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Para meus filhos João Pedro e Maria Eduardha,


a luz e a esperança que me ajudam a espantar um certo ceticismo
ao qual o exercício da crítica inevitavelmente nos conduz.
Para Leana, minha princesa, companheira dessa e de outras vidas,
que adormecia encostada ao meu ombro nas minhas longas noites de leitura,
e que aos meus mergulhos de introspecção e reflexão solitária,
respondia com a presença silenciosa, sempre compreensiva e carinhosa.
Você me faz um ser humano melhor.
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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Deus.

Agradeço aos funcionários do CFAP por todo o apoio administrativo e pelo esforço e
dedicação em resolver nossos problemas ao longo do curso.

Aos professores da EBAPE, que tanto contribuíram para minha formação acadêmica, em
especial ao Prof. Marcelo Milano, meu professor em três disciplinas no Mestrado e meu
orientador acadêmico, que sempre me incentivou desde as nossas primeiras conversas sobre
meus interesses de pesquisa, que me apoiou incondicionalmente na difícil escolha pela
abordagem etnográfica, e a quem devo meu primeiro contato com a obra de Pierre Bourdieu.

Aos professores Eduardo Ayrosa e Maria Ceci Misoczky, por terem gentilmente aceitado o
convite para participar da banca examinadora.

Aos meus colegas de turma, pela convivência fraterna e intelectualmente estimulante.

A todos aqueles que, de forma direta ou indireta, apoiaram minha pesquisa, contribuindo com
seus depoimentos que tanto enriqueceram meu trabalho.

Por fim, sou eternamente grato à minha esposa Leana e meus filhos João Pedro e Maria
Eduardha pela paciência e compreensão durante os vários momentos em que neguei-lhes
atenção. Faço aqui, também, um agradecimento especial aos meus pais pelo amor, pela
dedicação integral e incondicional, e pela sólida formação moral que me proporcionaram.
Estejam certos que vocês são um exemplo para mim e estarão sempre presentes na minha
vida.
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RESUMO

A produção brasileira no campo dos estudos organizacionais tem aumentado


significativamente nos últimos anos mas ainda é pouco representativa. A tendência de
consumir idéias e modismos estrangeiros indiscriminadamente, valendo-se de interpretações
importadas, universalizantes e descontextualizadas para examinar fenômenos que são, na sua
essência, locais e particulares, dificulta o desenvolvimento de uma tradição genuinamente
brasileira. Esta trabalho é resultado de uma “aventura” etnográfica ambiciosa de um aprendiz
confesso da vasta obra do sociólogo Pierre Bourdieu. É sobre levar a reflexividade ao
extremo. É sobre “aprender pelo corpo” num esforço a um só tempo teórico e empírico para
investigar as confrarias, um fenômeno organizacional brasileiro que reproduz nas
organizações o lado hierarquizado da nossa sociedade e, sob o manto da legitimidade que os
discursos organizacionais lhes conferem, ajudam a manter a estrutura da nossa própria
sociedade de forma silenciosa mas poderosa. Pretendo, também, que este trabalho seja um
alerta para a importância do esforço de contextualização como meio de evitar uma distorção
recorrente na produção acadêmica em administração: a mobilização de referenciais tão
seguros que nem precisam ser explicitados, a apropriação de conceitos cuja essência é
estranha à natureza dos próprios fenômenos os quais pretendem explicar, e a insistência no
estilo impessoal, nas narrativas em terceira pessoa, como se fosse possível produzir
conhecimento em ciências sociais com absoluta neutralidade.

Palavras-chave: organizações, cultura, poder, reprodução social, legitimidade, etnografia,


Bourdieu.
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ABSTRACT

Over the last years we have seen a significant increase in scholarly production within the
organization studies field in Brazil. However it is still not representative. The tendency to
consume foreign and fashionable ideas unrestrainedly, to make use of imported, universal and
non-contextualized explanations to inquiry phenomenon which are essentially local and
particular, make it difficult to develop a true Brazilian tradition. This work is a result of an
ambitious ethnographic "adventure" of an acknowledged apprentice of sociologist Pierre
Bourdieu's large body of knowledge. It is about taking reflexivity to the limit. It is about
learning "through the body" in an effort - both theoretical and empirical - to investigate a
Brazilian organizational phenomenon which reproduces the hierarchical side of our society
and, under the disguise of the legitimacy offered by organizational discourse, help keeping the
very structure of our society in a silent but powerful way. I also want this work to be an alert
for the importance of contextualization as a means to avoid a recurring distortion of the
scholarly production in administrative science: the mobilization of theoretical references in
such a safe way that make explicitness totally unnecessary, the appropriation of concepts
whose essence is strange to the nature of the very phenomenon which they aim to explain, and
the insistence in the impersonal style, in third-voice narratives, as if it were possible to
produce knowledge in social sciences with absolute impartiality.

Keywords: organizations, culture, power, social reproduction, legitimacy, ethnography,


Bourdieu.
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ÍNDICE DE TABELAS

Tabela 1: A dicotomia objetividade/subjetividade ................................................................... 29

Tabela 2: Apropriações da obra de Bourdieu ........................................................................... 49

Tabela 3: As disposições compartilhadas pelos membros da confraria ................................. 100

Tabela 4: As disposições do habitus específico das confrarias e a natureza


das relações sociais................................................................................................................. 102
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ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1: A estrutura dos campos e das distribuições de capital .............................................. 42

Figura 2: A faceta progressista e a faceta conservadora – contrastes....................................... 93

Figura 3: Confrarias – o olhar “etnográfico” inicial sobre um objeto em construção ............. 96

Figura 4: As disposições do habitus específico das confrarias e


suas manifestações possíveis .................................................................................................. 101
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11
1.1 Contextualização do Problema ................................................................................. 13
1.2 Problema de pesquisa ............................................................................................... 15
1.3 Relevância do estudo ................................................................................................ 17
1.4 Estrutura do Trabalho ............................................................................................... 19

2 REFERENCIAL TEÓRICO ......................................................................................... 21


2.1 Notas biográficas ...................................................................................................... 23
2.2 A teoria social de Pierre Bourdieu............................................................................ 26
2.2.1 Desafiando as "falsas dicotomias".................................................................... 28
2.2.2 Núcleo conceitual ............................................................................................. 32
Habitus ......................................................................................................................... 33
Capital........................................................................................................................... 37
Campo........................................................................................................................... 42
Por uma sociologia reflexiva ........................................................................................ 45
2.2.3 Cultura, poder e reprodução ............................................................................. 46
2.3 Utilizando o referencial bourdieusiano para análise das confrarias ......................... 49

3 METODOLOGIA........................................................................................................... 55
3.1 Preliminares epistemológicas ................................................................................... 56
3.2 Especificação do problema....................................................................................... 58
3.3 Opções metodológicas.............................................................................................. 59
3.3.1 Sobre a escolha por métodos qualitativos ........................................................ 59
3.3.2 Sobre a opção pela etnografia como princípio de delineamento ...................... 63
Considerações iniciais .................................................................................................. 64
Etnografia em organizações.......................................................................................... 67
3.3.3 Sobre as técnicas de coleta de dados ................................................................ 70
Observação sistemática: da observação participante à observação da participação..... 70
A entrevista narrativa e as histórias de vida ................................................................. 71
A pesquisa documental e a utilização de registros visuais ........................................... 72
3.3.4 Sobre o tratamento analítico dos dados: analisando narrativas ........................ 73
3.4 O trabalho de construção do objeto .......................................................................... 74
3.5 Estratégias para “operacionalização” dos conceitos bourdieusianos ....................... 77
3.5.1 “Operacionalizando” a noção de habitus.......................................................... 78
3.5.2 “Operacionalizando” a noção de campo e formas de capital ........................... 79
3.6 Limitações do método .............................................................................................. 81

4 AS CONFRARIAS COMO UM OBJETO CONSTRUÍDO ...................................... 91


4.1 Primeiras impressões ................................................................................................ 91
4.2 Entendendo o uso do termo confrarias ..................................................................... 97
4.3 A construção do objeto confrarias ............................................................................ 98
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5 A REVELAÇÃO DO HABITUS ESPECÍFICO DA CONFRARIA ....................... 103


6 CONCLUSÕES............................................................................................................. 107
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 112
8 ANEXOS ....................................................................................................................... 127
8.1 Objetivando o sujeito objetivante (ou um esboço de auto-análise ...) .................... 127
8.2 Correspondências trocadas durante a pesquisa....................................................... 134
10

“I often say sociology is a martial art, a means of self-defense.


Basically, you use it to defend yourself, without having the right to use if for unfair attacks.”

Pierre Bourdieu

“What is critical thought for you? [...]


It seems to me that the most fruitful critical thought is that which [...] weds epistemological
and social critique by questioning, in a continuous, active, and radical manner, both
established forms of thought and established forms of collective life – “common sense” or
doxa (including the doxa of the critical tradition) along with the social and political relations
that obtain at a particular moment in a particular society.”

Loïc Wacquant (2004a, p. 97)


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1 INTRODUÇÃO

Na filosofia costuma-se definir o fenômeno do conhecimento como uma relação


recíproca que se estabelece entre sujeito e objeto. O ato de conhecer contém na sua essência
uma atitude, uma postura, um posicionamento diante do objeto que se deseja conhecer
(HESSEN, 1999). Por isso, quando nos colocamos como pesquisadores diante de fenômenos
sociais, questões como identidade e subjetividade impõem desafios consideráveis à prática de
pesquisa e à produção de conhecimento.
Em muitos casos, os pesquisadores omitem estas questões da discussão sobre suas
opções teóricas e metodológicas. Ocasionalmente, chegam a reconhecer, ainda que de forma
superficial, aspectos básicos da sua identidade (etnia, classe social e gênero, por exemplo),
mas não avançam no sentido de explicar como a escolha do seu referencial teórico, seus
dados, análises e conclusões são afetadas por sua posição relativa no espaço social onde estão
inseridos.
Somos treinados sistematicamente para combater os vieses e a subjetividade em
nossos projetos de pesquisa e evitar opiniões pessoais. Preocupações sobre o posicionamento
do pesquisador, sobre o contexto e o loci de investigação, e sobre as relações entre o
pesquisador e o seu objeto de estudo são elementos estranhos a uma ciência administrativa de
tradição fortemente positivista. Se analisarmos as publicações encontradas na grande maioria
dos periódicos acadêmicos, teremos dificuldade em encontrar algum traço de humanidade.
Essa hipertrofia positivista, manifestada na proliferação de hipóteses, equações e correlações,
no uso indiscriminado e acrítico da estatística, denunciaria, possivelmente, um viés de
positivismo deformado no treinamento ministrado na Academia (BERTERO, CALDAS,
WOOD JR., 1998).
O modelo convencional de progresso científico, definido como um processo
cumulativo de descoberta da verdade objetiva, domina atualmente a Administração e assume
que a construção do conhecimento ocorre na medida em que novos dados e evidências são
adicionados ao estoque de resultados de pesquisas anteriores. A produção do conhecimento
seguiria os cânones de uma ciência normal e sua evolução seria estimulada por meio de uma
rede nanológica, tal como ocorre nas ciências exatas e biológicas.
O corpo de conhecimento que constitui a ciência administrativa é, no entanto, um
artefato gerado a partir de construtos e modelos teóricos pré-definidos. Tais construtos não
somente descrevem a realidade organizacional em categorias analíticas, mas, também, e
12

principalmente, definem sua constituição epistemológica. A pesquisa em organizações não


reporta apenas observações; ela nos informa sobre narrativas que atribuem significado e
significância a essas observações. Nosso ofício como cientistas sociais será feito de forma
própria e correta somente se formos criativos na investigação dos fenômenos à luz de nossas
estruturas interpretativas. São essas estruturas interpretativas - e não as observações - que
contribuem para a formação do nosso saber. Quero dizer com isto que não é possível obter
conhecimento independente do nosso próprio julgamento e do processo de construção social
pelo qual passamos. O conhecimento científico em Administração é, definitivamente, uma
produção socialmente construída (ASTLEY, 1985; BERTERO, CALDAS, WOOD JR.,
1998).
Portanto, nenhuma teoria organizacional é capaz de meramente descrever a realidade
empírica com absoluta neutralidade: toda e qualquer perspectiva teórica está impregnada de
vieses inerentes a visões de mundo particulares. Essa questão é de fundamental importância e
está no cerne de todo o debate atual em torno da produção científica no campo da
Administração, tanto no exterior quanto no Brasil.
Existe um consenso geral de que a diversidade e fragmentação nos estudos
organizacionais têm gerado intermináveis discussões e polêmicas sobre a identidade da área
(CLEGG e HARDY, 1998; RODRIGUES e CARRIERI, 2001). A teoria organizacional é um
campo em permanente contestação (REED, 1998), palco marcado por disputas teóricas, por
lutas pela hegemonia de paradigmas, onde o conhecimento é construído com base nas
discussões sobre a verdade inerente a conceitos e esquemas de referência. Na sua essência, o
campo de estudo das organizações é flexível, e deveria incorporar a inovação e a criatividade
como algo natural ou parte do processo de construção téorica. Clegg e Hardy (1998) utilizam
o termo “conversações” para identificar o processo de construção social que caracteriza a
produção de conhecimento em organizações. Ao incorporar a possibilidade de troca,
participação e pluralismo, essa idéia carrega um significado de inclusão e reforça a noção de
que a teoria organizacional é um empreendimento em formação, cujos produtos são
constantemente negociados e submetidos a ajustes de significados. Ao admitir novas
interpretações e perspectivas, o campo de estudo torna-se melhor equipado para entender a
complexidade dos fenômenos organizacionais e suas particularidades locais (CLEGG e
HARDY, 1998; RODRIGUES e CARRIERI, 2001).
As considerações preliminares aqui feitas são fundamentais para introduzir o tema
deste trabalho e seguirão como um fio condutor que acompanhará todo o esforço que pretendo
realizar, desde o questionamento inicial, passando pela definição do arcabouço teórico que dá
13

sustentação às analises propostas, chegando às escolhas metodológicas e ao trabalho de


campo.

1.1 Contextualização do Problema

Analisar o universo das organizações no Brasil é uma tarefa bastante complexa. A


grande dificuldade de estabelecer fronteiras e limites entre papéis sociais e instituições, e
entre instituições e empresas, justifica-se, em parte, pelo desencontro existente entre uma
dimensão moderna e igualitária, e uma dimensão conservadora. A primeira está representada
na faceta progressista do país maduro e exportador. A segunda, mantém traços de sociedade
colonial, ainda ancorada em antigas oligarquias, e mostra-se aristocrática e satisfeita com a
desigualdade como valor (DAMATTA, 1997; 2001; PRATES e BARROS, 1997).
Possivelmente, podemos atribuir a esta mesma faceta progressista uma certa miopia
nas análises que se costumam fazer das nossas organizações, onde tanto as elaborações
teóricas quanto as prescrições parecem padecer da mesma síndrome: a idolatração dos
modelos gerencialistas e do conhecimento em geral produzido nas escolas de negócio
americanas, um fetichismo pela prática em detrimento da teoria (como se prática e teoria
pudessem ser compartimentalizados dessa forma) e, talvez o mais grave, um afastamento
perigoso do contexto brasileiro, com todas as suas particularidades, deixando em segundo
plano a investigação dos mecanismos que estão por trás da formação dos nossos sistemas
sociais.
As organizações são sistemas sociais, portanto, as relações construídas nesse universo
são fenômenos complexos que precisam ser investigados numa dimensão mais ampla capaz
de apreender seus contextos particulares. Isso exige um esforço de conversação
interdisciplinar para evitar a armadilha de escolhas teóricas e metodológicas excludentes e
superar algumas das limitações da literatura que tem sido produzida, tais como a insistência
na dicotomia inter versus intraorganizacional e na opção por recortes parciais que privilegiam
o aspecto econômico, político, institucional ou estratégico em detrimento de uma visão
integral da realidade. No primeiro caso, os modelos de análise ficam restritos na sua
habilidade em lidar com o significado cultural inerente ao processo de interação social e
informam uma concepção reducionista da noção de agência. No segundo, ignoram a dinâmica
do fenômeno organizacional e sua natureza multifacetada, e acabam produzindo a falsa
14

impressão de que é possível buscar interpretações generalizáveis independentemente do


contexto socio-histórico onde o objeto de estudo está inserido.
O presente trabalho representa uma etapa marcante na investigação das confrarias, um
fenômeno cujas raízes encontram-se infiltradas na formação da sociedade brasileira, e dá
continuidade a um estudo anterior (MANGI, 2004) onde se buscava uma análise do processo
de surgimento e legitimação das confrarias fundamentada nos elementos centrais da teoria
institucional, mais especificamente, numa aproximação com a noção de campos
organizacionais (DIMAGGIO e POWELL, 1983). O grifo no seu título é uma alusão, bastante
pertinente (como veremos mais adiante), ao trabalho seminal de Wacquant (WACQUANT,
2002a) no campo das ciências sociais, tanto como descrição etnográfica quanto como análise
sociológica. Além disso, serve ao objetivo de fornecer uma indicação imediata dos novos
caminhos teóricos que serão trilhados, confere um tom de “descoberta” das enormes
possibilidades que a teoria social de Pierre Bourdieu pode oferecer à análise dos fenômenos
organizacionais, e antecipa a postura situada do observador que estará presente ao longo de
todo o trabalho. A opção pelo método etnográfico, complementado por outras estratégias de
pesquisa, surgiu ainda nas primeiras investigações sobre as confrarias. Foi quando constatei
que, sendo parte do fenômeno estudado, não poderia deixar de tirar proveito dessa posição
privilegiada para dissecá-lo com mais profundidade. Deveria, portanto, colocar meu
organismo, sensibilidade e inteligência no centro das forças materiais e simbólicas que
desejava investigar, extrair os significados embutidos nas minhas próprias experiências para,
então, refletir criticamente sobre esse conhecimento "aprendido pelo corpo" (WACQUANT,
2002a).
Surgem aqui, naturalmente, algumas questões inevitáveis: o que são as confrarias? Por
que usar o termo confraria? A confraria não seria uma mera variação do conceito de grupos
informais, tão freqüentemente explorado na teoria organizacional?
Seria inteiramente legítimo nesse momento que se levantassem dúvidas em relação à
distinção entre o que chamo de confrarias e outras noções bastante difundidas na literatura em
administração tais como grupos informais ou “times de trabalho”. Afinal, tratam-se de
conceitos cunhados precisamente para designar grupos de indivíduos que surgem e se
articulam nas organizações em torno de interesses e/ou objetivos comuns.
Ao longo deste trabalho, minhas elaborações serão construídas exatamente no sentido
de esclarecer essa distinção. Parto de uma intuição, ainda que vaga, de que existe algo mais
por trás do surgimento, legitimação e sobrevivência das confrarias. Longe de ser visto como
um simples estereótipo ou expressão pejorativa, o termo confraria é tratado neste trabalho
15

como um objeto, um construto teórico-empírico, capaz de reunir e integrar um conjunto rico


de elementos com significativo poder de explicação das singularidades que distinguem as
confrarias da noção mais convencional de grupos informais e, conseqüentemente, do seu
papel e do seu poder de influência nas organizações. O pressuposto fundamental é de que a
confraria, como uma construção teórica, se afasta do conceito genérico de grupos informais na
medida em que incorpora uma dimensão histórica, social e cultural, dotando-a de
características peculiares.
A cultura brasileira possui traços característicos de uma "república de elites"
(ALMEIDA, 2004), e tende a produzir um modelo de gestão fortemente enraizado nas bases
históricas e estruturais dos nossos sistemas sociais e permeado por uma lógica personalista e
autoritária (PRATES e BARROS, 1997) que, freqüentemente, se sobrepõe ao pragmatismo
que orienta a ação nas organizações que operam sob a lógica instrumental do mercado.
Vivemos, assim, num sistema social ambígüo, marcado por grande desigualdade; dividido e
simultaneamente equilibrado entre duas unidades sociais básicas: o indivíduo e a pessoa. O
primeiro, é responsável pelos princípios da eficiência e da técnica que modernizam a
sociedade. O segundo, é o sujeito que sobrevaloriza as relações pessoais, influenciando
diretamente a prática dos negócios e nos conduzindo ao polo tradicional do sistema
(DAMATTA, 1997; 2001).
É precisamente no seio desse universo complexo, imbricado em relações sociais,
culturais e historicamente construídas, marcado pela desigualdade e pela ambigüidade, que
emergem as confrarias, grupos sociais fortemente coesos que se infiltram nas organizações,
ultrapassando com freqüência suas fronteiras e desafiando o imperativo funcionalista-
gerencialista da eficácia organizacional.

1.2 Problema de pesquisa

A economia, explica Ramos (1989), é um espaço altamente ordenado e prescritivo,


estabelecido para a produção de bens e/ou para a prestação de serviços, onde o mercado tende
a se tornar a categoria predominante na ordenação da realidade, e onde a razão é,
normalmente, sinônimo de cálculo de conseqüências. Nesse sentido, Ramos (1989) sustenta
que as leis do mercado foram construídas sobre os pilares da razão instrumental e têm se
apossado ao longo do tempo de todos os espaços da existência humana.
16

A crença funcionalista de que a administração e a teoria administrativa devem ser


imparciais, isentas ou neutras, oculta, na verdade, uma indiferença em relação à dimensão
substantiva do ser humano. A reflexão teórica interdisciplinar sobre os fenômenos
organizacionais teria ficado reduzida a uma mera técnica destinada a ajustar o indivíduo aos
imperativos da maximização da produção.
As formas dominantes de controle social hoje são de ordem tecnológica. Os controles
técnicos são a própria expressão da razão, colocada a serviço do interesse do capital
(MARCUSE, 1973). Na medida em que as empresas se ampliam, o controle exercido a partir
dos principais centros de decisões corre o risco de frear seu desenvolvimento e perder sua
eficácia. Precisam, pois, desenvolver técnicas de administração à distância que permitam aos
dirigentes manter seu controle sobre conjuntos cada vez mais extensos, dando a possibilidade
àqueles que gerenciam as diferentes unidades de produção de exercerem eficazmente suas
próprias responsabilidades.
Num contexto multinacional é necessário favorecer ao máximo a descentralização das
tomadas de decisão, o que põe em perigo a centralidade do sistema correspondente à
concentração do capital. É necessário igualmente levar em conta as exigências da autonomia
do pessoal encarregado da execução da produção, cuja eficácia é maior e evolui nas relações
de trabalho, favorecendo a iniciativa e limitando o peso da autoridade hierárquica.
No entanto, argumento neste trabalho que os esquemas hierárquicos e funcionais que
as próprias organizações propõem para regular a conduta de seus membros são insuficientes, e
que existe um conflito ou contradição permanente entre a lógica capitalista – regulada pelos
princípios da eficiência e do mercado - e a lógica personalista – que remete às origens dos
nossos sistemas sociais.
O principal questionamento neste trabalho é investigar o processo de surgimento e
legitimação das confrarias em uma empresa multinacional em atividade no Brasil. As
confrarias emergem, nesse contexto, como uma reação do lado mais conservador da sociedade
brasileira às pressões igualitárias de uma meritocracia baseada, fundamentalmente, na
capacidade e no desempenho individual, traço marcante nas organizações capitalistas
contemporâneas
A seguir, será empreendido um esforço de objetivação das confrarias como categoria
analítica, com o intuito de identificar seus elementos constitutivos e os significados existentes
por trás da eleição desse termo em especial como referência explícita ao fenômeno que está
sendo investigado. Um trabalho, portanto, a um só tempo teórico e empírico, baseado
prioritariamente nas minhas vivências e interpretações da realidade mas coerente com o
17

posicionamento crítico de Bourdieu para quem a ação social é governada pela imersão
contínua em jogos sociais, perspectiva que encontrou expressão exatamente na sua insistência
e habilidade para fundir trabalho teórico de alto nível com intensa investigação empírica
(WACQUANT, 2002b).
Uma vez definido e delimitado como construto téorico-empírico, as confrarias serão
analisadas dentro do contexto da organização escolhida, buscando descrever seu processo de
surgimento, identificar e analisar os recursos de poder e os arranjos estruturais relacionados
com a sua legitimação e sobrevivência nessa organização, para, então, identificar as
contradições com a lógica capitalista que orienta as organizações de mercado, essencialmente
voltada para eficiência, para o controle por resultados, para o lucro.
Na realização deste trabalho buscarei inspiração: (a) nas noções de habitus, campo,
formas de capital e reflexividade, elementos centrais na obra de Pierre Bourdieu, um
ferramental analítico que revele as peculiaridades do fenômeno das confrarias; (b) no diálogo
com algumas contribuições da antropologia, da educação e dos estudos sobre cultura,
conceitos que possam ampliar e enriquecer essas estruturas interpretativas; e (c) no método
etnográfico, uma abordagem não exatamente muito convencional no estudo de organizações
privadas orientadas para o mercado, uma postura crítica e situada, combinando diferentes
desenhos e métodos de pesquisa para produzir explicações, descrições, interpretações e
representações da vida humana que sejam histórica, política e pessoalmente contextualizadas
(ELLIS e BOCHNER, 2000; TEDLOCK, 2000).

1.3 Relevância do estudo

O trabalho está alinhado ao escopo dos interesses de pesquisas institucionais do


Centro de Formação Acadêmica e Pesquisa – CFAP da Escola Brasileira de Administração
Pública e de Empresas – EBAPE da Fundação Getúlio Vargas – FGV, vinculando-se, mais
especificamente, à linha de pesquisa Organizações e Gerência. Ademais, integra a agenda de
pesquisa do grupo interinstitucional “Observatório da Realidade Organizacional”, coordenado
pelos professores M. Milano Falcão Vieira (EBAPE/FGV), Cristina Amélia Carvalho
(PROPAD/UFPE), Rosimeri Carvalho da Silva e Eloise Dellagnelo (CPGA/UFSC).
A contribuição fundamental deste trabalho para a Academia está em oferecer uma
visão da realidade que consiga instigar análises contextualizadas sobre os fenômenos
organizacionais brasileiros. Análises que enfatizem a interpenetração das dimensões técnicas
18

e práticas da vida social e que desafiem conceitos muito propagados pelas escolas americanas
de management na última década na área de cultura organizacional, teorias motivacionais e
liderança tais como “visão compartilhada”, “metáforas esportivas”, “times de alta
performance”, “valorização e harmonização das diversidades”, e outros mais.
Outra contribuição importante diz respeito à aplicação do referencial bourdieusiano na
investigação de um fenômeno em uma organização multinacional, quando grande parte da
literatura desenvolvida com base nesse referencial no Brasil é voltada para o campo das artes,
da cultura e da educação.
Por último, espero que a escolha por uma abordagem reflexiva, por uma aproximação
do fenômeno por meio de métodos etnográficos, consiga oferecer interpretações forjadas a
partir da interseção entre corpos e conhecimento, e mediadas pelos discursos e pela linguagem
dos sujeitos.
Como estudos dessa natureza não privilegiam a questão da performance, sofrem de
uma certa indiferença por parte da comunidade empresarial, e são normalmente rotulados
como “excessivamente teóricos”, “ideológicos” e de “pouca aplicação no mundo real”. A
relevância prática do trabalho consiste em revelar outras dimensões de análise para os
fenômenos organizacionais pouco evidenciadas (ou mesmo ignoradas) na vasta literatura
sobre management largamente consumida pela comunidade empresarial no Brasil e no
mundo. Não se trata, assim, de um enfoque normativo ou (menos ainda) prescritivo, mas,
sobretudo, o esclarecimento de um fenômeno de vital importância para se compreender a
nossa realidade. Afinal, a compreensão da realidade brasileira é indispensável para todos
aqueles que trabalham e pesquisam nossas organizações locais (MOTTA e ALCADIPANI,
1999).
Até mesmo nos EUA, cujas raízes históricas, sociais e culturais guardam distância
considerável da nossa realidade, escândalos financeiros como os casos Enron, Global
Crossing e WorldCom desencadeados no final do ano de 2001 revelaram a fragilidade dos
sistemas de controle existentes para identificar e prevenir comportamentos antiéticos,
manipulação de informações e fraudes. Tais fatos tornaram-se possíveis exatamente pela
presença de redes informais apoiadas em sólidos relacionamentos que foram construídos ao
longo do tempo. Esses casos provocaram uma onda de desconfiança generalizada na
comunidade internacional, culminando com a implantação de mudanças profundas nos
mecanismos de regulação e controle da atuação das empresas.
Esta questão é, sem dúvida, um dos temas mais recorrentes no debate sobre
governança corporativa no meio empresarial nos dias de hoje, e requer uma consideração
19

importante, bastante relevante para os objetivos que pretendo alcançar neste trabalho.
Vivemos em uma sociedade com longo histórico de casos de corrupção e abuso de poder, uma
sociedade acostumada com práticas de nepotismo e de favorecimento ilícito, onde as
fronteiras entre o público e o privado, entre a pessoa física e a pessoa jurídica, são frágeis e
nebulosas. A conformidade com normas e metodologias ou a implantação de sofisticados
sistemas de controle podem evitar ou dificultar a manipulação de dados financeiros e
contábeis. Mas sua eficácia pode ser duvidosa em contextos como no Brasil, um espaço onde
a ética do privilégio revela o rosto autoritário do superior, mesmo diante da retórica do
igualitarismo que tomou conta do discurso gerencialista americanizado atualmente praticado
nas empresas; um espaço onde a esperteza se confunde com a honestidade, o espírito
corporativista com a justiça social, características marcantes do modo de navegação social
brasileiro que consiste em situar-se nas margens das regras, na informalidade, no abrigo de
seu papel social.

1.4 Estrutura do Trabalho

Além deste capítulo introdutório, onde busco oferecer uma visão geral do contexto,
motivações, objetivos e abrangência da pesquisa, o trabalho está estruturado em outros seis
capítulos.
No capítulo 2, apresento o referencial teórico que fornecerá as bases iniciais para
investigação do fenômeno, a teoria social de Pierre Bourdieu, e faço algumas elaborações
sobre seus conceitos mais importantes e discuto algumas possibilidades de aplicação nos
estudos organizacionais.
O capítulo 3 é inteiramente dedicado aos procedimentos metodológicos. Nele, tento
colocar meu posicionamento epistemológico diante dos desafios que o conhecimento em
organizações inevitavelmente nos conduz, e disserto sobre a utilização de métodos
qualitativos na pesquisa de fenômenos organizacionais. Por motivos óbvios, existe uma ênfase
especial na etnografia, tanto como princípio de delineamento quanto como técnica de coleta
de dados. Neste capítulo, apresento também minhas opções quanto às demais técnicas de
coleta e análise de dados utilizadas, e aponto algumas implicações sobre a prática de
etnografia em organizações.
A seguir, no capítulo 4, será feita uma breve análise da trajetória do grupo
multinacional que foi investigado, com base em extensa pesquisa documental. Serão
20

apontados aqui os aspectos mais relevantes da história do grupo que fornecerão os subsídios
necessários para as reflexões que serão realizadas nos capítulos posteriores.
No capítulo 5, coloco em prática todo o ferramental conceitual de Bourdieu para
construir o objeto confrarias, um objeto sociológico, com todas as implicações que existem
num empreendimento dessa natureza, feito a partir do “olhar etnográfico” e de uma profunda
reflexão sobre os modos de apreciação e classificação da realidade social, tanto meus como
dos sujeitos envolvidos.
O capítulo 6 aprofunda a análise do fenômeno das confrarias na organização estudada,
onde tento explicar e responder as questões de pesquisa que foram colocadas.
Por fim, no capítulo 7, faço um fechamento da minha “aventura etnográfica” de um
aprendiz de Bourdieu, relacionando algumas dificuldades e conflitos enfrentados, conclusões
e sugestões para estudos futuros.
Nos Anexos do trabalho, existe um capítulo dedicado inteiramente a um exercício de
auto-objetivação. Coerente com as elaborações teóricas feitas no capítulo 2, procuro
identificar o efeito das minhas disposições e inclinações pessoais nas minhas tomadas de
posição, na minha postura diante dos fatos sociais, e de suas consequências nas minhas
análises e conclusões.
21

2 REFERENCIAL TEÓRICO

"A sociologia confere uma extraordinária autonomia, sobretudo quando não é utilizada como uma arma
contra os outros ou como instrumento de defesa, mas como uma arma contra si mesmo, como
instrumento de vigilância. Mas, ao mesmo tempo, para ser capaz de utilizar a sociologia até o fim, sem
se proteger em excesso, certamente é preciso estar numa posição social em que a objetivação não seja
insuportável..." (BOURDIEU, 2004b, p. 40).

A obra de Pierre Bourdieu é a referência teórica principal que norteia este trabalho.
Por essa razão, faz-se necessário empreender uma imersão, um pouco mais profunda do que o
habitual para um trabalho na área da administração, no seu universo de proposições e
conceitos. Nesse esforço, pretendo investigar mais detalhadamente seus pressupostos teóricos
e o contexto histórico, social e intelectual no qual Bourdieu desenvolveu seu projeto. Sua
teoria social, longe de ser objetivista ou cientificista, implica a reflexividade na própria
essência de uma prática científica que questiona sistematicamente a posição privilegiada do
observador e informa os meios intelectuais para transformar nossa visão de mundo. As
conexões entre a vida e a obra de Bourdieu são evidentes e também serão analisadas pois
fornecem elementos essenciais para o entendimento da sua perspectiva sobre o mundo social e
ajudam a compreender melhor as motivações que me levaram a optar, neste trabalho, por uma
abordagem sociológica e pelo método etnográfico. Além disso, acredito que tal preocupação
seja também um alerta para a importância do esforço de contextualização como meio de evitar
uma distorção recorrente na produção acadêmica em administração: a mobilização de
referenciais tão seguros que nem precisam ser explicitados e a apropriação de conceitos cuja
essência é estranha à natureza dos próprios fenômenos os quais pretendem explicar.
Não é fácil sistematizar a riqueza e complexidade da teoria social de Pierre Bourdieu.
É raro encontrar um corpo de conhecimento tão abrangente e inovador. Poucos autores
conseguiram alcançar o rigor analítico, a sofisticação intelectual e o tom provocativo das
investigações que Bourdieu empreendeu em campos tão distintos. Poucos seguiram, em seu
ofício como acadêmico, um tipo de orientação ao mesmo tempo teórica e prática. Bourdieu é
considerado um dos grandes nomes do pensamento social contemporâneo não somente por
seus colaboradores mais diretos e pesquisadores que se identificaram com sua obra, pelo
menos num dado momento de sua trajetória (BONNEWITZ, 2003; CALHOUN, 2003;
CALHOUN e WACQUANT, 2002; MICELI, 2005; ORTIZ, 2003; PINTO, 2000; ROBBINS,
2000; SWARTZ, 1997; 2003; WACQUANT, 2002b; 2003) mas também por autores que
22

assumiram um posicionamento mais crítico diante de suas elaborações filosóficas, seus


pressupostos epistemológicos, e das ambições de seu projeto intelectual (BRUBAKER, 1985;
1993; DIMAGGIO, 1979; EVERETT, 2002; SEWELL, 1992; WARDE, 2004).
Talvez seja por esses motivos que a obra de Bourdieu tenha obtido tanta repercussão,
seja no meio acadêmico, seja entre o público em geral. Como acadêmico, sua produção
acumulou cerca de 40 livros e 400 artigos, traduzidos em diversos idiomas. Distinction,
considerado um dos seus livros mais famosos, foi relacionado pela International Sociological
Association entre os dez trabalhos de sociologia mais importantes do século XX. Como
escritor, sua popularidade é comprovada pelo sucesso comercial, pouco comum na área das
ciências sociais, de livros como "The Inheritors" (BOURDIEU e PASSERON, 1979) e
"Miséria do Mundo" (BOURDIEU, 1997), e pela grande recepção do premiado documentário
de Pierre Carles "La sociologie est un sport de combat" (CARLES, 2001), um relato fiel sobre
as posições públicas de Bourdieu e sua influência nos movimentos sociais na Europa.
Bourdieu foi um teórico brilhante e um ávido pesquisador, com interesses
extraordinariamente amplos. Conduziu seus primeiros inquéritos antropológicos na Argélia
dos anos de 1960, marcada pelas guerras de independência, onde examinou o surgimento do
trabalho remunerado, a formação do proletariado urbano argelino, e as noções de honra e de
tempo entre os Cabila. Ao longo da sua trajetória, analisou temas tão diversos e ecléticos
quanto o estudo dos camponeses e do mercado de trocas matrimoniais em Béarn (sua região
de origem), o estudo das classes sociais na França, do campo das artes, da educação, do
direito, da ciência, da literatura, da religião, da política, do esporte, da linguagem, dos
intelectuais e do Estado. Tem-se a sensação, à primeira vista, de uma fragmentação de
pesquisas em múltiplas direções, sem que se perceba uma coerência a priori. Tal impressão é
reforçada pelo fato de que os trabalhos de Bourdieu não se inscrevem facilmente nos recortes
institucionais tradicionais. Na verdade, a aparente diversidade em sua obra esconde uma
preocupação constante: fazer da sociologia uma ciência total, evitando a fragmentação das
disciplinas sociológicas e a especialização excessiva dos pesquisadores, mas sem abrir mão da
interdisciplinaridade necessária para restituir a unidade fundamental da prática humana
(BONNEWITZ, 2003; PINTO, 2000; WACQUANT, 2002b).
No centro da obra de Bourdieu está a tentativa de entender as desigualdades sociais e
desvendar as razões que levam as pessoas a se submeterem ao poder e às diversas formas de
dominação sem oferecer resistência. Diferente de outros sociólogos que também tentaram
resolver essa questão, particularmente marxistas, Bourdieu não buscou respostas na luta de
classes ou no Estado, mas na cultura. Nesse sentido, uma das grandes contribuições de
23

Bourdieu foi ter reformulado nosso entendimento sobre ideologia, particularmente, como a
cultura e seus mecanismos de transmissão e reprodução se instauram no tecido social,
ocultando as formas de dominação entre classes sociais, entre homens e mulheres, em todas as
áreas da vida social. Essa antropologia "imaginária", criada no universo de ação dos agentes
sociais, é operada por regras típicas da economia, ou seja, por meio da troca de bens materiais
e imateriais, mas sempre travestida pelas formas desinteressadas que a "magia" do capital
simbólico produz. Esse trabalho de negação, condição de permanência e sucesso da
dominação, é, sobretudo, um empreendimento coletivo que está na origem da alquimia social,
um "tipo de mentira de grupo para consigo mesmo" (BOURDIEU, 2004a, p. 211-212). Para
Bourdieu, não existe inocência. Nenhum ato é desinteressado: existe sempre um olhar
interessado dos agentes sociais sobre as coisas do mundo.
Assim, em virtude de uma postura que privilegia a análise do campo simbólico,
Bourdieu procura explorar ao máximo as conexões entre os grupos de status, que Weber
(WEBER, 1999) define como sendo portadores de todas as convenções que se atualizam
mediante um dado estilo de vida, e os sistemas simbólicos de que são portadores. Nesse
sentido, a cultura de uma sociedade deve ser construída como resultado da hegemonia de um
grupo e dos conflitos entre forças no curso do seu desenvolvimento histórico. São forjadas,
assim, as relações de dominação, manifestadas pelas estratégias que os agentes sociais
mobilizam nos diferentes campos em que ocupam posições desiguais. Emerge daí uma
concepção geral de sociedade que implica uma ênfase na dimensão política. Para Bourdieu,
cabe à sociologia objetivar essas relações de dominação, desvelar-lhes os mecanismos,
fornecendo a um só tempo as ferramentas intelectuais e práticas que permitam aos dominados
contestar a legitimidade dessas relações. A sociologia reveste então um caráter
eminentemente político, que se prolonga no engajamento de Bourdieu nas causas mais
urgentes, o intelectual combativo que leva às últimas consequências a imagem da sociedade
como um campo de batalha operando com base na força e no sentido, ou melhor, dando
ênfase à força do sentido (BONNEWITZ, 2003; MICELI, 2003).

2.1 Notas biográficas

"Eu me pensava como filósofo, e me demorei muito para confessar a mim mesmo que tinha me tornado
etnólogo." (BOURDIEU, 2004b, p. 19).
24

Pierre Bourdieu nasceu em agosto de 1930 em Béarn, uma região rural do sudoeste da
França situada aos pés dos Pirineus, numa pequena vila chamada Denguim. Neto de
agricultores, filho único de um funcionário público que exerceu a vida inteira seu ofício de
empregado num vilarejo de Béarn particularmente afastado, seus dias na escola fundamental
foram passados entre os filhos de camponeses, de operários e de pequenos comerciantes da
região. Após ter-se destacado nos estudos no ensino médio, o jovem Bourdieu recebe uma
bolsa de estudos e, aconselhado por um de seus professores, inscreve-se no melhor curso
preparatório para ingresso na École Normale Supérieure (ENS), o khâgne do Liceu Louis-le-
Grand de Paris, instituição de elite que reunia os melhores estudantes do país, "lugar em que
se produzia a ambição intelectual à francesa em sua mais elevada forma, quer dizer,
filosófica." (BOURDIEU, 2005a, p. 41).
Ingressar na ENS significava estudar na mais renomada e distinta entre as grandes
escolas parisienses, o "ápice da hierarquia escolar" (BOURDIEU, 2005a, p. 40) , e tornar-se
membro da poderosa elite intelectual francesa. Já na ENS, sua opção pela Filosofia, a rainha
de todas as disciplinas, foi o passaporte para o reconhecimento social de alguém que sempre
se sentiu como um estrangeiro, seja entre seus colegas camponeses nos primeiros anos de sua
trajetória escolar, seja no clima de intensa competição e dedicação acadêmica da ENS,
convivendo com o estilo urbano e elitista dos alunos, na sua maioria, oriundos de tradicionais
famílias parisienses. Essa condição de estrangeiro tem grande influência na formação do
intelectual destoante que, diante do desejo incontrolável pela exploração filosófica e pela
ambição de prestígio, não se reconhecia entre os seus, mas que, também, sentia-se pouco à
vontade perante os imperativos do modo de vida burguês: um estilo de prática cultural e
intelectual impregnado pelo conforto material e pela segurança estatutária dos que nascem e
crescem imbuídos de certezas inerentes às prerrogativas de classe (MICELI, 2005). Duas
passagens ilustram bem o penoso desconforto de Bourdieu em relação à sua condição de
estrangeiro:

"Penso que minha experiência infantil de trânsfuga filho de trânsfuga [...] na certa pesou bastante na
formação de minhas disposições em relação ao mundo social: muito próximo de meus colegas de escola
primária, filhos de pequenos agricultores, de artesãos ou de comerciantes, com os quais tinha quase
tudo em comum, exceto o êxito escolar, que me fazia sobressair um tanto, estava apartado deles por um
espécie de barreira invisível, a qual se exprimia de vez em quando por meio de insultos rituais contra
lous emplegats, os empregados de "mãos brancas", mais ou menos como meu pai estivera apartado
daqueles camponeses e operários, em meio aos quais ele vivia sua condição de pequeno funcionário
pobre." (BOURDIEU, 2005a, p. 109-110). [Grifos do autor]
25

"Essa experiência dual só podia reforçar o efeito durável de uma defasagem bastante forte entre uma
elevada consagração escolar e uma baixa extração social, ou seja, o habitus clivado, movido por tensões
e contradições. Essa espécie de "coincidência entre contrários" contribui decerto para instituir de modo
durável uma relação ambivalente, contraditória, com a instituição escolar, feita de rebelião e submissão,
de ruptura e esperança, que talvez esteja na raiz de uma relação consigo igualmente ambivalente e
contraditória: como se a certeza de si, ligado ao fato de sentir-se consagrado, fosse corroída, em seu
próprio princípio, pela mais radical incerteza quanto à instância de consagração, espécie de mãe
malvada, falha e enganosa." (BOURDIEU, 2005a, p. 123).

Bourdieu é produto de uma "conciliação de contrários", um "habitus clivado" (e aqui


Bourdieu aplica a si mesmo seu próprio ferramental analítico, exemplo claro e consciente do
seu compromisso com a reflexividade), que se manifesta com muita nitidez no seu estilo
peculiar de articular e comunicar suas idéias, nos tipos de objetos de investigação que lhe
interessavam e na maneira como os abordava. Os eixos principais de sua biografia - a
formação escolar e o treinamento intelectual do normalista, a iniciação sociológica, as
experiências de vida e trabalho no vilarejo natal e na Argélia, o legado afetivo e cultural de
sua família modesta no meio rural provinciano - moldaram, decerto, sua postura crítica diante
dos fenômenos do mundo social.
A transformação da sua visão de mundo é acompanhada pela sua passagem da
filosofia para a etnologia e a sociologia. Essa reorientação intelectual está repleta de
implicações sociais. Renunciar à filosofia significava romper com o aristocracismo intelectual
e trilhar um caminho que lhe parecia mais adequado para compreender as complexidades da
realidade social, ao invés de obtê-las a uma distância segura como faziam os filósofos e os
antropólogos estruturalistas (WACQUANT, 2002b). A singularidade de sua percepção como
sociólogo tem suas raízes no confronto de sua origem social simples com a "distinção" da
casta superior dos filósofos, com seus comportamentos, regras e ritos particulares. A própria
opção pela sociologia, situada no degrau mais baixo da hierarquia social das especialidades, o
fato de investir imensas ambições teóricas em objetos empíricos por vezes triviais à primeira
vista - nas palavras do próprio Bourdieu (BOURDIEU, 2005a, p. 126), "objetos socialmente
secundários, politicamente insignificantes e intelectualmente desdenhados" -, a maneira ao
mesmo tempo ambiciosa e "modesta" de fazer ciência, são todos elementos que, sem dúvida,
reforçam essa interpretação.
Ao lado de sua formação filosófica e de sua personalidade, as circunstâncias
peculiares nas quais Bourdieu efetivamente treinou a si mesmo em Antropologia, Sociologia e
26

Estatística, levaram-no a desenvolver um estilo próprio de escrever. "Bourdieu nunca pode ser
lido casualmente" (SWARTZ, 1997, p.13). Sua prosa é difícil, por vezes impenetrável. Seus
argumentos são expostos de forma recursiva e espiralada, estruturados com frequência em
vários e longos períodos interconectados. Bourdieu emprega conscientemente técnicas de
retórica para se distanciar do mundo "dado" ("taken for granted"), ou seja, de tudo que
recebemos como "pronto", sejam estes objetos empíricos, formas de linguagem ou conceitos
abstratos. Por outro lado, seu estilo também pode ser visto como uma reação crítica à
ortodoxia intelectual francesa e sua inclinação teorizadora, e como uma estratégia para
delimitar sua obra num campo caracterizado por intensa rivalidade e competição por prestígio.
Longe de parecer excessivo ou desnecessário para os objetivos que pretendo alcançar
neste trabalho, analisar as conexões entre biografia e obra, entre vivências e percepção, são
elementos fundamentais para compreender o esforço deliberado de reflexividade intentado
por Bourdieu. A riqueza da sua obra emerge, precisamente, de uma reflexão constante sobre
seu passado e sobre as mudanças que o presente lhe impunha, um esforço de investigação
precisa e circunstanciada no intuito de dominar os efeitos que poderiam ter sobre suas
próprias tomadas de posição científicas, realizado por meio do inquérito que ele mesmo fora
refinando como método de trabalho ao longo da vida.

2.2 A teoria social de Pierre Bourdieu

"Se a maior parte dos autores foram levados a confundir com sua teoria particular do sistema social a
teoria do conhecimento do social que utilizavam – pelo menos implicitamente – em sua prática
sociológica, o projeto epistemológico pode servir-se dessa distração prévia para aproximar autores cujas
oposições doutrinais dissimulam o acordo epistemológico. O receio de que o empreendimento leve a
uma amálgama de princípios extraídos de tradições teóricas diferentes ou a constituição de um conjunto
de fórmulas dissociadas dos princípios que as fundamentam é uma forma de esquecer que a
reconciliação [...] opera-se realmente no exercício autêntico da profissão de sociólogo ou, mais
exatamente, na ‘profissão’ do sociólogo, esse habitus que, sendo um sistema de esquemas mais ou
menos controlados e mais ou menos transponíveis, é simplesmente a interiorização dos princípios da
teoria do conhecimento sociológico. À tentação sempre renascente de transformar os preceitos do
método em receitas de cozinha científica ou em engenhocas de laboratório, só podemos opor o treino
constante na vigilância epistemológica que, subordinando a utilização das técnicas e conceitos a uma
interrogação sobre as condições e limites de sua validade, proíbe as facilidades de uma aplicação
automática de procedimentos já experimentados e ensina que toda a operação, por mais rotineira ou
rotinizada que seja, deve ser repensada, tanto em si mesma quanto em função do caso particular."
(BOURDIEU, CHAMBOREDON, PASSERON, 2004, p. 14)
27

A obra de Bourdieu pode ser vista como uma polêmica permanente contra algumas
das correntes mais representativas do pensamento ocidental como o positivismo, o
empiricismo, o estruturalismo, o existencialismo, a fenomenologia, o economicismo, o
marxismo e o individualismo metodológico. Brubaker (1985, p. 217) argumenta que a obra de
Bourdieu "é particularmente mal equipada para uma leitura conceitualista, teorética ou
logocêntrica, uma leitura que trate sua obra como portadora de um conjunto de proposições
logicamente interconectadas, modeladas na forma de conceitos precisos e claros". Mais do
que indicadores de fenômenos empíricos específicos ou blocos de uma teoria sistemática, seus
conceitos podem ser melhor entendidos como dispositivos heurísticos elaborados com o
objetivo de comunicar uma perspectiva geral sobre o estudo do mundo social (POSTONE,
LIPUMA e CALHOUN, 1993; SWARTZ, 1997).
Assim, a preocupação maior de Bourdieu não está em informar uma genealogia
conceitual ou assumir fidelidade a uma dada tradição teórica, mas na crítica contundente à
teoria teórica por enfatizar a conceitualização abstrata independente dos objetos de
investigação empírica, por ser nada além do que um "discurso profético ou programático que
tem em si mesmo o seu próprio fim e que nasce e vive da defrontação com outras teorias"
(BOURDIEU, 2003b, p. 59). À primeira vista, os conceitos bourdieusianos não são projetados
para responder aos cânones formais da ciência normal como consistência interna,
generalizabilidade etc. Mais importante, seus conceitos são moldados a partir da pesquisa
empírica e da confrontação com pontos de vista opostos que emergem a partir da leitura
meticulosa e crítica que Bourdieu faz das tradições intelectuais que informam sua filiação
teórica, e revelam um conjunto razoavelmente consistente de princípios meta-sociológicos
que orientam todas as suas investigações.

"... a utilização de conceitos abertos é uma forma de rejeitar o positivismo... Para ser mais preciso, é um
lembrete permanente de que conceitos não possuem outra definição senão a sistêmica, e são desenhados
para trabalhar empiricamente, de forma sistemática. Noções como habitus, campo e capital podem ser
definidas mas somente no interior do sistema teórico que as constituem, não de forma isolada."
(BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p. 96)

Neste capítulo essas questões serão analisadas ao longo de duas linhas de investigação
conectadas entre si. A primeira diz respeito ao relacionamento entre estrutura social e prática.
Importante aqui é a tentativa de Bourdieu de transcender a lacuna presente nas análises
28

sociológicas tradicionais entre as dimensões subjetiva e objetiva da vida social, a qual entende
como sendo um distanciamento entre o conhecimento prático e corporificado, e as estruturas
aparentemente objetivas que são acessíveis ao juízo teórico. A segunda linha de investigação
procura delinear e clarificar os conceitos centrais da teoria social de Bourdieu (habitus,
capital, campo e reflexividade), analisando as inter-relações entre estrutura social, sistemas de
classificação e linguagem. Subjacente a todo esse esforço de análise, existe a preocupação
constante de entender como a tentativa de Bourdieu de mover-se para além das teorias
existentes e desenvolver um novo aparato conceitual invoca questões centrais da teoria social
e do método sociológico.

2.2.1 Desafiando as "falsas dicotomias"

"Eu queria reintroduzir de algum modo os agentes, que Lévi-Strauss e os estruturalistas, especialmente
Althusser, tendiam a abolir, transformando-os em simples epifenômenos da estrutura. Falo em agentes e
não em sujeitos. A ação não é a simples execução de uma regra, a obediência a uma regra. Os agentes
sociais, tanto nas sociedades arcaicas como nas nossas, não são apenas autômatos regulados como
relógios, segundo leis mecânicas que lhe escapam." (BOURDIEU, 2004b, p. 21)

O que motiva a ação humana? Indivíduos agem em resposta a causas externas, tal
como é sugerido por grande parte das tradições sociológicas vigentes? A ação individual é
determinada pela "cultura", pela "estrutura social" ou pelo "modo de produção"? Ou será que
os atores agem movidos por seus próprios interesses, como sugerem, nas ciências sociais, as
escolas fenomenológica, interpretativista e a teoria da ação racional? Uma das
motivações centrais por trás do esforço intelectual de Bourdieu é sua determinação em
desafiar as "falsas dicotomias". De uma maneira geral, a perspectiva dualista presente em
toda a história do pensamento ocidental é expressa na oposição ubíqua entre corpo e mente.
Mas no universo particular das ciências sociais, assume a forma de dicotomias específicas
como estrutura/agência, objetividade/subjetividade, teoria/prática, indivíduo/sociedade.
Bourdieu está entre os primeiros autores da geração de sociólogos do período pós II Guerra
Mundial - junto com Anthony Giddens (GIDDENS, 2003) - a tornar a oposição
estrutura/agência uma questão central em sua sociologia. Sua proposta é conectar estrutura e
agência por meio de uma relação dialética. Bourdieu rejeita a idéia de conceitualizar agência
como uma resposta direta, não mediada, a fatores externos, seja no nível macro, como fatores
culturais, sociais ou econômicos, seja no nível das estruturas de interação social. Discorda
29

também da concepção de agência como simples consequência de fatores internos, na forma de


intenções conscientes e calculadas, tal como os modelos voluntaristas e de ação racional
postulam. Para Bourdieu, explicações que privilegiam uma dimensão de análise (macro ou
micro) em detrimento da outra simplesmente perpetuam a clássica antinomia
objetividade/subjetividade (BOURDIEU e WACQUANT, 1992; POSTONE, LIPUMA e
CALHOUN, 1993; SWARTZ, 1997).
A dicotomia objetividade/subjetividade se manifesta sob diversas formas diferentes
em toda as ciências sociais. A Tabela 1 a seguir, mostra uma compilação feita por Swartz
(SWARTZ, 1997) de questões, perspectivas teóricas e autores que Bourdieu mais
frequentemente associa às polaridades subjacentes a essa dicotomia:

Tabela 1: A dicotomia objetividade/subjetividade

Objetivismo Subjetivismo

Lévi-Strauss Sartre

Hegel Kant
Saussure Cassirer
Durkheim Sapir
Marx Whorf
Weber

Estruturalismo Existencialismo
Teoreticismo Fenomenologia
Funcionalismo Etnometodologia

Marxismo Idealismo
Empiricismo
Positivismo
Materialismo

Sociologia de esquerda Sociologia conservadora

Econômico Não-econômico

Matéria Idéias

"Classes em si mesmas" "Classes por elas mesmas"


("classes-in-themselves"): ("classes-for-themselves"):
classes determinadas fundamentalmente por condições consciência de classe, onde a cultura emerge como seu
econômicas objetivas (posse/não-posse dos meios de elemento constitutivo mais importante
produção)

Fonte: Swartz (1997, p. 54; 2005)


30

É importante verificar que Bourdieu emprega essa dicotomia para referenciar um largo
espectro de questões e tradições, fazendo uso de uma espécie de "triangulação intelectual",
um recurso heurístico bastante útil para dar conta da complexidade dos fenômenos sociais e
para lembrar que a sociologia, enquanto uma "ciência da sociedade", deve apreender o caráter
dual da vida social, tanto em seus aspectos objetivos como subjetivos.
Para superar as "falsas dicotomias", Bourdieu combina influências diversas nas suas
proposições teóricas e na sua prática de pesquisa, dialogando com conceitos e analogias de
diferentes, por vezes concorrentes, tradições da sociologia e da filosofia (BOURDIEU e
WACQUANT, 1992; BRUBAKER, 1985; DIMAGGIO, 1979; PINTO, 2000; POSTONE,
LIPUMA e CALHOUN, 1993). Nesse repertório de influências, algumas contribuições
merecem maior destaque pela sua representatividade na obra de Bourdieu. A seguir, dedico-
me a explicá-las sucintamente uma vez que explorá-las de forma mais aprofundada escaparia
ao escopo pretendido neste trabalho:

i) Do estruturalistmo de Saussure e Lévi-Strauss, resgata a importância dos


sistemas de relação entre indivíduos e classes para compreender os fenômenos
sociais, sem deixar, no entanto, de criticar seus pressupostos por terem
ignorado o sentido que os agentes conferem às suas ações, argumentando que é
esse sentido, efetivamente, que orienta as práticas dos agentes. A partir dessa
crítica, Bourdieu recupera a noção reificada de estrutura para dotá-la de um
dinamismo histórico, acrescentando à estática noção de regras, o conceito de
estratégia, traduzido na capacidade dos agentes sociais de enfrentar situações
imprevistas e constantemente renovadas, e de estabelecer relações entre os
meios e os fins para acesso e obtenção de recursos de poder.

ii) Da tradição durkheimiana, recupera a ambição de construir a sociologia como


ciência, que supõe um método e um procedimento. Compartilha também a
idéia de que é preciso explicar os fatos sociais pelos fatos sociais, alegando que
a causa determinante de um fato social deve ser procurada entre os fatos
sociais antecedentes, e não entre os estados de consciência individual.
Reconhece a importância de detectar regularidades (mais do que leis) mas
defende a necessidade de se evitar a armadilha do positivismo absoluto e do
universalismo atemporal.
31

iii) Da tradição marxista, incorpora a visão de sociedade como constituída de


classes sociais em luta pela apropriação de diferentes capitais, contribuindo as
relações de força e de sentido para a perpetuação da ordem social ou para seu
questionamento. A influência do marxismo é notada também na sua forma de
pensar o mundo social por meio do conceito de dominação, manifestada não
somente nas práticas mais corriqueiras mas também na estratégia que os
agentes sociais mobilizam nos diferentes campos em que ocupam posições
desiguais.

iv) Do pensamento weberiano, reconhece a importância para a análise sociológica


do papel das representações que os indivíduos elaboram para dar sentido à
realidade social. Mas é principalmente no conceito de legitimidade de Weber
que Bourdieu se baseia para construir sua teoria do poder simbólico. Mais do
que a legitimidade propriamente dita, seu questionamento maior estava no
processo de legitimação, qual seja, como os atores produzem legitimidade para
obter reconhecimento da competência, status ou poder que detêm.

Mesmo resistindo à idéia de rotular suas elaborações teóricas nos recortes ou


modismos intelectuais da sua época, quando questionado sobre suas críticas à intenção
antigenética do estruturalismo, Bourdieu reconhecia a forte influência da lógica estruturalista
em sua obra mas afirmava seu desejo de elaborar um "estruturalismo genético", onde a análise
das estruturas objetivas - as estruturas dos diversos campos - é inseparável da análise da
gênese tanto das estruturas mentais dos indivíduos (que são em parte produto da incorporação
das estruturas sociais) como das próprias estruturas sociais. Assim, o espaço social, bem como
os grupos que nele se distribuem, são resultado de lutas históricas nas quais os agentes se
comprometem em função de sua posição no espaço social e das estruturas mentais por meio
das quais apreendem esse espaço (BOURDIEU, 2004b).
Para Bourdieu, não basta apenas "olhar" para ambos os lados da dicotomia
objetividade/subjetividade, mas o essencial é, sobretudo, entender como esses dois lados estão
inseparavelmente relacionados para dar conta de algumas questões que somente a pesquisa
empírica é capaz de evidenciar: as estruturas objetivas precisam ser criadas mas também
precisam ser reproduzidas; ações subjetivas, aparentemente voluntárias, dependem de e são
moldadas por condições e limites objetivos; mais do que teoria orientando prática com base
32

num conjunto fixo de regras, conhecimento e ação informam-se mutuamente, num processo
constante e ao mesmo tempo historicizado.
Sua pretensão é mover a sociologia para além da oposição entre o que chama de
"física social", onde a vida social é visto como algo inteiramente externo e objetivo, e a
"fenomenologia social", que faz a leitura da vida social à luz da experiência subjetiva
(BOURDIEU e WACQUANT, 1992). Seu principal desafio é construir uma teoria sobre o
poder simbólico e uma economia das práticas capazes de transcender esse dualismo
persistente (e particularmente problemático) através da reconceitualização da ação por meio
da integração das dimensões micro e marco, voluntaristas e deterministas, da atividade
humana em um único aparato conceitual, ao invés de recorrer a formas de explicação isoladas
e mutuamente exclusivas. Para tal, propõe uma teoria estrutural da prática onde, amparado na
noção de habitus (elemento chave nas suas elaborações teóricas) junto com os conceitos de
campo, formas de capital e reflexividade, procura conectar a ação com as outras dimensões
fundamentais da vida social: cultura, estrutura social e poder.

2.2.2 Núcleo conceitual

"O real é relacional." (BOURDIEU, 2004c, p. 16).

Bourdieu vê o método relacional como a ferramenta básica para impor as rupturas


epistemológicas necessárias tanto às formas objetivistas como subjetivistas de conhecimento.
É por meio do pensamento relacional que um objeto empírico é removido do contexto de
premissas e percepções do dia-a-dia, reflexo imediato dos interesses práticos da vida social,
para ser transformado num objeto acessível ao conhecimento científico (BOURDIEU, 2004c;
BOURDIEU e WACQUANT, 1992). Para Bourdieu, no entanto, isso significa mais do que a
prática comum de pesquisa de transformar atributos de indivíduos e grupos em variáveis. O
pensamento relacional enfatiza a construção de variáveis em "sistemas de relações" que são
ordenados, simultaneamente, de forma diferenciada e hierarquizada.
O método relacional fornece as bases para as posições substantivas que Bourdieu
assume em questões como cultura, estilos de vida, classes sociais e gostos (BOURDIEU,
1984). Nesse sentido, seu método consiste em analisar práticas culturais como estruturadas
relacionalmente em torno de oposições binárias tais como alto/baixo, distinto/vulgar,
puro/impuro e estético/útil. O valor de cada elemento em um dado sistema é definido em
33

relação aos outros elementos desse mesmo sistema. Algumas práticas culturais obtêm
legitimidade em oposição a outras. Legitimação e dominação não são pensados em termos de
estilos ou idéias particulares, mas concebidos com base em práticas contrastantes, tal como
ocorre quando elementos de uma sub-cultura são subordinados aos de outra cultura
(BOURDIEU, 1984; 1988; 2003a; 2003b).
Apesar de raramente percebido dessa forma por seus críticos (BRUBAKER, 1985;
DIMAGGIO, 1979; SEWELL, 1992; WARDE, 2004), o método relacional de Bourdieu está
intimamente relacionado com as premissas centrais que ele estabelece a cerca do caráter
fundamental da vida social. As relações construídas por Bourdieu são invariavelmente
competitivas, inconscientes e hierarquizadas, ao invés de cooperativas, conscientes e
igualitárias. Na sua obra, a imagem recorrente sobre o mundo social é a de um espaço de
disputa, competição, dominação e ilusão. Portanto, pensar os fenômenos sociais sob a ótica de
Bourdieu não se trata apenas de "pensar relacionalmente" mas também de compartilhar sua
visão conflituosa do mundo social. Tais preferências têm, obviamente, uma profunda
influência na maneira como Bourdieu elaborou os conceitos que dão sustentação à sua teoria
estrutural das práticas, tema que será discutido a seguir.

Habitus

"Algumas noções que fui elaborando pouco a pouco, como a noção de habitus, nasceram da vontade de
lembrar que, ao lado da norma expressa e explícita ou do cálculo racional, existem outros princípios
geradores das práticas. Isso sobretudo nas sociedades em que há muito poucas coisas codificadas; de
modo que, para saber o que as pessoas fazem, é preciso supor que elas obedecem a uma espécie de
'sentido do jogo', como se diz em esporte, e, para compreender suas práticas, é preciso reconstituir o
capital de esquemas informacionais que lhes permite produzir pensamentos e práticas sensatas e
regradas sem a intenção de sensatez e sem uma obediência consciente a regras explicitamente colocadas
como tal." (BOURDIEU, 2004b, p. 96-97).

"A realidade social existe, por assim dizer, de duas formas, em coisas e em mentes, em campos e no
habitus, no exterior e no interior dos agentes sociais. E quando o habitus encontra um mundo social do
qual é o produto, ele é como 'peixe dentro d'água': ele não sente o peso da água e assume esse mundo
como dado... E é porque esse mundo me produziu, porque ele produziu as categorias de pensamento
que eu aplico a ele, é que ele aparece para mim como auto-evidente." (BOURDIEU e WACQUANT,
1992, p. 127-128)
34

Habitus é uma noção central na teoria estrutural da prática desenvolvida por Bourdieu,
que busca transcender a oposição entre teorias que compreendem prática como
exclusivamente "constituinte" ("constituting"), tal como expresso no individualismo
metodológico e ontológico (fenomenologia), e aquelas que entendem prática como
exclusivamente "constitutivo" ("constitutive"), exemplificado no estruturalismo de Lévi-
Strauss e no funcionalismo estrutural dos descendentes de Durkheim. Nesse sentido, Bourdieu
trata a vida social como uma interação entre estruturas, disposições e ações por meio da qual
as estruturas sociais e o conhecimento corporificado dessas estruturas produzem orientações
para ação duradouras, as quais, por sua vez, são constitutivas das estruturas sociais. Dessa
forma, essas orientações são ao mesmo tempo "estruturas estruturantes" e "estruturas
estruturadas" pois moldam e são moldadas pela prática social. Prática, contudo, não resulta
diretamente de orientações, tal como afirmam os estudos sobre atitudes, mas são resultado de
um processo de improvisação estruturado por orientações culturais, trajetórias pessoais e pela
habilidade de "jogar o jogo" da interação social (POSTONE, LIPUMA e CALHOUN, 1993).
O conceito de habitus de Bourdieu é bastante familiar para muitos pesquisadores em
sociologia, antropologia e no campo de estudo das organizações. No entanto, mesmo para
aqueles familiarizados com a obra de Bourdieu existe uma considerável divergência sobre o
que o conceito realmente representa (BRUBAKER, 1993; CALHOUN, 1993; EVERETT,
2002; FUCHS, 2003; LAU, 2004; LIZARDO, 2004; MUTCH, 2003; SEWELL, 1992;
SWARTZ, 2002; WARDE, 2004). Parte do problema se deve ao fato de que o conceito
ostenta um peso teórico bastante grande, levando mesmo um crítico simpatizante como
DiMaggio (DIMAGGIO, 1979) a descrevê-lo como um tipo de "Deus Ex Machina teórico”
(ou algo que surge de forma repentina para resolver uma dificuldade teórica aparentemente
insolúvel) por meio do qual Bourdieu relaciona estrutura objetiva e atividade individual. Por
outro lado, Bourdieu e Wacquant (1992) alegam que boa parte do problema está no fato de
que essas críticas têm sistematicamente interpretado o projeto teórico de Bourdieu de maneira
errada ao projetarem, ainda que de forma involuntária, variações da dicotomia
objetividade/subjetividade no próprio conceito que Bourdieu emprega para transcender essa
dicotomia.

"Estou inclinado a admitir que meus escritos podem conter argumentos e expressões que tornam
plausíveis as interpretações errôneas que se fazem sistematicamente sobre eles (eu devo dizer também,
com toda a sinceridade, que, em muitos casos, acho essas críticas espantosamente superficiais, o que me
35

faz pensar que aqueles que as fazem prestam mais atenção aos títulos do meus livros do que às análises
que são efetivamente feitas." (BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p. 79).

Habitus é uma noção filosófica antiga, originária no pensamento de Aristóteles e na


escolástica medieval, que foi recuperada e retrabalhada depois dos anos 1960 por Bourdieu
para forjar uma teoria disposicional da ação capaz de reintroduzir na antropologia
estruturalista a capacidade criativa dos agentes, sem com isso retroceder ao intelectualismo
cartesiano que enviesa as abordagens subjetivistas da conduta social, do behaviorismo ao
interacionismo simbólico passando pela teoria da ação racional. Mas é precisamente com
Bourdieu, que estava profundamente envolvido nestes debates filosóficos, onde encontramos
uma completa renovação sociológica do conceito, que passa a ser delineado para transcender
a oposição entre objetivismo e subjetivismo: o habitus é uma noção mediadora que ajuda a
romper com a dualidade de senso comum entre indivíduo e sociedade ao captar “a
interiorização da exterioridade e a exteriorização da interioridade”, ou seja, o modo como a
sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou
capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos
determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas às restrições e solicitações do
seu meio social existente (WACQUANT, 2005). A noção de habitus foi um tema
continuamente visitado e refinado por Bourdieu ao longo da sua obra. Em "Outline of A
Theory of Practice" (BOURDIEU, 1977) , por exemplo, Bourdieu argumenta que prática não
é o precipitado mecânico de preceitos estruturais, nem o resultado da persecução intencional
de objetivos por indivíduos, mas o "produto de uma relação dialética entre uma situação e um
habitus, entendido como um sistema de disposições duráveis e transferíveis, o qual,
integrando todas as experiências passadas, funciona a todo momento como uma matriz de
percepções, apreciações e ações, e torna possível a realização de atividades infinitamente
diferenciadas, graças a transferência analógica de schemata adquirido em práticas anteriores"
(BOURDIEU, 1977, p. 261). Mas talvez seja Wacquant (2005) quem mais avançou no
sentido de sistematizar toda a carga teórica encerrada na noção de habitus num formato mais
legível para aqueles não familiarizados com o estilo de Bourdieu. Para Wacquant (2005), o
habitus pode ser pensado como história individual e grupal sedimentada no corpo, estrutura
social tornada estrutura mental. Resgatando a analogia frequentemente citada pelo próprio
Bourdieu, Wacquant (2005) afirma que o habitus pode ser comparado à “gramática
generativa” de Noam Chomsky, que permite aos falantes proficientes de uma dada língua
produzir impensadamente atos de discurso corretos de acordo com regras partilhadas de um
36

modo inventivo mas, não obstante, previsível. Visto dessa forma, o habitus designaria uma
competência prática, adquirida na e para a ação, que opera sob o nível da consciência. Mas, ao
contrário da gramática de Chomsky, Wacquant (2005, p.2) afirma que o habitus possui
algumas propriedades particulares:

i) Resume não uma aptidão natural mas social. Por essa razão, é igualmente
variável através do tempo, do lugar e, sobretudo, através das distribuições de
poder.

ii) É transferível para vários domínios de prática, o que explica a coerência que se
verifica, por exemplo, entre vários domínios de consumo (na música, no
desporto, na alimentação e na mobília), mas também nas escolhas políticas e
matrimoniais, no interior e entre indivíduos da mesma classe e que fundamenta
os distintos estilos de vida (BOURDIEU, 1984 apud WACQUANT, 2005).

iii) É durável mas não estático ou eterno: as disposições são socialmente montadas
e podem ser corroídas, contrariadas, ou mesmo desmanteladas pela exposição a
novas forças externas, tais como demonstrado, por exemplo, em situações de
migração.

iv) Contudo, é dotado de inércia incorporada, na medida em que o habitus tende a


produzir práticas moldadas depois das estruturas sociais que os geraram, e na
medida em que cada uma das suas camadas opera como um prisma através do
qual as últimas experiências são filtradas e os subsequentes estratos de
disposições sobrepostos (daí o peso desproporcional dos esquemas implantados
na infância).

v) Introduz um desfasamento, e por vezes um hiato, entre as determinações


passadas que o produziram e as determinações atuais que o interpelam: como
“história tornada natureza”, o habitus “é aquilo que confere às práticas a sua
relativa autonomia no que diz respeito às determinações externas do presente
imediato. Esta autonomia é a do passado, ordenado e atuante, que, funcionando
como capital acumulado, produz história na base da história e assim assegura
que a permanência no interior da mudança faça do agente individual um
37

mundo no interior do mundo” (Bourdieu, 1990, p. 56 apud WACQUANT,


2005).

Concebido dessa forma, o habitus representa, dentro do contexto teórico de Bourdieu,


a interseção dinâmica entre estrutura e ação, sociedade e indivíduo; o seu sentido está em
capturar o domínio prático que as pessoas possuem a cerca da sua situação social, ao mesmo
tempo em que revela que os fundamentos desse próprio domínio são também construídos
socialmente.

Capital

"O mundo social é história acumulada, e para não ser reduzido a uma série discontínua de equilíbrios
mecânicos instantâneos entre agentes, tratados como partículas permutáveis, alguém deve reintroduzir a
noção de capital, e com ele, a acumulação e todos os seus efeitos. Capital é trabalho acumulado (em sua
forma materializada ou em sua forma 'incorporada', corporificada) que, quando apropriado de forma
privada, isto é, exclusiva, por agentes ou grupos de agentes, permite que estes apropriem energia social
na forma de trabalho reificado ou ativo. É uma vis insita, uma força inscrita em estruturas objetivas e
subjetivas, mas é também uma lex insita, o princípio subjacente às regularidades imanentes do mundo
social." (BOURDIEU, 1986, p. 241). [Grifos do autor]

A noção de capital proposta por Bourdieu (1986) não se enquadra nem na tradição
marxista nem tão pouco na teoria econômica. Bourdieu se distancia de ambos estendendo a
noção de capital para além da sua concepção econômica convencional, que se caracteriza,
prioritariamente, pela ênfase nas trocas materiais, para incluir formas imateriais e não-
econômicas de capital. Para Bourdieu, portanto, capital é um recurso de poder: indivíduos e
grupos lançam mão de uma variedade de recursos materiais, culturais, sociais e simbólicos
para manter e melhor sua posição na ordem social vigente. Swartz (1997, p. 73) afirma que
Bourdieu conceitualiza esses diversos recursos como capitais na medida em que passam a
funcionar como uma "relação social de poder", ou seja, quando se tornam valiosos e,
consequentemente, objetos de disputa.
Uma vez que, de acordo com Bourdieu (BOURDIEU, 1977; 1986; BOURDIEU e
WACQUANT, 1992), a estrutura social e a distribuição de capital representam a estrutura
inata do mundo social, entender essa estrutura e suas regras de funcionamento implica, então,
38

um eforço permanente para identificar e compreender as múltiplas formas de capital em


disputa, assim como suas inter-relações históricas e potenciais.

"Uma ciência geral sobre a economia das práticas que não se limite, artificialmente, àquelas práticas
que são reconhecidas como econômicas, deve empenhar-se em compreender o capital, essa 'energia da
física social', em todas as suas diferentes formas, e revelar as leis que regulam sua conversão de uma
forma para outra." (BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p. 118).

A noção de capital em Bourdieu também pode ser vista como uma tentativa de
mediação, no plano teórico, entre a sociedade e o indivíduo. No primeiro nível, a sociedade
seria estruturada pelas diferentes distribuições de capital. No outro, indivíduos lutam para
maximizar sua posse de capital. Não obstante, isso não significa que indivíduos ou agentes
possuam uma ordem preferencial, consciente e calculada, a qual buscam maximizar. Na
verdade, alheios a algumas possibilidades reais e incapazes de tirar proveito ou conceber
outras possibilidades devido ao seu habitus de classe, os agentes buscam maximizar os
benefícios que a posse dos capitais apropriados lhes confere, dado a sua posição relativa no
campo (BOURDIEU, 1977; 2004b; 2004; BOURDIEU e WACQUANT, 1992). O capital que
os agentes são capazes de acumular ao longo do tempo define, assim, sua trajetória social (isto
é, suas chances de sobrevivência) e também contribui para reproduzir e consolidar as
distinções de classe (BOURDIEU, 1984; POSTONE, LIPUMA e CALHOUN, 1993). O foco
de boa parte da obra de Bourdieu está, precisamente, na interação entre as diversas formas de
capital, as quais distingue em capital econômico, capital cultural e capital social
(BOURDIEU, 1977; 1984; 1986; 1988; 1991; 2003a; 2003b; 2004; BOURDIEU e
WACQUANT, 1992):

i) O capital econômico refere-se à renda monetária e outros recursos e ativos


financeiros, e encontra sua expressão institucional nos direitos de propriedade.

ii) O termo capital cultural refere-se a bens e serviços não-econômicos, e cobre


uma grande variedade de recursos, desde a facilidade de expressão verbal e
escrita, conhecimentos gerais e preferências estéticas, até credenciais
acadêmicas e a posse de bens culturais. Bourdieu sugere que a cultura, no
sentido mais amplo do termo, pode ser tornar, efetivamente, um recurso de
poder. Para Bourdieu, o capital cultural se manifesta em três estados:
39

corporificado, objetivado e institucionalizado. Em seu estado corporificado,


encontra-se diretamente incorporado aos indivíduos representando aquilo que
conhecem ou que sabem fazer, e poder ser incrementado investindo-se tempo
em auto-aperfeiçoamento na forma de treinamentos. Na medida em que o
capital corporificado torna-se integrado ao indivíduo, passa também a ser um
tipo de habitus e, consequentemente, não pode ser transmitido
instantaneamente. O capital cultural em seu estado objetivado é representado
por bens culturais, tais como livros, instrumentos musicais e obras de arte, e
podem ser apropriados tanto materialmente, através do capital econômico (pela
aquisição simples e direta), como simbolicamente, através do capital cultural
corporificado (pelo "dom" inato que torna tudo familiar e natural). Por último,
o capital cultural em seu estado institucionalizado fornece as credenciais
acadêmicas e qualificações que definem um "certificado de competência
cultural que confere ao seu portador um valor convencional, constante e
legalmente garantido com respeito a poder" (BOURDIEU, 1986, p. 248). Essas
qualificações acadêmicas podem ser usadas como uma taxa de conversão entre
o capital cultural e o capital econômico. O importante aqui é perceber a
diferença entre o capital cultural corporificado, expresso na educação e no
conhecimento adquirido através do processo de socialização promovido na
esfera familiar, sob o abrigo da classe social de origem, e mais tarde reforçado
no sistema escolar, e o capital cultural "simbólico", traduzido na capacidade e,
principalmente, na autoridade para definir e legitimar valores, padrões e estilos,
sejam culturais, morais ou estéticos.

iii) Bourdieu define capital social como o "agregado de recursos reais e potenciais
que estão relacionados com a posse de uma rede durável de relacionamentos,
mais ou menos institucionalizados, de conhecimento e reconhecimento mútuo"
(BOURDIEU, 1986, p. 248). Assim, o capital social de um indivíduo é
determinado pelo tamanho da sua rede de relacionamentos, pelo somatório dos
recursos acumulados nessa rede (tanto culturais como econômicos), e pela
velocidade e eficácia com que é capaz de usufruí-la.

Os tipos de capital diferem em sua liquidez e conversibilidade, e no seu potencial de


perdas por desgaste ou por inflação (POSTONE, LIPUMA e CALHOUN, 1993). Ao longo de
40

sua discussão sobre as possibilidades de conversão entre diferentes tipos de capital, Bourdieu
(BOURDIEU, 1986) reconhece que todos os tipos podem ser derivados do capital econômico
através de variados esforços de transformação. Mas é o capital econômico a forma mais
eficiente de capital: traço característico do capitalismo, pode ser isoladamente convertido sob
a forma geral, anônima e polivalente do dinheiro e transmitido de uma geração para outra.
No entanto, mesmo admitindo a importância do "econômico" para a manutenção da
ordem social, ele precisa ser mediado simbolicamente: a reprodução indisfarçada do capital
econômico revelaria o caráter arbitrário da distribuição de poder e riqueza (BOURDIEU,
1991a; 2003a; 2003b; 2004; BOURDIEU e WACQUANT, 1992). Para Bourdieu, o capital
simbólico é representado pelo conjunto de rituais e crenças que, postos à disposição de um
agente, conferem-lhe autoridade e reconhecimento por parte dos outros agentes, e legitimam
sua posse sobre outras formas de capital. Desse modo, o capital simbólico trabalha para
mascarar a dominação econômica exercida pelas classes dominantes e legitimar socialmente a
hierarquia existente ao tornar a posição social algo essencial e natural. Fatores não-
econômicos articulam-se com, reproduzem e legitimam relações de classe por meio da
"magia" dissimulada do capital simbólico. "Classe e status, enfaticamente separadas por
Weber, são inter-relacionadas de acordo com Bourdieu" (POSTONE, LIPUMA e
CALHOUN, 1993, p. 5).
A imagem de capital como "energia da física social" (BOURDIEU e WACQUANT,
1992, p. 118) que pode existir em diversas formas, e que, sob certas condições e taxas de
conversão, podem ser combinadas e transformadas, informa uma conceitualização de poder
onde nenhuma forma possui prioridade teórica sobre a outra ou pode ser tratada
independentemente das outras. Isso sugere uma orientação empírica e histórica,
frequentemente encontrada na obra de Bourdieu, que destaca o papel da pesquisa de campo
como o único instrumento capaz de determinar as formas chave de capital subjacentes a uma
ordem social específica, em um dado momento, e mapear suas inter-relações pertinentes, que
nem sempre se mostram aparentes ou conscientes.
Ao trazer o poder para o centro de sua análise, Bourdieu torna o conflito a dinâmica
essencial de toda a vida social: no interior de todos os arranjos sociais existe, inevitavelmente,
a disputa por poder, operada tanto sobre recursos materiais como simbólicos. Na medida em
que recursos culturais passaram a funcionar como um tipo de capital, tornaram-se uma nova e
distinta fonte de diferenciação nas sociedades modernas. Existem, assim, dois grandes
princípios concorrentes de hierarquia social que, segundo Bourdieu, moldam as lutas por
poder nas sociedades modernas: a distribuição do capital econômico ("princípio dominante")
41

e a distribuição do capital cultural ("princípio secundário"). Bourdieu argumenta que essa


oposição entre capital econômico e capital cultural é responsável pela distribuição e
ordenamento de todos os campos de disputa tais como o econômico, o administrativo, o
científico, o religioso e o intelectual. É a partir dessa oposição fundamental que Bourdieu
elabora sua noção de campo de poder (SWARTZ, 1997). A Figura 1 a seguir, ilustra como
Bourdieu (BOURDIEU, 1984; 1988) mapeia o campo de poder relativamente com a estrutura
de classe e com o campo literário/artístico. No nível mais generalizado, Bourdieu representa o
campo referente às classes sociais (retângulo 1) ou, simplesmente, o "espaço social", como
um espaço bi-dimensional estruturado em torno dos eixos "volume" e "estrutura de capital". O
eixo vertical mensura o volume total de capital, e o eixo horizontal mensura os volumes
relativos de capital cultural e capital econômico.O campo de poder (retângulo 2) está situado
na parte superior do eixo horizontal, na fração do espaço social com o maior volume de
capital, sendo, por sua vez, internamente diferenciado de acordo com os polos de capital
econômico e capital cultural ("CE-/CC+" e "CE+/CC-"). No interior do campo de poder, o
campo literário/artístico (retângulo 3) está situado relativamente mais próximo ao polo de
capital cultural, no quadrante superior esquerdo, indicando uma posição no espaço social com
um volume considerável de capital total mas com uma proporção negativa de capital
econômico em relação ao capital cultural. O campo ocupa, assim, uma "posição dominada" no
interior do campo de poder mas no campo mais amplo das classes sociais, ou seja, no espaço
social, ocupa uma "posição dominante". Desse modo, Bourdieu afirma que os campos variam
em termos da sua respectiva proximidade ao polos opostos existentes no campo de poder: de
um lado, encontra-se o campo econômico, onde o capital econômico predomina; no outro
lado, existe o campo literário/artístico, estruturado em torno do capital cultural. Os demais
campos ocupariam, assim, posições intermediárias entre esses extremos (BOURDIEU,
1988b).
42

Figura 1: A estrutura dos campos e das distribuições de capital

Indivíduos, famílias, grupos e organizações tendem a utilizar recursos econômicos e


culturais de forma desproporcional na sua luta para manter e melhorar suas posições relativas
na ordem social. Bourdieu dedica uma atenção especial em sua obra à análise das várias
formas que a oposição entre capital econômico e capital cultural pode assumir, e como podem
contribuir para o entendimento dos diferentes estilos de vida, preferências e práticas que os
agentes invocam no jogo permanente da interação social.

Campo

"Em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede ou configuração de relações
objetivas entre posições. Essas posições são objetivamente definidas, em sua existência e nas
determinações que impõem a seus ocupantes, agentes ou instituições, por uma situação presente e
potencial (situs) na estrutura de distribuição de espécies de poder (ou capital) cuja posse controla o
acesso aos ganhos específicos que estão em disputa no campo, assim como pela sua relação objetiva
com outras posições (dominação, subordinação, homologia etc.)." (BOURDIEU e WACQUANT, 1992,
p. 97). [Grifos do autor]
43

Campo é uma metáfora espacial fundamental na sociologia de Bourdieu, cujo


propósito é fornecer as bases para uma "análise relacional" por meio da qual Bourdieu
procura explicar o espaço multi-dimensional de posições e a tomada de decisão dos agentes.
Nesse sentido, a posição de um dado agente é resultado da interação do seu habitus e do seu
lugar num campo de posições definido pela distribuição da forma apropriada de capital, onde
os agentes são assumidos como competidores interessados em posições sociais. Essa
competição dá origem à estrutura social, a qual, entendida aqui como uma topologia social,
posiciona atores relativamente entre si de acordo com os montantes totais e as combinações
correspondentes de capital disponíveis para eles (BOURDIEU, 1991b; 2004). A natureza e o
leque de posições possíveis variam, portanto, social e historicamente. Segundo Bourdieu e
Wacquant (BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p. 97-98):

"... em sociedades altamente diferenciadas, o cosmos social é constituído do conjunto destes


microcosmos sociais relativamente autônomos, isto é, espaços de relações objetivas que são o lugar de
uma lógica e de uma necessidade específicas e irredutíveis as que regem outros campos. Por exemplo, o
campo artístico, o campo religioso, ou o campo econômico, todos seguem lógicas específicas: enquanto
o campo artístico constituiu-se através da rejeição ou reversão da lei do ganho material, o campo
econômico emergiu, historicamente, através da criação de um universo dentro do qual, como
costumamos falar, 'business is business', onde as relações mágicas da amizade e amor estão, em
princípio, excluídas".

Portanto, cada campo pode ser visto como um espaço semi-autônomo, caracterizado
por seus próprios agentes, por sua própria história acumulada, por sua própria lógica de ação e
por sua própria forma de capital (POSTONE, LIPUMA e CALHOUN, 1993). O princípio que
regula a dinâmica de um campo reside na forma de sua estrutura e, em particular, na distância,
nas lacunas e nas assimetrias entre as diversas forças específicas que se confrontam. As forças
que são ativas num campo - e por essa razão, aquelas que são selecionadas pelo pesquisador
como pertinentes porque produzem as diferenças mais relevantes - são aquelas que definem o
capital específico que se torna alvo de disputa (BOURDIEU e WACQUANT, 1992).
Para Bourdieu, habitus, capital e campo são conceitos inter-relacionados e
inseparáveis. O habitus confere o "sentido do jogo", ou seja, a predisposição para entrar no
campo e reconhecer sua lógica de funcionamento como algo natural, em suma, uma
habilidade inata para "jogar o jogo". Por outro lado, "um capital não existe nem funciona
exceto em relação a um campo" (BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p.101). Ele confere
poder sobre o campo, sobre os instrumentos materializados ou corporificados de produção ou
44

reprodução cuja distribuição constitui a própria estrutura do campo, e sobre as regularidades e


as regras que definem o seu funcionamento normal, conferindo, desse modo, controle final
sobre os ganhos produzidos no campo. Assim, entendido como um espaço de forças ativas e
potenciais, o campo deve ser visto também como uma arena de disputas pela preservação ou
transformação da configuração dessas forças, disputas essas não apenas no interior dos
campos mas também pelo poder de definir novos campos. O campo passa a operar como uma
estrutura a orientar as estratégias pelas quais os ocupantes dessas posições de força buscam,
individualmente ou coletivamente, conservar ou melhorar essas posições e, mais importante,
impor o princípio hierarquizador mais favorável aos seus interesses e controlar o "monopólio
da legitimidade" (BOURDIEU, 2004b, p. 52).
A todo momento, existe o que se pode chamar de uma "taxa de admissão" que cada
campo impõe e que é responsável pela seleção de quais agentes são elegíveis a dele
participarem: agentes são legitimados para entrar no campo mediante a posse de uma
determinada configuração de propriedades. Logo, um dos objetivos de pesquisa passa a ser
identificar essas propriedades ativas, essas características eficientes, essas "formas específicas
de capital". Tem-se, assim, um tipo de círculo hermenêutico: para construir o campo, os
agentes precisam identificar as formas específicas de capital que operam em seu interior; e
para construir as formas específicas de capital, é necessário conhecer a lógica específica do
campo (BOURDIEU e WACQUANT, 1992).
Essa perspectiva analítica de campo empregada por Bourdieu está intimamente
conectada com sua concepção de legitimação de classe. As noções de autonomia do campo,
mediação e homologia que desenvolve, ligam-se à sua teoria sobre o poder simbólico, que,
por sua vez, parte da idéia central de que a legitimação das desigualdades entre classes sociais
não é produto de intenções conscientes mas originam-se da correspondência estrutural entre
diferentes campos. As distinções de classe aparecem, assim, traduzidas em formas eufêmicas,
específicas de cada campo, que os atores involuntariamente reproduzem pela simples
perseguição de suas próprias estratégias, dentro do conjunto de restrições e oportunidades
disponíveis para eles. É a partir dos conceitos relacionais de habitus, capital e campo que
Bourdieu busca formular uma abordagem reflexiva para analisar o mundo social, capaz de
revelar as condições arbitrárias que cercam a produção da estrutura social e das disposições e
atitudes a ela relacionadas.
45

Por uma sociologia reflexiva

"... Eu acredito que a sociologia da sociologia é uma dimensão fundamental da epistemologia da


sociologia. Longe de ser uma especialidade entre outras, é um pre-requisito necessário para qualquer
prática sociológica rigorosa. Na minha visão, um das maiores fontes de erro nas ciências sociais reside
numa relação sem controle que se estabelece com o objeto, que resulta na projeção dessa relação sobre
o objeto. O que me angustia quando leio alguns trabalhos feitos por sociólogos é que essas pessoas, cuja
profissão é objetivar o mundo social, provam-se raramente capazes de objetivar a si mesmos, e
frequentemente fracassam em perceber que aquilo que é aparentemente expresso pelo seu discurso
científico não é o objeto em si mas sua relação com o objeto." (BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p.
68-69). [Grifos do autor]

Como alguém pode praticar uma ciência social - ela própria uma especulação
simbólica - e, no entanto, não reproduzir os efeitos da distinção social que Bourdieu denuncia
de forma tão rigorosa?
A resposta de Bourdieu para esse dilema é a necessidade de uma prática reflexiva da
sociologia (BOURDIEU, 2004b; BOURDIEU e WACQUANT, 1992). Seu argumento é que
toda investigação sociológica requer uma reflexão crítica simultânea sobre as condições
intelectuais e sociais que tornam a investigação possível. A análise que Bourdieu elabora
sobre os campos intelectuais mostra que os cientistas sociais traduzem, de forma involuntária,
suas premissas epistemológicas particulares e os próprios interesses do campo nas suas
explicações sobre os fenômenos sociais (BOURDIEU, 1988a; 2001). Somente realizando a
"sociologia da sociologia", ou seja, aplicando os métodos da sociologia à própria sociologia, é
possível obter alguma liberdade dos determinantes da prática intelectual (BOURDIEU e
WACQUANT, 1992; SWARTZ, 1997).
Outro ponto importante na noção de reflexividade de Bourdieu é seu argumento em
favor de uma ruptura com o "senso comum", que entende como o conjunto das crenças ou
opiniões aceitas por uma determinada sociedade ou por grupos sociais particulares que
acabam por serem impostas a todo o espírito racional. Para Bourdieu, essa ruptura é
duplamente necessária para afastar o perigo das idéias preconcebidas: por um lado, devido ao
próprio modo de constituição das categorias de percepção do senso comum e, por outro, pela
sua incapacidade de fornecer explicações científicas para os fenômenos sociais (BOURDIEU,
1988a; 2001; BOURDIEU e WACQUANT, 1992).
A noção de reflexividade de Bourdieu também pode ser lida como uma inter-relação
dos seus três conceitos centrais - habitus, capital e campo - previamente discutidos neste
46

trabalho. Bourdieu concebe a prática social como o relacionamento entre o habitus de classe e
o capital atualizado, realizado de acordo com a lógica específica de um dado campo. O
habitus é auto-reflexivo, no sentido de que, toda vez em que é ativado na prática, encontra a si
mesmo como história simultaneamente corporificada e objetivada (POSTONE, LIPUMA e
CALHOUN, 1993).
Ao afirmar de forma categórica que a sociologia tem o compromisso de revelar as
condições arbitrárias e os mecanismos por trás da produção e reprodução das estruturas
sociais (BOURDIEU e WACQUANT, 1992), Bourdieu coloca sua noção de reflexividade
intimamente relacionada com a idéia de emancipação. Para Bourdieu, o estudo do mundo
social não tem muita valia se não fornecer as ferramentas necessárias para que os agentes
sejam capazes de compreender o significado de suas ações. Sua abordagem busca iluminar a
reprodução da desigualdade social e cultural por meio da análise dos processos de
desconhecimento ("misrecognition"), ou seja, investigando como o habitus dos grupos
dominados pode ocultar as condições da sua prórpia subordinação. Bourdieu perseguiu esse
tema em seus relatos sobre o conhecimento e sua transmissão (BOURDIEU e PASSERON,
1990), na sua análise sobre a constituição social das distinções de classe (BOURDIEU, 1984),
e nos tratados sobre violência simbólica (BOURDIEU, 1991a; 1998; 1999; 2003).
A reflexividade é uma condição fundamental para qualquer teoria crítica que pretenda
superar os dualismos característicos do pensamento social moderno (BOURDIEU e
WACQUANT, 1992). Bourdieu (BOURDIEU, 1988a; 2001) reconhece que não existe um
ponto "fora do sistema" que permita ao cientista social uma perspectiva de análise neutra e
desinteressada, por isso, sua abordagem é necessariamente reflexiva para poder controlar seus
próprios vieses. Como um teórico da sociedade, Bourdieu opera inevitavelmente no interior
daquilo que se propõe a investigar: é ao mesmo tempo uma analista da ciência e da sociedade
e um ator nesses mesmos campos. Por essa razão, é visível na sua obra uma preocupação
constante em refletir sobre o seu projeto e sobre suas posições teóricas.

2.2.3 Cultura, poder e reprodução

No seu esforço para construir uma sociologia do poder simbólico, Bourdieu levantou
temas importantes a cerca das relações entre ação, estrutura social e cultura. São temas
recorrentes na sua obra que se interceptam e interagem entre si de forma dinâmica,
guardando, inclusive, uma certa circularidade.
47

Seja investigando camponeses argelinos, estudantes e professores universitários,


escritores e artistas, ou a Igreja, há uma preocupação central nas investigações de Bourdieu
em entender como sistemas sociais estratificados de hierarquia e dominação persistem e se
reproduzem através das gerações sem uma forte resistência e sem o reconhecimento
consciente por parte de seus membros. Bourdieu argumenta que a resposta dessa questão pode
ser encontrada explorando como recursos culturais, processos e instituições mantêm
indivíduos e grupos na hierarquias de dominação em posições competitivas e que se auto-
perpetuam.
Todos os símbolos e práticas culturais, desde gostos artísticos, estilos de vestuário e
hábitos de alimentação, até a religião, ciência, filosofia, e mesmo a própria linguagem,
incorporam interesses e contribuem para acentuar as distinções sociais (BOURDIEU, 1984).
A luta por distinção social, independente da forma simbólica pela qual se expressa, oculta um
jogo de relações de poder entre indivíduos, grupos e instituições. De fato, poder não é um
domínio de estudo isolado para Bourdieu, mas está no centro de toda a vida social, e o
exercício bem sucedido do poder requer legitimidade. Legitimidade, portanto, não é um fim
em si mesmo, como argumentam os neo-institucionalistas (DIMAGGIO e POWELL, 1983;
MEYER e ROWAN, 1977), mas o meio para assegurar uma posição dominante e evitar
resistência ou questionamento. A análise neo-institucional se afasta das suas formulações
iniciais (SCOTT, 2001; SELZNICK, 1996) ao enveredar pela dimensão cognitiva, fazendo
uso do conceito de esquemas interpretativos para defender-se de críticas de imobilismo social,
e ao colocar um foco excessivo nos aspectos simbólicos e nos processos de isomorfismo para
explicar a necessidade das organizações de obterem legitimidade para aumentar suas
probabilidades de sobrevivência. Adquire, assim, um tom conservador e torna-se mal
equipada para explicar novos cenários ou processos de mudança institucional, ocasiões onde
se manifestam novas configurações de poder, de interesses, valores e forças (CARVALHO,
GOULART, VIEIRA, 2004).
Ao longo de seu trabalho, Bourdieu busca compreender como lugares de socialização
cultural (a família e o sistema educacional, principalmente) posicionam indivíduos e grupos
de forma competitiva nas hierarquias de status, como campos de conflito relativamente
autônomos engajam indivíduos e grupos em disputas por recursos reconhecidamente valiosos,
como essas lutas sociais são refratadas por meio de classificações simbólicas, como atores
lutam e perseguem estratégias para alcançar seus objetivos nesses campos, e como, ao
fazerem isso, os atores reproduzem inconscientemente a estratificação da ordem social.
48

Nesse sentido, Bourdieu parece se distanciar do conceito mais amplo de cultura,


bastante usual na literatura da administração, que a define como um conjunto de concepções,
normas e valores que são tomados como certos, permanecendo submersos à vida
organizacional, e que devem ser afirmados e confirmados aos seus membros, seja na forma
tangível dos artefatos visíveis, seja na forma intangível das orientações que governam os
comportamentos e dos pressupostos inconscientes que influenciam os modos de percepção e
de pensamento dos indivíduos (FLEURY, 1996). Fica evidente que a questão do poder e das
relações de dominação nas configurações sociais representam uma preocupação secundária
nessa perspectiva. Coerente com o seu projeto de elaborar um “estruturalismo genético”,
Bourdieu faz uso da noção de habitus para isolar os elementos constitutivos (ou estruturais)
da cultura, aqueles que não podem ser facilmente transmitidos ou convertidos e que
funcionam como um sistema de disposições cultivadas que operam como um princípio
gerador de práticas. Todos os demais elementos presentes na definição usual de cultura são
tratados por Bourdieu como uma forma de capital, portanto, sujeitos às regras e aos processos
de acumulação, transformação, conversão e troca que definem a estrutura de distribuição de
capitais nos campos onde atores disputam posições sociais. Para Bourdieu, portanto, cultura
não é despojada de conteúdo político mas, sim, uma de suas expressões mais representativas
(BOURDIEU e PASSERON, 1990). O exercício e a reprodução do poder e dos privilégios de
classe são temas substantivos e, de certa forma, unificadores na sua obra.
Assumindo uma postura provocativa, traço característico em seus trabalhos, Bourdieu
(1991b) argumenta que os sociólogos devem formular em suas pesquisas a pergunta por onde
toda sociologia deveria começar: questionar não somente a existência das coletividades
propriamente ditas, mas também o modo dessa existência, temas que foram eventualmente
descritos por Bourdieu como uma "teoria genética dos grupos" (BOURDIEU, 2004b, p. 94).
Por trás desse questionamento, existe o foco no papel que a cultura desempenha nos processos
de reprodução social, como grupos perseguem estratégias para produzir e reproduzir as
condições de existência de suas coletividades, e como a cultura representa um elemento
constitutivo desse processo reprodutivo.
Seguindo essa perspectiva de análise sobre a cultura, Bourdieu desenvolve, assim,
uma economia geral das práticas que compreende uma teoria sobre os interesses simbólicos,
uma teoria sobre o capital, e uma teoria sobre o poder simbólico. Sua teoria sobre os
interesses simbólicos reconceitualiza as relações entre os aspectos materiais e simbólicos da
vida social, extendendo a noção de interesse econômico ao domínio da cultura. Para
Bourdieu, a sociologia e a economia são, na verdade, partes de uma única disciplina, cujo
49

objeto de análise são os fatos sociais, dos quais as transações econômicas representam apenas
um aspecto.

"Mesmo quando apresentam toda a aparência de desinteresse porque escapam à lógica do interesse
'econômico' (no sentido restrito) e são orientadas para apostas que não são facilmente quantificáveis,
como em sociedades pré-capitalistas ou na esfera cultural, práticas nunca cessam de sujeitarem-se à
lógica econômica. As correspondências entre os diferentes tipos de capital e os respectivos modos de
circulação nos obrigam a abandonar a dicotomia econômico/não-econômico, a qual torna impossível
ver a ciência das práticas 'econômicas' com um caso particular capaz de tratar todas as práticas,
incluindo aquelas que são experimentadas como desinteressadas ou gratuitas, e consequentemente
libertadas da 'economia', como práticas econômicas visadas à maximização de lucro material ou
simbólico” (BOURDIEU, 1990 , p. 122).

E para descrever adequadamente os assim chamados processos econômicos, é


necessário recorrer ao método sociológico (BOURDIEU, 2005b). Sua teoria sobre o capital
fornece as bases para o entendimento das hierarquias sociais e do comportamento dos agentes.
Cultura é definida como uma forma de capital, com regras específicas para seu exercício, e
para acumulação, transmissão e troca. Uma vez que o exercício do poder exige legitimidade,
Bourdieu propõe uma teoria sobre o poder simbólico e sobre a violência simbólica, que
estressa o papel ativo desempenhado pelas formas simbólicas, entendidas como os recursos
(ou capitais) que constituem e mantêm estruturas de poder.

2.3 Utilizando o referencial bourdieusiano para análise das confrarias

Apesar de ter publicado vários trabalhos de grande influência no pensamento social


moderno, uma pesquisa nos periódicos mais representativos no campo das ciências humanas e
sociais, indica, ainda, uma utilização relativamente modesta do ferramental analítico
desenvolvido por Bourdieu. Everett (2002) também identificou essa tendência, acrescentando
que a perspectiva reflexiva e crítica levada a cabo por Bourdieu na sua investigação científica
do mundo social representa uma contribuição potencial para os estudos organizacionais. A
Tabela 2 a seguir, apresenta um quadro resumo com referências de alguns trabalhos teóricos e
teórico-empíricos que buscaram inspiração, em maior ou menor grau, na teoria social de
Bourdieu.

Tabela 2: Apropriações da obra de Bourdieu


50

Periódico Título do Artigo Autores Ênfase


Administrative Business planning as pedagogy: (OAKES, TOWNLEY e teórico-empírico
Science Language and control in a changing COOPER, 1998)
Quarterly institutional field.
The structuring of organizational (RANSON, HININGS e teórico
structures. GREENWOOD, 1980)
Advances in Consumption and social (ALLEN e ANDERSON, teórico
Consumer stratification: Bourdieu's Distinction. 1994)
Research
American What Do You Know, Who Do You (BUERKLE e GUSEVA, teórico-empírico
Journal of Know?: School as a Site for the 2002)
Economics & Production of Social Capital and its
Sociology Effects on Income Attainment in
Poland and the Czech Republic.
American The Academic Caste System: (BURRIS, 2004) teórico-empírico
Sociological Prestige Hierarchies in PhD
Review Exchange Networks.
Cultural and educational careers: The (ASCHAFFENBURG e teórico-empírico
dynamics of social reproduction. MASS, 1997)
Social capital and finding a job: Do (MOUW, 2003) teórico-empírico
contacts matter?
Annual Religious nationalism and the (FRIEDLAND, 2001) Teórico
Review of problem of collective representation.
Sociology
Cadernos Reprodução das Elites, Consumo e (LEMOS, 2004) teórico-empírico
EBAPE.BR Organização do Espaço Urbano:
Questões Comparativas entre a Barra
da Tijuca e a Zona Sul do Rio de
Janeiro.
Politizando o conceito de redes (GOBBI et al. , 2005) teórico
organizacionais: uma reflexão teórica
da governança como jogo de poder.
O campo da saúde suplementar no (VILARINHO, 2004) teórico-empírico
Brasil à luz da teoria do poder
simbólico de Pierre Bourdieu.
EnANPADs Formação e estruturação de campos (LEÃO JUNIOR, 2001) teórico
organizacionais: um modelo para
análise do campo cultural.
Campo de poder e ação em (MISOCZKY, 2001) teórico
Bourdieu: implicações de seu uso em
estudos organizacionais.
51

Pelo Primado das Relações nos (MISOCZKY, 2003) teórico


Estudos Organizacionais: Algumas
Indicações a partir de Leituras
Enamoradas de Marx, Bourdieu e
Deleuze.
Carnaval, Bourdieu e teoria (SILVA e PACHECO, teórico-empírico
institucional. 2004)
Ethnography The Power of Violence in War and (BOURGOIS, 2001) teórico-empírico
Peace: Post-Cold War Lessons from
El Salvador.
Organization The new structuralism in (LOUNSBURY e teórico
organizational theory. VENTRESCA, 2003)
Organization Talking in Organizations: Managing (ALVESSON, 1994) teórico-empírico
Studies Identity and Impressions in an
Advertising Agency.
Organizações & Alice através do espelho ou (FISCHER, 2003) teórico
Sociedade macanuaíma em campus papagalli?
Mapeando rotas de ensino dos
estudos organizacionais no Brasil.
RAE-Revista de Estrutura e ação nas organizações: (PECI, 2003) teórico
Administração algumas perspectivas sociológicas
de Empresas
Revista Participar é preciso! Mas de que (DONADONE e GRUN, teórico
Brasileira de maneira? 2001)
Ciências Sociais
Revista As apropriações da obra de Pierre (CATANI, CATANI e teórico
Brasileira de Bourdieu no campo educacional PEREIRA, 2001)
Educação brasileiro, através de periódicos da
área.
Revista de Capital político e carreira eleitoral: (MIGUEL, 2003) teórico-empírico
Sociologia e algumas variáveis na eleição para o
Política congresso brasileiro.
Social Forces Decomposing the Intellectuals' Cass (BOROCZ e teórico-empírico
Power: Conversion of Cultural SOUTHWORTH, 1996)
Capital to Income Hungary, 1986.
Sociological Social explanation and socialization: (NASH, 2003) teórico
Review on Bourdieu and the structure,
disposition, practice scheme
The American Global habitus, local stratification, (ILLOUZ e JOHN, 2003) teórico-empírico
Behavioral and symbolic struggles over identity
Scientist
The American Forms of capital and social structure (ANHEIER, GERHARDS e teórico-empírico
Journal of in cultural fields: Examining ROMO, 1995)
Sociology Bourdieu's social topography.

As contribuições da obra de Bourdieu para a teoria e para a prática de pesquisa no


campo dos estudos organizacionais podem ser elencadas em dois grandes grupos:

i) Primeiro, por meio dos insights trazidos por Bourdieu a partir da sua postura
crítica diante de questões fundamentais da ontologia, da epistemologia e da
metodologia de pesquisa nas ciências sociais;
52

ii) Segundo, a utilização dos conceitos bourdieusianos pode trazer avanços


significativos nas discussões atuais sobre construção de teorias e metodologias
relacionais no campo de pesquisa das organizações através da conexão entre
agência e estrutura, situando indivíduos dentro do contexto da organização e
das suas próprias relações, e situando organização e cultura organizacional no
contexto mais amplo da sociedade e da história.

Os conceitos de disposições, formas de capital, habitus e campo oferecem a


oportunidade de empreender uma revisão crítica de algumas noções tradicionais do
"management", tais como cultura, atitudes, capital humano, trabalho em equipe e
meritocracia, por exemplo, que as universidades e escolas de negócio americanas se
encarregaram de propagar pelo mundo nas últimas décadas, um corpo de conhecimento que se
costuma rotular de "mainstream acadêmico".
Além disso, os conceitos propostos por Bourdieu estão mais preparados, tanto no
plano teórico como no prático (mesmo que, para Bourdieu, essa distinção simplesmente não
exista na realidade social e por isso deva ser combatida), para capturar a natureza
estratificada, intersubjetiva e interdependente dos fenômenos sociais, do que os conceitos do
"mainstream acadêmico", os quais são desenvolvidos para "ler" as organizações
exclusivamente através de perspectivas objetivistas ou subjetivistas, fortemente viesados pela
visão sistêmica-funcionalista que ainda caracteriza os estudos organizacionais.
Para explicar a capacidade dos agentes de se adaptarem às condições objetivas, bem
como às situações, e para superar a oposição problemática entre indivíduo e sociedade (seja
sob o ponto de vista teórico ou prático), sabe-se que Bourdieu identifica em cada agente uma
competência geradora de condutas e práticas a partir de princípios socialmente inculcados
segundo à sua origem e à sua trajetória de vida, a qual chama de habitus (BOURDIEU,
2004b).
De maneira geral, portanto, Bourdieu considera as práticas como temporalmente
estruturadas, mas não de modo determinista. Isso sugere aos pesquisadores, em especial os
pesquisadores de organizações, a necessidade de reconstituir as possibilidades que se
oferecem aos agentes num determinado momento, e de delimitar de que modo se estabelece
um triagem – individual ou coletiva – dessas possibilidades para a realização de novas
práticas ou para a reprodução de práticas já existentes. É exatamente esse “modo de
estabelecer uma triagem”, esse ato de escolha no espaço dos possíveis, que restaura a
53

capacidade inventiva aos agentes, ainda que estejam permanentemente expostos a coações
estruturais.
Portanto, o habitus combina “inércia” e “inventividade”, e se realiza, por assim dizer,
no “campo”, arena de lutas mais ou menos padronizadas onde os agentes se confrontam pelos
“lucros” que estão em jogo. A existência de um campo especializado e relativamente
autônomo está diretamente relacionada à existência de alvos que estão em disputa e de
interesses específicos: através dos investimentos econômicos e psicológicos que esses
interesses suscitam entre os agentes portadores de um determinado habitus, o campo, e tudo
que nele está em jogo, produzem investimentos de tempo, dinheiro, trabalho etc. Todo o
campo, enquanto produto histórico, gera o interesse que é, simultaneamente, condição e
produto de um campo. Como condição, na medida em que serve para estimular as pessoas à
luta e à competição: a magia social pode constituir praticamente tudo como “interessante”, e
instituí-lo, assim, como um alvo de disputas. Como produto, na medida em que é gerado a
partir de uma determinada categoria de condições sociais, ligado a uma história original e
particular, que só pode ser conhecida mediante o conhecimento histórico revelado
empiricamente (BOURDIEU, 2004b).
Aplicar o referencial bourdieusiano à análise de fenômenos organizacionais, implica
considerá-los numa perspectiva relacional, imbricados numa arena permanente de disputas,
simultaneamente limitados por estruturas objetivas e impulsionados pela capacidade de
improvisação dos agentes. Implica considerar, numa visão ampliada que afirme a
historicidade constitutiva dos agentes e de seu espaço de ação, uma definição realista da razão
econômica, que passa a ser entendida como um encontro entre as disposições socialmente
construídas em relação a um campo e as próprias estruturas desse campo (que, por sua vez,
também é socialmente construído). Dessa forma, agentes – sejam grupos de agentes ou
organizações – criam seu espaço, nesse caso, o campo econômico, cuja condição de
possibilidade é a própria existência dos agentes em seu interior, que deformam o espaço a sua
volta conferindo-o uma certa estrutura. Dito de outra maneira, é na relação entre os diferentes
agentes, definida pelo volume e pela estrutura de capital específica que possuem, que o campo
e as relações de força que o caracterizam são engendradas.
Para a análise das confrarias, farei uso da noção de campo projetada sobre o espaço da
organização investigada. Isso não significa, no entanto, confinar a análise a um microcosmo, a
partir de fronteiras definidas artificialmente, mas entender o fenômeno como um produto de
relações sociais construídas historicamente e continuamente submetidas a coações estruturais.
Essa abordagem permite mostrar de que modo se realiza nas práticas de cada agente ou grupo
54

de agentes, um ajuste entre disposições para pensar e agir, que interiorizam, a um só tempo: i)
formas de apreciação e percepção, competências adquiridas, representações sociais e outros
adestramentos; ii) as estruturas e os objetivos da organização - a empresa - com seus
princípios e lógica de funcionamento característicos. No primeiro caso, expressam os efeitos
dos mecanismos de controle social sobre a construção do habitus dos agentes exercido pela
sociedade, por meio das estruturas sociais, da ordem social vigente e dos processos de
socialização. No segundo, correspondem aos efeitos exercidos pelos diversos mecanismos de
controle exercido pelo mercado – o espectro da lógica capitalista - cuja essência reside na
manutenção da lógica da eficiência, da maximização dos lucros, e na imposição dos
imperativos da utilidade e da produtividade.
55

3 METODOLOGIA

A metodologia pode ser entendida como um conjunto de procedimentos intelectuais e


técnicos adotados para se atingir o conhecimento (GIL, 1999), fornecendo os parâmetros
necessários à determinação das principais categorias a serem utilizadas, à delimitação dos
temas que serão tratados, o ordenamento de sua discussão e a forma pela qual as idéias e
conclusões serão analisadas e expostas ao término do estudo. Ainda segundo Gil (1999), p.
27), "a adoção de um ou outro método depende de muitos fatores: da natureza do objeto que
se pretende pesquisar, dos recursos materiais disponíveis, do nível de abrangência do estudo e
sobretudo da inspiração filosófica do pesquisador.”
Muitos caminhos podem ser usados para construir-se uma pesquisa. Durante muitos
anos o critério dominante de cientificidade para validação das pesquisas em ciências humanas
ou sociais foi aquele originado dos campos ditos “duros” da ciência, ou seja, aqueles
utilizados nas disciplinas exatas, cujo principal objetivo sempre foi o de quantificar o
fenômeno observado em suas múltiplas formas de expressão. Os resultados e os méritos
desses procedimentos são inegáveis, assim como as conquistas obtidas. No entanto, elementos
significativos da expressão social e humana revelam características e nuances que não podem
ser totalmente apreendidas se o pesquisador se mantiver firmemente atrelado a um
procedimento exclusivamente quantitativo. Nessa perspectiva é que se inscrevem os
procedimentos qualitativos de pesquisa que, em um primeiro momento, afirmam sua
identidade por meio da oposição aos procedimentos quantitativos. Segundo Migueles
(MIGUELES, 2003, p. 2):

"... há tantos conceitos quanto usos necessários para eles, e nenhum deles jamais será o conceito 'certo'
em termos absolutos. O conceito delimita o recorte epistemológico dentro do qual um determinado
sujeito irá trabalhar, e muitas vezes inclui, em si, um juízo de valor que orienta a ação."

Desse modo, não há sentido em discutir metodologia fora de um quadro de referência


teórico que, por sua vez, é condicionado por pressupostos epistemológicos. A fundamentação
teórica de um pesquisador é um filtro pelo qual ele visualiza a realidade, sugerindo perguntas
e indicando possibilidades. A teoria busca integrar conhecimentos parciais obtidos pelas
limitações do homem, que é incapaz de separar o objeto da concepção que faz dele, e será,
necessariamente, um recorte parcial e incompleto da realidade. Nos dias de hoje, numa
perspectiva filosófica, a busca da verdade é substituída pela tentativa de aumentar o poder
56

explicativo das teorias. Nesse sentido, o papel do pesquisador passa a ser o de um intérprete
da realidade pesquisada, de acordo com os instrumentos conferidos pela sua postura teórico-
epistemológica, consistente com a natureza da ciência que se pretende investigar (GIL, 1999;
MIGUELES, 2003; VIEIRA, 2004).

3.1 Preliminares epistemológicas

"Assim que reconhecermos a unidade subjacente às estratégias sociais e apreendê-las como uma
totalidade dinâmica, seremos capazes de perceber como podem ser artificiais as oposições usuais entre
teoria e prática, entre métodos quantitativos e métodos qualitativos, entre o registro estatístico e a
observação etnográfica, entre o entendimento das estruturas e a construção dos indivíduos. Essas
alternativas não têm outra função senão fornecer uma justificativa para as abstrações ressonantes e
vazias do teoreticismo e para as observações falsamente rigorosas do positivismo, ou, como as divisões
entre economistas, antropólogos, historiadores e sociólogos, para legitimar os limites da competência:
quero dizer que elas funcionam, de certo modo, como uma censura social, sujeita a nos impossibilitar de
entender uma verdade que reside precisamente nas relações entre domínios da prática, nessas condições,
arbitrariamente separados." (BOURDIEU e DE SAINT MARTIN, 1978, p. 7 apud WACQUANT,
1992, p. 27-28). [Grifos do autor]

Um objeto de pesquisa só pode ser definido e construído em função de uma


problemática teórica que permita interrogar, de forma sistemática, os aspectos da realidade
que são revelados ao pesquisador pela questão que lhes é formulada.
Na obra de Bourdieu, ao rigor analítico e formal dos conceitos ditos "operatórios",
opõe-se o rigor sintético e real dos conceitos que recebem a designação de "sistêmicos" ou
"relacionais" porque sua utilização pressupõe a referência permanente ao sistema completo de
suas inter-relações. Por colocarmos uma ênfase demasiada no caráter operacional das
definições, corremos o risco de considerar tipologias ou simples terminologias classificatórias
como uma verdadeira teoria, deixando para a pesquisa posterior o trabalho fundamental de
sistematização dos conceitos propostos, ou até mesmo, a confirmação da sua "fecundidade
teórica" ou da sua capacidade explicativa (BOURDIEU, CHAMBOREDON e PASSERON,
2004). Ao privilegiar as "definições operacionais" em detrimento das exigências teóricas,

"a literatura metodológica dedicada às ciências sociais tende a sugerir que, para preparar seu futuro de
disciplina científica, bastaria constituir uma provisão tão ampla quanto possível de termos
'operacionalmente definidos' e 'com utilização constante e unívoca', como se a formação dos conceitos
57

científicos pudesse estar separada da elaboração teórica." (HEMPEL, 1952, p. 47 apud BOURDIEU,
CHAMBOREDON e PASSERON, 2004, p. 48).

Reconhece-se com razoável facilidade e frequência nos trabalhos acadêmicos que são
produzidos - reflexos, decerto, de um embate tradicional nas ciências humanas e sociais sobre
a possibilidade do conhecimento - que toda a observação ou experimentação implica sempre a
formulação de hipóteses. A definição do procedimento científico como um diálogo entre
hipótese e experiência pode, entretanto, se degradar quando insiste numa trajetória sequencial,
serializada e compartimentalizada, perpetuando, assim, a dicotomia teoria/prática.
É necessário sempre lembrar que a teoria domina o trabalho experimental desde a sua
concepção até as últimas análises e conclusões, numa relação dialética, constantemente
permeada de dúvidas e contradições, ou ainda, que sem teoria é impossível elaborar um único
instrumento de pesquisa ou interpretar um dado. Quando negligenciamos essas preliminares
epistemológicas, ficamos vulneráveis à armadilha de tratar diferentemente o idêntico e de uma
forma idêntica o diferente, comparar o incomparável e deixar de comparar o comparável, pelo
simples fato de coletarmos dados, até mesmo os mais objetivos, aplicando esquemas
classificatórios prontos (faixas etárias, de renda etc.) que implicam pressupostos teóricos e,
por isso, deixam escapar uma informação que poderia ter sido apreendida por outra
construção dos fatos (BOURDIEU, CHAMBOREDON e PASSERON, 2004).
A solução desta contradição se torna possível quando somos capazes de definir um
"invólucro teórico" mais amplo, que conceba a análise não como ponto de chegada de uma
teoria construída mas como instrumento para elaborações teóricas posteriores. Assim como o
método, a "boa" teoria, elaborada de forma apropriada, não deve ser separada do trabalho de
pesquisa que a alimenta, e a quem também orienta e estrutura continuamente. Do mesmo
modo que reabilita a dimensão prática como um objeto de conhecimento, Bourdieu tenta
restaurar o lado prático da teoria como uma atividade produtora de conhecimento
(WACQUANT, 1992).
Bourdieu sustenta que toda a atividade de pesquisa é, simultaneamente, empírica (ao
confrontar o mundo dos fenômenos observáveis) e teórica (na medida em que requer
necessariamente hipóteses sobre a estrutura subjacente às relações que as observações
empenham-se em capturar). Mesmo as operações mais simples e usuais - a escolha de uma
escala de mensuração, uma decisão sobre critérios de codificação, a construção de um
indicador, ou a inclusão de um ítem num questionário - envolvem opções teóricas, conscientes
ou inconscientes, da mesma forma que os problemas conceituais mais abstratos não podem
58

ser totalmente clarificados sem um engajamento sistemático com a realidade empírica


(WACQUANT, 1992).
Assim, devo dizer que a opção pelo referencial bourdieusiano neste trabalho não se
limita à tentativa de aplicação dos conceitos centrais de sua teoria social no mundo das
organizações, em particular, na empresa multinacional que está sendo investigada. Minha
pretenção é buscar igualmente em seu método de pesquisa a inspiração para realizar um
trabalho a um só tempo teórico e empírico, onde teoria e prática informam-se mútua e
continuamente a partir de um "invólucro teórico" inicial, num esforço para localizar e explicar
as relações sociais imanentes ao objeto de estudo deste trabalho, as confrarias, ele próprio
fruto de um trabalho de construção teórica-empírica.

3.2 Especificação do problema

"A lógica de pesquisa é um emaranhado de grandes e pequenos problemas que nos forçam a perguntar a
nós mesmos, a todo momento, o que estamos fazendo, e nos permite entender, de forma gradual e mais
abrangente, o que estamos buscando ao fornecer os pontos de partida de uma pergunta, os quais irão
sugerir novas questões, mais fundamentais e mais explícitas." (BOURDIEU, 1988a , p. 7).

Para Bourdieu (1988a), existe nas operações de pesquisa uma proporção do que se
costuma chamar de "intuição", uma forma mais ou menos verificável de conhecimento pré-
científico acerca do objeto de interesse e também do conhecimento escolástico de objetos
análogos. Essa fonte indispensável de "criatividade" se manifesta, verdadeiramente, quando
agimos sem saber completamente o que estamos fazendo, quando examinamos a realidade
sem a pretenção de que podemos ter o domínio ou entendimento total sobre os dados
coletados ou sobre os procedimentos de pesquisa, tornando possível, assim, descobrir naquilo
que fizemos alguma coisa que nos passou desapercebido previamente.
Procurando analisar a dinâmica do processo de surgimento e legitimação das
confrarias em uma empresa multinacional em atividade no Brasil e suas contradições com a
lógica que deveria orientar os processos de gestão em organizações dessa natureza, este
estudo propõe-se a responder as seguintes perguntas de pesquisa:

i) O que são as confrarias?


59

ii) Quais características ou propriedades permitem tratar as confrarias como um


objeto de pesquisa?

iii)Como a confraria emergiu e alcançou legitimidade na organização que está


sendo investigada? Quais sinais ou fatos evidenciaram seu processo de
estruturação e legitimação?

iv) Quais elementos e características distinguem os participantes da confraria dos


demais atores organizacionais? Como a composição da confraria se alterou
durante o período de tempo analisado?

v) Como os interesses específicos da confraria conviveram com os interesses


corporativos? Há evidências de momentos de tensão ou conflitos? Quando e
por que ocorreram? Quais foram as consequências para a manutenção da
estabilidade da confraria e de seus participantes?

Longe de ser um ato inaugural ou temporal, a especificação do problema de pesquisa é


um longo processo dialético, de idas e vindas entre fundamentação teórica e a experiência do
real, no qual a intuição, enquanto adequadamente problematizada e sistematizada à luz dos
pressupostos teóricos e epistemológicos, é analisada e verificada ou refutada no trabalho
empírico, engendrando novas hipóteses, gradualmente mais firmes e fundamentadas, as quais
serão, por sua vez, nova e continuamente superadas graças aos problemas, fracassos e
expectativas que ajudaram a revelar.

3.3 Opções metodológicas

3.3.1 Sobre a escolha por métodos qualitativos

"A mensuração dos fatos sociais depende da categorização do mundo social. As atividades sociais
devem ser distinguidas antes que qualquer frequência ou percentual possa ser atribuído a qualquer
distinção. É necessário ter uma noção das distinções qualitativas entre categorias sociais, antes que se
possa medir quantas pessoas pertencem a uma ou outra categoria. Se alguém quer saber a distribuição
de cores num jardim de flores, deve primeiramente identificar o conjunto de cores que existem no
60

jardim; somente depois disso pode-se começar a contar as flores de determinada cor. O mesmo é
verdade para os fatos sociais." (BAUER, GASKELL e ALLUM, 2002 , p. 27-28).

O emprego de métodos quantitativos para descrever e explicar fenômenos sempre


esteve muito presente no campo da pesquisa social. Estudos quantitativos geralmente
procuram seguir com rigor um plano previamente estabelecido, baseado em hipóteses
claramente indicadas, onde se procura, em geral, investigar evidências de relações causais e a
possibilidade de generalização. Nas últimas décadas, no entanto, a pesquisa qualitativa,
surgida inicialmente nos campos da antropologia e da sociologia, tem ganhado muito espaço
em áreas como a psicologia, a educação e no campo de estudo das organizações.
Ainda que os métodos quantitativos de pesquisa possam ser definidos a partir de um
paradigma funcionalista, positivista ou normativo, a pesquisa qualitativa, por sua vez, abrange
uma variedade de modelos, procedimentos, paradigmas epistemológicos e instâncias
ontológicas que dificilmente podem ser classificados sob o mesmo "guarda-chuva" conceitual.
Portanto, a pesquisa qualitativa é extremamente diversificada e rica em seus fundamentos e
procedimentos, não podendo ser adequadamente definida apenas em oposição aos
procedimentos quantitativos. Ela é mais abrangente do que essa oposição permitiria supor .
Segundo Vieira (2004), os métodos qualitativos ainda continuam sendo alvo de muitas
críticas, algumas delas, inclusive, procedentes. No entanto, alega que os problemas decorrem
"não de limitações específicas dos métodos, mas sim de seu uso inadequado" (p. 14). A
dicotomia entre pesquisa qualitativa e quantitativa restringe a capacidade de investigar
fenômenos sociais com o rigor e a relevância necessários para apreendê-los em toda sua
plenitude, considerando que se tratam de objetos de pesquisa, na sua essência, complexos e
multifacetados (VIEIRA, 2004).
Denzin e Lincoln (2000) consideram a pesquisa qualitativa um campo de investigação
em si mesmo, que intercepta diversas disciplinas, campos e assuntos, e envolve uma família
complexa e interconectada de termos, conceitos e suposições. Apesar disso, afirmam que: "

"... é possível oferecer uma definição inicial, genérica: pesquisa qualitativa é uma atividade situada que
localiza o observador no mundo. Ela consiste num conjunto de práticas materiais e interpretativas que
tornam o mundo visível. Essas práticas transformam o mundo. Elas convertem o mundo numa série de
representações, que incluem notas de campo, entrevistas, conversas, fotografias, gravações (...) Nesse
nível, a pesquisa qualitativa envolve uma perspectiva interpretativista e naturalística do mundo. Isso
significa que pesquisadores qualitativos estudam as coisas em seus cenários naturais, tentando fazer
61

com que os fenômenos ‘façam sentido’ ou interpretá-los em termos dos sentidos que as pessoas fazem
deles.” (DENZIN e LINCOLN, 2000, p.3).

Miles e Huberman (1994) também identificam uma ênfase naturalística em grande


parte das pesquisas qualitativas, e relacionam aquilo que, na opinião desses autores, seriam
algumas das características centrais e recorrentes nas pesquisas ditas "naturalísticas" (p. 6-7):

i) A pesquisa qualitativa é conduzida através de um contato intenso e/ou


prolongado com um "campo" ou situação de vida. Essas situações são
tipicamente "banais" ou normais, reflexo da vida cotidiana de indivíduos,
grupos, sociedades e organizações.

ii) O papel do pesquisador é obter uma visão holística (sistêmica, includente,


integrada) do contexto que está sendo estudado: sua lógica, seus arranjos, suas
regras implícitas e explícitas.

iii) O pesquisador procura capturar dados sobre as percepções dos atores locais "a
partir de dentro", através de um processo bastante cuidadoso, de conhecimento
empático (verstehen), e de isenção ou imersão nas preconcepções sobre os
tópicos em discussão.

iv) Lendo através desses materiais, o pesquisador pode isolar certos temas e
expressões que podem ser revisados com informantes, mas esses elementos
devem ser mantidos nas suas formas originais ao longo do estudo.

v) Muitas interpretações sobre esses materiais são possíveis, mas algumas são
mais atraentes por razões teóricas ou por questões de consistência interna.

vi) Relativamente pouco instrumental padronizado é utilizado no começo. O


pesquisador é essencialmente o principal "instrumento de mensuração" no
estudo. A maior parte das análises é feita com palavras. As palavras podem ser
aglutinadas, reagrupadas, separadas em segmentos semióticos. Elas podem ser
organizadas de forma a permitir que o pesquisador contraste, compare, analise
e confira padrões a elas.
62

A pesquisa qualitativa, portanto, é essencialmente descritiva, não procura enumerar


e/ou medir os eventos estudados, nem emprega instrumental estatístico na análise de dados.
Seu foco de interesse é amplo, e parte de uma perspectiva distinta da adotada pelos métodos
quantitativos, privilegiando a obtenção de dados descritivos mediante contato direto e
interativo do pesquisador com o fenômeno investigado. Sua preocupação está direcionada
para um nível de realidade que não pode ser quantificado, isto é, um universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, um espaço mais profundo de relações que não
podem ser reduzidas à operacionalização de variáveis. Nestes casos, o pesquisador procura
entender o fenômeno segundo o ângulo dos sujeitos envolvidos, para daí situar sua
interpretação e extrair suas conclusões sobre o fenômeno investigado. Apesar de sua natureza
mais subjetiva, a pesquisa qualitativa oferece maior flexibilidade ao pesquisador permitindo,
ao longo do seu desenvolvimento, que se consiga adequar a fundamentação teórica ao estudo
do fenômeno (VIEIRA, 2004).
O uso de métodos qualitativos e estratégias interpretativas exige que o objeto seja
definido de forma clara, que as perguntas de pesquisa estejam devidamente fundamentadas
em um referencial teórico sólido que conduza a conclusões válidas, que os conceitos,
variáveis e procedimentos de campo sejam claramente definidos, e que a estratégia de coleta
de dados seja adequada ao esforço necessário para analisá-lo. Para que se possa julgar a
pertinência da análise realizada, é fundamental que o pesquisador apresente evidências
empíricas capazes de suportar as conclusões que forem apontadas ao final do estudo. Sobre
este assunto, Migueles (2003, p. 2) afirma que:

"... reconhecer que a objetividade é impossível não significa ceder acriticamente ao subjetivismo. Por
outro lado, o esforço para evitar o subjetivismo não é e nem pode ser considerado como sinônimo de
positivismo (BOURDIEU, 1999), sob o risco de declararmos impossíveis as ciências humanas e sociais.
Como muito apropriadamente afirma Geertz (1989), reconhecer a impossibilidade da objetividade não
significa ceder à intuição e à alquimia, mas desenvolver métodos interpretativos capazes de nos
aproximar da realidade."

Neste trabalho, busca-se compreender a dinâmica do processo de surgimento e


legitimação das confrarias em uma realidade empresarial pré-selecionada e as contradições
que emergem quando esse fenômeno é confrontado com a lógica capitalista de uma empresa
multinacional. A preocupação central é identificar os fatores que determinam ou que
contribuem para a ocorrência do fenômeno, e validar algumas proposições levantadas na
63

problematização da pesquisa e subsidiadas pela fundamentação teórica que foi apresentada.


Na pesquisa social, o interesse maior está em compreender como as pessoas espontaneamente
se expressam e falam sobre aquilo que é verdadeiramente importante para elas, e como
pensam sobre suas ações e as dos outros. Portanto, dada a natureza do objeto, o método
qualitativo é a abordagem mais adequada para responder as questões de pesquisas enunciadas
neste trabalho.
A escolha por métodos qualitativos coloca alguns desafios para o pesquisador e impõe
certas premissas e princípios que precisam ser seguidos para garantir o rigor, a qualidade e a
relevância dos resultados que serão produzidos. Em recente estudo bibliométrico sobre a
produção brasileira no campo dos estudos organizacionais utilizando metodologia qualitativa,
Godoi e Balsini (2004) identificaram uma grande dificuldade da maior parte dos métodos que
foram adotados em delinearem-se diante da literatura. Em consonância com as críticas de
Vieira (2004) sobre o uso inadequado dos métodos nas pesquisas qualitativas, Godoi e Balsini
(2004) também afirmam que "a fragilidade da metodologia amorfa não deve ser confundida
com a flexibilidade da metodologia emergente típica da investigação qualitativa" (p. 13).
Considerando a inevitável carga de subjetividade fortemente presente na essência da
abordagem qualitativa, é somente através da clareza, da coerência e da riqueza de
detalhamento dos procedimentos de investigação que seremos capazes de atribuir certa
objetivação ao estudo e viabilizar uma possível replicação (GOULART e CARVALHO,
2005; VIEIRA, 2004). Por essa razão, o design da pesquisa qualitativa, entendido como "a
concepção global do investimento, desde a idéia inicial a respeito da temática de interesse e
elaboração de um projeto até a forma pela qual serão divulgados os resultados" (GOULART e
CARVALHO, 2005, p.125) passa a ter um papel fundamental para o sucesso do
empreendimento investigativo.

3.3.2 Sobre a opção pela etnografia como princípio de delineamento

"É bem conhecido que grupos não amam 'informantes', especialmente quando o transgressor ou traidor
pode ter, talvez, a pretensão de compartilhar os valores mais elevados desses grupos. As mesmas
pessoas que não hesitariam em exaltar o trabalho de objetivação como 'corajoso' ou 'lúcido', se ele é
aplicado a grupos estranhos ou hostis, estarão propensas a questionar as credenciais da lucidez especial
alegada por qualquer um que tente analisar seus próprios grupos. O aprendiz de feiticeiro que assume o
risco de investigar a feitiçaria e seus fetiches em seu estado nativo, ao invés de partir para tentar
64

descobrir em climas tropicais os confortantes fascínios da magia exótica, deve esperar ver a violência
que desencadeou virar-se contra si." (BOURDIEU, 1988a , p. 27-28).

Considerações iniciais

A etnografia envolve um esforço contínuo para situar fatos, eventos e conhecimentos


num contexto mais amplo e significativo. Mais do que simplesmente um ato de produção de
novas informações ou dados de pesquisa, a etnografia é a forma pela qual tais informações ou
dados são transformados num formato escrito ou visual. Por essa razão, a etnografia pode ser
vista como uma combinação de design de pesquisa, trabalho de campo e diversos outros
métodos de investigação para produzir relatos, descrições, interpretações e representações da
vida humana que sejam histórica, política e pessoalmente contextualizadas. Como a etnografia
pode ser considerada tanto um processo como um produto de pesquisa, a vida do etnógrafo
está imbricada em suas experiências de campo de tal forma que todas as suas interações
envolvem, em maior ou menor grau, um juízo de valor, um posicionamento moral e ético. Na
etnografia, a experiência da e pela prática guarda um significado especial, e o comportamento
humano é simultaneamente produzido e informado por essa significância. Os etnógrafos
mostram-se permanentemente travestidos: "outsiders usando roupas de insiders enquanto
adquirem gradualmente sua linguagem e seus comportamentos" (TEDLOCK, 2000, p. 455).
De acordo com Cavedon (2003), Goulart e Carvalho (2005) e Vieira e Pereira (2005),
a etnografia como estratégia de pesquisa pode ser caracterizada por:

i) Uma forte ênfase na exploração da natureza de um fenômeno social particular,


buscando adquirir uma compreensão detalhada de suas circunstâncias
específicas, sem preocupações de extrair dados para testes de hipóteses.

ii) Trabalhar prioritariamente com dados não-estruturados, dados que não foram
submetidos a algum processo de codificação com base em um conjunto
fechado de categorias analíticas.

iii) Concentrar-se numa análise sociocultural da unidade ou unidades investigadas,


neste último caso, normalmente limitadas a um número pequeno de casos. A
etnografia distingue-se de outras estratégias de pesquisa qualitativa pela
65

grande preocupação com aspectos não somente culturais e sociais mas também
históricos do contexto onde o fenômeno de interesse do pesquisador está
inserido.

iv) Analisar os dados por meio da interpretação explícita dos sentidos e das
funções da ação humana: o ato de escrever sobre o que foi investigado é tão
importante como a coleta e análise dos dados. Dessa forma, o observador
assimila as categorias inconscientes que animam o universo cultural
investigado, não eliminando, no entanto, o trabalho sistemático da coleta de
dados, nem a interpretação e integração das diversas evidências empíricas. O
intuito é recriar a totalidade vivida pelos participantes do grupo social
envolvido, apreendida pela intuição do pesquisador.

Ao contrário do que ocorre em outras ciências, e mesmo ocasionalmente nas ciências


sociais (na tradição positivista, em especial), que buscam de forma sistemática a isenção ou
ausência do pesquisador na coleta e na análise dos dados como meio de garantir uma posição
neutra e objetiva, condição essencial para legitimar sua cientificidade, o "jogo intrigante que a
etnografia possibilita, faz com que o pesquisador ora se impregne totalmente do ponto de vista
dos seus pesquisados, ora se afaste, de sorte a tornar possível a análise daquilo que foi
levantado no campo" (CAVEDON, 2003, p. 145). Fatos e processos aos quais o pesquisador
positivista dificilmente consegue ter acesso constituem parte do "dia-a-dia" com o qual a
etnografia está irrevogavelmente atrelada. Nesse sentido, a estratégia de pesquisa etnográfica
expande o universo de dados considerados importantes para coleta e análise. Por exemplo, o
universo simbólico (o domínio dos significados, por assim dizer) é fundamental para a
pesquisa etnográfica e ocupa uma parcela considerável de tempo do pesquisador, tanto na
formulação teórica como no processo de coleta de dados. Esse universo simbólico se
apresenta bastante problemático para o pesquisador positivista, seja no plano teórico ou no
plano empírico, sendo, assim, essencialmente ignorado.
Na análise da realidade social, apesar de, em termos do se que costuma chamar de
"senso comum", as pessoas possuírem apenas um conhecimento mais ou menos individual
sobre o mundo, um conhecimento fragmentário, restrito, frequentemente inconsistente e
parcialmente indefinido, esse mesmo conhecimento pode ser considerado suficiente para que
haja uma aquiescência das pessoas com sua realidade social (MASO, 2001). Isso ocorre
porque, segundo Schutz (apud MASO, 2001, p.137):
66

"... o mundo social é, desde o princípio, um mundo intersubjetivo e porque ... nosso conhecimento sobre
ele é, em diversas formas, socializado. Alem disso, o mundo social é experimentado desde o princípio
como um mundo significativo ... Nós normalmente sabemos o que o outro faz (na sua situação
biograficamente determinada), por quais razões ele faz isso, porque ele faz isso nesse momento
específico e nessas circunstâncias particulares."

Nesse sentido, nós construímos os motivos, objetivos, atitudes e personalidades típicos


dos "outros" (dos quais suas condutas objetivas, reais, são apenas uma instância ou exemplo)
de uma forma tal que torna essa construção suficiente para diversos propósitos empíricos. O
cientista social deve proceder no sentido de propor, em variadas situações, conceitos capazes
de apreender os padrões típicos de ação que se revelam de forma interrelacionada na realidade
social, exercidos por atores típicos que também se encontram interrelacionados. Ele forma
esse construtos objetivos, esses "tipos ideais", através do trabalho de construção dos
construtos que emergem a partir do senso comum. Esses construtos de "segunda ordem"
devem ser verificados para atestar sua validade (o princípio da consistência) e sua
compatibilidade com os conceitos de "primeira ordem" que a vida cotidiana espontâneamente
nos revela (o princípio da adequação e relevância) (MASO, 2001). Nesse processo, a
etnografia traz para o primeiro plano da atividade de pesquisa, o "lugar" da epistemologia e o
"lugar" do significado dos dados e da própria investigação, expressos na maneira como o
pesquisador seleciona os dados com os quais deseja trabalhar, como delimita seu contexto e
visualiza os relacionamentos entre os dados e os propósitos para os quais esses dados foram
coletados, e, sobretudo, na significância de suas leituras e análises, e em como testar esse
significado cientificamente.
Uma vez que o objetivo maior da etnografia como estratégia de pesquisa é produzir
um entendimento profundo da vida social, e não somente uma visão parcial e datada de
comportamentos ou ações, a etnografia tem, por definição, uma perspectiva temporal
tipicamente longitudinal, com eventuais cortes seccionais em momentos que se mostram mais
reveladores e significativos para o pesquisador. Quando se busca categorizá-la quanto ao nível
de conhecimento, a etnografia pode ser vista tanto como um método descritivo, porque
pretende descrever com profundidade fatos e aspectos do fenômeno que está sendo
interrogado, quanto como um método interpretativo, na medida em que o pesquisador aprecia
esse mesmo fenômeno à luz de seus pressupostos teóricos, de seus pontos de vista e de sua
"visão de mundo", conferindo-lhe significados particulares (VIEIRA e PEREIRA, 2005). A
67

interpretação é o objetivo prioritário da etnografia porque os significados, seguindo a


perspectiva socioconstrucionista, são entendidos como uma derivação do trabalho de
interpretação: a explicação etnográfica tem significado somente se ela for plausível diante do
nosso próprio conjunto de premissas, implícitas ou explícitas, acerca dos processos sociais.

Etnografia em organizações

Quando aplicado ao universo das organizações, a etnografia pode se tornar uma


poderosa ferramenta para revelar e explicar as formas pelas quais as pessoas, em cenários
particulares no local de trabalho, compreendem e interagem com as situações do dia-a-dia. O
objetivo da etnografia nesses casos em geral, é decodificar, traduzir e interpretar os
comportamentos e os sistemas de significados inculcados nos atores que ocupam, criam e
reproduzem o sistema social que está sendo analisado.
A etnografia em organizações preocupa-se, predominantemente, com aquelas relações
sociais que se localizam e se fundem em torno das atividades desempenhadas nas
organizações, tipicamente voltadas para o atingimento de objetivos conforme o imperativo da
eficiência característico das organizações modernas. As regras, estratégias e significados que
operam sob o disfarce dessas posturas "corporativas" aparentam ser diferentes daquelas que
fazem parte do cotidiano da vida social, da vida "comum". Contudo, uma análise mais
aprofundada e cuidadosa da realidade nas organizações nos revela uma situação oposta:
ambas as posturas estão propensas a serem bastante congruentes entre si. Vieira e Pereira
(2005) expressam opinião semelhante quando afirmam que as contribuições da etnografia
para o estudo das organizações são evidentes, mas

"... é necessário salientar que algumas das interações sociais que ocorrem no local de trabalho têm sua
origem no universo simbólico compartilhado pelos indivíduos e grupos em outras esferas de sua vida,
como a casa, a família, os círculos de amigos, os locais que frequentam no convívio social etc." (p.
229).

É certo que as pessoas interagem entre si nas organizações conforme esse


"subconjunto de significados e ações" durante o exercício de uma atividade especializada. No
entanto, no âmbito das complexas sociedades de hoje, essa postura tornou-se formalizada e
legitimada, elevada a um papel central na ordem social: nós nos percebemos atualmente como
parte de uma grande "sociedade organizacional".
68

Ainda que não seja objetivo deste trabalho oferecer uma definição específica de
"regras", a centralidade desse conceito pode ser abordada numa perspectiva geral, não
determinística. Em linha com o pensamento de Wittgenstein - a quem Bourdieu reconhece ter
sempre recorrido nos momentos mais difíceis, "quando se trata de questionar coisas tão
evidentes como 'obedecer a uma regra' ... ou quando se trata de dizer coisas tão simples (e, ao
mesmo tempo, quase inefáveis) como praticar um prática" (BOURDIEU, 2004b, p.21) - o
significado de uma regra somente poderá ser entendido quando obtido dentro de um contexto,
onde regras são consultadas para interpretar aquilo que é percebido como ação intencional: ao
invés de predizer comportamentos, a regra é empregada, na verdade, como um instrumento de
interpretação do qual o observador faz uso para tornar inteligível e coerente os
comportamentos com os quais se depara.
Existe, aqui, uma postura fundamentalmente reflexiva. Membros de uma sistema
social produzem regras através dos mesmos mecanismos dos quais lançam mão para definir o
significado e aplicabilidade dessas regras: como numa "via de mão-dupla", da mesma forma
que uma situação é consultada ou considerada para construir o significado de uma regra, as
regras são utilizadas para definir o significado de uma ação. Emerge daí, a importância
fundamental da noção de habitus para o entendimento que se pretende aqui para o conceito de
"regras", o qual está intimamente ligado à analogia do comportamento social como um tipo de
"jogo". Nessa perspectiva, as regras existem para sugerir estratégias, as quais, por sua vez,
inspiram ações que sejam efetivamente gratificantes para o jogador, pour le sport
(BOURDIEU e WACQUANT, 1992).
Certamente, um interpretação etnográfica das formas de comportamento e de
pensamento no âmbito geral de uma sociedade será diferente de uma descrição dessas
relações quando circunscritas ao espaço de uma organização. Mesmo quando as organizações
são complexas, um traço característico das organizações na modernidade, elas não apresentam
a mesma complexidade das sociedades pelo fato de que as organizações formais são, ao
mesmo tempo, parciais (isto é, são "recortes" ou "subconjuntos" da sociedade) e
especializadas (orientadas para o atingimento de objetivos específicos): todos os
relacionamentos observáveis são, ao menos a princípio, racionalizados em termos do produto
ou produtos finais que representam a razão de existir da organização; nessas organizações
todos possuem um papel, um status formal, explícito, frequentemente definido através dos
documentos oficiais da organização. As pessoas estariam imersas, portanto, em interações
mútuas com base nesses papéis formais, as quais seriam supostamente diferentes de como
essas mesmas pessoas se comportariam em situações completamente distintas e separadas do
69

espaço organizacional: é como se a consciência da vida social "cotidiana" fosse colocada num
estado de "suspensão" ou "supressão" na medida em que o loci da interação entre as pessoas
se desloca para o espaço organizacional. No entanto, quanto mais as pessoas interagem entre
si no interior desse espaço organizado e formalizado, maior é a influência do mundo social
"exterior", que se infiltra de forma silenciosa mas poderosa nas relações sociais dentro das
organizações.
A etnografia em organizações permite revelar o quanto é particularmente dinâmica
essa dicotomia "interior"/"exterior", repleta de tensões de natureza sexual, religiosa, étnica,
social e estética, que talvez possa ser melhor concebida como um esforço permanente
daqueles que controlam as organizações para acentuar e enfatizar as experiências e
significados representativos de suas culturas ou de seus extratos sociais. Visto que as
organizações são normalmente centralizadas em torno de interesses de um pequeno segmento
de seus membros, qualquer discussão sobre cultura organizacional deve-se ocupar
obrigatoriamente da análise das relações de poder e dominação, explícitas ou implícitas, que
permeiam as organizações.
Ao engajarem-se nos mesmos processos sociais, confrontando as mesmas estruturas
organizacionais, tecnológicas e administrativas, e estando, assim, imbricados nas mesmas
relações de poder e controle, pesquisadores que adotam a etnografia como estratégia de
pesquisa conseguem ter acesso e/ou adquirir alguns tipos de dados que, devido à sua natureza
subjetiva, dificilmente estariam disponíveis através de outros modos de investigação, como,
por exemplo, através de questionários ("surveys") ou entrevistando indivíduos fora de seu
contexto habitual. Segundo Smith (2001, p. 229):

"... um dos objetivos mais importantes da pesquisa em ciências sociais sobre o trabalho deve ser não
apenas descrever mas explicar e determinar como as organizações de trabalho modernas modificam as
estruturas de oportunidade, de que maneira podem servir como veículos de desigualdade, e como
transformam a natureza do poder e do controle."

Se ficarmos restritos a conversas com trabalhadores no final de um dia de trabalho, ou


com gerentes e diretores cujos relatos sobre as causas e consequências de determinadas
situações ou arranjos no ambiente de trabalho serão inevitavelmente seletivos, corremos o
risco de obter uma visão parcial do que "esta lá" efetivamente, daquilo que "transpira" nas
complexas relações sociais que ocorrem no interior das organizações.
70

3.3.3 Sobre as técnicas de coleta de dados

"Por meio de um jogo de palavras heideggeriano, poder-se ia dizer que a disposição é exposição.
Justamente porque o corpo está (em graus diversos) exposto, posto em cheque, em perigo no mundo,
confrontado ao risco da emoção, da ferida, do sofrimento, por vezes da morte, portanto obrigado e levar
o mundo a sério (e nada mais sério do que a emoção, que atinge o âmago dos dispositivos orgânicos),
ele está apto a adquirir disposições que constituem elas mesmas abertura ao mundo, isto é, as próprias
estruturas do mundo social de que constituem a forma incorporada. A relação com o mundo é uma
relação de presença no mundo, de estar no mundo, no sentido de pertencer ao mundo, de ser possuído
por ele, na qual nem o agente nem o objeto são colocados como tais. [...] Aprendemos pelo corpo."
(BOURDIEU, 2001, p. 171-172).

Observação sistemática: da observação participante à observação da participação

Na sua essência, o método etnográfico de coleta de dados é viver entre aqueles que
são, efetivamente, os "dados", ou seja, é tentar aprender as regras que os sujeitos aplicam no
cotidiano de suas vidas, dentro e fora das organizações, e interagir com eles com uma
frequência e período de tempo suficientes para compreender como e porque eles constroem
seu mundo social, de forma a poder converter, ao final do trabalho de investigação, as leituras
e interpretações em explicações capazes de serem comunicadas a outras pessoas ou mesmo
aos próprios sujeitos que foram investigados (CAVEDON, 2003; DENZIN e LINCOLN,
2000; TEDLOCK, 2000; VIEIRA e PEREIRA, 2005). Mas a etnografia é mais do que uma
coleção de mecanismos para coletar e escrever sobre os dados que se revelam para o
pesquisador, é um método de observação dos componentes da estrutura social e dos processos
através dos quais interagem. Todos os mecanismos aqui descritos devem ser complementados
e adequadamente subsidiados por conceitos de teoria social, particularmente no domínio dos
significados e da ação, pois são eles que dão "textura" aos processos sociais registrados a
partir do trabalho de campo. A teoria social fornece, portanto, os fundamentos necessários
para que uma análise etnográfica, de natureza essencialmente interpretativa, possa ser
conduzida.
No caso da etnografia em organizações, a teoria é a ferramenta utilizada para atenuar
os efeitos dos preconceitos e predisposições culturais que trazemos conosco quando
estudamos organizações que existem no mesmo espaço cultural global no qual habitamos,
uma vez que a condição de neutralidade absoluta seria incompatível com os pressupostos
71

epistemológicos do paradigma interpretativista/socioconstrucionista que ampara a etnografia.


Assim, não é suficiente para a prática da etnografia ser um simples participante ou
observador, no sentido mais rudimentar do termo, coletando e organizando materiais
adequadamente, mas ter em vista, sobretudo, que o trabalho de pesquisa precisa também ser
desenvolvido a partir de um conceito consciente de cultura e de suas influências tanto sobre o
objeto como sobre o sujeito objetificante.
Nessa perspectiva, os processos sociais não podem ser capturados, empiricamente
falando, através de deduções hipotéticas, covarianças e graus de liberdade... Pelo contrário,
para entendê-los é necessário se colocar no interior do mundo daqueles que o produzem
efetivamente, construindo, assim, uma interpretação sobre as construções que outras pessoas
fazem daquilo que interessa a elas e a seus semelhantes: nuances e individualidades são tão
importantes nesse esforço quanto o comportamento frequente e os padrões de regularidade, as
variáveis que são normalmente selecionadas pelos pesquisadores para análise.

A entrevista narrativa e as histórias de vida

Como técnica de coleta de dados, a entrevista narrativa é considerada uma forma de


entrevista não-estruturada, de profundidade, mas, porém, com algumas características
específicas. Segundo Jovchelovitch e Matin (2002), por trás do conceito da entrevista
narrativa existe uma crítica do esquema convencional "pergunta-resposta" presente na maioria
dos tipos de entrevistas conhecidos. O esquema de narração substitui o esquema pergunta-
resposta, onde existe uma forte influência do entrevistador, seja na seleção dos temas e
tópicos que serão tratados, seja no sequenciamento ou na verbalização das perguntas ao
utilizar sua própria linguagem. A entrevista narrativa, por definição, evita uma pré-
estruturação da entrevista, insistindo numa "postura de expectador/ouvinte" de forma a
garantir um resultado menos "imposto", onde a influência do entrevistador seja a menor
possível. Para tal, a entrevista narrativa emprega um tipo específico de comunicação cotidiana
- contar e escutar histórias - permitindo que a perspectiva do entrevistado se revele de forma
mais natural e espontânea, utilizando sua própria linguagem para narrar os acontecimentos
que foram relevantes para ele.
Jovchelovitch e Matin (2002) sugerem um roteiro simplificado para realizar
entrevistas narrativas composto de seis passos:
72

1. Preparação: exploração do campo e formulação de tópicos iniciais fazendo uso


exclusivamente da própria linguagem do entrevistado.
2. Início: começar gravando os depoimentos e apresentar os tópicos iniciais.
3. A narração central: não fazer perguntas diretas, apenas encorajamento não-
verbal.
4. Fase de questionamento: utilizar apenas questões imanentes, isto é, questões
que examinem temas, tópicos e relatos de acontecimentos que surgem durante
a narração trazidos pelo informante.
5. Fala conclusiva: interromper a gravação e continuar a conversação informal.
6. Elaborar um protocolo para registrar as memórias da fala conclusiva.

Dada a sua natureza autêntica e espontânea, a técnica de entrevista narrativa parece


bastante adequada para os objetivos pretendidos neste trabalho, em especial para revelar as
características constitutivas do habitus dos participantes da confraria.
Todas as entrevistas realizadas foram transcritas e revisadas contra o material original
em audio para assegurar não apenas a veracidade dos textos transcritos, mas, principalmente,
para revisitar os depoimentos e capturar elementos subjetivos subjacentes aos discursos.
Os tópicos iniciais que serviram como preparação para a realização das entrevistas
estão disponíveis nos Anexos deste trabalho .

A pesquisa documental e a utilização de registros visuais

A pesquisa documental é realizada através do exame de materiais que ainda não


receberam um tratamento analítico ou que ainda podem ser reexaminados para permitir uma
interpretação nova ou complementar. Esse tipo de pesquisa facilita o estudo de objetos aos
quais não é possível ter acesso físico, além de ser uma fonte “não-reativa” e especialmente
indicada para investigações em longos períodos de tempo. Segundo Gil (1999), os
documentos podem ser agrupados em duas categorias para fins de pesquisa social. De um
lado, os documentos de primeira mão, assim chamados por não terem sido submetidos a
qualquer tratamento analítico, tais como documentos oficiais, reportagens de jornal, cartas,
contratos, diários, filmes, fotografias, gravações etc. Do outro lado, existem os documentos
que Gil (1999) classifica como de segunda mão por já terem sido, de alguma forma,
73

analisados. Nessa categoria, incluem-se os relatórios de pesquisa, relatórios de empresas,


tabelas estatísticas etc.
A coleta de dados através de fotografias é um técnica muito comum em pesquisas
etnográficas, e foi frequentemente utilizado por Bourdieu nas suas pesquisas desde os seus
primeiros estudos na Argélia e nos arredores de Béarn, sua região de origem. No meu
trabalho, a fotografia também terá papel importante, seja através de fotografias coletadas
como documentos de primeira mão (registros visuais encontrados em publicações internas,
biografias, ou simplesmente produzidas por outras pessoas durante eventos internos da
empresa), seja através de fotografias feitas pelas "minhas próprias mãos". Neste último caso,
existe, seguramente, uma enorme carga de significados envolvida: trata-se da situação típica
onde o "olhar" do pesquisador está fortemente presente nos objetos que foram selecionados e
na forma como foram fotografados, ou, parafraseando uma expressão de Wacquant (2004b,
p.399), quando se faz uso da "sabedoria do olho etnográfico" ("the wisdom of the
ethnographic eye").
Neste trabalho, todos esse elementos serão utilizados como uma importante fonte de
informações sobre a história da empresa e eventos marcantes que aconteceram na sua
trajetória no Brasil e no exterior, sobre a dinâmica dos negócios, estratégias, processos
gerenciais, normas e valores institucionais, além de evidências sobre fatos relevantes que
tenham ocorrido na empresa ao longo do período que será investigado.

3.3.4 Sobre o tratamento analítico dos dados: analisando narrativas

"... o discurso do informante deve suas propriedades mais secretas ao fato de ser o produto de uma
disposição semiteórica, inevitavelmente influenciada por qualquer interrogatório instruído. As
racionalizações produzidas a partir desse ponto de vista, as quais não são mais do que aquelas da ação,
sem serem as da ciência, encontram-se com e confirmam as expectativas do formalismo gramatical,
ético e jurídico para o qual sua própria situação dirige o observador. O relacionamento entre informante
e antropólogo é, até certo grau, análogo a um relacionamento pedagógico, no qual o mestre deve trazer
para o estado de clareza, com a finalidade de transmissão, os esquemas inconscientes da sua prática."
(BOURDIEU, 1977, p. 18). [Grifos do autor]

Existe um reconhecimento cada vez maior entre os adeptos de métodos qualitativos da


importância e utilidade do papel que o contar histórias desempenha na construção dos
fenômenos sociais e da análise de narrativas como uma opção de pesquisa etnográfica.
74

Narrativas passaram a ser vistas recentemente como uma das formas fundamentais através das
quais as pessoas organizam seu entendimento sobre o mundo: o ato de narrar é, sobretudo, um
meio importante para compreender a experiência passada e compartilhá-la com outros
(CORTAZI, 2001).
Grande parte das narrativas falam sobre coisas que, de alguma forma, interessam tanto
àquele que narra quanto àquele que ouve. Dessa forma, uma análise cuidadosa dos tópicos,
conteúdo, estilo, contexto e descrição das narrativas contadas por indivíduos ou grupos
submetidos a um estudo etnográfico deve fornecer ao pesquisador, ao menos a princípio,
acesso a como os narradores compreendem o significado de eventos importantes em suas
vidas, comunidades ou contextos sociais e culturais.

"Contar a história de uma vida talvez seja um dos núcleos da cultura, essas delicadas teias de
significados que ajudam a organizar nossas formas de viver. Essas histórias - ou narrativas pessoais -
conectam o mundo interior com o mundo exterior, falam ao subjetivo e ao objetivo, e estabelecem os
limites das identidades (do que alguém é e do que alguém não é). Histórias de vida misturam o 'ser
bruto', incorporado e emocional, com o 'eu consciente', racional e irracional. Elas criam vínculos através
de fases da vida e através de grupos de gerações, revelando mudanças em uma cultura. Elas ajudam a
estabelecer memórias coletivas e comunidades imaginadas. Elas ligam história cultural com biografia
pessoal. E elas se tornam construções morais, contos sobre virtudes e defeitos, os quais podem atuar
como guias a orientar nossas vidas éticas" (PLUMMER, 2001 , p. 395).

É através da narrativa que as pessoas lembram eventos importantes que aconteceram


em suas vidas, conseguindo colocar suas diversas experiências em uma sequência,
encontrando explicações possíveis para esse ordenamento, e, terminam, de certa forma,
envolvendo-se com a cadeia de acontecimentos que moldam a vida social e individual. As
histórias contadas por membros de comunidades, grupos sociais ou subculturas são feitas com
palavras e sentidos específicos às suas experiências e ao seus modos de vida. Esse léxico
constitui suas "visões de mundo" particulares, preservando sua autenticidade e intensidade
(JOVCHELOVITCH e BAUER, 2002).

3.4 O trabalho de construção do objeto

"Quando defrontados com o desafio de estudar um mundo com o qual estamos ligados por toda a sorte
de investimentos específicos, inextricavelmente intelectuais e 'temporais', nosso pensamento automático
e imediato é fugir; nossa preocupação em evitar qualquer suspeita de preconceito nos leva a tentar negar
75

nós mesmos como sujeitos 'viesados' ou 'informados', automaticamente suspeitos de utilizar as armas da
ciência na busca de interesses pessoais, de abolir o 'eu', mesmo como sujeito cognoscitivo, através do
recurso aos procedimentos mais impessoais e automáticos, aqueles, que, ao menos nessa perspectiva
(que representa a da 'ciência normal'), são os menos questionáveis." (BOURDIEU, 1988a, p. 6).

Para Bourdieu, não há como omitir-se ao trabalho de construção do objeto e às


responsabilidades que essa atividade impõe. Não existe objeto que não implique um ponto de
vista, ainda que seja um objeto produzido com a intenção de abolir, por assim dizer, o ponto
de vista de alguém (ou seja, o viés desse alguém) com a pretensão de superar a perspectiva
parcial naturalmente associada com a ocupação pelo pesquisador de uma posição no interior
do espaço que está sendo estudado. Mas são justamente as operações de pesquisa, quando nos
obrigam a articular e formalizar os critérios implícitos na experiência que temos acerca do
mundo social, que têm o efeito de tornar possível a verificação lógica de suas próprias
premissas (BOURDIEU, 1988a).
Embora Bourdieu não forneça um único caminho metodológico para alcançar a
postura reflexiva apropriada, ele identifica, em vários de seus relatos, as dimensões essenciais
para realizar o tipo de sociologia reflexiva que ele tinha em mente (BOURDIEU, 1988a;
BOURDIEU, CHAMBOREDON e PASSERON, 2004; BOURDIEU e WACQUANT, 1992).
O ponto principal, e uma preocupação constante de Bourdieu, é a necessidade de controlar a
relação do pesquisador com o objeto de investigação, de forma que a posição do pesquisador
(tanto no campo intelectual como no espaço social) não seja projetada inconscientemente
sobre o objeto. É preciso, portanto, identificar e controlar os valores, disposições, atitudes e
percepções herdados da origem social (ou seja, o habitus) que o pesquisador traz ou impõe ao
seu objeto de investigação. Isso significa cultivar uma consciência crítica da localização social
do pesquisador no seu contexto histórico particular, e de como sua trajetória de vida pode
moldar e influenciar seu esforço de investigação. O pesquisador, de acordo com Bourdieu
(BOURDIEU, 1988a), será mais bem sucedido no seu trabalho como cientista social na
medida em que seja capaz de identificar essas disposições e interesses pessoais que se
infiltram nos próprios conceitos dos quais se apropria ou que desenvolve, na escolha dos
tópicos de pesquisa que mais cativam seu interesse, e nas suas opções metodológicas.
Pelo fato de que, no momento da observação ou experimentação, o pesquisador
estabelece inevitavelmente uma relação com o objeto que, enquanto relação social, nunca é
capaz de gerar um conhecimento puro (tal como nas ciências exatas e biológicas), os dados
lhe são apresentados como configurações vivas e singulares que tendem a se impor como
76

estruturas do objeto. Essas opiniões primeiras sobre os fatos sociais revelam-se como um
conjunto "frouxo", falsamente sistematizado, de julgamentos, de prenoções e noções comuns,
objetos pré-construídos pela e para a prática (BOURDIEU, CHAMBOREDON e
PASSERON, 2004).
Particularmente nas ciências sociais e humanas, onde a separação entre o senso
comum (doxa) e o discurso científico é mais imprecisa, se comparada à "ciência normal", a
vigilância epistemológica impõe-se como uma necessidade fundamental: todas as técnicas de
objetivação devem ser utilizadas para possibilitar uma ruptura com a forte influência imposta
pela linguagem corrente, ou seja, pela linguagem comum.
No entanto, o rigor científico não nos obriga a renunciar à capacidade pedagógica e
heurística que os esquemas analógicos de explicação ou compreensão extraídos da linguagem
comum podem oferecer, com a condição de que sejam utilizados de forma consciente e
metódica. Segundo Bourdieu (BOURDIEU, CHAMBOREDON e PASSERON, 2004), a
linguagem corrente, pelo simples fato de ser "comum", oculta em seu vocabulário e sintaxe
uma "filosofia petrificada do social" (p. 32), pronta para ressurgir na forma de expressões ou
palavras e sem perderem a credibilidade que lhes são conferidas pela sua própria origem.
Ignorar a linguagem comum em detrimento de uma exclusividade pelo discurso científico,
assim chamado por ser uma linguagem "perfeita", inteiramente construída e formalizada, é
correr o risco de desviar-se da análise mais urgente, aquela que busca recuperar as palavras
comuns no interior do sistema de relações onde elas existem e submetê-las à definição
depurada e à crítica metódica.
Enfim, a força da análise baseia-se, precisamente, em práticas que sejam habilmente
contextualizadas, isto é, na capacidade de desconstruir problemáticas impostas para
reconstruí-las sempre com referência à experiência dos agentes sociais.
Parte do meu esforço de análise, portanto, será dedicado ao trabalho de construção das
confrarias como um objeto de estudo, um termo retirado, não por acaso, da linguagem
comum, com todas as implicações metodológicas aqui descritas. A necessidade de construir
novos objetos formados a partir do vocabulário comum, desde que seja uma construção
controlada e consciente de seu distanciamento ao real e de sua ação sobre o real, justifica-se
na medida em que esses novos objetos também constroem novas relações entre os aspectos
das coisas e levantam questões que não são tão aparentes, ou que não se colocam
objetivamente aos sujeitos, ou que não estejam imediatamente disponíveis para a abordagem
positivista tradicional.
77

3.5 Estratégias para “operacionalização” dos conceitos bourdieusianos

"... o trabalho de construção do objeto determina um conjunto finito de propriedades pertinentes,


estabelecidas hipoteticamente como variáveis efetivas, cujas variações são associadas com as variações
do fenômeno observado, e define, desse modo, a população de indivíduos construídos, eles mesmos
caracterizados pela posse dessas propriedades em graus diversos. Essas operações lógicas produzem um
conjunto de efeitos que precisam ser articulados para evitar que sejam registrados inconscientemente na
forma de uma afirmação (que corresponde ao erro fundamental do positivismo objetivista). [...] Esse
efeito não pode ser descuidado no caso de teste de propriedades que são oficialmente ou tacitamente
excluídas de todas as taxonomias, sejam oficiais e institucionalizadas ou não-oficiais e informais, tais
como denominações religiosas ou preferências sexuais (heterosexualidade ou homesexualidade), ainda
que possam ser associadas com as variações visíveis na realidade observada (não há dúvida de que é
esse o tipo de informação que as pessoas têm em mente quando denunciam as tendências de 'inquérito
policial" da investigação sociológica)." (BOURDIEU, 1988a, p. 9-10). [Grifos do autor]

Em várias passagens de sua obra, Bourdieu adverte que as competências mais


fundamentais e distintas que possuímos como seres sociais são os conhecimentos e
habilidades incorporados que operam abaixo do nível do discurso e da consciência, e que,
num sentido personificado, emergem da interpenetração recíproca entre o "ser" e o mundo
(BOURDIEU, 1977; 1984; 1990; BOURDIEU e WACQUANT, 1992).
Se é verdade que nossa presença no mundo opera através do que Bourdieu chama de
"conhecimento pelo corpo" (BOURDIEU, 2001, p. 157), logo, para entrar num dado universo
como analistas sociais é necessário adquirir conhecimento sobre esse universo através dos
nossos corpos. Precisamos ter acesso, interrogar e problematizar as propriedades pertinentes,
categorias práticas, sensibilidades e habilidades que os "nativos" desenvolveram na e para a
prática ao longo do tempo (WACQUANT, 2004b). Precisamos elucidar a illusio, "essa
maneira de estar no mundo, de estar ocupado pelo mundo fazendo com que o agente possa ser
afetado por uma coisa bem distante, ou até presente, embora participando do jogo no qual está
empenhado." (BOURDIEU, 2001, p. 165, grifos do autor).
Um bom exemplo dessa postura é encontrado no livro "Corpo e Alma"
(WACQUANT, 2002a), um relato etnográfico que serviu como grande fonte inspiradora no
meu trabalho, onde Wacquant fornece uma demonstração viva e intensa da reflexividade
levada ao extremo através do estudo da produção social do habitus pugilístico. Trata-se, de
fato, de uma radicalização empírica da noção de habitus, e como esse conjunto de desejos,
forças e habilidades socialmente constituídas, permeadas por elementos de natureza cognitiva,
emocional, estética e ética, são moldados e operados concretamente.
78

Não foi por acaso, portanto, que o termo operacionalização aparece entre aspas no
título deste capítulo. Minha intenção é alertar que o propósito primordial da boa teoria social é
servir como instrumento para a produção de novos objetos, detectar novas dimensões de
análise e dissecar mecanismos existentes no mundo social que, de outra forma, não seríamos
capazes de compreender. Bourdieu (BOURDIEU, 1988a; 2001; BOURDIEU e
WACQUANT, 1992) nos lembra que existem duas maneiras de conceber e utilizar a teoria
social: o modo "escolástico", onde os conceitos são decompostos, "polidos" e retrabalhados
para produzir categorias teóricas a serviço de uma exposição ritualística, e o modo
"generativo", onde a teoria é desenvolvida para ser colocada "em ação" na pesquisa empírica,
e provar e expandir sua capacidade heurística a partir da confrontação sistemática com a
realidade socio-histórica dos fenômenos.
Por essa razão, qualquer tentativa de operacionalizar os conceitos centrais da teoria
social de Bourdieu (habitus, campo e capital) deve levar em conta que esses conceitos são
"generativos" e relacionais por excelência, constituídos por vínculos sociais em diferentes
estados (incorporados, objetivados ou institucionalizados), cujo poder explicativo reside
precisamente quando utilizados na prática, relacionalmente uns com os outros.
Neste trabalho, pretendo fazer uso de todos os instrumentos metodológicos aqui
descritos para identificar o conjunto de propriedades pertinentes e os mecanismos de
produção e reprodução dos arranjos sociais associados ao fenômeno da confraria na
organização que está sendo investigada. Os conceitos de habitus, capital e campo serão
"operacionalizados", com todas as ressalvas já feitas, utilizando algumas fontes disponíveis na
literatura para sinalizar os "temas" que servirão como ponto de partida das operações de
coleta de dados e das análises e interpretações posteriores.

3.5.1 “Operacionalizando” a noção de habitus

O ponto de partida para a aplicação da noção de habitus na pesquisa empírica é aceitar


e compreender o conceito como a expressão de um "sistema" de disposições duráveis. A
palavra "sistema" é de fundamental importância nessa definição, uma vez que permite refutar
a alegação frequente feita por boa parte dos críticos de Bourdieu quanto ao caráter
excessivamente determinístico da noção de habitus: dois irmãos podem ter adquirido
disposições e capitais similares ao longo de processos de socialização semelhantes, mas a
maneira pela qual essas disposições são organizadas e internalizadas em um sistema podem
79

ser bem diferentes, gerando esquemas de percepção e apreciação não necessariamente


análogos, constituindo, assim, habitus diferentes.
Apesar de serem duráveis, nem todas as disposições são efetivadas ou colocadas em
prática ao mesmo tempo, mas continuam a existir como potenciais, prontos para serem
animados, e sua efetivação dependerá, em grande parte, da natureza da situação com a qual o
agente é confrontado (o contexto). A efetivação desigual das disposições tem um efeito direto
na evolução do habitus, já que o habitus é uma construção intérmina. Emerge daí, talvez, um
dos pontos cruciais para o seu entendimento: o habitus nunca é, de fato, constituído "de uma
vez por todas" mas evolui através dos ajustamentos às condições da ação, as quais, por sua
vez, também estão em constante mudança.
Na pesquisa de campo, as disposições serão "operacionalizadas" como história
incorporada, como a presença ativa de todo um passado, como princípios generativos e
organizadores de práticas, como potencialidades, uma "forma de ser", um estado habitual,
tendência ou inclinação (BOURDIEU, 1977; 1990; 2004), cujas propriedades e características
serão reveladas a partir do trabalho de construção teórico-empírica do objeto confraria e
servirão como base para as elaborações acerca desse habitus específico produzidas a partir do
meu relato pessoal, das entrevistas narrativas sobre as histórias de vida dos atores que
corporificam o fenômeno, e de documentos, fotografias e vídeos.
Um habitus específico, quando associado a um campo particular pode produzir um
relacionamento de "encanto" ou "fascínio" com o mundo e com o campo em questão, e suas
respectivas regras e apostas que estão em jogo. Esse encantamento surge quando um
constrangimento ou obstáculo cultural é transformado numa inclinação "natural", quando se
possui o habitus "certo" no campo "certo". Parafraseando uma citação metafórica de Bourdieu
(BOURDIEU e WACQUANT, 1992, p. 127-128) sobre a noção de habitus: "o peixe dentro
d'água não sente o peso da água”; toma como certo, único e natural tudo aquilo que está ao
alcance dos seus sentidos.
Todas as questões levantadas neste capítulo foram consideradas tanto na escolha do
critério de seleção dos dados pertinentes como nas análises e interpretações que serão
conduzidas sobre os diversos registros etnográficos coletados.

3.5.2 “Operacionalizando” a noção de campo e formas de capital


80

De acordo com Bourdieu, um campo é caracterizado tanto como um conjunto


padronizado de práticas que sugere uma ação competente de conformidade com regras e
papéis, como um palco ou arena de disputas no qual atores, dotados de certos capitais
relevantes para o campo, tentam manter ou melhorar sua posição relativa. Cada campo é
baseado num sistema historicamente gerado com base em significados compartilhados. As
fronteiras de campo somente podem ser identificadas e investigadas através da pesquisa
empírica, e indicam onde cessam os efeitos mais fortes do campo e onde as apostas do jogo
perdem seu impacto ou interesse para os atores. Campos são contextos sociais, imbricados
historicamente mas sem deixarem de estar em permanente mudança, no interior dos quais as
práticas acontecem.
Neste trabalho, a confraria será tratada como um conjunto de atores que compartilham
um habitus específico e realizam estratégias individuais em consonância com as regras "em
jogo" no campo. Essas regras são definidas com base no volume e na distribuição específica
das espécies de capital mais valiosas para assegurar a legitimidade do exercício do poder no
campo e a autoridade para definir seus próprios princípios hierarquizadores, eventualmente
divergentes dos objetivos da organização.
O método consiste em analisar o espaço das organizações como um campo onde as
práticas organizacionais são estruturadas relacionalmente em torno do volume ("+/-") e da
estrutura de distribuição das formas de capital, com suas respectivas propriedades, que serão
analisadas por meio de oposições binárias expressas na forma de indicadores tais como
"distintivo"/"não distintivo", "alta extração social"/"baixa extração social", "membro"/'não-
membro" e "legitimado"/"não legitimado". A natureza dinâmica do campo se expressa nas
suas interseções permanentes com o contexto marco: de um lado, a sociedade, do outro, o
mercado, distintos em suas lógicas de funcionamento e de ordenação da realidade . O valor de
cada elemento no sistema é definido, assim, em relação aos outros elementos desse mesmo
sistema. Certas práticas organizacionais obtêm legitimidade em oposição a outras.
Legitimação e dominação não são pensados em termos de estilos ou idéias particulares, mas
concebidos com base em práticas contrastantes, originadas a partir de habitus diferentes.
Indivíduos socializados diferentemente tendem a internalizar disposições adquiridas e
competências desenvolvidas ao longo do tempo que produzem diferentes "filtros" na relação
do habitus com as diferentes formas de capital. Fica evidenciado assim, o papel mediador da
noção de habitus: esses "filtros" definem como as potencialidades serão efetivamente úteis e
aproveitadas nas disputas pelas "apostas" que estão "em jogo".
81

3.6 Limitações do método

"A partir do momento em que observamos o mundo social, introduzimos em nossa percepção um viés
que se deve ao fato de que, para falar do mundo social, para estudá-lo a fim de falar sobre ele, etc., é
preciso se retirar dele. O que se pode chamar de viés teoreticista ou intelectualista consiste em esquecer
de inscrever, na teoria que se faz do mundo social, o fato de ela ser produto de um olhar teórico. Para
fazer uma ciência adequada do mundo social, é preciso, ao mesmo tempo, produzir uma teoria
(construir modelos, etc.) e introduzir na teoria final uma teoria da distância entre a teoria e a prática."
(BOURDIEU, 2004b , p. 115).

Neste capítulo pretendo indicar alguns tópicos práticos que surgiram ao longo do meu
trabalho de campo que serão, possivelmente, bastante relevantes para aqueles interessados em
realizar etnografia em organizações. Esses temas são baseados na minha experiência pessoal,
e não pretendo que sejam mais do que um esquema de orientação o qual será, pela própria
natureza do empreendimento etnográfico, inevitavelmente incompleto.
De uma maneira geral, os antropólogos alegam que somente através da participação
direta na vida e nos assuntos do grupo social objeto de seu interesse, o etnógrafo será capaz de
compreender as ações e os significados percebidos e construídos por aqueles que compõem tal
grupo. Na maior parte dos casos, no entanto, os pesquisadores em organizações atuam como
observadores de participantes. No caso específico da etnografia em organizações, é possível
que o pesquisador precise fazer a opção entre conduzir a pesquisa como empregado de uma
empresa ou como observador externo.
O pesquisador que opta pela participação direta, espera que, por “ser” o que os
membros da organização são, estará apto a captar de modo mais preciso os processos sociais e
a estrutura da organização do que se fosse apenas um observador externo. Embora exista uma
lógica razoável nesta abordagem, as diferenças entre fazer a pesquisa como observador
externo e como participante direto são complexas e deveriam ser consideradas antes de se
adentrar o campo de pesquisa. Rosen (1991) identifica quatro fatores fundamentais para se
fazer a escolha mais adequada: conhecimento progressivo, sigilo organizacional, confiança e
definição/segregação de papéis. Esses fatores pareceram-me bastante relevantes para as
situações de pesquisa com as quais fui confrontado (e cuja validade pude comprovar no meu
próprio esforço de investigação), e serão exploradas a seguir, com algumas adaptações.
O conhecimento progressivo, segundo Rosen (1991), consiste na habilidade técnica,
nos sentimentos e nas emoções resultantes do ato de executar um tipo específico de trabalho.
Tal conhecimento não emerge de modo unilateral, unicamente a partir do desempenho das
82

atividades relacionadas a uma tarefa determinada, mas também provêem da participação nas
relações sociais nas quais a tarefa está imbricada. Não resta dúvida que o observador externo
tem menos acesso ao conhecimento progressivo imediato do que o participante direto. Por
outro lado, o conhecimento do participante não pode e não está necessariamente limitado à
área de desempenho de suas tarefas: este conhecimento também resulta da participação em
relações sociais no âmbito geral da empresa da qual ele participa, que precisam ser
igualmente consideradas.
Quando os antropólogos recomendam a “participação direta” como método de estudo
de campo eles o fazem devido, principalmente, ao conhecimento progressivo que é obtido a
partir da participação “em primeira mão” nas atividades daqueles que estão sendo
efetivamente estudados. A habilidade na execução de tarefas dos sujeitos - os objetos de
estudo – levaria, presumivelmente, a um conhecimento mais profundo de sua existência
sócio-cultural.
O segundo fator a ser considerado é o sigilo organizacional. Por definição, as
organizações burocráticas são baseadas em sigilo (CLEGG, 1990). As políticas, orientações e
decisões organizacionais são normalmente preservadas com o objetivo de assegurar vantagens
competitivas e supremacia estratégica. Existem dados da empresa que são de acesso restrito
ou confidenciais. O acesso a departamentos, ou mesmo a prédios inteiros, pode não estar
disponível aos empregados (e especialmente a observadores externos) sem o nível correto de
autorização.
Contudo, dependendo dos interesses da pesquisa do etnógrafo, o acesso a informações
preservadas ou privilegiadas, ou a pessoas que ocupam postos chave na organização, pode ser
essencial para o sucesso do trabalho. O etnógrafo deve, então, escolher cuidadosamente qual
será a postura mais adequada, tendo em mente os limites impostos pela necessidade de
garantir o sigilo em questões particulares da organização, mas assegurando que as evidências
empíricas que serão coletadas e analisadas não comprometerão a validade e a consistência da
pesquisa e das conclusões finais.
O terceiro fator está relacionado com a confiança, e diz respeito a situações onde o
pesquisador ocupa um cargo oficial na empresa, ou seja, quando exerce funções
objetivamente definidas, num escritório localizado em um espaço físico e temporal. Isso é
particularmente problemático quando o pesquisador exerce funções gerenciais, ou, como se
costuma dizer no jargão empresarial, quando ocupa “cargos de confiança”. Nesses casos, o
pesquisador normalmente está envolvido com articulações políticas que ocorrem tanto nos
níveis hierárquicos superiores da empresa como entre seus pares e, até mesmo, entre seus
83

subordinados. Portanto, não é alguém em que os outros, localizados na mesma área de


influência política, possam confiar inteiramente. No caso oposto, quando o pesquisador
assume o papel de um observador externo à organização estudada, é preciso considerar até
onde os membros da organização confiariam em alguém “de fora” da mesma forma como
trocamos confidências com um companheiro de viagem no avião, um psicólogo, ou um padre
num confessionário. O observador, nessa posição, é um estranho que passa conhecer a
empresa e, provavelmente, estará à margem de seus processos políticos e terá dificuldades de
apreender o real significado imbricado nas relações sociais que se revelam para ele.
O problema do sigilo discutido acima está intimamente relacionado com este problema
de confiança. O primeiro remete ao relacionamento instrumental típico nas empresas, onde os
processos e interações sociais são basicamente orientadas aos meios e fins; enquanto que o
segundo está ligado às relações valorativas entre os indivíduos, onde a dimensão moral e ética
ganha mais evidência, como no caso de relações de amizade desenvolvidas e buscadas como
fins em e por si mesmas.
As dimensões instrumentais e morais de um relacionamento estão simultaneamente
inseridas no interior do discurso que se estabelece entre os atores organizacionais. A partir de
uma perspectiva de meios e fins, o etnógrafo, exercendo um papel nas relações instrumentais
da empresa, seja como pesquisador ou participante, será informado de acordo com a utilidade
ou inutilidade de se agir de tal forma. Por outro lado, o etnógrafo como parte de uma relação
de amizade será informado sobre o discurso da organização na medida em que isto é
pertinente ao discurso da amizade. Estes dois aspectos da comunicação frequentemente
entram em conflito.
O quarto fator está relacionado com a definição e/ou segregação de papéis na
organização. Como alguém que é parte da organização, ou seja, um participante direto, o
etnógrafo, presumivelmente, compartilha o conjunto de valores e crenças do grupo e está lá
para trabalhar, para executar uma tarefa organizacional.
A compilação de dados etnográficos, por outro lado, é uma atividade que exige um
posicionamento teórico e ações objetivas que podem se colocar em contradição à postura de
agir exclusivamente como membro da organização. Isto inclui atividades tais como fazer
perguntas amplas sobre relações sociais e culturais, registrar informações no trabalho, etc. Em
suma, pesquisar, embora “devesse estar trabalhando”. As idas e vindas entre os papéis de
participante da organização (interno) e o de coletor de dados para fins acadêmicos (externo)
pode causar confusão e conflito entre o etnógrafo e seus colegas de trabalho, que também são
seus objetos de estudo. Cruzar os limites desses papéis também pode causar ansiedade ao
84

pesquisador na medida em que ele esteja envolvido de tal modo na organização a ponto de
relutar em se dissociar dos seus processos rotineiros de trabalho para dedicar-se às atividades
de pesquisa e registrar dados. Nesses casos, existirá sempre uma sensação desconfortante pelo
lado do pesquisador, seja por estar “perdendo” tempo de trabalho, seu e de seus informantes,
seja pelos dilemas éticos, que invariavelmente surgem em situações como essa, com os quais
terá que lidar.
Em resumo, a etnografia realizada na própria organização da qual o pesquisador é um
participante efetivo, traz uma série de restrições à pesquisa, aparentemente não encontradas
quando se participa das atividades de um grupo social como um observador externo. Embora
o etnógrafo em uma cultura estrangeira possa perceber-se como participante, os elementos
pertencentes ao grupo provavelmente o considerarão mais como um “participante convidado”
do que um membro oficial da organização e o tratarão de tal modo. O etnógrafo tem, portanto,
mais liberdade de fazer perguntas tolas ou ingênuas, sejam elas intencionais ou não, de
comportar-se de modo “estranho” etc. Além disso, se o etnógrafo erra na tarefa que o grupo
lhe designa, a comunidade “anfitriã” provavelmente não será prejudicada: aqueles que têm
responsabilidades no grupo não estarão na verdade dependendo do etnógrafo,
consequentemente, não estarão julgando suas atitudes ou decisões segundo os critérios que
normalmente seriam aplicados a um membro efetivo. O etnógrafo de organizações formais,
voltadas para atingimento de objetivos específicos, que pesquisa no interior da própria
cultura, encontrará, inevitavelmente, muito mais restrições no seu trabalho. Apesar da riqueza
e relevância dos resultados que seguramente são obtidos quando se faz essa opção de
pesquisa, existe o risco permanente de assumir um posicionamento crítico, dissonante, nem
sempre alinhado ao pensamento dominante, que poderá ser (mal) interpretado ou julgado
segundo os imperativos organizacionais ou mesmo interesses políticos, e não como um
exercício livre de reflexão, com a autonomia necessária que a “boa” atividade acadêmica
exige.
Nos Anexos deste trabalho existem algumas comunicações trocadas com a diretoria da
empresa que foi objeto desta pesquisa que ilustram com clareza as dificuldades e dilemas
pelas quais passei no decorrer do trabalho.
Ao longo de toda a análise etnográfica que foi realizada, foram omitidas quaisquer
informações que pudessem identificar o grupo multinacional que foi investigado. Nas
ocasiões onde isso não foi possível, foram adotados nomes e/ou referências fictícias. Vale
deixar claro aqui que esse procedimento em momento algum interferiu na análise dos dados,
bem como não prejudicou os resultados e conclusões obtidos.
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4 A TRAJETÓRIA DO GRUPO XYZ E A CONSTITUIÇÃO DO HABITUS

Quando se analisa a longa trajetória do Grupo XYZ à luz do referencial bourdieusiano,


percebe-se, gradativamente, como as peculiaridades do habitus de seus principais executivos
constituíram disposições e orientações que foram moldando a cultura organizacional da
empresa.
Para efeito dessa análise, acredito que a história do Grupo XYZ possa ser dividida em
quatro fases razoavelmente distintas: a “fase do pioneirismo”, a “fase brasileira”, a “fase de
transição” e, por último, a “fase pragmática”.

A “fase do pioneirismo”

Corresponde ao período que se inicia com os primeiros passos do Grupo XYZ no


Brasil, no final do século XIX, estendendo-se até o final de década de 1950. Durante esse
tempo, a empresa foi sempre comandada por canadenses – na sua maioria, advogados – e
concentrava praticamente todos os seus investimentos no Brasil.
Diferente da história de muitas corporações, que começaram, normalmente, como
pequenos negócios familiares, e foram prosperando e crescendo ao longo dos anos para se
transformarem em grandes grupos empresariais, a XYZ já possuía desde a sua criação, traços
característicos de empresas da fase do capitalismo financeiro. O empreendimento no Brasil
não começou de forma modesta, pelo contrário, já nasceu grandioso, com projetos vultuosos e
bastante ambiciosos para a época. O porte e a complexidade dessas primeiras iniciativas, a
velocidade com que os projetos eram implantados e com que os negócios foram ampliados
nas décadas seguintes, exigiam grandes investimentos de capital, que somente foram
viabilizados graças ao experiente grupo de capitalistas canadenses. A tendência natural do
investidor capitalista é buscar prioritariamente o retorno do seu investimento, dentro das
expectativas de tempo que sejam convenientes e/ou adequadas para o momento. A
preocupação pela perenidade, pela construção de uma empresa sólida, capaz de sobreviver por
várias gerações, é, minimamente falando, um objetivo secundário.
De certa forma, essa herança foi se materializando ao longo do tempo numa vocação
(ou uma disposição ou orientação duradoura) para a busca constante por oportunidades de
negócio e pela diversificação de investimentos, e por uma postura de superioridade (não
necessariamente consciente) daqueles que detinham não só capital mas também o know-how
tecnológico. Em várias passagens, fica evidente nos brasileiros em geral a “postura do
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dominado”, encantados que estavam com o progresso proporcionado pelos canadenses. Por
outro lado, havia entre os canadenses a “postura do dominante”, legitimada, inclusive, pelos
próprios brasileiros, por terem trazido a “modernidade” ao Brasil e exercido papel
fundamental no desenvolvimento econômico do país.
A estreita relação com a elite política brasileira, que permaneceria como um traço
marcante durante toda a história da Companhia até os dias de hoje, a origem social de seus
parceiros brasileiros, todos oriundos de famílias de grande influência na época, e a presença
maciça de advogados nos escalões superiores dos primeiros organogramas da empresa,
contribuíram, também, para forjar um estilo gerencial extremamente formal e aristocrático.
Por força da própria natureza do negócio – prestação de serviços públicos -, era
inevitável que ocorresse uma superposição ou combinação de interesses públicos, privados e,
até mesmo, pessoais, na relação da XYZ com as autoridades do Governo, uma vez que a
atividade dependia fundamentalmente de concessões do Estado para funcionar e de “bons
relacionamentos” para manter e ampliar os negócios de forma lucrativa.
Todos esses elementos combinados talvez tenham sido responsáveis pela imagem de
arrogância que acompanhou a Companhia por muito tempo.

A “fase brasileira”

A transferência, pela primeira vez, do comando da Companhia no Brasil para um


executivo brasileiro marca o início de uma nova era, num momento particularmente difícil
para as empresas de capital estrangeiro em atividade no Brasil.
O processo de redemocratização do Brasil com o fim da Era Vargas trouxera novos
atores para a cena política nacional, e, com eles, novas forças políticas, novos arranjos de
poder, e rumores cada vez mais fortes de que o movimento de nacionalização de setores
considerados essenciais e estratégicos para o Brasil era iminente.
A presença de um “nativo”, com espírito empreendedor, capacidade de liderança e
habilidade política, era necessária para responder a essas mudanças com rapidez, para renovar
as equipes gerenciais e garantir a continuidade dos negócios no Brasil.
Ao mesmo tempo em que reagia às pressões, negociando habilmente a venda das
empresas de serviços públicos da XYZ para o Estado e montando uma nova estrutura para
viabilizar o reinvestimento no Brasil dos recursos que não puderam ser repatriados para o
Canadá, o novo presidente do grupo recrutava pessoalmente sua equipe de colaboradores, na
grande maioria, advogados como ele.
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Segunda uma das pessoas que foram ouvidas nos trabalhos de campo, um executivo
aposentado do grupo que trabalhou nesse período, a equipe gerencial que foi montada naquela
época tinha realmente muita afinidade:

"Eu diria, que enquanto esta era uma empresa cuja única obrigação para um acionista era mandar os
dividendos, ....., eu diria que tinha uma organização excelente. Porque era um grupo muito coeso, não
havia muita consideração sobre a estrutura organizacional, era muito informal, acredito que não
houvesse muitos cuidados com treinamentos. Até porque era difícil, por uma questão de sobrevivência,
enquanto hoje a gente está procurando novos negócios, naquela época, era uma questão de fechar
negócios, reduzir aquele leque de coisas que não tinham nada a ver uma com a outra, e reaplicar
naquele negócio que remanescia, portanto, deveriam ser sustentados. Era uma preocupação
completamente diferente, a preocupção era com sobrevivência, mas uma sobrevivência sadia. .... De
maneira que eu acho que a própria estrutura, o próprio clima da empresa era um pouco em função
disso."

De certa forma, pode-se afirmar que o novo presidente da XYZ no Brasil pertencia à
mesma “linhagem” de seus antecessores. Mas quais são as condições sociais desse juízo que
faço? Isso supõe, antes de tudo, que as preferências e gostos (ou o habitus), enquanto sistemas
de esquemas de classificação, estão objetivamente referidos a uma condição social – a
“linhagem” – através dos condicionamentos sociais que o produziram. Nada classifica mais
uma pessoa do que suas próprias classificações. Os agentes, ao fazerem suas escolhas em
conformidade com seu habitus, sejam objetos de consumo, amigos ou colegas de trabalho, o
fazem de forma a manter uma “afinidade” entre si, ou, mais exatamente, com outros agentes
que ocupam posição homóloga à posição ocupada por eles no espaço social.
Dessa forma, pode-se concluir que aquilo que se costuma chamar de “cultura
organizacional” tem suas raízes nas “afinidades” do habitus dos diferentes agentes que
compõem a parcela dominante no campo. Quanto mais fortes e sólidas são essas “afinidades”,
maiores as chances da “cultura organizacional” ter uma gênese social e ser, por conseguinte,
uma reprodução razoavelmente fiel da mesma estrutura de distribuição de capitais, da mesma
configuração de forças e dos mesmos princípios hierarquizadores que definem o espaço
social.

A “fase de transição”
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A aquisição do controle da XYZ pelo Grupo ABC (também canadense) é um período


caracterizado pelo confronto de forças no interior do campo pelo direito de definir seu novo
princípio hierarquizador, sua nova lógica de funcionamento e as novas regras do jogo. A
incompatibilidade de habitus entre os dois grupos era evidente, manifestada tanto nas
diferenças de filosofia na condução dos negócios, nos contrastes de estilos gerenciais, e na
própria origem e trajetória seguida por cada empresa. Obviamente, situações como essa são
decididas por quem detém o maior volume de capital econômico: a legitimidade da autoridade
no campo é conferida quase de forma estatutária a quem, efetivamente, detém o controle
acionário da Companhia. Essa é a regra máxima do campo econômico.
Mesmo com a troca de controle acionário, o novo conglomerado formado depois da
aquisição manteve o nome XYZ. Outro aspecto importante que se revela nesse momento de
transição de comando é que o Grupo ABC estava mais interessado nos ativos da XYZ no
Canadá e nos EUA, na grande disponibilidade de caixa propiciado pela repatriação integral
dos recursos provenientes da venda de empresas no Brasil como parte do processo de
estatização, e no potencial de alavancagem para o Grupo ABC que todo esse cenário poderia
proporcionar.

" Então eles ficaram donos, esse pessoal da ABC não tinha noção de Brasil, tenho certeza que eles não
sabiam a diferença entre Brasil e Hiroshima, não sabiam de nada. Simplesmente o que os motivou foi
aquela reserva de caixa que eles não tinham. Aí alguém comeu mosca. Os acionistas daqui dormiram
no ponto. Porque se expuseram a um takeover. E foi o que aconteceu."

A época era de prosperidade, os lucros cresciam, e novas oportunidades de negócio


surgiam a todo momento. O Brasil, na ocasião, cumpria seu plano de diversificação de
investimentos com a parte dos recursos oriundo das vendas dos negócios de transporte
público, telefonia e gás que não puderam ser enviados para o Canadá. Os executivos do Grupo
ABC não estavam muito preocupados com o que acontecia no Brasil nessa época, fato que
fica evidenciado no depoimento abaixo:

" [...] para eles interessava era deixar o barco correr, não se interessavam pelo Brasil, e nem sabiam
onde era o Brasil, sabiam mais ou menos, e enquanto eles recebessem os dividendos, tava tudo bem.
Recebiam religiosamente os 12 milhões de dólares por ano, tudo bem, certinho, uma parte no inicio do
ano, outra parte no final do ano, e não se perturbavam com a gente. A gente era inteiramente
autônomo. Claro, numa boa gestão a gente sempre procurava gerir de acordo com os interesses deles,
mas a rigor, a rigor, no frigir dos ovos, se eles tivessem aqueles dividendos certinhos, tava tudo bem.
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Vinham para cá, depois que descobriram o Brasil, alguns anos recebendo esse dividendo. Vamos ver o
que produz esses dividendos, de onde vêm esses dividendos, de onde eles nascem.

Graças a essa aparente tranqüilidade e à habilidade política do então presidente dos


negócios do Grupo XYZ no Brasil, a operação brasileira foi, de certa maneira, poupada das
grandes mudanças que ocorriam no Canadá e conseguiu manter uma razoável autonomia nas
suas decisões. A antiga linhagem, as antigas afinidades da “fase brasileira” permaneceriam
inabaladas no Brasil por algum tempo.
Com a crise do final dos anos 90, os efeitos dos mecanismos de controle do mercado
eram visíveis, e impunham a necessidade premente de mudar o perfil da Companhia, de torná-
la mais transparente, mais previsível, mais rentável. As reações do principal executivo do
Grupo XYZ no Canadá naquele momento, o desafio penoso de concordar com a venda das
participações acionárias de seus filhos, demonstram como o habitus do seu fundador e
presidente condicionava suas ações e decisões, como resistia insistentemente em “ver o
mundo de outra forma”. A própria solução por ele encontrada para aquele dilema reforça a
noção do habitus como um princípio gerador de práticas. A saída de seus filhos da
composição acionária do grupo se deu muito mais pela necessidade de garantir-lhes
estabilidade financeira diante de um cenário econômico turbulento e cheio de incertezas. O
problema da sucessão foi resolvido através da ampliação da quantidade de sócios,
assegurando, assim, que a Companhia continuasse sendo comandada pela “família”, se não
mais por seus descendentes diretos, por seus colaboradores mais antigos e próximos, com
quem tinha laços fraternos de amizade, afinidades que tornavam o habitus dos diferentes
agentes compatíveis entre si.

A “fase pragmática”

"Logo que houve essa fusão, quando a XYZ do Brasil passou a ter o mesmo status da XYZ do Canadá,
começou não só essa preocupação, começou uma harmonização, princípios comerciais... Nunca ninguém tinha
ouvido falar de gado no Canadá, o que importava eram os 12 milhões de dólares. E com a saída do R. e a
chegada do M., hoje é completamente diferente, diferente na cultura, na filosofia, até nas pessoa,s o que é
normal. Tem que passar o bastão mesmo.."

A posse do novo presidente no comando da XYZ Corporation em 2002 está


intimamente ligada à crise desencadeada no final da década de 1990, e inaugura,
definitivamente, um novo período de confronto de forças no campo. Não uma “guerra aberta’,
90

tal como acontecera na aquisição da XYZ pelo Grupo ABC, mas manobras sutis para poder
implementar as mudanças necessárias, evitando conflitos com a velha estrutura de poder da
Companhia representada pelo Conselho de Administração composto por antigos
colaboradores, egressos das fileiras do antigo Grupo ABC.
Percebe-se novamente os efeitos dos mecanismos de controle do mercado impondo
pressões à estrutura de poder da Companhia e às relações sociais a ela subjacentes.
O perfil de novo presidente do grupo no Canadá, que comanda a Companhia até os
dias de hoje, é do típico workaholic. Seu habitus torna a visão mais pragmática das
organizações, a lógica da eficiência e da maximização do lucro, a elevação dos objetivos da
empresa acima dos objetivos pessoais, como algo natural, necessário, auto-evidente. Essa é a
sua maneira de perceber e apreender a realidade nas organizações.
A figura do novo presidente representa a ruptura definitiva com o estilo personalista
da “fase de transição” e com o estilo aristocrático da “fase brasileira”. No Brasil, M. assume o
comando da Companhia no país e inicia um amplo processo de reformulação nas empresas
em sintonia, ao menos a princípio, com a nova filosofia de trabalho implantada no Canadá.
É precisamente nesse momento, que me junto à XYZ no Brasil, como membro efetivo
da organização.
91

4 AS CONFRARIAS COMO UM OBJETO CONSTRUÍDO

4.1 Primeiras impressões

Ainda bastante próximo da visão ingênua, da qual pretendo inclusive me dissociar,


lanço-me numa espécie de descrição total, um pouco desenfreada, de um mundo social que
conheço sem conhecer, como sucede em quaisquer universos que nos parecem familiares.
Como signo mais visível da conversão do olhar exigida pela adoção da postura do observador,
farei uso intensivo da narrativa e da fotografia no meu relato etnográfico.
Meu primeiro contato com o Grupo XYZ no Brasil ocorreu em meados de 2000,
quando ainda trabalhava em uma multinacional de origem inglesa, com presença em vários
países, especializada na comercialização de commodities no mercado internacional e em
operações de logística. Fora visitar uma ex-colega de trabalho, recentemente contratado na
área de Controladoria da XYZ Brasil, que estava às voltas com a reestruturação do grupo no
Brasil, montagem de uma nova equipe, definição de novos mecanismos de controle, e com a
seleção de um novo sistema de gestão de informações para integrar os processos das áreas
Contábil e Financeira de todas as empresas do grupo no país.
Fiquei muito impressionado com a aparência daquele que era o escritório central do
Grupo XYZ no Brasil. Guardei a lembrança dos longos corredores, do mobiliário austero, dos
vários quadros e aquarelas de paisagens do Rio de Janeiro do período colonial que
preenchiam as paredes revestidas de madeira escura. O andar inteiro era composto de várias
salas fechadas até o teto, num confuso labirinto, o que tornava o ambiente ainda mais formal.
Lembro também que pude ver várias pequenas mesas, distribuídas de forma razoavelmente
ordenada, para cada conjunto de salas. Pareciam ser secretárias ou assistentes. E eram muitas.
Fomos almoçar naquele dia num local próximo. Ela comentou comigo que muitas
coisas haviam mudado na XYZ no Brasil depois da posse do novo presidente, M.. O quadro
de pessoal estava sendo reduzido drasticamente, vários executivos importantes (diretores e
vice-presidentes) haviam deixado ou estavam próximos de sair da empresa, e novas pessoas
estavam sendo contratadas num ritmo acelerado. Uma grande reforma no andar também
estava em andamento (lembro, inclusive, de ter visto alguns tapumes) para modernizar o
visual do escritório.
92

Ouvi tudo aquilo atentamente mas saí daquele encontro com uma imagem na cabeça,
não de uma multinacional mas de uma firma de advocacia. A XYZ que havia acabado de
conhecer lembrava-me aqueles ambientes suntuosos e sérios, típicos de grandes firmas de
advocacia.
Seis meses depois, por intermédio dessa mesma pessoa, participaria de um processo de
seleção para o cargo de Gerente de Tecnologia, uma nova área que havia sido criada em
função da nova estrutura organizacional que estava sendo implantada no grupo. A
oportunidade profissional era tentadora: o desafio de implantar uma nova área, de coordenar a
Tecnologia de diversas empresas, operando em negócios tão diversificados.
Retornei a XYZ várias vezes, por conta das entrevistas do processo de seleção (a
útlima delas, com o próprio presidente da Companhia no Brasil), e conheci pela primeira vez
o novo visual do escritório. O ambiente havia mudado radicalmente desde a minha visita
anterior. Estava mais claro, amplo, arejado. As várias salas fechadas tinham dado lugar a
quatro grandes salões abertos, com as mesas de trabalho dispostas em “ilhas”, separadas por
divisórias baixas. Uma parte do andar havia sido ocupada por algumas salas de reunião
pequenas, fechadas, isoladas por divisórias de vidro, o que ajudava a manter a atmosfera
“clean” do escritório. O presidente e os vice-presidentes ocupavam o equivalente a um quarto
da área útil do andar, um amplo salão de onde se podia avistar, de qualquer lugar, toda a
enseada da Praia de Botafogo, com o morro do Pão-de-Açúcar ao fundo, através das grandes
janelas de vidro que iam do chão ao teto, e acompanhavam toda a extensão do salão.
Apesar de todas as mudanças, algo no ambiente parecia conservar os traços daquela
mesma suntuosidade que eu havia conhecido na minha primeira visita. De algum modo, os
pisos em granito, o carpete importado, as obras de arte, o sistema de iluminação indireta, o
imponente salão da presidência, com suas ante-salas e anexos, tudo aquilo me dava a
impressão de uma suntuosidade “moderna”, por assim dizer.
93

Figura 2: A faceta progressista e a faceta conservadora – contrastes.

Fonte: fotografias feitas pelo próprio autor.

Descrição das fotos:


• Foto superior, à esquerda: vista da enseada da Praia de Botafogo, na perspectiva de uma pessoa sentada na cadeira
do presidente.
• Foto superior, à direita: uma visão geral da sala da presidência. Todo o projeto da sala, inclusive a mesa central de
formas onduladas e ante-salas, foi desenvolvido e implementado pela arquiteta Julinha Serrado (famosa por atender
celebridades no Brasil). Destaque para a mesa, com bordas arredondadas, onde todos os executivos sentam-se junto
ao presidente, e para os tapetes persas colocados sobre o carpete que reveste todo o andar. A faceta progressista e
faceta conservadora em contraste.
• Foto inferior, à esquerda: sala de reunião principal, exemplo da faceta progressista.
• Fotos inferiores, à direita: vestígios do passado, aquarelas retratando o Rio de Janeiro do período colonial. A faceta
conservadora.
94

Em Abril de 2001, começaria, então, a trabalhar na XYZ. Logo cedo ficaria sabendo
através de conhecidos que havia muitas pessoas influentes na empresa que eram contrárias à
minha contratação por acharem desnecessário ter uma pessoa de nível gerencial para cuidar de
“coisas de tecnologia”.
Com o passar dos meses, fui conhecendo melhor as empresas do grupo no Brasil,
meus colegas de trabalho, gerentes, diretores e vice-presidentes. Gradativamente, fui
conhecendo melhor aquele universo, sua composição de forças, sua lógica de funcionamento,
sua estrutura de distribuição das formas de capital, os alvos em disputa e os interesses
específicos que estavam em jogo.
Até então, já havia acumulado cerca de 15 anos de experiência profissional e atuado
em outros dois conglomerados multinacionais, ambos com presença global: um grupo inglês
do setor de produção e comercialização de tabaco e cigarros, e um grupo financeiro
americano, onde iniciei e consolidei minha carreira, e no qual passei a maior parte da minha
vida profissional. Estou convencido de que essa longa experiência numa multinacional
americana de grande porte, líder mundial no setor financeiro, contribuiu, decerto, para
atualizar novos elementos ao meu habitus, moldando a minha matriz de apreciação e
percepção da realidade nas organizações, aquilo que viria a ser a minha maneira particular de
olhar e analisar esse universo.
Àquela altura, portanto, acreditava estar bastante familiarizado com o modus operandi
típico de uma multinacional. Estava acostumado com o estilo gerencial mais pragmático e
impessoal, que incentivava uma competição intensa e constante entre os empregados por
visibilidade, ascensão profissional e poder, com a pressão permanente por resultados e pelo
cumprimento de metas sempre agressivas, com os processo de avaliação e as políticas de
meritocracia, e, obviamente, com o ritmo frenético de trabalho. Afinal, essa á “regra do jogo”
no campo econômico.
No entanto, a realidade com a qual me confrontava naquele momento revelaria um
universo de relações sociais totalmente estranho para mim, ao menos para o que se esperaria
encontrar em uma empresa multinacional.
Grande parte da nova geração de executivos que tinham a missão de trazer a
“modernidade” para o grupo, de reformular radicalmente os negócios, e preparar as empresas
para um retorno ao crescimento sustentável, tinham sido contratados pessoalmente pelo
presidente e possuíam sólidos laços de amizade entre si.
Aos poucos, pude perceber que esses laços de amizade eram mais antigos e especiais
do que eu imaginara inicialmente. Todos, na verdade, haviam se conhecido ainda na
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adolescência, quando eram alunos do Colégio Santo Inácio, uma das mais importantes
instituições de ensino no Rio de Janeiro, fundada e administrada por uma congregação de
padres jesuítas, e frequentado, historicamente, pelos filhos de famílias tradicionais da elite
carioca. De uma maneira geral, todas as discussões, definições ou decisões passavam
necessariamente por este grupo fechado de indivíduos, colegas de Santo Inácio, a despeito da
presença de outros (poucos) executivos seniores na empresa, mas que não eram tratados como
membros legítimos desse grupo.
Aos poucos, fui percebendo também que a eloquência dos discursos sobre mudanças,
estratégia, liderança e trabalho em equipe, que tanto haviam me impressionado no meus
primeiros tempos de XYZ, a renovação integral do quadro de executivos e gerentes, ou a
modernidade das novas instalações do escritório, não haviam conseguido eliminar o tom
formal, distante e aristocrático que caracterizava a relação da cúpula do grupo com os demais
níveis nas empresas.
Aos poucos, fui percebendo também que a antiga geração que havia deixado a
empresa tinha deixado muito mais vestígios do que eu imaginava....
A Figura 3 a seguir, traduz com extrema fidelidade minha percepção naquele
momento. Por trás da aparente imagem de sofisticação, eficiência e “modernidade” (fotos à
direita), jazia o traço forte da herança aristocrática de tempos passados. A imagem da capa do
livro Homo Academicus de Bourdieu (1988a) é a representação perfeita desse sentimento e do
contraste que me saltava aos olhos.
Fonte: Bourdieu (1988a; ilustração da capa) Fonte: fotografias feitas pelo próprio autor. O exemplar comemorativo dos 100
Figura 3: Confrarias – o olhar “etnográfico” inicial sobre um objeto em construção ...

Anos do Colégio Santo Inácio (foto inferior) está na estante que se encontra ao
96

fundo da sala na foto superior, exatamente atrás da cadeora do presidente.


97

4.2 Entendendo o uso do termo confrarias

Retomo aqui, uma das questões centrais enunciadas no início deste trabalho: o que são
as confrarias, como esse termo surgiu durante o meu empreendimento etnográfico, e quais
insights podem ser capturados e depurados a partir da desconstrução desse termo.
A vigilância epistemológica ensina que é preciso que o pesquisador aplique a si o
mesmo método sociológico que lança mão na investigação dos objetos de seu interesse, ou
seja, que é preciso fazer um exercício apurado de reflexividade que seja capaz de revelar os
efeitos do habitus do pesquisador, e da sua posição no espaço social e no campo onde possui
interesses, nas análises que realiza sobre os fenômenos sociais que observa.
O habitus, princípio gerador de respostas mais ou menos adaptadas às exigências de
um campo, é produto de toda a história individual, desde as experiências da primeira infância,
a história coletiva da família, da classe social de origem, passando pela trajetória escolar,
profissional e pessoal.
O exercício de auto-objetivação que empreendi neste trabalho me ajudou a
compreender melhor as particularidades do meu habitus, a identificar as condições sociais que
o produziram, e quais condicionamentos poderiam estar subjacentes aos meus esquemas de
apreciação e classificação da realidade. Se o mundo social tende a ser percebido como
evidente, e a ser apreendido segundo categorias do “senso comum”, é porque as disposições
dos agentes, isto é, o seu habitus, são, na essência, produto da interiorização das próprias
estruturas do mundo social.
Como essas disposições, essas matrizes de percepção e apreciação, tendem-se a
ajustar-se à posição social, os agentes, mesmo aqueles menos privilegiados, tendem a
perceber o mundo como auto-evidente e aceitá-lo de modo muito mais amplo e natural do que
se poderia imaginar.
A auto-objetivação, certamente, me permitiu apurar o senso crítico necessário para
desafiar o mundo auto-evidente, “desconfiar” das categorias dadas e de tudo que pudesse
parecer “natural”, para poder, assim, investigar as confrarias evitando o juízo precipitado ou
viesado, seja pela sensação de não pertencimento àquele grupo, seja pela sensação de olhar a
situação dos dominados com o olhar social de um dominante.
Como agentes engajados no campo, os membros da confraria possuem uma relação
direta de seu habitus com o campo. O efeito do campo, todavia, é exercido, em parte, por
meio do confronto com as tomadas de posição de todos que se encontram engajados nesse
98

mesmo campo. Mas é o “peso” dos agentes e do seu “habitus específico” no campo, e a maior
ou menor afinidade dele com os diferentes habitus, que levam certos agentes a serem tratados
com “atração” ou “repulsa”, e certos pensamentos e ações a serem taxados como “simpáticos”
ou “antipáticos”.
O termo confrarias emerge, portanto, dessa incompatibilidade de habitus no campo. E
é precisamente por apreender a realidade com o olhar social de um dominante, que os
membros da confraria dificilmente serão capazes de reconhecer suas práticas distintivas como
elitistas e/ou discriminatórias, e tenderão a reagir às minhas análises com indignação (repulsa)
ou com indiferença, talvez por estarem de tal forma inculcados com as disposições de seu
habitus a ponto de tornar o exercício da (auto) reflexividade uma tarefa impossível ou
insuportável.

4.3 A construção do objeto confrarias

Stablein (1999) afirma que, para alguns pesquisadores, o mundo organizacional é


complexo e intrincado, e que a realidade organizacional, nestes casos, é “o mundo de
construtos definidos pelo pesquisador” (1999:80), na sua busca pela explanação do fenômeno
a partir das teorias existentes, mas “os pontos de vista do pesquisador são o ponto de partida”
(1999:80).
Para poder identificar os significados subjacentes à escolha do termo confrarias,
retirado da linguagem comum para ser convertido em um objeto sociológico, partirei,
inicialmente, de sua origem etimológica, e dos diversos possíveis usos e contextos onde o
termo é empregado, caminho semelhante ao que fiz nas minhas primeiras tentativas de
aproximação desse fenômeno (MANGI, 2004).
O trajeto heurístico também tem algo de um percurso iniciático pela imersão total e
pela felicidade dos achados que lhe é concomitante. Ainda que possa existir um hiato entre a
“primeira visão” e a visão erudita, há uma intenção reflexiva, consciente, na raiz de todo o
meu empreendimento, ocasionalmente influenciado, talvez, pela atmosfera emocional em
meio a qual transcorreu minha pesquisa.
As mesmas disposições reticentes que tinha com “grupinhos” e com atos de
conformismo, ou seja, com os que, indo ao encontro das inclinações de habitus diferentes do
meu, mudavam ao ritmo das transformações, fizeram com que eu me achasse quase sempre
em situação de contra-senso ou de subversão diante dos modelos e modos dominantes no
99

campo, tanto em minha pesquisa como em minhas tomadas de posição políticas. Foi
possivelmente esse sentimento de ambivalência enraizado nas minhas disposições que tenha
contribuído para criar a atmosfera emocional a qual me referi acima.
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (HOUAISS & VILLAR,
2001:798), o termo confraria tem suas raízes etimológicas no termo francês confrérie, surgido
no século XIII, e reúne as seguintes definições possíveis:

i) Associação laica que funciona sob princípios religiosos, fundada por pessoas
piedosas que se comprometem a realizar, conjuntamente, práticas caritativas,
assistenciais etc.; congregação, irmandade.

ii) Associação ou conjunto de pessoas do mesmo ofício, da mesma categoria ou


que levam um mesmo modo de vida (“confraria dos negociantes”, “confraria
dos boêmios”).

iii)Conjunto geralmente restrito de pessoas unidas por um liame comum,


profissional, corporativo ou outro; sociedade, associação.

iv) Sociedade teatral que na França, na Idade Média, montava espetáculos


religiosos, farsas e pantominas.

A análise dessas definições traz importantes revelações que ajudam a realizar uma
síntese preliminar dos componentes constitutivos do objeto confraria:

i) Afinidade: pertencer à confraria significa comungar das mesmas idéias,


valores, sentimentos, comportamentos e modos de vida. Pode-se afirmar,
então, que os membros da confraria tendem a compartilhar uma mesma visão
do mundo.

ii) Lealdade: os membros da confraria possuem sólidos laços de compromisso e


solidariedade mútua, seguem seus próprios princípios, organizam-se em torno
de objetivos comuns.
100

iii) Caráter excludente: as confrarias tendem a reunir grupos restritos de pessoas


para garantir e fortalecer seus laços de coesão.

Os membros da confraria criam e reproduzem seus próprios sistemas de significados, e


tecem, racional ou irracionalmente, seus próprios padrões e lógicas de ação, com influências
importantes para os objetivos pretendidos neste trabalho.
Esses elementos constitutivos do objeto confraria não existem num vazio social, isto é,
emergem necessariamente por meio da interação social. A busca por formas invariantes de
percepção ou de construção da realidade social, por vezes mascara que essa construção não é
somente um empreendimento individual, podendo se tornar um empreendimento coletivo
também.
Dessa forma, é possível afirmar, numa analogia natural com a noção de habitus, que
esses elementos constitutivos funcionam, na verdade, como disposições ou inclinações
compartilhadas pelos membros da confraria, que são socialmente estruturadas porque têm
uma gênese social: estão sujeitas às condições sociais de sua produção. Com o intuito de
sistematizar essas definições e capturar a essência de cada uma delas, as disposições foram
retrabalhadas e relacionadas na Tabela 3 a seguir.

Tabela 3: As disposições compartilhadas pelos membros da confraria

Disposição Idéia Central


AFINIDADE Natureza dos laços que atraem e mantêm unidos os membros da confraria.
LEALDADE Grau de intensidade e estabilidade das inter-relações entre os membros da
confraria.
CARÁTER EXCLUDENTE Propensão dos membros da confraria para admitir novos membros no grupo.

Aplicando essas definições ao fenômeno investigado, consegue-se ampliar a noção do


“habitus ‘certo’ para o campo ‘certo’”. Essa noção emerge da compatibilidade das disposições
e inclinações do habitus com a lógica de funcionamento do campo. Entre agentes engajados
no campo, existe sempre uma parcela dominante - assim designada por ter a posse das
propriedades pertinentes e dos capitais valiosos segundo a estrutura de distribuição das formas
de capitais específicas do campo - que tem a legitimidade para impor seus esquemas
classificatórios. Essa compatibilidade, portanto, surge como uma consequência “natural” da
presença de uma parcela dominante no campo. E é graças à capacidade do habitus de ser,
101

simultaneamente, uma estrutura estruturada e estruturante, que se consegue escapar do


determinismo que essa construção poderia sugerir.
No caso particular da organização, esse ciclo de reprodução é rompido pelas forças da
sociedade e do mercado, através dos seus respectivos mecanismos de controle. A Figura 4 a
seguir, reúne as manifestações possíveis das disposições do habitus da confraria, e suas
interações com as duas instâncias condicionadoras: a sociedade e o mercado.

Figura 4: As disposições do habitus específico das confrarias e suas manifestações


possíveis

As disposições são colocadas como oposições (+/-). Cada polo ou extremo representa
uma manifestação típica. Quando levadas ao seu extremo positivo (+), as disposições
inculcadas no habitus específico das confrarias localizam-se mais próximas dos efeitos dos
mecanismos de controle social exercidos pela sociedade, e forjam, assim, relações sociais de
natureza essencialmente substantiva. No lado oposto (-), seguindo raciocínio análogo, as
disposições estão mais sujeitas à lógica do mercado, por conseguinte, as relações sociais
forjadas serão tipicamente instrumentais.
Na Tabela 4 a seguir, esse quadro é ampliado para comportar as manifestações típicas
das disposições que constituem o habitus da confraria em cada um dos seus extremos (+/-)
102

Tabela 4: As disposições do habitus específico das confrarias e a natureza das relações


sociais

Disposições Manifestações Típicas


+ -
Existe, além de interesses comuns, Os membros da confraria são movidos
uma forte ênfase em valores por interesses bastante objetivos e
AFINIDADE culturais ou socialmente específicos. Os interesses são eventuais
construídos, compartilhados pelos ou transitórios.
membros da confraria.
Relações perenes, duradouras, Relações temporárias
LEALDADE com características de uma ou oportunistas.
fraternidade ou irmandade.
CARÁTER Comportamento extremamente Comportamento mais adaptativo
EXCLUDENTE conservador e elitista. e tolerante.

NATUREZA DAS Relações Substantivas Relações Instrumentais


RELAÇÕES SOCIAIS

Esse quadro já permite identificar com certa clareza os elementos que distinguem a
confraria como uma categoria analítica das outras noções mais genéricas (devo dizer, vagas,
descontextualizadas) apontadas na Introdução deste trabalho, a saber, grupos informais e
“times de trabalho”. Situado no extremo das relações subjetivas, as disposições que
constituem o habitus específico da confraria, quando inculcadas nos agentes (seus
participantes), asseguram a longevidade do grupo, dotando-os de uma qualidade inata de
resistir aos imperativos da eficiência e do mercado que caracterizam o pólo correspondente às
relações instrumentais.
103

5 A REVELAÇÃO DO HABITUS ESPECÍFICO DA CONFRARIA

Em função da postura epistemológica assumida e da escolha pela abordagem


etnográfica, era natural que o habitus específico da confraria fosse revelado para mim
simultaneamente ao próprio processo de sua construção como objeto.
O exercício de construção permitiu, sem dúvida, refinar minhas leituras iniciais e
identificar conexões que, de outra forma, não estariam disponíveis.
As mudanças que ocorreram ao longo de sua história certamente promoveram a
transformação dos negócios, o reposicionamento estratégico, a retomada do crescimento e da
lucratividade, e o fortalecimento da posição do grupo, tanto no Canadá como no Brasil. Mas
um traço característico, já apontado no decorrer desse trabalho, o estilo gerencial formal e
aristocrático, parece ter ficado fossilizado na cultura da empresa.
Renovaram-se as pessoas mas as evidências empíricas que fui coletando apontavam
para diversos vestígios de continuidade, alguns mais aparentes e conhecidos por todos (não se
trata, de forma alguma, de um segredo estratégico ou de uma informação confidencial), outros
mais sutis, disponíveis somente para o olhar do pesquisador (que não é, decididamente, o
mesmo olhar do membro da organização).
Por ser uma prática normalmente vedada nas políticas internas de empresas
multinacionais, chamou-me a atenção desde cedo o parentesco do presidente com seu
antecessor (o presidente atual é genro do presidente anterior). O depoimento a seguir,
esclarece as circunstâncias especiais que cercaram essa momento crítico na história recente da
Companhia, mais precisamente, a disputa pela sucessão.

" Eu não diria disputa... No fundo, era uma disputa, a disputa, vamos dizer assim, era mais subjetiva,
mais subjacente. Vamos falar basicamente sobre sucessão. Eu sei que cobravam insistentemente do R.
sobre isso. Eu sei que é difícil você fazer uma indicação para sua própria instituição. Embora seja
natural e esperado, a morte é natural, é difícil você encarar, é difícil tirar o time. Mas, a favor do R., eu
diria que ele não procurou, ou talvez tenha procurado e não tenha encontrado, e tenha passado para o
outro lado. Ele não encontrou uma sucessão ou um candidato interno, político, para sucedê-lo. Por
esse ou por aquele motivo, ele não achou ninguém que pudesse ocupar aquele papel sem gear talvez
uma desorganização, uma disputa muito grande... Ele buscou várias alternativas fora, várias , inclusive
um que é o atual sucessor que foi ele quem foi buscar. O M. não é descoberta do pessoal do Canadá. O
M. foi apresentado ao Canadá pelo R., como foram outros. E o pessoal do Canadá gostou do M. e o M.
foi contratado. Acredito que não foi prometido mas foi, pelo menos, anunciada essa perspectiva. Eles
devem ter dito a ele: você trabalha para isso se você é candidato, então, cabe a você. "
104

Aos poucos, no entanto, pude perceber que essa prática permanecera na nova fase da
XYZ no Brasil. Existiam outras pessoas, empregadas ou prestando serviço para as várias
empresas operacionais do grupo, que, se não tinham algum laço de parentesco com o
presidente, tinham sólidos laços de amizade. Os depoimentos colhidos no decorrer do meu
trabalho revelaram diversos traços em comum nas histórias de vida desse grupo: todos haviam
passado a infância e adolescência no Leblon, bairro de classe alta da zona sul carioca,
completaram o estudo fundamental no Colégio Santo Inácio, frequentaram os mesmos locais,
clubes e eventos durante a juventude, compartilharam de um convívio social intenso,
casaram-se com pessoas que faziam parte do grupo, estudaram em faculdades de primeira
linha (a maior parte, na PUC/RJ), muitos estenderam sua formação acadêmica (mestrado e/ou
doutorado) em universidades tradicionais no exterior, e suas famílias mantêm até hoje uma
convivência constante. Isso fica bastante claro no trecho abaixo, retirado do depoimento de
um dos assessores mais próximos à presidência:

“Talvez, talvez, e uma outra coisa interessante era o local onde eu morava, quer dizer como eu não
tinha uma facilidade de deslocamento muito grande, eu não tinha carro, minha mãe não me levava e
ainda fazia jogo duro pra mim andar de ônibus, e não sei o que, ficava preocupara, era muito comum
eu conviver perto da minha casa. Então esses amigos do Santo Inácio, vários deles moravam no
Leblon, sabe? O pessoal do esporte todo mundo morava perto de mim, o pessoal que nadou comigo no
Flamengo. Eu tenho 2 grandes amigos, um deles desse grupo do Santo Inácio e o outro veio da
natação, nadou comigo, pô, meu grande amigo. O grupo depois foi se formando nessa faixa, tinha 17,
18 anos, que aí o que que aconteceu no pessoal do encontro, tinha um grupo de meninas e um grupo de
meninos; as meninas casaram com os meninos. (...) E aí as pessoas foram casando dentro do grupo, o
que fez com que a gente consiga ser amigo até hoje porque até ninguém trocou de mulher. Então, o
grupo hoje se encontra, se vê e preserva essa relação. Todo ano, no dia de Natal, no dia 25 todo mundo
vai à missa ao meio dia na São José da Lagoa ha 30 anos, desde que a gente era namorado. Hoje a
fotografia não cabe mais, a gente tem que usar aquela máquina panorâmica porque tá todo mundo com
filho, as famílias cresceram. As pessoas vão lá, mas o núcleo central desses amigos hoje se preserva, o
núcleo inteiro se preserva. Tem outras pessoas que se agregam, eu até, eles ficam danados, eu digo que
eu acho isso covardia, é covardia um casal chegar quando a gente tá junto, pra perto do grupo porque
a gente conversa coisas que as pessoas não entendem. Nós nos conhecemos ha 30 anos, então os
casais, os filhos, eu hoje cheguei aqui e o Luís, garçom veio falar comigo, puxa o senhor tem uma
facilidade e eu falei, facilidade porque? Ele falou, porque eu vi com que facilidade o senhor trata o
filho do senhor M. Eu vi os garotos do doutor M. nascer, entendeu? Os garotos ficavam no meu colo,
como os meus no colo dele. A L. (esposa) adora o meu filho mais velho, acha o meu filho mais velho o
cara mais sensacional da Terra. [...] Esse menino nasceu, e com 8 anos ficava na casa dela pra ter
105

aula de inglês, sabe? Então a relação sempre foi muito ligada, aniversário, a lista começa, é o mesmo
grupo há 30 anos. Vou dar uma festa lá em casa, sai o grupo inicial é, são sempre os 10 ou 12, batata”.

Ao analisar o peso de cada forma de capital na estrutura de distribuição que define o


princípio hierarquizador do campo, evidências indicam que, contrariando a tendência
esperada, não é a posse de capital cultural (qualificações e competências) ou econômico (alta
extração social) que asseguram uma posição dominante no campo. Ao longo de quase 5 anos
de convivência com o meu objeto de estudo, vi várias pessoas muito talentosas, de excelente
formação, algumas de famílias ricas, de muitas posses, entrarem e sairem da empresa em um
curto de espaço de tempo. Saíram, na maioria dos casos, desapontadas com as promessas que
não foram cumpridas, com expectativas que não foram atendidas, com as dificuldades de
levar adiante seus projetos profissionais, e, sobretudo, pelo distanciamento e a falta de um
diálogo com a cúpula da empresa. As pessoas não conseguiram ser ouvidas.
As disposições manifestas da confraria se aproximam do polo das relações
substantivas, das relações baseadas na afinidade, na lealdade, e na manutenção da
sobrevivência do grupo. Portanto, a forma de capital mais valiosa no campo é o capital social,
o senso de pertencimento a esse grupo.

“Eu acho que a decisão estratégica do M. de montar um grupo dele aqui dentro, a decisão estratégica
primeira é o seguinte, primeiro eu preciso de gente de confiança que possa fazer com que eu trabalhe,
com que eu crie o meu grupo de pessoas, os meus amigos. Essa, as pessoas que vão comigo até onde eu
for, que se abracem comigo e vão até o fim. Essa é a decisão estratégica primeira, é o drive principal
estratégico dele de montagem da equipe.”

“E isso é regra, isso culturalmente é o que vai ser implantado aqui. É essa relação de fidelidade, e de
honestidade, de amizade. A tendência da equipe, se você examinar a equipe hoje, você vai ver
claramente que a tendência da equipe é essa, que o M. constrói com as pessoas é essa relação que ele
tem com os amigos.

Nesse sentido, a confraria fica sujeita a uma forte influência do contexto histórico,
social e cultural onde está imbricada, estando propensa, assim, a reproduzir, em muitas
situações, aspectos característicos da sociedade brasileira:
106

i) A tendência à centralização de poder e ao distanciamento nas relações entre


diferentes grupos locais, que se manifestam por um estilo aristocrático de
gestão;
ii) A presença, ainda marcante, de um alto grau de personalismo e uma
valorização exacerbada das relações pessoais nas organizações, que passam a
ver o nepotismo como algo normal, tornando-se eventualmente complacentes
com o controle e a cobrança de resultados, se comparados à lógica que orienta
a atuação de grandes empresas, especialmente grupos multinacionais.
107

6 CONCLUSÕES

"Look at any handbook on your shelf and what you’ll find is that most chapters are written in third-
person, passive voice. It’s as if they’re written from nowhere by nobody. [...] By not insisting on some
sort of accountability, our academic publications reinforce the third-person, passive voice as a
standard, which gives more weight to abstract and categorical knowledge than to the direct testimony of
personal narrative and the first-person voice. It doesn’t even occur to most authors that writing in the
first person is an option. They’ve been shaped by the prevailing norms of scholarly discourse within
which they operate. Once the anonymous essay became the norm, then the personal, autobiographical
story became a delinquent form of expression." (ELLIS e BOCHNER, 2000, p. 734).

Encerro este trabalho da mesma forma como comecei: com uma citação no original,
para não correr o risco de perder a riqueza e o rigor da mensagem em um tradução, que por
melhor que fosse, não seria mais do que uma leitura de “segunda mão”.
Essa mensagem corrobora com a difícil decisão que foi para mim a opção pela
abordagem etnográfica, um caminho “pantanoso” mais certamente gratificante pela
possibilidade de colocar o corpo como o veículo principal do aprendizado, pelo desafio
intelectual e pessoal da imersão total requerida para apreensão do fenômeno observado, e pela
oportunidade de poder refletir sobre as condições sociais não apenas da sua construção mas
também sobre a própria construção do conhecimento acerca dele.
Era natural que o trabalho enveredasse por um linha não muito convencional, e
seguisse um estilo mais “literário”, por assim dizer, mas sem que isso represente, em
momento algum, comprometer o compromisso com a fundamentação teórica e com a
vigilância epistemológica (fundamental, principalmente em empreendimentos dessa natureza),
com o exame cuidadoso dos referenciais e dos conceitos utilizados diante do contexto da
pesquisa, e com a seleção dos procedimentos metodológicos adequados para a aproximação
do fenômeno.
Bourdieu me pareceu a escolha perfeita, em virtude da sua perspectiva sobre o mundo
social como um espaço de conflitos e disputas, e por ter se deparado durante suas atividades
de pesquisador com desafios (talvez) semelhantes aos meus: investigar os mecanismos de
reprodução dentro da sua própria cultura.
Acredito que o grande mérito de Bourdieu tenha sido sua persistência em combater os
“rótulos”, que delimitam recortes teóricos, que estimulam uma especialização exagerada das
disciplinas nas ciências sociais, que instituem a ditadura dos paradigmas, que reforçam as
108

cômodas mas problemáticas dicotomias, dificultando a apreensão da complexidade e a


diversidade dos fenômenos sociais.
Sua insistência na existência de um princípio gerador de práticas com base nas
experiências sucessivas que os agentes têm com o mundo social, e na maneira como essas
experiências são incorporadas na forma de disposições duráveis, abrem um universo de
possibilidades para pesquisadores de organizações, uma alternativa às frequentes análises que
são feitas onde a importância fica limitada a referências ligadas ao “mundo técnico”.
Essas análises parecem desconhecer que o Brasil é um país "tocado" muito mais a
favores e empregos no governo do que a competição e mercado, ainda que grande parte da
comunidade prática desconheça esse fato (por ignorância ou por conveniência) em
detrimento de uma visão menos voltada para os paradoxos e, certamente, mais pragmática e
progressista, onde a relevância está quase que exclusivamente voltada para o "econômico",
para o "estratégico", para o "competitivo”.
A história do mundo corporativo está repleta de decisões de empresários que vão
contra seu próprio interesse ou contra aquele de sua firma. A explicação que Bourdieu dá a
esse respeito, é que essas decisões, contrariando o pensamento dominante no campo da
administração, não ocorrem unicamente por meio da obediência a uma lógica econômica
baseada no cálculo racional. Para Bourdieu, as regras da economia se aplicam a todas as
práticas, materiais ou simbólicas. A lógica a orientar o comportamento dos agentes,
empresários inclusive, é aquela do aumento do capital simbólico, a “magia” capaz de
legitimar e dissimular os mecanismos de dominação no mundo social, nas suas mais variadas
manifestações, e também no assim chamado mundo corporativo, que não é nada mais do que
um recorte parcial das interações que ocorrem no âmbito maior do espaço social.
Nesse sentido, as confrarias, como um fenômeno organizacional brasileiro, revelam a
cultura da pessoalidade, tão característica do nosso universo social, que frequentemente impõe
um reordenamento de interesses: os interesses pessoais tornam-se mais importantes que os do
conjunto da sociedade ocasionando uma falta de coesão na vida social brasileira, "na medida
em que cada um favorece os seus e os membros de seu clã em detrimento do interesse
coletivo" (MOTTA e ALCADIPANI, 1999, p. 8). Elas reproduzem nas organizações, em
maior ou menor grau, o lado hierarquizado da nossa sociedade e, sob o manto da legitimidade
e da despersonalização que o espaço das organizações lhes conferem, ajudam a manter a
própria estrutura da nossa sociedade de forma silenciosa mas poderosa.
109

Refletindo sobre a história do Grupo XYZ, fiquei convencido que a cultura da


pessoalidade sempre acompanhou a trajetória do grupo, nas diferentes fases e nos diferentes
arranjos de poder que se sucederam no comando da Companhia.
Foi assim na “fase pioneira”, onde mesmo comandada por estrangeiros, mantinha em
seus primeiros escalões diversos “amigos” das elites influentes na época, que efetivamente
viabilizaram a instalação do negócio no país.
Na “fase brasileira”, apesar da reorganização da estrutura de poder com a saída
gradual dos canadenses e a posse de brasileiros nos cargos chave da Companhia, essa prática
talvez tenha fica ainda mais sedimentada. Essa fase deixou marcas impressionantes na
memória coletiva do grupo. As poucas pessoas mais antigas que permaneceram na
Companhia depois da grande reestruturação do final dos anos 90, e com as quais tive a
oportunidade de conhecer e conversar sobre esse passado, foram unânimes em reconhecer a
personalidade forte do presidente da Companhia nesse período e o legado que ele havia
deixado. Ele também montou sua confraria, contratando pessoalmente toda sua equipe,
comando os negócios de forma enérgica e centralizadora. R., o executivo que o sucedeu
depois de sua aposentadoria, era parte de sua equipe e um de seus fiéis escudeiros. Era natural
que houvesse uma continuidade daquela estrutura de poder, e que a filosofia de negócio e o
estilo gerencial pouco se modificassem na transição de comando.
Curiosamente, algo semelhante podia ser visto também no Grupo ABC. O presidente
do Grupo ABC conduziu, por quase meio século, um grupo empresarial onde o poder estava
claramente centralizado nas suas mãos e no fechado círculo de “sócios”, seus colaboradores
mais próximos que o acompanharam por toda a trajetória do grupo, com atuação marcante nas
manobras para aquisição da XYZ. A “fase de transição”, apesar de todas as turbulências
externas e das mudanças no direcionamento dos negócios, foi um período de continuidade e
fortalecimento dos arranjos de poder que já existiam anteriormente.
A “fase pragmática” poder ser vista, talvez, como o primeiro sinal mais claro de
ruptura com essa cultura de pessoalidade. As visitas ao Brasil tornaram-se muito mais
frequentes, as solicitações de informações gerenciais sobre a situação dos negócios
aumentaram sensivelmente, e a cobrança por resultados passou a ser muito mais enfática. Os
tempos são, definitivamente, de pouca tolerância com prazos não cumpridos e metas não
atingidas. Sinais evidentes da pressão impiedosa dos mecanismos de controle do mercado.
É claro que essa nova situação impôs tensões consideráveis na Companhia no Brasil,
abalando a estabilidade da confraria. As contradições apontadas no decorrer desse trabalho
110

entre a lógica que orientava as práticas dos membros da confraria e a lógica instrumental
característica de organizações multinacionais vieram à tona, ficaram perigosamente expostas.
Isso provocou mudanças na estrutura da XYZ no Brasil, e, junto a isso, a dolorosa
decisão de remanejar alguns “amigos” e afastar outros. Novos arranjos entre as operações no
Brasil também ocorreram, gerando novos confrontos de forças no campo, na medida em que
empresa do grupo que não respondiam diretamente ao presidente foram sendo incorporadas e
unificadas sobre seu comando.
A confraria foi também se flexibilizando durante o tempo, mais pela necessidade de
incorporar pessoas com a experiência e competências necessárias para cuidar de interesses
onde aquele “grupo fechado” não se sentia confortável e seguro para comandar diretamente,
ou pela impossibilidade prática de gerenciar um negócio que crescia em volume e em
complexidade. Mas é visível que o núcleo da confraria permanece, resiste.
Em Distinction (BOURDIEU, 1984), Bourdieu usa a expressão “cultural goodwill”
para representar uma espécie de “boa vontade”, não necessariamente consciente, das frações
dominantes no espaço social em aceitar em seu mundo, aqueles que adquiriram alguma
competência cultural distintiva, exclusiva das frações dominantes. Para esses novos entrantes,
essas competências não são “naturais”, “dadas” ou “herdadas”, porque não são compatíveis
com seu habitus: foram adquiridas mas não foram socialmente inculcadas. Acredito que a
analogia do conceito de “cultural goodwill” com a flexibilidade da confraria é bastante
pertinente e expressa com bastante fidelidade os significados que essa aparente concessão
representa.
Não é fácil pensar e dizer o que significou para mim a experiência de pesquisar na
própria organização onde exerço minha atividade profissional, e, em particular, o desafio
intelectual e também pessoal que representou a realização dessa pesquisa.
Hesitei muitas vezes se deveria manter uma postura mais discreta, convencional,
omitindo alguns fatos e mantendo os verdadeiros protagonistas do fenômeno que investiguei
no anonimato, ou se deveria me expor à crítica e ser fiel às experiências pelas quais passei,
debruçar-me sobre elas e extrair os significados reais por trás do fenômeno das confrarias,
coerente com as minhas escolhas teóricas e metodológicas, e com a minha postura
epistemológica.
Mas o aprendiz é aquele que se oferece voluntariamente para aprender um ofício ou
uma arte, e deve estar ciente de que a tarefa envolverá dedicação e entrega, e que o caminho
nem sempre será fácil.
111

Este trabalho me fez refletir profundamente sobre meu passado, sobre meus valores,
sobre a minha visão de mundo, sobre minhas escolhas, sobre o sentido que nós damos às
nossas vidas. De todo esse esforço, uma mensagem parece ter ficado bem clara para mim:

A vida só faz sentido se olharmos para trás.


É uma pena que tenhamos sempre que olhar para frente.
112

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8 ANEXOS

8.1 Objetivando o sujeito objetivante (ou um esboço de auto-análise ...)

Qual o efeito das disposições associadas à minha posição de origem, em relação aos
espaços sociais em cujo interior elas se atualizam, na minha postura diante do mundo social,
na maneira pela qual eu apreendo esse mundo e dou sentido às representações que dele faço, e
nas orientações e/ou determinações das práticas por meio das quais meu corpo e mente são
expostos ao jogo permanente da interação social?
Meu principal objetivo neste capítulo é procurar responder essas questões de forma
sistemática, empreendendo um exercício consciente e apurado de reflexividade que permita
identificar a natureza dos vieses que trago para minhas análises e tentar explicar suas
possíveis influências na minhas tomadas de posição.
Creio que, agora, ficarão esclarecidos os motivos que me levaram a dedicar um
capítulo inteiro neste trabalho (ver “2.1. Notas Biográficas”) para investigar especificamente
as conexões entre a vida e a obra de Bourdieu, e a tomar emprestado (mais uma vez...) o título
de um de seus últimos textos “Esquisse por une auto-analyse”, traduzido e publicado no
Brasil com o título “Um esboço de auto-análise” (BOURDIEU, 2005a). A despeito do que
esse título possa suscitar, não se trata (em ambos os casos, tanto na obra original como no
meu trabalho) de um mero relato autobiográfico, mas um compromisso explícito com a
vigilância epistemológica, condição fundamental para realizar um projeto científico
particularmente problemático como a análise etnográfica. É sobre levar a reflexividade ao seu
extremo, sobre fazer uso da fundamentação teórica e dos procedimentos metodológicos
adequados para dissecar preconceitos, disposições e inclinações pessoais, e ter a coragem
necessária para enfrentá-los e exorcizá-los na penosa tarefa da auto-objetivação.
Apesar das diferenças evidentes – e, aqui, refiro-me obviamente à sua trajetória
acadêmica, ao porte e importância de sua obra –, reconheço na biografia de Bourdieu
inúmeros pontos de convergência, a começar pela estranha combinação de sentimentos, quase
que antagônicos: uma necessidade incontrolável de isolamento convivendo com a ansiedade
pelo abandono. Mas a tarefa de auto-objetivação requer um esforço de reflexão que remeta ao
lugar primeiro do processo de socialização, a família, juntamente com o conjunto de
propriedades constitutivas e distintivas do meio social de origem que a particularizam.
128

Meu pai, primogênito de uma família de origem italiana, pequena para os padrões da
época (meus avós paternos tiveram apenas dois filhos), nasceu numa pequena cidade no
interior de Minas Gerais, no ano de 1930. A cidade, chamada Angustura, fora fundada por
imigrantes italianos que chegavam ao Brasil no início do século, fugindo da guerra que
devastava a Europa. Sua infância modesta mas tranquila, em meio a uma paisagem
tipicamente rural, deixou lembranças fortes que o acompanharam por toda a vida. Chegou a
adquirir um sítio na região de Vassouras na década de 1980, batizado com o nome de sua
cidade natal, "Angustura", onde conseguiu realizar seu sonho de construir um pequeno curral,
ter uma vaquinha leiteira, o prazer de acordar cedo para o ritual da ordenha, etc. Não
conseguiu manter o sítio por muito tempo em função dos altos custos de manutenção. A auto-
disciplina e uma precaução exagerada com o futuro, faziam dele uma pessoa extremamente
metódica, cautelosa e pouco confortável com situações de incerteza, principalmente em
questões de ordem financeira.
A família mudou-se de Angustura para o Rio de Janeiro na década 1940, fixando
residência no centro da cidade, num sobrado na Rua dos Andradas, próximo à esquina da Rua
Marechal Floriano, onde meu avô montou um pequeno negócio de alfaiataria. O Rio de
Janeiro era, na época, a capital da república, palco de tudo que ocorreria de importante na vida
política e cultural do país. Meu avô chegou a ter bastante sucesso no negócio, com uma
clientela fiel, na sua maior parte, de políticos e militares.
Meu pai começou a trabalhar cedo, em torno dos 15 anos, e seguiu conciliando o
trabalho com os estudos. Cumpriu o alistamento obrigatório no exército, formou-se como
técnico em contabilidade e iniciou, ainda jovem, uma longa carreira numa empresa
multinacional alemã. Foi praticamente o único emprego que teve durante toda a vida até sua
aposentadoria, em meados da década de 1980. Casou-se em 1960, já com 30 anos, e teve um
início de vida muito difícil: o esforço para comprar o pequeno apartamento de dois quartos na
Tijuca (na ocasião, o sonho de consumo de uma classe média emergente), a chegada do
primeiro filho logo no primeiro ano de casamento, as dificuldades financeiras para arcar com
o pagamento do financiamento imobiliário etc. Com 37 anos, já estava com três filhos, muitas
despesas e muito trabalho extra à noite para complementar o orçamento doméstico (fazia
escriturações contábeis como autônomo), uma vez que minha mãe havia deixado de trabalhar
logo depois do nascimento do primeiro filho do casal, meu irmão mais velho.
As disposições que foram moldando o habitus de meu pai têm, seguramente, uma forte
influência da sua origem italiana – o tom de irreverência e crítica sempre presente nas
relações sociais e a extrema valorização da família -, e do espírito do imigrante que deixa seu
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país de origem para iniciar a vida em terras desconhecidas, convivendo com todas as
dificuldades e desafios inerentes. Seu habitus, enquanto princípio gerador de práticas ao
mesmo tempo em que é atualizado por elas, também foi profundamente afetado pelas relações
no interior de sua família: um pai autoritário, preconceituoso e, talvez, um pouco racista; um
irmão de temperamento extrovertido e carismático mas que seguiu desde jovem uma trajetória
errante, acumulando vários casamentos fracassados e filhos pelo caminho, que nunca
conseguiu se fixar num mesmo trabalho por muito tempo, que sempre resistiu a idéia de ser
empregado de alguém, e cujos deslizes na vida levaram-no até mesmo a ser preso por alguns
anos por estelionato, fato que contribuiu, decerto, para a decadência financeira e emocional
dos meus avós. Meu pai nunca conseguiu superar essa situação familiar conflituosa. Ao
mesmo tempo em que assumia a responsabilidade por assegurar o equilíbrio da família e o
futuro dos meus avós, sentia-se desprezado por eles pela falta de rigor com que lidavam com
os desvios de caráter de seu irmão mais novo, um tratamento diferenciado que influenciou
fortemente a construção de seus valores e de sua visão de mundo. A preocupação de
respeitabilidade e o respeito pelas convenções fizeram de meu pai um homem sempre
preocupado com o futuro, conservador, disciplinador e austero com questões financeiras e
com as pessoas, em especial, com os filhos. Por outro lado, sua dedicação integral à família,
seu compromisso em nos oferecer uma boa condição de vida (sem luxos ou supérfluos mas
com mesa farta), o prazer de ter a família sempre reunida na hora do jantar, nos momentos de
lazer, nos eventos e datas importantes, e seu rigor com nossa formação escolar e moral,
tiveram, sem dúvida, papel preponderante na formação das minhas disposições.
Minha mãe proveio de um meio social de origem bastante humilde. Filha mais nova de
uma família de cinco filhos, nasceu em 1933, em Campos, uma cidade no interior do Rio de
Janeiro que tentava sobreviver à sombra de seu passado colonial, quando foi um importante
polo de produção nos áureos tempos do ciclo da cana-de-açúcar. Se quer conheceu o pai, que
falesceu antes do seu nascimento. A grande dificuldade de criar os filhos sozinha numa época
em que as mulheres mal iniciavam seus passos no mercado de trabalho, levou minha avó
materna a deixar os filhos com parentes. Nessa época, minha mãe veio para o Rio de Janeiro,
para ficar em um internato para meninas carentes mantido por um convento de freiras no
bairro do Catumbi. Dentro do que as condições financeiras permitiam, minha avó vinha
periodicamente visitar minha mãe no internato. Mas as visitas não eram tão frequentes como
minha mãe gostaria. Mas isso não lhe causou revolta. Pelo contrário, as dificuldades da vida
aceleraram seu amadurecimento. Ela sempre compreendeu as circunstâncias daquele ato que,
em momento algum, chegaram a abalar seu sentimento de amor e gratidão pela minha avó.
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Durante o tempo no internato, um fato curioso: minha mãe chegou a conhecer pessoalmente o
Presidente Getúlio Vargas, que fazia doações regulares às freiras do convento. Afirma até
hoje que Getúlio quis adotá-la mas as freiras tinham autorização expressa da minha avó para
não oferecer minha mãe para a adoção. Foi obrigada a deixar o internato aos 18 anos, idade
limite para as meninas permanecerem como internas. Alugou um quarto em casa de família,
trabalhou como doméstica, recepcionista e outras funções semelhantes, até chegar à mesma
empresa onde meu pai trabalhava, para candidatar-se ao posto de telefonista. Chegou para os
testes e entrevistas sem nunca ter visto uma mesa telefônica na vida, mas não podia desistir
pois precisava desesperadamente daquele emprego. Ao perceber a presença de um técnico que
fazia manutenção no equipamento, aproveitou-se de um atraso no início do processo de
seleção e dirigiu-se discretamente para perto do técnico e perguntou tudo que podia e que o
tempo permitiu. Muito comunicativa, de boa aparência, tinha facilidade e, principalmente,
disposição para aprender. Acabou conseguindo se sair bem nos testes e foi contratada. Alguns
anos mais tarde, conheceria meu pai, namorariam por quase 5 anos, tempo que levaram para
conseguir reunir recursos financeiros suficientes para comprar e mobilhar a nova casa. A
experiência no internato e sua trajetória de vida desempenharam um papel determinante na
formação de suas disposições e na construção do seu habitus, principalmente na inclinação
para uma visão extremamente realista e pragmática do mundo e das relações sociais, na
vocação natural para a simplicidade, em antagonismo com a experiência protegida da
existência burguesa, e na virtude para o trabalho árduo e para a dedicação extrema à família
(uma compensação pessoal por aquilo que não pode ter quando criança). Esse conjunto de
experiências contribuíram para forjar uma atitude frequentemente de desconfiança em relação
aos outros, e um certo despreparo, chegando, por vezes, a um destempero, para enfrentar
situações estranhas ao seu pequeno mundo, com as quais não tinha a competência natural para
lidar.
Fui descobrindo aos poucos as características peculiares do meu habitus, sobretudo,
talvez, pelo olhar dos outros (nem sempre traduzidos em comentários necessariamente
elogiosos...) e pelos longos períodos de reflexão solitária sobre a história de vida de meus
pais, e suas influências sobre minhas disposições e inclinações, e sobre os vestígios do meu
próprio passado que se manifestavam na minha forma de pensar o mundo e de agir sobre ele.
Segundo filho de uma família de três irmãos, minha infância até meus 12 anos foi na
Tijuca, de onde me mudei para o Andaraí, um bairro vizinho, onde permaneci até meus 26
anos. Fui criado como um típico garoto de “zona norte” em contraste com os garotos de “zona
sul”, normalmente oriundos de famílias tradicionais e com mais posses. Em linguagem
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bourdieusiana, diria que seriam, em sua maioria, grupos dotados de um volume maior de
capital econômico e cultural, e, consequentemente, localizados mais favoravelmente na
hierarquia de posições possíveis dentro do espaço social. Existe, historicamente, uma
rivalidade curiosa entre “tijucanos” e “garotos de zona sul”, iniciada, possivelmente, a partir
da migração das famílias cariocas tradicionais dos bairros mais centrais da cidade para a
região litorânea mais distante, a partir da década de 1950, em razão do acelerado crescimento
nas áreas urbanas. A ocupação iniciada pelo bairro de Copacabana, foi se estendendo mais
tarde para os bairros de Ipanema, Leblon, Gávea e Jardim Botânico. Essa cisão, ao meu ver,
teve papel importante na formação das disposições que ajudaram a criar a rivalidade que
ainda sobrevive até os dias de hoje. De uma maneira geral, os “tijucanos” se consideram a
elite da zona norte. Diria mesmo que seu comportamento discriminatório em relação a
moradores de outros bairros da zona norte não é muito diferente daquele que nutre a
rivalidade com os garotos da zona sul. A Tijuca, de certa maneira, era a “capital” da zona
norte carioca, o local de desejo de todas as pessoas que moravam em bairros da periferia. A
distância da praia não incomodava tanto os tijucanos pois suas horas de lazer eram
normalmente passadas nos clubes, nas praças e nas ruas tranquilas do bairro, situação bastante
diferente da realidade de hoje em função da intensificação do processo de favelização no
bairro e o agravamento geral da situação social no Brasil a partir da década de 1990. Mas de
alguma forma, todos se conheciam, o que dava ao bairro um toque quase que provinciano. Era
comum ver várias gerações de uma mesma família morando próximas, as vezes na mesma
rua. Por outro lado, a proximidade da praia, o contato frequente com os modismos
importados, a efervescência cultural e intelectual que agitava a vida noturna dos bairros da
zona sul carioca, ajudaram a moldar gerações com estilos de vida próprios e práticas
distintivas, afastando-os, cada vez mais, do perfil tradicional e conservador típico de classe
média, traço característico do “habitus tijucano”.
As particularidades do meu habitus, as quais, a exemplo de certa propensão ao orgulho
e à ostentação masculinos, um gosto pronunciado pelo debate e pela discussão, quase sempre
um pouco teatralizada, a tendência a indignar-me por coisas pequenas, hoje me parecem estar
relacionadas com as particularidades sociais e culturais da minha “herança tijucana”, que fui
percebendo e compreendendo melhor por analogia com as situações novas que
experimentava, na medida em que o destino me afastava cada vez da minha condição social
de origem e me colocava em contato mais próximo com o universo das relações sociais
associadas ao modo de vida típico da zona sul. Foi na verdade bem devagar que compreendi
que o fato de algumas de minhas reações mais banais serem por vezes mal interpretadas talvez
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se devesse à maneira – o tom, a voz, o gestual – como as exprimia, mistura de timidez com
agressividade, a qual poderia ser tomada como demasiadamente taxativa em contraste com a
elegância natural dos “bem-nascidos” com os quais passei a conviver. Por outro lado, percebo
hoje, claramente, que naquele momento meu habitus já havia se modificado, uma
transformação (ou, para ser mais preciso com o referencial bourdieusiano, uma atualização)
motivada tanto pelo contato com as mesmas situações e condições as quais criticava como
pelo exercício de práticas estranhas ao meu extrato social de origem. Os desejos materiais,
típicos da infância e da adolescência, que não conseguira satisfazer devido à postura austera e
inflexível de meu pai, levou-me prematuramente a uma busca frenética por conquistas
financeiras e, talvez, por uma busca inconsciente por reconhecimento e distinção social.
Adquiri novos gostos, novos interesses, um novo estilo de vida, uma nova forma de apreciar
as coisas, de consumir e de me apropriar de cultura. As visitas periódicas à casa de meus pais,
ou qualquer outra situação que me colocasse, de forma nua e crua, diante do meu passado,
causavam-me uma sensação desconfortante de estranheza. Da mesma forma, sentia-me pouco
à vontade com a superficialidade do modo de vida daqueles que haviam nascido com o
privilégio garantido pela origem abastada, das facilidades em poder maximizar o uso do
tempo para manter e/ou ampliar a posse das diversas formas de capital cultural e social,
recursos necessários, e, por essa razão, valiosos para assegurar sua posição distintiva e
dominante. Graças a esse “aprendizado pelo corpo”, pude comprovar, no mundo real das
experiências vividas, a importância do tempo como recurso ou variável fundamental para
compreender as estratégias de conversibilidade do capital cultural em capital econômico e o
seu papel como um poderoso instrumento de reprodução social. Esse conhecimento pelo
corpo me ajudou, também, a constatar empiricamente as propriedades dinâmicas da noção de
habitus, estrutura estruturada e estruturante que orienta ao mesmo tempo em que é atualizada
pelas práticas.
Tal como foi visto na biografia de Bourdieu, particularmente na sua relação com o
meio intelectual parisiense, também vivenciei a sensação de me ver como um estrangeiro, um
“habitus clivado”, marcado por contradições, alternando reações enérgicas de indignação
contra as injustiças e os privilégios estatutários de classe com posturas elitistas e
discriminatórias em relação àqueles ou às situações que mais me aproximavam da minha
posição social de origem. O destacado desempenho escolar desde cedo também teve uma
forte influência na minha atração irresistível pela crítica e pela querela, no espírito de rebeldia
que me acompanhou por toda a vida, na relação sempre conflituosa com a instituição escolar,
na minha resistência manifesta, já nas relações no trabalho, a participar dos rituais
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corporativos, dos jogos e articulações políticas que frequentemente colocavam (ou colocam)
os interesses da organização, a competência profissional e o bom senso em segundo plano.
Lembro-me do desprezo que dispensava àqueles que se submetiam aos “jogos de empresa”,
pessoas cujas qualificações profissionais eram normalmente duvidosas. Lembro-me da
facilidade de me comunicar e de desenvolver relacionamentos pessoais autênticos, honestos e
sinceros, em contraste com uma certa falta de interesse ou de motivação para cultivá-los e
transformá-los em amizades perenes. O gosto pelo isolamento, para dar espaço à minha
necessidade de contemplação do mundo, a tentação pelo distanciamento do convívio social
para poder desfrutar de uma melancolia nostálgica mas igualmente prazeirosa de revisitar e
refletir sobre imagens do meu passado e sobre situações presentes e futuras que se
apresentavam para mim, contribuíram, sem dúvida, para um esfriamento de minha relação
com parentes mais próximos e com amigos de infância e da juventude.
A sensação provocativa de estar sozinho no mundo, de me bastar, de poder sempre, de
algum jeito, me virar sem ajuda alheia, o êxito escolar, tudo contribuiu para produzir, de
alguma forma, um sentimento perturbador de auto-suficiência que desencadeava em mim
comportamentos conflitantes: ora me sentia rejeitado, ora me enchia de brio e respondia a
quem fosse com ataques de fúria e ironia, uma língua afiada, sempre pronta para destilar
arrogância em críticas contundentes.
O isolamento, porém, permitiu-me o exercício profundo da reflexividade que me
ajudou a estabelecer um distanciamento necessário do real, das minhas experiências de vida e
das relações sociais que observava, para poder desenvolver uma crítica menos emocional e
passional, e mais consciente e substanciada teoricamente, capaz de controlar meus vieses, de
revelar as contradições entre os discursos e as práticas, e identificar os mecanismos
disfarçados de reprodução social imbricados na realidade organizacional na qual estava
inserido, simultaneamente, tanto como membro participante (um funcionário ocupando cargo
gerencial em tempo integral) quanto como observador sistemático.
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8.2 Correspondências trocadas durante a pesquisa


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