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AGRADECIMENTOS
Agradeço aos funcionários do CFAP por todo o apoio administrativo e pelo esforço e
dedicação em resolver nossos problemas ao longo do curso.
Aos professores da EBAPE, que tanto contribuíram para minha formação acadêmica, em
especial ao Prof. Marcelo Milano, meu professor em três disciplinas no Mestrado e meu
orientador acadêmico, que sempre me incentivou desde as nossas primeiras conversas sobre
meus interesses de pesquisa, que me apoiou incondicionalmente na difícil escolha pela
abordagem etnográfica, e a quem devo meu primeiro contato com a obra de Pierre Bourdieu.
Aos professores Eduardo Ayrosa e Maria Ceci Misoczky, por terem gentilmente aceitado o
convite para participar da banca examinadora.
A todos aqueles que, de forma direta ou indireta, apoiaram minha pesquisa, contribuindo com
seus depoimentos que tanto enriqueceram meu trabalho.
Por fim, sou eternamente grato à minha esposa Leana e meus filhos João Pedro e Maria
Eduardha pela paciência e compreensão durante os vários momentos em que neguei-lhes
atenção. Faço aqui, também, um agradecimento especial aos meus pais pelo amor, pela
dedicação integral e incondicional, e pela sólida formação moral que me proporcionaram.
Estejam certos que vocês são um exemplo para mim e estarão sempre presentes na minha
vida.
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RESUMO
ABSTRACT
Over the last years we have seen a significant increase in scholarly production within the
organization studies field in Brazil. However it is still not representative. The tendency to
consume foreign and fashionable ideas unrestrainedly, to make use of imported, universal and
non-contextualized explanations to inquiry phenomenon which are essentially local and
particular, make it difficult to develop a true Brazilian tradition. This work is a result of an
ambitious ethnographic "adventure" of an acknowledged apprentice of sociologist Pierre
Bourdieu's large body of knowledge. It is about taking reflexivity to the limit. It is about
learning "through the body" in an effort - both theoretical and empirical - to investigate a
Brazilian organizational phenomenon which reproduces the hierarchical side of our society
and, under the disguise of the legitimacy offered by organizational discourse, help keeping the
very structure of our society in a silent but powerful way. I also want this work to be an alert
for the importance of contextualization as a means to avoid a recurring distortion of the
scholarly production in administrative science: the mobilization of theoretical references in
such a safe way that make explicitness totally unnecessary, the appropriation of concepts
whose essence is strange to the nature of the very phenomenon which they aim to explain, and
the insistence in the impersonal style, in third-voice narratives, as if it were possible to
produce knowledge in social sciences with absolute impartiality.
ÍNDICE DE TABELAS
ÍNDICE DE FIGURAS
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11
1.1 Contextualização do Problema ................................................................................. 13
1.2 Problema de pesquisa ............................................................................................... 15
1.3 Relevância do estudo ................................................................................................ 17
1.4 Estrutura do Trabalho ............................................................................................... 19
3 METODOLOGIA........................................................................................................... 55
3.1 Preliminares epistemológicas ................................................................................... 56
3.2 Especificação do problema....................................................................................... 58
3.3 Opções metodológicas.............................................................................................. 59
3.3.1 Sobre a escolha por métodos qualitativos ........................................................ 59
3.3.2 Sobre a opção pela etnografia como princípio de delineamento ...................... 63
Considerações iniciais .................................................................................................. 64
Etnografia em organizações.......................................................................................... 67
3.3.3 Sobre as técnicas de coleta de dados ................................................................ 70
Observação sistemática: da observação participante à observação da participação..... 70
A entrevista narrativa e as histórias de vida ................................................................. 71
A pesquisa documental e a utilização de registros visuais ........................................... 72
3.3.4 Sobre o tratamento analítico dos dados: analisando narrativas ........................ 73
3.4 O trabalho de construção do objeto .......................................................................... 74
3.5 Estratégias para “operacionalização” dos conceitos bourdieusianos ....................... 77
3.5.1 “Operacionalizando” a noção de habitus.......................................................... 78
3.5.2 “Operacionalizando” a noção de campo e formas de capital ........................... 79
3.6 Limitações do método .............................................................................................. 81
Pierre Bourdieu
1 INTRODUÇÃO
posicionamento crítico de Bourdieu para quem a ação social é governada pela imersão
contínua em jogos sociais, perspectiva que encontrou expressão exatamente na sua insistência
e habilidade para fundir trabalho teórico de alto nível com intensa investigação empírica
(WACQUANT, 2002b).
Uma vez definido e delimitado como construto téorico-empírico, as confrarias serão
analisadas dentro do contexto da organização escolhida, buscando descrever seu processo de
surgimento, identificar e analisar os recursos de poder e os arranjos estruturais relacionados
com a sua legitimação e sobrevivência nessa organização, para, então, identificar as
contradições com a lógica capitalista que orienta as organizações de mercado, essencialmente
voltada para eficiência, para o controle por resultados, para o lucro.
Na realização deste trabalho buscarei inspiração: (a) nas noções de habitus, campo,
formas de capital e reflexividade, elementos centrais na obra de Pierre Bourdieu, um
ferramental analítico que revele as peculiaridades do fenômeno das confrarias; (b) no diálogo
com algumas contribuições da antropologia, da educação e dos estudos sobre cultura,
conceitos que possam ampliar e enriquecer essas estruturas interpretativas; e (c) no método
etnográfico, uma abordagem não exatamente muito convencional no estudo de organizações
privadas orientadas para o mercado, uma postura crítica e situada, combinando diferentes
desenhos e métodos de pesquisa para produzir explicações, descrições, interpretações e
representações da vida humana que sejam histórica, política e pessoalmente contextualizadas
(ELLIS e BOCHNER, 2000; TEDLOCK, 2000).
e práticas da vida social e que desafiem conceitos muito propagados pelas escolas americanas
de management na última década na área de cultura organizacional, teorias motivacionais e
liderança tais como “visão compartilhada”, “metáforas esportivas”, “times de alta
performance”, “valorização e harmonização das diversidades”, e outros mais.
Outra contribuição importante diz respeito à aplicação do referencial bourdieusiano na
investigação de um fenômeno em uma organização multinacional, quando grande parte da
literatura desenvolvida com base nesse referencial no Brasil é voltada para o campo das artes,
da cultura e da educação.
Por último, espero que a escolha por uma abordagem reflexiva, por uma aproximação
do fenômeno por meio de métodos etnográficos, consiga oferecer interpretações forjadas a
partir da interseção entre corpos e conhecimento, e mediadas pelos discursos e pela linguagem
dos sujeitos.
Como estudos dessa natureza não privilegiam a questão da performance, sofrem de
uma certa indiferença por parte da comunidade empresarial, e são normalmente rotulados
como “excessivamente teóricos”, “ideológicos” e de “pouca aplicação no mundo real”. A
relevância prática do trabalho consiste em revelar outras dimensões de análise para os
fenômenos organizacionais pouco evidenciadas (ou mesmo ignoradas) na vasta literatura
sobre management largamente consumida pela comunidade empresarial no Brasil e no
mundo. Não se trata, assim, de um enfoque normativo ou (menos ainda) prescritivo, mas,
sobretudo, o esclarecimento de um fenômeno de vital importância para se compreender a
nossa realidade. Afinal, a compreensão da realidade brasileira é indispensável para todos
aqueles que trabalham e pesquisam nossas organizações locais (MOTTA e ALCADIPANI,
1999).
Até mesmo nos EUA, cujas raízes históricas, sociais e culturais guardam distância
considerável da nossa realidade, escândalos financeiros como os casos Enron, Global
Crossing e WorldCom desencadeados no final do ano de 2001 revelaram a fragilidade dos
sistemas de controle existentes para identificar e prevenir comportamentos antiéticos,
manipulação de informações e fraudes. Tais fatos tornaram-se possíveis exatamente pela
presença de redes informais apoiadas em sólidos relacionamentos que foram construídos ao
longo do tempo. Esses casos provocaram uma onda de desconfiança generalizada na
comunidade internacional, culminando com a implantação de mudanças profundas nos
mecanismos de regulação e controle da atuação das empresas.
Esta questão é, sem dúvida, um dos temas mais recorrentes no debate sobre
governança corporativa no meio empresarial nos dias de hoje, e requer uma consideração
19
importante, bastante relevante para os objetivos que pretendo alcançar neste trabalho.
Vivemos em uma sociedade com longo histórico de casos de corrupção e abuso de poder, uma
sociedade acostumada com práticas de nepotismo e de favorecimento ilícito, onde as
fronteiras entre o público e o privado, entre a pessoa física e a pessoa jurídica, são frágeis e
nebulosas. A conformidade com normas e metodologias ou a implantação de sofisticados
sistemas de controle podem evitar ou dificultar a manipulação de dados financeiros e
contábeis. Mas sua eficácia pode ser duvidosa em contextos como no Brasil, um espaço onde
a ética do privilégio revela o rosto autoritário do superior, mesmo diante da retórica do
igualitarismo que tomou conta do discurso gerencialista americanizado atualmente praticado
nas empresas; um espaço onde a esperteza se confunde com a honestidade, o espírito
corporativista com a justiça social, características marcantes do modo de navegação social
brasileiro que consiste em situar-se nas margens das regras, na informalidade, no abrigo de
seu papel social.
Além deste capítulo introdutório, onde busco oferecer uma visão geral do contexto,
motivações, objetivos e abrangência da pesquisa, o trabalho está estruturado em outros seis
capítulos.
No capítulo 2, apresento o referencial teórico que fornecerá as bases iniciais para
investigação do fenômeno, a teoria social de Pierre Bourdieu, e faço algumas elaborações
sobre seus conceitos mais importantes e discuto algumas possibilidades de aplicação nos
estudos organizacionais.
O capítulo 3 é inteiramente dedicado aos procedimentos metodológicos. Nele, tento
colocar meu posicionamento epistemológico diante dos desafios que o conhecimento em
organizações inevitavelmente nos conduz, e disserto sobre a utilização de métodos
qualitativos na pesquisa de fenômenos organizacionais. Por motivos óbvios, existe uma ênfase
especial na etnografia, tanto como princípio de delineamento quanto como técnica de coleta
de dados. Neste capítulo, apresento também minhas opções quanto às demais técnicas de
coleta e análise de dados utilizadas, e aponto algumas implicações sobre a prática de
etnografia em organizações.
A seguir, no capítulo 4, será feita uma breve análise da trajetória do grupo
multinacional que foi investigado, com base em extensa pesquisa documental. Serão
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apontados aqui os aspectos mais relevantes da história do grupo que fornecerão os subsídios
necessários para as reflexões que serão realizadas nos capítulos posteriores.
No capítulo 5, coloco em prática todo o ferramental conceitual de Bourdieu para
construir o objeto confrarias, um objeto sociológico, com todas as implicações que existem
num empreendimento dessa natureza, feito a partir do “olhar etnográfico” e de uma profunda
reflexão sobre os modos de apreciação e classificação da realidade social, tanto meus como
dos sujeitos envolvidos.
O capítulo 6 aprofunda a análise do fenômeno das confrarias na organização estudada,
onde tento explicar e responder as questões de pesquisa que foram colocadas.
Por fim, no capítulo 7, faço um fechamento da minha “aventura etnográfica” de um
aprendiz de Bourdieu, relacionando algumas dificuldades e conflitos enfrentados, conclusões
e sugestões para estudos futuros.
Nos Anexos do trabalho, existe um capítulo dedicado inteiramente a um exercício de
auto-objetivação. Coerente com as elaborações teóricas feitas no capítulo 2, procuro
identificar o efeito das minhas disposições e inclinações pessoais nas minhas tomadas de
posição, na minha postura diante dos fatos sociais, e de suas consequências nas minhas
análises e conclusões.
21
2 REFERENCIAL TEÓRICO
"A sociologia confere uma extraordinária autonomia, sobretudo quando não é utilizada como uma arma
contra os outros ou como instrumento de defesa, mas como uma arma contra si mesmo, como
instrumento de vigilância. Mas, ao mesmo tempo, para ser capaz de utilizar a sociologia até o fim, sem
se proteger em excesso, certamente é preciso estar numa posição social em que a objetivação não seja
insuportável..." (BOURDIEU, 2004b, p. 40).
A obra de Pierre Bourdieu é a referência teórica principal que norteia este trabalho.
Por essa razão, faz-se necessário empreender uma imersão, um pouco mais profunda do que o
habitual para um trabalho na área da administração, no seu universo de proposições e
conceitos. Nesse esforço, pretendo investigar mais detalhadamente seus pressupostos teóricos
e o contexto histórico, social e intelectual no qual Bourdieu desenvolveu seu projeto. Sua
teoria social, longe de ser objetivista ou cientificista, implica a reflexividade na própria
essência de uma prática científica que questiona sistematicamente a posição privilegiada do
observador e informa os meios intelectuais para transformar nossa visão de mundo. As
conexões entre a vida e a obra de Bourdieu são evidentes e também serão analisadas pois
fornecem elementos essenciais para o entendimento da sua perspectiva sobre o mundo social e
ajudam a compreender melhor as motivações que me levaram a optar, neste trabalho, por uma
abordagem sociológica e pelo método etnográfico. Além disso, acredito que tal preocupação
seja também um alerta para a importância do esforço de contextualização como meio de evitar
uma distorção recorrente na produção acadêmica em administração: a mobilização de
referenciais tão seguros que nem precisam ser explicitados e a apropriação de conceitos cuja
essência é estranha à natureza dos próprios fenômenos os quais pretendem explicar.
Não é fácil sistematizar a riqueza e complexidade da teoria social de Pierre Bourdieu.
É raro encontrar um corpo de conhecimento tão abrangente e inovador. Poucos autores
conseguiram alcançar o rigor analítico, a sofisticação intelectual e o tom provocativo das
investigações que Bourdieu empreendeu em campos tão distintos. Poucos seguiram, em seu
ofício como acadêmico, um tipo de orientação ao mesmo tempo teórica e prática. Bourdieu é
considerado um dos grandes nomes do pensamento social contemporâneo não somente por
seus colaboradores mais diretos e pesquisadores que se identificaram com sua obra, pelo
menos num dado momento de sua trajetória (BONNEWITZ, 2003; CALHOUN, 2003;
CALHOUN e WACQUANT, 2002; MICELI, 2005; ORTIZ, 2003; PINTO, 2000; ROBBINS,
2000; SWARTZ, 1997; 2003; WACQUANT, 2002b; 2003) mas também por autores que
22
Bourdieu foi ter reformulado nosso entendimento sobre ideologia, particularmente, como a
cultura e seus mecanismos de transmissão e reprodução se instauram no tecido social,
ocultando as formas de dominação entre classes sociais, entre homens e mulheres, em todas as
áreas da vida social. Essa antropologia "imaginária", criada no universo de ação dos agentes
sociais, é operada por regras típicas da economia, ou seja, por meio da troca de bens materiais
e imateriais, mas sempre travestida pelas formas desinteressadas que a "magia" do capital
simbólico produz. Esse trabalho de negação, condição de permanência e sucesso da
dominação, é, sobretudo, um empreendimento coletivo que está na origem da alquimia social,
um "tipo de mentira de grupo para consigo mesmo" (BOURDIEU, 2004a, p. 211-212). Para
Bourdieu, não existe inocência. Nenhum ato é desinteressado: existe sempre um olhar
interessado dos agentes sociais sobre as coisas do mundo.
Assim, em virtude de uma postura que privilegia a análise do campo simbólico,
Bourdieu procura explorar ao máximo as conexões entre os grupos de status, que Weber
(WEBER, 1999) define como sendo portadores de todas as convenções que se atualizam
mediante um dado estilo de vida, e os sistemas simbólicos de que são portadores. Nesse
sentido, a cultura de uma sociedade deve ser construída como resultado da hegemonia de um
grupo e dos conflitos entre forças no curso do seu desenvolvimento histórico. São forjadas,
assim, as relações de dominação, manifestadas pelas estratégias que os agentes sociais
mobilizam nos diferentes campos em que ocupam posições desiguais. Emerge daí uma
concepção geral de sociedade que implica uma ênfase na dimensão política. Para Bourdieu,
cabe à sociologia objetivar essas relações de dominação, desvelar-lhes os mecanismos,
fornecendo a um só tempo as ferramentas intelectuais e práticas que permitam aos dominados
contestar a legitimidade dessas relações. A sociologia reveste então um caráter
eminentemente político, que se prolonga no engajamento de Bourdieu nas causas mais
urgentes, o intelectual combativo que leva às últimas consequências a imagem da sociedade
como um campo de batalha operando com base na força e no sentido, ou melhor, dando
ênfase à força do sentido (BONNEWITZ, 2003; MICELI, 2003).
"Eu me pensava como filósofo, e me demorei muito para confessar a mim mesmo que tinha me tornado
etnólogo." (BOURDIEU, 2004b, p. 19).
24
Pierre Bourdieu nasceu em agosto de 1930 em Béarn, uma região rural do sudoeste da
França situada aos pés dos Pirineus, numa pequena vila chamada Denguim. Neto de
agricultores, filho único de um funcionário público que exerceu a vida inteira seu ofício de
empregado num vilarejo de Béarn particularmente afastado, seus dias na escola fundamental
foram passados entre os filhos de camponeses, de operários e de pequenos comerciantes da
região. Após ter-se destacado nos estudos no ensino médio, o jovem Bourdieu recebe uma
bolsa de estudos e, aconselhado por um de seus professores, inscreve-se no melhor curso
preparatório para ingresso na École Normale Supérieure (ENS), o khâgne do Liceu Louis-le-
Grand de Paris, instituição de elite que reunia os melhores estudantes do país, "lugar em que
se produzia a ambição intelectual à francesa em sua mais elevada forma, quer dizer,
filosófica." (BOURDIEU, 2005a, p. 41).
Ingressar na ENS significava estudar na mais renomada e distinta entre as grandes
escolas parisienses, o "ápice da hierarquia escolar" (BOURDIEU, 2005a, p. 40) , e tornar-se
membro da poderosa elite intelectual francesa. Já na ENS, sua opção pela Filosofia, a rainha
de todas as disciplinas, foi o passaporte para o reconhecimento social de alguém que sempre
se sentiu como um estrangeiro, seja entre seus colegas camponeses nos primeiros anos de sua
trajetória escolar, seja no clima de intensa competição e dedicação acadêmica da ENS,
convivendo com o estilo urbano e elitista dos alunos, na sua maioria, oriundos de tradicionais
famílias parisienses. Essa condição de estrangeiro tem grande influência na formação do
intelectual destoante que, diante do desejo incontrolável pela exploração filosófica e pela
ambição de prestígio, não se reconhecia entre os seus, mas que, também, sentia-se pouco à
vontade perante os imperativos do modo de vida burguês: um estilo de prática cultural e
intelectual impregnado pelo conforto material e pela segurança estatutária dos que nascem e
crescem imbuídos de certezas inerentes às prerrogativas de classe (MICELI, 2005). Duas
passagens ilustram bem o penoso desconforto de Bourdieu em relação à sua condição de
estrangeiro:
"Penso que minha experiência infantil de trânsfuga filho de trânsfuga [...] na certa pesou bastante na
formação de minhas disposições em relação ao mundo social: muito próximo de meus colegas de escola
primária, filhos de pequenos agricultores, de artesãos ou de comerciantes, com os quais tinha quase
tudo em comum, exceto o êxito escolar, que me fazia sobressair um tanto, estava apartado deles por um
espécie de barreira invisível, a qual se exprimia de vez em quando por meio de insultos rituais contra
lous emplegats, os empregados de "mãos brancas", mais ou menos como meu pai estivera apartado
daqueles camponeses e operários, em meio aos quais ele vivia sua condição de pequeno funcionário
pobre." (BOURDIEU, 2005a, p. 109-110). [Grifos do autor]
25
"Essa experiência dual só podia reforçar o efeito durável de uma defasagem bastante forte entre uma
elevada consagração escolar e uma baixa extração social, ou seja, o habitus clivado, movido por tensões
e contradições. Essa espécie de "coincidência entre contrários" contribui decerto para instituir de modo
durável uma relação ambivalente, contraditória, com a instituição escolar, feita de rebelião e submissão,
de ruptura e esperança, que talvez esteja na raiz de uma relação consigo igualmente ambivalente e
contraditória: como se a certeza de si, ligado ao fato de sentir-se consagrado, fosse corroída, em seu
próprio princípio, pela mais radical incerteza quanto à instância de consagração, espécie de mãe
malvada, falha e enganosa." (BOURDIEU, 2005a, p. 123).
Estatística, levaram-no a desenvolver um estilo próprio de escrever. "Bourdieu nunca pode ser
lido casualmente" (SWARTZ, 1997, p.13). Sua prosa é difícil, por vezes impenetrável. Seus
argumentos são expostos de forma recursiva e espiralada, estruturados com frequência em
vários e longos períodos interconectados. Bourdieu emprega conscientemente técnicas de
retórica para se distanciar do mundo "dado" ("taken for granted"), ou seja, de tudo que
recebemos como "pronto", sejam estes objetos empíricos, formas de linguagem ou conceitos
abstratos. Por outro lado, seu estilo também pode ser visto como uma reação crítica à
ortodoxia intelectual francesa e sua inclinação teorizadora, e como uma estratégia para
delimitar sua obra num campo caracterizado por intensa rivalidade e competição por prestígio.
Longe de parecer excessivo ou desnecessário para os objetivos que pretendo alcançar
neste trabalho, analisar as conexões entre biografia e obra, entre vivências e percepção, são
elementos fundamentais para compreender o esforço deliberado de reflexividade intentado
por Bourdieu. A riqueza da sua obra emerge, precisamente, de uma reflexão constante sobre
seu passado e sobre as mudanças que o presente lhe impunha, um esforço de investigação
precisa e circunstanciada no intuito de dominar os efeitos que poderiam ter sobre suas
próprias tomadas de posição científicas, realizado por meio do inquérito que ele mesmo fora
refinando como método de trabalho ao longo da vida.
"Se a maior parte dos autores foram levados a confundir com sua teoria particular do sistema social a
teoria do conhecimento do social que utilizavam – pelo menos implicitamente – em sua prática
sociológica, o projeto epistemológico pode servir-se dessa distração prévia para aproximar autores cujas
oposições doutrinais dissimulam o acordo epistemológico. O receio de que o empreendimento leve a
uma amálgama de princípios extraídos de tradições teóricas diferentes ou a constituição de um conjunto
de fórmulas dissociadas dos princípios que as fundamentam é uma forma de esquecer que a
reconciliação [...] opera-se realmente no exercício autêntico da profissão de sociólogo ou, mais
exatamente, na ‘profissão’ do sociólogo, esse habitus que, sendo um sistema de esquemas mais ou
menos controlados e mais ou menos transponíveis, é simplesmente a interiorização dos princípios da
teoria do conhecimento sociológico. À tentação sempre renascente de transformar os preceitos do
método em receitas de cozinha científica ou em engenhocas de laboratório, só podemos opor o treino
constante na vigilância epistemológica que, subordinando a utilização das técnicas e conceitos a uma
interrogação sobre as condições e limites de sua validade, proíbe as facilidades de uma aplicação
automática de procedimentos já experimentados e ensina que toda a operação, por mais rotineira ou
rotinizada que seja, deve ser repensada, tanto em si mesma quanto em função do caso particular."
(BOURDIEU, CHAMBOREDON, PASSERON, 2004, p. 14)
27
A obra de Bourdieu pode ser vista como uma polêmica permanente contra algumas
das correntes mais representativas do pensamento ocidental como o positivismo, o
empiricismo, o estruturalismo, o existencialismo, a fenomenologia, o economicismo, o
marxismo e o individualismo metodológico. Brubaker (1985, p. 217) argumenta que a obra de
Bourdieu "é particularmente mal equipada para uma leitura conceitualista, teorética ou
logocêntrica, uma leitura que trate sua obra como portadora de um conjunto de proposições
logicamente interconectadas, modeladas na forma de conceitos precisos e claros". Mais do
que indicadores de fenômenos empíricos específicos ou blocos de uma teoria sistemática, seus
conceitos podem ser melhor entendidos como dispositivos heurísticos elaborados com o
objetivo de comunicar uma perspectiva geral sobre o estudo do mundo social (POSTONE,
LIPUMA e CALHOUN, 1993; SWARTZ, 1997).
Assim, a preocupação maior de Bourdieu não está em informar uma genealogia
conceitual ou assumir fidelidade a uma dada tradição teórica, mas na crítica contundente à
teoria teórica por enfatizar a conceitualização abstrata independente dos objetos de
investigação empírica, por ser nada além do que um "discurso profético ou programático que
tem em si mesmo o seu próprio fim e que nasce e vive da defrontação com outras teorias"
(BOURDIEU, 2003b, p. 59). À primeira vista, os conceitos bourdieusianos não são projetados
para responder aos cânones formais da ciência normal como consistência interna,
generalizabilidade etc. Mais importante, seus conceitos são moldados a partir da pesquisa
empírica e da confrontação com pontos de vista opostos que emergem a partir da leitura
meticulosa e crítica que Bourdieu faz das tradições intelectuais que informam sua filiação
teórica, e revelam um conjunto razoavelmente consistente de princípios meta-sociológicos
que orientam todas as suas investigações.
"... a utilização de conceitos abertos é uma forma de rejeitar o positivismo... Para ser mais preciso, é um
lembrete permanente de que conceitos não possuem outra definição senão a sistêmica, e são desenhados
para trabalhar empiricamente, de forma sistemática. Noções como habitus, campo e capital podem ser
definidas mas somente no interior do sistema teórico que as constituem, não de forma isolada."
(BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p. 96)
Neste capítulo essas questões serão analisadas ao longo de duas linhas de investigação
conectadas entre si. A primeira diz respeito ao relacionamento entre estrutura social e prática.
Importante aqui é a tentativa de Bourdieu de transcender a lacuna presente nas análises
28
sociológicas tradicionais entre as dimensões subjetiva e objetiva da vida social, a qual entende
como sendo um distanciamento entre o conhecimento prático e corporificado, e as estruturas
aparentemente objetivas que são acessíveis ao juízo teórico. A segunda linha de investigação
procura delinear e clarificar os conceitos centrais da teoria social de Bourdieu (habitus,
capital, campo e reflexividade), analisando as inter-relações entre estrutura social, sistemas de
classificação e linguagem. Subjacente a todo esse esforço de análise, existe a preocupação
constante de entender como a tentativa de Bourdieu de mover-se para além das teorias
existentes e desenvolver um novo aparato conceitual invoca questões centrais da teoria social
e do método sociológico.
"Eu queria reintroduzir de algum modo os agentes, que Lévi-Strauss e os estruturalistas, especialmente
Althusser, tendiam a abolir, transformando-os em simples epifenômenos da estrutura. Falo em agentes e
não em sujeitos. A ação não é a simples execução de uma regra, a obediência a uma regra. Os agentes
sociais, tanto nas sociedades arcaicas como nas nossas, não são apenas autômatos regulados como
relógios, segundo leis mecânicas que lhe escapam." (BOURDIEU, 2004b, p. 21)
O que motiva a ação humana? Indivíduos agem em resposta a causas externas, tal
como é sugerido por grande parte das tradições sociológicas vigentes? A ação individual é
determinada pela "cultura", pela "estrutura social" ou pelo "modo de produção"? Ou será que
os atores agem movidos por seus próprios interesses, como sugerem, nas ciências sociais, as
escolas fenomenológica, interpretativista e a teoria da ação racional? Uma das
motivações centrais por trás do esforço intelectual de Bourdieu é sua determinação em
desafiar as "falsas dicotomias". De uma maneira geral, a perspectiva dualista presente em
toda a história do pensamento ocidental é expressa na oposição ubíqua entre corpo e mente.
Mas no universo particular das ciências sociais, assume a forma de dicotomias específicas
como estrutura/agência, objetividade/subjetividade, teoria/prática, indivíduo/sociedade.
Bourdieu está entre os primeiros autores da geração de sociólogos do período pós II Guerra
Mundial - junto com Anthony Giddens (GIDDENS, 2003) - a tornar a oposição
estrutura/agência uma questão central em sua sociologia. Sua proposta é conectar estrutura e
agência por meio de uma relação dialética. Bourdieu rejeita a idéia de conceitualizar agência
como uma resposta direta, não mediada, a fatores externos, seja no nível macro, como fatores
culturais, sociais ou econômicos, seja no nível das estruturas de interação social. Discorda
29
Objetivismo Subjetivismo
Lévi-Strauss Sartre
Hegel Kant
Saussure Cassirer
Durkheim Sapir
Marx Whorf
Weber
Estruturalismo Existencialismo
Teoreticismo Fenomenologia
Funcionalismo Etnometodologia
Marxismo Idealismo
Empiricismo
Positivismo
Materialismo
Econômico Não-econômico
Matéria Idéias
É importante verificar que Bourdieu emprega essa dicotomia para referenciar um largo
espectro de questões e tradições, fazendo uso de uma espécie de "triangulação intelectual",
um recurso heurístico bastante útil para dar conta da complexidade dos fenômenos sociais e
para lembrar que a sociologia, enquanto uma "ciência da sociedade", deve apreender o caráter
dual da vida social, tanto em seus aspectos objetivos como subjetivos.
Para superar as "falsas dicotomias", Bourdieu combina influências diversas nas suas
proposições teóricas e na sua prática de pesquisa, dialogando com conceitos e analogias de
diferentes, por vezes concorrentes, tradições da sociologia e da filosofia (BOURDIEU e
WACQUANT, 1992; BRUBAKER, 1985; DIMAGGIO, 1979; PINTO, 2000; POSTONE,
LIPUMA e CALHOUN, 1993). Nesse repertório de influências, algumas contribuições
merecem maior destaque pela sua representatividade na obra de Bourdieu. A seguir, dedico-
me a explicá-las sucintamente uma vez que explorá-las de forma mais aprofundada escaparia
ao escopo pretendido neste trabalho:
num conjunto fixo de regras, conhecimento e ação informam-se mutuamente, num processo
constante e ao mesmo tempo historicizado.
Sua pretensão é mover a sociologia para além da oposição entre o que chama de
"física social", onde a vida social é visto como algo inteiramente externo e objetivo, e a
"fenomenologia social", que faz a leitura da vida social à luz da experiência subjetiva
(BOURDIEU e WACQUANT, 1992). Seu principal desafio é construir uma teoria sobre o
poder simbólico e uma economia das práticas capazes de transcender esse dualismo
persistente (e particularmente problemático) através da reconceitualização da ação por meio
da integração das dimensões micro e marco, voluntaristas e deterministas, da atividade
humana em um único aparato conceitual, ao invés de recorrer a formas de explicação isoladas
e mutuamente exclusivas. Para tal, propõe uma teoria estrutural da prática onde, amparado na
noção de habitus (elemento chave nas suas elaborações teóricas) junto com os conceitos de
campo, formas de capital e reflexividade, procura conectar a ação com as outras dimensões
fundamentais da vida social: cultura, estrutura social e poder.
relação aos outros elementos desse mesmo sistema. Algumas práticas culturais obtêm
legitimidade em oposição a outras. Legitimação e dominação não são pensados em termos de
estilos ou idéias particulares, mas concebidos com base em práticas contrastantes, tal como
ocorre quando elementos de uma sub-cultura são subordinados aos de outra cultura
(BOURDIEU, 1984; 1988; 2003a; 2003b).
Apesar de raramente percebido dessa forma por seus críticos (BRUBAKER, 1985;
DIMAGGIO, 1979; SEWELL, 1992; WARDE, 2004), o método relacional de Bourdieu está
intimamente relacionado com as premissas centrais que ele estabelece a cerca do caráter
fundamental da vida social. As relações construídas por Bourdieu são invariavelmente
competitivas, inconscientes e hierarquizadas, ao invés de cooperativas, conscientes e
igualitárias. Na sua obra, a imagem recorrente sobre o mundo social é a de um espaço de
disputa, competição, dominação e ilusão. Portanto, pensar os fenômenos sociais sob a ótica de
Bourdieu não se trata apenas de "pensar relacionalmente" mas também de compartilhar sua
visão conflituosa do mundo social. Tais preferências têm, obviamente, uma profunda
influência na maneira como Bourdieu elaborou os conceitos que dão sustentação à sua teoria
estrutural das práticas, tema que será discutido a seguir.
Habitus
"Algumas noções que fui elaborando pouco a pouco, como a noção de habitus, nasceram da vontade de
lembrar que, ao lado da norma expressa e explícita ou do cálculo racional, existem outros princípios
geradores das práticas. Isso sobretudo nas sociedades em que há muito poucas coisas codificadas; de
modo que, para saber o que as pessoas fazem, é preciso supor que elas obedecem a uma espécie de
'sentido do jogo', como se diz em esporte, e, para compreender suas práticas, é preciso reconstituir o
capital de esquemas informacionais que lhes permite produzir pensamentos e práticas sensatas e
regradas sem a intenção de sensatez e sem uma obediência consciente a regras explicitamente colocadas
como tal." (BOURDIEU, 2004b, p. 96-97).
"A realidade social existe, por assim dizer, de duas formas, em coisas e em mentes, em campos e no
habitus, no exterior e no interior dos agentes sociais. E quando o habitus encontra um mundo social do
qual é o produto, ele é como 'peixe dentro d'água': ele não sente o peso da água e assume esse mundo
como dado... E é porque esse mundo me produziu, porque ele produziu as categorias de pensamento
que eu aplico a ele, é que ele aparece para mim como auto-evidente." (BOURDIEU e WACQUANT,
1992, p. 127-128)
34
Habitus é uma noção central na teoria estrutural da prática desenvolvida por Bourdieu,
que busca transcender a oposição entre teorias que compreendem prática como
exclusivamente "constituinte" ("constituting"), tal como expresso no individualismo
metodológico e ontológico (fenomenologia), e aquelas que entendem prática como
exclusivamente "constitutivo" ("constitutive"), exemplificado no estruturalismo de Lévi-
Strauss e no funcionalismo estrutural dos descendentes de Durkheim. Nesse sentido, Bourdieu
trata a vida social como uma interação entre estruturas, disposições e ações por meio da qual
as estruturas sociais e o conhecimento corporificado dessas estruturas produzem orientações
para ação duradouras, as quais, por sua vez, são constitutivas das estruturas sociais. Dessa
forma, essas orientações são ao mesmo tempo "estruturas estruturantes" e "estruturas
estruturadas" pois moldam e são moldadas pela prática social. Prática, contudo, não resulta
diretamente de orientações, tal como afirmam os estudos sobre atitudes, mas são resultado de
um processo de improvisação estruturado por orientações culturais, trajetórias pessoais e pela
habilidade de "jogar o jogo" da interação social (POSTONE, LIPUMA e CALHOUN, 1993).
O conceito de habitus de Bourdieu é bastante familiar para muitos pesquisadores em
sociologia, antropologia e no campo de estudo das organizações. No entanto, mesmo para
aqueles familiarizados com a obra de Bourdieu existe uma considerável divergência sobre o
que o conceito realmente representa (BRUBAKER, 1993; CALHOUN, 1993; EVERETT,
2002; FUCHS, 2003; LAU, 2004; LIZARDO, 2004; MUTCH, 2003; SEWELL, 1992;
SWARTZ, 2002; WARDE, 2004). Parte do problema se deve ao fato de que o conceito
ostenta um peso teórico bastante grande, levando mesmo um crítico simpatizante como
DiMaggio (DIMAGGIO, 1979) a descrevê-lo como um tipo de "Deus Ex Machina teórico”
(ou algo que surge de forma repentina para resolver uma dificuldade teórica aparentemente
insolúvel) por meio do qual Bourdieu relaciona estrutura objetiva e atividade individual. Por
outro lado, Bourdieu e Wacquant (1992) alegam que boa parte do problema está no fato de
que essas críticas têm sistematicamente interpretado o projeto teórico de Bourdieu de maneira
errada ao projetarem, ainda que de forma involuntária, variações da dicotomia
objetividade/subjetividade no próprio conceito que Bourdieu emprega para transcender essa
dicotomia.
"Estou inclinado a admitir que meus escritos podem conter argumentos e expressões que tornam
plausíveis as interpretações errôneas que se fazem sistematicamente sobre eles (eu devo dizer também,
com toda a sinceridade, que, em muitos casos, acho essas críticas espantosamente superficiais, o que me
35
faz pensar que aqueles que as fazem prestam mais atenção aos títulos do meus livros do que às análises
que são efetivamente feitas." (BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p. 79).
modo inventivo mas, não obstante, previsível. Visto dessa forma, o habitus designaria uma
competência prática, adquirida na e para a ação, que opera sob o nível da consciência. Mas, ao
contrário da gramática de Chomsky, Wacquant (2005, p.2) afirma que o habitus possui
algumas propriedades particulares:
i) Resume não uma aptidão natural mas social. Por essa razão, é igualmente
variável através do tempo, do lugar e, sobretudo, através das distribuições de
poder.
ii) É transferível para vários domínios de prática, o que explica a coerência que se
verifica, por exemplo, entre vários domínios de consumo (na música, no
desporto, na alimentação e na mobília), mas também nas escolhas políticas e
matrimoniais, no interior e entre indivíduos da mesma classe e que fundamenta
os distintos estilos de vida (BOURDIEU, 1984 apud WACQUANT, 2005).
iii) É durável mas não estático ou eterno: as disposições são socialmente montadas
e podem ser corroídas, contrariadas, ou mesmo desmanteladas pela exposição a
novas forças externas, tais como demonstrado, por exemplo, em situações de
migração.
Capital
"O mundo social é história acumulada, e para não ser reduzido a uma série discontínua de equilíbrios
mecânicos instantâneos entre agentes, tratados como partículas permutáveis, alguém deve reintroduzir a
noção de capital, e com ele, a acumulação e todos os seus efeitos. Capital é trabalho acumulado (em sua
forma materializada ou em sua forma 'incorporada', corporificada) que, quando apropriado de forma
privada, isto é, exclusiva, por agentes ou grupos de agentes, permite que estes apropriem energia social
na forma de trabalho reificado ou ativo. É uma vis insita, uma força inscrita em estruturas objetivas e
subjetivas, mas é também uma lex insita, o princípio subjacente às regularidades imanentes do mundo
social." (BOURDIEU, 1986, p. 241). [Grifos do autor]
A noção de capital proposta por Bourdieu (1986) não se enquadra nem na tradição
marxista nem tão pouco na teoria econômica. Bourdieu se distancia de ambos estendendo a
noção de capital para além da sua concepção econômica convencional, que se caracteriza,
prioritariamente, pela ênfase nas trocas materiais, para incluir formas imateriais e não-
econômicas de capital. Para Bourdieu, portanto, capital é um recurso de poder: indivíduos e
grupos lançam mão de uma variedade de recursos materiais, culturais, sociais e simbólicos
para manter e melhor sua posição na ordem social vigente. Swartz (1997, p. 73) afirma que
Bourdieu conceitualiza esses diversos recursos como capitais na medida em que passam a
funcionar como uma "relação social de poder", ou seja, quando se tornam valiosos e,
consequentemente, objetos de disputa.
Uma vez que, de acordo com Bourdieu (BOURDIEU, 1977; 1986; BOURDIEU e
WACQUANT, 1992), a estrutura social e a distribuição de capital representam a estrutura
inata do mundo social, entender essa estrutura e suas regras de funcionamento implica, então,
38
"Uma ciência geral sobre a economia das práticas que não se limite, artificialmente, àquelas práticas
que são reconhecidas como econômicas, deve empenhar-se em compreender o capital, essa 'energia da
física social', em todas as suas diferentes formas, e revelar as leis que regulam sua conversão de uma
forma para outra." (BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p. 118).
A noção de capital em Bourdieu também pode ser vista como uma tentativa de
mediação, no plano teórico, entre a sociedade e o indivíduo. No primeiro nível, a sociedade
seria estruturada pelas diferentes distribuições de capital. No outro, indivíduos lutam para
maximizar sua posse de capital. Não obstante, isso não significa que indivíduos ou agentes
possuam uma ordem preferencial, consciente e calculada, a qual buscam maximizar. Na
verdade, alheios a algumas possibilidades reais e incapazes de tirar proveito ou conceber
outras possibilidades devido ao seu habitus de classe, os agentes buscam maximizar os
benefícios que a posse dos capitais apropriados lhes confere, dado a sua posição relativa no
campo (BOURDIEU, 1977; 2004b; 2004; BOURDIEU e WACQUANT, 1992). O capital que
os agentes são capazes de acumular ao longo do tempo define, assim, sua trajetória social (isto
é, suas chances de sobrevivência) e também contribui para reproduzir e consolidar as
distinções de classe (BOURDIEU, 1984; POSTONE, LIPUMA e CALHOUN, 1993). O foco
de boa parte da obra de Bourdieu está, precisamente, na interação entre as diversas formas de
capital, as quais distingue em capital econômico, capital cultural e capital social
(BOURDIEU, 1977; 1984; 1986; 1988; 1991; 2003a; 2003b; 2004; BOURDIEU e
WACQUANT, 1992):
iii) Bourdieu define capital social como o "agregado de recursos reais e potenciais
que estão relacionados com a posse de uma rede durável de relacionamentos,
mais ou menos institucionalizados, de conhecimento e reconhecimento mútuo"
(BOURDIEU, 1986, p. 248). Assim, o capital social de um indivíduo é
determinado pelo tamanho da sua rede de relacionamentos, pelo somatório dos
recursos acumulados nessa rede (tanto culturais como econômicos), e pela
velocidade e eficácia com que é capaz de usufruí-la.
sua discussão sobre as possibilidades de conversão entre diferentes tipos de capital, Bourdieu
(BOURDIEU, 1986) reconhece que todos os tipos podem ser derivados do capital econômico
através de variados esforços de transformação. Mas é o capital econômico a forma mais
eficiente de capital: traço característico do capitalismo, pode ser isoladamente convertido sob
a forma geral, anônima e polivalente do dinheiro e transmitido de uma geração para outra.
No entanto, mesmo admitindo a importância do "econômico" para a manutenção da
ordem social, ele precisa ser mediado simbolicamente: a reprodução indisfarçada do capital
econômico revelaria o caráter arbitrário da distribuição de poder e riqueza (BOURDIEU,
1991a; 2003a; 2003b; 2004; BOURDIEU e WACQUANT, 1992). Para Bourdieu, o capital
simbólico é representado pelo conjunto de rituais e crenças que, postos à disposição de um
agente, conferem-lhe autoridade e reconhecimento por parte dos outros agentes, e legitimam
sua posse sobre outras formas de capital. Desse modo, o capital simbólico trabalha para
mascarar a dominação econômica exercida pelas classes dominantes e legitimar socialmente a
hierarquia existente ao tornar a posição social algo essencial e natural. Fatores não-
econômicos articulam-se com, reproduzem e legitimam relações de classe por meio da
"magia" dissimulada do capital simbólico. "Classe e status, enfaticamente separadas por
Weber, são inter-relacionadas de acordo com Bourdieu" (POSTONE, LIPUMA e
CALHOUN, 1993, p. 5).
A imagem de capital como "energia da física social" (BOURDIEU e WACQUANT,
1992, p. 118) que pode existir em diversas formas, e que, sob certas condições e taxas de
conversão, podem ser combinadas e transformadas, informa uma conceitualização de poder
onde nenhuma forma possui prioridade teórica sobre a outra ou pode ser tratada
independentemente das outras. Isso sugere uma orientação empírica e histórica,
frequentemente encontrada na obra de Bourdieu, que destaca o papel da pesquisa de campo
como o único instrumento capaz de determinar as formas chave de capital subjacentes a uma
ordem social específica, em um dado momento, e mapear suas inter-relações pertinentes, que
nem sempre se mostram aparentes ou conscientes.
Ao trazer o poder para o centro de sua análise, Bourdieu torna o conflito a dinâmica
essencial de toda a vida social: no interior de todos os arranjos sociais existe, inevitavelmente,
a disputa por poder, operada tanto sobre recursos materiais como simbólicos. Na medida em
que recursos culturais passaram a funcionar como um tipo de capital, tornaram-se uma nova e
distinta fonte de diferenciação nas sociedades modernas. Existem, assim, dois grandes
princípios concorrentes de hierarquia social que, segundo Bourdieu, moldam as lutas por
poder nas sociedades modernas: a distribuição do capital econômico ("princípio dominante")
41
Campo
"Em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede ou configuração de relações
objetivas entre posições. Essas posições são objetivamente definidas, em sua existência e nas
determinações que impõem a seus ocupantes, agentes ou instituições, por uma situação presente e
potencial (situs) na estrutura de distribuição de espécies de poder (ou capital) cuja posse controla o
acesso aos ganhos específicos que estão em disputa no campo, assim como pela sua relação objetiva
com outras posições (dominação, subordinação, homologia etc.)." (BOURDIEU e WACQUANT, 1992,
p. 97). [Grifos do autor]
43
Portanto, cada campo pode ser visto como um espaço semi-autônomo, caracterizado
por seus próprios agentes, por sua própria história acumulada, por sua própria lógica de ação e
por sua própria forma de capital (POSTONE, LIPUMA e CALHOUN, 1993). O princípio que
regula a dinâmica de um campo reside na forma de sua estrutura e, em particular, na distância,
nas lacunas e nas assimetrias entre as diversas forças específicas que se confrontam. As forças
que são ativas num campo - e por essa razão, aquelas que são selecionadas pelo pesquisador
como pertinentes porque produzem as diferenças mais relevantes - são aquelas que definem o
capital específico que se torna alvo de disputa (BOURDIEU e WACQUANT, 1992).
Para Bourdieu, habitus, capital e campo são conceitos inter-relacionados e
inseparáveis. O habitus confere o "sentido do jogo", ou seja, a predisposição para entrar no
campo e reconhecer sua lógica de funcionamento como algo natural, em suma, uma
habilidade inata para "jogar o jogo". Por outro lado, "um capital não existe nem funciona
exceto em relação a um campo" (BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p.101). Ele confere
poder sobre o campo, sobre os instrumentos materializados ou corporificados de produção ou
44
Como alguém pode praticar uma ciência social - ela própria uma especulação
simbólica - e, no entanto, não reproduzir os efeitos da distinção social que Bourdieu denuncia
de forma tão rigorosa?
A resposta de Bourdieu para esse dilema é a necessidade de uma prática reflexiva da
sociologia (BOURDIEU, 2004b; BOURDIEU e WACQUANT, 1992). Seu argumento é que
toda investigação sociológica requer uma reflexão crítica simultânea sobre as condições
intelectuais e sociais que tornam a investigação possível. A análise que Bourdieu elabora
sobre os campos intelectuais mostra que os cientistas sociais traduzem, de forma involuntária,
suas premissas epistemológicas particulares e os próprios interesses do campo nas suas
explicações sobre os fenômenos sociais (BOURDIEU, 1988a; 2001). Somente realizando a
"sociologia da sociologia", ou seja, aplicando os métodos da sociologia à própria sociologia, é
possível obter alguma liberdade dos determinantes da prática intelectual (BOURDIEU e
WACQUANT, 1992; SWARTZ, 1997).
Outro ponto importante na noção de reflexividade de Bourdieu é seu argumento em
favor de uma ruptura com o "senso comum", que entende como o conjunto das crenças ou
opiniões aceitas por uma determinada sociedade ou por grupos sociais particulares que
acabam por serem impostas a todo o espírito racional. Para Bourdieu, essa ruptura é
duplamente necessária para afastar o perigo das idéias preconcebidas: por um lado, devido ao
próprio modo de constituição das categorias de percepção do senso comum e, por outro, pela
sua incapacidade de fornecer explicações científicas para os fenômenos sociais (BOURDIEU,
1988a; 2001; BOURDIEU e WACQUANT, 1992).
A noção de reflexividade de Bourdieu também pode ser lida como uma inter-relação
dos seus três conceitos centrais - habitus, capital e campo - previamente discutidos neste
46
trabalho. Bourdieu concebe a prática social como o relacionamento entre o habitus de classe e
o capital atualizado, realizado de acordo com a lógica específica de um dado campo. O
habitus é auto-reflexivo, no sentido de que, toda vez em que é ativado na prática, encontra a si
mesmo como história simultaneamente corporificada e objetivada (POSTONE, LIPUMA e
CALHOUN, 1993).
Ao afirmar de forma categórica que a sociologia tem o compromisso de revelar as
condições arbitrárias e os mecanismos por trás da produção e reprodução das estruturas
sociais (BOURDIEU e WACQUANT, 1992), Bourdieu coloca sua noção de reflexividade
intimamente relacionada com a idéia de emancipação. Para Bourdieu, o estudo do mundo
social não tem muita valia se não fornecer as ferramentas necessárias para que os agentes
sejam capazes de compreender o significado de suas ações. Sua abordagem busca iluminar a
reprodução da desigualdade social e cultural por meio da análise dos processos de
desconhecimento ("misrecognition"), ou seja, investigando como o habitus dos grupos
dominados pode ocultar as condições da sua prórpia subordinação. Bourdieu perseguiu esse
tema em seus relatos sobre o conhecimento e sua transmissão (BOURDIEU e PASSERON,
1990), na sua análise sobre a constituição social das distinções de classe (BOURDIEU, 1984),
e nos tratados sobre violência simbólica (BOURDIEU, 1991a; 1998; 1999; 2003).
A reflexividade é uma condição fundamental para qualquer teoria crítica que pretenda
superar os dualismos característicos do pensamento social moderno (BOURDIEU e
WACQUANT, 1992). Bourdieu (BOURDIEU, 1988a; 2001) reconhece que não existe um
ponto "fora do sistema" que permita ao cientista social uma perspectiva de análise neutra e
desinteressada, por isso, sua abordagem é necessariamente reflexiva para poder controlar seus
próprios vieses. Como um teórico da sociedade, Bourdieu opera inevitavelmente no interior
daquilo que se propõe a investigar: é ao mesmo tempo uma analista da ciência e da sociedade
e um ator nesses mesmos campos. Por essa razão, é visível na sua obra uma preocupação
constante em refletir sobre o seu projeto e sobre suas posições teóricas.
No seu esforço para construir uma sociologia do poder simbólico, Bourdieu levantou
temas importantes a cerca das relações entre ação, estrutura social e cultura. São temas
recorrentes na sua obra que se interceptam e interagem entre si de forma dinâmica,
guardando, inclusive, uma certa circularidade.
47
objeto de análise são os fatos sociais, dos quais as transações econômicas representam apenas
um aspecto.
"Mesmo quando apresentam toda a aparência de desinteresse porque escapam à lógica do interesse
'econômico' (no sentido restrito) e são orientadas para apostas que não são facilmente quantificáveis,
como em sociedades pré-capitalistas ou na esfera cultural, práticas nunca cessam de sujeitarem-se à
lógica econômica. As correspondências entre os diferentes tipos de capital e os respectivos modos de
circulação nos obrigam a abandonar a dicotomia econômico/não-econômico, a qual torna impossível
ver a ciência das práticas 'econômicas' com um caso particular capaz de tratar todas as práticas,
incluindo aquelas que são experimentadas como desinteressadas ou gratuitas, e consequentemente
libertadas da 'economia', como práticas econômicas visadas à maximização de lucro material ou
simbólico” (BOURDIEU, 1990 , p. 122).
i) Primeiro, por meio dos insights trazidos por Bourdieu a partir da sua postura
crítica diante de questões fundamentais da ontologia, da epistemologia e da
metodologia de pesquisa nas ciências sociais;
52
capacidade inventiva aos agentes, ainda que estejam permanentemente expostos a coações
estruturais.
Portanto, o habitus combina “inércia” e “inventividade”, e se realiza, por assim dizer,
no “campo”, arena de lutas mais ou menos padronizadas onde os agentes se confrontam pelos
“lucros” que estão em jogo. A existência de um campo especializado e relativamente
autônomo está diretamente relacionada à existência de alvos que estão em disputa e de
interesses específicos: através dos investimentos econômicos e psicológicos que esses
interesses suscitam entre os agentes portadores de um determinado habitus, o campo, e tudo
que nele está em jogo, produzem investimentos de tempo, dinheiro, trabalho etc. Todo o
campo, enquanto produto histórico, gera o interesse que é, simultaneamente, condição e
produto de um campo. Como condição, na medida em que serve para estimular as pessoas à
luta e à competição: a magia social pode constituir praticamente tudo como “interessante”, e
instituí-lo, assim, como um alvo de disputas. Como produto, na medida em que é gerado a
partir de uma determinada categoria de condições sociais, ligado a uma história original e
particular, que só pode ser conhecida mediante o conhecimento histórico revelado
empiricamente (BOURDIEU, 2004b).
Aplicar o referencial bourdieusiano à análise de fenômenos organizacionais, implica
considerá-los numa perspectiva relacional, imbricados numa arena permanente de disputas,
simultaneamente limitados por estruturas objetivas e impulsionados pela capacidade de
improvisação dos agentes. Implica considerar, numa visão ampliada que afirme a
historicidade constitutiva dos agentes e de seu espaço de ação, uma definição realista da razão
econômica, que passa a ser entendida como um encontro entre as disposições socialmente
construídas em relação a um campo e as próprias estruturas desse campo (que, por sua vez,
também é socialmente construído). Dessa forma, agentes – sejam grupos de agentes ou
organizações – criam seu espaço, nesse caso, o campo econômico, cuja condição de
possibilidade é a própria existência dos agentes em seu interior, que deformam o espaço a sua
volta conferindo-o uma certa estrutura. Dito de outra maneira, é na relação entre os diferentes
agentes, definida pelo volume e pela estrutura de capital específica que possuem, que o campo
e as relações de força que o caracterizam são engendradas.
Para a análise das confrarias, farei uso da noção de campo projetada sobre o espaço da
organização investigada. Isso não significa, no entanto, confinar a análise a um microcosmo, a
partir de fronteiras definidas artificialmente, mas entender o fenômeno como um produto de
relações sociais construídas historicamente e continuamente submetidas a coações estruturais.
Essa abordagem permite mostrar de que modo se realiza nas práticas de cada agente ou grupo
54
de agentes, um ajuste entre disposições para pensar e agir, que interiorizam, a um só tempo: i)
formas de apreciação e percepção, competências adquiridas, representações sociais e outros
adestramentos; ii) as estruturas e os objetivos da organização - a empresa - com seus
princípios e lógica de funcionamento característicos. No primeiro caso, expressam os efeitos
dos mecanismos de controle social sobre a construção do habitus dos agentes exercido pela
sociedade, por meio das estruturas sociais, da ordem social vigente e dos processos de
socialização. No segundo, correspondem aos efeitos exercidos pelos diversos mecanismos de
controle exercido pelo mercado – o espectro da lógica capitalista - cuja essência reside na
manutenção da lógica da eficiência, da maximização dos lucros, e na imposição dos
imperativos da utilidade e da produtividade.
55
3 METODOLOGIA
"... há tantos conceitos quanto usos necessários para eles, e nenhum deles jamais será o conceito 'certo'
em termos absolutos. O conceito delimita o recorte epistemológico dentro do qual um determinado
sujeito irá trabalhar, e muitas vezes inclui, em si, um juízo de valor que orienta a ação."
explicativo das teorias. Nesse sentido, o papel do pesquisador passa a ser o de um intérprete
da realidade pesquisada, de acordo com os instrumentos conferidos pela sua postura teórico-
epistemológica, consistente com a natureza da ciência que se pretende investigar (GIL, 1999;
MIGUELES, 2003; VIEIRA, 2004).
"Assim que reconhecermos a unidade subjacente às estratégias sociais e apreendê-las como uma
totalidade dinâmica, seremos capazes de perceber como podem ser artificiais as oposições usuais entre
teoria e prática, entre métodos quantitativos e métodos qualitativos, entre o registro estatístico e a
observação etnográfica, entre o entendimento das estruturas e a construção dos indivíduos. Essas
alternativas não têm outra função senão fornecer uma justificativa para as abstrações ressonantes e
vazias do teoreticismo e para as observações falsamente rigorosas do positivismo, ou, como as divisões
entre economistas, antropólogos, historiadores e sociólogos, para legitimar os limites da competência:
quero dizer que elas funcionam, de certo modo, como uma censura social, sujeita a nos impossibilitar de
entender uma verdade que reside precisamente nas relações entre domínios da prática, nessas condições,
arbitrariamente separados." (BOURDIEU e DE SAINT MARTIN, 1978, p. 7 apud WACQUANT,
1992, p. 27-28). [Grifos do autor]
"a literatura metodológica dedicada às ciências sociais tende a sugerir que, para preparar seu futuro de
disciplina científica, bastaria constituir uma provisão tão ampla quanto possível de termos
'operacionalmente definidos' e 'com utilização constante e unívoca', como se a formação dos conceitos
57
científicos pudesse estar separada da elaboração teórica." (HEMPEL, 1952, p. 47 apud BOURDIEU,
CHAMBOREDON e PASSERON, 2004, p. 48).
Reconhece-se com razoável facilidade e frequência nos trabalhos acadêmicos que são
produzidos - reflexos, decerto, de um embate tradicional nas ciências humanas e sociais sobre
a possibilidade do conhecimento - que toda a observação ou experimentação implica sempre a
formulação de hipóteses. A definição do procedimento científico como um diálogo entre
hipótese e experiência pode, entretanto, se degradar quando insiste numa trajetória sequencial,
serializada e compartimentalizada, perpetuando, assim, a dicotomia teoria/prática.
É necessário sempre lembrar que a teoria domina o trabalho experimental desde a sua
concepção até as últimas análises e conclusões, numa relação dialética, constantemente
permeada de dúvidas e contradições, ou ainda, que sem teoria é impossível elaborar um único
instrumento de pesquisa ou interpretar um dado. Quando negligenciamos essas preliminares
epistemológicas, ficamos vulneráveis à armadilha de tratar diferentemente o idêntico e de uma
forma idêntica o diferente, comparar o incomparável e deixar de comparar o comparável, pelo
simples fato de coletarmos dados, até mesmo os mais objetivos, aplicando esquemas
classificatórios prontos (faixas etárias, de renda etc.) que implicam pressupostos teóricos e,
por isso, deixam escapar uma informação que poderia ter sido apreendida por outra
construção dos fatos (BOURDIEU, CHAMBOREDON e PASSERON, 2004).
A solução desta contradição se torna possível quando somos capazes de definir um
"invólucro teórico" mais amplo, que conceba a análise não como ponto de chegada de uma
teoria construída mas como instrumento para elaborações teóricas posteriores. Assim como o
método, a "boa" teoria, elaborada de forma apropriada, não deve ser separada do trabalho de
pesquisa que a alimenta, e a quem também orienta e estrutura continuamente. Do mesmo
modo que reabilita a dimensão prática como um objeto de conhecimento, Bourdieu tenta
restaurar o lado prático da teoria como uma atividade produtora de conhecimento
(WACQUANT, 1992).
Bourdieu sustenta que toda a atividade de pesquisa é, simultaneamente, empírica (ao
confrontar o mundo dos fenômenos observáveis) e teórica (na medida em que requer
necessariamente hipóteses sobre a estrutura subjacente às relações que as observações
empenham-se em capturar). Mesmo as operações mais simples e usuais - a escolha de uma
escala de mensuração, uma decisão sobre critérios de codificação, a construção de um
indicador, ou a inclusão de um ítem num questionário - envolvem opções teóricas, conscientes
ou inconscientes, da mesma forma que os problemas conceituais mais abstratos não podem
58
"A lógica de pesquisa é um emaranhado de grandes e pequenos problemas que nos forçam a perguntar a
nós mesmos, a todo momento, o que estamos fazendo, e nos permite entender, de forma gradual e mais
abrangente, o que estamos buscando ao fornecer os pontos de partida de uma pergunta, os quais irão
sugerir novas questões, mais fundamentais e mais explícitas." (BOURDIEU, 1988a , p. 7).
Para Bourdieu (1988a), existe nas operações de pesquisa uma proporção do que se
costuma chamar de "intuição", uma forma mais ou menos verificável de conhecimento pré-
científico acerca do objeto de interesse e também do conhecimento escolástico de objetos
análogos. Essa fonte indispensável de "criatividade" se manifesta, verdadeiramente, quando
agimos sem saber completamente o que estamos fazendo, quando examinamos a realidade
sem a pretenção de que podemos ter o domínio ou entendimento total sobre os dados
coletados ou sobre os procedimentos de pesquisa, tornando possível, assim, descobrir naquilo
que fizemos alguma coisa que nos passou desapercebido previamente.
Procurando analisar a dinâmica do processo de surgimento e legitimação das
confrarias em uma empresa multinacional em atividade no Brasil e suas contradições com a
lógica que deveria orientar os processos de gestão em organizações dessa natureza, este
estudo propõe-se a responder as seguintes perguntas de pesquisa:
"A mensuração dos fatos sociais depende da categorização do mundo social. As atividades sociais
devem ser distinguidas antes que qualquer frequência ou percentual possa ser atribuído a qualquer
distinção. É necessário ter uma noção das distinções qualitativas entre categorias sociais, antes que se
possa medir quantas pessoas pertencem a uma ou outra categoria. Se alguém quer saber a distribuição
de cores num jardim de flores, deve primeiramente identificar o conjunto de cores que existem no
60
jardim; somente depois disso pode-se começar a contar as flores de determinada cor. O mesmo é
verdade para os fatos sociais." (BAUER, GASKELL e ALLUM, 2002 , p. 27-28).
"... é possível oferecer uma definição inicial, genérica: pesquisa qualitativa é uma atividade situada que
localiza o observador no mundo. Ela consiste num conjunto de práticas materiais e interpretativas que
tornam o mundo visível. Essas práticas transformam o mundo. Elas convertem o mundo numa série de
representações, que incluem notas de campo, entrevistas, conversas, fotografias, gravações (...) Nesse
nível, a pesquisa qualitativa envolve uma perspectiva interpretativista e naturalística do mundo. Isso
significa que pesquisadores qualitativos estudam as coisas em seus cenários naturais, tentando fazer
61
com que os fenômenos ‘façam sentido’ ou interpretá-los em termos dos sentidos que as pessoas fazem
deles.” (DENZIN e LINCOLN, 2000, p.3).
iii) O pesquisador procura capturar dados sobre as percepções dos atores locais "a
partir de dentro", através de um processo bastante cuidadoso, de conhecimento
empático (verstehen), e de isenção ou imersão nas preconcepções sobre os
tópicos em discussão.
iv) Lendo através desses materiais, o pesquisador pode isolar certos temas e
expressões que podem ser revisados com informantes, mas esses elementos
devem ser mantidos nas suas formas originais ao longo do estudo.
v) Muitas interpretações sobre esses materiais são possíveis, mas algumas são
mais atraentes por razões teóricas ou por questões de consistência interna.
"... reconhecer que a objetividade é impossível não significa ceder acriticamente ao subjetivismo. Por
outro lado, o esforço para evitar o subjetivismo não é e nem pode ser considerado como sinônimo de
positivismo (BOURDIEU, 1999), sob o risco de declararmos impossíveis as ciências humanas e sociais.
Como muito apropriadamente afirma Geertz (1989), reconhecer a impossibilidade da objetividade não
significa ceder à intuição e à alquimia, mas desenvolver métodos interpretativos capazes de nos
aproximar da realidade."
"É bem conhecido que grupos não amam 'informantes', especialmente quando o transgressor ou traidor
pode ter, talvez, a pretensão de compartilhar os valores mais elevados desses grupos. As mesmas
pessoas que não hesitariam em exaltar o trabalho de objetivação como 'corajoso' ou 'lúcido', se ele é
aplicado a grupos estranhos ou hostis, estarão propensas a questionar as credenciais da lucidez especial
alegada por qualquer um que tente analisar seus próprios grupos. O aprendiz de feiticeiro que assume o
risco de investigar a feitiçaria e seus fetiches em seu estado nativo, ao invés de partir para tentar
64
descobrir em climas tropicais os confortantes fascínios da magia exótica, deve esperar ver a violência
que desencadeou virar-se contra si." (BOURDIEU, 1988a , p. 27-28).
Considerações iniciais
ii) Trabalhar prioritariamente com dados não-estruturados, dados que não foram
submetidos a algum processo de codificação com base em um conjunto
fechado de categorias analíticas.
grande preocupação com aspectos não somente culturais e sociais mas também
históricos do contexto onde o fenômeno de interesse do pesquisador está
inserido.
iv) Analisar os dados por meio da interpretação explícita dos sentidos e das
funções da ação humana: o ato de escrever sobre o que foi investigado é tão
importante como a coleta e análise dos dados. Dessa forma, o observador
assimila as categorias inconscientes que animam o universo cultural
investigado, não eliminando, no entanto, o trabalho sistemático da coleta de
dados, nem a interpretação e integração das diversas evidências empíricas. O
intuito é recriar a totalidade vivida pelos participantes do grupo social
envolvido, apreendida pela intuição do pesquisador.
"... o mundo social é, desde o princípio, um mundo intersubjetivo e porque ... nosso conhecimento sobre
ele é, em diversas formas, socializado. Alem disso, o mundo social é experimentado desde o princípio
como um mundo significativo ... Nós normalmente sabemos o que o outro faz (na sua situação
biograficamente determinada), por quais razões ele faz isso, porque ele faz isso nesse momento
específico e nessas circunstâncias particulares."
Etnografia em organizações
"... é necessário salientar que algumas das interações sociais que ocorrem no local de trabalho têm sua
origem no universo simbólico compartilhado pelos indivíduos e grupos em outras esferas de sua vida,
como a casa, a família, os círculos de amigos, os locais que frequentam no convívio social etc." (p.
229).
Ainda que não seja objetivo deste trabalho oferecer uma definição específica de
"regras", a centralidade desse conceito pode ser abordada numa perspectiva geral, não
determinística. Em linha com o pensamento de Wittgenstein - a quem Bourdieu reconhece ter
sempre recorrido nos momentos mais difíceis, "quando se trata de questionar coisas tão
evidentes como 'obedecer a uma regra' ... ou quando se trata de dizer coisas tão simples (e, ao
mesmo tempo, quase inefáveis) como praticar um prática" (BOURDIEU, 2004b, p.21) - o
significado de uma regra somente poderá ser entendido quando obtido dentro de um contexto,
onde regras são consultadas para interpretar aquilo que é percebido como ação intencional: ao
invés de predizer comportamentos, a regra é empregada, na verdade, como um instrumento de
interpretação do qual o observador faz uso para tornar inteligível e coerente os
comportamentos com os quais se depara.
Existe, aqui, uma postura fundamentalmente reflexiva. Membros de uma sistema
social produzem regras através dos mesmos mecanismos dos quais lançam mão para definir o
significado e aplicabilidade dessas regras: como numa "via de mão-dupla", da mesma forma
que uma situação é consultada ou considerada para construir o significado de uma regra, as
regras são utilizadas para definir o significado de uma ação. Emerge daí, a importância
fundamental da noção de habitus para o entendimento que se pretende aqui para o conceito de
"regras", o qual está intimamente ligado à analogia do comportamento social como um tipo de
"jogo". Nessa perspectiva, as regras existem para sugerir estratégias, as quais, por sua vez,
inspiram ações que sejam efetivamente gratificantes para o jogador, pour le sport
(BOURDIEU e WACQUANT, 1992).
Certamente, um interpretação etnográfica das formas de comportamento e de
pensamento no âmbito geral de uma sociedade será diferente de uma descrição dessas
relações quando circunscritas ao espaço de uma organização. Mesmo quando as organizações
são complexas, um traço característico das organizações na modernidade, elas não apresentam
a mesma complexidade das sociedades pelo fato de que as organizações formais são, ao
mesmo tempo, parciais (isto é, são "recortes" ou "subconjuntos" da sociedade) e
especializadas (orientadas para o atingimento de objetivos específicos): todos os
relacionamentos observáveis são, ao menos a princípio, racionalizados em termos do produto
ou produtos finais que representam a razão de existir da organização; nessas organizações
todos possuem um papel, um status formal, explícito, frequentemente definido através dos
documentos oficiais da organização. As pessoas estariam imersas, portanto, em interações
mútuas com base nesses papéis formais, as quais seriam supostamente diferentes de como
essas mesmas pessoas se comportariam em situações completamente distintas e separadas do
69
espaço organizacional: é como se a consciência da vida social "cotidiana" fosse colocada num
estado de "suspensão" ou "supressão" na medida em que o loci da interação entre as pessoas
se desloca para o espaço organizacional. No entanto, quanto mais as pessoas interagem entre
si no interior desse espaço organizado e formalizado, maior é a influência do mundo social
"exterior", que se infiltra de forma silenciosa mas poderosa nas relações sociais dentro das
organizações.
A etnografia em organizações permite revelar o quanto é particularmente dinâmica
essa dicotomia "interior"/"exterior", repleta de tensões de natureza sexual, religiosa, étnica,
social e estética, que talvez possa ser melhor concebida como um esforço permanente
daqueles que controlam as organizações para acentuar e enfatizar as experiências e
significados representativos de suas culturas ou de seus extratos sociais. Visto que as
organizações são normalmente centralizadas em torno de interesses de um pequeno segmento
de seus membros, qualquer discussão sobre cultura organizacional deve-se ocupar
obrigatoriamente da análise das relações de poder e dominação, explícitas ou implícitas, que
permeiam as organizações.
Ao engajarem-se nos mesmos processos sociais, confrontando as mesmas estruturas
organizacionais, tecnológicas e administrativas, e estando, assim, imbricados nas mesmas
relações de poder e controle, pesquisadores que adotam a etnografia como estratégia de
pesquisa conseguem ter acesso e/ou adquirir alguns tipos de dados que, devido à sua natureza
subjetiva, dificilmente estariam disponíveis através de outros modos de investigação, como,
por exemplo, através de questionários ("surveys") ou entrevistando indivíduos fora de seu
contexto habitual. Segundo Smith (2001, p. 229):
"... um dos objetivos mais importantes da pesquisa em ciências sociais sobre o trabalho deve ser não
apenas descrever mas explicar e determinar como as organizações de trabalho modernas modificam as
estruturas de oportunidade, de que maneira podem servir como veículos de desigualdade, e como
transformam a natureza do poder e do controle."
"Por meio de um jogo de palavras heideggeriano, poder-se ia dizer que a disposição é exposição.
Justamente porque o corpo está (em graus diversos) exposto, posto em cheque, em perigo no mundo,
confrontado ao risco da emoção, da ferida, do sofrimento, por vezes da morte, portanto obrigado e levar
o mundo a sério (e nada mais sério do que a emoção, que atinge o âmago dos dispositivos orgânicos),
ele está apto a adquirir disposições que constituem elas mesmas abertura ao mundo, isto é, as próprias
estruturas do mundo social de que constituem a forma incorporada. A relação com o mundo é uma
relação de presença no mundo, de estar no mundo, no sentido de pertencer ao mundo, de ser possuído
por ele, na qual nem o agente nem o objeto são colocados como tais. [...] Aprendemos pelo corpo."
(BOURDIEU, 2001, p. 171-172).
Na sua essência, o método etnográfico de coleta de dados é viver entre aqueles que
são, efetivamente, os "dados", ou seja, é tentar aprender as regras que os sujeitos aplicam no
cotidiano de suas vidas, dentro e fora das organizações, e interagir com eles com uma
frequência e período de tempo suficientes para compreender como e porque eles constroem
seu mundo social, de forma a poder converter, ao final do trabalho de investigação, as leituras
e interpretações em explicações capazes de serem comunicadas a outras pessoas ou mesmo
aos próprios sujeitos que foram investigados (CAVEDON, 2003; DENZIN e LINCOLN,
2000; TEDLOCK, 2000; VIEIRA e PEREIRA, 2005). Mas a etnografia é mais do que uma
coleção de mecanismos para coletar e escrever sobre os dados que se revelam para o
pesquisador, é um método de observação dos componentes da estrutura social e dos processos
através dos quais interagem. Todos os mecanismos aqui descritos devem ser complementados
e adequadamente subsidiados por conceitos de teoria social, particularmente no domínio dos
significados e da ação, pois são eles que dão "textura" aos processos sociais registrados a
partir do trabalho de campo. A teoria social fornece, portanto, os fundamentos necessários
para que uma análise etnográfica, de natureza essencialmente interpretativa, possa ser
conduzida.
No caso da etnografia em organizações, a teoria é a ferramenta utilizada para atenuar
os efeitos dos preconceitos e predisposições culturais que trazemos conosco quando
estudamos organizações que existem no mesmo espaço cultural global no qual habitamos,
uma vez que a condição de neutralidade absoluta seria incompatível com os pressupostos
71
"... o discurso do informante deve suas propriedades mais secretas ao fato de ser o produto de uma
disposição semiteórica, inevitavelmente influenciada por qualquer interrogatório instruído. As
racionalizações produzidas a partir desse ponto de vista, as quais não são mais do que aquelas da ação,
sem serem as da ciência, encontram-se com e confirmam as expectativas do formalismo gramatical,
ético e jurídico para o qual sua própria situação dirige o observador. O relacionamento entre informante
e antropólogo é, até certo grau, análogo a um relacionamento pedagógico, no qual o mestre deve trazer
para o estado de clareza, com a finalidade de transmissão, os esquemas inconscientes da sua prática."
(BOURDIEU, 1977, p. 18). [Grifos do autor]
Narrativas passaram a ser vistas recentemente como uma das formas fundamentais através das
quais as pessoas organizam seu entendimento sobre o mundo: o ato de narrar é, sobretudo, um
meio importante para compreender a experiência passada e compartilhá-la com outros
(CORTAZI, 2001).
Grande parte das narrativas falam sobre coisas que, de alguma forma, interessam tanto
àquele que narra quanto àquele que ouve. Dessa forma, uma análise cuidadosa dos tópicos,
conteúdo, estilo, contexto e descrição das narrativas contadas por indivíduos ou grupos
submetidos a um estudo etnográfico deve fornecer ao pesquisador, ao menos a princípio,
acesso a como os narradores compreendem o significado de eventos importantes em suas
vidas, comunidades ou contextos sociais e culturais.
"Contar a história de uma vida talvez seja um dos núcleos da cultura, essas delicadas teias de
significados que ajudam a organizar nossas formas de viver. Essas histórias - ou narrativas pessoais -
conectam o mundo interior com o mundo exterior, falam ao subjetivo e ao objetivo, e estabelecem os
limites das identidades (do que alguém é e do que alguém não é). Histórias de vida misturam o 'ser
bruto', incorporado e emocional, com o 'eu consciente', racional e irracional. Elas criam vínculos através
de fases da vida e através de grupos de gerações, revelando mudanças em uma cultura. Elas ajudam a
estabelecer memórias coletivas e comunidades imaginadas. Elas ligam história cultural com biografia
pessoal. E elas se tornam construções morais, contos sobre virtudes e defeitos, os quais podem atuar
como guias a orientar nossas vidas éticas" (PLUMMER, 2001 , p. 395).
"Quando defrontados com o desafio de estudar um mundo com o qual estamos ligados por toda a sorte
de investimentos específicos, inextricavelmente intelectuais e 'temporais', nosso pensamento automático
e imediato é fugir; nossa preocupação em evitar qualquer suspeita de preconceito nos leva a tentar negar
75
nós mesmos como sujeitos 'viesados' ou 'informados', automaticamente suspeitos de utilizar as armas da
ciência na busca de interesses pessoais, de abolir o 'eu', mesmo como sujeito cognoscitivo, através do
recurso aos procedimentos mais impessoais e automáticos, aqueles, que, ao menos nessa perspectiva
(que representa a da 'ciência normal'), são os menos questionáveis." (BOURDIEU, 1988a, p. 6).
estruturas do objeto. Essas opiniões primeiras sobre os fatos sociais revelam-se como um
conjunto "frouxo", falsamente sistematizado, de julgamentos, de prenoções e noções comuns,
objetos pré-construídos pela e para a prática (BOURDIEU, CHAMBOREDON e
PASSERON, 2004).
Particularmente nas ciências sociais e humanas, onde a separação entre o senso
comum (doxa) e o discurso científico é mais imprecisa, se comparada à "ciência normal", a
vigilância epistemológica impõe-se como uma necessidade fundamental: todas as técnicas de
objetivação devem ser utilizadas para possibilitar uma ruptura com a forte influência imposta
pela linguagem corrente, ou seja, pela linguagem comum.
No entanto, o rigor científico não nos obriga a renunciar à capacidade pedagógica e
heurística que os esquemas analógicos de explicação ou compreensão extraídos da linguagem
comum podem oferecer, com a condição de que sejam utilizados de forma consciente e
metódica. Segundo Bourdieu (BOURDIEU, CHAMBOREDON e PASSERON, 2004), a
linguagem corrente, pelo simples fato de ser "comum", oculta em seu vocabulário e sintaxe
uma "filosofia petrificada do social" (p. 32), pronta para ressurgir na forma de expressões ou
palavras e sem perderem a credibilidade que lhes são conferidas pela sua própria origem.
Ignorar a linguagem comum em detrimento de uma exclusividade pelo discurso científico,
assim chamado por ser uma linguagem "perfeita", inteiramente construída e formalizada, é
correr o risco de desviar-se da análise mais urgente, aquela que busca recuperar as palavras
comuns no interior do sistema de relações onde elas existem e submetê-las à definição
depurada e à crítica metódica.
Enfim, a força da análise baseia-se, precisamente, em práticas que sejam habilmente
contextualizadas, isto é, na capacidade de desconstruir problemáticas impostas para
reconstruí-las sempre com referência à experiência dos agentes sociais.
Parte do meu esforço de análise, portanto, será dedicado ao trabalho de construção das
confrarias como um objeto de estudo, um termo retirado, não por acaso, da linguagem
comum, com todas as implicações metodológicas aqui descritas. A necessidade de construir
novos objetos formados a partir do vocabulário comum, desde que seja uma construção
controlada e consciente de seu distanciamento ao real e de sua ação sobre o real, justifica-se
na medida em que esses novos objetos também constroem novas relações entre os aspectos
das coisas e levantam questões que não são tão aparentes, ou que não se colocam
objetivamente aos sujeitos, ou que não estejam imediatamente disponíveis para a abordagem
positivista tradicional.
77
Não foi por acaso, portanto, que o termo operacionalização aparece entre aspas no
título deste capítulo. Minha intenção é alertar que o propósito primordial da boa teoria social é
servir como instrumento para a produção de novos objetos, detectar novas dimensões de
análise e dissecar mecanismos existentes no mundo social que, de outra forma, não seríamos
capazes de compreender. Bourdieu (BOURDIEU, 1988a; 2001; BOURDIEU e
WACQUANT, 1992) nos lembra que existem duas maneiras de conceber e utilizar a teoria
social: o modo "escolástico", onde os conceitos são decompostos, "polidos" e retrabalhados
para produzir categorias teóricas a serviço de uma exposição ritualística, e o modo
"generativo", onde a teoria é desenvolvida para ser colocada "em ação" na pesquisa empírica,
e provar e expandir sua capacidade heurística a partir da confrontação sistemática com a
realidade socio-histórica dos fenômenos.
Por essa razão, qualquer tentativa de operacionalizar os conceitos centrais da teoria
social de Bourdieu (habitus, campo e capital) deve levar em conta que esses conceitos são
"generativos" e relacionais por excelência, constituídos por vínculos sociais em diferentes
estados (incorporados, objetivados ou institucionalizados), cujo poder explicativo reside
precisamente quando utilizados na prática, relacionalmente uns com os outros.
Neste trabalho, pretendo fazer uso de todos os instrumentos metodológicos aqui
descritos para identificar o conjunto de propriedades pertinentes e os mecanismos de
produção e reprodução dos arranjos sociais associados ao fenômeno da confraria na
organização que está sendo investigada. Os conceitos de habitus, capital e campo serão
"operacionalizados", com todas as ressalvas já feitas, utilizando algumas fontes disponíveis na
literatura para sinalizar os "temas" que servirão como ponto de partida das operações de
coleta de dados e das análises e interpretações posteriores.
"A partir do momento em que observamos o mundo social, introduzimos em nossa percepção um viés
que se deve ao fato de que, para falar do mundo social, para estudá-lo a fim de falar sobre ele, etc., é
preciso se retirar dele. O que se pode chamar de viés teoreticista ou intelectualista consiste em esquecer
de inscrever, na teoria que se faz do mundo social, o fato de ela ser produto de um olhar teórico. Para
fazer uma ciência adequada do mundo social, é preciso, ao mesmo tempo, produzir uma teoria
(construir modelos, etc.) e introduzir na teoria final uma teoria da distância entre a teoria e a prática."
(BOURDIEU, 2004b , p. 115).
Neste capítulo pretendo indicar alguns tópicos práticos que surgiram ao longo do meu
trabalho de campo que serão, possivelmente, bastante relevantes para aqueles interessados em
realizar etnografia em organizações. Esses temas são baseados na minha experiência pessoal,
e não pretendo que sejam mais do que um esquema de orientação o qual será, pela própria
natureza do empreendimento etnográfico, inevitavelmente incompleto.
De uma maneira geral, os antropólogos alegam que somente através da participação
direta na vida e nos assuntos do grupo social objeto de seu interesse, o etnógrafo será capaz de
compreender as ações e os significados percebidos e construídos por aqueles que compõem tal
grupo. Na maior parte dos casos, no entanto, os pesquisadores em organizações atuam como
observadores de participantes. No caso específico da etnografia em organizações, é possível
que o pesquisador precise fazer a opção entre conduzir a pesquisa como empregado de uma
empresa ou como observador externo.
O pesquisador que opta pela participação direta, espera que, por “ser” o que os
membros da organização são, estará apto a captar de modo mais preciso os processos sociais e
a estrutura da organização do que se fosse apenas um observador externo. Embora exista uma
lógica razoável nesta abordagem, as diferenças entre fazer a pesquisa como observador
externo e como participante direto são complexas e deveriam ser consideradas antes de se
adentrar o campo de pesquisa. Rosen (1991) identifica quatro fatores fundamentais para se
fazer a escolha mais adequada: conhecimento progressivo, sigilo organizacional, confiança e
definição/segregação de papéis. Esses fatores pareceram-me bastante relevantes para as
situações de pesquisa com as quais fui confrontado (e cuja validade pude comprovar no meu
próprio esforço de investigação), e serão exploradas a seguir, com algumas adaptações.
O conhecimento progressivo, segundo Rosen (1991), consiste na habilidade técnica,
nos sentimentos e nas emoções resultantes do ato de executar um tipo específico de trabalho.
Tal conhecimento não emerge de modo unilateral, unicamente a partir do desempenho das
82
atividades relacionadas a uma tarefa determinada, mas também provêem da participação nas
relações sociais nas quais a tarefa está imbricada. Não resta dúvida que o observador externo
tem menos acesso ao conhecimento progressivo imediato do que o participante direto. Por
outro lado, o conhecimento do participante não pode e não está necessariamente limitado à
área de desempenho de suas tarefas: este conhecimento também resulta da participação em
relações sociais no âmbito geral da empresa da qual ele participa, que precisam ser
igualmente consideradas.
Quando os antropólogos recomendam a “participação direta” como método de estudo
de campo eles o fazem devido, principalmente, ao conhecimento progressivo que é obtido a
partir da participação “em primeira mão” nas atividades daqueles que estão sendo
efetivamente estudados. A habilidade na execução de tarefas dos sujeitos - os objetos de
estudo – levaria, presumivelmente, a um conhecimento mais profundo de sua existência
sócio-cultural.
O segundo fator a ser considerado é o sigilo organizacional. Por definição, as
organizações burocráticas são baseadas em sigilo (CLEGG, 1990). As políticas, orientações e
decisões organizacionais são normalmente preservadas com o objetivo de assegurar vantagens
competitivas e supremacia estratégica. Existem dados da empresa que são de acesso restrito
ou confidenciais. O acesso a departamentos, ou mesmo a prédios inteiros, pode não estar
disponível aos empregados (e especialmente a observadores externos) sem o nível correto de
autorização.
Contudo, dependendo dos interesses da pesquisa do etnógrafo, o acesso a informações
preservadas ou privilegiadas, ou a pessoas que ocupam postos chave na organização, pode ser
essencial para o sucesso do trabalho. O etnógrafo deve, então, escolher cuidadosamente qual
será a postura mais adequada, tendo em mente os limites impostos pela necessidade de
garantir o sigilo em questões particulares da organização, mas assegurando que as evidências
empíricas que serão coletadas e analisadas não comprometerão a validade e a consistência da
pesquisa e das conclusões finais.
O terceiro fator está relacionado com a confiança, e diz respeito a situações onde o
pesquisador ocupa um cargo oficial na empresa, ou seja, quando exerce funções
objetivamente definidas, num escritório localizado em um espaço físico e temporal. Isso é
particularmente problemático quando o pesquisador exerce funções gerenciais, ou, como se
costuma dizer no jargão empresarial, quando ocupa “cargos de confiança”. Nesses casos, o
pesquisador normalmente está envolvido com articulações políticas que ocorrem tanto nos
níveis hierárquicos superiores da empresa como entre seus pares e, até mesmo, entre seus
83
pesquisador na medida em que ele esteja envolvido de tal modo na organização a ponto de
relutar em se dissociar dos seus processos rotineiros de trabalho para dedicar-se às atividades
de pesquisa e registrar dados. Nesses casos, existirá sempre uma sensação desconfortante pelo
lado do pesquisador, seja por estar “perdendo” tempo de trabalho, seu e de seus informantes,
seja pelos dilemas éticos, que invariavelmente surgem em situações como essa, com os quais
terá que lidar.
Em resumo, a etnografia realizada na própria organização da qual o pesquisador é um
participante efetivo, traz uma série de restrições à pesquisa, aparentemente não encontradas
quando se participa das atividades de um grupo social como um observador externo. Embora
o etnógrafo em uma cultura estrangeira possa perceber-se como participante, os elementos
pertencentes ao grupo provavelmente o considerarão mais como um “participante convidado”
do que um membro oficial da organização e o tratarão de tal modo. O etnógrafo tem, portanto,
mais liberdade de fazer perguntas tolas ou ingênuas, sejam elas intencionais ou não, de
comportar-se de modo “estranho” etc. Além disso, se o etnógrafo erra na tarefa que o grupo
lhe designa, a comunidade “anfitriã” provavelmente não será prejudicada: aqueles que têm
responsabilidades no grupo não estarão na verdade dependendo do etnógrafo,
consequentemente, não estarão julgando suas atitudes ou decisões segundo os critérios que
normalmente seriam aplicados a um membro efetivo. O etnógrafo de organizações formais,
voltadas para atingimento de objetivos específicos, que pesquisa no interior da própria
cultura, encontrará, inevitavelmente, muito mais restrições no seu trabalho. Apesar da riqueza
e relevância dos resultados que seguramente são obtidos quando se faz essa opção de
pesquisa, existe o risco permanente de assumir um posicionamento crítico, dissonante, nem
sempre alinhado ao pensamento dominante, que poderá ser (mal) interpretado ou julgado
segundo os imperativos organizacionais ou mesmo interesses políticos, e não como um
exercício livre de reflexão, com a autonomia necessária que a “boa” atividade acadêmica
exige.
Nos Anexos deste trabalho existem algumas comunicações trocadas com a diretoria da
empresa que foi objeto desta pesquisa que ilustram com clareza as dificuldades e dilemas
pelas quais passei no decorrer do trabalho.
Ao longo de toda a análise etnográfica que foi realizada, foram omitidas quaisquer
informações que pudessem identificar o grupo multinacional que foi investigado. Nas
ocasiões onde isso não foi possível, foram adotados nomes e/ou referências fictícias. Vale
deixar claro aqui que esse procedimento em momento algum interferiu na análise dos dados,
bem como não prejudicou os resultados e conclusões obtidos.
85
A “fase do pioneirismo”
dominado”, encantados que estavam com o progresso proporcionado pelos canadenses. Por
outro lado, havia entre os canadenses a “postura do dominante”, legitimada, inclusive, pelos
próprios brasileiros, por terem trazido a “modernidade” ao Brasil e exercido papel
fundamental no desenvolvimento econômico do país.
A estreita relação com a elite política brasileira, que permaneceria como um traço
marcante durante toda a história da Companhia até os dias de hoje, a origem social de seus
parceiros brasileiros, todos oriundos de famílias de grande influência na época, e a presença
maciça de advogados nos escalões superiores dos primeiros organogramas da empresa,
contribuíram, também, para forjar um estilo gerencial extremamente formal e aristocrático.
Por força da própria natureza do negócio – prestação de serviços públicos -, era
inevitável que ocorresse uma superposição ou combinação de interesses públicos, privados e,
até mesmo, pessoais, na relação da XYZ com as autoridades do Governo, uma vez que a
atividade dependia fundamentalmente de concessões do Estado para funcionar e de “bons
relacionamentos” para manter e ampliar os negócios de forma lucrativa.
Todos esses elementos combinados talvez tenham sido responsáveis pela imagem de
arrogância que acompanhou a Companhia por muito tempo.
A “fase brasileira”
Segunda uma das pessoas que foram ouvidas nos trabalhos de campo, um executivo
aposentado do grupo que trabalhou nesse período, a equipe gerencial que foi montada naquela
época tinha realmente muita afinidade:
"Eu diria, que enquanto esta era uma empresa cuja única obrigação para um acionista era mandar os
dividendos, ....., eu diria que tinha uma organização excelente. Porque era um grupo muito coeso, não
havia muita consideração sobre a estrutura organizacional, era muito informal, acredito que não
houvesse muitos cuidados com treinamentos. Até porque era difícil, por uma questão de sobrevivência,
enquanto hoje a gente está procurando novos negócios, naquela época, era uma questão de fechar
negócios, reduzir aquele leque de coisas que não tinham nada a ver uma com a outra, e reaplicar
naquele negócio que remanescia, portanto, deveriam ser sustentados. Era uma preocupação
completamente diferente, a preocupção era com sobrevivência, mas uma sobrevivência sadia. .... De
maneira que eu acho que a própria estrutura, o próprio clima da empresa era um pouco em função
disso."
De certa forma, pode-se afirmar que o novo presidente da XYZ no Brasil pertencia à
mesma “linhagem” de seus antecessores. Mas quais são as condições sociais desse juízo que
faço? Isso supõe, antes de tudo, que as preferências e gostos (ou o habitus), enquanto sistemas
de esquemas de classificação, estão objetivamente referidos a uma condição social – a
“linhagem” – através dos condicionamentos sociais que o produziram. Nada classifica mais
uma pessoa do que suas próprias classificações. Os agentes, ao fazerem suas escolhas em
conformidade com seu habitus, sejam objetos de consumo, amigos ou colegas de trabalho, o
fazem de forma a manter uma “afinidade” entre si, ou, mais exatamente, com outros agentes
que ocupam posição homóloga à posição ocupada por eles no espaço social.
Dessa forma, pode-se concluir que aquilo que se costuma chamar de “cultura
organizacional” tem suas raízes nas “afinidades” do habitus dos diferentes agentes que
compõem a parcela dominante no campo. Quanto mais fortes e sólidas são essas “afinidades”,
maiores as chances da “cultura organizacional” ter uma gênese social e ser, por conseguinte,
uma reprodução razoavelmente fiel da mesma estrutura de distribuição de capitais, da mesma
configuração de forças e dos mesmos princípios hierarquizadores que definem o espaço
social.
A “fase de transição”
88
" Então eles ficaram donos, esse pessoal da ABC não tinha noção de Brasil, tenho certeza que eles não
sabiam a diferença entre Brasil e Hiroshima, não sabiam de nada. Simplesmente o que os motivou foi
aquela reserva de caixa que eles não tinham. Aí alguém comeu mosca. Os acionistas daqui dormiram
no ponto. Porque se expuseram a um takeover. E foi o que aconteceu."
" [...] para eles interessava era deixar o barco correr, não se interessavam pelo Brasil, e nem sabiam
onde era o Brasil, sabiam mais ou menos, e enquanto eles recebessem os dividendos, tava tudo bem.
Recebiam religiosamente os 12 milhões de dólares por ano, tudo bem, certinho, uma parte no inicio do
ano, outra parte no final do ano, e não se perturbavam com a gente. A gente era inteiramente
autônomo. Claro, numa boa gestão a gente sempre procurava gerir de acordo com os interesses deles,
mas a rigor, a rigor, no frigir dos ovos, se eles tivessem aqueles dividendos certinhos, tava tudo bem.
89
Vinham para cá, depois que descobriram o Brasil, alguns anos recebendo esse dividendo. Vamos ver o
que produz esses dividendos, de onde vêm esses dividendos, de onde eles nascem.
A “fase pragmática”
"Logo que houve essa fusão, quando a XYZ do Brasil passou a ter o mesmo status da XYZ do Canadá,
começou não só essa preocupação, começou uma harmonização, princípios comerciais... Nunca ninguém tinha
ouvido falar de gado no Canadá, o que importava eram os 12 milhões de dólares. E com a saída do R. e a
chegada do M., hoje é completamente diferente, diferente na cultura, na filosofia, até nas pessoa,s o que é
normal. Tem que passar o bastão mesmo.."
tal como acontecera na aquisição da XYZ pelo Grupo ABC, mas manobras sutis para poder
implementar as mudanças necessárias, evitando conflitos com a velha estrutura de poder da
Companhia representada pelo Conselho de Administração composto por antigos
colaboradores, egressos das fileiras do antigo Grupo ABC.
Percebe-se novamente os efeitos dos mecanismos de controle do mercado impondo
pressões à estrutura de poder da Companhia e às relações sociais a ela subjacentes.
O perfil de novo presidente do grupo no Canadá, que comanda a Companhia até os
dias de hoje, é do típico workaholic. Seu habitus torna a visão mais pragmática das
organizações, a lógica da eficiência e da maximização do lucro, a elevação dos objetivos da
empresa acima dos objetivos pessoais, como algo natural, necessário, auto-evidente. Essa é a
sua maneira de perceber e apreender a realidade nas organizações.
A figura do novo presidente representa a ruptura definitiva com o estilo personalista
da “fase de transição” e com o estilo aristocrático da “fase brasileira”. No Brasil, M. assume o
comando da Companhia no país e inicia um amplo processo de reformulação nas empresas
em sintonia, ao menos a princípio, com a nova filosofia de trabalho implantada no Canadá.
É precisamente nesse momento, que me junto à XYZ no Brasil, como membro efetivo
da organização.
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Ouvi tudo aquilo atentamente mas saí daquele encontro com uma imagem na cabeça,
não de uma multinacional mas de uma firma de advocacia. A XYZ que havia acabado de
conhecer lembrava-me aqueles ambientes suntuosos e sérios, típicos de grandes firmas de
advocacia.
Seis meses depois, por intermédio dessa mesma pessoa, participaria de um processo de
seleção para o cargo de Gerente de Tecnologia, uma nova área que havia sido criada em
função da nova estrutura organizacional que estava sendo implantada no grupo. A
oportunidade profissional era tentadora: o desafio de implantar uma nova área, de coordenar a
Tecnologia de diversas empresas, operando em negócios tão diversificados.
Retornei a XYZ várias vezes, por conta das entrevistas do processo de seleção (a
útlima delas, com o próprio presidente da Companhia no Brasil), e conheci pela primeira vez
o novo visual do escritório. O ambiente havia mudado radicalmente desde a minha visita
anterior. Estava mais claro, amplo, arejado. As várias salas fechadas tinham dado lugar a
quatro grandes salões abertos, com as mesas de trabalho dispostas em “ilhas”, separadas por
divisórias baixas. Uma parte do andar havia sido ocupada por algumas salas de reunião
pequenas, fechadas, isoladas por divisórias de vidro, o que ajudava a manter a atmosfera
“clean” do escritório. O presidente e os vice-presidentes ocupavam o equivalente a um quarto
da área útil do andar, um amplo salão de onde se podia avistar, de qualquer lugar, toda a
enseada da Praia de Botafogo, com o morro do Pão-de-Açúcar ao fundo, através das grandes
janelas de vidro que iam do chão ao teto, e acompanhavam toda a extensão do salão.
Apesar de todas as mudanças, algo no ambiente parecia conservar os traços daquela
mesma suntuosidade que eu havia conhecido na minha primeira visita. De algum modo, os
pisos em granito, o carpete importado, as obras de arte, o sistema de iluminação indireta, o
imponente salão da presidência, com suas ante-salas e anexos, tudo aquilo me dava a
impressão de uma suntuosidade “moderna”, por assim dizer.
93
Em Abril de 2001, começaria, então, a trabalhar na XYZ. Logo cedo ficaria sabendo
através de conhecidos que havia muitas pessoas influentes na empresa que eram contrárias à
minha contratação por acharem desnecessário ter uma pessoa de nível gerencial para cuidar de
“coisas de tecnologia”.
Com o passar dos meses, fui conhecendo melhor as empresas do grupo no Brasil,
meus colegas de trabalho, gerentes, diretores e vice-presidentes. Gradativamente, fui
conhecendo melhor aquele universo, sua composição de forças, sua lógica de funcionamento,
sua estrutura de distribuição das formas de capital, os alvos em disputa e os interesses
específicos que estavam em jogo.
Até então, já havia acumulado cerca de 15 anos de experiência profissional e atuado
em outros dois conglomerados multinacionais, ambos com presença global: um grupo inglês
do setor de produção e comercialização de tabaco e cigarros, e um grupo financeiro
americano, onde iniciei e consolidei minha carreira, e no qual passei a maior parte da minha
vida profissional. Estou convencido de que essa longa experiência numa multinacional
americana de grande porte, líder mundial no setor financeiro, contribuiu, decerto, para
atualizar novos elementos ao meu habitus, moldando a minha matriz de apreciação e
percepção da realidade nas organizações, aquilo que viria a ser a minha maneira particular de
olhar e analisar esse universo.
Àquela altura, portanto, acreditava estar bastante familiarizado com o modus operandi
típico de uma multinacional. Estava acostumado com o estilo gerencial mais pragmático e
impessoal, que incentivava uma competição intensa e constante entre os empregados por
visibilidade, ascensão profissional e poder, com a pressão permanente por resultados e pelo
cumprimento de metas sempre agressivas, com os processo de avaliação e as políticas de
meritocracia, e, obviamente, com o ritmo frenético de trabalho. Afinal, essa á “regra do jogo”
no campo econômico.
No entanto, a realidade com a qual me confrontava naquele momento revelaria um
universo de relações sociais totalmente estranho para mim, ao menos para o que se esperaria
encontrar em uma empresa multinacional.
Grande parte da nova geração de executivos que tinham a missão de trazer a
“modernidade” para o grupo, de reformular radicalmente os negócios, e preparar as empresas
para um retorno ao crescimento sustentável, tinham sido contratados pessoalmente pelo
presidente e possuíam sólidos laços de amizade entre si.
Aos poucos, pude perceber que esses laços de amizade eram mais antigos e especiais
do que eu imaginara inicialmente. Todos, na verdade, haviam se conhecido ainda na
95
adolescência, quando eram alunos do Colégio Santo Inácio, uma das mais importantes
instituições de ensino no Rio de Janeiro, fundada e administrada por uma congregação de
padres jesuítas, e frequentado, historicamente, pelos filhos de famílias tradicionais da elite
carioca. De uma maneira geral, todas as discussões, definições ou decisões passavam
necessariamente por este grupo fechado de indivíduos, colegas de Santo Inácio, a despeito da
presença de outros (poucos) executivos seniores na empresa, mas que não eram tratados como
membros legítimos desse grupo.
Aos poucos, fui percebendo também que a eloquência dos discursos sobre mudanças,
estratégia, liderança e trabalho em equipe, que tanto haviam me impressionado no meus
primeiros tempos de XYZ, a renovação integral do quadro de executivos e gerentes, ou a
modernidade das novas instalações do escritório, não haviam conseguido eliminar o tom
formal, distante e aristocrático que caracterizava a relação da cúpula do grupo com os demais
níveis nas empresas.
Aos poucos, fui percebendo também que a antiga geração que havia deixado a
empresa tinha deixado muito mais vestígios do que eu imaginava....
A Figura 3 a seguir, traduz com extrema fidelidade minha percepção naquele
momento. Por trás da aparente imagem de sofisticação, eficiência e “modernidade” (fotos à
direita), jazia o traço forte da herança aristocrática de tempos passados. A imagem da capa do
livro Homo Academicus de Bourdieu (1988a) é a representação perfeita desse sentimento e do
contraste que me saltava aos olhos.
Fonte: Bourdieu (1988a; ilustração da capa) Fonte: fotografias feitas pelo próprio autor. O exemplar comemorativo dos 100
Figura 3: Confrarias – o olhar “etnográfico” inicial sobre um objeto em construção ...
Anos do Colégio Santo Inácio (foto inferior) está na estante que se encontra ao
96
Retomo aqui, uma das questões centrais enunciadas no início deste trabalho: o que são
as confrarias, como esse termo surgiu durante o meu empreendimento etnográfico, e quais
insights podem ser capturados e depurados a partir da desconstrução desse termo.
A vigilância epistemológica ensina que é preciso que o pesquisador aplique a si o
mesmo método sociológico que lança mão na investigação dos objetos de seu interesse, ou
seja, que é preciso fazer um exercício apurado de reflexividade que seja capaz de revelar os
efeitos do habitus do pesquisador, e da sua posição no espaço social e no campo onde possui
interesses, nas análises que realiza sobre os fenômenos sociais que observa.
O habitus, princípio gerador de respostas mais ou menos adaptadas às exigências de
um campo, é produto de toda a história individual, desde as experiências da primeira infância,
a história coletiva da família, da classe social de origem, passando pela trajetória escolar,
profissional e pessoal.
O exercício de auto-objetivação que empreendi neste trabalho me ajudou a
compreender melhor as particularidades do meu habitus, a identificar as condições sociais que
o produziram, e quais condicionamentos poderiam estar subjacentes aos meus esquemas de
apreciação e classificação da realidade. Se o mundo social tende a ser percebido como
evidente, e a ser apreendido segundo categorias do “senso comum”, é porque as disposições
dos agentes, isto é, o seu habitus, são, na essência, produto da interiorização das próprias
estruturas do mundo social.
Como essas disposições, essas matrizes de percepção e apreciação, tendem-se a
ajustar-se à posição social, os agentes, mesmo aqueles menos privilegiados, tendem a
perceber o mundo como auto-evidente e aceitá-lo de modo muito mais amplo e natural do que
se poderia imaginar.
A auto-objetivação, certamente, me permitiu apurar o senso crítico necessário para
desafiar o mundo auto-evidente, “desconfiar” das categorias dadas e de tudo que pudesse
parecer “natural”, para poder, assim, investigar as confrarias evitando o juízo precipitado ou
viesado, seja pela sensação de não pertencimento àquele grupo, seja pela sensação de olhar a
situação dos dominados com o olhar social de um dominante.
Como agentes engajados no campo, os membros da confraria possuem uma relação
direta de seu habitus com o campo. O efeito do campo, todavia, é exercido, em parte, por
meio do confronto com as tomadas de posição de todos que se encontram engajados nesse
98
mesmo campo. Mas é o “peso” dos agentes e do seu “habitus específico” no campo, e a maior
ou menor afinidade dele com os diferentes habitus, que levam certos agentes a serem tratados
com “atração” ou “repulsa”, e certos pensamentos e ações a serem taxados como “simpáticos”
ou “antipáticos”.
O termo confrarias emerge, portanto, dessa incompatibilidade de habitus no campo. E
é precisamente por apreender a realidade com o olhar social de um dominante, que os
membros da confraria dificilmente serão capazes de reconhecer suas práticas distintivas como
elitistas e/ou discriminatórias, e tenderão a reagir às minhas análises com indignação (repulsa)
ou com indiferença, talvez por estarem de tal forma inculcados com as disposições de seu
habitus a ponto de tornar o exercício da (auto) reflexividade uma tarefa impossível ou
insuportável.
campo, tanto em minha pesquisa como em minhas tomadas de posição políticas. Foi
possivelmente esse sentimento de ambivalência enraizado nas minhas disposições que tenha
contribuído para criar a atmosfera emocional a qual me referi acima.
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS & VILLAR,
2001:798), o termo confraria tem suas raízes etimológicas no termo francês confrérie, surgido
no século XIII, e reúne as seguintes definições possíveis:
i) Associação laica que funciona sob princípios religiosos, fundada por pessoas
piedosas que se comprometem a realizar, conjuntamente, práticas caritativas,
assistenciais etc.; congregação, irmandade.
A análise dessas definições traz importantes revelações que ajudam a realizar uma
síntese preliminar dos componentes constitutivos do objeto confraria:
As disposições são colocadas como oposições (+/-). Cada polo ou extremo representa
uma manifestação típica. Quando levadas ao seu extremo positivo (+), as disposições
inculcadas no habitus específico das confrarias localizam-se mais próximas dos efeitos dos
mecanismos de controle social exercidos pela sociedade, e forjam, assim, relações sociais de
natureza essencialmente substantiva. No lado oposto (-), seguindo raciocínio análogo, as
disposições estão mais sujeitas à lógica do mercado, por conseguinte, as relações sociais
forjadas serão tipicamente instrumentais.
Na Tabela 4 a seguir, esse quadro é ampliado para comportar as manifestações típicas
das disposições que constituem o habitus da confraria em cada um dos seus extremos (+/-)
102
Esse quadro já permite identificar com certa clareza os elementos que distinguem a
confraria como uma categoria analítica das outras noções mais genéricas (devo dizer, vagas,
descontextualizadas) apontadas na Introdução deste trabalho, a saber, grupos informais e
“times de trabalho”. Situado no extremo das relações subjetivas, as disposições que
constituem o habitus específico da confraria, quando inculcadas nos agentes (seus
participantes), asseguram a longevidade do grupo, dotando-os de uma qualidade inata de
resistir aos imperativos da eficiência e do mercado que caracterizam o pólo correspondente às
relações instrumentais.
103
" Eu não diria disputa... No fundo, era uma disputa, a disputa, vamos dizer assim, era mais subjetiva,
mais subjacente. Vamos falar basicamente sobre sucessão. Eu sei que cobravam insistentemente do R.
sobre isso. Eu sei que é difícil você fazer uma indicação para sua própria instituição. Embora seja
natural e esperado, a morte é natural, é difícil você encarar, é difícil tirar o time. Mas, a favor do R., eu
diria que ele não procurou, ou talvez tenha procurado e não tenha encontrado, e tenha passado para o
outro lado. Ele não encontrou uma sucessão ou um candidato interno, político, para sucedê-lo. Por
esse ou por aquele motivo, ele não achou ninguém que pudesse ocupar aquele papel sem gear talvez
uma desorganização, uma disputa muito grande... Ele buscou várias alternativas fora, várias , inclusive
um que é o atual sucessor que foi ele quem foi buscar. O M. não é descoberta do pessoal do Canadá. O
M. foi apresentado ao Canadá pelo R., como foram outros. E o pessoal do Canadá gostou do M. e o M.
foi contratado. Acredito que não foi prometido mas foi, pelo menos, anunciada essa perspectiva. Eles
devem ter dito a ele: você trabalha para isso se você é candidato, então, cabe a você. "
104
Aos poucos, no entanto, pude perceber que essa prática permanecera na nova fase da
XYZ no Brasil. Existiam outras pessoas, empregadas ou prestando serviço para as várias
empresas operacionais do grupo, que, se não tinham algum laço de parentesco com o
presidente, tinham sólidos laços de amizade. Os depoimentos colhidos no decorrer do meu
trabalho revelaram diversos traços em comum nas histórias de vida desse grupo: todos haviam
passado a infância e adolescência no Leblon, bairro de classe alta da zona sul carioca,
completaram o estudo fundamental no Colégio Santo Inácio, frequentaram os mesmos locais,
clubes e eventos durante a juventude, compartilharam de um convívio social intenso,
casaram-se com pessoas que faziam parte do grupo, estudaram em faculdades de primeira
linha (a maior parte, na PUC/RJ), muitos estenderam sua formação acadêmica (mestrado e/ou
doutorado) em universidades tradicionais no exterior, e suas famílias mantêm até hoje uma
convivência constante. Isso fica bastante claro no trecho abaixo, retirado do depoimento de
um dos assessores mais próximos à presidência:
“Talvez, talvez, e uma outra coisa interessante era o local onde eu morava, quer dizer como eu não
tinha uma facilidade de deslocamento muito grande, eu não tinha carro, minha mãe não me levava e
ainda fazia jogo duro pra mim andar de ônibus, e não sei o que, ficava preocupara, era muito comum
eu conviver perto da minha casa. Então esses amigos do Santo Inácio, vários deles moravam no
Leblon, sabe? O pessoal do esporte todo mundo morava perto de mim, o pessoal que nadou comigo no
Flamengo. Eu tenho 2 grandes amigos, um deles desse grupo do Santo Inácio e o outro veio da
natação, nadou comigo, pô, meu grande amigo. O grupo depois foi se formando nessa faixa, tinha 17,
18 anos, que aí o que que aconteceu no pessoal do encontro, tinha um grupo de meninas e um grupo de
meninos; as meninas casaram com os meninos. (...) E aí as pessoas foram casando dentro do grupo, o
que fez com que a gente consiga ser amigo até hoje porque até ninguém trocou de mulher. Então, o
grupo hoje se encontra, se vê e preserva essa relação. Todo ano, no dia de Natal, no dia 25 todo mundo
vai à missa ao meio dia na São José da Lagoa ha 30 anos, desde que a gente era namorado. Hoje a
fotografia não cabe mais, a gente tem que usar aquela máquina panorâmica porque tá todo mundo com
filho, as famílias cresceram. As pessoas vão lá, mas o núcleo central desses amigos hoje se preserva, o
núcleo inteiro se preserva. Tem outras pessoas que se agregam, eu até, eles ficam danados, eu digo que
eu acho isso covardia, é covardia um casal chegar quando a gente tá junto, pra perto do grupo porque
a gente conversa coisas que as pessoas não entendem. Nós nos conhecemos ha 30 anos, então os
casais, os filhos, eu hoje cheguei aqui e o Luís, garçom veio falar comigo, puxa o senhor tem uma
facilidade e eu falei, facilidade porque? Ele falou, porque eu vi com que facilidade o senhor trata o
filho do senhor M. Eu vi os garotos do doutor M. nascer, entendeu? Os garotos ficavam no meu colo,
como os meus no colo dele. A L. (esposa) adora o meu filho mais velho, acha o meu filho mais velho o
cara mais sensacional da Terra. [...] Esse menino nasceu, e com 8 anos ficava na casa dela pra ter
105
aula de inglês, sabe? Então a relação sempre foi muito ligada, aniversário, a lista começa, é o mesmo
grupo há 30 anos. Vou dar uma festa lá em casa, sai o grupo inicial é, são sempre os 10 ou 12, batata”.
“Eu acho que a decisão estratégica do M. de montar um grupo dele aqui dentro, a decisão estratégica
primeira é o seguinte, primeiro eu preciso de gente de confiança que possa fazer com que eu trabalhe,
com que eu crie o meu grupo de pessoas, os meus amigos. Essa, as pessoas que vão comigo até onde eu
for, que se abracem comigo e vão até o fim. Essa é a decisão estratégica primeira, é o drive principal
estratégico dele de montagem da equipe.”
“E isso é regra, isso culturalmente é o que vai ser implantado aqui. É essa relação de fidelidade, e de
honestidade, de amizade. A tendência da equipe, se você examinar a equipe hoje, você vai ver
claramente que a tendência da equipe é essa, que o M. constrói com as pessoas é essa relação que ele
tem com os amigos.
Nesse sentido, a confraria fica sujeita a uma forte influência do contexto histórico,
social e cultural onde está imbricada, estando propensa, assim, a reproduzir, em muitas
situações, aspectos característicos da sociedade brasileira:
106
6 CONCLUSÕES
"Look at any handbook on your shelf and what you’ll find is that most chapters are written in third-
person, passive voice. It’s as if they’re written from nowhere by nobody. [...] By not insisting on some
sort of accountability, our academic publications reinforce the third-person, passive voice as a
standard, which gives more weight to abstract and categorical knowledge than to the direct testimony of
personal narrative and the first-person voice. It doesn’t even occur to most authors that writing in the
first person is an option. They’ve been shaped by the prevailing norms of scholarly discourse within
which they operate. Once the anonymous essay became the norm, then the personal, autobiographical
story became a delinquent form of expression." (ELLIS e BOCHNER, 2000, p. 734).
Encerro este trabalho da mesma forma como comecei: com uma citação no original,
para não correr o risco de perder a riqueza e o rigor da mensagem em um tradução, que por
melhor que fosse, não seria mais do que uma leitura de “segunda mão”.
Essa mensagem corrobora com a difícil decisão que foi para mim a opção pela
abordagem etnográfica, um caminho “pantanoso” mais certamente gratificante pela
possibilidade de colocar o corpo como o veículo principal do aprendizado, pelo desafio
intelectual e pessoal da imersão total requerida para apreensão do fenômeno observado, e pela
oportunidade de poder refletir sobre as condições sociais não apenas da sua construção mas
também sobre a própria construção do conhecimento acerca dele.
Era natural que o trabalho enveredasse por um linha não muito convencional, e
seguisse um estilo mais “literário”, por assim dizer, mas sem que isso represente, em
momento algum, comprometer o compromisso com a fundamentação teórica e com a
vigilância epistemológica (fundamental, principalmente em empreendimentos dessa natureza),
com o exame cuidadoso dos referenciais e dos conceitos utilizados diante do contexto da
pesquisa, e com a seleção dos procedimentos metodológicos adequados para a aproximação
do fenômeno.
Bourdieu me pareceu a escolha perfeita, em virtude da sua perspectiva sobre o mundo
social como um espaço de conflitos e disputas, e por ter se deparado durante suas atividades
de pesquisador com desafios (talvez) semelhantes aos meus: investigar os mecanismos de
reprodução dentro da sua própria cultura.
Acredito que o grande mérito de Bourdieu tenha sido sua persistência em combater os
“rótulos”, que delimitam recortes teóricos, que estimulam uma especialização exagerada das
disciplinas nas ciências sociais, que instituem a ditadura dos paradigmas, que reforçam as
108
entre a lógica que orientava as práticas dos membros da confraria e a lógica instrumental
característica de organizações multinacionais vieram à tona, ficaram perigosamente expostas.
Isso provocou mudanças na estrutura da XYZ no Brasil, e, junto a isso, a dolorosa
decisão de remanejar alguns “amigos” e afastar outros. Novos arranjos entre as operações no
Brasil também ocorreram, gerando novos confrontos de forças no campo, na medida em que
empresa do grupo que não respondiam diretamente ao presidente foram sendo incorporadas e
unificadas sobre seu comando.
A confraria foi também se flexibilizando durante o tempo, mais pela necessidade de
incorporar pessoas com a experiência e competências necessárias para cuidar de interesses
onde aquele “grupo fechado” não se sentia confortável e seguro para comandar diretamente,
ou pela impossibilidade prática de gerenciar um negócio que crescia em volume e em
complexidade. Mas é visível que o núcleo da confraria permanece, resiste.
Em Distinction (BOURDIEU, 1984), Bourdieu usa a expressão “cultural goodwill”
para representar uma espécie de “boa vontade”, não necessariamente consciente, das frações
dominantes no espaço social em aceitar em seu mundo, aqueles que adquiriram alguma
competência cultural distintiva, exclusiva das frações dominantes. Para esses novos entrantes,
essas competências não são “naturais”, “dadas” ou “herdadas”, porque não são compatíveis
com seu habitus: foram adquiridas mas não foram socialmente inculcadas. Acredito que a
analogia do conceito de “cultural goodwill” com a flexibilidade da confraria é bastante
pertinente e expressa com bastante fidelidade os significados que essa aparente concessão
representa.
Não é fácil pensar e dizer o que significou para mim a experiência de pesquisar na
própria organização onde exerço minha atividade profissional, e, em particular, o desafio
intelectual e também pessoal que representou a realização dessa pesquisa.
Hesitei muitas vezes se deveria manter uma postura mais discreta, convencional,
omitindo alguns fatos e mantendo os verdadeiros protagonistas do fenômeno que investiguei
no anonimato, ou se deveria me expor à crítica e ser fiel às experiências pelas quais passei,
debruçar-me sobre elas e extrair os significados reais por trás do fenômeno das confrarias,
coerente com as minhas escolhas teóricas e metodológicas, e com a minha postura
epistemológica.
Mas o aprendiz é aquele que se oferece voluntariamente para aprender um ofício ou
uma arte, e deve estar ciente de que a tarefa envolverá dedicação e entrega, e que o caminho
nem sempre será fácil.
111
Este trabalho me fez refletir profundamente sobre meu passado, sobre meus valores,
sobre a minha visão de mundo, sobre minhas escolhas, sobre o sentido que nós damos às
nossas vidas. De todo esse esforço, uma mensagem parece ter ficado bem clara para mim:
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8 ANEXOS
Qual o efeito das disposições associadas à minha posição de origem, em relação aos
espaços sociais em cujo interior elas se atualizam, na minha postura diante do mundo social,
na maneira pela qual eu apreendo esse mundo e dou sentido às representações que dele faço, e
nas orientações e/ou determinações das práticas por meio das quais meu corpo e mente são
expostos ao jogo permanente da interação social?
Meu principal objetivo neste capítulo é procurar responder essas questões de forma
sistemática, empreendendo um exercício consciente e apurado de reflexividade que permita
identificar a natureza dos vieses que trago para minhas análises e tentar explicar suas
possíveis influências na minhas tomadas de posição.
Creio que, agora, ficarão esclarecidos os motivos que me levaram a dedicar um
capítulo inteiro neste trabalho (ver “2.1. Notas Biográficas”) para investigar especificamente
as conexões entre a vida e a obra de Bourdieu, e a tomar emprestado (mais uma vez...) o título
de um de seus últimos textos “Esquisse por une auto-analyse”, traduzido e publicado no
Brasil com o título “Um esboço de auto-análise” (BOURDIEU, 2005a). A despeito do que
esse título possa suscitar, não se trata (em ambos os casos, tanto na obra original como no
meu trabalho) de um mero relato autobiográfico, mas um compromisso explícito com a
vigilância epistemológica, condição fundamental para realizar um projeto científico
particularmente problemático como a análise etnográfica. É sobre levar a reflexividade ao seu
extremo, sobre fazer uso da fundamentação teórica e dos procedimentos metodológicos
adequados para dissecar preconceitos, disposições e inclinações pessoais, e ter a coragem
necessária para enfrentá-los e exorcizá-los na penosa tarefa da auto-objetivação.
Apesar das diferenças evidentes – e, aqui, refiro-me obviamente à sua trajetória
acadêmica, ao porte e importância de sua obra –, reconheço na biografia de Bourdieu
inúmeros pontos de convergência, a começar pela estranha combinação de sentimentos, quase
que antagônicos: uma necessidade incontrolável de isolamento convivendo com a ansiedade
pelo abandono. Mas a tarefa de auto-objetivação requer um esforço de reflexão que remeta ao
lugar primeiro do processo de socialização, a família, juntamente com o conjunto de
propriedades constitutivas e distintivas do meio social de origem que a particularizam.
128
Meu pai, primogênito de uma família de origem italiana, pequena para os padrões da
época (meus avós paternos tiveram apenas dois filhos), nasceu numa pequena cidade no
interior de Minas Gerais, no ano de 1930. A cidade, chamada Angustura, fora fundada por
imigrantes italianos que chegavam ao Brasil no início do século, fugindo da guerra que
devastava a Europa. Sua infância modesta mas tranquila, em meio a uma paisagem
tipicamente rural, deixou lembranças fortes que o acompanharam por toda a vida. Chegou a
adquirir um sítio na região de Vassouras na década de 1980, batizado com o nome de sua
cidade natal, "Angustura", onde conseguiu realizar seu sonho de construir um pequeno curral,
ter uma vaquinha leiteira, o prazer de acordar cedo para o ritual da ordenha, etc. Não
conseguiu manter o sítio por muito tempo em função dos altos custos de manutenção. A auto-
disciplina e uma precaução exagerada com o futuro, faziam dele uma pessoa extremamente
metódica, cautelosa e pouco confortável com situações de incerteza, principalmente em
questões de ordem financeira.
A família mudou-se de Angustura para o Rio de Janeiro na década 1940, fixando
residência no centro da cidade, num sobrado na Rua dos Andradas, próximo à esquina da Rua
Marechal Floriano, onde meu avô montou um pequeno negócio de alfaiataria. O Rio de
Janeiro era, na época, a capital da república, palco de tudo que ocorreria de importante na vida
política e cultural do país. Meu avô chegou a ter bastante sucesso no negócio, com uma
clientela fiel, na sua maior parte, de políticos e militares.
Meu pai começou a trabalhar cedo, em torno dos 15 anos, e seguiu conciliando o
trabalho com os estudos. Cumpriu o alistamento obrigatório no exército, formou-se como
técnico em contabilidade e iniciou, ainda jovem, uma longa carreira numa empresa
multinacional alemã. Foi praticamente o único emprego que teve durante toda a vida até sua
aposentadoria, em meados da década de 1980. Casou-se em 1960, já com 30 anos, e teve um
início de vida muito difícil: o esforço para comprar o pequeno apartamento de dois quartos na
Tijuca (na ocasião, o sonho de consumo de uma classe média emergente), a chegada do
primeiro filho logo no primeiro ano de casamento, as dificuldades financeiras para arcar com
o pagamento do financiamento imobiliário etc. Com 37 anos, já estava com três filhos, muitas
despesas e muito trabalho extra à noite para complementar o orçamento doméstico (fazia
escriturações contábeis como autônomo), uma vez que minha mãe havia deixado de trabalhar
logo depois do nascimento do primeiro filho do casal, meu irmão mais velho.
As disposições que foram moldando o habitus de meu pai têm, seguramente, uma forte
influência da sua origem italiana – o tom de irreverência e crítica sempre presente nas
relações sociais e a extrema valorização da família -, e do espírito do imigrante que deixa seu
129
país de origem para iniciar a vida em terras desconhecidas, convivendo com todas as
dificuldades e desafios inerentes. Seu habitus, enquanto princípio gerador de práticas ao
mesmo tempo em que é atualizado por elas, também foi profundamente afetado pelas relações
no interior de sua família: um pai autoritário, preconceituoso e, talvez, um pouco racista; um
irmão de temperamento extrovertido e carismático mas que seguiu desde jovem uma trajetória
errante, acumulando vários casamentos fracassados e filhos pelo caminho, que nunca
conseguiu se fixar num mesmo trabalho por muito tempo, que sempre resistiu a idéia de ser
empregado de alguém, e cujos deslizes na vida levaram-no até mesmo a ser preso por alguns
anos por estelionato, fato que contribuiu, decerto, para a decadência financeira e emocional
dos meus avós. Meu pai nunca conseguiu superar essa situação familiar conflituosa. Ao
mesmo tempo em que assumia a responsabilidade por assegurar o equilíbrio da família e o
futuro dos meus avós, sentia-se desprezado por eles pela falta de rigor com que lidavam com
os desvios de caráter de seu irmão mais novo, um tratamento diferenciado que influenciou
fortemente a construção de seus valores e de sua visão de mundo. A preocupação de
respeitabilidade e o respeito pelas convenções fizeram de meu pai um homem sempre
preocupado com o futuro, conservador, disciplinador e austero com questões financeiras e
com as pessoas, em especial, com os filhos. Por outro lado, sua dedicação integral à família,
seu compromisso em nos oferecer uma boa condição de vida (sem luxos ou supérfluos mas
com mesa farta), o prazer de ter a família sempre reunida na hora do jantar, nos momentos de
lazer, nos eventos e datas importantes, e seu rigor com nossa formação escolar e moral,
tiveram, sem dúvida, papel preponderante na formação das minhas disposições.
Minha mãe proveio de um meio social de origem bastante humilde. Filha mais nova de
uma família de cinco filhos, nasceu em 1933, em Campos, uma cidade no interior do Rio de
Janeiro que tentava sobreviver à sombra de seu passado colonial, quando foi um importante
polo de produção nos áureos tempos do ciclo da cana-de-açúcar. Se quer conheceu o pai, que
falesceu antes do seu nascimento. A grande dificuldade de criar os filhos sozinha numa época
em que as mulheres mal iniciavam seus passos no mercado de trabalho, levou minha avó
materna a deixar os filhos com parentes. Nessa época, minha mãe veio para o Rio de Janeiro,
para ficar em um internato para meninas carentes mantido por um convento de freiras no
bairro do Catumbi. Dentro do que as condições financeiras permitiam, minha avó vinha
periodicamente visitar minha mãe no internato. Mas as visitas não eram tão frequentes como
minha mãe gostaria. Mas isso não lhe causou revolta. Pelo contrário, as dificuldades da vida
aceleraram seu amadurecimento. Ela sempre compreendeu as circunstâncias daquele ato que,
em momento algum, chegaram a abalar seu sentimento de amor e gratidão pela minha avó.
130
Durante o tempo no internato, um fato curioso: minha mãe chegou a conhecer pessoalmente o
Presidente Getúlio Vargas, que fazia doações regulares às freiras do convento. Afirma até
hoje que Getúlio quis adotá-la mas as freiras tinham autorização expressa da minha avó para
não oferecer minha mãe para a adoção. Foi obrigada a deixar o internato aos 18 anos, idade
limite para as meninas permanecerem como internas. Alugou um quarto em casa de família,
trabalhou como doméstica, recepcionista e outras funções semelhantes, até chegar à mesma
empresa onde meu pai trabalhava, para candidatar-se ao posto de telefonista. Chegou para os
testes e entrevistas sem nunca ter visto uma mesa telefônica na vida, mas não podia desistir
pois precisava desesperadamente daquele emprego. Ao perceber a presença de um técnico que
fazia manutenção no equipamento, aproveitou-se de um atraso no início do processo de
seleção e dirigiu-se discretamente para perto do técnico e perguntou tudo que podia e que o
tempo permitiu. Muito comunicativa, de boa aparência, tinha facilidade e, principalmente,
disposição para aprender. Acabou conseguindo se sair bem nos testes e foi contratada. Alguns
anos mais tarde, conheceria meu pai, namorariam por quase 5 anos, tempo que levaram para
conseguir reunir recursos financeiros suficientes para comprar e mobilhar a nova casa. A
experiência no internato e sua trajetória de vida desempenharam um papel determinante na
formação de suas disposições e na construção do seu habitus, principalmente na inclinação
para uma visão extremamente realista e pragmática do mundo e das relações sociais, na
vocação natural para a simplicidade, em antagonismo com a experiência protegida da
existência burguesa, e na virtude para o trabalho árduo e para a dedicação extrema à família
(uma compensação pessoal por aquilo que não pode ter quando criança). Esse conjunto de
experiências contribuíram para forjar uma atitude frequentemente de desconfiança em relação
aos outros, e um certo despreparo, chegando, por vezes, a um destempero, para enfrentar
situações estranhas ao seu pequeno mundo, com as quais não tinha a competência natural para
lidar.
Fui descobrindo aos poucos as características peculiares do meu habitus, sobretudo,
talvez, pelo olhar dos outros (nem sempre traduzidos em comentários necessariamente
elogiosos...) e pelos longos períodos de reflexão solitária sobre a história de vida de meus
pais, e suas influências sobre minhas disposições e inclinações, e sobre os vestígios do meu
próprio passado que se manifestavam na minha forma de pensar o mundo e de agir sobre ele.
Segundo filho de uma família de três irmãos, minha infância até meus 12 anos foi na
Tijuca, de onde me mudei para o Andaraí, um bairro vizinho, onde permaneci até meus 26
anos. Fui criado como um típico garoto de “zona norte” em contraste com os garotos de “zona
sul”, normalmente oriundos de famílias tradicionais e com mais posses. Em linguagem
131
bourdieusiana, diria que seriam, em sua maioria, grupos dotados de um volume maior de
capital econômico e cultural, e, consequentemente, localizados mais favoravelmente na
hierarquia de posições possíveis dentro do espaço social. Existe, historicamente, uma
rivalidade curiosa entre “tijucanos” e “garotos de zona sul”, iniciada, possivelmente, a partir
da migração das famílias cariocas tradicionais dos bairros mais centrais da cidade para a
região litorânea mais distante, a partir da década de 1950, em razão do acelerado crescimento
nas áreas urbanas. A ocupação iniciada pelo bairro de Copacabana, foi se estendendo mais
tarde para os bairros de Ipanema, Leblon, Gávea e Jardim Botânico. Essa cisão, ao meu ver,
teve papel importante na formação das disposições que ajudaram a criar a rivalidade que
ainda sobrevive até os dias de hoje. De uma maneira geral, os “tijucanos” se consideram a
elite da zona norte. Diria mesmo que seu comportamento discriminatório em relação a
moradores de outros bairros da zona norte não é muito diferente daquele que nutre a
rivalidade com os garotos da zona sul. A Tijuca, de certa maneira, era a “capital” da zona
norte carioca, o local de desejo de todas as pessoas que moravam em bairros da periferia. A
distância da praia não incomodava tanto os tijucanos pois suas horas de lazer eram
normalmente passadas nos clubes, nas praças e nas ruas tranquilas do bairro, situação bastante
diferente da realidade de hoje em função da intensificação do processo de favelização no
bairro e o agravamento geral da situação social no Brasil a partir da década de 1990. Mas de
alguma forma, todos se conheciam, o que dava ao bairro um toque quase que provinciano. Era
comum ver várias gerações de uma mesma família morando próximas, as vezes na mesma
rua. Por outro lado, a proximidade da praia, o contato frequente com os modismos
importados, a efervescência cultural e intelectual que agitava a vida noturna dos bairros da
zona sul carioca, ajudaram a moldar gerações com estilos de vida próprios e práticas
distintivas, afastando-os, cada vez mais, do perfil tradicional e conservador típico de classe
média, traço característico do “habitus tijucano”.
As particularidades do meu habitus, as quais, a exemplo de certa propensão ao orgulho
e à ostentação masculinos, um gosto pronunciado pelo debate e pela discussão, quase sempre
um pouco teatralizada, a tendência a indignar-me por coisas pequenas, hoje me parecem estar
relacionadas com as particularidades sociais e culturais da minha “herança tijucana”, que fui
percebendo e compreendendo melhor por analogia com as situações novas que
experimentava, na medida em que o destino me afastava cada vez da minha condição social
de origem e me colocava em contato mais próximo com o universo das relações sociais
associadas ao modo de vida típico da zona sul. Foi na verdade bem devagar que compreendi
que o fato de algumas de minhas reações mais banais serem por vezes mal interpretadas talvez
132
se devesse à maneira – o tom, a voz, o gestual – como as exprimia, mistura de timidez com
agressividade, a qual poderia ser tomada como demasiadamente taxativa em contraste com a
elegância natural dos “bem-nascidos” com os quais passei a conviver. Por outro lado, percebo
hoje, claramente, que naquele momento meu habitus já havia se modificado, uma
transformação (ou, para ser mais preciso com o referencial bourdieusiano, uma atualização)
motivada tanto pelo contato com as mesmas situações e condições as quais criticava como
pelo exercício de práticas estranhas ao meu extrato social de origem. Os desejos materiais,
típicos da infância e da adolescência, que não conseguira satisfazer devido à postura austera e
inflexível de meu pai, levou-me prematuramente a uma busca frenética por conquistas
financeiras e, talvez, por uma busca inconsciente por reconhecimento e distinção social.
Adquiri novos gostos, novos interesses, um novo estilo de vida, uma nova forma de apreciar
as coisas, de consumir e de me apropriar de cultura. As visitas periódicas à casa de meus pais,
ou qualquer outra situação que me colocasse, de forma nua e crua, diante do meu passado,
causavam-me uma sensação desconfortante de estranheza. Da mesma forma, sentia-me pouco
à vontade com a superficialidade do modo de vida daqueles que haviam nascido com o
privilégio garantido pela origem abastada, das facilidades em poder maximizar o uso do
tempo para manter e/ou ampliar a posse das diversas formas de capital cultural e social,
recursos necessários, e, por essa razão, valiosos para assegurar sua posição distintiva e
dominante. Graças a esse “aprendizado pelo corpo”, pude comprovar, no mundo real das
experiências vividas, a importância do tempo como recurso ou variável fundamental para
compreender as estratégias de conversibilidade do capital cultural em capital econômico e o
seu papel como um poderoso instrumento de reprodução social. Esse conhecimento pelo
corpo me ajudou, também, a constatar empiricamente as propriedades dinâmicas da noção de
habitus, estrutura estruturada e estruturante que orienta ao mesmo tempo em que é atualizada
pelas práticas.
Tal como foi visto na biografia de Bourdieu, particularmente na sua relação com o
meio intelectual parisiense, também vivenciei a sensação de me ver como um estrangeiro, um
“habitus clivado”, marcado por contradições, alternando reações enérgicas de indignação
contra as injustiças e os privilégios estatutários de classe com posturas elitistas e
discriminatórias em relação àqueles ou às situações que mais me aproximavam da minha
posição social de origem. O destacado desempenho escolar desde cedo também teve uma
forte influência na minha atração irresistível pela crítica e pela querela, no espírito de rebeldia
que me acompanhou por toda a vida, na relação sempre conflituosa com a instituição escolar,
na minha resistência manifesta, já nas relações no trabalho, a participar dos rituais
133
corporativos, dos jogos e articulações políticas que frequentemente colocavam (ou colocam)
os interesses da organização, a competência profissional e o bom senso em segundo plano.
Lembro-me do desprezo que dispensava àqueles que se submetiam aos “jogos de empresa”,
pessoas cujas qualificações profissionais eram normalmente duvidosas. Lembro-me da
facilidade de me comunicar e de desenvolver relacionamentos pessoais autênticos, honestos e
sinceros, em contraste com uma certa falta de interesse ou de motivação para cultivá-los e
transformá-los em amizades perenes. O gosto pelo isolamento, para dar espaço à minha
necessidade de contemplação do mundo, a tentação pelo distanciamento do convívio social
para poder desfrutar de uma melancolia nostálgica mas igualmente prazeirosa de revisitar e
refletir sobre imagens do meu passado e sobre situações presentes e futuras que se
apresentavam para mim, contribuíram, sem dúvida, para um esfriamento de minha relação
com parentes mais próximos e com amigos de infância e da juventude.
A sensação provocativa de estar sozinho no mundo, de me bastar, de poder sempre, de
algum jeito, me virar sem ajuda alheia, o êxito escolar, tudo contribuiu para produzir, de
alguma forma, um sentimento perturbador de auto-suficiência que desencadeava em mim
comportamentos conflitantes: ora me sentia rejeitado, ora me enchia de brio e respondia a
quem fosse com ataques de fúria e ironia, uma língua afiada, sempre pronta para destilar
arrogância em críticas contundentes.
O isolamento, porém, permitiu-me o exercício profundo da reflexividade que me
ajudou a estabelecer um distanciamento necessário do real, das minhas experiências de vida e
das relações sociais que observava, para poder desenvolver uma crítica menos emocional e
passional, e mais consciente e substanciada teoricamente, capaz de controlar meus vieses, de
revelar as contradições entre os discursos e as práticas, e identificar os mecanismos
disfarçados de reprodução social imbricados na realidade organizacional na qual estava
inserido, simultaneamente, tanto como membro participante (um funcionário ocupando cargo
gerencial em tempo integral) quanto como observador sistemático.
134