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IDENTIDADE NEGRA.
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A presente pesquisa encontra-se em fase de conclusão no Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-
Raciais (PPRER/Cefet-RJ), sob a orientação da Profª Drª. Nara Maria Carlos de Santana e conta com apoio
financeiro da Capes.
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movimentos de exclusão e discriminação racial. Para Guanabara, longe de ser um problema
relacionado aos homens que estavam nos lugares de poder, majoritariamente brancos, o
afastamento de sujeitos como Hemetério de tais lugares devia-se única e exclusivamente ao seu
pouco “saber querer”. Para o intelectual Alcindo Guanabara:
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A Imprensa, 29 de setembro de 1913, p.01.
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noções de cor e raça ao longo da história, especialmente a partir dos contatos entre brancos e
não brancos. Ele ressalta que o “simbolismo das cores” esteve diretamente atrelado ao
relativismo dos povos, pois, se para os europeus a cor preta tinha sentido pejorativo e a branca,
positivo; para alguns povos africanos, segundo relatos de viajantes ingleses no século XVII,
ocorria o inverso, sendo o “demônio” representado como branco. Ainda de acordo com este
autor, as relações entre os povos incluíam a construção de hierarquias que paulatinamente vão
se atrelando à cor, opondo brancos e não brancos.
“A sua língua [do português], por isso mesmo a mais rica do universo, a mais
plástica, foi a primeira que o oriente ouviu, e que chamou o africano para
ajudá-lo na grande empresa de integrar e confraternizar a humanidade, pelo
sentimento, na sua mais alta compreensão.”4
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A autora Lilian Schwarcz, na obra O espetáculo das raças – cientistas, instituições e questão racial no Brasil,
1870-1930, expõe todo o debate entre os intelectuais brasileiros do século XIX em torno da formação racial
brasileira. Outra referência importante nesse sentido é a obra O Brasil café com leite: mestiçagem e identidade
nacional, da autora Carolina Vianna Dantas.
4
O Imparcial, “Resposta ao Sr. Alcindo Guanabara”, 20 de outubro de 1913, p.05.
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Por outro lado, o mesmo artigo traz outras passagens históricas em que Hemetério
discorre sobre os sofrimentos impingidos aos negros pela escravização, reforçando, contudo,
suas qualidades físicas e intelectuais.
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e história, Hemetério fez uso de textos de Camões e de outros pensadores para reforçar seus
argumentos contrários aos discursos que negativavam o negro. Tanto o escritor português,
quanto o jurisconsulto português Gil e o tenente P. Roeckel, da infantaria colonial francesa, em
tempos históricos distintos, registram boas observações dos povos africanos e negros com os
quais tiveram contato. O artigo ocupou três das cinco colunas do jornal e ainda contava com
uma fotografia de seu autor. Hemetério destaca alguns versos de Camões em que o poeta luso,
ao narrar sua viagem pela África, reforça as virtudes dos negros de “bons vizinhos” e
respeitadores das leis. Já em relação ao jurisconsulto Gil, ele destaca a fala deste em relação à
ausência de “expostos” e de “prostituição”. Quanto ao tenente francês, ele destaca a
“admiração” do militar em relação à “moralidade da família negra”. Todas essas observações
positivas em relação ao negro expostas por Hemetério foram escritas e publicadas pelos
intelectuais europeus citados por ele, ou seja, de conhecimento público nos meios letrados e
que o intelectual negro toma como tarefa divulgá-las e, como consequência, torná-las de amplo
conhecimento entre os círculos letrados brasileiros.
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Do eito saíam, repousavam as enxadas e as foices, empunhavam as armas, e
libertos pelo dinheiro que eles próprios haviam ganho lá iam, completamente
esquecidos dos maus tratos recebidos, caminho da vitória, fazendo triunfador
o seu torrão querido(...).
5
O Imparcial, “Resposta ao Sr. Alcindo Guanabara”, 20 de outubro de 1913, p.05.
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Fon6. Nas palavras do intelectual Luiz Edmundo, Hemetério era “um tanto discutidor” e isso
acabava por “lhe criar algumas antipatias” 7.
“Não somente por isso, como pela justiça (e a justiça edifica sempre), que
distribuiu à raça negra, em these, e quanto ao seu papel em a nossa história,
venho aplaudir e corroborar o seu trabalho. Ahi se construiu um padrão de
glória ao negro, pela sua energia, pelo seu trabalho fructuoso, e pelo
predicado da bondade de coração, quiçá o que mais eleva o homem e serve
á civilisação democrático-christã.” (...)
6
Ao longo da dissertação “Etymologias, preto: Hemetério José dos Santos e as questões raciais de seu tempo
(1888-1920)”, discuto os investimentos de tais revistas na construção e o reforço de imagens estereotipadas dos
negros no pós-abolição. Tais revistas podem ser consultadas na Hemeroteca Digital Brasileira, sítio online da
Biblioteca Nacional, através do endereço eletrônico: http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/
7
Correio, da Manhã, “O Rio de Janeiro do meu tempo”, 04 de agosto de 1935.
8
O Imparcial, “Em defesa de uma raça – carta aberta ao sr. Hemetério dos Santos”, 04 de novembro de 1913,
p.03.
7
Figura 2 – página do jornal O Imparcial, em 04/11/1913.
“É como dizeis vós, meu dr. Valladares: a América do Sul, bem como o mundo
inteiro, grande dívida tem para com essa gente [africanos e seus
descendentes] , e é chegado o tempo de pagamento. (...)
[grifos meus]
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O Imparcial, “Em defesa de uma raça. Resposta ao sr. Danton Benedicto Valladares, professor da Faculdade
Livre de Direito”, 11/11/1913, p.07.
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e de intervenção política. E isto era uma dívida a ser resgatada devido aos longos anos de
exploração e espoliação sofridas pelos negros ao redor do mundo. A história de quatro mil anos
antes de Cristo era mais um dos argumentos a corroborar sua tese de que tais sujeitos, detentores
de “épicas varonilidades” em tempos longínquos, mantinham sua importância e qualidades para
ocupar um lugar no presente que lhes pertencia há muito:
(...) o sempre legendário Nilo nos mostrou a mais antiga civilização egipcíaca
– fomentada por exércitos regulares de negros, leoninamente ínclitos nos
combates, fundando, com essa coragem indomada, a primeira civilização no
Mediterrâneo, fonte da civilização grega, gérmen de todas as civilizações
latinas, consolo, tranquilidade e regalo do planeta – indústria, arte na sua
concepção mais elevada, e conforto de todo homem digno da criação.
Tudo isto sem contestação porque esses exércitos de negros do Alto Nilo, os
semeadores dessa cultura, colonizando a Núbia e a Etiópia, e levando-os até
ao Eufrates.
Nessa península, onde a terra se acaba e o mar começa, desde o século VIII
da nossa era, encontram-se, na Espanha, exércitos negros de quarenta a cem
mil homens. Marius Ary-Leblond, pela ‘Sociedade de Antropologia de
Berlim’, diz que o ‘grosso do exército árabe se compunha de escravos negros,
chamados ‘fetawies’.
Westein, o mais erudito e o mais conhecedor profundo dos árabes, fez notar
que nas suas mais importantes guerras e conquistas, as funções principais
são confiadas a escravos negros e de força atlética, a couraceiros pretos.
Estes, nascidos quase sempre nas suas tribos, educados para o combate, como
gladiadores romanos, são verdadeiros heróis de campanhas.10 [grifos meus]
10
O Imparcial, Op.cit., 11/11/1913, p.07.
10
Figura 3 – página do jornal O Imparcial, em 11/11/1913.
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A África e os negros definitivamente eram, para o professor Hemetério, os verdadeiros
“civilizadores” da humanidade, detentores de conhecimento e isso quem comprovava eram os
“grandes intelectuais” europeus mencionados por ele ao longo do texto. Passado e presente se
misturavam nessas narrativas e as leituras do professor em relação aos processos de dominação
europeia e colonização, tanto na América dos séculos XV ao XVIII quanto na África dos
séculos XIX e início do XX, se coadunavam no sentido de reforçar as “altas qualidades
africanas”. Ou seja, tais processos tiveram na figura do negro/ da África o elemento central por
conta de suas “altas qualidades” e não por conta de uma pretensa “necessidade” de intervenção
europeia contra o “barbarismo” e a “não civilidade” desses povos.
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Considerações finais
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O conjunto de artigos que foi exposto e discutido nos lança, assim como fizeram ao seu
tempo, uma série de questões sobre identidade (s) negra (s), diáspora, africanos e seus
descendentes: qual seria o papel do negro no Brasil e no mundo? Qual o sentido das
contribuições negras na formação cultural e social do Brasil? Que identidade(s) negra(s)
estavam sendo mobilizadas nesse contexto histórico em que a marca da escravidão, traduzida
em racismo, buscava moldar as relações raciais no que se refere aos lugares concretos e
simbólicos ocupados por mulheres e homens negros? Em pleno vigor das teorias raciais em
solo brasileiro, as respostas as tais questões poderiam não ser as mais positivas. Poderiam
também ser um libelo contra tais teorias que se pretendiam “científicas” e respostas legítimas
às questões raciais no Brasil.
Um misto de tudo que foi mencionado, tais artigos nos movem a pensar nos descortinam as
formas pelas quais homens do século XX se lançaram na tarefa de interpretar e (des) qualificar
a diáspora africana. Essas interpretações, muito mais que simples exposição de erudição e
conhecimentos histórico-sociológicos foram elementos importantes na construção das relações
raciais pós-escravidão. Para o professor Hemetério dos Santos, intelectual e “homem das
letras”, a história do negro no Brasil e no mundo estava muito além da escravidão. Portanto,
“em defesa de uma raça” era preciso mostrar aos leitores e aos seus pares intelectuais que a
factível possibilidade de afirmar positivamente o valor da raça negra na história da humanidade.
Tais recursos discursivos procuravam contar outras histórias sobre o passado, refutando a
subalternização dos negros naquele tempo presente.
As relações sociais a partir da abolição não mais deveriam estar assentadas em figuras de
“senhores” e “escravizados”, mas em relações de igualdade, de direitos e deveres entre cidadãos
e o Estado. Contudo, as hierarquias sociais com base nos pertencimentos étnico raciais não se
desfizeram com a abolição. Ao contrário, foram reatualizadas e ressignificadas cotidianamente
nas vidas de sujeitos negros e não-negros, por meio de práticas que situavam e ratificavam na
subalternidade o lugar daqueles. E o espaço da imprensa pode ser entendido enquanto um dos
lócus de (re)produção dessas hierarquias calcadas no pertencimento étnico-racial dos sujeitos.
Por fim e articulado a esse debate sobre as ressignificações sobre identidade negra, diáspora,
africanos e seus descendentes, ressalto a importância de encararmos a imprensa enquanto
“arena de disputas”, palco de conflitos e embates; lugar de alianças e controvérsias, consensos
e dissensos. Sobretudo, lugar de poder e de construção da realidade social. Constatação nossa,
mas que certamente não passou despercebida dos intelectuais da época, nossos “homens das
letras”.
Referências Bibliográficas
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GUIMARÃES, Antonio Sérgio A. Notas sobre raça, cultura e identidade na imprensa negra
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http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n29_30_p247.pdf.
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SCWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e a questão racial no
Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 4ª edição. Rio de Janeiro: Mauad,
1999.
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