ao manda-
to, fechando-lhe as portas da política. Para domar eventuais rebeldes, os primeiros-ministros às vezes recor-
rem a votos de confiança acoplados com a ameaça de dissolução da House of Commons. John Major valeu-
se do expediente em 1993 para enquadrar deputados de seu partido contrários ao Tratado de Maastricht, já
alinhados com os Trabalhistas e os Democratas-Liberais para tentar derrubar o governo na votação. Com a
solicitação de confiança, os rebeldes tiveram de voltar ao redil.

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Presidencialismo e parlamentarismo: são importantes as instituições?

máximo cinco partidos, em âmbito nacio- de partidos, obtendo cada um seu naco de
nal, representados no Parlamento.26 Em ge- poder, não se supondo, em princípio, hie-
ral, para constituir a maioria, são necessá- rarquia entre eles. Não existe, tampouco,
rias coligações. Estas não constituem alian- hierarquia dentro do gabinete. Daí a expres-
ças frágeis, constantemente sob a ameaça de são usada por Sartori para caracterizá-lo, em
deserção deste ou daquele partícipe menor. função da posição do primeiro-ministro:
Ao votar, o eleitor sabe que seu partido, caso primus inter pares.
atinja a maioria, fará de seu líder o chanceler, Se há um voto de desconfiança, caem
cabendo ao parceiro menor da coligação um todos, não tendo o primeiro-ministro o po-
papel mais modesto, mas ainda assim rele- der dos sistemas anteriormente descritos de
vante. Por exemplo, durante o período em demitir ministros, caso ache conveniente.
que a Democracia Cristã dominou o cená- Esse tipo de parlamentarismo decorre da
rio, os eleitores sabiam que os Liberais se- multiplicidade de partidos. Freqüentemente,
riam seus parceiros no governo, cabendo- nenhum deles é capaz, por si só, de formar
lhes, tradicionalmente, a pasta das relações uma maioria, pelo menos uma maioria con-
exteriores. fortável. Portanto, são imprescindíveis coa-
Uma importante característica do parla- lizões, via de regra com muitos parceiros, a
mentarismo germânico é o voto de desconfi- quem cabe formar e sustentar o gabinete. Já
ança construtivo: em vez de pura e simples- não existe, como no caso britânico, a certe-
mente derrubar um gabinete por uma mo- za sobre quem será o primeiro-ministro,
ção de censura, a maioria deve fazê-lo pela pois, para sabê-lo, é preciso definir quem
eleição de um novo chanceler. Com isso, o ganhou a eleição, o que não se sabe na au-
parlamento assume uma responsabilidade sência de um partido majoritário. Só vai
direta com a governabilidade do país, não saber-se qual a maioria ao cabo das negocia-
podendo simplesmente derrubar um gover- ções pós-eleitorais para costurá-la. Nesse
no e lavar as mãos com relação às conse- sentido, carece o sistema da característica
qüências do ato. Em princípio, tal disposi- da identificabilidade, presente, como vimos,
tivo torna o parlamento mais responsável, no caso britânico e, em boa medida, no ale-
parecendo ser excelente invenção constitu- mão. Dado, porém, o histórico de coalizões
cional, que a Espanha também adotou na anteriores, os resultados não costumam ser
Constituição democrática de 1978.27 surpreendentes.
Primeiro entre iguais: nesta terceira si- A situação é potencialmente mais ins-
tuação, o gabinete resulta de uma coalizão tável do que as antes discutidas, mas nada

26. Antes da unificação, os principais partidos eram a coligação Democrata Cristã, a Social Democracia e os
Liberais. Depois, surgiram os Verdes. Após a unificação, os ex-comunistas também integram o rol dos parti-
dos com alguma expressão.
27. Marcelo Lacombe, em comunicação pessoal, chamou-nos a atenção, no entanto, para um lado negativo do
instituto da “censura construtiva”, que é a constituição do governo ficar restrita às articulações
intraparlamentares, nesse sentido diminuindo a accountability do sistema. Em suas palavras, “a constituição
de governo torna-se matéria quase exclusiva de conchavo entre partidos”. São, porém, muito raras as instân-
cias de uso desse tipo de censura, que acaba funcionando mais como um dissuasor, ao tornar mais difícil o
voto de censura.

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excepcional, tão freqüente tem sido em nu- Um estudioso dos governos de coalizão,
merosos países parlamentaristas do Velho Kaare Strom, observa que, às vezes, o parti-
Continente. do do primeiro-ministro escolhido, mesmo
O processo de formação do gabinete, não sendo majoritário, pode decidir-se a for-
num contexto multipartidário, começa, de mar o gabinete sozinho, com apoio apenas
modo geral, com o chefe de Estado (monar- de seu partido e tentar governar na base de
ca ou presidente) designando um líder polí- apoios de coligações legislativas ad hoc, em
tico como primeiro-ministro. Este começa a função de matérias específicas.28
articular o ministério e a preparar um pro- O chefe de Estado pode também, em vez
grama de governo, mediante negociações de dirigir o convite a um líder de partido,
com outras lideranças parlamentares. Os para que inicie o processo de formação de
gabinetes de coalizão serão, normalmente, governo, convidar diretamente um grupo de
submetidos ao parlamento, pois os nomes partidos já decididos a se aliar.
do gabinete deverão ser do gosto de uma Em alguns sistemas parlamentaristas e
maioria parlamentar. multipartidários, podem surgir gabinetes de
Com prazos curtos para a formação do coalizões minoritárias, situação comum nos
gabinete, as coalizões partidárias tenderão a países escandinavos (Suécia, Dinamarca e
seguir padrões já testados, procurando-se Noruega), mas às vezes presente também no
parceiros com quem já exista uma tradição Canadá, Irlanda, França, Itália e Espanha. Na
de alianças. Dinamarca, aliás, os gabinetes majoritários
As negociações obedecem a uma seqüên- constituem exceção.29
cia. Um conjunto de partidos interessados Podem formar-se, também, coalizões
em constituir um gabinete esboça uma coa- superdimensionadas, com tamanho além do
lizão. Se ainda faltam votos para aprová-la, necessário para os quóruns de decisão. Essas
podem optar por compô-la com mais parti- “grandes coalizões” se dão, com freqüência,
dos. Num certo ponto, porém, os partici- durante as guerras e outras emergências na-
pantes preferem parar a busca de parceiros cionais. Em sociedades multiétnicas, em que
adicionais. se buscam fórmulas políticas consensuais de

28. STROM, 1994.


29. Strom (1994) observa sobre tal situação: “A democracia parlamentar pareceria requerer que todas as coali-
zões de gabinete fossem majoritárias. Todos os gabinetes viáveis devem ser capazes de reunir uma maioria
legislativa quando desafiados por moções de não-confiança. Ocasionalmente, contudo, um ou mais partidos
podem concordar em dar seu apoio ao governo no parlamento sem ter representação no gabinete. São os
partidos de apoio (support parties), cuja existência implica poderem algumas coalizões na aparência
minoritárias contar com apoio majoritário no parlamento”. Acrescenta ele não precisarem as “coalizões de
apoio” de incluir sempre os mesmos partidos, para todas as questões em jogo. Essas coalizões mutáveis têm
sido muito comuns em sistemas multipartidários tais como a Dinamarca, Israel e Itália. Na prática, portanto,
mesmo havendo governos minoritários, em que o partido do primeiro-ministro prefira governar sozinho,
sobrevivem eles porque contam com uma maioria parlamentar. Como enunciam Cheibub, Przeworski e
Saiegh, (2002:194), é possível “que o governo seja minoritário e que a oposição derrote o governo em
questões específicas. Mas se existe um governo, não existe uma maioria que queira substituí-lo. Assim, os
dois resultados possíveis no parlamentarismo são ou um governo com maioria parlamentar, seja qual for a
composição e o tamanho deste governo, ou a ocorrência imediata de novas eleições”.

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Presidencialismo e parlamentarismo: são importantes as instituições?

governo, elas são obrigatórias, pois todos os ou de convenção.31 Mas é preciso reconhecer
grupos devem estar representados no gabi- que, na história do parlamentarismo, a ver-
nete para não questionarem a legitimidade tente assembleísta algumas vezes foi trilha-
do sistema político. da por alguns países, sobretudo no período
Giovanni Sartori chama a atenção para entre as duas grandes guerras do século pas-
as condições de eficácia do sistema parlamen- sado, e no pós-guerra houve esforço de evi-
tarista baseado em coalizões de múltiplos tar esse perigo na reorganização política por
partidos. Os governos de coligação teriam, que passaram. Nesse tipo de governo, a as-
em geral, alguns meses de lua-de-mel, em sembléia se torna soberana, cria e derruba
que podem ser efetivos. Os partidos coliga- gabinetes subservientes, ao sabor da con-
dos sentir-se-iam constrangidos de, logo de juntura.
cara, mostrar divergências. Moções de cen- O multipartidarismo não necessaria-
sura seriam malvistas pela opinião pública. mente inviabiliza o parlamentarismo,
Depois de algum tempo, contudo, esses go- mas, quando extremo, pode levar ao
vernos passariam a sobreviver mais por ina- assembleísmo, cada partido procurando
ção, pela dificuldade de conciliar os múlti- extrair o máximo de concessões em função
plos parceiros.30 de sua essencialidade à sustentação do gabi-
nete, que passa a viver num clima de cons-
tante chantagem, sendo freqüentes os votos
3. Governo de assembléia: um perigo de desconfiança. Diante da fugacidade des-
do parlamentarismo com sistema
partidário muito fragmentado ses arranjos, o verdadeiro poder desloca-se
para a burocracia estatal, que passa a ser o
Uma percepção comum do parlamenta- único pilar do sistema.
rismo, entre nós, às vezes até entre defenso- Assim resume Sartori os traços distinti-
res do sistema, é a de ser um sistema de go- vos do governo de assembléia:
verno instável. Prevê-se que os gabinetes i) o gabinete não lidera o parlamento;
cairão a toda hora e os parlamentos terão de ii) o poder não está unificado, mas sim dis-
ser dissolvidos com freqüência. Impor-se-ia, perso e atomizado;
pois, antes de sua adoção, implantar no país iii) a responsabilidade se dilui;
uma burocracia profissional para garantir a iv) a disciplina partidária é baixa ou nula;
estabilidade governamental, difícil de obter v) os primeiros-ministros e seus gabinetes
com o parlamentarismo. não têm condições de agir com rapidez e
Essa percepção confunde o parlamenta- decisão;
rismo com o chamado governo de assembléia vi) as coalizões raramente resolvem seus

30. Sartori é bastante cético quanto aos sistemas parlamentares com multipartidarismo. Para ele, tais situações
são atenuadas quando um dos partidos predomine e detenha a maioria de assentos parlamentares. Nesse
caso, que se deu em países como Suécia e Noruega (predominância dos Social-Democratas), Japão (até
1993, com a predominância dos Liberais) e Espanha (de 1982 até 1996, com os Socialistas), a formação do
gabinete pode obter condições mais aproximadas às da Grã-Bretanha e da Alemanha (SARTORI, 1996).
31. A idéia de convenção vem do período da Revolução Francesa que vai de 1792 a 1795, em que a assembléia
– Convenção Nacional Francesa – governava o país. O Executivo era exercido por uma comissão da própria
Convenção, o Comité de Salut Publique.

48
desacordos e estão sempre incertas so- 4. O sistema semipresidencial
bre o apoio legislativo; finalmente, A modalidade híbrida do sistema presi-
vii) os governos jamais podem agir e falar dencial tem, a partir da Constituição france-
em uníssono e com clareza. sa de 1958, suscitado interesse internacio-
nal, por representar, para muitos analistas,
Os exemplos das III e IV Repúblicas fran- uma saudável convergência do parlamenta-
cesas são as instâncias clássicas de parlamen- rismo e do presidencialismo em seus melho-
tarismo propenso ao governo de assem- res aspectos. Mas o semipresidencialismo foi
bléia.32 inventado, de fato, na Alemanha, durante o
Se a vertente assembleísta existe no par- período conhecido como a República de
lamentarismo, não é a única possível, toda- Weimar.
via, como o atestam a evolução histórica bri- Os redatores da Constituição de Weimar
tânica e as escolhas constitucionais, bastante tinham em mente evitar um parlamentaris-
conscientes, feitas no período posterior à mo similar ao da França, então na sua III
Segunda Guerra Mundial, por países como República. Para tal fim, contrapuseram um
a Alemanha e, mais recentemente, após a presidente forte ao parlamento, pois, em caso
queda de prolongadas ditaduras, Espanha e de assembleísmo, o presidente teria compe-
Portugal, que se afastaram desse tipo de ten- tências constitucionais para corrigir os ex-
tação, sem falar da própria França, com a cessos do outro poder. Essa inovação consti-
Constituição de 1958, que corrigiu as carac- tucional, além de deficiências no seu dese-
terísticas dos sistemas anteriores.33 nho, se deu também num contexto de extre-
Douglas Verney identifica em alguns sis- ma conturbação da vida alemã em todas as
temas de governo parlamentar traços origi- esferas, com reflexos na política, não tendo
nários da visão assembleísta. Por exemplo, a sua operação sido suficiente para evitar a as-
exigência de que os gabinetes tenham a apro- censão dos nazistas e o colapso democrático.
vação da assembléia, depois de escolhidos. O semipresidencialismo foi redescoberto
Para ele, sendo os “governos de convenção” alguns decênios depois, na França. Em
típicos de momentos pós-revolucionários, 1958, em plena crise da guerra da Argélia,
costumam desembocar em ditaduras o general De Gaulle, então à frente do go-
unipessoais, como as de Cromwell, verno, encarregou uma comissão de juris-
Napoleão, Lênin ou Stálin.34 tas da redação de novo texto constitucional
para pôr cobro ao assembleísmo da IV Re-
pública, que a tornava incapaz de lidar com
a emergência nacional.

32. A III República era, sugestivamente, apelidada “república de deputados”. Carl Friedrich analisa essa fase da
história política francesa (FRIEDRICH, 1950:372).
33. Ao longo de século XX, os líderes políticos e constitucionalistas buscaram dar ao parlamentarismo maior
proteção contra as ameaças do assembleísmo, com, por exemplo, a moção de censura construtiva, inovação
da Lei Fundamental alemã, no pós-guerra. Trata-se do “parlamentarismo racionalizado”. Na visão exposta
pelo jurista Mirkine-Guetzévitch, trata-se da tentativa de regulamentar a estabilidade governamental, pelo
combate à instabilidade ministerial (MIRKINE-GUETZÉVITCH, 1951: 31).
34. VERNEY, 1961.

49
Presidencialismo e parlamentarismo: são importantes as instituições?

Pela nova Constituição, a França teria um da que não unilateralmente (art. 11). Após
presidente não eleito pelo parlamento, dotado consulta ao primeiro-ministro e aos presi-
de poderes bem maiores do que os dos chefes dentes de ambas as câmaras, pode decretar a
de Estado no parlamentarismo clássico.35 dissolução da Assembléia Nacional. A Cons-
Em outras palavras, o semipresidencia- tituição também parece reservar-lhe os as-
lismo francês tem uma estrutura de poder dual, suntos de defesa e de política externa.
com um presidente e um primeiro-ministro que Como tem funcionado, na prática, a in-
compartilham poderes significativos. O pre- serção de um presidente, diretamente eleito
sidente deixa de ser um chefe de Estado, com e dotado de poderes, na maquinaria do par-
funções cerimoniais, passando também a lamentarismo?
compartilhar algumas prerrogativas de go- Na França, têm ocorrido duas situações.
verno com o premier. Este responde perante Numa delas, os partidos que elegeram o pre-
o parlamento como qualquer primeiro-mi- sidente e lhe dão apoio constituem a maio-
nistro parlamentarista, comanda a operação ria parlamentar. Na outra situação, são
cotidiana do governo e toca a máquina ad- minoritários.
ministrativa, sobretudo na política interna. No primeiro caso, o presidente é a figu-
Os poderes do presidente são mais ge- ra política dominante, sendo o primeiro-mi-
rais. No dizer de um dos mais importantes nistro um político de sua escolha, afinado
estudiosos do semipresidencialismo, Maurice com as diretrizes que ele deseja imprimir ao
Duverger, os principais poderes presidenci- governo. No segundo caso, temos o “gover-
ais são espasmódicos. Não são prerrogativas no dividido”, que os franceses chamam “co-
normais, senão poderes excepcionais, para abitação”.
usar com parcimônia. Não são poderes de Essa divergência de maiorias tem sido
decisão, senão poderes ou de evitar uma de- enfrentada através da escolha, pelo presiden-
cisão, ou de submeter essa decisão ao povo te, de um primeiro-ministro das hostes da
(por exemplo, mediante a dissolução do par- oposição majoritária e pela divisão de traba-
lamento e a convocação de referendo). lho entre os dois titulares. Nessa hipótese,
O presidente nomeia o primeiro-minis- reduz-se bastante o papel presidencial.36
tro e, pedindo este demissão, põe termo a Portugal enfrentou a coabitação logo no
suas funções (art. 8º da Constituição). Pode início de sua prática semipresidencial. Assim,
solicitar ao parlamento uma nova delibera- desde o começo, o presidente teve suas fun-
ção acerca de uma lei ou algumas das dispo- ções contestadas pela maioria parlamentar e
sições desta. Pode convocar referendos, ain- o sistema português foi sendo empurrado na

35. Inicialmente, o presidente seria eleito por um amplo colégio eleitoral. Após emenda de 1962, passou-se à
eleição direta, em dois turnos.
36. Segundo Sartori (1996), o sistema francês consolidou-se porque as situações de coabitação, que podem ser
problemáticas, surgiram apenas depois de muitos anos de experiência com a convergência de maiorias.
Nesse longo período, a classe política acostumou-se com um presidente forte, senhor de competências cons-
titucionais. Quando sobreveio a coabitação, os líderes políticos agiram com sabedoria e evitaram confron-
tos. Em verdade, se o primeiro-ministro quisesse enfrentar o presidente, durante a coabitação, os poderes
deste se reduziriam bastante na prática. Mas como os primeiros-ministros têm interesse em chegar também
à Presidência, não lhes convém transformar a Presidência em cargo decorativo.

50
direção de um parlamentarismo de corte mais 5. Parlamentarismo ou
presidencialismo?
clássico, menos semipresidencial do que o
francês. O presidente foi-se tornando um Parlamentarismo, presidencialismo e sis-
chefe de Estado, com poucos poderes con- temas híbridos de governo não são apenas
cretos para interferir na política cotidiana do objetos de escolhas institucionais nas assem-
país. Tal situação foi, aliás, formalizada, com bléias constituintes ou mesas de negociação
a revisão constitucional de 1982. política quando caem ditaduras, mas tam-
Segundo Matthew S. Shugart e John bém matéria de divergência acadêmica e aca-
Carey,37 a Constituição portuguesa de 1976 lorados debates na opinião pública mais in-
pecava por não aclarar as responsabilidades teressada nos assuntos políticos.
dos dois chefes. Dava-se, na linguagem de- Durante a fase formativa dos principais
les, uma diarquia competitiva, exacerbada, sistemas de governo democrático, no decor-
ademais, por não ter o presidente de então, rer do século XIX, já havia partidários e
Ramalho Eanes, filiação partidária. Diante detratores de cada um dos modelos de go-
dos conflitos que essa atribuição de poderes verno que se iam delineando.40
gerava, as forças políticas decidiram pela A controvérsia ressurgiu, durante a
revisão constitucional de 1982, a qual reti- redemocratização do final do século passa-
rou do texto muitos dos poderes presiden- do, na redação de novas constituições em
ciais, entre eles o de demitir gabinetes ou vários países, inclusive o Brasil.
ministros, reservado agora para situações ex- A participação mais significativa no de-
cepcionais de ameaça às instituições demo- bate internacional talvez tenha sido a de Juan
cráticas.38 Também os poderes de dissolução Linz, cujo artigo, anteriormente mencionado,
da assembléia tornaram-se mais restritos e o levantou dúvidas sobre a adequação do siste-
poder de veto foi diminuído.39 ma presidencial à consolidação democrática.41

37. Carey e Shugart preferem fazer a distinção, no âmbito dos sistemas conhecidos como semipresidenciais,
entre os sistemas premier-presidenciais e os presidenciais-parlamentares. Nestes últimos, o presidente tem o
poder unilateral de nomear e demitir o governo (gabinete), mas este deve também contar com a confiança
parlamentar. Ou seja, estabelece-se uma relação confusa e conflituosa entre as autoridades executiva e legislativa
com respeito ao ministério. Para eles, a República de Weimar encarnava o sistema presidencial-parlamentar,
mas não a atual V República francesa, que se enquadra no modelo premier-presidencial (SHUGART e CAREY,
1992). Sobre a República de Weimar, diz Friedrich o seguinte: “Em função da dupla dependência do gabine-
te seja ao presidente, seja ao parlamento, ambos representantes eleitos por todo o povo alemão, era ele
obrigado a oscilar entre os dois senhores” (FRIEDRICH, 1950:373).
38. Art. 198, § 2º: O presidente da República só pode demitir o governo quando tal se torne necessário para
assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado.
39. Os poderes do presidente português são significativamente menores do que antes. A diferença desde 1982 é
seu reduzido poder legislativo e a perda de um domínio reservado para suas iniciativas de política (SHUGART
e CAREY, 1992:63-65).
40. O cientista político norte-americano Woodrow Wilson – mais tarde presidente do país – e o publicista
britânico Walter Bagehot queixavam-se da fragmentação, ineficácia e paroquialismo prevalecente sob o
sistema de separação de poderes e argumentavam que o sistema parlamentar, ao fundir a autoridade execu-
tiva com a legislativa, numa liderança única, promovia governo eficaz e responsável (WILSON, 1900;
BAGEHOT, 1995 – editado pela primeira vez em 1867).
41. LINZ, 1991.

51
Presidencialismo e parlamentarismo: são importantes as instituições?

A argumentação de Linz e outros contra Demais, na eventualidade de governos


o presidencialismo tem-se estribado em vá- minoritários – pois partidos pequenos po-
rios pontos. Entre eles, caracteriza-se o pre- dem eleger presidentes –, pode faltar apoio
sidencialismo como um jogo em que o ven- parlamentar, sobretudo em razão da inde-
cedor nada deixa para os outros competido- pendência das eleições dos dois poderes. O
res.42 Nesse sistema de governo, vencedores decorrente imobilismo pode levar a golpes
e perdedores do jogo político “são definidos e saídas extraconstitucionais. Sendo fraca a
em função do mandato presidencial, perío- autoridade do Executivo e faltando meios
do durante o qual não há esperança de mu- institucionais de preencher o vácuo resul-
danças (...) os perdedores terão de esperar tante, sofrem a estabilidade política e a
quatro ou cinco anos para ter algum acesso governabilidade.
ao Poder Executivo e, portanto, para partici- Não menos importante é a eleição presi-
par da formação de gabinetes e poder distri- dencial direta induzir aventureiros com pou-
buir recursos aos seus partidários”.43 Essa ca- ca experiência partidária e congressual a ten-
racterística alimentaria o radicalismo golpista. tarem o lance maior, com apelos demagógi-
Censura-se, também, a rigidez dos man- cos e populistas.
datos no presidencialismo, que impede a adap- Já no século XIX, faziam-se críticas ao
tação de governo e Legislativo a situações presidencialismo, mesmo o dos Estados Uni-
políticas cambiantes. No parlamentarismo, os dos. Walter Bagehot, na segunda metade
institutos da dissolução do parlamento e do daquele século, achava difícil encontrar pior
voto de confiança trazem flexibilidade. método de escolher um governante do que
Aponta-se, além disso, nos sistemas pre- o do presidencialismo.44 Quase cem anos
sidenciais, a contradição entre a necessidade depois, o constitucionalista Karl Lowenstein
de um Executivo forte e a arraigada suspeição falava da ineficiência da maquinaria
com respeito ao poder presidencial. A proi- presidencialista.45
bição de reeleição, típica dos presidencialis- Em trabalho mais recente, Terry Moe
mos latino-americanos, encarna essa atitude e Michael Caldwell exploraram as
suspicaz. virtualidades dos dois sistemas em termos

42. É o que, na terminologia técnica, se conhece como “jogo de soma-zero”.


43. LINZ, 1991:69-76.
44. “Se o talento humano se houvesse decidido a conceber um sistema especialmente calculado para colocar à
frente das atividades um homem incompetente para enfrentar uma premente crise, não poderia ter inventa-
do um mais adequado. Esse sistema quase certamente assegura a rejeição do gênio provado e preparado, e
afiança a seleção da mediocridade não posta à prova e desconhecida” (BAGEHOT, 1974:77).
45. “Que o sistema americano de governo tenha funcionado e resistido às tempestades de uma guerra civil, às
crises econômicas e a duas guerras mundiais constitui um dos maiores milagres da história constitucional.
Lento e desajeitado, pesado e, como diz Bryce, desenhado para ter segurança, mas não velocidade, foi capaz
de prover, com alternância de partidos em longos períodos, notável grau de estabilidade política. Seu admi-
rável sucesso talvez transcenda a racionalização constitucional. A sorte da localização geográfica e a abun-
dância de recursos, combinadas com o contentamento do povo americano com o progresso material, con-
tribuíram para converter um mecanismo intrinsecamente absurdo em estimado mito nacional. Os mais
caridosos atribuirão os felizes resultados à influência integradora e moderadora da opinião pública, a qual,
por sua vez, está condicionada pelos padrões relativamente altos de educação política” (LOWENSTEIN,
1949:452).

52
de produzir políticas públicas eficazes no Nos contextos multipartidários, o presi-
campo da regulação e chegaram a conclu- dencialismo provê accountability, pois há
sões desfavoráveis ao presidencialismo.46 escolha direta do presidente e, se existe a
Contudo, não têm faltado defensores do norma da reeleição, essa accountability é
sistema presidencialista. Matthew S. Shugart acrescida, pois o eleitor poderá recompen-
e Scott Mainwaring desfiam argumentos a sar ou punir o governante quando ele
ele favoráveis. Muitos desses argumentos candidatar-se a novo mandato. No parlamen-
consistem em mostrar que as supostas fra- tarismo multipartidário, ao revés, os gover-
quezas desse sistema também têm seu lado nos surgidos dos arranjos pós-eleitorais po-
positivo.47 dem carecer de accountability, pois o eleitor
Por exemplo, a presença de legitimida- fica sem condições de premiar ou castigar
des que competem uma com a outra, a da um determinado partido na eleição, ao não
Presidência e a do Congresso, parece aos saber que partidos vão coligar-se para for-
autores poder encarar-se positivamente, por mar o governo a partir das negociações pós-
aumentar os graus de escolha do eleitor. Este eleitorais dos líderes partidários.48
pode, como nos Estados Unidos, votar num Quanto à identificabilidade, um índice
candidato a presidente de um partido e num aplicado pelo cientista político Kaare Strom
deputado ou senador do outro partido e, com a uma amostra de países parlamentaristas
isso, contribuir para evitar demasiada con- europeus mostrou-os com baixos valores
centração de poder em qualquer um dos dois nessa característica. Ou seja, sendo o parla-
ramos. mentarismo multipartidário, os eleitores
Em termos de dois requisitos democráti- votam, mas não sabem que governo vai re-
cos, a accountability e a identificabilidade, sultar de seu voto.49
parece-lhes que o presidencialismo se sai bem Os mandatos fixos do presidencialismo
e, até mesmo, melhor do que certas modali- tampouco precisariam ser vistos apenas ne-
dades de parlamentarismo. Accountability gativamente. O argumento em favor da fle-
significa responsabilizar-se a autoridade go- xibilidade, que o parlamentarismo oferece,
vernamental perante o eleitor e prestar-lhe parece arma de dois gumes a Mainwaring e
contas. Identificabilidade é a capacidade de Shugart. Flexibilidade pode significar inca-
o eleitor prever, em função do resultado elei- pacidade de sustentar gabinetes quando exis-
toral, quem vai governar, quais forças polí- tem partidos extremistas e volatilidade elei-
ticas estarão coligadas no governo resultan- toral. Para esses autores, a compatibilidade
te da eleição). entre coalizões multipartidárias e estabilidade,

46. MOE e CALDWELL, 1994.


47. SHUGART e MAINWARING, 1997:12-54.
48. Contudo, observa Marcelo Lacombe que uma coalizão pós-eleitoral também pode ser punida pelo eleitor
em pleito futuro, o que não raro se dá nos parlamentarismos de coalizão (comunicação pessoal).
49. O trabalho de Kaare Strom está citado em Mainwaring e Shugart (1997:35). Para Marcelo Lacombe, não se
pode, todavia, superestimar a presença da identificabilidade no presidencialismo, pois serem freqüentes
eleições de presidentes que, uma vez eleitos, optam por políticas em descompasso com as promessas de
campanha e programas partidários que antes subscreviam (comunicação pessoal).

53
Presidencialismo e parlamentarismo: são importantes as instituições?

existente na Europa, pode não ser transferí- regional, casos do Brasil, México, Argenti-
vel a outras regiões. na e Rússia, entre outros.51
Já a dificuldade de remover o Executi- Para Shugart, no parlamentarismo – sis-
vo, própria do regime presidencial e atri- tema consolidado sobretudo nos países eu-
buto negativo para seus críticos, poderia ropeus – existem partidos com orientação
também ser vista do ângulo favorável da nacional, capazes de pôr em prática políti-
previsibilidade e estabilidade que pode im- cas de obtenção de bens e serviços públicos
primir às políticas governamentais. de âmbito nacional. Havendo tais partidos,
Finalmente, a crítica ao presidencialismo, os pleitos de orientação nacional têm condi-
de ser jogo de soma-zero, também poderia ção de prevalecer sobre os demais, de cará-
aplicar-se ao parlamentarismo majoritário, ter regional, local e clientelístico, nas políti-
de corte britânico. Nesse sistema, a maioria cas governamentais.
parlamentar pode não refletir sequer a maio- Já nos países latino-americanos e outros
ria do voto popular.50 Demais, ponderam do mundo subdesenvolvido, mas também
eles, a ênfase no presidencialismo como jogo nos países da ex-União Soviética, os gabine-
de soma-zero faz vista grossa a seus freios e tes parlamentaristas seriam muito instáveis
contrapesos, que atenuam essa característi- em razão do multipartidarismo, expressão
ca. Afinal, se o presidente leva tudo no que das clivagens de toda ordem, inclusive sociais
diz respeito ao Poder Executivo, ainda per- e regionais, que dividem essas sociedades e
manece o outro poder para a oposição de- não podem ser ignoradas. Se, para atenuar o
sempenhar seu papel, sem falar nos demais multipartidarismo, se adotasse sistema elei-
aspectos do presidencialismo quando com- toral majoritário-distrital, que forçasse uma
binado com o federalismo, em que o poder agregação maior dos partidos, haveria o ris-
central necessita compor-se com os poderes co de excluir da representação política inte-
estaduais. Na verdade, um presidencialismo resses relevantes.
como o brasileiro é policêntrico, sendo o Nessas situações, o presidencialismo fun-
poder presidencial de fato contrabalançado cionaria melhor, por ser compatível com
por outros núcleos de poder. “processos eleitorais que mantenham os par-
Mais recentemente, Shugart desenvolveu lamentares ligados a suas bases regionais”,
uma hipótese sobre a maior adequação do sem perder a capacidade de eleger o Execu-
presidencialismo a países menos desenvol- tivo na circunscrição nacional e investi-lo da
vidos, sobretudo nações grandes e comple- autoridade para levar adiante políticas nacio-
xas, com desigualdade na distribuição de nais. Essa autoridade requer, para o presi-
renda e disparidades no desenvolvimento dente, poderes reativos e proativos, como

50. No sistema eleitoral britânico, como basta uma maioria relativa (denominada plurality) para a eleição de
cada deputado no distrito, é possível, no cômputo nacional dos votos, que um partido detentor de uma
maioria relativa, ou até mesmo minoritário nesse cômputo, se aproprie da maioria absoluta das cadeiras na
House of Commons.
51. SHUGART, 1999.

54
os antes descritos, que o capacitariam a con- sobreviverem, seria no mínimo preciso con-
trapor-se às tendências particularistas dos tar com a aquiescência de uma maioria. Por-
legislativos fragmentados.52 tanto, com o tempo, o parlamentarismo de-
Para Shugart, essa configuração de po- senvolveria muitos incentivos para produzir
deres se dá nos sistemas presidencialistas de coligações majoritárias. Já o presidencialis-
sociedades muito desiguais, com agudas di- mo, na visão dos autores, teria menos incen-
visões regionais e grande extensão geográfi- tivos à costura de coligações. Em função
ca. Nesse ambiente, as chances de o parla- dessa diferença, o parlamentarismo teria mais
mentarismo ter êxito lhe parecem reduzidas. facilidade de criar maiorias duradouras a
Pode-se encarar o problema de outro partir de coligações multipartidárias e, as-
ângulo. Trata-se da necessidade ou não de sim, maior capacidade de sobrevivência com
governos de coalizão, em função da fragmen- um número maior de partidos no Legislativo
tação dos sistemas partidários. do que o presidencialismo.54
Shugart e Mainwaring falam dos presi- José Antônio Cheibub, Adam Przeworski
dentes minoritários quando há fragmenta- e Sebastian Saiegh, usando dados referentes
ção partidária, momento em que surge difi- a um período temporal bem mais longo
culdade para governar sem recurso ao (1946-1999) do que o usado por Stepan e
clientelismo ou sem tentação de atropelar Linz e abrangentes de todas as democracias
Congresso e partidos. do mundo no período coberto, vêem o pro-
Alfred Stepan e Cindy Skach, ao inves- blema diferentemente.
tigar empiricamente os sistemas de gover- Mesmo reconhecendo a vida mais curta
no das democracias, concluíram ser mais das democracias presidenciais, quando em
fácil ao parlamentarismo do que ao pre- confronto com as parlamentares, seu estudo
sidencialismo conviver com sistemas isenta as coligações e o multipartidarismo
multipartidários.53 Em estudo posterior, co- de culpa a esse respeito. Rejeitam serem
autorado com Juan Linz, Stepan, valendo-se mais difíceis as coligações no presidencia-
de dados empíricos para o período de 1979 lismo, o que levaria a impasses legislativos,
a 1989, reitera o argumento. No parlamen- paralisia legislativa e, a seguir, recursos
tarismo, para os governos se formarem e extraconstitucionais para romper o impasse

52. Figueiredo e Limongi (2002) questionam a existência no Brasil de um bem definido contraste de orientação
entre as políticas presidenciais e as dos congressistas, sendo estas particularistas, voltadas ao benefício de
indivíduos, grupos, localidades e regiões, enquanto aquelas seriam mais universalistas, voltadas para os inte-
resses nacionais. Classificando a produção legislativa de acordo com três categorias – leis gerais, grupais e
locais, e pessoais –, concluem não ter esse contraste existido na República de 46, nem existir no Brasil pós-
Constituinte de 88. Contudo, a proporção de leis gerais é muito mais alta no atual período. Concluem:
“Deve acentuar-se a capacidade do sistema político hoje de produzir leis sociais gerais. A diferença na quan-
tidade de leis particularistas produzidas em cada período é outra indicação de que a centralização do proces-
so de decisões pode neutralizar os incentivos originados nos diferentes eleitorados e no sistema eleitoral. Os
congressistas podem ter incentivos para cultivar o voto pessoal, mas as demandas particularistas não se
incorporam no sistema político”.
53. STEPAN e SKACH, 1993:233-4.
54. LINZ e STEPAN, 1996:181.

55
Presidencialismo e parlamentarismo: são importantes as instituições?

político. Seus dados mostram ser pequena peito à durabilidade diferencial desses siste-
a diferença na freqüência de coalizões en- mas. No período em exame, dezesseis de-
tre os dois sistemas e ser duvidosa a associa- mocracias (28% de 57 casos) pereceram sob
ção entre coalizões e eficácia legislativa, sistema parlamentar e vinte e três (54% de
medida pela proporção de projetos gover- 42 casos) o fizeram sob um sistema presi-
namentais aprovada no Legislativo. Mesmo dencial ... A expectativa de vida da demo-
os governos minoritários, de um único par- cracia sob o presidencialismo é de aproxi-
tido, estariam longe de fatalmente levar a madamente vinte e um anos, ao passo que
crises legislativas: 81,3% de projetos de go- sob o parlamentarismo é de setenta e três.
vernos minoritários são aprovados nos sis- Muito pertinentes são suas considerações
temas parlamentaristas e 65,2% nos sobre o sistema partidário na explicação da
presidencialistas. diferença notada de durabilidade entre os
Em outro estudo, Cheibub rejeitou sistemas:
empiricamente a hipótese da maior suscetibi-
lidade das democracias presidencialistas ao Há boas razões para crer que o
impasse legislativo, que lhes causaria a queda.55 funcionamento dessas instituições
Pesquisa muito abrangente, tanto quan- depende não apenas de fatores eco-
to ao período para o qual os dados foram nômicos e sociais, mas também da
coligidos, como quanto ao tamanho da amos- relação entre as forças políticas. Em
tra estudada – a totalidade dos sistemas po- particular, tem-se afirmado serem os
líticos existentes no período – foi empreen- sistemas presidenciais sobremodo ins-
dida por Adam Przeworski, Michael E. táveis quando seu sistema partidário
Alvarez, José Antônio Cheibub e Fernando é altamente fracionado ... A ausência
Limongi, com fundamentais conclusões so- de um partido majoritário ... tem for-
bre a diferença entre parlamentarismo e pre- te impacto sobre a estabilidade das
sidencialismo no tocante à durabilidade das democracias presidenciais, instáveis
democracias. Dizem os autores: quando nenhum partido controla
A durabilidade das democracias pode não uma maioria de assentos na câmara
depender simplesmente de condições econô- baixa. Já as perspectivas de sobrevi-
micas, sociais ou culturais, porque suas mol- vência das democracias parlamenta-
duras institucionais podem diferir na capa- res independem da existência de um
cidade de processar conflitos, em particular partido majoritário. Mas a história
quando aquelas condições tornam-se tão não acaba aqui. As democracias pre-
adversas que o desempenho da democracia sidenciais parecem muito vulneráveis
passa a ser visto como inadequado ... Parti- quando o maior partido legislativo
cularmente importante é a distinção entre controla mais do que um terço, mas
sistemas presidenciais e parlamentares ... menos do que a metade das cadeiras
Uma olhada nos padrões descritivos mostra ... As democracias presidenciais têm
de imediato que Linz tinha razão com res-

55. CHEIBUB, 2002.

56
muito menor probabilidade de sobre- separação de poderes, tendem a constituir
viver nessas condições de moderado órgãos mais burocratizados, presos a normas
fracionamento ... os sistemas presi- muito rígidas, que atuam geralmente com
denciais são especialmente quebradi- custos elevados e reduzida eficácia. Já no par-
ços quando o número de partidos efe- lamentarismo os órgãos encarregados de
tivos na legislatura está entre três e políticas reguladoras se mostram menos bu-
quatro.56 rocráticos, têm atuação mais flexível e bara-
ta e são, em geral, mais eficazes.58
Como o leitor pode ver, a discussão so- Cheibub dá notícia do crescente número
bre os sistemas de governo é atual, animada de pesquisas que estudam o impacto do sis-
e inconclusa, pois a estão enriquecendo es- tema de governo em outros aspectos, além
tudos teóricos e empíricos numerosos. Pes- das chances de sobrevivência da democra-
quisas comparativas têm permitido avaliar a cia, arrolando, entre eles, a política econô-
operação desses sistemas à luz de vários cri- mica, o crescimento econômico, a adminis-
térios, sendo importante tomá-las em consi- tração das clivagens sociais e econômicas, os
deração, nesta fase de consolidação demo- conflitos étnicos, a paz e a cooperação inter-
crática, pela qual passam inúmeros países, nacional e a “qualidade” da governação de-
inclusive o nosso.57 mocrática. Em seu texto, esse autor também
A preocupação clássica tem enfocado, investiga o impacto do sistema de governo
entre outros, os problemas de estabilidade sobre o equilíbrio orçamentário do governo
política e capacidade de cada sistema de re- central. Contudo, diversamente do tratamen-
gular os conflitos. Quanto à avaliação dos to costumeiro, centrado nas relações entre o
sistemas em função do que o governo pro- governo e a legislatura, próprias de cada sis-
duz – as chamadas políticas públicas – nu- tema de governo e que, como vimos, se pos-
merosos estudos têm sido feitos em período tulam ter maior potencial de conflito no siste-
mais recente. Terry Moe e Michael Caldwell, ma presidencial do que no parlamentar,
em artigo antes mencionado, fazem consi- Cheibub enfoca as relações entre o eleito-
derações teóricas e analisam o possível im- rado e o governo. Segundo ele, as institui-
pacto do sistema de governo nas políticas de ções presidenciais geram incentivos para que
regulação. Os sistemas presidenciais, com a os governos mantenham controle sobre os

56. PRZEWORSKI, ALVAREZ, CHEIBUB e LIMONGI, 2000:128-36.


57. As pesquisas comparativas, baseadas em análise estatística de grande número de casos, em que certas carac-
terísticas cruciais são reduzidas a um índice relativamente simples, aplicado à massa de casos, precisam ser
complementadas por estudos intensivos que cotejem instâncias de valor crítico. O multipartidarismo, por
exemplo, pode ter feições muito diversas de país para país, que o índice usado para uma grande massa de
casos não tem condições de apreender. Como lembra Friedrich, não conta apenas o número de partidos,
mas também sua relação com o eleitorado. Eram multipartidárias a França da III República e a Alemanha da
República de Weimar, mas diferente o caráter de seus partidos, sobretudo no plano parlamentar. Diversa-
mente dos instáveis grupos do parlamento francês, afirma ele, os partidos alemães eram altamente organiza-
dos, tão claramente conectados com grupos na comunidade que seus líderes, quando unidos num gabinete,
não podiam comandar uma posição suficientemente representativa na medida em que eram considerados
apenas porta-vozes desses partidos (FRIEDRICH, 1951:370-4).
58. MOE e CALDWELL, 1994:171-95.

57
Presidencialismo e parlamentarismo: são importantes as instituições?

orçamentos, e dão capacidade aos presiden-


tes de controlar o processo legislativo e de
exercer o veto.59
Trata-se de linhas novas e promissoras
de pesquisa, certamente essenciais ao pro-
gresso da “engenharia constitucional”, que
cada vez mais se baseia não apenas na explo-
ração das virtualidades teóricas de cada sis-
tema, mas também na comprovação empírica
das hipóteses com que busca orientar-se.

59. CHEIBUB, 2006.

58
Sugestões de leitura

BAGEHOT, W. The collected works of Walter Bagehot. v.5. Londres: The Economist, 1974.
__________. The English Constitution. Ithaca: Cornell University Press, 1966.
CASTRO SANTOS, M. H., MACHADO, E. M., ROCHA, P. E. O jogo orçamentário da União: relações Execu-
tivo-Legislativo na Terra do Pork-Barrel. In: DINIZ, E., AZEVEDO, S. (Orgs.). Reforma do Estado e demo-
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59
Sugestões de leitura

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VERNEY, D. V. The analysis of political systems. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1959.
WILSON, W. Congressional government. Boston: Houghton Mifflin, 1900.

60
Capítulo 2
O Sistema de Governo no Brasil

ANTÔNIO OCTÁVIO CINTRA

1. O contexto da opção rural, submetida ao poder tradicional dos


presidencialista
donos de terra. O sistema político imperial
A discussão sobre o sistema de governo era oligárquico, atrasado em relação aos sis-
mais conveniente para o Brasil tem sido in- temas europeus, que evoluíram para o go-
tensa ao longo do período republicano, tal- verno parlamentar ao longo do século XIX
vez porque a opção presidencialista, feita sob e começo do século XX.
a égide do positivismo militar, quando da Havia nele, contudo, um esboço das ins-
derrubada da monarquia, jamais tenha sido tituições básicas de competição política e “con-
totalmente digerida por expressivas lideran- testação pública”, insuficiente, por certo, para
ças de nosso mundo político e intelectual. caracterizar um regime como democrático,
Pode-se especular se o Segundo Reina- mas pelo menos voltado para a direção certa
do, sem a proclamação da República, nos de uma monarquia constitucional, parlamen-
teria levado a uma democracia parlamenta- tarista e democratizada.1 A República cortou
rista, como ocorreu com muitas monarquias a possibilidade desse desfecho.
européias naquela época. Essa trajetória, em Já nos primeiros anos de nosso presiden-
direção à democracia parlamentarista, prova- cialismo, Sílvio Romero o criticava com vi-
velmente teria esbarrado em sérios obstácu- gorosos argumentos. Para Romero, teria sido
los. O Brasil de então ainda era uma socieda- melhor se houvéssemos trilhado a via parla-
de com muito baixa participação política, mentarista, esboçada pelas instituições e prá-
eleitorado minúsculo e imensa população ticas imperiais.2

1. Ao estudar a formação histórica das democracias contemporâneas, Robert Dahl distinguiu duas dimensões
ao longo das quais os regimes evoluem na direção democrática. Uma delas, o grau de “contestação pública”,
consiste na possibilidade de haver uma oposição, com liberdade de competir, por meios pacíficos, para
chegar ao governo. A outra dimensão é o grau de inclusão do sistema: que parcela do povo pode participar
das instituições de “contestação pública”? Dahl mapeia a evolução democrática ao longo dos dois eixos,
desde o ponto de partida das “hegemonias fechadas” até o eventual desfecho plenamente democrático
(poliárquico, em sua terminologia) (DAHL, 1971). Bolívar Lamounier adaptou esse esquema, englobando a
“contestação pública” na dimensão “fortalecimento do sistema representativo” e encarando o grau de inclu-
são mais vastamente como “desconcentração socioeconômica”. Nossas instituições imperiais caminhavam
na direção positiva ao longo do primeiro eixo, mas faltava-lhes muito a percorrer ao longo do outro
(LAMOUNIER, 1996).
2. Romero (1958) praticamente antecipou, na década final do século XIX, as principais objeções ao presiden-
cialismo suscitadas por vários autores ao longo do século XX.

61
O Sistema de Governo no Brasil

O próprio Rui Barbosa, tão influente 2. Parlamentarismo:


tentativas de implantá-lo
na redação da primeira Constituição re-
publicana, parece ter aceitado o sistema No entanto, apesar desse empuxo
presidencialista com relutância, por julgar o centralizador, nota Lamounier também a
parlamentarismo incompatível com o fede- presença de traços consociativos4 na organi-
ralismo, necessário ao Brasil. zação política republicana, desde os
Anos mais tarde, Rui mudou de posição primórdios do regime: o federalismo, o
sobre a matéria, mas já era tarde, pois o bicameralismo, o mandato presidencial de
presidencialismo a essa altura estava bem quatro anos sem reeleição – destinado a es-
enraizado.3 friar tentações continuístas –, aos quais se
Bolívar Lamounier observa ter a prefe- acrescentaram, depois, a representação pro-
rência parlamentarista decaído rapidamente porcional (Código Eleitoral de 1932), o
ao se consolidar o regime republicano esta- multipartidarismo e as “grandes coalizões”.
belecido em 1889. A principal razão para esse Assim, apesar da adesão ao presidencialis-
declínio foi, segundo ele, a identificação en- mo, esses traços da República Velha teriam
tre parlamentarismo e monarquia. A ques- permitido a sobrevivência da idéia parlamen-
tão do parlamentarismo dificilmente pode- tarista – um sistema de poder compartilha-
ria medrar na Primeira República, dada a do5 – juntamente com o repúdio, por subs-
preocupação então dominante com o forta- tancial parcela da elite política, ao populismo
lecimento da Presidência e do poder central. varguista e ao presidencialismo plebiscitário.6

3. Sobre a posição de Rui Barbosa na questão presidencialismo-parlamentarismo, Lamounier (1999). Também


Brossard (1997).
4. O conceito de consociativo se aplica a sistemas políticos com diversidade de centros de poder. Neles, o
poder não é indiviso. Não se pode conquistá-lo por inteiro. Ao contrário, nos arranjos consociativos, as
minorias detêm poder de veto. O federalismo é um importante arranjo político consociativo, pois, num
sistema federal, o governo central tem competências, mas as unidades federadas conservam as suas, e é
preciso estabelecer regras de convívio e cooperação entre ambas as esferas. Os sistemas eleitorais proporcio-
nais, que permitem a representação das várias opções e preferências do eleitorado e facilitam o
multipartidarismo, são consociativos, em contraste com os sistemas majoritários, que dão a vitória à maioria
e deixam de fora a minoria. Em geral, havendo multipartidarismo, será necessário, para sustentação do
governo, coligar vários partidos. Na moderna Ciência Política, o conceito de sistema consociativo foi intro-
duzido e extensamente trabalhado por Arend Lijphart (LIJPHART, 1982).
5. Lamounier tem em mente, ao mencionar os fatores “consociativos” que favoreceriam a persistência da
proposta parlamentarista, não o sistema parlamentar britânico, de governo de gabinete, senão o parlamen-
tarismo dos países continentais da Europa, assentados em multipartidarismo e, em geral, no consociativismo.
Neles, a maioria parlamentar geralmente é uma coligação de partidos, que atende aos interesses mais impor-
tantes do país, não só os originados na estrutura de classe, mas também, entre outros, os de caráter étnico-
cultural, religioso e regional.
6. LAMOUNIER, 1991:43. Por presidencialismo plebiscitário se entende aquele em que o líder mantém a
ficção de uma ligação direta com o povo, sem intermediação de partidos e instituições. Opositor ferrenho
do presidencialismo plebiscitário e incansável propugnador da causa parlamentarista foi o deputado gaúcho
Raul Pilla, cujos pronunciamentos mais importantes estão compilados em Raul Pilla (Perfis Parlamentares,
16), Brasília: Câmara dos Deputados, 1991.

62
O parlamentarismo teve uma chance realizado, por antecipação, em janeiro de
quando instituído pelo Ato Adicional,7 edi- 1963.8
tado para resolver a crise política advinda O Ato Adicional de 1961 instituía um
com a renúncia de Jânio Quadros à Presi- parlamentarismo puro, com presidente elei-
dência e o subseqüente veto militar à posse to pelo parlamento, mas com uma fase de
do vice-presidente João Goulart, em 1961. transição. Só depois de findo o mandato de
O Ato Adicional representava, porém, Goulart os presidentes passariam a eleger-se
uma capitis diminutio para Goulart, eleito indiretamente, pelo Congresso Nacional.
dentro da regra do sistema presidencial, a Incumbir-lhes-ia nomear o primeiro-minis-
qual lhe daria, como presidente, os poderes tro – chamado presidente do Conselho de
característicos do cargo nesse sistema. No Ministros – e, por indicação deste, os res-
parlamentarismo, foram-lhe retiradas mui- tantes ministros de Estado. A exoneração dos
tas prerrogativas. Essa diminuição do poder ministros dependeria, no entanto, da retira-
presidencial, negociada num contexto de da de confiança pela Câmara e não de deci-
veto militar ao vice-presidente, colou um são presidencial. Para ter validade, os atos
estigma golpista ao parlamentarismo, do qual do presidente requereriam a referenda do
se valem até hoje seus oponentes. presidente do Conselho e dos ministros com-
O parlamentarismo de 1961, nascido sob petentes. A iniciativa dos projetos de lei do
maus auspícios e numa situação de crise, governo era do presidente do Conselho, não
operou mal, sabotado pelo presidente e pe- do presidente da República. Não se previam
los próprios ministros, não tendo sido difí- decretos-lei ou medidas provisórias. Uma
cil convencer a população a rejeitá-lo, pela seqüência de moções de desconfiança auto-
opinião majoritária a favor da volta dos po- rizaria o presidente a dissolver a Câmara dos
deres do presidente, expressa em plebiscito Deputados e a convocar novas eleições.

7. Emenda Constitucional n. 4 à Constituição de 1946, de 2.9.1961.


8. Segundo observa Alberto Carlos Almeida, a “questão pública mais relevante durante o período parlamenta-
rista foi o sistema de governo. Todos os atores políticos se comportaram tendo em vista a antecipação, ou
não, do referendo que iria abolir o parlamentarismo (...) A posição política das principais lideranças com
relação ao parlamentarismo foi determinada por suas ambições políticas, por seus cálculos de poder. O
presidente Goulart desejava a readoção do presidencialismo simplesmente porque queria governar com
plenos poderes, isto é, não queria dividir as atribuições de Poder Executivo com primeiros-ministros e gabi-
netes parlamentaristas. Por seu turno, o movimento trabalhista, o CGT e os sindicatos de uma maneira geral,
acompanhados pela esquerda radical, lutaram pela abolição do parlamentarismo porque consideravam que
apenas o sistema presidencial de governo asseguraria a implementação das reformas de base. Na realidade,
o sistema de governo poderia funcionar ou como um obstáculo às reformas, ou como um meio para obtê-
las. Já os candidatos à eleição presidencial de 1965 (...) não estavam particularmente preocupados em faci-
litar ou dificultar a realização de reformas de base (...) Um outro apoio importante ao presidencialismo foi
dado pelos militares (...) Os militares preferiam o presidencialismo ao parlamentarismo também por causa
de questões de poder: o sistema parlamentar de governo abria caminho para a diminuição do poder militar
por meio da criação do Ministério da Defesa. Todos os militares (...) sentiam-se ameaçados pelo parlamen-
tarismo” (ALMEIDA, 1998:168-9). Sobre a experiência parlamentarista, veja-se também Skidmore (1982).
A oposição militar ao sistema parlamentarista de que fala Almeida é observada também em outros países,
pelo temor de se perder a unidade de comando (comunicação pessoal de Marcelo Lacombe).

63
O Sistema de Governo no Brasil

Com o regime autoritário instalado em presidente da República seria eleito direta-


1964, afastou-se qualquer perspectiva de re- mente, por maioria absoluta, para mandato
considerar o modelo parlamentarista para o de seis anos. Caber-lhe-ia indicar o presidente
país, pois o pensamento militar rejeitava a do Conselho de Ministros, “após consulta
idéia de compartilhar poderes com um parla- às correntes político-partidárias que com-
mento, menos ainda numa situação definida põem a maioria do Congresso Nacional”. O
pelos líderes militares como de “guerra revo- presidente da República poderia exonerar
lucionária”. A classe política a custo era tole- por iniciativa própria o presidente do Con-
rada, pois o estilo parlamentar de agir, com selho (art. 233), que também poderia cair
negociações e arrastadas deliberações, era por moção de censura ou recusa de confian-
considerado politiquice. Um regime centrado ça votada pela maioria absoluta da Câmara
no parlamento e nos políticos era a antítese dos Deputados.
do que os novos governantes defendiam. Nesse ponto – o poder do presidente da
A redemocratização, porém, deu novo República de exonerar o primeiro-ministro
alento aos parlamentaristas, que se anima- –, o anteprojeto da Comissão se afastava do
ram com a convocação da Assembléia Nacio- semipresidencialismo francês, no qual, ape-
nal Constituinte. A comissão constituída para sar de a indicação do primeiro-ministro ca-
elaborar o anteprojeto da nova Carta foi pre- ber ao presidente, apenas a Assembléia Na-
sidida por Afonso Arinos de Mello Franco, cional pode derrubá-lo. Ou seja, na propos-
parlamentarista de peso.9 ta Arinos, teríamos o gabinete duplamente
No seio da Comissão Arinos – informa- responsável, perante a Câmara, mas também
nos Lamounier, que dela participou – con- perante o presidente da República. Não se
frontaram-se defensores de posições diferen- contemplavam decretos-lei ou medidas pro-
tes sobre o sistema de governo, que ele as- visórias no processo legislativo.
sim agrupa: os presidencialistas puros, os A escolha de um sistema parlamenta-
parlamentaristas mitigados,10 os adeptos do rista (mesmo mantendo a figura de um
parlamentarismo dual, no molde francês, presidente eleito diretamente e com amplos
“contanto que o mecanismo de escolha do poderes, até mesmo o de exonerar motu
primeiro-ministro e sua esfera de atuação proprio o primeiro-ministro) teria sido “uma
fossem mais claramente parlamentaristas do das razões por que o presidente Sarney
que o previsto na Constituição francesa”,11 engavetou o relatório da Comissão, em vez
e os parlamentaristas puros. de mandá-lo oficialmente, como subsídio
Na versão final do anteprojeto, prevale- para futuros debates, ao Congresso Consti-
ceu a idéia do parlamentarismo dual.12 O tuinte”.13

9. LAMOUNIER, 1991:45-6.
10. Defensores da presença de um ministro-coordenador ou de um gabinete com forte influência presidencial
(modelo finlandês), mas sem um primeiro-ministro dependente da confiança parlamentar.
11. LAMOUNIER, 1991:46-7.
12. Anteprojeto Constitucional, Brasília: Câmara dos Deputados, 1987.
13. LAMOUNIER, 1991:47.

64
A opção final da Assembléia Nacional nome para primeiro-ministro e do seu Pro-
Constituinte foi pelo sistema presidencialista.14 grama de Governo”.
Os constituintes, porém, aparentemente in- A decisão dos constituintes de levar a
seguros quanto a essa decisão, atenuaram- opção entre sistemas de governo a plebisci-
na com a estipulação de que haveria um ple- to foi altamente questionável, pois essa con-
biscito, cinco anos depois de promulgada a sulta serve quando o assunto a ser votado é
Carta, no qual o eleitorado deveria opinar redutível a quesitos simples, para responder
sobre o sistema de governo – presidencial com o “sim” ou “não”, nunca para assuntos
ou parlamentar – e sua forma – república ou extremamente complexos, sobre cujas opções
monarquia constitucional. divirjam, e muito, os próprios especialistas,
Para o plebiscito, os congressistas defen- como é o caso de sistema de governo. Os
sores do sistema parlamentar cuidaram de delegados não quiseram usar de sua delega-
elaborar detalhada proposta de sua estrutu- ção e se omitiram de decidir, devolvendo a
ra, que orientasse a escolha do eleitorado e responsabilidade ao mandante. O plebisci-
expressasse um compromisso público quan- to, realizado em setembro de 1993, deu a vi-
to ao que seria implantado, caso o veredicto tória ao presidencialismo, por ampla margem.
popular fosse a favor do parlamentarismo.
O modelo proposto seria, na verdade,
3. Resistências
semipresidencial. O presidente seria esco-
lhido em eleição popular direta. Competir- Por que a recusa ao parlamentarismo?
lhe-ia, privativamente, “indicar, nomear e São fortes os preconceitos relativos a esse
exonerar o primeiro-ministro e, por indi- sistema, que levam à sua previsível rejei-
cação deste, os Ministros de Estado” e, tam- ção. Se, no plano da elite, logra o parla-
bém, “dissolver a Câmara dos Deputados mentarismo razoável apoio, seja em sua for-
e convocar eleições extraordinárias” quan- ma mais pura, seja, crescentemente, sob a
do não se lograsse a aprovação de indica- forma dos modelos híbridos (os vários tipos
dos a primeiro-ministro ou do Programa de semipresidencialismo), esse apoio não se
de Governo de primeiro-ministro cuja repete na opinião pública.
investidura tivesse sido aprovada pela mai- Acredita-se que a tarefa de desenvolver
oria parlamentar. A sobrevivência do pri- o país, modernizá-lo, romper os bloqueios a
meiro-ministro no cargo dependeria da con- seu progresso, requeira concentração de po-
fiança da Câmara. A moção de censura, por der num líder carismático, ungido pelo man-
sua vez, em linha com a do parlamentarismo dato popular para mudar o sistema. Não se
alemão, da “moção de censura construtiva”, vê, no parlamentarismo, liderança forte. Pa-
deveria “conter a simultânea indicação do rece um sistema de poder muito diluído, um

14. Nesse desfecho, o próprio presidente Sarney teve decisivo papel. Com popularidade em queda, após o fracasso
dos planos de estabilização, e temeroso de ter o mandato encurtado para quatro anos – ademais, esvaziado de
poderes, com a adoção do parlamentarismo, cuja escolha parecia certa numa dada fase dos trabalhos constitu-
intes –, empenhou-se vivamente, com sucesso, na fixação do mandato presidencial em cinco anos e na manu-
tenção do presidencialismo como sistema de governo.

65
O Sistema de Governo no Brasil

governo de deputados que fazem e desfazem mo real, do qual podem valer-se os oligarcas
governos a seu bel-prazer, descurando da regionais nos estados menos desenvolvidos.
governação. Os parlamentares representa- Ademais, a organização do Judiciário é alta-
riam, em geral, interesses circunscritos, pa- mente descentralizada e o Ministério Públi-
roquiais, em contraposição aos presidentes, co tem ampla autonomia.
supostamente mais sensíveis aos interesses Essa realidade traduziria um ideal de
modernos, do país como um todo, pelo fato democracia muito mais “como bloqueio ao
mesmo de se elegerem, em contraposição poder da maioria” do que como a idéia
aos deputados e senadores, na circunscri- oposta, cujo cerne é “a legitimação eleito-
ção nacional. ral de uma maioria que assuma plenamente
Junte-se a tais percepções o desprestígio a responsabilidade pela formulação e
do Poder Legislativo perante a opinião pú- implementação de programas de governo”.15
blica, problema, aliás, de ordem mundial Como consegue mover-se o presidencia-
nas democracias contemporâneas. O gover- lismo brasileiro, nesse contexto cheio de
no parlamentarista nos prenderia, portan- obstáculos a uma ação unificada, e lograr um
to, de acordo com essas percepções, ao atra- mínimo de eficácia?
so, aos poderes oligárquicos regionais e à
inoperância institucional.
São percepções enganosas e, no seu con- 4. Com que ficamos:
o presidencialismo brasileiro
junto, deixam transparecer exigências
conflitantes sobre nosso sistema de governo Até uns dois ou três decênios atrás, o sis-
presidencial. Um presidente portador de uma tema presidencial era pouco estudado, exceto
missão revolucionária, demiurgo, esbarraria em sua matriz norte-americana. Nesse caso,
no sistema político cheio de pontos de blo- estudava-se não como um sistema de gover-
queio à tomada de decisões e, sobretudo, à no a contrapor ao parlamentarismo, dentro
implementação delas. O presidente brasilei- de uma análise comparativa, como hoje se
ro tem de compor uma base de sustentação tornou habitual, mas sim como objeto de
num congresso pluripartidário, sem uma análise política de per si. Como, nos Esta-
agremiação majoritária suficiente, sequer, dos Unidos, o sistema presidencial era bas-
para garantir a aprovação de leis ordinárias. tante institucionalizado, estável, e existia há
As decisões exigentes de quórum especial longo tempo, era natural encarar outros sis-
podem dar, a cada parceiro da coalizão, mes- temas presidenciais, inclusive o brasileiro –
mo às pequenas agremiações, poder de bar- instáveis, suscetíveis de recaídas ditatoriais
ganha incomensurável em votações –, antes como anomalias ou desvios do pa-
conflituosas. Ademais, o Legislativo é drão lá estabelecido, do que como modelos
bicameral, com o Senado equiparado à Câ- sustentáveis. O bipartidarismo e o sistema
mara em suas competências e significando eleitoral majoritário, de maiorias relativas,
mais uma instância legislativa a superar na aqui ausentes, eram praticamente encarados
aprovação de um projeto. Há um federalis- quase como se fossem requisitos do bom

15. LAMOUNIER, 1996:24.

66
funcionamento do sistema. Sem eles, nenhu- Na República de 46, o Brasil teria tido
ma esperança.
Essa perspectiva começou a mudar em treze ministérios diferentes, to-
anos mais recentes. O sistema presidencial, mando-se por critério alterações na
em suas variações, começou a ser objeto de composição do gabinete que promo-
investigação sistemática. Um esforço pionei- veram mudança na ocupação de mi-
ro, nessa nova vertente, foi empreendido por nistérios pelos diferentes partidos (...)
Sérgio Abranches, em texto escrito algum em nenhum caso, o governo susten-
tempo antes da promulgação da Constitui- tou-se em coalizões mínimas (...) o
ção de 1988. Nele, identificava o presiden- cálculo dominante requeria coalizões
cialismo, o federalismo, o bicameralismo, o ampliadas, seja por razões de susten-
multipartidarismo e a representação propor- tação partidário-parlamentar, seja por
cional como “as bases de nossa tradição re- razões de apoio regional.17
publicana”. Essa conjugação de institutos,
sedimentada ao longo de decênios, expres- Tanto a incorporação da pluralidade de
saria “necessidades e contradições, de natu- centros de poder no âmago do Executivo,
reza social, econômica, política e cultural, mediante um “alto fracionamento governa-
que identificam histórica e estruturalmente mental” entre vários parceiros, quanto a
o processo de nossa formação social”. Mas, tentativa de escapar dessa incorporação, por
apontava Abranches, esses vários elementos meio de “uma grande coalizão concentra-
nem sempre coexistiam pacificamente. da”, eram facas de dois gumes. O alto
Para ele, o conflito entre o Executivo e o fracionamento dava ao presidente graus de
Legislativo “tem sido elemento historicamen- liberdade para “manobras internas”, pela
te crítico para a estabilidade democrática no exploração dos choques entre os parceiros,
Brasil, em grande medida por causa dos efei- mas também o tornava prisioneiro de com-
tos da fragmentação na composição das for- promissos múltiplos, partidários e regionais,
ças políticas representadas no Congresso e pois sua autoridade podia “ser contrastada
da agenda inflacionada de problemas e de- por lideranças dos outros partidos e por li-
mandas imposta ao Executivo”.16 deranças regionais, sobretudo dos governa-
Em seu argumento, indicava esse autor a dores”.18
singularidade brasileira de combinar Já a coalizão concentrada – possível quan-
proporcionalidade, multipartidarismo e “pre- do o tamanho do partido presidencial lhe
sidencialismo imperial”, além de organizar o permitia associar-se com número menor de
Executivo com base em grandes coalizões. O outros parceiros – dava, sim, maior autono-
“presidencialismo de coalizão”, como o de- mia ao presidente em relação aos parceiros
nominou, costurava as coalizões ao longo de menores da aliança, mas ele precisava “man-
dois eixos, o partidário e o regional-estadual. ter mais estreita sintonia com seu próprio

16. ABRANCHES, 1988:8.


17. ABRANCHES, 1988:22-3.
18. ABRANCHES, 1988:26.

67
O Sistema de Governo no Brasil

partido”. Sendo este heterogêneo, a auto- Na verdade, ele antecipa o que sobre esse
ridade presidencial continuaria confronta- regime se escreveu a partir dos primeiros
da com lideranças regionais e facções in- anos da década dos 90 no século passado.22
ternas do partido. E o risco maior, atalhava Suas hipóteses e a própria idéia de “presi-
Abranches, “adviria de um rompimento do dencialismo de coalizão”, atualmente incor-
partido com o presidente, deixando-o ape- porada ao discurso tanto da imprensa quan-
nas com o bloco de partidos minoritários da to do próprio meio político nacional, têm
aliança”.19 sido tema de trabalhos posteriores sobre o
Em suma, o “presidencialismo de coali- funcionamento de nosso sistema de gover-
zão” seria, na visão de Sérgio Abranches, um
sistema instável, de alto risco, sempre na
dependência de seu desempenho corrente e
de sua disposição “de respeitar estritamente
os pontos ideológicos ou programáticos con-
siderados inegociáveis, nem sempre explíci-
ta e coerentemente fixados na fase de for-
mação da coalizão”.20 Em alguns dos cenários
de crise a que o sistema seria, figurariam
tentativas presidenciais de enfrentar o Con-
gresso e “afirmar a autoridade numa atitude
bonapartista ou cesarista altamente prejudi-
cial à normalidade democrática”.21

5. Como funciona o
Fernando Henrique Cardoso transmite a faixa
presidencialismo brasileiro
presidencial a Luiz Inácio Lula da Silva (01/01/2003).
Abranches identifica, pois, a especificidade
do regime presidencial entre nós, desvendan- no, dentro do marco estabelecido pela Cons-
do o conjunto de fatores que o condicionam, tituição de 1988. Esse marco, ainda não
mas lhe vê a operação habitual e os cursos completamente gizado quando ele escreveu
futuros que pode tomar como problemáticos. seu texto pioneiro, inclui algumas novas

19. ABRANCHES, 1988:26.


20. ABRANCHES, 1988:27.
21. Em textos mais recentes, Abranches continua vendo o “presidencialismo de coalizão” como arranjo precá-
rio. Falando da crise fiscal estrutural do Estado brasileiro, por exemplo, conclui: “A política de coalizões no
Brasil, nesse contexto, induz ao clientelismo e à patronagem. A coalizão é uma necessidade intrínseca de
nosso sistema sócio-político, caracterizado por um grau de fragmentação partidária que tem se mostrado
irredutível por regras eleitorais ou legislação repressiva para criação de partidos ou formação de alianças
eleitorais” (ABRANCHES, 2005:44).
22. A visão contemporânea foi precedida, contudo, pelo que escreveram autores tão antigos quanto Bagehot e
Sílvio Romero, no século XIX, e Lowenstein, nos anos 40 do século XX. Ver o capítulo “Presidencialismo e
parlamentarismo: são importantes as instituições?”, neste livro.

68
características que, para os estudos mais re- tanto, no conjunto, a correspondência en-
centes, neutralizam as tendências à instabili- tre o peso parlamentar dos partidos e sua
dade que Abranches temia serem inerentes ao representação ministerial traria solidez
sistema. legislativa ao gabinete. Quanto maior essa
Um aspecto cuja avaliação mudou, em correspondência, tanto maior seria a dis-
período mais recente, é o da combinação do ciplina dos partidos integrantes do gabi-
presidencialismo com o multipartidarismo. Os nete no apoio às votações de interesse do
estudiosos que sucederam Abranches procu- Executivo. A medida estatística dessa cor-
raram mostrar ser possível, ao presidencialis- respondência é o índice de coalescência,
mo, sustentar-se em coalizões multipartidárias, tanto maior quanto mais justa a propor-
corriqueiras em boa parte dos sistemas parla- cionalidade da distribuição de pastas mi-
mentares. Para eles, o presidencialismo de nisteriais entre os partidos de apoio ao
múltiplos partidos não predispõe necessaria- governo. 23
mente a crises, desde que satisfeitas algumas Os dados de Amorim Neto indicam que
condições facilitadoras da cooperação entre o o governo de Fernando Henrique Cardoso
Executivo e o Legislativo. teria estado muito mais próximo de um go-
Um dos primeiros autores a explorar sis- verno de coalizão de estilo europeu do que
tematicamente as idéias lançadas por os de Fernando Collor e Itamar Franco.24
Abranches foi Octávio Amorim Neto. Verifi- Ou seja, o presidencialismo de coalizão não
cou ele, por exemplo, terem todos os nossos constitui um modelo estático, mas sim
ministérios, entre 1985 e 2002, políticos de uma situação variável, conforme, sobre-
mais de um partido em sua composição, re- tudo, para esse autor, o grau de coales-
sultado de uma coalizão multipartidária. cência atingido.
Se nos regimes parlamentaristas europeus Estudos mais recentes, do próprio
se tecem as coalizões segundo a regra da Amorim Neto (veja-se seu capítulo neste
proporcionalidade, dando-se a cada partido livro) e de outros autores, já incorporam
uma fatia do ministério aproximadamente os dados do governo Lula.25 Amorim Neto
proporcional a seu peso na base parlamentar, observa, em seu capítulo, terem os minis-
no caso brasileiro a partilha dos postos minis- térios organizados, desde o governo Sarney
teriais nem sempre segue esse norma, por te- até o de Lula, sido arranjos multipartidários
rem os presidentes a faculdade constitucional com maior ou menor grau de fragmen-
de nomear livremente seus ministros. Entre- tação e heterogeneidade ideológica. Mas

23. O índice de coalescência é obtido mediante a fórmula seguinte: Índice de coalescência = 1-1/2 ∑ |∑i-Mi|,
na qual Mi= % de ministérios recebidos pelo partido i; ∑i= % de cadeiras ocupadas pelo partido i na
coalizão de governo.
24. AMORIM NETO, 2000.
25. Os dados mais recentes, referentes ao governo Lula, mostram que, se inicialmente, apesar da alta proporção
de petistas à frente de ministérios (18 ministérios em 30), a taxa de coalescência era de 0,64, já no segundo
semestre de 2005 descera para 0,51. A pontuação inicial é paradoxalmente alta, mas tal fato resulta de ter
Lula reunido uma coalizão com vários pequenos partidos. Ao receberem eles ministérios, sobe a
proporcionalidade conjunta, não obstante a desproporção introduzida pela alta quota ministerial do PT.
Veja-se o capítulo de Amorim Neto neste livro.

69
O Sistema de Governo no Brasil

o de Lula é o que mais ampliou o número de são um dos elementos na operação do presi-
partidos, chegando a nove. Quanto à hetero- dencialismo brasileiro, mas outros fatores
geneidade ideológica, apenas o segundo e o também estão presentes. Santos analisa os
terceiro de Collor dela escaparam, por se novos instrumentos disponíveis na Nova
concentrarem mais à direita. Contudo, no República, ausentes na de 46, que dão ao
caso do governo Lula, como acentua Fabia- Executivo o chamado “poder de agenda”, e
no Santos, essa heterogeneidade aumentou que, juntamente com o grau de coalescência
bastante.26 ministerial, trazem capacidade governativa ao
Esse último autor observa, com base nos arranjo político presidencialista entre nós.27
resultados de Amorim Neto, que, no caso Em suma, o presidente e os líderes possuem
brasileiro, quase todos os “gabinetes” coman- prerrogativas que induzem a cooperação.
dam uma maioria nominal na Câmara. Mas, Uma delas é o poder presidencial de edi-
indaga-se ele, que ocorre com a disciplina tar as medidas provisórias. Santos discute as
partidária? Nas diversas coalizões analisa- conseqüências dessa prerrogativa sobre o pa-
das por Amorim Neto, a disciplina partidá- drão de relação entre o Executivo e o
ria foi função principalmente do grau de Legislativo. Se os presidentes optam pelo go-
coalescência do ministério, mas influem, tam- verno de coalizão, sendo os postos princi-
bém, o momento do tempo quanto ao de- pais distribuídos proporcionalmente entre os
senrolar do mandato presidencial e, depen- partidos de apoio, tentarão, ao editar as MPs,
dendo do partido, a sua distância ideológica observar o interesse da maioria governativa
em relação ao Executivo. O resultado final e tentarão governar por meios ordinários. É
indica que uma maior proporcionalidade o caso de Cardoso, com gabinetes
entre o peso dos partidos no ministério e sua coalescentes e ideologicamente menos hete-
contribuição em cadeiras para a coalizão go- rogêneos, que permitiram que os textos das
vernamental no Legislativo tem efeitos po- MPs, nas diversas reedições, sofressem alte-
sitivos sobre a disciplina dos partidos rações negociadas, mas não o de Collor, cujo
governantes, mas a disciplina decresce du- ministério não era inclusivo e que abusou
rante o mandato presidencial. de MPs originais.28
A coalescência maior ou menor do mi- No governo Collor, o Congresso acenou,
nistério e os demais fatores acima arrolados num certo ponto, com a possibilidade de uma

26. “O padrão atual sofre alteração significativa, pois o tom do posicionamento dos partidos deixa de ser ideo-
lógico, tornando-se mais propriamente governo (com partidos de esquerda e direita) e independentes (PMDB
e PPB) versus oposição. Aqui, já podemos observar uma mudança significativa na operação do presidencia-
lismo de coalizão” (SANTOS, 2006:.234).
27. Esses instrumentos são examinados no capítulo “A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da
Ciência Política”, deste livro.
28. Conforme a análise de Amorim e Tafner (2002). Nessa interpretação, as MPs protegem os membros da
coalizão da repercussão de medidas impopulares. Com a reedição, os líderes partidários não assumiam
diretamente a responsabilidade pública pela aprovação das MPs, embora participassem das modificações no
texto (FIGUEIREDO, 2000). Santos discute se tal prática seria uma abdicação do Legislativo. No governo
de Cardoso, sobretudo, resultou de ações concertadas entre o governo e a maioria de apoio, e não de
abdicação (SANTOS, 2006:229).

70
lei disciplinadora do uso das MPs pelo Exe- nejo de uma coalizão com parceiros muito
cutivo, de que resultou o arrefecimento de distantes em termos de inserção social, tra-
seu uso.29 No segundo mandato de Cardo- jetória política e visão de mundo.
so, aprovou-se Emenda Constitucional que Não fugindo da parte propositiva, San-
impõe nova disciplina ao uso do instrumen- tos considera que o governo deveria organi-
to, ao limitar-lhe a reedição a uma só vez.30 zar-se com mais homogeneidade e negociar
A não deliberação sobre a MP, decorridos aprovação de agenda com os partidos de opo-
quarenta e cinco dias de sua publicação, leva- sição nas comissões do Congresso. Nessas
a ao regime de urgência, sob o qual ficam condições, sustenta que o ganho em termos
“sobrestadas, até que se ultime a votação, de transparência das negociações e coorde-
todas as demais deliberações legislativas da nação intragovernamental superaria, certa-
Casa em que estiver tramitando”. É o cha- mente, os custos em termos de conflitos
mado “trancamento de pauta”.31 Como mos- intrabase no Legislativo e de disputas por
tra Santos, em vez de diminuir o uso das MPs, espaço de poder no Executivo.
passou-se a editar mais, e maior número de- Em suma, nem todos os arranjos de nos-
las passou a ser rejeitado. so presidencialismo de coalizão são funcio-
Para ele, retirou-se, então, o manto pro- nais e aceitáveis. As coalizões contribuem
tetor das reedições e tal fato, conjugado com para o processo governativo; todavia, consi-
a obrigatoriedade da manifestação do plená- dera ele, devem buscar-se outras opções,
rio sobre esses decretos-lei, trazem à tona a como alternativa a ministérios tão amplos,
possibilidade de conflito aberto e público.32 na linha do que ocorre nos Estados Unidos,
A nova característica que a coalizão go- com os chamados governos divididos, e em
vernamental exibe no governo Lula, dada sua muitos regimes parlamentares europeus, em
baixa coerência ideológica, substituindo-se que se dão governos de minoria. Em outras
as votações pautadas pela divisão ideológica palavras, o presidencialismo de coalizão não
pelas que opõem maioria governista – que é, para ele, a única opção num sistema como
une esquerda e direita – versus oposição, o brasileiro, e pode ser mesmo muito custo-
denota, segundo entende, uma mudança sig- sa politicamente.
nificativa na operação do presidencialismo Também Fernando Limongi dedica re-
de coalizão.33 E essa mudança tem custo alto. cente estudo ao “presidencialismo de coa-
Para ele, boa parte das dificuldades pelas lizão”. Por que, indaga-se ele, os que vêem
quais tem passado o governo decorre do ma- nosso sistema como inviável ignoram a

29. O assunto foi tratado por Power (1998).


30. Emenda Constitucional nº 32/2001.
31. Constituição Federal, art. 62, § 6º.
32. SANTOS, 2006:229. Sérgio Abranches, em texto recente, julga que “o trancamento de pauta 45 dias após o
recebimento da MP pelo Congresso contribuiu significativamente para o aumento da paralisia legislativa”.
Abranches vê nessa conseqüência da sistemática sobre as MPs implantada em 2001 – o trancamento de pauta
– um instrumento de que se vale o Executivo para evitar a aprovação de iniciativas do Legislativo que não lhe
interessam. Para ele, recurso usado “nos momentos de fraqueza presidencial decorrentes de problemas na
gestão de sua coalizão parlamentar” (ABRANCHES, 2007:15).
33. SANTOS, 2006:234.

71
O Sistema de Governo no Brasil

opção de os presidentes poderem contar com nesse aspecto. Mesmo com todos os pode-
uma coalizão no Congresso? Não há, nesse res que a Constituição lhe confere, para pre-
caso, para Limongi, que pensar diferente- dominar no processo legislativo e ser bem
mente do que ocorre no parlamentarismo. sucedido, o chefe do Executivo precisa do
Para ele, o presidencialismo de coalizão se- apoio de uma maioria. As MPs, por exem-
ria a maneira de superar os obstáculos que plo, só se tornam leis se aprovadas pelo ple-
autores, como Abranches e Linz, identificam nário. E o governo governa porque conta
no sistema presidencial, por pressuporem com apoio da maioria. Caso sua vontade
que a separação de poderes significa confli- prevalecesse contra a da maioria, aí, sim,
to entre eles. Nessa visão, as relações entre teríamos ditadura disfarçada. Limongi arre-
o Poder Executivo e o Legislativo são pensa- mata sua exposição relembrando que os da-
das a partir de uma perspectiva vertical, como dos relativos ao sucesso e à dominância do
se tivessem vontades divergentes e, em últi- governo reforçam sua tese da grande proxi-
ma instância, inconciliáveis.34 midade entre a forma de operar do presi-
Para Limongi, essas análises assumem se- dencialismo brasileiro e a dos governos par-
rem nossos partidos incapazes de sustentar lamentaristas.
coalizões legislativas. Vêem o presidencia- O ensaio de Lúcio R. Rennó, no mesmo
lismo como infenso a partidos fortes, e a fra- livro em que constam os textos de Fabiano
queza dos partidos que nele atuam seria agra- Santos e Fernando Limongi aqui discutidos,
vada, no Brasil, pela legislação eleitoral e pela procede tanto a uma útil classificação das
heterogeneidade social. Torna-se, então, di- opiniões divergentes, na recente produção
fícil vê-los como capazes de organizar e acadêmica sobre como opera nosso presiden-
estruturar o apoio político ao presidente. cialismo, quanto à apresentação do enfoque
Ao contrário, sustenta Limongi, a inves- que ele próprio e colegas vêm desenvolven-
tigação empírica tem mostrado que os pre- do sobre a matéria.
sidentes formam coalizões para governar, Ao contrário da maioria dos que tratam
sendo a lógica de formação de governos no do nosso sistema de governo, que tende a
presidencialismo e no parlamentarismo, no deixar o tema em segundo plano, Rennó
fundo, a mesma. suscita de modo explícito o problema
Limongi toca num ponto crítico: não se normativo que nosso arcabouço político
podem encarar os dois poderes como se fos- enfrenta, ou seja, as “limitações, entraves e
sem duas entidades programadaos para se possíveis implicações negativas que o dese-
oporem uma à outra. Os legisladores per- nho institucional presente possa ter para a
tencem a partidos e têm interesses democracia no Brasil”.35
conflitantes. Os governistas se beneficiam do Não ignorando os argumentos dos que
sucesso do Executivo, os outros querem seu vêem positivamente o sistema atual, entre
fracasso. Portanto, insiste ele, não são, nos- eles Limongi e, ainda que mais crítico, San-
so sistema e o parlamentarista, diferentes tos, Rennó agrupa as visões negativas em três

34. LIMONGI, 2006:241.


35. RENNÓ, 2006:260.

72
conjuntos, de modo similar ao que faz Vicente ao longo das fases de uma mesma adminis-
Palermo.36 No primeiro, estão as análises mais tração. Do ponto de vista teórico, postula
pessimistas, as dos que descrêem da capaci- que o desenho institucional não condiciona
dade governativa do sistema. Esse grupo jul- de forma fixa o comportamento dos atores,
ga que os incentivos institucionais simples- pois gera incentivos contraditórios “que
mente levam à paralisia decisória ou ao ampliam em demasia a margem de manobra
alto custo da negociação entre Executivo e de governantes e dão muito espaço para que
Legislativo, negociação essa que se dá de a capacidade individual dos governantes te-
forma individualizada entre deputados e nha papel central no gerenciamento da base
presidente.37 de apoio no Congresso e na formação de
O segundo grupo, igualmente discutido maiorias”.
no capítulo mencionado, é o dos que, como Ou o Executivo passa ao largo dos inte-
Carlos Pereira e Bernardo Mueller, vêem o resses do Legislativo, ou age em comunhão
sistema movido à base da troca de recursos de interesses com ele. Quando esta última
(cargos, emendas orçamentárias), em vez de situação ocorre, o Legislativo pode delegar
apenas pela discussão programática entre os ao Executivo a iniciativa das propostas, e a
partidos. Contudo, ao mesmo tempo, reco- delegação se faz pela maior facilidade do
nhecem o papel de relevo na obtenção das Executivo em coordenar a ação coletiva.
decisões parlamentares de interesse do Exe- Nesse ponto, Rennó discute a contribui-
cutivo exercido pelas lideranças partidárias. ção, já mencionada, de Amorim Neto e
Como assinala Rennó, ambas as perspec- Tafner à análise das MPs. Para esses autores,
tivas centram-se na construção de maiorias elas não vão necessariamente de encontro aos
no Legislativo e os mecanismos de que se interesses dos parlamentares. A maioria go-
vale o Executivo para lograr a cooperação vernista pode dar-lhes apoio condicional,
dos deputados. A terceira visão crítica, que quando o seu conteúdo programático pareça
ele próprio e alguns colegas têm desenvolvi- satisfazer-lhe as preferências. O Legislativo
do, tem o foco mais na natureza da relação fica atento às reações da sociedade e da
entre o Executivo e o Legislativo. É relação economia à MP. Sendo negativas, pode
de delegação, ou de ação unilateral?38 Esse questioná-la. Segundo os autores, porém, tal
ângulo de encarar o assunto, repisemos, leva mecânica teria operado bem apenas no go-
a não ignorar o problema da qualidade de verno de Fernando Henrique Cardoso, não
nossa democracia. nos períodos anteriores, nos quais “o siste-
Nessa terceira visão, o presidencialismo ma não funcionava de acordo com a pre-
de coalizão não funciona uniformemente ao missa de que o Legislativo exercia controles
longo das distintas administrações e, mesmo, claros sobre o Executivo e que este último

36. PALERMO, 2000. A contribuição de Palermo é analisada no capítulo “A Câmara dos Deputados na Nova
República: a visão da Ciência Política”, neste volume.
37. Alguns dos principais autores que esposam essa visão, tais como Barry Ames e Scott Mainwaring, são tam-
bém discutidos no capítulo “A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política”, neste
volume.
38. PEREIRA, POWER, RENNÓ, 2005.

73
O Sistema de Governo no Brasil

conseguia construir maiorias consistentes e ordem teórica. O livro é, também, a análise


cooperativas”.39 de um protagonista privilegiado dos even-
Para Rennó, o presidencialismo de coa- tos descritos.
lizão não é, portanto, um resultado claro do Que visão do sistema de governo brasi-
arcabouço institucional brasileiro, uma so- leiro depreendemos do livro? A descrição do
lução estável para os dilemas do presidencia- ex-presidente é, como não poderia deixar de
lismo com multipartidarismo e sistema polí- ser, muito matizada, não se prestando a
tico consociativo, como o nosso, mas sim um enquadramento simples em nenhum dos
momento, possivelmente de exceção, duran- campos que, no momento, disputam a inter-
te uma administração “que soube recompen- pretação da política nacional. Por exemplo,
sar seus aliados e lhes dar voz no processo a sua visão de nossos partidos políticos:
de formulação legislativa”.40 “Nada mais equivocado”, diz ele, “do que
Ao final de sua análise, em que trata das subestimar o papel político do Congresso e
controvérsias sobre o tema “reforma políti- dos partidos. Os chavões sobre estes osci-
ca” – as posições sobre a qual em muito de- lam. Ora os consideram incoerentes, sem
pendem de como se avalia nosso sistema de ideologias, meras máquinas eleitorais. Ora
governo – observa ele: “O sistema atual não confundem legendas com partidos e vêem,
é uma unanimidade entre os especialistas que nas votações do Congresso coerência parti-
o avaliam. Essa ausência de consenso é sinal dária, quando na maior parte das vezes tra-
claro de que há, pelo menos, alguns proble- ta-se apenas de apoio ao governo ou oposi-
mas com o seu funcionamento e que, por- ção a ele. Pior ainda, muitas vezes, nos dois
tanto, ajustes de curso poderiam ser consi- casos, os parlamentares agem por motivos
derados”.41 que nada têm a ver com as ideologias pro-
clamadas nos programas partidários. Na
verdade há um pouco de tudo isso em cada
6. A visão de um ex-presidente um dos partidos – coerência, apoio em troca
da República
de vantagens de todo o tipo, visões ideológi-
O recentemente publicado depoimento cas –, dependendo das regiões e da força dos
do ex-presidente Fernando Henrique Car- chefes políticos, bem como do momento, da
doso sobre seu período presidencial nos pro- formação dos dirigentes partidários e de suas
vê de cruciais informações e interpretações trajetórias de vida....”. 42
sobre o funcionamento de nosso sistema de De qualquer maneira, rejeita ele o orde-
governo. Não se trata somente de uma aná- namento unidimensional das agremiações,
lise acadêmica, ainda que em vários momen- pois, sobretudo no contexto da Assembléia
tos o ex-presidente faça considerações de Nacional Constituinte, mas também se

39. RENNÓ, 2006:260.


40. Para Rennó, nos períodos de Sarney, Collor e Itamar Franco, “não se pode falar de uma relação Executivo-
Legislativo nos moldes em que ela se dá na administração de Fernando Henrique Cardoso” (RENNÓ,
2006:267).
41. RENNÓ, 2006:270.
42. CARDOSO, 2006:75.

74
projetando muito além dela, inclusive sobre o presidente pode julgar-se legitimamente
seus dois mandatos, divisões de múltipla na- incumbido, dado o caráter plebiscitário da
tureza recortam os partidos e geram alian- eleição presidencial.
ças que lhes extrapolam os limites.43 O quanto a operação do sistema depende
A esse quadro, o ex-presidente acrescen- de como o presidente exerce sua liderança,
ta a avaliação do papel das lideranças parti- de sua popularidade, persistência, propósito,
dárias. São elas capazes de assegurar bases clareza de objetivos, capacidade negociado-
estáveis para as negociações e sustentação ra, perpassa todo o texto, nesse sentido re-
política do governo? Também aqui a visão é forçando sobretudo a percepção de ser o
nuançada, mas tende a encarar como redu- processo político, nesse sistema, “mais indivi-
zido o poder dos líderes.44 Ademais, a atitu- dualmente dirigido do que institucionalmente
de dos partidos coligados na base governista constrito”.46
varia ao longo do tempo, de acordo, entre Uma indagação latente no texto diz res-
outras coisas, com o momento do ciclo elei- peito a quanto, em nosso sistema, é próprio
toral ou com a popularidade do presidente, do regime democrático, e quanto, na verda-
sem falar do tipo de política em questão e de, caracteriza um mau funcionamento da
como ela afeta os interesses. Em geral, nesse democracia.
ponto específico, o retrato não é otimista.45
O ex-presidente encara o “presiden-
cialismo de coalizão” com bastante ambi- 7. O presidencialismo estadual
e municipal
valência. Ressalta o que ele representa de
solução política, dada a fragmentação parti- Para concluir este capítulo, faremos um
dária, mas denuncia os obstáculos que ante- breve exame da questão “sistema de go-
põe a uma política transformadora, de que verno” nos estados e municípios. Em nossa

43. “Os constituintes não se dividiam apenas quanto a questões conjunturais ou de tramitação. Suas opiniões
discrepavam nas questões econômicas, nas questões sociais em geral e no alcance da ação do Estado. E os
alinhamentos se davam em cada questão específica, não necessariamente a partir de uma visão do mundo,
de uma ideologia” (CARDOSO, 2006:111). Ver, a esse respeito, o capítulo “A Câmara dos Deputados na
Nova República: a visão da Ciência Política”, deste livro.
44. “Por fim, na dura realidade de nossos partidos, viu-se que o comando sobre as bancadas, não apenas o dos
presidentes como o de muitos líderes, é tênue (...) Os próprios líderes partidários tornam-se cada vez mais
partes de uma cadeia de transmissão das demandas individuais dos parlamentares ao Executivo do que
guias políticos de seus liderados. Muitas análises incorrem em simplificações ao tomar as legendas por
partidos e considerá-los em bloco, ‘de esquerda’ ou ‘de direita’ ou até como ‘governistas’ e ‘oposicionistas’:
como qualificar em bloco, se os ‘partidos’ são fragmentados?” (CARDOSO, 2006:241, 243).
45. “ Como os partidos não se sentem obrigados a respaldar programaticamente as ações do Executivo, o jogo
de interesses prepondera. Os ‘aliados’ (com a possível exceção da maior parte do partido do presidente e de
setores de algum outro partido mais afinado com os propósitos do governo) tudo o que desejam é aumen-
tar a pressão sobre o Executivo para ampliar os respectivos espaços políticos e obter vantagens. Isso os leva
a transigir com a oposição que, por outros motivos, quer dificultar a vida do governo, além de, obviamente,
não compartilhar de seus objetivos. No processo legislativo, um dos resultados dessa situação é que nor-
malmente os projetos que mais contam para a ação administrativa ou de política transformadora vão parar
na mão de relatores ou presidentes de comissões que se opõem às diretrizes do governo. Essa prática torna
o processo legislativo uma maratona com barreiras” (CARDOSO, 2006:445).
46. RENNÓ, 2006:269.

75
O Sistema de Governo no Brasil

organização constitucional, o modelo pre- bre o assunto foram reunidos em coletânea


sidencialista, adotado no nível federal, tam- organizada por Fabiano Santos.48
bém rege os governos dos estados e dos Como as eleições dos governadores e
municípios, mas com algumas diferenças for- prefeitos, de um lado, e a dos deputados es-
mais com relação ao governo federal. taduais e vereadores, de outro, são indepen-
Essas unidades da Federação não têm dentes, como é próprio do sistema presiden-
legislativo bicameral. Os governadores e pre- cial, os desafios de harmonização dos dois
feitos não dispõem, com poucas exceções, poderes em princípio também se apresenta-
de competência similar à dos presidentes para riam nos níveis mais baixos da organização
editar medidas provisórias. Os estados cujas política.
constituições admitem o poder de decreto Contudo, no que diz respeito aos esta-
com força de lei, representado pelas medi- dos, Fernando Abrucio formula a hipótese
das provisórias – MPs, são o Acre, Santa de haver um ultrapresidencialismo, um pre-
Catarina, Piauí e Tocantins, mas a amplitu- domínio incontrastável dos governadores
de para editá-las varia entre eles. No Piauí, sobre as assembléias legislativas, de grau muito
por exemplo, permitem-se apenas “em caso maior do que tem sido apontado existir nas
de calamidade pública”. Em Santa Catarina relações entre presidente e Congresso.
não se admitem reedições.47 Segundo ele, os governadores conse-
A constitucionalidade de MPs estaduais guem neutralizar a prática fiscalizadora das
e municipais chegou a ser contestada em uma assembléias legislativas e, sobretudo, dos
Ação Direta de Inconstitucionalidade de órgãos fiscalizadores – Tribunal de Contas
1990. Ao decidir sobre ela, em 5 de setem- e Ministério Público – que, em vez de
bro de 2002, o Supremo Tribunal Federal fiscalizadores dos atos do governador, tor-
reconheceu a constitucionalidade de estados nam-se seus aliados.
e municípios as editarem, desde que suas Para que vingue o ultrapresidencialismo,
constituições contenham essa autorização e o governador precisa de ampla e sólida maio-
sejam as medidas provisórias posteriormen- ria na Assembléia Legislativa, tarefa facili-
te convertidas em lei pelas respectivas assem- tada pela fraqueza das organizações parti-
bléias ou câmaras. dárias estaduais, predispostas à cooptação.
Estudos recentes têm procurado detec- Tal predisposição advém, em boa parte, da
tar como se configuram as relações entre os dependência financeira dos redutos eleito-
Poderes Executivo e Legislativo nos estados, rais dos deputados com relação ao erário
buscando resposta para as mesmas indaga- estadual. Estar em bons termos com os
ções feitas sobre essas relações no plano fe- governantes é o mínimo que a prudência lhes
deral. Alguns dos trabalhos pioneiros so- recomenda. Constrói-se, pois, a maioria

47. Um competente balanço dos “sistemas de governo” estaduais é apresentado em André Ricardo Pereira, “Sob
a ótica da delegação: governadores e assembléias no Brasil pós-1989”, em SANTOS, 2001:247-87. Não
temos informação de estudos sobre a organização dos poderes em nível municipal.
48. Ver a referência na nota anterior.

76
situacionista, mediante distribuição de recur- tima. São parlamentares mais voltados para
sos aos redutos eleitorais ou de cargos do cargos executivos (prefeituras, secretarias de
Executivo a cada parlamentar. Estado). Para eles, a reeleição não é o objeti-
Se os governos estaduais não obtiverem vo dominante. Em suma, deputados com esse
a sustentação parlamentar, podem os gover- perfil não seriam propensos a investir no
nadores ir diretamente às bases locais em fortalecimento institucional e político da
busca de aliados ou até desbancar os deputa- Assembléia, donde resultar, na conclusão dos
dos renitentes em seus próprios distritos elei- autores, um Legislativo estadual politicamen-
torais, fazendo obras e projetos sem a te subordinado ao Executivo.
intermediação do parlamentar. Outros estudos contidos na coletânea
Em suma, para Abrucio, o Executivo es- organizada por Fabiano Santos deparam
tadual seria a instituição com força, recur- realidades diferentes das descritas por
sos e coerência interna para organizar, sozi- Abrucio. Os dados do ensaio do próprio
nho, a agenda da política estadual. Fabiano Santos, sobre o Rio de Janeiro,
Além do controle da política estadual, por exemplo, não confirmam a visão do
Abrucio vê os governadores como também “ultrapresidencialismo estadual”.51
capazes de exercer desmesurada influência Ao analisar o comportamento da Assem-
na política nacional, pois deles também de- bléia em relação aos vetos do governador,
penderiam eleitoralmente os próprios par- nota Santos conseguir a legislatura a apro-
lamentares federais. No “presidencialismo de vação de uma agenda própria, a despeito das
coalizão”, anteriormente descrito, é vital aos preferências do chefe do Executivo. Foram
presidentes dar gasalho aos pleitos e indica- muitos os vetos totais do governador derru-
ções dos governadores para a ocupação de bados: 25% em 1995 e 50% em 1998. Con-
cargos federais.49 clui Fabiano Santos denotarem, tanto a re-
Em texto posterior, Abrucio, com Car- jeição de vetos quando a própria produção
valho Teixeira e Ferreira Costa, retoma al- legislativa da Assembléia do Rio de Janeiro,
gumas dessas teses ao examinar as relações um Legislativo não subordinado ao Executi-
entre os poderes no Estado de São Paulo.50 vo. Os deputados do Rio de Janeiro apre-
Mostram eles como o governador Mário sentam elevada produção que visa dar aos
Covas, tendo iniciado o governo com uma eleitores satisfação de seu trabalho no
base parlamentar de apenas 24 deputados, Legislativo, materializado em projetos que
conseguiu aumentá-la para 60. Os dados distribuem benefícios visíveis e de baixo cus-
coligidos mostram terem predominado, nes- to a seus redutos eleitorais.
sa base, deputados com redutos eleitorais no As relações entre Executivo e Legislativo
interior do estado e cuja carreira não tem o no plano das unidades federativas são cam-
próprio Legislativo estadual como meta úl- po novo para a Ciência Política no Brasil,

49. David Samuels mostra a importância dos candidatos a governador na eleição dos deputados federais do
Estado, muito maior do que a dos candidatos a presidente (SAMUELS, 2000).
50. ABRUCIO, TEIXEIRA e COSTA, 2001.
51. SANTOS, 2001.

77
O Sistema de Governo no Brasil

cujo desbravamento mal começou. Os es- tação. Segundo a lei, dentro do estado, o
tudos pioneiros mostram haver, na realida- deputado pode ser votado em todas as re-
de estadual, variedade de situações e giões e municípios. Na prática, porém, dão-
determinantes específicos. se perfis diversos. Barry Ames elaborou uma
Um fator importante a examinar é a pe- taxonomia desses perfis, combinando duas
culiar configuração dos sistemas de parti- dimensões: se o deputado é majoritário num
dos nos estados e municípios, pois não re- município, ou ao contrário comparte-lhe os
plicam o existente no nível federal. Ora se votos com outros deputados, e se a sua vota-
encontram situações de fragmentação par- ção se concentra em municípios contíguos
tidária, com ou sem dominância de uma ou é espalhada. Como na primeira dimen-
agremiação sobre as demais, algumas con- são temos duas categorias – o deputado é
figurações sendo mais propícias à competi- dominante, ou não, em municípios-chave
ção interpartidária do que outras, ora se dão para sua votação – e na segunda, também,
situações de polarização bipartidária. Em es- duas – o deputado tem votação concentrada
tados e municípios menos desenvolvidos, ou espalhada –, da combinação delas resul-
podem se dar também dominações tam quatro perfis:
oligárquicas, com sólido controle do poder a) deputado com votação espalhada e com-
por um cacique político e seu partido, per- partilhada com outros em municípios-
petuando a situação descrita há algumas dé- chave,
cadas pelos estudos de poder local. b) com votação espalhada, mas majoritário
Outro traço importante do sistema par- em municípios-chave,
tidário é variarem muito as agremiações par- c) com votação concentrada em alguns
tidárias nacionais em seu rebatimento esta- municípios contíguos, compartidos com
dual e municipal. Um partido nacional, como outros deputados, ou, finalmente,
o PFL, não é o mesmo em Santa Catarina e d) com votação concentrada e majoritário
na Bahia, em Pernambuco ou em Minas Ge- nos municípios.52
rais. Certas coligações podem ser vistas como
naturais num contexto estadual ou munici- Podemos representar numa tabela 2 x 2
pal, em função da problemática local, mas os quatro perfis, preechendo as celas com as
parecerem esdrúxulas em âmbito nacional. porcentagens, sobre o total de deputados da
Esses fatores devem ser levados em conside- Legislatura começada em 1999, dos eleitos
ração quando da análise da operação do go- em cada modalidade de perfil (dados da elei-
verno e das relações entre o Executivo e o ção de 98).
Legislativo nos três planos. Alguns dos perfis de votação provavel-
Outro fator que os estudos deixam en- mente fazem os deputados mais dependen-
trever, mas sem ainda explorar, é o perfil tes do Executivo estadual do que outros. Si-
eleitoral dos parlamentares. O sistema elei- milarmente, alguns devem dar-lhes maior
toral brasileiro permite a eleição de deputa- certeza do que outros sobre qual é o seu elei-
dos com diferentes padrões espaciais de vo- torado, a quem devem prestar contas e cujos

52 AMES, 2001.

78
TABELA 1. A votação dos deputados federais: padrão geográfico. Eleição de 1998.

pleitos precisam atender, e portanto devem


influenciar-lhes diferentemente o comporta-
mento parlamentar no que respeita ao apoio
ou não à agenda legislativa do governador
do Estado.53

53 CARVALHO, 2003. No capítulo “A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política”,
neste livro, discutimos a contribuição desse autor.

79
Sugestões de leitura

ABRANCHES, S. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados, v.31, n.1, p. 5-38, 1988.
__________. Os dilemas da governabilidade no Brasil: reforma política ou reforma do Estado?. Cadernos Adenauer
n.2. Reforma Política: agora vai?. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2005.
__________. O processo legislativo: tendência ao impasse. Risco Político, n.1. Rio de Janeiro: Sócio-Dinâmica
Aplicada, 2007.
ABRUCIO, F., TEIXEIRA, M. A. C., COSTA, V. M. F. O papel institucional da AL paulista: 1995 a 1998. In:
SANTOS, F. (Org.). O Poder Legislativo..., 2001. p.219-46.
ALMEIDA, A. C. Presidencialismo, parlamentarismo e crise política no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFF, 1998.
AMES, B. The deadlock of democracy in Brazil. Ann Arbor: University of Michigan Press, 2001.
AMORIM NETO, O. Gabinetes presidenciais, ciclos eleitorais e disciplina legislativa no Brasil. Dados, v.43, n.3,
p.479-519, 2000.
AVRITZER, Leonardo, ANASTASIA, Fátima (Orgs.). Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2006.
BROSSARD, P. Reforma Constitucional. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997.
CARDOSO, F. H. , A Arte da Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
CARVALHO, N. R. de. E no início eram as bases: geografia política do voto e comportamento legislativo no
Brasil. Rio de Janeiro: Revam, 2003.
COX, G. W., McCUBBINS, M. D. Legislative Leviathan: Party Government in the House. Berkeley: University
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DAHL, R. A. Polyarchy: participation and opposition. New Haven: Yale University Press, 1971.
FIGUEIREDO, A. C., LIMONGI, F. Decision-making Structure, Political Parties, and Government Performance
in Multiparty Presidentialism. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL “REFORMA POLÍTICA: O BRASIL
EM PERSPECTIVA COMPARADA”. Rio de Janeiro: Iuperj / Centre for Brazilian Studies / Universidade de
Oxford, 2002. (Mimeogr.)
__________. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. São Paulo: Ed. FGV/Fapesp, 1999.
FLEISCHER, D., ABRANCHES, S., CINTRA, A., RIAL, J., SPECK, W. Reforma Política: agora vai?. Rio de
Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2005. (Cadernos Adenauer n.2)
KINZO, M. D’A. Radiografia do quadro partidário brasileiro. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 1993.
LAMOUNIER, B. (Org.). A Ciência Política nos anos 80. Brasília: Ed. UnB, 1982.
__________. (Org.). A opção parlamentarista. São Paulo: Idesp/Sumaré, 1991.
__________. A democracia brasileira no limiar do século 21. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 1996.
__________. Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

80
LIJPHART, A. Os modelos majoritário e consociacional da democracia: contrastes e ilustrações. In: LAMOUNIER,
B. (Org.). A Ciência Política..., 1982. p.95-115.
LIMONGI, F. Presidencialismo e governo de coalizão. In: AVRITZER, Leonardo, ANASTASIA, Fátima (Orgs.).
Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
PALERMO, Vicente. Como se governa o Brasil? O debate sobre instituições políticas e gestão de governo. Dados,
v.43, n.3, p.521-557, 2000.
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in the Brazilian Politics. Centre for Brazilian Studies, St. Anthony’s College, University of Oxford, s.d.
PEREIRA, C., POWER, T., RENNÓ, L. Under what conditions do Presidents resort to decree power: theory and
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ROMERO, S. Presidencialismo ou Parlamentarismo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.
SAMUELS, D. J. The Gubernatorial Coattails Effect: Federalism and Congressional Elections in Brazil. The
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__________. A dinâmica legislativa no Estado do Rio de Janeiro: análise de uma legislatura. In: SANTOS, F.
(Org.). O Poder Legislativo..., 2001. p. 163-87.
_________. (Org.). O Poder Legislativo nos estados: diversidade e convergência. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2001.
__________. Governos de Coalizão no Sistema Presidencial: o caso do Brasil sob a Égide da Constituição de
1988. In: AVRITZER, Leonardo, ANASTASIA, Fátima (Orgs.). Reforma Política..., 2006.
SKIDMORE, T. E. Brasil: de Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
TAVARES, J. G. (Org.). O sistema partidário na consolidação da democracia brasileira. Brasília: Instituto Teotônio
Vilela, 2003.

81
Capítulo 3
Judiciário: entre a Justiça e a Política
Política

ROGÉRIO BASTOS ARANTES

Apresentar uma instituição ou dimensões organização. Lançando mão da história, do


relativamente autônomas do sistema políti- método comparativo e da descrição jurídico-
co não é tarefa fácil, especialmente diante formal do Judiciário, esperamos construir
das diversas alternativas que se abrem a pro- uma apresentação que demonstre a importân-
postas desse tipo. Uma tendência comum em cia dessa instituição no âmbito do sistema
situações como essa tem sido recorrer à his- político e que incentive o leitor a buscar ou-
tória, na expectativa de que a descrição de tras e novas respostas a questões aqui men-
uma sucessão de fatos ou etapas torne inteli- cionadas e não completamente resolvidas.
gíveis a natureza e as especificidades do ob- Este capítulo está estruturado em três se-
jeto que se quer analisar. Embora a história ções: na primeira, tratamos da construção
seja uma maneira útil e segura de apresentar institucional do Judiciário moderno a partir
determinadas instituições políticas, outros de duas grandes tradições (a norte-americana
pontos de vista fornecidos pela Ciência Polí- e a francesa); na segunda seção, analisa-
tica podem oferecer contribuição mais sig- mos a expansão das funções judiciais e po-
nificativa a essa descrição, tais como aqueles líticas do Judiciário no século XX (e as va-
voltados para a análise de padrões de orga- riações em torno daquelas duas grandes
nização interna dessas instituições (análise tradições), dedicando ao judiciário brasi-
organizacional), ou aqueles que recorrem à leiro atenção especial; a terceira e última
comparação de diferentes países, de sistemas seção levanta hipóteses sobre o futuro do
políticos ou de fatores socioculturais e eco- Judiciário como órgão de justiça e como
nômicos (método comparativo), ou ainda poder político.
aqueles que se concentram na descrição for-
mal das leis e estatutos jurídicos que defi-
nem o funcionamento da instituição, suas 1. Judiciário moderno:
órgão de justiça ou poder político?
relações com as demais e seu impacto sobre
o comportamento dos atores (método As grandes transformações pelas quais
institucional). passou o mundo ocidental nos séculos XVIII
Ao tentar descrever a natureza e as e XIX tiveram forte impacto sobre as fun-
especificidades do Judiciário como institui- ções da Justiça e sobre a organização do Ju-
ção judicial e política, tentaremos uma com- diciário. Ainda durante o Antigo Regime
binação dessas diferentes abordagens, pro- (séculos XV-XVIII), as monarquias absolu-
porcionando uma visão abrangente sobre a tistas européias já haviam promovido uma

83
Judiciário: entre a Justiça e a Política

significativa centralização e racionalização da possível tomar França e Estados Unidos como


administração estatal, incluindo aí os cargos dois modelos principais de definição do Ju-
e funções da magistratura antes dispersos e diciário moderno, que inspiraram a forma-
privatizados pela nobreza.1 Do ponto de vis- ção dos demais Estados liberal-democráticos
ta econômico, o desenvolvimento das rela- nos séculos XIX e XX: a experiência fran-
ções comerciais e de produção e a gradual cesa, mais republicana do que liberal, mo-
implantação do capitalismo também levaram dernizou a função de justiça comum do Ju-
à valorização da Justiça como meio de ga- diciário mas não lhe conferiu poder políti-
rantia das relações entre agentes econômi- co; a americana, mais liberal do que repu-
cos, conduzindo a magistratura a uma blicana, não só atribuiu à magistratura a
profissionalização crescente e o Direito à importante função de prestação de justiça nos
condição de principal instrumento de racio- conflitos entre particulares, como elevou o
nalização da vida social e econômica. Judiciário à condição de poder político.
A derrubada dos regimes absolutistas e a Sob a influência de grandes autores como
fundação dos chamados Estados liberais na Locke (1632-1704) e Montesquieu (1689-
Europa e nos Estados Unidos marcaram uma 1755), a fórmula da separação de poderes
profunda transformação no papel da Justi- difundiu-se no final do século XVIII como
ça, a começar pelo reconhecimento de sua necessária à limitação do poder político do
autonomia como função estatal e, em alguns Estado e à defesa das liberdades individuais.
países, até mesmo como poder de Estado. Consagrada por Montesquieu com base em
Essa distinção entre função estatal e poder suas observações sobre o sistema político
político remonta a duas experiências inglês, a distinção de funções e poderes en-
paradigmáticas de (re)fundação do Judiciá- tre Executivo, Legislativo e Judiciário pas-
rio no processo de criação dos Estados libe- sou a ser considerada indispensável à consti-
rais: a norte-americana de 1787 e a francesa tuição de uma ordem política liberal e ao
de 1789. ideal de um Estado limitado, atendendo à
Embora os processos que levaram à ela- máxima de que, “pela disposição das coisas,
boração do texto constitucional americano o poder freie o poder”.2 Embora com pesos
de 1787 e à Revolução Francesa iniciada em diferentes, França e Estados Unidos orienta-
1789 tenham sido influenciados pelo pen- ram-se por esse princípio e promoveram, cada
samento político liberal que corria o mun- um a seu modo, a separação de poderes.
do à época, o fato é que eles deram origem Segundo o artigo 16 da Declaração dos
a dois modelos constitucionais bastante dis- Direitos do Homem e do Cidadão da Assem-
tintos e, por decorrência, o Judiciário emer- bléia Nacional Francesa (1789), “toda socie-
giu dessas duas experiências com papéis sig- dade na qual a garantia dos direitos não for
nificativamente diferentes. Como as revolu- assegurada, nem a separação de poderes
ções americana e francesa influenciaram o determinada, não tem Constituição”. An-
curso histórico de outros tantos países, é tes da França, em 1787, os Estados Unidos

1. Uma brilhante análise desse processo de centralização e racionalização administrativa sob o Antigo Regime,
e a conseqüente perda de poder e legitimidade da aristocracia, foi feita por Aléxis de Tocqueville. Ver
Tocqueville, A. O Antigo Regime e a Revolução. Brasília: Editora UNB, 1997 (4a ed.).
2. Montesquieu. Do Espírito das Leis. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p.156.

84
já haviam utilizado o mesmo princípio para mas mãos, seja de uma pessoa, de algumas
formatar aquele que seria o texto consti- ou de muitas, seja hereditário, autodesignado
tucional mais importante da tradição libe- ou eletivo, pode ser justamente considerado
ral, contando inicialmente com apenas sete a própria definição de tirania”.4 Note-se,
artigos estruturados exatamente em torno da portanto, que os formuladores da Constitui-
fórmula da tripartição dos poderes.3 ção americana divisaram a possibilidade da
A primeira e mais importante diferença tirania para além do governo autoritário de
entre França e Estados Unidos é que, no pri- um só, chegando a temer sua ocorrência tam-
meiro caso, a plataforma liberal foi utilizada bém sob o governo eletivo de muitos, ou seja,
no combate à monarquia absolutista vigente sob o governo democrático da maioria. Por
no país havia tempos, resultando daí a pro- essa razão, e contrariamente ao que fizeram
posta de esvaziamento do Poder Executivo e os franceses, os americanos não afirmaram a
de fortalecimento do corpo legislativo, prin- supremacia do parlamento e, reconhecendo
cipal representante da soberania popular. No que o corpo legislativo não poderia ficar
caso americano, a experiência da primeira imune a controles, trataram de imaginar for-
década de independência revelou que gover- mas de limitar o seu poder político.5
nos populares não estavam imunes ao arbí- As diferentes aplicações práticas da tese
trio, e outras possibilidades de tirania – não de Montesquieu resultaram em definições
só aquela promovida por um monarca abso- bastante distintas para o Judiciário, no qua-
luto – deveriam ser prevenidas. James dro geral da separação de poderes. Na Fran-
Madison, em um dos famosos “artigos ça, a idéia de supremacia do Legislativo, bem
federalistas” (escritos para tentar convencer como a profunda desconfiança dos revolucio-
os cidadãos de Nova York a votar favoravel- nários em relação à magistratura do Antigo
mente à promulgação do novo texto consti- Regime, não poderiam ter levado a uma va-
tucional), deixou bem claro o motivo da ri- lorização do Judiciário como poder de Esta-
gorosa adoção do princípio da separação de do. Nos Estados Unidos, a preocupação com
poderes: “o acúmulo de todos os poderes o direito à propriedade frente à voracidade
legislativo, executivo e judiciário nas mes- legislativa de governos populares acabou

3. A Constituição elaborada pela Convenção da Filadélfia em 1787 (à qual dez novos artigos foram acrescidos
na primeira sessão do Congresso em 1791) continha apenas sete artigos: o primeiro dispunha sobre o
Legislativo, o segundo sobre o Executivo e o terceiro sobre o Judiciário; o quarto tratava de assuntos fede-
rativos e do relacionamento entre os estados; o quinto tratava de procedimentos para votação de emendas à
Constituição e os dois últimos estabeleciam regras de transição para o novo modelo constitucional e sua
ratificação pelos estados.
4. Madison, James, Hamilton, Alexander e Jay, John. Os artigos federalistas, 1787-1788. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1993. p.331-2.
5. Esse receio teve base real na experiência de caos econômico e social que atingiu os estados americanos
independentes, após 1776. O ponto máximo ocorreu precisamente quando os Legislativos locais passaram
a decretar perdão de dívidas de agricultores falidos, muitas vezes anulando decisões judiciais favoráveis aos
credores. A generalização de práticas arbitrárias por parte dos legisladores levou os constituintes de 1787 ao
reconhecimento de que submeter o poder político ao povo não era suficiente, e que medidas adicionais de
contenção do órgão representativo dessa soberania popular seriam necessárias. Para uma análise do contex-
to histórico e dos motivos principais que levaram à formulação do texto constitucional americano, ver a
apresentação de Isaac Kramnick a Os artigos federalistas, op. cit., p.1-86.

85
Judiciário: entre a Justiça e a Política

elevando o Judiciário à condição de poder lar os atos dos demais poderes e apenas teve
político, capaz de se colocar entre o gover- valorizado seu papel de prestador da justiça
no e o cidadão, na defesa dos direitos indivi- comum, civil e criminal. A primeira Consti-
duais deste último (principalmente o direito tuição, de 1791, fez menção às três funções
à propriedade). de governo – executivo, legislativo e judiciá-
A condição de poder político do Judiciá- rio – mas manteve o regime monárquico. No
rio nos tempos modernos decorre de sua Capítulo V, do Judiciário, o artigo 1o afir-
capacidade de controlar os atos normativos mava que a função judiciária não poderia ser
dos demais poderes, especialmente as leis exercida nem pelo Legislativo nem pelo Exe-
produzidas pelo parlamento. Essa função, cutivo, mas no artigo 3o deixava absoluta-
conhecida como judicial review ou controle mente claro que os tribunais não tinham o
de constitucionalidade das leis, coloca o Ju- direito de suspender a execução das leis. Es-
diciário em pé de igualdade com os demais ses dois dispositivos foram recolocados no
poderes, exatamente naquela dimensão mais texto de 1795 (artigos 202 e 203, respecti-
importante do sistema político: o processo vamente), que marcou a retomada burguesa
decisório de estabelecimento de normas (leis do curso revolucionário. Entretanto, das três
e atos executivos) capazes de impor compor- constituições, a que mais se afastou da idéia
tamentos. Nos países em que o Judiciário ou liberal de separação e equilíbrio de poderes
um tribunal especial pode ser acionado para foi aquela elaborada pelos radicais jacobinos
verificar o respeito das leis e dos atos (1793), considerada pelo historiador inglês
normativos à Constituição, pode-se dizer que Hobsbawm “a primeira constituição genui-
existe um terceiro poder político de Estado, namente democrática proclamada por um
ao lado do Executivo e do Legislativo. Nos Estado moderno”.6 Pois se assim se deu, cabe
países em que essa função inexiste, o Judiciá- destacar que a primeira constituição demo-
rio assemelha-se a um órgão público ordiná- crática moderna não reservou papel político
rio, responsável pela importante tarefa de ao Judiciário. Ao lado do sufrágio universal
prestar justiça nos conflitos particulares, mas e de outras medidas igualitárias, o texto de
incapaz de desempenhar papel político no 1793 estabeleceu a supremacia do parlamen-
processo decisório normativo. É nesse senti- to como órgão da soberania popular e, com
do que Estados Unidos e França constituem base na idéia rousseauniana da vontade ge-
exemplos paradigmáticos de delegação e de ral, fixou a supremacia da lei: segundo o ar-
não delegação, respectivamente, desse papel tigo 4 da declaração de direitos que prece-
político à magistratura. dia o texto constitucional, “a lei é expressão
Na França, o processo revolucionário livre e solene da vontade geral” e só ela po-
iniciado em 1789 desdobrou-se em três tex- deria punir, proteger e estabelecer o que era
tos constitucionais, promulgados em 1791, justo e útil à sociedade. Ou seja, nenhuma
1793 e 1795. A despeito de refletirem o outra instituição social ou política poderia
maior ou menor grau de radicalização das colocar-se entre o Estado e a Nação, entre o
diversas fases da revolução, em nenhum de- corpo legislativo e a soberania popular, en-
les o Judiciário recebeu a missão de contro- tre a vontade geral e o indivíduo. Não havia

6. Hobsbawm, Eric J. A Era das Revoluções. 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 9.ed., 1996. p.87.

86
espaço, portanto, para que o Judiciário fun- de zelar pela propriedade contra as investidas
cionasse como poder político intermediário da maioria governante. Na França, a ideologia
e órgão controlador dos demais poderes. É igualitária impediu que a magistratura pudes-
verdade que vários artigos da constituição se ter qualquer poder político, muito menos o
de 1793 foram dedicados às funções da jus- de interpor-se entre o corpo legislativo e a sobe-
tiça civil e criminal (artigos 85 a 100), mas rania popular. Nessa perspectiva, a proprie-
nenhum deles autorizava o Judiciário fran- dade ficaria menos guarnecida, em que pese
cês a desempenhar outro papel que não o de tenhamos que considerar os riscos impostos
prestação da justiça nos conflitos entre par- à própria liberdade, num cenário em que a
ticulares. Cabe registrar ainda que mesmo soberania popular se vê ilimitada. Robespierre
os textos mais liberais e menos democráti- (1758-1794), líder radical e dirigente na fase
cos de 1791 e 1795, bem como o de 1793, do governo jacobino, destacou-se entre ou-
estabeleceram o princípio eletivo para cargos tras coisas por sugerir a superioridade do va-
da magistratura (até mesmo com mandato, lor da igualdade sobre o direito de proprie-
no caso de 1793), o que respondia ao ideal dade. Em discurso na Convenção Nacional,
republicano e antiaristocrático de preenchi- em abril de 1793, quando esta se preparava
mento das funções públicas nessa fase de para elaborar uma nova constituição,
redefinição revolucionária do estado francês. Robespierre criticou as noções de liberdade e
A contraposição entre Estados Unidos e igualdade da primeira declaração de direitos
França lembra o clássico antagonismo entre de 1789 e sugeriu uma nova redação para o
Liberdade e Igualdade, que tem no direito à futuro texto constitucional:
propriedade sua pedra de toque. Embora os
movimentos revolucionários francês e ame- Ao definir a liberdade, o primei-
ricano tenham levantado essas duas bandei- ro dos bens do homem, o mais sagra-
ras, nos Estados Unidos a liberdade ditou do dos direitos que ele recebe da na-
mais regras do que a igualdade; na França, tureza, dissestes com razão que os li-
as tentativas mais radicais foram no sentido mites dela eram os direitos de outrem;
inverso e, embora não tenham se consolida- por que não aplicastes esse princípio
do, deixaram marcas duradouras nas insti-
à propriedade, que é uma instituição
tuições políticas francesas. Se a pedra de to-
social? ... Multiplicastes os artigos
que desse antagonismo foi o direito à pro-
para assegurar a maior liberdade ao
priedade, as constituições americana e fran-
exercício da propriedade, e não
cesas refletiram justamente a preocupação
maior ou menor com a sua conservação, e é dissestes uma única palavra para de-
exatamente nesse ponto que o Judiciário pas- terminar o caráter legítimo desse exer-
sou a fazer diferença. cício; de maneira que vossa declara-
Nos Estados Unidos, os formuladores da ção parece feita não para os homens,
Constituição de 1787 fizeram do Judiciário mas para os ricos, para os
um guardião postado no limiar entre a liber- monopolizadores, para os agiotas e
dade e a igualdade, atribuindo-lhe a tarefa para os tiranos.7

7. Robespierre, Maximilien. Discursos e Relatórios na Convenção. Rio de Janeiro: Eduerj/Contraponto, 1999.


p.88-9 (grifo nosso).

87
Judiciário: entre a Justiça e a Política

Na seqüência, Robespierre propõe uma janeiro de 1793, Robespierre defendeu a dis-


nova definição do direito de propriedade, tinção entre Direito e Política, argumentan-
limitado pela “obrigação de respeitar os di- do que o rei não poderia ser julgado pelas
reitos de outrem”, chegando a propor, nesse vias do primeiro mas pelas razões de Estado
mesmo discurso, a introdução do imposto impostas pela segunda: “Os povos não jul-
progressivo na França, por meio do qual os gam como as cortes judiciárias; não pronun-
mais ricos pagariam proporcionalmente mais ciam sentenças; fulminam; não condenam os
do que os mais pobres.8 reis, mergulham-nos de novo no nada; e essa
Robespierre, para quem o princípio da justiça bem vale a dos tribunais”. E, conclu-
separação de poderes já significava um mo- indo, asseverou: “Luís deve morrer porque é
dismo irrelevante, uma quimera que sempre preciso que a pátria viva”.10
terminava em flagelo do próprio povo (pela A experiência francesa da fase do Terror
corrupção e conluio dos políticos de ramos ultrapassou a antítese igualdade versus pro-
aparentemente separados do governo), de- priedade e deixou lições sobre outra antítese
fendia a supremacia da vontade geral contra ainda mais profunda: liberdade versus po-
o “teatro burlesco” em que se convertia a re- der. Se, por um lado, a Revolução afastara-
lação entre os poderes constitucionais.9 A se dos princípios liberais em nome de um
vontade igualitária de Robespierre, que che- republicanismo radical, por outro o exercí-
gou a ameaçar a propriedade e que defendia cio ilimitado do poder político em nome das
a soberania popular como fonte e garantia razões de Estado arranhou mais do que o di-
única de direitos, só não foi maior do que a reito de propriedade, atingindo gravemente
sua determinação em orientar-se pelas razões a própria liberdade, numa forma inédita de
de Estado, isto é, aquelas ações indispensá- ditadura em nome do povo. Não por acaso,
veis à manutenção do poder político, agrava- dos três textos constitucionais da Revolução,
das na época pelo contexto interno, de re- o dessa fase foi o que menos emprestou ao
volução, e externo, de guerra. No marcante Judiciário o papel de defesa das liberdades
processo de julgamento político de Luís XVI, frente aos poderes políticos. Ao final, a Re-
que culminou com a decapitação do rei em volução retomaria seu curso mais liberal, mas

8. A proposta de Robespierre era a seguinte: “Os cidadãos cujos proventos não excedam aquilo que é necessá-
rio a sua subsistência devem ser dispensados de contribuir para os gastos públicos; os outros devem sustentá-
los progressivamente, segundo a dimensão de suas fortunas”. O exemplo do imposto progressivo como
resultado de uma decisão política majoritária que, orientada pelo princípio da igualdade, arranha o direito
de propriedade, permanece atual se considerarmos as sucessivas tentativas de instituição desse tipo de co-
brança no Brasil e as derrotas impostas por decisões judiciais conservadoras do direito de propriedade, que
impedem sua implementação, como no caso do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU em diversos
municípios brasileiros. Robespierre, Maximilien. Discursos e Relatórios..., op. cit., p.89.
9. Em discurso à Convenção, em 10 de maio de 1793, Robespierre criticou a fórmula da separação de poderes
e o tipo de dinâmica política perniciosa que ela introduzia: “Que nos importam as combinações que equili-
bram a autoridade dos tiranos! É a tirania que se deve extirpar: não é nas querelas de seus senhores que os
povos devem buscar a vantagem de respirar por alguns instantes; é em sua própria força que se deve colocar
a garantia de seus direitos”. Ibidem, p.100-1.
10. Ibidem, p.58 e 64.

88
o espírito republicano não deixaria de in- teção à liberdade individual dos cidadãos,
fluenciar a política francesa, a despeito dos contra tendências arbitrárias da maioria polí-
excessos cometidos naquela fase radical. tica. Mas o contraste com o fracasso francês
Ninguém percebeu melhor do que Aléxis em obter o mesmo equilíbrio entre governo
de Tocqueville (1805-1859) as diferentes popular e liberdade individual fica especial-
origens dos regimes políticos americano e mente evidente quando Tocqueville destaca
francês. Oriundo da pequena nobreza fran- o papel político do Judiciário americano. No
cesa, Tocqueville tivera seus avós maternos quadro da separação de poderes, tão valo-
e uma de suas tias guilhotinados na Revolu- rizado nos Estados Unidos e menos consi-
ção, seu pai permanecera preso por um bom derado na França, o Judiciário americano
tempo e consta que sua mãe mergulhou em constitui para Tocqueville “o mais podero-
desequilíbrio mental com esses acontecimen- so e único contrapeso da democracia”, jus-
tos. Frente ao que ele chamava de a “grande tamente por sua capacidade de controlar a
revolução democrática”, uma onda de “cres- constitucionalidade das leis promulgadas pela
cente igualdade de condições” que não só as- maioria política.
solava a França mas tendia à escala mundial, O papel do Judiciário de guardião da
Tocqueville observava o surgimento desse Constituição nos Estados Unidos contrasta-
novo mundo com um misto de temor e admi- va com a sua nulidade política na França,
ração. Sem compromisso de classe com o pro- levando Tocqueville a perceber a engenhosa
jeto burguês, seu olhar liberal-aristocrático saída americana para o problema da limita-
lhe permitiu divisar a sociedade burguesa ção do poder político da maioria em gover-
como uma sociedade em que a crescente nos populares: reservar a decisão final em
igualdade de condições anulava antigas dis- casos de conflitos constitucionais a um cor-
tinções sociais, mas também levava à po especial de magistrados, que dispunham
massificação, ao individualismo e à apatia de razoável dose de independência funcio-
política, constituindo assim ambiente propí- nal em pleno regime republicano. Obser-
cio à emergência do despotismo. vando mais de perto a magistratura ameri-
No seu clássico livro A democracia na cana, Tocqueville foi o primeiro a perceber
América,11 Tocqueville procura as razões do a incongruência entre uma sociedade
sucesso americano em conciliar essa crescen- crescentemente igualitária e a permanência,
te igualdade de condições e a manutenção da no âmbito do Estado, de um corpo insulado
liberdade individual e política. Dentre elas, de funcionários públicos acumulando garan-
Tocqueville ressaltará a descentralização do tias e privilégios incompatíveis com o regi-
sistema político que, por meio da separação me republicano.12 Mas era justamente nessa
de poderes, do federalismo e do autogoverno incongruência que residia a originalidade do
local, propiciava ao mesmo tempo incentivos sistema político americano, segundo
à participação política da comunidade e pro- Tocqueville: a magistratura independente era

11. Tocqueville, Alexis de. A Democracia na América. (1835-40) São Paulo: Edusp, 1977.
12. A tarefa de julgar com independência levou o Judiciário a gozar de garantias especiais como a vitaliciedade
(permanência no cargo por tempo indeterminado ou até alguma idade limite para aposentadoria compulsó-
ria), a irredutibilidade de vencimentos e, em alguns lugares, a impossibilidade de sofrer transferência de
local de atuação sem tê-la solicitado (inamovibilidade).

89
Judiciário: entre a Justiça e a Política

a última barreira às paixões democráticas tintivo pendor para a ordem, um


desenfreadas, e sua autonomia poderia ser amor natural pelas formas; assim
considerada condição de sobrevivência, no como a aristocracia, concebem um
longo prazo, do próprio regime republicano, grande desgosto pelas ações da mul-
sujeito a investidas constantes da maioria polí- tidão e, secretamente, desprezam o
tica contra os direitos de liberdade. governo do povo.14
Idealizando a antiga liberdade sob a so-
ciedade aristocrática – não a liberdade bur- Tocqueville enunciaria ainda outros tra-
guesa, individualista, mas a defendida pela ços peculiares da magistratura, pelos quais
nobreza, vinculada mais a valores como a ela passaria a ser conhecida e criticada daí
honra e a glória – Tocqueville não teve dúvi- por diante, como o conservadorismo:
das em apresentar a magistratura america-
na, juntamente com os advogados, como uma Na América, não existem nobres
espécie de nova aristocracia. Como estives- nem literatura, e o povo desconfia dos
se se reencontrando com a classe social de ricos. Por isso, os juristas constituem a
seus antepassados, destruída na França pela classe política superior e a porção mais
Revolução, Tocqueville realiza um daqueles intelectual da sociedade. Assim, não
“achados” analíticos decisivos para a inter- poderiam senão perder, ao inovar; isso
pretação da formação histórico-política das acrescenta um interesse conservador ao
modernas democracias liberais: “se me per- gosto natural que têm pela ordem.15
guntassem onde situo a aristocracia ameri-
cana, responderia sem hesitar que não o faço Ou ainda a morosidade e outros aspec-
entre os ricos, que não possuem nenhum laço tos que caracterizam o funcionamento da
comum que os assemelhe. A aristocracia Justiça, em comparação com as tendências
americana está no banco dos advogados e na do povo, expostos por Tocqueville na forma
cadeira dos juízes”.13 de dicotomias:
A analogia de Tocqueville não se detinha
na função antidemocrática da magistratura Aos seus [do povo] instintos de-
ou no fato de os juízes gozarem de garantias mocráticos, [os juízes] opõem se-
e privilégios quase aristocráticos, mas che- cretamente os seus pensadores aris-
gava até os hábitos e costumes dessa classe tocráticos; ao seu amor à novidade,
especial: o seu supersticioso respeito a tudo o
que é antigo; à imensidade de seus
Por isso, encontramos, oculta propósitos, as suas vistas estreitas, ao
no fundo da alma dos juristas, uma seu desprezo às regras, o seu gosto
parte dos gostos e dos hábitos da pelas formas; e ao seu ardor, o seu
aristocracia. Como ela, têm um ins- hábito de proceder com lentidão.16

13. Ibidem, p.206.


14. Ibidem, p.201.
15. Ibidem, p.206.
16. Ibidem, p.206-7.

90
Por fim, Tocqueville menciona as dificul- tar justiça nos conflitos particulares – não
dades enfrentadas pelo Judiciário america- encontramos essa nova aristocracia no seio
no, sobretudo nos estados, para sustentar sua da república mas ouvimos em contrapartida
condição de poder independente de contro- queixas recorrentes sobre a ausência de um
les políticos nos marcos de um governo po- guardião independente da Constituição e
pular, particularmente as tentativas de remo- sobre a sujeição completa da sociedade à
ção de juízes de seus cargos ou sua escolha vontade política da maioria governante.
pela via eleitoral. “Ouso prever”, completa
o autor, “que tais inovações terão, mais cedo
ou mais tarde, resultados funestos, e que um 2. A expansão do Judiciário
no século XX: justiça comum
dia se perceberá que, diminuindo assim a e papel político
independência dos magistrados, não somen-
te se ataca o poder judiciário, mas a própria Ao longo do século XX, o Judiciário pas-
república democrática”.17 Em outras pala- sará por um significativo processo de expan-
vras, um corpo anti-republicano ou aristo- são em suas duas funções principais, tanto a
crático cumprindo a função de anti-corpo da de prestação da justiça comum quanto a de
democracia, combatendo prontamente a ti- controle de constitucionalidade das leis e dos
rania da maioria. Retirar-lhe a independên- atos normativos. Evidentemente, essa dupla
cia seria – segue a metáfora orgânica – en- expansão não será linear nem homogênea,
fraquecer o sistema imunológico, abrindo considerando a diversidade de regimes de-
espaço às viroses democráticas. mocráticos existentes e as grandes fases po-
Em resumo, as experiências americana e líticas e econômicas que marcaram o século
francesa nos legaram dois modelos distintos XX.
de Judiciário, ambos passíveis de aplicação
na democracia, apesar de imperfeitos. No
primeiro caso – e em todos os países que 2.1 A expansão do controle
constitucional das leis
tomaram os Estados Unidos como exemplo
– o Judiciário cumprirá a importante função Na dimensão política, os estudos sobre o
liberal de conter a vontade política majori- tema do controle constitucional demonstram
tária, mas a condição não republicana da como o princípio da revisão judicial das leis
magistratura enfrentará de tempos em tem- foi sendo crescentemente adotado por vários
pos tentativas de redução de sua indepen- países,18 especialmente com a promulgação
dência quase aristocrática, especialmente de novos textos constitucionais no século XX,
nas situações em que o Judiciário assumir muito mais substantivos e rígidos do que os
posição mais agressiva no controle dos atos produzidos no século XIX.
normativos das maiorias políticas represen- Nesse processo, a experiência dos Esta-
tativas. No segundo caso – e nos demais paí- dos Unidos seguiu dando o exemplo, levan-
ses em que o Judiciário restringe-se a pres- do alguns países a copiar o seu modelo e

17. Ibidem, p.207.


18. Ver, nesse sentido, Cappelletti, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito compa-
rado. Porto Alegre: Fabris, 1984.

91
Judiciário: entre a Justiça e a Política

outros a buscar alternativas de controle cons- ante desse fato, e associado aos pedidos de
titucional ainda mais inovadoras, capazes de aposentadoria de alguns juízes conservado-
corrigir alguns inconvenientes do sistema res, Roosevelt pôde, segundo Baum, nome-
americano. ar novos ministros sem a necessidade de al-
No início do século XX, a Suprema Cor- terar o número de cadeiras do tribunal.
te dos Estados Unidos já era bastante co- A partir da década de 1950, especialmen-
nhecida por suas decisões declarando a te sob a presidência de Earl Warren (1953-
inconstitucionalidade de leis, especialmente 1969), a Suprema Corte americana iniciaria
aquelas relacionadas à intervenção do gover- uma nova fase, destacando-se dessa vez por
no na economia. Segundo Baum, “nos anos sucessivas decisões com forte impacto na
20, a Corte Suprema declarou incons- ampliação dos direitos civis. Um dos princi-
titucionais mais de 130 leis regulamentadoras pais marcos dessa fase foi o julgamento
[econômicas]”.19 O ponto máximo dessa tra- Brown versus Junta de Educação, pelo qual
jetória de auto-afirmação da Suprema Corte a Corte condenou a política de segregação
no âmbito do sistema político americano se racial das escolas, sobretudo do sul do país,
deu, não sem grave desgaste para o próprio e obrigou o sistema escolar a integrar ne-
tribunal, no processo de implementação do gros e brancos nas mesmas instalações. A
chamado New Deal, projeto de recuperação partir dessa decisão, segundo Baum, várias
econômica planejado pelo presidente outras viriam garantir o direito dos negros a
Franklin Roosevelt após a grande crise do acesso igualitário a serviços públicos nos
capitalismo em 1929. Estados Unidos. Essa grande fase da Supre-
Colocando-se contra o programa econô- ma Corte não ficaria restrita à questão ra-
mico New Deal, a Suprema Corte tomou vá- cial, mas ampliaria também os direitos civis
rias decisões entre 1935 e 1936, anulando em várias outras frentes: na área da justiça
dispositivos legais propostos pelo presidente criminal e na proteção individual em rela-
e aprovados pelo Congresso. Reeleito por ção à atuação policial, no exercício da liber-
maioria esmagadora em 1936, Roosevelt in- dade de expressão e em outros temas con-
vestiu contra o tribunal, propondo ao Con- troversos como o aborto, marcando um
gresso que ampliasse o número de seus mi- ativismo judicial liberalizante por parte do
nistros de 9 para 15, pois assim ele poderia tribunal. Os Gráficos 1 e 2 demonstram não
indicar um número suficiente de juízes que só o vertiginoso crescimento do número de
dessem apoio ao programa econômico. casos apreciados pela Suprema Corte no sé-
Numa mudança que ficou conhecida como culo XX como, nos processos de controle de
“the switch in time that saved nine”,20 dois constitucionalidade das leis, ficam evidentes
juízes – incluindo o então presidente do tri- essas duas grandes fases de atuação do tribu-
bunal, Hughes – alteraram seus votos e pas- nal, em que as questões econômicas da pri-
saram a confirmar a validade constitucional meira metade do século deram lugar às ques-
da legislação introduzida pelo governo. Di- tões relacionadas a direitos civis na segunda.

19. Baum, Lawrence. A Suprema Corte Americana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. p.41.
20. Ver Baum, L., op. cit., p.43.

92
GRÁFICO 1. Número de processos iniciados na Corte Suprema americana, a
intervalos de cinco anos (1943-1983)

Fonte: Baum, L., op. cit., p.161.

GRÁFICO 2. Número de leis econômicas e referentes às liberdades civis (federais,


estaduais e municipais) revogadas pela Corte, por década

Fonte: Baum, L., op. cit., p.280.

93
Judiciário: entre a Justiça e a Política

Desde que a Suprema Corte foi coloca- luz de alguma norma superior que, a rigor,
da na condição de poder proferir a última nem existia na Inglaterra onde, até hoje, não
palavra sobre questões gerais da sociedade encontramos um documento escrito que se
americana, as possibilidades e limites desse possa chamar de Constituição.
arranjo institucional têm sido objeto de po- Essa situação seria significativamente
lêmica, justamente pela delicada interface alterada após a Segunda Guerra Mundial,
que esse sistema estabelece entre o direito quando a retomada do regime democráti-
e a política, entre a perspectiva liberal que co em vários países passou a admitir o
impõe freios à vontade majoritária e a pers- princípio liberal de controle de constitucio-
pectiva democrática que reivindica a legiti- nalidade das leis. Na verdade, o primeiro
midade das decisões políticas como exclu- passo nesse sentido já havia ocorrido em
sividade dos órgãos representativos da so- 1920, quando na Áustria uma nova consti-
berania popular. tuição introduziu o controle constitucional,
A experiência da Corte nas décadas de sob a influência do eminente jurista Hans
1920 e 1930 e sua oposição sistemática às Kelsen.
políticas governamentais do período O modelo austríaco, que seria estendido
Roosevelt ensejaram fortes críticas diante da a outros países europeus após a Segunda
possibilidade de distorção dos princípios do Guerra, era bem diferente do sistema ameri-
governo popular que, segundo expressão de cano.22 Nos Estados Unidos, todos os juízes
um analista francês da época – cunhada an- que integram o Poder Judiciário têm capaci-
tes mesmo do agravamento da crise entre o dade para declarar a inconstitucionalidade
tribunal e o presidente – estaria degeneran- das leis e dos atos normativos, no julgamento
do em um “governo dos juízes”.21 de casos judiciais concretos. Nesse modelo,
Na Europa, no início do século XX, eram classificado como difuso pela bibliografia es-
poucos os países que tinham escapado à in- pecializada, eventuais conflitos entre a lei e a
fluência republicana francesa e introduzido Constituição não são levados diretamente à
o mecanismo da revisão judicial das leis. Em- Suprema Corte mas lá apenas ingressam pela
bora não mencionada na seção anterior, tam- via dos recursos oriundos das instâncias infe-
bém a Inglaterra constituía um importante riores do Judiciário. A Suprema Corte só se
exemplo de que era possível sustentar o re- destaca como guardiã da Constituição graças
gime democrático sem esse tipo de controle, à força vinculante de sua jurisprudência e ao
uma vez que lá predominara, na passagem caráter terminativo prático de suas decisões,
do absolutismo ao estado liberal, a tese da mas é importante destacar que ela não detém
“supremacia do parlamento”, isto é, da im- o monopólio da interpretação constitucio-
possibilidade de que decisões legislativas nal das leis e divide essa competência com
pudessem ser revistas por outros órgãos à as diversas instâncias do Judiciário, num

21. Lambert, Edouard. Le gouvernement des juges et la lutte contre la législation sociale aux États-Unis: l’expérience
américaine du contrôle judiciaire de la constitutionnalité des lois. Paris: M. Giard & Cie, 1921.
22. As considerações que se seguem, a respeito desses diferentes sistemas, estão baseadas em trabalho anterior:
Arantes, Rogério Bastos. Judiciário e Política no Brasil. São Paulo: Idesp/Sumaré/Educ, 1997.

94
sistema que também é chamado de descen- concentradas procurou evitar os males do sis-
tralizado. Além disso, a função de revisão tema americano, cuja descentralização da re-
judicial se vê reforçada pelas garantias de in- visão judicial e o alto grau de insulamento da
dependência do Judiciário, tais como a vita- magistratura por vezes ameaçavam levar à
liciedade, da qual gozam até mesmo os mi- indesejável situação de “governo dos juízes”.
nistros da Suprema Corte.23 Contra essa possibilidade, causada pela fór-
Na Áustria, o controle constitucional foi mula judiciária de revisão constitucional, o
introduzido como monopólio de um tribu- sistema concentrado procurou estabelecer
nal especial, mais conhecido como Corte um melhor equilíbrio entre a função liberal
Constitucional. Ao contrário do modelo de controle das leis e a vontade política ma-
difuso, esse tribunal tem competência para joritária, justamente por meio de uma maior
julgar a própria lei, provocado por ação dire- politização da composição das cortes consti-
ta que questiona a sua constitucionalidade, tucionais, e de restrição do número de agen-
não havendo possibilidade de outros órgãos tes legitimados a promover ação perante o
judiciais realizarem o controle constitucio- tribunal. Assim, além do monopólio da de-
nal de maneira descentralizada.24 claração de inconstitucionalidade, afastando
O sistema austríaco, também chamado os órgãos judiciais e suas diversas instâncias
de concentrado, serviu de modelo para os da possibilidade de intervir em questões
países europeus que, no pós-guerra, decidi- macropolíticas, a composição das cortes e sua
ram incorporar o princípio do controle cons- posição no arranjo institucional de Poderes
titucional das leis à democracia política. As- contribuem para o reconhecimento da di-
sim foram os casos de Itália e Alemanha, onde mensão política de suas funções. As cortes
as experiências do nazismo e do fascismo constitucionais são órgãos separados do Po-
levaram os formuladores das constituições der Judiciário, não coincidindo com seus tri-
de 1947 e 1949, respectivamente, a intro- bunais superiores. As formas de investidura
duzirem mecanismos de controle do poder no cargo são mais politizadas, em geral com-
político, entre eles um tribunal especial para binando a participação do presidente da Re-
julgar a constitucionalidade das leis. pública e do Poder Legislativo na escolha dos
Apesar dessa intenção marcadamente li- integrantes da corte. Também a fixação dos
beral, o modelo das cortes constitucionais mandatos dos ministros, embora muitas

23. No caso da Suprema Corte, a vitaliciedade compensa o fato de os ministros serem indicados pelo presidente
da República e aprovados pelo Senado. Se essa forma de indicação permite algum grau de politização no
processo de escolha, no longo prazo, a inexistência de mandato fixo e as garantias de exercício do cargo
tendem a neutralizar aquela influência política inicial. Isso não significa que ministros escolhidos por serem
mais conservadores ou mais liberais – refletindo a maioria política da época – deixem de sê-lo com o passar
do tempo, mas, se a hipótese mais rasteira de que o seu comportamento refletirá uma espécie de “dívida
pessoal de gratidão pela indicação” tem alguma importância, ela não parece resistir no longo prazo à inde-
pendência adquirida pelo juiz após a posse.
24. Em países que adotam esse modelo, processos na justiça comum podem até suscitar uma questão constituci-
onal. Entretanto, os juízes são obrigados a suspender esses casos e requerer da Corte Constitucional (que
detém o monopólio) uma decisão sobre a questão levantada. Os órgãos judiciais comuns nesses países não
podem decidir sobre a (in)constitucionalidade das leis que se aplicam aos casos concretos que estão exami-
nando.

95
Judiciário: entre a Justiça e a Política

vezes longos, baseia-se na idéia de que o sistema difuso de revisão judicial que aqui ha-
exercício da função deve ser submetido à via sido adotado por alguns países, sob influ-
avaliação periódica do corpo político, além ência do modelo norte-americano.
de indicar que a interpretação da Constitui- Entre os extremos das fórmulas difusa e
ção pode mudar com o tempo. Por fim, a concentrada de controle constitucional, hou-
dimensão política é ainda reforçada pela ve países que buscaram estabelecer combi-
restrição do número de agentes que podem nações entre elas, dando origem a sistemas
acionar o tribunal constitucional, geralmen- mistos ou, como parece singularizar o caso
te restrito ao presidente, aos governos esta- brasileiro, um sistema híbrido.
duais (se houver), e a uma fração – em geral No Brasil, embora a primeira Constitui-
um terço – dos membros do Parlamento. ção republicana de 1891 tenha copiado o
Note-se, portanto, que a conversão de modelo difuso americano, várias mudanças
países europeus a um modelo mais liberal inspiradas no sistema concentrado europeu
de democracia não chegou a ponto de entre- foram feitas pelas constituições posteriores,
gar difusamente ao Judiciário a capacidade a ponto de transformar nosso sistema de
de controlar a constitucionalidade das leis, controle constitucional em um sistema hí-
como nos Estados Unidos, muito menos sig- brido, bastante singular no quadro do di-
nificou um mergulho na ilusão de que tal reito comparado. Com a redemocratização
função pode ser considerada meramente jurí- do país nos anos 80, tanto a dimensão difusa
dica: as cortes constitucionais do modelo con- do controle constitucional quanto o meca-
centrado são órgãos reconhecidamente polí- nismo de ação direta perante o Supremo Tri-
ticos e, estando apenas um pouco mais insu- bunal Federal foram retomados e amplia-
lados por garantias e privilégios, operam dos sem, contudo, estabelecer-se uma clara
como uma espécie de legislador às avessas, predominância das declarações de
negando validade às leis que consideram in- inconstitucionalidade do STF sobre as ins-
compatíveis com a Constituição. tâncias inferiores do Judiciário.
Uma segunda onda de liberalização de Hoje, graças à Constituição de 1988,
regimes políticos nas décadas de 1970 e 1980 nosso sistema não é apenas difuso porque
daria novo impulso à expansão da função contamos com o mecanismo da ação dire-
política de controle de constitucionalidade das ta de inconstitucionalidade, patrocinada
leis, tanto na forma difusa norte-americana junto ao Supremo Tribunal Federal – STF,
como na forma concentrada européia. Foi que pode anular ou ratificar a lei em si.
assim em países como Portugal e Espanha que, Desse ponto de vista, o STF é quase uma
ao dissolverem regimes ditatoriais no final corte constitucional. O sistema também
dos anos 70, recorreram à criação de siste- não é apenas concentrado porque o STF
mas de controle constitucional por meio de não detém o monopólio da declaração de
novas constituições em 1976 e 1978, respec- (in)constitucionalidade, dividindo essa com-
tivamente. Poucos anos depois, quando essa petência com os juízes e tribunais inferiores
onda liberalizante atingiu a América Latina, de todo o país que, se não chegam a anular a
vários regimes militares autoritários deram lei, podem afastar sua aplicação em casos
lugar a democracias liberais, que restabele- concretos. Desse ponto de vista, quando
ceram o funcionamento normal do Judiciá- o STF recebe recurso das instâncias infe-
rio e, com isso, permitiram a retomada do riores em questões constitucionais ele se

96
manifesta apenas como órgão de cúpula do vernador de Estado [idem]; VI - o Pro-
Judiciário e suas decisões valem apenas curador-Geral da República; VII - o
para aqueles casos particulares. Foi essa Conselho Federal da Ordem dos Ad-
disjuntiva entre o lado difuso e o lado con- vogados do Brasil; VIII - partido po-
centrado do sistema brasileiro que, nos anos lítico com representação no Congres-
1990, suscitou propostas de introdução da so Nacional [cerca de 20, hoje]; IX -
chamada força vinculante nas decisões do confederação sindical ou entidade de
STF, sobre as instâncias inferiores do Judi- classe de âmbito nacional [número
ciário, bem como de mecanismos de abre- desconhecido].
viação dos conflitos constitucionais relevan-
tes, para que sejam remetidos rapidamente Os efeitos dessa descentralização podem
ao STF, para apreciação definitiva e válida ser vistos nos Gráficos 3 e 4, que mostram o
para todo o país (avocatória ou incidente de crescimento do número de Recursos Extra-
inconstitucionalidade).25 ordinários e de Ações Diretas de Incons-
Além da descentralização típica do mo- titucionalidade, respectivamente. Por meio
delo difuso, o sistema híbrido brasileiro tor- dos primeiros, chegam ao STF os casos con-
nou-se extremamente acessível também pela cretos envolvendo questões constitucionais
via direta, na medida em que a Constituição decididas em instâncias inferiores do Judiciá-
de 1988 ampliou de um para nove os agen- rio (recurso proveniente do lado difuso do
tes legitimados a fazer uso da Ação Direta sistema). Por meio das Adins, faz-se o con-
de Inconstitucionalidade perante o Supremo trole constitucional direto.
Tribunal Federal. Antes restrita ao Procura- De acordo com Gráfico 3, os conflitos
dor-Geral da República, a lista de agentes constitucionais, que pela via difusa chega-
legitimados a propor ação direta tornou-se ram ao STF, triplicaram de volume entre
uma das mais generosas do mundo, ultrapas- 1990 e 2002, crescendo especial e parado-
sando até mesmo os países de modelo pura- xalmente após 1997, quando o país parecia
mente concentrado: o artigo 103 da Consti- ter atingido razoável grau de estabilidade po-
tuição menciona: lítica e econômica com o governo Fernando
Henrique Cardoso.26 Entre as Adins, como
I - o Presidente da República; II mostra o Gráfico 4, a década de 1990 come-
- a Mesa do Senado Federal; III - a çou e terminou com cerca de 250 ações por
Mesa da Câmara dos Deputados; IV ano, nunca tendo experimentado menos do
- a Mesa de Assembléia Legislativa que 150 processos anuais. Dado surpreen-
[portanto, de 27 estados]; V - o Go- dente ocorreu no primeiro ano do governo

25. Analiso essas propostas de reforma, algumas já aprovadas e outras ainda em tramitação no Congresso Naci-
onal, no capítulo “Jurisdição Política Constitucional”, em Sadek, Maria Tereza (Org.). Reforma do Judiciá-
rio. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001, e no capítulo “Consensos e dissensos na reforma consti-
tucional do Judiciário”, em Pinheiro, Armando C. Reforma do Judiciário. Problemas, desafios e perspectivas.
São Paulo: Idesp / Rio de Janeiro: Book Link, 2003.
26. É preciso considerar que o Recurso Extraordinário marca a chegada do processo na última instância do
Judiciário, sendo ainda difícil, pelos dados disponíveis, saber há quantos anos essas ações estavam tramitan-
do na Justiça. Seja como for, é a partir de 1997 que o volume de REx pula de cerca de 15 mil para 35 mil.

97
Judiciário: entre a Justiça e a Política

GRÁFICO 3. Recursos Extraordinários distribuídos para julgamento no STF (1990-


2003)

Fonte: Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. (www.stf.gov.br)

GRÁFICO 4. Ações Diretas de Inconstitucionalidade no STF (1988-2005)

Fonte: Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. (www.stf.gov.br )

98
Lula, quando o número de Adins saltou para zidas no próprio estado, pelas Assembléias
mais de 300 ações e manteve-se relativamen- Legislativas.27
te elevado nos anos seguintes, embora com Embora legitimados a propor Adins,
tendência de queda em direção ao patamar presidente(s) da República e mesas do Sena-
médio anterior. do Federal e da Câmara dos Deputados pas-
Quando se observa o número de ações saram mais de 15 anos sem fazer uso desse
por proponentes, num total de cerca de 2.590 mecanismo de controle constitucional, num
entre os anos de 1988 e 2001, destacaram- claro indício de que as leis promulgadas nesse
se como autores os governadores de estado período, como expressão da vontade majo-
e as confederações sindicais de âmbito nacio- ritária, atenderam aos interesses das duas
nal (ambos com 26,3%), seguidos pelos par- câmaras legislativas e do Poder Executivo.28
tidos políticos (21,2%) e pelo Procurador- Em contrapartida, por 2.590 vezes o STF
Geral de Justiça (19,5%). Vianna et al. já foi acionado diretamente pelos desconten-
haviam revelado esse padrão em estudo que tes com as legislações federal e estaduais, en-
analisou as Adins do período 1988-1998, e quanto milhares de processos envolvendo
pode-se afirmar que esses resultados indi- também questões constitucionais chegavam
cam que o STF veio atuando em duas di- ao tribunal pela via difusa, colocando-o
mensões principais, desde a Constituição de indubitavelmente na condição de poder políti-
1988: a corte representa espaço importan- co de Estado, responsável pela função liberal
te de oposição das confederações sindicais de resguardar a Constituição contra os atos
e partidos políticos insatisfeitos com a pro- normativos do Executivo e do Legislativo.29
dução legislativa e também funciona como Em resumo, diante dos dois grandes
tribunal da federação, pela quantidade sig- modelos constitucionais discutidos na pri-
nificativa de ações promovidas por gover- meira seção deste capítulo, o caso brasileiro
nadores contra, principalmente, leis produ- distancia-se do republicanismo democrático

27. Vianna, Luiz Werneck, Carvalho, Maria Alice R., Melo, Manoel P. C., Burgos, Marcelo B. A judicialização
da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. Os autores revelam que quase 90%
das 507 Adins propostas por governadores de estado visavam obter a declaração de inconstitucionalidade
de leis promulgadas pelas respectivas Assembléias Legislativas estaduais.
28. Somente em 2005, o presidente da República e a Mesa do Senado Federal propuseram suas primeiras Adins
ao STF. Em 2006, o presidente fez uso desse instrumento por três vezes.
29. Analisamos aqui a dimensão política da atuação do Judiciário brasileiro, por meio do mecanismo específico
do controle de constitucionalidade das leis. Isso não significa que um conceito mais amplo de função política
não fosse capaz de abranger outros tipos de ações judiciais, especialmente no âmbito do STF. Um excelente
exemplo nesse sentido provém do exame que Koerner realizou sobre a importância política dos processos
de habeas-corpus envolvendo políticos durante a República Velha (1889-1930), especialmente no âmbito do
STF, e suas conexões com a política oligárquica da época. Koerner, Andrei. Judiciário e Cidadania na Cons-
tituição da República. São Paulo: Hucitec/Departamento de Ciência Política da USP, 1998. Outro trabalho
sobre processos de habeas-corpus no STF, que ressalta seu papel político no período de instalação do regime
autoritário pós-1964, é o de Vale, Osvaldo Trigueiro do. O Supremo Tribunal Federal e a instabilidade polí-
tico-institucional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. Recentemente, cobrindo uma grave lacuna
da historiografia brasileira – a falta de estudos sobre o Poder Judiciário – Emília Viotti da Costa elaborou
uma ampla história do STF, da sua criação em 1890 até a Constituição de 1988, explorando suas relações
com a sociedade e a política ao longo das diversas fases da história republicana brasileira. Costa, Emilia
Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. São Paulo: IEJE, 2001.

99
Judiciário: entre a Justiça e a Política

e adota fortemente o princípio liberal de actors, it gives them greater voice and
contenção da maioria política, por meio de leverage over policy than might otherwise
um sistema ultradescentralizado de controle be the case, in some cases enabling them to
constitucional, que permite às minorias po- act as veto players even when they might
líticas exercer poder de veto, invocando a otherwise be unable to do so elsewhere in
Constituição contra leis e atos normativos the political system.”32 Na visão deste autor,
dos Poderes Legislativo e Executivo. Se con- a presença ativa do Judiciário também teria
siderarmos – adotando a terminologia de possibilitado a correção e legitimação das
Lijphart (2003) – que o processo político- decisões governamentais durante o período
decisório no Brasil contempla a participação de grandes reformas econômicas dos anos 90.
de uma grande variedade de atores e arenas
institucionais (separação de poderes entre
2.2 Estado social, ampliação do
Executivo e Legislativo, duas câmaras
acesso à Justiça e expansão
legislativas com poderes simétricos no Con- do Judiciário
gresso Nacional, multipartidarismo exacer-
bado e federalismo razoavelmente descen- Se pela via da proteção da liberdade os
tralizado), devemos acrescentar a essas variá- Judiciários de diferentes países tenderam a se
veis o sistema de controle constitucional expandir com a instalação de novos regimes
como uma das principais formas de recurso liberal-democráticos no século XX, também
das minorias políticas representativas, con- pela via da promoção da igualdade alguns de-
tra decisões políticas majoritárias, reforçan- les vão conhecer um tipo inesperado de ex-
do ainda mais o perfil consociativo do nosso pansão, que escapa à perspectiva liberal e
sistema político.30 Aprofundando a análise não diz respeito à proteção judicial das mino-
desse papel do judiciário brasileiro, Taylor rias políticas: refiro-me à transformação do
argumenta que ele constitui importante veto Judiciário em instância de implementação de
point 31 no sistema institucional: “by direitos sociais e coletivos, especialmente na
providing veto points to select political segunda metade do século XX.

30. O modelo consociativo opõe-se ao modelo majoritário, no qual as maiorias políticas são formadas com mais
facilidade e onde elas governam sem tanta resistência. Segundo Lijphart, seriam características desse segun-
do modelo o parlamentarismo, o Legislativo unicameral, o bipartidarismo, o estado unitário e a ausência de
controle constitucional das leis. No Brasil, análises recentes têm procurado mostrar como o instrumento da
Medida Provisória e o relativo controle da agenda legislativa por parte do Poder Executivo compensam o alto
grau de fragmentação consociativa do sistema político. O que essas análises ainda não contabilizaram é o custo
de governabilidade democrática de um modelo como esse e, do ponto de vista dos resultados substantivos, a
quem ele beneficia. Lijphart, A. Modelos de democracias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
31. Sweet nos oferece uma boa formulação de veto point em sua na análise do papel desempenhado por cortes
constitucionais européias: “a veto point is a formally organized oportunity for opponents of the governing
majority to block legislative provisions they do not like from becoming law. Abstract review comprises one
such veto point: oppositions can refer legislation to constituional judges; neither the government nor the
parlamientary majority can block this referral; and constitutional court can veto the bill as unconstitutional.”
Sweet, Alec Stone. Governing with judges. Constitutional politics in Europe. Oxford: Oxford University
Press, 2000. p.53
32. Taylor, Matthew Macleod. Activating Judges: courts, institutional structure, and the judicialization of policy
reform in Brazil, 1988-2002. PhD Dissertation, Georgetown University, Washington, D.C., 2004. p.154.

100
Há pelo menos dois enfoques principais passa a ser acionado para dar efetividade prá-
acerca desse tipo de expansão do Judiciário, tica a essa nova legislação social, muito mais
não excludentes e até mesmo complementa- substantiva do ponto de vista dos direitos de
res. O primeiro, mais sociológico, associa a cidadania. Embora não se trate de um pro-
expansão do Judiciário e suas dificuldades atu- cesso linear nem livre de contradições (basta
ais, respectivamente, ao desenvolvimento e lembrar o problema da escassez de recursos
crise do chamado Estado de Bem-Estar Social que impede a implementação total desses di-
no século XX. O segundo, mais institucional, reitos, os conflitos entre a visão jurídica e a
associa a expansão do Judiciário à ampliação visão político-administrativa sobre a eficácia
do acesso à Justiça para direitos coletivos, es- dessas novas leis, as dificuldades de um judi-
pecialmente a partir da década de 1970. ciário tipicamente liberal de se adaptar à pro-
Um dos principais representantes da pri- moção de direitos de igualdade, entre ou-
meira tese, Boaventura de Sousa Santos ar- tras), Santos destaca que
gumenta em vários de seus trabalhos33 que
o desenvolvimento do Estado Social – tam- a juridificação do bem-estar so-
bém chamado de Estado Providência – após cial abriu caminho para novos campos
a Segunda Guerra Mundial levou a mudan- de litigação nos domínios trabalhista,
ças significativas no mundo do Direito e civil, administrativo e da segurança
da Justiça. Marcado pelos princípios do social, o que, nuns países mais do que
intervencionismo econômico e da promoção noutros, veio a se traduzir no aumento
de bem-estar social, essa nova forma de Esta- exponencial da procura judiciária e na
do desencadeou a produção de leis constitu- conseqüente explosão da litigiosidade.34
cionais e ordinárias muito mais substantivas
do que as produzidas sob o modelo liberal Da mesma forma, segundo essa perspecti-
clássico, carregadas de direitos sociais e eco- va sociológica, a crise que se abateu sobre o
nômicos como educação, saúde, trabalho, se- Estado-Providência no fim dos anos 70 e iní-
gurança social e outros. Nessa perspectiva, o cio dos 80 afetaria também o Judiciário, agra-
Estado deixa de ser apenas o responsável pela vando o sentido de suas novas atribuições
manutenção da ordem e garantia das liberda- na área dos direitos sociais. O problema cen-
des e passa a instrumento de redução das de- tral é que os Estados perderam boa parte
sigualdades sociais, por meio da intervenção de sua capacidade de promoção do bem-
econômica e da prestação de serviços públi- estar social, cedendo a processos de refor-
cos cada vez mais abrangentes. ma orientados pela ideologia neoliberal
Segundo Santos, essas transformações (privatizações, desregulamentação da econo-
levaram o Judiciário a assumir um novo pa- mia, diminuição dos gastos sociais e redu-
pel: antes restrito à função de aplicação das ção do déficit público, para garantir o equi-
leis nos conflitos particulares, o Judiciário líbrio fiscal e combater a inflação). Quanto

33. Uma boa síntese desse argumento pode ser encontrada em Santos, Boaventura de Sousa [et al.], “Os tribu-
nais nas sociedades contemporâneas”, Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.30, fev. 1996, p.29-62.
34. Ibidem, p.34-5.

101
Judiciário: entre a Justiça e a Política

ao Judiciário, que se havia expandido na fase têm no Judiciário o sustentáculo da segurança


anterior justamente para participar da jurídica dos contratos.
implementação da legislação social, em vez A segunda perspectiva de análise que
de retroagir na mesma proporção que o Es- descreve a expansão do Judiciário na segun-
tado social em crise, viu-se ainda mais exigi- da metade do século XX, quase sempre
do nesse contexto dúbio de escassez de re- apoiada nos diagnósticos sociológicos pro-
cursos públicos e de direitos legislados abun- duzidos pela primeira, põe ênfase nos aspec-
dantemente. Se na fase anterior já era difícil tos propriamente jurídicos e institucionais re-
garantir a efetividade desses direitos pela via lacionados ao surgimento de novos tipos de
judicial, agora a situação de crise do Estado direitos e de novas formas de acesso à Justi-
torna o quadro mais dramático, combinan- ça. Segundo essa vertente de análise, além
do elevação das demandas e baixa capacida- das mudanças sociais, políticas e econômi-
de de resposta do Judiciário. cas destacadas pela perspectiva sociológica,
Embora não caiba aqui uma discussão o Judiciário teria conhecido importante ex-
detalhada de outras mudanças recentes que pansão ao longo do século XX também por-
afetaram a função judiciária, vale destacar que o direito e as regras processuais muda-
que a perspectiva sociológica enfatiza novos ram muito, colocando a Justiça ao alcance
fenômenos que influenciam de uma manei- formal dos atores coletivos da sociedade.
ra ou de outra a atividade judicial, tornan- Um dos principais estudiosos dessa pers-
do-a bem mais complexa: a crise dos meios pectiva, Mauro Cappelletti produziu junta-
tradicionais de representação política e a mente com Bryant Garth o primeiro balan-
revalorização da sociedade civil, até mesmo ço sistemático sobre os limites e novas pos-
como espaço de produção de bens coletivos sibilidades de acesso à Justiça, por meio de
não mais realizados pelo Estado; a trabalho publicado originalmente em 1978.35
globalização e seus efeitos sobre a produção Nesse livro, ao lado de questões como cus-
e implementação do Direito em suas diver- tos econômicos e problemas de informação,
sas áreas; o agravamento de problemas que os autores discutem as mudanças sofridas
colocam em risco as instituições e a esfera pelo modelo individualista de direito liberal
pública de um modo geral, tais como a (que reconhecia a titularidade de direitos
corrupção e o crime organizado. Além dis- apenas a sujeitos individuais, aos quais cabia
so, o Judiciário se vê desafiado também por a exclusividade de decidir sobre como e
demandas de novos movimentos sociais, quando recorrer à Justiça para sustentá-los),
muitas vezes articulados em defesa de direi- e a ampliação do acesso à Justiça aos chama-
tos de minorias ou de causas novas como as dos direitos difusos e coletivos.
ambientais e dos consumidores, ou ainda pela Embora haja sutilezas importantes nas
revalorização dos mercados e das relações definições de direitos difusos e coletivos,
autônomas entre agentes econômicos, que uma formulação geral poderia ser a seguinte:

35. A edição brasileira saiu dez anos depois. Cappelletti, Mauro e Garth, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre:
Fabris, 1988.

102
são direitos transindividuais de natureza indivíduos isolados e a incapacidade estatal,
indivisível, dos quais são titulares pessoas os autores valorizaram as soluções adotadas
indeterminadas (direitos difusos) ou grupo de por diversos países no sentido de abrir a Jus-
pessoas ligadas entre si por alguma relação tiça a associações civis, legalmente constitu-
jurídica (direitos coletivos). Outra caracterís- ídas para defesa judicial de interesses difusos
tica importante é que esses novos direitos e coletivos, desafiando conseqüentemente o
podem ser representados judicialmente por Judiciário a assumir um papel totalmente
atores sociais e coletivos, legitimados ex- novo.
traordinariamente a ingressar em juízo em Um segundo aspecto ressaltado pelos au-
defesa de direitos que não são particular- tores, quanto à ampliação do acesso à Justiça,
mente seus, mas que pertencem a um con- diz respeito a inovações na própria estrutura
junto de indivíduos dispersos e nem sempre judiciária, que passaram a proliferar a partir
identificáveis. Exemplos de direitos difusos da década de 1970, tais como os “tribunais
são aqueles relacionados ao meio ambiente de pequenas causas”, voltados para a solução
(proteção da qualidade do ar, rios, fauna e mais rápida e efetiva de casos de menor com-
vegetação, quando definidos por lei), dos plexidade, menor valor e/ou menor potencial
quais todos os cidadãos se beneficiam, po- ofensivo. Essa onda de reforma judiciária, que
rém indivisivelmente. Exemplos de direitos atingiria diversos países, marcaria a tentativa
coletivos podem ser encontrados em algu- do Judiciário de se aproximar da população
mas relações de consumo, quando consumi- mais pobre e de enfrentar a chamada
dores individuais encontram-se ligados entre “litigiosidade contida”, isto é, demandas que
si ou com a parte contrária por uma relação nem chegavam aos tribunais em função das
jurídica que, quando desrespeitada, atinge- dificuldades de acesso.
os coletivamente; da mesma forma, a repa- Seja pela via da explicação sociológi-
ração do dano pode beneficiar a todos indis- ca, seja pela via da explicação institucional,
tintamente. o fato é que o Judiciário conheceu forte
Segundo Cappelletti e Garth, o reconhe- expansão na segunda metade do século
cimento da dimensão difusa e coletiva de XX, transformando-se em instância de so-
certos interesses pelo Direito levou vários lução de conflitos coletivos e sociais e de
países a promover novas formas processuais implementação de direitos orientados pelo
de acesso à Justiça, transcendendo o modelo valor da igualdade e não só pelo valor da
liberal de ações judiciais individuais e abrin- liberdade. Isso obrigou os judiciários de vá-
do espaço às ações coletivas. Desse impor- rias democracias a reverem suas finalidades
tante processo de mudança, os autores des- institucionais, pautadas no paradigma libe-
tacam a fragilidade dos indivíduos frente à ral, e a se reencontrarem com a dimensão
crescente complexidade do mundo contem- política não pela via da justiça constitucio-
porâneo e à dimensão coletiva de vários ti- nal, mas pela porta da justiça comum.
pos de conflitos, ao mesmo tempo em que No Brasil, já contamos com um conjun-
apontam a incapacidade das instituições es- to significativo de pesquisas e análises que
tatais de oferecer proteção geral a direitos nos permitem demonstrar como o Judiciá-
transindividuais como meio ambiente, con- rio brasileiro também conheceu uma forte
sumidor, patrimônio público, histórico e expansão nessa dimensão da justiça comum
cultural, entre outros. Entre a fragilidade de e da proteção de direitos coletivos e sociais.

103
Judiciário: entre a Justiça e a Política

Os trabalhos coordenados por Maria Tereza de intervenção nas relações sociais. O mode-
Sadek e Luiz Werneck Vianna, sediados res- lo varguista, muito mais corporativo do que
pectivamente em São Paulo e no Rio de Ja- o sistema europeu de bem-estar social, tam-
neiro, fornecem um volume extraordinário bém levaria ao desenvolvimento de uma nova
de informações que confirmam essa tendên- legislação social, especialmente relacionada
cia, em que pesem também apontarem limi- ao mundo do trabalho.
tes e contradições desse processo.36 Foi nessa época que o Judiciário brasilei-
A expansão do Judiciário no Brasil se ro conheceu seu primeiro salto expansionista,
deu, em grande parte, pelos mesmos moti- quando áreas importantes de conflitos foram
vos apontados tanto pela perspectiva socio- deslocadas para ramos especiais da Justiça.
lógica quanto pela análise institucional des- Refiro-me à questão eleitoral e à questão tra-
critas acima. balhista, que ensejaram a criação, respecti-
Embora não tenhamos construído no vamente, da Justiça Eleitoral e da Justiça do
Brasil um Estado social semelhante ao dos Trabalho.37 Não se trata aqui de remontar esse
países europeus, também aqui o novo mo- período da história brasileira, mas o fato é
delo econômico implantado a partir de 1930 que as eleições na República Velha eram
– sob a liderança de Getulio Vargas – levou marcadas pela fraude e por outras mazelas
o Estado a assumir papel central na condu- políticas, a ponto de a “verdade eleitoral”
ção da economia, combinado a um alto grau constituir uma das bandeiras da Revolução

36. Segue adiante uma lista dos títulos mais importantes, em ordem cronológica e temática: quanto ao perfil da
magistratura e às opiniões de juízes sobre determinados temas e valores relacionados à justiça, ver Sadek,
Maria Tereza e Arantes, Rogério B. “A crise do Judiciário e a visão dos juízes”, Revista da USP, n. 21, mar.-
maio/1994, p.34-45. Sadek, Maria Tereza (Org.). O Judiciário em Debate. São Paulo: Sumaré, 1995. Vianna,
Luiz Werneck, Carvalho, Maria Alice R., Melo, Manoel P. C., Burgos, Marcelo B. Corpo e Alma da Magistra-
tura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1997. Sadek, Maria Tereza. Magistrados: uma imagem em movimen-
to”. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. Adotando a perspectiva da sociologia das profissões, Bonelli nos
oferece instigante análise sobre os valores que orientaram a formação das carreiras jurídicas no Brasil e têm
marcado sua atuação recente. Ver Bonelli, Maria da Gloria. Profissionalismo e política no mundo do direito:
as relações dos advogados, desembargadores, procuradores de justiça e delegados de polícia com o Estado. São
Carlos: EdUFSCar: Editora Sumaré, 2002. Quanto à dupla expansão do Judiciário brasileiro, na dimensão
político-constitucional e na dimensão social, ver os trabalhos de Sadek, Maria Tereza. “O Poder Judiciário
na Reforma do Estado” in Pereira, Luiz Carlos Bresser, Wilheim, Jorge e Sola, Lourdes (Orgs.). Sociedade e
Estado em Transformação. São Paulo: Editora Unesp; Brasília: Enap, 1999 (cap. 12) e Vianna, Luiz Werneck
et al. A judicialização da política..., op. cit. Para um balanço das novas experiências de acesso à justiça,
sobretudo quanto ao Judiciário, ver Sadek, Maria Tereza (Org.). Acesso à Justiça. São Paulo: Fundação
Konrad Adenaeur, 2001. Para alguns tópicos especiais como o conceito de judicialização da política e uma
avaliação empírica do sistema de proteção dos interesses coletivos no Rio de Janeiro, entre outros temas
relacionados à Justiça, ver Vianna, Luiz Werneck (Org.), A democracia e os Três Poderes no Brasil. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, Rio de Janeiro: Iuperj/Faperj, 2002. Para um exame das relações entre justiça e
economia, ver Castelar, Armando (Org.). Judiciário e Economia no Brasil. São Paulo: Sumaré, 2000. Para
um exame dos projetos de reforma do Judiciário, ver Sadek, Maria T. (Org.). Reforma do Judiciário, op. cit.
e Pinheiro, Armando Castelar. Reforma do Judiciário. Problemas, desafios e perspectivas. São Paulo: Idesp;
Rio de Janeiro: Book Link. 2003.
37. A Justiça Eleitoral foi criada em 1932 e já na Constituição de 1934 figurou como ramo específico do Poder
Judiciário. Os primeiros órgãos da Justiça Trabalhista também surgiram no início dos anos 30 e foram
incluídos nas constituições de 1934 e 1937, porém como justiça administrativa. Foi a Constituição de 1946
que completou a formação da Justiça do Trabalho, transformando-a em ramo do Poder Judiciário.

104
GRÁFICO 5. Processos distribuídos para julgamento nos Tribunais Regionais
Eleitorais (anos selecionados)

Fonte: Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. (www.stf.gov.br)

GRÁFICO 6. Processos entrados na 1a instância da Justiça do Trabalho


(1990-2001)

Fonte: Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. (www.stf.gov.br)

105
Judiciário: entre a Justiça e a Política

de 30 e a criação da Justiça Eleitoral ser uma de ações nos Tribunais Regionais Eleitorais
das suas conseqüências práticas. Na área so- manteve-se na faixa das 35 mil ao longo dos
cial e trabalhista, a necessidade de expandir anos 90. Nas eleições nacionais de 2002, essa
os direitos sociais e ao mesmo tempo manter cifra chegou a mais de 50 mil processos.41
sob controle a classe trabalhadora levou o No ramo da Justiça do Trabalho, o volu-
governo Vargas a construir um extraordiná- me de ações impressiona. Ao longo dos anos
rio conjunto de leis e instituições, incluída aí 90, bem que houve um decréscimo do nú-
a Justiça do Trabalho, num arranjo que San- mero de processos em 1994 (muito prova-
tos denominou de “cidadania regulada”.38 velmente relacionado à estabilização econô-
Entretanto, como demonstra Sadek para o mica promovida pelo Plano Real), mas insu-
caso da Justiça Eleitoral39 e Pastore para o ficiente para afirmar-se como tendência para
caso da Justiça do Trabalho,40 a solução ju- os anos posteriores, que voltaram a conhe-
dicial das questões eleitorais e trabalhistas cer um crescimento extraordinário do nú-
não era a única nem tampouco a forma mero de ações, que praticamente atingiram
mais comum de enquadramento desses a casa de dois milhões na primeira instância
conflitos no mundo contemporâneo, pelo da Justiça Trabalhista. Segundo estudos rea-
menos nos termos abrangentes e fortemen- lizados por Pastore, a Justiça Trabalhista bra-
te intervencionistas que caracterizaram o mo- sileira seria campeã mundial em volume de
delo brasileiro. No nosso caso, independen- processos, nem tanto por uma suposta pro-
temente das vantagens e desvantagens da so- pensão à litigância nessa área mas justamen-
lução judicial, o fato é que a expansão do te pela rigidez da legislação que regula as
Judiciário nessas áreas foi a fórmula adota- relações de trabalho e pelo alto grau de po-
da para tentar institucionalizar dois tipos de der normativo da Justiça Trabalhista, isto é,
conflitos de grande importância para a ma- pela sua capacidade de intervir nessas rela-
nutenção da ordem social e política. ções nos seus mínimos detalhes.42
Os Gráficos 5 e 6 apresentam o volume A primeira onda de expansão do Judiciá-
de ações na Justiça Eleitoral e na Justiça Tra- rio brasileiro nas décadas de 1930 e 1940 foi
balhista nos anos recentes. No primeiro caso, impulsionada por uma tendência mais pro-
apesar da rotinização das eleições, da conso- funda e duradoura da política brasileira: a
lidação das regras básicas de disputa e do aper- desconfiança em relação às instituições polí-
feiçoamento crescente do processo eleitoral tico-representativas e à capacidade do regime
(desde o registro de eleitores até o uso de democrático de atender às necessidades da
urnas eletrônicas em todo o país), o volume sociedade, inspirando soluções alternativas do

38. Santos, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
39. Sadek, Maria Tereza. A Justiça Eleitoral e a consolidação da democracia no Brasil. São Paulo: Fundação
Konrad Adenauer, 1995.
40. Pastore, José. Flexibilização dos mercados de trabalho e contratação coletiva. São Paulo: LTR, 1995.
41. Para uma análise da Justiça Eleitoral nos tempos mais recentes, fatores positivos de sua atuação bem como
aspectos que ainda merecem reflexão e reforma, ver Taylor, Matthew “Justiça Eleitoral” in Avritzer, Leonar-
do e Anastásia, Fátima. Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p.147-152.
42. Os vários artigos de José Pastore sobre essas questões podem ser encontrados no site: www.josepastore.com.br.

106
problema da ordem social e dos conflitos co- por força de sua participação direta na for-
letivos. Essa matriz ideológica voltaria a ope- mulação do anteprojeto que deu origem à Lei
rar na segunda onda de expansão da Justiça da ACP – chamar para si boa parcela da res-
brasileira, a partir dos anos 70, quando se ponsabilidade e dos instrumentos de atua-
atribuiu a um órgão do próprio Estado a res- ção nessa nova área de direitos difusos e co-
ponsabilidade principal de defesa dos inte- letivos.
resses difusos e coletivos perante o Judiciá- A Constituição de 1988 consolidou essa
rio: o Ministério Público. expansão da Justiça rumo à proteção dos
Como demonstrei em trabalho anterior,43 direitos coletivos, reafirmando-os como ca-
o Brasil passou por uma profunda transfor- tegoria jurídica constitucional – o que permi-
mação no ordenamento jurídico a partir dos tiria o reconhecimento legal de vários outros
anos 80, quando iniciou o reconhecimento direitos específicos a partir dessa matriz – e
legal da existência de direitos difusos e cole- confirmou o papel tutelar do Ministério Pú-
tivos e a abertura do processo judicial à re- blico nessa área, atribuindo-lhe ao mesmo
presentação desses direitos. O marco funda- tempo independência institucional em rela-
mental foi a criação da Ação Civil Pública – ção aos demais poderes de Estado.44
ACP em 1985, por meio da qual direitos do Desde 1988 temos assistido ao desenvol-
consumidor, meio ambiente e patrimônio vimento de um verdadeiro subsistema jurí-
histórico-cultural passariam a ser defendidos dico no país, em que novas leis promulgadas
coletivamente em juízo. orientam-se pela idéia da proteção coletiva
O debate em torno da criação da ACP de determinados direitos e pelo reforço do
mobilizou juristas, juízes e membros do Mi- papel do Ministério Público, dando conti-
nistério Público. Este último, à época, rei- nuidade à expansão iniciada pela Lei da ACP
vindicava a condição de órgão de defesa da de 1985: são exemplos a Lei 7853/89, que
sociedade, a despeito de ser uma instituição trata da proteção das pessoas portadoras de
do Estado responsável por acionar o Judici- deficiência; a Lei 7913/89, que institui a pro-
ário em áreas bem delimitadas como a da teção coletiva dos investidores do mercado
ação penal, sua precípua atribuição. Entre- de valores mobiliários; a Lei 8069/90, que
tanto, como vimos, a discussão sobre o aces- criou o Estatuto da Criança e do Adolescen-
so coletivo à Justiça, conduzida por autores te; a Lei 8078/90, que criou o Código de
renomados como Cappelletti, não só propu- Defesa do Consumidor, certamente o diplo-
nha a valorização das associações da socieda- ma legal mais importante desse novo
de civil como avaliava negativamente o papel subsistema jurídico; a Lei 8429/92, que tra-
desempenhado por instituições estatais nessa ta da improbidade administrativa, delegan-
área. Independentemente dessa avaliação, o do funções importantes ao Ministério Públi-
fato é que o Ministério Público conseguiu – co; a Lei 8884/94, que trata das infrações

43. Arantes, Rogério Bastos. Ministério Público e Política no Brasil. São Paulo: Sumaré/Educ, 2002.
44. Sobre a singularidade do modelo de independência institucional do Ministério Público brasileiro ver Kerche,
Fábio. O Ministério Público no Brasil. Autonomia, organização e atribuições. Tese (Doutorado) – Departa-
mento de Ciência Política. USP, 2002.

107
Judiciário: entre a Justiça e a Política

contra a ordem econômica e, finalmente, a para causas criminais cuja pena máxima não
Lei 8974/95, que estabelece normas sobre ultrapasse um ano de prisão. Segundo dados
biossegurança e dá legitimação ao Ministé- do IBGE para o ano de 2004, o Brasil conta
rio Público para atuar nessa área. com 2.105 Juizados Especiais Cíveis e 1702
O resultado geral dessa evolução legis- Juizados Especiais Criminais espalhados, res-
lativa e processual é que hoje a Justiça brasilei- pectivamente, em 1732 e 1475 dos 5560
ra se converteu em palco importante de con- municípios brasileiros, estando relativamente
flitos coletivos, nas mais diversas áreas, e o bem distribuídos conforme o tamanho das
protagonismo do Ministério Público tem cha- populações locais.46
mado a atenção dos analistas para os limites e Se de um lado a criação dos juizados es-
potencialidades desse modelo institucional.45 peciais significou uma tremenda ampliação
É importante destacar que a ampliação do acesso à justiça, especialmente para pes-
do acesso à Justiça no Brasil não se deu ape- soas de baixa renda, passadas duas décadas
nas por meio dessa revolução processual, mas de experiência estes tribunais já enfrentam
também por inovações importantes na es- graves sinais de colapso, pelo excesso de
trutura judiciária, em sintonia com as ten- demanda. Em vários estados o volume de
dências apontadas por Cappelletti sobre vá- processos ultrapassa aquele das cortes regu-
rios países, a partir dos anos 70. Refiro-me à lares, sem que tenha havido por parte do
criação dos Juizados Especiais de Pequenas próprio judiciário local uma redistribuição
Causas, instituídos por lei em 1984 e depois interna de recursos e juízes para atender às
constitucionalizados pela Carta de 1988. necessidades destes novos tribunais.47 E ao
Regulamentados novamente por lei em 1995, lado do problema quantitativo, há também
os Juizados Especiais representaram uma análises que destacam efeitos negativos de
importante experiência de ampliação do alguns métodos adotados pelos Juizados Es-
acesso à Justiça para causas cíveis envolven- peciais e chamam atenção para a necessida-
do valores até quarenta salários mínimos e de de sua revisão.48

45. Vianna e Burgos, com base em ampla pesquisa sobre ações civis públicas no Rio de Janeiro, contestam a tese
da predominância excessiva do Ministério Público em relação à sociedade civil, na proposição das ações
coletivas e, adotando uma perspectiva mais otimista sobre essa relação, concluem que “entre a sociedade e o
Ministério Público, a relação não é tanto de assimetria e dependência da primeira vis-a-vis o segundo, e sim
de interdependência, que, quanto mais se consolida, mais legitima os novos papéis do Ministério Público e
destitui de sentido a perspectiva que os toma como polaridades, como instâncias contrapostas”. Vianna,
Luiz Werneck (Org.). A democracia e os Três Poderes..., op. cit., p.445.
46. Fonte: IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Popu-
lação e Indicadores Sociais, Pesquisa de Informações Básicas Municipais 2004.
47. Ver nesse sentido o diagnóstico elaborado pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais, que ensejou
a formulação, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, do “Pacto Social em prol dos Juizados Especiais”.
(www.cebepej.org.br ) e (www.cnj.gov.br). E para uma avaliação da expansão dos Juizados nos anos 1990,
ver Cunha, Luciana Gross Siqueira. “Juizado Especial: ampliação do acesso à Justiça?”, in Sadek, Maria T.
Acesso à Justiça, op. cit.
48. Macaulay, por exemplo, demonstra como no caso da violência doméstica, o tão incentivado conciliation
model praticado nos Juizados Especiais não tem protegido adequadamente as mulheres desse tipo de práti-
ca. (MACAULAY, 2005).

108
Paralelamente aos juizados especiais e
orientando-se pelo mesmo princípio da ofer- the presence of democracy, a
ta de serviços judiciários mais rápidos e aces- separation of powers system, a
síveis, várias outras iniciativas foram toma- politics of rights, a system of interest
das pelas justiças estaduais e federal na déca- groups and a political opposition
da de 1990, tais como juizados informais de cognizant of judicial means for
conciliação, juizados itinerantes (que operam attaining their interests, weak parties
em ônibus que circulam pela cidade), or fragile government coalitions in
juizados especiais abrigados em faculdades majoritarian institutions leading to
de direito, além dos recentemente criados policy deadlock, inadequate public
juizados especiais federais. Em muitos esta- support, at least relative to judiciaries,
dos, governos estaduais têm buscado reunir and delegation to courts of decision-
diversos serviços públicos relacionados à área making authority in certain policy areas
de justiça e cidadania, oferecendo-os de ma- all contribute to the judicialization of
neira integrada, e num mesmo local, à po- politics.50
pulação.49
Independentemente das dificuldades e Quando observamos o caso brasileiro,
contradições que ainda marcam esse proces- parece-nos que todas essas condições estive-
so de expansão da Justiça brasileira, parece ram presentes nos últimos anos, em maior ou
inquestionável que, também nessa dimensão menor medida, o que nos tornaria um im-
comum e não especificamente político-cons- portante exemplo de judicialização da polí-
titucional, o Judiciário assumiu tarefas de tica: a democracia restabelecida nos anos 80,
grandes proporções, o que muitas vezes con- seguida de uma Constituição pródiga em
trasta com sua capacidade de dar respostas direitos em 1988, com um número cada vez
com a efetividade esperada. maior de grupos de interesses organizados
demandando solução de conflitos coletivos,
contrastando com um sistema político pouco
3. Ativismo judicial e caminhos da majoritário, de coalizões e partidos frágeis
reforma do Judiciário para sustentar o governo, enquanto os de
Segundo Tate e Vallinder, em trabalho oposição utilizam o Judiciário para contê-lo,
sobre a expansão do Judiciário em diversos além de um modelo constitucional que dele-
países do mundo, a judicialização da políti- gou à Justiça a proteção de interesses em
ca se vê facilitada quando determinadas con- diversas áreas, refletindo até mesmo o alto
dições estão presentes: grau de legitimidade do Judiciário e do

49. Um balanço dessas diversas experiências pode ser encontrado em Sadek, Maria T. Acesso à Justiça, op. cit.
Vianna et al. examinaram o trabalho dos juizados especiais no Rio de Janeiro e demonstraram sua importân-
cia para o processo de judicialização das relações sociais, não sem identificar problemas e limitações desse
modelo de acesso à justiça. Vianna et al. A judicialização da política..., op. cit.
50. Tate, C. Neal e Vallinder, Torbjorn (Eds.), The Global Expansion of Judicial Power. Nova York: Nova York
University Press, 1997. p.33.

109
Judiciário: entre a Justiça e a Política

Ministério Público como instituições capazes ticas e institucionais desencadeadas pela


de receber essa delegação.51 redemocratização e nova Constituição do país.
Tate e Vallinder argumentam que a A conjunção desses vários elementos
judicialização da política, com base nessa explica a expansão da Justiça nos últimos
constelação de fatores, dependeria ainda da anos, mas não foi apenas esse o signo que
disposição dos integrantes dessas instituições marcou a vida de instituições como Judiciá-
de agir, de tomar iniciativas e de chamar para rio e Ministério Público nesse período. Ao
si a responsabilidade pela implementação de lado de expansão, “crise” e “reforma” são
direitos e pela solução dos grandes conflitos expressões que dominaram o debate públi-
da sociedade, configurando o que a literatu- co sobre a Justiça, na mesma proporção em
ra nessa área chama de ativismo judicial. Em- que suas novas atividades foram valorizadas.
bora não seja possível simplificar a ideologia Na linha dos dois modelos constitucio-
política que permeia o meio forense brasi- nais de Judiciário discutidos na primeira se-
leiro, pesquisas recentes têm apontado a pre- ção, pode-se afirmar que a “crise” da Justiça
sença de valores de transformação social, de no Brasil tem uma dupla dimensão: no que
igualdade e de cidadania, entre juízes e mem- diz respeito às suas funções de controle cons-
bros do Ministério Público – nestes mais do titucional das leis, a crise judiciária é uma
que nos primeiros.52 Tais valores ideológi- crise política; no que diz respeito às suas atri-
cos podem não ser suficientes para levar a buições de justiça comum, a crise é funcio-
magistratura e o Ministério Público a mer- nal e de desempenho.
gulharem num ativismo judicial desenfreado, Tais dimensões da crise judiciária foram
mas certamente têm inclinado vários estra- objeto de intenso debate durante os mais de
tos dessas instituições a assumir com firme- dez anos em que o projeto de reforma do
za suas novas atribuições sociais e políticas. Judiciário tramitou no Congresso Nacional,
Desde 1988, juízes e membros do Ministé- mobilizando atores políticos, do meio foren-
rio Público ocuparam a cena política brasi- se e da sociedade civil. Embora vários diag-
leira, como atores de destaque nas mais di- nósticos tenham sido propostos e muitas
versas frentes abertas pelas mudanças polí- idéias de reforma tenham sido consideradas,

51. Estas são características gerais que potencializam a judicialização da política. Exames de casos específicos
podem demonstrar, entretanto, que a judicialização da política não se complete sempre, no sentido de alte-
rar resultados do processo político decisório. É o que argumenta Vanessa Oliveira, em seu estudo sobre o
papel do Judiciário brasileiro no processo de privatizações no Brasil dos anos 1990. A autora descreve a
judicialização da política como um ciclo de três fases – o ajuizamento da ação, o julgamento liminar e o
julgamento de mérito – e conclui que, no caso das privatizações, esse ciclo não se completou com o Judiciá-
rio alterando de fato o curso daquela política pública. Oliveira, Vanessa Elias. “Judiciário e privatizações no
Brasil: existe uma judicialização da política?” Revista Dados, vol. 48/3. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2005.
52. Boa parte dessas pesquisas encontra-se nos trabalhos mencionados na nota 36. Quanto aos membros do
Ministério Público, denominei sua ideologia de “voluntarismo político”, algo que combina uma crença no
papel tutelar da instituição frente a uma sociedade incapaz de se defender autonomamente e a um poder
político-representativo corrompido ou incapaz de cumprir com suas obrigações. Ver Arantes, Rogério B.
Ministério Público..., op. cit. cap. II. Entre os juízes, o último survey conduzido pelo Idesp (2000) revelou,
por exemplo, que 73,1% dos magistrados brasileiros consideravam que “o juiz tem um papel social a cum-
prir, e a busca da justiça social justifica decisões que violem os contratos”, contra apenas 19,7% afirmaram
que “os contratos devem ser respeitados, independente de suas repercussões sociais”.

110
a aprovação da emenda constitucional de re- passar da condição de oposição à de gover-
forma do Judiciário se viu extremamente di- no, surpreendeu a todos ao encampar a pro-
ficultada durante esse longo período porque posta de concentração do controle consti-
os diversos atores envolvidos no processo tucional no STF, por meio da chamada
(governo federal, partidos políticos, órgãos “súmula de efeito vinculante”,53 votando
de cúpula do Judiciário, associações de clas- por sua aprovação em 2004. É cedo hoje
se da magistratura e do Ministério Público e para avaliar o impacto de tal mudança e se
Ordem dos Advogados do Brasil) acabaram ela trará os efeitos esperados de redução do
produzindo uma situação de vetos cruzados, número de processos no STF e de reforço
na qual dois ou mais deles se punham alia- da governabilidade política do país, mas duas
dos em torno de uma proposta e em oposi- conseqüências são certas: a prerrogativa de
ção entre si no que diz respeito a outras tan- editar súmulas vinculantes valorizará mais
tas. Não por outra razão, o projeto tramitou ainda o papel político do Supremo Tribunal
por quatro legislaturas, conheceu várias ver- Federal e sua adoção reduzirá as possibilida-
sões e só foi aprovado pelo Congresso Nacio- des de uso da via difusa do sistema judicial
nal em 2004, mais de uma década após a de revisão das leis por parte dos grupos de
apresentação da primeira proposta em 1992. oposição.
Na dimensão política da crise do judiciá- Na dimensão funcional, as propostas de
rio, o grande embate se deu em torno de ampliação e diferenciação da estrutura judi-
propostas que levassem a uma concentração ciária – para fazer frente ao déficit de pres-
da competência do controle constitucional tação da Justiça – mostraram-se menos con-
das leis no Supremo Tribunal Federal, dimi- troversas e boa parte delas chegou a contar
nuindo o alcance político do lado difuso do com o apoio unificado da magistratura, da
sistema. Desde a adoção do sistema híbrido OAB e dos partidos de oposição durante os
pela Carta de 1988, presidentes da Repúbli- anos 90, frente a uma quase indiferença do
ca e partidos governistas no Congresso (a governo a esse respeito. Dentre outras idéias,
maioria política) tentaram aprovar mudan- destacaram-se a criação de novos tribunais
ças constitucionais de concentração, mas a regionais federais ou câmaras a eles associa-
oposição, em que pese minoritária, sempre das para ampliar a capacidade da justiça fe-
conseguiu impedi-las, sob a liderança prin- deral; apoio à consolidação dos juizados es-
cipal do Partido dos Trabalhadores, e com o peciais e à criação de novos; autonomia fun-
apoio das instâncias inferiores do Judiciário cional e administrativa das Defensorias Pú-
e de associações do Ministério Público. Com blicas; transferência do julgamento de cri-
a chegada do PT à presidência em 2003, o mes contra direitos humanos da Justiça Esta-
partido abandonou a antiga resistência e, ao dual para a Justiça Federal e outras medidas

53. A Emenda Constitucional n. 45 (Reforma do Judiciário), aprovada pelo Congresso Nacional em 2004,
estabeleceu que “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de
dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a
partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder
Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como
proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.”

111
Judiciário: entre a Justiça e a Política

voltadas à modernização do Judiciário e jeto de reforma em 2004, que contém várias


agilização de seu funcionamento. A ascen- medidas modernizadoras nesse sentido.
são do PT ao governo federal também teve A essas duas frentes de reforma – a polí-
impacto nessa dimensão da reforma judiciá- tica e a funcional – devemos acrescentar fi-
ria: em primeiro lugar porque o partido sem- nalmente uma terceira: a da republicanização
pre defendera tais propostas – enquanto o do Judiciário por meio da criação de ór-
governo de Fernando Henrique Cardoso não gãos de controle externo e da adoção de
se empenhara muito por elas – e, tornando- outras medidas destinadas a aumentar a fis-
se governo, reuniria mais forças em prol de calização e a transparência da Justiça. Da
sua aprovação; em segundo lugar, uma das mesma forma que as anteriores, tais pro-
primeiras medidas da administração Lula foi postas vêm sendo discutidas desde o início
criar, por meio do Ministério da Justiça, uma dos anos 90, mas neste caso por influência
Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ). mais específica daquilo que poderíamos
Destinada a promover, coordenar e sistema- denominar de “onda republicana” que mar-
tizar propostas de reforma constitucional e cou a transição democrática brasileira. Refi-
infraconstitucional do Judiciário, a SRF pas- ro-me ao processo de crescentes exigên-
sou a ter papel importante na etapa final cias em relação ao trato da coisa pública e
(2003-2004) de tramitação da reforma judi- de combate à corrupção política que atin-
ciária no Congresso;54 em terceiro lugar, a giu inicialmente os Poderes Executivo e
significativa “conversão” do partido aos Legislativo e que não poderia deixar de afe-
cânones econômicos liberais – em grande tar também o Judiciário. Depois do
medida responsável por sua própria vitória impeachment de um presidente da Repú-
nas eleições de 2002 – refletiu-se igualmen- blica e de sucessivos processos envolvendo
te no entendimento do novo governo sobre ocupantes de cargos executivos e legislativos
o papel do Judiciário numa economia de em diversos pontos do país, essa “onda”
mercado cada vez mais globalizada. Em pou- chegou ao Judiciário e passou a exigir o
cas palavras, o partido de origem socialista desencapsulamento da magistratura e a cri-
assumiu a causa da eficiência econômica e ação de novas formas de accountability dos
passou a olhar a questão da modernização órgãos de Justiça. Nesse processo, até mes-
judiciária não só sob o prisma da amplia- mo os tradicionais privilégios e garantias
ção do acesso à Justiça para camadas do exercício do cargo viram-se ameaçados,
desprotegidas da população, mas também trazendo-nos de volta as velhas lições de
como uma das principais instituições res- Tocqueville. Como profetizou o pensador
ponsáveis por garantir a segurança jurídica francês, a tendência democrática moderna
de contratos e das relações econômicas do li- colocaria em risco os privilégios desse cor-
vre-mercado. A adoção dessa perspectiva con- po especial de funcionários do Estado a que
tribuiu igualmente para a aprovação do pro- ele denominou de “nova aristocracia”: a

54. Dentre suas metas principais, destacam-se: promover a ampliação do acesso à Justiça, apoiar propostas que
levem a maior transparência e controle público do Judiciário e promover reformas que proporcionem
maior agilidade e eficiência à Justiça (ver http://www.mj.gov.br/reforma/index.htm)

112
magistratura. De tempos em tempos, pre- tidos de oposição e a Ordem dos Advogados
vira Tocqueville, tomados pelo desejo de do Brasil. Com a ascensão do PT ao gover-
igualdade e pelo ideal da res pública, povo no em 2003 – justamente o partido que lide-
e representantes políticos buscariam nive- rou a onda moralizadora republicana nos
lar garantias e aumentar o controle sobre anos anteriores –, rompeu-se aquela situa-
toda a administração, incluindo aí a magis- ção de equilíbrio e a balança pendeu favora-
tratura, que enfrentaria grandes dificulda- velmente para o lado dos atores interessa-
des para sustentar sua independência dos em impor alguma forma de fiscalização
institucional e condições privilegiadas de sobre as instituições de Justiça.
trabalho, nesses momentos críticos. Embora não tão “externo”, o órgão de
Durante os anos 90, o intrincado jogo controle foi criado pela reforma constitucio-
político em torno dos principais eixos da nal de 2004, sob o nome de Conselho Nacio-
reforma judiciária manteve a magistratura e nal de Justiça.55 Composto por 15 membros,
o Ministério Público a salvo de modificações seus conselheiros são escolhidos para um man-
mais profundas, graças aos vetos cruzados dato de 2 anos, permitida uma recondução, da
envolvendo estes setores, o governo, os par- seguinte forma:

Integrantes da I - um ministro do Supremo Tribunal Federal, indicado pelo respectivo tribunal;


magistratura II - um ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal;
III - um ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo tribunal;
IV - um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;
V - um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;
VI - um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;
VII - um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;
VIII - um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;
IX - um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;

Integrantes do X - um membro do Ministério Público da União, indicado pelo procurador-geral da


Ministério Público República;
XI - um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo procurador-geral da
República dentre os nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição
estadual;

Advogados XII - dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do
Brasil;

Membros externos XIII - dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela
ao meio forense Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.

55. Lembrando que um conselho semelhante foi instituído também para o Ministério Público.

113
Judiciário: entre a Justiça e a Política

Do ponto de vista da onda republicana, Judiciário na democracia contemporânea


o primeiro ano de atividade do CNJ não algo controversas, estas devem seguir des-
poderia ter sido mais promissor: a partir pertando polêmica: frear o poder das maio-
de queixas formuladas contra juízes de di- rias políticas governantes em nome das li-
versos pontos do país, instaurou centenas berdades individuais, pela via do controle
de processos disciplinares56 e foi responsá- constitucional (função política), amparar as
vel pela adoção de duas medidas que tive- reivindicações igualitárias de grupos sociais,
ram forte impacto nacional: (1) fim da pela via do acesso coletivo à Justiça (função
contratação, pelos tribunais, de parentes até social) e garantir a segurança jurídica das
o 3o grau de juízes e de servidores da Justiça, relações econômicas e do funcionamento do
ordenando inclusive a exoneração de milha- mercado (função econômica). E tudo isso em
res deles já empregados nas cortes de Justiça meio ao desafio permanente de sustentar sua
do país. A medida antinepotismo adotada peculiar condição de corpo aristocrático es-
pelo CNJ era uma reivindicação antiga no tranho no seio da república democrática.
Brasil, mas nem Legislativo nem Judiciário
jamais tiveram forças suficientes para
implementá-la; (2) a segunda medida de forte
impacto e alcance nacional foi a fixação do
teto salarial da magistratura nos termos em
que reza a Constituição: nenhum servidor
público pode ter salário maior do que os
ministros do Supremo Tribunal Federal. A
questão do teto salarial dos ocupantes de
cargos públicos vem se arrastando há anos
no Brasil e não são poucos os funcionários
públicos que recebem mais do que os minis-
tros do STF. Embora a decisão do CNJ te-
nham incidido sobre a magistratura, seus
efeitos estão se irradiando e podem atingir
outros níveis da administração pública.
Finalizando, a sorte do Judiciário está
sendo lançada nessas três frentes de mudan-
ça – a política, a funcional e a republicana –
e do equilíbrio entre elas dependerá o futu-
ro da instituição. Vale dizer que “crise” e
“reforma” são signos que acompanham a
vida do Judiciário há tempos e não há indí-
cios de que venham desaparecer no curto
prazo. O fato é que, sendo as funções do

56. Informações e as primeiras estatísticas sobre a atuação do CNJ podem ser encontradas em http://
www.cnj.gov.br

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117
Capítulo 4
Administração pública e burocracia

ANTÔNIO AUGUSTO PEREIRA PRATES

Este capítulo discute as relações entre solução, portanto, não depende apenas de
administração pública, Estado e democracia “fórmulas” de engenharia institucional, mas,
representativa no contexto das sociedades principalmente, da motivação dos atores
modernas e, à luz dessa discussão, apresenta políticos para mobilizar energias que alimen-
os dilemas da administração pública no Bra- tem novos ou velhos sistemas de participa-
sil de hoje, um país altamente diversificado ção e representação na sociedade.
social e economicamente e com uma tradi-
ção fortemente centralizadora do sistema de
formulação e implementação de políticas 1. Administração pública e burocracia

públicas. O conceito de atividades de natureza


A temática em foco tem sido objeto de dis- administrativa é muito mais amplo do que o
cussão intensa na literatura recente da sociolo- de administração pública. Essas atividades
gia política internacional. Há os que defendem podem ser vistas como um tipo de ação co-
que somente um projeto associativista forte letiva muito mais geral e abrangente do que
conseguiria realimentar a democracia nas so- o compreendido pela concepção moderna do
ciedades contemporâneas; já outros criticam a termo administração pública. Na primeira
idéia com a suposição de que tal projeto pode- acepção do termo, a atividade administrativa
ria significar a expansão da esfera privada so- refere-se à ação, dentro de uma comunidade
bre a pública, comprometendo, assim, o cará- ou sociedade,1 voltada para a implementação
ter democrático do Estado de Direito (COHEN de um sistema de ordem em uma associação
e ROGERS, 1995). humana qualquer. Para Weber, a existência
Essa discussão constitui, muito mais, um de qualquer “associação” (verband) pode ser
reflexo das tensões concretas entre gover- acompanhada da presença de um quadro
nabilidade, participação, representação e le- administrativo:
gitimidade, nas sociedades democráticas
contemporâneas, do que, puramente, uma Por associação (verband) deve-
reflexão teórica, de natureza acadêmica. Sua se entender uma relação social com

1. Por comunidade Weber entende um agrupamento humano cujo sistema de solidariedade é predominante-
mente baseado em sentimentos que geram identidade comum. Por sociedade Weber entende um agrupamen-
to humano cujo sistema de solidariedade está baseado, predominantemente, em interesses “racionais” arti-
culados através de grupos burocraticamente organizados.

119
Administração pública e burocracia

regulação limitadora para fora quan- Estado a uma família ampliada ou


do a manutenção de sua ordem está atribuem ao soberano os mesmos po-
garantida pela conduta de determi- deres que pertencem ao patriarca, ao
nados homens destinada em especial pai ou ao patrão, senhores por vários
a este propósito: um dirigente e, even- títulos e com diversa força da socie-
tualmente, um quadro administrati- dade familiar. (p.16)
vo. (WEBER [1944], 1964:39)
A rigor, a administração pública constitui
Embora a presença de um quadro admi- um fenômeno do Estado moderno no qual a
nistrativo não constitua requisito para a exis- burocracia, com maior ou menor grau de
tência da “associação”, é, segundo Weber, racionalidade legal,3 passou a ser a estrutura
imprescindível a ação administrativa do seu predominante de administração. Assim, pode-
dirigente, ou “governo”, voltada para a ma- se afirmar que o marco definitivo do
nutenção da ordem interna: “Basta a presen- surgimento da administração de natureza
ça de um dirigente – chefe de família, direção pública seja o advento do Estado burocrático
do sindicato, gerente mercantil, príncipe, pre- moderno. Do ponto de vista sociológico,
sidente do Estado, chefe da Igreja – cuja con- foi Max Weber o grande teórico dessa for-
duta se dirija para a realização da ordem da mulação. De acordo com ele, o “Estado
associação” (op. cit., p.39). racional” é um fenômeno típico do Ociden-
Portanto, a atividade administrativa di- te: o Estado moderno é aquela associação de
ficilmente pode ser identificada como admi- autoridade (domínio) que tem o monopó-
nistração pública, na acepção moderna do lio legítimo da violência dentro de um ter-
termo. Os sistemas de ordem patrimonial,2 ritório, e sua administração é exercida por
por exemplo, embora disponham de um funcionários especialistas comprometidos
quadro administrativo relativamente com- com regras impessoais e legais que regulam
plexo, não podem ser tratados como siste- suas atividades. Nas palavras de Weber:
mas cuja administração seja de natureza
pública, pois neles não existe o conceito de No Estado moderno, o ver-
esfera pública, diferenciado do da esfera dadeiro domínio, que não consiste
privada. De acordo com Bobbio (1987), nem nos discursos parlamentares nem
nas proclamas do monarca mas no
o direito público europeu que manejo diário da administração, en-
acompanha a formação do Estado contra-se necessariamente em mãos
constitucional moderno considerou da burocracia, tanto militar como ci-
privatistas as concepções patriar- vil ... Da mesma forma que o chama-
calistas, paternalistas ou despóticas do progresso para o capitalismo, a
do poder soberano, que assimilam o partir da Idade Média, constitui a es-

2. Refere-se ao sistema de ordem baseado na lealdade pessoal ao Senhor e na referência normativa a valores
“sagrados” à Tradição.
3. O termo racional-legal é utilizado por Weber para designar o tipo de ação orientada pela crença na validade
dos princípios legais em que se baseia a legitimidade da organização burocrática, em contraposição às cren-
ças baseadas na Tradição que legitimam os sistemas burocráticos patrimoniais.

120
cala unívoca de modernização da eco- do Estado criado para superar a ameaça da
nomia, assim também constitui o pro- anarquia e/ou do despotismo inerente à con-
gresso para o funcionário burocrático, dição da vida natural (BOBBIO, 1991).
baseado no emprego, no soldo, pen- Não se justifica, neste capítulo, uma dis-
são e ascensão, na preparação profis- cussão alongada ou exaustiva desse concei-
sional e na divisão do trabalho, em to.4 É suficiente, para nós, esclarecer que o
competências fixas, no formalismo termo “sociedade civil” será utilizado com o
documental e na subordinação e na significado marxista de “reino dos interesses
superioridade hierárquica, a escala privados”, em contraposição ao conceito li-
igualmente unívoca da modernização beral do Estado racional, visto como a ex-
do Estado, tanto do monárquico pressão do interesse público. Nesta concep-
como do democrático. (WEBER, ção, o denominado Estado de Direito adqui-
1964:1060) re significado de uma “empresa” de natureza
pública, em contraposição à esfera privada dos
Administração pública e burocracia racio- interesses na sociedade civil. O Estado buro-
nal-legal caminham juntas no contexto do crático-racional, para Weber, assenta-se no
Estado racional moderno. É esta estrutura ordenamento jurídico-formal da separação
de dominação, na linguagem weberiana, que entre a esfera pública e privada.
permitirá a clara e explícita separação entre Como assinala Habermas (1984), as cate-
as esferas pública e privada nas sociedades gorias de público e de privado, embora partes
capitalistas ocidentais. da vida política da Antiguidade Clássica,

passam a ter novamente uma


2. O Estado e a sociedade civil: efetiva aplicação processual jurídica
o público e o privado
com o surgimento do Estado moder-
O conceito contemporâneo de sociedade no e com aquela esfera da sociedade
civil tem muito pouco a ver com o conceito civil separada dele: servem para a
clássico dos jusnaturalistas, de Hobbes a Kant. evidência política, bem como para a
Hoje, a referência ao termo “sociedade civil” institucionalização jurídica, em sen-
reflete muito mais o conceito hegeliano-mar- tido específico, de uma esfera públi-
xista do lócus da esfera dos interesses priva- ca burguesa. (p.17)
dos em contraposição ao interesse geral for-
malmente expresso pelo Estado; este visto, na É este tipo de distinção entre as catego-
perspectiva dos jusnaturalistas, como uma rias que nos interessa aqui.
criação racional e artificial dos homens para O Estado moderno, definido a partir da
se libertarem das mazelas da vida em estado predominância da administração burocrá-
natural. Sociedade civil, nesta última acepção, tica racional-legal como sistema de gestão
corresponde ao significado oposto àquele da interna, e não apenas como senhor sobera-
tradição marxista; ou seja, ela constitui a no de uma nação ou comunidade, que ca-
vida política governada pelas leis e regras racterizou o Estado absolutista, possibilitou a

4. Ver, para uma discussão do conceito, Prates (2000).

121
Administração pública e burocracia

separação nítida, no plano formal, entre as ca- 3. Características da burocracia


racional-legal e sua emergência
tegorias do público e do privado. Mais do que
histórica na administração pública
isso, essa distinção constituiu, para Max Weber,
a base jurídica do Estado nas democracias de De acordo com Weber (1964) as princi-
massa. Somente nesse contexto pode-se, rigo- pais características da administração buro-
rosamente, falar de administração pública; até crática racional-legal, seja de natureza pú-
então a administração das “coisas” do Estado, blica seja de natureza privada, são:
incluindo as finanças e o exercício do poder, . A especialização que define o sistema de
se dava sem essa diferenciação entre as esferas divisão do trabalho constitui um sistema
pública e privada. Como sugere Weber, é o estável baseado na especificação clara e
processo de burocratização do Estado e do explícita de esferas de competência.
Direito que possibilita a separação entre o
público e o privado. A “coisa pública” refe- Essa característica enfatiza o elemento
re-se ao âmbito do Estado, cuja pretensão racional da divisão do trabalho baseada no
de validez legítima descansa nas leis impes- saber técnico.
soais que o regulam. Os conceitos de Esta-
do burocrático e Direito formal não seriam . O sistema de autoridade tende a ser hie-
compatíveis com as estruturas pré-burocrá- rárquico, baseado no conhecimento téc-
ticas do Estado patrimonial: nico de nível superior.

Somente com a burocratização Como a primeira, essa segunda caracte-


do Estado e do Direito em geral, ve- rística enfatiza, também, a natureza técnico-
mos a possibilidade definida de sepa- científica da legitimidade da autoridade na
rar, clara e conceitualmente, uma or- burocracia racional.5
dem jurídica “objetiva” dos “direitos
subjetivos” do indivíduo, que ela ga- . O recrutamento e a ascensão de funcio-
rante; de separar Direto “Público” do nários tende a basear-se em critérios
Direito “Privado”. (WEBER [1943], universalistas6 de competência técnica.
1971:276-7).
Esta tendência rompe radicalmente com

5. Um dos mais importantes teóricos da sociologia contemporânea, Talcot Parsons (1947, ed. 1964), ao traduzir
o texto Economia e Sociedade de Weber para o inglês – e foi a primeira versão da obra de Weber para o inglês
– colocou num rodapé (p.58-9) uma observação que instigou uma discussão viva até os dias de hoje. Na
observação, Parsons criticou Weber por não ter distinguido duas bases distintas de autoridade legítima dentro
das organizações: a autoridade baseada na hierarquia do cargo burocrático, portanto típica de qualquer buro-
cracia, e a baseada no saber técnico, típica dos profissionais das burocracias. Segundo Parsons, as duas bases de
autoridade seriam relativamente contraditórias e suscitariam tensão constante no interior das burocracias: a
autoridade baseada no conhecimento do perito, contra a autoridade do cargo hierárquico. Em outras palavras,
Parsons se referia ao conflito, hoje muito documentado, entre o profissional ou técnico e os seus superiores que
não precisam possuir o mesmo nível de competência técnica dos subordinados.
6. O termo universalista diz respeito a valores que enfatizam as qualidades de desempenho e realização das
pessoas, ou seja, seus próprios méritos, em contraposição ao conceito de particularismo, que acentua as
características herdadas pelos indivíduos, tais como classe de nascimento, etnia, família etc.

122
os critérios particularistas e “clientelistas” da Marx para o surgimento do capitalismo: a
organização burocrática de tipo patrimonial. separação entre os produtores e a proprie-
Neste tipo de burocracia, os chefes selecio- dade dos meios de produção. Weber, conhe-
nam seus funcionários com base em critérios cedor da teoria de Marx, demonstrou apli-
adscritos7 de nascimento, religião, raça e le- car-se essa condição também à burocracia
aldade. Já as carreiras funcionais são clara- pública em que os funcionários (produtores)
mente estabelecidas com seus critérios téc- não tinham a propriedade dos meios admi-
nicos de ascensão aos níveis superiores: “Se- nistrativos (meios de produção). Em
gundo a experiência, o ótimo relativo para contraposição aos exércitos medievais, por
o êxito e manutenção de uma mecanização exemplo, os membros dos exércitos moder-
rigorosa do aparato burocrático é proporcio- nos não são proprietários de suas próprias
nado por um salário monetário certo, con- armas. O mesmo se dá nas universidades e
jugado à oportunidade de uma carreira que em outras burocracias públicas.
não dependa do simples acaso e arbítrio”
(WEBER, [1943] 1971:242). É no sentido . A remuneração dos funcionários tende a
dessa “regra” universalista de recrutamento ser na forma de salários e não em espé-
que Weber sugere que a burocratização ra- cie ou prebendas.
cional-legal da sociedade ocidental foi uma Essa característica é, segundo Weber, uma
condição sine qua non do sistema democráti- das condições históricas mais favoráveis à cri-
co-liberal de governo. A base de legitimidade ação do sistema burocrático racional. Enquan-
do sistema democrático-liberal está na exis- to na burocracia tradicional-patrimonial o
tência de um sistema jurídico-formal, que re- pagamento dos funcionários era predominan-
gula o comportamento do Estado, cujo prin- temente em espécie (por exemplo, ficando o
cípio básico é o tratamento de todos os cida- funcionário com parcela dos impostos arre-
dãos como iguais perante a lei. A expressão cadados) ou em prebendas (mediante doações
concreta deste princípio somente foi possí- de bens ao funcionário, em troca de lealdade
vel através da criação da burocracia racio- e de favores), na burocracia racional-legal a
nal-legal que, por definição, é cega para os remuneração se faz predominantemente em
critérios de recrutamento e ascensão funcio- dinheiro, mediante salário. Este se deve ao
nal de caráter não-meritocrático como, por exercício de um cargo e função explicitamente
exemplo, os de status de nascimento, reli- definidos e não à predisposição subjetiva e
gião, cor, raça ou sexo. difusa de lealdade e obediência ao senhor da
burocracia.
. Tendência da separação entre funcioná-
rios da burocracia e a propriedade dos . As normas que regulam o relacionamen-
meios de administração. to entre os funcionários e lhes definem
De acordo com Weber, a burocracia racio- as atividades tendem a ser totalmente im-
nal implicava a mesma condição postulada por pessoais e formalmente explícitas.

7. O termo adscrito, em português, tem significado distinto do seu uso sociológico em inglês. Aqui o termo é
utilizado no seu significado sociológico – status de origem de um indivíduo relativamente às características
biológicas de nascimento, tais como sexo, raça, cor e as sociais herdadas do grupo ou classe a que pertence,
tais como religião e status social.

123
Administração pública e burocracia

Finalmente, essa última característica da (WEBER, 1964:1049-50). O Ocidente, ao


burocracia racional-legal constitui uma con- contrário da China e da Índia, onde a admi-
dição da objetividade do sistema de controle nistração de Estado contava com funcioná-
racional das atividades da organização. É ela rios humanistas (os mandarins na China e os
que permite o salto qualitativo no sistema escritores na Índia), “dispunha de um Direi-
de controle organizacional da burocracia tra- to formalmente estruturado, produto do gê-
dicional: em vez do controle por meio de nio romano, e os funcionários formados na
supervisão direta, praticado na velha buro- base do dito Direito se revelaram, enquanto
cracia, a estabilidade da burocracia moder- técnicos da administração, como superiores
na, a previsibilidade do que faz, assenta no a todos os demais” (WEBER, 1964:1050).
controle remoto, à distância, de natureza Um outro fator histórico favorável à ra-
normativa, proveniente do sistema de regras cionalização do Estado e da economia foi a
formais, sobre as atividades dos seus mem- política mercantilista adotada na Europa
bros, e não sobre suas pessoas. ocidental a partir do século XIV. Para Weber,
De acordo com Weber, a burocracia ra- o Mercantilismo é o primeiro passo de arti-
cional-legal é o instrumento mais poderoso culação entre o Estado e as empresas capita-
e eficaz de controle do comportamento hu- listas;
mano.
Qual a origem histórica desse modelo de o Estado é tratado como se
administração fundado na racionalidade ins- constasse única e exclusivamente de
trumental? Uma constelação de fatores his- empresas capitalistas; a política eco-
tóricos favoreceu o aparecimento e sedimen- nômica exterior descansa no princí-
tação da administração burocrática. Entre pio dirigido a ganhar a maior vanta-
eles: o caráter formalista do Direito Roma- gem possível do adversário ... O
no, base do direito racional do Estado oci- Objeto consiste em reforçar o poder
dental moderno, sobre o qual se fundou a da direção do Estado para fora.
formação técnica dos funcionários públicos. Mercantilismo significa, pois, forma-
No Absolutismo ou nos impérios patri- ção moderna do poder estatal, direta-
moniais do Oriente, a Justiça característica mente mediante aumento da renda do
era a material, guiada “pelos princípios uti- príncipe, e indiretamente mediante
litários e de equidade, de acordo com os quais aumento da força impositiva da po-
procede, por exemplo, a jurisdição do Cadí pulação. (WEBER, 1964:1053)
islâmico”, ou seja, o Direito voltava-se para a
distribuição da Justiça de acordo com regras Mas, mais decisivo do que as políticas
e normas da “tradição” de um grupo social e mercantilistas para o processo de racionali-
não de acordo com as regras de um sistema zação formal no Ocidente foi o Puritanismo
formal “racionalmente” orientado, como no protestante que veio constituir o pilar ético
caso do Direito Romano e nos estados bu- do capitalismo moderno baseado na disci-
rocráticos modernos, em que a Justiça se plina e no cálculo racional. Weber ilustra a
orientou pela ótica jurídico-formal: “O Di- tese com o conflito entre os empresários
reito Romano foi aqui [Weber referia-se à puritanos e os capitalistas “aventureiros”, tí-
Alemanha] o meio que serviu à erradicação picos do período capitalista monopolista do
do direito material em benefício do formal” Mercantilismo, no Banco da Inglaterra, após

124
o fracasso da política monopolístico-fiscal dos 4. A supremacia da meritocracia
sobre o clientelismo: o novo dile-
Stewarts, no século XVIII:
ma do Estado racional

Pela última vez se enfrentaram A burocracia racional-legal constituiu


aqui [Weber refere-se à Inglaterra] em uma condição essencial do regime democráti-
luta aberta os capitalismos irracio- co das sociedades liberais contemporâneas.
nal e racional: o capitalismo orien- Sua ênfase sobre critérios universalistas e
tado para as oportunidades fiscais e meritocráticos (critérios baseados no mérito
coloniais, dos monopólios estatais, pessoal) para o recrutamento e ascensão na
e o que foi orientado para as oportu- carreira minou, passo a passo, a lógica do
nidades de mercado, que se buscavam “velho” sistema clientelista8 da administra-
automaticamente, de dentro para ção pública tradicional. Critérios relaciona-
fora, em virtude das realizações mer- dos à origem de classe ou “estamento” per-
cantis próprias ... A última vez que o dem legitimidade e efetividade no novo ce-
Banco da Inglaterra se desviou no sen- nário da administração pública. O Estado de
tido do capitalismo de aventura foi Direito ganha terreno sobre a administração
na ocasião da questão da South-Sea- do Estado Patrimonial; cada vez mais a ide-
Company. Mas prescindindo do dito ologia liberal da igualdade formal perante a
caso, podemos seguir passo a passo em lei se expande como crença legítima do Es-
seu comportamento como a influên- tado moderno. A democracia formal se ins-
cia de Paterson e os do seu grupo titucionaliza a partir da crescente legitimação
[Weber refere-se, aqui, ao grupo tradi- das regras administrativas do Estado buro-
cional de empresários mercantilistas] crático-racional: “a ‘igualdade perante a lei’
vai perdendo terreno frente à influên- e a exigência de garantias legais contra a ar-
cia da categoria racionalista dos mem- bitrariedade requerem ‘objetividade’ de ad-
bros do Banco, que eram todos direta ministração formal e racional, em oposição
ou indiretamente de origem puritana à discrição pessoalmente livre, que vem da
ou estavam sob a influência da ma- ‘graça’ do velho domínio patrimonial”
neira de ser puritana. (WEBER, (WEBER [1943], 1971:256).
1964:1055) Embora seja importante não esquecer que
o processo de racionalização burocrática é,
A administração burocrática, de caráter empiricamente, uma questão de grau, ou seja,
racional, baseada na disciplina e no cálculo, em alguma medida o clientelismo e o
veio coroar o processo de racionalização no particularismo estão sempre presentes no
Ocidente, tanto na esfera pública quanto na sistema administrativo, mesmo naquele mais
esfera privada. racional-burocrático, o que importa é a cren-
ça predominante que legitima o sistema. No
caso do Estado de Direito, são os valores da

8. O termo clientelista significa o tipo de relações políticas baseadas na troca de lealdade ao chefe político por
favores pessoais aos seus seguidores ou súditos.

125
Administração pública e burocracia

igualdade perante a lei e a competência técni- pela burocracia quanto essa atitude
ca, vista como critério de qualificação para o que não pode ser substancialmente
serviço público, que legitimam o sistema. defendida além dessas áreas espe-
Contudo, devem-se salientar três dilemas cificamente qualificadas. Ao enfren-
básicos para as democracias contemporâneas, tar o parlamento, a burocracia, leva-
apontados pelo próprio Weber, relacionados da por seguro instinto de poder, luta
à expansão da burocracia técnica. Os dois contra qualquer tentativa daquele
primeiros dizem respeito à enorme ênfase para conseguir o conhecimento atra-
que o sistema burocrático coloca sobre o vés de seus próprios peritos ou por
formalismo e a meritocracia. No primeiro meio dos grupos de interesse. (WEBER
caso, o dilema dá-se pela exigência crescen- [1943], 1971:270)
te e ilimitada da formalização do direito, que
faz com que a face material da justiça seja Os três dilemas colocam as sociedades
cada vez mais negligenciada (WEBER, 1964; democráticas contemporâneas em constan-
HABERMAS, 1984). tes tensões estruturais nas esferas da justiça,
No segundo caso, o dilema surge pela for- dos direitos sociais e da representatividade.
ça dos critérios meritocráticos que, no con-
texto de uma democracia social precária, ten-
5. Serviço público, ética e
de a criar um novo tipo de estamento9 basea-
democracia
do no conhecimento técnico especializado,
que reproduz o sistema de desigualdade ao Uma das variáveis intervenientes mais
acesso às oportunidades educacionais importantes na relação entre serviço públi-
(WEBER, 1971). co e democracia é a ética. De fato, uma das
O terceiro dilema diz respeito à associa- questões centrais das burocracias públicas,
ção entre o conhecimento técnico e o con- nas democracias contemporâneas, é a posi-
trole dos “segredos” de Estado no contexto ção do funcionário como servidor público.
das burocracias racionais, que cria uma base De acordo com Weber, a ética do Estado de
de poder específico da própria burocracia no Direito exige do servidor público adesão
sistema de governo democrático. O uso des- moral aos princípios de “neutralidade” e de
se poder pelas agências burocráticas ou pe- “responsabilidade” no cumprimento das fun-
los funcionários públicos pode comprome- ções a ele delegadas pelos representantes le-
ter a eficácia do Poder Legislativo como sis- gitimamente escolhidos pelo povo (MARCH
tema de controle representativo do governo e OLSEN, 1995).
democrático: As democracias liberais têm dois requisi-
tos fundamentais quanto ao funcionamento
O conceito de “segredo oficial” do aparato burocrático do Estado: o primei-
é invenção específica da burocracia, ro refere-se ao mecanismo de “autorização”
e nada é tão fanaticamente definido aos servidores públicos para agirem em nome

9. O termo estamento designa um grupamento social que monopoliza símbolos de status e controla os meca-
nismos de entrada ou participação no grupamento.

126
da sociedade; o segundo refere-se ao provi- ciência, mas, principalmente, à esfera da efi-
mento, pela burocracia, de informação à so- cácia dos valores que sustentam o sistema
ciedade para que esta possa cobrar resulta- democrático. Entre estes, por exemplo, o da
dos da ação governamental (a chamada responsabilidade do servidor, autorizada pelo
accountability em língua inglesa). Os dois povo, e o da disponibilidade, para a socieda-
requisitos, entretanto, não são estrutural- de, de informações sobre as políticas públi-
mente congruentes. Como sugerem J. G. cas.
March e J. P. Olsen, “a delegação de autori-
dade dá o direito para exercer discrição, mas
a autoridade é controlada pela accountability 6. A diversidade social brasileira
e a democracia
... O sistema de autoridade discricionária,
combinado com a auditoria do controle da Só podemos falar em burocracia racio-
sociedade, é erodido pelo duplo medo das nal-legal no Brasil a partir da Revolução de
conseqüências da ação e das ambigüidades 30. Até aí, a administração pública brasilei-
do controle da sociedade (accountability)” ra era moldada pelo velho estilo patrimonial
(MARCH e OLSEN, 1995:59).10 do favoritismo político e social, sem qual-
Esta dupla demanda, relativamente in- quer distinção de natureza formal ou subs-
coerente, dos requisitos democráticos rela- tantiva entre o público e o privado. As oli-
tivos à administração pública tem sido cen- garquias do Império e da República Velha,
tral nas democracias contemporâneas. De um embora eficazes na garantia da unidade
lado, propõem alguns, com base na baixa territorial, não chegaram a tentar a moder-
efetividade dos mecanismos tradicionais de nização do aparato burocrático do Estado
representação política nessas sociedades, tais brasileiro. Foi somente com a Revolução de
como os partidos políticos, um sistema de 30 que surgiu tal iniciativa. A partir desse
democracia mais participativa, centrada nas momento, o Estado brasileiro começou a
relações diretas entre associações civis e bu- se fazer presente e visível na estrutura polí-
rocracias locais (WRIGHT, 1995). De outro tica do país. O texto de Gercina Oliveira
lado, autores como J. G. March, J. P. Olsen exemplifica:
e P. Hirst criticam o modelo da “democracia
associativista”, em virtude dos riscos que esse com a crescente intervenção es-
modelo acarreta para a posição ética do ser- tatal em quase todos os setores das
vidor público e para a autonomia da socieda- atividades produtivas, se ampliam os
de em seu papel de auditora do comporta- serviços públicos, sobretudo, da ad-
mento das burocracias públicas.11 Portanto, ministração federal, que se refletem
a questão da ética do servidor público não na criação de autarquias, sociedades
se refere somente à esfera moral da sua cons- de economia mista e no próprio cres-

10. Tradução livre.


11. Embora se deva salientar que estudos sociológicos sobre as “condições reais” de existência de um sistema de
“cobrança” pública têm mostrado que ele não depende somente do desenho formal das instituições gover-
namentais. A cultura cívica, por exemplo, parece constituir uma condição importante para a existência de
práticas coletivas de acompanhamento das ações governamentais (R. PUTNAM, 1993).

127
Administração pública e burocracia

cimento do número de órgãos da ad- a vida funcional de todas as instituições pú-


ministração centralizada. Criam-se blicas federais, em qualquer estado ou re-
alguns ministérios (Trabalho, Indús- gião brasileira, o DASP, com o tempo, pas-
tria e Comércio, Educação e Saúde e sou a ser conhecido não pelo seu papel
Aeronáutica), autarquias previ- modernizador da burocracia pública, mas
denciárias (IAPC, Iapetec, IAPI), re- como a metáfora do “gigante adormecido”
guladoras da economia (IAA, IBC do nosso Hino Nacional: uma instituição
etc.), e industriais (marítimas e fer- enorme, lenta, pesada, ineficiente e altamente
roviária principalmente). (OLIVEIRA, ritualista. O próprio governo federal, assim
RAP, v.4, n.2, 2o sem. 1970) como o Dr. Frankenstein, viu-se frente a fren-
te com sua criação recalcitrante e poderosa.
Estava se criando, então, na sociedade Incapazes de reestruturar a própria máquina
brasileira, o Estado moderno, interven- administrativa, os governos buscavam saídas
cionista e social. jurídicas menos penosas e mais rápidas para
O instrumento mais visível dessa trans- a questão da adaptação da administração
formação foi, sem dúvida, a tentativa de im- pública às demandas do crescimento e de-
plantação de uma administração pública de senvolvimento econômico-social diversifi-
molde weberiano. Em 1936 foi criado o Con- cado dos anos pós-1930. São conhecidas as
selho Federal do Serviço Público Civil, que, freqüentes tentativas governamentais de
em 1938, transformou-se no Departamento driblar o peso burocrático da máquina pú-
Administrativo do Serviço Público (DASP).12 blica de administração direta pela criação
Desde então, o Serviço Público Federal pas- de “autarquias” que gozavam de maior au-
sou a ser regido pelas normas da burocracia tonomia frente ao DASP. Essa estratégia de
racional-legal, antes descritas, embora no dia- governo atingiu seu ápice em 1967, com o
a-dia esse sistema sempre tenha convivido Decreto-Lei 200, que instituiu um sistema
com práticas clientelistas do velho modelo diferenciado para a administração indireta,
patrimonial. pelo qual se dava grande autonomia para
Se, por um lado, o DASP veio a ser o contratação de pessoal pelo regime da CLT
instrumento de modernização mais eficaz – Consolidação das Leis Trabalhistas e se
da administração pública brasileira, por ou- enfatizava um sistema de controle baseado
tro, foi transformando-se em gigantesco no planejamento, orçamento e avaliação de
obstáculo à mudança adaptativa do sistema resultados. Fundações de direito privado,
público. Centralizando e homogeneizando, sociedades de economia mista e empresas
através de padrões, normas e regulamentos, públicas foram as grandes beneficiárias des-

12. A trajetória do sistema de controle da Administração Pública Federal se deu através dos seguintes órgãos:
DASP, extinto em 1986; seguiu-se a SEDAP (Secretaria da Administração Pública da Presidência da Repúbli-
ca), incorporada em 1989 à Secretaria do Planejamento da Presidência da República. Em 1990 foi criada a
SAF (Secretaria da Administração Federal da Presidência da República, incorporada ao Ministério do Traba-
lho em 1992). Em 1995, a SAF transforma-se em MARE (Ministério da Administração Federal e Reforma
do Estado). Para uma boa discussão das tensões entre burocracia e eficiência na história recente brasileira,
ver Bresser Pereira, “Da Administração Pública Burocrática à Gerencial”, in RSP – Revista do Serviço Público
– ano 47, v.120, n.1, jan.-abr. 1996, p.7-37.

128
sa política que, sem sombra de dúvida, res- simbólica aos tempos do regime militar.
pondeu à necessidade de maior eficiência na Nesse sentido, sua concepção estava conta-
gestão das políticas públicas que a economia minada tanto pela “paixão” política quanto
brasileira pedia naquele momento. pela busca estratégica de “redemocratização”
Entretanto, como sugeriu Bresser Perei- da sociedade brasileira, sua justificativa ra-
ra (1996, op. cit.), embora essa estratégia de cional. Está além do escopo deste trabalho
governo tenha sido uma tentativa de admi- analisar as disfunções do novo “gigante” bu-
nistrar a “coisa pública” de forma gerencial, rocrático criado pela Constituição de 1988.13
em contraposição à forma burocrática, tam- Contudo, a ineficiência do sistema para ge-
bém produziu, pelo menos, duas conseqüên- rir tantas e tão diferentes instituições pú-
cias indesejáveis e não-previstas: a volta de blicas, espalhadas pelas mais distintas regi-
práticas clientelistas no recrutamento de pes- ões brasileiras, é, hoje, consenso das mais
soal e a marginalização política da adminis- diversas correntes de opiniões políticas e
tração direta que, vista como sistema ideológicas.
inoperante e muito caro, foi relegada, sem Com base em um diagnóstico que enfa-
receber qualquer atenção governamental em tizava essas disfunções, o governo federal
termos de investimento e renovação. Durante propôs, em 1995,14 um plano de reforma do
quase vinte anos do regime militar, a buro- Estado que mudaria estruturalmente o siste-
cracia da administração direta do governo ma de administração pública brasileira. Des-
federal foi posta em segundo plano. Nesse de a criação do DASP, foi a primeira iniciati-
contexto, em que a administração direta se va de reforma estrutural da administração
encontrava envelhecida e marginalizada, o pública do país. Sem pretender discutir tec-
governo da Nova República, através da Cons- nicamente a proposta, vou apenas apresentá-
tituição de 1988, instituiu o Regime Jurídico la em suas características fundamentais.15 É
Único para todos os servidores públicos civis bastante criativa e inovadora em termos da
da administração direta e indireta (autarquias concepção geral das atividades estatais. Di-
e fundações), no mais puro espírito daspiano ferencia os setores estatais de acordo com
dos anos 30. Novamente, os governos que se suas funções, das mais exclusivas ou típicas
sucederam enfrentaram uma gigantesca má- de Estado até as próprias, não necessaria-
quina uniformizadora e centralizadora no âm- mente exclusivas do Estado. Esses setores
bito nacional. Antigas fundações, com as mais são: o do “núcleo estratégico”, composto
diversas missões, universidades federais e cen- pelo Legislativo, Judiciário, Presidência e
tenas de autarquias foram todas colocadas na cúpula dos ministérios; o das “atividades
mesma “vala administrativa”. O Regime Ju- exclusivas”, tais como polícia, regulamen-
rídico Único – RJU constituiu não apenas tação, fiscalização, fomento, seguridade
uma reação ao poder discricionário da admi- social básica; o dos “serviços não-exclusi-
nistração indireta, mas, também, uma reação vos”, como universidades, hospitais, centros

13. Ver, para uma boa apresentação desse diagnóstico, Bresser Pereira, op. cit.
14. Ver Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, Plano Diretor da Reforma de Estado, 1995.
15. Para uma apresentação didática e bem fundamentada, ver Bresser Pereira, op. cit.

129
Administração pública e burocracia

de pesquisa e museus e, finalmente, o da “pro-


dução para o mercado”, as empresas estatais.
O Plano diferencia, também, formas de pro-
priedade – estatal, pública não-estatal16 e
privada – e formas de administração: buro-
crática e gerencial. A administração de tipo
burocrático enfatiza o caráter formalista e
universalista de recrutamento e de ascensão
dos funcionários com base em critérios
meritocráticos. Já o modelo gerencial enfatiza
as dimensões de flexibilidade e autonomia
do gestor para administrar seus recursos hu-
manos e materiais (BRESSER PEREIRA, op.
cit., p.31).
Como pode perceber-se, o Plano de Re-
forma idealizado no início do governo
Fernando Henrique Cardoso é bastante ou-
sado e inovador. Talvez e, ironicamente, por
causa dessas duas “qualidades”, que dão ao
plano um potencial de mudança estrutural
da administração pública brasileira, não te-
nha ele conseguido viabilizar-se politicamen-
te, nem sequer no segundo mandato de
Fernando Henrique Cardoso. Os focos de
resistência foram muitos, mas, entre eles,
destacam-se as próprias corporações sindi-
cais dos funcionários públicos e os amplos
setores da elite burocrática que chefiam as
instituições públicas brasileiras.

16. Refere-se, de acordo com Bresser Pereira (op. cit.), às instituições de Direito Privado com fins não lucrativos
e às organizações sem fins lucrativos.

130
Sugestões de leitura

BOBBIO, N. Sociedade e Estado na filosofia política moderna. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.
_______. Estado, governo, sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
_______. et al. Dicionário de Política (verbete Administração Pública). 4.ed. Brasília: Ed. UnB, 1992.
BRESSER PEREIRA, L. C. Da administração pública burocrática à gerencial. Revista do Serviço Público, RSP, ano
47, v.120, n.1, p.7-39, jan./abr. 1996.
COHEN, J., ROGERS, J. Associations and democracy. WRIGHT, E. O. (Ed.). Londres: Verso, 1995.
HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984.
_______. The Theory of Communicative Action, v.1. Boston: Beacon Press, 1984.
MARCH, J. G., OLSEN, J. Democratic governance. Nova York: The Free Press, 1995.
PERROW, C. Complex organizations: a critical essay. 2.ed. Glenview: Scott, Foreman and Company, 1979.
PRATES, A. A. P. Sociedade Civil (verbete). In: SILVA, F. C. T. da. et al. (Org.). Dicionário crítico do pensamento
da Direita. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
PUTNAN, D. Robert. Comunidade e democracia – a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: Fundação
Getulio Vargas, 1996.
WEBER, M. Ensaios de sociologia. In: GERTH, H. H., MILLS, C. W. (Orgs.). Rio de Janeiro: Zahar, 1971.
_______. Economia y sociedad, v.II, cap. IX. México: Fondo de Cultura Económica, 1964.
WRIGHT, E. (Ed.). Associations and democracy. Nova York: Verso, 1995.

131
Capítulo 5
O Poder Ex
Poder ecutivo, centro de gravidade
Executivo,
do Sistema Político Brasileiro
Político

OCTAVIO AMORIM NETO1

Tendo o Brasil um sistema de governo talecer o Executivo porque se fez por meio
sob o qual o presidente, além de contar com da expansão de agências burocráticas subor-
a ampla legitimidade e visibilidade que lhe dinadas a este (BOSCHI e LIMA, 2002). Já
confere a sua eleição pelo povo, detém ex- os regimes autoritários contribuíram para o
tensas prerrogativas constitucionais no que engrandecimento do Executivo pela razão
concerne à direção da administração públi- óbvia de haverem simplesmente aniquilado o
ca e ao processo legislativo, é natural que o Poder Legislativo, como se deu entre 1937 e
Poder Executivo seja o centro de gravidade 1945, e de o haverem deliberadamente ames-
do regime político. Convém notar, contu- quinhado entre 1964 e 1985.
do, que a primazia do Poder Executivo não No que diz respeito à conseqüência das
é uma decorrência necessária do presidencia- carreiras políticas para a distribuição de po-
lismo. Por exemplo, nos EUA, o Congresso der entre os órgãos do Estado, os trabalhos
é o órgão do Estado mais relevante no que de Samuels (2000; 2003) revelam que os
toca à condução da política doméstica.2 deputados brasileiros têm, em geral, uma
No caso brasileiro, a centralidade do Po- passagem muito curta pela Câmara Baixa,
der Executivo deriva não apenas da estrutu- preferindo continuar suas carreiras em pos-
ra constitucional do país, mas também de tos do Executivo, seja no plano nacional,
fatores históricos e do padrão de carreiras estadual ou municipal. Como mostram
políticas. Dentre os fatores históricos, des- Amorim Neto e Santos (2003), o pouco tem-
tacam-se o enorme papel desempenhado pelo po de permanência dos legisladores naquela
Estado no desenvolvimento econômico na- Casa Legislativa tem um efeito considerável
cional ao longo do século XX e o legado dos sobre a capacidade do Congresso de aprovar
regimes autoritários vigentes em 1930-1945 leis de sua própria autoria, o que, por sua
e 1964-1985. A intervenção do Estado na vez, realça a presença do Poder Executivo no
economia contribuiu sobremaneira para for- processo legiferante. Como bem apontam

1. O autor agradece aos comentários de Antônio Octávio Cintra e Fabiano Santos a uma versão anterior do
capítulo.
2. Cumpre notar que, durante a presidência de George W. Bush (2001-presente), observou-se uma expansão
da esfera de atuação do Poder Executivo, no plano doméstico, em detrimento do Congresso. Veja a matéria
especial sobre o assunto em The Economist, “George Bush, contradictory conservative” (26 de agosto de
2004). Também é digno de nota o crescente uso das chamadas executive orders (decretos administrativos)
pelos presidentes norte-americanos. A esse respeito, veja Mayer (2001).

133
O Poder Executivo, centro de gravidade do Sistema Político Brasileiro

Figueiredo e Limongi (1999), entre 1989 e peito a como o presidente pretende relacio-
1998, nada menos do que 86% das leis pro- nar-se com o Congresso; a segunda, a como
mulgadas foram de autoria do Executivo, o chefe do Executivo tenciona lidar com as
uma evidência eloqüente da centralidade forças políticas das unidades da Federação.
deste órgão do Estado na vida política na- Cabe, todavia, lembrar que a dimensão par-
cional. tidária é a mais importante e decisiva. As-
Na primeira experiência democrática que sim, analisa-se inicialmente essa dimensão.
o Brasil teve (entre 1946 e 1964), as leis de Considerando-se todos os ministérios
autoria do Congresso corresponderam a 57% formados desde a posse de Sarney em março
do total de leis promulgadas (PESSANHA, de 1985 até o final de 2006 (ver Tabela 1),
2002). Ou seja, no que concerne à legislação, verifica-se que estes são sempre arranjos
o papel do Poder Executivo claramente cres- multipartidários com maior ou menor grau
ceu nos últimos 40 anos. Com as privatizações de fragmentação e heterogeneidade ideoló-
havidas na década de 1990, porém, pode-se gica. Lula foi o presidente que mais partidos
dizer que, do ponto de vista administrativo, trouxe para o primeiro escalão do governo
o peso do Poder Executivo tenha sido um federal, 9 (no seu quinto ministério, nomea-
pouco aliviado. do em setembro de 2005). Trata-se do mais
O Poder Executivo pode ser estudado de fragmentado ministério formado na história
vários ângulos. Dadas as restrições de espa- do presidencialismo latino-americano. Até
ço, porém, este capítulo vai cingir-se à análi- aqui, o recorde brasileiro anterior a Lula per-
se da organização do primeiro escalão do go- tencia ao segundo ministério de Itamar Fran-
verno (o chamado ministério) e dos princi- co, com 7 partidos. Esse ministério de Itamar
pais mecanismos decisórios da Presidência da Franco, juntamente com o segundo ministé-
República. Assim, a próxima seção trata da rio do primeiro mandato de Fernando
formação ministerial. A segunda aborda os Henrique Cardoso (doravante, FHC I), pri-
poderes legislativos do presidente sob a Cons- meiro ministério do seu segundo mandato
tituição de 1988. A terceira conclui. (FHC II) e os dois últimos de Lula I são tam-
bém os mais heterogêneos do ponto de vista
ideológico, uma vez que partidos de todas
1. A formação do governo
as tendências ideológicas estão representa-
A Constituição de 1988, assim como to- dos no primeiro escalão do Executivo. Os
das as outras Constituições republicanas que ministérios mais coesos ideologicamente são
teve o país, confere ao chefe do Executivo o segundo e o terceiro de Collor, uma vez
amplos poderes sobre a administração pú- que só incluem partidos de direita.
blica. O principal é o que dá ao presidente a O grande número de partidos e a alta
faculdade de nomear e demitir livremente heterogeneidade ideológica de quase todos os
os ministros de Estado. Ainda que o presi- ministérios nomeados desde 1992 estão inti-
dente tenha tal faculdade, observa-se que a mamente ligados à crescente fragmentação
formação ministerial no Brasil tem duas di- parlamentar registrada a partir das eleições
mensões fundamentais não determinadas de 1990, cumprindo também lembrar que o
pela Carta Magna: a partidária e a regional Brasil tem um dos parlamentos mais fragmen-
(ABRANCHES, 1988). A primeira diz res- tados do mundo.

134
Outro aspecto importante dos ministé- tros sem filiação partidária. No Brasil, como
rios diz respeito ao apoio parlamentar que em vários outros regimes presidenciais, os
conseguem angariar para o Executivo. Nesse ministérios não são totalmente partidarizados,
sentido, observa-se grande variação no cha- como é quase a regra nos regimes parlamen-
mado tamanho legislativo do governo. Por taristas (AMORIM NETO 2006a:173). Os
exemplo, o primeiro ministério nomeado por ministros apartidários são, em geral, especia-
Sarney dava ao presidente um suporte nomi- listas que trazem para o Executivo o benefí-
nal de 93,5% de cadeiras na Câmara dos De- cio do seu conhecimento técnico em algumas
putados. Já o segundo e terceiro ministérios áreas importantes da administração pública.
de Collor não lograram dar ao governo nem É o caso de Marcílio Marques Moreira e
30% de apoio naquela Casa Legislativa. Veri- Pedro Malan, ministros da Fazenda de Collor
fica-se também que a aproximação do fim do e FHC, respectivamente, de Luiz Fernando
mandato presidencial está associada a uma Furlan, ministro do Desenvolvimento, e
substancial queda na força legislativa do Exe- Roberto Rodrigues, ministro da Agricultura,
cutivo. São os casos do último ministério de ambos do governo Lula.
Itamar Franco, de FHC II e de Lula I. Em um país como o Brasil, a disposição
Outra faceta relevante da formação mi- do presidente de trazer profissionais com-
nisterial é o grau de proporcionalidade agre- petentes para os ministérios é fundamental
gada entre a percentagem de ministérios de- porque vários setores da burocracia do Esta-
tida por cada partido e a contribuição deste, do não têm funcionários de bom nível ou
em cadeiras parlamentares, para a base nem os partidos têm quadros capazes de ocu-
legislativa do governo. Tal medida revela a par alguns postos, cabendo ao chefe de Esta-
solidez do apoio legislativo que o ministério do suprir essa falha por meio da nomeação
traz para o Executivo (AMORIM NETO, de técnicos competentes saídos das universi-
2000), permitindo que se qualifiquem os dades e do setor privado e valendo-se seleti-
achados relativos ao status legislativo nomi- vamente de experimentados servidores públi-
nal do governo.3 Destarte, ainda que o pri- cos. Este, sim, é um problema dos ministérios
meiro ministério de Collor e os dois últimos de Lula I, que, junto com os dois de José
de Itamar Franco sejam nominalmente ma- Sarney, foram os que mais partidarizaram o
joritários (segundo os dados da quarta colu- primeiro escalão da administração federal,
na da Tabela 1), a leitura da quinta coluna comprometendo seriamente a capacidade
sugere que, efetivamente, eram governos gerencial do Estado.
minoritários, como também o comprova a Em suma, o grande desafio dos presiden-
análise de Amorim Neto, Cox e McCubbins tes, ao nomear seus ministros, é alcançar um
(2003) e Amorim Neto (2006b). difícil equilíbrio entre, de um lado, a reunião
Cabe ainda analisar a última coluna da de apoio parlamentar máximo para supe-
Tabela 1, que traz a percentagem de minis- rar os problemas inerentes a um Congresso

n
3. O índice utilizado tem a seguinte fórmula: Proporcionalidade = 1 - 1/2 ∑ (|Mi - Pi|)
i=1

onde: Mi é o percentual de participação ministerial de um partido i em um determinado ministério; e Pi é o


percentual de cadeiras que o partido i controla do total de deputados pertencentes aos partidos que inte-
gram o ministério.

135
O Poder Executivo, centro de gravidade do Sistema Político Brasileiro

TABELA 1. Duração, composição partidária, apoio parlamentar, proporcionalidade


e percentagem de ministros apartidários dos Ministérios formados
entre 1985 e 2006.

136
fragmentado como o brasileiro e, de outro, Os dados revelam que, cotejados com os
alcançar um patamar mínimo de conhecimen- das presidências de Sarney, Collor e Itamar
to técnico a respeito das diversas áreas da Franco, os ministérios de FHC e Lula au-
administração pública para suprir as defici- mentaram consideravelmente a participação
ências da burocracia do Estado e dos qua- de São Paulo no primeiro escalão do gover-
dros partidários. no federal. Não é à toa serem chamados de
“paulistérios”. Nada menos do que aproxi-
madamente 24% das nomeações ministeriais
1.1 A dimensão regional
desses presidentes premiaram paulistas, en-
dos Ministérios
quanto que, entre 1985 e 1994, somente
Para avaliar o peso dos estados nos minis- 12,3% das nomeações beneficiaram políti-
térios, é preciso que antes se estipulem crité- cos do estado. À exceção de Itamar Franco,
rios que definam quando a origem estadual político mineiro, todos os presidentes aca-
de um ministro foi relevante ou irrelevante baram por sobre-representar seus estados no
para a sua nomeação. Por exemplo, o fato de ministério. Assim, a participação ministerial
Pedro Malan ter nascido e vivido no Rio de de Alagoas, sob Collor, e do Maranhão, sob
Janeiro não teve influência na sua escolha Sarney, é maior do que o peso desses esta-
como ministro da Fazenda de FHC. Já a no- dos na Câmara.
meação de Dílson Funaro para o mesmo car- Em geral, os postos ministeriais são mo-
go por José Sarney pode ser associada ao fato nopolizados pelos oito maiores estados na
de ele ter sido um conhecido industrial do Câmara, a saber, Bahia, Ceará, Minas Ge-
estado mais relevante economicamente, São rais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Gran-
Paulo. Além disso, há que se levar em conta de do Sul, Paraná e São Paulo.
não o lugar de nascimento dos ministros, mas, Impressionante é o fato de o Rio de Ja-
isto sim, o estado onde realizaram suas carrei- neiro nunca ter sido tão bem representado
ras políticas e/ou profissionais. Assim, José no ministério quanto o foi sob Lula I. En-
Dirceu, ministro-chefe do Gabinete Civil de tre 1985 e 2002, apenas 3,0% das nomea-
Lula até junho de 2005, ainda que tenha nas- ções ministeriais foram para cariocas ou
cido em Minas, é um legítimo representante fluminenses, enquanto que, com Lula, este
de São Paulo no ministério, uma vez que foi valor subiu para 8,0%. A maior participa-
neste estado que teve curso a sua carreira ção do Rio sob o primeiro mandato de Lula
política. na presidência certamente refletiu a expres-
A Tabela 2 mostra o percentual de nomea- siva vitória que o novo presidente teve nes-
ções ministeriais controladas por cada estado te estado, no segundo turno das eleições de
por presidência, entre 1985 e 2006. Note-se 2002, e o peso que o Estado do Rio tinha
que a unidade de análise são as nomeações nas bancadas de dois importantes aliados de
ministeriais e não as identidades dos minis- Lula, o PSB e o PDT.
tros. Ou seja, uma pessoa que, em um mesma Cabe ainda destacar que, sob Lula I, São
presidência, foi nomeada ministra duas vezes Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro ficaram
aparece duas vezes na amostra. É o caso, por com 44,0% das nomeações ministeriais e
exemplo, de Dilma Rousseff, que, na primei- os estados nordestinos com 14,0%. Entre
ra presidência de Lula, ocupou os ministérios 1985 e 2002, essas percentagens foram de
de Minas e Energia e da Casa Civil. 33,0% e 17,0%, respectivamente. Enquanto

137
O Poder Executivo, centro de gravidade do Sistema Político Brasileiro

TABELA 2. Controle das nomeações de ministros por Estado entre 1985 e 2006
por presidente.

138
a participação ministerial dos três grandes 2. As prerrogativas legislativas do
chefe do Poder Executivo4
estados aumentou consideravelmente, a dos
nordestinos caiu. Esta mudança a favor dos A Constituição de 1988 confere ao chefe
maiores estados é conseqüência da força do do Poder Executivo um papel decisivo no
PT nos grandes centros urbanos e nas regiões processo legislativo. O presidente tem o di-
mais desenvolvidas do país. Levando-se em reito de propor projetos de lei e emendas cons-
conta que São Paulo, Minas Gerais e Rio de titucionais e, além disso, possui iniciativa
Janeiro têm 41,0% da população nacional, legislativa exclusiva no que concerne à admi-
mas recebem apenas 33,0% das cadeiras da nistração pública e ao orçamento. O chefe do
Câmara, uma das conseqüências mais im- Executivo tem também a prerrogativa de ve-
portantes da presidência de Lula, no que tar, parcial ou totalmente, as leis aprovadas
concerne à distribuição do poder político pelo Legislativo, podendo o veto presiden-
entre as regiões do país, é compensar, atra- cial ser derrubado por uma maioria absoluta
vés de uma participação ministerial amplia- em uma sessão conjunta do Congresso.
da, os grandes estados por sua sub-represen- Ademais, o presidente tem o poder de
tação parlamentar. editar medidas provisórias, isto é, decretos
Outra razão que levou à redução da par- que têm a força de lei a partir do momento
ticipação ministerial dos estados nordestinos em que são publicados no Diário Oficial. Esta
na primeira presidência de Lula foi a ausên- é uma das características mais marcantes da
cia do PFL no primeiro escalão do Executi- atual estrutura constitucional do país. As
vo. Como se sabe, as bases políticas deste medidas provisórias permitem ao chefe do
partido se encontram majoritariamente no Executivo exercer um considerável controle
Nordeste. sobre o processo legislativo (FIGUEIREDO
Para finalizar, convém ressaltar que a e LIMONGI, 1999). Até 2001, uma vez edi-
concentração das nomeações ministeriais nas tada uma medida provisória, o Congresso
mãos dos maiores estados e também dos mais tinha 30 dias para votá-la. Se o Congresso
ricos, em um país tão desigual como o Brasil nada fizesse nesse período, a medida provi-
e no qual a política tende a ser clientelística, sória expiraria. Na maioria dos casos, o Po-
pode ter o pernicioso efeito de contribuir der Legislativo acabava não deliberando so-
para congelar a concentração de renda inter- bre as medidas provisórias dentro do prazo
regional, uma vez que os ministros que são constitucionalmente estipulado. Assim, o Su-
legítimos representantes dos seus estados no premo Tribunal Federal, em uma decisão to-
primeiro escalão do Executivo Federal ten- mada em 1989, autorizou o Executivo a
dem a canalizar mais recursos dos seus mi- reeditar as medidas provisórias que o Con-
nistérios para seus respectivos estados do que gresso não tivesse apreciado em tempo há-
para outros que, provavelmente, tenham bil. O Executivo não hesitou em aproveitar
maiores carências socioeconômicas. tal oportunidade. Das 6.406 medidas provi-
sórias assinadas entre 5 de outubro de 1988
(data da promulgação da nova Constituição)

4. Esta seção se baseia em Amorim Neto (2003) e em Amorim Neto, Cox e McCubbins (2003).

139
O Poder Executivo, centro de gravidade do Sistema Político Brasileiro

e 15 de outubro de 2006, apenas 861 programa de governo. Isto porque o Execu-


(13,4%) foram medidas originais. Apenas 42 tivo conta com uma força política que o per-
dessas 861 medidas originais foram rejeita- mite, de forma mais ou menos segura, obter
das pelo Congresso, 9 editadas pelo presi- a cooperação do Legislativo para aprovar
dente José Sarney, 10 por Fernando Collor, projetos de lei, diminuindo, portanto, a ne-
1 por FHC I, 15 por FHC II e 7 por Lula I. cessidade de recorrer às medidas provisóri-
A partir de setembro de 2001, em função as (AMORIM NETO, COX e McCUBBINS
da emenda constitucional Nº 32, as medidas 2003; AMORIM NETO e TAFNER 2002).
provisórias passaram a ter que ser apreciadas Tal foi o que aconteceu durante as presidên-
pelo Poder Legislativo dentro de um prazo cias de FHC, mais forte do ponto de vista
mais dilatado, 60 dias. Porém, doravante, só do apoio parlamentar, como visto na seção
podem ser reeditadas uma vez. anterior, do que a que as precederam e do
O Poder Executivo tem recorrido a medi- que a que as sucedeu.
das provisórias para tratar dos mais variados A última afirmação pode parecer equi-
assuntos, apesar de determinar a Constitui- vocada, uma vez que FHC foi constantemen-
ção só deverem elas ser utilizadas em casos te criticado pelo supostamente abusivo nú-
de urgência e relevância. Por exemplo, até mero de medidas provisórias que editou.
direitos de pesca no rio Amazonas já foram Porém, há de se fazer a devida diferenciação
regulados por medida provisória. dentro do universo das medidas provisórias
Em suma, as medidas provisórias se tor- (doravante, MPs). Sem dúvida, FHC reeditou
naram um poderoso instrumento decisório muitas MPs. Entretanto, em termos da fre-
nas mãos do Poder Executivo porque per- qüência anual de MPs originais, ele é o pre-
mitem que este mude o status quo legal do sidente com a menor taxa entre 1989 e 2006:
país de forma unilateral. Como afirmam 33 MPs originais por ano, em média. Sarney
Figueiredo e Limongi, “Os direitos de inicia- editou 83 MPs originais em 1989. Collor
tiva legislativa exclusiva e o poder de emitir emitiu, em média, 48 MPs originais entre
decretos com imediata força de lei dão ao 1990 e 1991 (1992 deve ser excluído por-
Executivo a capacidade de controlar a agen- que foi um ano atípico devido à crise polí-
da legislativa em seu tempo e conteúdo” tica que levou à destituição deste presiden-
(2000:156). te). Itamar Franco baixou, em média, entre
É, porém, fundamental ressalvar que nem 1993 e 1994, 69 MPs originais. E Lula, en-
todos presidentes recorrem igualmente às tre janeiro de 2003 e 15 de outubro de
medidas provisórias. Observa-se também 2006, assinou 64 MPs por ano, em média
uma importante variação na maneira pela (ver Tabela 3).
qual os chefes do Executivo se valem dos Ademais, é possível criar um índice que
instrumentos ordinários de legislação (pro- permita avaliar em que medida os presiden-
jetos de lei ordinária, projetos de lei com- tes implementam a sua agenda legislativa por
plementar e projetos de emenda à Consti- iniciativas ordinárias ou por instrumentos
tuição). Sob presidências que contam com extraordinários (as MPs originais). Assim, o
um sólido apoio parlamentar, os instrumen- denominador do índice é constituído pela
tos ordinários de legislação tendem a preva- soma do número de projetos de lei ordiná-
lecer sobre os extraordinários (as medidas ria, de projetos de lei complementar, de
provisórias) no esforço de implementação do emendas constitucionais e de MPs originais

140
propostas por um presidente. O numerador em função da votação, em 1991, do projeto
é a soma do número de projetos de lei ordi- do deputado Nélson Jobim que procurava
nária, de projetos de lei complementar e de limitar a edição das MPs, o Congresso indi-
emendas constitucionais originados do Exe- cou claramente a Collor que não toleraria
cutivo. O índice varia de zero a 1. Quanto mais a maneira abusiva com que este presi-
mais próximo o seu valor estiver de 1, mais dente delas se valera no ano anterior.
o Executivo se vale de iniciativas legislativas Finalmente, o chefe do Executivo tem
ordinárias. No caso do presidente Sarney, também a prerrogativa constitucional de re-
incluíram-se também os decretos-lei que ele querer urgência para projetos de lei. A cha-
editou antes da promulgação da Constitui- mada urgência constitucional dispensa qual-
ção de 1988 como se fossem MPs originais quer votação no Congresso. A Câmara dos
para que toda a sua presidência possa ser Deputados e o Senado contam com 45 dias
comparada às outras. para apreciar qualquer projeto considerado
O exame do índice mostra que os meno- urgente pelo presidente. Se qualquer uma das
res valores se encontram nas presidências de Casas Legislativas não der conta desse pra-
Sarney, Itamar e Lula. Já sob os dois manda- zo, o projeto para o qual o Executivo re-
tos de FHC, registram-se os dois valores mais quereu urgência é imediatamente posto em
altos: 0,57 e 0,71 (ver Tabela 3). Cumpre votação. Caso alguma das Casas emende o
notar que, apesar de apresentar o primeiro projeto, a outra tem 10 dias para deliberar
valor mais alto do índice, a presidência de sobre as emendas. As Casas do Congresso
Collor deve ser considerada atípica porque, podem decidir apreciar o projeto considera-

TABELA 3. Decretos-lei, MPs originais, Projetos de Lei Ordinária, Projetos de Lei


Complementar e Projetos de Emenda à Constituição originados do
Executivo e Índice de Iniciativas Legislativas Ordinárias, por presidente.

141
O Poder Executivo, centro de gravidade do Sistema Político Brasileiro

do urgente no tempo em que quiserem, mas te, o Poder Judiciário também é um freio
isto significa que a sua apreciação tem que fundamental às tendências expansionistas do
ser concluída antes que qualquer outra ma- Executivo, mas este ponto fugiu aos limita-
téria possa ser considerada. dos objetivos deste texto.
Os dados disponíveis mostram que 53% Por último, lembre-se que as deficiências
dos projetos de lei de autoria do Executivo técnico-administrativas do gigantesco apare-
que foram aprovados pelo Congresso, entre lho de Estado brasileiro também agem no sen-
1989 e 1994, tramitaram sob regime de ur- tido de limitar a capacidade de ação do Poder
gência na Câmara dos Deputados. Nesse mes- Executivo. Portanto, os presidentes, ao esco-
mo período, os projetos de lei originados no lherem seus principais assessores, devem le-
Executivo levaram, em média, 26 dias para var em conta não apenas critérios políticos,
serem enviados ao Senado (FIGUEIREDO e mas também considerações relativas à quali-
LIMONGI, 1999:55-67). Ou seja, a urgên- dade técnica dos seus ministros. Ou seja, o
cia constitucional é outro mecanismo que fa- exercício do Poder Executivo requer do seu
vorece a expediência com que tramita a agen- chefe a suprema habilidade de tratar bem seus
da legislativa do Poder Executivo. aliados políticos e, concomitantemente, me-
lhorar os quadros administrativos do gover-
no, tarefas que, na nossa história, nem sem-
3. Conclusão
pre vão de mãos dadas.
Segundo alguns estudiosos dos regimes
presidenciais, o chefe do Executivo brasilei-
ro é um dos mais fortes do mundo em ter-
mos de prerrogativas legislativas (SHUGART
e CAREY, 1992). O presidente brasileiro tam-
bém comanda um vasto império administra-
tivo, incluindo não apenas os ministérios, mas
também o Banco Central, o Banco do Brasil,
o BNDES (o maior banco de investimento
público do mundo), a Petrobrás (a maior
empresa nacional) e várias outras agências
estatais. Somem-se a esses fatores constitu-
cionais e administrativos as debilidades
institucionais do Congresso e está armado
o cenário para a emergência do Poder Exe-
cutivo como o mais influente órgão de Esta-
do na vida política nacional.
Neste capítulo, procurou-se mostrar tam-
bém que dois importantes contra-pesos ao
Poder Executivo são o sistema partidário e a
Federação, que forçam o presidente, ao mon-
tar seu ministério, a acomodar uma grande
diversidade de forças políticas. Obviamen-

142
Sugestões de leitura

ABRANCHES, Sérgio H. Hudson de. Presidencialismo de Coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados, 31,
p. 5-38, 1988.
AMORIM NETO, Octavio. Gabinetes presidenciais, ciclos eleitorais e disciplina legislativa no Brasil. Dados 43,
p. 479-517, 2000.
__________. O Presidencialismo de Coalizão revisitado: novos dilemas, velhos problemas. In: J. A. G. TAVARES
(Org.). O sistema partidário na consolidação da democracia brasileira. Brasília: Instituto Teotônio Vilela,
2003.
__________. Presidencialismo e governabilidade nas Américas. Rio de Janeiro: FGV Editora e Fundação Konrad
Adenauer, 2006a.
__________. As conseqüências políticas de Lula: novos padrões de recrutamento ministerial, controle de agenda
e produção legislativa. In: SEMINÁRIO DE PESQUISA DA ESCOLA DE GOVERNO DA FUNDAÇÃO
JOÃO PINHEIRO, Belo Horizonte, 24 nov., 2006b.
AMORIM NETO, Octavio, COX, Gary W., McCUBBINS, Matthew D. Agenda power in Brazil’s Câmara dos
Deputados. World Politics 55, p. 550-578, 2003.
AMORIM NETO, Octavio, SANTOS, Fabiano. O Segredo Ineficiente revisto: o que propõem e aprovam os
deputados brasileiros. Dados, 46, p. 661-698, 2003.
AMORIM NETO, Octavio, TAFNER, Paulo. Governos de Coalizão e mecanismos de alarme de incêndio no
controle legislativo das medidas provisórias. Dados, 45, p. 5-38, 2002.
BOSCHI, Renato R., LIMA, Maria Regina Soares de. O Executivo e a construção do Estado no Brasil. In: L. W.
VIANNA (Org.). A democracia e os Três Poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
FIGUEIREDO, Argelina C., LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 1999.
__________. Presidential power, legislative organization, and party behavior in Brazil. Comparative Politics, 32,
p. 151-170, 2000.
MAYER, Kenneth R. With the stroke of a pen: executive orders and presidential power. Princeton: Princeton
University Press, 2001.
PESSANHA, Charles. O Poder Executivo e o processo legislativo nas constituições brasileiras: teoria e prática.
In: L. W. VIANNA (Org.). A democracia e os Três Poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
SAMUELS, David J. Ambition and competition: explaining legislative turnover in Brazil. Legislative Studies
Quarterly, 25, p. 481-497, 2000.
__________. Ambition, federalism, and legislative politics in Brazil. Nova York: Cambridge University Press, 2003.
SHUGART, Matthew S., CAREY, John M. Presidents and Assemblies: constitutional design and electoral dynamics.
Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

143
Capítulo 6
A Câmara dos Deputados na Nova
República: a visão da Ciência Política1
Política

ANTÔNIO OCTÁVIO CINTRA


MARCELO BARROSO LACOMBE

O Brasil tem, à semelhança das demais dentro do próprio parlamento, de sua maio-
democracias do mundo, órgãos especializados ria partidária, a partir da qual se forma um
para o exercício do Poder Legislativo em ní- gabinete para durar enquanto essa maioria o
vel nacional, a saber, a Câmara dos Deputa- sustentar. Assim, existe, no parlamentaris-
dos e o Senado Federal, os quais, juntos, for- mo, alguma fusão de poderes, que pode va-
mam o Congresso Nacional. riar em grau entre os vários sistemas parla-
Este capítulo enfoca a primeira das duas mentaristas, mas será sempre muito mais
Casas, mas, para uma visão completa do pro- presente neles do que no presidencialismo.
cesso legislativo, é preciso não esquecer o No sistema presidencial, prevalece, mais ní-
Senado, ao qual cabem também funções vi- tida, a separação de poderes. Um não cons-
tais. Boa parte das atividades de uma das titui o outro. São independentemente elei-
Casas exige também o concurso da outra para tos, e a sobrevivência de cada um deles não
completar-se. No processo legislativo, cada depende da aquiescência do outro. O papel
Casa atua como revisora das matérias cuja da legislatura nesse sistema é, portanto, di-
tramitação começou na outra. A discussão e ferente do que desempenha no parlamen-
votação dos projetos de lei de iniciativa do tarismo. Não lhe cabe escolher e sustentar
presidente da República, do Supremo Tri- o governo, nem propriamente governar,
bunal Federal e dos Tribunais Superiores têm pois não tem o Poder Executivo em seu bojo,
início na Câmara dos Deputados. como acontece com os gabinetes do parla-
Nosso Congresso é parte de uma orga- mentarismo. Todavia, dessa diferença não se
nização política presidencialista. No presi- pode inferir, no presidencialismo, que os
dencialismo, a legislatura tem funções dife- dois poderes sejam programados para se opo-
rentes das que desempenha no parlamenta- rem um ao outro. Muito freqüentemente
rismo. Neste, o Poder Executivo surge de pode contar o Executivo com uma maioria

1. O presente capítulo constitui versão modificada de texto que os autores escreveram para o livro O Poder
Legislativo no Brasil, publicação conjunta do Centro de Estudos das Américas, da Universidade Cândido
Mendes, e da Editora Logon Ltda, organizado por Clóvis Brigagão e Raul Mendes Silva. A eles agradecemos
pela autorização de uso do texto como base para a redação deste capítulo.

145
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

parlamentar que lhe dá apoio e, mesmo quan- so legislativo durante o regime mi-
do tal não se dá, não necessariamente ocorre litar.3
a paralisia do governo.2
Concentremo-nos, por ora, no primeiro
conjunto de medidas apontadas por
1. A organização da Câmara dos Figueiredo e Limongi, as que fortaleceram
Deputados
o Congresso. Lembram os dois autores o
Na elaboração da Constituição de 1988, maior papel deste no processo orçamentá-
confluíram inúmeras demandas, reprimidas rio e controle das finanças públicas.
durante o regime militar, e uma parte im-
portante delas teve guarida no tratamento Entre as novas atribuições e po-
que a Carta Magna deu ao Poder Legislativo, deres reservados ao Legislativo, cabe
no Título IV (Organização dos Poderes), destacar a maior abrangência dos or-
Capítulo I, do Poder Legislativo. çamentos a serem enviados pelo Exe-
Como notam Argelina Cheibub Figuei- cutivo à apreciação do Legislativo, a
redo e Fernando Limongi, no que respeita ao maior capacidade deste último para
Poder Legislativo, emendar o orçamento enviado, o for-
talecimento do Tribunal de Contas e
a Constituição de 1988 apro- a maior participação do Congresso
vou dois conjuntos distintos e, pode- na nomeação dos membros desse tri-
se dizer, contraditórios de medidas. bunal.
De um lado, os constituintes apro-
varam uma série de medidas tenden- Chamam a atenção, também, para o
tes a fortalecer o Congresso, recu- quórum mais baixo exigido para derruba-
perando assim os poderes subtraídos da de vetos do Executivo a proposições, não
do Legislativo ao longo do período podendo os vetos incidir, como antes, so-
militar. De outro lado, a Constitui- bre palavras isoladas. Além disso, em cer-
ção de 1988 manteve muitos dos po- tas áreas o Legislativo tem competência
deres legislativos de que foi dotado exclusiva para legislar e o Congresso pode
o Poder Executivo ao longo do perío- “sustar os atos normativos do Poder Exe-
do autoritário, visto que não se re- cutivo que exorbitem do poder regulamentar
vogaram muitas das prerrogativas ou dos limites de delegação legislativa”. Os
que lhe permitiram dirigir o proces- constituintes também dotaram as comissões

2. No que diz respeito aos Estados Unidos, com seu sistema de dois partidos, a situação em que a maioria no
Congresso é de partido diferente do partido do presidente é conhecida como “governo dividido”. Significa
um governo diferente do que se efetiva quando o presidente dispõe da maioria, mas não uma situação de
ingovernabilidade. No caso brasileiro, o caso mais freqüente, num quadro de fragmentação partidária, é o
da construção de maiorias pela prática do “presidencialismo de coalizão”, assunto tratado no capítulo “O
Sistema de Governo no Brasil”, deste livro. Para o caso norte-americano, Cox e Kernell (1991).
3. FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999:41.

146
congressuais permanentes de poder legislaturas desempenharem um papel sig-
terminativo, ou seja, em algumas áreas, podem nificativo no processo que culmina com a
aprovar proposições sem que elas precisem ir política pública, ou seja, os atos do governo
ao plenário das Casas.4 que têm impacto na sociedade mediante
Para desempenhar as acrescidas funções, medidas regulatórias, distributivas ou
a Câmara dos Deputados e o Senado têm redistributivas.6 Se a legislatura tem de ser
uma estrutura formalmente adequada, sobre levada em conta, se não atua simplesmente
a qual discorreremos brevemente a seguir. apondo o carimbo sobre propostas exter-
Podemos dizer que, em termos do que trata namente geradas, sua organização tem de dar-
a moderna literatura comparativa sobre os lhe desenvoltura. É bom lembrar que o grau
parlamentos, apresenta nosso Congresso de institucionalização de uma legislatura é por
grau razoável de institucionalização. Philip sua vez dependente do horizonte de interação
Norton, por exemplo, contrasta legislaturas dos seus membros entre si e com os demais
institucionalizadas com as que não o são: poderes. Assim, uma assembléia com baixa
taxa de reeleição e poucos incentivos a ativi-
Uma legislatura que se reúne em dades de longo prazo, tais como especializa-
sessões plenárias regidas por poucas ção e profissionalização da política, será por
normas e carente de práticas ou pa- conseqüência menos institucionalizada do que
drões desenvolvidos de comportamen- outra em que os representantes se reelegem e
to não pode dizer-se institucionalizada. têm na atividade legislativa seu horizonte pro-
Em contraste, uma legislatura que fissional de longo prazo.
desenvolve complexas regras de pro- No caso da Câmara dos Deputados, ape-
cedimento, práticas e padrões reconhe- sar de, em termos comparativos, contar ela
cíveis de comportamento e o que com inúmeros recursos organizacionais e ter
Geoffrey Pridham chama “articulação bastante complexidade estrutural, usamos
organizacional” constitui um parla- acima o qualificativo “razoável” para a sua
mento institucionalizado.5 institucionalização, exatamente, como vere-
mos, por lhe faltarem uma carreira parla-
Norton e colaboradores sustentam ser a mentar de longo prazo e incentivos internos
institucionalização fundamental para as para a profissionalização política.7

4. FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999:42. O poder das comissões só é indiscutivelmente terminativo no caso


das Comissões de Constituição, Justiça e Cidadania e de Tributação e Finanças, quando versa, respectiva-
mente, sobre constitucionalidade e requisitos jurídicos e adequação financeira de proposições. Nos demais
casos, o poder terminativo das comissões – que, no Regimento Interno da Câmara, é então chamado “con-
clusivo” – é bastante restrito, sobrando somente os casos de projetos de lei ordinária, não oriundos de
comissão, que não estejam em regime de urgência e não recebam pareceres divergentes (Cf. Regimento
Interno, C.D., art. 24). Para uma análise do uso do poder conclusivo pelas comissões, veja-se Pacheco (2005).
5. NORTON, 1998.
6. Estamos aqui usando a fecunda classificação de políticas públicas, com respeito a seu impacto sobre os
interesses, organizados, em diferentes arenas, em função desse impacto, feita por Theodor Lowi (LOWI,
1964).
7. Vejam-se Figueiredo e Limongi (1996:28) e também Santos (2004).

147
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

Na literatura especializada, um dos ar-


ranjos cruciais dos parlamentos operativos é
a existência de comissões permanentes. Na
seqüência, passaremos em breve revista al-
guns aspectos da organização da Câmara dos
Deputados.

2. Composição da “classe política”

Os deputados federais são 513. Em teo-


ria, a Câmara representaria diretamente o
povo, cabendo ao Senado a representação dos
Estados. Não é bem assim, porém. Em pri-
Deputados reunidos na Câmara.
meiro lugar, não há deputados nacionais,
eleitos na circunscrição do país como um público sobre a matéria, basta compulsar os
todo, mas sim bancadas estaduais de depu- Anais da Assembléia Nacional Constituinte,
tados federais, o que faz que estes também que elaborou a vigente Carta, para nos dar-
se vejam como representantes das unidades mos conta de que a desproporcional distri-
da Federação no plano nacional. buição de cadeiras entre os Estados passou a
Em segundo lugar, mais importante, a representar, na prática, como que uma “cláu-
representatividade popular da Câmara é em sula pétrea” de nossa organização política.
parte invalidada por não se respeitar, na fi- Os parlamentares dos Estados sobre-repre-
xação do tamanho das bancadas estaduais, a sentados não admitem a hipótese de redu-
proporcionalidade com o tamanho das po- ção de sua representação. A grande desigual-
pulações estaduais. Ao contrário, ao fixar um dade regional, dada a força de São Paulo na
mínimo de oito representantes por Estado Federação, dá peso político aos argumentos
(quatro nos Territórios), não importa quão dos que defendem uma representação, na
reduzida sua população, e um máximo de Câmara, dos Estados menores e menos de-
setenta, a Carta de 88 apenas deu continui- senvolvidos, que não seja estritamente pro-
dade ao que tem prevalecido em nossa his- porcional a suas populações. Considera-se
tória republicana. Trata-se da desproporção insuficiente a compensação federativa obti-
entre representação e tamanho populacional da no Senado, que, por ser ele a “Câmara
das unidades da Federação e, conseqüente- dos Estados”, dá a todos eles o mesmo peso
mente, a existência de pesos diferentes aos na representação, independentemente de sua
votos dos eleitores, contrária à regra demo- população.8
crática de “um homem, um voto”. Apesar Quão representativa é a Câmara enquan-
de o problema estar muito claro no debate to espelho de algumas importantes caracte-

8. Sobre o pacto político que levou o constituinte de 46 a consagrar a desigualdade de representação dos Estados
na Câmara dos Deputados, veja-se Souza (1976). O tema da desproporcionalidade na representação é tratado,
entre numerosos textos, por Soares (1973) e Nicolau (1991:99-131). Para uma posição diferente sobre a
matéria, ver Santos (1987). Sem embargo de sua existência, essa desproporção parece neutralizada, em termos

148
rísticas da população brasileira? Como se “gerrymandering positivo”, que distritos com
sabe, em sua formação histórica, a chamada composição heterogênea pudessem eleger
classe política, ou seja, os políticos em tem- representantes negros.
po integral, que vivem para a política e da No caso brasileiro, a grande reivindicação,
política, na caracterização clássica de Max incorporada na legislação, é a da representa-
Weber, não constitui normalmente um re- ção feminina, mediante a obrigatoriedade da
trato fiel das características demográficas e quota de, pelo menos, 30% de candidatas
sócio-profissionais da população. Numa de- mulheres nas chapas partidárias.9
mocracia representativa, o representante Leôncio Martins Rodrigues procedeu a
pode representar a população em vários sen- uma cuidadosa pesquisa da composição só-
tidos, não precisando, contudo, compartir- cio-profissional da 51ª Legislatura, que nos
lhe as mencionadas características para ser permite ver como se configura a “classe po-
capaz de expressar seus anseios e interesses lítica” no plano federal.10 Em suas pala-
na esfera pública. Simbolicamente, entretan- vras:
to, em muitas conjunturas históricas, passa-
se a dar ênfase também a esses aspectos, As atividades empresariais, as
como, por exemplo, na reivindicação muito profissões liberais, o alto funcionalis-
forte, nos Estados Unidos, de que as mi- mo e o magistério constituem, nessa
norias raciais tenham representantes vindos ordem, os principais segmentos
dos próprios grupos minoritários. A velha e ocupacionais e profissionais de onde
condenável prática de desenhar distritos elei- veio a quase totalidade dos parlamen-
torais para beneficiar um ou outro partido tares da 51ª Legislatura Federal. Os
ou candidato (o famoso gerrymandering) tem empresários que foram (ou ainda são)
sido agora usada com sustentação judicial empresários do setor urbano e os que
para fazer distritos com população majori- foram profissionais liberais compõem
tariamente negra, que assegurem a eleição as profissões/ocupações mais nume-
de representantes dessa minoria. rosas. Juntas, as duas chegam a 56%
No debate norte-americano, questiona- da CD. A proporção de ex-professo-
se a validade do recurso, argumentando-se res é também elevada em todos os
que esses distritos tão artificiais, com dese- partidos, especialmente no PT. Da
nhos quase sempre esdrúxulos, enrijecem as administração pública, por sua vez,
clivagens do eleitorado. Ou seja, nada impe- vieram 18% do total de deputados.11
diria, segundo argumentam os opositores do

de seu possível impacto na política pública, pela composição dos ministérios, que costuma dar grande peso
aos estados do Sudeste, no “presidencialismo de coalizão” praticado no país (SANTOS, 2006:227 e tam-
bém o capítulo de Amorim Neto, neste livro).
9. Pela Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições), cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por
cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo (art. 10, § 3º).
10. RODRIGUES, 2002.
11. Idem, p.55.

149
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

Da leitura detalhada dos dados, confirma- 3. Estrutura da Casa


se, por exemplo, entre as profissões liberais, Um colegiado de 513 membros precisa
a grande presença dos bacharéis em Direito organizar-se para poder operar. Organização
e, a seguir, dos médicos e engenheiros. “Os significa divisão do trabalho e hierarquia.
‘comunicadores’ são principalmente jornalis- Assim, formalmente iguais, com os mesmos
tas (quinze casos) e radialistas/locutores (ca- direitos e deveres, os deputados na verdade
torze casos), os quais, juntos com quatro apre- se diferenciam uns dos outros em seu traba-
sentadores de tevê, formam 6% da CD”.12 lho, ocupando-se de matérias diferentes no
Mais interessante é a distribuição das seu dia-a-dia da Câmara, sobretudo no âm-
profissões entre os partidos, agrupados da bito das Comissões, e têm desigual poder e
direita para a esquerda, em que se revela “a influência. Esse poder e influência advêm de
pequena variação de setores sociais nos re- fatores externos à estrutura da Casa, mas são
crutamentos partidários”, porque de empre- em boa parte formalizados pelas normas que
sários, profissionais liberais, funcionários a regem, codificadas, sobretudo, no Regimen-
públicos e professores se compõe a maior to Interno. Vale lembrar ser disposição
parte dos integrantes da classe política. Ob- constitucional a competência privativa da
serva-se, também, a sobre-representação de Câmara dos Deputados para “elaborar seu
alguns desses setores em cada bloco segun- regimento interno” e
do o perfil ideológico dos partidos.
Assim, na direita, os deputados que tive- dispor sobre sua organização, fun-
ram ou têm atividades empresariais perfa- cionamento, polícia, criação, transfor-
zem 64% do bloco; a proporção de empre- mação ou extinção dos cargos, empre-
sários cai para 42% entre os parlamentares gos e funções de seus serviços e fixação
dos partidos de centro e desce ainda mais entre da respectiva remuneração, observados
os partidos de esquerda (8%). Na extremida- os parâmetros estabelecidos na lei de
de mais baixa da escala social, deputados que diretrizes orçamentárias (art. 51, III e
foram trabalhadores industriais e lavradores IV da Constituição Federal).14
chegam a 10% no bloco de esquerda contra
0,6% no da direita. Somando a eles os em- O poder formal na Casa reside, primei-
pregados não manuais em serviços (12%, em ramente, na Mesa, que é sua Comissão Dire-
porcentagem redonda), esses parlamentares tora. Comanda os trabalhos legislativos e os
de origem popular ou de classe média repre- serviços administrativos, sendo composta de
sentam 22% dos membros das bancadas dos Presidência e de Secretaria, constituindo-se,
partidos de esquerda e 2% nas bancadas de a primeira, do presidente e de dois vice-pre-
direita. Essas categorias “populares” estão sidentes e a segunda, de quatro secretários
ausentes entre os partidos de centro.13 (art. 14 do Regimento Interno).

12. Idem, p.57.


13. Idem, p.62.
14. O regimento atualmente em vigor na Câmara dos Deputados foi aprovado pela Resolução nº 17, de 1989,
tendo sofrido algumas alterações em resoluções posteriores.

150
Um ponto importante: prevalece, em Nesse ponto, é nítido o contraste entre a
toda a organização do trabalho legislativo Câmara dos Deputados e a House of
da Câmara Federal, o princípio da Representatives dos Estados Unidos. Nesta,
proporcionalidade. Por exemplo, no caso da vige o princípio majoritário, segundo o qual
composição da Mesa, cabe ao maior partido o controle da Casa e
de todas as suas Comissões.
será assegurada, tanto quanto A Câmara se estrutura também por meio
possível, a representação proporcio- de representações parlamentares ou de Blo-
nal dos Partidos ou Blocos Parlamen- cos Parlamentares, que, tendo representação
tares que participem da Câmara, os igual ou superior a um centésimo da com-
quais escolherão os respectivos can- posição da Casa, escolhem seu Líder.15
didatos aos cargos que, de acordo com O papel do Líder é crucial na atividade
o mesmo princípio, lhes caiba prover... legislativa, pois ele expressa e faz valer, pe-
(art. 8º do RI) rante a bancada, a perspectiva partidária nas

15. Ter oficialmente um líder no âmbito da Câmara é uma das notas do chamado “funcionamento parlamen-
tar”. A chamada “cláusula de barreira” ou “de desempenho”, estipulada na Lei nº 9.096/95 (Lei dos Partidos
Políticos), em seu artigo 13, tencionou restringir o “funcionamento parlamentar”, em todas as Casas
Legislativas para as quais tenham elegido representante, aos partidos que, em cada eleição para a Câmara
dos Deputados, hajam obtido o apoio de, no mínimo, cinco por cento dos votos apurados, não computados
os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento
do total de cada um deles. Conforme observou Kátia de Carvalho, “não há propriamente uma definição
legal do que seja ‘funcionamento parlamentar’. A lei apenas indica o instrumento por meio do qual o partido
funciona no âmbito legislativo: a instituição e atuação de uma bancada (...) Trata-se, sem dúvida, do direito,
emanado da própria democracia representativa, de os partidos se fazerem representar como tais nas casas
legislativas em que obtiverem assento, isto é, consiste no direito de seus membros se organizarem em banca-
das (que poderão justapor-se em blocos), sob a direção de Líder, de sua livre escolha, atuando à frente dos
cargos que lhes couberem, em respeito ao princípio da proporcionalidade partidária, erigido pela Constitui-
ção Federal” (CARVALHO, 2003:5). Carvalho alertou, porém, para que a norma do Regimento Interno da
Câmara dos Deputados que fundamenta a instituição de bancadas partidárias com direito à liderança (art.
9º, caput e § 4º do RI) é critério menos rigoroso do que o da lei. E é essa a norma que se tem aplicado.
Chamou também a atenção para o fato de que o disposto no art. 13 da Lei dos Partidos tem sido considera-
do “intromissão normativa a atingir não somente a independência institucional, como também a própria
inviolabilidade de seus membros, no exercício do mandato” (CARVALHO, 2003:8). A plena vigência da
cláusula de barreira foi obstada por decisão do Supremo Tribunal Federal de 7/12/2006. A Corte reconhe-
ceu a constitucionalidade do art. 12 da Lei dos Partidos Políticos, que reza: “O partido político funciona, nas
Casas Legislativas, por intermédio de uma bancada, que deve constituir suas lideranças de acordo com o
estatuto do partido, as disposições regimentais das respectivas Casas e as normas desta lei”. Contudo,
relativamente ao art. 13 dessa mesma lei, considerou-lhe a rigidez incompatível com o princípio do Pluralismo
Político, consagrado no art. 1º da Lei Maior. Em razão, porém, da impossibilidade fática da supressão total
da cláusula de barreira (que serve de base para a distribuição de recursos do fundo partidário e distribuição
de tempo para acesso a rádio e TV) e da impossibilidade de o Poder Judiciário exercer função legislativa,
resolveu o STF estender a eficácia normativa dos artigos 56 e 57 (norma transitória que vinha sendo aplica-
da) daquela Lei até que sobrevenha nova disposição legislativa a respeito. Em cumprimento à decisão, o TSE
já concedeu direito aos horários de rádio e TV (chamado “direito de antena”) aos partidos pequenos, com
três Deputados Federais, com base nos inciso III e IV do art. 56 e aos partidos maiores o direito previsto no
inciso II do art. 57 (devo este esclarecimento à Consultora Legislativa Kátia de Carvalho).

151
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

discussões e deliberações. É quem, por exem- liberações, “sempre que possível”, devem
plo, orienta a bancada nas votações de Ple- tomar-se mediante consenso entre seus inte-
nário e indica à Mesa os membros dessa ban- grantes e, “quando isto não for possível”,
cada para compor as Comissões, podendo pelo critério da maioria absoluta, sendo os
também, “a qualquer tempo”, substituí-los. votos dos líderes ponderados em função da
Em numerosas ocasiões no Regimento In- expressão numérica da cada bancada (art. 20
terno da Câmara dos Deputados deparamos do RI). Entre as funções do Colégio, a de ser
com dispositivos que dão extraordinária for- ouvido pelo presidente da Casa na “organi-
ça a esse cargo. Os líderes podem atuar em zação da agenda com a previsão das propo-
nome de seus liderados, com um voto pon- sições a serem apreciadas no mês subseqüen-
derado pelo peso da respectiva bancada. Uma te, para distribuição aos Deputados” (art. 17,
instância crucial dessa força está contida, por I, s, do RI). Compõem esse colégio os líde-
exemplo, no art. 155 do Regimento Inter- res da maioria, da minoria, dos partidos, dos
no, que dispõe sobre as votações em regime blocos parlamentares e do governo. Dispõe
conhecido como de “urgência urgentíssima”. o § 1º do art. 20 que os líderes de partidos
Pode esse curso de tramitação dar-se “a re- que participem de bloco parlamentar e o lí-
querimento da maioria absoluta da compo- der do governo terão direito a voz no Colé-
sição da Câmara, ou de Líderes que represen- gio de Líderes, mas não a voto.
tem esse número” e constitui instrumento Nos estudos sobre as legislaturas, atri-
estratégico para o desempenho das maiorias bui-se grande peso a sua organização em co-
parlamentares.16 missões permanentes. Quanto maior a força
Com as lideranças, constrói a Câmara um destas, tanto maior, em geral, a autonomia
órgão-chave, o Colégio de Líderes, cujas de- da Câmara, seu poder transformativo, sua

16. Informa-nos Nelson Jobim, relator de uma Comissão Especial para a Modernização instalada na Câmara
dos Deputados em 1991 (49ª Legislatura), ter-se delineado o voto de liderança durante o regime ditatorial e
se consubstanciado no art. 176, do velho regimento da Casa, que dizia: “A manifestação dos líderes repre-
sentará o voto de seus liderados”. Jobim discutiu o assunto tanto em palestra proferida na Assembléia
Legislativa do Estado de Minas Gerais, em 14/6/1991 (JOBIM, 1991), quanto num dos relatórios da comis-
são mencionada, intitulado Verificação de votação e voto de liderança. Segundo enuncia, passou-se na prática
a inquirir somente os líderes sobre seus votos. A discordância de algum parlamentar só teria conseqüência
caso se acatasse pedido de verificação de quórum, a qual só podia fazer-se após decurso de uma hora da
verificação anterior. Para impedi-la em matéria de interesse do governo, os líderes solicitavam verificação
para assunto irrelevante e então, aproveitando-se do interstício de uma hora, exigido para que nova verifica-
ção fosse feita, procediam à votação – via voto de liderança – da matéria acordada, de interesse do governo,
imune ao risco. Em 1989, revisto o Regimento Interno, mudou-se o procedimento. A verificação de vota-
ção, segundo o art. 185, tem de ser de votação divergente, e não de qualquer votação. Com isso, cerceou-se
um pouco mais a liberdade dos líderes. A primeira verificação pedida exige apoio de seis centésimos dos
membros da Casa e a votação nominal decorre de o requerimento ter sido formulado e não de ele ter sido
votado. Depois, pode pedir-se nova verificação, no interstício de uma hora, se a requerimento de um décimo
dos deputados ou de líderes que representem esse número. Mas esse requerimento tem de ser votado simbo-
licamente e aí ressurge o poder dos líderes. A partir dessa verificação, a Comissão de Modernização propôs
que, no voto desse requerimento, fosse seguido o mesmo procedimento do primeiro, ou seja, formulado o
requerimento, dar-se-ia a verificação, sem se requerer votação. A proposta não foi, porém, acatada, tendo
permanecido o art. 185 com a redação de 1989.

152
capacidade de interferir na elaboração da lei, Na atual organização da Câmara, as co-
imprimindo-lhe sua própria perspectiva.17 missões permanentes são em número de 20.
A Câmara dos Deputados exibe um di- Na sua composição também vigora o princí-
versificado quadro de comissões permanen- pio da proporcionalidade, podendo seu ta-
tes, que, segundo a caracterização do Regi- manho variar entre 25 e 61 deputados, e a
mento Interno, são as “de caráter técnico- indicação dos parlamentares para integrá-las
legislativo ou especializado integrantes da é feita no início de cada sessão legislativa,
estrutura institucional da Casa, co-partícipes ou seja, anualmente (arts. 25 e 26 do RI).
e agentes do processo legiferante”. Incum- Na indicação dos parlamentares para as
be-lhes comissões, é essencial (e regimental) o papel
dos líderes partidários, que, como antes no-
apreciar os assuntos ou propo- tado, também podem, “a qualquer tempo”,
sições submetidos ao seu exame e substituí-los.
sobre eles deliberar, assim como Diferentemente da House of Representa-
exercer o acompanhamento dos pla- tives do Congresso norte-americano, entre nós
nos e programas governamentais e não se obedece ao critério do “tempo de servi-
a fiscalização orçamentária da ço” (seniority) nas comissões. Não só sua com-
União, no âmbito dos respectivos posição pode variar, a cada dois anos, mas
campos temáticos e áreas de atuação. pode haver remoções de membros pelos lí-
(art. 22, I do RI) deres partidários, em função de votações es-
tratégicas em que o deputado ou deputada
Em princípio, são elas que discutem e possa divergir da linha partidária, como tam-
votam as proposições sujeitas à deliberação bém os cargos de direção têm curta duração
do Plenário que lhes forem distribuídas, po- (um ano ou, mais precisamente, uma sessão
dendo também, em caso de projetos de lei, legislativa), sendo a reeleição vedada na
discuti-los e votá-los sem que estes precisem mesma legislatura. Na Câmara norte-ameri-
depois ir ao Plenário. Nesse caso, estamos cana, se o deputado sênior é reeleito, pode
diante do poder conclusivo das comissões, que perpetuar-se no comando de uma comissão,
não se pode aplicar a certos projetos, a saber, o que, obviamente, lhe dá grande poder. A
os de lei complementar, de código, os oriun- não-vigência do princípio da seniority nas
dos do Senado ou por ele emendados e os em comissões e a rotação anual de suas direções
regime de urgência, entre outros (art. 24).18 têm implicação de monta para o trabalho e

17. Afonso Arinos de Melo Franco, ao discorrer sobre nossa primeira câmara, no Império, observou: “Na
verdade, as comissões, além de serem a forma instintiva de organização de qualquer trabalho em assembléia
numerosa, representam a participação da oposição na direção da Câmara, que não fica entregue sem con-
traste à orientação do governo. No Brasil, até depois da Revolução de 1930, entendia-se que a formação das
comissões era privilégio da maioria. Foi a Constituição de 1934 que estabeleceu a regra, para formação das
comissões, da proporcionalidade entre todas ‘as correntes de opinião’ (ainda não se reconheciam os parti-
dos)” (MELO FRANCO, 1978:36).
18. Veja-se a observação na nota de rodapé n. 4, sobre a diferenciação entre poder terminativo e conclusivo,
estabelecida no Regimento Interno da Câmara dos Deputados.

153
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

importância destas no processo de delibera- gos parlamentares indicados pelos dois maio-
ção efetuado na Câmara. O assunto tem me- res partidos da Casa.19
recido interesse recente da Ciência Política, Quanto às comissões parlamentares de
e alguns dos estudos serão mencionados em inquérito, salta aos olhos a sua relevância para
outro ponto deste capítulo. o desempenho de uma das funções fundamen-
Referência deve ser feita, também, às tais que a teoria atribui ao Poder Legislativo,
comissões temporárias, “criadas para apre- a de fiscalização. Podem elas instaurar-se para
ciar determinado assunto”, que se extinguem “apuração de fato determinado e por prazo
ao término da legislatura, ou antes, quando certo”20 e terão poderes de investigação pró-
alcançado o fim a que se destinam ou expi- prios das autoridades judiciais (art. 35, do RI).21
rado seu prazo de duração (art. 22, II, do
RI). Entre as comissões temporárias, sobres-
4. A tramitação das proposições
saem as “especiais” e as “de inquérito”. As
comissões especiais são as que dão parecer Tramitam pela Câmara dos Deputados
sobre as propostas de emenda à Constitui- proposições variadas. Podem elas ser propos-
ção (PECs) e os projetos de código e tam- tas de emenda à constituição, projetos de leis
bém as proposições que versarem “matéria complementares e ordinárias, medidas pro-
de competência de mais de três comissões visórias, leis delegadas, resoluções, que po-
que devam pronunciar-se quanto ao mérito dem originar-se fora da Câmara – vindas do
por iniciativa do presidente da Câmara, ou Senado, dos outros poderes, das assembléias
a requerimento de líder ou de presidente de legislativas, ou ser de iniciativa dos cidadãos
comissão interessada”. Observe-se que a cria- – mas também podem surgir, algumas delas,
ção de comissões especiais para as proposi- no seu interior, patrocinadas individual ou
ções que caem em mais de três jurisdições coletivamente pelos Deputados, comissões
fica à discrição do presidente da Câmara, ou ou Mesa. A Constituição Federal dispõe que
dos líderes e presidentes de comissão. Não a discussão e votação dos projetos de lei de
há norma explícita no Regimento Interno iniciativa do presidente da República, do Su-
sobre a designação de sua Presidência e premo Tribunal Federal e dos Tribunais Su-
Relatoria. A norma não escrita seguida nos periores terão início na Câmara dos Depu-
últimos anos é a de se revezarem nesses car- tados (art. 64 da CF).

19. Não é, portanto, difícil depreender a conveniência política de constituir esse tipo de comissão quando a
matéria “de competência de mais de três comissões” seja de interesse político desses partidos, sobretudo
quando formem uma aliança, por exemplo, como “base governista”.
20. Jurisprudência do STF estabelece que uma comissão parlamentar de inquérito possa ter o prazo de funcio-
namento estendido por toda uma legislatura (Cf. MORAES, 2003:382).
21. O § 1º do art. 35 define “fato determinado” como “o acontecimento de relevante interesse para a vida
pública e a ordem constitucional, legal, econômica e social do país, que estiver devidamente caracterizado
no requerimento de constituição da comissão”. Essa definição procura inibir o uso da CPI como mera arma
da luta política entre partidos da situação e da oposição, mediante a criação de CPIs de finalidades vagamen-
te caracterizadas, mas cuja criação pode ter impacto na opinião pública e nos meios de comunicação de
massa. Para uma avaliação matizada da significação política das CPIs, ponderando seus aspectos positivos e
seus riscos na democracia constitucional, veja-se Reis (2006).

154
O art. 53 do Regimento Interno estipula iniciativa do presidente da República (art.
que as proposições distribuídas às comissões 151, l, do RI), residindo aí um dos instru-
para discussão e votação sejam apreciadas mentos básicos nas mãos do Executivo para
pelas comissões de mérito a que a matéria fazer prevalecer a sua agenda no processo
estiver afeta, pela Comissão de Finanças e legislativo.
Tributação, para exame dos aspectos finan- A tramitação pode tornar-se urgente, ade-
ceiro e orçamentário públicos quanto à sua mais, em função de requerimento aprovado
compatibilidade ou adequação com o plano nesse sentido. Regimentalmente, urgência
plurianual, a lei de diretrizes orçamentárias implica dispensa de exigências, interstícios ou
e o orçamento anual, e para o exame de algumas formalidades regimentais. Um caso
mérito, quando for o caso22 e pela Comissão extremo de urgência é a inclusão automática
de Constituição e Justiça e de Cidadania, para na Ordem do Dia para discussão e votação
o exame dos aspectos de constitucionalidade, imediata, ainda que iniciada a sessão em que
legalidade, juridicidade, regimentalidade e de for apresentada, de proposição que verse so-
técnica legislativa e, juntamente com as co- bre matéria “de relevante e inadiável inte-
missões técnicas, para pronunciar-se sobre o resse nacional”. Para que tal aconteça, deve
seu mérito, quando for o caso, como, por haver requerimento da maioria absoluta da
exemplo, em matéria de direito eleitoral.23 composição da Câmara ou de líderes que
Boa parte das proposições transita pelo representem esse número, aprovado pela
Plenário em turno único, não, porém, as pro- maioria absoluta dos deputados. Trata-se da
postas de emenda à Constituição, os proje- tramitação informalmente conhecida como
tos de lei complementar e os de resolução,24 “urgência urgentíssima”.
devendo haver, quando há mais de um tur- Sobre o processo de votação, chame-se a
no, discussão e votação em cada um deles. atenção, primeiramente, para poder ser ela
Quanto à natureza de sua tramitação, há ostensiva – pelo processo simbólico ou no-
proposições cujo conteúdo, regimentalmen- minal – ou secreta. O processo simbólico (os
te especificado, pede urgência, outros, prio- deputados a favor permanecem sentados) é
ridade (art. 151 do RI). Entre as razões para o mais usado na votação das proposições em
urgência, especifica o Regimento Interno a geral. Havendo dúvida sobre seu resultado,
solicitação desse regime nas proposições de pode formular-se pedido de verificação de

22. Art. 53, II, do Regimento Interno.


23. Art. 53, I, II e III do Regimento Interno. Os exames de ambas as comissões podem levar ao que, no Regimen-
to Interno da Câmara, é o parecer terminativo, propriamente dito, quanto à adequação financeira ou orça-
mentária da proposição e sua constitucionalidade ou juridicidade. Anteriormente, cabia a essas duas comis-
sões o exame vestibular da matéria quanto aos mencionados aspectos. A presente forma de tramitação foi
estabelecida pela Resolução nº 10/91, resultado de proposta da comissão parlamentar destinada a oferecer à
Mesa estudos e sugestões objetivando o aperfeiçoamento dos trabalhos administrativos e legislativos da Câ-
mara, conhecida também como Comissão de Modernização, já antes por nós mencionada (nota de rodapé
n. 16), cujo coordenador foi o deputado Miro Teixeira e o relator o deputado Nelson Jobim. Essa comissão
funcionou durante alguns meses no ano de 1991.
24. No caso dos projetos de resolução, muitas vezes na prática parlamentar se dispensa o segundo turno.

155
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

votação e, com o apoio de seis centésimos Quanto às votações secretas, há debate


dos membros da Casa ou líderes que repre- sobre se devem ou não ser mantidas. Se há
sentem esse número, votar-se-á nominalmen- os que opinam protegerem elas a liberdade
te. Novo pedido de verificação de votação de decisão do parlamentar e o voto de acor-
não poderá fazer-se antes de decorrida uma do com sua consciência, no exercício de um
hora da proclamação do resultado, exceto mandato livre, não sujeito a pressões, ou-
por deliberação do Plenário “a requerimen- tros as julgam inaceitáveis. Seriam nocivas à
to de um décimo dos deputados, ou de líde- disciplina partidária e reforçariam o espírito
res que representem esse número”. O pedi- de corpo dos congressistas na votação de
do de verificação de votação é usado estra- matérias como a suspensão de imunidades
tegicamente pelos partidos em plenário. O de parlamentares. No parlamento italiano,
pedido feito para uma votação acessória per- as votações secretas retiravam dos partidos
mite avaliar se há quórum e condições de políticos um importante meio de obter vo-
ganhar uma votação de interesse que virá a tações disciplinadas de suas bancadas e fo-
seguir. Em outros casos, permite-se também ram abolidas nos anos 80.26
questionar um resultado de votação simbó-
lica sobre matéria controversa.25
5. A estrutura e o funcionamento
Além da hipótese já enunciada, o pro- da Casa, e seu papel no sistema
cesso nominal também se aplica quando exi- de governo, vistos pela
gido quórum especial de votação. Caso, por Ciência Política
exemplo, da votação das propostas de emen- Em livro publicado em 1974, o cien-
da à Constituição e dos projetos de leis com- tista político norte-americano David
plementares. Mayhew formulou hipótese de que o com-
Como se pode ver, o processo de vota- portamento parlamentar dos congressistas
ção, se nominal ou simbólico, diz muito so- nos Estados Unidos tem, como primeiro
bre a natureza conflituosa ou não das pro- motor, o desígnio do deputado ou sena-
posições em votação. As matérias politica- dor de disputar um novo mandato. Para
mente importantes costumam ir à votação essa disputa, a organização do Congresso
nominal. Por ficarem registradas nas listagens serviria muito bem às necessidades dos par-
em que constam os nomes dos deputados lamentares. Mayhew julgava difícil melho-
votantes e seus votos, as votações nominais rar o arranjo existente, mesmo se um grupo
têm-se mostrado como útil instrumento para de planejadores se sentasse e procurasse de-
as análises empíricas da Ciência Política, em senhar duas assembléias nacionais norte-ame-
particular por permitirem ver como se com- ricanas para, a cada dois anos, servir às ne-
portam os partidos políticos no Legislativo. cessidades eleitorais de seus componentes.27
Examinaremos algumas dessas análises pos- Na interpretação de Mayhew, a orga-
teriormente no texto. nização descentralizada da House of

25. Vejam-se as observações na nota de rodapé n. 16.


26. A respeito, vejam-se as considerações de Reis (2006).
27. MAYHEW, 1974.

156
Representatives, com comissões fortes, em três famílias de interpretações, desenvolvidas
cuja estrutura de poder o princípio da sobretudo na literatura norte-americana so-
seniority impera, dá aos deputados, cujo bre o assunto, começando com primeira, à
mandato se conquista em distritos, pelo sis- Mayhew, que inaugura a chamada “teoria
tema de maiorias relativas (conhecido pela distributiva”. Os estudos brasileiros sobre as
expressão first past the post), plataformas de comissões em nosso Legislativo ligam-se, ex-
onde se tornam visíveis perante o eleitora- plicitamente ou não, a essas famílias teóricas.
do. Proporciona-lhes, também, um lugar No centro da teoria distributiva, vêem-
adequado para a troca de favores (o se as legislaturas como organizações horizon-
logrolling) com os colegas e os induz à espe- tais, em que se referendam as decisões pela
cialização, de tal modo que cada um possa regra da maioria. Sua estrutura colegiada
aspirar a ter pelo menos uma faixa da política oferece riscos, porém, porque as diferentes
pública em que seja visto como o especialista preferências de seus membros com relação
responsável pelo que sobre ela se decide. às políticas em pauta podem ser difíceis de
Os próprios partidos seriam, na visão de combinar em maiorias coerentes ao longo
Mayhew, adaptados às necessidades eleito- das várias políticas e opções. As decisões po-
rais dos parlamentares, por exemplo, ao não líticas no âmbito do Legislativo se tornam
se arregimentarem como organizações ideo- contestáveis, gera-se instabilidade e dificul-
lógicas no trabalho parlamentar, presas a ta-se a eficiência do processo legislativo.
princípios que implicariam, segundo a lógi- Para a diminuição do risco de caos e ins-
ca majoritária de ocupação dos cargos, pri- tabilidade, cria-se o sistema de comissões.
varem os parlamentares da minoria dos meios Uma linha de argumentação sustenta que,
de satisfazer o próprio eleitorado para ten- com referências múltiplas em plenário, é pre-
tar a reeleição. E o sistema da seniority, de ferível criar comissões com jurisdição espe-
qualquer maneira, protege os deputados con- cífica sobre assuntos definidos, de modo que
tra os partidos, caso estes procurem obter as demandas sobre dimensões particulares de
maior disciplina. políticas tenham nelas foros específicos de
A hipótese de Mayhew, centrada na bus- negociação e decisão. Esses foros – as co-
ca da reeleição pelo deputado para explicar a missões – atenderiam interesses particulares:
estrutura e funcionamento do Legislativo, é a regra de reciprocidade entre parlamenta-
conhecida na literatura como a “conexão elei- res demandaria que os acordos alcançados
toral”, expressão que, aliás, faz parte do títu- nas comissões fossem respeitados em plená-
lo de seu livro. A partir de sua publicação, a rio. Por conseguinte, caberia a este referen-
obra deflagrou copiosa produção, que ora lhe dar as decisões das comissões de modo que
corroborou, ora lhe contestou a interpreta- as preferências específicas de seus membros
ção, sobretudo no que respeita ao cerne des- fossem atendidas. Essa é a visão do papel das
ta, isto é, a lógica do sistema de comissões. comissões no processo legislativo própria da
A seguir, apresentamos sinteticamente teoria distributiva das comissões.28

28. A aplicabilidade da teoria distributiva ao caso brasileiro mereceu avaliação de Lemos (2001). Inspiram-se
nela, entre outros, dois brasilianistas, Barry Ames e David Samuels. Ames, em sua investigação do processo
orçamentário, vê a comissão de orçamento como o locus de negociações de verbas para o atendimento de

157
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

Não obstante, as teorias distributivas a eficiência do Legislativo e beneficiar-se-iam


baseadas na reciprocidade em plenário não as carreiras políticas dos parlamentares.29
parecem suficientes para explicar a estrutu- No entanto, a eficiência é condicionada
ra organizacional do Congresso, uma vez que pelos interesses políticos em jogo. Além dis-
as preferências particulares aprovadas em so, a eficiência não elimina os conflitos
comissões podem estar em total descompasso distributivos, uma vez que as políticas bene-
com a maioria do plenário e, nesse caso, a ficiam os grupos políticos de maneira desi-
norma de reciprocidade não seria suficiente gual. As teorias informacionais não eliminam
para garantir que se honrem acordos as possibilidades de discrepância de interes-
distributivos setoriais. De fato, as comissões se entre o plenário e as decisões das comis-
são geralmente dotadas de poderes de sele- sões, o que, de novo, sujeitaria o processo
ção e agenda, não meramente explicáveis por legislativo à ineficiência de natureza similar
demandas distributivas. Por exemplo, no caso aos processos de caráter distributivo.30
da comissão orçamentária, a capacidade de Ora, o plenário, nos legislativos democrá-
o Congresso redimensionar o orçamento é ticos, se divide entre maioria governamental
extremamente reduzida pela proibição de e minoria oposicionista. Em outros termos, o
criação de despesas adicionais sem a defini- plenário está dividido por clivagens partidá-
ção dos recursos para prover aos novos gas- rias, com interesse político no funcionamen-
tos, restringindo-se o espaço de negociações to das comissões. Nesta perspectiva, as co-
distributivas. Além disso, para surpresa dos missões trabalham por delegação dos parti-
“distributivistas”, no Congresso norte-ame- dos políticos. As questões informacionais e
ricano as comissões tendem a ser bastante distributivas passam pelo crivo das lideran-
severas na aprovação de projetos individuais ças partidárias, que delegam às comissões a
dos parlamentares. autoridade de deliberar sobre as matérias cons-
Um enfoque alternativo ao distributivo tantes da agenda política congressual.31
acentua o caráter informacional do funcio- Que poderíamos dizer da nossa Câmara
namento das comissões. As comissões se- dos Deputados? Como se articulam sua es-
riam criadas pelos parlamentares para trutura e modus operandi com o sistema
aumentar o grau de eficiência do processo político brasileiro? Funcionaria, também,
legislativo. Quer peneirando os projetos in- uma “conexão eleitoral” similar à norte-
dividuais, quer valendo-se de “poderes de americana ou atuariam com mais força ou-
agenda” para a apresentação de projetos em tros determinantes?
plenário, as comissões cumpririam um papel A “conexão eleitoral” e a visão distributiva
informacional, através do escrutínio dos pro- como a chave explicativa não apenas da es-
jetos apresentados. Com isso, aumentar-se-ia trutura e funcionamento das comissões, mas

reivindicações dos redutos dos parlamentares, com fins eleitorais. David Samuels também enfatiza como, no
processo orçamentário, as bancadas legislativas dos estados usam de reciprocidade suprapartidária para a
aprovação de verbas estaduais no orçamento (AMES, 1986; SAMUELS, 2003a).
29. Para uma discussão abrangente de teorias distributivas e informacionais, ver Shepsle e Weingast (1997).
30. EPSTEIN e O’HALLORAN, 1999.
31. COX e McCUBBINS, 1993.

158
também do próprio comportamento do Po- custos difusos para a sociedade, mas benefí-
der Legislativo em seu conjunto, têm sido cios concretos endereçados a restritos redu-
contestadas entre nós, em estudos publica- tos eleitorais. Do funcionamento eleitoral sob
dos a partir da última década do século pas- essas normas derivariam frouxa organização
sado. Neles, dá-se crescente atenção às es- dos partidos e descentralização da estrutura
truturas e normas internas desse poder, an- decisória no interior do Congresso, por
tes negligenciadas nas explicações, como exemplo, através de divisão do trabalho em
indutoras do comportamento parlamentar. comissões com poder sobre fatias da políti-
Passaram elas, agora, a considerar-se não ca pública sob sua jurisdição.
como veículo neutro, mas sim em seu peso O determinismo da “conexão eleitoral”
próprio e influência específica sobre as ati- sobre os partidos e a legislatura não tem
vidades e deliberações no bojo da legislatura, sido apenas interpretação de textos acadê-
já não vistas como simples reflexo das ope- micos. É também freqüentemente subscri-
rações do sistema eleitoral. Essas estruturas to na visão dos próprios políticos. Nos inú-
e normas seriam, pois, variáveis independen- meros projetos que, desde a República de
tes ou intervenientes no processo de delibe- 46, se têm apresentado no Legislativo para
ração congressual.32 reformular o sistema eleitoral brasileiro, ja-
Para os trabalhos orientados por essa mais se deixa de fazer menção aos efeitos
nova perspectiva, as características do siste- deletérios do sistema vigente sobre os parti-
ma eleitoral brasileiro – sobretudo o voto dos e sobre o comportamento dos candida-
personalizado em lista aberta, inerente a tos na campanha e, depois de eleitos, no
nosso sistema proporcional – não têm a for- âmbito da Câmara.33
ça que antes se lhes atribuía para explicar, De acordo, porém, com a nova interpre-
entre outros fatos, as votações no Congres- tação, a organização formal e informal, a hie-
so e a disciplina supostamente baixa dos par- rarquia de cargos e o poder desigualmente
tidos políticos parlamentares. distribuído entre os representantes, no inte-
Na interpretação com base na “conexão rior do Legislativo, permitiriam, em grande
eleitoral”, as normas eleitorais induziriam o medida, fazer tabula rasa das determinações
individualismo dos parlamentares, a busca vindas do sistema eleitoral. Haveria a consi-
de políticas particularizadas, clientelistas, de derar, na Câmara dos Deputados – o Senado

32. Os principais propugnadores do novo enfoque têm sido Argelina C. Figueiredo e Fernando Limongi, em
uma série de artigos, compilados em Figueiredo e Limongi (1999) e textos posteriores, entre os quais Figueiredo
e Limongi (2005).
33. À guisa de ilustração, vejam-se as caracterizações desses efeitos por dois eminentes políticos do século passa-
do, Milton Campos e Gustavo Capanema. Milton Campos (1960), ao justificar projeto de sua autoria desti-
nado a mudar o sistema eleitoral: “No regime eleitoral vigente, vem-se tornando insuportável a emulação
entre os candidatos do mesmo partido. Os pleitos são espetáculo de desarmonia entre correligionários,
comprometendo a coesão partidária”; Gustavo Capanema (1969), ao propugnar por um sistema eleitoral
misto, inspirado no alemão: “No vigente sistema eleitoral, os candidatos a deputado federal ou a deputado
estadual se digladiam muito mais com os próprios correligionários do que com os adversários. E se trata de
combate não raro secreto e insidioso. O resultado é a discórdia constante, com dano essencial à unidade
partidária”. Veja-se, para os projetos de Milton Campos e Capanema, bem como numerosos outros, Cavalcanti
et al (1975).

159
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

ainda é pouco estudado34 –, a força da Mesa medidas provisórias com força de lei e a fa-
Diretora e do Colégio de Líderes, bem como culdade de o Executivo solicitar, unilateral-
a razoável disciplina das bancadas partidá- mente, urgência para projetos de lei de sua
rias, que seguem a orientação de seus líde- autoria.35 Ainda que as medidas provisórias
res, na neutralização dos impulsos centrífu- agora estejam submetidas à nova sistemática,
gos provindos da esfera eleitoral. limitativa quanto aos temas e quanto a seu
Mais importante ainda, Figueiredo e regime de tramitação, inclusive com a proibi-
Limongi, os principais proponentes dessa in- ção de serem reeditadas mais de uma vez,
terpretação, sustentam que as estruturas da depois da Emenda Constitucional nº 32/2001,
Câmara atuariam conjugadas com o uso dos ainda continuam sendo poderoso instrumen-
“poderes de agenda” pelo Poder Executivo, to do Poder Executivo. Por exemplo, não ha-
no sentido de permitir a cooperação vendo deliberação sobre elas no prazo de 45
congressual com o projeto de governo. Quan- dias de sua edição, entram automaticamente
do primeiramente citamos esses autores no em regime de urgência e paralisam a
presente texto, foi com sua observação de tramitação de todas as demais matérias até a
como, apesar da devolução ao Legislativo, pela Casa legislativa deliberar sobre elas. Trata-se
Constituição de 1988, de muitos dos poderes do “trancamento de pauta”, com o ônus
que ele detinha na experiência democrática decisório sobre o Legislativo. Também no caso
anterior, a Carta manteve, também, a maio- dos projetos de lei de autoria do Executivo
ria dos poderes legislativos do Executivo ad- para os quais se peça urgência, a não-delibe-
quiridos durante o período autoritário. Entre ração sobre eles, igualmente no prazo de 45
eles, o poder de decreto presidencial, via dias, leva ao “trancamento de pauta”.36

34. Um trabalho pioneiro sobre o Senado e suas funções, dentro do bicameralismo brasileiro, foi realizado por
Backes (1998).
35. Na versão deste capítulo, na primeira edição do livro, mencionávamos, como privativa do presidente da
República, com base no art. 61, § 1º, II, “b”, da Constituição Federal, a iniciativa de leis que versem sobre
matérias tributárias e orçamentárias. Foi, porém, leitura equivocada do dispositivo. A iniciativa privativa do
presidente da República para legislar sobre matérias orçamentária e tributária, a que ele se refere, restringe-
se à administração dos Territórios. A iniciativa de leis complementares ou ordinárias em matéria tributária é
da competência comum do presidente da República e de qualquer membro ou comissão da Câmara dos
Deputados, Senado Federal ou Congresso Nacional. No caso de matéria orçamentária, o disposto no art.
165 do texto constitucional é serem o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual
estabelecidos por lei de iniciativa do Poder Executivo. Agradeço aos consultores legislativos da Câmara dos
Deputados Eduardo Fernández, Marcos Thadeu Napoleão de Souza, Marco Fábio da Fonseca Mourão e
Murilo Rodrigues Soares a elucidação deste ponto.
36. A nova regra sobre as MPs, “ao invés de inibir, produziu um número maior de edições, tanto no final do
governo FHC, como no atual governo Lula”, assinala Fabiano Santos. Teve também outro efeito. As reedições,
anteriormente sem limite, permitiam uma renegociação contínua do teor da medida provisória, em função
de seus efeitos na realidade, como apontado pelos estudiosos (FIGUEIREDO, 2000; AMORIM NETO e
TAFNER, 2002). Agora, essa lei maleável – aspecto das MPs que os praticantes do direito mais aborrecem,
por ferir a segurança jurídica, mas que seduz os tecnocratas – foi coarctada, e número significativo de MPs
tem sofrido rejeição. Em suma, pondera Santos, “a eliminação da possibilidade de reedição, assim como a
obrigatoriedade da manifestação do plenário, traz à tona a possibilidade de conflito, aberto e público”
(SANTOS, 2006:229). Abranches vê nessa conseqüência da sistemática sobre as MPs implantada em 2001 –
o trancamento de pauta – um instrumento de que se vale o Executivo para evitar a aprovação de iniciativas
do Legislativo que não lhe interessam. Para ele, recurso usado “nos momentos de fraqueza presidencial
decorrentes de problemas na gestão de sua coalizão parlamentar” (ABRANCHES, 2007:15).

160
Conjugam-se essas faculdades com a or- das matérias de iniciativa do Executivo era
ganização interna da Casa, mais suscetível à três vezes mais rápida do que a de matérias
força do Executivo do que a que existiria, caso de iniciativa do Legislativo.37
vigorasse uma conexão eleitoral à Mayhew e
seguidores. Na visão dos dois autores, a or-
ganização é centralizada e priva as comissões 6. Os partidos políticos na Câmara
de substancial parcela de poder. O processo
Uma outra vertente da visão exposta na
legislativo, dirigido e controlado, como du-
seção anterior diz respeito ao comportamen-
rante o período militar, por um número res-
trito de parlamentares, os membros do Colé- to dos partidos políticos no âmbito parla-
gio de Líderes, converge, segundo eles, quase mentar. Figueiredo e Limongi e os que se-
que exclusivamente para o plenário, em de- guiram a trilha interpretativa por eles aber-
trimento do trabalho das comissões. ta não vêem nosso sistema eleitoral levar,
Além de influírem na preparação da pau- necessariamente, a pouca disciplina partidá-
ta mensal de votações, os líderes podem, ria nas votações congressuais e, portanto, no
também, solicitar mudança no regime de que toca ao apoio parlamentar ao governo,
tramitação de matérias, o que implica serem a insegurança e imprevisibilidade.
elas retiradas das comissões e passadas ao Mediante o exame das votações nominais
plenário. no período 1989-1994, depararam os auto-
O funcionamento desses dispositivos res com índices de disciplina partidária bem
traduzir-se-ia na produção da Casa. As leis mais altos do que a opinião corrente levaria a
originárias de medidas provisórias e de esperar. Ou seja, substanciais maiorias nos
projetos sobre matéria orçamentária res- vários partidos têm o mesmo voto, em linha
pondiam por 60% do total de leis no perío- com a indicação da liderança. Os índices Rice
do pesquisado por Figueiredo e Limongi médios obtidos no período foram os seguin-
(1989-1994). Nas matérias de iniciativa tan- tes: PDS, 75,7, PFL, 78,4, PTB, 70,7, PMDB,
to de um quanto de outro Poder, o Executi- 73,7, PSDB, 73,0, PDT, 81,4 e PT, 95,0.38
vo respondia por 85% das leis sancionadas Haveria, portanto, mais partidarismo na Câ-
no período pós-Constituinte. A tramitação mara do que se acredita.39

37. Vejam-se Figueiredo e Limongi (1999, cap. 2), em especial a seção “O poder institucional do Executivo”, p.48-
72. Pereira e Mueller (2000) apresentam dados para um período mais recente. “Do total de 805 propostas que
tramitaram no Congresso brasileiro entre 1995 e 1998, 648 (80,49%) foram iniciadas pelo Executivo, 141
(17,51%) foram iniciadas pelo Legislativo e apenas 16 (1,98%) pelo Judiciário. O tempo médio para uma
proposta do Executivo ser sancionada pelo Congresso foi de 183 dias; no caso das propostas iniciadas pelo
Legislativo e pelo Judiciário, o prazo estendeu-se para 1.194 e 550 dias, respectivamente” (p.47).
38. O “índice de Rice” é obtido subtraindo-se, do percentual dos que votaram de acordo com a indicação, o
percentual dos que votaram contra. Assim, um valor 70 significa terem votado a favor 85% e contra 15%.
Numa votação dividida entre 50%/50%, o valor seria zero, e 100% a favor e 0% contra daria o índice de 100.
39. No enunciado dos próprios autores: “Os partidos políticos na Câmara não são peças de ficção. A filiação
partidária nos diz muito a respeito do voto provável do parlamentar. As votações costumam dividir o plená-
rio de acordo com padrões ideológicos clássicos: há uma direita, um centro e uma esquerda. Além disso, há
uma centro-direita e uma centro-esquerda. Dito de outra maneira: o que temos é uma alta fragmentação
nominal a esconder uma baixa fragmentação real” (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999:93).

161
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

Que fator explicaria essa disciplina par- Por que essa variação? Nicolau sugere
tidária que contraria as previsões da “cone- estar ela associada à vida organizacional dos
xão eleitoral” e faz, nessa interpretação, com partidos: grau de conflito doutrinário, pre-
que a “governabilidade” não seja ameaçada sença de facções antigovernistas e padrão de
por um Congresso errático ou recalcitrante? punição para os parlamentares que votam
Para os autores, as inferências sobre com- contra a indicação do líder do partido. O
portamento parlamentar, a partir do siste- autor chama também a atenção para o fato
ma eleitoral de lista aberta e dos fracos ins- de que, entre os períodos analisados por
trumentos partidários de controle dos can- Figueiredo e Limongi e o de sua pesquisa,
didatos e eleitos, subestimam os mecanismos houve mudança nos índices de disciplina,
compensatórios no âmbito congressual. alguns partidos tornando-se mais, outros
Mediante centralização de estrutura e pro- menos disciplinados. Analisa, também, o “ín-
cedimentos, dá-se enorme força aos líderes dice de apoio ao governo”, que revela, nos
partidários onde quer que se desdobre o tra- partidos da base governista, haver um gru-
balho parlamentar. Não é boa política para po dos que não apóiam proposições de inte-
os deputados se indisporem com eles, pois resse do governo e votam contra elas, abs-
podem tanto indicá-los para as comissões têm-se ou não comparecem às votações.
permanentes, especiais e mistas, como tam- Quanto do não-apoio ao governo decor-
bém delas removê-los. Ademais, o próprio reu das ausências e quanto dos votos contrá-
“poder de agenda” do presidente, sua capa- rios? Nicolau depreende que, apesar de ter
cidade de determinar a pauta de decisões contado com uma base nominal de 396 de-
parlamentares, ajuda-o a extrair aquiescên- putados, com as ausências e votos contrári-
cia congressual a seus projetos por meio de os ela passou, na mediana, para 318 votos, o
voto disciplinado. que gerou insegurança e “a necessidade de
Jairo Marconi Nicolau estende a análise contar, em muitos casos, com o apoio dos
da disciplina partidária para o primeiro pe- pequenos partidos de direita que não parti-
ríodo governamental de Fernando Henrique cipavam formalmente do governo”. Ao
Cardoso (1995-1998) e também encontra conectar duas dimensões tratadas separada-
altos índices de disciplina, mas chama a aten- mente pela literatura, a disciplina dos par-
ção para a sua variação entre os partidos. tidos e o apoio dos partidos ao governo,
Na oposição, quase próximos de 100, esta- conclui ser necessário contar os números
vam os índices do PT e do PCdoB. O PDT e de deputados da base governista na Câmara
o PSB eram um pouco menos disciplinados, Baixa com cuidado quando, como no Brasil,
com índice em torno de 90. Na base gover- a disciplina varia, havendo partidos em que
namental, esse era também o índice de PFL, ela é baixa e em que pode haver alta taxa de
PSDB e PTB. Um outro grupo apresentava ausência nas votações nominais.40
disciplina bem inferior, com índices ao re- Comparações entre os períodos da Re-
dor de 80, o PPR/PPB, o PMDB e o PL. pública de 46 e o pós-Constituinte de 88

40. NICOLAU, 2000.

162
proporcionam um importante “quase-expe- Carlos Pereira também incorpora a
rimento”, para corroborar a explicação an- patronagem à interpretação da disciplina
terior. Os dados sobre os dois momentos de partidária. Concordando com o diagnóstico
nosso presidencialismo democrático expõem, de Figueiredo e Limongi, examina, porém,
de fato, significativos contrastes no compor- mais diretamente, o modo como o Executi-
tamento partidário no Legislativo. As vota- vo pode obter apoio nas votações de seu in-
ções nominais disciplinadas dos partidos, por teresse. Sua hipótese é a de ser um fator es-
exemplo, são muito mais freqüentes no pe- tratégico a liberação de recursos para a exe-
ríodo pós-88, a despeito de a legislação elei- cução das emendas orçamentárias destina-
toral permanecer basicamente a mesma nos das a levar obras e serviços às bases eleito-
dois períodos. rais dos deputados, vital ao seu esforço de
Hoje, os estímulos da legislação eleito- reeleger-se. Dessa forma, fechar-se-ia o cír-
ral pareceriam contrabalançados pelos no- culo: o sistema eleitoral enfraqueceria os
vos poderes à disposição do presidente e pela partidos no plano eleitoral, mas os poderes
concentração de competências nas lideran- presidenciais e a centralização de decisões
ças partidárias congressuais. Conjugados, os no Legislativo os reforçariam no Congres-
dois fatores produzem índices de disciplina so; ao votarem disciplinadamente, os parla-
partidária bem maiores do que os do perío- mentares credenciam-se para levar benefíci-
do 1946-1964.41 os individualizados ao eleitorado e esses be-
Outros autores chamam também a aten- nefícios lhes valem a reeleição sem que o
ção para um fator em muitas ocasiões deci- partido seja necessário nessa etapa. O Exe-
sivo para a obtenção da disciplina partidária cutivo usa dessa competência estrategicamen-
por parte do governo, ou seja, o poder de te, para premiar os parlamentares fiéis.43
patronagem. Scott Mainwaring, que não Nesse particular, todavia, persiste diver-
descarta a força do sistema eleitoral, com a gência interpretativa. Para Figueiredo e
lista aberta e a candidatura nata, na confor- Limongi, uma demonstração da força parti-
mação de partidos pouco institucionalizados, dária no âmbito do Legislativo se dá tam-
admite, contudo, que os líderes partidários bém quando do processamento da proposta
da base governista podem conseguir apoio orçamentária, precisamente o contexto em
dos membros de seus partidos pelo uso de que os que esposam a tese da “conexão elei-
patronagem e clientelismo. Entre outros efei- toral” a veriam pujante e capaz de induzir
tos, a prática acaba custando caro à econo- um comportamento individualista, traduzi-
mia do país e também à legitimidade do sis- do na apresentação das emendas pelos par-
tema político.42 lamentares.

41. FIGUEIREDO e LIMONGI, 2002; SANTOS, 1997.


42. MAINWARING, 1999. Sobre a candidatura nata, trata-se do direito de os parlamentares de um partido
terem assegurado o registro de sua candidatura por esse partido no pleito destinado a compor a legislatura
seguinte à em curso. Foi introduzido pelo art. 4º da Lei 6.978, de 1982, e sucessivamente reiterado pela Lei
6.055/74, art.4, pela Lei 8.713/93, art.8, §.2, e pela Lei 9.504/97, art.8, § 1º. Sua eficácia jurídica foi
suspensa, entretanto, em 2002, por Acórdão do Supremo Tribunal Federal (TAVARES, 2006).
43. PEREIRA, s.d. Ver, também, Pereira e Mueller (2002).

163
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

Essas emendas existem, é verdade. Mas, das individuais, inclusive na política fiscal.
sustentam Figueiredo e Limongi, elas não Além de, no montante, terem elas pouco peso
necessariamente entram em choque com os relativo, não necessariamente se chocam com
desígnios governamentais, articulados pela a agenda de governo: “A alocação de recur-
maioria partidária de apoio no Legislativo. sos feita pelos legisladores é complementar, e
A hipótese da conexão eleitoral não pode não contrária à do Executivo” (FIGUEIREDO
ignorar, segundo eles argúem, que “a prin- e LIMONGI, 2005:767).44
cipal linha de conflito do sistema político A patronagem também desempenha pa-
brasileiro não é dada pelas relações entre os pel central na explicação que Fabiano San-
poderes, mas sim pelas clivagens político- tos propõe da diferença de coesão partidária
partidárias”. Essas clivagens significam ha- entre os períodos de 1946-1964 e o pós-
ver, no Congresso, uma coalizão de apoio Constituinte na Câmara dos Deputados. Na
ao governo e outra de oposição. A coalizão República de 46, foram bastante baixos os
governista apóia a centralização do proces- índices de coesão (ou disciplina) dos parti-
so orçamentário. Haveria, na prática, uma dos, em contraste com o período recente.
delegação de poder dos parlamentares às li- Concordando com Figueiredo e Limongi,
deranças partidárias, representadas pelo Santos identifica, na ampliação do poder de
relator geral e seus colaboradores diretos, agenda presidencial na Nova República, a
afinados com o Executivo, os quais assegu- grande diferença institucional entre os dois
rariam que a peça orçamentária final atenda períodos. Esse poder pode afetar positiva-
à política macroeconômica. Em outras pala- mente a tendência majoritária na Câmara em
vras, a delegação aos partidos reduziria de favor das pretensões presidenciais. Ou seja,
muito a significação e o impacto das emen- os partidos de apoio ao governo tendem a

44. Pereira e Mueller não discordam quanto a ser pequeno o impacto macroeconômico das emendas parlamen-
tares. Afirmam eles, na conclusão de texto em que examinam a hipótese de incorrerem os governos de
coalizão em custos mais altos do que os apoiados por partidos majoritários, que “em vez de acarretar gran-
des déficits públicos, o governo de presidencialismo de coalizão no Brasil propicia condições para que o
Executivo obtenha, a um baixo custo, alto grau de governabilidade”. As emendas parlamentares seriam
justamente o instrumento para lograr a preço relativamente “barato” para o governo manter disciplinada
sua coalizão no Congresso (PEREIRA e MUELLER, 2002:295). Observe-se, contudo, que, se o valor das
emendas individuais significa pouco em termos macroeconômicos, para o parlamentar com votação em
reduto geograficamente circunscrito (AMES, 2001; CARVALHO, 2003) pode ter grande importância, como
evidência de serviço. Ademais, o recente (2006) escândalo político intitulado “das sanguessugas” mostra
serem as emendas campo propício a atividades ilícitas. Para uma análise pioneira da política na elaboração
do orçamento, ver Castro Santos, Machado e Rocha (1996). O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,
em valioso depoimento recentemente publicado em livro, chama, contudo, a atenção para o efeito nega-
tivo sobre a legitimidade do governo da sistemática orçamentária no tocante às emendas. Assim discorre
sobre os recursos objeto dessas emendas ao orçamento: “Por pequenos que sejam, entretanto (e nem
sempre são tão pequenos assim), infectam a percepção do uso de recursos públicos. Toda liberação de
verbas proveniente de emendas parlamentares é noticiada com alarido, como se tudo fosse clientelismo e
todo clientelismo, em si mesmo, corrupção. O resultado é que os ministros ou secretários incumbidos da
relação com os parlamentares acabam por sofrer considerável desgaste, na medida em que não cedem às
pressões. E quando cedem, ainda que nos limites da lei e do moralmente aceitável, vêem-se associados às
piores práticas” (CARDOSO, 2006:278). No capítulo “O Sistema de Governo do Brasil” comentamos
alguns dos pontos tratados nesse livro.

164
votar disciplinadamente em favor de suas poder das comissões de controlar a agenda
propostas. No período anterior, a falta des- legislativa, apesar das oportunidades maiores
se poder dava maior influência legislativa aos de participação que elas poderiam oferecer.46
deputados e levava a menor cooperação com Para ele, entre a República de 46 e a Nova
o presidente, obrigado, pois, a buscar apoio República, o Brasil passou do que chama “pre-
– via patronagem – também em partidos de sidencialismo faccioso” para o “sistema
oposição. presidencialista de coalizão racionalizado”.47
Quando detém o poder de agenda, o pre- Na República de 46, o poder do Execu-
sidente pode restringir o uso de patronagem tivo na orçamentação era menor. A Comis-
a sua base, solidificando o apoio desta. Quan- são de Finanças da Câmara podia encami-
do carece desse poder, como acontecia na nhar ao plenário uma proposta de orçamen-
República de 46, tem de estender o raio de to caso o Executivo não o fizesse no prazo
ação da patronagem aos membros cooptáveis constitucional e os deputados podiam criar
da oposição. Ao fazê-lo, porém, corre o ris- despesas e assim atender às solicitações de
co de agravar a falta de coesão partidária de seus eleitores.48 Havia, portanto, menos ca-
sua própria base.45 pacidade de o presidente e seus aliados no
Além, todavia, dos novos poderes presi- Congresso imporem disciplina à base de
denciais e da concentração de poder dentro apoio parlamentar.
do Legislativo na Mesa Diretora e nas lide- Hoje, com poderes reduzidos, é preciso
ranças partidárias, e dos instrumentos que o ter os partidos como intermediários nas ne-
presidente da República pode mobilizar para gociações com o Executivo, para que este
obter votações favoráveis dos parlamentares cumpra os acordos de liberação de recursos
de sua base, podemos especular sobre que de que os parlamentares necessitam, pois
outros fatores levariam ao voto disciplinado. estes, individualmente, têm pouca capacida-
Em outro texto, Fabiano Santos indaga de de ameaçar o governo com um voto con-
por que os deputados delegariam poderes tão trário por não atendimento de pleitos. Se o
amplos a seus líderes na Câmara, abdicando fizerem, é alto o risco de ficarem em dissi-
do poder de propor emendas e reduzindo o dência isolada.49

45. No caso da oposição, a coesão e disciplina não advêm da “patronagem”, exceto negativamente, quando o
governo coopta alguns de seus membros. Vejam-se Santos (1997) e Pereira (s.d.).
46. SANTOS, 2002.
47. O qualificativo racionalizado, lembra Santos, tem-se aplicado aos parlamentarismos que, para superar os
problemas que esse sistema apresentava, sobretudo no período entre as duas grandes guerras do século
passado, adotaram normas restritivas para a aprovação de legislação relevante, as quais tornaram a ativida-
de parlamentar previsível e coerente. Essas normas permitiram a superação dos chamados problemas de
coordenação que grandes grupos, como é o caso de uma bancada parlamentar majoritária, apresentam para
sua ação coletiva. No caso do Legislativo, implicam delegação de poderes decisórios ao Executivo.
48. Mediante “antecipação de receita” e aplicação de saldos (art. 75 da Constituição de 1946).
49. Nas palavras de Santos, “o comportamento coeso em uma legenda comum é do interesse de cada deputado
como forma de conferir credibilidade a uma ameaça que, do contrário, não chegará a importunar ator
político tão poderoso quanto o presidente brasileiro (...) a adesão às proposições políticas do partido é um
bem público para a bancada como um todo, e esse benefício somente pode ser alcançado se os parlamenta-
res delegam aos líderes uma parte considerável de seu controle sobre a pauta legislativa com a finalidade de

165
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

Os dados que comparam os dois perío- tos combinam várias das hipóteses que ex-
dos mostram que, na República de 46, uma ploraram em trabalhos anteriores e tentam
política básica, a de substituição de importa- uma abrangente explicação do funcionamen-
ções, tinha o apoio de facções majoritárias to do sistema político brasileiro, a partir das
no interior de cada um dos maiores partidos inter-relações entre as regras eleitorais, os
do período (PSD, UDN e PTB), mas não dos poderes legislativos presidenciais e as exi-
partidos como entidades disciplinadas. Era gências da produção da política pública.50
preciso, então, o presidente cooptar a UDN, Partem eles do exame do modelo do “se-
que era formalmente oposição a seu gover- gredo ineficiente”. Nesse modelo, um presi-
no. Na Nova República, porém, as políticas dente com fortes poderes legislativos convi-
de Fernando Henrique Cardoso lograram ve com lideranças com pouco controle de
uma base majoritária partidariamente disci- suas bases partidárias.51 Os políticos repre-
plinada. sentados no Legislativo podem legislar e
Como quer que seja, o novo contexto operar em benefício de seus eleitorados lo-
pós-88 não dispensa os presidentes brasilei- cais (o pork barrel dos norte-americanos).
ros, caso desejem um mínimo de eficácia Sendo, porém, necessárias políticas de alcan-
legislativa além do recurso às medidas pro- ce nacional, o cuidado destas se delega ao
visórias, da construção de coalizões que lhes presidente da República. A idéia de “inefi-
rendam apoio nas votações de seu interesse. ciência” significa que os parlamentares se in-
O assunto é tratado especificamente no ca- teressam pelos seus redutos, na atividade
pítulo “O Sistema de Governo do Brasil”, legislativa e, assim, as eleições para o
deste livro, em que discutimos as contribui- Legislativo não têm o foco nas políticas na-
ções que a ele trouxeram Sérgio Abranches cionais. O sistema eleitoral proporcional de
e Octávio Amorim Neto, dentre outros. lista aberta reforça essas características. Os
Os dados de Amorim Neto mostram ter candidatos fazem campanhas pessoais em
estado o governo de Fernando Henrique suas bases e os partidos pouco participam
Cardoso muito mais próximo de um gover- delas, inclusive no financiamento. As lide-
no de coalizão de estilo europeu do que os ranças partidárias não têm, assim, poder so-
de Fernando Collor e Itamar Franco. bre as bancadas, para cuja eleição pouco in-
Em texto de 2003, Amorim Neto e San- fluíram. Em suma, teríamos parlamentares

remover os problemas de coordenação (...) Quando os legisladores estão organizados em partidos discipli-
nados, a força do seu apoio parlamentar aproxima-se do peso dos partidos que formalmente integram a
coalizão governista. Isso, por sua vez, garante o fluxo de legislação no plenário da Câmara e, em contrapartida,
os parlamentares são aquinhoados pelo Executivo com benefícios de patronagem que eles distribuem aos
seus redutos eleitorais” (SANTOS, 2002:243-4).
50. AMORIM NETO e SANTOS, 2003. A expressão “segredo ineficiente” é usada em contraposição a “segre-
do eficiente”, a clássica imagem apresentada pelo publicista britânico Walter Bagehot para caracterizar o
sistema político que se consolidara em seu país já em meados do século XIX. Com a concentração dos
poderes parlamentares no Gabinete, as disputas eleitorais – apesar de o voto ser conferido a candidatos em
eleições distritais, não a listas partidárias – tornaram-se cotejos nacionais entre as plataformas partidárias e
não competições interpessoais. Eleições eficientes, nesta caracterização, são as em que propostas de âmbito
maior, nacionais, competem pela preferência do eleitor.
51. Este modelo é exposto em Shugart e Carey (1992).

166
orientados para os redutos, enquanto as po- tuiu, portanto, um desafio à hipótese do
líticas de âmbito nacional são reserva do Exe- poder solvente do sistema eleitoral sobre as
cutivo, justapondo-se, pois, duas esferas re- organizações partidárias.
lativamente estanques. Para eles, o enfoque proposto por Barry
Em contraste, a partir do estudo Ames, ao descrever quatro perfis possíveis
empírico, verificam Amorim Neto e Santos de votação territorial dos deputados brasi-
que, no tocante a suas propostas legislativas, leiros – perfis sobre os quais nos deteremos
os deputados brasileiros não necessariamen- mais adiante –, permite entender como esse
te têm um foco “paroquial”, o que, em par- sistema pode favorecer diferentes estratégias
te, se explicaria por haver restrições legais a eleitorais. Algumas dessas estratégias estimu-
seu papel no processo orçamentário.52 lam o paroquialismo dos representantes,
O incentivo à delegação das políticas de outras não, como se revela no caso do PT.
âmbito nacional ao Executivo existe, mas Esse partido investiu no conteúdo informa-
para os deputados que se alinham com o tivo de sua legenda, estratégia que se mos-
governo. Quanto aos de oposição, no perío- trou cada vez mais bem-sucedida, apesar dos
do coberto pelas análises de Amorim Neto e limites de um sistema fundado no segredo
Santos, valeram-se da oportunidade de apre- ineficiente.53
sentar propostas com foco nacional, de que A visão do modelo “segredo ineficiente”
fizeram plataforma pública para suas idéias, levaria a pensar o processo político sem gran-
ligadas a um projeto de conquista da Presi- des divisões partidárias, com o presidente não
dência da República. Portanto, o modelo de conseguindo articular coalizões governantes
“segredo ineficiente” no Brasil acabou per- estáveis e o eleitorado não dispondo, nas elei-
mitindo uma dinâmica eleitoral “eficiente”. ções parlamentares, de referências quanto a
Segundo os autores, ao opor-se às coalizões quem responsabilizar pelas políticas nacio-
governantes, em discordância com as políti- nais. Entretanto, na pesquisa de Amorim
cas seguidas no plano nacional, o PT tornou- Neto e Fabiano Santos, mostra-se que o sis-
se um dos principais aspirantes à Presidên- tema pode exibir eficiência eleitoral, quan-
cia. O comportamento parlamentar petista, do, como no governo de Fernando Henrique
com grande disciplina nas votações, consti- Cardoso, há uma coalizão governante mais

52. Contudo, no comportamento com relação às proposições de iniciativa do Executivo, a legislatura parece
não pautar-se sobretudo por considerações de macropolítica nacional. É o que se depreende do depoimento
de Fernando Henrique Cardoso, em “A Arte da Política”. Para o ex-presidente, nas interações entre os
poderes, quando se trata de matérias nas quais uma visão de país esteja em jogo, o Legislativo quase sempre
age via acomodação de interesses grupais e pessoais, em vez de pautar-se por clivagens que expressem “um
critério propriamente político”, pelo que ele entende considerações de âmbito maior, programático. Em
suma, de acordo com ele, o foco do Legislativo, na votação das propostas “nacionais” do Executivo, é
altamente contaminado, se não pelo “paroquial”, no estrito sentido geográfico, pelo menos pelo particularístico
(CARDOSO, 2006:446). Na mesma linha do depoimento de Cardoso, a entrevista do deputado Ibsen Pi-
nheiro, ex-presidente da Câmara dos Deputados, ao jornal Correio Brazilienese (20.02.2007). Veja-se, tam-
bém, consubstanciando essas percepções da própria “classe política”, a análise de Velasco Júnior, comentada
mais adiante.
53. SAMUELS, 1999.

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A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

estável. A presença dela e de um partido grupo, as negociações são, com freqüência,


como o PT na oposição leva a modificar ou jogos mais igualitários, disputados entre ato-
especificar a hipótese de eleições ineficientes. res eqüipotentes, e não relações assimétricas.
A pesquisa mostra, também, que a Câ- Nessa última linha, alguns propõem uma
mara desempenha um papel menor na possível síntese entre as visões extremas.
legiferação, como conseqüência do sistema Examinaremos brevemente algumas das con-
de incentivos à carreira dos deputados. Sen- tribuições nos vários enfoques.
do o Executivo, nos vários níveis de poder, Barry Ames seria, dentre os autores que
o foco da influência política, a carreira no se têm debruçado sobre as relações entre os
próprio Legislativo se torna apenas mais uma poderes, um dos que com mais vigor defen-
entre várias outras opções abertas aos que dem o diagnóstico da conexão eleitoral, à
têm a política como vocação. brasileira. Para ele, a votação nominal no
plenário, da qual se infere a disciplina parti-
dária, é a culminância de negociação, tanto
7. Outras interpretações
entre os poderes, quanto entre líderes e li-
Alguns autores, em graus diversos, dis- derados. Esse processo leva a concessões,
cordam da nova tendência interpretativa da modificações das propostas, que a votação
relação entre os Poderes e do comportamento nominal final não registra, concessões que
congressual. Em alguns dos casos, buscam podem mostrar muito maior força das bases
mostrar que, mesmo se reconhecendo a im- em extrair benefícios das lideranças e do
portância dos fatores destacados pelos no- Executivo em troca de apoio do que o com-
vos estudos, ainda assim, para uma explica- portamento de plenário, com obediência à
ção mais inteiriça dos fatos, não se podem indicação de voto pelo líder, deixa entrever.54
ignorar os determinantes próprios da cone- Ames também chama a atenção para o fenô-
xão eleitoral. Em outros casos, dão menor meno das “não-decisões”, ou seja, o funcio-
ênfase ao que acontece nas eleições e nas namento do princípio da “reação antecipa-
relações dos representantes com suas bases da”, quando o Executivo e seus líderes par-
e enfocam diretamente as negociações entre lamentares deixam de apresentar uma pro-
governo e parlamentares. Para este segundo posta por considerá-la sem perspectiva de

54. Implicitamente, essa negociação prévia é reconhecida por Figueiredo e Limongi quando, ao confrontar o
tempo de tramitação entre as proposições introduzidas pelos próprios parlamentares e o projeto vindo do
Executivo, mencionam que este “chega ao Congresso pronto e, em alguns casos, negociado”. Não explo-
ram, contudo, o que ela significa. Pode expressar um poder parlamentar maior do que evidenciam as vota-
ções nominais de textos já negociados previamente. Se a análise se limita a essas votações, pode passar por
cima dos custos de transação em que o governo incorreu (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999:54 e 67). A
esse respeito, também a formulação de Castro Santos (1997), Power (1999) e, mais recentemente, de Santos
(2006:235). Este último autor, embora não rejeite a importância de examinar o processo de negociação, em
vez de apenas o produto votado em plenário, pondera, no entanto, ser fundamental considerar que os
índices de disciplina partidária no período pós-Constituição de 1988 são consistentemente mais elevados do
que no período democrático anterior, também presidencialista, federal e com representação de lista aberta.
Há, pois, de explicar a variação entre os dois períodos, o que requer enfocar a diferença que a centralização
do processo decisório na Nova República implica (SANTOS, 2006:235).

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aprovação, após soltarem balões de ensaio putado, levando-o a cooperar ou não com o
sobre seu conteúdo ou em rodadas prévias partido.
de negociação. A restrição da análise às vo- Uma de suas conclusões é a de que, mes-
tações nominais para inferir relações de po- mo que os encaminhamentos dos líderes
der pode estar deixando de fora fenômenos possam ter influência nos deputados (tradu-
relevantes em que essas relações também zindo a força do partido), outros fatores com
estejam presentes. eles competem para explicar a cooperação
Que as bancadas votem segundo as indi- ou deserção em votações importantes.
cações dos líderes não prova, de acordo com A aquiescência dos deputados ao enca-
Ames, serem os partidos fortes, disciplina- minhamento partidário pode vir de nego-
dos e hierárquicos. Os partidos brasileiros ciação entre eles, a liderança e o governo, e
são, para ele, em boa medida, produtos do não da força partidária a que parecem sub-
sistema eleitoral, que dá muita força ao can- meter-se. Certos parlamentares têm maior
didato, em vez de ao seu partido. Portanto, independência eleitoral com relação ao par-
quando um deputado vota de acordo com o tido do que outros, são bem votados em re-
líder, esse voto pode estar refletindo coisas dutos tranqüilos e podem impor sua vonta-
diversas, não necessariamente a força e a dis- de. Outros dependem das graças partidárias
ciplina partidária. para poder mostrar serviço a seus eleitores e
Para Ames, Figueiredo e Limongi dão não ficar inferiorizados em seus redutos dian-
uma explicação monocausal para fenômeno te dos rivais, às vezes do mesmo partido. Na
de múltiplas causas. Um resultado de vota- equação explicativa de Ames, inclui-se, por
ção coerente com o encaminhamento do lí- exemplo, o êxito dos parlamentares em ter
der pode refletir muita coisa, até mesmo suas emendas orçamentárias aprovadas e
obediência ao partido. Mas, para dizer ser traduzidas em desembolsos do Executivo. O
esse o aspecto decisivo, que provaria a força voto coerente pode provir, também, não da
dos partidos congressuais sobre os parlamen- força do partido, mas da própria ideologia
tares, deve-se confrontá-lo com explicações do deputado.55
alternativas. Para fazê-lo, esse autor também Na valorização dos determinantes eleito-
analisa as votações da Câmara, mas o instru- rais, Ames introduz, como antecipamos, uma
mento estatístico que usa para explicá-las lhe inovadora tipologia dos vários “distritos” em
permite descobrir, entre vários fatores, os que que os deputados se elegem. Porque, mesmo
de fato influenciam o comportamento do de- não se adotando em nosso sistema eleitoral

55. BARRY AMES, 2001, especialmente no cap. 7 (Party discipline in the Chamber of Deputies). A importância
que Ames e, também, Pereira e Mueller, entre outros, atribuem à apresentação de emendas, sua incorpora-
ção ao orçamento e posterior execução, nas relações entre Executivo e Legislativo, é contestada por Figueiredo
e Limongi em trabalho mais recente, como anteriormente mencionado. Entre outros pontos, argumentam:
“Emendas são executadas sem que os votos esperados sejam dados, e votos são dados sem que a contrapartida
– ou seja, a liberação de recursos – ocorra. Há casos, inclusive, em que, dada a rotatividade dos membros do
Legislativo, a troca de votos pela execução de emendas nem sequer seria possível. Há um sem-número de
deputados que votam a favor dos interesses do Executivo sem participarem do processo orçamentário, e há
os que participam e têm suas emendas executadas apesar de não mais exercerem mandatos” (FIGUEIREDO
e LIMONGI, 2005:740).

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A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

recortes oficiais da geografia do Estado – os exemplo, um deputado eleito em área me-


distritos – podendo, em princípio, o candi- tropolitana, em competição com dezenas de
dato receber votos em todo o território des- outros, terá pouca oportunidade de lograr,
te, na prática se revelam distintos perfis quan- para a cidade, uma obra cujo mérito lhe seja
to à distribuição geográfica da votação. claramente atribuível, com exclusão de seus
Ames não explora essa diversidade de rivais. Sua estratégia política não será, obvia-
perfis em sua análise, usando-a apenas mente, a mesma do deputado mais votado
ilustrativamente, mas Nelson Rojas de Car- num grupo contíguo de pequenos municípios
valho o faz, ao conjeturar que essa varieda- interioranos, com interesse em levar para lá o
de de padrões suscita atitudes e comporta- projeto que lhe será creditado sem erro pelo
mentos diversificados dos parlamentares no reconhecido eleitor. Ao contrário, tenderá a
Legislativo. Sua análise, na verdade, permite orientar-se por políticas mais gerais, de âm-
especificar, no contexto brasileiro, a hipótese bito mais vasto quanto a seu impacto e no
da “conexão eleitoral” – condicionada que é que respeita a virtuais beneficiários.
pelas particularidades do sistema eleitoral Rojas de Carvalho aduz inúmeras evidên-
proporcional de lista-aberta, exercida em dis- cias da diversidade de atitudes e comporta-
tritos que se confundem com os Estados –, mentos de nossos deputados, em função de
mostrando que ela pode responder por mo- suas distintas determinações eleitorais. Com-
dalidades distintas de voto do parlamentar no prova, com análise de projetos de lei, reque-
Legislativo.56 rimentos de informação, discursos em ple-
Nos Estados Unidos, o deputado procu- nário, emendas orçamentárias, mas também
ra, mediante sua ação no Legislativo, levar pesquisas de opinião, ser o comportamento
benefícios para seu distrito, porque nele foi paroquial, favorecedor da chamada política
eleito, ao conquistar a maioria relativa de distributivista – antes presumida como uni-
seus votos, sendo este o motor da “conexão versal pela maioria dos intérpretes – próprio
eleitoral”. Dessa orientação distrital resul- apenas dos parlamentares com perfil eleito-
tam políticas fragmentárias, vistas da pers- ral do tipo que intitula dominante.
pectiva nacional. Do mesmo modo, a hipótese segundo a
No Brasil, porém, apenas uma parcela – qual a estrutura interna do Congresso anu-
cerca da metade – dos representantes tem laria as influências da esfera eleitoral lhe
votação com um perfil assemelhado a esse.57 parece ter sua validade circunscrita a uma
Ora, é natural pressupor que “distritos” parcela apenas da representação política.
eleitorais de configurações distintas, segun- Nas palavras desse autor, nenhum dos
do a tipologia usada, também levem a desem- modelos – o distributivista e o partidário, como
penhos diversos na arena parlamentar, por ge- podem ser chamadas as duas posições – pode
rarem necessidades eleitorais específicas. Por nutrir “qualquer pretensão de exclusividade

56. CARVALHO, 2003. No capítulo “O Sistema de Governo do Brasil” fazemos uma descrição mais detalhada
dos quatro perfis, portanto não a repetimos aqui.
57. Veja-se a Tabela 1, do capítulo “O Sistema de Governo do Brasil”, em que mostramos o cálculo feito por
Carvalho de quantos deputados, na legislatura eleita em 98, se encaixavam em cada um dos quatro perfis,
resultantes da combinação das duas variáveis dicotômicas usadas.

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teórica no que se refere à compreensão dos sobre o comportamento do parlamentar bra-
aspectos analisados de nosso Congresso”. sileiro, muito mais forte do que a que o par-
Conjugados, porém, ajudam a entender a tido político nacional e a organização inter-
lógica da representação política no Brasil. na do Legislativo possam exercer.60
Maria Helena Castro Santos, por seu Como se dá a influência estadual sobre o
turno, põe em foco as relações entre os po- parlamentar? Samuels relembra que, diferen-
deres na elaboração de políticas, sem procu- temente do deputado norte-americano, cuja
rar identificar se funciona ou não uma “co- atuação na House of Representatives tem
nexão eleitoral”, determinada por sistema como referência a necessidade de reeleger-
eleitoral, federalismo ou outros fatores, e se, o brasileiro só excepcionalmente pensa
com impacto nessas relações. Ela reconhece em fazer uma carreira no próprio Legislativo.
ter o Executivo, no período pós-Constituin- Para a maioria dos deputados, o mandato
te, o domínio do processo legislativo, ao legislativo é passageiro. Buscam, ao invés,
comandar a agenda do Congresso e ter a ini- uma carreira externa, sobretudo nos Execu-
ciativa dos projetos relevantes para o tivos estaduais ou municipais. O mandato
reordenamento socioeconômico do país. na Câmara constitui, antes, uma ajuda ou
Observa, entretanto, não ser menos verdade impulsionador a essa carreira executiva, do
ser ele obrigado a negociar com o Congres- que a meta última. Para o mandato parla-
so, muitas vezes arduamente, tendo, com mentar dar esse impulso à carreira do depu-
freqüência, de construir maiorias a cada vo- tado, é importante o representante estar em
tação. Em outras palavras, o Executivo pre- bons termos com a “situação” estadual, mui-
domina, mas o Congresso não é de forma tas vezes independentemente de pertencer a
alguma irrelevante, e muito menos é coope- um partido de oposição ao governador. E
rativo como regra geral. Em que circunstân- uma das maneiras de fazê-lo é pela defesa
cias e que variáveis explicam o estabeleci- dos interesses do Estado na Câmara, seja
mento de padrões de interação envolvendo quando da elaboração do orçamento fede-
os dois Poderes, de natureza mais ou menos ral, seja quando da tramitação de matérias
conflituosa ou mais ou menos cooperativa, que podem afetar esses interesses.
é questão empírica ainda incipientemente Sendo a carreira do deputado guiada
investigada, segundo argúi.58 pela “ambição progressiva” – ou seja, ele
Também David Samuels trabalhou o as- quer continuar na política, mas não neces-
sunto e questionou a interpretação de sariamente fixado na Câmara, senão con-
Figueiredo e Limongi, estribando-se, porém, quistando postos executivos – falta-lhe o
em outra ordem de considerações.59 Para ele, estímulo de seu colega norte-americano para
a política estadual tem uma grande influência moldar a Câmara às necessidades de uma

58. CASTRO SANTOS, 1997. A visão do problema apresentada por Fernando Henrique Cardoso parece refor-
çar essa interpretação, como também, em vários pontos, dá sustentação ao enfoque de Ames (CARDOSO,
2006).
59. SAMUELS, 2003a.
60. Samuels retoma e aprofunda tese de Fernando Abrucio, exposta em Abrucio (1998). A contribuição deste é
analisada no capítulo “O Sistema de Governo no Brasil”, do presente livro. Ver também Kinzo (1999).

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A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

longa carreira, conquistada em sucessivas deres e mostra-nos serem necessárias, para


reeleições. Assim, por exemplo, nossa Câ- entendê-las, tanto a perspectiva distributivista,
mara não privilegia a antigüidade, a especia- quanto a partidária.62
lização, o papel das comissões, ao contrário Decisivo, para ele, é quando o status quo
da House of Representatives nos Estados – por exemplo, o grau de estatização da eco-
Unidos. A própria canalização de recursos nomia – deixa de ser apoiado pelo congres-
aos redutos eleitorais, via emendas orçamen- sista mediano.63 Nesse caso, o presidente tem
tárias individuais, é posta em segundo pla- maior liberdade para propor mudança, por-
no, em benefício das emendas de bancada, que ela não vai contra as opiniões majoritá-
que atendem aos pleitos estaduais. Na apro- rias. À primeira vista, pode-se inferir dispor
vação dessas emendas, obliteram-se as dife- o chefe do Executivo de grande poder dis-
renças partidárias. cricionário, quando na verdade está fazendo
Defendendo os pleitos estaduais, o depu- algo que já corresponde ao que a maioria
tado se credencia perante os governadores e apóia. Nas privatizações analisadas, o autor
os prefeitos (estes últimos muito dependen- julga que, grosso modo, se dava tal situação.
tes do governo estadual) e espera contar com Mesmo assim, houve necessidade de ajustes,
a ajuda deles nos passos posteriores de sua para acomodar interesses que seriam preju-
carreira. dicados por um ou outro aspecto das mu-
Em conseqüência, o poder dos partidos danças, pois elas não se dão em apenas uma
nacionais é diminuído e as deliberações dimensão.
congressuais sofrem forte influência dos go- Foi preciso, então, agir em mais de uma
vernadores. As decisões legislativas que, de frente na produção da política pública para
alguma forma, ferem os interesses dos Esta- chegar a bom termo. As negociações se de-
dos, muito dificilmente são aprovadas sem senvolveram tanto na arena partidária quanto
muita concessão e, não raro, diluição do con- na distributiva. Na primeira, estava em ques-
teúdo, com implicações negativas para a pró- tão a substância da política e o jogo dos inte-
pria governabilidade.61 resses nela envolvidos. Na arena distributiva,
Licínio Velasco Júnior, que pesquisou encontravam-se os interesses subnacionais e
duas das principais privatizações efetuadas eleitorais particulares que a política de
no governo de Fernando Henrique Cardo- privatização afetaria e que poderiam dificul-
so, a da Companhia Vale do Rio Doce e a tar ou até impedir a aprovação da mudança.
das telecomunicações, propicia-nos uma vi- O governo procura minimizar essa arena,
são mais matizada das relações entre os po- mas ela cresce se a partidária se mostra

61. Ver, a esse respeito, o estudo que Samuels faz da economia política da reforma macroeconômica no Brasil
(SAMUELS, 2003b). Também Kingstone (1999), que analisa as provações pelas quais passou a política de
estabilização. Crucial, também, o depoimento e análise do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em
Cardoso (2006).
62. VELASCO JÚNIOR, 2006.
63. Na definição estatística, a mediana divide a distribuição de uma variável ao meio. Assim, conhecida a posi-
ção do “congressista mediano” com respeito a um assunto em deliberação, sabemos bastar mais um voto
num sentido ou noutro para formar a maioria. Daí, a utilidade de se falar na posição mediana quando a
necessidade de maioria de apoio esteja em jogo num corpo deliberativo.

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insuficiente, como foi o caso para algumas as medidas provisórias. Com a prática, se
implicações de ambas as políticas estudadas. afeta o sistema de representação e a pró-
Mediante a pormenorizada análise dos dois pria democracia, tornando-se habitual um
processos, o autor mapeou como as negocia- funcionamento do Executivo sem controles
ções se efetuaram nas duas arenas, para le- institucionais, com usurpação de funções.
var as propostas a bom termo, em geral ten- Nesse enfoque, porém, é difícil explicar
do de fazer concessões na frente distributiva como, a partir de 1994, houve governança
para lograr êxito na partidária. bem-sucedida e ausência de padrão aberta-
Finalmente, mencionaremos o importan- mente conflituoso entre os Poderes, sem em-
te balanço crítico da literatura das relações bargo de haver continuado o uso dos instru-
entre o Legislativo e o Executivo e seu im- mentos proativos (como as medidas provi-
pacto na capacidade governativa, levado a sórias) pelo Executivo.
cabo por Vicente Palermo. No terceiro enfoque, como vimos neste
Para esse autor, os diferentes trabalhos capítulo, rejeita-se a idéia de um conflito
sobre o tema se agrupariam em quatro congênito entre os poderes. Há coalizão par-
enfoques diversos. O primeiro deles é o dos tidária no governo, que assegura o respaldo
que dão ênfase à dispersão de poder, ao de uma maioria parlamentar e o presidente
consociativismo de nossa estrutura políti- dispõe de instrumentos proativos para go-
ca, com fragmentação e fragilidade parti- vernar. Mas esse enfoque se distingue de um
dária, federalismo e presidencialismo com- quarto, a partir de como se interpreta a ação
binado com multipartidarismo, que levam presidencial. Nele, tal ação é vista como
a governos de coalizão com gabinetes hete- concentradora, exercendo-se mais pela sub-
rogêneos e de difícil controle. Todos esses missão dos demais atores, forçados a coope-
fatores confluem na constante ameaça de rar. Em contraste, no quarto enfoque, a ação
ingovernabilidade. No entanto, pondera do presidente é, sobretudo, coordenadora
Palermo, esse diagnóstico não se conjuga com das decisões, que são obtidas por negocia-
os desempenhos governamentais da Nova ção com os diferentes atores.
República, após 1994. Se não mudou o mar- Para Palermo, essa última perspectiva
co institucional, como explicar a estabiliza- parece explicar melhor como se governa o
ção da economia, as reformas e a relativa Brasil. Ela não nega haver poder de deci-
estabilidade da coalizão de governo? são disperso nas instituições, coexistindo
Duas outras interpretações tentariam res- múltiplos atores com capacidade virtual de
ponder a essa pergunta, e têm em comum veto. Por outra parte, o uso dos poderes
apontar que, apesar de existirem os traços proativos ou autônomos pela Presidência
institucionais identificados no primeiro não implica um padrão excludente, como
enfoque, o presidente concentra poder o interpreta o segundo enfoque, nem a sub-
decisório e pode romper com os impasses. missão dos demais atores, sobretudo o
Na primeira dessas outras interpreta- Congresso, como transparece no terceiro
ções, há conflito na interação dos Poderes, enfoque. Assim, por exemplo, a edição de
mas o presidente pode prevalecer sobre os medidas provisórias provoca reações dos
outros atores e o Congresso, sobretudo pelo interesses que se expressam dentro da coa-
uso dos instrumentos emergenciais, como lizão governista e os ajustes feitos pelo

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A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

Executivo evitam a possível obstrução par- vê o crescimento em importância dos parti-


lamentar ou o conflito.64 dos, por uma parte, e a introdução do “par-
lamentarismo racionalizado”, por outra,
como redundando no enfraquecimento das
8. As comissões comissões.
Do sumário relato da visão de Legislativo Contudo, é preciso ir além dessa verifica-
introduzida por Figueiredo e Limongi e ou- ção geral sobre o papel desses colegiados em
tros autores, surge uma Câmara dos Depu- nosso Legislativo. Na verdade, o tema das “co-
tados com organização muito centralizada, missões”, a inserção delas na estrutura de po-
em que a Mesa e o Colégio de Líderes der e no funcionamento da Câmara dos Depu-
estruturam a pauta dos trabalhos e permi- tados, bem como no sistema maior de relacio-
tem tramitação expedita das propostas ori- namento entre os poderes, tem motivado pes-
ginárias do Executivo. Dessa configuração quisas específicas em período recente.
resultaria, principalmente, o esvaziamento Uma delas deve-se a Carlos Pereira e
das comissões. As matérias seriam levadas Bernardo Mueller. Eles investigam a suposta
diretamente à decisão do plenário, com atro- fraqueza das comissões em nosso Legislativo,
pelo da rotina desses órgãos, cujo trabalho que resultaria dos fatores apontados por par-
perde relevância. Ademais, a proibição de te da literatura examinada neste ensaio, e se
reeleição nos seus cargos de comando – indagam sobre o grau de acerto desse diag-
desconsideração, portanto, do princípio da nóstico. São as comissões de fato irrelevantes,
antiguidade (seniority) – e a rotatividade a ou desempenham algum papel de realce no
que estão sujeitos seus membros, armariam processo legislativo?65
um círculo vicioso: a fraqueza das comissões Para esses autores, apesar da disponibili-
desestimularia os parlamentares de nelas in- dade do “pedido de urgência” e de seu uso,
vestir seu tempo, especializando-se em suas que muito limitam o poder das comissões, o
áreas temáticas e, portanto, beneficiando o Executivo não deixa de zelar pela sua com-
trabalho legislativo com um processamento posição, ao designar, para nelas servirem,
mais qualificado das matérias. Como conse- parlamentares que apóiem a agenda gover-
qüência desse desinteresse, as comissões se namental. Compostas por maiorias leais, que
tornam ainda mais fracas. podem ameaçar com o veto presidencial pro-
Na verdade, as verificações desses auto- postas que se choquem com a agenda do
res não divergem do que tem apontado a li- Poder Executivo, as comissões teriam a ca-
teratura comparativa sobre as relações entre pacidade de facilitar as propostas de interes-
os partidos e as comissões na organização se deste e de barrar as demais, assim atalhan-
interna do Legislativo, pois usualmente se do confrontos futuros no plenário.

64. Contudo, como observado no capítulo “O Sistema de Governo no Brasil”, explica-se não como se governa
o Brasil, mas como se governou durante um determinado período. Ou seja, conforme enuncia Lúcio Rennó,
o sistema de governo é “mais individualmente dirigido do que institucionalmente constrito” (RENNÓ,
2006:269). Para uma análise das chamadas “reformas de segunda geração” efetuadas no governo de Fernando
Henrique Cardoso, com ênfase no seu “sucesso inesperado”, Melo (2005).
65. PEREIRA e MUELLER, 2000.

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No entanto, tal papel pareceu insufici- com a do Legislativo de então, era menor.
ente aos autores para “explicar a existência Assim sendo, os presidentes de Comis-
de um sistema de comissões tão complexo”, são dispunham de maior poder do que ago-
o que os levou a investigar se cabe, também, ra, donde as lideranças partidárias dos par-
a esses colegiados, a função de gerar infor- tidos dominantes no Legislativo terem de
mação e reduzir incertezas no processo exercer maior controle sobre quem era se-
legislativo. Da divisão do trabalho que ocor- lecionado para essas funções. Só assim iriam
re nas legislaturas, mediante a montagem de garantir-se deliberações não-discrepantes
um sistema de comissões, espera-se a especia- com as preferências da facção majoritária
lização delas nos temas de sua alçada, de onde do partido, da qual os líderes provinham.
possa provir o enriquecimento do processo A lealdade ao partido era critério crucial,
de discussão e deliberação com informação ao lado do conhecimento especializado, da
relevante para guiar a posterior tramitação antiguidade na comissão e da força eleito-
em plenário. O desempenho dessa função ral do representante.
“informacional” leva tempo, porém, e as li- Depois da Constituição de 88, já não
deranças da base governista podem ter ur- prevalece essa lógica, pelas razões anterior-
gência de deliberação. mente examinadas. Assim, segundo os auto-
Além da demora, podem ocorrer aciden- res, a “taxa de lealdade” de um parlamentar
tes de percurso, quando surgem discrepân- deixou de ser tão decisiva quanto antes, e
cias entre as preferências majoritárias do ple- outras características, como o desempenho
nário sobre uma matéria e as da maioria que eleitoral, a seniority e a especialização pas-
decide na comissão. Nesses casos, também, saram a ter mais força.
atropelar-se-ia o funcionamento do colegiado, Como resultado da mesma lógica, na dis-
com o pedido de urgência, o que os dados tribuição de presidências de comissões entre
empíricos confirmam. os partidos, existiria hoje mais comparti-
Fabiano Santos e Lúcio Rennó, por sua lhamento entre estes e mais dispersão parti-
parte, procederam a uma comparação entre dária no controle delas, pois no período an-
a República de 46 e o período democrático terior os partidos tendiam a concentrar seu
atual, centrada na questão da escolha da pre- domínio em comissões específicas, mais es-
sidência das comissões em ambos os perío- tratégicas em seus cálculos.
dos.66 Como mencionado anteriormente, a Além desses estudos, que tratam das co-
disciplina partidária era bem menor naquele missões em conjunto, uma outra linha de
período do que agora e o poder de agenda estudos enfoca comissões específicas, partin-
do Executivo bem mais fraco. Não havia do da verificação de que esses colegiados
Colégio de Líderes, nem se podiam criar tendem a diferenciar-se uns dos outros em
comissões especiais, e a latitude do Executi- vários aspectos, inclusive no de sua relevân-
vo no processo orçamentário, comparada cia para a atividade legislativa.

66. SANTOS e RENNÓ, 2002. Esse trabalho é continuação da pesquisa relatada em Santos (2002), cujo teor
comentamos anteriormente quanto a outros aspectos.

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A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

Assim é que Tatiana Ribeiral empreendeu mos empreenderam o estudo de uma outra,
um estudo da Comissão de Constituição e a de Agricultura e Política Rural (CAPR).
Justiça, em que mostrou o seu caráter estra- Para eles, a atividade legislativa requer uma
tégico e seu alto grau de institucionalização.67 decisiva atuação das comissões. A CAPR
Observou ela, por exemplo, que foi, dentre examinou, entre 1991 e começo de 2003,
esses órgãos, aquele cuja rotina foi menos 513 proposições, sendo relativamente pou-
vezes interrompida pelo recurso da tramitação cas – 31 – as de iniciativa do governo. En-
urgente por parte da Mesa Diretora ou do tretanto, dentre estas, 15 se tornaram leis,
Executivo. E, no período coberto por seus ao passo que das 482 proposições origina-
dados, o exame em caráter conclusivo das das no próprio Legislativo, apenas 14 che-
matérias superou a apreciação pelo regime de garam a esse termo. Para os projetos que se
urgência. tornaram leis, recorreu-se de hábito ao ins-
A autora nota, para as comissões em ge- trumento da urgência. Assim, comparando-
ral, que os partidos políticos não as igno- se o que entrou e o que saiu, vê-se que deli-
ram, sobretudo os que apóiam o governo. berar, para a comissão, pode significar dar
Importa, para eles, ter a maioria nas comis- um parecer contrário, remetendo a matéria
sões e zelar pela disciplina nas votações de para o arquivo. A comissão também exerce
importância. Ademais, os cargos nas comis- amplamente seu poder conclusivo. Assim,
sões podem beneficiar a carreira dos parla- 92,5% das propostas encaminhadas à comis-
mentares, ao permitir-lhes “maior produti- são são despachadas mediante o uso desse
vidade para suas bases, por atuarem em uma poder, o que revela descentralização do pro-
área de seu conhecimento, constituindo a cesso decisório.69
maneira mais efetiva de se tornarem conhe- Os autores também cotejam a hipótese
cidos entre autoridades governamentais”. informacional e a da conexão eleitoral na
Uma conseqüência significativa de não pre- composição e atuação da CAPR. No tocante
valecer o princípio da antiguidade é pode- à hipótese informacional, a pesquisa mostra
rem parlamentares novatos ocupar cargos e terem os deputados da comissão “um eleva-
serem relatores nesses colegiados, por indi- do nível de especialização, o que repercute
cação dos partidos. Por outro lado, a distri- na aquisição e na distribuição de informa-
buição dos cargos nas comissões mais im- ções”. Quanto à segunda, “comprovou-se
portantes obedece a acordos entre as (...) que os municípios onde esses parlamen-
agremiações.68 tares concentram votos são na maioria ru-
Tampouco satisfeitos com a visão da fal- rais e intermediários, mas, em contrapartida,
ta de relevância das comissões, Ricci e Le- que a maior parte dos votos são urbanos”.

67. “A Comissão de Constituição e Justiça é uma arena institucionalizada dentro do processo legislativo, visto
que, além de configurar-se através de regras claramente definidas, possui uma existência reconhecida legal e
informalmente, e exclusividade na apreciação de matérias, sendo, dessa forma, uma rota obrigatória na
tramitação de proposições dentro do Congresso Nacional” (RIBEIRAL, 1998:80).
68. RIBEIRAL, 1998:73.
69. Luciana Pacheco analisa, para o conjunto das comissões, o papel de triagem e veto por elas exercido
(PACHECO, 2005).

176
Ou seja, a representação na comissão não estruturar-se. Outro ponto digno de explo-
é apenas a de políticos ligados ao reduto ru- rar, que nos foi suscitado em entrevista com
ral, como levaria a crer uma visão estrita da o então presidente da comissão, o deputado
“conexão eleitoral”. Os deputados titulares Ronaldo Caiado, diz respeito ao relaciona-
da comissão têm interesses diversos, não re- mento do colegiado com a Mesa da Câmara
presentam apenas um pedaço da geografia quando há recurso ao pedido de urgência,
estadual, mas sim interesses organizados. Em que leva a matéria a plenário. Segundo o en-
suas palavras: “Assim, grupos de interesse – trevistado, muito raramente deixa de haver
sindicatos, associações ruralistas etc. – po- uma negociação para que isso ocorra. Não só
dem ter influência em diversos tipos de mu- se busca a aquiescência do colegiado, como
nicípio, viabilizando ou dificultando campa- também, em algumas instâncias, é de interes-
nhas. (...) Em outras palavras, para além da se dos que o lideram que a matéria vá mais
relação direta entre deputados e eleitores, é célere ao plenário. E, na atuação dessa comis-
preciso considerar a policy community, a são, não raras são as instâncias em que ela
issue network ou os iron-triangles”.70 logra impor sua perspectiva majoritária ao
Na verdade, tanto os resultados da pes- processo deliberativo e à substância das deci-
quisa de Ricci e Lemos, quanto a própria sões, contra a própria vontade do governo.71
observação dos autores do presente capítulo Finalmente, assinale-se ser tópico ainda
sobre a atuação da Comissão de Agricultura carente de pesquisas a composição e funcio-
e Política Rural, sugerem que algumas co- namento das comissões especiais, recurso de
missões, como essa, podem desempenhar que a Mesa e os líderes governistas se valem
ativo papel na articulação entre os grupos para, em matérias de interesse do Executi-
organizados da sociedade e o processo vo, garantirem colegiados com preferência
deliberativo no Congresso. Os grupos po- majoritária favorável à proposta governa-
dem ver a comissão como representante mental. A praxe na Casa, como já anterior-
confiável de seus interesses e com ela man- mente mencionado, é a de dar a presidência
ter um contato constante, com troca de in- e a relatoria dessas comissões a membros leais
formações e estabelecimento de estratégias dos dois maiores partidos.
de ação para influenciar os rumos da políti-
ca pública para o setor. A Comissão também
pode ser instrumental na própria organiza- 9. Questões remanescentes
ção deste, como parece ser o caso da de Agri- Algumas questões ainda não foram en-
cultura, que se tornou um foco dos interes- frentadas pela nova produção acadêmica da
ses e, com isso, também os incentiva a Ciência Política sobre o comportamento

70. RICCI e LEMOS, 2004:124. A policy community é a rede de pessoas e organizações envolvidas com uma
determinada área de política pública. A issue network são os que compartilham conhecimentos e preocupa-
ções numa área de política pública e, em função desse fato, interagem com freqüência. A idéia de iron
triangle, muito comum na Ciência Política norte-americana, indica a ligação, na elaboração da política pú-
blica, entre os interesses organizados, as comissões do Congresso e os órgãos estatais.
71. Tal fato ocorreu, por exemplo, na votação da MP nº 285/2006, sobre refinanciamento de dívidas do setor
rural. Agradecemos ao deputado Ronaldo Caiado por entrevista sobre essa Comissão, seu funcionamento e
papel, concedida aos autores.

177
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

partidário na Câmara dos Deputados, e al- Se não houvesse partidos, votaria ele do
gumas inferências extraídas dos seus acha- mesmo jeito, pois é difícil imaginar um par-
dos suscitam ainda dúvidas sobre suas im- lamentar que vote numa proposição, cujas
plicações normativas. implicações entenda, contra os interesses da
Repassaremos algumas dessas questões classe com a qual se identifica, racionaliza-
sumariamente. Uma delas, ainda insuficien- dos em sua ideologia.
temente tratada, é a presença da ideologia Nas questões que não se prestam a uma
nas votações e na disciplina partidária. Não leitura ideológica direta, unidimensional, a
responderia a votação partidária concorde disciplina nas votações diminuiria, sem em-
com a indicação do líder a um fator subjacente, bargo dos poderes das lideranças.
correlacionado à filiação partidária, ou seja, Bolívar Lamounier chamou a atenção
a ideologia do parlamentar, a sua posição ao para esse ponto, no começo dos anos 90,
longo da dimensão esquerda-direita? Nas quando se discutiam as reformas econômi-
questões que se enquadram nessa dimen- cas daquela década.72
são, a orientação do líder simplesmente Gary Cox e McCubbins exploram ou-
explicitaria a posição ideológica que o de- tra linha explanatória no caso do Congres-
putado comparte com seus co-partidários. so norte-americano. A filiação partidária do

72. “As mudanças (...) notadamente o início de um processo de abertura econômica e reforma do Estado, já
permitem afirmar que o sistema partidário brasileiro começou a operar segundo duas lógicas ou em dois
níveis distintos. O primeiro é o nível propriamente ideológico, hoje praticamente a questão da controvérsia
da conveniência ou não de o Estado continuar a participar diretamente, como empresário, na produção de
bens e serviços. O segundo nível pode ser visualizado como um grande resíduo que engloba desde questões
programáticas não redutíveis à referida antinomia básica sobre o papel do Estado até o “varejo” das rivalida-
des eleitorais e partidárias e a eventual necessidade de acomodar egos políticos volumosos. O efeito da
aludida compactação do debate ideológico sobre o sistema de partidos foi que agrupamentos de opinião
bem mais amplos se destacaram contra o pano de fundo do nosso conhecido emaranhado de siglas. Dizen-
do-o de outro modo, é como se a estrutura partidária se apresentasse no primeiro nível sob a forma de umas
poucas “raízes” ideológicas profundas, e no segundo sob a forma de dezenas de ‘galhos’: as siglas que
adquirem existência por meio do competente registro junto à Justiça Eleitoral. Frente a questões mais com-
plexas (como as reformas previdenciária, administrativa e tributária) e com eleições à vista, a árvore começa
a virar de cabeça para baixo: os “galhos” partidários é que se plantam no chão, deixando as “raízes” ideoló-
gicas ao sabor dos ventos (...). Em questões ideológicas clássicas, vota-se simplesmente a favor ou contra. A
imprensa, os analistas profissionais e o próprio governo conseguem antever as tendências sem grande difi-
culdade. No ângulo de visão em que se situa o cidadão médio, porém, a inteligibilidade continua baixa até
nessas questões, dado que as entidades que aparentemente estruturam o debate público são as dezenas de
“galhos” partidários, e não as “raízes” ideológicas do sistema (LAMOUNIER, 1996:44-5). Maria D’Alva
Kinzo, em trabalho pioneiro com 33 votações na Constituinte, mostrou fisionomias partidárias nítidas ao
longo do continuum esquerda-direita (KINZO, 1993). Talvez fosse útil pensar as matérias em votação como
se localizando em diferentes arenas políticas, conforme o esquema proposto há quarenta anos por Theodor
J. Lowi. Em cada arena específica, atuariam sejam os fatores ideológicos, sejam os determinantes da “cone-
xão eleitoral” (LOWI, 1964). Veja-se também a importante discussão da posição no espaço ideológico dos
partidos e dos parlamentares durante a 49ª e a 50ª legislaturas, ao longo de uma dimensão predominante,
em Leoni (2002:382). Dado situarem-se os presidentes, no período, mais à direita nessa dimensão, “o
continuum ideológico dessa dimensão pode ser entendido como indo da oposição total às propostas do
Executivo ao apoio incondicional a este”.

178
deputado prediz-lhe bem o voto nas vota- tor explica os altos índices de disciplina da
ções nominais. Mas não basta essa verifica- oposição?74 Obviamente, um fato novo se
ção para afiançar a força do partido no Con- introduziu na política partidária e parlamen-
gresso. Os membros do mesmo partido ten- tar brasileira com a presença do PT, partido
dem a ter eleitorados similares. que ininterruptamente cresceu durante o
Os parlamentares, de um ou outro lado período coberto pelas pesquisas e que exi-
do plenário, no bipartidarismo norte-ameri- biu perfil nitidamente distinto do dos demais
cano, podem votar diferentemente por res- partidos, entre outras coisas pela nitidez ideo-
ponderem a diferentes conjuntos de pressões lógica e organização. Na atual fase de troca
do eleitorado. Um determinante maior do de posições parlamentares, com o partido
nível de coesão partidária no Congresso se- agora sendo o núcleo da base parlamentar
ria a homogeneidade da base eleitoral do do governo, será interessante observar como
partido. Segundo eles, o debate sobre a for- se comporta não apenas nessa nova base, mas
ça do partido enquanto influência na vota- também a nova oposição. As migrações parti-
ção tem focado muito estreitamente a distri- dárias ocorridas entre as eleições de 2002 e
buição de recompensas e punições pelos lí- o momento em que escrevemos mostram
deres partidários. Uma outra razão, aditam que a preponderância do Executivo tem sig-
eles, pela qual os deputados de um mesmo nificado, nesta fase, intensa migração em
partido votam juntos, além da similitude de direção à “base aliada”, provocando gran-
interesses de seus eleitorados, é por estarem des perdas de parlamentares entre os parti-
mutuamente comprometidos com várias tro- dos que, em teoria, formariam a oposição.
cas de votos e alianças políticas.73 Se também a disciplina dos que permane-
As análises do período da Nova Repú- cerem em suas legendas for afetada, tere-
blica, se indicaram a maior disciplina parti- mos uma nova configuração de fenômenos
dária de hoje e, para explicá-la, apontaram a explicar.
para os acrescidos poderes de agenda A razoável disciplina partidária encon-
legislativa presidencial e para a correspon- trada nos trabalhos revela partidos fortemen-
dente centralização de poder no âmbito do te imantados pelo Executivo, na base de go-
Legislativo, omitiram a coesão e disciplina verno, envolvidos em troca assimétrica de
de voto da oposição, anteriormente à elei- apoio entre os Poderes. Do ponto de vista
ção de Lula para a Presidência, como um normativo, no entanto, alguns problemas
problema específico a explicar. Se os fatores agudos ficam relegados, se a análise confi-
apontados explicam a disciplina da base go- nar-se à questão da governabilidade, basica-
vernista nas legislaturas analisadas, que fa- mente equacionada, no sentido de que não

73. COX e McCUBBINS, 1993:155.


74. Nicolau, no texto anteriormente comentado, toca no problema, mas não o explora (NICOLAU, 2000).
Amorim Neto e Santos incorporam o fenômeno PT em sua análise da operação do “segredo ineficiente”
no Brasil (AMORIM NETO e SANTOS, 2003).

179
A Câmara dos Deputados na Nova República: a visão da Ciência Política

existe paralisia decisória. Entre os proble- eleitoral e partidário, a vulnerabilidade de


mas relegados, apontem-se as intensas mi- nossa política aos esquemas heterodoxos,
grações entre os partidos, a que o persisten- quando não diretamente corruptos, de
te governismo do atual sistema leva:75 os arrebanhar maiorias parlamentares para a
baixos incentivos às carreiras partidárias; as coalizão governamental, não pode ser igno-
operações do sistema eleitoral com o me- rada.76
canismo das coligações em eleições pro- Não parece, portanto, justificada a pro-
porcionais, entre outras características, que pensão a descartar, como desnecessárias, ini-
não têm atendido a alguns requisitos e valo- ciativas de reforma política, presente entre
res cruciais para o funcionamento da demo- muitos dos analistas que se têm debruçado
cracia representativa numa moderna socie- sobre as realidades eleitoral e partidária e
dade de massas. sobre o funcionamento do sistema de gover-
Finalmente, observe-se que, da perspec- no no país. De modo geral, o ângulo do elei-
tiva da governabilidade, favorecida como torado, para o qual seria importante a pre-
critério avaliativo nas interpretações, agora sença de valores como a inteligibilidade do
hegemônicas, de nossa Ciência Política, o sistema e um grau razoável de accountability,
sistema tende a funcionar por haver uma entre outros, tem ficado esquecido quando
relação desequilibrada entre os poderes. Os se olha para o funcionamento do modelo
efeitos dela sobre a legitimidade e o respeito atual como satisfatório e se estigmatizam
às instituições são deletérios, e podem mi- tentativas de aperfeiçoá-lo. E também, como
nar-lhes a própria solidez e eficiência apontado no parágrafo anterior, tem-se omi-
governativa no médio prazo. Se é necessário tido a consideração da própria lógica sobre
dotar o Executivo, por um lado, e a organi- a qual se apóia o sistema para produzir re-
zação congressual, por outro, de poder ex- sultados, que pode ser insustentável em con-
tra para vencer a força centrífuga do sistema texto de crise econômica.

75. Sobre o fenômeno das migrações partidárias, ver Melo (2000; 2004). A matéria publicada pelo jornal O
Globo, em 24/01/2007, ilustra bem o problema, a partir do título: “Deputado na oposição esfarela”. O
entrevistado, deputado Luciano Castro, do PR de Roraima, “aponta a fidelidade ao presidente Lula como
trunfo para atrair deputados que querem entrar na base do governo. Com a experiência de que já está na
Câmara há 16 anos, Castro explica que um deputado que fica na oposição muito tempo não resiste e, como
um castelo de areia, esfarela perdendo prefeitos e vereadores”. Sobre a vantagem de seu partido, para desti-
no das migrações partidárias, diz o deputado: “Temos a vantagem de oferecer a estrutura estadual do parti-
do”. Sobre um dos novos deputados conquistado por seu partido, vindo do PFL, em Santa Catarina, diz:
“Vai ter o partido na mão dele. No PFL, era mais um. É um exemplo. Dá ao deputado visibilidade e fortalece
sua atuação política”.
76. Bruno Reis, em texto ainda inédito, diagnostica com acuidade este sério problema de nosso funcionamento
institucional (REIS, 2006). A esta luz, as conclusões de Palermo, acima comentadas, são otimistas. Contudo,
tanto esse autor, como outros, alguns deles discutidos no capítulo “O Sistema de Governo do Brasil”, neste
volume, parecem estar generalizando a experiência do governo de Fernando Henrique Cardoso de relacio-
namento entre os poderes, como se constituísse o próprio modelo consolidado desse relacionamento. Mais
correto é vê-lo como variável e, de uma perspectiva avaliatória, suscetível de altos e baixos em sua operação,
inclusive em função do estilo de liderança do próprio chefe do Executivo. Ou seja, a conjugação institucional
se mostra ainda precária para garantir melhor qualidade à democracia, que fica muito dependente do
protagonismo de alguns atores, a começar do próprio presidente.

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184
Capítulo 7
Agências reguladoras no Brasil

EDSON NUNES
LEANDRO MOLHANO RIBEIRO
VITOR PEIXOTO

Introdução ao julgar, impor penalidades, interpretar


Agências reguladoras atuam sobre seto- contratos e obrigações entre agentes econô-
res vitais da economia, assumindo diferen- micos (WALD e MORAES, 1999). Assim, as
tes estatutos jurídicos, desde sua subordi- agências produzem regras e normas que im-
nação à administração pública direta até sua putam custos às unidades reguladas, atrain-
existência como órgão independente do, complementando ou contrariando inte-
(NOLL, 1984). Do ponto de vista teórico, resses privados e públicos. Isso ocasiona uma
agências são instituídas para combater fa- inevitável interação entre reguladores e re-
lhas de mercado, tais como assegurar a gulados, com recorrentes possibilidades de
competitividade de setores da economia, captura do órgão regulador por parte de
diminuir custos de transação inerentes à agentes econômicos para subverter os prin-
provisão de bens públicos, reduzir assimetrias cípios do mercado a favor de interesses es-
de informação entre agentes econômicos, pecíficos.1
combater externalidades negativas advindas Não existe, portanto, regulação neutra,
das interações econômicas, universalizar ser- nem regulação inocente. Muitos regulados
viços e promover interesses dos consumido- buscarão normas regulatórias para protegê-
res (PELTZMAN, 2004; POSNER, 2004; los da competição, diminuir seus custos de
PRZEWORSKI, 1998). transação, criar barreiras de entradas em seu
No exercício de suas atribuições, as agên- setor de atuação, protegê-los de demandas
cias exercem funções típicas do Poder Exe- do público etc. Nem toda regulação, portan-
cutivo, tais como a concessão e fiscalização to, é a favor do interesse público ou da pro-
de atividades e direitos econômicos, do Po- moção do mercado competitivo. O aparato
der Legislativo, como edição de normas, re- regulatório, criado para sanar imperfeições
gras e procedimentos com força legal sob o do mercado pode tornar-se uma espécie de
setor de sua atuação e do Poder Judiciário, mercado onde regulação é “comprada” e

1. A atividade regulatória como captura do Estado por agentes econômicos para implementar políticas em
benefício próprio, particularmente medidas de subvenção, barreiras de entrada ao mercado, subsídios e
fixação de preços foi concebida e desenvolvida por George J. Stigler em uma corrente econômica que ficou
conhecida como Escola de Chicago. Sobre o tema ver Stigler (1975, 1988 e 1995).

185
Agências reguladoras no Brasil

“vendida”. O mercado regulatório pode se sil. A partir do modelo jurídico-institucional


constituir, assim, em um selvagem campo das três primeiras agências criadas em mea-
de lutas de interesses e tanto pode estar vol- dos dos anos 1990, a Agência Nacional de
tado para o público quanto para a preser- Energia Elétrica (Aneel), a Agência Nacio-
vação de privilégios. Daí a pertinência das nal de Telecomunicações (Anatel) e a Agên-
recorrentes discussões sobre independência, cia Nacional do Petróleo (ANP), outras sete
controle e accontability das agências regu- agências federais e vinte e três agências esta-
ladoras.2 duais foram implementadas.3 Uma questão
A criação das agências reguladoras no em debate sobre regulação no Brasil diz res-
Brasil como órgãos independentes e não peito ao próprio caráter inovador das agên-
como departamentos subordinados à ad- cias, ou seja, até que ponto elas constituem
ministração direta inseriu-se em um con- um novo formato institucional e gerencial
texto mais amplo de reforma do Estado de atuação regulatória do Estado na econo-
implementada durante os dois mandatos do mia. Adicionalmente, pode-se questionar até
presidente Fernando Henrique Cardoso que ponto as novas agências reguladoras são
(1995-2002). Apresentadas como uma ino- realmente dotadas de independência e dos
vação institucional para regular os serviços mecanismos de controle adequados ao exercí-
públicos de energia e telecomunicações li- cio da regulação em seus respectivos setores.
beralizados ou privatizados de forma inde-
pendente das influências político-partidárias
1. Reforma do Estado e regulação
dos governos, as agências reguladoras pas-
saram a ser criticadas por especialistas e agen- A reforma do Estado elaborada durante o
tes econômicos justamente por não atuarem primeiro governo Fernando Henrique Car-
sob um adequado marco regulatório, impos- doso (1995-1998) foi orientada por diretri-
sibilitando-as de se constituir em verdadei- zes amplamente difundidas no contexto in-
ros órgãos de Estado. ternacional de “retirada” do poder público
No entanto, o modelo de regulação por da produção direta de bens e serviços, cria-
agências independentes se difundiu no Bra- ção de marcos regulatórios para os setores

2. O termo accountability não tem tradução literal para o português. Diz respeito à capacidade dos cidadãos
premiarem ou punirem os governantes, de acordo com a avaliação que fazem do seu desempenho no gover-
no. O’Donnell (1998) refere-se à accountability vertical como a possibilidade dos cidadãos premiarem ou
punirem os mandatários por meio de eleições livres e idôneas, e à accountability horizontal como “a existên-
cia de agências estatais que têm o direito e o poder legal e que estão de fato dispostas e capacitadas para
realizar ações, que vão desde a supervisão de rotina a sanções legais ou até o impeachment contra ações ou
emissões de outros agentes ou agências do Estado que possam ser qualificadas como delituosas”
(O’DONNELL, 1998:40). Sobre os mecanismos de controle e accountability das agências regualdoras bra-
sileiras ver Pó e Abrúcio (2006).
3. Existem, também, quatro agências reguladoras municipais associadas à Associação Brasileira de Agências
Reguladoras (ABAR): Agência Municipal de Regulação dos Serviços de Saneamento de Cachoeiro de
Itapemirim (AGERSA), Agência Municipal de Regulação dos Serviços Públicos Delegados de Campo Gran-
de (ARCG), Agência Municipal de Regulação dos Serviços de Água e Esgotos de Joinville (AMAE) e Agência
Reguladora de Serviços de Saneamento Básico do Município do Natal (ARSBAN).

186
privatizados ou liberalizados e implementação ção de agências autônomas e organizações
de reformas gerenciais na administração pú- sociais (BRESSER PEREIRA, 1996; COSTA,
blica para combater a estagnação econômica 2002; NUNES, 1996).4
e a crise fiscal identificadas em diversos De acordo com Bresser Pereira, o novo
países. A proposta apresentada pelo gover- modelo de administração públicas deveria se
no sustentava-se em pelo menos quatro assentar nos seguintes princípios:
subdimensões específicas: reformas nas es- a) descentralização do ponto de vista polí-
feras fiscal, previdenciária e administrativa tico, transferindo recursos e atribuições
e implementação de um programa de para os níveis políticos regionais e locais;
privatização dos serviços públicos (reforma b) descentralização administrativa, através
patrimonial). da delegação de autoridade para os ad-
A formulação e implementação das no- ministradores públicos transformados em
vas agências reguladoras vincularam-se par- gerentes crescentemente autônomos;
ticularmente às duas últimas dimensões e ti- c) organizações com poucos níveis hierár-
veram suas diretrizes expressas no Plano quicos em vez de piramidal;
Diretor da Reforma do Aparelho do Estado d) pressupostos da confiança limitada e não
(PDRAE). Publicado em novembro de 1995, da desconfiança total;
o PDRAE diagnosticou como problemas do e) controle por resultados, a posteriori, em
Estado brasileiro a “crise fiscal, decorrente vez do controle rígido, passo a passo, dos
da crescente perda de crédito estatal”, o “es- processos administrativos;
gotamento da estratégia estatizante de inter- f) administração pública voltada para o
venção do Estado”, e a “forma de adminis- atendimento do cidadão, em vez de auto-
tração estatal, caracterizada pela “adminis- referida5 (BRESSER PEREIRA, 1996).
tração político-burocrática”. Para combater
esses problemas o governo declarou a ne- O principal objetivo declarado pelo go-
cessidade de redefinir o papel do Estado na verno era alterar o modelo burocrático de
economia e estabelecer um novo padrão de administração pública implantado no Brasil
relação Estado-sociedade no Brasil, apresen- durante a “Era Vargas” para um modelo de
tando duas propostas inter-relacionadas: a administração gerencial, fortalecendo os ór-
privatização de empresas públicas e a altera- gãos da administração indireta (autarquias e
ção nos padrões de gestão da administração fundações).6 De fato, a primeira reforma do
pública e de regulação das atividades econô- Estado brasileiro, implementada pelo gover-
micas, a serem viabilizadas através da cria- no Vargas, a partir de 1936, caracterizou-se

4. Segundo Bresser Pereira (1996), as agências autônomas deveriam se responsabilizar pelas atividades exclusi-
vas do Estado, ou seja, aquelas que envolvem o poder do Estado e garantem o cumprimento das leis e das
políticas públicas. As organizações sociais se responsabilizariam pelos serviços não-exlusivos do Estado, con-
cebidos como aqueles que podem ser oferecidos pelo setor privado e o setor público não estatal, além do
próprio Estado, tais como serviços de educação, de saúde, de cultura etc.
5. As diretrizes da reforma encontram-se expostas nos diversos textos de Luiz Carlos Bresser Pereira, ministro
do MARE desde o início do governo em 1995 até sua desincompatibilização do cargo em 1998.
6. No Brasil, os órgãos da administração direta configuram-se como departamentos integrados à estrutura
administrativa do Poder Executivo, seja no nível federal, estadual ou municipal, sendo hierarquicamente

187
Agências reguladoras no Brasil

pelo fortalecimento da administração direta- cia da República, o Conselho de Reforma


mente vinculada à Presidência da República, do Estado (CRE) e o Ministério da Adminis-
através da criação do Departamento de Ad- tração Federal e Reforma do Estado (MARE).
ministração do Serviço Público (DASP, criado O MARE deveria recomendar políticas e
em 1938). Naquela ocasião, pretendia-se ins- diretrizes para a reforma do Estado (Medi-
tituir um Estado interventor, fortemente cen- da Provisória nº 1.450). A Câmara de Re-
tralizado e formado por uma burocracia forma do Estado da Presidência da Repúbli-
profissional, regida pelo universalismo de ca deveria ser responsável pela dimensão
procedimentos e insulada. 7 Esse modelo político-estratégica da reforma, aprovando,
burocrático deveria ser complementado por acompanhando e avaliando projetos, e de-
uma intervenção do Estado na economia veria assessorar o presidente da República
exercida por órgãos reguladores, institutos e na formulação de diretrizes governamentais.
agências de proteção a determinados produ- O Conselho de Reforma do Estado (CRE)
tos e indústrias (corporativismo) e empresas não fazia parte do governo, mas foi consti-
estatais e autarquias (NUNES, 2003a). tuído idealmente como órgão de Estado e
Observa-se, portanto, que não foi a pri- deveria ter funções consultiva, analítica e de
meira vez que se recorreu ao discurso e à articulação dos programas propostos. Seus
estratégia do insulamento burocrático para conselheiros não estavam vinculados à ad-
instituir ilhas de excelência técnica protegi- ministração pública.8
das da política partidária na administração
pública brasileira com o objetivo de operar
setores da economia. Institucionalmente, a 2. Indefinições sobre o modelo
emergente
reforma do Estado no governo FHC deveria
ser responsabilidade direta de três órgãos: a A despeito de toda teorização e diretrizes
Câmara da Reforma do Estado da Presidên- sobre a reforma do Estado, não existiram, até

subordinados, respectivamente, aos ministérios da Presidência da República ou às secretarias dos governos


estaduais e municipais. Os órgãos independentes, ao contrário, pertencem à administração indireta, o que
significa dizer que se constituem como pessoas jurídicas criadas por lei e, embora sejam vinculadas a órgãos
do Poder Executivo, gozam de uma autonomia prevista na lei de sua criação. Se forem pessoas jurídicas de
direito público assumem a forma de autarquias e fundações. Se forem pessoas jurídicas de direito privado
podem ser sociedades de economia mista e empresas estatais. Nesse sentido, a proposta de criação de agên-
cias significou a tentativa de fortalecer os órgãos da administração indireta.
7. “O universalismo de procedimentos é associado à noção de cidadania plena e igualdade perante a lei”
(NUNES, 2003a:35). Já o insulamento burocrático é definido como “o processo de proteção do núcleo
técnico do Estado contra a interferência oriunda do público e de outras organizações intermediárias. Ao
núcleo técnico é atribuída a realização de objetivos específicos. O insulamento burocrático significa a redução
do escopo da arena em que interesses e demandas populares podem desempenhar um papel. Esta redução da
arena é efetivada pela retirada de organizações cruciais do conjunto da burocracia tradicional e do espaço
político governado pelo Congresso e pelos partidos políticos, resguardando estas organizações contra tra-
dicionais demandas burocráticas ou redistributivas” (NUNES, 2003a:34).
8. O Conselho de Reforma do Estado era formado pelos seguintes integrantes: Maílson Ferreira da Nóbrega
(Presidente), Antônio Ermírio de Moraes, Antônio dos Santos Maciel Neto, Bolívar Lamounier, Celina Vargas
do Amaral Peixoto, Gerald Dinu Reiss, Hélio Mattar, João Geraldo Piquet Carneiro, Joaquim Falcão, Jorge
Wilheim, Luiz Carlos Mandelli, Sérgio Henrique Hudson de Abranches, e o Ministro do MARE, Luiz Carlos
Bresser Pereira.

188
maio de 1996, definições claras sobre o for- Para garantir a autonomia financeira dos
mato institucional e organizacional das agên- novos órgãos reguladores, o CRE recomen-
cias idealizadas para fiscalizar e regular os dou sua organização sob a forma de
serviços públicos que seriam privatizados autarquia. A sua autonomia decisória de-
(NUNES et alli, 2007). Somente no dia 31 veria ser obtida através da nomeação dos
de maio daquele ano, o Conselho de Refor- dirigentes após aprovação pelo Senado Fe-
ma do Estado recomendou os seguintes prin- deral, instituição de um processo decisório
cípios para a construção do marco legal dos colegiado, dedicação exclusiva dos dirigen-
novos entes reguladores: tes, uso do critério de mérito e competên-
a) autonomia e independência decisória; cia profissional, vedada a representação
b) ampla publicidade de normas, procedi- corporativa para recrutamento dos dirigen-
mentos e ações; tes, perda de mandato somente em virtude
c) celeridade processual e simplificação das de decisão do Senado Federal e perda auto-
relações entre consumidores e investido- mática de mandato de membro do colegiado
res; por não comparecimento a reuniões. O CRE
d) participação de todas as partes interessa- recomendou, ainda, a realização de audiên-
das no processo de elaboração de nor- cias públicas com a participação de usuários,
mas regulamentares, em audiências pú- consumidores e investidores na elaboração
blicas; de normas ou soluções de controvérsias re-
e) limitação da intervenção estatal na pres- lativas à prestação de serviços e vedação de
tação de serviços públicos, aos níveis in- decisões tomadas com base exclusiva em in-
dispensáveis à sua execução.9 formações trazidas por interessados, deven-
do o ente regulador buscar fontes indepen-
Segundo as recomendações do CRE, os dentes como consultorias técnicas do Brasil
entes reguladores deveriam promover a e do exterior.
competitividade dos seus respectivos merca- Observa-se, contudo, que esses princí-
dos, além de garantir o direito de consumi- pios foram posteriores ao processo de
dores e usuários dos serviços públicos, esti- privatização e flexibilização dos serviços
mular o investimento privado, buscar quali- públicos dos setores de energia e telecomu-
dade e segurança dos serviços a menores nicações que ocorreu em 1995 e a partir dos
custos possíveis para os usuários, assegurar quais as três primeiras agências reguladoras
a remuneração adequada dos investimentos foram criadas: a Agência Nacional de Ener-
realizados nas empresas prestadoras de ser- gia Elétrica (Aneel), a Agência Nacional de
viço, dirimir conflitos entre consumidores e Telecomunicações (Anatel) e a Agência Na-
empresas prestadoras de serviço e prevenir cional do Petróleo (ANP). Em 13 de feverei-
abusos de poder econômico por agentes ro daquele ano foi aprovada a Lei nº 8.987/
prestadores de serviços públicos. 1995 (Lei de Concessões)10 que regulou, de

9. Conselho de Reforma do Estado (1997).


10. A Lei de Concessões foi elaborada por Fernando Henrique Cardoso quando este era senador da República.

189
Agências reguladoras no Brasil

forma geral, as concessões e permissões de regulação por agências independentes, como


serviços públicos previsto no artigo 175 da os órgãos que teoricamente foram concebi-
Constituição Federal de 1988.11 Em 16 de fe- dos para refletir e direcionar a criação do
vereiro de 1995, a Presidência da República novo marco regulatório pouco ou nada in-
encaminhou ao Congresso Nacional várias terferiram no processo de criação das pri-
propostas de emenda constitucional (PEC), meiras agências criadas, evidenciando a
com o objetivo de alterar dispositivos cons- existência de um descompasso e uma
titucionais que impossibilitavam a continui- compartimentalização entre a reflexão e a
dade do processo de privatização, dentre as prática sobre a questão regulatória no Brasil
quais a PEC 06/95, referente à flexibilização (NUNES et alli, 2007; PACHECO, 2006).
do monopólio do petróleo e a PEC 03/95, Contudo, o próprio Poder Executivo
referente à flexibilização do monopólio das não tinha clareza, naquele momento, sobre
telecomunicações (Quadro 1). o modelo a ser instituído, como revelam as
A elaboração da Aneel, da Anatel e ANP declarações de atores intimamente envol-
ocorreu, basicamente, no âmbito dos mi- vidos no processo de criação das três pri-
nistérios setoriais diretamente envolvidos, meiras agências (Quadro 2). Embora hou-
o Ministério de Minas e Energia e o Mi- vesse a idéia de conferir forte autonomia
nistério das Comunicações, e a Casa Civil e aos novos órgãos reguladores, o processo
não no MARE e no CRE. Assim, não apenas de constituição do arcabouço legal da agên-
o processo de liberalização e privatização dos cia reguladora independente, não foi acom-
setores de energia e telecomunicações an- panhado de uma idéia clara de como seria
tecedeu a concepção de um modelo de o seu formato jurídico e organizacional e,

QUADRO 1. Flexibilização e liberalização dos setores de energia e


telecomunicações.

11. O art. 175, da Constituição Federal, determina que: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente
ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”.

190
Quadro 2. Indefinições sobre o formato das agências.

Fonte: Elaboração própria a partir de entrevistas concedidas aos autores para o projeto Agências Reguladoras: gêne-
se, contexto, perspectivas e controle.

191
Agências reguladoras no Brasil

conseqüentemente, sobre questões de inde- gia elétrica, estruturado através de sistemas


pendência, accountability e controle. Essas interligados de geração, transmissão e dis-
questões foram discutidas ao longo do pro- tribuição de energia, a Eletrobrás era res-
cesso de constituição da Aneel, Anatel e ANP. ponsável por aproximadamente 25% da gera-
ção de energia e a maior parte da distribuição,
cerca de 85%, era realizada por empresas
3. Agências reguladoras como estaduais. Nas telecomunicações, a Telebrás
autarquias especiais
controlava a Embratel, única operadora de
Antes das privatizações e liberalizações, chamadas de longa distância, e diversas
os setores de energia e telecomunicações prestadoras de serviços telefônicos que atu-
eram organizados através de empresas de avam nos estados. No caso do petróleo e
economia mista, sendo o Estado detentor da gás natural, a Petrobrás tem, até hoje, forte
maioria do capital votante. No setor de ener- controle sobre o setor.12 A regulação desses

Quadro 3. Etapas da Constituição da Aneel, Anatel e ANP.

12. É importante ter em mente que empresas multinacionais e nacionais já atuavam na distribuição de combus-
tíveis, competindo com a subsidiária da estatal, a BR Distribuidora.

192
setores era exercida pelo Departamento Na- Esse aspecto é importante, pois, enquanto
cional de Combustível (DNC) e pelo Depar- as comissões especiais têm a relatoria e a
tamento Nacional de Águas e Energia Elé- presidência indicada pelos maiores partidos
trica (Dnaee), ambos subordinados ao Mi- (PFL e PMDB, ambos da coalizão de gover-
nistério de Minas e Energia, e pelo Departa- no), as comissões permanentes têm as
mento Nacional de Telecomunicações, subor- relatorias indicadas pelos presidentes das co-
dinado ao Ministério das Comunicações missões (estes são designados pelo critério de
(MELO, 2002). proporcionalidade no início da legislatura).
A formulação, a aprovação e a constitui- As modificações propostas pelos relatores fo-
ção das novas agências foram marcadas por ram acompanhadas de perto pelos membros
um intenso processo de negociação e podem dos Ministérios, às vezes com a participação
ser analiticamente divididas em duas etapas: dos próprios ministros (Quadro 4).
os estudos setoriais e a tramitação dos proje- Em menor grau, participaram das dis-
tos de lei no Congresso Nacional (Quadro cussões associações representativas de tra-
3).13 Durante os estudos setoriais, foram rea- balhadores, representantes do governo e es-
lizados diagnósticos sobre os problemas de tudiosos do tema. Os partidos de oposição
cada área de infra-estrutura e as alternativas ao governo foram ativos, tendo normalmen-
para a abertura do mercado e sua regulação. te posições contrárias aos projetos apre-
Os atores fundamentais no processo decisório sentados. No entanto, devido a seu caráter
foram a burocracia ministerial, especialmen- minoritário, não conseguiram impor suas
te os ministros de Estado e os secretários exe- propostas ou barrar as estratégias do gover-
cutivos, a burocracia dos órgãos reguladores no. Vale ressaltar que houve um intenso deba-
existentes e as consultorias contratadas. te no processo legislativo entre os vários
Na tramitação dos projetos no Congres- setores interessados a favor e contra a aber-
so Nacional, os principais atores foram os tura dos setores de energia e telecomunica-
parlamentares, especialmente aqueles ligados ções e a liberalização e flexibilização dos
à base aliada do governo e os secretários mercados geraram resistências por parte de
executivos dos ministérios (RIBEIRO, PEI- várias categorias profissionais (petroleiros,
XOTO e BURLAMAQUI, 2006). Os atores servidores públicos etc.).
da coalizão governista responsáveis pelos A Aneel foi a primeira agência regula-
Projetos de Lei enviados ao Congresso acom- dora independente criada no Brasil e sig-
panharam toda a tramitação no Legislativo. nificou a introdução de uma nova figura ju-
A Anatel e a ANP tiveram comissões espe- rídica na Administração Pública Federal in-
ciais constituídas no Congresso e a Aneel pas- direta: a autarquia especial.14 Sua criação
sou somente por comissões permanentes. ocorreu a partir dos estudos setoriais para a

13. Descrições detalhadas dos processos de constituição da Aneel, da Anatel e da ANP encontram-se em Nunes
et alli (2007) e consiste em um dos produtos do projeto Agências Reguladoras: gênese, contexto, perspectivas
e controle, realizado na Universidade Candido Mendes, com auxílio do CNPq, entre março de 2005 e
fevereiro de 2006.
14. Ressalte-se que não há no direito administrativo brasileiro uma definição precisa sobre o gênero autarquia. A
especificação autarquia especial pretende enfatizar a autonomia administrativa e financeira da autarquia e no
caso das agências reguladoras se apóia na determinação de mandatos fixos e estabilidade dos seus dirigentes.

193
Agências reguladoras no Brasil

Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro Nacional. O relator do Projeto, Deputado


(RESEB), os quais tinham entre seus objeti- José Carlos Aleluia (PFL-BA), em seu
vos transformar o Dnaee, diagnosticado na Substitutivo classificou a proposta original
ocasião como um mero departamento cen- do governo como ‘tímida’ na formulação da
tralizado do MME, em uma autarquia. A independência da agência, principalmente no
denominação especial para a nova autarquia, que se referia a sua autonomia financeira,
ocorreu, no entanto, durante a tramitação administrativa e orçamentária e propôs a
do Projeto de Lei n° 1669/96 no Congresso criação da Aneel como autarquia especial

Quadro 4. Interação com processo legislativo.

Fonte: Elaboração própria a partir de entrevistas concedidas aos autores para o projeto Agências Reguladoras: gêne-
se, contexto, perspectivas e controle.

194
vinculada ao Ministério de Minas e Energia. jurídico do órgão a ser establecido, dentre
A denominação ‘especial’ foi uma forma en- os quais se destacam os limites impostos pelo
contrada para aumentar a autonomia da direito administrativo brasileiro a inovações
agência, principalmente financeira, sem in- em matéria de órgãos da administração pú-
fringir o direito administrativo brasileiro. blica direta e indireta e a resistência do mi-
Vale ressaltar que a lei que estabeleceu a es- nistro Sérgio Motta à configuração do ór-
trutura regimental da Aneel balizou a gão regulador sob a forma de autarquia.
estruturação da ANP, conferindo a esta agên- O primeiro aspecto refere-se aos limites
cia o mesmo modelo jurídico-organizacional. impostos pelo direito administrativo brasilei-
Já a discussão sobre a autonomia da ro ao estabelecimento do formato de nature-
Anatel foi uma das mais intensas no proces- za fiducial16 inicialmente concebido para o
so de constituição das agências reguladoras futuro órgão regulador, denominado como
no Brasil e mostra como restrições constitu- Ofício Brasileiro de Telecomunicações. Pre-
cionais foram importantes para que o for- tendia-se, com isso, criar um órgão dotado
mato final assumido pelas novas agências de forte independência em relação ao gover-
reguladoras. Entre agosto de 1995 e dezem- no, sem se afastar das regras vigentes para
bro de 1996, o Ministério das Comunica- todo e qualquer órgão da administração pú-
ções criou grupos de trabalho com técnicos blica no Brasil e dos controles constitucionais
do próprio ministério para reestruturar o previstos, como a submissão dos órgãos a pro-
setor de telecomunicações e criar o novo cedimentos tais como a obrigação de licitar,
órgão regulador. Em julho de 1996 foram obrigação de fazer concursos públicos, obri-
contratadas três consultorias, duas interna- gação de respeitar limites de vencimentos para
cionais e uma nacional para auxiliar os téc- os dirigentes, a submissão aos controles pelo
nicos do ministério.15 O principal debate se Congresso Nacional, a aprovação do orça-
deu sobre a questão da independência polí- mento, pelo Tribunal de Contas, da fiscaliza-
tica do futuro órgão regulador e a pretenção ção financeira e orçamentária. No entanto, a
de que ele fosse desvinculado administrati- possibilidade de criação de uma entidade do
vamente de qualquer dos Poderes da Repú- tipo Ofício foi abandonada em função do ris-
blica. Havia alguns embates sobre o modelo co de inconstitucionalidade.

15. As consultorias contratadas foram a McKinsey & Company, responsável pela definição do modelo econô-
mico; a Lehman Brothers; Dresdner Kleinworth Benson; Motta, Fernandes Rocha & Associados Advoga-
dos para a reestruturação e privatização do Sistema Telebrás; e a Sundfeld Advogados: organização dos
serviços e criação do órgão regulador (PRATA, BEIRÃO e TOMIOKA, 1999).
16. Segundo a exposição de motivos do Ministério das Comunicações à Lei Geral das Telecomunicações envia-
da ao Executivo, “a natureza fiducial, no campo dos negócios jurídicos, fundada no princípio da autonomia
da vontade, sinônimo de confiança, conhecida desde o direito romano, confere, a quem se atribui a gestão
de bens e direitos destinados à realização de determinados fins, ampla liberdade de ação e plena titularidade
de direitos e prerrogativas voltados à consecução do escopo assinalado.” (...) “Entretanto, a possibilidade de
que uma interpretação conservadora da Constituição – no sentido de que o fato de ela expressamente se
referir ao órgão regulador das telecomunicações não conferiria a esse organismo, necessariamente, tal con-
dição de autonomia – poderia significar algum risco à implementação da reforma, fez com que se procuras-
se, neste momento, uma proposta mais cautelosa.”

195
Agências reguladoras no Brasil

A adequação das expectativas do Minis- se transformou numa modalidade de licita-


tério das Comunicações aos limites consti- ção para a administração pública federal e
tucionais foi resolvida através do estabeleci- depois para a administração pública brasi-
mento do regime de autarquia especial. Mas leira como um todo. Em 10 de dezembro de
para isso foi preciso superar um segundo 1996, o Ministério das Comunicações en-
obstáculo: as limitações da lei de licitações caminhou à Presidência da República o Pro-
vigente na época, a Lei 8.666, a qual, segun- jeto de Lei nº 2.648, o qual três dias depois
do o ministro Motta, dificultaria o funcio- foi encaminhado ao Congresso Nacional. Na
namento do órgão regulador sob forma de tramitação do PL no Congresso, o
autarquia. A solução encontrada foi estabe- substitutivo do relator Alberto Goldman não
lecer uma nova modalidade de licitação – o alterou substantivamente o PL no que se re-
pregão – que, dada sua maior flexibilidade, fere ao desenho da nova agência reguladora

Quadro 5. Desenho institucional e autonomia das agências.

Fonte: Melo (2002).

196
e no dia 16 de julho de 1997 a nova Lei Geral res, além da infra-estrutura, originando a
das Telecomunicações, Lei 9.472, foi pro- criação de mais sete agências independentes
mulgada e a Anatel instituída. federais: a Agência Nacional de Vigilância
Observa-se assim que, apesar das Sanitária (Anvisa), a Agência Nacional de
indefinições iniciais, as três primeiras agências Saúde Suplementar (ANS), Agência Nacio-
inauguraram, pelo menos institucionalmente, nal de Águas (ANA), a Agência Nacional de
um novo modelo de intervenção regulatória Transportes Aquaviários (Antaq), Agência
do Estado na economia no Brasil. Em vez da Nacional de Transporte Terrestre (ANTT),
regulação endógena promovida por departa- Agência Nacional do Cinema (Ancine), Agên-
mentos da administração direta, a regulação cia Nacional de Aviação (Anac). Todas as
dos setores de infra-estrutura passaria a ser agências apresentam o mesmo desenho
realizada por agências independentes, sob a institucional das três primeiras, ou seja, con-
forma de autarquias especiais. O desenho figuram-se como autarquias especiais, sen-
institucional final das agências tem como do o que, basicamente, as distingue é o tipo
denominador comum a previsão de autono- de regulação que exercem, se econômica ou
mia e estabilidade dos seus dirigentes, a pre- social (Quadro 6).
ocupação com a sua independência financei- As causas da expansão do modelo de
ra, funcional e gerencial, e procedimentos regulação através de agências independen-
de controle e transparência (Quadro 5). tes constituem um tema de estudo recor-
Vale ressaltar que há um elemento que rente na literatura especializada. No caso
pode ser considerado limitador da indepen- das agências dos setores de infra-estrutu-
dência pretendida para as agências, embora, ra, a principal apontada na literatura para
por outro lado, possa ser entendido como sua criação é a necessidade de conferir
um aspecto que confere maior transparên- credibilidade regulatória aos investidores e
cia à sua atuação: o contrato de gestão da agentes econômicos. Isso porque esses se-
agência com o ministério ao qual está vincu- tores normalmente constituem monopólios
lado, estabelecendo metas, prazos e indica- naturais e requerem que os órgãos regula-
dores de desempenho definidos ex ante e que dores tenham autonomia em relação às pres-
se não forem cumpridos podem levar à des- sões políticas de governos, a fim de assegu-
tituição dos dirigentes (MELO, 2002; GELIS rar a competitividade econômica do setor
FILHO, 2006). Entre as três primeiras agên- através da criação ou simulação da concor-
cias reguladoras, o contrato de gestão foi rência e universalizar os serviços ao público
previsto apenas para a Aneel.17 em um ambiente com regras estáveis (MELO,
2001; MUELLER e PEREIRA, 2002)
As agências reguladoras na área social
4. Difusão do modelo das agências são explicadas, principalmente, por ques-
reguladoras
tões de natureza administrativa e política,
O modelo de regulação por agências in- como necessidade de instituir órgãos admi-
dependentes foi difundido para outros seto- nistrativos mais flexíveis ou transferir os

17. O contrato de gestão foi previsto também para a ANS e a Anvisa.

197
Agências reguladoras no Brasil

Quadro 6. Agências reguladoras federais.

custos políticos de tomada de decisões impo- a qualidade dos serviços oferecidos e defen-
pulares do governo para órgãos técnicos in- der os direitos dos usuários e combater a
dependentes (blame shifting). A regulação por assimetria de informação e externalidades
agência independente nesses setores teria ou- negativas (MELO, 2002; GELIS FILHO,
tra lógica, segundo a literatura, como prover 2006).

198
No entanto, não se pode dizer que há ção, objetivos, estrutura funcional, grau de
consenso teórico nem evidências empíricas autonomia e mecanismos de controle. De
suficientes na literatura sobre a verdadei- modo geral os poucos estudos sobre as agên-
ra rationale para a difusão do modelo de cias estaduais ressaltam sua fragilidade
agências reguladoras independentes no Bra- institucional, pelo fato de terem sido criadas
sil. Embora as lógicas apontadas para justifi- após a privatização de empresas ou serviços
car a criação das agências sejam distintas, o públicos, e por não gozarem de autonomia
modelo institucional existente é o mesmo (ou em relação aos governos dos Estados
muito semelhante), independentemente do (MELO, 2002).
setor, se econômico ou social. Nesse caso,
vale ressaltar que o PDRAE havia definido
5. Questões em aberto:
que as atividades tipicamente desempenha-
independência, controle e modelo
das pelas agências reguladoras dos setores regulatório
sociais deveriam ficar a cargo de agências
5.1 Independência e controle19
executivas. O fracasso do modelo de adesão
criado para difundir as agências executivas A matriz original que inspirou o dese-
somado a um processo de isomorfismo nho institucional do regime regulatório
organizacional propagado pela onda do novo emergente no Brasil foi o modelo america-
gerencialismo na administração pública pode no, com alguma inspiração na experiência
explicar por que essas foram preteridas pe- britânica pós-privatização. As agências ame-
las agências reguladoras (COSTA, 2002).18 ricanas foram “insuladas” em um cuidado-
O modelo das agências se difundiu, tam- so sistema de procedimentos destinados a
bém, para outros níveis da federação, a par- garantir sua transparência e a possibilida-
tir de 1997 e, atualmente, existem vinte e de de apelo e protesto das partes atingi-
três agências estaduais em funcionamento no das. Ainda assim, abundaram discussões
país (ver quadro em anexo). As agências es- sobre sua legitimidade e accountability. No
taduais diferenciam-se das federais por se- que toca a sua legitimidade, muito se de-
rem multi-setoriais, com exceção do Estado bateu, inclusive em foros judiciários, a
de São Paulo onde foram criadas duas agên- inconstitucionalidade da delegação de po-
cias, a CSPE e Artesp, para regular setores deres legislativos indeterminados às agên-
isolados. Vale dizer que as agências regula- cias (MASHAW, 1997). A solução ameri-
doras estaduais se diferenciam muito no que cana é engenhosa ao obrigar as agências a
se refere às suas respectivas áreas de atua- rigoroso “procedimentalismo”, através dos

18. É comum também a referência a Aneel, Anatel e ANP como agências da primeira geração, às agências da
área de saúde (Anvisa e ANS) como de segunda geração e às demais como de terceira geração. Nos dois
primeiros casos ter-se-ia clara referência à regulação de mercados, sendo as três primeiras agências instituí-
das para cuidar dos setores de infra-estrutura privatizados e flexibilizados e as agências da área de saúde
para resguardar os interesses dos cidadãos frente a um mercado competitivo. Já a criação das agências de
terceira geração, dada a diversidade de finalidades e áreas de atuação, indicariam uma “perda do referencial
de regulação de mercados” e seriam exemplo de um “mimetismo” institucional, ou seja, cópia de um mesmo
formato institucional para cuidar de situações completamente diferentes (PÓ e ABRÚCIO, 2006:684).
19. Essa questão foi abordada em Nunes (2003b).

199
Agências reguladoras no Brasil

ritos formais do processo devido (due process), ção jurídica e institucional nítida para os
que significa uma certa “judiciarização” dos órgãos reguladores, a fim de estabelecer, por
procedimentos regulatórios de modo a ga- exemplo, padrões de controle social e de
rantir o contraditório e a intervenção de to- relação com a administração direta e com os
das as partes interessadas. Desta forma, o Poderes Legislativo e Judiciário.21 Visto que
poder administrativo das agências difere do não existe, no direito administrativo brasi-
poder típico da burocracia hierárquica do leiro, jurisprudência ou normas para lidar
Executivo, visto que precisa ser feito às cla- com esta nova face da relação entre setor
ras, com divulgação pública e prazos para a público e sociedade, deve-se continuar espe-
intervenção das partes afetadas. Antes de rando turbulenta vida para a ação normativa
exarar uma regra, a agência federal por ela e punitiva das agências, na sua interação com
responsável deve fazer um anúncio público as empresas e demais agentes econômicos.
de sua intenção, inclusive com detalhes do Não por acaso, o funcionamento das
procedimento a ser seguido.20 agências é constante objeto de crítica, seja
Na Inglaterra, outro exemplo a se obser- porque seu escopo de atuação ultrapassa os
var, procurou-se evitar o “procedimentalismo” limites da regulação, ao propor e executar
americano – até mesmo pela escassa prática políticas públicas dos seus respectivos seto-
inglesa com lei escrita. As discussões não têm res, seja por conta da “politização” encon-
sido menos intensas, embora o caso inglês te- trada na nomeação de presidentes e direto-
nha mostrado preocupação mais clara com o res ou ainda pela baixa qualidade do atendi-
lado do consumidor e com questões de eqüi- mento prestado na defesa dos direitos dos
dade e justiça na constituição, nas responsabi- usuários e consumidores nas diversas áreas
lidades dos reguladores e dos entes em que atuam.
privatizados. De todo modo, a própria Ingla-
terra, na área de telecomunicações, começou a
5.2 Modelo regulatório inconcluso22
tender para o “procedimentalismo” como for-
ma mesmo de atribuir maior legitimidade ao Anunciado como inovação institucional
poder regulatório (CAVE, DODSWORTH e durante o governo Fernando Henrique Car-
THOMPSON, 1996). doso, destinado a conferir a legibilidade ne-
A análise do processo de criação das agên- cessária aos setores de infra-estrutura
cias no Brasil mostra que faltou uma defini- privatizados, o novo modelo regulatório

20. Sem exceção, todos os presidentes americanos, desde Nixon até Clinton, publicaram decretos (Executive
Orders) detalhando os procedimentos necessários ao estabelecimento de novas regulações. Estes envolvem
estudos de impacto ambiental (EIS, environmental impact statement), impacto sobre a inflação (IIS, inflation
impact statment). Em geral, a supervisão e final revisão do processo está a cargo do OMB (Ministério da
Administração e Orçamento). Ver detalhes do “roteiro regulatório” em McGarity (1991) e Viscusi e Harrington
Jr (1997).
21. Diagnósticos semelhantes podem ser encontrados em Wald e Moraes (1999).
22. Informações detalhadas sobre o discurso a respeito das agências reguladoras nos primeiros anos do governo
Lula, a partir da compilação de notícias nos principais jornais do país encontram-se em Nunes et alli (2005).

200
continua em aberto. As oscilações nas pro- posta de transferência do poder de conces-
postas de alterações do marco regulatório são das agências para os ministérios gerou
durante os primeiros anos do governo Lula fortes críticas por parte da oposição, uma
e a real possibilidade de mudanças nas agên- vez que no setor elétrico e de petróleo ainda
cias ao sabor da conjuntura evidenciam a existiam empresas estatais vinculadas ao
fragilidade e instabilidade institucional do Ministério de Minas e Energia, como a
novo modelo estabelecido. Inicialmente, o Petrobrás e a Eletrobrás.
governo Lula considerou o processo de Em outubro de 2003, o governo alterou
liberalização ocorrido no governo FHC novamente seu posicionamento. Através do
como uma espécie de “terceirização do Bra- relatório interministerial que serviu de base
sil” e as agências foram acusadas de ter ex- para a elaboração dos projetos de lei que
cessiva autonomia política e falta de trans- pretendiam mudar a relação das agências
parência nas relações entre reguladores e com o Poder Executivo, o governo Lula pas-
regulados, com fortes prejuízos para os ci- sou a considerar o fortalecimento das agên-
dadãos-consumidores. Nesse contexto, ga- cias indispensável para a promoção do bem-
nhou força a idéia de centralizar poder nos estar social, para o sucesso dos investimen-
ministérios de infra-estrutura (Ministério das tos privados e a manutenção das tarifas e,
Comunicações e Ministério de Minas e Ener- também, para a disponibilidade e acesso aos
gia). A partir de abril de 2003, as críticas às serviços. Além disso, considerou positivo os
agências reguladoras se amenizaram, mas mandatos estáveis para os diretores das agên-
permaneceu o interesse do governo Lula em cias, com duração diferente da do presiden-
alterar o seu formato. te da República, a fim de garantir indepen-
O governo passou a considerar a idéia dência às agências. Por fim, defendeu-se a
de criação de contratos de gestão, a serem necessidade dos próprios ministérios fazerem
assinados entre todas as agências e os minis- as licitações nos setores. Essa posição sofreu
térios correspondentes ao setor regulado e alteração a partir de meados de outubro,
de transferir as atribuições de licitação e de quando o governo começou a discutir a pos-
concessão dos serviços públicos para os mi- sibilidade de rever a proposta de retirar das
nistérios. Além disso, um grupo de trabalho agências reguladoras o poder de outorga.
da Casa Civil, coordenado pelo subchefe de Passou-se, então, a defender o poder das
assuntos governamentais, Luiz Alberto dos agências em licitar e outorgar as concessões
Santos, preparou um relatório para ser en- de serviços públicos.
caminhado ao presidente da República pro- O discurso do governo Lula sofreu nova
pondo a extinção da ANA e da Ancine, a modificação em abril de 2004, quando pas-
aceleração do processo de criação da ANAC. sou a defender propostas para a criação de
No final de agosto de 2003, o governo um contrato de gestão a ser assinado entre
elaborou minutas de dois projetos para alte- as agências e os respectivos ministérios
rar o funcionamento das agências. O primei- setoriais, a implantação de uma ouvidoria
ro projeto retirava das agências o poder de em cada agência para facilitar a comunica-
concessão de serviços públicos. O segundo ção da população com as agências, a ade-
alterava a duração dos mandatos dos presi- quação dos mandatos das diretorias das
dentes e dos diretores das agências. A pro- agências em quatro anos, sem serem coin-

201
Agências reguladoras no Brasil

cidentes entre si ou com o mandato do pre- ra também se alojam agências, vistas, no


sidente da República e a transferência do imaginário administrativo recente, como
poder concedente para os ministérios solução para velhos problemas que deman-
setoriais. dem ação considerada moderna e eficiente.
No mesmo mês, o Executivo encaminhou Agências, ou pelo menos a menção de sua
ao Congresso Nacional o Projeto de Lei instalação, parece que carregam consigo as
3.337/2004 que dispõe sobre a gestão, a soluções nunca antes encontradas pela bu-
organização e o controle social das agências rocracia tradicional.
reguladoras. O Projeto estabelece estabilida- Vivemos, pois, um período fértil à re-
de aos dirigentes das agências durante o produção das agências. Sua existência, como
mandato de quatro anos e permite ao presi- entidades independentes, traz consigo um
dente da República novos dirigentes duran- punhado de problemas relevantes, tais como
te o sétimo e décimo oitavo mês do manda- o da delegação legislativa e o da invasão de
to. Institui, ainda, para todas as agências o territorialidades institucionais, além de vá-
contrato de gestão, a ouvidoria indepedente rias questões ligadas à legitimidade política,
e o condicionamento de repasses orçamen- no que se refere a sua competência delega-
tários ao cumprimento de metas e desempe- da, e de legitimidade substantiva, no que se
nho previamente estabelecidos. O Projeto refere a seus procedimentos internos, prin-
tem recebido diversas emendas dos parla- cipalmente aqueles de natureza quase-judi-
mentares, principalmente para alterar o dis- ciária.23
positivo sobre o contrato de gestão e encon- No momento em que se fala no controle
tra-se, até o momento, em tramitação no das agências, na regulação do regulador, di-
Congresso. ficilmente encontraremos soluções, se dese-
jarmos que o modelo seja permanente, que
prescindam da emergência de um novo di-
6. Conclusão
reito administrativo, especificamente volta-
A criação das agências prescindiu, até o do para o território da regulação, no bojo
momento, de um verdadeiro regime do qual se garanta a supervisão política – e,
regulatório amplo, que desse sentido global portanto, a devida legitimidade frente ao
à nova instância regulatória. As unidades soberano delegante, o eleitor – por parte de
regulatórias agem independentemente de um comissão especial do Congresso e que possa
marco de referência, exceto os contratos das prever, explicita e cristalinamente, a obediên-
áreas em que atuam, quando os há, visto que cia de princípios frente à agenda política
em setores onde não houve privatização ago- vencedora, além de materializar certo grau

23. Delegação legislativa refere-se às possibilidades e aos limites dos órgãos do Estado exercerem o poder legislativo
através da edição de normas ou de regulamentos autônomos. Para uma discussão sobre o tema ver Barroso
(2001). Usamos o termo territorialidade institucional apenas para problematizar a necessidade de definições
claras sobre as atribuições das agências, de modo que suas atividades não extrapolem campos de atuação
exclusiva de outras instâncias institucionais. Nesse sentido, por exemplo, pode-se discutir até que ponto as
agências ao exercerem suas funções quase-legislativas estariam invadindo uma atribuição específica do Po-
der Legislativo.

202
de judiciarização dos processos internos às
agências, garantindo sua transparência,
publicidade e processo devido. Claro, a mul-
tiplicação de agências e seu espraiamento
para novas áreas distantes das originais, as
privatizadas, pode dilapidar a elegância e a
parcimônia do modelo.
Grande parte da atividade estatal é ativi-
dade regulatória, existindo centenas de órgãos
que a ela se dedicam. Não parece natural que
toda essa atividade comece a transitar em
direção ao modelo de agências independen-
tes. Esta modalidade de regulação pode ser
adequada a algumas instâncias intensivas em
conhecimento técnico, mas nem sempre
indicada para todo e qualquer aspecto da
política regulatória. O modismo administra-
tivo tende a ser atraente, com enorme capa-
cidade de conversão de novos adeptos. Se
vier a prevalecer sobre a criteriosa definição
de áreas de atividade, de novo, pode ser
dilapidada a unicidade do experimento recen-
te, levando-o até a banalização. Claro, esta é
hipótese radical, mas com bons antecedentes
na memória institucional brasileira.

203
Agências reguladoras no Brasil

Anexo
Anex

Quadro 7. Agências reguladoras estaduais.

Continua

204
Continua

205
Agências reguladoras no Brasil

Fonte: Elaboração própria a partir de informações coletadas na ABAR (www.abar.org.br) e web sites das agências
reguladoras.
*Nota, a Lei 4.555 extinguiu a Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos do Estado do Rio de Janeiro
(ASEP-RJ), autarquia criada em 1997.

206
Sugestões de leitura

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BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. O Caráter Cíclico da Intervenção Estatal. Revista de Economia Política, v.9,
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208
Capítulo 1
Federalismo

1
VALERIANO COSTA

1. O que é federalismo para identificar a forma de organização fe-


derativa vigente em cada país. Mas, além das
Antes de falarmos sobre o federalismo,
leis e normas, existem regras políticas não
precisamos distinguir os dois significados que escritas que contrariam alguns preceitos
atribuímos ao conceito. De um lado pode- constitucionais. Para entender o funciona-
mos utilizar essa palavra para designar uma mento real do federalismo em determinado
ideologia política, isto é, um conjunto de país, é preciso estudar suas principais insti-
idéias sobre como se deve governar um Esta- tuições políticas e administrativas, como os
do. Na verdade, existem dois tipos de ideolo- partidos, as casas legislativas e os órgãos exe-
gia federalista: para a primeira, concebida cutivos em todos os âmbitos da federação
originalmente pelos criadores do federalismo (nacional, estadual e municipal), o Poder Ju-
norte-americano, o federalismo significa uma diciário, a burocracia etc.
forma de organização política que centrali- A distinção entre a ideologia e a prática
za, em parte, o poder num Estado resultante do federalismo é essencial para não confun-
da união de unidades políticas preexistentes, dirmos nossas opiniões e desejos com a reali-
que não aceitam ser dissolvidas num Estado dade política que pretendemos compreender.
unitário; a segunda, hoje predominante, vê A versão moderna da ideologia federalista
no federalismo uma forma de descentralizar e o primeiro Estado federal organizado sob
o poder em estados centralizados (unitários), estes princípios surgiram ao mesmo tem-
como a Alemanha, a Argentina e o Brasil. po, no final do século XVIII. O federalis-
Portanto, a mesma palavra designa idéias mo foi concebido pelos “Pais Fundadores”
muito diversas, até mesmo opostas.2 dos Estados Unidos da América do Norte,
Federalismo também pode designar os James Madison, Alexander Hamilton e John
arranjos institucionais, isto é, o conjunto de Jay, como a melhor alternativa para o
leis, normas e práticas que definem como um impasse político em que se encontrava a re-
estado federal é concretamente governado. As cém-criada Confederação norte-americana.
constituições e a legislação ordinária de cada A Confederação era considerada um arranjo
estado federal são importantes elementos político instável e frágil pelas elites políticas

1. Valeriano Mendes Ferreira Costa, autor, com Fernando Abrucio, do livro Reforma do Estado e o contexto
federativo brasileiro. São Paulo: Konrad Adenauer, 1998.
2. Essa importante distinção é desenvolvida por Preston King em seu livro Federalism and Federation.

213
Federalismo

que desejavam criar um Estado forte, capaz tico ou rejeitar uma lei emitida pelo Con-
de defender o país dos antigos colonizado- gresso cuja legalidade tenha sido confirma-
res ingleses, mas, também, desenvolver a da pela Suprema Corte, órgão máximo do
economia e expandir as fronteiras para o Poder Judiciário. Por sua vez, o governo fe-
Oeste. Já as elites locais, dominantes em deral não pode obrigar nenhum estado ou
cada uma das 13 colônias originais e que município a fazer ou permitir que a União
sempre tiveram governos autônomos, rejei- realize qualquer ação em seu território sem
tavam totalmente a criação de um Estado autorização legal do Legislativo e confirma-
soberano unitário. ção da legalidade do ato pelo Judiciário.
Na verdade, os dois lados tinham razões Uma federação, portanto, é um tipo de
para rejeitar a outra opção. O Estado unitário Estado soberano que se distingue dos esta-
significava realmente uma grande concentra- dos unitários apenas pelo fato de que os
ção de poder nas mãos dos governantes; por órgãos centrais de governo “incorporam,
sua vez, as confederações representavam uma em bases constitucionais, unidades regio-
falsa alternativa de organização política, pois nais em seu processo decisório” (KING,
as unidades territoriais originais preservavam 1982:75). Estes podem ser representantes
sua soberania e, portanto, tinham o direito dos estados (ou províncias), eleitos direta-
de romper o pacto a qualquer momento. mente pela sua população, como os sena-
A grande originalidade do modelo pro- dores ou indicados pelos governantes es-
posto pelos autores d’O federalista foi a taduais – como é o caso dos membros do
combinação do princípio da representação Conselho Federal Alemão (Bundesrat), ór-
popular com uma dupla divisão do poder. gão equivalente ao Senado.
De um lado, dividiram o poder entre três O grau de centralização ou descen-
órgãos independentes: os Poderes Executi- tralização do poder num Estado federal de-
vo, Legislativo e Judiciário. Essa divisão pende, portanto, da forma como é compos-
valia tanto para a União quanto para os es- to e funciona efetivamente o poder central.
tados. Foi assim que nasceu o regime Alguns estados federais podem ser mais cen-
presidencialista. De outro lado, distribuíram tralizados do que certos estados unitários,
as responsabilidades de governo entre a como é o caso do México,3 quando compa-
União e os estados de forma que nenhum rado com a Grã-Bretanha ou a Suécia, por
deles pudesse interferir nas tarefas do outro exemplo.
sem autorização política ou judicial. A vantagem do federalismo não consiste
Isso significa que, no regime federalista, em eliminar a possibilidade de conflitos polí-
não existe dupla soberania, isto é, nenhum ticos entre os estados membros, mas em criar
estado membro da federação tem o direito regras de resolução desses conflitos. É claro
de renunciar unilateralmente ao pacto polí- que essas regras podem falhar, levando os

3. A partir de meados dos anos 90, a escolha do presidente da República deixou de ser controlada pelo Poder
Executivo Federal, que manipulava sistematicamente o processo eleitoral. Apesar de formalmente uma fede-
ração, o México foi dominado pelo PRI (Partido Revolucionário Institucional) durante 70 anos. A partir de
2000, com a eleição de Vicente Fox do PAN (Partido da Ação Nacional), o pluralismo partidário foi reativado,
mas o poder central ainda hoje dispõe de grande influência sobre os governos estaduais.

214
membros de um Estado federal ao conflito mitação das províncias, durante o Império
bélico, como a Guerra de Secessão norte- (1822-1889), transformadas em estados a
americana (1861-1865) entre o sul escravista partir da República (1889).
e o norte abolicionista. Da mesma forma, a Apesar dos constantes esforços de centra-
divisão inicial de competências entre a União, lização política e administrativa, a dispersão
os estados e os municípios (no caso brasilei- da população e a dificuldade de estabelecer
ro) não impede que o exercício dessas com- um controle político direto sobre o território
petências mude bastante ao longo do tem- obrigou o governo central a estabelecer pac-
po. Por exemplo, no início do federalismo tos informais com os poderes regionais. Du-
norte-americano, os estados tinham autono- rante todo o primeiro século de vida inde-
mia total para legislar sobre quase tudo, pendente, a lei e a ordem no interior do país
menos a política externa e guerra com ou- foram administradas efetivamente pelos po-
tros países, emissão de moeda e comércio tentados locais, os “coronéis”.
entre os estados. Ao longo dos séculos XIX Quando a República foi proclamada, em
e XX, a União foi expandindo suas atribui- 1889, com ela veio, “naturalmente”, a rei-
ções sobre muitas áreas, como desemprego, vindicação do federalismo. As províncias que
saúde, educação, transportes, energia, segu- se haviam desenvolvido economicamente du-
rança, meio ambiente etc. rante o Segundo Reinado (1841-1889), como
Agora vamos ver como o federalismo foi São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul,
instituído no Brasil e como se desenvolve- desejavam exercer maior influência direta so-
ram as relações intergovernamentais, isto é, bre o governo central no novo regime.
entre o governo central e os estados, ao lon- Como sabemos, o exercício da represen-
go desse período. tação popular naquele período era bastante
restrito e isso influenciou diretamente o fun-
cionamento do regime federativo. Tanto as
2. História e desenvolvimento do eleições estaduais quanto as presidenciais eram
federalismo no Brasil
controladas por elites regionais que estabele-
Governar um território do tamanho do ciam acordos informais para dividir o poder
brasileiro (mais de 8,5 milhões de km2) não tanto nos estados como na União. Esses pac-
é uma tarefa fácil. Algum tipo de descen- tos ficaram conhecidos como a “política dos
tralização política e administrativa sempre governadores”. Os dois principais estados
foi necessária. Desde o período colonial eram São Paulo e Minas Gerais, enquanto o
(1500-1822), Portugal enfrentou muitas di- Rio Grande do Sul era um aspirante ao exer-
ficuldades para ocupar e manter o controle cício do poder nacional.
político do território brasileiro. Não é à toa Como não havia um processo represen-
que a metrópole foi obrigada a dividir a nova tativo democrático, o princípio da sobera-
colônia em verdadeiros feudos, as capi- nia popular não exercia sua influência mo-
tanias hereditárias, administrados por no- deradora sobre os interesses regionais, ex-
bres que se obrigavam a fazê-lo em nome pressos pelos partidos republicanos esta-
da Coroa. O sistema de capitanias influen- duais. Nessas condições, o federalismo fun-
ciou decisivamente o padrão de organiza- cionava, na prática, como potencializador
ção territorial brasileiro, até mesmo na deli- das oligarquias estaduais, que limitavam

215
Federalismo

bastante o papel do governo federal como sembléias estaduais. A preservação de certa


agente do desenvolvimento econômico e autonomia para os governos estaduais teve
social do país. Por isso, a maior parte da eli- um papel importante na revitalização do fe-
te modernizadora tinha uma visão negativa deralismo quando o regime autoritário come-
do federalismo. çou a perder força. Além disso, como a
Com a Revolução de 1930, esse federa- redemocratização se deu através de eleições
lismo “oligárquico” foi derrubado pelo Go- diretas para os governos estaduais, antes das
verno Provisório de Getúlio Vargas e a auto- eleições diretas para presidente da Repúbli-
nomia dos estados foi muito reduzida pela ca, os governadores eleitos em 1982 e 1986
imposição de “interventores” no lugar dos tiveram uma influência muito grande na Nova
governadores. Obviamente, os estados conti- República (1985-1989), pois o presidente José
nuaram exercendo influência política indire- Sarney, além de não ter sido eleito diretamente
ta e até se revoltaram, como São Paulo, em pelo povo, era muito identificado com a dita-
1932, com a demora em constitucionalizar dura militar.
o novo regime. Entretanto, a intensa compe- A crescente influência dos governos es-
tição entre diversas elites estaduais em torno taduais nos assuntos nacionais atingiu seu
das eleições presidenciais, marcadas para ponto máximo durante a Assembléia Cons-
1938, facilitaram as articulações de Getúlio tituinte (1987-1988), quando os estados, mas
para a realização do golpe de novembro de também os municípios, consolidaram o pro-
1937. Durante o Estado Novo (1937-1945), cesso de descentralização dos recursos tri-
o governo central aumentou tanto a con- butários iniciado em fins dos anos 70. O pro-
centração de poder que até as bandeiras es- blema é que a transferência de impostos e
taduais foram queimadas numa cerimônia receitas para os governos subnacionais ocor-
pública como que simbolizando o fim do reu num momento de grave crise fiscal do
regime federativo. governo federal, o que dificultou o ajuste
Com a derrubada de Vargas pelos milita- fiscal, necessário para que o Estado brasilei-
res em 1945, o regime federativo foi restabe- ro retomasse sua capacidade de investimen-
lecido, dessa vez junto com um sistema re- to e de redução das desigualdades regionais.
presentativo efetivo e partidos competitivos Durante todo esse período, até a primei-
em âmbito nacional. Durante esse período, o ra eleição de Fernando Henrique Cardoso,
cargo de governador voltou a ser muito dis- em 1994, os governadores exerceram sua
putado, pois era o caminho natural para a con- influência sobre o Congresso e sobre o go-
quista da Presidência da República. A dinâ- verno federal, vetando soluções para a crise
mica federativa desse período exacerbou o fiscal que resultassem em redução de seus
conflito entre as elites regionais dos princi- recursos, como a renegociação de suas dívi-
pais estados – ainda, São Paulo, Minas Gerais das e o controle dos bancos estaduais.
e Rio Grande do Sul –, o que facilitou a to- Em resumo, o processo de centraliza-
mada do poder pelos militares em 1964. ção do poder nas mãos do governo federal,
Ao contrário do que aconteceu durante que havia sido o principal instrumento de
o Estado Novo, a ditadura militar instalada “administração” do federalismo pelo me-
em 1964 não fechou o Congresso nem impôs nos desde 1930, deu lugar a um processo
interventores aos estados. Os governadores desorganizado de descentralização no qual
passaram a ser eleitos indiretamente pelas as- estados e municípios atuaram como agentes

216
“predadores” de um governo federal enfra- uma crescente sobreposição de funções em
quecido. diversas áreas de atuação do poder público.
Assim, cada vez mais a União, os estados e
os municípios têm sido responsáveis por
3. As bases constitucionais áreas comuns, como educação, saúde, trans-
do federalismo no Brasil
portes e meio ambiente, mas sem que haja
Como vimos antes, um dos elementos qualquer tipo de coordenação.
mais importantes para se entender como Esse processo culminou na Constituição
funciona o federalismo são os princípios de 1988, quando ocorreu uma grande
constitucionais e a legislação complementar descentralização fiscal e tributária, sem que
e ordinária vigentes no país. Um fato interes- as competências federativas fossem claramente
sante é que a Constituição do Império (1824) definidas. Estas e outras questões serão mais
já reconhecia o papel político das unidades bem discutidas no fim do capítulo. Vejamos
territoriais, as províncias. Estas elegiam as- agora as principais normas constitucionais que
sembléias que tinham autonomia para legis- regem o federalismo no Brasil.
lar sobre assuntos estritamente provinciais, A Constituição de 1988 define minucio-
como educação, transportes, administração samente a organização da federação. O arti-
dos municípios etc. A Constituição de 1891, go 18 estabelece que o Brasil é uma Repúbli-
inspirada no federalismo norte-americano, ca Federativa composta, obrigatoriamente,
foi bastante “generosa” na atribuição das pela União, pelos 26 estados, pelo Distrito
competências aos estados. Em primeiro lu- Federal e pelos mais de 5.500 municípios.
gar, os estados tinham autonomia para legis- Aqui temos dois pontos interessantes. Pri-
lar sobre todo assunto que não fosse atribui- meiro, o Brasil é um dos únicos estados fede-
ção exclusiva da União, como política ex- rais a incluir os municípios como membros
terna, controle da moeda, forças armadas permanentes, até mesmo com autonomia
etc. Mas a norma da Constituição de 1891 legislativa e tributária definidas pela Consti-
responsável pelo caráter “estadualista” da tuição (artigos 29 e 30). Segundo, em decor-
República Velha (1891-1930) foi aquela rência dessa peculiaridade, o Brasil é uma
que concedia o controle do imposto sobre federação em constante ampliação, já que o
exportações aos estados. Como os estados próprio artigo 18 (parágrafos 3 e 4) permi-
mais importantes economicamente eram te a criação de estados e municípios, de-
aqueles que exportavam café, como São pendendo apenas da aprovação da popula-
Paulo e Minas Gerais, foram esses também ção interessada através de plebiscito e da
os estados politicamente dominantes. confirmação das assembléias legislativas
Nas Constituições seguintes – de 1934, (para os municípios) ou do Congresso Nacio-
1937, 1946 e 1988 – o federalismo de tipo nal (para novos estados). O fato é que, entre
dualista, no qual as atribuições são claramen- 1988 e 1996, quando foi aprovada uma lei
te definidas, sofreu alterações no sentido de que dificulta a criação de novos municípios,
ampliação das atribuições da União, sejam surgiram mais de 1.300 municípios, a maio-
as exclusivas sejam as comuns e concorren- ria com menos de 10 mil habitantes.
tes. O que aconteceu desde então não foi sim- Os artigos 20 a 25 são os mais importan-
plesmente a centralização de poder e recur- tes para a definição do federalismo no Brasil.
sos fiscais nas mãos do governo federal, mas Eles estabelecem a divisão de competências

217
Federalismo

entre os membros da Federação. O artigo A Constituição de 1988 também fixou


25 (parágrafo 1) atribui aos estados o poder detalhadamente o funcionamento do siste-
“residual”, isto é, autoriza os estados a le- ma tributário, isto é, quem pode cobrar quais
gislar sobre qualquer assunto que não tenha impostos e taxas, assim como as transferên-
sido reservado exclusivamente à União ou cias fiscais entre a União, os estados e os
aos municípios. municípios. É na distribuição dos recursos
Em princípio, esta seria uma norma ex- fiscais que podemos perceber a força dos
tremamente favorável aos estados, pois é estados e municípios durante a Assembléia
muito difícil prever todas a atividades que Constituinte. Os artigos 153 a 159 definem
deverão ser exercidas pela União no futuro. os impostos e as taxas exclusivas de cada
Entretanto, os artigos 20 a 22 limitam bas- membro da Federação, além das formas de
tante o espaço de atuação dos estados ao compartilhamento das receitas tributárias da
definirem detalhadamente não apenas quais União com estados e municípios.
são as competências exclusivas da União, mas Não deixa de ser significativo que o
também as comuns (que todos os membros maior imposto da federação, o Imposto so-
da Federação, inclusive os municípios, po- bre Circulação de Mercadorias e Serviços
dem exercer) e as concorrentes (sobre as quais – ICMS, seja de arrecadação exclusiva dos
tanto União como estados podem legislar). estados. Só ele corresponde a cerca de 25%
Em princípio, as competências compar- dos impostos arrecadados no Brasil. Um ou-
tilhadas (comuns e concorrentes) seriam uma tro imposto pertencente aos estados é o Im-
boa oportunidade para desenvolver a coo- posto sobre a Propriedade de Veículos
peração entre União, estados e municípios Automotores – IPVA. Já os municípios po-
em áreas como educação, saúde, assistência dem arrecadar dois impostos: o Imposto so-
social e meio ambiente. No entanto, o pará- bre Propriedade Territorial Urbana – IPTU e
grafo 4 do artigo 24 praticamente elimina o Imposto Sobre Serviços – ISS. O potencial
essa possibilidade ao dizer que sempre que arrecadador desses impostos está diretamente
houver conflito entre leis federais e esta- relacionado com o nível de atividade econô-
duais, prevalecerão sempre as primeiras. Essa mica de estados e municípios. Desse modo,
restrição garantiu na prática o controle cen- apenas os estados e os municípios mais de-
tralizado sobre a legislação concorrente, pois senvolvidos – principalmente os das regiões
dificilmente o governo federal renuncia ao Sudeste e Sul – sustentam-se exclusivamente
direito de legislar sobre um assunto no qual com seus impostos. A maioria dos estados e
tenha qualquer interesse. municípios no Brasil depende de transfe-
Essa tendência centralizadora do gover- rências de receitas tributárias da União para
no federal fica clara se atentarmos para o pa- realizar suas funções básicas.
rágrafo único do artigo 23, que estabelece a Assim, os artigos 157 a 159 estabelecem
necessidade de proposição de uma lei com- detalhadamente os procedimentos de repar-
plementar para definir as regras de coopera- tição das receitas tributárias da União com
ção entre União, estados e municípios, “ten- estados e municípios, através dos Fundos de
do em vista o equilíbrio do desenvolvimento Participação dos Estados, FPE, e dos Muni-
e do bem-estar, em âmbito nacional”. Essa lei cípios, FPM. No total, a União é obrigada a
complementar nunca foi proposta nem por transferir cerca de 47% do que arrecada com
parlamentares nem pelo governo. o Imposto de Renda – IR e com o Imposto

218
sobre Produtos Industrializados – IPI para . um presidencialismo forte, com um pre-
esses fundos, além dos fundos constitucio- sidente eleito diretamente com milhões de
nais para o desenvolvimento das regiões votos, tendo que governar com o apoio
Norte, Nordeste e Centro-Oeste. de um Poder Legislativo bicameral, isto
É importante notar que a distribuição é, Câmara e Senado, compostos por uma
desses fundos entre os estados e os municí- dezena de partidos fortemente vinculados
pios é, em parte, proporcional à população a interesses regionais e um Poder Judiciá-
e, em parte, inversamente proporcional à rio independente;
renda, visando à redução dos desequilíbrios . um sistema federativo que reproduz a
regionais. O problema é que as cotas fo- separação de poderes nos níveis estadual
ram congeladas no início da década de e municipal e aos quais a Constituição
1990, não levando mais em consideração garante, pelo menos em princípio, plena
qualquer alteração na renda relativa e na autonomia política frente à União.
população de estados e municípios. Em-
bora o sistema de repartição ainda tenha um Desse modo, o federalismo brasileiro é o
caráter redistributivo, seria necessário revi- resultado da combinação de poderes executi-
sar periodicamente as cotas para que elas não vos fortes com legislativos multipartidários.
resultem numa distribuição distorcida dos re- Assim, para governar, presidentes, governa-
cursos da União. dores e prefeitos precisam formar amplas ali-
Finalmente, os estados são obrigados a anças partidárias, configurando o que chama-
transferir para os seus municípios 25% do que mos de “presidencialismo de coalizão” (cf.
arrecadam com o ICMS, proporcionalmente ABRANCHES, 1988).
ao nível de atividade industrial e comercial dos Mas, como o “presidencialismo de coa-
municípios. Assim, quanto maior o desenvol- lizão” afeta o funcionamento do federalis-
vimento econômico do município maior a mo no Brasil? O principal problema é que
cota do ICMS. ele dificulta a atuação dos partidos em ní-
Analisando a Constituição como um con- vel nacional, como forças articuladoras de
junto, percebemos que ela apresenta duas ten- projetos políticos que ultrapassem os limi-
dências divergentes no que se refere ao fede- tes dos respectivos níveis de governo. Isso
ralismo. Quanto à distribuição das compe- porque dificilmente um mesmo partido con-
tências, ela favorece claramente a União; do segue simultaneamente ganhar as eleições
ponto de vista fiscal e tributário, a vanta- para a Presidência da República, fazer uma
gem de estados e municípios é evidente, pelo maioria consistente no Congresso e conquis-
menos para os mais desenvolvidos. Para en- tar governos estaduais importantes. Desse
tender como esses princípios funcionam na modo, é bastante complicado implementar
prática, devemos observar a dinâmica polí- projetos de reforma amplos.
tica da federação. Outra característica do sistema político
que tem influência no funcionamento do fe-
deralismo é a representação das regiões me-
4. As bases políticas do federalismo
nos populosas na Câmara dos Deputados.
no Brasil
Essa distribuição desigual resulta do artigo
O regime republicano no Brasil combi- 44 da Constituição, que estabelece um mí-
na duas características principais: nimo de oito deputados e um máximo de

219
Federalismo

setenta por estado. Assim, estados pequenos apoio aos programas de governo que impli-
do Norte têm uma representação maior e cam confrontação de interesses regionais.
estados grandes do Sudeste (especialmen-
te, São Paulo) uma representação menor do
que teriam se a distribuição das cadeiras na 5. As relações intergovernamentais
Câmara dos Deputados fosse perfeitamente Um aspecto central para o bom funcio-
proporcional à população de cada estado. Do namento dos estados federais é a forma como
mesmo modo, no Senado os estados das re- se processam as relações entre os diversos
giões Norte, Nordeste e Centro-Oeste níveis de governo. Em princípio, estados e
correspondem a 43% da população, mas municípios são autônomos para conduzir
controlam 74% das cadeiras. Esses suas políticas de saúde, educação, meio am-
desequilíbrios são relevantes, pois significam biente, transporte, energia etc., desde que
que os estados menores e menos desenvol- não entrem em conflito com as normas cons-
vidos do país podem impedir qualquer mu- titucionais e as leis federais. O problema é
dança que afete seus interesses, mesmo con- que dificilmente um estado ou município
tra a vontade da maioria da população que pode realizar políticas consistentes em qual-
vive nas regiões Sudeste e Sul. quer dessas áreas sem o apoio ou a concor-
Outro aspecto relevante do federalismo dância do governo federal. Deste modo, as
no Brasil é a influência dos governadores na relações intergovernamentais são como o
política nacional. Em razão das característi- “sistema circulatório” do federalismo.
cas do sistema eleitoral, uma parcela signifi- Em razão de algumas características do
cativa dos candidatos a deputado federal e sistema político como a fragmentação do
estadual depende do apoio dos governado- sistema partidário, as relações intergover-
res para se eleger. Assim, os governadores namentais no Brasil dependem muito da dis-
encontram grande facilidade para formar posição dos governos em cooperar, mas prin-
suas coalizões de governo nas assembléias. cipalmente da capacidade e do interesse do
Com essa base sólida no âmbito estadual e governo federal em estimular ou impor re-
com a capacidade de influenciar o compor- gras e programas que impliquem alguma for-
tamento das suas respectivas bancadas no ma de coordenação entre as atividades de
Congresso, os governadores acabam se trans- estados e municípios.
formando em importantes parceiros do go- Alguns exemplos podem facilitar a com-
verno federal, para a aprovação de reformas preensão do problema. Na área da saúde, o
que interessem aos estados, como no caso Sistema Único de Saúde – SUS articula as
da reforma previdenciária no primeiro go- ações dos vários níveis de governo com base
verno FHC, ou ferrenhos adversários, quan- em comissões intergovernamentais. Depen-
do as mudanças ameaçam afetar suas recei- dendo do tipo de atividade, como o atendi-
tas, como no caso da reforma tributária ten- mento primário, preventivo ou secundário,
tada durante o primeiro governo Lula. o Ministério da Saúde transfere recursos para
Enfim, as bases políticas do federalismo as redes municipais e estaduais em vez de
são o resultado dessa combinação, às vezes executar diretamente os serviços. Esse siste-
complicada, de presidentes e governadores ma coordenado foi o resultado de muitos
fortes, legislativos regionais fracos e um Con- anos de mobilização dos profissionais da área
gresso bastante fragmentado e instável no de saúde coletiva, servidores das redes esta-

220
AGUARDANDO NOVA FOTO

Nova legenda.

duais e municipais de saúde, associações pro- cada rede. Assim, estados ou municípios que
fissionais e organizações não-governamentais têm menos alunos matriculados do que deve-
ligadas a questões de saúde e assistência. Ape- riam de acordo com os recursos que arreca-
sar dos problemas que enfrenta, como falta dam, são obrigados a transferir esses recursos
de recursos e conflitos com a rede privada, o para municípios ou estados com maior nú-
SUS é um exemplo bem sucedido de coope- mero de alunos em suas redes.
ração intergovernamental. A criação desse sistema redistributivo foi
Em outras áreas, como educação e assis- muito importante, pois evidenciou distorções
tência social, os mecanismos de coordena- no sistema público de ensino. Por exemplo,
ção intergovernamental ainda não estão con- muitos municípios desenvolvidos da região
solidados ou sofrem resistência por parte de Sudeste, especialmente em São Paulo, dei-
governos estaduais e municipais. É o caso xavam toda a responsabilidade pelo financia-
do Fundef, na área de educação. O Fundo mento do ensino fundamental para o gover-
de Valorização do Ensino Fundamental, cria- no estadual. Em estados do Nordeste, os
do pelo governo federal em 1996, transfere municípios pobres do interior arcavam com
15% das receitas tributárias de estados e todo o custo do ensino fundamental enquan-
municípios para uma conta e redistribui es- to os governos estaduais limitavam-se a ope-
ses recursos dentro de cada estado em fun- rar uma pequena rede de ensino fundamental
ção do número de alunos matriculados em e secundário nas capitais e cidades maiores,

221
Federalismo

que tinham maior capacidade de pressão de Receita Orçamentária – AROs e o uso


política. dos bancos estaduais como tomadores de
Entretanto, a operação centralizada do empréstimos no mercado. Finalmente, em
Fundef levou a graves problemas no controle 2000, conseguiu aprovar no Congresso a Lei
do uso dos recursos do Fundo, especialmen- de Responsabilidade Fiscal, que estabeleceu
te nos pequenos municípios do interior. Isso normas rígidas de gestão fiscal para todos os
mostra que a cooperação inter-governamen- governos, inclusive o federal.
tal não pode ser imposta, mas tem de ser Pela nova lei, desde 2001, governos
muito discutida, negociada e implantada de municipais, estaduais e federal têm de apre-
forma gradual, de acordo com a capacidade sentar seu planejamento orçamentário anu-
de cada governo. al e comprovar que suas receitas anuais são
suficientes para cobrir todos os seus gas-
tos. A prática de transferir todas as dívi-
6. A Lei de Responsabilidade Fiscal
das do ano anterior para a rubrica “restos
Um caso recente, de grande impacto so- a pagar”, que sempre acabava estourando
bre o funcionamento do federalismo brasi- nas mãos do sucessor, foi proibida pela
leiro, foi a aprovação de Lei de Responsabi- nova lei. Para completar o cerco à tradicio-
lidade Fiscal – LRF. Essa lei procurou atacar nal cultura da irresponsabilidade fiscal dos
um dos problemas centrais do federalismo, nossos governantes, a LRF estabeleceu pe-
que é a tendência de estados e municípios sadas punições, até mesmo a prisão para
transferirem os custos de suas atividades para os administradores e governantes que não
a União. Isso acontece quando estados e cumprirem as novas regras.
municípios gastam mais do que arrecadam, Obviamente, a lei foi bastante criticada,
se endividam e, depois, procuram a ajuda especialmente por prefeitos de cidades pe-
do governo federal. Ao longo de toda a his- quenas com pouca capacidade técnica e ad-
tória republicana, os governos estaduais ministrativa para implantar todas as regras
procuraram transferir suas dívidas para o de transparência fiscal e planejamento or-
governo federal, que fazia novos emprésti- çamentário. Não obstante essas dificulda-
mos no mercado, aumentando a dívida fe- des, a LRF parece ter sido bem sucedida,
deral, num eterno ciclo de endividamento pois o tradicional déficit fiscal de estados
e inflação. e municípios transformou-se em superávit,
Quando a válvula de escape do endi- seguindo o comportamento do governo fe-
vidamento deixou de funcionar porque o mer- deral.
cado não aceitou mais financiar dívidas tão
altas, o governo federal, no caso o de Fernando
Henrique Cardoso, teve de encerrar o círcu- 7. Problemas atuais do federalismo
brasileiro
lo vicioso de forma abrupta. Primeiro, elimi-
nou a inflação, que desvalorizava as dívidas Para concluir o capítulo, falemos um
públicas, não indexadas, transferindo todo pouco dos problemas atuais e das perspecti-
o ônus para a população; depois, começou a vas do federalismo brasileiro.
fechar o cerco sobre as principais formas de Primeiro, é preciso entender que, em
endividamento dos estados: as Antecipações qualquer circunstância, o funcionamento de

222
um estado federal é “naturalmente” comple- lação tributária, assim como a da legislação
xo. Existem muito atores com interesses di- eleitoral e partidária.
ferentes e capacidade de impor vetos às pro- O mesmo aconteceu com o primeiro
postas de mudança mais ousadas. Isso é da mandato do governo Lula. Apesar de ter
própria essência do federalismo. Problema conquistado a maior votação presidencial
diverso é a existência de mecanismos da história, o seu partido obteve menos de
institucionais de incentivo ao consenso e 20% das cadeiras no Congresso e não ga-
conversão desse consenso em capacidade efe- nhou nenhum governo estadual importan-
tiva de governo, isto é, de implementar as te. Com isso, Lula foi obrigado a formar
decisões majoritárias. Nesse sentido, pare- uma coalizão ainda mais heterogênea que a
ce-me que a fragmentação do sistema par- de FHC, além de ter que negociar as refor-
tidário é um dos obstáculos à formação de mas com os governadores de partidos de
coalizões reformistas consistentes e sólidas oposição que conquistaram os principais
o suficiente para implementar reformas mais estados. Grande parte das dificuldades po-
profundas em áreas sensíveis como a Previ- líticas enfrentadas pelo governo Lula a par-
dência Social, o sistema tributário, a legisla- tir de 2005 esteve associada “ao custo” de
ção trabalhista etc. manutenção da coalizão legislativa. Por
Para entender melhor o argumento, pen- outro lado, os governadores também agi-
semos no federalismo norte-americano, em ram como veto players (atores com poder
que dois grandes partidos pouco disciplina- de veto) em assuntos sensíveis aos seus in-
dos dividem o poder em todos os níveis de teresses, como a reforma tributária.
governo. Quando o eleitorado apóia consis- Um balanço do primeiro governo Lula
tentemente o mesmo partido no Congresso mostra que o federalismo, isoladamente, não
e na Presidência da República, o governo representa um obstáculo ao processo
federal torna-se capaz de implementar mu- decisório em âmbito nacional. No entanto,
danças importantes no país, como foi o caso quando combinados, federalismo e presiden-
do amplo domínio do Partido Democrata cialismo de coalizão, potencializam a forma-
entre os anos de 1930 e 1940, conhecido ção de coalizões de veto, principalmente
como New Deal. entre governadores e bancadas federais,
No caso do nosso presidencialismo como ficou claro no caso da tentativa fra-
federalista, mesmo o apoio consistente do cassada de reforma tributária.
eleitorado a um projeto de reforma como o No próximo governo (2007-2010), o
iniciado por Fernando Henrique Cardoso presidente reeleito certamente enfrentará
encontrou enorme dificuldade em se conver- grandes dificuldades para montar uma coa-
ter em mudanças políticas reais. Ao longo lizão suficientemente ampla e sólida para
de oito anos de governo, apoiado por uma implementar as reformas consideradas ne-
ampla coalizão no Congresso e tendo o seu cessárias. Três fatores podem contribuir para
partido conquistado os governos dos princi- potencializar as dificuldades para a forma-
pais estados, São Paulo, Minas Gerais e Rio ção de uma coalizão governamental estável:
de Janeiro, Fernando Henrique não foi ca- 1. a forte polarização resultante do segundo
paz de introduzir reformas amplas, em áreas turno das eleições presidenciais (outubro de
consideradas críticas como as da administra- 2006); 2. o crescimento dos partidos peque-
ção pública, da previdência social, da legis- nos, apesar da cláusula de barreira; e 3. a

223
Federalismo

eleição de governadores de estados grandes


favoráveis aos dois blocos em que se dividiu
o sistema partidário: PSDB-PFL (MG, RS,
SP) e PT-PMDB-PSB (RJ, BA, PR, SC, CE).
Isso não significa que o país seja ingo-
vernável, mas que o sistema político dificul-
ta a concentração de forças em torno de pro-
gramas de mudança consistentes e de longo
prazo, como os que são necessários para ti-
rar o Brasil da complicada situação em que
se encontra atualmente.

224
Sugestões de leitura

ABRANCHES, Sérgio Henrique H. de. Presidencialismo de coalizão. O dilema institucional brasileiro. Dados,
v.31:1, p.5-38, 1988.
ABRUCIO, F. Os barões da federação: governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo: DCP/USP/Hucitec,
1998.
_______., COSTA, V. Reforma do Estado e o contexto federativo brasileiro. (Série Pesquisa, 12) São Paulo: Fun-
dação Konrad Adenauer, 1998.
_______., SAMUELS, D. A nova política dos governadores. Lua Nova, n.40/41, São Paulo: CEDEC, 1997.
ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. Federalismo, democracia e governo no Brasil: idéias, hipóteses e evidên-
cias. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, n.51, p.13-34, São Paulo, 2001.
ARRETCHE, M. Estado federativo e políticas sociais: determinantes da descentralização. Rio de Janeiro: Revan/
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KING, Preston. Federalism and Federation. John Hopkins University Press, 1982.
KUGELMAS, E., SOLA, L. Recentralização/descentralização: dinâmica do regime federativo no Brasil dos anos
90. Tempo Social, v.11, n.2, São Paulo: FFLCH/USP, 1999.
NICOLAU, Jairo Marconi. As distorções na representação dos estados na Câmara dos deputados brasileira.
Revista Dados (IUPERJ), 40 (3), Rio de Janeiro, 1997.
STEPAN, Alfred. Para uma nova análise comparativa do federalismo e da democracia: federações que restringem
e ampliam o poder do demos. Dados (IUPERJ), v.42, n.2, p.197-252, Rio de Janeiro, 1999.

225
Capítulo 2
Federação e relações intergovernamentais

FÁTIMA ANASTASIA

O Brasil é uma República Federativa, partir da análise da distribuição de poderes,


bicameral, presidencialista, com representa- atribuições e recursos entre União, estados e
ção proporcional e multipartidarismo. Os municípios, por um lado, e entre executivos
entes federados, segundo a Constituição de e legislativos estaduais, por outro.
1988, são os 26 estados, o Distrito Federal e Na terceira seção, a ênfase se volta para o
os 5.564 municípios,1 o que confere ao país exame da distribuição de atribuições substan-
características singulares, se comparado às tivas entre os entes federados, especialmente
demais federações, onde apenas os estados no que se refere à gestão e à implementação
ou províncias são dotados de autonomia das políticas sociais.
político-administrativa.2 Finalmente, serão examinadas as interações
Neste capítulo, os estados brasileiros entre instituições estaduais e democracia,
serão tomados como principais objetos de contemplando, especialmente, os impactos
análise, com vistas a examinar seu papel e do arranjo institucional sobre a responsabi-
sua importância no contexto da democra- lidade política e a representatividade.
cia brasileira. Para tanto, o texto está orga-
nizado da seguinte maneira: em primeiro
1. Democracia, condições e
lugar, focalizaremos as interações entre con-
instituições
dições estruturais – socioeconômicas e cul-
turais – e instituições políticas, com o obje- A sociedade brasileira é atravessada por
tivo de examinar a adequação do arranjo heterogeneidades estruturais e por um pa-
federativo ao quadro de clivagens que atra- drão muito acentuado de desigualdades
vessa a sociedade brasileira e suas reper- socioeconômicas. Tal contexto apresenta de-
cussões sobre o exercício da democracia. safios de monta para o processamento
A segunda seção aborda os aspectos institucional das clivagens, identidades e in-
procedimentais do federalismo brasileiro, a teresses que emergem na dinâmica societal e

1. Segundo o IBGE, havia 5.564 municípios no Brasil em 2005.


2. O Brasil apresenta um “modelo de Federação notavelmente descentralizado, com uma peculiaridade que o
singulariza de forma marcante no contexto internacional, que é a menção explícita do município como ente
federado no próprio texto constitucional (Art. 18)” (KUGELMAS, 2001:36).

227
Federação e relações intergovernamentais

TABELA 1. Extensão territorial, população e divisão político-administrativa

que pressionam por se fazerem representar permitindo aos primeiros vocalizar suas
na ordem política.3 preferências perante os segundos e, tam-
No que se refere ao principal traço bém, controlá-los e fiscalizá-los no exercí-
institucional sob exame neste capítulo, o fe- cio de suas funções públicas. Em socieda-
deralismo, importa considerar mais de per- des de grandes territórios e grandes nú-
to o tamanho e a diversidade do país. Como meros, tais ações ficam facilitadas pela
se pode perceber pela Tabela 1, os países descentralização político-administrativa
com maior extensão territorial e população que caracteriza a estrutura federativa. A
são, em geral, organizados como federa- exceção, como se pode verificar pela lei-
ções,4 especialmente no intuito de aproxi- tura da tabela, é a China que, aliás, tam-
mar mais os cidadãos de seus governantes, bém não é uma democracia.

3. “As recentes democracias situadas ao sul do Equador enfrentam um ‘dilema institucional’ que pode ser
sintetizado na seguinte indagação: quais são os arranjos institucionais compatíveis com sociedades que com-
binam heterogeneidades estruturais com pobreza e desigualdade social? Tal questão se impõe em conexão
com os desafios de aperfeiçoamento da ordem política em sociedades que, no percurso acidentado da re-
construção da democracia, passaram por processos simultâneos de diversificação socioeconômica e cultural
– tornando-se, portanto, mais heterogêneas – e de manutenção e/ou aprofundamento de padrões de pobre-
za e de desigualdades sociais” (ANASTASIA, 2003:1).
4. “em uma constelação global de 217 países, apenas 24 federações governam 40% da população mundial”
(CAMARGO, 2001:78).

228
Outra variável importante a ser mobili- circunstâncias sob as quais se toma a decisão
zada refere-se às clivagens – número e tipo – de adotar o arranjo federativo em uma de-
presentes no interior dos estados nacionais, terminada sociedade. O trânsito para o fe-
acarretando, algumas vezes, que países que deralismo, nos Estados Unidos, por exem-
possuem pequenos territórios adotem mo- plo, deu-se a partir de uma estrutura ainda
dalidades de federalismo, territorial e não- mais descentralizada, a confederação. Já
territorial como, por exemplo, a Suíça e a outros países, como a Bélgica, transitaram de
Bélgica.5 estados unitários para federações. Diante des-
Arend Lijphart (1989:234-235) refere-se tes dois modelos – coming together federations
aos diferentes tipos de federalismo propon- (EUA) e holding together federations (Bélgi-
do que sejam comparados “... os limites po- ca) – vale indagar a que princípios e diretri-
líticos entre os membros da federação e os zes obedeceu a construção da federação no
limites sociais entre grupos como minorias Brasil,6 caracterizada, ao longo de sua histó-
religiosas e étnicas” e indaga se é “... possí- ria, por um movimento de “sístole/diástole”7
vel dar autonomia a grupos geograficamen- (KUGELMAS, 2001, p.30-1 e 33). E vale,
te interpenetrados por meio de um federa- principalmente, indagar que repercussões
lismo que não é definido exclusivamente em este arranjo produz sobre o exercício da ci-
termos espacio-geográficos”. O federalismo dadania democrática e sobre sua capacida-
não-territorial, também conhecido como fe- de de dar processamento institucional às
deralismo “corporativo” ou federalismo “so- heterogeneidades e às desigualdades que atra-
ciológico”, remete à idéia de “comunidades vessam a sociedade brasileira e que se mani-
culturais autônomas não territoriais”. festam de diferentes maneiras no âmbito dos
Ressalta, aqui, a importância de se con- estados e das regiões.
siderar o problema relacionado às tensões O Brasil é o quinto país do mundo em
potenciais entre a identidade nacional e as extensão territorial e em população. Segun-
diferentes identidades regionais, étnicas, ra- do o IBGE, em 2000, a população brasileira
ciais, religiosas e lingüísticas, entre outras, era de 168 milhões de habitantes, 81,25%
presentes nas sociedades contemporâneas. vivendo em áreas urbanas. O analfabetismo
Uma questão que se impõe, na análise funcional, no Brasil, atingia cerca de 25% da
da organização político-administrativa dos população, em 2004,8 observando-se taxas
estados nacionais territoriais, refere-se às próximas de 40% no Nordeste e de menos

5. Camargo (2001:78) chama a atenção para as virtualidades e a maleabilidade do federalismo e, também,


para “sua capacidade de acomodar populações e regiões heterogêneas em territórios extensos, ou extremas
tensões étnicas e religiosas em espaços exíguos”.
6. O Brasil se enquadra melhor no modelo holding together federations já que o federalismo, implantado junta-
mente com o regime republicano de 1889, resulta do atendimento às aspirações de maior descentralização
político-administrativa.
7. Metáfora atribuída ao general Golbery do Couto e Silva, por referência à “alternância de períodos de cen-
tralização e de descentralização na história do país, identificando-se habitualmente a centralização com o
autoritarismo e a descentralização com avanços democráticos” (KUGELMAS, 2002:33).
8. Fonte: PNAD-IBGE, 2004.

229
Federação e relações intergovernamentais

TABELA 2. Indicadores socioeconômicos, Brasil e Estados-membros

Continua

230
de 20% no Sul e no Sudeste. É patente o Encontra tal diversidade de condições
contraste entre o estado com pior desempe- socioeconômicas guarida no conjunto de ins-
nho nesse quesito, Alagoas, cuja taxa bruta tituições políticas que conformam os estados
de analfabetismo, em 2004, era de 29,5% da federação brasileira? Esta questão remete
com estados como Santa Catarina e Rio de para a análise da distribuição de poderes, atri-
Janeiro, com taxas brutas de menos de 5% buições e recursos entre os entes federados e
de analfabetismo, na mesma data. entre os Poderes Executivo e Legislativo no
Em que pese a quase universalização da âmbito das unidades sub-nacionais.
escolarização das pessoas de 7 a 14 anos
(97,1%), no Brasil, verificada em 2004, no
2. Aspectos procedimentais
mesmo ano a taxa de escolarização de pes-
soas de 15 a 17 anos, no país, era de apenas Desde os papers federalistas se sabe que
81,9%. Novamente, as regiões que apresen- concentração de poderes nas mesmas mãos
tavam melhores taxas eram o Sudeste gera tirania. Por conseqüência, costuma-
(85,4%) e o Sul (81,7%). No Centro-oeste, se associar democracia à dispersão de po-
a taxa era de 79,9%, caindo para 78,9% no deres entre os atores relevantes que par-
Nordeste e para 78,4% na Região Norte.9 ticipam do jogo político. Nesta direção
Como chama a atenção Camargo aponta a prescrição madisoniana de organi-
(2001:83), o federalismo brasileiro apresen- zação de freios e contrapesos institucionais
ta um caráter bastante assimétrico: entre os poderes constituídos e a recomenda-
ção de descentralização político-administra-
vinte dos 26 estados detêm ape- tiva que caracteriza os arranjos federativos.
nas 22% da renda nacional. O esta- É exatamente esse aspecto que será objeto
do mais rico detém 35%, os três mais de análise desta seção. Em primeiro lugar, será
ricos detêm 60% da renda. Doze es- examinada a distribuição de competências, de
tados da Federação que formam o atribuições e de direitos entre União, estados e
andar de baixo detêm no máximo, municípios, a partir do estudo de dispositivos
cada um, 1% do PIB, configurando da Constituição de 1988 e, em seguida, será
uma fragilidade extrema na base da contemplada a distribuição dos poderes de
pirâmide. agenda e de veto entre Executivo e Legislativo,

9. Fonte: PNAD-IBGE, 2004.

231
Federação e relações intergovernamentais

no âmbito dos estados, contrastando-a com reservadas aos Estados as competências que
aquela verificada no âmbito da União. não lhes sejam vedadas pela Constituição Fe-
deral” – e sobre as suas atribuições exclusi-
vas, concorrentes e compartilhadas.10
2.1 Distribuição de competências A leitura deste conjunto de dispositivos
entre União, estados e municípios
constitucionais permite concluir que a legis-
Reza o artigo 18 da Constituição brasi- lação reserva pouco espaço de autonomia aos
leira de 1988 que Estados-membros, haja vista o reduzido nú-
mero e escopo de suas competências exclusi-
A organização político-adminis- vas, o que fundamenta a afirmação de que
trativa da República Federativa do “no sistema federativo brasileiro, quando se
Brasil compreende a União, os Esta- repartiram as competências, sobraram aos
dos, o Distrito Federal e os Municí- Estados aquelas que não são da União nem
pios, todos autônomos, nos termos dos Municípios” (www.al.sp.gov.br). Assim,
desta Constituição. à conhecida preponderância legislativa do
Executivo brasileiro se somam as restrições
O artigo 21 da Constituição estabelece as impostas às Assembléias Legislativas frente ao
competências da União e o artigo 22 define Congresso Nacional.
as áreas nas quais legislar é competência pri- Outro interessante traço institucional do
vativa da União. A Constituição dispõe, ain- federalismo brasileiro refere-se ao fato de
da, sobre as “competências remanescentes” que, embora os municípios sejam entes
dos Estados-membros – ao afirmar que “São federados, dotados de autonomia, os

10. Estão, a seguir, discriminadas as competências exclusivas, concorrentes e comuns dos Estados: 1) Exclusi-
vas: criação de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; criação, incorporação, fusão
e desmembramento de municípios; exploração dos serviços de gás canalizado. 2) Concorrentes: direito
tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; orçamento; juntas comerciais; custas dos
serviços forenses; produção e consumo; florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do
solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; proteção ao patrimônio
histórico, cultural, turístico e paisagístico; responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a
bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; educação, cultura, ensino e
desporto; criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas; procedimento em matéria
processual; previdência social, proteção e defesa da saúde; assistência jurídica e defensoria pública; prote-
ção e integração social das pessoas portadoras de deficiência; proteção à infância e à juventude; organiza-
ção, garantias, direitos e deveres das polícias civis. 3) Comuns (artigo 23 da Constituição Federal): “Artigo
23 - É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: I – zelar pela
guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público; II – cuidar
da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência; III – proteger os
documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens
naturais notáveis e os sítios arqueológicos; IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras
de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; V – proporcionar os meios de acesso à
cultura, à educação e à ciência; VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas
formas; VII – preservar as florestas, a fauna e a flora; VIII – fomentar a produção agropecuária e organizar
o abastecimento alimentar; IX – promover programas de construção de moradias e a melhoria das condi-
ções habitacionais e de saneamento básico; X – combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização,
promovendo a integração social dos setores desfavorecidos; XI – registrar, acompanhar, fiscalizar as con-
cessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios; XII – estabe-
lecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito.” (Fonte: www.al.sp.gov.br)

232
QUADRO 1. Características do arranjo federativo no Brasil

legislativos estaduais não são, como seria dos se fazem representar no Senado Federal.
de esperar, bicamerais e, sim, unicamerais. Tal característica contrasta com a apre-
Portanto, não há, nos estados, uma câmara sentada pelo federalismo norte-americano:
que organize e processe a representação dos lá, 49 dos 50 Estados-membros são bica-
interesses municipais, a exemplo do que merais, sendo o estado de Nebraska o úni-
ocorre no Congresso Nacional, onde os esta- co unicameral (SQUIRE, 2003).14

11. Artigo 61, § 2 – “A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de
projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por
cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles”.
12. “A lei disporá sobre a iniciativa popular no processo legislativo estadual” (Art. 27, § 4, da Constituição
brasileira).
13. A criação, incorporação, a subdivisão ou o desmembramento de Estados só poderá se dar “mediante aprovação
da população diretamente interessada, através de plebiscito, e do Congresso Nacional, por lei complementar”
(Art. 18, § 3). A criação, incorporação, a fusão ou o desmembramento de Municípios, far-se-ão por lei estadual “e
dependerão de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos” (Art. 18, § 4).
14. “But it would be a mistake to think that 49 state legislatures are exactly like Congress and that only Nebraska
is different. The 99 state legislative chambers in the United States employ a wide range of organizational
structures, some similar but only rarely exactly like Congress, others very different. In some state legislatures,
for example, party leadership dominates; in other chambers legislative committees exercise great power. Similarly,
seniority determines who holds important positions in a few legislative chambers; in most it is of little
importance. And, of course, state legislatures vary greatly in terms of member salaries, the time demands of
service, and the sorts of staff resources and facilities that are available to members” (SQUIRE, 2003:1).

233
Federação e relações intergovernamentais

No que se refere à importante questão rigorosa do princípio de igualdade política


da densidade democrática da representação,15 entre os cidadãos de cada estado, o que não
que é afetada, entre outros fatores, pelos ocorre nos pleitos para deputados federais.
procedimentos através dos quais são consti- Embora o sistema proporcional seja mais
tuídos os órgãos decisórios – no caso, a Câ- conducente ao incremento da densidade de-
mara dos Deputados, o Senado Federal e as mocrática da representação – já que permi-
Assembléias Legislativas – vale enfatizar que te, mais e melhor, a expressão político-
o Brasil apresenta um bicameralismo incon- institucional da variedade de clivagens, iden-
gruente, já que o Senado é formado através tidades e interesses que emergem nas socie-
do método majoritário e a Câmara dos De- dades complexas, como o são as sociedades
putados através do sistema de representação contemporâneas – a sua operação em distri-
proporcional. Tal distinção se justifica em tos eleitorais que coincidem com os estados
função do respeito ao princípio de igualdade produz um conjunto de distorções e vieses
política, já que a regra majoritária garante da representação. Por determinação consti-
aos estados igual representação no Senado – tucional, cada estado pode contar com, no
3 representantes por unidade da Federação máximo, 70 e, no mínimo, 8 representantes
– em que pesem as enormes diferenças em na Câmara dos Deputados. Esses limites pe-
termos de número de habitantes e de eleito- nalizam fortemente os cidadãos de São Pau-
res que podem ser observadas entre essas uni- lo, o estado mais populoso da Federação, e
dades. Não obstante, os membros de ambas beneficiam os cidadãos dos estados menores
as câmaras são eleitos em pleitos realizados e menos populosos como Acre, Amapá,
em circunscrições políticas que correspondem Sergipe e Tocantins, como pode ser consta-
aos estados da Federação. tado pela leitura da Tabela 3.
O contraste entre Câmara dos Deputa- Segundo o artigo 27 da Constituição
dos e Assembléias Legislativas permite veri- brasileira,
ficar o compartilhamento entre elas do mé-
todo de representação – proporcional, em O número de Deputados à As-
ambos os casos – e a diferenciação em ter- sembléia Legislativa corresponderá ao
mos das circunscrições eleitorais: os estados, triplo da representação do Estado na
para a Câmara, e uma única circunscrição Câmara dos Deputados e, atingido o
estadual para as Assembléias.16 A existência número de trinta e seis, será acresci-
de uma única circunscrição para a eleição dos do de tantos quantos forem os Depu-
deputados estaduais permite a observância tados Federais acima de doze.

15. “A densidade democrática da representação é um atributo da democracia que envolve duas dimensões: a
primeira refere-se ao método de constituição do órgão decisório e à sua composição (SARTORI, 1994); a
segunda relaciona-se aos instrumentos e procedimentos através dos quais a representação é exercida. Quan-
to maior for a densidade democrática da representação, mais a ordem política se aproxima da realização dos
princípios centrais da democracia, a saber: igualdade política e soberania popular” (ANASTASIA e MELO,
2002).
16. Haveria uma correspondência caso os deputados federais fossem eleitos em uma única circunscrição nacio-
nal, analogamente à eleição dos deputados estaduais em uma única circunscrição estadual.

234
TABELA 3. Composição da Câmara dos Deputados e das Assembléias
Legislativas - 2006.*

235
Federação e relações intergovernamentais

Esse dispositivo constitucional explica o impactos sobre as condições socioeconômicas


número mínimo de 24 deputados estaduais das suas populações, constituem uma variá-
e o número máximo de 94, para o estado de vel dependente do perfil da coalizão política
São Paulo. predominante em cada contexto.
O referido artigo reza ainda, em seu pa-
rágrafo primeiro, que o mandato dos depu-
2.2 Poderes Executivo e Legislativo
tados estaduais é de quatro anos, e o pará- no âmbito dos estados da
grafo segundo estabelece que o teto para o Federação
subsídio dos Deputados Estaduais corres-
ponde a 75% do que percebem os Deputa- Já há alguns anos, a literatura vem apon-
dos Federais. tando a concentração de poderes de agenda
O Brasil apresenta um alto grau de e de veto nas mãos do presidente da Repú-
blica, o que desequilibra os mecanismos de
fracionamento do sistema partidário. Nas elei-
freios e contrapesos institucionais, em pre-
ções de 2006, sete partidos – PT, PSDB, PFL,
juízo do Legislativo, afetando negativamen-
PMDB, PP,17 PSB e PDT – obtiveram mais de
te sua capacidade de cumprir suas funções,
5% dos votos válidos, podendo, portanto, ser
quais sejam, legislar e fiscalizar o Poder Exe-
classificados como “partidos relevantes”.
cutivo.
Além disso, observa-se uma significativa va-
No Brasil, verifica-se o que Figueiredo e
riação da distribuição percentual das banca-
Limongi (1999) denominaram “preponde-
das partidárias por estado da Federação. O
rância legislativa do presidente”, ademais da
único partido que está efetivamente nacio-
existência de uma ampla gama de recursos
nalizado é o PMDB, que elegeu deputados
de patronagem – via distribuição de cargos
em 26 das 27 unidades, excluindo-se apenas
– e de clientelismo político – via distribui-
Sergipe. Em segundo lugar vem o PT, que
ção de verbas.
não elegeu representantes em apenas dois
O exame dos padrões de interação entre
estados: Rondônia e Tocantins. Já o PSDB
Executivo e Legislativo no âmbito dos estados
concentra 26,2% de sua bancada no Estado
da Federação não conduz a conclusões muito
de São Paulo e 10,8% em Minas Gerais, não diferentes. Também os governadores, em ge-
tendo eleito representantes em 7 estados. ral, gozam de amplos poderes de agenda e de
Pode-se depreender, da leitura desses da- veto e os usam para extrair obediência de suas
dos, que o sistema partidário brasileiro ainda bancadas e para aprovar suas propostas.
está em processo de nacionalização e, ademais, Importante ressalva, no entanto, deve ser
pode-se indagar sobre os efeitos dessas dife- feita em relação aos poderes legislativos dos
rentes correlações de forças políticas presen- governadores: o mais importante deles – o
tes nos diferentes estados sobre o escopo e o de editar Medidas Provisórias com força de
perfil das políticas sociais neles desenvolvi- lei – não está previsto na maioria das consti-
das. Uma hipótese bastante plausível, sem tuições estaduais. As exceções são os esta-
dúvida, é a de que o padrão de políticas dos de Acre, Piauí, Santa Catarina e Tocantins
sociais implementadas em cada estado, e seus (PEREIRA, 2001).

17. PP: ex PDS/PPR/PPB.

236
QUADRO 2. Poderes de Agenda e de Veto do Poder Executivo – Brasil e estados da
Federação

Poder Presidente Governadores, em geral

Iniciar legislação ordinária SIM SIM

De iniciativa exclusiva em SIM SIM


determinadas matérias Projeto de lei orçamentária. Assuntos tributários,
orçamentários, financeiros e
administrativos.

Requerer regime de SIM SIM


tramitação extraordinária Art. 64 da Constituição – Solicitação de urgência.
presidente tem prerrogativa de
solicitar urgência para os
projetos de lei de sua iniciativa.

Propor reformas ou SIM SIM


emendas à Constituição

Convocar plebiscito ou NÃO NÃO


referendo

Poder Delegado de Decreto SIM SIM, exceto Piauí, Bahia, DF, ES,
MA, RR, RS, SP. *

Poder Constitucional de SIM NÃO (apenas os governadores


Decreto do AC, PI, SC e TO podem editar
MPS). *

Poder de Veto SIM, parcial e total. SIM, parcial e total.

Nomeação e exoneração SIM SIM


dos ministros ou secretários
de Estado

Indicação de membros do SIM SIM


Congresso Designar deputados para Designar deputados para
exercerem a liderança do exercerem a liderança do
governo, composta de líder e governo, composta de líder e
três vice-líderes (art. 11 R.I. vice-líderes.
Câmara).

Indicação dos controladores SIM


1/3 do Tribunal de Contas da SIM
União (TCU); os ministros do 1/3 do Tribunal de Contas dos
Supremo Tribunal Federal e dos estados e o quinto
Tribunais Superiores. constitucional dos Tribunais
Estaduais.

Fontes: Constituição do Brasil de 1988; Constituições estaduais. (* Fonte: Pereira, 2001.)

237
Federação e relações intergovernamentais

Também o poder delegado de decreto lativa às formas de organização legislativa


não está disponível para a maioria dos go- (SANTOS, 2001).
vernadores, como pode ser examinado no No que se refere a um importante recur-
Quadro 2. so que afeta as interações entre os Poderes
No mais, podem ser constatadas maio- Executivo e Legislativo e os seus resultados
res semelhanças do que diferenças: a exem- – o recurso à informação –, o que se pode
plo do presidente, os governadores têm to- aventar, através do exame da empiria dispo-
tal discricionariedade para nomear e demi- nível, é a presença de significativa “assimetria
tir seu gabinete e gozam de exclusividade na informacional” a favor dos governadores, já
proposição de matérias tributárias e orça- que a maioria das Assembléias Legislativas
mentárias, o que lhes permite distribuir car- ainda se encontra em um estágio bastante ini-
gos e verbas públicas. cial de desenvolvimento institucional, não
Eles podem, também, vetar total ou par- propiciando a seus parlamentares a infra-es-
cialmente os projetos de lei encaminhados trutura e o expertise necessários para o ade-
para sua sanção e pedir urgência na trami- quado desenvolvimento das atividades de
tação de matérias de sua autoria, o que lhes legislar e de fiscalizar o Executivo.
permite atropelar o processo legislativo e, Muitas delas contam com um incipiente
através da mobilização dessa estratégia sistema de comissões, no qual, muitas vezes,
procedimental (ARNOLD, 1990), prejudi- uma única comissão é responsável por dife-
car os debates e diminuir eventuais resistên- rentes matérias. Claro está que os membros
cias dos parlamentares às suas proposições. dessas comissões internamente tão heterogê-
Importante ressaltar que os padrões en- neas têm pouquíssimas condições e incentivos
contrados de interação entre Executivo e para se especializarem em qualquer matéria.
Legislativo no âmbito estadual não autori- Ademais, apenas bastante recentemente os
zam, sem mais, a reiteração da hipótese do legislativos estaduais começaram a dar a de-
“ultrapresidencialismo estadual” (ABRUCIO, vida atenção à necessidade de profis-
1998), segundo a qual os governadores exer- sionalização de seu corpo técnico. Em 2002,
ceriam domínio incontrastável sobre as Assem- oito Assembléias Legislativas contavam com
bléias Estaduais. Tais padrões não autorizam, Escolas do Legislativo, sendo a mais antiga a
ademais, a desconsideração das diferenças e das do Estado de Minas Gerais, criada em 1992.
diversidades por que passa esse conjunto de Em 2006, 20 casas legislativas estaduais já
instituições, as quais poderiam ser encontra- haviam criado suas Escolas do Legislativo,
das através de uma análise mais aprofundada, observando-se, portanto, um expressivo cres-
o que foge ao escopo deste texto.18 cimento nos últimos quatro anos.
De qualquer forma, vale assinalar que, Já a questão da formação e do aperfei-
quando contrastadas as Assembléias Le- çoamento dos servidores do Poder Executi-
gislativas entre si e com o Congresso Nacio- vo é matéria de texto constitucional. O arti-
nal, verifica-se convergência no que se re- go 39 dispõe que a “União, os estados, o
fere aos poderes de agenda e de veto do Distrito Federal e os municípios institui-
Poder Executivo e enorme diversidade re- rão conselho de política de administração

18. Análise das diferenças e convergências entre algumas Assembléias Legislativas pode ser encontrada em San-
tos (2001).

238
e remuneração de pessoal” e manterão esco- II – cuidar da saúde e assistên-
las de governo “para a formação e o aperfei- cia pública, da proteção e garantia das
çoamento dos servidores públicos”. pessoas portadoras de deficiência;
Uma visita ao site da ENAP19 – Escola V – proporcionar os meios de aces-
Nacional de Administração Pública – permite so à cultura, à educação e à ciência;
acessar a extensa lista de Escolas de Governo e IX – promover programas de
órgãos similares, todos voltados para a for- construção de moradias e a melhoria
mação dos administradores públicos lotados das condições habitacionais e de sa-
no Executivo, nos três níveis de governo. neamento básico;
Vale ainda assinalar que um importante X – combater as causas da po-
instrumento de informação dos parlamenta- breza e os fatores de marginalização,
res sobre as preferências de seus representa- promovendo a integração social dos
dos – as comissões de legislação participativa20 setores desfavorecidos.
– existem em apenas sete legislativos esta-
duais e estão em implantação em outras três
Em seu parágrafo Único, o referido arti-
assembléias legislativas. go afirma que

3. Aspectos substantivos Lei complementar fixará normas


para a cooperação entre a União e os
O exame da distribuição de atribuições e Estados, o Distrito Federal e os Muni-
funções governativas, especialmente no que cípios, tendo em vista o equilíbrio do
se refere à gestão e à implementação das po- desenvolvimento e do bem-estar em
líticas sociais, entre Federação, estados e mu- âmbito nacional.
nicípios, conduz a interessantes considerações.
O artigo 6o da Constituição brasileira E o artigo 24 dispõe sobre as competên-
reza que cias legislativas concorrentes entre União,
Estados e Municípios, a saber:
São direitos sociais a educação,
a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, IX – educação, cultura, ensino e
a segurança, a previdência social, a desporto;
proteção à maternidade e à infância, XII – previdência social, prote-
a assistência aos desamparados, na ção e defesa da saúde;
forma desta Constituição. XIV – proteção e integração so-
cial das pessoas portadoras de defi-
Já o artigo 23 estabelece como compe- ciência;
tências comuns da União, dos Estados, do XV – proteção à infância e à ju-
Distrito Federal e dos Municípios: ventude.

19. www.enap.gov.br/redeescolas.
20. Sobre mecanismos institucionalizados de participação dos cidadãos no processo legislativo, ver Anastasia
(2001).

239
Federação e relações intergovernamentais

QUADRO 3. Comissões de Legislação Participativa e Escolas do Legislativo nas


unidades da Federação

Continua

21. “Comissão Permanente da Câmara dos Deputados criada em 2001, com o objetivo de viabilizar a iniciativa
popular na elaboração de leis, conforme disposto no § 2 do artigo 61 da Constituição Federal. Vale lembrar
que essa Comissão é a responsável pelo recebimento de sugestões legislativas por parte entidades organiza-
das da sociedade civil, e não por iniciativas individuais dos cidadãos. As sugestões por ventura aprovadas
pela Comissão, passam a tramitar na Câmara dos Deputados seguindo as normas regimentais aplicáveis aos
projetos de lei de iniciativa das demais Comissões” (Fonte: Interlegis).

240
Os parágrafos 1°, 2°, 3° e 4° do artigo cácia da lei estadual, no que lhe
24 da Constituição Federal estabelecem que: for contrário.

· no âmbito da legislação concorren- A leitura desses artigos permite consta-


te, a competência da União limi- tar que, embora a Constituição brasileira não
tar-se-á a estabelecer normas gerais; atribua aos estados nenhuma competência
· a competência da União para le- exclusiva relativa às políticas sociais, ela lhes
gislar sobre normas gerais não confere um importante papel na provisão dos
exclui a competência suplemen- bens e serviços pertinentes a esta área de po-
tar dos Estados; lítica, o que fica claro especialmente através
· inexistindo lei federal sobre nor- do exame dos parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º do
mas gerais, os Estados exercerão a artigo 24.
competência legislativa plena, para Além disso, a Constituição estabelece
atender as suas peculiaridades; que a gestão das políticas sociais deverá ter
· a superveniência de lei federal so- um caráter democrático e descentralizado,
bre normas gerais suspende a efi- através da participação dos atores sociais

241
Federação e relações intergovernamentais

nelas interessados. Obviamente, tal dispositi- exemplo –, bem como federações que não
vo constitucional reforça a participação dos são democracias, como o Brasil, na Repúbli-
estados e municípios, onde estão florescendo ca Velha e durante o Ciclo autoritário-mili-
os conselhos setoriais de políticas públicas, tar de 1964 a 1984. Porém a combinação de
que são, em geral, paritários e deliberativos. federalismo com democracia – em presença
Há uma vasta literatura que tem esses ór- dos instrumentos adequados para impedir o
gãos colegiados como objetos privilegiados de domínio da política pelas oligarquias locais
análise. Vale ressaltar que tais órgãos são vin- – parece configurar um arranjo institucional
culados ao Poder Executivo e contam com a direcionado à consecução dos atributos de-
participação de representantes dos setores go- sejáveis da democracia, quais sejam, densi-
vernamentais responsáveis pela implementação dade democrática da representação, estabi-
das políticas a eles concernentes. Ainda que lidade política e responsabilidade política dos
sejam controversos os resultados obtidos por governantes perante os governados.
esses Conselhos, e não obstante a enorme po- O federalismo assimétrico brasileiro en-
lêmica teórica que têm provocado entre os contra-se diante do desafio de enfrentar as
estudiosos do tema, é fato que constituem im- enormes desigualdades de diferentes tipos que
portante novidade institucional e carregam in- caracterizam o país e que, muitas vezes, são
teressante potencial democratizante. agravadas pela competição predatória entre
Não se pode, no entanto, constatar avan- os estados-membros. As perversas condições
ços similares no âmbito dos legislativos esta- socioeconômicas, que se mostram mais em
duais. Uma visita ao site da União Nacional alguns estados e em algumas regiões do que
dos Legislativos Estaduais (UNALE) permite em outras, constituem ameaça para o regime
verificar que um número expressivo de As- democrático e afetam negativamente o exer-
sembléias Legislativas não conta com comis- cício da cidadania democrática. O que emer-
sões permanentes relacionadas aos temas ge como mais preocupante, do quadro esbo-
mais caros das políticas sociais, a saber, saú- çado, é que ali onde as condições são mais
de, previdência e assistência social – que con- precárias é exatamente onde se verifica, tam-
figuram, em conjunto, a seguridade social –, bém, menor desenvolvimento institucional.
educação e habitação. O que leva a indagar, com ceticismo, sobre
A ausência de expertise e de desenvolvi- a capacidade das instituições políticas, no âm-
mento institucional coerente com as comple- bito subnacional, de processarem as clivagens,
xas tarefas legislativas e de fiscalização relati- necessidades e interesses dos cidadãos dos di-
vamente às políticas sociais, no âmbito dos ferentes estados. Enquanto persistir a gigan-
legislativos estaduais, pode ser mais um fator tesca assimetria entre estados e entre cida-
explicativo da persistência do quadro de ca- dãos, ela será a expressão da incapacidade
rências e de desigualdades socioeconômicas de nossas instituições políticas de realizarem
que atravessa a federação brasileira. os preceitos constitucionais que apontam
para a diminuição das desigualdades e das
assimetrias entre os brasileiros, os entes da
4. Instituições subnacionais Federação e as regiões do país.
e democracia

Existem democracias que não são fede-


rações – Inglaterra e Nova Zelândia, por

242
Sugestões de leitura

ABRUCIO, F. L. Os barões da Federação: os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo: USP/


Hucitec, 1998.
ANASTASIA, F. Responzabilizacion por el Control Parlamentario. In: CONSEJO CIENTIFICO DEL CLAD
(Coord.). La Responzabilizacion en la Nueva Gestion Publica Latinoamericana. Buenos Aires: CLAD, BID,
EUDEBA, 2000.
_________. Transformando o Legislativo: a experiência da Assembléia Legislativa de Minas Gerais. In: SANTOS,
F. (Org.). O Poder Legislativo nos Estados: diversidade e convergência. Rio de Janeiro: FGV, 2001.
_________., MELO, C. R. F. Accountability, representação e estabilidade política no Brasil. In: ABRÚCIO, F.
(Org.). O Estado numa era de reformas: lições dos anos FHC. Brasília: Ministério do Planejamento, 2002.
ARNOLD, D. The logic of congressional action. New Haven/Londres: Yale University Press, 1990.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
CAMARGO, A. Federalismo cooperativo e o princípio da subsidiariedade: notas sobre a experiência recente do
Brasil e da Alemanha. In: HOFMEISTER, W., CARNEIRO, J. M. B. (Orgs.). Federalismo na Alemanha e no
Brasil. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001. (Série Debates, n.22, v.1)
FIGUEIREDO, A. C., LIMONGI, F. Executivo e Legislativo na nova ordem constitucional. Rio de Janeiro: FGV,
1999.
HAMILTON, A., MADISON, J., JAY, J. O Federalista. São Paulo: Abril Cultural, 1985.
KUGELMAS, E. A evolução recente do regime federativo no Brasil. In: HOFMEISTER, W., CARNEIRO, J. M.
B. (Orgs.). Federalismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001. (Série Deba-
tes, n.22, v.1)
NICOLAU, J. Dados eleitorais do Brasil. Disponível em www.iuperj.br.
LIJPHART, Arend. As democracias contemporâneas. Lisboa: Gradiva, 1989.
PEREIRA, A. R. Sob a ótica da delegação: governadores e assembléias no Brasil pós-1989. In: SANTOS, F.
(Org.). O Poder Legislativo nos Estados: diversidade e convergência. Rio de Janeiro: FGV, 2001.
SANTOS, F. (Org.). O Poder Legislativo nos Estados: diversidade e convergência. Rio de Janeiro: FGV, 2001.

243
Capítulo 3
O município na política brasileira:
revisitando Coronelismo, enxada e voto

LUIS AURELIANO GAMA DE ANDRADE

“As instituições comunais” – escreveu O Brasil mudou radicalmente desde en-


Tocqueville – “são para a liberdade aquilo tão. A população concentrou-se nas cida-
que as escolas primárias são para a ciência; des e houve a industrialização; os meios
pois a colocam ao alcance do povo, fazendo- de comunicação expandiram-se extraordi-
o gozar do seu uso pacífico e habituar-se a nariamente e deu-se a virtual integração
servir-se dela. Sem instituições comunais, pode das comunidades municipais com a vida
uma nação dar-se um governo livre, mas não nacional. A Constituição de 1988 iria ci-
tem o espírito da liberdade”.1 mentar esse novo quadro de relações, con-
Um pouco mais de meio século atrás, ferindo ao município o status de ente fe-
Victor Nunes Leal lançava o que viria a se derativo e introduzindo modificações na
tornar um clássico da literatura sociológica repartição das rendas entre os diferentes
e política brasileira: Coronelismo, enxada e escalões de governo. Finalmente, deu-se o
voto. Nessa obra pioneira, Leal apontava o passo da descentralização, com a passagem
fenômeno do coronelismo como resultante da responsabilidade pela implementação de
de uma tríplice condição: a superposição do políticas públicas cruciais para o bem-estar
sistema representativo sobre uma realidade da população, como a educação e a saúde,
social e econômica inadequada, a dependên- para a órbita dos municípios.
cia estrutural do município aos estados e à Mas, no plano político, como se encon-
União e o isolamento e a baixa comunicação tra hoje a política local no Brasil? A ques-
do sistema local com o resto do país. tão não é acessória. Pode haver democracia
O retrato da política local traçado por sem uma base local autônoma e sem vitali-
Leal, em que o município aparecia amesqui- dade? A resposta, nos termos da teoria
nhado e subjugado, fazia parte do quadro tocquevilliana, seria um não categórico. Leal,
mais amplo da política brasileira, em que se embora não faça referência expressa ao au-
combinavam a preeminência do poder pri- tor de A democracia na América, também
vado dos coronéis no âmbito local com o endossaria essa tese.
fortalecimento do poder central do Estado, As seguintes questões também fazem
conjugado com a existência de instituições parte do desafio da democracia no Brasil:
representativas na política. Teria o país alcançado, sobretudo a partir

1. Tocqueville, Alexis de. A democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977, p.53.

245
O município na política brasileira: revisitando Coronelismo, enxada e voto

das mudanças políticas dos últimos anos, a extensão do território, salvo depois da des-
maturidade institucional e política reclama- coberta do ouro e, assim mesmo, apenas nos
da por Leal? O município estaria, agora, em eixos dinâmicos da atividade econômica e
condições de servir de sementeira para o pro- na capital. A organização municipal, embo-
cesso político livre e democrático? A atual ra tenha precedido o povoamento,4 esteve
relação centro-periferia, traduzida no mode- todo o tempo a serviço dos interesses dos
lo federativo da Constituição de 1988, seria senhores rurais, facilitando a resolução de
suficiente ou conducente à consolidação da disputas nascidas entre eles. Quando surge a
prática democrática entre nós? cana-de-açúcar, sendo formados núcleos ur-
O objetivo deste ensaio é explorar, ainda banos que gravitam em torno de sua explo-
que rapidamente, o município e seu lugar na ração, a “comuna é apenas uma assembléia
construção da democracia brasileira. Exami- do senhoriato, não desce a acolher o vilão, o
na sua trajetória e recapitula as linhas básicas homem do povo, o artesão nem o pequeno
da disposição centro-periferia na política bra- burguês do comércio”.5
sileira. Finalmente, aborda os horizontes que O contraste com as pequenas localida-
se abrem com a descentralização e a crescen- des da Nova Inglaterra observadas por
te autonomia do poder público local. Tocqueville é nítido. A instituição munici-
pal brasileira não nasce da solidariedade ou
do interesse dos membros da comuna. En-
1. O município no Brasil Colônia
quanto o município nos Estados Unidos da
Deixando à margem a questão sobre a fase colonial, no começo do século XVIII,
existência ou não de feudalismo na história era uma realidade homogênea, com diferen-
brasileira,2 como aponta Cintra,3 o período ças sociais e econômicas pequenas entre seus
colonial é caracterizado pela “tendência habitantes, no Brasil era hierarquizado – um
irresistível à privatização do poder”, surgida fosso separava os donos de terras dos habi-
do “encontro do Estado patrimonialista por- tantes das vilas e cidades que se dedicavam
tuguês com o imenso espaço novo a domi- ao artesanato ou ao comércio.
nar”, que se deu por meio “da concessão de O Brasil Colônia foi essencialmente um
amplas prerrogativas aos colonizadores”. arranjo conveniente e pragmático da metró-
O Estado era rarefeito e não se fazia pre- pole portuguesa – ela própria um império
sente, ou não se mostrava efetivo em toda a burocrático tradicional – que se defrontava

2. A historiografia brasileira acha-se dividida entre duas interpretações. De um lado, tendo à frente Nestor
Duarte, há os que defendem que o Brasil teve um passado feudal; de outro, estão os que preferem, com base
em estudo de Raymundo Faoro, a hipótese de que o país teve uma organização patrimonial. Veja-se Duarte.
A ordem privada e a organização política nacional. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1966, e Faoro. Os donos do
poder. Ed. Globo/Ed. USP, 1975. Veja-se, a propósito das interpretações sobre o poder local no Brasil, Dias,
Marcia Ribeiro. Poder político local no Brasil, Um retrato histórico na revisão da literatura. Dissertação de
Mestrado, Iuperj, Rio de Janeiro, 1995.
3. Cintra, Antônio Octávio. “A Política Tradicional Brasileira: uma interpretação das relações entre o Centro e
a Periferia”, Cadernos do Departamento de Ciência Política, mar. 1974, n.1, p.61.
4. Ver, a propósito, Faoro, op. cit., p.147.
5. Duarte, op. cit., p.74.

246
com “tendências centrífugas pela impossibi- ordem política dessa fase da história do país
lidade – técnica, econômica, militar e políti- manteve-se com base em duplo fundamen-
ca – de fazer sua presença sentida em todos to: o interesse em preservar a escravidão e o
os pontos do território crescentemente in- carisma do imperador.
corporado aos seus domínios através das As elites políticas do Império percebe-
ações privadas compatibilizadas com os pro- ram que
jetos imperiais de expansão”.6
num país grande como o nosso,
de características geográficas e eco-
2. O poder local na monarquia nômicas tão diversificadas, se as pro-
Sob a nova condição política criada com víncias fossem dotadas de amplos
a Independência, não se alterou a relação en- poderes, poderia suceder que em al-
tre os municípios e o poder central no Brasil. guma delas o trabalho livre pusesse
Ao contrário, mesmo o Ato Adicional, de ins- termo à escravidão. E como não se-
piração nitidamente liberal, reduziu ainda ria possível a coexistência, no mes-
mais as precárias competências das Câmaras mo país, desses dois regimes de tra-
Municipais, conferindo às províncias a prer- balho antagônicos, os escravocratas,
rogativa de definir-lhes as funções e a área de que dominavam o cenário político
atuação, segundo sua conveniência. nacional, não podiam deixar de re-
O objetivo desse dispositivo era fortale- correr à centralização para resguar-
cer as províncias contra o centro e, ao fazê- dar, em todo o Império, a continua-
lo, restringiu-se ainda mais a liberdade da ção da escravatura. A centralização
administração local.7 ... salvou a unidade nacional. Tam-
Passado o Primeiro Reinado e parte bém salvou a unidade do trabalho
do período das Regências, quando se en- escravo, segundo a aguda interpreta-
saiou breve e problemático experimento de ção de Hermes Lima...8
descentralização, o arranjo centralizador vol-
tou a ser adotado e se fixou como parte da O paralelo com os Estados Unidos, em-
fórmula política do Império. bora possa dar margem a controvérsias ou a
O poder burocratizou-se e as províncias e simplificações, é, nesse ponto, inescapável.
os municípios estiveram sob o comando atento Lá, por algum tempo, predominou duplo
das autoridades gerais. Não havia autonomia regime de trabalho, o escravo e o livre. O
para os escalões inferiores de governo. desdobrar do processo, porém, mostrou a
Entretanto, a concentração de recursos incompatibilidade desse arranjo. O conflito
nas mãos do poder central era insuficiente do Norte moderno, que praticava a agricul-
para garantir o rígido controle sobre o que tura comercial e utilizava mão-de-obra as-
se passava nos inúmeros e distantes locais salariada, contra o Sul das plantations, ba-
do território continental. Na realidade, a seadas no trabalho escravo, levou à guerra

6. Cintra, A. O., op. cit., p.61.


7. Ver Leal, op. cit., p.76-7.
8. Leal, op. cit., p.78-80.

247
O município na política brasileira: revisitando Coronelismo, enxada e voto

civil. A vitória do Norte e do trabalho livre escravocrata e garantia da preservação da


impediu a fragmentação, fundiu o territó- unidade territorial, mantida a duras penas,
rio e abriu caminho para a consolidação da apesar das forças centrífugas representadas
democracia naquele país.9 No Brasil, o cál- pelo tamanho do território, pelo isolamento
culo político foi diferente e, conscientes do e a dispersão da ocupação territorial e pelo
risco do duplo regime de trabalho para a baixo poder do centro.
conservação da unidade territorial, as eli-
tes políticas optaram pela centralização e a
3. O poder local na República
manutenção do trabalho escravo.10
De fato, a curta experiência das Regên- A queda da monarquia provocaria mu-
cias havia mostrado os perigos da descen- danças nas relações centro-periferia no Bra-
tralização. Provavelmente, maior autonomia sil. A fórmula política do Império – aliança
para os municípios e províncias poderia da aristocracia rural com a burocracia do
transformá-los em “centros de atividade po- Estado – não possibilitava mais a acomoda-
lítica mais intensa, capazes de estimular os ção econômica e política dos interesses nas-
interesses e aspirações das camadas inferio- centes dos produtores de café.
res da população”.11 Os primeiros anos da República foram
Durante a Monarquia, o município este- caracterizados por instabilidade e turbulên-
ve debaixo da tutela do poder provincial e cia. O Exército, que assumira o poder, não
do governo geral. Era, na ordem adminis- reunia as condições de coesão e unidade para
trativa, como afirma Leal, comparável “ao escorar a nova ordem. A estabilidade viria
menor, na ordem civil”. Assim é que, apesar com a política dos governadores, depois que
das amplas atribuições, as decisões das Câ- os civis assumiram o poder.
maras precisavam ser confirmadas pelos con- São Paulo e Minas Gerais, os dois estados
selhos gerais das províncias.12 de maior densidade populacional, revezam-
Havia coerência na submissão do muni- se na Presidência e instauram um novo cen-
cípio aos presidentes de províncias e destes tro político no país. Apesar do lastro político
ao governo geral durante, principalmente, o da nova ordem, o exercício do poder exigia
Segundo Reinado. Afinal, a centralização era composição e equilíbrio com as oligarquias
a pedra de toque do regime burocrático- dos estados.

9. Ver, sobre o assunto, Moore, Jr., Barrington. Social origins of dictatorship and democracy: lord and peasant
in the making of the modern world. Boston: Beacon Press, 1966.
10. Convém ressaltar as dificuldades da comparação. Os Estados Unidos conviveram sempre com o duplo regi-
me de trabalho e formaram, na realidade, duas sociedades. A Guerra Civil, que pôs termo à escravidão, deu-
se em meados do século XIX, quando as duas estruturas encontravam-se amadurecidas e apresentavam
interesses inconciliáveis. A continuação do trabalho escravo no Brasil foi possível pela centralização e, na
tomada dessa decisão, certamente teve peso fundamental a antecipação dos efeitos que a extinção da escra-
vatura produziria sobre a ordem econômica e sobre a unidade territorial. O certo é que a centralização
impediu a dualidade do regime de trabalho e inibiu a formação de interesses contraditórios nessa área. Só no
final do Império é que o problema é posto na agenda política. Deve-se ressaltar que logo após a abolição
deu-se a queda do Império e o início da República.
11. Leal, op. cit., p.74.
12. Ver Leal, op. cit., p.75, que apresenta a lista das funções das Câmaras e as limitações a que estavam sujeitas.

248
O regime era presidencialista e baseado ção da democracia representativa numa or-
em eleições. A organização política era for- dem patrimonial, como mostrou Cintra:
temente descentralizada e a União carecia de
meios para se firmar sobre os demais com- nas classes rurais inferiores, com
ponentes da nação. Os novos donos do po- a implantação das leis eleitorais do pe-
der só poderiam manter-se à testa do Estado ríodo republicano, o ato de votar e o
por meio de alianças com os setores que con- sufrágio trazem novas oportunidades
trolavam a periferia. para demonstrar e revigorar a lealdade
É nesse quadro, descrito e analisado por feudal. O velho sistema de obrigações
Victor Nunes Leal, que surge o coronelismo. passa a incluir, de forma bem natural,
O “coronel” comandava os votos das peque- o dever de ajudar o patrão nas eleições.13
nas localidades e era indispensável para o novo
arranjo de poder. Em troca de apoio às oli- A intermediação do coronel era não ape-
garquias estaduais, dava-lhes os votos que con- nas crítica, mas exclusiva. Só ele poderia
trolavam e que eram necessários para a sua desempenhar o papel de arregimentar elei-
legitimação no poder. tores, mobilizá-los, transportá-los para os
Grande parte do eleitorado, sobretudo locais de votação, treiná-los no exercício do
nas zonas rurais (nas quais vivia a maioria voto e garantir sua lealdade.14
da população), dependia do coronel. Rema- O poder político dos coronéis nem sem-
nescente da ordem privada do Brasil Colô- pre era incontestável. Aqui e ali havia oposi-
nia (fato que levou Nestor Duarte a defen- ção, mas proveniente de outro coronel ou
der a tese da existência de um passado feu- grupos de coronéis que disputavam as gra-
dal na história brasileira), o coronel consti- ças das oligarquias estaduais para estabele-
tuía à época um poder decadente. cer o domínio político local. Também nos
Faltavam-lhe os meios próprios para estados havia disputa, e em vários deles ha-
continuar a funcionar como o protagonista via disputa entre oligarquias pelo poder.
principal da política local, dispensando fa- Mas isso não invalida a tese de Leal.
vores e exercendo a justiça nas suas áreas de Tampouco o fato de que muitas dessas elei-
influência. Mas a dinâmica eleitoral, essen- ções, vencidas com o apoio do potentado lo-
cial para a dinâmica do poder no país, lhe cal, precisariam ter os resultados confirma-
garantia, porém, recursos repassados pelos dos pelas assembléias dos estados.15
estados que lhe permitiam manter e contro- O Brasil dos coronéis e do coronelismo
lar sua clientela política. retratado por Leal foi a tônica do poder lo-
O coronelismo foi a resultante da ado- cal no país durante toda a primeira fase da

13. Ver Cintra, op. cit., p.71-3.


14. Cintra, no artigo citado, desenvolve sofisticada análise do coronelismo e de sua funcionalidade para o siste-
ma. Em análise abrangente deixa clara a “lógica governista” do modelo coronelista.
15. Ver, para uma crítica ao esquema coronelista proposto por Leal, Cammack, Paul. “O coronelismo e o ‘com-
promisso coronelista’: uma Crítica”, Cadernos DCP, 5, Departamento de Ciência Política, UFMG, mar.
1979. Cammack chama a atenção para a dimensão econômica das atividades do coronel como fazendeiro e
questiona a sua indispensabilidade eleitoral, uma vez que os resultados das eleições precisavam ser confirma-
dos e havia muita fraude eleitoral. Não obstante, sem a mediação e o compromisso do coronel com as elites
políticas dos estados, o custo da legitimação do poder seria enormemente elevado.

249
O município na política brasileira: revisitando Coronelismo, enxada e voto

República Velha e grande parte do período incipientes processos de industrialização,


histórico posterior à redemocratização de provocara a aceleração do crescimento
1946. Sobreviveu metamorfoseado em mui- populacional nas grandes cidades e o surgi-
tas regiões, mesmo após a industrialização, mento das primeiras metrópoles brasileiras.
e ainda prevalece em muitas das pequenas O Brasil ingressou na era das sociedades
localidades do Brasil contemporâneo, por- de massas. Os migrantes do campo e do Nor-
que suas causas não foram ali totalmente re- deste povoaram as periferias e aumentaram as
movidas. favelas, especialmente no Rio de Janeiro e em
O coronel era o centro do microcosmo São Paulo. A resposta do sistema político a essa
da política local brasileira porquanto o muni- nova realidade foi o populismo.16
cípio era dependente dos recursos do go-
verno estadual e federal e encontrava-se isola-
4. O poder local no autoritarismo
do do resto do país, com a escassa estrutura
de meios de comunicação. Por isso mesmo, O golpe de 1964 instaurou nova ordem,
a alternativa ao coronel era outro coronel e que tornou as eleições acessórias. O poder
não um personagem político diferente. centralizou-se na esfera federal e os gover-
Seu poder era diretamente proporcio- nadores passaram a ser prepostos do poder
nal à capacidade de garantir para o municí- central. Eram designados não tanto em fun-
pio os bens e serviços (e também favores e ção do prestígio e popularidade que desfru-
empregos) de que careciam as populações tavam nos estados, mas em razão da proxi-
das pequenas e isoladas comunas. A auto- midade e afinidade com os detentores do
nomia municipal era precária e virtualmente poder no centro.
inexistente, e do arranjo coronelista escapa- Com a limitada dinâmica eleitoral exis-
vam apenas os médios e grandes centros ur- tente nesse período, não era mais necessá-
banos do país. ria a intermediação local. Nem as elites es-
Mas, mesmo nos médios e grandes aglo- taduais nem os donos do poder federal ca-
merados populacionais, não se evidenciou, reciam dela. Mais tarde, extinguiram-se os
senão em período muito recente, um novo velhos partidos e instalou-se no país o
foco de política em bases não subordinadas. bipartidarismo. A disputa eleitoral, porém,
Em quase todos, sobretudo nas grandes con- foi mantida no nível local, com exceção das
centrações, grassou o populismo e monta- capitais e das consideradas áreas de seguran-
ram-se máquinas populistas. ça nacional.
Na realidade, na esteira da redemocra- Muito embora dispensáveis para a con-
tização do pós-guerra, o sistema político bra- quista e a estabilidade do poder, os municí-
sileiro sofrera grande transformação. A inten- pios acabaram atingidos direta ou indireta-
sidade da urbanização, articulada ou não com mente pelas políticas do novo regime.

16. Sobre o populismo existe abundante produção de estudos. Ver Lafer. O sistema político brasileiro. São
Paulo: Perspectiva, 1975, e Jaguaribe. “Brazilian Nationalism and the Dynamics of Its Political Development”,
Washington University, St. Louis, Studies in Comparative International Development, II, n.4, 1966. Populismo
é um arranjo político que simultaneamente centra sua atuação sobre as massas políticas – o povo –, as corteja
mas as incorpora de forma subordinada ao sistema de poder. Há vários tipos de populismo. Ver, sobre esse
assunto, Bobbio, Matteucci & Pasquino. Dicionário de Política, UnB, 1986.

250
Na realidade, a questão municipal, ou das autoritário viu-se às voltas com a sempre ur-
cidades, se assim se pode chamá-la, entrou na gente questão da legitimidade.
agenda política dos governos militares a par- As visões que deram origem à ordem au-
tir de 1964 em resposta a três ordens de fato- toritária no Brasil, inspiradas em parte na
res: a nova organização administrativa do aversão ao populismo, levaram os presiden-
poder, a modernização autoritária que então tes militares a lançar-se a tentativas de supe-
se empreendeu e, finalmente, o populismo até rar o quadro tradicional da política brasilei-
então vigente. Quanto a este último fator, o ra. Recriar a comunidade foi uma dessas ten-
objetivo era desativá-lo. tativas, que se deu sobretudo com a iniciativa
De fato, o populismo inspirava temor e – frustrada, diga-se de passagem – de criar os
aversão entre os novos donos do poder no Centros Sociais Urbanos.
Brasil. Havia o receio de que as massas “sol- Mas não foi esse o único determinante
tas” das cidades grandes poderiam se tornar das políticas que tinham o município por
campo de manobra para movimentos de con- alvo, sob o autoritarismo. A partir do gover-
testação. Essa percepção não era nova. Antes no Castelo Branco, empreendeu-se ampla
do golpe, era partilhada por parcela signifi- modernização do país.
cativa das lideranças políticas, que viam ris- O regime autoritário inaugurado em 1964
cos na ação de políticos populistas que se ali- foi marcado por forte tom tecnocrático. Mi-
mentavam das esperanças dessas massas. Após litares e tecnocratas constituíram a base dos
a derrubada de Goulart e a instalação da dita- novos governos. Isso não quer dizer que no
dura militar, o novo regime procurou neu- passado não houvesse especialistas ou técni-
tralizar essa ameaça potencial. cos no governo. Advogados, engenheiros e
A criação do BNH inscreve-se nesse mar- economistas há muito faziam parte do setor
co.17 A casa própria era vista como antídoto público. Entretanto, nunca os técnicos ha-
para os que poderiam representar ameaça à viam obtido influência própria, como ocor-
ordem. A Fundação da Casa Popular, que reu depois que o autoritarismo estabeleceu-
precedeu o BNH, rendera dividendos polí- se no país em 1964.
ticos elevados e dera origem a crescentes A emergência do tecnocrata como um
expectativas nas cidades, que, se não atendi- ator político deveu-se essencialmente à na-
das, pensava-se que poderiam dar margem a tureza do regime autoritário.18
focos de insurreição. Das mudanças introduzidas com a
Desmobilizador, contando com precária “tecnificação” da política, destaca-se a da
base de articulação com a sociedade, tendo reforma tributária. Na repartição dos recur-
reduzido o significado das eleições e teme- sos, os municípios tiveram aumentada a sua
roso dos “órfãos do populismo”, o regime

17. Ver Azevedo & Andrade. Habitação e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
18. Regime autoritário, situação autoritária ou autoritarismo estão sendo utilizadas aqui em conformidade com
a noção desenvolvida por Juan Linz e formulada em seu conhecido trabalho “An authoritarian regime:
Spain”, in Allardt, & Littunen (Ed.). Cleavages, ideologies and party systems. Contribution to comparative
political sociology, Helsink, 1964. Segundo Linz, o regime autoritário caracteriza-se por um pluralismo
limitado (as decisões são fechadas mas delas participam pessoas e grupos privilegiados, ao contrário da
ditadura clássica), pela ausência de mobilização política e pela inexistência de uma ideologia abrangente. O
autoritarismo distingue-se do totalitarismo.

251
O município na política brasileira: revisitando Coronelismo, enxada e voto

fonte de receita. A penúria financeira em que As necessidades locais eram crescentes, em


viviam as prefeituras municipais, principal- conseqüência da aceleração da urbanização e
mente nas pequenas localidades, havia sido da industrialização no período militar. Para
diagnosticada por Victor Nunes Leal como atender às mais simples e rotineiras, parecia
um dos fatores que estimulavam o pacto suficiente a melhoria tributária proporciona-
coronelista. Com minguadas receitas pró- da pelo governo Castelo Branco. Para inves-
prias, os municípios precisavam da constante timentos de maior envergadura, porém, mes-
ajuda dos estados e do governo federal. mo as médias e grandes cidades precisavam
A Constituição de 1946 não havia alte- recorrer às administrações estaduais e, espe-
rado esse quadro. As receitas municipais cialmente, ao governo federal em Brasília.
deterioravam-se com a inflação, diferente- Sob nova forma e com novos atores –
mente do que se verificava nos estados e na agora os mediadores eram tecnocratas e polí-
União, onde a arrecadação acompanhava de ticos ligados à Arena – renovava-se o velho
perto a oscilação dos preços. Em 1964, da jogo político que submetia o poder local à
totalidade dos impostos coletados, 50,5% dependência das instâncias superiores de
foram para a União, 44,6% foram levanta- governo.21 Prefeitos do PMDB encontra-
dos pelos estados e apenas 8,0% couberam vam maiores dificuldades para obter os
aos municípios.19 recursos de que careciam os municípios sob
A reforma tributária melhorou substan- sua liderança do que os do partido da situ-
cialmente a situação financeira dos municí- ação, a Arena, e, por isso mesmo, não fo-
pios mas não representou a carta de alforria ram raros os casos de prefeitos eleitos pela
para a crônica dependência de recursos esta- oposição que mudaram de agremiação,
duais e federais que Leal aponta como solu- para se abrigarem sob o manto protetor
ção para os males diagnosticados em sua clás- do governo. Apesar do discurso e da in-
sica análise do coronelismo. tenção modernizadora, o governismo es-
Em 1975, dez anos depois da reforma tri- teve vivo durante todo o período da dita-
butária, somadas as transferências para esta- dura militar.22
dos e municípios criadas com os fundos de Paralelamente à reforma tributária, o re-
participação, as receitas municipais represen- gime autoritário procurou empreender a
taram 13,2% do total da arrecadação do se- modernização dos municípios. Junto com a
tor público, contra 36,3% dos estados e criação do Banco Nacional da Habitação,
50,5% da União.20 Mesmo assim, continua- foi instituído o Serviço Federal de Habita-
va a dependência. ção e Urbanismo – Serfhau, que deveria en-

19. Ver Brasileiro. O município como sistema político. Rio de Janeiro: FGV, 1973, p.22.
20. Ver Pastore. “Avaliação crítica da reforma tributária de 1965”, Revista de Finanças Públicas, v.XLI, n.348,
out./nov. 1981.
21. Sobre o assunto, ver Dias. Poder político local no Brasil, um retrato histórico na revisão da literatura, op. cit.,
p.68-82.
22. Ver Castro. “Equipamentos sociais e política local no pós-64: dois estudos de caso”, Espaço e Debates, n.24,
1988.

252
carregar-se das políticas de planejamento ur- ríodo, cuja característica principal era a frag-
bano no país. mentação institucional.
Por um breve período, pareceu que o Feitas as contas, o balanço da política
Serfhau funcionaria nos moldes que leva- municipal sob a égide do regime autoritário
ram a sua criação. Seguindo orientação con- foi negativo. Houve melhoria financeira dos
tida no Plano de Desenvolvimento Estraté- municípios, mas não a ponto de lhes garantir
gico, foram traçadas as linhas mestras para autonomia. Continuaram avassalados, como
a atuação do órgão. Como assinala Cintra,23 em outras eras, com o agravante de que ago-
“a política urbana nacional deveria assen- ra viviam sob um regime repressivo e autori-
tar-se na construção hierárquica de planos tário, no qual a política era restrita, a parti-
territoriais, partindo de um plano nacional, cipação proibida e a cidadania tutelada.
passando aos macro-regionais até atingir os Houve, é verdade, aqui e acolá, como em
micro-regionais e locais”. Lages e Toledo, experiências de gestão local
Com o Serfhau, buscava-se introduzir o que representavam avanços, mas esses casos
planejamento na área urbana e, nessa fun- constituíam exceções.
ção, cabia-lhe “guiar todos organismos fe- Entretanto, no tocante à vida associativa,
derais, sempre que matérias urbanas estives- apesar das adversidades, surgiram, em prin-
sem em questão”.24 Entretanto, logo ocor- cípios dos anos 70, manifestações novas – o
reu uma inversão de papéis. O BNH, que novo sindicalismo do ABC, as sociedades de
deveria estar atrelado ao planejamento do amigos de bairros, os movimentos de donas-
Serfhau, ganhou corpo e passou a liderá-lo. de-casa e contra a carestia, além das primei-
O desempenho do Serfhau foi modesto e, ras organizações da comunidade negra –,
apesar dos esforços, nem mesmo os planos mostrando que, abaixo da superfície estéril e
de desenvolvimento local integrado, com que aparentemente imóvel da sociedade brasilei-
pretendia modernizar a ação das prefeitu- ra sob o autoritarismo, encontravam-se em-
ras, foram implementados.25 briões de mudança e inconformismo.27
Uma evidência do fracasso do Serfhau foi Contudo, com a interrupção da demo-
a pequena influência que exerceu sobre a le- cracia, o revigoramento do município fora
gislação das áreas metropolitanas, embora o mais uma vez adiado no Brasil.28 A rede-
problema estivesse sob sua competência.26 O mocratização e as mudanças políticas que
órgão não conseguiu exercer de fato o co- tiveram lugar desde então, especialmente nas
mando sobre a política metropolitana do pe- grandes cidades, modificariam esse quadro.

23. Cintra. The politics of comprehensive metropolitan planning: a case study of Belo Horizonte. Tese de douto-
rado não publicada, Massachussets Institute of Technology, MIT, 1983.
24. Ibidem, p.125.
25. Ibidem, p.129.
26. Ver, sobre o assunto, Cintra, op. cit., p.129-33.
27. Ver, sobre o surgimento desses movimentos, São Paulo: o povo em movimento. Petrópolis: Vozes/Cebrap,
1980.
28. Ver, sobre o sistema político e partidário brasileiro no período, Soares. A democracia interrompida. Rio de
Janeiro: FGV, 2001.

253
O município na política brasileira: revisitando Coronelismo, enxada e voto

5. Da Constituição de 1988 grande a grita dos prefeitos contra a estrutu-


aos nossos dias
ra tributária vigente. Isso se deve ao fato de
Rompendo com uma tradição que re- que a parcela maior das receitas municipais,
montava ao período colonial, a Carta Cons- sobretudo nas pequenas localidades, vem das
titucional de 1988 fez dos municípios entes transferências constitucionais, e grande parte
autônomos, equiparando-os à União e aos destas é dinheiro carimbado.31 Reclamam,
estados. Paralelamente, instituiu nova re- além disso, que parcela expressiva da arre-
partição da carga tributária, que provocou cadação da União provém de contribuições
significativo ganho para os municípios. como a CPMF e o Pis-Cofins, que não são
Somadas as receitas tributárias próprias dos compartilhadas com estados e municípios.
municípios às transferências constitucionais, Parte desse argumento procede. Para os
a participação destes no bolo tributário cres- municípios, a receita tributária própria cons-
ceu de 10,8%, em 1988, para 16,9%, em titui a fonte de recursos com que contam para
2000.29 A Tabela 130 mostra a evolução da investimentos e para o financiamento de gas-
distribuição da receita disponível (incluindo tos de capital. Mas é também, para a maioria
transferências compulsórias) entre os esca- deles, a menor parcela da receita. Além disso,
lões de governo. em 2001 a arrecadação direta federal, em ter-
Apesar do incremento da quota dos mu- mos nominais, aumentou 13,8%, contra
nicípios no conjunto das receitas públicas, é 14,4% dos estados e 8,3% dos municípios.32

TABELA 1. Repartição da receita tributária disponível por nível de governo –


1960- 2002.

Fonte: Informe-se, BNDES, n.54, abril de 2003.


O Informe-se é disponível na Internet (federativo.bndes.gov.br).

29. A participação dos municípios no novo ICMS passa de 20 para 25%. Tal fato deveu-se à intensa mobilização
política dos prefeitos e à fragilidade política do presidente Sarney.
30. Agradeço a Paulo Cesar de Souza, mestrando das Faculdades Integradas de Pedro Leopoldo a colaboração
na atualização dos dados municipais.
31. Dinheiro carimbado é recurso transferido com destinação legal predeterminada.
32. Ver Informe-se, BNDES, n.40, maio 2002, p.3.

254
Em 2002 a parcela da União no bolo tribu- base econômica maior – as propriedades são
tário voltou a crescer (1 ponto percentual) mais valiosas e neles o peso dos serviços é
enquanto os estados e os municípios perde- significativo –, mas também em virtude das
ram, respectivamente, 0,8 e 0,3 pontos características do Fundo de Participação dos
percentuais.33 Tal fato deveu-se à criação da Municípios – FPM, que beneficia, em maior
Contribuição de Intervenção no Domínio grau, as pequenas localidades. Do FPM, 10%
Econômico (CIDE) que só posteriormente são destinados às capitais, 3,6% aos municí-
viria a ser partilhada com os outros entes pios do interior com mais de 156 mil habi-
federativos. tantes, e o restante, 86,4%, às demais locali-
A arrecadação direta dos municípios, dades. A todos os municípios com menos de
com exceção das grandes cidades e capi- 10.188 residentes, é garantido um coefici-
tais, é inferior às transferências constitu- ente mínimo de 0,6. Quanto maior a popu-
cionais que recebem da União ou dos esta- lação, maior é o coeficiente, mas este não é
dos. Em 2000, o montante total da receita proporcional e cresce menos. O resultado é
tributária própria das cidades brasileiras que, para os municípios que contam com
atingiu 1,7% do PIB contra 3,91% das maior população, o FPM tende a ser menos
transferências. importante.36 Outro fator que não pode ser
Estatísticas da Secretaria do Tesouro Na- ignorado é o processo de modernização
cional para o ano de 1997, abrangendo um fazendária das médias e grandes cidades bra-
total de 5.046 municípios, mostraram que sileiras, que permitiu a expansão das recei-
as transferências federais e estaduais consti- tas próprias.37 Mesmo nas pequenas locali-
tuíram mais de 50% da receita corrente de dades, impostos que tradicionalmente não
4.876 cidades.34 Dados de estudo do BNDES eram cobrados passaram a sê-lo.
para 1999, com amostra de 1.404 prefeitu- Houve, de fato, desconcentração dos re-
ras, revelaram que, entre os municípios com cursos tributários após a Constituição de
população abaixo de 30 mil habitantes, “a 1988, ainda que o governo federal tenha ins-
receita tributária própria não representou tituído ou ampliado receitas não sujeitas à
mais de 3% da receita disponível e em 36% divisão com os demais entes da Federação.
(dos 412 municípios) esta mesma relação si- Como assinalado por Afonso & Amorim
tuou-se entre 3 e 10%”.35 Araújo,38 “nunca os municípios tiveram uma
Na realidade, nos municípios mais po- importância relativa tão elevada na adminis-
pulosos a receita tributária direta tende a ser tração pública nacional”. A que se deve, en-
mais expressiva, não só porque contam com tão, a grita dos prefeitos?

33. Ver Informe-se, BNDES, n.54, abril de 2003, p.5.


34. Ver Informe-se, BNDES, n.28, jun. 2001, p.2.
35. Informe-se, BNDES, n.28, jun. 2001, p.3.
36. Informe-se, BNDES, n.28, jun. 2001, p.3.
37. Ver, a propósito, Afonso & Araujo. “A capacidade de gastos dos municípios brasileiros: arrecadação própria
e receita disponível”, Cadernos Adenauer, 4: Os municípios e as eleições e 2000. São Paulo: Fundação Konrad
Adenauer, jun. 2000. Mesmo nos pequenos municípios, que tradicionalmente não cobravam impostos lo-
cais, houve aumento da receita própria.
38. Ibidem, p.37.

255
O município na política brasileira: revisitando Coronelismo, enxada e voto

O que talvez explique as queixas e o A grita dos prefeitos se deve ao fato de que a
movimento reivindicatório dos municípios demanda por serviços públicos não só aumen-
a uma parcela mais substancial do bolo tri- tou como está mudando de natureza. Há mais
butário foi a passagem para órbita local da informação e participação da parte dos
competência pela execução da prestação de munícipes, que passaram a ter assento em
serviços de saúde e de parte das tarefas edu- conselhos municipais de saúde e outros orga-
cacionais. nismos instituídos para supervisionar a
A criação do SUS – Sistema Único de Saú- implementação de políticas sociais.
de no bojo da Constituição de 1988 Há quem se oponha à descentralização,
municipalizou a saúde e fez do prefeito par- alegando com a experiência da França e da
ceiro dessa política até então afeta aos gover- Espanha e objetando que não haveria ga-
nos estaduais e federal.39 Nos novos termos rantias de que recursos, como os do Fundo
constitucionais, a União está obrigada a trans- de Manutenção e Desenvolvimento do En-
ferir para os municípios recursos para finan- sino Fundamental, Fundef,41 seriam aplica-
ciar o atendimento médico das populações, dos adequadamente ou que acabariam lan-
assim como os próprios estados, mas é o çados no caixa único dos municípios, per-
município que responde diretamente aos dendo-se o controle sobre seu uso.
usuários e isso provoca desgastes políticos. A experiência vem demonstrando exata-
Na realidade, nos últimos oito anos hou- mente o contrário. O Fundef constitui hoje
ve um vasto processo de descentralização da um orçamento à parte, gerido diretamente
implementação das políticas públicas, não só pelos secretários municipais de educação, que
com a municipalização da saúde mas tam- são por ele responsáveis. O resultado é que,
bém com a da educação. embora o Fundef não represente dinheiro
Num contexto democrático, em que novo ou adicional, o gasto municipal com
avulta o crescente papel do Ministério Pú- educação elevou-se substancialmente.
blico40 e da defensoria pública – que fiscali- Não bastassem essas garantias, há ainda
zam e cobram o cumprimento dos dispositi- a Lei de Responsabilidade Fiscal, que im-
vos legais, secundados pelas mídias – e se põe regras para a gestão dos recursos pú-
multiplicam os movimentos e organizações blicos. Contrariamente às expectativas de
sociais, esses fatos vêm gerando profunda muitos, que temiam que a lei não “pegas-
transformação na política local. se”, deu-se o oposto. As primeiras análises
O cidadão das pequenas cidades começa a da Lei de Responsabilidade Fiscal42 mostra-
descobrir que possui direitos e os reivindica. ram que a imensa maioria dos municípios

39. Ver Informe-se, BNDES, n.28, jun. 2001.


40. A Constituição de 1988 tornou o Ministério Público autônomo. Desde então, ele vem fiscalizando a ação do
poder público.
41. O Fundef, instituído pela Lei nº 9424, de 24.12.96, é constituído de 15% das receitas dos estados, municípios
e da União. A Constituição de 1988 determinou que 25% dos recursos públicos devem ser gastos com educa-
ção. O Fundef subvincula esses recursos, destinando 15 desses 25% para o ensino fundamental.
42. Ver, a propósito do primeiro ano de implementação da Lei de Responsabilidade Fiscal, Informe-se, “Respon-
sabilidade Fiscal – Municípios: os bons resultados orçamentários de 2000”, BNDES, n.33, dez. 2000. Ver,
também, Informe-se, “Municípios: os bons resultados orçamentários se repetem em 2001”, BNDES, n.49,
dez. 2002.

256
brasileiros conseguiu não ultrapassar os seus pazes de granjear os recursos necessários para
limites. seu território.
Acostumados a driblar os preceitos cons-
titucionais quando estes se referem a gastos,
os prefeitos vêm fazendo um duro aprendi- 6. Conclusão

zado de austeridade e responsabilidade. O Atualmente ocorre uma grande mudan-


temor das punições, as pressões da popula- ça na política local. A autonomia, tão re-
ção, das Câmaras e dos contabilistas que os clamada pelos municípios, está deixando de
assessoram têm contribuído decisivamente ser uma ilusão. Houve melhoria significati-
para o bom resultado verificado na gestão va na repartição do bolo tributário, com
orçamentária dos municípios. Os gastos com aumento da capacidade do poder público
educação e saúde nunca estiveram sob tanto municipal. Simultaneamente, descentrali-
controle quanto agora e a isso se deve sem zou-se a implementação de políticas públi-
dúvida à melhoria do sistema de educação cas de relevo e de grande alcance para o
fundamental experimentado nos últimos bem-estar da população, com ganhos de efi-
anos no país. ciência e eficácia.
Outro fator que não pode ser subestima- Tocqueville considerava a vitalidade da
do nas mudanças que vêm ocorrendo na vida associativa das pequenas comunas con-
política local brasileira tem a ver com a dição essencial para a democracia. Victor
redemocratização e a construção/consolida- Nunes Leal aponta as mazelas do corone-
ção da democracia entre nós. lismo e propõe a autonomia como o seu an-
Tradicionalmente considerado uma so- tídoto.
ciedade desarticulada e desorganizada, o Bra- Parte dessas condições começa a ser ge-
sil vem experimentando crescentes níveis de rada. Ainda há burgos podres ou pequenas
participação política no âmbito local. Orga- localidades no país, mas, à diferença do pas-
nizações e associações de toda natureza e com sado, encontra-se em curso uma nova dinâ-
objetivos os mais diversos vêm sendo cria- mica, que poderá expandir-se e dar frutos
das por toda a parte. para a cidadania e a democracia no país.
Isso não quer dizer que a tendência ao
governismo43 tenha sido riscada do mapa
político do país. Muitas pequenas localida-
des, apesar da descentralização das receitas
tributárias, ainda dependem dos favores dos
estados e da União para sobreviver, por meio
de transferências voluntárias.44 Para tanto,
elegem os deputados que pareçam mais ca-

43. Sobre o governismo, ver Abrucio. Os barões da Federação. São Paulo: Hucitec, 2002 e Abrucio, Teixeira &
Costa. “O papel institucional da Assembléia Legislativa paulista: 1995 a 1998”. In: Santos. (Ed.). O Poder
Legislativo nos estados: diversidade e convergência. Rio de Janeiro: FGV, 2001.
44. Esse fato se deve hoje em grande parte à criação desenfreada de municípios. Cerca de mil municípios foram
criados desde 1988.

257
Sugestões de leitura

ABRUCIO, F. L., TEIXEIRA, M. A. C., COSTA, V. M. F. O papel institucional da Assembléia Legislativa Paulista:
1995 a 1998. In: SANTOS, F. (Org.). O Poder Legislativo nos estados: diversidade e convergência. Rio de
Janeiro: FGV, 2001.
_______. Os barões da Federação. São Paulo: Hucitec, 2002.
AFONSO, J. R. R., AMORIM ARAÚJO, E. A capacidade de gastos dos municípios brasileiros: arrecadação
própria e receita disponível. Cadernos Adenauer, 4, Os municípios e as eleições de 2000. São Paulo: Fundação
Konrad Adenauer, jun. 2000.
AZEVEDO, S., ANDRADE, L. A. G. Habitação e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
BNDES. Informe-se. Rio de Janeiro.
BRASILEIRO, A. M. O município como sistema político. Rio de Janeiro: FGV, 1973.
CAMMACK, P. O coronelismo e o compromisso coronelista: uma crítica. Cadernos DCP, 5. Belo Horizonte:
Departamento de Ciência Política, UFMG, mar. 1979.
CASTRO, M. H. Equipamentos sociais e política local no pós-64: dois estudos de caso. Espaço e Debates, 24,
1988.
CINTRA, A. O. A política tradicional brasileira: uma interpretação das relações entre o centro e a periferia.
Cadernos DCP, 1. Belo Horizonte, Departamento de Ciência Política, UFMG, mar. 1974.
_______. The politics of comprehensive metropolitan planning: a case study of Belo Horizonte. Tese (Doutorado)
– Massachussets Institute of Technology. Cambridge: MIT, 1983.
DIAS, M. R. Poder político local no Brasil, um retrato histórico. Dissertação (Mestrado) – Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1995.
DUARTE, N. A ordem privada e a organização política nacional. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1966.
FAORO, R. Os donos do poder. 2.ed. São Paulo: Globo/Ed. USP, 1975. 2v.
JAGUARIBE, H. Brazilian nationalism and the dynamics of its political development. St. Louis: Washington
University, Studies in Comparative International Development, II, 4, 1966.
LAFER, C. O sistema político brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1975.
LINZ, J. An authoritarian regime: Spain. In: ALLARDT, E., LITTUNEN, Y. (Ed.). Cleavages, ideologies and party
systems. Contribution to comparative political sociology. Helsink, 1964.
MOORE, Jr., B. Social origins of dictarship and democracy: lord and peasant in the making of the modern world.
Boston: Beacon Press, 1966.
SINGER, P., CALDEIRA BRANT, V. São Paulo: o povo em movimento. Petrópolis: Vozes/Cebrap, 1980.
SOARES, G. A. D. A democracia interrompida. Rio de Janeiro: FGV, 2001.
TOCQUEVILLE, A. A democracia na América. Belo Horizonte: Itatiaia, 1977.

258
Capítulo1
Participação política

LÚCIA AVELAR

O ideal democrático supõe o envolvi- diferentes atores nem sempre é a mesma.


mento dos cidadãos em diferentes ativida- As formas de inserção política de membros
des da vida política. Tais atividades, reunidas das elites diferem daquelas relacionadas
sob a expressão “participação política”, vão aos provenientes da não-elite. É mais fácil
desde as mais simples, como as conversas para os primeiros se iniciarem nas ativi-
com amigos e familiares sobre os aconteci- dades dos partidos políticos, nas entidades
mentos políticos locais, nacionais e interna- corporativas, e se alçarem aos cargos políti-
cionais, até as mais complexas, como fazer cos. Assim, também, variam os canais de
parte de governos, mobilizar pessoas para participação dos membros das entidades re-
protestar contra autoridades políticas, asso- ligiosas, militares e sindicais, e daqueles que
ciar-se em grupos e movimentos para reivin- participam nos movimentos sociais organi-
dicar direitos, envolver-se nas atividades da zados, rurais ou urbanos. Desde que o fenô-
política eleitoral, votar, candidatar-se, pres- meno da participação política passou a ser
sionar autoridades para mudanças nas regras um problema enquanto fenômeno político,
constitucionais, para favorecer grupos de os estudiosos procuram compreender as dife-
interesses os mais diversos, e mais uma rentes formas de participação, antigas ou no-
plêiade de atividades que circundam o uni- vas, que, em cada época e em cada contexto
verso da vida política. Ligada à idéia de so- histórico, adquirem maior ou menor relevân-
berania popular, a participação política é cia. Mas continua sendo um grande desafio
instrumento de legitimação e fortalecimen- para os estudiosos compreender, tratando-se
to das instituições democráticas e de amplia- dos cidadãos, os motivos que os levam a parti-
ção dos direitos de cidadania. cipar ou as razões da apatia da grande maio-
As formas e os canais de participação ria diante dos assuntos políticos.1
política variam conforme o contexto histó- Sabendo que são variadas as formas de
rico, as tradições da cultura política de um participação, assim como os possíveis
país ou região, e também conforme a situa- enfoques para seu estudo, e diante do fato
ção social dos que participam. Assim, a de que não há uma teoria consensual que a
lógica de organização e participação dos explique, discutiremos a problemática do

1. Na primeira edição deste livro, optamos por uma indicação bibliográfica mínima. Nesta edição oferecemos
bibliografia ampliada com o objetivo de indicar as fronteiras temáticas do fenômeno da participação política.

263
Participação política

ponto de vista de sua emergência histórica, a burguesia nascente, a alta elite privilegia-
com o surgimento dos canais de participa- da, rica e letrada, e os soberanos, e depois
ção, introduzindo o debate sobre o que leva entre a burguesia e os trabalhadores, especi-
as pessoas a se envolverem com a política, almente nos países da Europa, alianças essas
ressaltando aspectos da emergência da socie- fundamentadas na idéia de extensão dos di-
dade organizada no Brasil e os obstáculos reitos de cidadania às classes populares.3
para a sua ampliação. Ênfase especial será A consolidação da idéia de um Estado de
dada, nos textos seguintes, ao modo como soberania popular oferecia a possibilidade
as elites, a Igreja Católica e os militares se para que cada cidadão, indiferentemente de
envolvem na política em nosso país, às ca- sua posição na sociedade civil, pudesse rei-
racterísticas e orientações do eleitorado, e à vindicar os seus direitos, de modo a superar
dinâmica da representação de interesses dos sua desigualdade diante de outros que usu-
trabalhadores por meio dos sindicatos. fruíam de privilégios sociais e políticos. A
extensão do sufrágio às camadas populares
e a introdução do voto secreto foram instru-
1. A emergência da participação mentos para que cada eleitor manifestasse
política
sua opção política, longe da coerção dos mais
A participação política emergiu junto poderosos. Foi, porém, com a organização
com o Estado de soberania popular, à época política que se conquistou, historicamente,
dos movimentos revolucionários europeus um “novo terreno de confrontação”, pois
dos séculos XVIII e XIX, no contexto das tornou-se possível para as coletividades or-
revoluções industrial e burguesa, um fenô- ganizadas politicamente lutar contra os va-
meno que rompeu com a regra secular da lores que justificavam as estruturas sociais
correspondência entre posição social e polí- de enormes desigualdades. Se o sufrágio uni-
tica dos indivíduos.2 Essa ruptura foi lenta, versal anunciava uma igualdade potencial, a
iniciada com a queda paulatina da aristocra- organização política seria o instrumento para
cia e a ascensão da burguesia e, mais tarde, a construção da igualdade social.
incorporou cidadãos da classe trabalhadora. A extensão da participação pouco a pou-
Em alguns casos – mas, raramente –, dava- co se materializava nas instituições políticas.
se a entrada de indivíduos de classes inferio- As censuras ao direito de associação e de reu-
res na política, por iniciativa dos próprios nião, até então restrito a poucos segmentos
governos conservadores, com o objetivo de sociais, aqueles que possuíssem propriedade
ampliar a sua base de apoio e de legitimida- ou fonte de renda assegurada, foram pro-
de. Foram numerosas as alianças feitas entre gressivamente derrubadas, e essa evolução

2. A idéia de uma sociedade civil organizada remonta a Hegel (1770-1831), que elaborou um dos pilares mais
sólidos para a compreensão da sociedade civil contemporânea. Gramsci, na primeira metade do século XX,
ancorado principalmente em Hegel, ofereceu um arsenal de estudos enfatizando a importância da convivên-
cia em grupos e coletividades para o entendimento da política e das instituições políticas (COHEN e ARATO,
2003).
3. O tema da participação política foi magistralmente tratado por Alessandro Pizzorno em um artigo publica-
do na Itália em 1966 (PIZZORNO, 1975). Algumas passagens do presente texto expressam categorias
conceituais encontradas especialmente nesse artigo.

264
foi apropriada pelos membros da classe tra- nos séculos XVIII e XIX, mantinham conta-
balhadora e pelos sindicatos. O “direito de to com a sociedade civil apenas em ocasião
associação” tornou-se legalmente aceito em eleitoral, tal como ainda presenciamos nas
vários países europeus, como França, Ingla- sociedades de conformação tradicional, de
terra, Bélgica e Holanda, enquanto continua- grandes desigualdades sociais e de práticas
va negado o “direito de reunião” (BENDIX, clientelísticas. No caso da sociedade euro-
2000, capítulo 3). A distinção entre reunião péia ocidental, ao final do século XIX emer-
e associação era um modo de evitar o forta- giam pouco a pouco os partidos de massa,
lecimento da classe trabalhadora emergente enquanto outros, além da classe trabalhado-
com o desenvolvimento industrial, sob o ra, se organizaram com o objetivo de parti-
objetivo de “preservar” a igualdade formal cipar na política formal. Entre eles, os mo-
universal, um mito que prevalece até os dias vimentos de mulheres, responsáveis pelo
atuais. Um exemplo é a declaração de Le avanço da democracia, ampliando o espec-
Chapelier, autor da lei francesa que proibia tro das reivindicações favoráveis à democra-
os sindicatos, lei de julho de 1791, segundo tização da política (GEOFF, 2005). Nos pa-
a qual os acordos sobre condições de traba- íses de regimes absolutistas, as organizações
lho deveriam ser fixados conforme enten- competitivas e inclusivas viriam tardiamen-
dimentos entre o patrão e o empregado, for- te; em outros, a participação democratizou
malmente iguais perante a lei. A história da a política, no seio do conflito capital versus
luta pela extensão desses direitos às classes trabalho. Hoje, diferentemente, a socieda-
baixas, não apenas os direitos civis, mas de se organiza também em torno de valores
também os direitos políticos e sociais, é morais e éticos, como a preservação
parte da história do desenvolvimento da ambiental, direitos reprodutivos, movimen-
cidadania em cada país (MARSHALL, 1964; tos pacifistas e humanistas, estendendo-os
BENDIX, 2000). para questões socioeconômicas. A cidada-
Por volta de 1850, com o fortalecimento nia passou então a ser entendida como direi-
do movimento socialista, os trabalhadores de tos de qualquer individuo, independentemen-
indústria se organizavam em inúmeras facções te de raça, cor, etnia, região, gênero, religião,
doutrinárias, divididas entre a participação nacionalidade e, principalmente, da situação
por meio das instituições representativas socioeconômica, embora permaneçam enor-
burguesas e a participação direta revolucio- mes distâncias entre direitos formais e reais.
nária. Esse dilema, vivenciado principalmen- Mesmo em países de maior equidade, são
te pelos anarquistas e socialistas, atravessa- veementes os protestos contra a situação de
ria décadas, fruto de um debate relacionado privilégios de uns sobre outros. É o caso das
às estratégias para alcançar a emancipação mulheres nos países nórdicos, as quais recla-
social pela via da emancipação política mam da situação de privilégio dos homens
(PRZEWORSKI, 1989, cap.1, p.20-1). da classe trabalhadora comparados com elas,
Os partidos políticos, os movimentos mães de família que vivenciam baixo status
sociais e as subculturas políticas foram exem- porque se dedicam a trabalhos sazonais e ao
plos da ampliação da participação e do for- cuidado com os filhos (ver International
talecimento da sociedade organizada, parti- Political Science Review, v.21, n.4, Oct. 2000).
cularmente no século XX. Os partidos polí- Esse processo, cuja referência está nos
ticos, especialmente os partidos de notáveis, países da social-democracia européia, não se

265
Participação política

observou nos Estados Unidos da América. no centro-sul do país a partir dos anos 60 e
Ali, em 1776, instaurou-se a República, com 70, alcançaram expressão política. Ganhou
a soberania dos estados federados no centro força a organização política da sociedade tam-
dos ideais republicanos. Os estados e a União bém em conseqüência da mobilização das co-
definiram suas esferas de competência, uni- munidades eclesiais de base da Igreja Católi-
dos pela idéia de cidadania universal. A má- ca progressista, as CEBs, inconformadas com
quina burocrática governamental (civil os níveis de analfabetismo, miséria, pobreza
service) foi criada a partir de 1883, em um rural e urbana (KECK, 1991). Ademais, os
contexto no qual ela era vista como progres- movimentos de mulheres, entre outros,
sista, avançada e reformista. Assim também tornaram-se visíveis e agregaram força
eram vistas as atividades do bossismo ou corporativa para a política da não-elite. As-
empresariado político, do clientelismo e do sim vem sendo construído o espaço político
favoritismo, considerados instrumentos de- da sociedade organizada, iniciado nas déca-
mocráticos, inclusivos e populares, ao per- das anteriores e consolidado nos anos 70 e
mitir a entrada de imigrantes nas instituições 80. Se comparada ao ocorrido na maioria dos
eleitorais e nas máquinas governamentais. Ao países da social-democracia européia, a con-
final, esse arcabouço institucional foi consi- quista do instrumento associativo como meio
derado como um spoil system. Do lado da de democratização viria, entre nós, mais de
sociedade, a mobilização e a participação um século depois.
eram desejáveis até certo ponto, para não
ameaçar a soberania dos estados federados e
2. O que é participação política?
a estabilidade do sistema, razão pela qual se
considera o regime democrático-representa- Participação é uma palavra latina cuja
tivo norte-americano um exemplo de esta- origem remonta ao século XV. Vem de
bilidade mas de baixa participação política. participatio, participationis, participatum.
No Brasil, a emergência da participação Significa “tomar parte em”, compartilhar,
deu-se muito mais tarde, em meados do sé- associar-se pelo sentimento ou pensamento.
culo XX, quando os níveis de urbanização Entendida de forma sucinta é a ação de indi-
tornaram-se crescentes e aquela sociedade víduos e grupos com o objetivo de influen-
predominantemente rural transformou-se, ciar o processo político. De modo amplo, “a
em algumas décadas, em uma sociedade urba- participação é a ação que se desenvolve em
na.4 As mudanças na economia propiciaram solidariedade com outros no âmbito do Es-
a constituição de organizações sindicais dife- tado ou de uma classe, com o objetivo de
rentes daquelas da primeira industrialização modificar ou conservar a estrutura (e, por-
brasileira, deflagrada na década de 1930, com tanto, os valores) de um sistema de interes-
um sindicalismo atrelado ao Estado de estru- ses dominantes” (PIZZORNO, 1975).
tura pouco competitiva. Os trabalhadores da Para outros estudiosos, tal definição é por
nova industrialização brasileira, consolidada demais ampla, abrangendo toda e qualquer

4. Para um inventário dos movimentos que eclodiram no Brasil entre a crise do escravismo e os dias atuais, ver
Aquino, Vieira, Agostino e Roedel, 2002.

266
forma de ação coletiva (MELUCCI, 1996). no âmbito fechado dos governos e do siste-
Para garantir seu valor heurístico, uma ma estatal; e o canal organizacional, que
definição de participação política deve levar consiste em formas de organização coletiva
em conta conteúdos diferentes, entre os no âmbito da sociedade civil, como os mo-
quais, primeiro, que aquele que participa bus- vimentos sociais, as subculturas políticas, as
cando seus objetivos identifica-se com os in- atividades das organizações não-governa-
teresses gerais de um sistema dominante, le- mentais de natureza cívica, experiências de
gitimando-o; segundo, que a participação se gestão pública em parceria com grupos or-
dá em um contexto competitivo de interação ganizados da sociedade, como o orçamento
estratégica e com o objetivo de exercer al- participativo, os conselhos gestores etc. Es-
gum grau de influência na distribuição de tudiosos da participação política chamam a
poder em beneficio de um grupo específico atenção para a importância da internet nos
(ibidem, p.306). movimentos da sociedade organizada e res-
Mesmo se o sentimento é de oposição a saltam a emergência desse canal digital que
um sistema dominante, a participação polí- permeia todas as outras atividades de parti-
tica ocorre dentro de limites e regras defini- cipação. Sua importância nos grupos locais
das por esse sistema, legitimando-o. Por isso, e nas redes organizacionais é inquestionável,
uma definição de participação abrange as o que lhe vale a denominação de democra-
ações que ocorrem nos limites e regras de um cia digital. As “vilas eletrônicas” são reali-
sistema político, e os atores em disputa pro- dades para grupos sociais e políticos de toda
curam maximizar sua influência nas decisões sorte (FOSTER, 1996).
políticas. Todas as ações que extrapolam as A participação pelo canal eleitoral com-
regras dominantes, confrontando-as, deve- preende as atividades eleitorais e as dos par-
riam ser tratadas em outras categorias, como tidos, que são as instituições especializadas
as dos movimentos sociais. de ligação entre a sociedade e o Estado. São
A participação abrange um universo di- eles que organizam todos os rituais da de-
ferenciado de manifestações empíricas, e mocracia representativa, como as candida-
sempre haverá dificuldades na sistematiza- turas e as eleições, de modo que a população
ção de todo seu repertório nas democracias ratifique a confiança em seus representantes
contemporâneas. Diante disso, resumimos ou deles se livre.5
em três grandes vias os canais de participa- As primeiras pesquisas empíricas redu-
ção: o canal eleitoral, que abrange todo tipo ziam as formas de participação às atividades
de participação eleitoral e partidária, con- eleitorais e partidárias, como votar, freqüen-
forme as regras constitucionais e do sistema tar reuniões de partidos, convencer pessoas
eleitoral adotado em cada país; os canais a optar por certos candidatos ou partidos,
corporativos, que são instâncias intermediá- contribuir financeiramente para as campa-
rias de organização de categorias e associa- nhas eleitorais, arrecadar fundos, ser mem-
ções de classe para defender seus interesses bro de cúpulas partidárias e candidatar-se

5. O método de investigação sobre o processo de formação do voto, ou sobre quais as variáveis que mais
influenciam o voto de um eleitor, foi originalmente proposto em The People’s Choice. How the voter makes
up his mind in a Presidential Campaign, de Lazarsfeld, Berelson e Gaudet (1944).

267
Participação política

(MILBRATH e GOEL, 1965). As críticas a ma dominante? Questões como estas ainda


essa concepção minimalista de participação estão presentes na maioria das democracias
apontavam para o fato de que essas ativida- do mundo ocidental, razão pela qual outras
des não esgotam o repertório das atividades formas de participação política são críticas
de participação, especialmente nos países em às práticas e estratégias das instituições da
que os cidadãos se envolvem mais intensa- democracia representativa.6
mente na política. A excessiva ênfase no ca- A participação política pelo canal eleito-
nal eleitoral como o cerne das atividades de ral e partidário mantém, no Brasil, práticas
participação oculta os meios pelos quais os desenvolvidas ainda na primeira República
segmentos da não-elite se organizam e se (1889-1930). Naquele momento as oligar-
manifestam, particularmente nos países em quias dos estados federados fundaram insti-
que as elites tradicionais sabem como mani- tuições e organizaram alianças em moldes
pular o sufrágio a seu favor, seja pelos vín- que perduraram até os dias de hoje. A práti-
culos clientelísticos, seja pela coerção e vio- ca do clientelismo permeou as organizações
lência. O canal eleitoral só é um canal de par- partidárias e as instituições eleitorais, con-
ticipação democrática quando a sociedade se troladas pelas elites políticas tradicionais.
organiza em uma pluralidade de associações, Organizadas à base de laços clânicos, e de
de modo que seus líderes mais representati- feição regional, essas elites sempre souberam
vos são alçados para as atividades eleitorais e como manipular as eleições e os partidos fa-
partidárias e encontram igualdade de recur- voravelmente à continuidade de seu poder.
sos e de oportunidades na disputa eleitoral. Seu objetivo, ao se ancorar no poder local,
Esse foi um dos dilemas vividos pelas era criar ligações entre o município e o esta-
organizações de trabalhadores e de outros do, sob a forma de coronelismo e por meio
segmentos da não-elite diante das institui- dos mecanismos clientelísticos (HAGOPIAN,
ções representativas promulgadas pela bur- 1996; EISENSTADT e RONIGER, 1984;
guesia no bojo da revolução capitalista no ANDRADE, no presente volume). O coro-
correr dos séculos de construção do Estado nel, mediador de um sistema organizado hie-
moderno. Tendo os partidos o poder de es- rarquicamente, praticava o voto de cabres-
colher seus candidatos, em conformidade to, sem motivações ideológicas e de puro
com as regras do sistema eleitoral, não seria interesse pragmático, apoiando todo aquele
este um arcabouço institucional que propor- que carregasse mais votos. O clientelismo
ciona apenas a ilusão da vontade do povo? tradicional, a troca de favores por voto, no
Não teriam os eleitores apenas um papel pós-guerra combinou elementos de política
coadjuvante e limitado ao poder de eleger tradicional e moderna, porque fundado no
representantes escolhidos anteriormente pe- poder das famílias tradicionais regionais. Os
los partidos? Os mecanismos das instituições eleitores se orientavam mais pela lealdade
eleitorais e partidárias não serviriam apenas aos políticos do que aos partidos, e os che-
para perpetuar no poder os grupos do siste- fes locais negociavam os “bens” a serem tro-

6. Pesquisas sobre as atividades de movimentos e fóruns sociais registram o conteúdo substantivo dessas críti-
cas. Ver Democracy in Europe and the mobilization of society. Demos Project. Comissão Européia, 2006.
Disponível em http://demos.iue.it

268
cados – nomeação de professores ou cons- as pré-capitalistas, as dos fascismos, diferem
trução de estradas e pontes, em transações daquelas que vicejam nos sistemas democrá-
individualizadas, mas permeadas por coali- ticos contemporâneos (LANZARO, 1998).
zões eleitorais que ligavam o nível local ao Como afirma Robert Dahl (1997), “os sujei-
estadual e ao federal. As redes clientelísticas tos do pluralismo moderno nas arenas mo-
se tornaram assim verdadeiros mecanismos dernas são prioritariamente os partidos, mas
de relações inter-governamentais. Quando os também as organizações corporativas e os
partidos se tornaram partidos nacionais, ao demais atores coletivos”. A intuição já fora
mesmo tempo em que ocorria a centraliza- registrada em 1936 por Manoïlesco, quan-
ção estatal a partir do governo de Getulio do afirmava que, no futuro, todas as insti-
Vargas (1930-1945), o clientelismo se trans- tuições sociais e políticas seriam corporativas.
formou em clientelismo de estado, o Execu- Recuperando o termo, P. Schmitter (1974)
tivo federal beneficiando este ou aquele par- “limpa” o conceito, pesquisando suas raízes
tido que apadrinharia uma população históricas e seus conteúdos, resgatando-o dos
(HAGOPIAN, 1996). O mecanismo seus significados pejorativos. Segundo esse
clientelístico aprofundou-se no período da autor, tanto o conceito de “clientelismo”
ditadura militar (1964-1985), e revitalizou- como o de “corporativismo” não podem ser
se com a redemocratização do país. Estas, deixados no limbo e devem ser analisados
entre outras, são as razões pelas quais a par- sob o ponto de vista das atividades de parti-
ticipação mediante o canal eleitoral e parti- cipação na política contemporânea
dário sofre críticas contundentes pelos adep- (PIATTONI, 2001).
tos da democracia participativa. Para eles, Esses estudos distinguem o “corporati-
esse padrão de relação entre Estado e socie- vismo estatal” do “corporativismo societal”
dade, ao privilegiar relações particularistas, (O’DONNELL, 1998). O corporativismo es-
não dá conta de uma sociedade urbana, mo- tatal teria por característica facilitar o aces-
derna e desigual, complexa.7 so de grupos na hierarquia organizacional
A participação pelos canais corporativos do Estado, para a obtenção de prebendas fis-
tem a ver com a representação de interesses cais, isenções setoriais e privilégios arraiga-
privados no sistema estatal. Essas atividades dos. Quando isso ocorre em sociedades de
são vistas como positivas pela elite, porque baixo associativismo, com fraca sociedade
exercidas por grupos e associações contrários civil organizada, onde falta corporativismo
aos conflitos, sem a pretensão de modificar societal, há riscos de que a engrenagem
os valores que fundamentam o sistema de in- corporativa seja praticada semi-clandestina-
teresses dominante. É um canal utilizado par- mente (REIS, 1988) e reafirme ainda mais os
ticularmente nos países em que é forte a in- privilégios da elite aliada ao grupo governante,
tervenção do governo na economia, como é a menos que a arena corporativa se submeta
o caso brasileiro desde a década de 1930. à arena eleitoral. As vias para a participa-
As formas ancestrais corporativas como ção corporativa são as organizações profis-

7. O estudo citado de Frances Hagopian deve ser consultado, especialmente pelos interessados no tema das
elites políticas tradicionais.

269
Participação política

sionais, as federações, os lobbies profissio-


nais, empresariais e sindicais com trânsito
junto à burocracia governamental, às instân-
cias legislativas, executivas e judiciárias. Não
sem razão é chamada de participação seleti-
va, podendo agravar a desigualdade existen-
te no âmbito da representação política.
A participação pelo canal organizacional
abrange as atividades não institucionalizadas
da política com propostas de novos arranjos
e ligações entre a sociedade civil e o Estado.
São grupos que se estruturam em redes ho-
rizontais, com princípios de democracia in-
terna e envolvimento de seus membros, ma- Representantes indígenas acompanham plenário
da Câmara.
terializando outras estratégias na construção
da esfera pública.
Um exemplo é o dos movimentos sociais, um dos mais importantes ideários de mudan-
que se articula para objetivos de médios e ça cultural e política do século XX. Assim, tam-
longos prazos, com períodos de maior bém, são os movimentos negros, os de traba-
envolvimento e visibilidade, dependendo da lhadores, os de gays, os movimentos étnicos e
agenda da organização. Seus membros são os trabalhistas e socialistas tradicionais; os
chamados de militantes e se unem em redes movimentos populares, como aqueles ligados
de relações informais, compartilhando cren- à reivindicação de moradias, os de luta contra
ças que, no geral, contestam os valores cor- o desemprego, pela melhoria dos transportes
rentes de uma sociedade, lutando para coletivos, pela melhoria dos serviços de saúde
superá-los, porque são restritivos, inferiores, e contra a carestia, alguns deles chamados de
ao justificar uma estrutura social que margi- “novos movimentos sociais” (DOIMO, 1995;
naliza grande parte da sociedade. A eficácia CARDOSO, 1983; EVERS, 1984; LANDIM,
dos movimentos depende da densidade da 2002). Cada um desses grupos, constituídos
rede social produzida, o que depende do es- à base de uma situação de déficit de reconhe-
forço de cooperação dos seus membros e da cimento, cimentou verdadeiras redes de so-
identificação com os interesses comuns. lidariedade horizontais para projetar uma so-
Entre os inúmeros exemplos das ativida- ciedade que o incorpore e que lhe ofereça opor-
des políticas pelo canal organizacional desta- tunidades iguais de poder8 (AVELAR, 2002;
cam-se os movimentos de mulheres que, par- SCHERER-WARREN, 2004; AVRITZER,
tindo da situação de preconceito relacionada 2004; SANTOS, 2005; DAGNINO, 1994,
ao gênero, reivindicaram e reivindicam maior 2006; COHEN e ARATO, 2000).
igualdade no campo dos direitos. O feminis- Os movimentos sociais envolvem um nú-
mo, que impulsionou esses movimentos, foi mero significativo de pessoas, pretendem

8. Bibliografia específica sobre Movimentos Sociais, no final do texto.

270
chamar a atenção da sociedade – políticos e O cidadão interessado pela política se en-
eleitores – para os temas centrais (framing) que volve em modos diversos de participação,
fundamentam a organização política. Embora pelos canais eleitorais ou organizacionais. A
ocorram fora dos canais institucionalizados da maioria da população, porém, é pouco ati-
política, eles vêm sendo considerados como va, conformista e, no geral, desencantada
parte do processo político normal. com a política. Em alguns casos porque não
A partir de então, os movimentos sociais se sente qualificada para participar; em ou-
foram essenciais para a expansão da cons- tros, porque não acredita que a política po-
ciência política do brasileiro, o qual passou derá melhorar sua vida. O desencanto tem a
a reivindicar mudanças substantivas, no ver com o ceticismo em relação aos políti-
campo da justiça redistributiva. Surgiram cos, como mostram as recentes pesquisas em
novos espaços públicos, como o orçamento todo o mundo (ver o texto de Castro, neste
participativo e os conselhos gestores muni- volume). Seja como for, a participação polí-
cipais (ABERS, 2000; TATAGIBA, 2002), tica continua sendo o principal fundamento
embora com limitações advindas da baixa da vida democrática, e o instrumento por
escolaridade da população em um grande excelência para a ampliação dos direitos de
número de municípios. Pesquisa recente cidadania.
aponta a diminuição da corrupção nas pre-
feituras municipais à medida que crescem as
atividades associativas e participativas nas 3. Mobilização e organização
localidades brasileiras (WEBER, 2006). Um Os participantes da ação coletiva agem
sem-número de novas institucionalidades de modo organizado e propositivo, criando
participativas se reproduzem e, ao que tudo redes de solidariedade e buscando o reco-
indica, esta é uma realidade incontestável da nhecimento interno dos seus membros e o
democracia brasileira (CICONELLO, 2006; da sociedade. Na análise da vida associativa
AVRITZER, 2004). Democratizar a demo- devem-se observar as condições de sua emer-
cracia, este é o lema dessas organizações. gência, o processo de formação, a organização
Importante registrar, entre as atividades
de participação, aquelas que têm objetivos
momentâneos, sendo por isso chamadas de
participação ad hoc. Consistem, por exem-
plo, em aderir a uma passeata, a uma greve
ou a manifestações contra a poluição
ambiental, a favor da redução de impostos
ou da construção de uma passarela em local
de tráfego intenso; ocupar locais de reuniões
de empresários notáveis; escrever artigos em
jornais ou enviar cartas às redações, opinan-
do sobre questões políticas ou assinar mani-
festos, participar momentaneamente de reu-
niões políticas, ou se empenhar na campanha
por um candidato à época das eleições. Trabalhadores rurais reivindicam reforma agrária.

271
Participação política

interna, as relações com outros atores, os ob-


jetivos e as conquistas, por exemplo. Desse
conjunto enfatizamos os aspectos ligados à
mobilização de recursos e da organização in-
terna.9
É crucial a mobilização de recursos de
toda ordem para se construir uma organiza-
ção que concretize o envolvimento dos indi-
víduos, que dê realidade às ações coletivas.
Seus líderes agem, habitualmente, canalizan-
do um dos recursos cruciais, que é o descon-
tentamento dos participantes em relação ao
mercado de trabalho, ao acesso ao sistema
político e ao reconhecimento social, tornan- Manifestação a favor do impeachment de Fernando
do públicas as pretensões do grupo perante Collor de Melo, em 1992.

a coletividade mais ampla. Para tanto é que


são construídas as redes de solidariedade que objetivos coletivos. No grupo são ampliados
se tornam concretas com a organização, nas os contatos sociais, as amizades e as referên-
palavras de Blumer, de “verdadeiras empre- cias pessoais, que encorajam as pretensões
sas coletivas para estabelecer uma nova or- de fazer parte da formação da vontade pú-
dem de vida”. Elas retiram o indivíduo do blica com o objetivo de influenciá-la. A or-
isolamento da vida privada, dando-lhe voz, ganização, na medida em que exige traba-
propiciando o compartilhamento da insatis- lho, presença e envolvimento de seus mem-
fação, integrando-o em uma coletividade bros, retira os indivíduos de seu isolamento
solidária, cada um com seu coeficiente de desi- social ampliando sua visão de mundo, de-
gualdade. A organização contrabalança a falta senvolvendo o senso crítico em relação à
de recursos materiais e simbólicos dos parti- política. Aprofundar os aspectos cognitivos
cipantes, como baixa escolaridade, limitações da política para os participantes é parte da
de linguagem e comunicação e falta de de- agenda da organização, que tem a tarefa pe-
sembaraço social, especialmente para os indi- dagógica de desmistificar as razões da priva-
víduos de categorias sociais inferiores. ção de direitos vividos por cada um de seus
O grupo organizado, em sua dinâmica membros (HONNETH, 2003). Nas palavras
interna, oferece a cada participante a condi- desse autor “só o protesto ativo liberta o in-
ção de honra mútua, ao considerar as capa- divíduo da vergonha de não ter direitos”.
cidades e propriedades do outro. Esse senti- A organização é também um canal
mento é um dos alicerces da organização, corporativo, um recurso para o acesso a car-
no compartilhamento de sentimentos co- gos de maior visibilidade, um canal de aces-
muns que se prolongam na consolidação de so ao poder. Na sociedade, as muitas formas

9. Em texto mimeografado, Catia Aida Silva (2005) discute as perspectivas teóricas na abordagem dos movi-
mentos sociais.

272
de exercício do poder são pouco visíveis, historicamente, são os que ocupam as mais
porque se encontram diluídas em inúmeras altas posições na hierarquia política.
organizações, corporações, associações, gru- Pesquisas empíricas mostram que os gru-
pos estruturados ou em estruturação; essa é pos que mais se mobilizam são aqueles cujos
a razão principal de se considerar a organi- indivíduos são centrais em alguns aspectos,
zação política como via de poder. como educação alta, localização geográfica
e exposição a informações de toda ordem,
mas são marginais em outras, o que lhes
4. O que leva os indivíduos a partici-
impede o acesso pleno aos direitos de cida-
par da política?
dania. Tais dados explicam por que é mais
A resposta a essa questão é um objeto difícil a participação política dos menos pri-
privilegiado de estudo para os que procu- vilegiados, a não ser que haja a intermediação
ram explicar por que alguns indivíduos rom- de um agente mobilizador como um partido
pem com a apatia, o desinteresse político e político, lideranças sindicais ou lideranças
o isolamento da vida privada e se envol- populares.
vem nas atividades da política. Alguns mo- Outro modelo para explicar o maior
delos e as respectivas hipóteses são apre- envolvimento na política é o modelo da cons-
sentados a seguir. ciência de classe, que aponta a alternativa da
O modelo da centralidade propõe que “a educação política para superar as condições
intensidade da participação varia conforme do baixo status social. Quanto mais o indiví-
a posição social do indivíduo porque, quan- duo participa, mais adquire consciência de sua
to mais central, do ponto de vista da estru- situação de desigualdade; quanto maior a
tura social, maior a participação e maior o consciência de sua situação, mais tende a par-
senso de agregação”. A participação na polí- ticipar. Com base nessa formulação é que as
tica seria apenas mais um dos atributos dos lideranças políticas sustentam a necessidade
indivíduos de maior centralidade, aqueles de ações pedagógicas por parte dos partidos,
com maiores recursos materiais (dinheiro) e sindicatos e movimentos, para inculcar a cons-
simbólicos (prestígio, educação), essências do ciência de classe e incrementar ações coleti-
arsenal de vantagens sociais e psicológicas vas. Na história ocidental européia do século
que provêem um capital de autoconfiança XIX, a união de intelectuais, estudiosos da
aos indivíduos, fundamentando-lhes a cren- sociedade e trabalhadores resultou na aliança
ça de que podem mudar as situações que lhes entre ciência e consciência com o objetivo de
são adversas. Com baixa posição social, sem educar, politicamente, os indivíduos das ca-
recursos simbólicos, sem a consciência dos madas inferiores da sociedade.
direitos, os indivíduos sentem-se inibidos a Um terceiro modelo, o da escolha racio-
participar, porque apresentam uma auto- nal afirma que os indivíduos são racionais e
imagem negativa se comparada com a da- escolhem participar se os benefícios forem
queles que participam. Não é sem razão que, superiores aos de não participar. Se muitos
em vários países do mundo, incluindo o Bra- participam, buscando os mesmos benefícios
sil, a política é vista como uma “arena para que ele, a sua ausência não modificará o re-
letrados”, diante da evidência de que são os sultado, porque os bens coletivos obtidos,
homens, de mais alto status e brancos, que, afinal, serão de todos, e “pegar carona” na

273
Participação política

participação dos outros lhe trará igual resul- participação política pela teoria da escolha
tado. Dessa forma, o racional é não partici- racional deixa de lado os mecanismos pre-
par, conclusão pouco aplicável diante dos sentes na intenção de participar, dimensão
fatos de períodos de denso envolvimento dos que precede a ação e, portanto, intrínseca
cidadãos na vida política. àquilo que se quer explicar, as motivações
Para Olson, o indivíduo racional se de- para participar.
fronta com o dilema de não participar, por O cálculo custo/benefício é insuficiente
uma variedade de motivos egoístas (como- para explicar toda a realidade do envol-
dismo, por exemplo), ou de participar em vimento na política, porque ao participar, o
uma ação solidária, juntando-se a outros que indivíduo vivencia sentimentos de engrande-
altruisticamente procuram os mesmos obje- cimento pessoal e social cuja importância
tivos. afetiva não deve ser menosprezada. Uma es-
A partir da década de 1970 a teoria tudiosa da questão, Anne Phillips (1995),10
da escolha racional tornou-se corrente assim se manifesta: “reduzir a vida a uma luta
hegemônica na análise dos fenômenos polí- racional por ganhos reduz a comunidade
ticos, pelo menos no campo da Ciência Polí- humana a uma aliança instável, arbitrária e
tica norte-americana. Advinda da tradição instrumental”. Apesar do grande arsenal crí-
filosófica do contratualismo, seus modelos tico que atravessa as últimas duas décadas, a
explicativos se baseiam na dimensão da es- teoria da escolha racional sobrevive como
cassez quando diferentes atores, em busca forma de conhecimento das atividades de
de seus objetivos, se contrapõem uns aos participação (SOMMERS, 2000).
outros em uma arena estratégica, na disputa Um quarto enfoque afirma que a maté-
por bens públicos escassos. Trata-se de uma ria-prima da participação é a identidade que
abordagem econômica do problema da teo- se constrói na experiência da participação.
ria política (REIS, 1984) em que a noção de Redes de solidariedade são, também, redes
escassez seria a chave unificadora para a aná- de reconhecimento recíproco que auferem
lise política: “a escassez política, ou a forma identidade pessoal e coletiva aos seus mem-
politicamente relevante da escassez, tem a bros. Assim constituídas, elas são o elemen-
ver com a interferência de objetivos (ou pre- to por excelência do movimento social, da
ferências, ou interesses) de uma pluralidade ação coletiva compreendida de forma am-
de indivíduos ou grupos entre si, o que nos pla, da organização política de um modo
transpõe para o plano da racionalidade pro- geral, do governo representativo.
priamente estratégica” (p. 113). Há contrastes importantes nos pressupos-
Do ponto de vista epistemológico, tos da explicação pela utilidade ou pela iden-
Sommers (2000) define como realismo teó- tidade. A utilidade vem da tradição filosófi-
rico a natureza da explicação da escolha ra- ca do contratualismo, cuja maior expressão
cional, freqüentemente confundida com é Thomas Hobbes; a ênfase da ação encon-
abordagem positivista. Para ela, explicar a tra-se no indivíduo. Já a identidade vem dos

10. No geral, outros estudiosos do campo da ciência política feminista, assim como os de outras minorias,
firmam a importância do envolvimento pessoal na organização para o fortalecimento do “eu”, o crescimen-
to da auto-estima.

274
pensadores das “sociedades do reconheci- de que, a cada um, cabe igual direito de par-
mento”, como Hegel, para quem a origem ticipar no processo de formação da vontade
da relação social entre os homens estava na política, garantido juridicamente, sem inter-
luta pelo reconhecimento. O valor do eu, da ferências que constranjam sua liberdade. Daí
individuação, emerge da relação entre indi- que a privação de direitos no plano jurídico
víduos porque “o que um ser humano pode significa reconhecimento negado e motivo
oferecer ao outro é a capacidade de reco- de vergonha social. A possibilidade de supe-
nhecer a sua existência...” (citado por rar essa vergonha virá pelo protesto ativo,
HONNETH, 2003). A participação em ações no curso da participação, que lhe dá a opor-
coletivas é procura por reconhecimento, pró- tunidade de reconstruir sua auto-estima. A
pria dos indivíduos com “déficit de reconhe- participação política abrange então dimen-
cimento” e que se reconhecem no convívio sões psicanalíticas, jurídicas, sociológicas,
político. além da dimensão moral da luta por direi-
No campo da teoria crítica e da filoso- tos, entendendo-se que a explicação desse
fia, as pesquisas mais recentes firmam a im- fenômeno deve ser buscada na conjugação
portância de ver a participação política como de várias disciplinas das ciências sociais e
uma luta pelo reconhecimento. Axel Honneth humanas.
(2003) propõe uma teoria fundada em três Os estudos sobre os movimentos das
esferas de interação com padrões diferentes mulheres registram depoimentos que são
de reconhecimento recíproco: o amor, o di- verdadeiras histórias de construção de iden-
reito e a solidariedade. A cada um desses tidades e de luta pelo reconhecimento de
padrões correspondem formas de reconhe- pessoas que jamais se haviam reconhecido
cimento intersubjetivo: nas relações primá- como cidadãs, sem voz e sem alternativa para
rias de amor e amizade é que se produzirá a a reclusão da vida familiar. Outro exemplo
autoconfiança individual que é a base psí- é o dos negros e seus descendentes, que lu-
quica do desenvolvimento dos outros pa- tam para modificar sua posição subalterna
drões de reconhecimento. na sociedade brasileira. A população negra,
A outra esfera do reconhecimento é a do o segmento de menor renda per capita e
campo das leis, das relações jurídicas, quan- menor escolaridade, vem lutando para su-
do identificamos a nós e aos outros mem- perar a ausência de recursos materiais e
bros da coletividade como portadores de di- simbólicos que dificulta o esforço de
reitos, como pessoas de direitos, o que asse- mobilização. Sua presença no associativismo
gura o cumprimento social das pretensões brasileiro é pequena, conforme mostra o es-
individuais. Os sujeitos de direito se respei- tudo publicado pelo IBGE para as regiões
tam mutuamente porque eles sabem que as metropolitanas de Recife, Salvador, Belo
normas sociais são distribuídas igualmente Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro e
na comunidade, não se admitindo exceções São Paulo. A pesquisa apontou que os que
e privilégios, independentemente das dife- mais participavam tinham 11 anos ou mais
renças sociais e econômicas. Como se viu de estudo (73%), seguidos pelos que tinham
anteriormente, até o século XVIII os direi- de 8 a 10 anos (10%). Os indivíduos com
tos de participação estavam ligados à posi- instrução inferior a 4 anos apresentavam um
ção social do indivíduo. Já nas primeiras índice de associativismo em torno de 4%.
décadas do século XX impõe-se a convicção Esses resultados explicam por que os negros

275
Participação política

e pardos são os que menos participam na so aos direitos. Defendem uma participação
política. fundada na construção de identidades coleti-
vas e políticas de cotas, ou políticas de reco-
nhecimento da privação de direitos em que
5. As ações afirmativas e a política se encontram alguns segmentos da socieda-
de cotas
de. Por meio delas se reconhece que os direi-
Lembremos que a experiência histórica tos firmados em regras constitucionais, em
da construção do poder político no Brasil nome de uma cidadania universal, mistificam
corresponde a duas formas de dominação de as desigualdades reais, sob o argumento de
tipo tradicional: o patriarcalismo e o que todos têm direitos iguais. Corroboram o
escravismo, o que significa que as mulheres princípio de que o igual acesso não é tudo, se
e os negros eram considerados como não há políticas públicas efetivas para a
subcidadãos, fora da fruição dos direitos so- universalização dos direitos. O debate é po-
ciais e jurídicos. Isto sem considerar a popu- lêmico porque, para que alguns ganhem, ou-
lação nativa, os indígenas, vistos como tros terão de perder, e as classes médias e al-
subumanos porque culturalmente diversos da tas nem sempre estão dispostas a padecer pe-
sociedade do colonizador europeu. A partir las injustiças governamentais do passado.
dessa experiência fundante que moldou uma Entre as políticas de ações afirmativas mais
estrutura social sob a forma de castas, temos discutidas hoje na sociedade brasileira estão
até os dias de hoje práticas de exclusão que as cotas para mulheres nos partidos políticos
abrangem as mulheres e os descendentes de e as cotas para negros nas universidades.
índios e negros. Basta ver nas cúpulas parti- Para os adeptos do liberalismo igualitá-
dárias, nas listas para cargos eletivos, entre rio as cotas não resolvem porque o essencial
os eleitos, os números são insignificantes. Ne- é democratizar as oportunidades, e são os
gros e mulatos, indígenas e mulheres, apre- arranjos institucionais que propiciam os
sentam força corporativa mínima e estão fra- meios de implantá-los (VITA, 2002), com a
camente representados na política. As ações introdução de regras de competição política
afirmativas propostas por instâncias do go- que diminuam a importância do dinheiro nas
verno federal, por movimentos de mulheres campanhas eleitorais, propiciando uma com-
e da comunidade afro-descendente, represen- petição política menos oligarquizada. Além
tantes das nações e povos indígenas, são te- disso, a burocracia pública deveria engajar-
mas de um debate teórico que leva a aborda- se na política redistributiva e o Judiciário
gens divergentes e quase sempre conflitantes. deveria ser reformado, tornando o Estado
De um lado, os defensores de uma “política eficaz e eficiente para qualquer cidadão in-
da diferença”, tal como proposto pela cor- dependentemente de classe, gênero, cor,
rente teórica do multiculturalismo; de ou- etnia ou região.
tro, os adeptos do paradigma redistributivo,
fundado nos paradigmas do liberalismo
6. Ampliando a participação
igualitário.
Para os primeiros, uma política de reco- Dos movimentos às ONGs, os campos
nhecimento como a política de cotas é do associativismo no âmbito dos ativismos
normativamente desejável, de modo a nacionais e globais são inúmeros, mas en-
redimir a discriminação e a negação de aces- tre eles as organizações não-governamentais

276
ganharam terreno como núcleos de parti- dades, associações profissionais, fundações de
cipação e trabalho profissional (ver dossiê partidos políticos e de sindicatos, todos en-
da International Political Science Review, volvidos na “promoção de direitos humanos
2002). Com financiamentos do poder pú- nos países em desenvolvimento”. A pergunta
blico ou de entidades privadas e funda- é: “são as ONGs um dos modos de participa-
ções dos países do capitalismo central, ção política ou um de seus canais?”.
essas redes reivindicam sua inserção no As ONGs praticam uma heteronímia da
campo da participação política, em nome reivindicação, ou seja, reivindicam pelos
de novas institucionalidades democrático- outros, pelos que não apresentam recursos
participativas. Postulam normas morais de organização e de voz. Representam,
globais, lutam contra as injustiças sociais freqüentemente, alternativas para empregos
decorrentes do avanço do processo de tradicionais em um campo de normas éticas.
globalização que marginalizou e empobre- Trata-se de um universo heterogêneo e de
ceu segmentos inteiros da sociedade e de- discursos diferenciados, conforme seus
fendem uma globalização a partir da socieda- objetivos e procedência. Freqüentemente,
de civil, com iniciativas e decisões tomadas aliam-se aos movimentos sociais, mas, ou-
por meios deliberativos. tras vezes, ao Estado e aos órgãos de fi-
Há críticas contundentes dessas organi- nanciamento.
zações aos modelos da democracia represen- Uma pesquisa realizada pelo IBGE (2004)
tativa, projetando modificações no Estado registrou aproximadamente 276 mil associa-
contemporâneo, tornando-o mais permeável ções civis no país, empregando 1,5 milhão
aos representantes da sociedade civil orga- de pessoas, sendo 61% dessas organizações
nizada, lado a lado com os representantes constituídas a partir de 1991 (CICONELLO,
eleitos, recriando os modelos correntes de 2006). São associações religiosas, associações
democracia (BARBER, 2004). ligadas à educação e à saúde, à assistência
Alguns estudiosos questionam esse social, associações de moradores e comuni-
ativismo desinteressado, de natureza huma- tárias, associações quilombolas e indígenas,
nitária, em organizações em forma de tripé, culturais e recreativas, profissionais, empre-
cujos pilares são a sociedade, o Estado e as sariais e patronais, em defesa dos direitos de
agências de financiamento, no geral, inter- igualdade, o associativismo produtivo de base
nacionais (GUILLOT, 2001). Há uma rural, associativismo a serviço do movimen-
interpenetração do Estado nas ONGs, como to popular (SCHERER-WARREN, 2004;
também dos funcionários dos órgãos inter- DIANI, 1995).
nacionais, de seus consultores e representan-
tes. Em pesquisas recentes numerosos aspec-
7. Participação e democracia
tos das ONGs foram examinados em sua
relação com governantes, profissionais e Concluímos firmando que participação
universidades. Estima-se que essas organiza- política e democracia são fenômenos intima-
ções movimentem um montante de 700 mi- mente ligados, e cuja relação é complexa e
lhões de dólares anuais na América Latina, delicada. Nem todas as democracias apre-
vindos de agências internacionais, benefici- sentam alto grau de politização em sua vida
ando consultores especializados, organismos social, assim como nem toda sorte de
semipúblicos, centros de pesquisa em universi- ativismo realmente é uma luta por direitos.

277
Participação política

Vincular o tema da participação e da demo-


cracia tem sido um dos mais densos proble-
mas filosóficos e teóricos. Na Ciência Políti-
ca é comum o confronto entre os estudiosos
que consideram a participação política como
perigosa para a democracia, porque questio-
na indefinidamente as decisões políticas, e
outros, para os quais não há democracia sem
participação. A democratização, a conquista
de bens coletivos e de direitos pela partici-
pação, tem como referência principal o Es-
tado de Bem-estar da Social-democracia eu-
ropéia e é rara na história. Só resulta em
democratização quando a participação se
materializa em políticas para efetiva exten-
são de direitos, se a cada nova classe de di-
reitos alcançados corresponde a efetiva
integração de cada membro com igual valor
na coletividade política. Quando a social-
democracia não é possível, o que resta fa-
zer?11 Mais do que nunca a participação po-
lítica indica ser o caminho para a democrati-
zação, lado a lado com o aggiornamento das
instituições rumo a políticas de igualação.

11. Livro publicado em 2006 pela Fundação Konrad-Adenauer, O que resta fazer?, reúne vários autores procu-
rando alternativas para o Estado contemporâneo diante dos problemas sociais.

278
Sugestões de leitura

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WOMEN, CITIZENSHIP and representation. International Political Science Review, v.21, n.4, Oct. 2000.

281
Capítulo 2
As elites políticas

OTÁVIO SOARES DULCI

Na análise política, o estudo das elites é elites tal como tem sido construída pelas
um dos mais importantes a serem conside- Ciências Sociais, seguindo-se uma exposição
rados. Ele diz respeito ao fato de que, em a respeito das elites no Brasil, na qual serão
qualquer sociedade, o poder se distribui de ressaltados alguns aspectos importantes para
tal forma que há sempre uma minoria que se compreender a realidade da política con-
comanda e uma maioria que é comandada. temporânea.
Essa parece uma idéia simples e óbvia,
uma vez que não é possível uma participa-
1. A problemática das elites
ção constante dos cidadãos nos assuntos de
governo. A grande maioria das pessoas não “Elite” é um termo utilizado para desig-
tem tempo senão para sua vida particular, nar categorias de indivíduos que se encon-
seus negócios, suas preocupações do dia-a- tram em posição superior aos demais em
dia e não está em condições de decidir a qual- qualquer área de atividade humana. Assim,
quer momento questões administrativas e pode-se falar de elites políticas, de elites eco-
políticas, às vezes bastante complicadas. Por- nômicas, de elites intelectuais, de elites sin-
tanto, há um sentido prático na existência dicais etc. Essas categorias reúnem as pessoas
de uma minoria que se encarrega de cuidar influentes em suas respectivas áreas. Elas co-
dos assuntos de interesse público. mandam seus campos de ação – ou seja, a
Mas não é só isso que está em pauta quan- política, o setor empresarial, as ciências e as
do se fala em elites. O termo alude, ao mes- artes etc. – porque possuem atributos espe-
mo tempo, à distribuição desigual do poder cialmente valorizados para exercerem essa
entre os membros de uma sociedade. E, nes- liderança.
se sentido, estamos diante de questões mais Que atributos? Depende de cada cultura
profundas, referentes à composição das eli- e de cada época. Em fases mais remotas da
tes e às bases de seu domínio. Como as elites humanidade, a força militar e a valentia con-
são selecionadas? De onde vem sua força para feriam superioridade aos guerreiros, assim
comandar? Como elas permanecem? Como como poderes tidos como sobrenaturais da-
podem mudar ou ser substituídas? vam aos sacerdotes grande ascendência so-
São indagações que vêm ocupando a aten- cial. Por sua vez, a propriedade da terra e a
ção dos pensadores e dos cientistas sociais há riqueza se tornaram cada vez mais valoriza-
mais de um século. Neste capítulo será feita das ao longo da história, até chegar à situa-
uma breve apresentação da problemática das ção atual em que o poder econômico é re-

283
As elites políticas

curso estratégico para influir sobre todas as aparecimento de novas forças sociais, como
áreas da vida social. Podem contar também fruto de desenvolvimentos que ocorrem nas
a tradição, o status social, as redes de influ- várias esferas de ação (econômica, tecnológica,
ência de famílias e de grupos, bem como o cultural etc.). Essas inovações desafiam a “fór-
talento, a capacidade de comandar, o carisma mula política” que dá fundamento ao domí-
de um líder. nio da elite e provocam a necessidade de
Na análise política, o termo elite se tor- modificar o sistema.
nou corrente desde o fim do século XIX, O roteiro da mudança dependerá muito
com as obras de Vilfredo Pareto e Gaetano da atitude da elite dirigente diante das no-
Mosca. Este último cunhou a noção de “clas- vas forças em ascensão. Se essa elite adotar
se política” para se referir ao grupo dirigen- uma atitude rígida, resistindo à mudança,
te que comanda cada sociedade através de fomentará um quadro de antagonismo que
determinada “fórmula política” – ou seja, de só se resolve por revoluções ou lutas civis. A
uma fórmula de dominação. Para ambos os mudança, então, é profunda e significa rup-
autores, e para seus continuadores, o domí- tura com o passado. A derrota da elite tradi-
nio das elites se explica, antes de tudo, por- cional pode resultar na sua aniquilação. Ao
que elas são uma minoria organizada, ao contrário, a abertura da elite a novas reali-
passo que as “massas” (o restante da socie- dades permite que a mudança seja bem me-
dade) são desorganizadas, embora sejam a nos traumática e ocorra de modo adaptativo.
maioria. Nesse caso, os possíveis antagonismos entre
Sempre foi assim e sempre o será: a exis- interesses tradicionais e emergentes cedem
tência de elites e massas é universal e imutá- lugar a formas de composição pelas quais o
vel. Trata-se de uma visão pessimista (embo- sistema de poder se amplia, incorporando
ra seus adeptos a considerem basicamente seletivamente novos setores e contemplan-
realista) a respeito da natureza da política e do novos interesses. A história dos diversos
das possibilidades de seu aperfeiçoamento países do mundo está repleta de exemplos
democrático. O surgimento da teoria das eli- desses caminhos alternativos de substituição
tes representou claramente um contraponto de elites.
ao otimismo de doutrinas como o liberalis- Essa perspectiva aplica-se bem à análise
mo e o socialismo, que crêem na possibilida- da sociedade moderna e ao jogo político que
de de redistribuição do poder por meio da nela se desenvolve. Pois a sociedade é cada
democracia e da organização popular. vez mais estruturada em organizações (o Es-
O que muda, ao longo da história, é a tado, as burocracias, os partidos, as empre-
composição social das elites e das massas a sas, as entidades de classe, as organizações
elas sujeitas. Pareto propôs, sobre isso, uma não-governamentais ou ONGs etc.), cujo
teoria de “circulação das elites”: uma elite di- eixo de atuação é o poder. Nessa medida, a
rigente é substituída por outra, emergente, política moderna pode ser encarada como
quando perde seu vigor e sua capacidade de um jogo entre elites, ou seja, entre os seg-
comandar. Como as elites representam inte- mentos organizados da sociedade.
resses, a circulação se liga ao declínio de certos No entanto, essa concepção foi contes-
interesses e à ascensão de novos interesses e tada pelo surgimento da teoria pluralista, de
ideais dentro da sociedade. Esse ponto foi inspiração liberal. Os pluralistas vêem o pro-
ressaltado por Mosca, que deu atenção ao cesso político como soma da atividade de

284
grupos de interesse, que procuram promo- portância conhecer o processo de formação
ver seus objetivos setoriais. O sistema polí- das elites, que uma simples fotografia não
tico é definido como uma rede de grupos pode revelar. Esse processo só pode ser in-
desse tipo, ou seja, associações de indivíduos vestigado por uma análise histórica. Por meio
em torno de determinados interesses. O jogo de documentação do passado, busca-se en-
político não é restrito às elites: é um jogo tão examinar a dinâmica da estrutura de
muito mais aberto e participativo, em razão poder.
da diversidade dos interesses em cena. Este processo envolve vários fatores, mas
Que teoria é mais correta – a elitista ou dois deles são especialmente importantes
a pluralista? Qual delas corresponde melhor para a análise da seleção das elites: a) os re-
à realidade política? Esse debate foi dos mais cursos que sustentam o seu domínio; e b) a
acesos durante as últimas décadas, em torno preparação de seus membros para exercerem
de aspectos teóricos e empíricos, sem falar posições de poder. Para tornar mais concre-
dos pressupostos ideológicos envolvidos na ta a exposição do tema, vejamos como se
controvérsia. Com o intuito de encontrar res- desenvolveu no Brasil a estrutura de poder
postas concretas à questão, têm sido empre- até chegar ao quadro atual.
endidas inúmeras pesquisas, planejadas para A origem da elite política brasileira remon-
identificar se o poder tende a se concentrar ta ao período colonial. Nessa fase, convém
em poucas mãos ou a se distribuir entre li- distinguir dois pólos de poder: as autorida-
deranças e grupos diversos. Uma modalida- des da Coroa e as autoridades locais, encarre-
de típica de teste são os estudos do poder gadas da administração municipal. Estas últi-
local, realizados em âmbito municipal. Ou- mas constituíam um embrião de autogoverno
tra vertente é representada pelos estudos de e, embora seu papel político fosse limitado,
poder em escala regional e nacional, que li- representavam um contra-ponto ao absolu-
dam com cenários mais complexos. A com- tismo do poder metropolitano.
paração entre regiões e entre países é fértil Os altos funcionários da Coroa forma-
para se avançar no conhecimento da maté- vam uma elite burocrática que se manteve
ria. E, por fim, é possível investigar a temática importante com a independência do Brasil.
das elites também no plano mundial, dada a Seu poder advinha da força e do prestígio da
crescente influência das estruturas globais de monarquia, bem como da competência em
poder. Mas esse é um terreno ainda relativa- lidar com os assuntos de governo. Eram edu-
mente desconhecido e que deverá despertar cados e treinados para suas funções de ad-
crescente atenção no futuro. ministradores, juízes, oficiais militares, co-
letores de impostos. O acesso à educação era
sinal da condição privilegiada desse segmen-
2. A seleção social: a dinâmica das to, numa época em que poucos passavam das
elites no Brasil
primeiras letras e a grande maioria da popu-
Entre os estudos que têm sido realizados lação era analfabeta.
sobre as elites, uma boa parte se destina a Na esfera local, predominava uma elite
traçar o quadro dos que exercem poder e de proprietários rurais, cujos recursos de
detêm influência em uma dada comunida- poder eram a posse da terra, a riqueza e o
de. Tem-se com isso uma “fotografia” que é uso de meios de violência, suscitando te-
bastante útil. No entanto, é de grande im- mor à população. O próprio governo tinha

285
As elites políticas

dificuldades em controlar os exércitos par- A seleção das elites se dava no interior


ticulares de jagunços mantidos pelos senho- dessas redes. Em geral, todo político come-
res de terras no interior. Essa situação cor- çava como vereador, preparando-se para
res-ponde ao chamado “mandonismo”, que vôos mais altos. Sua ascensão dependia da
não é apenas coisa antiga, pois até hoje se influência do clã a que pertencia, além do
manifesta em algumas partes do Brasil. talento e da capacidade de liderança. Assim,
Aliás, foi um grande desafio para o go- aos poucos ele poderia alcançar cargos nas
verno brasileiro, nos primeiros tempos, al- áreas estadual e federal. Nestas, os “douto-
cançar efetivo controle sobre o território. Um res” (advogados e médicos) pontificavam,
instrumento importante para isso foi a cria- mas sempre em conexão com os “coronéis”
ção da Guarda Nacional, origem do chama- de suas regiões, dos quais dependiam para
do “coronelismo”. Os mandões do interior se elegerem.
foram vinculados à órbita oficial, como ofi- O nível de participação política era mui-
ciais da Guarda (coronéis, majores etc.), e to restrito. Regras de exclusão vigoraram até
passaram a representar o Estado em seus re- a década de 1980. O direito de voto só foi
dutos. Estabeleceu-se assim um compromis- estendido às mulheres com o Código Eleito-
so entre o governo e o poder privado, que, ral de 1932. E os analfabetos adquiriram esse
mais adiante, com a República, tornou-se o direito apenas em 1985. Militares de baixa
eixo da vida política brasileira durante déca- patente também eram excluídos do processo
das. O “coronelismo” era um sistema que eleitoral. Tais restrições diminuíam o tama-
articulava os dois pólos – a elite governa- nho do eleitorado e, portanto, facilitavam o
mental das capitais e a elite de fazendeiros seu controle pelos chefes políticos. Era prati-
do interior – numa oligarquia relativamente camente impossível o êxito de alguma ini-
coesa. A elas se ligava um terceiro segmen- ciativa autônoma, fora do esquema parti-
to, a elite comercial e financeira, que era dário da elite. Em quase todos os estados
muito importante no tipo de economia, ba- havia um só partido, e quem o desafiaria?
seado nas exportações agrícolas, que o Bra- Nos municípios, o padrão era a luta entre
sil manteve até 1930. famílias importantes, luta que dividia toda
Todos esses grupos tinham característi- a população em torno de chefes rivais. O
cas estamentais, ou seja, eram grupos fe- debate político ficava confinado a assuntos
chados que se perpetuavam pelos laços de paroquiais, alheio a questões mais amplas
parentesco, pela endogenia e pelo apadri- do país. Com o povo envolvido nas dispu-
nhamento. Até meados do século XX, em tas entre famílias da elite, não havia ambi-
quase todos os estados do Brasil, as elites ente para que surgissem mobilizações de
regionais eram compostas por redes de fa- baixo para cima.
mílias cuja influência vinha da época colonial. Isso começou a mudar com a urbaniza-
Nos maiores estados, a rede abrangia algu- ção e os deslocamentos econômicos ocorri-
mas dezenas de famílias. Nos menores, eram dos durante o século XX. O Brasil passou
poucas famílias, havendo casos de domínio por um processo rápido de industrialização,
do governo estadual por uma só parentela, que, embora concentrado no Centro-Sul, não
como se fosse uma dinastia. Isso ainda acon- deixava de afetar o território como um todo.
tece em inúmeros municípios e até mesmo Suas regiões se interligaram em um merca-
em alguns estados. do nacional, as comunicações se intensifica-

286
ram (com a rede de transportes, o rádio e a versos órgãos reguladores, das agências de
televisão) e as migrações internas foram acen- desenvolvimento regional e das empresas
tuadas, do campo para a cidade e de regiões estatais. Isso aconteceu tanto na esfera fede-
pobres para aquelas onde havia maiores ral quanto nos estados. O prestígio dessa
oportunidades. camada indicava a valorização da competên-
O impacto político dessas transforma- cia e da qualificação acadêmica como recur-
ções foi significativo, mas gradual. A Revo- so de poder.
lução de 1930 representou o marco inicial A elite técnica e a empresarial desenvol-
da quebra do monopólio da oligarquia, veram laços fortes entre si, o que é um dado
abrindo caminho para a incorporação de importante na análise da política brasileira.
novos setores ao sistema político. A velha A observação das carreiras de seus membros
elite, contudo, preservou sua influência. Por mostra uma tendência à circulação de diri-
certo, o arcabouço do “coronelismo” se gentes do setor privado para o setor público
enfraquecia com as mudanças econômicas e vice-versa. São quadros executivos que atuam
e sociais do país, mas o campo foi mantido segundo uma lógica empresarial tanto a ser-
como espaço privado dos proprietários, sem viço do governo quanto do capital privado.
que os trabalhadores rurais fossem contem- Nos regimes autoritários (de 1937 a 1945 e
plados com os direitos que os operários das de 1964 a 1985), foi extensa a sua participa-
cidades alcançaram com a legislação traba- ção na alta administração estatal, assim como
lhista e previdenciária. a de militares em funções tecnoempresariais.
O que ocorreu foi um uma recomposi- Nesses regimes, o jogo político se desenro-
ção de poder pela qual a oligarquia teve que lava em circuito fechado, e os interesses do
partilhar o comando com elites emergentes capital privado eram veiculados no âmbito
de origem urbana. Uma destas, a elite em- dos órgãos técnicos governamentais. Já nos
presarial, ganharia espaço cada vez maior regimes democráticos, sobretudo no atual,
com o desenvolvimento da indústria e do instituído pela Constituição de 1988, a elite
setor financeiro. Origina-se em parte das empresarial tem atuado de modo mais dire-
próprias famílias tradicionais, que, com a to, dado o caráter público do jogo político.
modernização do país, diversificaram seus Seu peso tem crescido na política por outro
negócios e sua área de atuação. Outra parte fator: o declínio da intervenção do governo
do empresariado nascente se compunha de sobre a economia, com a privatização das
imigrantes, sobretudo em São Paulo e nos companhias estatais e a substituição parcial
estados do Sul. Além disso, não se deve es- de controles burocráticos por mecanismos
quecer a crescente influência de dirigentes de mercado. Em conseqüência, reduz-se a
de empresas estrangeiras, que estiveram pre- influência dos segmentos técnicos civis e mi-
sentes no Brasil desde o início da nossa in- litares.
dústria. A diversificação dos grupos sociais ao lon-
Outro segmento que se projetava era uma go do século XX se caracterizou por uma di-
elite técnica governamental, composta por ferenciação partidária que começou na estei-
oficiais militares, engenheiros, economistas ra da Revolução de 1930, quando o padrão
e outros profissionais, que cresceu em im- de partido único deu lugar a vários partidos
portância graças à ampliação do papel do em cada estado. Em 1945, foi adotado o
Estado na área econômica, através dos di- critério de partidos nacionais. Os maiores

287
As elites políticas

partidos então fundados, o PSD e a UDN, como o PT e outros partidos de base popu-
eram em boa medida desdobramentos da lar, se tornaram protagonistas importantes
política oligárquica, mas já incorporavam do jogo político.
novas bases (no caso da UDN, a classe mé- Tendo em vista essa dinâmica, o quadro
dia). brasileiro evoluiu de um esquema elitista
Uma novidade foi o surgimento do bastante fechado para um cenário mais pró-
trabalhismo, expressão partidária do ximo ao modelo pluralista. O antigo mono-
sindicalismo oficializado depois de 1930. pólio de poder da elite tradicional foi
Apesar da pouca autonomia dos sindicatos fragilizado pela expansão de uma estrutura
da época diante do Estado, o PTB ganhou capitalista que se irradia cada vez mais para
consistência e nos anos 60 se tornou um eixo o campo político, resultando na coexistên-
de mobilização das classes populares, junta- cia de várias modalidades de organização
mente com os partidos de esquerda em as- político-eleitoral. Se nas áreas menos desen-
censão. Foi então que os trabalhadores ru- volvidas ainda resistem chefias e máquinas
rais tiveram reconhecidos sua cidadania e oligárquicas, nos centros maiores têm emer-
seus direitos sociais. gido lideranças de origem empresarial, dan-
Nesse cenário, deu-se o embate que con- do à política uma fisionomia classista, de
duziu à ruptura conservadora de 1964. Os representação de segmentos econômicos. No
setores populares foram politicamente am- interior, observam-se grupos políticos que
putados, mas sua reorganização posterior, em combinam os dois perfis, numa simbiose
desafio ao regime ditatorial, viria a fortale- entre o velho e o novo que exprime bem o
cer a autonomia dos sindicatos e partidos que modelo brasileiro de modernização conser-
os representam. As centrais sindicais, bem vadora. Além disso, uma modalidade emer-

TABELA 1. Profissões/Ocupações na Câmara dos Deputados (1999-2002)

288
gente é a que corresponde ao mundo do tra- mente de condições sociais e econômicas,
balho, com a ascensão de dirigentes sindi- como a educação e um mínimo de renda,
cais e de expoentes de movimentos popula- que propiciem o exercício dos direitos de
res a cargos públicos. cada um. Por sua vez, criar tais condições tem
A análise da composição do Congresso sido um dos alvos do debate político no mun-
Nacional ilustra essa evolução. Para a Câ- do moderno. A garantia de direitos sociais,
mara dos Deputados, uma pesquisa recente que favorece a vida democrática, é ela pró-
apresentou o que se pode ver na Tabela 1. pria uma conseqüência da universalização dos
O total é superior a 100% porque diver- direitos políticos, sobretudo da faculdade de
sos membros têm mais de uma ocupação. Vê- votar e ser votado.
se que 43,5% dos deputados exercem ativi- Com efeito, a extensão do direito de
dades empresariais: 28,5% são empresários voto é um dos processos que mais contri-
urbanos, 10,1% rurais e 4,9% têm negócios buíram para forjar o mundo de hoje. Da An-
nos dois setores. Os que se dedicam à pro- tiguidade até o século XIX, a participação
dução rural formam um dos grupos de inte- eleitoral, quando havia, era restrita a seg-
resse mais ativos no Congresso, a chamada mentos aristocráticos. Do século XIX ao
bancada ruralista. Quanto à representação dos XX deu-se nos países do Ocidente a gran-
trabalhadores, há 2% de operários e traba- de controvérsia em torno da franquia elei-
lhadores rurais e 2,7% de empregados não- toral. Restrições de idade, de gênero, de
manuais em serviços (bancários e técnicos), propriedade e de renda foram gradualmen-
mas a este conjunto devem ser somados mui- te eliminadas. No Brasil, por exemplo, ado-
tos dos deputados professores, que ingressa- tou-se o sistema censitário até fins do Impé-
ram na política a partir de sua atuação como rio. Ele foi substituído pela regra do sufrá-
dirigentes sindicais. Por sua vez, os políticos gio universal, mas excluindo-se as mulheres
de famílias tradicionais predominam na ca- e os analfabetos. A participação das mulhe-
tegoria “administração pública”, uma vez que res é fato recente: na maioria dos países só
assumem funções públicas desde cedo em foi estabelecida na primeira metade do sé-
seus municípios e estados. culo XX.
Em regimes aristocráticos ou oligár-
quicos, o aprendizado da política se proces-
3. O aprendizado da política
sava dentro das famílias ou clãs tradicionais,
Se a política é uma esfera de ações e de- de acordo com um padrão de carreira que se
cisões que afetam a vida de todos os mem- iniciava por baixo, no município. A fase de
bros de uma sociedade, então o ideal demo- estudos superiores era marcante para quali-
crático de participação dos cidadãos se tor- ficar os jovens políticos da elite, que depois
na um objetivo a ser alcançado. O estudo da ganhavam experiência em convívio com os
política em perspectiva histórica nos mostra chefes partidários. À medida que se diversi-
que isso requer um longo esforço de cons- ficaram as elites, como aconteceu no Brasil,
trução institucional. É o processo de ampli- os espaços e os canais de aprendizado se
ação da cidadania, compreendendo os direi- multiplicaram. Entre estes destacam-se as
tos civis, políticos e sociais. Mas ele não se escolas e universidades, os meios de infor-
restringe ao plano das leis e das instituições. mação (livros, jornais, rádio, televisão,
A efetividade da cidadania depende igual- internet) e ainda as organizações voltadas

289
As elites políticas

para a ação política – partidos, sindicatos, para alcançar o máximo de votos. Mesmo
movimentos sociais – que desempenham assim, a participação em reuniões partidá-
papel de suma importância na preparação de rias, o engajamento em campanhas e o de-
quadros de elite. bate dos assuntos em pauta são experiências
Um fator indispensável para a formação potencialmente significativas em termos de
dos cidadãos é a educação. Antes monopó- aprendizado.
lio de uma elite fechada, o acesso à educa- Além dos partidos, espaços igualmente
ção, ao se universalizar, representa um po- relevantes de formação de elites são as enti-
deroso instrumento de capacitação para a dades de classes e os movimentos sociais. Os
vida política. E nessa medida amplia o esco- órgãos de classes têm objetivo eminente-
po de seleção das elites. No mundo contem- mente corporativo: destinam-se a defender
porâneo, caracterizado pela variedade de interesses específicos de suas categorias. No
meios de informação, o patrimônio edu- entanto, para cumprir suas finalidades eles
cacional de um indivíduo é que lhe permite projetam sua ação para a esfera pública, onde
utilizar esses meios para formar opiniões e muitas das questões que os afetam são re-
exercer os seus direitos. Mais que tudo, a solvidas. Empresários e trabalhadores, ao
ampliação das oportunidades educacionais assumirem funções de dirigentes e ativistas
permite que o mérito e a competência se de suas classes, iniciam uma trajetória de
contraponham a privilégios herdados como participação na vida social que, não raro,
critérios de valorização social. os conduz para o mundo da política, em
Tal como no passado, os partidos conti- virtude da liderança construída nas entida-
nuam a ser canais importantes de formação des corporativas.
e treinamento político. Os partidos desem- O mesmo se observa no âmbito dos mo-
penham várias funções: são grupos de com- vimentos sociais. Eles são também voltados
petição eleitoral, representam interesses e para objetivos específicos – melhoramentos
opiniões na esfera pública, exercem o gover- em comunidades urbanas ou rurais, promo-
no e fazem oposição, dependendo da vonta- ção de segmentos étnicos ou de gênero, de-
de dos eleitores. Para tanto, os partidos pos- fesa de causas ambientais ou culturais – que,
suem uma estrutura com dirigentes, militan- no entanto, só se realizam por intervenção
tes e filiados, e é nesse âmbito que cumprem no debate e nas decisões políticas. A proje-
o papel adicional de preparar seus membros ção de lideranças comunitárias, por exem-
para as tarefas da política – como candida- plo, é uma característica da política con-
tos, como organizadores de campanhas ou temporânea em todos os países. No Brasil,
como cabos eleitorais que mantêm contato vereadores e prefeitos com esse perfil têm
direto com os simpatizantes e eleitores. Esse sido eleitos em número cada vez maior nas
papel pedagógico varia conforme o tipo de últimas décadas.
partido. Em partidos com forte orientação Por fim, merece destaque o surgimento
ideológica, a formação dos quadros é muito de fóruns de participação dos cidadãos, tan-
valorizada, mesmo no plano doutrinário, mas to consultivos quanto decisórios, em assun-
é mais frouxa em partidos ideologicamente tos de interesse público. São conselhos e as-
pragmáticos, tais como os que em inglês são sembléias que definem opções de políticas
chamados de catch all parties, que apresen- governamentais e supervisionam a sua
tam candidatos de múltiplos perfis e idéias implementação, principalmente na esfera

290
municipal. No Brasil essa modalidade de de- como elite plutocrática pode se associar à
mocracia semi-direta floresceu com a expan- perda de confiança nas instituições em que
são dos movimentos sociais urbanos. Os con- eles atuam, com resultados funestos para a
selhos e outros fóruns se somam às câmaras ordem democrática.
legislativas, que são os órgãos tradicionais No Brasil foi notável o esforço de recons-
de representação e servem para aproximar o trução das instituições políticas, desde a luta
cidadão do governo, contribuindo não só para contra o regime autoritário de 1964-1984,
democratizar a gestão pública como também desabrochando na rica experiência da Consti-
para aumentar sua eficiência. tuinte no final da década de 1980. As pesqui-
sas de opinião têm revelado uma preferência
generalizada da população pelo regime de-
4. A imagem dos políticos
mocrático, mas a adesão a esse princípio não
Não obstante os avanços que se obser- é acompanhada de grande confiança nas ins-
vam no tocante à democratização da políti- tituições nem nos seus agentes, o que pode
ca, a imagem dos políticos é pautada pela ser observado na Tabela 2, que contém da-
ambigüidade. Eles têm a legitimidade do
mandato popular, mas, como agentes do
poder, tendem a ser vistos de modo desfa-
vorável em virtude da distância que se esta-
belece entre a lógica de funcionamento das
instituições e o quotidiano das pessoas, com
seus problemas e anseios. Essa distância aca-
ba por corresponder, na prática, à separação
entre elites e massas, para usar a proposição
da teoria das elites indicada no início deste
capítulo. Assim, muitas pessoas costumam
englobar os políticos em um conjunto indis-
tinto ao emitirem juízos como “todos os
políticos são iguais”, “eles não fazem nada”
ou “só querem se aproveitar”. Instalação da Assembléia Nacional Constituinte por
Ulysses Guimarães.
Essa imagem difusa pode ser captada nas
mais diversas realidades. Nos países mais ri-
cos, ela se exprime pelo crescimento do dos selecionados de uma pesquisa realizada
absenteísmo eleitoral: a parcela dos cidadãos em 1997.
que comparece às eleições é cada vez me- De acordo com a mesma pesquisa, a úni-
nor, seja por desinteresse pela política, seja ca instituição que desfruta de elevada confi-
por certo sentimento de impotência do tipo ança é a família: 76% confiam totalmente nela
“não adianta votar porque meu voto não fará e 20% confiam até certo ponto. Nenhuma
diferença”. Nos países menos desenvolvidos, outra instituição ou categoria goza da confi-
a complexidade dos problemas sociais desa- ança irrestrita de mais de 50% da amostra.
fia a capacidade de resposta das instituições, Os professores vêm em segundo lugar, mas
e os políticos são responsabilizados por isso. muito abaixo da família (45% dos entrevis-
Nos dois casos, a visão negativa dos políticos tados confiam totalmente nos professores e

291
As elites políticas

TABELA 2 . Confiança nas instituições brasileiras (%)

44% parcialmente). É digna de nota a falta não implica apenas o manejo do poder,
de confiança na elite política e em seu ambi- mas envolve responsabilidade ética com
ente institucional. os cidadãos. O líder é um ponto de refe-
No entanto, é em decorrência do voto rência, deve servir de exemplo. “Elite”,
dos cidadãos, ou seja, o voto daqueles mes- originalmente, significava isso. É fato que
mos que expressam tais opiniões, que o go- as elites políticas, em todos os países, não
verno, os partidos, vereadores, deputados e primam pelo exemplo e são atingidas por
senadores exercem suas funções. Aí reside o denúncias, inquéritos e penalidades. Em
paradoxo. Sobre isso há muito que comen- contrapartida, enfrentam uma vigilância cada
tar, mas dois pontos podem ser destacados à vez maior da imprensa e da sociedade civil.
guisa de conclusão deste capítulo. Delas se exige transparência, espera-se que
Primeiro, a imagem negativa dos políti- prestem conta de suas ações. A credibilidade
cos parece corresponder a uma sobrecarga dos políticos é importante para eles, mas ain-
de expectativas por parte da população, o da mais importante para as instituições a que
que leva a uma visão hipertrofiada da políti- devem servir.
ca. A política não é uma esfera autônoma e
superior às demais. Portanto, os políticos não
podem tudo que deles se espera. E isso nem
convém a uma ordem democrática, que re-
quer a participação dos cidadãos e não se sus-
tenta se os assuntos públicos são deixados
inteiramente aos políticos e ao governo.
Segundo, cabe às elites uma responsa-
bilidade especial por sua imagem. Os polí-
ticos são apoiados porque têm liderança em
suas comunidades e regiões. Ora, liderança

292
Sugestões de leitura

Sobre a problemática das elites

BOTTOMORE, T. B. As elites e a sociedade. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.


ALBERTONI, E. A. Doutrina da classe política e teoria das elites. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
BOBBIO, N. Teoria das elites. In: MATEUCCI, N., PAQUINO, G. (Orgs.). Dicionário de Política. 3.ed. Brasília:
Ed. UnB, 1991. p.385-91.
DAHL, R. Um prefácio à teoria democrática. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.

Sobre as elites brasileiras

IGLESIAS, F. Trajetória política do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SOARES, G. A. D. Sociedade e política no Brasil. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973.
CARVALHO, J. M. de. A cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
RODRIGUES, L. M. Partidos, ideologia e composição social. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo,
v.17, n.48, fev. 2002.

Sobre a opinião pública e a imagem dos políticos no Brasil

LAMOUNIER, B. Ouvindo o Brasil: uma análise da opinião pública brasileira hoje. São Paulo: Sumaré, 1992.

293
Capítulo 3
O sistema eleitoral brasileiro

JAIRO NICOLAU

Sistema eleitoral é o conjunto de regras mais de uma vez. Nesse período, as eleições
que define como, em uma determinada elei- para presidente e para a Câmara dos Depu-
ção, os eleitores podem fazer as suas esco- tados eram marcadas por fraudes em larga
lhas e como os votos são somados para se- escala e por reduzida participação eleitoral.
rem transformados em mandatos (cadeiras Em 1932, foi adotado um novo código elei-
no Legislativo ou chefia do Executivo). Os toral que modernizou o processo de votação
governantes brasileiros são eleitos pelo sis- no país, sendo o primeiro passo para a con-
tema proporcional e por variantes da repre- solidação de uma democracia eleitoral: as
sentação majoritária. O propósito deste tex- mulheres passaram a ter o direito do voto;
to é apresentar uma descrição do funciona- foi criada a Justiça Eleitoral – que ficou com
mento do sistema eleitoral no Brasil. a responsabilidade de organizar o alistamen-
to, as eleições, a apuração dos votos e a pro-
clamação dos eleitos; foram tomadas medi-
1. O sistema proporcional
das para garantir o sigilo do voto.
O Brasil elege representantes para a Câ- Até a década de 1930, nenhum partido
mara dos Deputados desde 1824. Durante o ou movimento político com alguma expres-
Império os deputados eram escolhidos por são defendeu a introdução da representação
intermédio de diferentes modelos de repre- proporcional no país. Tal tarefa deveu-se
sentação majoritária. Até 1880, o sistema de basicamente ao trabalho de alguns poucos
votação era feito em dois níveis: os votantes intelectuais, dois deles (Assis Brasil e João
elegiam os eleitores (primeiro nível), que, Cabral) participavam da redação do Código
por sua vez, escolhiam os representantes para Eleitoral de 1932. Na realidade, o Código
a Câmara dos Deputados (segundo nível). adotou, para a eleição para Câmara dos De-
Em 1881, as eleições para a Câmara dos putados, um sistema misto (com parte dos
Deputados passaram a ser diretas. Na Pri- representantes eleita pelo sistema proporcio-
meira República (1889-1930), três sistemas nal), cuja operação era bastante complexa.
eleitorais foram utilizados; todos eles varia- Tal sistema foi utilizado em apenas duas elei-
ções do modelo majoritário. O mais dura- ções (1933 e 1934), pois o Golpe de Estado,
douro (1904-1930) dividia os estados em liderado por Getúlio Vargas em 1937, sus-
distritos eleitorais de cinco representantes; pendeu as eleições, fechou os partidos e o
o eleitor podia votar em até quatro candida- Congresso. As eleições voltariam em 1945,
tos e ainda podia votar no mesmo candidato com o processo de democratização do país.

295
O sistema eleitoral brasileiro

Naquele ano, o sistema proporcional foi in- Passo 1: Cálculo do quociente eleitoral
tegralmente adotado nas eleições para Câ-
O quociente eleitoral é o resultado da
mara dos Deputados. Desde então, poucas
divisão do total de votos válidos pelo núme-
mudanças foram feitas na forma como de- ro de cadeiras em disputa:
putados são eleitos no Brasil.1 Atualmente,
11.906.594 / 60 = 198.443
a representação proporcional é usada nas
eleições para a Câmara dos Deputados, As- Passo 2: Divisão dos votos de cada
partido pelo quociente eleitoral
sembléias Legislativas e Câmara dos Verea-
dores. A escolha do eleitor é simples: ele deve Os votos de cada partido são divididos
digitar o número do candidato, ou alternati- pelo quociente eleitoral. O número inteiro
vamente, do seu partido na urna eletrônica. derivado da divisão é o número de cadeiras
A seguir, são discutidos quatro aspectos que cada partido obterá. Por exemplo, no
fundamentais do sistema usado nas eleições caso do PMDB, a divisão dos votos
para a Câmara dos Deputados: (5.274.397) pelo quociente (198.443) é igual
· as regras para distribuição das cadeiras, a 26,578; por essa conta, o partido recebe
· as coligações, 26 cadeiras.
· a lista aberta, Os partidos que não conseguem atingir
· a distorção na representação dos estados o quociente eleitoral são excluídos da distri-
na Câmara dos Deputados. buição das cadeiras. Na Tabela 1, do PCB
para baixo, todos os partidos são excluídos.
Assim, o quociente eleitoral funciona como
1.1 As regras para distribuição
das cadeiras uma cláusula de barreira nos estados (Câ-
mara dos Deputados e Assembléias
Para ilustrar como é feita a distribuição Legislativas) e municípios (Câmara dos Ve-
de cadeiras entre os partidos (e coligações) readores).
no Brasil, utilizarei os resultados das elei-
Passo 3: Distribuição das cadeiras
ções para Câmara dos Deputados realizadas
não preenchidas (sobras)
no Estado de São Paulo em 1986. Compare-
ceram para votar 15.452.508 eleitores. Des- Observe-se que, após a distribuição pelo
tes, 3.545.914 anularam ou deixaram a cé- quociente eleitoral, nem todas as cadeiras são
dula em branco.2 Assim o total de votos vá- ocupadas. Foram preenchidas 54, faltando,
lidos (comparecimento - brancos e nulos) foi assim, seis. Essas cadeiras são preenchidas pelo
de 11.906.594. O número de cadeiras dis- método de maiores médias: o total de votos
putadas era de 60. de cada partido é dividido pelo número de

1. De lá para cá, apenas duas mudanças significativas foram feitas: a do critério para distribuição de cadeiras
não ocupadas em primeira alocação (1950); e a da exclusão dos votos em branco do cálculo do quociente
eleitoral (1998).
2. No exemplo, segui a regra atual, que não inclui os votos em branco no cálculo do cálculo do quociente
eleitoral. Na realidade, em 1986 os votos em branco eram incluídos.

296
TABELA 1. Distribuição de votos pelo quociente eleitoral. Eleição para Câmara
dos Deputados, São Paulo, 1986.

cadeiras obtidas pelo quociente eleitoral na uma cadeira a mais (na segunda rodada), pois
divisão anterior, acrescido de um. Por exem- sua segunda maior média foi superior à ob-
plo, o PMDB obteve 5.274.397 votos que tida na primeira rodada por alguns partidos.
são divididos pelas cadeiras obtidas pelo O total de cadeiras obtidas pelos parti-
quociente (26) + 1 = 27; o resultado é a dos (ou coligações) é o somatório das cadei-
maior média do partido: 195.348. ras distribuídas nos passos 2 e 3. A distribui-
Essa média é cotejada com a dos demais ção final de cadeiras ficaria assim: PMDB
partidos, levando a cadeira o que tiver a (26); PTB-PSC-PL (11); PDS-PDC-PFL (11);
maior dessas médias (no exemplo, o PT ob- PT (8); PDT (2).
tém a primeira cadeira). Procede-se, então,
a uma outra rodada de distribuição das ca-
1.2 A lista aberta
deiras restantes. Em cada rodada, o partido
que conquistou a cadeira nela distribuída tem Após a distribuição de cadeiras entre os
seu total de votos divididos novamente, ago- partidos (e coligações), é preciso saber quais
ra pela soma de uma unidade ao número de nomes da lista de candidatos apresentados
cadeiras que já obteve. O procedimento é serão eleitos. No Brasil, os nomes mais vo-
repetido até que todas as cadeiras sejam pre- tados de cada lista ocupam as cadeiras. No
enchidas. Observe-se que o PMDB obteve exemplo acima, o PDT elegeu três cadeiras;

297
O sistema eleitoral brasileiro

TABELA 2. Distribuição das cadeiras não preenchidas (sobras).

Nota: As letras entre parênteses indicam a ordem na qual as cadeiras das sobras foram preenchidas.

assim, os três candidatos mais votados são enfraqueceria os partidos. Este foi o princi-
eleitos (independentemente dos votos dos pal argumento apresentado pelos críticos da
nomes que concorreram por outros parti- lista aberta até recentemente, quando outros
dos). Este modelo é conhecido como de lista pontos passaram a ser salientados. O princi-
aberta. Em alguns países (como Portugal, pal deles refere-se à transferência de votos
Espanha, Argentina e África do Sul), a lista entre os candidatos de um mesmo partido
de candidatos é ordenada antes da eleição e ou coligação. A eleição de Éneas Carneiro
os eleitores votam apenas na legenda (lista (2002) e Clodovil Hernandez (2006), am-
fechada). Em outros países (Bélgica, bos como deputados federais por São Paulo,
Holanda, Dinamarca, Suécia), os partidos é apresentada como casos exemplares dessa
ordenam a lista de candidato, mas os eleito- tendência. Os dois concorreram por micro-
res, caso discordem do ordenamento, podem partidos, obtiveram mais votos do que o
ainda votar especificamente para um dos quociente eleitoral e ajudaram os seus parti-
nomes da lista – em cada país há uma pon- dos a eleger deputados com reduzido núme-
deração que determina em que condições um ro de votos. Na realidade, o espanto frente a
candidato, que obteve muitos votos nomi- casos como esses deriva do desconhecimen-
nais e está mal posicionado, pode se eleger. to de como é feita a conta para distribuir as
A lista aberta está em vigor no Brasil cadeiras na disputa para deputado federal.
desde 1945. Já nos anos 50, alguns políti- Os eleitores, em geral, votam em um nome
cos, tais como Carlos Lacerda e Milton Cam- de sua predileção, mas não sabem que, no
pos, chamaram a atenção para o fato de a processo de apuração, os votos desse candi-
lista aberta incentivar a competição entre os dato serão somados aos de outros (lembre-
candidatos de uma mesma legenda, o que se de que a distribuição das cadeiras é feita a

298
partir dos votos totais obtidos por uma le- votos do que o PTB, conquistou mais cadeiras
genda ou coligação). Se o candidato tiver do que este, enquanto o PPB, com votação
mais votos do que o quociente eleitoral, ele um pouco superior ao mesmo PTB, ficou
ajuda outros nomes da lista a se elegerem; se com um número mais de três vezes maior
tiver menos, será ajudado pelos votos de de cadeiras (sete contra duas). Dois parti-
outros candidatos. dos, o PCdoB (0,6%) e o PST (1,6%) elege-
ram representantes mesmo recebendo me-
nos votos do que o quociente eleitoral. O
1.3 Coligações
PDT (4,0%) e o PC do B (0,6%), com vota-
Como vimos anteriormente, um partido ções bem diferenciadas, ficaram cada um
pode concorrer sozinho ou coligado nas elei- com uma cadeira.
ções proporcionais. Para efeitos de distribui- O tamanho da bancada dos partidos na
ção de cadeiras, os votos dos partidos coli- Câmara dos Deputados é influenciado pelos
gados são somados e as cadeiras são conquis- diversos mecanismos do sistema eleitoral.
tadas pela coligação como se ela fosse um Um partido que se apresenta sozinho nas elei-
único partido (não existe um segundo movi- ções em um determinado estado necessita
mento de distribuição das cadeiras da coli- atingir o quociente eleitoral para eleger um
gação proporcionalmente à votação de cada deputado. Já um partido coligado pode ga-
legenda em seu interior). Assim, importa para rantir a eleição de um candidato, mesmo que
cada partido tentar fazer com que os seus tenha individualmente votação inferior ao
candidatos ocupem os primeiros nomes da quociente. A fórmula usada no Brasil favo-
lista da coligação. Um pequeno partido, por rece o maior partido no estado (o PMDB no
exemplo, pode receber um número reduzi- exemplo apresentado); portanto, um parti-
do de votos, mas pode conseguir garantir que do que é o mais votado em um número ex-
um (ou mais) dos seus candidatos esteja(m) pressivo de estados, acaba ficando com uma
entre os primeiros e se eleja(m). bancada sobre-representada no âmbito nacio-
Essa característica tem produzido algu- nal. Também ficam sobre-representados no
mas distorções na representação dos parti- âmbito nacional os partidos com votação
dos. A Tabela 3 ilustra os resultados da dis- concentrada nos pequenos estados da Região
puta para a Câmara dos Deputados no Esta- Norte. Em contraste, ficam com bancadas
do de Minas Gerais, em 1998. sub-representadas nacionalmente as legendas
Um partido (PSDB) e quatro coligações com votação concentrada em São Paulo.
conseguiram ultrapassar o quociente eleito-
ral de 1,84% dos votos. Quando o percentual
2. O sistema majoritário
de votos de cada partido/coligação é compa-
rado com o percentual de cadeiras, observa- Os chefes do Executivo no Brasil são elei-
se uma distribuição bastante equilibrada. Os tos por intermédio de duas regras diferentes.
problemas aparecem quando se analisa o O presidente, os governadores e os prefeitos
desempenho de cada partido. O PSB e o PPS, de municípios com mais de 200 mil eleitores
com mais votos do que o PCdoB, não elege- são escolhidos pelo sistema de dois turnos. O
ram deputados, enquanto este elegeu um re- candidato necessita obter a metade dos votos
presentante. O PL, apesar de ter tido menos válidos mais um no primeiro turno. Se este

299
O sistema eleitoral brasileiro

TABELA 3. Distribuição de votos e cadeiras dos partidos e coligações, Eleições


para a Câmara dos Deputados, Minas Gerais, 1998.

patamar não é atingido, um segundo turno é tores são eleitos pelo sistema de maioria sim-
realizado entre os dois mais votados. Esse ples: o mais votado na disputa elege-se, sem
processo garante que o eleito sempre rece- que seja realizada uma nova disputa.
berá o apoio de mais de 50% dos eleitores A primeira Constituição da República
que compareceram para votar. Os prefeitos (1891) estabelecia que o presidente e o vice-
dos municípios com menos de 200 mil elei- presidente seriam escolhidos diretamente

300
pela população, em pleitos independentes e as eleições presidenciais entrou na agenda
deveriam ter maioria absoluta dos votos. política. A Constituição de 1988 optou pela
Caso isso não acontecesse, o Congresso de- regra dos dois turnos na disputa presidencial.
veria escolher entre os dois mais votados nas A Carta proibiu a reeleição e definiu que o
urnas – fato que não ocorreu uma vez se- mandato do presidente duraria cinco anos.
quer, pois todos os presidentes foram elei- As críticas ao sistema de maioria simples
tos com larga margem de votos, em eleições durante a sua vigência no período 1946-1964
pouco competitivas. Os mandatos do presi- (a possibilidade de presidentes eleitos por
dente e do vice duravam quatro anos, sem a uma parcela minoritária do eleitorado) cons-
possibilidade de reeleição para o mandato tituíram uma forte razão para que os consti-
seguinte. Entre 1891 e 1930 foram eleitos tuintes optassem pelo sistema de dois turnos.
onze presidentes. As eleições presidenciais Houve necessidade de realização de se-
só voltariam com a redemocratização do país gundo turno em três das cinco eleições presi-
em 1945. denciais realizadas desde a redemocratização.
No período 1945-1964, o sistema ado- Em 1989, Fernando Collor (PRN) obteve
tado nas eleições para presidente foi o de 31% e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebeu
maioria simples. O mandato durava cinco 17%. No segundo turno, Collor foi eleito
anos. As eleições para o cargo de vice-presi- com 53% dos votos. Em 1994 e 1998,
dente continuaram a ser realizadas separa- Fernando Henrique Cardoso venceu no pri-
damente da do presidente. Graças a esta re- meiro turno, respectivamente, com 54% e
gra, era possível, por exemplo, eleger um 53% dos votos. Nas eleições de 2002, o can-
candidato situacionista para presidente e um didato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) rece-
oposicionista para vice-presidente. Em três beu 46% dos votos no primeiro turno, e 62%
das quatro eleições presidenciais disputadas, no segundo. Em 2006, os percentuais obti-
o eleito recebeu menos de 50% dos votos dos por Lula foram semelhantes: 48% dos
válidos: Getúlio Vargas (PTB) foi eleito com votos no primeiro turno e 62% no segundo.
47% em 1950; Juscelino Kubitschek obteve Duas emendas à Constituição de 1988,
apenas 34% em 1955 e Jânio Quadros (PDC/ aprovadas na década de 1990, modificaram
UDN) recebeu 45% dos votos em 1960. A as regras do presidencialismo brasileiro. A
única exceção foi Eurico Dutra (PSD) que primeira, sancionada em junho de 1994, re-
obteve 52% dos votos em 1945. Em que pese duziu o mandato presidencial para quatro
o sistema adotado pela Constituição de 1946 anos. Com essa medida, procurava-se aumen-
ser o de maioria simples, esses resultados tar a conexão entre a votação obtida pelo
produziram críticas freqüentes quanto a sua partido (ou coligação) do presidente e a re-
legitimidade. Em 1950 e 1955, a UDN (par- presentação dos partidos na Câmara dos
tido de centro-direita) fez campanha contra Deputados. A experiência de eleição de dois
a posse de presidentes eleitos por outros presidentes com fraca vinculação a partidos
partidos com o argumento de que estes não políticos (Jânio Quadros em 1960 e
atingiram maioria absoluta nas urnas. Fernando Collor em 1989) em eleições “sol-
Quando o Brasil retomou a democracia teiras”, com bases parlamentares frágeis, foi
em 1985 – após vinte e um anos de regime um forte estímulo para que os legisladores
autoritário (1964-1985) –, a decisão a res- reduzissem o mandato presidencial. A partir
peito de quais regras seriam adotadas para de então, as eleições presidenciais passaram

301
O sistema eleitoral brasileiro

a ocorrer simultaneamente às eleições para ger deputados para Câmara dos Deputa-
o Congresso Nacional, governos estaduais e dos); fim da cláusula de barreira nos esta-
Assembléias Legislativas. Uma segunda dos e adoção de uma nova fórmula mate-
emenda constitucional, sancionada em junho mática para distribuição das cadeiras.
de 1997, permitiu que o chefe do Executivo · lista aberta: introdução do sistema de lista
(presidente, governadores e prefeitos) con- fechada.
corresse por mais um mandato consecutivo. · coligação: proibição das coligações; dis-
Com isso, foi aberta a possibilidade de o tribuição das cadeiras obtidas pela coli-
então presidente Fernando Henrique Cardo- gação proporcionalmente aos votos de
so e dos governadores eleitos em 1994 se cada partido coligado.
recandidatarem nas eleições de 1998. · representação dos estados: correção in-
Os 81 senadores (três representantes por tegral (ou parcial) da distorção da repre-
Unidade da Federação) têm mandatos de oito sentação dos estados na Câmara dos De-
anos e são eleitos alternativamente: em uma putados.
eleição é eleito um senador, na seguinte, dois.
A eleição é realizada segundo a regra de maio- Discutir essas propostas está além dos
ria simples: no ano em que apenas um can- objetivos deste artigo. O intuito aqui foi sim-
didato concorre o mais votado é eleito, na plesmente o de apresentar as principais ca-
eleição seguinte, os dois mais votados são racterísticas do sistema eleitoral em vigor no
eleitos. Brasil, chamando a atenção para alguns de
seus efeitos. O leitor interessado no tema da
reforma deve se preocupar com três ques-
3. Os caminhos da reforma eleitoral tões: o que não está funcionando a contento
Desde o começo da década de 1990, a em nosso sistema eleitoral? Que alternati-
reforma política aparece como um tema im- vas temos para aperfeiçoá-lo? Que efeitos
portante na agenda política brasileira. Entre negativos essas mudanças podem introduzir?
outros tópicos, a reforma do sistema eleito-
ral ocupa um lugar privilegiado no debate.
Várias propostas têm sido apresentadas, par-
ticularmente para aperfeiçoar ou substituir
a representação proporcional. Todos os as-
pectos analisados neste artigo já foram alvo
de projetos e discussões. Abaixo segue uma
lista breve de algumas propostas de reforma
eleitoral que têm sido apresentadas:
· fórmula eleitoral: adoção de um novo
sistema eleitoral (majoritário, conhecido
no Brasil como distrital; ou de um siste-
ma misto, conhecido como distrital-mis-
to); introdução de uma cláusula de bar-
reira nacional (um percentual de votos
abaixo do qual um partido não pode ele-

302
Sugestões de leitura

Escrevi dois pequenos livros que podem ser consultados para aprofundar as informações
apresentadas neste artigo. Sistemas Eleitorais (FGV, 2004) discute os principais sistemas elei-
torais em vigor (proporcional, majoritário e misto). História do voto no Brasil (Jorge Zahar,
2002) mostra a evolução do processo de votação e das regras utilizadas para eleger repre-
sentantes no Brasil. Para quem se interessa pela discussão sobre a reforma política, três coletâ-
neas são ótimas fontes:

BENEVIDES, Maria Victoria, VANNUCHI, Paulo, KERCHE, Fábio (Eds.). Reforma Política e cidadania. São
Paulo: Editora Perseu Abramo, 2003.
AVRITZER, Leonardo, ANASTASIA, Fátima (Eds.). Reforma Política no Brasil Belo Horizonte: Editora da UFMG,
2006.
SOARES, Gláucio Ary Dillon, RENNÓ, Lúcio (Eds.). Reforma Política: lições da história recente. Rio de Janeiro:
FGV Editora, 2006.

Alguns trabalhos que escrevi sobre o sistema eleitoral brasileiro estão disponíveis em:
http://jaironicolau.iuperj.br

303
Capítulo 4
Os partidos políticos1

DAVID FLEISCHER

O Brasil é uma federação com 26 esta- a transição (ou transação) para a democra-
dos e um Distrito Federal, com eleições di- cia se processou sem rupturas entre 1974 e
retas em três níveis (federal, estadual e mu- 1985. Por essa razão, com a abertura do siste-
nicipal). Tem eleições de dois em dois anos ma partidário e com a liberdade de organizar
não totalmente coincidentes, e as eleições novos partidos (ou reorganizá-los), não res-
municipais são defasadas das eleições gerais. surgiram os partidos tradicionais do período
Para compreender o sistema partidário anterior ao golpe militar de 1964 – como re-
brasileiro atual, temos que buscar suas apareceram a Unión Cívica Radical e o Parti-
raízes no período pós-1945. Nestes últi- do Justicialista na Argentina, os Blancos e
mos quase 60 anos, o sistema partidário Colorados no Uruguai e o Partido Democra-
sofreu dois “realinhamentos” forçados pelo ta Cristão no Chile, com o fim dos seus res-
regime militar, em 1965-1966 e em 1979- pectivos regimes militares.
1980. Com o retorno aos governos civis
em 1985, o sistema partidário passou por
uma grande expansão até 1993, quando se 1. Primórdios

iniciou um certo “encolhimento”. Mas, o Depois de obter a sua independência de


sistema fragmentou-se de novo no final dos Portugal em 1822, o Brasil se tornou uma
anos 90, com 18 partidos, elegendo pelo monarquia constitucional até 1889. Duran-
menos um deputado em 1998 e 2002, e te esse período, o sistema partidário se con-
21 em 2006. solidou no Segundo Reinado (1840-1889)
Diferentemente dos outros regimes mi- como um sistema bipartidário, com um Par-
litares no Cone Sul (Chile, Uruguai e Argen- tido Conservador e um Partido Liberal, que
tina), os generais-presidentes brasileiros não se alternaram no poder de modo semelhan-
fecharam o Congresso Nacional nem pres- te ao modelo inglês dessa mesma época. Es-
creveram os partidos políticos; mantiveram ses dois partidos, porém, passaram por várias
as eleições em intervalos regulares, embora transformações. Em 1870, o pequeno Parti-
com várias restrições autoritárias – num es- do Republicano se organizou e começou a
forço para vender a imagem de uma “demo- sua pregação contra a monarquia (CARVA-
cracia relativa” (FLEISCHER, 1994). Assim, LHO, 1981).

1. Este trabalho foi apresentado inicialmente num seminário da Konrad Adenauer Stiftung, em 1995. O pre-
sente texto é uma versão modificada e atualizada de Fleischer (1997).

305
Os partidos políticos

No período da chamada Primeira Repú- UDN e PTB) chegassem a ter uma abrangência
blica (1889-1930), os clubes republicanos em realmente nacional. O Brasil continuou a ser
cada estado se transformaram em Partidos uma república presidencialista federativa, com
Republicanos estaduais. Uma vez um Legislativo nacional bicameral, mas com
institucionalizado o poder político civil em Legislativos estaduais unicamerais. Adotou-
1898, a política nacional passou a ser domi- se o sistema de representação proporcional
nada pelos dois partidos maiores: o PRP de com lista aberta para a Câmara dos Depu-
São Paulo e o PRM de Minas Gerais. Líde- tados, Assembléias Legislativas e Câmaras
res políticos desses dois estados revezaram- Municipais, mas sem cláusula de exclusão.
se na Presidência da República e dominaram Permitiram-se coligações em todos os níveis
os trabalhos no Congresso Nacional – num e candidaturas simultâneas para cargos
sistema chamado de “Café com Leite” (M. majoritários e proporcionais. Os mandatos
C. SOUZA, 1974; CASALECCHI, 1987). legislativos eram de quatro anos, e os de pre-
Esse sistema político se tornou decaden- sidente da República e de metade dos então
te no final da década de 1920 (PRADO, 22 governadores estaduais eram de cinco anos.
1986) e se mostrou incapaz de se transfor- Essa não-coincidência dos mandatos se tor-
mar para enfrentar os novos desafios sociais nou problemática para o sistema político e,
e econômicos da época, sendo derrubado em parte, provocou a renúncia do presidente
pela Revolução de 1930 liderada pelo ex- Jânio Quadros em 1961, depois de apenas sete
governador do Estado do Rio Grande do meses de mandato (FLEISCHER, 1995;
Sul, Getúlio Vargas. Nos 15 anos seguintes SOUSA, 2005).
(que marcaram o primeiro governo Vargas),
a atividade político-partidária foi restrita ao
período de 1933 a 1937, mas o sistema parti- 2.1 Os partidos “grandes”

dário ainda se baseou em agrupamentos es- No período de 1945 a 1965, o Brasil


taduais e algumas tentativas de organizar chegou a ter treze partidos representados no
movimentos ideológicos em nível nacional, Congresso Nacional: três grandes (PSD,
espelhando a polarização direita-esquerda da UDN e PTB), dois médios (PSP e PDC) e
Europa nos anos 30. oito pequenos – como mostra a Figura 1.
O Partido Social Democrático foi organi-
zado por Getúlio Vargas em 1945, baseado
2. Redemocratização e
pluripartidarismo, 1945-1965 no seu sistema de dominação unitária implan-
tado durante o Estado Novo (1937-1945). Em
Esse período foi marcado pelo retorno cada estado o interventor varguista foi encar-
ao estado de direito, com a Constituição regado de organizar o PSD, convocando todos
de 1946. No quadro teórico de Sartori os caciques locais que haviam sido nomeados
(1982), esse sistema iniciou-se com um como prefeitos municipais para fundar a
pluralismo moderado em 1945 e acabou nova agremiação governista. Nessa época, a
num pluralismo exacerbado após as eleições população brasileira ainda era quase 70%
parlamentares de 1962 (M. C. SOUZA, rural e o sistema de coronelismo garantia a
1976; NICOLAU, 2004). fidelidade dos votos (HIPPÓLITO, 1985).
Finalmente, foram organizados partidos Inicialmente, o PSD era dominante no Con-
em âmbito nacional, embora apenas três (PSD, gresso Nacional, mas declinou ao longo do

306
FIGURA 1. Genealogia dos partidos políticos brasileiros, 1945-1965.

Pré 1945 1945 1947 1950 1954 1958 1960 1962

Fonte: Marques e Fleischer, 1999:14.


* Partido Republicano Populista
** Partido da Representação Popular

período, embora se mantivesse como maior estava prestes a se tornar um “partido de


partido. Ainda elegeu dois presidentes, o ge- massas”, no conceito de Duverger (1980).
neral Eurico Dutra, em 1945, e Juscelino Era considerado um partido nacionalista, no
Kubitschek, em 1955. Embora Kubitschek não estilo de “populismo de esquerda”
tivesse conseguido eleger seu sucessor em (LAVAREDA, 1991; BENEVIDES, 1989; e
1960, aspirava voltar à Presidência em 1965. D’ARAÚJO, 1996; BODEA, 1992).
Para arregimentar a população urbana, a A União Democrática Nacional, herdei-
máquina varguista, baseada no Ministério do ra da União Democrática Brasileira, que se
Trabalho e nos sindicatos por este tutelados, insurgiu contra o regime Vargas nas eleições
fundou o Partido Trabalhista Brasileiro, im- marcadas para janeiro de 1938 (mas que fo-
pulsionado pelo alistamento ex offício de ram canceladas pelo golpe do Estado Novo
eleitores. Numericamente modesto no iní- em novembro de 1937), aglutinou as forças
cio do período, o PTB cresceu a ponto de de oposição a Vargas nas áreas rurais e urba-
rivalizar com o PSD em 1963. Elegeu um nas. A UDN chegou a ocupar a Presidência
presidente (em 1950) e o vice-presidente da República em dois períodos curtos: 1954-
João Goulart duas vezes (1955 e 1960), que 1955, quando o vice-presidente Café Filho
assumiu a Presidência em 1961, para o perío- foi empossado após o suicídio de Getúlio
do que se estenderia até 1964. Ao ser ex- Vargas e, entre janeiro e agosto de 1961, na
tinto pelo regime militar em 1965, o PTB gestão de Jânio Quadros. Foi superada como

307
Os partidos políticos

o segundo maior partido no Congresso pelo 2.3 Os partidos pequenos


PTB em 1955, no Senado, e em 1963, na
Na verdade, a Figura 1 nos mostra mais
Câmara (BENEVIDES, 1981; DULCI,
de oito partidos chamados “pequenos”, pois
1986).
apenas incluímos os oito que chegaram a se
fazer representar em 1963 no Congresso
2.2 Os partidos médios Nacional.

O Partido Democrata Cristão foi orga-


nizado em 1945, baseado, em parte, na Liga 2.4 Os ideológicos
Eleitoral Católica dos anos 30. A sua lideran-
Partido Comunista Brasileiro – PCB – O
ça inicial, porém, coube a intelectuais leigos,
mais “histórico” dos partidos brasileiros, or-
muitos deles professores universitários. No
início da década de 1960, o PDC já contava ganizado em 1922. Conheceu a legalidade
com outros profissionais liberais, empresários apenas entre 1945 e 1948, mas teve uma atu-
mais modernos e alas operárias, estudantis e ação destacada na clandestinidade até 1964.
universitárias. Atrelou-se a Jânio Quadros no Em 1947, o PCB já era o quarto maior parti-
governo do Estado de São Paulo e na Presi- do no Congresso Nacional e o terceiro no
dência da República. O PDC elegeu vários Estado de São Paulo e, assim, assustou o go-
governadores e chegou a ser o quinto maior verno Dutra (conservador) quando derrotou
partido no Congresso em 1963. No final do o PTB na maioria das eleições sindicais. A
período, estava dividido em alas distintas, de partir de 1950, passou a eleger alguns dos
esquerda, centro e direita, que tomariam ru- seus quadros por outras legendas. Em 1958,
mos diferentes após a extinção dos partidos houve uma cisão dos stalinistas, que funda-
em 1965 (ALEIXO, 1968; VIANNA, 1981; ram o PCdoB, de linha chinesa e, mais tarde,
CARDOSO, 1975; COELHO, 2000 e 2003). albanesa (CHILCOTE, 1982; PACHECO,
O Partido Social Progressista foi um veí- 1983; SEGATTO, 1995).
culo político pessoal de Adhemar de Bar- Partido de Representação Popular – PRP
ros, interventor (1939-1941) e governador – Herdeiro do integralismo (AIB) nos anos
eleito duas vezes (1947 e 1962) em São Pau- 30, foi conduzido por seu “líder máximo”,
lo. Em 1950, o partido participou de uma Plínio Salgado. De ideologia fascista/
coligação que elegeu Getúlio Vargas, e esse corporativa, o PRP participou de alguns go-
apoio lhe rendeu a Presidência da Repúbli- vernos estaduais por meio de coligações
ca durante um curto período após a morte (TRINDADE, 1974).
de Getúlio (1954-1955). Adhemar concor- Partido Socialista Brasileiro – PSB – Fun-
reu à Presidência da República duas vezes, dado com a fusão da Esquerda Democráti-
em 1955 e 1960. Freqüentemente, o PSP ca e da Vanguarda Socialista em 1950, fi-
era usado como uma legenda de conveni- cou restrito a um pequeno grupo de inte-
ência em vários estados, especialmente por lectuais e não conseguiu ocupar o espaço
políticos dissidentes do PSD, que lhes “ne- político deixado pela proscrição do PCB,
gava legenda”. Era considerado um parti- como foi o caso, na época, de alguns parti-
do “populista de direita” (SAMPAIO, 1982; dos socialistas na Europa Ocidental (SIL-
CARDOSO, 1995; KWAL, 2006). VA, 1989; MANGABEIRA, 1979).

308
Esquerda Democrática – ED – Pequeno Maranhão liderados por Vitorino Freire. Em
agrupamento de socialistas fabianos que dei- 1950, foi transformado em PST. Em 1953,
xaram a UDN antes das eleições, em dezem- Freire retornou ao PSD e o PST passou ao
bro de 1945, quando elegeram dois consti- comando do senador Sylvestre Péricles Goes
tuintes (Hermes Lima e Domingos Vellasco). Monteiro (Alagoas) (CERQUEIRA, 1973).
Em 1947, a ED elegeu alguns poucos depu- Partido Rural Trabalhista – PRT – Orga-
tados estaduais em Goiás e no Distrito Fede- nizado em 1945 como PRD – Partido Repu-
ral e, em 1950, reuniu-se com a Vanguarda blicano Democrático por grupos evangéli-
Socialista – VS para fundar o PSB (HECKER, cos. Tornou-se PRT em 1950 e passou a ser
1998). uma legenda alternativa para candidatos do
PCB, que foi para a clandestinidade em 1948.
Em 1954 recebeu a adesão passageira do
2.5 Outros pequenos
deputado Hugo Borghi (CERQUEIRA,
Partido Republicano – PR – Remanescen- 1973).
te dos Partidos Republicanos estaduais que Movimento Trabalhista Renovador –
dominaram a política na Primeira República MTR – Cisão dissidente renovadora lidera-
(1889-1930), liderado pelo ex-presidente da da pelo deputado Fernando Ferrari, que dei-
República (1922-1926) Arthur Bernardes xou o PTB, em 1959, numa tentativa de fun-
(1870-1955), um forte desafeto da política dar um “trabalhismo” mais puro, na linha
varguista. Teve alguma expressão em pou- ideológica do PTB nos anos 40, articulada
cos estados, como Minas Gerais e Bahia por Alberto Pasqualini (BASTOS, 1981;
(CERQUEIRA, 1973). BODEA, 1992).
Partido Libertador – PL – Surgiu inicial-
mente nos anos 20, quando era um partido
2.6 O fim do pluripartidarismo
de oposição no Rio Grande do Sul. Lidera-
do pelo Deputado Raul Pilla, o PL empu- Como se pode ver na Figura 1, o sistema
nhava a bandeira do parlamentarismo, que pluripartidário desse período testemunhou
foi usada como a saída para evitar a guer- três cisões (facções que se tornaram parti-
ra civil em agosto/setembro de 1961 dos) e duas fusões.
(CERQUEIRA, 1973). Em 1945, a ED saiu da UDN, para depois
Partido Trabalhista Nacional – PTN – se fundir com a VS e criar o PSB. Para viabilizar
Organizado em 1947 por Emílio Carlos a sua candidatura para o governo de São Paulo
Kyrillos em São Paulo. Em 1954, deu legen- em 1950, Adhemar de Barros aglutinou os
da para Jânio Quadros disputar o governo de minúsculos PAN e PPS ao PRP. Em 1958, o
São Paulo e novamente a Presidência da Re- PCdoB deixou o PCB e, em 1959, o MTR
pública em 1960. Ainda liderou as coligações rachou com o PTB (CERQUEIRA, 1973).
que elegeram o prefeito de São Paulo em 1957 São várias as hipóteses sobre o esfacela-
e o governador em 1958 (CARDOSO, 1975; mento do sistema partidário de 1945 a 1965
CERQUEIRA, 1973; KWAL, 2006). (M. C. SOUZA, 1976; SOARES, 1973 e
Partido Social Trabalhista – PST – Orga- 2001), em parte refutadas por Lavareda
nizado como PPB – Partido Proletário do (1991). Uma das causas, sem dúvida, foi a
Brasil, em 1946, por dissidentes do PSD no legislação eleitoral (desigualdades regionais,

309
Os partidos políticos

lista aberta, coligação sem sublegenda, au- comandava à distância, em 1965, as campa-
sência de cláusula de exclusão), que permi- nhas estaduais do seu partido. Os primeiros
tiu a proliferação de legendas fracas, sem nomes indicados por JK nos estados de Mi-
consistência, e dificultou a formação de ali- nas Gerais e Guanabara (ex-Distrito Federal)
anças coesas e permanentes no Congresso foram declarados “inelegíveis” pela justiça
(NICOLAU, 2004). eleitoral. Mas os candidatos subseqüentes do
O canto do cisne desses partidos foi o PSD nesses dois estados importantes vence-
pleito de outubro de 1965, já no segundo ram o pleito com maioria absoluta.
ano do governo do general Castelo Branco, Logo em seguida, JK voltou ao Brasil
que elegeu 11 governadores por via direta. para saborear essa vitória pessoal. A linha
Esse primeiro governo militar havia aprova- dura não aceitou o desaforo e ameaçou der-
do um novo código eleitoral em junho da- rubar Castelo Branco, caso as eleições não
quele ano, que visava atenuar algumas das fossem anuladas. Após intensas negociações,
distorções acima mencionadas: proibir coli- o governo baixou o AI-2, que tornou as fu-
gações nos pleitos proporcionais, cláusula de turas eleições para governador indiretas e
barreira (5%), maioria absoluta (sem segun- extinguiu os partidos políticos existentes,
do turno popular) para cargos executivos garantindo, porém, a posse dos eleitos. Foi
(presidente, governador e prefeito). Essas nesse ponto que o presidente Castelo Bran-
medidas reduziram, em 1965, o número de co perdeu o controle político e a condução
candidatos a governador para três ou quatro da sua própria sucessão (GASPARI, 2002).
nesses 11 estados e, em 1966, provavelmen-
te o número de partidos no Congresso teria
3.1 A transição para o bipartidarismo
sido reduzido para cinco ou seis.
Entretanto, os resultados das eleições de As novas regras ditavam que, para for-
1965 e os imperativos do regime militar for- mar uma nova organização partidária “pro-
çaram uma antecipação do realinha-mento visória”, bastava arregimentar 120 depu-
do sistema pluripartidário de então por vias tados federais e 20 senadores. Em tese,
autoritárias. poderiam ter sido organizados três parti-
dos novos, mas na prática foi difícil até
mesmo constituir dois.
3. O bipartidarismo, 1966-1979
Adesões governamentais facilitavam a
O general-presidente Castelo Branco formação da Aliança Renovadora Nacional
manteve sua promessa de realizar as elei- – Arena, mas o novo partido de oposição,
ções diretas para governador marcadas para Movimento Democrático Brasileiro – MDB,
3 de outubro de 1965, embora recebesse teve dificuldade em juntar os 20 senadores e
pressões da linha dura militar para as tor- contou com uma pressão discreta do presi-
nar indiretas. O ex-presidente e então se- dente Castelo Branco para convencer dois
nador Juscelino Kubitschek já era candida- senadores a filiar-se temporariamente ao
to presidencial pelo PSD quando foi cassado MDB. Nessa transição do antigo pluri-
pelo AI-1, em junho de 1964. partidarismo para o bipartidarismo “provi-
Líder popular, JK coordenava uma dis- sório” no pleito de 1966, o MDB teve a sua
creta oposição, do seu exílio na Europa, e presença na Câmara dos Deputados reduzida

310
de 36% para 32,5%. Assim, no conceito de tado com o mesmo objetivo. Em 1978, a Are-
Sartori (1982), a Arena pode ser considera- na conseguiu se manter no mesmo patamar
da um partido dominante. no Congresso; 55% na Câmara e 62,7% no
Senado (Tabela 1) (FLEISCHER, 1994).
Mesmo com esses casuísmos, o último
3.2 O bipartidarismo não “resolve”
governo militar, do general João Figueiredo
Com o endurecimento da ditadura militar (1979-1985), percebeu que, com a situação
em 1968 (AI-5) e o chamado “milagre econô- econômica e social cada vez pior e com a
mico”, em 1970 a Arena aumentou a sua mar- tendência do insatisfeito eleitorado em vo-
gem na câmara baixa de 67,5% para 72,3%. tar contra o governo (ou seja, em votar no
Temendo uma “mexicanização” do sistema MDB), a “camisa de força” tinha que mudar
partidário brasileiro, vários líderes do MDB para permitir maiores espaços para mano-
pregavam a autodissolução da sofrida legen- bras e negociação política para o governo
da de oposição (KINZO, 1988). no Congresso. Assim, justamente quando o
Com o fim do “milagre” e a liberalização MDB se fortaleceu, quase se tornando um
das normas que regulamentavam a campanha “partido de massa”, o governo militar de-
eleitoral de 1974 feita pelo general-presiden- cidiu promover um novo realinhamento
te Ernesto Geisel, o MDB se fortaleceu mui- partidário, de cima para baixo, extinguin-
to: elegeu 44% dos deputados federais, 16 do a Arena e o MDB, para criar um novo
das 22 cadeiras para o Senado e maiorias em pluripartidarismo, agora “moderado”, com
seis legislativos estaduais – um ressurgimen- cinco ou seis partidos.
to muito forte (GASPARI, 2003).
Essa tendência oposicionista do eleitora-
4. O novo pluripartidarismo,
do, cada vez mais urbano, se manteve nas 1980-1997
eleições municipais de 1976, apesar de algu-
mas restrições impostas pelo governo. Não Esse novo sistema partidário passou por
obstante, o governo Geisel optou por duas fases distintas, e depois pareceu estar
desacelerar o ritmo da abertura política, te- entrando numa terceira. Nos últimos cinco
mendo maiorias oposicionistas nas duas ca- anos do regime militar (1980-1985), mante-
sas do Congresso resultante da eleição de ve-se um pluripartidarismo moderado, com
1978. Ao mesmo tempo, o MDB elegeria por seis partidos e depois cinco. Com o retorno
via direta os governadores nos seis estados aos governos civis (Sarney, 1985-1990;
onde obteve maioria legislativa em 1974 Collor, 1990-1992; Itamar, 1992-1994; e
(FLEISCHER, 1980). F. H. Cardoso, 1995-1998), modificou-se
Para consertar o rumo das coisas, o presi- a legislação, o que facilitou a criação e o re-
dente Geisel outorgou o chamado “Pacote de gistro de legendas novas. Como conseqüên-
Abril” em 1977, tornando a eleição indireta cia, em 1991, mais de quarenta partidos es-
para uma das duas vagas no Senado (senador tavam registrados no TSE, vinte dos quais re-
“biônico”), mantendo a eleição indireta para presentados no Congresso. Com a nova Lei
governadores por colégios eleitorais esta- Orgânica dos Partidos Políticos – LOPP, san-
duais manipulados para favorecer a Arena e cionada em agosto de 1995, anteciparam-se
modificando as normas da eleição para depu- várias fusões entre 1993 e 1996, com um

311
Os partidos políticos

TABELA 1. Bancadas partidárias representadas no Congresso Nacional, 1979-2007.

# Fusão PDC + PDS PPR em abril de 1993.

312
--

--

--

--

--

313
Os partidos políticos

certo “encolhimento” do sistema, o que 4.2 Realinhamento inicial


promoveu um pluralismo ligeiramente mais Após intensas negociações entre partidos,
moderado nas eleições de 1998 e 2002. de dezembro de 1979 a fevereiro de 1980,
de fato, esses cinco grupos conseguiram arre-
4.1 Pluralismo moderado, 1980-1985 gimentar as bancadas no Congresso Nacional
em março de 1980. Em janeiro, o PP havia
O bipartidarismo foi extinto por lei apro- recrutado uns 90 deputados, deixando o novo
vada pelo Congresso em dezembro de 1979. PDS sem uma maioria absoluta. Com a morte
Os estrategistas do governo Figueiredo com- do então ministro da Justiça Petrônio Portela e
preenderam que havia facções mal acomo- a sua substituição por um representante do ex-
dadas tanto dentro do MDB quanto na Are-
PSD mineiro, egresso da Arena, o governo con-
na (KINZO, 1980). Para sair da “camisa-
seguiu reduzir os quadros do PP a 68 deputa-
de-força” do bipartidarismo para um sistema
dos e preservar uma precária maioria de 225
de pluralismo “moderado”, visavam uma con-
para o PDS (FLEISCHER, 1988b).
figuração partidária que compreendia:
O antigo MDB foi dividido, ficando o
. dois partidos “sucessores”: da Arena, o
PMDB com apenas metade dos seus deputa-
PDS – Partido Democrático Social, e do
dos. A coexistência das facções Brizola e Ivete
MDB, o PMDB – Partido do Movimen-
dentro do novo PTB se tornou impossível e o
to Democrático Brasileiro;
TSE concedeu legenda a esta facção menor
. um novo partido de “centro”, o PP –
em 1980. Assim, Brizola foi obrigado a orga-
Partido Popular, formado por “modera-
nizar um novo partido, o PDT – Partido De-
dos” do ex-MDB, liderados pelo senador
mocrático Trabalhista. Para ter uma tribuna
Tancredo Neves (MG), e dissidentes li-
no Congresso Nacional, o PT aceitou a filiação
berais da Arena, liderados pelo deputa-
de cinco deputados e um senador egressos do
do Magalhães Pinto (MG), que funcio-
MDB (SOARES e VALE, 1985).
naria com um partido às vezes “auxiliar”
Como se pode ver, naquela fase, fora do
ao governo no nível federal, mas um forte
PTB, nenhum outro partido do período an-
concorrente direto no pleito de 1982 em
terior a 1965 foi ressuscitado: nem a UDN,
muitos estados, e um potencial parceiro
nem o PSD ou o PDC, por exemplo. Os re-
coligado em outros.
manescentes dessa agremiação democrata
. talvez o ressurgimento de um partido “tra-
cristã acharam melhor permanecer no PMDB
balhista” nos moldes do antigo PTB, o Par-
para não dividir ainda mais a oposição
tido Trabalhista Brasileiro pré-1965, lide-
(KINZO, 1980). Em 1979, discutiu-se entre
rado pelo ex-governador Leonel Brizola e
os líderes do “novo sindicalismo” e intelec-
pela ex-deputada Ivete Vargas; e talvez
tuais de esquerda (incluindo o professor F.
. um partido “obreiro”, nos moldes do
H. Cardoso) a possibilidade de organizar
PSOE espanhol, com base no novo sin-
um partido da social-democracia, semelhan-
dicalismo emergente nas regiões Sudeste
te ao SPD alemão; mas, em 1980 os sindi-
e Sul: o PT – Partido dos Trabalhadores,
calistas e uma parte dos intelectuais mais
liderado por Luiz Inácio (Lula) da Silva
socializantes foram para o PT, e os intelec-
(MENEGUELLO, 1989; KECK, 1992).
tuais restantes permaneceram no PMDB
(MARQUES e FLEISCHER, 1999).

314
4.3 Resultados do pleito de 1982 15 de janeiro de 1985), promoveu-se uma
Por causa dos fortes casuísmos eleitorais cisão no PDS, em junho de 1984, em torno
adotados pelo governo Figueiredo no final de da escolha do seu candidato para essa elei-
1981, na tentativa de garantir a hegemonia ção indireta. Uma facção “liberal” dentro do
do PDS após as eleições de 1982 (voto vincu- PDS, liderada pelo então vice-presidente da
lado e proibição de coligações), o PP sentiu- república Aureliano Chaves, o senador Mar-
se inviabilizado e, em fevereiro, decidiu dis- co Maciel e o senador e então presidente do
solver-se e se reincorporar ao PMDB. Como PDS José Sarney, preconizava a realização
se pode ver na Tabela 1, esse desdobramento de uma eleição prévia interna no PDS para
elevou o PMDB ao mesmo patamar de força determinar o seu candidato à Presidência da
política do ex-MDB na Câmara (45%) e per- República. O grupo majoritário governista
mitiu que superasse a marca do ex-MDB no preferiu manter o mecanismo tradicional:
Senado (40,3% vs. 37,3%). Em junho de articulações informais confirmadas numa
1982, porém, a maioria governista no Con- convenção nacional do partido (LAVAREDA,
gresso aprovou uma emenda que, entre ou- 1985).
tras coisas, permitiu o êxodo de vinte depu- O grupo dissidente, autodenominado
tados do “novo” PMDB para o PTB e para o “Frente Liberal”, selou a “Aliança Democrá-
PDS em nove estados. Mesmo assim, o de- tica” com o PMDB e articulou a chapa
sempenho do PMDB nas eleições de novem- Tancredo Neves para presidente e José
bro de 1982, em grande parte, se deve ao re- Sarney para vice; quanto ao PDS, sua con-
forço da fusão PP-PMDB. Entre os novos go- venção nacional escolheu o ex-governador
vernadores oposicionistas, foram eleitos Paulo Maluf para presidente (derrotando o
Tancredo Neves (PMDB-MG), Franco ministro do Interior, Mário Andreazza) e o
Montoro (PMDB-SP) e Leonel Brizola (PDT- deputado Flávio Marcílio para vice.
RJ) (FLEISCHER, 1988b; KINZO, 1996). No segundo semestre de 1984, o Brasil foi
Nas eleições para o Congresso (Tabela 1), agitado por uma segunda onda de grandes co-
o pluripartidarismo bipolarizado foi confir- mícios nas maiores cidades em função das cam-
mado. O PDS perdeu a sua maioria absoluta panhas de Tancredo e Maluf. No primeiro se-
na Câmara (49,1%) mas manteve a suprema- mestre, a grande mobilização se fez em torno
cia no Senado (66,7%). Para constituir uma da campanha das “Diretas Já”, em favor da
maioria absoluta precária na Câmara, o go- Emenda do deputado Dante de Oliveira
verno Figueiredo constituiu uma coligação (PMDB-MT), que marcava eleições diretas
efêmera (51,8%) entre o seu PDS (235 depu- para presidente em 15 de novembro de 1984.
tados) e o PTB de Ivete Vargas (com 13 depu- Apesar de os casuísmos de 1981 (que pro-
tados), viabilizada com distribuição de alguns vocaram a reintegração do PP ao PMDB) te-
cargos de segundo e terceiro escalão para os rem gerado uma maioria escassa para o PDS
trabalhistas (SOARES, 1988). no Colégio Eleitoral (361 entre 686 – 52,6%),
o STF decidiu que a lei da fidelidade partidá-
ria não se aplicava fora do Congresso. As-
4.4 A “Aliança Democrática”, 1984-1985
sim, a chapa da “Aliança Democrática”
Tendo em vista a sucessão presidencial arrebanhou 113 votos dos dissidentes da
(a cargo do Colégio Eleitoral, marcada para Frente Liberal e ainda 55 votos dos que

315
Os partidos políticos

FIGURA 2. Genealogia dos partidos políticos brasileiros, 1966-1996.

1966-79 1980 1982 1985 1988-89 1991 1993 1996

***

**

* O PPB mudou seu nome para PP (Partido Progressista) em 11 de abril de 2003.


** Partido Popular.
*** Partido Progressista Brasileiro.

permaneceram no PDS, e venceu a chapa 4.5 Pluripartidarismo menos


moderado, com um partido
Maluf-Marcílio por uma margem de 300 dominante, 1985-1988
votos (FLEISCHER, 1988a).
No início de 1985, com a constituição for- Finalmente, em maio de 1985, o Con-
mal do Partido da Frente Liberal – PFL, o sis- gresso aprovou a Emenda Constitucional n°
tema partidário brasileiro diversificou o 25, que, entre outras coisas, liberou a for-
pluripartidarismo em três pólos: PDS, PMDB mação de novos partidos políticos. Por par-
e PFL. O governo Sarney (que assumiu em 15 te da “esquerda”, saíram da clandestinida-
de março de 1985, em razão da doença e mor- de os dois partidos comunistas até então
te de Tancredo Neves) se sustentou com base enrustidos no PMDB, o PCB e o PCdoB, e
na coligação PMDB-PFL no Congresso, ten- também o PSB. Egressos do PDS, além do
do o PMDB eleito as presidências do Senado PFL foram criados o PDC e o PL (Figura
e da Câmara dos Deputados no mês anterior 2). Assim, o sistema partidário expandiu-se
(CANTANHEDE, 2001; LAVAREDA, 1985; de 5 para 11 partidos e o PMDB se tornou
TAROUCO, 2002). “dominante”.

316
Após um pequeno tropeço nas eleições pansão em 1989, quando o TSE habilitou
municipais em novembro de 1985 (quando o 22 partidos para disputar a eleição direta para
senador Fernando Henrique Cardoso perdeu presidente da República no final daquele ano
a prefeitura de São Paulo para Jânio Quadros (GURGEL e FLEISCHER, 1990). Os dois
do PTB), o Plano Cruzado – plano de estabi- candidatos de partidos pequenos, cuja retó-
lização heterodoxa implantado em fevereiro rica contra o governo Sarney fora mais con-
de 1986 – empurrou o PMDB para uma es- tundente, Fernando Collor (PRN) e Lula
trondosa vitória nas urnas em novembro da- (PT), foram para o segundo turno em de-
quele ano. Como o PSD na Constituinte de zembro de 1989 (Tabela 3).
1946 e a Arena no período 1975-1979, o Os dois maiores partidos na ANC, par-
PMDB se tornou hegemônico (54,4%) na ceiros na chamada “Aliança Democrática” –
Assembléia Nacional Constituinte (ANC) de o PMDB e o PFL –, ficaram reduzidos à séti-
1987-1988. O PMDB elegeu 22 dos 23 go- ma e nona posições, respectivamente, na
vernadores (FLEISCHER, 1988c). corrida presidencial: Ulysses Guimarães, com
Até que o bloco suprapartidário conser- 4,74%, e Aureliano Chaves, com 0,89% dos
vador (“Centrão”) impusesse a sua maioria votos válidos (Tabela 3). No segundo turno,
em dezembro de 1987, o PMDB havia do- realizado em 17 de dezembro, Collor logrou
minado os trabalhos da ANC. Descontentes 49,94% dos votos contra os 44,21% obti-
com os rumos do PMDB na ANC, em junho dos por Lula. A comparação das votações
de 1988 a facção social-democrata MUP – desses dois candidatos pelo tamanho dos
Movimento de Unidade Progressista se tor- municípios (Tabela 4) mostra uma relação
nou um novo partido, o PSDB – Partido da linear – quanto maior a população do muni-
Social Democracia Brasileira, com 10,7% da cípio, mais Lula, quanto menor, mais Collor.
ANC (MARQUES e FLEISCHER, 1999; Essas tendências foram confirmadas nas
ROMA, 2002). eleições gerais de 1990, quando 19 partidos
Outros cinco partidos ainda se habilita- alcançaram uma representação mínima no
ram para as eleições de novembro de 1988 – Congresso Nacional (Tabela 1). Dos seus 260
PJ, PSC, PTR, PSD e PMB – nos então 4.287 deputados federais e 44 senadores eleitos em
municípios brasileiros (Tabela 2). Essa elei- 1986, o PMDB conseguiu eleger apenas 108
ção confirmou o declínio do até então deputados e 26 senadores em 1990 – embo-
hegemônico PMDB, iniciado com a cisão do ra continuasse sendo o maior partido no Con-
PSDB, e serviu como prenúncio dos resulta- gresso. O PFL teve perdas menores; de 118
dos de 1989. Naquele pleito, o PMDB, que para 84 deputados e de 16 para 15 senado-
detinha as prefeituras de 75 das cem maiores res. Assim, a configuração partidária na câ-
cidades brasileiras, foi reduzido, e passou a mara baixa ficou com dois partidos maiores,
controlar apenas 20 (FLEISCHER, 1996). 38,2%, seis partidos “médios” – PDS, PSDB,
PTB, PDT, PT e PRN –, com 47,4%, e 11
“pequenos”, com 14,4%.
4.6 Pluralismo exacerbado,
1989-1997
Voltando à Tabela 2, observamos que, nas
eleições municipais de 1992, houve uma
Dos 17 partidos constituídos no final de maior dispersão dos 4.762 municípios entre
1988, o sistema partidário sofreu outra ex- os partidos concorrentes, com avanços para

317
Os partidos políticos

TABELA 2. Prefeitos eleitos entre 1982 e 2004, por partido.

318
TABELA 3. Resultados do primeiro turno da eleição presidencial: 15 de novembro
de 1989.

o PSDB, PDT, PT, PSC e PTR; e perdas para sistema partidário brasileiro, que desembo-
o PMDB, PFL, PDS, PTB e PL. caram na configuração que durou até o plei-
Em antecipação à adoção de possíveis to de 2002.
restrições legais aos pequenos partidos nas Apesar das fusões preventivas no primei-
eleições de 1994, ocorreram duas fusões ro semestre de 1993, as modificações na le-
partidárias no primeiro semestre de 1993: gislação eleitoral efetuadas pela Lei n° 8.713,
PDS e PDC formaram o PPR, e PST e PTR de 30 de setembro de 1993, não incluíram a
formaram o PP (Figura 2). proibição de coligações e nem uma cláusula
Os resultados das eleições de 1994 con- de “exclusão” (de 3% ou 5%) para os plei-
tribuíram para subseqüentes alterações no tos proporcionais. Legalizaram, porém, as

319
Os partidos políticos

TABELA 4. Resultados do segundo turno da eleição presidencial por tamanho do


município (x mil): em 17 de dezembro de 1989.

contribuições de pessoas jurídicas às campa- Como se pode ver na Tabela 1, essa se-
nhas eleitorais, através da emissão de um gunda restrição limitou as candidaturas pre-
bônus, e obrigaram os partidos a identificar sidenciais aos partidos com mais de 15 de-
a origem e a quantia de cada contribuição. putados federais (nove partidos). Um dos pe-
Entretanto, na truncada reforma consti- quenos partidos lesados, o PSC, entrou com
tucional realizada no primeiro semestre de uma ação direta de inconstitucionalidade –
1994, uma das poucas medidas aprovadas ADIn – junto ao STF contra essas duas res-
foi a redução do mandato presidencial de trições, pois cogitava lançar a candidatura
cinco para quatro anos. Assim, de 1994 em do ex-presidente e então senador José Sarney
diante (1998, 2002, 2006 etc.), as eleições (PMDB-AP) solicitando sua troca de parti-
para o Congresso, governadores e legislativos do já fora do prazo (março de 1994). Além
estaduais passaram a coincidir com a do pre- disso, naquele momento o senador Sarney
sidente da República. estava em segundo lugar nas pesquisas de
Finalmente, a Lei 8.713 colocou duas opinião pública, embora distante do primei-
restrições para os partidos quanto ao lança- ro lugar (Lula, do PT). O STF declarou
mento de candidatos em 1994: inconstitucional a segunda restrição aos pe-
. todos os candidatos teriam que definir a quenos partidos, mas manteve o prazo para
sua filiação partidária (nova ou troca de filiações partidárias. Assim, o PSC e outros
partido) antes de 5 de janeiro de 1994; e dois partidos pequenos (Prona e PL) pude-
. somente os partidos com mais de 3% de ram lançar candidatos à Presidência, mas o
representação na Câmara dos Deputados senador Sarney foi impedido de se candidatar
em agosto de 1993 poderiam lançar can- pelo PSC, por estar bloqueado dentro do
didatos a presidente e governador. PMDB pelo ex-governador Orestes Quércia.

320
A evolução das preferências populares ao
longo da campanha presidencial de 1994 (en-
tre abril e setembro) foi sacudida com a in-
trodução da nova moeda (Real), em 1º de
julho de 1994, o que acabou invertendo o
quadro a favor do ex-ministro da Fazenda e
mentor do plano de estabilidade econômica
e produzindo uma vertiginosa queda nas in-
tenções de voto no candidato do PT.
Esse impulso levou o candidato da coli-
gação PSDB-PFL-PTB, Cardoso, a ganhar a
eleição já no primeiro turno, com 54% dos
votos válidos (Tabela 5). Lula ficou com 27%,
ou seja, 10% a mais do que recebera no pri-
meiro turno de 1989. A grande surpresa foi
o candidato do Prona, Enéas Carneiro, ter
ficado em terceiro lugar, com 7,4%. Carnei-
ro bateu Quércia e Brizola até mesmo nos
seus estados-base, São Paulo e Rio de Janei-
Três dos partidos “maiores”, PFL, PTB ro, respectivamente.
e PP (Partido Progressista), decidiram não Na Tabela 1, se compararmos os resulta-
lançar candidatos à Presidência, e o PFL e o dos das eleições legislativas de 1990 com as
PTB acertaram uma coligação com o PSDB, de 1994, observaremos que o PSDB e o PT
que lançou o senador (e ex-ministro das Re- conseguiram avanços substanciais na câma-
lações Exteriores e da Fazenda) Fernando ra baixa, 67,6% e 40%, respectivamente,
Henrique Cardoso à Presidência. O candi- tendo o PT aumentado de um para cinco
dato natural do PPR, Paulo Maluf (que foi senadores. PFL e PSB tiveram ganhos mais
derrotado em 1985 e 1989), então prefeito modestos, e o PMDB praticamente ficou na
de São Paulo (eleito em 1992), decidiu não mesma. Por sua vez, o PPR – apesar da fusão
deixar o seu cargo, e o partido lançou o com o PDC –, assim como PDT, PTB e PL,
senador Esperidião Amin (SC). Novamen- sofreram perdas. O PCdoB conseguiu dupli-
te, o PT liderou uma coligação integrada car a sua bancada federal de 5 para 10 depu-
por PSB, PPS, PCdoB, PV e PSTU, lançan- tados; e o PRN, sem seu grande líder (Collor)
do o ex-deputado Lula, que fora derrotado de 1990, ficou reduzido a um solitário de-
por Collor no segundo turno de 1989. Ou- putado, que trocou de legenda em 1995.
tro candidato derrotado em 1989 foi Quanto aos governadores, 18 estados rea-
relançado por seu partido, Leonel Brizola lizaram um segundo turno em novembro
do PDT. Finalmente, a convenção nacional de 1994. Em última análise, o PMDB e o
do PMDB escolheu o ex-governador Ores- PPR melhoraram ligeiramente a sua posi-
tes Quércia, que venceu uma eleição prévia ção quantitativa em 1994; aquele perdeu
do partido, derrotando o senador Sarney e São Paulo e Paraná, mas recuperou o Rio
o governador Roberto Requião (PR). Grande do Sul, e este ficou restrito à região

321
Os partidos políticos

TABELA 5. Resultados do primeiro turno da eleição presidencial: 3 de outubro de


1994.

amazônica. O PDT e o PFL tiveram um de- suficientes para levar o PT ao segundo turno.
sempenho inferior em 1994; os brizolistas Se o candidato do Prona, Enéas Carneiro, ti-
perderam Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul vesse “puxado a sua legenda”, os seus 4,7
e Espírito Santo, conquistados em 1990, fi- milhões de votos para presidente (7,4%) po-
cando restritos a Paraná e Mato Grosso, e a deriam ter eleito uns 35 deputados federais.
Frente Liberal foi reduzida de nove para dois Dois outros fatores tiveram um forte impac-
estados – Bahia e Maranhão. O PSDB ele- to sobre o desempenho dos partidos nas elei-
geu os governadores no “triângulo das ber- ções de 1994; as chamadas “desigualdades
mudas” – São Paulo, Minas Gerais e Rio de regionais” e o voto de legenda.
Janeiro –, a primeira vez que um partido ga- Os dados apresentados na Tabela 6 mos-
nhou nos três estados mais importantes si- tram como o sistema de representação pro-
multaneamente. porcional brasileiro, com suas desigualdades
Fernando Henrique Cardoso liderou em regionais, beneficiou outros em 1994. Essas
todos os estados, menos no Rio Grande do Sul desigualdades provêm da imposição de uma
e em Brasília, onde os coattails de Lula foram “bancada mínima” de oito deputados para os

322
TABELA 6. Eleição para deputado federal em nível nacional por partido, votos
recebidos versus cadeiras ganhas: 1994 e 1998.

323
Os partidos políticos

estados menores e uma “bancada máxima” PSDB (10,9%). No caso do Prona, a imagem
de 70 (São Paulo). Assim, estados como do seu “anti-candidato”, Enéas, atraiu o elei-
Roraima e Amapá, que, em virtude de sua tor alienado. A ideologia e o programa do
pequena população, deveriam eleger um PT sempre atraíram muito voto de legen-
deputado, elegeram oito; e o Estado de São da. No caso do PRN, a imagem do seu ex-
Paulo, com 23% da população nacional, de- presidente (Collor) ainda serviu, embora
veria eleger 118 deputados, e não 70. Nesse timidamente. Quanto ao PSDB, a figura do
caso, os partidos relativamente fortes nos candidato embalado à vitória no primeiro
estados pequenos (com quociente eleitoral turno pelo Plano Real parece ter sido a mo-
menor) são beneficiados, ao passo que os tivação principal para os seus eleitores. Es-
partidos relativamente fortes em São Paulo ses teriam sido os partidos de princípios e
(com quociente eleitoral maior) são prejudi- não de pessoas em 1994? Pode-se afirmar o
cados. contrário para partidos como PFL, PPR, PP,
Apesar de o PSDB ter recebido 477.641 PL, PSB e PCdoB em 1994? Em parte, sim.
votos a mais que o PFL em nível nacional, O fenômeno do PCdoB é um caso à par-
os “tucanos” elegeram apenas 62 deputados te em termos de voto de legenda. A sua por-
federais versus 89 para o PFL; ou seja, 17 centagem de voto de legenda é muito pe-
vagas a menos. No entanto, o caso do PT foi quena em função de uma estratégia política
pior; por uma diferença de apenas 9.448 de coligação muito bem acertada a partir de
votos em relação ao PFL, elegeu 40 deputa- 1994, que permitiu que o PCdoB duplicasse
dos a menos que este: 49 versus 89! a sua bancada na Câmara Federal, de 5 para
PMDB, PTB, PSB, PCdoB, PMN e PSC 10 deputados. Diferentemente das coligações
foram ligeiramente beneficiados, ao passo proporcionais (lista fechada) com sublistas,
que PDT, PL, PSD, PPS, PRP, PSDB e PT como na Argentina, e as sublemas no Uru-
foram prejudicados, sobretudo estes dois úl- guai – onde há um segundo “rateio” propor-
timos. cional das cadeiras ganhas pela coligação
Quanto à questão do “voto de legenda”, entre os partidos parceiros –, no Brasil, os
o sistema de representação proporcional com partidos parceiros entram na coligação como
lista aberta usado no Brasil permite que o se fossem um “balaio grande” ou um
eleitor vote no nome do candidato para “partidão”, e todos os votos recebidos con-
deputado ou na sua legenda (partido). Quan- tam para a “lista” sem que seja feita uma
do a proporção de votos dados à legenda é segunda divisão proporcional entre os par-
significante, isso indica que, por alguma ceiros de acordo com o número de votos
razão, os seus eleitores são atraídos a votar recebidos por cada partido coligado. Por isso,
no partido e não em nomes individuais (8,3% o PCdoB instruiu os seus eleitores a concen-
em 1994); no sentido contrário, quando essa trar os seus votos em um ou dois dos seus
proporção é baixa, o partido não atrai o elei- candidatos, e não a votar na legenda. Assim,
tor, que é estimulado a votar em nomes de todos os votos de legenda dados ao PT conta-
candidatos individuais (NICOLAU, 2006). vam para a coligação toda e não exclusiva-
Em 1994, os partidos que receberam as mente para o PT, e ajudaram a eleger os qua-
maiores proporções de voto de legenda (aci- tro deputados “a mais” para o PCdoB.
ma da média) para deputado federal foram: Para se ter uma idéia da diversidade de co-
Prona (81,7%), PT (33%), PRN (28,1%) e ligações organizadas para deputado federal em

324
1994, a Tabela 7 mostra a freqüência das múl- em 1996. O PMDB foi o grande perdedor:
tiplas combinações entre “parceiros”. Assim, de 1.605 (33,7%) prefeitos em 1992, caiu
é possível detectar afinidades entre parcei- para 1.288 (24,1%). Enquanto o PFL se
ros mais freqüentes. As coligações mais fre- manteve no mesmo nível, o PPB, fortaleci-
qüentes e consistentes foram lideradas pelo do pelas fusões com o PDC (211 prefeitos
PT-PSB-PCdoB-PPS, e atraíram outros pe- eleitos em 1992) em 1993 e com o PP em
quenos partidos da esquerda (PSTU, PV e 1995, aumentou o seu cacife de 363 (7,6%)
PMN) e também o PDT. Raramente, o PT para 624 (11,7%) prefeitos. O PDT e o PTB
participava de uma coligação com os parti- conseguiram pequenos avanços, ao passo que
dos do centro (PP, PSDB, PMDB etc.). Como o PT dobrou e o PSB triplicou os seus resul-
já abordado, porém, o PCdoB teve uma es- tados.
tratégia eleitoral muito eficiente em 1994, e Apesar de um certo “enxugamento” do
pragmaticamente participou de algumas ali- sistema partidário no nível federal, observa-
anças centristas (PMDB, PSDB, PDT etc.), do na Tabela 1, a diversificação do quadro
além das lideradas pelo PT. Esse quadro tam- partidário em 1996 foi grande – 23 partidos
bém prevê muito bem a fusão do PP com o conseguiram eleger pelo menos um prefei-
PPR para formar o PPB em 1995, partidos to, e 27 elegeram vereadores.
que estavam juntos em 14 coligações, em Qualitativamente, no chamado Brasil
mais de metade dos estados. urbano (as cem maiores cidades), o PSDB
A última observação sobre o pleito de cresceu de 13 para 21 cidades, ao passo que
1994 focaliza os votos em branco; 7 milhões o PMDB recuou de 29 para 16. O PFL au-
para presidente, 14 milhões para governa- mentou o seu cacife nas capitais, conquis-
dor, 21 milhões para senador e 26 milhões tando Rio de Janeiro, Salvador e Recife, e o
para deputado federal. Embora os parlamen- PPB manteve São Paulo e ainda ganhou
tares procurassem remediar essa situação Florianópolis. O PT caiu de 12 para 9 dessas
com a Lei 8.713, dividindo a cédula eleito- cidades e manteve Porto Alegre, mas perdeu
ral em duas, para cargos majoritários e para Belo Horizonte. O PSB obteve um excelente
cargos proporcionais, e obrigando o eleitor resultado – aumento de 4 para 8 dessas cida-
a preencher a cédula para deputado federal des maiores – tendo conquistado três capi-
e estadual primeiro, não adiantou – o desin- tais, Belo Horizonte, Natal e Maceió.
teresse por estas eleições continuou alto
(33%) em comparação com a eleição presi-
dencial (9,2%). 5. Período mais recente, 1997-2006

Nesse período, o sistema partidário so-


4.7 As eleições de 1996
freu outro encolhimento em 1995 e um in-
tenso realinhamento a partir do início de
Esse pleito municipal foi o primeiro teste 1996 (RODRIGUES, 1995).
de urna para o governo Fernando Henrique Como se observa na Tabela 1 e na Figu-
Cardoso (AMARAL, 1996, FLEISCHER, ra 2, em setembro de 1995 houve outra
2002; NOVAES, 1996a; 1996b). Em termos grande fusão entre o PPR e o PP para for-
gerais (Tabela 2), o PSDB de Cardoso teve o mar o PPB – Partido Progressista Brasilei-
melhor desempenho: de 317 (6,7%) prefei- ro. Também o PRN e o PRP deixaram de ter
tos eleitos em 1992, conquistou 910 (17%) uma representação no Congresso Nacional.

325
Os partidos políticos

TABELA 7. Parceiros nas coligações para deputado federal nos 27 estados em


1994.

326
Assim, a configuração partidária passou a tos contra, abstenções e ausências – especi-
contar com 16 entidades. almente no PPB e no PMDB, mas também
Entretanto, em relação à situação dos no PSDB e PFL – que privavam o governo
partidos na abertura da sessão legislativa dos 308 votos para aprovar mudanças cons-
em 1o de fevereiro de 1995, com a posse titucionais.
dos eleitos em 1994, houve um forte A “volatilidade” eleitoral do sistema par-
realinhamento dos deputados federais e, em tidário foi bastante alta entre as eleições de
menor grau, dos senadores. Sem levar em 1982 e 1986 e também entre 1986 e 1990,
conta a fusão que criou o PPB em 14 meses, por conta da queda do PDS, o crescimento e
até 8 de abril de 1996 mais de 10% dos de- declínio do PMDB e o aparecimento do PFL
putados trocaram de partido pelo menos uma (em 1985) e PSDB (em 1988). Entre 1990 e
vez (MELO, 2000 e 2004). 1994, esta volatilidade diminuiu bastante e
Esse realinhamento foi muito concentra- continuou baixa entre 1994 e 1998, com
do na base do governo, sendo o PSDB, o menos variação do desempenho dos parti-
partido do presidente, o mais beneficiado – dos (MAINWARING, 2001). Porém, a
cresceu de 62 para 85 deputados, seguido volatilidade eleitoral voltou a crescer um
pelo PFL, que aumentou de 89 para 99 de- pouco entre 1998 e 2002, com o crescimen-
putados, superando, assim, o PMDB – que to do PT e o declínio do PSDB e PFL. Como
perdeu dez deputados – como o maior par- houve menos diferenças no desempenho dos
tido da Casa. Na oposição, as perdas foram partidos entre 2002 e 2006, este indicador
menores: oito deputados no PDT e dois no diminuiu novamente.
PSB.
Em princípio, a base parlamentar do go-
verno Cardoso deveria ser sólida e confian- 5.1 A eleição da reeleição – 1998
te: se com a coligação eleitoral de 1994 – Em 1997, o Congresso aprovou a emen-
PSDB, PFL e PTB –, teria 225 deputados, ou da da reeleição, que permitiu aos governa-
43,9%, com a inclusão do PMDB, contaria dores e ao presidente eleitos em 1994 con-
com 319 deputados (62,2%) – 11 além do correr a um novo mandato em 1998. Esse
quórum constitucional de 308 e, com o PPB, mesmo mecanismo foi estendido aos prefei-
chegaria aos 398 deputados (77,6%). Com tos eleitos em 1996 para concorrer novamen-
a oposição sistemática de apenas 98 deputa- te em 2000.
dos – PT, PCdoB, PSB, PPS, PV, PSTU etc. –, Ainda embalado pelos resultados do Pla-
por que, então, o governo enfrentou tanta no Real, o presidente Cardoso foi reeleito
dificuldade para aprovar as suas propostas no primeiro turno em outubro de 1998,
de reformas constitucionais em 1996 e 1997? com 53,06% dos votos válidos (Tabela 8).
Apesar de Limongi e Figueiredo (1995) Favorecido pelo desempenho do presidente
mostrarem que, entre 1989 e 1993, os par- e pelos resultados positivos em 1996, o PSDB
tidos na Câmara dos Deputados tinham um aumentou a sua bancada na Câmara Federal
alto grau de consistência e coesão interna – de 62 para 99 deputados, e de 10 para 16
acima de 70%, em média – em votações no- senadores (Tabela 1). De forma semelhante
minais, em algumas votações cruciais em ao PFL em 1994, em 1998 o PSDB aprovei-
1996, os cinco partidos que compõem a base tou bem as desigualdades regionais e, com
do governo tiveram índices variáveis de vo- 16,4% dos votos nacionais, elegeu 19,3% dos

327
Os partidos políticos

deputados. No entanto, o PFL ainda elegeu sas eleições, com a eleição de 19 dos 27 go-
a maior bancada da Câmara (105 deputados) vernadores – PSDB, sete; PFL, seis, e PMDB,
e obteve 19% dos votos. O PMDB encolheu seis. O PT conseguiu eleger três. Assim, as
de 107 para 83 deputados; e o PDT, de 33 bancadas do presidente foram reforçadas no
para 25 – ao passo que o PSB aumentou a sua Congresso, mas, mesmo assim, o seu segun-
bancada de 15 para 18 deputados. O PT e o do mandato foi menos tranqüilo que o pri-
PPB continuaram virtualmente empatados – meiro. O PMDB e o PFL se revezavam nas
59 versus 60 deputados – respectivamente presidências do Senado e da Câmara entre
(FLEISCHER, 1998). 1995 e 2001. Finalmente, nos últimos dois
Dos 22 governadores que concorreram anos do seu segundo mandato, o presidente
à reeleição, 15 venceram. O desempenho da emplacou o presidente da câmara baixa –
coligação Cardoso também foi evidente nes- deputado Aécio Neves (PSDB-MG), eleito
em fevereiro de 2001.

TABELA 8. Resultados do primeiro turno da eleição presidencial: 4 de outubro de


1998.

328
5.2 A esquerda cresce – eleições do a deputada Rita Camata (ES) como vice
municipais de 2000
na chapa. Porém, apesar da imposição de co-
Os resultados das eleições municipais de ligações “verticalizadas” – simetria entre co-
outubro de 2000, de uma certa maneira, fo- ligações para governador e presidente – pelo
ram um prenúncio da reviravolta partidária TSE, várias seções estaduais do PMDB deci-
nas eleições gerais de 2002. Na comparação diram apoiar Lula informalmente.
entre os pleitos de 1996 e 2000 (Tabela 2), a A direção nacional do PT decidiu aban-
chamada “esquerda” elegeu 790 prefeitos donar o programa aprovado por um congresso
contra 741 em 1996. O PT cresceu de 111 do partido em fins de 2001, e elaborou uma
para 187 prefeitos e o PPS de 32, para 166. plataforma e estratégia de campanha
Enquanto o PMDB, o PSB, o PDT e o PPB “centrista” para a campanha presidencial de
sofreram pequenos declínios, o PSDB, o PFL, 2002. Além de propostas “centristas”, o PT
o PTB e o PL aumentaram suas cotas de pre- decidiu mover-se para o Centro na composi-
feitos. Nas 26 capitais, a esquerda aumen- ção de sua coligação, fechando uma parceria
tou o seu cacife de 8 para 12, inclusive em com o Partido Liberal (PL), que escolheu o
São Paulo, com a vitória de Marta Suplicy senador e empresário José Alencar (PL-MG)
(PT). Este crescimento talvez tenha sido um como o vice de Lula. A campanha “paz e
“prenúncio” dos resultados do pleito de 2002 amor” atraiu o apoio de vários empresários
(FLEISCHER, 2002). (SAMUELS, 2003b; MENEGUELLO, 2003).
Finalmente, o PSB, que participou da co-
ligação liderada por Lula em 1989, 1994 e
5.3 Alternância no poder – Lula 2002
1998, optou por lançar candidato próprio em
Sem poder concorrer a uma segunda re- 2002 – o governador Anthony Garotinho, do
eleição em 2002, a coligação do presidente Rio de Janeiro. Garotinho havia sido eleito
Cardoso desabou. O PTB juntou-se ao PDT pelo PDT em 1998, mas em 2001 rompeu
para apoiar a candidatura do ex-governador com o presidente nacional do partido, Leo-
Ciro Gomes (PPS). O PFL ficou muito abor- nel Brizola, e mudou-se para o PSB.
recido com a “implosão” da pré-candidatu- A candidatura do PSDB não decolou de
ra da sua governadora, Roseana Sarney verdade e Lula venceu o primeiro turno
(Maranhão), após a invasão ao escritório do com 46,44% dos votos válidos contra
marido dela pela Polícia Federal em 1o de 23,20% de Serra. Garotinho, com 17,87%,
março de 2002. Os agentes encontraram R$ ultrapassou Ciro Gomes (11,97%) – vota-
1,34 milhão em papel-moeda sem lastro ção semelhante aos 10,97% obtidos pelo
contábil. Assim, o PFL decidiu retirar-se do candidato do PPS em 1998 (Tabela 10).
ministério Cardoso, tornou-se um partido No segundo turno, Lula recebeu apoio dos
“independente”, não lançou candidato à Pre- partidos dos outros candidatos (PSB, PPS,
sidência e não participou de nenhuma coli- PDT e PTB), obtendo a maior votação na
gação presidencial em 2002. história eleitoral brasileira – 62,48% dos
O PSDB finalmente escolheu seu candi- votos válidos (Tabela 11). Finalmente,
dato em maio – o senador José Serra – e, em após três derrotas, o candidato do PT, Luís
junho, com muito conflito interno, o PMDB Inácio Lula da Silva, foi eleito presidente
decidiu coligar-se com os tucanos, escolhen- (VAROGA e FORNES, 2003).

329
Os partidos políticos

330
TABELA 9 . Desempenho dos partidos políticos mais importantes, eleições municipais de 2000 versus 2004.*
Em 2002, 15 governadores disputaram a para 71; o PMDB, de 83 para 74; o PFL, de
reeleição e oito tiveram êxito. Dessa vez, 13 105 para 84; e o PPB, de 60 para 49 (Tabela
estados realizaram um segundo turno. O PSDB 1). No troca-troca de legendas em janeiro de
elegeu sete – manteve os governos em São Pau- 2003, esses quatro partidos perderam ainda
lo, Goiás, Pará e Ceará e ainda elegeu os go- mais deputados. As bancadas no Senado per-
vernadores de Minas Gerais, Paraíba e maneceram mais ou menos iguais, exceto as
Rondônia. O PMDB reelegeu os governado- do PSDB e do PPB – que caíram de 16 para
res de Pernambuco e do Distrito Federal e ain- 11 e de 4 para 1, respectivamente – e a do PT,
da elegeu os três governadores da região Sul. que dobrou de 7 para 14 (NICOLAU, 2003).
O PT reelegeu os governadores do Acre e Mato Ao longo do ano 2003, houve bastante
Grosso do Sul e conquistou o Piauí. “migração” partidária que reforçou o bloco
A grande surpresa, porém, se deu na elei- de apoio ao presidente Lula. Antes da posse
ção proporcional para a Câmara Federal, na do novo Congresso em 1º de fevereiro, 37
qual o PT obteve a maior bancada, com 91 deputados haviam trocado de legenda e o
deputados – 32 a mais que em 1998. Os par- “bloco Lula” foi de 218 (42,5%) para 252
tidos ligados ao governo Cardoso tiveram (49,1%). Até maio, portanto antes de votar
as suas bancadas reduzidas – o PSDB, de 99 as reformas da previdência e tributária/fiscal,

TABELA 10. Resultados do primeiro turno da eleição presidencial: 6 de outubro de


2002.

331
Os partidos políticos

TABELA 11. Resultados do segundo turno da eleição presidencial: 27 de outubro


de 2002.

o PPB e o PMDB passaram a reforçar a coa- 5.4 O PT chega aos “grotões”


em 2004
lizão Lula que chegou a 370 (72,1%) depu-
tados – semelhante à coalizão do presidente Se a eleição municipal de 2000 foi um
Cardoso em 1995. “prenúncio” da vitória do PT em 2002,
Apesar de algumas dissidências no PT e muitos acharam que o avanço do PT e seus
PMDB, em setembro o governo Lula conse- aliados nas eleições de 2004 poderiam re-
guiu aprovar a PEC da reforma da previdên- forçar as chances para a reeleição de Lula
cia com 355 votos, inclusive com 62 depu- em outubro de 2006.
tados do PSDB e PFL. Estes dois partidos Comparado com as eleições municipais
apoiaram esta reforma, por entender que fa- de 2000 (Tabela 9), a esquerda avançou mais
zia parte da agenda do presidente Cardoso. ainda no pleito de 2004, de 790 municípios
Oito deputados dissidentes do PT foram para 1.257, com 29,5% votos a mais, duas
punidos com 60 dias de suspensão e três fo- vezes maior que o aumento geral (+12,53%).
ram expulsos do partido (junto com a sena- O PT por sua vez dobrou o número de pre-
dora Heloisa Helena) em dezembro. Neste feituras conquistadas (187 para 411, com
mesmo mês, Leonel Brizola rompeu com o 36,65% votos a mais), e o PPS teve um de-
governo Lula e levou “seu” PDT para a opo- sempenho bem positivo (166 para 304 pre-
sição. No final de 2004, o senador Roberto feituras, com 40,98% votos a mais). Porém,
Freire (PE) levou o PPS para o mesmo cami- o maior desempenho ficou por conta do PL
nho. Assim, a coalizão Lula sofreu alguma (com 98,34% de votos a mais, conquistou
erosão em 2003 e 2004 (MORAIS e SAAD- 380 prefeituras). O PMDB, PSDB e PFL
FILHO, 2003; SAMUELS, 2004b). elegeram menos prefeitos que em 2000,

332
enquanto o PDT e PTB obtiveram resulta- cidades com 10.000 a 50.000 eleitores, o PT
dos quase iguais aos de 2000. mais que dobrou a sua abrangência (de 60
Nas 26 capitais, a esquerda avançou de para 134), e mais ainda nos chamados
12 para 17 cidades, e de 11 para 23 nas mai- “grotões” (municípios com menos de 10.000
ores cidades. Apesar de também aumentar a eleitores), de 80 para 219 prefeitos. Soman-
sua presença no “Brasil urbano” em 2004, o do o desempenho dos quatro maiores parti-
PT sofreu algumas derrotas significativas – dos na coligação Lula (PT, PTB, PSB e PL)
perdeu São Paulo para o PSDB e Porto Ale- cresceu de 524 para 826 municípios nos
gre para o PPS. “grotões”, e de 343 para 465 da próxima
Entretanto, em razão dos programas so- faixa.
ciais do governo Lula que alcançaram famíli- A Tabela 12 mostra que a penetração do
as carentes em todo o Brasil, o PT conseguiu PSDB, PFL, PMDB e PP em cidades meno-
eleger muitos prefeitos em cidades pequenas, res diminuiu consideravelmente. Enquanto
em comparação com 2000 (Tabela 12). Nas o PDT se manteve mais ou menos estável, o

TABELA 12. Eleições municipais (2000 versus 2004) - resultados nas cidades
grandes e pequenas, para os dez maiores partidos.

333
Os partidos políticos

PPS continuou crescendo. O sucesso da po- No final de 2005, a preferência de Lula


lítica macroeconômica e o desempenho elei- nas pesquisas eleitorais caiu bastante a pon-
toral do PT em 2004 previam uma “fácil” to do pré-candidato do PSDB (José Serra)
reeleição para Lula em outubro de 2006 superar o presidente nas simulações de 2º
(HUNTER e POWER, 2005). turno – 50% vs. 36% (Datafolha) e 48% vs.
35% (Ibope). Parecia que a reeleição do pre-
sidente Lula já estava perdida (ATTUCH,
5.5 A reeleição de Lula em 2006
2006; WAINWRIGHT e BRANFORD,
Em 2005, o presidente Lula viu as 2006).
chances de sua reeleição abaladas, devido a: Porém, no início de 2006, Lula retomou
1) a eleição de um representante do chama- a liderança nas pesquisas, especialmente de-
do “baixo clero” – deputado Severino Ca- pois que o PSDB indicou o governador Ge-
valcante (PP-PE) – como presidente da Câ- raldo Alckmin como candidato à Presidên-
mara dos Deputados em fevereiro; e 2) o cia da República, em março (A. SOUZA,
escândalo do “mensalão” que explodiu em 2006; The Economist, 2006). Com a desis-
maio. tência dos candidatos Anthony Garotinho
Cavalcante foi eleito porque o PT lan- (PMDB), Roberto Freire (PPS) e Enéas Car-
çou dois candidatos à Presidência da Câma- neiro (Prona), a campanha centrou-se na
ra, desencadeando a derrota, no segundo “dupla” Lula versus Alckmin, sendo que os
turno, do deputado Eduardo Greenhalgh outros candidatos, senadora Heloisa Hele-
(PT-SP) por uma grande margem. O presi- na (PSoL) e senador Cristovam Buarque
dente da Câmara do Deputados foi forçado (PDT), não decolaram como concorrentes.
a renunciar, porém, sete meses depois, após No final de setembro, tudo indicava que
alguns casos de corrupção se tornarem pú- Lula seria reeleito no 1º turno, pois liderava
blicos. Desta vez, o presidente Lula proibiu com uma margem de 15 pontos sobre
o PT de lançar candidato e apoiou o deputa- Alckmin com uma projeção de 55% dos vo-
do Aldo Rebelo (PCdoB-SP) que venceu o tos válidos. Na última hora, porém, pesou a
candidato da oposição, deputado José avaliação negativa do eleitorado sobre o cha-
Thomaz Nonó, por uma apertada maioria. mado “Caso do Dossiê” e o presidente obte-
Mas, as acusações sobre uma “rede de ve 48,61% dos votos válidos com apenas 7
corrupção” operada pelas lideranças de par- pontos à frente de Geraldo Alckmin.
tidos da coalizão governista tiveram um im- Apesar de uma campanha em favor do
pacto muito maior. Dos 19 deputados acu- voto nulo (ou branco) como protesto, somen-
sados e julgados pelo Conselho de Ética da te 8,41% destes votos foram apurados –
Câmara, 4 renunciaram aos mandatos, 3 fo- menos que os 10,39% dados em 2002. Os
ram cassados – inclusive o deputado José candidatos do PSoL e PDT receberam 9,49%
Dirceu (PT-SP), o todo-poderoso Chefe da dos votos válidos, muito menos que o de-
Casa Civil, e o líder do PTB, deputado sempenho de Anthony Garotinho (PSB) e
Roberto Jefferson (RJ) – e o resto foi absol- Ciro Gomes (PPS) em 2002 (29,84%). Nes-
vido por voto secreto no plenário ta última fase da campanha, Alckmin havia
(CAVALCANTI, 2005; FLYNN, 2005; avançado bastante e parecia que entraria no
NUNES, 2005; WAINWRIGHT, 2005). 2º turno num embalo ascendente.

334
TABELA 13. Resultado do primeiro turno da eleição presidencial:
1o de outubro de 2006.

O 2º turno teve 2,8 milhões de votos a ou branco no 1º turno, uma outra parte veio
menos que o 1º turno e menos votos nulos e de alckmistas do 1º turno. A previsão quan-
brancos (6,04%). Aparentemente, esta maior to ao desempenho de Alckmin que vinha
abstenção ajudou Lula vencer com 60,83% “embalado” do 1º turno não se confirmou.
dos votos válidos, com 11,6 milhões de vo- Várias análises apontaram a cobertura de
tos a mais, enquanto Alckmin recebeu 2,4 programas “assistencialistas” do governo Lula,
milhões de votos a menos (39,17%). Além como o Bolsa Família, que atingia 11 milhões
de transferências de uma parte considerável de famílias (uns 40 milhões de eleitores), como
de eleitores de H. Helena e C. Buarque para um mecanismo de forte apoio à reeleição do
Lula e talvez até dos que haviam votado nulo presidente, além da macroeconomia (baixa

335
Os partidos políticos

TABELA 14. Resultado do segundo turno da eleição presidencial:


29 de outubro de 2006.

inflação, mais acesso ao crédito, menos de- Apenas sete partidos conseguiram ultra-
semprego etc.) (HALL, 2006). Houve uma passar a Cláusula de Barreira que vigorou
forte correlação entre o nível socioeconômico em 2006 – pelo menos 5% dos votos váli-
do município, medido pelo IDH (Índice de dos em nível nacional e 2% em pelo menos
Desenvolvimento Humano apurado pelo 9 estados (Tabela 15). Porém, em outubro e
PNUD) e o voto lulista. Em 1994 e 1998, novembro de 2006, três outros partidos
havia fortes correlações entre a votação de conseguiram ultrapassar esta barreira atra-
Lula para presidente e a votação petista para vés de: uma incorporação (do PAN pelo
deputado federal – +0,602 e +0,527. Mas, PTB); e duas fusões – do PL com Prona e
em 2002, esta relação foi um pouco mais fra- PTdoB (para formar o Partido da Repúbli-
ca (+0,462). E, em 2006, esta relação prati- ca) e do PPS com PMN e PHS (para formar
camente desapareceu (-0,193). O presidente o Movimento Democrático) – destacados
havia se “descolado” do PT (HUNTER e na Tabela 15. Assim, dez partidos ultrapas-
POWER, 2007; MONCLAIRE, 2007). saram a barreira e poderiam representar
Contrariando as expectativas, o PT re- seus deputados no Congresso Nacional, en-
cebeu a maior votação para deputado fede- quanto os outros seis ficariam sem banca-
ral (15,01%), mas, em função das desigual- das e lideranças. Mas, alguns destes logo
dades regionais (como visto na Tabela 6 para pediram uma ADIn (Ação Direta de
1994), o PT elegeu 81 deputados enquanto Inconstitucionalidade) no STF contra esta
o PMDB com 14,57% dos votos elegeu 89. “limitação”.

336
TABELA 15. Desempenho dos partidos políticos na eleição proporcional para a
Câmara dos Deputados em 2006, frente à Cláusula de Barreira.

337
Os partidos políticos

No dia 7 de dezembro de 2006, o STF somente vigoraria para as eleições de 2010,


julgou este caso e unanimemente declarou o já que o Congresso não havia respeitado o
Art. 13 da Lei 9.096/95 [a cláusula de bar- Art. 16 da Constituição de 1988, que proíbe
reira] inconstitucional por “discriminar” os alterações nas regras eleitorais um ano an-
partidos menores. Na verdade, logo que esta tes do próximo pleito. Porém, o próprio
lei foi aprovada em 1995, o PPS e o PSC TSE, tendo imposto a verticalização em
entraram com duas ADIn – Nº 1351 e Nº março de 2002, também não havia respei-
1354, respectivamente, em outubro daquele tado esse prazo.
ano. Assim, onze anos e três eleições depois, Antes da verticalização, em 1994 e 1998
finalmente o STF decidiu contra a cláusula a média de coligações por estado era de 2,67
de barreira. O Congresso havia adiado o fun- e 2,93, respectivamente, subindo para 5,19
cionamento da cláusula duas vezes, em 1998 em 2002 e 2006, com 19 estados com mais
e 2002, mas deixou esta medida vigorar para de 5 coligações. Então, o primeiro efeito foi
2006. Inicialmente, parecia que aqueles oito aumentar o número de coligações para de-
partidos continuariam juntos nas três fusões putado federal (FLEISCHER, 2006b).
efetivadas, mas, em menos de uma semana Como visto nas Tabelas 1 e 15, a
após a decisão do STF, o PMN decidiu sair verticalização não reduziu o número de par-
do recém criado Movimento Democrático tidos na Câmara dos Deputados (que ele-
(MD) e assim conservar seus 21 anos de his- geram pelo menos um deputado), ao con-
tória e o PPS abandonou esta idéia de fusão. trário, aumentou para 21 partidos em 2006.
Quais foram as conseqüências para os par- Por outro lado, não produziu a desejada
tidos políticos da chamada “verticalização” das verticalização entre coligações presidenci-
coligações (em 2002 e 2006)? A verticalização ais e estaduais. Por exemplo, o PSDB e PFL
obrigava partidos coligados na eleição presi- se coligaram para apoiar a candidatura de
dencial a replicarem essas coligações no nível Geraldo Alckmin para presidente, mas estes
estadual, para evitar coligações “esdrúxulas” dois partidos replicaram esta coligação em
(na justificativa do TSE em 5 de março de apenas 13 estados. Já a coligação PT-PCdoB
2002).2 Em primeiro lugar, o número de coli- foi replicada em 25 estados, e recebeu a ade-
gações nos 27 estados praticamente dobrou são do PSB (que não lançou candidato à Pre-
com a verticalização (Tabela 16). sidência) em 15 estados. O PPS de Roberto
Logo depois, ainda em 2002, a Câmara Freire também não participou de coligação
dos Deputados iniciou a tramitação de uma presidencial, mas preferiu se coligar com o
PEC para anular a verticalização, mas a PSDB-PFL em 11 estados – e em nenhum
Emenda Constitucional (EC 52) somente foi estado com o PT-PCdoB.
aprovada em 8 de março de 2006. Em junho Aparentemente, a estratégia do maior
do mesmo ano, o TSE decidiu que a emenda partido (PMDB) deu certo em 2006 – não

2. Respondendo a uma “consulta” do então Deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), o TSE interpretou o Artigo 6º
da Lei Eleitoral nº 9.504 de 30 de setembro de 1997, o que resultou na “imposição” da norma da verticalização
sete meses antes do pleito daquele ano.

338
TABELA 16. O impacto da verticalização sobre as coligações: 1994 e 1998 versus
2002 e 2006.

lançou candidato à Presidência e tampouco 38,89% e 34,09%, respectivamente (DIAP,


participou de uma coligação, assim ficando 2006).
“livre” para participar das coligações que
mais lhe conviria nos estados – sete com o
PSDB-PFL, cinco com o PT-PCdoB, e sozi- 6. Conclusão: para onde vai
o sistema partidário brasileiro?
nho nos outros 15 estados. Em outubro de
2006, o PMDB elegeu o maior número de Como em 1994-1995 e 1998-1999, em
deputados federais (89) e governadores (7) 2002-2003 houve uma grande “migração”
e obteve o índice de reeleição mais alto de deputados trocando de legenda para in-
(64,56%), enquanto o PL e o PTB tiveram tegrar a coalizão que apoiava o novo gover-
os mais baixos índices (grande renovação) – no Lula. Estes “migrantes” não ingressaram

339
Os partidos políticos

no PT, mas foram levados principalmente grande proliferação de uns 40 partidos no


para o PL e PTB, partidos mais conservado- Bundestag (SARTORI, 1996; W. G. SAN-
res vinculados ao governo. Estas agremiações TOS, 2007).
praticamente dobraram as suas bancadas – Com a “lista fechada”, os partidos políti-
PTB, 26 42 e PL, 26 40 – em 2003. cos teriam um controle maior sobre suas ban-
No final daquele ano, uma comissão es- cadas e mais “fidelidade partidária”. Ao mes-
pecial da Câmara dos Deputados aprovou mo tempo, se fosse adotado o mecanismo da
uma reforma política (PL 2679/2003) que Ley de Cupos da Argentina (1991) para a lis-
teria produzido um grande impacto sobre os ta fechada, os partidos seriam obrigados a
partidos no pleito de 2006: 1) a lista fecha- inserir uma mulher candidata a deputado pelo
da na eleição proporcional para deputado menos na 3ª, 5ª e 7ª posições em cada lista, e
federal; e 2) a adoção de “federações” de isto poderia triplicar os 8,8% de deputadas
partidos no lugar de coligações. Estas novas presentes na Câmara dos Deputados em 2007.
regras teriam reduzido consideravelmente a Em 2006 2007, a “migração partidá-
proliferação de partidos – principalmente as ria” continuou como se pode ver na Tabela
“legendas de aluguel” organizadas para pro- 1. Entre os eleitos em 1º de outubro de 2006
mover um ou dois políticos – e teriam elimi- e a posse dos deputados em 1º de fevereiro
nado por completo a “migração” partidária. de 2007, uns 20 trocaram de legenda (me-
Porém, percebendo que seriam prejudi- nos que em 2002-2003) – PL/PR, 23 34;
cados pelos critérios propostos para a com- PMDB, 89 91; PFL, 65 62; e PSDB, 66
posição da lista pré-ordenada de candidatos ---63 – por exemplo. Houve também migra-
em 2006, que dariam prioridade para os elei- ção de senadores que transformaram o
tos em outubro de 2002 em detrimento aos PMDB na maior legenda, 15 20; enquanto
“migrantes”, o PTB, o PL e o PP (com 143 as bancadas dos partidos de oposição foram
deputados) ameaçaram boicotar a agenda do reduzidas – PFL, 18 17; e PSDB, 15 13.
governo Lula em 2004, caso este Projeto de Assim, o bloco governista ficou com uma
Lei fosse tramitar na Câmara. E assim, esta maioria de 353 (68,8%) na Câmara, e com
proposta de reforma ficou engavetada uma maioria mais apertada de 49 (60,5%)
(FLEISCHER, 2004). no Senado.
Se no Brasil a cláusula de barreira (5% Na Câmara, o PT fez um acordo com o
dos votos válidos) realmente “barrasse”, PMDB para ficar com a Presidência em 2007-
como na Alemanha, onde os partidos que 2009, e o PMDB ficará no período de 2009-
não alcançam a barreira não elegem nin- 2011. Por uma margem pequena, o deputa-
guém, nas eleições de 2006, sete ou talvez do Arlindo Chinalgia (PT-SP) derrotou o
dez partidos estariam representados no Con- deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) que ten-
gresso em 2007, em vez de 21 (Tabela 15). tava a reeleição. No Senado, o senador Renan
A Alemanha colocou esta barreira muito for- Calheiros (PMDB-AL) conseguiu se reeleger
te na sua Lei Fundamental em 1949, por porque o bloco governista estava mais uni-
entender que o sistema de representação pro- do do que na Câmara.
porcional sem uma cláusula de barreira du- Das possíveis fusões de partidos para es-
rante a República de Weimar permitiu uma capar dos impactos da cláusula de barreira

340
previstas na Tabela 15, apenas ocorreu a do partidos com menos recursos e os grandes e
PL com o Prona para formar o PR (Partido médios com mais, de um modo geral, con-
Republicano). As outras fusões previstas não forme o exemplo abaixo.
foram concretizadas depois que o STF de- Ao mesmo tempo, o PFL deve realizar
clarou a cláusula de barreira inconstitucional uma convenção nacional de março para
(porque criaria deputados de “primeira” e “refundar” o partido e talvez mudar o
“segunda” classe na Câmara dos Deputados). nome para Partido Democrata. O PSDB
Em fins de janeiro de 2007, o TSE mo- também pensa numa “refundação” com uma
dificou a fórmula para a alocação do fundo reorientação mais à esquerda. Finalmente, em
partidário entre os 28 partidos habilitados julho de 2007, o PT planeja um Congresso
de uma maneira que beneficiaria os peque- Nacional do partido para estabelecer novas
nos partidos e prejudicaria as grandes e mé- diretrizes para as eleições em 2008 e 2010.
dias legendas. Num esforço raro no Congres- É possível que, em 2007, o Congresso
so brasileiro, os grandes partidos (governo e aprove alguma reforma política que produ-
oposição) – PMDB, PT, PFL e PSDB – se ziria algumas mudanças em relação ao siste-
uniram para aprovar em 15 de fevereiro um ma partidário, no sentido de fortalecer os
Projeto de Lei “corrigindo” esta nova impo- partidos e reforçar a fidelidade e coesão par-
sição do TSE em “legislar” normas eleito- tidária no Legislativo. Por outro lado, com
rais/partidárias. Embora esta “correção” não um número menor de partidos, provavel-
restabelecesse totalmente a fórmula que vi- mente seria mais fácil operar o “presidencia-
gorava em 2006, deixou os pequenos e micro lismo de coalizão”.

TABELA 17. Distribuição do Fundo Partidário, antes (2006) e depois (2007) da


intervenção do TSE em favor dos partidos pequenos.

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349
Glossário

AIB Ação Integralista Brasileira PRP Partido da Representação Popular


Arena Aliança Renovadora Nacional (Plínio Salgado, 1945-1965)
ARS Aliança Republicana Socialista PRP Patido Republicano Populista
(Adhemar de Barros, 1945-1947)
ED Esquerda Democrática
PRP Partido Republicano Progressista (1991-??)
LEC Liga Eleitoral Católica
PRs Partidos Republicanos Estaduais (1890-1930)
MDB Movimento Democrático Brasileiro
PRS Partido ds Reformas Sociais (1990-1991)
MTR Movimento Trabalhista Renovador
PRT Partido Rural Trabalhista
PAN Partido Agrário Nacional (1945-1946)
PRTB Partido Renovador Trabalhista Brasileiro
PAN Partido dos Aposentados da Nação (1997-??)
(1994-??)
PCB Partido Comunista Brasileiro (1945-1949,
PSB Partido Socialista Brasileiro
1985-1993)
PSC Partido Social Cristão
PCB Partido Comunista Brasileiro (1996-??)
PSD Partido Social Democrático
PCdoB Partido Comunista do Brasil
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PCO Partido da Causa Operária (1997-??)
PSDC Partido Social Democrata Cristão (1997-??)
PD Partido Democrático (de São Paulo)
(1926-1934) PSL Partido Social Liberal
PDC Partido Democrata Cristão PSoL Partido Socialismo e Liberdade (2004-??)
PDS Partido Democrático Social (1980-1993) PSP Partido Social Progressista
PDT Partido Democrático Trabalhista PST Partido Social Trabalhista
PFL Partido da Frente Liberal PSTU Partido Socialista dos Trabalhadores
Unificados
PHS Partido Humanista de Solidariedde (2000-??)
PT Partido dos Trabalhadores
PJ Partido da Juventude
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
PL Partido Liberal (1985-2006)
PTC Partido Trabalhista Cristão (1990-??)
PL Partido Libertador (1945-1965)
PTsoB Partido Trabalhista do Brasil (1996-??)
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PTN Partido Trabalhista Nacional
PMN Partido da Mobilização Nacional (1985-??)
PTR Partido Trabalhista Renovador (1990-1991)
PP Partido Popular (1980-1982)
PV Partido Verde
PP Partido Populista (1993-1995)
UDB União Democrática Brasileira
PP Partido Progressista (2003-?)
UDN União Democrática Nacional
PPB Partido Progressista Brasileiro (1995-2003)
VS Vanguarda Socialista
PPB Partido Proletário do Brasil (1945-1947)
PPR Partido Progressista Renovador (1993-1995)
PPS Partido Popular Sindicalista (1947-1947)
PPS Partido Popular Socialista (1993-??)
PR Partido Republicano (1945-1965)
PR Partido Republicano (2006-??)
PRB Partido Republicano Brasileiro (2005-??)
PRN Partido da Renovação Nacional (1989-2000)
Prona Partido da Reedificação da Ordem Nacional
(1898-2006)
Capítulo 5
Eleitorado brasileiro:
composição e grau de participação

MÔNICA MATA MACHADO DE CASTRO

Desde 1985, quando foi instituído o di- putados), os deputados estaduais, que for-
reito de voto dos analfabetos, pode-se dizer mam as Assembléias Legislativas dos esta-
que existe de fato o sufrágio universal no Bra- dos, e os vereadores, que compõem as Câ-
sil: o corpo eleitoral passou a ser constituído maras Municipais. Com exceção do cargo
por todos os cidadãos maiores de 18 anos, de senador, todos os demais são renovados
independentemente da escolarização. A úni- através de eleição a cada quatro anos, sendo
ca restrição que se manteve, então, foi a permitida a reeleição para os cargos execu-
proibição da participação eleitoral dos ca- tivos somente uma vez. O mandato dos se-
bos e soldados. Posteriormente, a Constitui- nadores é de oito anos e o eleitor escolhe, de
ção Federal de 1988 permitiu o alistamento quatro em quatro anos, um terço ou dois
dos brasileiros maiores de 16 e menores de terços dos membros do Senado Federal.
18 anos e dos cabos e soldados, com exce-
ção dos conscritos (recrutados) durante o ser-
1. A composição do eleitorado
viço militar obrigatório. O eleitorado é com-
posto hoje por todos os brasileiros maiores A população inscrita para votar em 2006
de 16 anos, sendo o voto obrigatório para foi de 126 milhões de eleitores, desigualmen-
os alfabetizados maiores de 18 anos e facul- te distribuídos em termos regionais e sociais.
tativo para os analfabetos, os maiores de 16 Considerando a divisão do país nas regiões
e menores de 18 anos e para os maiores de geográficas, verifica-se que o Sudeste concen-
70 anos de idade; entre os maiores de 16 tra a maior proporção de eleitores, 43,6%,
anos só continuam sem direito de votar os vindo, em seguida, o Nordeste, com 27,1%,
cabos e soldados recrutados durante o servi- o Sul, com 15,1%, estando somente 7,1% dos
ço militar obrigatório. eleitores no Centro-Oeste e 7,0% na Região
O eleitor escolhe, através do voto direto Norte, proporções bastante semelhantes àque-
e secreto, os mandatários do Poder Execu- las de 2002. A maioria do eleitorado é do
tivo – presidente e vice-presidente da Re- sexo feminino (51,5%) e tem entre 25 e 59
pública, governadores e vice-governadores anos (65,7% do eleitorado), provavelmente
dos estados, prefeitos e vice-prefeitos dos coincidindo, em termos de faixa etária, com
municípios – e os membros do Poder a população economicamente ativa.
Legislativo: os senadores e deputados fede- Um dado importante para analisar a
rais, que, em conjunto, constituem o Con- heterogeneidade social do eleitorado bra-
gresso Nacional (Senado e Câmara dos De- sileiro encontra-se na Tabela 1, que traz sua

349
Eleitorado brasileiro: composição e grau de participação

distribuição por sexo e grau de instrução em Considerando-se a distribuição dos elei-


2006, segundo o Tribunal Superior Eleito- tores por grau de instrução nas regiões geo-
ral (TSE).1 Considerando os eleitores que gráficas do país, observa-se que, no Nordes-
afirmam somente saber ler e escrever como te, nada menos de 40,25% são analfabetos
“analfabetos funcionais”, pode-se verificar ou somente sabem ler e escrever, no Norte,
que 24,2% dos homens e 22,7% das mulhe- 39,19% dos eleitores estão nessas categorias,
res são praticamente analfabetos; 60,62% no Centro-Oeste 15,34%, no Sudeste
dos eleitores do sexo masculino e 55,99% 15,62% e no Sul 14,18%. Mais uma vez fica
dos eleitores do sexo feminino têm até o clara a desigualdade social e geográfica do
ensino fundamental incompleto; de outro eleitorado brasileiro. Isso certamente tem
lado, somente 5,65% do eleitorado tem cur- conseqüências nos resultados eleitorais.
so superior completo ou incompleto. A gran- Considerando-se os dados disponíveis
de maioria tem grau baixo de escolaridade. sobre o tamanho da população e do eleito-
Somente uma minoria do eleitorado tem rado brasileiro nas últimas décadas, nota-se
educação de nível superior. que houve uma expansão muito grande da

TABELA 1. Eleitorado brasileiro por sexo e grau de instruçao (%), 2006.

1. Na primeira edição desse trabalho utilizei os dados do censo demográfico de 2000 como indicadores da
distribuição do eleitorado brasileiro por sexo e grau de instrução, já que os Tribunais Eleitorais não atuali-
zam a informação sobre os anos de estudo dos eleitores, depois de inscritos. Como as informações do censo
provavelmente já não são próprias para indicar o eleitorado em 2006, utilizo, nessa nova versão, os dados
do TSE. É interessante chamar a atenção para o fato de que, se tomamos a proporção de eleitores com até
ensino fundamental incompleto, os dados atuais, do TSE, são muito semelhantes aos tirados do censo de
2000, apresentados na versão anterior.

350
cidadania eleitoral. De 1945 a 2000, a po- do eleitorado diminuiu (8,7% em 1958) ou
pulação cresceu de 46 milhões para quase teve crescimento baixo em comparação com
170 milhões de habitantes, com um aumen- o período (17,73% em 1986, apesar da in-
to de 268,58%, enquanto o eleitorado, que clusão dos analfabetos). Nos anos eleitorais
era de 7,4 milhões em 1945, passou a 115 que se seguiram aos recadastramentos, entre-
milhões em 2002, com um crescimento, no tanto, o eleitorado sempre teve um crescimen-
período, de 1.453,7%; em 1945, somente to maior em relação à eleição anterior. Essa
16,10% da população estava inscrita para informação sugere que os dados dos tribu-
votar, ao passo que, em 1998, a porcenta- nais eleitorais nesses anos podem não
gem do eleitorado em relação à população corresponder ao eleitorado real, por incluir
era de 61,03%, segundo os dados de Eduar- pessoas falecidas e títulos duplicados por
do Martins de Lima (2004:149). Tomando- mudança de domicílio eleitoral ou por má-fé
se o eleitorado inscrito em 2002 como pro- (LIMA, 2004:148).
porção da população em 2000, verifica-se A resposta ao primeiro problema pode,
que 67,88% dos brasileiros tinham, então, em parte, ser dada considerando-se a análi-
cidadania eleitoral. Em relação a 2002, o elei- se feita por Antônio Carlos Alkimin dos Reis
torado brasileiro cresceu cerca de 9,5%, cons- e Afonso Calvo Rangel (1995), com base
tituindo, em 2006, 67,15% da população es- nos dados da PNAD – Pesquisa Nacional
timada pela Fundação Instituto Brasileiro de por Amostragem de Domicílios da FIBGE,
Geografia e Estatística (FIBGE). Esses últimos de 1988. Segundo os autores, 90% da po-
dados sugerem que a proporção do eleitora- pulação de 18 anos ou mais possuía título
do em relação à população chegou, no Brasil, de eleitor em 1988, mas os 10% restantes
ao teto possível, considerando-se a pirâmide estavam distribuídos de forma desigual,
etária da população brasileira. social e regionalmente:

A exclusão de segmentos popu-


2. Cidadania eleitoral e participação
lacionais (...) atinge setores menos fa-
Os dados sobre o tamanho do eleitorado vorecidos socialmente, como os mais
brasileiro são extremamente relevantes, em- jovens e os mais idosos, as mulheres,
bora duas questões devam ser levantadas. A os negros, aqueles com menores ní-
primeira delas é até que ponto a proporção veis de renda e [menos] escolarizados,
do eleitorado em relação à população pode os inativos e não incorporados ao
ser considerada indicador do grau de partici- mercado de trabalho formal, e os re-
pação política, uma vez que o alistamento e o sidentes nas áreas rurais e regiões
voto são obrigatórios para a grande maioria menos desenvolvidas do país. Assim,
da população no Brasil. A segunda questão é até o nível mais elementar da cida-
sobre a confiabilidade dos dados a respeito dania eleitoral – o acesso formal ao
do tamanho do eleitorado no país: ao se voto – revela padrões de desigualda-
examinar a seqüência histórica, nota-se que, de e discriminação, tão característi-
nos anos eleitorais imediatamente posterio- cos da sociedade brasileira. (p.324)
res aos dois recadastramentos realizados no
país desde 1945 (1958 e 1986), o tamanho

351
Eleitorado brasileiro: composição e grau de participação

Parte da população, apesar de ter direito na Bélgica, compareceram às últimas eleições,


e obrigação de se alistar para votar, não o em média, 93% dos eleitores e, na Itália, 89%
faz, e os que não se inscrevem como eleito- (LIMA, 2004:172-3). Em países em que o
res são socialmente mais marginalizados do voto não é obrigatório, comparecem para
que os alistados. Esse fato permite justificar votar, em média, proporções menores de elei-
que se considerem o tamanho do eleitorado tores. Os dados a respeito do Brasil mostram
e sua proporção em relação à população a diminuição da proporção de comparecimen-
como indicadores, entre outros, do grau de to nos anos eleitorais subseqüentes aos
participação política da população. recadastramentos. Entretanto, essa diminui-
Quanto ao segundo problema, uma so- ção não pode ser tomada como indicador de
lução possível é tomar somente os dados mais menor envolvimento da população no pro-
confiáveis, aqueles dos anos eleitorais ante- cesso eleitoral naqueles anos, porque prova-
cedidos por recadastramentos. Eles mostram velmente é devida, pelo menos em parte, ao
que se sustenta a afirmação de que houve, superdimensionamento do tamanho do elei-
nas últimas décadas, um aumento expressi- torado, como sugerido acima.
vo do eleitorado e de sua proporção em re- Um dos melhores indicadores do grau de
lação à população: de 13,8 milhões de elei- participação eleitoral no Brasil talvez seja a
tores, em 1958, chega-se a 69,3 milhões em proporção dos votos válidos em contraste
1986, um crescimento de 503%. O eleitora- com os brancos e nulos. Votos em branco e
do representava, em 1958, somente 22% da votos nulos, embora possam ser, para parte
população, passando para 50% em 1986. do eleitorado, sobretudo em certos anos elei-
Segundo os dados organizados por Eduardo torais, uma forma de protesto contra o go-
Martins de Lima, em todos os anos eleito- verno, os políticos e as condições de vida de
rais de 1945 a 1998, com exceção de 1958, modo geral, são certamente indicadores de
o eleitorado cresceu sempre, em relação ao desinteresse pelo processo político e, espe-
ano anterior, numa proporção maior que o cialmente, de falta de informação a respeito
crescimento da população (2004:169). dos partidos e candidatos. Dados de surveys
Outro indicador do grau de participação realizados em diversas ocasiões e lugares no
eleitoral, também considerado na produção Brasil apontam, em geral, que os entrevista-
internacional, é o comparecimento às elei- dos indecisos e os que afirmam pretender
ções, em contraste com a abstenção. Como votar em branco e nulo estão, em maior pro-
o voto é obrigatório no Brasil, também essa porção, entre os de posição social baixa em
medida deve ser analisada com cuidado. termos de diversos indicadores, como esco-
Considerando-se, mais uma vez, somente os laridade e renda familiar, e têm, em grande
anos eleitorais em que se tem mais seguran- maioria, baixo grau de sofisticação política:
ça quanto ao tamanho do eleitorado, pode- interesse, informação e envolvimento polí-
se afirmar que, no Brasil, o comparecimen- ticos (CASTRO, 1994, capítulos 3 e 4). Jus-
to eleitoral é semelhante ao de outros países tifica-se, portanto, tomar a proporção de
democráticos em que o voto também é obri- votos válidos em oposição aos brancos e
gatório: em 1958, 92% do eleitorado brasi- nulos como indicador do grau de participa-
leiro apresentaram-se para votar na eleição ção da população no processo eleitoral.
para a Câmara dos Deputados e Assembléias Examinando-se essa proporção em rela-
Legislativas e, em 1986, 95%, ao passo que, ção ao comparecimento nas diversas eleições

352
para a Câmara dos Deputados, as Assembléias de candidatos é muito menor do que para os
Legislativas, a Presidência da República e o cargos legislativos; além disso, certamente o
governo dos estados, desde 1945, nota-se que eleitorado se envolve, tem mais interesse e
as porcentagens de votos brancos e nulos são recebe maior quantidade de informação so-
sempre menores para os cargos executivos bre os candidatos a cargos executivos. Esses
em comparação com os cargos legislativos. fatores provavelmente explicam, em parte,
A proporção de votos válidos nas eleições a proporção maior de votos válidos nas elei-
presidenciais de 1945 a 1989 (incluindo o ções para a Presidência e, em muitos casos,
primeiro e o segundo turnos nesse ano) foi, para os governos dos estados.
em média, de 94% dos eleitores; nas elei- Se considerarmos que os eleitores que
ções de 1994 e 1998 essa proporção baixou, votam nulo e em branco provavelmente não
em média, para 81%; em 2006 a proporção compareceriam para votar se o voto não fosse
de votos válidos foi de 91,58% dos que com- obrigatório no Brasil, é possível tomar a
pareceram no primeiro turno e de 93,96%, porcentagem de votos válidos, agora em re-
no segundo turno. Para os governos dos es- lação ao eleitorado, como indicador do grau
tados, os dados são semelhantes: de 1947 a de participação e comparar esse dado com o
1965, a proporção de votos válidos foi, em comparecimento às últimas eleições em paí-
média, de 94,6% e, de 1986 a 1998, de ses democráticos em que o voto não é obri-
80%. Em 2006, a proporção de votos vá- gatório. Os dados permitem afirmar que,
lidos na escolha dos governadores foi de comparativamente, não é baixa a participa-
89,03%, no primeiro turno, e 89,75%, no ção da população no processo eleitoral no
segundo turno. Para a Câmara dos Depu- Brasil. Considerando-se, mais uma vez, so-
tados e Assembléias Legislativas, a propor- mente os anos eleitorais precedidos do
ção de votos válidos diminuiu sistematica- recadastramento dos eleitores, na eleição de
mente de 1945 (97% e 95%, respectivamen- 1958 a porcentagem de votos válidos em
te) a 1970 (70% e 73% do comparecimen- relação ao eleitorado foi de 83,6% para a
to, respectivamente), aumentou de 1974 a Câmara dos Deputados e de 85,5% para as
1982 – chegando, neste ano, a 85% e 83% Assembléias Legislativas; na eleição de 1986
respectivamente –, caiu novamente, atingin- a participação foi menor: 68,2% e 68,5%,
do seu ponto mais baixo na eleição de 1990 respectivamente. Para o governo dos esta-
(57% e 61%, respectivamente) e aumentou dos, a porcentagem de votos válidos em re-
novamente nas eleições de 1994 e 1998, lação ao eleitorado foi de 81,5% nas elei-
quando foi de 80% para a Câmara dos De- ções de 1958 e 1960 (houve renovação do
putados e de 83% para as Assembléias governador em estados diferentes em cada
Legislativas (LIMA, 2004:172-5). Em 2006, ano) e de 80% em 1986. Na eleição de 1960,
a proporção de votos válidos para Deputa- 75% dos eleitores indicaram um candidato
do Federal foi de 89,32% e para Deputado a presidente e, em 1989, 82%. Esses dados
Estadual, de 89,23%, proporções maiores não diferem muito do comparecimento às
que as anteriores e semelhantes àquelas para últimas eleições em países democráticos em
o cargo de governador. Eleições para cargos que o voto não é obrigatório: como exem-
executivos, especialmente para presidente da plo, 68% dos eleitores compareceram em
República, são mais simples para o eleitor se média em Portugal, 70% na Espanha e no
informar e escolher, uma vez que o número Japão, 76% no Reino Unido, 80% na

353
Eleitorado brasileiro: composição e grau de participação

Holanda, 83% na Dinamarca e 86% na Sué- inconformistas que, entretanto, não se arti-
cia (LIMA, 2004:149). culam de forma coerente com suas opções
eleitorais. Dados de pesquisa realizada em
1989, em Belo Horizonte, mostram que o
3. O diagnóstico do eleitor: eleitorado, quando tem opinião sobre ques-
baixa sofisticação política
tões políticas, tende a atribuir ao seu candida-
Se os resultados oficiais das eleições mos- to ou partido de preferência as suas próprias
tram que o eleitorado brasileiro não tem ca- posições, independentemente das propostas
racterísticas muito específicas em compara- efetivas desses candidatos ou partidos (CAS-
ção aos eleitores de outros países democrá- TRO, 1994:123ss). Os resultados de uma
ticos, os dados de diversos surveys realizados série de pesquisas feitas nos meios acadêmi-
no país, em locais e momentos diferentes, cos brasileiros, desde a década de 1960,
desde a década de 1960, permitem afirmar mostram que a estruturação ideológica do
que a diferença entre o eleitor brasileiro e o voto ou a escolha que parece coerente, do
eleitor médio de outros países de democracia ponto de vista do analista informado, com
estável é principalmente questão de grau: os opiniões eventualmente sustentadas sobre
resultados das pesquisas revelam que, no questões de tipo diverso, comparadas com
Brasil, grande proporção do eleitorado tem as propostas políticas dos partidos e dos can-
baixo grau de participação política em ou- didatos, só foi identificada em alguns luga-
tras dimensões além do voto: nas campanhas res e momentos, para um ou outro item es-
eleitorais e em associações de tipo diverso, pecífico e especialmente entre o eleitorado
por exemplo. Tem, também, baixa informa- de posição social alta, indicada pelos níveis
ção, interesse e envolvimento políticos, ou de escolaridade e de renda familiar. As cor-
baixo grau de sofisticação política, concei- relações encontradas por André Singer en-
to que leva em conta essas três dimensões.2 tre a autocolocação dos entrevistados na es-
É baixo, também, o grau de articulação ou cala que vai da esquerda à direita e seu voto
estruturação ideológica do voto: especial- nas eleições presidenciais de 1989 e 1994
mente as camadas populares mostram pouca não permitem afirmar que o eleitorado bra-
ou nenhuma informação sobre as questões sileiro tem comportamento ideológico no
políticas relevantes nas campanhas eleito- sentido forte do termo, como ideologia po-
rais e não conhecem as propostas dos partidos lítica, uma vez que, como mostra uma série
nem a posição dos candidatos a respeito de pesquisas, a grande maioria do eleitora-
dessas questões; quando têm opinião so- do simplesmente não sabe o que é ser de es-
bre issues de tipo diverso, apresentam, querda e de direita ou tem uma visão tosca,
muitas vezes em maioria, posições críticas e simplificada e equivocada dessas posições;

2. Os conceitos de interesse e de envolvimento político fazem parte da dimensão que R. Neuman chamou de
saliência política, que se refere, de um lado, ao interesse por política e pelas eleições e, de outro, à expo-
sição aos meios de comunicação de massas e à dimensão subjetiva mais afetiva em relação à política que
inclui questões como a preocupação com os acontecimentos políticos, a percepção de que a vida de cada
um é afetada pelos acontecimentos políticos e a opinião diante da afirmação de que a política é algo
incompreensível. Essa segunda dimensão da saliência política de R. Neuman é aqui identificada como
envolvimento político.

354
provavelmente somente entre os eleitores de há muitas décadas. Também nesses casos, o
alta escolaridade e alta sofisticação política comportamento político orientado por ideo-
essas correlações são suficientemente altas logias políticas caracteriza somente os seto-
para que se possa tomar esse fator como res de posição social alta; entre o eleitorado
importante na explicação da decisão do voto popular, a identificação partidária, mesmo
(SINGER, 2000). se estável, não mostra articulação coerente
Esses traços do eleitor brasileiro têm sus- com opiniões a respeito das propostas dos par-
tentado um diagnóstico muito difundido, a tidos e candidatos nas campanhas eleitorais.
respeito do comportamento político dos se- Nesse sentido, o eleitorado brasileiro só
tores populares: esse eleitor, desinformado, poderia ser visto como singular se compara-
apático e sem interesse pela política, se com- do ao modelo de cidadão participativo, po-
portaria de forma volátil, errática, aparente- liticamente envolvido e ideologicamente
mente aleatória; seria um eleitorado, na sua orientado, deduzido dos modelos clássicos
maioria, politicamente amorfo, sem consis- de política democrática, ou se comparado à
tência ideológica, que votaria orientado pela imagem, até certo ponto idealizada, do elei-
identificação direta com um candidato e não tor médio europeu, que votaria ideologi-
com base nos programas e nas propostas dos camente orientado. Em comparação aos
partidos e candidatos. Especialmente nos pe- eleitorados reais de diversas democracias
ríodos de maior instabilidade da estrutura existentes no mundo, a grande diferença é
partidária, com a dificuldade de formação de que, no Brasil, proporção maior do eleito-
identificações partidárias estáveis, o voto das rado tem baixa informação, interesse e
massas populares, a grande maioria do elei- envolvimento no processo político e apre-
torado, seria personalista, não partidário. senta comportamento político não consciente
Nessa situação, o eleitor brasileiro estaria per- e ideologicamente não estruturado. Essas
manentemente sujeito à mobilização e mani- características certamente podem ser
pulação por parte de lideranças políticas de explicadas pelo alto grau de desigualdade
tipo clientelista, eleitoreira e populista. social e de pobreza existente no país: como
Tal diagnóstico em parte se sustenta, mas mostram os dados apresentados acima, gran-
é preciso lembrar que essas características do de proporção do eleitorado brasileiro tem
eleitorado popular dificilmente podem ser baixo grau de escolaridade, o que implica
consideradas específicas do Brasil. Pesquisas maiores deficiências e dificuldades de infor-
feitas em países de democracia antiga e mação e participação política.
institucionalizada, como os Estados Unidos,
ou mesmo em países democráticos euro-
peus, como a França, mostram, também 4. A direção do voto popular
nesses casos, baixos graus de sofisticação
política e de estruturação ideológica do voto Apesar das características do eleitorado
das camadas populares e baixos graus de par- popular brasileiro, os resultados das elei-
ticipação no processo eleitoral (NEUMAN, ções, em especial as majoritárias, em gran-
1986). O voto orientado por propostas po- de parte dos casos podem ser considerados
líticas dos partidos e candidatos é raro mes- consistentes com o que se poderia esperar,
mo em países em que o sistema partidário levando-se em conta a situação social do
tem se mantido sem grandes modificações eleitor. Especialmente as massas populares

355
Eleitorado brasileiro: composição e grau de participação

urbanas, residentes nas maiores cidades do (CARREIRÃO, 2000) ou “voto constitucio-


país, tenderam a um comportamento políti- nal”, baseado na percepção, embora singela
co inconformista, apoiando crescentemente e difusa, de interesses sociais divergentes
os partidos progressistas e de esquerda nos (REIS, 1977:187).
períodos em que o sistema partidário se man- Dados de pesquisas sugerem que se sus-
teve minimamente estável e, especialmente, tenta a afirmação de que essa escolha eleito-
quanto mais desenvolvidas, industrializadas ral oposicionista dos setores populares ur-
e urbanizadas as regiões do país. Exemplos banos se formaria a partir de uma imagem
claros dessa tendência são o apoio crescen- da posição dos partidos ou dos candidatos
te ao Partido Trabalhista Brasileiro e aos em um eixo que, de alguma forma, embora
pequenos partidos progressistas na década pouco sofisticada, representa posições
de 1950, a proporção de identificação par- socioeconômicas divergentes na estrutura
tidária, também crescente, com o Movi- social: esses setores tenderiam a votar na-
mento Democrático Brasileiro no período quele candidato ou partido que identificam
bipartidário do regime autoritário de 1964 como do lado dos pobres, dos trabalhado-
e o aumento sistemático do voto no Partido res, do povo, contra o candidato dos ricos,
dos Trabalhadores desde a sua criação, prin- da elite, do governo. Quando o sistema par-
cipalmente nas maiores cidades das regiões tidário se manteve estável, formaram-se, com
mais desenvolvidas do país. base nessa imagem, identificações partidárias
O comportamento eleitoral conserva- altamente correlacionadas com o voto da
dor, clientelista e deferente em relação aos maioria dos eleitores; nos momentos que se
chefes políticos locais, expresso no voto seguiram às grandes mudanças do sistema
situacionista, tem caracterizado principal- partidário ou quando o quadro partidário
mente as camadas urbanas mais marginali- não se apresentou minimamente estável, o
zadas e especialmente os setores pobres da eleitor popular tendeu a escolher em quem
população das zonas rurais e das pequenas votar com base na imagem, não dos parti-
cidades do interior, principalmente nas re- dos, mas dos candidatos, formada naqueles
giões mais atrasadas do país, onde as dis- mesmos termos.
putas políticas contrapondo famílias e a for- Assim, a maioria do eleitorado de classe
ça dos “coronéis”, embora em declínio, ain- baixa urbana escolhe um partido ou um can-
da vigoram. didato como quem torce por uma equipe
O inconformismo expresso no voto po- popular de futebol; daí Fábio Wanderley Reis
pular urbano recebeu diversas interpretações: ter cunhado a expressão “síndrome do
seria manifestação do protesto da população Flamengo” para identificar esse traço do
contra sua situação de vida (CARDOSO, comportamento eleitoral dos setores urba-
1975), voto plebiscitário, que expressaria uma nos de posição social baixa. Há, de um lado,
avaliação genérica da situação do país certa consistência na busca do lado popular,
(LAMOUNIER, 1980), comportamento sim- mas, de outro, como as escolhas não são fei-
plesmente oposicionista, não-partidário, o tas com base nas propostas políticas de par-
que implicaria volatilidade eleitoral (SAN- tidos e candidatos, a respeito das quais a
TOS, 1977), voto baseado na avaliação que maioria dos eleitores não tem informação,
o eleitor faz do desempenho do governo ou os eleitores podem mudar a direção do voto
das características pessoais dos candidatos de acordo com as circunstâncias (entre ou-

356
tros textos, ver REIS, 1985:16; CASTRO, ção de que, quanto mais central é a posição
1994). A avaliação positiva ou negativa do social do eleitor em termos objetivos (mais
desempenho do governo, associada às op- urbana, socioeconomicamente mais alta,
ções eleitorais nas eleições presidenciais de mais próxima dos centros desenvolvidos e
1989 a 1998 (CARREIRÃO, 2000), prova- industrializados do país) e em termos subje-
velmente está relacionada à percepção sim- tivos (mais informação, envolvimento e in-
ples, vaga, sobre de que lado o governo está: teresse políticos, ou mais sofisticação políti-
do lado dos pobres, dos trabalhadores, ou ca), maiores são sua participação no proces-
dos ricos, da elite. so eleitoral e a consistência ideológica de seu
Nesse sentido, devem-se fazer reservas à voto. Assim, é dos eleitores de posição social
interpretação do comportamento do eleitor alta das áreas rurais e urbanas que mais se
brasileiro como inteiramente errático, volá- pode esperar a articulação coerente entre o
til, aleatório e imprevisível: as preferências voto, a preferência partidária e as opiniões e
eleitorais e partidárias se formam “através avaliações que têm do governo, das propos-
da referência a grandes linhas de clivagem tas partidárias e das diversas questões em
muitas vezes definidas de maneira tosca” debate nos processos político e eleitoral. En-
(REIS e CASTRO, 1992:118), dependendo tre os setores populares urbanos, a preferên-
da situação político-partidária e dos graus cia partidária, quando existe, parece se rela-
de informação, interesse e envolvimento cionar com a imagem dos partidos políticos
políticos do eleitorado. Como os setores e dos candidatos distribuídos no eixo que
populares têm grau baixo de sofisticação representa, de forma simples e tosca, posi-
política, muitas vezes se enganam ou são ções sociais diferentes. O eleitorado de po-
enganados e vêem como representantes dos sição social baixa das zonas rurais e peque-
pobres e dos trabalhadores partidos e candi- nas cidades do interior, especialmente nas
datos que, do ponto de vista do analista in- regiões mais pobres, apresenta ainda um
formado, dificilmente teriam, de fato, essa comportamento político conservador, subor-
posição (CASTRO, 1994, capítulo 5). As- dinado aos chefes políticos locais (entre ou-
sim, a instabilidade do quadro eleitoral tros textos, REIS e CASTRO, 1992).
brasileiro teria origem muito mais no nível Resta esperar que os avanços nas últimas
institucional e nas ações das elites políti- décadas no grau de escolarização da popula-
cas: ela refletiria as sucessivas mudanças do ção jovem brasileira, a manutenção da expe-
sistema partidário e os constantes desloca- riência de participação democrática no país e
mentos dos políticos entre partidos, muitas a diminuição da pobreza e da desigualdade
vezes de posição programática ou ideológi- social resultem no comportamento político
ca diferentes (MELO, 2004). Essa situação crescentemente mais informado e ideologi-
dificulta ou mesmo impede a existência de camente consistente do eleitorado brasileiro.
identificações partidárias estáveis entre os
eleitores, embora os partidos políticos pos-
sam funcionar de maneira coesa no âmbito
parlamentar.
Para concluir, considerando-se o eleito-
rado como um todo, os dados de diversas
pesquisas tendem a sustentar a interpreta-

357
Sugestões de leitura

CARDOSO, F. H. Partidos e deputados em São Paulo: passado e presente. In: LAMOUNIER, B., CARDOSO,
F. H. (Orgs.). Os partidos e as eleições no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
CARREIRÃO, Y. de S. A decisão do voto nas eleições presidenciais no Brasil (1989 a 1998): a importância do voto
por avaliação de desempenho. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
cias Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2000. 255p.
CASTRO, M. M. M. Determinantes do comportamento eleitoral: a centralidade da sofisticação política. Tese
(Doutorado em Ciência Política) – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
IUPERJ, 1994. 239p.
LAMOUNIER, B. O voto em São Paulo, 1970-1978. In: _______. (Org.). Voto de desconfiança: eleições e mu-
dança política no Brasil: 1970-1979. São Paulo: Vozes, 1980.
LIMA, E. M. Sistemas multipartidários e eleitorais democráticos brasileiros em perspectiva comparada: 1945-
1964 e 1985-1998. São Paulo: Annablume / Belo Horizonte: FUMEC, 2004.
MELO, C. R. F. de. Retirando as cadeiras do lugar: migração partidária na Câmara dos Deputados (1985-1998).
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. 216p.
NEUMAN, W. R. The paradox of mass politics: knowledge and opinion in the American electorate. Cambridge:
Harvard University Press, 1986.
REIS, A. C. A. dos, RANGEL, A. C. C. Os desníveis da participação eleitoral no Brasil. In: FIBGE. Indicadores
sociais: uma análise da década de 1980. Rio de Janeiro, 1995. p.317-28.
REIS, F. W. As eleições e o problema institucional (2): a revolução é a geral cooptação. Dados, n.14, 1977.
_______. Mudança política no Brasil: aberturas, perspectivas e miragens. Cadernos DCP, n.7, 1985.
_______., CASTRO, M. M. M. de. Regiões, classe e ideologia no processo eleitoral brasileiro. Lua Nova, n.26,
1992.
SANTOS, W. G. dos. As eleições e a dinâmica do processo político brasileiro. Dados, n.14, 1977.
SINGER, A. Esquerda e Direita no eleitorado brasileiro: a identificação ideológica nas disputas presidenciais de
1989 e 1994. São Paulo: Edusp, 2000.

358
Capítulo 6
Os sindicatos: representação de interesses e
ação política de capital e trabalho no Brasil

ADALBERTO MOREIRA CARDOSO

Apresentação América Latina, caracterizou-se por formas


paternalistas de relações de emprego e
A última década do século passado foi regulação do mercado de trabalho, ambas
palco de intenso processo de judicialização utilizadas pelo Estado como meio para asse-
das relações de classe no Brasil, processo que gurar apoio social e econômico a suas estra-
se mantém nos anos 2000 mesmo depois de tégias de crescimento e industrialização.
mudanças importantes no cenário político. Aquela regulação garantiu, de início, pa-
Por judicialização entende-se a prevalência drões mínimos para as relações individuais
de recursos à Justiça do Trabalho na solução de emprego e, em muitos casos, exigiu a
de conflitos individuais de trabalho, por opo- institucionalização de sindicatos e da nego-
sição a soluções negociais típicas, por exem- ciação coletiva, quase sempre sob rígido con-
plo, dos modelos contratualistas de relações trole do aparato legal público. Com o passar
de classe, como o britânico ou o colombia- do tempo, a regulação se estendeu, os sindi-
no. Para que se tenha uma idéia de montan- catos (de trabalhadores e empregadores) vi-
tes, em 1960, as 105 varas do trabalho exis- veram momentos de maior ou menor força
tentes no país acolheram perto de 136 mil social, maior ou menor controle estatal, a
processos e demandas trabalhistas. Em 1970 negociação coletiva ganhou espaço em algu-
as varas eram 195 e os processos, 465 mil. mas categorias importantes, mas a tônica
Mas em 1998, ápice do crescimento, as 1.109 permaneceu a mesma: a essência do modelo
varas do trabalho existentes receberam cer- é a legislação trabalhista, regulando associa-
ca de 2 milhões de processos trabalhistas.1 ções de capital e trabalho, formas da barga-
Essa avalanche de processos denota muito nha coletiva possível, direitos trabalhistas
mais que mera mudança em montantes. Ela mais ou menos extensos, elementos que, em
representa a realização plena e perversa das 1988, passaram a fazer parte da Constitui-
virtudes do modelo histórico de relações de ção da República.
trabalho entre nós, cuja tônica central é o Esse aspecto das relações de trabalho é
fato de ele ser legislado. quase sempre esquecido entre nós, e dá ori-
Com efeito, o desenvolvimentismo no gem a equívocos de interpretação a respeito
Brasil, como de resto em boa parte da do papel das associações de capital e trabalho

1. Dados colhidos no Tribunal Superior do Trabalho.

359
Os sindicatos: representação de interesses e ação política de capital e trabalho no Brasil

na regulação do mercado de trabalho, bem egressos do campo na economia industrial


como de seu lugar na luta política mais am- em gestação ocorresse sob os cuidados de
pla. Neste trabalho, pretendo discutir esses um Estado benfeitor de feição paternalista.
temas tendo como pano de fundo, sempre A legislação definiu jornada de trabalho de
presente, a idéia central de que o nosso 48 horas semanais, proibição do trabalho de
modelo de relações de trabalho é legislado, menores de 14 anos, regras para o trabalho
aspecto que mostrou sua face mais crua de- insalubre e da mulher, especialmente quan-
pois da Constituição de 1988. Enquanto re- do gestante; normas para dispensa de em-
construo, em grandes pinceladas, os princi- pregados e um mecanismo bastante avança-
pais momentos das relações de classe no país, do de estabilidade no emprego, dentre os
pretendo dar conta das metamorfoses na mais importantes.
composição e nas relações entre organiza- A contraparte essencial dessa legislação
ções de capital e trabalho, de sua conexão trabalhista foi a legislação sindical. Apoiado
com os partidos políticos e com o Estado. na Carta del Lavoro do fascismo italiano, o
governo Vargas editou o Decreto Lei 1.402,
de 1939, a chamada lei sindical, pelo qual se
1. Vargas e o corporativismo
definiu uma estrutura legal de controle dos
Getúlio Vargas montou seu projeto sindicatos altamente eficaz e extensiva. Em
desenvolvimentista a partir de uma idéia de termos gerais, o desenho desse sindicalismo
Estado forte, centralizador e empreendedor, de Estado era o seguinte: os sindicatos eram
capaz de patrocinar a industrialização acele- definidos, predominantemente, por catego-
rada ao mesmo tempo em que, no plano so- ria profissional e tendo como referência geo-
cial, controlava as demandas do operariado gráfica mínima o município. Por exemplo,
industrial emergente. Dois expedientes todos os trabalhadores metalúrgicos de uma
regulatórios foram usados com este último mesma cidade eram membros compulsórios
intuito: de um lado, aperfeiçoou-se progres- de um único sindicato. Havia a possibilida-
sivamente a legislação trabalhista por meio de de constituição de sindicatos por ofícios
de atos de cúpula, baseados na legislação (torneiros mecânicos, por exemplo), mas
social e trabalhista dos países capitalistas estes foram a exceção, por quase todo o pe-
ocidentais; de outro lado, regulou-se à ríodo de vigência da lei. Para constituir-se, o
minúcia os associacionismos operário e ca- sindicato tinha que receber a anuência do
pitalista, tornando-os fortemente dependen- Ministério do Trabalho, o que obedecia a
tes da burocracia estatal. Tudo isto emoldu- mecanismos bastante controlados. Um esta-
rado pela ideologia da paz social, isto é, do tuto único, definido pelo Estado, regia a vida
imperativo da convivência pacífica entre ca- associativa. As eleições eram controladas pelo
pital e trabalho como base do desenvolvi- poder público. As funções que o sindicato
mento. deveria desempenhar eram claramente
Quanto à legislação trabalhista, entre estabelecidas, inclusive em termos de quais
1931 e 1943 o governo Vargas produziu um percentuais da receita sindical deveriam ser
sem número de regulamentos destinados a destinados a quais atividades sindicais. A
arbitrar as formas de uso do trabalho, de tal sobrevivência financeira dos sindicatos es-
modo que a incorporação dos trabalhadores tava também determinada pelo Estado, da

360
seguinte maneira: cada trabalhador era (e ain- nós. O poder real, na estrutura de relações
da é) membro compulsório do sindicato de classe Varguista, estava com os sindica-
municipal, e um dia de seu salário por ano tos, e as instâncias superiores dos traba-
era compulsoriamente destinado à sustenta- lhadores eram (e continuam sendo) órgãos
ção não apenas do sindicato, como também eminentemente burocráticos, sem poder
do restante da estrutura corporativa. Isto é, real de contratar com os empregadores. Já
o sindicato existia independentemente da as federações e confederações patronais,
vontade ou mobilização dos trabalhadores como veremos, tiveram e continuam ten-
(ou empresários) que representava. do importância.
Apenas esse sindicato assim constituído Toda essa estrutura era financiada pelo
tinha o direito de representar os trabalhado- imposto sindical descontado do trabalhador
res diante dos patrões e do Estado. Essa era ou do empregador. O imposto era recolhido
a base da pirâmide sindical. A instância se- pelo Ministério do Trabalho, que repassava
cundária compunha-se (e em parte ainda se 55% aos sindicatos, 15% às federações e 5%
compõe) das federações, congregando pelo às confederações. O próprio ministério,
menos dois sindicatos municipais e também como órgão regulador, ficava com os outros
únicas por ramo da economia. Uma vez cons- 25%. Vale mencionar que os sindicatos, além
tituída e reconhecida pelo Estado, a Federa- do imposto sindical, poderiam (e podem)
ção teria, ao menos formalmente, o mono- contar com contribuições voluntárias de as-
pólio da representação dos trabalhadores de sociados. São contribuições mensais, defini-
certo ramo sempre que as negociações sala- das em assembléia dos representados, e ape-
riais excedessem os limites de um municí- nas os sócios podem ter acesso aos serviços
pio. Finalmente, tinha-se uma instância assistenciais prestados. Essa característica é
centralizada, a confederação, que também importante porque a associação voluntária
compulsoriamente agrupava as federações não estava relacionada, prioritariamente,
de uma mesma categoria profissional. Em com a sustentação financeira da capacidade
suma, uma estrutura vertical compulsória, de mobilização dos sindicatos, mas sim com
tendo como base de representação os tra- sua burocracia assistencial. Como argumen-
balhadores (ou empregadores) de um de- tarei em seguida, isso limitaria estruturalmente
terminado ramo da economia. A legislação as possibilidades de ampliação da afiliação
proibia (até 1988) a existência de instâncias sindical, sobretudo dos trabalhadores.
intercategorias, isto é, centrais sindicais. As negociações entre capital e trabalho
É importante notar que as federações e só se poderiam dar anualmente, na chama-
confederações, sobretudo as de trabalhado- da “data-base” da categoria. A data-base
res, raramente funcionaram como instâncias também era definida pelo Ministério do
hierárquicas de grau superior. Na verdade, o Trabalho (MTb) no ato da concessão da
poder de firmar contratos coletivos esteve carta sindical, e o MTb cuidou para que
quase sempre com os sindicatos, e a ação des- não houvesse a coincidência entre datas de
tes não estava subordinada a requisitos ou li- negociação das categorias mais importan-
mites impostos por aquelas. Desse ponto de tes, evitando assim potenciais coalizões
vista, a tradicional imagem da pirâmide é intercategorias. Todas as relações de traba-
pouco adequada para descrever a estrutura lho só poderiam ser renegociadas a cada ano
sindical corporativa que se constituiu entre por esses sindicatos fortemente controlados

361
Os sindicatos: representação de interesses e ação política de capital e trabalho no Brasil

e que não dependiam das cotizações volun- 2. Liberalização democrática


e participação política
tárias ou da participação de sua constituency
para sobreviver. O arranjo legal de repressão e restrição
A greve, por seu lado, também foi mi- da ação sindical teve longa vida, mas não foi
nuciosamente regulamentada. Para ser con- utilizado igualmente todo o tempo por to-
siderada legal, deveria ser deliberada em as- dos os governos. A legislação antigreves dei-
sembléia da categoria em que estivessem xou crescentemente de ser aplicada no
presentes dois terços dos trabalhadores, e interregno democrático pós-Estado Novo
ser aprovada por maioria absoluta. Um fis- (1946-1964), e o conflito trabalhista am-
cal da Justiça do Trabalho devia estar pre- pliou-se consideravelmente. Utilizando-se de
sente para constatar os números. Se apro- sua condição de parte do aparelho de Esta-
vada, a greve era anunciada ao sindicato do, o número de sindicatos de trabalhadores
patronal com uma semana de antecedência e empregadores cresceu ano a ano e, princi-
da paralisação. Do contrário, era declarada palmente nos centros urbanos emergentes,
ilegal: os direitos sindicais eram suspensos, o poder sindical passou a demandar cada vez
os trabalhadores podiam ser demitidos por mais participação na vida pública. A ativida-
justa causa, sem indenizações compensató- de grevista nos grandes centros urbanos foi
rias, e eram convocadas novas eleições sin- intensa, sobretudo em 1946, no final do se-
dicais ou nomeado um interventor federal. gundo governo Vargas (1950-1954) e depois
Como se pode ver, o conflito trabalhista de 1955. O sindicalismo consolidou-se como
estava regulado minuciosamente e, na prá- um dos principais atores da cena pública
tica, a greve estava proscrita. nacional.
Tal sistema vigorou com todo o seu rigor Nesse período houve mudanças impor-
entre 1937 e 1943 (distendendo-se um pou- tantes no padrão de intervenção estatal, e
co até o final do período ditatorial do gover- uma ampliação da atuação política dos tra-
no Vargas), entre 1946 e 1950, durante o balhadores que, representados em sindica-
governo Dutra, e entre 1964 e 1982, durante tos, associaram-se num crescendo a partidos
a ditadura militar. É nesse sentido, ainda, que políticos em disputa pelo poder de Estado.
os sindicatos eram parte do aparato estatal: Deixando de comportar-se unicamente como
todo associacionismo era regulado e garanti- “apêndice institucional”, o movimento sin-
do pelo Estado. Não havia a possibilidade le- dical trabalhador afirmaria sua autonomia
gal de constituição de associações autônomas em relação ao Estado ao apresentar-se como
de trabalhadores ou empresários com pre- alter, capaz de disputar o acesso às outras
tensão de representatividade na contratação estruturas estatais de poder (que lhes eram
coletiva, isto é, na negociação do conflito de vedadas) por meio da participação em elei-
interesse entre capital e trabalho. Como ve- ções democráticas. Mas, ao mesmo tempo,
remos, porém, o empresariado constituiu as- os sindicatos não negaram a dependência
sociações importantes por fora da estrutura organizacional em relação à legislação
corporativa. corporativa varguista. Ao contrário, utiliza-
ram-na: (i) para ampliar seu raio de ação;
(ii) para constituir uma burocracia sindical
profissionalizada; (iii) e para instrumentar

362
sua relação com os partidos políticos, prin- cena. De fato, é possível dizer que o sistema
cipalmente, no caso dos trabalhadores, o pressupunha, na forma da lei, isomorfismo
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que o das associações de patrões e empregados.
próprio Vargas criara no intuito fracassado Na prática, porém, isso não ocorreu nem
de permanecer no poder a partir de 1946, e mesmo durante o Estado Novo. Em pri-
o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que meiro lugar, porque, se o regime de Vargas
esteve quase sempre na clandestinidade. A foi muito incisivo na desmobilização das
afirmação da autonomia no campo da parti- associações autônomas de trabalhadores
cipação política tinha como corolário, pois, construídas antes de 1930, não fez o mesmo
a manutenção da dependência no campo com as entidades de empregadores. O
organizacional e das lutas trabalhistas. Essa associacionismo patronal manteve um cará-
ambigüidade permaneceria como marca do ter dual desde o berço, combinando, de um
sindicalismo trabalhador entre nós até mui- lado, a representação sindical oficial, volta-
to recentemente. da principalmente para questões trabalhis-
É importante salientar que a estrutura sin- tas e, de outro, organizações autônomas dos
dical chegou ao fim do período democrático mais diversos tipos, cujos objetivos incluíam
como um arranjo fragmentário e descentrali- tanto a articulação de interesses setoriais
zado. Em 1964 contavam-se cerca de dois mil quanto o lobby junto às burocracias estatais
sindicatos de trabalhadores urbanos, e outros e as agências regulatórias e de fomento que
mil e cem de empregadores, segundo dados o Estado desenvolvimentista instituiu ao lon-
do censo sindical que o IBGE realizou entre go das décadas.3 Essa divisão de trabalho
1942 e 1974.2 No caso dos trabalhadores, garantiu longa vida às associações patronais
nenhuma investida na direção da constitui- autônomas, ao passo que entre os trabalha-
ção de centrais sindicais intercategorias teve dores as tentativas de romper a camisa de
êxito duradouro até pelo menos 1983, em- força da CLT só obtiveram algum sucesso
bora algumas tentativas tenham ocorrido du- na década de 1980.
rante todo o período pós-1945. Ademais, e Em segundo lugar, e relacionado com o
não menos importante, todo esse arcabouço ponto anterior, historicamente o empresariado
normativo serviu de poderoso desestímulo à elegeu a relação direta com o Estado como
constituição de representação sindical por estratégia dominante de ação política, ao passo
locais de trabalho. Com exceção de alguns que os trabalhadores, como já se disse, asso-
grandes sindicatos industriais de São Paulo e ciaram-se intensamente a partidos na tentati-
do Rio de Janeiro, em especial de metalúrgicos va de influenciar na direção da regulação
e têxteis, os sindicatos não lograram organi- pública de seu interesse. Em terceiro lugar,
zar-se horizontalmente. os sindicatos patronais organizaram-se ex-
Em contrapartida, o associativismo au- clusivamente por ramos da economia, enquan-
tônomo empresarial nunca esteve ausente da to os de trabalhadores multiplicaram-se

2. Os dados apresentados podem ser encontrados em IBGE, Anuário Estatístico do Brasil - 1964. Rio de
Janeiro: IBGE, 1966.
3. São exemplos o Instituto Brasileiro do Café, o Banco Nacional de Desenvolvimento, as várias superinten-
dências de desenvolvimento regional (do Nordeste, da Amazônia etc.). Ver Diniz e Boschi (2000 e 2001).

363
Os sindicatos: representação de interesses e ação política de capital e trabalho no Brasil

por ocupações e profissões. As duas estru- fronteiriças), levando ao paroxismo o pre-


turas representativas fragmentaram-se bas- ceito de que os sindicatos eram parte do Es-
tante ao longo dos anos, mas entre os tra- tado. Com isso, as greves cessaram quase por
balhadores a fragmentação foi muito mais completo até 1968, quando os movimen-
profunda. Em quarto lugar, as federações e tos estudantil e operário mundiais repercu-
confederações patronais sempre tiveram tiram internamente provocando uma onda
peso nas negociações trabalhistas, princi- de levantes contra o autoritarismo. O Ato
palmente na coleta e organização de in- Institucional Nº 5, daquele mesmo ano, em
formações, municiamento de profissionais seus resultados lançou as lideranças desses
especializados, produção de estatísticas e movimentos à clandestinidade, às prisões, ao
celebração de convenções coletivas, ao pas- degredo e à morte. Até 1978, com poucas
so que o poder de contratar pelos trabalha- exceções, não se teve notícia de atividade
dores raramente extravasou o nível dos sin- sindical relevante no país.
dicatos. Finalmente, a legislação repressiva No lado empresarial, a relação direta
instituída por Vargas e utilizada intermiten- entre associações de classe e burocracias es-
temente segundo os interesses dos diferen- tatais tornou-se mais densa, e dois concei-
tes governos, limitava a ação dos trabalha- tos apreendem adequadamente o novo ce-
dores, mas não a organização empresarial. nário. De um lado, a idéia de privatização
A lei de greve de Vargas era uma lei contra a do Estado, remetendo ao processo de
possibilidade de greves. Nesse sentido, o balcanização de agências públicas em todos
isomorfismo da organização sindical de ca- os níveis por interesses mais ou menos or-
pital e trabalho esconde o fato de que a ganizados de empreiteiras, produtores de
legislação teve como objetivo primordial café, açúcar, álcool, aço, armamento, teci-
conter o ímpeto reformador do operariado dos, alimentos, máquinas e equipamentos,
emergente, sem impedir a ação direta dos além de exportadores, importadores, dis-
empresários junto à burocracia estatal. tribuidores, todos em busca de subsídios,
proteção tarifária, legislação favorável, li-
mitação da concorrência ou preços míni-
3. Nova ditadura
mos. De outro lado, a idéia de “anéis buro-
A ditadura militar iniciada em 1964 cráticos”, cunhada por Fernando Henrique
aprofundou esse quadro. No caso dos traba- Cardoso nos anos 70 para dar conta do
lhadores, o resultado foi a intensificação da mesmo fenômeno, mas agora de forma sis-
fragmentação, o distanciamento dos locais de temática, identificando as estruturas mais
trabalho e o assistencialismo. Os militares importantes e seu modo de funcionamento.
proibiram novamente as greves, cassaram as O Estado desenvolvimentista, na verdade,
lideranças sindicais do período anterior e no- teve no autoritarismo brasileiro um exem-
mearam interventores federais em todos os plo sem paralelos na América Latina, confi-
sindicatos mais importantes. Fizeram-no gurando uma simbiose densa e multifacetada
como o fizeram com os governos estaduais e entre interesses privados (empresariais) e in-
com as prefeituras das capitais de estado e teresse público. Multiplicam-se as organiza-
das cidades consideradas “áreas de segurança ções patronais e aprofunda-se a dualidade da
nacional” (como as cidades litorâneas e representação de seus interesses: os sindicatos

364
oficiais tornam-se agentes da repressão esta- corporativo, paradoxalmente demandava
tal, e as associações autônomas pressionam autonomia sindical frente ao Estado e aos
por interesses particularistas. partidos, organização por locais de trabalho
e novos direitos sindicais e trabalhistas. Isso
explica, sem dúvida, o alto grau de conti-
4. Novo sindicalismo: renovação e nuidade dessa estrutura, apesar do ímpeto
persistência
reformador das novas lideranças.
Em 1978 tem início um longo processo A ampliação da abertura política a partir
de renovação do sindicalismo brasileiro, a de 1979 não incluiu os sindicatos. Pelo con-
partir de uma série de greves por reposição trário, o regime militar reprimiu com vio-
salarial, greves que se espalharam por boa lência as primeiras manifestações do novo
parte do setor metalúrgico da metrópole sindicalismo: cassou mandatos sindicais das
paulistana e, no ano seguinte, por vários seto- lideranças emergentes mais importantes,
res operários nacionais. Essas greves de- enquadrou sindicalistas na Lei de Segurança
ram o ponta-pé inicial para a entrada de Nacional, reagiu às greves de massa, em es-
cada vez mais setores sociais na contesta- pecial as do ABC e da Capital paulistas. Ocor-
ção ao regime militar, para quem se tornou re que a sociedade civil emergente tomou o
crescentemente mais custoso lançar mão de ressurgimento do conflito operário como o
medidas repressivas contra a sociedade civil carro guia da contestação ao regime militar,
em movimento. e as greves por reposição salarial que se se-
Estudos minuciosos realizados durante e guiram às de 1978 ganharam um caráter de
após essas greves mostraram que o sindi- contraposição político-social ao regime. O
calismo no país, apesar de tudo, não estava suporte aos sindicalistas veio de todas as
morto como se imaginava. Foram criadas inú- partes e a principal liderança operária nas-
meras formas não explícitas e extra-sindicais cida no ABC, Luiz Inácio Lula da Silva, ga-
de organização por local de trabalho, e um nhou projeção nacional e internacional
número nada desprezível de militantes de como o baluarte da resistência democrática
esquerda havia conseguido sobreviver ao
regime, militando principalmente em movi-
mentos mantidos pela Igreja Católica ou em
partidos comunistas e socialistas clandesti-
nos (de inspiração leninista e/ou trotskista).
A redução dos custos de participação a par-
tir de 1978 lançou na arena pública uma
infinidade de movimentos que se haviam
mantido submersos pela repressão política
e social do regime autoritário, e a estrutura
sindical corporativa mostrou-se, parado-
xalmente, altamente funcional na rápida
reestruturação sindical que o país observou
entre 1978 e 1983, principalmente.
O “Novo Sindicalismo” brasileiro,
nascido das entranhas do sindicalismo Greve de sindicalistas no ABC paulista, em 1978.

365
Os sindicatos: representação de interesses e ação política de capital e trabalho no Brasil

ao autoritarismo. Não se pode entender contra o arrocho salarial, contra a recessão.


os desdobramentos posteriores do novo Uma pauta política. Dos escombros da greve
sindicalismo sem levar em conta que a con- nascia a Central Única dos Trabalhadores –
juntura de sua emergência não apenas CUT. Nascia também o segundo eixo de for-
politizou-o imediatamente, como ainda en- ça do sindicalismo trabalhador dos anos 80, a
caminhou-o rumo à ideologia socialista que CGT (naquele momento com nome de Coor-
o embalou por muito tempo. denação Nacional da Classe Trabalhadora –
A re-emergência da contestação sindi- CONCLAT), instituindo a clivagem funda-
cal encontrou o sindicalismo patronal mental que marcou a estrutura representati-
despreparado tanto para o confronto quan- va sindical centralizada por longos anos.
to para a negociação coletiva. Nessas condi- Vale marcar que a CGT congregava as
ções, o Estado e a Justiça do Trabalho foram lideranças mais importantes do sindicalismo
aliados importantes, sem os quais as conquis- corporativo, isto é, representava a sobrevi-
tas sindicais talvez tivessem sido maiores e vência e o ímpeto de conservação de uma
mais decisivas. O empresariado recorreu sis- estrutura sindical que a CUT, segundo seu
tematicamente à Justiça durante as greves da discurso de entrada, nascera para comba-
primeira metade dos anos 80, procurando ter. Vale lembrar, também, que a legislação
reduzir as demandas salariais, reprimir as sindical vigente proibia a constituição de cen-
greves ou desqualificar as lideranças sindi- trais sindicais, de modo que às centrais cria-
cais. Os sindicatos patronais, bem como os das não foi reconhecido o direito de re-
departamentos de suas federações e confe- presentação dos trabalhadores. A CUT em
derações responsáveis pela negociação tra- especial, vedado o caminho representativo,
balhista, não raro eram agências de produção constituiu-se como centro de constituição de
de informações sobre lideranças indesejáveis identidade política, de organização de sindi-
e de delação pura e simples de militantes ao catos “autênticos” e de conscientização dos
autoritarismo em crise. Esse lado sombrio trabalhadores para o socialismo.
do sindicalismo patronal, que reproduziu por Com esse ânimo, a CUT passou a financiar
muito tempo os vícios da repressão militar, oposições sindicais que lutariam pela direção
é uma das páginas menos conhecidas das re- dos sindicatos oficiais. Uma vez no poder,
lações de classe entre nós. deveriam procurar ampliar a consciência de
Em 1980 o sindicalismo trabalhador classe. Isso se faria principalmente por meio
emergente fundou o Partido dos Trabalha- de greves, de organização por locais de traba-
dores, que congregou também as militâncias lho e da ampliação das pautas de reivindica-
católica e trotskista de vários movimentos ção. A crise econômica dos anos 80 serviu de
sociais, e intelectuais das mais diferentes grande estímulo a um padrão altamente
extrações. Em 1983, em meio a uma recessão conflituoso de relações industriais. O Brasil
sem igual na história brasileira, o mesmo foi o campeão mundial de greves nos anos
grupo organizou a primeira greve geral em 1984-1987. Neste último ano, puderam ser
vinte anos. A pauta de reivindicações: con- computadas nada menos do que 80 milhões
tra o FMI, pela reforma agrária, por uma de jornadas perdidas (homens/dia) por moti-
assembléia nacional constituinte soberana, vo de greve (NORONHA, 1994).

366
Entretanto, o sindicalismo brasileiro A nova Constituição logrou mudar em
permanecia altamente fragmentado. O cen- parte a estrutura sindical herdada de Vargas,
so sindical do IBGE de 2001 apontou a mas manteve institutos decisivos, como o
existência de perto de 16 mil sindicatos no imposto sindical e a unicidade (um único sin-
país. A CUT, embora hegemônica, não con- dicato por município). É verdade que, desde
seguiu penetrar em todos os setores. A então, o Estado não pode mais intervir na
CGT manteve uma base sindical importan- vida associativa, e a liberdade de constitui-
te, baseada principalmente no Sindicato dos ção de sindicatos é quase completa, desde
Metalúrgicos da cidade de São Paulo, sin- que municipais e por categoria (ou ofício).
dicato então com mais de 100 mil filiados e Por outro lado, o poder normativo da Justi-
350 mil trabalhadores na base geográfica. ça do Trabalho foi mantido, isto é, ela ainda
De tendência conservadora não apenas em podia ser convocada por uma das partes para
relação à estrutura sindical corporativa, arbitrar uma sentença quanto às negociações
como ainda em termos da política parti- coletivas. Esse instituto mudaria apenas na
dária, a CGT foi capaz de reter alguma segunda metade da década de 2000, quando
representatividade no meio sindical nacio- a convocação da Justiça Trabalhista passou a
nal e foi interlocutor importante dos gover- depender de acordo entre ambas as partes.
nos pós-autoritários estabelecidos no país a A longevidade da estrutura sindical bra-
partir de 1985. sileira decorre de que, excluindo os sindi-
Do lado patronal, a normalidade demo- catos da fábrica e agrupando os trabalha-
crática produziu dois efeitos principais. Pri- dores por categorias profissionais em um
meiro, as organizações oficiais (sindicatos, único sindicato numa mesma base geográ-
federações e confederações) e as independen- fica, o sindicalismo brasileiro adaptou-se à
tes (associações de classe) da estrutura dual heterogeneidade produtiva e regional, ini-
de representação estreitaram suas relações, bindo relações industriais mais modernas nas
compartilhando dirigentes, infra-estrutura, grandes fábricas e provendo alguma moder-
pessoal técnico e consultores. Em segundo nização nas empresas mais atrasadas. Tal
lugar, os sindicatos, federações e confedera- longevidade decorre, também, do interesse
ções profissionalizaram seus departamentos da maioria dos sindicalistas em sua manu-
de relações trabalhistas, especializando pes- tenção, principalmente em função do impos-
soal capacitado para negociações com o to sindical. Ademais, a perene perspectiva
movimento sindical em ascensão. Entre 1987 de reforma na legislação, renovada a cada
e 1988, durante os trabalhos da Assembléia nova legislatura e a cada novo governo, cria
Nacional Constituinte, novos órgãos de cú- um ambiente de incerteza quanto ao futuro
pula foram criados, destinados à centraliza- que a maioria das direções atuais prefere
ção do lobby empresarial junto ao Congres- evitar, mesmo que isso lhes seja prejudicial
so, sem que a FIESP, a CNI ou a FENABAN4 no médio prazo, em razão da crescente frag-
deixassem de atuar decisivamente em favor mentação e enfraquecimento da representa-
de seus interesses setoriais. ção sindical trabalhista.

4. Respectivamente Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Confederação Nacional da Indústria,
Federação Nacional dos Bancos.

367
Os sindicatos: representação de interesses e ação política de capital e trabalho no Brasil

É preciso acrescentar que, com exceção petrolífero, também se estão organizando, e


da CUT, o sindicalismo trabalhador ou pa- a entidade mais importante é a Organização
tronal do pós-78 não tem ligações claras com Nacional das Indústrias do Petróleo (ONIP),
partidos políticos. Nos anos 80 e inícios dos congregando os atores do novo mercado do
90, por exemplo, o PNBE (Pensamento Na- produto, não mais monopolizado pela
cional das Bases Empresariais), organização Petrobras. E o dado relevante do novo cená-
de médios e pequenos empresários nacionais rio é a mudança de foco do lobby empresa-
que teve papel importante na transição do rial, hoje tão forte no Congresso quanto nas
autoritarismo e que contribuiu decisivamente burocracias estatais, em razão do aumento
para a renovação da ação política da FIESP, do poder decisório do parlamento.
em várias ocasiões manifestou apoio ao Par- No caso dos trabalhadores, o aspecto
tido dos Trabalhadores, enquanto a própria mais saliente é, sem dúvida, o deslocamento
FIESP jamais se definiu partidariamente. Isso do sindicalismo organizado do centro da cena
não quer dizer que as lideranças empresariais política. Fragmentado, sofrendo os efeitos
sejam alheias à política partidária. Ao con- desmobilizadores do desemprego e da
trário, presidentes de associações de cúpula informalidade, tendo que se haver com a
não raro tornam-se senadores ou deputados reestruturação produtiva e com os novos
federais, ou mesmo governadores. É possí- desafios do trabalho inseguro e precário, o
vel mesmo dizer que, diferentemente de ou- movimento sindical passa por crise financei-
tros países, onde os papéis são mais clara- ra, de representação e de identidade. Direi-
mente demarcados e lideranças sindicais tos conquistados ao longo dos anos 80 fo-
constroem carreiras sólidas enquanto sindi- ram perdidos na última década do século
calistas, no Brasil a saliência proporcionada XX, em troca da manutenção de empregos
pela direção de organizações importantes, que, afinal, seriam também perdidos. Esse
tanto de capital quanto de trabalho, quase movimento não foi revertido nos anos 2000,
sempre serve de esteio a projetos de partici- nem mesmo durante o primeiro mandato do
pação na vida partidária. A representação presidente Lula, que logrou gerar mais de 7
trabalhadora no Congresso Nacional não é milhões de empregos formais, sem que, com
negligenciável, e extravasa as hostes dos par- isso, as negociações coletivas levassem à re-
tidos de esquerda. cuperação de perdas de direitos da década
Os anos 90 ampliaram decisivamente os anterior.
desafios das organizações de capital e traba- Tanto no caso de capital quando de tra-
lho. O número de organizações patronais balho, pode-se falar em crise de repre-
autônomas parou de crescer em meados da sentatividade de suas organizações. A crise é
década, apesar de movimentos importantes fruto, primeiro, da reconfiguração de suas
como a Ação Empresarial, sem estrutura for- bases de apoio. No caso dos trabalhadores,
mal mas com crescente poder de opinião perderam espaço na estrutura produtiva as
entre os empresários, tendo como principal empresas estatais, o operariado industrial, a
alvo de atuação o Congresso Nacional classe média bancária e o funcionalismo pú-
(DINIZ e BOSCHI, 2001). Os setores emer- blico, categorias com maior poder de
gentes na nova economia, fruto das mobilização e base social tanto da CUT
privatizações ou de novos regulamentos de quanto da Força Sindical. No caso do
mercado, como as telecomunicações e setor empresariado, o efeito mais visível foi a

368
internacionalização de setores tão importan- economia. Mas, antes da terceira reunião,
tes como os de autopeças, alimentos, têxtil, foi lançado o Plano Cruzado. Como o Plano
químico e outros, que reduziu a peso da bur- se baseava na experiência Argentina (o Pla-
guesia nacional na geração do produto. E a no Austral) de choque econômico heterodo-
crise é fruto, em conseqüência, da perda de xo, com congelamento de salários e preços,
densidade institucional das entidades repre- o movimento sindical deixou a mesa de ne-
sentativas, incapazes de confrontar o progra- gociações, convocando uma greve geral (frus-
ma de reforma econômica implantado nos trada) contra o plano. O governo Sarney ain-
anos 1990 e ainda em curso, programa que da tentaria outra rodada de negociações
minou suas bases sociais de sustentação. quando do fracasso do chamado Plano
Bresser, de 1987, e uma vez mais no final do
mandato, sempre sem sucesso.
5. Uma palavra sobre o diálogo social
No início dos anos 90, o governo Fernando
A estrutura sindical corporativa, voltada Collor de Mello tentou novo pacto social
para o controle das associações dos traba- quando seu plano de ajuste econômico fra-
lhadores, não favoreceu a constituição de cassou, mas disputas dentro do movimento
experiências efetivas de diálogo social, ou sindical, tendo de um lado a CUT e de ou-
seja, a concertação política mais ampla en- tro a recém-criada Força Sindical, bem como
volvendo trabalho, capital e Estado, visando a recusa de algumas associações de empre-
à formulação de políticas públicas sobre ques- gadores em tomar parte nos debates, preju-
tões como desenvolvimento, investimentos dicaram a iniciativa.
e criação de empregos. As exceções confir- O limite central dessas tentativas de
mam a regra. concertação global talvez tenha sido o cará-
A transição para a democracia nos anos ter mesmo da representatividade dos atores
80 favoreceu algumas experiências de con- envolvidos. A CUT tinha em seus estatutos
sulta social, mas todas as tentativas de pac- uma cláusula explícita contra a concertação
to por parte do governo da Nova Repúbli- social. Ela chegou a tomar parte num pri-
ca (1985-1989) ocorreram ou antes da meiro encontro, quando apresentou sua lis-
implementação de planos unilaterais de ajus- ta de reivindicações (contra o FMI, pela
te da economia, ou após estes terem sido reforma agrária controlada pelos trabalha-
abandonados. E nessa década todos os pla- dores, pela convocação de uma assembléia
nos, bem como os pactos que lhes seguiram, nacional constituinte, por eleições diretas
fracassaram em seu objetivo principal, o com- para presidente da República e outras pro-
bate à inflação. postas semelhantes, amplas e de natureza po-
A primeira tentativa ocorreu no início lítica) e se retirou da mesa de debates. Como
de 1986, inspirada na experiência bem suce- federação mais importante e mais represen-
dida dos Pactos de Moncloa, que favorece- tativa, sem ela nenhum pacto social seria pos-
ram a transição democrática na Espanha. sível. A CGT sempre tomaria parte nas tenta-
Organizações de trabalho e capital se uni- tivas de diálogo social, mas na verdade não
ram ao governo federal para negociar o con- era possível estabelecer suas verdadeiras ba-
trole de salários e preços para reduzir a in- ses de sustentação. A central alegava repre-
flação, além de tentar reformar o Estado e a sentar 10 milhões de trabalhadores, mas, em

369
Os sindicatos: representação de interesses e ação política de capital e trabalho no Brasil

1989, tinha apenas 300 sindicatos filiados ções de empregadores. A indústria naval foi
(CARDOSO, 1999b: cap. 2). O mesmo pode a que apresentou melhores resultados além
ser dito das organizações de empregadores. da indústria automobilística.
A FIESP tinha uma boa capacidade de inter- A mais importante experiência de diálo-
venção no debate público através da mídia go social envolvendo a criação de emprego
de massa, mas pouca capacidade de forçar no país foi provavelmente a Câmara Regio-
seus integrantes a assumir os encargos dos nal da Região do Grande ABC. Iniciativa do
pactos sociais, que sempre negociaram algum governo do Estado de São Paulo, essa Câma-
tipo de retração da economia ou congela- ra reuniria os prefeitos das quatro grandes
mento de preços. cidades industriais da região metropolitana
Experiências mais restritas de concer- de São Paulo – Santo André, São Bernardo
tação tiveram êxito mais palpável, embora do Campo, São Caetano do Sul e Diadema,
momentâneo. Em 1992, o sindicato dos em crise em conseqüência do ajuste econô-
metalúrgicos do ABC propôs a criação de mico decorrente do Plano Real – e a comu-
uma câmara setorial que reunisse emprega- nidade local. A Câmara propôs um progra-
dores, representantes dos trabalhadores e o ma de desenvolvimento regional envolvendo
governo, a fim de discutir e formular políti- renovação de infra-estrutura e redefinição
cas para o setor automobilístico. O então das cadeias produtivas, com maior atenção
presidente do sindicato visitara Detroit e para pequenas e médias empresas, além de
constatara o desastre social provocado na treinamento de operários demitidos e atra-
cidade pela crise do setor automotivo daquele ção de novos investimentos para áreas de-
país, iniciada nos anos 80. Na tentativa de senvolvidas industrialmente e depois aban-
evitar que o mesmo acontecesse em sua re- donadas, dentre outros temas. Quatro en-
gião, propôs a criação da câmara, idéia a contros anuais foram realizados, resultando
princípio aceita com relutância pelos empre- na produção de diagnósticos dos problemas
gadores, mas que logo recebeu a adesão de e em definições de políticas públicas em áreas
todas as associações de montadoras de auto- estratégicas. É difícil apontar o impacto es-
móveis e de fabricantes de autopeças, diante pecífico da Câmara na criação de empregos,
da promessa governamental de reduzir im- porque ela foi pensada de forma a propor
postos sobre automóveis e peças. A câmara intervenções sistemáticas em diversas áreas,
se reuniu até o final de 1994 e conseguiu desde recursos hídricos até transportes e
deter a crise no setor, expandindo o merca- energia. Mas ninguém nega seus impactos
do interno em mais de 60% graças à redu- simbólico e econômico na redefinição da vo-
ção de preços e mantendo o emprego de mais cação da região do ABC – onde as taxas de
de cem mil trabalhadores do setor. Outras desemprego chegaram a 25% na segunda
câmaras foram criadas no mesmo período metade dos anos 90 –, favorecendo os pe-
em setores como a indústria têxtil, naval e quenos negócios, o setor de serviços e as
química, mas com resultados mais modes- empresas de alta tecnologia.
tos. Na verdade, as câmaras foram bem su- O governo de Fernando Henrique Car-
cedidas onde os sindicatos de trabalhadores doso suspenderia as câmaras setoriais em
eram fortes e onde o Estado tinha alto po- 1995, assim como outras agências tripartites
der de intervenção através da redução de no contexto das burocracias estatais, tais
impostos, atraindo dessa forma as associa- como as comissões de pesquisa sobre fundos

370
de segurança social. Apenas a comissão do classe, e também trabalhadores representan-
Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT5 do as federações, confederações e centrais
continuou tripartite, com representantes de sindicais). O Conselho foi o responsável pela
capital e trabalho e de diversos ministérios discussão de estratégias de desenvolvimen-
federais. No Comitê do FAT, foram criadas to, mas em seu primeiro ano esteve subordi-
e implementadas políticas de emprego com nado à agenda federal, isto é, às reformas da
base nos diagnósticos do Banco Mundial, que previdência social e do sistema fiscal. O
aconselhavam o investimento em pequenas Conselho deveria discutir também a refor-
e médias empresas e na qualificação de tra- ma trabalhista, mas um novo fórum tripartite
balhadores. Nesse quadro, o FAT financiou foi criado com este fim, o Fórum Nacional
as atividades do Serviço Brasileiro de Apoio do Trabalho – FNT. E de fato, depois de
às Micro e Pequenas Empresas – SEBRAE, quase dois anos de discussões, o FNT enca-
que orienta futuros empresários e tem vários minhou ao Congresso Nacional um projeto
projetos de estímulo a cooperativas de pro- de reforma da estrutura sindical e da legisla-
dutores e incubadoras de empresas. O fundo ção trabalhista que, até o final de 2006, ain-
também liberou altas somas para as centrais da não tinha sido apreciado pelos parlamen-
sindicais de trabalhadores visando à criação tares.
de seus próprios centros de qualificação pro- Outro importante fórum no governo
fissional. O PLANFOR (Plano Nacional de Lula foi o Conselho Nacional de Segurança
Formação Profissional) como um todo mo- Alimentar – CONSEA, que orientou as po-
bilizou mais de um bilhão de reais do FAT e líticas relacionadas com o Programa Fome
promoveu a qualificação de 12 milhões de Zero. Compunha-se de 38 representantes da
trabalhadores. As organizações de emprega- sociedade civil, 13 ministros e 11 observa-
dores, como o Serviço Nacional da Indús- dores externos. Porém, o direcionamento das
tria – SENAI e o Serviço Nacional do Co- políticas sociais para o Bolsa Família, pro-
mércio – SENAC, também participaram do grama de renda mínima para as populações
esforço global. carentes, esvaziou as prerrogativas do
O governo Lula trouxe mais uma vez o CONSEA.
diálogo social para o centro da arena política, Os conselhos, por um lado, ajudaram a
com a instituição de vários conselhos para a legitimar políticas que, de outra forma, di-
formulação de políticas públicas, dos quais o ficilmente seriam aprovadas pelo Congres-
mais importante talvez tenha sido o Conse- so, como a reforma da previdência. E al-
lho Nacional de Desenvolvimento Econômi- guns conselhos operaram como mecanismos
co, um fórum de debates com representantes de formulação de projetos efetivos de re-
da sociedade civil (Igreja Católica, ONGs, forma, como foi o caso do FNT. Por outro
intelectuais, empregadores como indivíduos lado, seu maior limite está em que os confli-
e como representantes de associações de tos não podem ser resolvidos no contexto

5. O FAT foi criado pela Constituição de 1988 e é constituído por contribuição dos empregadores. Financia o
seguro-desemprego e também programas especiais de interesse dos trabalhadores, como qualificação profis-
sional, além de planos de investimentos empresariais, que recebem os recursos via o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES.

371
Os sindicatos: representação de interesses e ação política de capital e trabalho no Brasil

dos próprios conselhos, pois suas decisões


não têm caráter compulsório. A elaboração
final das políticas depende do Congresso.
Com isso, apesar da grande atividade e pre-
sença midiática dos conselhos, a iniciativa
da formulação substantiva de reformas per-
maneceu nas mãos do Executivo, e a con-
sulta social teve papel eminentemente sim-
bólico.

372
Sugestões de Leitura

CARDOSO, A. M. A trama da modernidade. Pragmatismo sindical e democratização no Brasil. Rio de Janeiro:


Revan, 1999a.
_______. Sindicatos, trabalhadores e a coqueluche neoliberal: a Era Vargas acabou? Rio de Janeiro: FGV, 1999b.
DEAN, W. A industrialização de São Paulo – 1980-1945. São Paulo: Difel, 1971.
DINIZ, E., BOSCHI, R. Globalização, herança corporativa e a representação dos interesses empresariais: novas
configurações no cenário pós-reformas. In: BOSCHI, R., DINIZ, E., SANTOS, F. Elites políticas e econômi-
cas no Brasil contemporâneo. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2000. (Série Pesquisas, 18)
_______. Reconfiguração do mundo empresarial: associações de representação de interesses, lideranças e ação
política. In: XXV ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS. Caxambu, 16-20 de outubro, 2001.
FRENCH, J. Drowning in Laws. Labor Law and Brazilian Political Culture. Chapel Hill and London: University
of North Carolina Press, 2004.
GOMES, A. de C. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Revan/IUPERJ, 1988.
MORAES FILHO, E. de. O sindicato único no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. A Noite, 1952.
NORONHA, E. Garutti. Greves e estratégias sindicais no Brasil. In: OLIVEIRA, Carlos Alonso de, SIQUEIRA
NETO, José F., OLIVEIRA, Marco Antônio de. O mundo do trabalho: crise e mudança no final do século.
Brasília/São Paulo/Campinas: MTb-PNUD/Cesit/Scritta, 1994. p.323-358.
RODRIGUES, J. A. Sindicatos e desenvolvimento. São Paulo: Símbolo, 1977.
SADER, E. Quando novos personagens entram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São
Paulo – 1970-1980. São Paulo: Paz e Terra, 1988.
SANDOVAL, S. Os trabalhadores param: greves e mudança social no Brasil, 1945-1990. São Paulo: Ática, 1994.
SANTANA, M. A. Homens partidos. Comunistas e sindicatos no Brasil. Rio de Janeiro/São Paulo: Unirio/Boitempo,
2001.
SANTOS, W. G. dos. Cidadania e justiça – a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1999.
WEFFORT, F. O populismo na política brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1978.
VIANNA, L. J. W. Liberalismo e sindicato no Brasil. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.

373
Capítulo 7
Os militares e a política

CLÓVIS BRIGAGÃO

DOMÍCIO PROENÇA JR.

1. A percepção dos militares no Brasil de exceção. Em diversos momentos, porém,


Muito da discussão brasileira sobre o houve conflitos, sempre potencialmente ar-
papel político de suas Forças Armadas se dá mados, entre diversas facções de oficiais das
à sombra do receio de que a história repu- Forças Singulares.
blicana do Brasil – otimisticamente, até o Esta clivagem de interesses é mais evi-
presente recente – não seja mais do que um dente nas divergências dentro do Exército e
processo de negociação entre segmentos das entre o Exército e as outras Forças Singula-
elites civis e as instituições armadas. res (a Marinha e, a partir de 1943, a Aero-
É uma marca brasileira que se aceite a náutica), embora também exista dentro des-
existência de uma unidade perfeita na ação tas últimas. O pano de fundo destas clivagens
das Forças Armadas no cenário político. Isto admite, até mesmo, as perspectivas de mun-
gera uma discussão irrefletida sobre o papel do bastante distintas que resultam dos pro-
dos militares no país, sem ressalvas sobre as cessos de formação e socialização das forças
diferenças de perspectiva de grupos ou até terrestre, marítima e aérea (ou aeroespacial,
facções do oficialato da Marinha, Exército e como ambicionam os brasileiros).
Aeronáutica. É necessário que haja uma per- É preciso ter ainda consciência de como
cepção mais fina sobre o papel político dos os períodos ditatoriais vividos pelo Brasil no
militares em nossa história. Isto se inicia pela século XX produziram, ao seu final, lacunas
ressalva de que o uso aqui do termo “milita- substantivas de apreciação da questão mili-
res” é tão somente uma abreviatura para a tar e dos assuntos de segurança, tanto inter-
ação de grupos dentro do oficialato de cada na quanto internacional. Assim, o que é uma
uma das Forças Armadas. Mais ainda, deve necessidade do próprio ato bélico, isto é, a
ser acompanhada da clara perspectiva de que, subordinação da guerra à política, das For-
no caso brasileiro, os oficiais do Exército são ças Armadas ao governo, acaba sendo toma-
os protagonistas mais usuais da ação militar da como uma espécie de desiderata política
na política. de boas intenções.
A memória viva dos brasileiros é marcada A clareza da compreensão clausewitiziana
pelo recente período de governo militar. De sobre a instrumentalidade das Forças Arma-
1964 a 1988, pelo menos, o discurso de que das é pouco familiar aos ouvidos brasileiros,
a ação militar representava a ‘unidade civis ou militares. Através de passagens como
indissolúvel’ das Forças Armadas foi um axio- a trajetória da Escola Superior de Guerra, o
ma necessário para a estabilidade do regime discurso luddendorfiano de subordinação da

375
Os militares e a política

nação aos interesses do poder nacional atra- Missão de Paz da ONU (UNEF, no Sinai,
vés do mando militar é bem mais corriquei- 1956-1965).
ro. Como resultado, a questão é apresenta- Estes dois momentos excepcionais ser-
da como um “dever ser” moral, em vez de vem para que se aprecie o que foi, de fato, a
ser tomada como expressão de uma necessi- normalidade da situação brasileira. O Exér-
dade intrínseca do próprio uso da força. cito e, por extensão, “os militares” sempre
Registram-se dois momentos particular- foram atores de destaque na vida política. É
mente marcantes de competência civil nos isso que justifica este capítulo.
assuntos bélicos e correspondente subordi- Para que se possa formar um juízo corre-
nação militar, cujo contraste com o presente to sobre os militares e a política no Brasil, é
é oportuno. No início do século XX a dis- necessário, em primeiro lugar, analisar as di-
cussão da adoção do serviço militar obriga- ferentes formas de percepção da ação militar
tório pela conscrição e da aquisição de uma no país e, em seguida, conhecer a trajetória
esquadra de couraçados (Dreadnought) foi histórica da ação política dos militares. Com
objeto de ampla e informada discussão no base nesses dois panoramas, algumas obser-
Senado. A passagem de civis, Pandiá vações são feitas sobre a agenda e os atores
Calógeras como Ministro da Guerra (do da questão militar no início do século XXI.
Exército) e Raul Soares como Ministro da
Marinha, entre 1919 e 1922, é símbolo de
um tipo de relacionamento mais saudável 2. Seis perspectivas da ação militar
na política brasileira
entre a República e as Forças Armadas do
que se passou a ter, pelo menos potencial- É preciso observar um fato: a leitura da
mente, com a criação do Ministério da De- ação política das Forças Armadas brasilei-
fesa em 1999. ras é fortemente marcada por algumas pers-
Foram as gestões de Calógeras e de Soa- pectivas particulares. Isto é relevante para
res que venceram o impasse da moderniza- que se aprecie o ponto de vista pelo qual se
ção das Forças Armadas. Foram elas que re- compreende e explica a ação militar desde
construíram tanto o Exército quanto a Ma- cada uma delas. Isto é feito de maneira
rinha na década de 1920 através da Missão deliberadamente provocativa.
Militar Francesa e da Missão Naval dos EUA. A primeira perspectiva da ação militar
Há algo a aprender sobre as Forças Armadas na política é a mais comum nas próprias
do Brasil quando se aprecia o contraste en- Forças Armadas, em especial, no Exército.
tre a resistência a tais iniciativas na época e O esteio da nacionalidade residiria no Exér-
o reconhecimento com que se fala delas no cito em particular e nas Forças Armadas em
presente. geral. Desde esta perspectiva, cabe a elas uma
No breve período de democracia entre a tarefa nacional – a preservação e a busca da
ditadura Vargas e o regime militar, entre grandeza do Brasil – que obriga e justifica a
1946 e 1964, novamente houve, no Senado, ação para além de quaisquer salvaguardas
discussões substantivas quanto ao papel e constitucionais ou legais. Esta perspectiva é
destinação das Forças Armadas nacionais. Os particularmente chauvinista quando acres-
melhores exemplos foram os debates rela- centa ainda uma superioridade moral à ma-
cionados com a participação brasileira na neira de ser militar, mais pura, honesta e di-
Guerra da Coréia (1951-1954) e na primeira reta que a dos civis.

376
Outra perspectiva é a que entende que o e admite ainda a leitura de um contexto
Exército teria de alguma forma herdado o anticomunista mais ou menos explícito na
Poder Moderador que era prerrogativa do ação militar brasileira ao longo da maior
imperador do Brasil, pelo próprio ato de seu parte do século XX.
motim e da deposição do Império, procla- Outra perspectiva contesta a idéia da
mando a República em 1889. O poder mo- instrumentalidade classista da intervenção
derador pertence a uma concepção alterna- militar. Identifica, ao contrário, que o Exér-
tiva à estrutura montesquiana dos três po- cito e as Forças Armadas representam um
deres. Atribuía ao imperador do Brasil a determinado conjunto de valores e interes-
possibilidade de intervenção no Executivo, ses próprios, configurando um verdadeiro
Legislativo e Judiciário, em função do que “partido militar”. Essa visão entende o pro-
entendesse como sendo o melhor para o bem- cesso de entrada e saída dos militares da cena
estar da nação. política como um processo de experimento
Assim, entende-se a ambição de que o e amadurecimento da própria instituição
Exército tivesse a prerrogativa de um “po- militar enquanto principal ator político no
der” no sentido constitucional do termo, si- Brasil.
tuando-se acima e sendo responsável pelos Assim, tanto os períodos democráticos
demais. Esta interpretação serviu, principal- quanto os períodos de exceção da história
mente, para tentar emprestar um verniz de brasileira representariam a prevalência de
ambição legalista às intervenções militares. opções de maior ou menor distanciamento
Carece, evidentemente, de qualquer outra dos militares do exercício do poder. Tais
base que não a do desejo de rebuscar no pas- aproximações e afastamentos seriam arran-
sado uma explicação para o arbítrio do fato jos pragmáticos, que não comprometeriam
consumado. a manutenção da prerrogativa de tomada do
Uma outra perspectiva compreende o poder e, portanto, de fato, a posse, direta ou
Exército, e por extensão as Forças Armadas, indireta, do poder pelos militares. Esta vi-
como um instrumento classista de força. são é, indiscutivelmente, a mais pessimista
Nesta visão, a intervenção militar na políti- das que se exercitam no entendimento da
ca não se dá de forma autônoma. Os milita- ação política dos militares.
res atuam como instrumento conservador de Uma perspectiva mais recente considera
segmentos das classes sociais com as quais que as Forças Armadas, em função da histó-
se identificam. Assim, a intervenção militar ria, perderam qualquer outro papel que não
resulta do desejo de interrupção do proces- o seu papel político. Teriam se reduzido a
so político normal por parte de elites, que um ator político, puro e simples, que existe
instrumentalizam os que possuem as armas e atua em função de seus próprios interes-
quando confrontadas com a perspectiva de ses, obtendo recursos como contrapartida de
derrota ou perdas. sua tolerância à existência do poder civil e
Esta visão destaca o relacionamento en- da democracia.
tre os militares e as classes dominantes, e Esta visão realiza a passagem polar do
seu papel de força repressiva a alternati- discurso luddendorfiano, que argumenta pela
vas identificadas como sendo do interesse instrumentalidade total da nação para os fins
das classes populares. É fortemente marcada bélicos, e afirma o contrário: que as Forças
por uma matriz marxista de pensamento, Armadas parasitam a sociedade em função

377
Os militares e a política

das armas que possuem, não tendo qualquer 1871) desmontou este arranjo, levando à
outro papel que não o de sua própria conti- expansão das forças e à promoção por crité-
nuidade institucional. É uma visão extrema, rios de mérito, abrindo as portas do coman-
que admite rescaldos revanchistas, mas que do das forças (em particular, o generalato) à
se afina com um horizonte de paz kantiana classe média.
no que “devesse ser” a inserção internacio- Em 1889, este Exército empreendeu o
nal do Brasil. Golpe de Estado que fez cair o Império e
Finalmente, outra perspectiva recente proclamar a República. Trata-se de aconte-
é a que busca (re)construir uma perspec- cimento singular: um Exército que abjura
tiva instrumental das Forças Armadas. o seu imperador e instala-se como funda-
Esta visão entende que o cumprimento da dor da nação. O Golpe de Estado Florianista
destinação profissional das Forças Armadas determinou o fim da expectativa demo-
cumpre os papéis de prover o Brasil dos crática da nascente República brasileira.
meios de força de que necessite e, ao mesmo Deflagrou uma guerra civil, em que Mari-
tempo, constrói os vínculos e relacionamen- nha e Exército disputaram o senhorio do
tos democráticos que afastariam a possibili- Brasil. A vitória do Exército e de Floriano
dade de intervenções militares. manteve a questão militar como “Espada de
Esta visão entende, de forma otimista, Dâmocles” por sobre a República. As ten-
que o exercício da função de defesa nacio- sões de ser simultaneamente Força Armada
nal na democracia é a condição necessária e governo provocaram clivagens dentro do
e suficiente para um relacionamento civil- oficialato do Exército, e o receio de uma
militar democrático. Também esta é a pers- guerra civil foi um dos fatores para o estabe-
pectiva dos autores, e é retomada nas Con- lecimento da democracia no que se
clusões. convencionou chamar de a “República Ve-
lha” (1891-1930).
A efervescência do jovem oficialato mi-
3. Uma perspectiva que vem de litar chegou a definir os rumos pelos quais a
longe: periodização histórico- República Velha entrou em colapso. Ao lon-
política das Forças Armadas
go da década de 1920, os que vieram a ser
Em 1822, independente, o Brasil herdou conhecidos como os Tenentes erigiram-se em
a maioria dos contingentes do Exército por- atores políticos de primeira grandeza. Ex-
tuguês, que serviu de base para o que seria o pressavam um projeto de Nação militaresco,
Exército Brasileiro. A Grã-Bretanha cedeu, que se justificava pela insatisfação com a
de imediato, um par de navios que, soma- condução civil dos assuntos nacionais. As
dos, ao iate do imperador D. Pedro I, consti- missões militares francesa, do Exército e
tuíram a semente da Marinha do Brasil, sob americana, da Marinha, de 1922 e 1924, bus-
a direção do almirante britânico Cochrane. caram precisamente a neutralização política
No período do Império, Exército e Ma- dos militares, através da profissionalização das
rinha foram mantidos sob controle políti- Forças Armadas.
co direto, com a elevação aos postos de A Revolução de 1930, como aliança li-
generalato e do almirantado condicionada a beral renovadora dos padrões políticos bra-
critérios político-partidários (liberal e con- sileiros, apoiou-se fortemente no Exército e
servador). A Guerra do Paraguai (1867- contou com a neutralidade cúmplice da

378
Marinha. Confrontado com o desafio da ou um grupo, que expressasse uma ideolo-
guerra civil da Revolução Constitucionalista gia autoritária. Ao contrário, vige um forte
de São Paulo (1932), Vargas lançou mão do contraste entre a institucionalização e o
Exército para reorganizar o Brasil, ambicio- enraizamento militar no aparelho do Esta-
nando dar um caráter unitário à República. do e a passagem de poder entre os generais-
A Intentona Comunista de 1935 levou a presidentes.
uma medida improcedente de ideologização A decisão pela abertura política – gradual,
e controle do sprit de corps militar, que mar- lenta e segura – do final da década de 1970,
ca a socialização das Forças Armadas até o espelhou o mesmo dilema com que o Exér-
presente. Com a assunção ditatorial de cito se confrontara ao final da primeira dé-
Vargas, em 1937, as Forças Armadas con- cada da República. O custo político de ser
frontaram-se com as tarefas do controle in- governo ameaçava comprometer a unidade
terno e do desenvolvimento como centros e quiescência dos grupos militares, prenun-
reais de sua responsabilidade para com a ciando embates pelo poder que arriscaram o
Nação. combate aberto entre facções militares.
A redemocratização brasileira de 1945 A transição para a democracia foi um
levou à retomada de diversas das questões período em que os militares estavam fora da
que a ditadura Vargas soubera controlar em Presidência, mas ainda detinham uma fra-
relação à ambição militar. A eleição de Dutra, ção substantiva de poder. Esta transição evi-
general e último ministro da Guerra de Ge- tou uma ruptura mais traumática e pôde
túlio Vargas, consubstanciou a continuidade preservar uma auto-estima militar quanto
do poder do Exército na nova etapa da vida ao período autoritário. Ao final da década
política, explicando a forma como as facções de 1980, foi possível construir um virtual
militares, que já então incluíam a Força Aé- consenso sobre (1) a subordinação militar
rea, criada em 1943, permaneceram como ao poder civil, (2) a impropriedade do re-
recurso político de arbitragem dos conflitos curso político às Forças Armadas e (3) a
das elites brasileiras. centralidade da questão da Defesa Nacional
Esse padrão de relacionamento acabou como sua missão.
por viabilizar a perspectiva de que as Forças
Armadas, elas mesmas, poderiam constituir-
se no melhor governo possível do Brasil. Essa
visão de um partido político “apartidário”,
acima das querelas da democracia, porta-voz
do bem comum e do interesse nacional, está
na raiz do Golpe de 1964 e da forma parti-
cular como ela se expressou através da Dou-
trina de Segurança Nacional.
O Golpe de 1964 representou aquilo que
foi designado como um equilíbrio catastrófi-
co, que só admitiria a solução bonarpartista
ou cesarista. É uma singularidade brasilei-
ra que a personagem desse Golpe tenha
sido a instituição militar e não uma pessoa, Marcha na Esplanada.

379
Os militares e a política

Só esse consenso explica a forma pacífi- exclusivamente diplomática, mercê inclusi-


ca pela qual a Constituição de 1988 pode ve de sua adjacência aos EUA e, portanto,
delimitar o alicerce fundamental das Forças dos resultados de segurança e diplomacia que
Armadas num único artigo, o 142, de acei- esta proximidade impõe. Isso quer dizer que
tação abrangente e inconteste. o México abdica do emprego de suas alter-
nativas de segurança em prol de um enten-
dimento particular, associado aos EUA.
4. Atualidade e rumos No caso argentino, tem-se uma posição
O caput do Artigo 142 da Carta de 1988 oposta em relação ao México. As Forças
estabelece o seguinte: Armadas encontram-se formalmente proibi-
das de qualquer atividade no interior do ter-
As Forças Armadas, constituídas ritório, até mesmo e explicitamente em ati-
pela Marinha, Exército e pela Aero- vidade de inteligência. Como resultado, a
náutica, são instituições nacionais orientação e as preocupações de política ex-
permanentes organizadas com base terna e de segurança ocupam integralmente
na hierarquia e na disciplina, sob au- as Forças Armadas argentinas, explicando
toridade suprema do Presidente da tanto a sua atividade quanto a sua disponibi-
República e destinam-se à defesa da lidade para ações militares no exterior – des-
Pátria, à garantia dos Poderes Cons- de a Guerra do Golfo, passando pela intensa
titucionais e, por iniciativa destes, da adesão argentina a missões de paz de diver-
Lei e da Ordem. sas naturezas nos últimos anos.
É importante perceber que existe nesta
Em termos regionais, a especificidade da atitude argentina uma medida de continui-
posição brasileira em relação ao papel das dade, temperada por uma alteração de ênfa-
Forças Armadas é marcante e, em muitos se nascida da redemocratização. Em inícios
aspectos, paradoxalmente consensual e con- da década de 1980, durante o regime mili-
troversa. Pode-se comparar a posição brasi- tar argentino, evidenciou-se uma política
leira com a do México e a da Argentina. Cada peculiar para o uso das Forças Armadas no
um destes países expressa decisões funda- cenário internacional. Nesse sentido, podem-
mentalmente diversas com relação aos limi- se tomar como exemplos desta política tan-
tes impostos à forma e aos instrumentos de to os desdobramentos da questão das
sua inserção de segurança. É oportuno des- Falklands/Malvinas, quanto a questão da
tacar estas diferenças para que se compreen- fronteira sul com o Chile ou, ainda, a oferta
da o contexto brasileiro e, em particular, a argentina de compor forças expedicionárias
sua natureza. para a intervenção na Nicarágua.
No caso mexicano, as Forças Armadas No caso brasileiro tem-se, nos termos
encontram-se formalmente destinadas à ação desta digressão, uma posição intermediária.
interna, sendo-lhes vedada a ação no exterior Em termos amplos, as Forças Armadas são
sob qualquer forma, exceto como parte de destinadas tanto a ações externas (a “defesa
uma aliança em caso de guerra internacio- da Pátria”) quanto a ações internas (as ga-
nal. Como resultado, a inserção de seguran- rantias “dos poderes constitucionais” e “da
ça internacional do México se dá de forma lei e da ordem”). A criação do Ministério da

380
Defesa em 1999, como articulação política Força Terrestre. Por outro lado, o malefício
unificada das Forças Armadas, ainda não tem que a continuidade da prática de se “chamar
sua missão expressa com o mesmo status um general”, como solução para os proble-
constitucional. A elaboração do que seja, de mas nacionais, tem para a democracia.
fato, a política de defesa ou a prática da ges- Mas a questão não se esgota apenas aí. A
tão articulada das Forças Armadas é, ainda, perspectiva de que o papel do Exército seja
um trabalho em andamento. o da presença homogênea no território da
Realisticamente, trata-se de uma questão federação pelo governo da União, a assim
de Estado e de uma tarefa de mais de um chamada “estratégia da presença” não pare-
período de governo. Esse trabalho necessita ce compatível com a idéia democrática ou
de continuidade ao longo do tempo, para com uma perspectiva de forças capazes de
articular o novo arranjo institucional, a di- dissuasão.
nâmica política de sua prática e as novas di- É necessário aferir o efeito de tais inter-
reções para o desenho interno das Forças venções no ciclo de preparo da Força Ter-
Armadas integradas. restre, e o quanto tais atividades afetam sua
capacidade de ação. Existe a necessidade de
dar conta das circunstâncias em que a União
5. A intervenção militar na garantia será chamada a respaldar as Unidades da
da lei e da ordem pública
Federação: seja no provimento de ordem
Um ponto relevante e indispensável é o pública, seja na garantia das leis, seja diante
das responsabilidades constitucionais pela de desastres naturais. Em particular, a con-
garantia da lei e da ordem atribuídas às For- taminação do termo “ordem pública” com a
ças Armadas. Na prática, tais responsabili- lógica de “segurança interna” tem sido um
dades têm levado a uma intervenção recor- obstáculo pernicioso à clareza da edificação
rente do Exército na vida nacional de forma de responsabilidades e meios federais para
ad hoc, e fora dos dispositivos constitucio- estas tarefas.
nais para a intervenção da União nos Esta- Há diversas alternativas possíveis. A con-
dos. Não se duvida que esta intervenção te- sideração sobre seu mérito relativo e opor-
nha sido consentida, seja para fins de ordem tunidade é uma tarefa natural do Congres-
pública, seja para fins de defesa civil. A ques- so. Apenas como balizas de tal consideração,
tão é que este recurso constante à Força Ter- pode-se argüir tanto pelo estabelecimento de
restre, como fonte de efetivo para tarefas distintas organizações federais, que atendam
policiais ou de defesa civil, compromete a às demandas diferenciadas da guarda de fron-
sua tarefa principal – e coloca em risco a teira, da defesa civil e da força federal de
democracia. provimento da ordem pública, quanto pelo
A questão aqui é, portanto, dupla. Por estabelecimento de uma força federal
um lado, o efeito pernicioso que as ativida- constabular,1 que detenha as competências
des de policiamento e defesa civil têm para a táticas e legais necessárias para o bom de-
capacidade combatente, missão primeira da sempenho destas tarefas.

1. Do inglês constabulary. Trata-se de um entendimento que enquadra forças que servem ao papel dual de
garantia da lei e respaldo da segurança, como, por exemplo, as guardas costeiras.

381
Os militares e a política

6. Panorama das forças singulares missão militar e correspondente organização.


Vigem as perspectivas das assim chamadas
É oportuno observar que a política de
defesa brasileira foi implícita durante as úl- “estratégias”.2 A partir de 2003, o Exército
timas décadas, com algumas observações se comprometeu com a substituição da “es-
sobre seus rumos no período mais recente tratégia da presença”, onde o papel do Exér-
(2003-2006). Apesar da publicação de do- cito é o de garantidor territorial, agente
cumentos nomeados como “Políticas de De- civilizatório, instrumento de desenvolvimen-
fesa Nacional” em 1996 e 2005, a política to, pelas estratégias da “dissuasão”, da “pro-
de defesa do Brasil segue sendo o resultado jeção de poder” e da “resistência”, orienta-
da justaposição de direções ocasionais da das para papéis claramente combatentes. A
política externa (por exemplo, forças de paz) dissuasão resultaria da posse de um disposi-
e das iniciativas para os programas mais tivo de resposta rápida capaz de assegurar a
longevos das Forças Armadas. Como resul- incolumidade do território contra a agres-
tado, as atividades brasileiras no campo da são de outrem. A projeção de poder resultaria
defesa ainda carecem de uma orientação que da posse da capacidade da ação internacio-
as unifique. Daí, a oportunidade de avaliar nalmente concertada, mas eventualmente
o resultado dos programas das forças singu- autônoma, de alcance continental e progres-
lares no presente. sivamente extra-continental. A resistência
Em termos gerais, verifica-se alguma dis- corresponderia a preparos para a guerra ir-
tância entre as metas explícitas de cada uma regular contra os avanços de uma potência
das forças singulares e seus procedimentos que não fosse dissuadida da invasão do ter-
de preparo; isto corresponde à forma dife- ritório brasileiro. Na prática, este pode ser
renciada como cada uma delas enfrenta os o caminho de uma escolha, afinal, pelo rumo
desafios do presente. da dissuasão.
A Marinha, por exemplo, manteria as A situação da Aeronáutica é ainda mais
suas opções constitutivas em aberto. De um complexa e delicada que a do Exército. O
ponto de vista, suas iniciativas de projeto de Ministério da Aeronáutica compreende três
força têm correspondido à busca simultânea grandes organizações: o Departamento de
dos meios associados a vários perfis de es- Aviação Civil – o DAC, que responde por
quadra. Buscam-se, assim, o submarino (à toda a questão do transporte e da infra-es-
propulsão) nuclear, a atualização da frota de trutura aérea; o Departamento de Pesquisa
fragatas, o porta-aviões e ainda diversas ou- e Desenvolvimento – o DEPED, que res-
tras especialidades navais. De outro ponto ponde pelo processo de desenvolvimento
de vista, isto corresponde a um esforço de tecnológico pelo qual se construirá a au-
manutenção de alternativas, o que pode ser tonomia brasileira no campo aeroespacial
tomado, sob mais de um aspecto, como o e a Força Aérea Brasileira – a FAB, que
comportamento mais útil para discussão das corresponde à força armada do ar propria-
alternativas brasileiras de defesa. mente dita. O equilíbrio de prioridades en-
O Exército convive há décadas com uma tre estas vocações nunca foi simples. A ten-
incompatibilidade central do que sejam sua dência a que cada uma delas seguisse o seu

2. De fato, porém, estas concepções correspondem a políticas internas (policies) do Exército.

382
próprio rumo acabou produzindo uma cri- diálogo com as nações amigas em ma-
se, ainda não resolvida, cujas evidências mais téria de defesa, o qual antes envol-
palpáveis foram a perda do monopólio da via, separadamente, quatro ministé-
asa fixa para a Marinha em 1996 e a insol- rios militares.
vência operacional de 2000. O desenrolar
do Projeto Fênix, que resultou desta última, Nesse sentido, explicitava-se o desejo de
sugere que a tensão entre as diversas verten- um esforço conjunto de civis e militares,
tes da FAB ainda marca a sua trajetória. apontando a necessidade da participação de
Este panorama dos desafios postos para setores pertinentes da sociedade, como o
as Forças Singulares contextualiza as suas Congresso Nacional, o universo acadêmico,
dificuldades e oportunidades no cumprimen- a imprensa, a área científico-tecnológica e a
to de sua missão constitucional. Mas, acima indústria. Há algumas iniciativas cujo resul-
de tudo, dá evidência dos rumos divergen- tado pode vir a ser o indicador mais confiável
tes que cada uma delas vem perseguindo. do alcance destas metas: a atividade do Con-
Nesse sentido, são mais insumos para a con- selho de Notáveis (de que os autores foram
sideração das alternativas abertas ao Brasil membros), a criação do Centro de Estudos
na opinião de seus militares do que propria- de Defesa e a publicação de uma nova Políti-
mente a definição de uma direção. Esta di- ca de Defesa Nacional.
reção parece residir com o recém-criado Estes elementos seriam expressão do
Ministério da Defesa. novo desenho geral da estrutura de defesa
brasileira:

7. Ministério e política de defesa


[a] capacidade de pronta respos-
Em 2002, o último titular da pasta da ta, na qual estão subjacentes carac-
defesa do governo Fernando Henrique Car- terísticas como versatilidade, flexi-
doso definiu a destinação do Ministério da bilidade, interoperabilidade e
Defesa nos seguintes termos: sustentabilidade. [...] a revisão da es-
trutura de defesa brasileira estará
[...] a missão principal que cabe norteada não por um quadro hipo-
ao Ministério é a de modernizar a es- tético de ameaças de agressão con-
trutura militar brasileira, de forma a vencional por outros Estados, pro-
habilitá-la a atender aos desafios dos babilidade hoje mínima, e sim na
novos tempos. capacitação operacional, com maior
ênfase em forças leves, ágeis, bem
Indo além, apontou-se como o Ministé- adestradas, aptas a atuar de modo
rio da Defesa atuava no sentido de: combinado e a cumprir diferentes ti-
pos de missões.
proporcionar maior raciona-
lidade administrativa, ao subordinar Esta definição civil de um horizonte inte-
as Forças Armadas à autoridade polí- grado para as três forças singulares, coorde-
tica em um novo quadro de Estado nando-as e priorizando suas atividades em prol
de Direito democrático, facilitando o de uma meta comum é, potencialmente, a

383
Os militares e a política

mais importante contribuição do Ministério exercício da direção superior da defesa pelo


da Defesa. A se realizar de maneira explíci- ministro da Defesa pareceu consolidar a au-
ta, clara e amadurecida, assinalaria a passa- tonomia das forças singulares na escolha de
gem entre a questão da política militar, em suas prioridades e na gestão dos recursos
que a questão da intervenção estava sempre orçamentários que lhes são repassados.
presente, e a da política de defesa nacional O terceiro foi a publicação de um docu-
da democracia brasileira, em que ela não mais mento “Política de Defesa Nacional” em ju-
se coloca. Os “militares”, enquanto tais, dei- lho de 2005, em substituição ao de 1996. Seu
xariam a cena da política brasileira, para se conteúdo marca um retrocesso em termos do
transformarem nos soldados profissionais da exercício do poder civil sobre as Forças Ar-
política de defesa nacional. madas. Aderindo a metas expressas em ge-
O primeiro titular da pasta da defesa neralidades, listando sem hierarquizar uma
no governo Luiz Inácio Lula da Silva grande variedade de objetivos e diretrizes
reconfigurou o relacionamento com a socie- estratégicas inspiradas nas ambições indi-
dade, encerrando as atividades do Conselho viduais e conjuntas das forças singulares, de-
de Notáveis e inaugurando uma série de con- clinando de estabelecer prioridades, seu con-
ferências orientadas para a reconcepção da teúdo abrangente autoriza as mais variadas
política de defesa. Apesar deste esforço ter iniciativas e ambições. Seu papel pode vir a
produzido reuniões e textos, três fatores ser o de ter emprestado legalidade à autono-
podem ser apontados como revertendo a ten- mia de planejamento, formulação de priori-
dência de maior participação civil e de confi- dades e implementação administrativa e or-
guração de uma política de defesa integrada. çamentária das forças singulares.
O primeiro foi uma crise entre o titular É certamente possível interpretar estes
da pasta da defesa e o comandante do Exér- três elementos com sendo o resultado de di-
cito em 2004, cujo móvel foi o entendi- nâmicas conjunturais, isto é, como escolhas
mento sobre eventos do período do regi- de um determinado rumo governamental. A
me militar. A queda do então ministro e a ausência de prioridade e direção positiva é
permanência do então comandante plan- tanto política de defesa de um governo quan-
taram dúvidas quanto à credibilidade do res- to o seu contrário. Da mesma forma é possí-
paldo presidencial à autoridade do cargo de vel afirmar que a autonomia concreta da
ministro da Defesa. condução da política de defesa pelas forças
O segundo foi o processo de desdobra- singulares não é sinônimo automático nem
mento do primeiro. A pasta da defesa foi de autonomia política em sentido amplo nem
ocupada em seguida à crise pelo vice-pre- de risco de um golpe de Estado.
sidente da República, José de Alencar e, A questão substantiva de tal trajetória
em seguida, por um político de grande pode ter sido a de anular a subordinação
senioridade, Waldyr Pires. Suas gestões pa- militar ao poder civil no dia-a-dia. Isso não
recem ser pautadas pela decisão presiden- se confunde com qualquer perda de conti-
cial de que a ocupação do posto ministerial nuidade da deferência formal dos coman-
seria uma formalidade, não servindo para dantes de forças singulares ao presidente da
imprimir qualquer direção particular aos República ou seu enquadramento pelo or-
assuntos de defesa. Esse esvaziamento do çamento da União. Mas tais considerações

384
apenas revelam que os comandantes das for-
ças singulares voltaram a ser, de facto, mi-
nistros de Estado. A ausência do estabeleci-
mento de quadros e carreiras no Ministério
da Defesa pode significar que a pasta da de-
fesa do Brasil passa a ser uma função ceri-
monial. A se confirmar tal prognóstico, en-
tão a questão política dos militares no Brasil
pode ter retornado aos mesmos contornos
que tinha em 1999.

385
Sugestões de leitura

AGUIAR, Roberto A. R. de. Os militares e a Constituinte. São Paulo: Alfa-Ômega, 1986.


BRIGAGÃO, Clóvis. A militarização da sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. (Coleção Anos de Autoritarismo).
CASTRO, Celso. Os militares e a República. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
_______. O espírito militar. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
D’ARAÚJO, Maria Celina, CASTRO, Celso. Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro: FGV,
2000.
FINER, S. E. The Man on Horseback. Boulder: Westview, 1988.
HUNTINGTON, Samuel. The soldier and the State. Cambridge, 1957.
IZECKSON, Vitor. O cerne da discórdia. Rio de Janeiro: Bibliex, 1999.
LUDWIG, Antônio Carlos. Democracia e ensino militar. São Paulo: Cortez, 1998.
MATHIAS, Suzeley Kalil. Distensão no Brasil. Campinas: Papirus, 1995.
MORAES, Reginaldo, ANTUNES, Ricardo, FERRANTE, Vera B. Inteligência brasileira. São Paulo: Brasiliense,
[1986].
OLIVEIRA, Juarez. (Org.). Forças Armadas. São Paulo: Oliveira Mendes, 1997.
PEREIRA, Antônio Carlos. As Forças Armadas e a Nova Constituição. In: _______. et al. Política e estratégia. São
Paulo: Centro de Estudos Estratégicos/Convívio, jul./set., 1985.
PROENÇA Jr., Domício, DINIZ, Eugênio. Política de defesa no Brasil: uma análise crítica. Brasília: Ed. UnB,
1998.
RIZZO, Eliézer et. al. As Forças Armadas no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.
SAINT-PIERRE, Héctor Luis. A política armada. São Paulo: Unesp, 1999.
SODRÉ, Nelson Werneck. A história militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

386
Capítulo 8
A Igreja Católica e o Estado Brasileiro

PAULO FERNANDO CARNEIRO DE ANDRADE

1. O Catolicismo colonial brasileiro passou a exercer sobre o Brasil não apenas o


governo civil, mas também eclesiástico, com
A história da Igreja Católica no Brasil
o direito de cobrar e administrar o dízimo
confunde-se com a própria história da for-
eclesiástico, encaminhar a criação de dioceses
mação do Estado brasileiro. Sua presença
e paróquias, assim como apresentar os no-
encontra-se já no momento da descoberta, mes dos escolhidos para o episcopado e para
feita por portugueses que navegavam com o exercício dos diversos governos diocesanos
embarcações cujas velas portavam o símbo- e paroquiais. Era também sua função zelar
lo da Ordem de Cristo. pela construção e conservação dos edifícios
No Brasil Colonial e Imperial, a Igreja de culto, bem como responsabilizar-se pela
encontrava-se unida ao Estado através do manutenção do clero, aprovação da entrada
regime do padroado. Por esse regime cabia à de novas ordens religiosas e criação de con-
Coroa portuguesa e, depois da independência, ventos. Note-se que o padroado não deve
ao imperador do Brasil exercer uma função ser compreendido como uma usurpação de
de proteção da Igreja Católica, reconhecen- poder, mas como uma concessão da Santa
do o catolicismo como única religião verda- Sé, típica do contexto medieval, uma forma
deira e, por isso, oficial e exclusiva da na- específica de acordo entre a Igreja de Roma e
ção.1 A instituição do padroado em Portugal alguns Estados. Cabia à Santa Sé confirmar
está estreitamente ligada à Ordem de Cris- as atividades do rei, que, na prática, atuava
to, sucessora, nesse reino, da extinta Ordem como uma espécie de delegado pontifício para
dos Templários. A Santa Sé havia concedido o Brasil, tendo criado em 1532, para uma
a esta ordem, da qual o detentor da Coroa melhor administração, a Mesa da Consciên-
portuguesa possuía o título perpétuo de grão- cia e Ordens, que tinha por atribuição, entre
mestre, a jurisdição eclesiástica sobre todas outras coisas, dar o parecer jurídico para o
as terras que haviam conquistado e que não provimento de todos os cargos eclesiásticos.3
estavam ainda incorporadas a nenhuma O catolicismo que se implanta no Brasil
diocese.2 Desse modo, a Coroa portuguesa Colonial tem características bem diferentes

1. Cf. E. Hoornaert et al. História da Igreja no Brasil. Primeira Época. Tomo II. Petrópolis: Vozes, 1979, 2.ed.,
p.162.
2. Para um estudo da forma como o Padroado foi exercido pela Coroa nas diversas colônias do Império Por-
tuguês veja-se C. Boxer. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 242-261.
3. Cf. E. Hoornaert et al, op. cit., p.163-4.

387
A Igreja Católica e o Estado Brasileiro

daquele que se implantará no século XIX se ao longo do período colonial não poucos
por ação dos bispos reformadores.4 Trata-se sacerdotes que exerceram papel crítico e de-
de um catolicismo ibérico de características fenderam posições conflituosas como o apoio
medievais que tem seu centro mais no culto a movimentos de independência.6
aos santos do que na freqüência dos sacra-
mentos. É o catolicismo das capelinhas de
beira de estrada, das irmandades e confrarias, 2. Reforma e restauração católica
no Brasil
dos santuários, das ladainhas e festas de san-
tos. Em muitos lugares o contato com o cle- Em meados do século XIX a situação do
ro era esporádico, feito por ocasião das visi- catolicismo no Brasil começa a se alterar por
tas de desobriga. Não que o papel do clero ação do clero reformador.7 Em 1844 foi no-
fosse secundário ou sem importância. Era o meado para a diocese de Mariana D. Antonio
clero, mesmo que só através dessas visitas, Ferreira Viçoso. Sua atuação episcopal foi al-
que dava unidade e confirmava a fé, que tamente significativa, convertendo-se em um
possibilitava o acesso aos sacramentos, bati- dos primeiros e principais líderes do movi-
zava, casava. Deve-se destacar, também, a mento reformista. Esse movimento consis-
importância que teve o clero religioso para tia basicamente na substituição do antigo
a evangelização do Brasil. Padres jesuítas, modelo de Igreja Cristandade Colonial pelo
franciscanos e carmelitas, entre outros, tive- modelo Igreja Hierárquica, aos modos do
ram um importante papel na constituição do Concílio Tridentino. A ação dos bispos
catolicismo brasileiro.5 reformadores, que se encontrava em perfei-
Ser brasileiro, assim como ser português, ta sintonia com Roma, buscava, de um lado,
era ser católico. Nesse sentido não se pode uma maior independência da Igreja frente
falar, no período em questão, em sentido pró- ao Estado e, de outro, a substituição de todo
prio, em uma presença destacada de leigos um modo de ser do catolicismo colonial pré-
católicos na política, distinta de outros atores tridentino por um modelo novo, conforme
sociais. Quando da formação das Câmaras já assinalado. Dentro do processo de refor-
deve ser destacado que alguns padres e bis- ma do catolicismo brasileiro surge, em 1873,
pos tinham mandato político, o que era cor- um grave conflito entre o episcopado e o
riqueiro em todas as partes e não constituía Estado, que ficou conhecido como a “Ques-
um problema nem para a Igreja nem para o tão Religiosa”. A motivação jurídica mais
Estado. Não obstante a relativa dependência, imediata do conflito foi a suspensão, por
até mesmo econômica, que o clero mantinha parte de D. Vital, bispo de Pernambuco, de
em relação à Coroa portuguesa, encontram- várias irmandades e ordens terceiras que se

4. R. Azzi. O Catolicismo popular no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1978.


5. VV.AA. A religião do povo. São Paulo: Paulinas, 1978.
6. Cf. D. D. Leopoldo e Silva. O Clero e a Independência. São Paulo: Paulinas, 1972. Observe-se nesta obra a
referência à presença ativa de membros do clero em movimentos como A revolta do Maranhão (1865), A
guerra dos Mascates (1710), A guerra dos Emboabas (1709) e a Inconfidência Mineira (1792) onde “nove
eram os Padres inconfidentes” (p.187).
7. Oliveira, P. R. Religião e dominação de classe. Gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no
Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985.

388
haviam negado a obedecer às exigências de foi resultado da intensificação de um con-
afastar de seus quadros membros maçons. flito maior, fruto das transformações que
Diante da suspensão e da conseqüente inter- os bispos reformados lideravam no catoli-
dição de suas capelas, as irmandades e or- cismo brasileiro. A Igreja sempre fora mes-
dens terceiras atingidas apelaram ao impe- tra da verdade e, nesta nova vivência cató-
rador, na qualidade de tribunal superior à lica, passaram a se acentuar especialmente
autoridade do bispo, alegando, entre outras os aspectos doutrinais e disciplinares. Tra-
coisas, que as bulas pontifícias que condena- tava-se de um catolicismo mais uniforme e
vam a maçonaria não tinham validade no mais centralizado em Roma. A “Questão Re-
Brasil por não terem obtido o beneplácito ligiosa” constituiu um importante marco na
imperial, conforme previsto no estatuto do relação Igreja-Estado no Brasil, acabando
padroado, que a Coroa brasileira havia her- por estender o conflito entre os dois bispos
dado da portuguesa através da Independên- a todo o episcopado. Poucos anos depois,
cia.8 O imperador acolheu o recurso e deter- com a proclamação da República, de inspi-
minou a cessação dos efeitos dos atos de D. ração maçônica e positivista, ficava extinto
Vital e também de D. Macedo Costa, bispo o padroado.
do Pará, que havia emanado decretos seme- Com a separação Igreja-Estado na Repú-
lhantes. Ambos os bispos rejeitam as ordens blica, em 1890 a Igreja perde privilégios e,
do imperador afirmando que, em matéria diante do Estado laico, baseado no ideário
religiosa, o poder civil não é autoridade, pois liberal, mantém reservas e resistências. Essa
“os príncipes e monarcas são ovelhas e não situação coincide com a mesma experiência
pastores, seus súditos e não prelados, filhos que a Igreja Católica vive, nesse período, em
da Igreja e não pais”.9 Diante da recusa dos diversos outros países. Em 1870, com a uni-
bispos em cumprir a decisão imperial, que ficação italiana a Igreja perde os Estados
tinha valor legal, o presidente do Supremo Pontifícios e o papa se confina no Vaticano,
Tribunal de Justiça expediu mandato de pri- declarando-se prisioneiro. Os esforços, no
são, por considerar que ambos haviam in- Brasil, voltam-se para a organização interna
fringido o artigo 96 do Código Criminal. da estrutura eclesiástica e para a criação de
Dentro dos princípios jurídicos da monar- novas dioceses, seminários e associações de
quia constitucional brasileira, ambos foram fiéis, que concorrem com as antigas confra-
julgados pelo Supremo Tribunal e condena- rias e muitas vezes as substituem. Novas
dos a quatro anos de prisão com trabalhos congregações, femininas e masculinas, che-
forçados, tendo sido, no ano seguinte à con- gam ao país, incentivando novas devoções e
denação, anistiados. A “Questão Religiosa” criando uma nova identidade católica,
se insere dentro da lógica da reforma católi- apologética. Não obstante a separação en-
ca e das controvérsias antimodernas e tre a Igreja e o Estado, alguns membros da
ultramontanas que agitavam a Igreja euro- hierarquia continuam a participar da vida
péia naquele momento. O conflito imediato política, incentivados pela própria Igreja,

8. Cf. J. Fagundes Hauck et al. História da Igreja no Brasil. Segunda Época. Tomo II/2. Petrópolis: Vozes, 1980,
p.186-92.
9. Ibidem, p.145.

389
A Igreja Católica e o Estado Brasileiro

candidatando-se a cargos eletivos com o são por grupos de idade e sexo. Entre 1948 e
objetivo de defender os interesses católicos. 1954 dá-se a transformação da estrutura
A partir de 1920, nota-se uma mudan- organizacional na direção do modelo adota-
ça de atitude, em consonância com uma do na Bélgica, Canadá e França, baseado na
nova perspectiva da relação entre Igreja, divisão segundo os diferentes meios sociais, a
Modernidade, Estado e Sociedade, adotada chamada Ação Católica especializada, que deu
por Roma, que tendo sido iniciada no Ponti- origem, entre outras organizações, à JAC –
ficado de Leão XIII, vinha desde então se Juventude Agrária Católica, JOC – Juventu-
consolidando.10 No Brasil, essa nova fase, que de Operária Católica, JEC – Juventude Estu-
pode ser denominada “restauração católica”, dantil Católica e JUC – Juventude Universi-
caracteriza-se pelo abandono de uma atitu- tária Católica.
de meramente defensiva em prol da busca A influência do pensamento de J. Maritain
de uma ação afirmativa na sociedade. A Igreja abre, pouco a pouco, a Ação Católica para uma
reafirma-se diante do poder político como a visão social menos conservadora, mais próxi-
orientadora da vida religiosa nacional. A in- ma de uma visão liberal e socialmente
fluência política é vista como algo necessá- transformadora. Notável é também a influ-
rio para a transmissão da fé. A sociedade deve ência das idéias de Monsenhor Cardjin, cuja
ser plasmada pelos princípios católicos, uma noção de “Revisão de vida e ação”, com o
vez que a hegemonia da Igreja no Brasil é método “Ver, julgar e agir”, exercerá uma
quase total. Conforme o hino oficial do II revolução copernicana no modo de compre-
Congresso Eucarístico, celebrado em Reci- ender a realidade dos membros da Ação Ca-
fe, em 1936, “Quem não crê (na eucaristia), tólica. Esse método de análise da realidade
brasileiro não é”. Trata-se de uma nova pers- será aplicado no Brasil a partir da Semana
pectiva de conquista espiritual do mundo que Nacional da Ação Católica de 1948 no ramo
coincide com a mudança de posicionamento masculino do movimento e logo é adotado
do papado diante do Estado italiano. por todos.12
Nesse período a hierarquia incentiva a A partir de 1950 a JUC seguirá uma posi-
participação política do laicato. Em 1932 ção de gradativa independência no interior
inicia-se embrionariamente a Ação Católica da Ação Católica brasileira, inserindo-se
no Brasil por iniciativa de D. Sebastião Leme cada vez mais no meio estudantil universi-
(Rio de Janeiro) e do padre João Batista Cos- tário e assumindo, pouco a pouco, relevante
ta (Recife).11 Seus estatutos foram promulga- papel no seio da política estudantil. Já em
dos em 1935 pelo Episcopado Nacional, sen- meados dos anos 50, sob influência do pensa-
do seu primeiro presidente Alceu Amoroso mento do padre Lebret e animada pela ação
Lima. O modelo inicialmente adotado era o do então padre Helder Câmara, caminha em
italiano, mais centralizado e fundado na divi- direção a uma prática de engajamento do

10. Cf. J. Holland. Modern Catholic Social Teaching. The Popes Confront the Industrial Age, 1740-1958. Nova
York: Paulist Press, 2004
11. Cf. D. M. Carvalheira. Momentos históricos e desdobramentos da Ação Católica Brasileira, em REB, v.169,
1983, p.10-28.
12. Cf. M. Moreira Alves. A Igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979, p.123.

390
jovem universitário na transformação da rea- governo militar desse curso às reformas so-
lidade nacional.13 O chamado “Congresso ciais que eles mesmos vinham defendendo
dos Dez Anos”, de 1960, torna definitivo o como imprescindíveis para o futuro do Bra-
engajamento político dos jucistas, orientado sil, já à época do governo João Goulart, além
basicamente na direção de uma opção revo- de insistirem que se devia restaurar a demo-
lucionária que incluía aliança prática com cracia rapidamente.15
organizações comunistas. Essa opção resul- O período do golpe militar coincide com
tou na criação da Ação Popular, que, embora o do Concílio Vaticano II e da grande obra
não fosse um grupo confessional, era consti- de aggiornamento da Igreja Católica. Como
tuída, em sua maioria, por quadros oriun- reflexo direto do Concílio, firma-se, naque-
dos das organizações católicas. O crescente le momento, no interior da Igreja latino-ame-
conflito entre a Ação Popular e a hierarquia ricana, uma crescente preocupação com o
católica culminaria na extinção da JUC em povo pobre e as causas sociais. Como parte
1966.14 desse movimento inúmeros sacerdotes e re-
ligiosas passam a morar nas periferias e na
zona rural, em pequenas comunidades, par-
3. A Igreja e o governo tilhando as condições de vida dos empobre-
militar brasileiro
cidos. Essa mudança de condições sociais,
A crescente tensão social e política no aliada a uma maior sensibilidade para com
início da década de 1960 no Brasil divide o os valores da justiça social e dos direitos
episcopado católico. Embora majoritaria- humanos da modernidade, leva amplos se-
mente identificado com o horizonte das oli- tores da Igreja a um rápido distanciamento
garquias agrárias, contrário às transforma- do governo militar. Em 1968 muitos padres,
ções sociais, encontram-se também, em seu religiosos e religiosas participam, no Rio de
meio, não poucos bispos que aderem a uma Janeiro, da “Marcha dos Cem Mil”, um
perspectiva desenvolvimentista ou mesmo grande ato de contestação, a favor do fim
mais profundamente transformadora. Dian- do governo militar. No final do mesmo ano
te da ameaça, ao menos imaginária, de que, o governo responde com o recrudescimento
por ação do então presidente João Goulart, de suas posições autoritárias e proclama o
um regime comunista viesse a se implantar “Ato Institucional nº 5”, que lhe amplia os po-
no Brasil, o episcopado, majoritariamente, deres ditatoriais, fecha o Congresso e desenca-
acaba por apoiar o golpe militar de 1964, deia uma onda de repressão ainda maior,
que interrompeu o processo democrático e com emprego amplo e sistemático de práti-
instaurou uma ditadura no país. Deve-se cas contrárias às mais elementares normas
destacar que, apesar do apoio dado ao gol- do direito, inclusive a tortura.
pe, alguns setores do episcopado mostravam- À medida que as prisões arbitrárias e
se preocupados com a necessidade de que o a tortura passavam a atingir membros do

13. Ibidem, p.124-5.


14. Cf. L. G. Souza Lima. Evolução política dos católicos e da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1979.
15. Cf. S. Bernal, CNBB. Da Igreja da cristandade à Igreja dos pobres. São Paulo: Loyola, 1989, especialmente
p.48-56.

391
A Igreja Católica e o Estado Brasileiro

clero, religiosos e religiosas, leigos ligados à tros, por serem estrangeiros, são expulsos do
hierarquia e parentes diretos de alguns bis- Brasil. Um comando de extrema direita, de
pos, amplos setores da hierarquia, mesmo origem militar, assassina em abril de 1969 o
aqueles de posição moderada e muitas vezes padre Antônio Henrique Pereira Neto, as-
conservadora, davam-se conta da necessida- sistente de D. Helder para a juventude na
de de intervir contra o governo e colocar-se diocese de Recife.17 Em 1970, D. Aloísio
na defesa do Estado de Direito. A CNBB – Lorscheider, na época secretário geral da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CNBB, é detido por cerca de quatro horas na
passa a assumir um papel central na luta pe- sede da entidade e impedido de comparecer a
los direitos humanos, tornando-se um foco uma reunião com o ministro da Justiça.18
permanente de resistência democrática. A ten- A ação dos bispos brasileiros contra a
são entre o governo militar e a hierarquia violação dos direitos humanos foi ampla-
católica cresce até um ponto de quase ruptu- mente respaldada pelo Vaticano. A Radio
ra. Mesmo alguns membros da alta hierar- Vaticano e o jornal L’Osservatore Romano
quia da Igreja, que inicialmente tinham ma- (órgãos oficiais da Santa Sé) denunciavam
nifestado seu apoio ao golpe militar, por seu os abusos cometidos pelo governo militar,
caráter anticomunista, são hostilizados pelos chegando a ser publicada uma nota da CNBB.
militares por se oporem a alguns atos mais O próprio papa Paulo VI manifestou publi-
autoritários, como acontece com D. Agnelo camente seu apoio aos bispos brasileiros e
Rossi, na época cardeal arcebispo de São Pau- condenou a tortura.19 Apesar da tensão cres-
lo. Em dezembro de 1968, alguns meses após cente, nunca se produziu uma total ruptura
ter se recusado a receber o título da Ordem entre os militares e a Igreja. Alguns canais
do Mérito Nacional, em virtude da invasão de comunicação foram deixados abertos,
de sua casa por militares e policiais para pren- como a chamada Comissão Bipartide, cria-
der e deportar um padre estrangeiro, D. da em novembro de 1970 no Rio de Janei-
Agnelo Rossi é impedido de celebrar missa ro, então cidade sede da CNBB. A Comis-
de primeira comunhão para filhos de milita- são, que não tinha caráter oficial, era com-
res em sua diocese.16 posta, do lado da Igreja, pela cúpula da
Vários bispos, como D. Waldir Calheiros, CNBB, pelo Núncio Apostólico, pelos Car-
de Volta Redonda, e D. Helder Câmara, de deais de São Paulo (D. Paulo Evaristo Arns)
Recife, passam por situações constrangedo- e do Rio de Janeiro (D. Eugenio Salles) e
ras. Militares de alta patente fazem discursos pelo assessor da CNBB, professor Candido
e dão depoimentos e entrevistas acusando a Mendes; do lado da situação encontravam-
hierarquia da Igreja e a CNBB de estarem a se o general Antonio Muricy, o tenente-
serviço do comunismo internacional. Padres coronel Roberto Pacífico, o major Leone da
são presos e muitas vezes torturados. Alguns Silveira Lee e o professor Tarcisio Padilha.
são condenados por tribunais militares e ou- Embora o estudo recente do brasilianista

16. Cf. R. Azzi. Presença da Igreja Católica na sociedade brasileira, em Cadernos do ISER, v.13, 1981, p.901.
17. Ibidem, p.93.
18. Ibidem, p.98.
19. Ibidem, p.98.

392
K. Serbin tenha dado grande destaque ao Padin, apresentado à Assembléia da CNBB
papel dessa comissão,20 ela não deve ser em 1968, que analisava criticamente a
compreendida como um instrumento isola- Doutrina da Segurança Nacional à luz
damente eficaz. Sua importância não se fun- da Doutrina Social da Igreja e é considerado
dava em nenhum tipo de respeito que os um marco referencial, os seguintes documen-
militares pudessem nutrir pela Igreja ou por tos merecem destaque: “Eu ouvi os clamo-
membros da hierarquia católica, mas na pres- res do meu povo”, dos Bispos do Nordeste,
são sobre o governo causada pela ação de de maio de 1973; “Comunicação pastoral ao
denúncia pública, nacional e internacional, povo de Deus”, da Comissão Representativa
que contava com o apoio do Vaticano e era da CNBB de 1976 e “Exigências cristãs de
exercida pela CNBB e por membros desta- uma ordem política”, de 1977. Esses docu-
cados da hierarquia como o cardeal D. Pau- mentos, elaborados em diferentes épocas e
lo Evaristo Arns, cujo papel solidário e in- contextos, constituíram umas das poucas
condicional a favor dos presos políticos, dos oportunidades de romper o silêncio impos-
direitos humanos e do Estado de Direito resta to pela censura e a mordaça que, naqueles
insubstituível. A comissão interessava ao anos, pretendia calar qualquer voz crítica ao
governo, especialmente aos seus setores regime militar, seus atos e sua ideologia.
menos radicais, como instrumento para man-
ter algum tipo de entendimento que evitasse
a total ruptura e uma ulterior degradação
do conceito do Brasil no exterior. Nesse sen-
tido, sua limitada eficácia, assim como a efi-
ciência da ação de alguns membros conser-
vadores da hierarquia que se colocaram como
interlocutores privilegiados dos militares, era
fortemente dependente da ação de seus pa-
res que tinham papel público inequívoco e
internacionalmente destacado na denúncia à
tortura e na defesa dos direitos humanos e
das liberdades civis.
Durante os anos mais repressivos da di-
tadura militar foram de fundamental impor-
tância alguns documentos promulgados pela D. Cláudio Hummes (arcebispo de São Paulo).
hierarquia católica brasileira. Além das de-
zenas de comunicados coletivos e individuais,
das homilias lidas nas missas dominicais de
todas as paróquias de uma diocese, das no-
tas públicas de protestos feitas pelo episco-
pado nacional e do estudo de D. Cândido

20. Serbin, K. Diálogos na sombra. Bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.

393
A Igreja Católica e o Estado Brasileiro

4. As Comunidades Eclesiais de Base Em 1994 foi conduzida uma pesquisa


O forte posicionamento da hierarquia (que congregou o CERIS – Centro de Esta-
católica a favor dos direitos humanos e do tísticas Religiosas e Investigações Sociais e a
Estado de Direito, expresso em documentos Equipe de Assessoria do ISER – Instituto de
e ações, tanto pessoais quanto coletivas, era Estudos da Religião) que estimou, naquele
acompanhado de um intenso movimento pas- momento, o número de comunidades no país
toral, seja através das chamadas Pastorais Es- como da ordem de cem mil.23 Pesquisas pos-
pecíficas, tais como a Pastoral dos Trabalha- teriores, feitas por ocasião dos Encontros
dores, da Terra (com a CPT – Comissão Pas- Intereclesiais de CEBs, permitiram concluir
toral da Terra) e dos Indígenas (com o CIMI que, não obstante sua pouca visibilidade na
– Conselho Indigenista Missionário), seja atra- mídia, as CEBs continuam a crescer e a man-
vés da criação das Comunidades Eclesiais de ter vitalidade eclesial e social.24 Outras pes-
Base. Estas começaram a ser criadas, em mea- quisas, feitas pelo ISER/Assessoria ao longo
dos dos anos 60, em algumas dioceses e logo de dez anos (1984-1995) com o intuito de
se espalharam por todo o Brasil.21 São pe- avaliar pastoralmente dez dioceses de dife-
quenas comunidades, compostas de algumas rentes pontos do país que requisitaram esse
famílias vizinhas, majoritariamente habitan- tipo de trabalho, permitem observar como,
tes da zona rural e da periferia das cidades, através das CEBs, católicos pertencentes a
que se reúnem regularmente para celebrar um grupos populares, do ponto de vista
culto centrado nas escrituras e para refletir, socioeconômico, tomaram parte em diver-
nos círculos bíblicos, sobre fatos da vida à luz sas lutas sociais, até mesmo com participa-
de um texto bíblico. Em função de sua fé, ção político-partidária, especialmente nos
engajam-se em lutas transformadoras, em ní- partidos mais ligados às transformações so-
vel local e nacional. Essas comunidades são ciais tais como o PT – Partido dos Trabalha-
geralmente dirigidas pelos próprios leigos, de dores.25 Deve-se considerar, de modo espe-
modo colegiado, e coordenadas pela diocese cial, que, durante os anos de maior fecha-
ou paróquia na qual se inserem, embora deva- mento do governo militar, quando, por um
se observar que, ao menos inicialmente, eram longo período, quase todos os canais de
pensadas como uma nova estrutura de Igreja participação democráticos foram bloquea-
que levaria à superação da paróquia tradicio- dos, as CEBs constituíram um espaço de
nal. Com o passar dos anos, nota-se, entre- aprendizado participativo, no qual se desen-
tanto, que as CEBs não substituíram as paró- volviam práticas democráticas – com deci-
quias, mas as revitalizaram. As duas estrutu- sões obtidas após exaustivo debate – e se
ras não são necessariamente excludentes e exercia a crítica social.26 Nesse sentido pode-
podem ser combinadas.22 se dizer que as CEBs tiveram importante

21. Caramuru de Barros, R. Comunidade Eclesial de Base, uma opção pastoral decisiva. Petrópolis: Vozes, 1967.
22. Cf. I. Lesbaupin (Org.) Igreja. Comunidade e massa. São Paulo: Paulinas, 1996.
23. Cf. R. Valle & M. Pitta. Comunidades eclesiais católicas: resultados estatísticos no Brasil. Petrópolis: Vozes/
Ceris, 1994.
24. Cf. P. R. Oliveira. Perfil social e político das lideranças das CEBs no Brasil, em REB, v.245, 2002, p.172-84.
25. Cf. VV.AA. As Comunidades de Base em questão. São Paulo: Paulinas, 1997.
26. Cf. L. E. Wanderley. Comunidades de base e educação popular, em REB, v.164, 1981, p.686-707.

394
papel na resistência democrática ao governo Deve-se aqui recordar que, no momen-
militar e no restabelecimento democrático to da redemocratização brasileira, quando
que se dá no país após 1996, especialmente ocorreu a reforma partidária e teve fim o
ao fornecer excelentes quadros populares aos bipartidarismo imposto pelo governo mili-
movimentos sociais, sindicatos e partidos po- tar, chegou a ser discutida a conveniência de
líticos.27 Dados recolhidos junto aos 2.395 se fundar um partido católico, aos moldes
delegados/participantes do 10o Encontro da Democracia Cristã italiana. A hierarquia
Intereclesial de CEBs realizado em Ilhéus, católica brasileira mostrou-se majoritaria-
Bahia, em 2000, indicam que pelo menos mente refratária a essa perspectiva, incenti-
84% dos 1.439 delegados/participantes que vando uma participação plural dos católicos
devolveram o questionário preenchido ha- e procurando agir sempre no campo dos va-
viam participado de alguma luta social; 76% lores e da formação política suprapartidária.
tinham participação em alguma organização Posteriormente, católicos ligados ao Movi-
da sociedade civil e pelo menos 58% ha- mento de Renovação Carismática fundaram
viam sofrido algum tipo de perseguição, um partido próprio, o Partido da Solidarie-
como ameaça, prisão ou mesmo violência dade Nacional, inspirado no solidarismo ca-
física em decorrência das lutas sociais.28 tólico, que obteve escasso resultado eleito-
Em termos de participação político-par- ral (o candidato a presidente por esse parti-
tidária, a mesma pesquisa mostra um cresci- do foi o menos votado nas eleições de 1998,
mento do número de filiados a partidos po- tendo recebido apenas 109 mil votos, o que
líticos (56% de delegados/participantes corresponde a 0,16% do total de votos váli-
filiados, contra 30% dos que responderam dos).31 Observe-se que os católicos ligados à
questionário similar em 1981). Entre os Renovação Carismática e às CEBs não ape-
filiados, 75% eram do PT; e apenas 8%, de nas apresentam diferenças quanto ao leque
partidos que compunham a base de susten- mais visível de suas opções ideológico-par-
tação do então governo Fernando Henrique tidárias mas também quanto às suas estraté-
Cardoso (PSDB, PMDB, PFL).29 A força elei- gias. As CEBs não constituem um movimen-
toral das CEBs tem provocado diferentes in- to centralizado e não indicam candidatos,
terpretações. Alguns autores relacionam a embora existam diversos candidatos delas
expressiva vitória de candidatos do PT em oriundos e muitas comunidades singularmen-
regiões tradicionalmente muito conservado- te possam manifestar simpatia por um ou ou-
ras como o Acre e Amazonas à atuação des- tro candidato – majoritariamente os do PT.
sas comunidades.30 A Renovação Carismática tem indicado e/ou

27. Das Comunidades estudadas pelo ISER/Assessoria, mais de 60% afirmavam já ter participado de lutas
reivindicativas, que abrangiam um longo leque, desde luta pela terra, sindicatos, associações de bairros etc.
Cf. I. Lesbaupin. As comunidades de base e a transformação social, em VV.AA. As Comunidades de Base em
Questão. São Paulo: Paulinas, 1997, p.47-74.
28. Cf. P. R. Oliveira. Perfil social e político..., p.179-82.
29. Ibidem, p.183.
30. Cf. J. Iulianelli. Eleições e algumas lições, em “Eleições 98: encaixam-se as peças”, Tempo e Presença, v.302,
1998, p.17-9.
31. Ibidem, p.17.

395
A Igreja Católica e o Estado Brasileiro

apoiado candidatos e, apesar do relativo membros da hierarquia dessa Igreja se lan-


insucesso do partido fundado por alguns de çaram na política e juntamente com pasto-
seus membros, elegeu, em 1998, 17 depu- res eleitos por outras Igrejas como a Assem-
tados federais ligados a diferentes partidos, bléia de Deus passaram a formar a chamada
triplicando sua bancada em relação às elei- bancada evangélica, com grande repercussão
ções de 1994.32 Não se pode deixar de su- na mídia e certo peso no Congresso.33 Mais
blinhar, nesse contexto, a influência desses recentemente, Marcelo Crivela, bispo da
setores católicos na formação do voto parti- Igreja Universal, senador eleito em 2002,
dário, ao menos para os católicos que deles lançou-se candidato a cargos majoritários no
participam. Rio de Janeiro (prefeito em 2004 e governa-
dor em 2006), obtendo uma votação expres-
siva, e apontando para uma possível nova
5. Um balanço final
fase, em que o Poder Executivo de impor-
Os dados do Censo do IBGE de 2000 tantes cidades ou estados possa vir a ser ocu-
mostram uma nova realidade no campo re- pado por membros da hierarquia dessas
ligioso brasileiro, em que o número de ca- Igrejas.
tólicos apresentou um grande declínio nos Essa realidade não significa, entretanto,
últimos dez anos (83,8% para 73,8%) e o que o catolicismo tenha perdido sua relevân-
número de evangélicos saltou de 9% para cia social. O avanço dos evangélicos na polí-
15,4%, acompanhado de um forte acrésci- tica levou a um novo interesse por parte dos
mo dos que se declaram sem religião (de bispos católicos pela formação política dos
4,8% passaram, no mesmo período, para fiéis. Nos últimos anos têm se multiplicado
7,3%). os centros diocesanos e regionais de “for-
O crescimento significativo das Igrejas mação política” tendo sido também funda-
Evangélicas Pentecostais no Brasil foi acom- do pela CNBB, em 2005, o Centro Nacio-
panhado de uma importante mudança na re- nal de Formação Política “Dom Helder
lação entre algumas dessas Igrejas e o Estado. Câmera” com o objetivo de auxiliar na for-
Até os anos 70 predominava nas principais mação de especialistas que possam atuar
denominações pentecostais o paradigma da nos diversos centros diocesanos e de pro-
rejeição do mundo. Com a criação da Igreja mover a constituição de uma rede de as-
Universal do Reino de Deus no final dos anos sessores que possa contribuir com uma re-
70 afirma-se uma nova relação entre flexão interdisciplinar sobre a relação entre
pentecostalismo e mundo, centrada na cha- fé, ética e política. A Igreja Católica permane-
mada Teologia da Prosperidade que associa ce ainda como a grande instituição capaz de
o recebimento da graça salvífica com a pros- propor valores no campo social. Seu passa-
peridade financeira dos fiéis. Nos anos 90 do recente de compromisso com os direitos

32. Ibidem, p.17.


33. Veja-se P. Birman. Conexões políticas e bricolagens religiosas: questões sobre o pentecostalismo a partir de
alguns contrapontos, em P. Sanchis (Org.). Fiéis e cidadãos. Percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janei-
ro: EdUERJ, 2001, p. 59-86. Também A. Pedro Oro, A. Corten e J. P. Dozon (Orgs.). A Igreja Universal do
Reino de Deus. Os novos conquistadores da fé. São Paulo: Paulinas, 2003.

396
humanos, sua luta a favor dos direitos dos
pobres, dos indígenas e marginalizados lhe
garante credibilidade perante a sociedade,
mesmo para os não-católicos. Sua ação du-
rante os anos difíceis da repressão brasileira
salvou muitas vidas e foi fundamental para a
volta à normalidade democrática e para a
continuidade da luta pelos avanços sociais.

397
Sugestões de leitura

ALVES, M. M. A Igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.


AZZI, R. O Catolicismo popular no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1978.
_________. Presença da Igreja Católica na sociedade brasileira. Cadernos do ISER, v.13, p.90-1, 1981.
BERNAL, S. CNBB. Da Igreja da cristandade à Igreja dos pobres. São Paulo: Loyola, 1989.
BIRMAN., P. Conexões políticas e bricolagens religiosas: questões sobre o pentecostalismo a partir de alguns
contrapontos. In: Sanchis, P. (Org.). Fiéis e cidadãos. Percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2001. p.59-86.
BOXER, C. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
CARAMURU DE BARROS, R. Comunidade Eclesial de Base, uma opção pastoral decisiva. Petrópolis: Vozes,
1967.
CARVALHEIRA, D. M. Momentos históricos e desdobramentos da Ação Católica Brasileira. REB, v.169, p.10-
28, 1983.
FAGUNDES HAUCK, J. et al. História da Igreja no Brasil. Segunda Época. Tomo II/2. Petrópolis: Vozes, 1980.
HOLLAND, J. Modern Catholic Social Teaching. The Popes Confront the Industrial Age, 1740-1958. Nova
York: Paulist Press, 2004.
HOORNAERT, E. et al. História da Igreja no Brasil. Primeira Época. Tomo II. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1979.
IULIANELLI, J. Eleições e algumas lições. In: “Eleições 98: encaixam-se as peças”, Tempo e Presença, v.302,
p.17-9, 1998.
LESBAUPIN, I. As Comunidades de Base e a transformação social. In: VV.AA. As Comunidades de Base em
questão. São Paulo: Paulinas, 1997. p.47-74.
_________. (Org.). Igreja. Comunidade e massa. São Paulo: Paulinas, 1996.
OLIVEIRA, P. R. Religião e dominação de classe. Gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1985.
_________. Perfil social e político das lideranças das CEBs no Brasil. REB, v.245, p.172-84, 2002.
ORO, A. Pedro, CORTEN, A., DOZON, J. P. (Orgs.). A Igreja Universal do Reino de Deus. Os novos conquis-
tadores da fé. São Paulo: Paulinas, 2003.
SERBIN, K. Diálogos na sombra. Bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
SILVA, Dom D. L. e. O Clero e a Independência. São Paulo: Paulinas, 1972.
SOUZA LIMA, L. G. Evolução política dos católicos e da Igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1979.

398
VALLE, R., PITTA, M. Comunidades eclesiais católicas: resultados estatísticos no Brasil. Petrópolis: Vozes/Ceris,
1994.
VV.AA. A religião do povo. São Paulo: Paulinas, 1978.
VV.AA. As Comunidades de Base em questão. São Paulo: Paulinas, 1997.
WANDERLEY, L. E. Comunidades de Base e educação popular. REB, v.164, p.686-707, 1981.

399

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