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Resumo
Em 2016, Zack Magiezi lançou Estranherismo, uma coletânea de textos poéticos
publicados em seu perfil no Instagram, rede social marcada, principalmente, pelo
compartilhamento de fotos entre os usuários. Importante, aqui, destacar a origem do
trabalho do poeta, uma vez que isso revela interessantes elementos de reflexão sobre a
relação entre política e estética nos meios digitais. Como já parece sugerir o título do
livro, os pequenos textos de Magiezi caracterizam-se por estranhar, suplementar (no
sentido derridiano) sentidos os quais se acreditavam estabilizados pelas repetições do
uso da linguagem. Pensamos que a prática poética de Magiezi proporciona um meta-
pensamento da linguagem, de maneira a se desconstruir e reconsiderar sentidos
aparentemente estáveis. Dessa forma, o que teríamos é o uso da plataforma digital do
Instagram de maneira a se problematizar politicamente, por meio da linguagem e da
prática poéticas, o habitus dos usuários da rede social e do próprio sujeito
contemporâneo. Haveria, então, uma estetização do meta-pensamento político; algo
próximo da “partilha do sensível” discutida por Rancière (2009), na qual as práticas
artísticas modernas assumiriam poder de exemplaridade política.
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Trabalho apresentado no simpósio “Os discursos da/na mídia: efeitos de sentido, sujeito e sociedade”,
coordenado por Dantielli Assumpção Garcia (UNIOESTE) e Giovanna Benedetto Flores (UNISUL)
durante a ABRALIN, realizado de 06 a 10 de março de 2017, na UFF (Universidade Federal
Fluminense). Artigo desenvolvido dentro do âmbito de pesquisa de pós-doutorado pela USP de Ribeirão
Preto (sob supervisão da Professora Livre Docente Lucília Abrahão e Souza); pesquisador membro do E-
L@DIS: Laboratório Discursivo (FFCLRP/USP), em que coordena o grupo de estudos “Gêneros sexuais
e discurso”; coordenador e pesquisador do G.E.Di (Grupo de Estudos do Discurso, do IFPR, campus
Palmas). Dedico à minha prima Natália Biziak este artigo, cuja escrita se fez no dia em que recordamos
um ano de sua morte: foi um momento intenso de circulação de memória, muito dela reverbera nesta
escrita.
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Instituto Federal do Paraná, IFPR, Campus Palmas, Colegiado de Letras, Palmas, Paraná, Brasil -
jacob.biziak@ifpr.edu.br.
Abstract
In 2016, Zack Magiezi launched Estranherismo, a collection of poetic texts published in
his profile on Instagram, a social network marked mainly by the sharing of photos
among users. It is important here to highlight the origin of the poet's work, since this
reveals interesting elements of reflection on the relationship between politics and
aesthetics in digital media. As the title of the book seems to suggest, Magiezi's little texts
are characterized by strange, supplementary (in the Derridean sense) senses which
were believed to be stabilized by repetitions of the use of language. We think that
Magiezi's poetic practice provides a meta-thought of language, in order to deconstruct
and reconsider seemingly stable senses. Thus, what we would have is the use of
Instagram's digital platform in order to problematize politically, through poetic
language and practice, the habitus of social network users and the contemporary
subject itself. There would then be an aesthetization of political metaphysics; something
close to the "sensible sharing" discussed by Rancière (2009), in which modern artistic
practices would assume power of political exemplarity.
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Colocamos aspas, aqui, porque, na esteira de Compagnon (2010), um dos paradoxos vividos pelas
vanguardas, dentro do que muitos convencionaram chamar de Modernidade, reside na relação ambígua,
mais que contraditória (já que são faces da mesma moeda, com valores não se anulando, mas se
alimentando) com a tradição. Por um lado, a sensação – efeito discursivo – de que se estaria fazendo algo
completamente novo, que instaurasse um novo tempo e uma nova relação com a arte. Por outro lado, o
horror do encontro com seu próprio duplo, no sentido bem próximo ao que Freud (2010) desenvolve
sobre o Unheimlich: aquilo que se perdido, esquecido, ultrapassado, retorna; causando efeitos. As
vanguardas e seus artistas, muitos deles teóricos sobre o fazer artístico, tiveram de tentar aprender a lidar
com o fato de que também se converteriam em tradição a partir do momento em que começassem a
influenciar outros poetas, escritores, pintores etc.
Se o conceito de vanguarda tem um sentido no regime estético das
artes, é desse lado que se deve encontra-lo: não do lado dos
destacamentos avançados da novidade artística, mas do lado da
invenção de formas sensíveis e dos limites materiais de uma vida por
vir. É isso que a vanguarda “estética” trouxe à vanguarda “política”,
ou que ela quis ou acreditou lhe trazer, transformando a política em
programa total de vida (RANCIÉRE, 2009, p. 43-44).
Portanto, a arte pode transformar a política em programa de vida, uma vez que
institui formas sensíveis em que os próprios limites materiais da existência se
colocariam em posição de por vir, de novo acontecimento. Vejamos, por exemplo,
como o ritmo da primeira estrofe é construído com base em quebras sintáticas que
ocorrem nas conjunções, preposições ou com o uso de vírgulas. Dessa forma, a primeira
estrofe constitui um único período que vai sendo lido de maneira truncada,
acompanhando a sensação de cisão, de desencontro que o eu lírico relata. Os sentidos
criados para, inicialmente, concatenar orações (como o “e” aditivo; o “mas”
adversativo; a preposição “em”, contraída na forma “na”, expressando situação, local),
ambiguamente, vão sendo organizados pelo recurso poético chamado de enjambement
ou “encavalgamento” (Candido, 2006). A leitura de cada verso, então, é quebrada, para,
em seguida, fazer elo novamente. A essa estrutura, acrescenta-se um sujeito cindido
entre os seus desejos (perdido entre alianças e rupturas), o que quer fazer e a realidade
do mundo exterior, onde existem “escravos” e “lembranças” que “escorrem”.
O mesmo recurso do enjambement usado na primeira estrofe ocorre, também,
na segunda, mas provocando novo funcionamento do poema. Nela, os versos criam
novas relações com a última palavra de cada linha antecedente. Nessa perspectiva, o
“céu” do primeiro verso não se relaciona somente com o “levantar”, mas com estar
“morto”; o “morto” do terceiro não se relaciona somente com o “eu”, mas com o
“desejo” deste; o “morto” do quarto não se relaciona somente com o desejo, mas com o
“pântano sem acordes”. Com isso, a significação de cada verso vai se revelando
duplicada, uma vez que pode ser lida na sua unicidade ou em relação com o verso que
lhe segue. Essa relação entre o um e o outro dialoga com a tensão que o eu lírico
representa na textualização de seu dizer, angustiado entre sua capacidade limitada de
ação e a ausência de limites para o desejo, o sonho. Ou seja, está estabelecido, por
palavras e escolha lexical, um “sentimento do mundo” que se é obrigado a suportar, a
carregar, apesar de só haver “duas mãos”.
A rápida análise acima esboçada serve-nos de parâmetro interdiscursivo para
entendermos a proposta de Jacques Rancière (2009) quando se refere à política como
tendo uma base estética4. Ou seja, as diferentes maneiras de se interpretar as realidades,
de organizar signos, enfim, de criar o visível e o legível afetam, diretamente, a ação dos
sujeitos em sua existência em comunidade. Daí, o autor cria a ideia de “partilha do
sensível”:
A longa citação torna-se necessária para nos ajudar a refletir o que, aos poucos,
estamos entendendo, aqui, sobre o entrelaçamento entre a política e a estética: não se
trata de estabelecer formas de governar ou controlar por meio das obras; mas, sim, de
uma outra perspectiva. Uma obra artística, como o poema de Drummond, por exemplo,
ao mesmo tempo em que deixa elementos de significação evidentes, deixa outros menos
visíveis, menos óbvios. Essa relação que é estabelecida sobre o (in)visível é uma
escolha estética que revela modos de funcionamento que tem ação política no sentido de
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Rancière (2009, p. 13), por estética, compreende, além de uma teoria geral da arte, “um modo de
articulação entre maneiras de fazer, formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de
pensabilidade de suas relações, implicando uma determinada ideia de efetividade do pensamento”.
que pode inverter, deslocar, olhares e percepções, de maneira que alguns consigam
ver/ler o que se está elaborando, ao mesmo tempo, em que outros não lerão/verão ou,
para que o consigam fazer, precisam ter sua maneira de experienciar o espaço e o tempo
(des)construídos, colocados em novo contexto de possibilidades. Assim, o que é dito
estabelece um regime de hiância entre o que se vê e o que não se vê, o que se diz e o
que não se diz, deslocando competências da visão e da fala.
Portanto, a política possui uma base estética, à medida que formas de
acontecimento da linguagem determinam “o que se dá a sentir” (RANCIÈRE, 2009, p.
16). Por isso, a leitura de um poema de Drummond, pode trazer, em uma aparente
contradição, quem consegue e quem não consegue ver/ler o que ali funciona enquanto
linguagem, discurso. Isso é uma prática política, já que, nela, o óbvio mistura-se,
constantemente, ao ignorado, esquecido e/ou alienado.
Com isso, nossa intenção, neste trabalho, é fazer um estudo de alguns poemas de
Zack Magiezi, cuja atividade de publicação concentra-se no Instagram, uma rede social
de compartilhamento de fotos. A partir dessas reflexões, acreditamos que há uma
poética organizadora de, ao menos, parte da produção do escritor e que nos permite
pensar se, ao se apropriar do meio digital como suporte para seus textos, há um
desenvolvimento estético que inclua uma prática discursiva política por meio do
deslocamento de lugares comuns dos sentidos. Para tanto, a Análise do Discurso
francesa será poderosa aliada em nossas leituras, por meio de conceitos como
esquecimento, ideologia, sujeito do discurso e interpelação.
Levar em conta a especificidade do suporte usado para publicação dos poemas,
uma rede social de compartilhamento de fotos, nos parece fundamental. Além disso, o
Instagram opera tanto por aplicativo para celulares quanto página de internet, podendo
ser acessado por indivíduos com ou sem perfil cadastrado na plataforma, o que aumenta
o uso da rede social, ainda que alguns profiles sejam bloqueados como “privados” pelos
usuários. É importante, então, levarmos em conta esses detalhes de operação, uma vez
que se trata do meio escolhido para divulgação principal do trabalho de Magiezi:
A certeza que aparece, em todo caso, no fim desse debate é que uma
memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas
bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um
sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é
necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de
deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um
espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contradiscursos
(PÊCHEUX, 2010, p. 56).
Por isso, o dizer torna-se possível porque possui uma relação com o que lhe é
exterior, os dizeres outros, ao real da história. O “culto ao espelho”, nominado por
Tiburi (2014), processa-se como paráfrase do funcionamento discursivo da selfie, no
qual, ao mesmo tempo em que se busca uma inscrição subjetiva na/pela linguagem, esta
só pode existir pelo ato falho e pela ação da memória; de forma que uma réplica, no
interior da própria postagem, surge: a representação que ali está do sujeito revela uma
manifestação identitária, mas também a dissimula, a divide, já que é, desde sempre,
possibilidade de ser outra, de ser dizer-outro. Sob a superfície homogênea do lago dos
Narcisos da rede eletrônica, há a profundidade da água que nem se imagina, mas que
traga sujeitos, que são somente efeitos entre interlocutores, sempre em deslocamento,
não essências. Nas palavras de Lucília Maria Abrahão e Souza (2017, no prelo):
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Pela via de reflexão aberta por Tiburi (2014), o nome em inglês – remetendo a uma rede de conexões e
sentidos sobre identidade, autoconhecimento – demarca uma diferença da significação sobre a prática do
autorretrato. No universo da internet, dos blogs, das timelines, dos notebooks, dos Facebooks, ser selfie é
estabelecer, também, uma posição dentro de uma rede de citações, no qual a língua inglesa produz efeitos
muito além da comunicação direta; mas, também, gera condições para enunciações que não podem ser de
outra maneira. Por isso, ser autorretrato não é ser selfie, ainda que um intervenha sobre o outro como não-
dito, como interdiscurso, fazendo com que os significados deslizem a perder de vista no on line e no off
line.
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Mais uma vez, a fal(h)a das línguas no contato entre o velho português e o novo, suportado pelo inglês.
a autonomia de que podem gozar ou a subversão que podem se
atribuir repousam sobre a mesma base (RANCIÈRE, 2009, p. 26).
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Aqui, vamos tentando aliar as propostas de Rancière (2009) com as de Pêcheux.
8 Segundo Rancière (2009), a mímesis organiza o ver, o fazer e o julgar. Em outros termos, não é um
procedimento artístico, mas um regime de visibilidade das artes.
passassem por um processo de autoconhecimento, de possibilidades de se significar (o
que se oporia à prática da selfie, conforme este foi discutido neste trabalho). Isso se faz,
então, pela intervenção do regime ético, já que atua diretamente nas construções das
formas-sujeitos que criam suas (des)identificações na rede eletrônica do Instagram. O
regime poético acontece, logo, na reconsideração das formas de arte que surgem na rede
social: uma vez que postagens, “curtidas”, legendas, selfies não são, de início,
manifestações artísticas, mas passam a compor uma nova forma que, entre on line e off
line, é construída, vista e julgada como poético. Abarcando tudo isso, o regime estético
faz emergir o singular, uma vez que proporciona novas formas da sensibilidade, nas
quais os efeitos no corpo do sujeito que enuncia e no do que lê se materializam dentro
da história e da ideologia. Como Rancière salienta, o banal assume nova posição dentro
dos efeitos gerados entre interlocutores, o que é, também, uma prática política, tornada
possível pelo estético. O mecânico, dessa forma, precisa ser reconhecido como arte:
glossário
comodismo
ato de enfiar a vida
em uma cômoda apertada
glossário
presentear
é quando a vida nos dá um hoje novinho
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Não nos esqueçamos da origem da palavra “angústia”: vinda do latim “angere”, que significa apertar,
sufocar. Portanto, a associação com “aperto”, “claustrofobia”, “falta de ar” não é algo distante e exerce
sua presença em nossa análise.
disjunção inerente à toda língua, o furo da significação é mimetizado pelo rompimento e
posterior laço renovado(r) dos versos. Ou seja, alguns cortes são possibilidades de
novos arranjos, e isso está na organização sintática e dos versos do curto poema. Este,
além disso, parece imitar a estrutura visual de um verbete de dicionário ou enciclopédia,
em que há um termo seguido de pontuação, esperando-se que, em seguida, o sentido se
faça presente. Na verdade – pelo lapso do léxico e da pontuação – é no intervalo da
espera pelo por vir, lembrando do que acabou de ser lido, que a significação se faz
“presentear” em “hojes novinhos”. Há algo da ordem da resistência da linguagem que
comunica aos goles, em intervalos de espera entre palavras que só fazem explicar o já-
dito. A sensibilidade despertada pela nova forma de se ler o “presente” atua como forma
política de o sujeito se reconhecer assim, “presente”.
Por fim, retomamos afirmações de Sousa (2017, no prelo, aspas da autora). Zack
Magiezi, aqui, pelo instrumental da Análise do Discurso francesa:
Referências bibliográficas
ANDRADE, C. D. A rosa do povo. São Paulo: Companhia das letras, 2012a.
FREUD, S. O Inquietante. In: Obras Completas de Sigmund Freud - Vol 14. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 249.
______. Ler o arquivo hoje. In: Orlandi, E. (org) Gestos de leitura. Campinas, SP: Ed
da UNICAMP, 1997.
RANCIÉRE, J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2009.