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do Antigo Testamento
História e Literatura
do Antigo Testamento
Acir Raymann
Conselho Editorial EAD
Dóris Cristina Gedrat (coordenadora) Andrea Eick
Mara Lúcia Machado André Loureiro Chaves
Astomiro Romais Cátia Duizith
CDU 222
ISBN 978-85-7528-372-1
Projeto Gráfico: Humberto G. Schwert Dados técnicos do livro
Editoração: Rodrigo Saldanha de Abreu Fontes: Minion Pro, Officina Sans
Capa: Juliano Dall’Agnol Papel: offset 90g (miolo) e supremo 240g (capa)
Medidas: 15x22cm
Coordenação de Prod. Gráfica: Edison Wolf
Impressão: Gráfica da ULBRA
Abril/2011
Sumário
Apresentação............................................................... 7
1 | O Antigo Testamento.................................................... 9
4 | O Pentateuco – Gênesis............................................... 37
5 | Êxodo....................................................................... 49
6 | Levítico.................................................................... 65
7 | Números................................................................... 73
8 | Deuteronômio............................................................ 83
9 | Os profetas – Isaías.................................................... 91
10 | Os Escritos – Salmos..................................................109
Bibliografia..............................................................129
Apêndice.................................................................133
Apresentação
Esta disciplina se chama História e Literatura do Antigo Testamento.
Comecemos por definir o que pretendemos com esse título. Iniciemos com a
última expressão: Antigo Testamento. O nome “Antigo Testamento” provém de
2 Coríntios 3.14, em que o apóstolo Paulo emprega a expressão “antiga aliança”
para designar a Bíblia hebraica. Paulo reporta-se aqui à ideia da “nova aliança”,
mencionada em Jeremias 31.31. Na visão cristã, o conceito “Antigo Testamento”
implica que a Bíblia compõe-se de duas partes, a saber, o Antigo ou Primeiro
Testamento e o Novo ou Segundo Testamento.
O termo “Testamento” vem da língua latina, uma tradução do termo hebraico
b rit, que significa “aliança”. Claro, recentemente no diálogo entre cristãos e
e
fosse uma língua vocálica).1 Todos esses artifícios foram criados posteriormente,
quando a língua hebraica deixava de ser a língua franca (tipo assim inglês da época)
para se tornar a segunda língua ou até mesmo uma língua morta na Palestina.
A atual divisão em capítulos, portanto, não provém dos autores bíblicos, mas é
uma iniciativa do arcebispo da Cantuária chamado Stephan Langton, no século XIII.
A divisão em versículos foi feita bem mais tarde, por volta de 1550. Os textos bíblicos
encontrados em Qumran (em português Cumrã), nas cavernas do mar Morto em
1947, mostram que já antes de Jesus o texto do Antigo Testamento estava dividido
em capítulos e versículos que serviam, sobretudo, para fins litúrgicos. Mais tarde,
na época rabínica, foram determinados os parágrafos e os trechos de leitura para o
culto; versículos eram determinados por acentos gráficos, mas não numerados.
Também se deve levar em conta que os títulos dos capítulos, comum na
maioria das traduções, são acréscimos posteriores cuja intenção é estruturar o
texto e facilitar a sua compreensão. Neste livro, os nomes próprios bem como o
sistema de abreviação de livros bíblicos e de indicação de capítulos e versículos
seguem a versão revista e atualizada de João Ferreira de Almeida, editada pela
Sociedade Bíblica do Brasil.
Estudar História e Literatura do Antigo Testamento demanda muito espaço e
tempo. Visto que numa disciplina como esta sofremos com a carência de ambos,
foi necessário optar por aprofundar certas partes representativas do Primeiro
Testamento para fornecer a você, estudante, uma ideia da sua estrutura, conteúdo,
mensagem e teologia. Em razão disso, o Pentateuco – que forma a primeira parte
do cânone –, por ser o fundamento dos demais livros do Antigo Testamento,
será tratado com maior atenção e amplitude.
A segunda parte está representada por aquele que é considerado o maior
profeta do Antigo Testamento, a saber, o profeta Isaías; e a terceira parte tratará
de um estudo mais amplo e detalhado daquele que é o livro mais popular do
Antigo Testamento entre os cristãos, ou seja, Salmos.
Acir Raymann
|| 1 Além da ausência de vogais, os versículos eram escritos juntos, sem separação entre as palavras.
Imagine você o primeiro versículo da Bíblia em português escrito desta maneira: “Nprncpcrdsctrr”.
Isso é Gn 1.1 sem as vogais (Almeida Revista e Atualizada).
1
O Antigo Testamento
1.1 Por que o Antigo Testamento?
Por que estudar o Antigo Testamento? Há necessidade de se estudar o Antigo
quando o Novo já está aí? E se o Novo chegou, existem motivos para se voltar
ao Antigo?
Não são poucas as vezes em que as pessoas formulam tais perguntas. As
respostas talvez fiquem claras se prestarmos atenção para o que o próprio
Jesus considerou ser o Antigo Testamento. Pelo estudo dos evangelhos ficamos
sabendo que Jesus realmente tinha o Antigo Testamento em alta consideração
ou, mais precisamente, o considerava como Palavra de Deus. Para Ele o Primeiro
Testamento, como também chamamos, era Palavra de Deus. O diálogo de
Jesus com os dois discípulos na estrada de Emaús, depois da Sua ressurreição,
é bastante revelador.
No relato de Lucas (24.13-31) se percebe claramente que aqueles dois
discípulos não haviam acolhido plenamente o testemunho das mulheres que
afirmavam que Cristo havia ressuscitado. A eles Jesus diz: “Ó néscios e tardos
de coração para crer em tudo o que os profetas disseram!” (v. 25). E passou
a lhes mostrar, fundamentado nas Escrituras do Antigo Testamento, como
tudo já estava previsto. E Lucas continua dizendo: “E, começando por Moisés,
discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a Seu respeito constava
em todas as Escrituras” (v. 27). Note a expressão: “...em todas as Escrituras”. Jesus
fundamentou o Seu argumento no livro conhecido como “as Escrituras” e bem
10 O Antigo Testamento
o teu próximo e odiarás o teu inimigo”. O termo dito tem a ver com “tradição”,
“cultura”, “costume.” É diferente do está escrito. A expressão “foi dito” é uma
referência que Jesus faz aos anciãos, escribas, fariseus; por outro lado, a expressão
“está escrito” tem a ver com Deus e Sua Palavra – o Antigo Testamento. Apenas
a primeira parte dessa citação (Lv 19.18) está no Antigo Testamento; o trecho
seguinte, não. O que Jesus faz é contradizer o que os fariseus acrescentaram.
Jesus critica e condena os acréscimos, as tradições impostas, pois estas não
fazem parte da Escritura. O que é Escritura ou Palavra de Deus é o que consta
no Antigo Testamento.
Uma análise mais detalhada seria necessária para nos convencermos do
valor e da importância que Jesus dava ao Antigo Testamento. Como isso não é
possível neste espaço, mesmo assim algumas referências são relevantes. Jesus deu
início ao seu ministério em Cafarnaum, ao ler Isaías na sinagoga (Lc 4.16-19).
Perante todos declarou: “Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir” (Lc
4.21). Na face dos saduceus disse que estes estavam errados “não conhecendo
as Escrituras” (Mt 22.19). Apelou ao Antigo Testamento para justificar as suas
ações no dia do sábado (Mt 12.5), sua atitude ao expulsar os cambistas do templo
(Mt 21.13) e o fato de ter aceito o louvor do povo na sua entrada triunfal em
Jerusalém (Mt 21.16). Referiu-se à história de Jonas e o grande peixe como figura
da Sua ressurreição (Mt 12.40), à criação de Adão e Eva pelas mãos de Deus
(Mc 10.6). Diante de seus ouvintes e principalmente diante de seus opositores,
Jesus mostra que a fonte da vida e da salvação tem seu início nas promessas e
correta interpretação delas no Antigo Testamento.
exemplo, são conhecidas, apesar de a extensão do seu território ter sido alterada
no transcorrer da história. Além dos territórios, também várias cidades antigas
como Jericó, Jerusalém e Damasco podem ser identificadas e continuam a ter
importância ainda hoje.
O desenvolvimento amplo da história bíblica no seu contexto geográfico
serve de cenário para a mensagem central da Escritura Sagrada, que é a salvação
da humanidade rebelde na pessoa e na obra do Salvador Jesus Cristo. Embora
geografia e história tenham como personagens seres humanos, o protagonista
delas não é outro senão o Deus que cria e mantém o universo. A Escritura
estabelece uma diferença marcante entre Deus e Sua criação. Em Isaías 40.22,
os moradores da terra são descritos como gafanhotos, enquanto Deus está
assentado sobre a redondeza da Terra. Na visão bíblica, portanto, apenas Deus
tem a verdadeira perspectiva do mundo – como cenário onde está e milita a
Sua Igreja.
1.2.2 Mesopotâmia
Ao norte desta região se acha o berço da civilização ocidental. Ali está a
Mesopotâmia, cujo nome significa “[terra”] entre rios”, ou seja, os rios Tigre e
o Eufrates. O lado norte da Mesopotâmia era defendido naturalmente por uma
cordilheira de montes, chamados Zagros. Tal cordilheira era uma defesa contra
os fortes ventos gelados vindos do Polo Norte, fazendo com que a região da
Mesopotâmia desfrutasse um clima ameno boa parte do ano. Da mesma forma,
O Antigo Testamento 13
1.2.4 Egito
O Egito ficava no extremo ocidental do Crescente Fértil, a noroeste da
Palestina. Atrelado ao Egito está o seu rio, o Nilo. Sem o Nilo, o Egito não poderia
existir. Historiadores antigos já diziam que o Egito é um presente do Nilo. Pela
importância que tinha para os egípcios, estes consideram o rio como um deus
porque toda a vida dependia das correntes contínuas do seu grande leito.
O Egito Antigo era dividido em reino do Alto Egito, ao longo da estreita
faixa do vale do rio ao sul, e o reino do Baixo Egito, a área do delta ao norte.
As cheias previsíveis do rio e as barreiras naturais de montanhas e deserto na
fronteiras oriental e ocidental tornaram o Egito uma civilização estática. Sem ser
ameaçado, por milênios o Egito desenvolveu uma economia agrícola invejável,
uma estrutura governamental estável e uma cultura própria e duradoura.
A história de Israel no Antigo Testamento está vinculada, em vários
momentos, por estreitas relações com o Egito. O período do Império Antigo
(cerca de 3100-2100 a.C.) foi a época da construção das grande pirâmides
sepulcrais da família real. O Médio Império (2133-1786 a.C.) teria incluído a
passagem de Abraão pelo Egito (Gn 12.10-20) e a migração de Jacó e sua família
para lá (Gn 45.16-47.12). É possível que o Segundo Período Intermediário (1786-
1570 a.C.) tenha sido palco da presença e a consequente opressão dos hebreus
como escravos (Êx 1.1-14).
O Novo Império (1570-1085 a.C.) testemunhou o chamado de Moisés como
libertador dos hebreus e o Êxodo do cativeiro egípcio (Êx 3-13). Até o Bronze
Posterior (cerca de 1200 a.C.), o Egito controlou a Palestina sob o governo de
Ramsés II, graças, em parte, a um tratado com os hititas. A intervenção egípcia na
Palestina continuou com Sisaque I, que acolheu Jeroboão como fugitivo político
de Israel (1 Rs 11.40). Tempos depois, entretanto, ele invadiu Judá durante o
reinado de Roboão (1 Rs 14.25-26). Daí em diante, o Egito permaneceu aliado
importante e necessário para ambos os reinos, do Norte e do Sul, contra os
poderes imperiais mesopotâmicos da Assíria e da Babilônia.
A presença egípcia foi influente na monarquia hebreia. O rei Salomão, por
exemplo, se casou com a filha do faraó como parte de uma aliança política (1
Rs 3.1-2). Bem mais tarde, em triste episódio, o rei de Judá Josias foi morto pelo
faraó Neco na batalha de Megido (2 Rs 23.28-30).
O Antigo Testamento 15
1.2.5 Palestina
No centro do Crescente Fértil está a Palestina. A região da Palestina recebe
este nome por causa dos filisteus (pelishtim), que se instalaram ao longo da
costa do Mediterrâneo de Jope a Gaza ao redor de 1200 a.C. Antes da chegada
dos filisteus, a região se chamava Canaã. Esse termo significava “terra púrpura”
e, possivelmente, se originou da tintura produzida por um tipo de molusco
encontrado em abundância ao longo da costa. No século V a.C., o historiador
grego Heródoto referiu-se à área como “Síria Filisteia”. Mas este nome não aparece
no Antigo Testamento, que prefere “terra de Canaã”, em função de seus principais
habitantes, os cananeus. No Antigo Testamento ela é chamada “Israel” ou “terra
de Israel” (1 Sm 13.19). Já o nome Terra Santa (Zc 2.12) se tornou popular na
Idade Média, especialmente em razão das Cruzadas.
A Palestina se acha rodeada ao norte pela Mesopotâmia; ao sul pelo Egito; a
oeste pelo mar Mediterrâneo, que no Antigo Testamento é também chamado de
“Grande Mar”; ao leste está a região desértica e inóspita da Arábia. Todas estas
regiões, umas mais, outras menos, estão intimamente ligadas ao texto bíblico.
A Palestina é geralmente considerada o centro geográfico e teológico do
mundo antigo. De um lado era privilegiada pela sua posição geográfica na
medida em que se situava no cruzamento de rotas comerciais importantes
da Antiguidade, entre os continentes da África, Ásia e Europa. Por outro, era
uma área bastante cobiçada por nações estrangeiras em razão de sua posição
militarmente estratégica. A região tem aproximadamente 240km de extensão
de Dã, ao norte, a Berseba, no sul, e 140km do rio Jordão (leste) ao mar
Mediterrâneo (oeste) – uma área equivalente ao estado de Sergipe.
A terra da Palestina se divide claramente em quatro regiões longitudinais,
ou seja, na direção norte-sul. São elas: a planície costeira, a cordilheira central,
a depressão jordânica e o planalto da Transjordânia (cf. Dt 1.6-8).
Planície costeira
A planície costeira se estende a distâncias de 15 a 20km ao sul da Palestina.
É uma faixa fértil de terra porque recebe chuvas frequentes vindas do mar
Mediterrâneo. Três planícies distintas são identificadas ao longo da costa: Aco,
16 O Antigo Testamento
Cordilheira central
Esta, sim, era uma região importante para o povo de Israel no Antigo
Testamento, quem sabe, a mais importante. Por ser uma região montanhosa
e, por isso mesmo, oferecer defesa natural, a maioria das cidades israelitas foi
construída ali. O terreno montanhoso forma a espinha dorsal da Palestina,
geralmente dividida em três partes principais: Galileia, Samaria e Judá. As
elevações atingem até os 1.000m, e o bom índice pluviométrico é próprio para
o cultivo de grãos, vinhedos, pomares e olivais.
Começando ao norte, os principais pontos da Galileia incluem o monte
Tabor (Jz 4.6,12) e o vale de Jezreel. Na área de Samaria, o grande destaque era
a cidade de Siquém, situada entre os montes Ebal e Gerizim. A principal cidade
era, claro, Jerusalém, que se situava no cruzamento das rotas comerciais de Judá.
Mais tarde, durante a época da monarquia no reino de Judá, a cidade fortificada
de Laquis se tornou a segunda cidade mais importante.
O Antigo Testamento 17
Depressão jordânica
O vale do rio Jordão é uma grande depressão geológica que inicia na região
da Síria, ao norte as montanhas do Líbano, e se estende para o sul até o golfo de
Ácaba e o mar Vermelho. Este vale determina a fronteira oriental da Palestina.
O rio Jordão tem suas fontes nas encostas do monte Hermom e é formado
por três pequenos ribeiros. O nome “Jordão” vem do hebraico “Yarden”, que
tem sua origem no verbo yarad, que significa “descer”. “Jordão”, portanto, é
“aquele que desce”. E o rio faz jus a seu nome. O Jordão desce do Hermom a
mais ou menos 500m, flui para o pântano de Hulê e rapidamente cai para 300m,
desaguando no mar da Galileia. Este lago de água doce fica a cerca de 200m
abaixo do mar Mediterrâneo e é cercado por colinas. Na Escritura o mar da
Galileia possui vários nomes: Quinerete (“harpa” – Nm 34.11), Genesaré (Lc
5.1) e Tiberíades (Jo 21.11). O mar da Galileia possui 20km de largura e 11km
de comprimento. Desse ponto, desce mais ainda em direção ao mar Morto. O
mar Morto é chamado também de “mar Salgado” (Gn 14.3), “mar da Arabá” (Js
3.16) e “mar ocidental” (Zc 14.8). Josefo referiu-se a ele como o “mar de asfalto”
(Guerra 4.8.4, #476) e os árabes o chamam de “mar de Ló”. O mar Morto não
é mencionado no Novo Testamento. Devido à imensa quantidade de sais que
o Jordão lança no mar Morto, sua concentração de salinidade fica em quase
30%, quando o normal é em torno de 7%. Nada sobrevive nele; por isso o nome,
recebido dos gregos. O mar Morto se situa a mais de 400m abaixo do nível do
Mediterrâneo, tornando-se o ponto mais baixo do mundo.
Os desfiladeiros de calcário que circundam a margem ocidental do mar
Morto estão repletos de cavernas que serviam de esconderijo para bandidos,
foragidos políticos e seitas religiosas. Entre as cavernas dessa árida região foram
encontrados os famosos manuscritos do mar Morto, ou Cumrã, em 1947.
Em tempos do Antigo Testamento, a região em torno do mar da Galileia era
densamente povoada e a agricultura era viçosa graças às técnicas de irrigação.
Serpenteando para o sul, o vale estreitava-se e se cobria de vegetação densa, lugar
propício para a presença de animais selvagens (Jr 49.19; 50.44; Zc 11.3).
18 O Antigo Testamento
Planalto da Transjordânia
A leste da depressão jordânica a terra se eleva abruptamente, formando um
planalto que se estende até o deserto arábico. Boa parte da região possui alguns
minérios e é adequada à agricultura e ao pastoreio. Quatro grandes uádis, ou
ribeiros, deságuam no rio Jordão desde o planalto: Jarmuque, Jaboque, Arnom
e Zerede.
O planalto pode ser dividido em três platôs principais: Seir, ao sul; Moabe e
Gileade, na Transjordânia central; e o planalto de Basã, ao norte.
O planalto de Seir, ao sul, é o mais acidentado deles, com montes que
atingem até 2.000m. Foi nessa área que os edomitas, e mais tarde os nabateus,
construíram cidades entre os desfiladeiros. A mais conhecida hoje é a cidade de
Petra, famosa por aparecer em filmes de Indiana Jones e até em novela brasileira.
Gileade possuía terras férteis e até hoje remanescentes de florestas podem ser ali
encontrados. Mas o maior e mais fértil dos planaltos era o de Basã. O rico solo
vulcânico faz dela a melhor terra de pastagem da região do Levante. Com tal
característica a região de Basã é mencionada na Bíblia (Sl 22.12; Am 4.1).
A segunda importante estrada internacional passava por essa região e era
chamada a “Estrada do Rei” (Nm 20.17; 21.22). Ela estendia-se do Golfo de
Ácaba ao sul até Damasco, ao norte. Para contornar o leito dos quatro rios e
deformações no terreno, a estrada tinha de ser por vezes desviada até 40km para
o leste, chegando à beira do deserto. Era a estrada mais usada pelas caravanas
de nômades que transportavam seus produtos comerciais para trocá-los por
produtos agrícolas. Durante a monarquia israelita, a “Estrada do Rei” ganhou
importância especial pelo incremento do comércio com a Arábia.
A região da Transjordânia foi a primeira a ser colonizada pelos hebreus na
conquista da Palestina após o Êxodo do Egito.
Atividades
1. Várias vezes Jesus se refere a um fato ou episódio como “foi dito”; outras
vezes Ele diz “está escrito”. Verifique em sua Bíblia, com o auxílio de
uma pequena Concordância Bíblica se possível, onde Jesus emprega
tais expressões e observe se faz diferença o uso de uma e de outra.
O Antigo Testamento 19
Respostas:
2) b, c
3) b
4) d
2
|| 3 PFEIFFER, Robert H. Introduction to the Old Testament. New York/London: Harper & Brothers
Publishers, 1941.
24 História do estudo científico do Antigo Testamento
Atividades
1. Na sua opinião, existe diferença entre afirmar que a “Escritura é Palavra
de Deus” e a “Escritura contém Palavra de Deus”?
Respostas:
2) c
3) b
4) e
3
Uma das mais importantes versões do Antigo Testamento para outra língua
veio com a tradução para o latim, denominada Vulgata. Foi traduzida por
Jerônimo em 405, comissionado pelo papa Dâmaso. No concílio de Trento, em
1546, a Igreja Católica Romana aceitou a Vulgata como sua tradução oficial.
Lutero viu erros na Vulgata, o que o levou a traduzir toda a Bíblia a partir das
línguas originais hebraico e grego. A primeira Bíblia dos cristãos católicos
brasileiros foi uma tradução da Vulgata feita para o português.
Para atender os cristãos de fala siríaca, várias versões do Antigo Testamento
nessa língua foram elaboradas. A principal e mais popular é a Pesita (150-200),
que foi considerada modelo para aqueles dias.
Em conclusão, podemos dizer que as versões do Antigo Testamento para
as diversas línguas são de muita importância. Primeiramente, elas servem
como investigação textual, ou seja, vez por outra testificam o texto original em
versículos onde este se havia corrompido. Em segundo lugar, elas servem como
auxílio na interpretação. Toda tradução necessariamente envolve interpretação.
Nesse sentido, as versões são os primeiros comentários sobre determinado texto.
E, por último, as versões, por disponibilizarem a Palavra de Deus em várias
línguas, tornam-se instrumentos valiosos de missão.
Lei
A Lei, ou Torá, consiste dos cinco primeiros livros da Bíblia. Ela também é
chamada de Pentateuco (da palavra grega para “cinco”, penta). Não há dúvida
de que estes livros já eram aceitos e normativos no tempo de Esdras e, quem
sabe, já antes, no tempo do rei Josias.
Profetas
Os profetas ou Nebi’im foram os próximos a receber crédito pelo seu uso. Na
Bíblia hebraica eles se dividem em dois grupos, a saber, os profetas anteriores,
contendo os livros históricos de Josué a 2 Reis, e os profetas posteriores,
compreendendo os livros de Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze profetas
menores.
Escritos
A terceira divisão na Bíblia hebraica é chamada de Escritos ou Ketubim. Ela
compõe-se de todos os demais livros que não constam nas divisões anteriores, ou
seja, a poesia, os rolos para festas e acréscimos históricos. Não se pode determinar
quando tais livros foram aceitos. Entretanto, por volta de 185 a.C., Ben Siraque,
no Prefácio do seu livro não canônico Eclesiástico, fala em “Lei, os profetas e
outros livros”, dando indicação de que o cânone estava fechado.
32 A formação do Antigo Testamento
Não resta dúvida de que o cânone que conhecemos hoje era o mesmo do
tempo de Jesus, como Ele mesmo testemunha. Em Lucas 24.44 Jesus fala em
“Lei, profetas e salmos”. Em duas ocasiões Jesus aponta para o primeiro e o
último mártir mencionados no Antigo Testamento (Mt 23.35 e Lc 11.51). Jesus
se refere nominalmente a Abel (em Gênesis) e a Zacarias (1 Cr 24.20). Crônicas
é, no cânone hebraico, o último livro do Antigo Testamento.
Fávio Josefo (cerca de 70) menciona 22 livros. Este número fecha com o cânone
hebraico, visto que a separação dos 12 profetas menores ocorre posteriormente,
como também de outros livros históricos. Os sectários de Cumrã, junto ao mar
Morto, conheciam todos os livros da Bíblia hebraica que nós hoje possuímos.
Eles também copiaram e estudaram os livros apócrifos.
O Concílio de Jamnia, em cerca de 90, tem sido muitas vezes indicado
como o evento que canonizou as Escrituras Hebraicas. Mas esta é uma posição
equivocada. O que o concílio fez foi certificar o que já era uma realidade pelo
uso da Igreja e pela Providência Divina. Não se pode prescindir do fato de que a
providência divina agiu de forma soberana no estabelecimento e na preservação
do cânone como o fez na inspiração de cada um de seus livros. Quando uma
criança reconhece seu próprio pai, no meio de uma multidão de outros adultos,
seu ato não empresta ao pai uma nova qualidade de parentesco; simplesmente
reconhece um relacionamento que já existe. Assim também é o caso de listas
de livros autoritativos reconhecidos por concílios. Não puderam emprestar a
canonicidade a uma página sequer das Escrituras; simplesmente reconheceram
a inspiração divina inerente aos documentos e formalmente dispensaram outros
livros em prol dos quais falsamente se tinha pleiteado a canonicidade.
A formação do Antigo Testamento 33
Profetas
Anteriores Josué
Juízes
Samuel
Reis
Posteriores Isaías
Jeremias
Ezequiel
Livro dos Doze:
Oseias Naum
Joel Habacuque
Amós Sofonias
Obadias Ageu
Jonas Zacarias
Miqueias Malaquias
Escritos Salmos
Jó
Provérbios
Rute
Cântico dos Cânticos
Eclesiastes
Lamentações
Ester
Daniel
Esdras
Neemias
Crônicas
34 A formação do Antigo Testamento
3.4 Apócrifos
O termo “apócrifo” significa “escondido”. Aplicado à coleção de livros judaicos
datados do período intertestamental, o termo possui duas conotações:
1) livros “escondidos” por sua natureza esotérica;
2) livros “escondidos” por merecimento, ou seja, não eram reconhecidos
como canônicos.
Atividades
1. Disserte sobre por que as primeiras versões do Texto Massorético são
importantes para a Igreja e sua missão no mundo.
Respostas:
2) e
3) c
4) d
4
O Pentateuco – Gênesis
A primeira parte da Bíblia é chamada de Torá (Pentateuco, em grego). Torá,
em hebraico significa Lei. Mas “lei’, em português, normalmente tem sentido
negativo, e, por vezes, proibitivo. Seguidamente, ouve-se pessoas relacionando o
Antigo Testamento como “Lei” e o Novo Testamento como “Evangelho”. Esta é
uma visão equivocada da Bíblia e, se aplicada dessa forma, traz sérios problemas
para a compreensão e a interpretação do Antigo Testamento. Na verdade, tanto
o Antigo quanto o Novo Testamento possuem lei como evangelho. O termo
Torá, aplicado a Gênesis e ao Pentateuco, possui um sentido mais neutro como
“instrução” ou mesmo “Palavra de Deus”.
Autoria do Pentateuco
Tradicionalmente, estes cinco livros, a começar com Gênesis, têm sido
considerados como de autoria de Moisés. Embora ele não tivesse sido
testemunha ocular de todos os eventos de Gênesis, a grande maioria dos textos
sem dúvida foi por ele escrita. No século XIX e início do século XX, os críticos
liberais empreenderam enormes esforços no sentido de segmentar os livros do
Pentateuco ou Hexateuco (incluindo parte dos livros históricos) em inúmeros
documentos, fragmentos e poemas e lendas independentes, como vimos em
parte no capítulo 2. A esterilidade deste processo de copia-e-cola a respeito de
autoria e data conduziu a uma reação logo após a Primeira Guerra. Liderada
por estudiosos escandinavos do Antigo Testamento, ênfase bastante grande
38 O Pentateuco – Gênesis
foi colocada sobre a acurácia literal da tradição oral entre os povos semitas.
As descobertas arqueológicas em Ugarite de 1929 em diante mostraram que a
literatura escrita antes de Davi era perfeitamente plausível, e as descobertas em
Mari e Nuzi, na região da Mesopotâmia, atestam verossimilidade à sociedade
descrita em Gênesis.
Gênesis
A. Nome
Os títulos de muitos livros no Antigo Testamento são extraídos da respectiva
primeira palavra hebraica desse livro. Assim, o título hebraico de Gênesis é
“Bereshith” ou “No princípio”. O nome do livro em português é copiado da
Vulgata e da Septuaginta. Bem antes da divisão dos capítulos, o primeiro livro
da Bíblia foi dividido em dez “histórias”, ou “gerações” (ARA).4 Ela é conhecida
como “fórmula toledoth”.
|| 4 O termo aparece em 2.4; 5.1; 6.9; 10.1; 11.10, 27; 25.12, 19; 36.1; 37.2.
O Pentateuco – Gênesis 39
C. Criação
Gênesis é um livro dos começos. Neles se encontram o começo de: (1) o
mundo, (2) a humanidade, (3) o pecado, (4) a promessa, e (5) as relações de
aliança. Há breves alusões a começos sociológicos e tecnológicos, de forma
que alguns críticos liberais gostam de descrever Gênesis como uma coleção
de “mitos etiológicos”, ou seja, histórias que explicam a origem dos costumes e
hábitos humanos. Entretanto, estes são apenas aspectos periféricos que ocorrem
ao se descrever a relação de um Deus pessoal com os cinco aspectos acima
mencionados. Assim, por exemplo, a origem da música, metalurgia, vestimenta,
etc., passa quase despercebida. O autor de Gênesis não estava interessado em
descrever uma história sociológica ou econômica dos inícios da civilização.
Estava interessado sim em que o círculo da graça e da promessa iniciado com a
humanidade se estendesse de maneira concêntrica a Noé, Abraão, Jacó, Isaque
e aos filhos de Jacó.
Outro aspecto de Gênesis muitas vezes aludido por alguns círculos
acadêmicos é que Gênesis contenha versões adaptadas da mitologia babilônica.
Sabemos, pela arqueologia, que há na literatura do Antigo Oriente Próximo,
especialmente na Babilônia, textos análogos sobre a criação e o dilúvio. Tais
conceitos foram encontrados em tabletes de argila, entre os quais um popular
chamado Enuma elish (“Quando dos altos céus”), que relata a ascensão do deus
babilônico Marduque ao topo do panteão. Enuma elish é o relato mesopotâmico
mais completo da criação e possui várias semelhanças com o relato bíblico.
A história descreve um conflito cósmico entre as principais divindades.
Marduque, o deus da ordem, mata a monstruosa Tiamate, deusa da desordem,
que personifica os primórdios dos oceanos. Convocando os ventos, Marduque
entra em diálogo com Tiamate e, quando ela abre a boca para contrapor, os
ventos a incham e Marduque a aniquila com a sua lança. Tiamate é dividida ao
meio, sendo que metade dela forma a terra e a outra metade forma o céu. Do
sangue do conspirador auxiliar de Tiamate misturado com a terra, Marduque
cria o ser humano para fazer todo o trabalho pesado do universo, liberando as
divindades de todas as tarefas braçais. Como gesto de agradecimento a Marduque
por salvá-los da perversa Tiamate, os deuses constroem para ele a grande cidade
e capital – Babilônia.
40 O Pentateuco – Gênesis
Visto a literatura babilônica ser mais antiga do que Gênesis, presume-se que
as semelhanças provam a dependência bíblica do relato babilônico. Conforme
essa teoria, Israel teria emprestado esses conceitos mitológicos dos babilônios
e feito uma adaptação à sua perspectiva monoteísta. O grande problema dessa
hipótese é a implicação que a história dos princípios em Gênesis acaba tornando-
se simplesmente mitologia. Se Gênesis for mitologia, então a consequência é que
não se precisa crer que personagens como Adão, Eva, Caim, Abel ou o próprio
jardim do Éden realmente existiram.
Embora haja semelhanças entre Gênesis e tais narrativas mitológicas, as
diferenças as superam. Estudiosos que fizeram ampla análise linguística e literária
concluíram que tal suposta dependência literária não pode ser sustentada.
Aqui, como na maioria dos relatos paralelos com Gênesis, acredita-se ser mais
provável que tradições mesopotâmicas e bíblicas tenham tido uma mesma fonte.
A épica de Atrahasis, por exemplo (início do segundo milênio), é muito similar,
de novo, à narrativa bíblica da criação. Na verdade, a épica só vem confirmar
que a história básica apresentada em Gênesis 1-11 era bem conhecida em todo
o Antigo Oriente Próximo.
Não é fácil determinar datas para a narrativa dos primeiros capítulos de
Gênesis. Várias tentativas foram feitas, mas que resultaram em hipóteses.
Usando as genealogias de Gênesis 5 e 11 para calcular o tempo, o bispo Ussher,
da Inglaterra (1654), por exemplo, datou a criação do ser humano em 4004
a.C. Essa data é insustentável visto que as genealogias não apresentam uma
cronologia completa.5
Após a criação do ser humano, o episódio mais marcante é a sua queda. O
pecado e suas consequências se expandem numa rapidez impressionante. As
primeiras páginas da história já contam um caso deprimente de ciúme (Gn 4.5),
assassinato (4.8), medo (4.14), imoralidade (6.4-6) e orgulho (11.4). O impacto
dos capítulos 3 a 11 só é amenizado pelo heroísmo e devoção de uns poucos
como Abel (4.4; Hb 11.4), Enoque (5.21-14, Hb 11.5) e Noé (6.8; Hb 11.4). De
resto, há uma frase recorrente que grifa a história da queda do ser humano: “e
morreu” (5.5, 8, 11, 14, 17, 20, 27, 31). Cumpre-se o que Deus havia dito que
aconteceria caso o homem desobedecesse (2.17). Note como o pecado se espraia
|| 5 SCHULTZ, Samuel J. A história de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1977, p.13.
O Pentateuco – Gênesis 41
D. O Dilúvio
A história do dilúvio é por vezes relacionada a algumas das grandes
inundações das cidades-estado do vale do Tigre-Eufrates por volta do terceiro
milênio a.C. Na verdade, a Bíblia não é a única a falar sobre um dilúvio de
abrangência universal. A narrativa babilônica do dilúvio representada na Épica
de Gilgamesh, por exemplo, de novo possui vários elementos paralelos com
Gênesis. A épica está relatada em 12 tabletes de argila e apresenta similaridade
com a história de Noé. Gilgamesh, provavelmente a figura histórica do rei de
Uruk por volta de 2600 a. C., rebelou-se contra a morte depois de ter perdido seu
amigo. Gilgamesh encontra-se com Utnapishtim, o “Noé babilônico”, que relata
como ele alcançou a imortalidade quando prenunciou o plano dos deuses de
destruir o mundo por meio de uma inundação. Utnapishtim havia sobrevivido
ao dilúvio em um grande barco de junco, juntamente à sua família e a pares de
todos os animais.6 Infelizmente, porém, aquele era um acontecimento que não
voltaria a se repetir – o que dava a Gilgamesh poucas esperanças de encontrar
a imortalidade.
Depois de falhar em três testes pelos quais ele poderia ter recebido a
imortalidade, derrotado, Gilgamesh conforma-se com o fato que a morte é
inevitável e consola-se com aquilo que conseguira alcançar.
Entretanto, as diferenças entre as narrativas são maiores e impactantes; elas
superam as semelhanças. Destacam-se o tipo de embarcação, a duração do
dilúvio, as pessoas que sobreviveram, o local de pouso da arca, o resultado para
o herói e, especialmente, o papel dos deuses. Estes detalhes e acima de tudo uma
análise linguística e literária mostram que a dependência literária não pode ser
sustentada. O dilúvio faz parte do imaginário de inúmeros povos. Tal acontece
devido à tradição oral partilhada por vários segmentos da raça humana, todos
remontando aos três filhos de Noé. O relato genuíno está preservado apenas em
|| 6 HEIDEL, Alexander. The Gilgamesh Epic and the Old Testament Parallels. Chicago: University of
Chicago Press, 1949, p.85ss.
42 O Pentateuco – Gênesis
E. Os patriarcas
A história patriarcal (Gn 12-50) nos fornece algumas possibilidades de
cronologia. Grande parte dos estudiosos entende que o chamado de Deus a
Abraão em Ur da Caldeia, na Mesopotâmia, acontece num contexto geográfico
e histórico significativo. O mundo de Abraão é um mundo ativo, econômica e
tecnologicamente avançado para a sua época. Nesse período, por volta do ano
2000 a.C., além dos antigos sumérios e acadianos dispersos pela Mesopotâmia,
encontramos outros grupos importantes como os amorreus, os hurrianos e os
hititas, que começaram a se destacar nessas terras.7
Devido ao progresso no conhecimento do Antigo Oriente Próximo no
segundo milênio, muitos estudiosos, que antes colocavam dúvidas sobre a
historicidade dos patriarcas, passaram a atribuir maior valor histórico a essas
narrativas. O maior expoente dessa perspectiva foi o teólogo e arqueólogo
William F. Albright. A posição de Albright reflete posição dominante. “Como
um todo”, diz ele, “o quadro de Gênesis é histórico, e não há motivos para
duvidar da exatidão geral dos detalhes biográficos e dos traços de personalidade
que fazem com que os patriarcas surjam com uma intensidade inexistente em
nenhum personagem extrabíblico em toda a vasta literatura do Antigo Oriente
Próximo.”8
Abraão
Para Adão Deus havia dado uma palavra necessária de precaução: “Não
comerás”; para Abraão, Ele dá uma palavra empolgante sobre uma oportunidade
|| 7 THOMPSON, John A. A Bíblia e a arqueologia: quando a ciência descobre a fé. São Paulo: Vida
Cristã, 2007, p.35-57.
|| 8 ALBRIGHT, William Foxwell. The biblical period from Abraham do Ezra. New York and Evanston:
Harper and Row, Publishers, 1963, p.5. Para análise e conclusão mais recentes, cf. KITCHEN,
Kenneth A. “The Patriarchal Age: Myth or History?” Biblical Archaeology Review, Mar/Apr 1995:
48-57, 88, 90, 92, 94-95.
O Pentateuco – Gênesis 43
Isaque
A história de Isaque fica comprimida entre a de Abraão e a de Jacó. Mas as
poucas linhas nos contam como Deus providenciou uma esposa para ele (24.1-
67), fê-lo pai em resposta a uma oração sincera (25.20-21), deu-lhe alimento
em tempo de carestia (26.1-14) e ajudou-o a fazer provisão para o futuro,
induzindo-o a abrir alguns poços em terrenos desusados e negligenciados (26.18-
22). Os acontecimentos do capítulo 22 parecem colocar em risco a vida de Isaque
e a promessa dada a Deus ao patriarca Abraão. Críticos liberais insinuam que
este evento tem por objetivo polemizar o sacrifício de crianças que, segundo
eles, era prática comum entre os israelitas até bem mais tarde. Mas não há nada
no texto que justifique essa análise. A ênfase da história não é outra senão o
teste pelo qual passa “o pai de todos os crentes”.
|| 9 O mesmo aconteceria mais tarde com Lia e Raquel ao entregarem servas para o seu esposo
Jacó.
44 O Pentateuco – Gênesis
Jacó
Logo os episódios envolvendo Jacó passam a ter dominância na narrativa
bíblica. Rebeca, esposa de Isaque, dera à luz gêmeos (25.21-26). Esaú nasce
primeiro; mas em seguida vem Jacó. Os dois irmãos são bem diferentes tanto na
aparência quanto na personalidade. Esaú é arredio, irresponsável e irreligioso; é
caçador e polígamo. Casa-se com duas mulheres hititas, que passam a ser causa
de amargura para Rebeca. Esaú vivia para o presente. Jacó é calmo, religioso,
doméstico e barganhista. Por ser mais velho tecnicamente, Esaú deve receber
a bênção, mas Deus não segue o plano dos homens. A Escritura não esconde a
fragilidade do povo de Deus. Tanto Jacó quanto Rebeca erram na tentativa de
lutar por interesses próprios.
A venda da primogenitura é possibilitada segundo os padrões legais do
Antigo Oriente Próximo. Há exemplo em Mari de que o filho mais velho vendeu
a sua primogenitura ao irmão mais moço por três ovelhas.10 Fato é que Jacó e
Rebeca conseguiram seu intento, mas essa vitória particular de cada um teve
consequências: Jacó tem de fugir e por 20 anos não pode retornar para sua
casa; nunca mais vê sua mãe; por todo esse tempo Jacó fica sem o perdão do
seu irmão.
Jacó era um homem esquisito; foge aos padrões que talvez esperaríamos de
um filho de Deus e filho da promessa. Mas a história de Jacó ilustra o amor e a
bondade de Deus, que nos abençoa não porque mereçamos, mas porque Ele é
gracioso. Deus se encontra com Jacó (28.11-22), providencia-lhe uma esposa
(29.1-30) e filhos (30.1-26). Jacó passa por várias dificuldades familiares (31.1-
55) e muitas das tragédias que se seguiram foram ocasionadas por sua própria
falta de bom senso e amor. Mas Deus tira dele sua autoconfiança, transforma
seu caráter e muda o seu nome: “Israel”. E a partir de então o cumprimento da
promessa de Deus começa a mostrar os seus contornos.
|| 10 GORDON, Cyrus Herzl. “Biblical customs and the Nuzu tablets”. Biblical Archaeologist 3 (1)
(February 1940): 1-12.
O Pentateuco – Gênesis 45
José
O ciclo de José inicia no capítulo 37, sendo interrompido apenas pelo episódio
de Judá e Tamar (cap. 38) – obviamente, umas das razões do autor é chamar a
atenção para a tribo de Judá de onde virá Davi e, a partir da dinastia davídica,
o Messias. Da mesma forma, o capítulo 49, chamado de “Bênção de Jacó”, é
importante linguisticamente devido a vários aspectos poéticos arcaicos, e ainda
mais importante teologicamente em razão da referência davídico-messiânica
em conexão com a bênção dada a Judá.
Como filho predileto do pai, José era desprezado pelos irmãos. O ódio era
tão grande que José foi vendido pelos seus irmãos, acabando na terra do Egito
(37.1-35). Por causa de sua retidão e virtudes – e, por que não dizer, por causa da
sua fé –, foi perseguido e perdeu sua liberdade. No seu aprisionamento injusto
José se revela como intérprete de sonhos. Ao interpretar os sonhos de Faraó, ele
é nomeado o mais alto oficial, superado em poder apenas pelo próprio Faraó
(40.1-41.57). Episódios como os de José mostram como é Deus quem tem o
governo da história. Uma grande fome fez com que seus irmãos viessem de
Canaã ao Egito à procura de alimento e isso resultou no encontro da família
(42.1-46.34). José pôde cuidar de seu pai e irmãos durante todo um período
difícil (47.1-28).
Quando Jacó morre, os irmãos de José temem por suas próprias vidas.
Pensaram, como o mundo pensa, que haveria uma vingança da parte de José
(50.15). Relembrando a amargura e as tribulações que se seguiram, José faz uma
confissão de fé e confiança magníficas. Virando-se para seus irmãos ele diz: “Vós
intentastes o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem” (50.20). É fácil falar
assim quando você esteve na prisão por dois anos e os causadores dessa injustiça
estão à sua frente? É possível perdoar? José sabia que Deus tinha usado essa
tragédia para Seus propósitos. No dia em que o lançaram naquele poço seco em
Dotã (37.24), eles deram início a uma série de acontecimentos ordenados por
Deus destinados a tornar seu irmão desprezado num líder e conselheiro cuja
habilidade, discernimento e fé trariam esperança e salvação a muitos.
As palavras finais de Gênesis “no Egito” são um trampolim para o livro de
Êxodo. Historicamente, entretanto, introduz um longo intervalo de tempo, mais
precisamente a “Idade das Trevas” do nosso conhecimento sobre os israelitas.
46 O Pentateuco – Gênesis
Patriarcas e a arqueologia
Achados arqueológicos demonstram que os costumes descritos em Gênesis
12-50 são autenticados por hábitos semelhantes no Antigo Oriente Próximo
contemporâneos aos patriarcas. Um exemplo de achado importante são os
textos descobertos em Nuzi. Em Gênesis 15.1-4 Abraão estava adotando seu
servo Eliezer e fazendo dele seu herdeiro. A adoção de servos era prática
comum em Nuzi. Um casal sem filhos podia adotar um filho que cuidaria deles
enquanto vivessem e, em contrapartida, receberia sua propriedade quando o
casal morresse. Mas havia uma provisão de que, se o casal viesse a ter filho
depois da assinatura do documento de adoção, o filho natural se tornaria então
o herdeiro e ficaria com os “deuses” (teraphim) do pai, que eram geralmente
figuras de barro usadas na adoração familiar mas que parecem ter-se tornado,
com o passar do tempo, um documento como nossas modernas escrituras de
terreno. O dono da propriedade possuía os “deuses” e os transferia quando a
propriedade passava às mãos de outro.
O Pentateuco – Gênesis 47
Atividades
1. Vários estudiosos do Antigo Testamento afirmam que Gênesis é
dependente da literatura babilônica. Disserte sobre essa questão chamando
a atenção para as consequências dessa suposta dependência.
3. Ele era rico, tinha descendência e a terra onde habitava podia ser sua,
pois tinha um documento que lhe assegurava esse direito. Assinale a
reposta correta.
a) Abraão
b) Ismael
c) Isaque
d) Jacó
e) José
4. Os patriarcas nem sempre são padrões de moral e de comportamento
que se espera de um filho de Deus.
I. Apesar de tudo, eram capazes de superar suas fraquezas diante de
Deus porque eram homens de fé inabalável.
II. Voltavam a ser aceitos por Deus porque os atos de obediência deles
compensavam seus atos de desobediência.
III. A fragilidade humana diante de Deus só pode ser superada pelo
próprio Deus.
Marque a resposta correta:
a) Apenas I
b) Apenas II
c) Apenas III
d) Apenas I e II
e) Apenas II e III
Respostas:
2) 2 – 4 – 5 – 3 – 2
3) d
4) c
5
Êxodo
5.1 Nome
O nome do segundo livro do Pentateuco deriva-se do grego Exodos, que
passou para a Vulgata (Latim) Exodus e, daí para o português. “Êxodo” significa
“saída” (19.1). Êxodo descreve, pois, a saída do povo de Israel do Egito, sendo
o tema predominante do livro. No cânone hebreu, o nome vem das palavras
iniciais “shemoth” (“nomes”) em 1.1.
|| 11 KAISER, Walter C. A History of Israel: from the Bronze Age through the Jewish wars. Nashville,
Tennessee: Broadman & Holman Publishers, 1998, p.108.
|| 12 BRIGHT, John. História de Israel. 2.ed. rev. Euclides Carneiro da Silva, trad. São Paulo: Paulinas,
1978, p.158.
Êxodo 51
5.4 Conteúdo
O conteúdo de Êxodo se divide basicamente em duas partes: Cap. 1-19
trata da saída do Egito até o monte Sinai. Cap. 20-40 fala das leis que Deus
revela ao povo no monte Sinai. Embora Moisés seja o personagem humano
principal das narrativas, a verdadeira história é a obra redentora do Senhor ao
livrar o povo da escravidão do Egito e estabelecer com ele uma aliança singular.
O livro desempenha papel tão importante para o Antigo Testamento quanto
os evangelhos para o Novo Testamento. O evento do êxodo é o coração do
evangelho no Antigo Testamento e termos como “redenção” e “cordeiro” têm
seus significados teológicos lincados a este episódio.
Deus faz de Israel Seu povo pelo cumprimento da Sua promessa aos patriarcas
e através deste dramático ato de salvação. O Êxodo é a base para a fé de Israel no
Antigo Testamento assim como a ressurreição de Cristo é para o cristianismo.
Hoje já não se pode mais duvidar da existência de Moisés nem da historicidade
do Êxodo.
5.5 As pragas
As pragas foram milagres da parte de Deus, não apenas desastres naturais.
O objetivo das pragas está vinculado a uma falsa concepção de Deus por parte
dos egípcios e, por causa disso, elas são enviadas para solapar o fundamento da
sua crença nas divindades. Em Êxodo 12.12, Deus diz: “...executarei juízo sobre
todos os deuses do Egito”, e o livro de Números confirma que “contra os deuses
executou o Senhor juízos” (33.4). Estudos hoje comparam as pragas à religião
e aos deuses dos egípcios e sugerem que as pragas visavam desestruturar o
52 Êxodo
Moscas Êx 8.20-32
O faraó pergunta: “Quem é Yahweh para que lhe ouça eu a voz e deixe ir
a Israel?” (Êx 5.2). A julgar pelo fato de Israel ser escravo, o Deus de Israel é
para o faraó um deus fraco; os deuses do Egito devem ser bem mais fortes. Na
verdade, Yahweh mostra ao faraó e aos egípcios quem Ele é. Alguns entendem
que as pragas estejam em harmonia com os fenômenos naturais do Egito e,
|| 13 Extraído de WALTON, John. O Antigo Testamento em quadros. São Paulo: Vida, 2001, p.85.
Êxodo 53
|| 14 HORT, G. “The plagues of Egypt” Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft 70 (1958):
48-59.
|| 15 KAISER, Walter C. A History of Israel: from the Bronze Age through the Jewish wars. Nashville,
TN: Broadman & Holman Publishers, 1998, p.95-101.
|| 16 LASOR, William S., HUBBARD, David A., BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento.
Lucy Yamakami, trad. São Paulo: Vida Nova, 1999, p.75.
|| 17 LAWRENCE, Paul. Atlas histórico e geográfico da Bíblia. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil,
2008, p.34.
54 Êxodo
|| 18 DOTHAN, Moshe e DOTHAN, Trude. People of the Sea: The search for the Philistines. New York:
Macmillan, 1992, p.205-208.
|| 19 BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Edições Paulinas, 1978, p.157.
Êxodo 55
5.7 Decálogo
Após três meses da saída do Egito, o povo de Israel chega ao monte Sinai. Ali
permanece por dois anos. É neste monte que o povo passa a ter a sua confirmação
como povo de Deus. Uma enorme gama de instrução é recebida de Deus que,
no texto, termina apenas em Números 10.33, quando o povo recebe ordens para
levantar acampamento. Aqui, na presença de Deus, fica claro que já no Antigo
Testamento o povo de Deus recebe a bênção de ser portador do “sacerdócio
universal” (Êx 19.5; confira 1 Pe 2.9).
Muitas vezes se atribui ao Antigo Testamento um caráter legalista que ele não
possui. O Decálogo é tomado como exemplo dessa visão. Entretanto, é de suma
importância enfatizar que do ponto de vista da gramática, ou seja, do próprio
texto, o Decálogo é indicativo, não imperativo. Os “Mandamentos” iniciam com
a partícula negativa lo’ em hebraico e não com a partícula `al, que resultaria no
imperativo negativo.
O Decálogo não foi entregue aos assírios, babilônios ou filisteus, mas ao
povo de Israel, a quem o Senhor havia tirado da escravidão do Egito com
braço poderoso. E Israel não é mais qualquer povo ou nação; Israel agora é
povo de Deus. Assim sendo, o Decálogo não é algo que Israel precisa cumprir
para se tornar povo de Deus ou para merecer crédito diante Dele e quem sabe
a salvação. As “dez palavras”, como o texto bíblico chama (cf. Êx 34.28), são
orientações que Israel, assim como todos os cristãos, vão querer seguir voluntária
e espontaneamente como povo de Deus que são. Estas afirmações do Decálogo
“representam os perímetros ou fronteiras do reinado de Deus que o crente não
vai ultrapassar, mas dentro dos quais ele é essencialmente livre para responder
de maneira alegre e voluntária, como é ilustrado também nas demais ‘leis’ ou
‘códigos’ do Antigo Testamento”.20 É evidente que nenhum cristão jamais pode
chegar a esse padrão, pois ele permanece pecador e santo. Nesse sentido o
Decálogo é um espelho que mostra a sua natureza pecaminosa, que não poderá
ser revertida pelo cumprimento de mandamentos senão apenas pela total
dependência do amor de Deus.
|| 20 HUMMEL, Horace D. The Word becoming flesh: an introduction to the origin, purpose, and meaning
of the Old Testament. St. Louis: Concordia Publishing House, 1979, p.74.
56 Êxodo
que o castigo seja equivalente ao crime, não procurem tirar vantagem indevida
da situação”. Exemplificando hoje, em acordos sobre acidentes de carro a regra
é: “para-choque por para-choque, lâmpada traseira por lâmpada traseira”. Não
procure se aproveitar do acidente para levantar fundos para a universidade dos
filhos.
5.9 Tabernáculo
O tabernáculo era um santuário portátil, formado de uma estrutura de
madeira de acácia coberta por duas grandes cortinas de linho. Uma das cortinas
cobria o recinto maior chamado Lugar Santo, enquanto a segunda cobria o
Santo dos Santos (ou “Santíssimo”), uma sala menor ao fundo do Lugar Santo,
separado por uma cortina especial. Rodeado por um átrio ou pátio aberto, o
tabernáculo compunha-se, pois, de duas partes: o `ûlam ou “Lugar Santo” e o
debîr ou “Santíssimo”. O Lugar Santo tinha 9 metros de comprimento, 4,5 metros
de largura e 4,5 metros de altura. O Santo dos Santos, por sua vez, possuía 4,5
metros de cada lado. No interior do Santo dos Santos ficava apenas a arca da
aliança – uma caixa de madeira de acácia que continha as tábuas do Decálogo.
Sobre a tampa da arca ficava o propiciatório, o lugar onde se aspergia o sangue
no Dia da Expiação (Lv 16). Acima do propiciatório ficavam dois querubins sobre
os quais o Senhor se entronizava e de onde falava com Moisés (Nm 7.89).
No Santo Lugar ficava o altar de incenso, o candelabro e a mesa com o Pão
da Presença. O tabernáculo estava colocado num pátio de 45 metros por 22,5
metros, isolado do restante do acampamento por cortinas brancas de 4,5 metros
de altura. No pátio, diante do tabernáculo ficava o altar dos holocaustos e entre
eles ficava o mar de bronze. Josefo, o historiador judeu do século I, entendia
que o átrio do tabernáculo representava a terra; o Santo Lugar, o céu; e o Santo
dos Santos, o Céu dos Céus.22 É bem possível que esta tenha sido a compreensão
dos israelitas, fazendo do tabernáculo uma extensão terrena dos céus. Ao menos
é o que se pode depreender das palavras de Salomão em 1 Reis 8.27: “Mas, de
fato, habitaria Deus na terra? Eis que os céus e até o céu dos céus não te podem
conter, quanto menos esta casa [templo] que eu [Salomão] edifiquei”.
5.10 Sacerdócio
A origem e o desenvolvimento do sacerdócio constituem um dos temas
mais polêmicos para os estudiosos do Antigo Testamento. A visão tradicional
entende o sacerdócio como originário no período mosaico, no contexto da
aliança sinaítica e, portanto, uma instituição divina. Já a escola crítica liberal,
sistematizada por Julius Wellhausen, vê o sacerdócio numa perspectiva linear
marcada por confrontos entre grupos sacerdotais de diferentes ideologias
sociopolíticas, alcançando seu estágio final no período pós-exílico com o
surgimento do sacerdócio araônico.
No Antigo Testamento o termo hebraico para “sacerdote” no sentido legítimo é
kōhēn. Por outro, o termo para identificar o sacerdote idólatra é kōmēr, que ocorre
três vezes no texto bíblico (2 Rs 23.5; Os 10.5; Sf 1.4). Segundo a narrativa do
Antigo Testamento, o sacerdócio não era apenas levítico, mas fundamentalmente
araônico. Tecnicamente, é mais correto se pensar em sacerdócio “araônico”
do que em sacerdócio “levítico”. Arão era da tribo de Levi, mas o sacerdócio
propriamente inicia-se com ele e fica restrito à sua descendência. Por isso, todos
os sacerdotes são levitas, mas nem todos os levitas são sacerdotes.
No Novo Testamento as palavras gregas para “sacerdote” (hiereus) e seu
cognato “sumo sacerdote” (archihiereus) são usadas nos evangelhos e em Atos
60 Êxodo
dos Apóstolos. Todas, com uma exceção (At 14.13), referem-se a sacerdotes
judeus. É também nesses livros que se nota a hostilidade do sacerdócio judaico
à pessoa e missão de Jesus. A rejeição da doutrina da ressurreição promovida
pelo partido sacerdotal dos saduceus serviu para exacerbar ainda mais seu
antagonismo à pregação de Jesus e de Seus discípulos. Apesar disso, Atos 6.7
atesta a conversão de muitíssimos sacerdotes à fé cristã.
a) Sacerdotes
Os sacerdotes do Antigo Testamento exerciam um papel mediador entre o
povo de Deus e o próprio Yahweh. Isso não significa que essa função inibisse
qualquer iniciativa direta do indivíduo com Deus. De uma forma especial,
como ocorre nas atividades cúlticas do cristianismo, os sacerdotes concediam o
perdão de Deus àqueles que confessavam seus pecados e ofereciam os sacrifícios
de maneira adequada. Ao determinar a aceitação de um sacrifício, o sacerdote
presidia o ritual pelo qual a expiação era feita e os pecados absolvidos (Lv 1.4;
5.15; 19.7). Embora Israel fosse designado como “reino de sacerdotes” (Êx 19.6),
nem de todos era esperado que servissem como sacerdotes. No sacerdócio o povo
estava sendo substituído e representado perante Yahweh. Esta representatividade
se materializa quando o sumo sacerdote carrega sobre os seus ombros e seu
peito os nomes das doze tribos de Israel gravados em pedras preciosas. Ao
comparecer perante o Senhor, o sumo sacerdote corporificava todo o Israel.
Ele era o Israel reduzido a um. Nele todo o Israel era “santo ao Senhor”, como
lembrava a inscrição na lâmina de ouro da coroa que trazia em sua cabeça (Êx
28.36; 39.30; Zc 3.5; cf. 14.20).
Para se sustentar, os sacerdotes dependiam quase que inteiramente das ofertas
do povo de Deus. Este sustento provinha de três fontes principais. Primeiro, uma
parte vinha das primícias do campo e dos primogênitos dos animais, juntamente
com o dinheiro do resgate pelos filhos primogênitos e pelos primogênitos dos
animais impuros (Êx 13.12-13; Nm 18.12-19). Segundo, recebiam porções dos
sacrifícios: o pão da proposição (Lv 24.5-9); parte das ofertas de cereais (Lv 2.3,
10; 6.16; 10.12-13; Nm 18.9) e das ofertas pelo pecado (Lv 5.13; 6.26); o peito e
a coxa dos sacrifícios pacíficos (Êx 29.26-28) e a pele dos animais sacrificados
em holocausto (Lv 7.8). Por fim, dos levitas os sacerdotes recebiam a décima
parte do dízimo dado pelo povo de Deus (Nm 18.26-28).
Êxodo 61
b) Levitas
Os levitas são os descendentes do terceiro filho de Jacó. Nem todos os levitas
deveriam servir como sacerdotes; todos, entretanto, atuavam como auxiliares
no santuário. Dedicavam-se a esse serviço em várias frentes: (a) demonstraram
ter tido zelo perante o Senhor (Êx 32.25-29); (b) substituíam os primogênitos de
Israel, poupados na noite da Páscoa quando da saída do Egito (Êx 13.2, 12-13;
Nm 3.12-13; 8.14-16); (c) representavam o povo de Israel como oferta movida
perante o Senhor (Nm 8.11). Ao contrário dos demais (Js 13-19), os levitas não
receberam herança de terra: Yahweh era a sua herança (Nm 18.20). Contudo,
os levitas receberam 48 cidades espalhadas por todo o território, das quais
seis eram chamadas “cidades de refúgio”, que abrigavam pessoas que tivessem
cometido homicídio involuntário. Além dos rebanhos que eram criados ao redor
dessas cidades, os levitas obtinham sustento pelo dízimo que recebiam pelo seu
status levítico (Nm 18.21-24; Dt 18.1-4; Js 13.14) e pelos mesmos benefícios
estendidos a viúvas, órfãos e estrangeiros (Dt 14.20-29; 16.11, 14; 26.11-13).
Talvez por julgarem desempenhar funções subalternas, muitos levitas não mais
suspiravam por retornar à Palestina após o exílio, preferindo agregar-se a outras
atividades na Babilônia.
c) Sumo sacerdote
A instituição do sumo sacerdócio começa quando Moisés consagra Arão e
seus quatro filhos (Êx 28). A escolha é divina (Êx 28.1). Os filhos de Arão não
62 Êxodo
pelo pecado (Hb 9,11-28; 10.11-18) e abriu as portas do santuário eterno para
todos os seres humanos.
O livro de Êxodo termina com a consagração do tabernáculo pela descida
da mesma “glória” (kavod, no hebraico) que havia trazido o povo de Israel do
Egito e que passa a ter residência permanente sobre o propiciatório, no Santo
dos Santos. Logo, o significado primordial do tabernáculo e do templo como
o tipo maior da encarnação, com a consumação que nos aguarda no fim dos
tempos, é uma certeza que não pode deixar de ser enfatizada.
Atividades
1. Explique o que John Bright quer dizer ao afirmar que “a localização
precisa do êxodo tem importância tão pequena para a religião de Israel
como a localização do santo sepulcro para o cristianismo”.
Respostas:
2) 3 – 5 – 2 – 1 – 4
3) b
4) c
6
Levítico
6.1 Nome
Israel está no monte Sinai, mas está a caminho; ali não é a Terra Prometida. A
missão de Deus não acontece no deserto. No deserto pode acontecer o preparo,
a formação para a missão de Deus. Mas o povo de Deus de ontem e de hoje
precisa tornar-se fonte de bênçãos salvadoras para todas as nações (Gn 12.3),
compartilhando sua redenção com todos os povos, e para isso necessita engajar-
se no mundo e na sociedade. Ademais, o Sinai não é a terra da promessa; ela
fica mais acima, em Canaã.
Canaã, entretanto, é uma terra de religião pagã. O monoteísmo javista vai
se defrontar com diferentes nuanças do politeísmo. Fazer missão no mundo
envolve dois aspectos. O primeiro é simplesmente fazer uma abordagem natural
e apresentar a pessoa abordada ao Senhor e dizer quem Ele é, o que o Senhor
fez por Israel e pode fazer por esta e aquela pessoa. O segundo aspecto é fazer
missão num contexto hostil. Israel, aparentemente, estava mais exposto a esta
situação – talvez como nós ainda hoje. E para isso, necessário se faz estarem
preparados “para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que
há em vós” (1 Pe 3.15).
Levítico é o nome do terceiro livro do Pentateuco. O nome hebraico do livro
é extraído do primeiro versículo vayiqra’, “E chamou”. O nome “Levítico” deriva-
se do nome dado pela LXX Levitikós, daí para a Vulgata Leviticus e, então, para
o português: Levítico.
66 Levítico
6.2 Propósito
No monte Sinai a nação teocrática foi organizada, a aliança ratificada e
o tabernáculo erigido. Mas antes que o povo continue sua viagem à Terra
Prometida, precisa receber orientação quanto ao culto no tabernáculo e quanto
à conduta como povo de Deus. Logo, para ser bem compreendido, Levítico
pressupõe o conteúdo de Êxodo.
3. Povo é ensinado a viver vida 5. Povo é despedido para viver vida
santificada diante de Deus e dos homens. santificada diante de Deus e do mundo.
Cap. 11-15 Cap. 17-26
6.4 Os sacrifícios
Os capítulos 1-7 contêm a mais longa orientação sobre sacrifícios na Bíblia.
Tudo o que era trazido ao Senhor como oferta devia ser cerimonialmente puro.
Do reino animal: bois (gado), ovelhas, cabritos, pombas podiam ser sacrificados;
do reino vegetal: cereais, vinho e azeite.
Sacrifício animal era oferecido em lugar, ou como substituto, do pecador. A
imolação do animal, seu sangue, na verdade não expiavam o pecado. Antes, o
sacrifício apontava para frente, para o sacrifício que viria, cujo sangue derramado
iria efetivamente expiar os pecados do mundo todo. Pelo sacrifício do animal
e pela fé no que o sacrifício antecipava, o crente no Antigo Testamento recebia
perdão dos pecados. Jamais era o caso de o ofertante “obter” perdão simplesmente
por realizar um ato mecânico sacrificando um animal para Deus. O sacrifício
era acompanhado por um coração arrependido e confiante na graça divina.
Os capítulos 1-7 apresentam os principais tipos de sacrifício, culminando
com orientações suplementares especialmente a respeito dos sacerdotes. O
capítulo 1 descreve o sacrifício do Holocausto (ou “ofertas queimadas”), em que
praticamente todo o animal era consumido sobre o altar.
O capítulo 2 fala da Oferta de Manjares (grãos) onde apenas a “porção
memorial” era queimada e o resto destinado para o salário dos sacerdotes.
O capítulo 3 descreve a Oferta de Comunhão (ou Sacrifícios Pacíficos), dividida
em três partes: uma para ser queimada, outra para ser dada aos sacerdotes e a
terceira parte retornava ao ofertante para a subsequente “oferta de comunhão”
nos recintos do templo (cf. 7.11-36).
Os capítulos 4-5 tratam da Oferta pelo pecado e Oferta pela culpa. Estes
são difíceis de serem distinguidos. Aparentemente, a Oferta pela Culpa dizia
respeito mais à “culpa-crime”, ou seja, mais ao aspecto político do que eclesiástico
em Israel. Daí o fato de que, além do sacrifício do animal, uma restituição
monetária era também requerida. A Oferta pelo Pecado era distinta dos demais
pelo proeminente uso de sangue (que variava com a ofensa e o ofensor) e pela
queima da carcaça fora do arraial (cf. Hb 13.12). Nesse contexto, a passagem
mais clara no Antigo Testamento sobre o papel do sangue como o que carrega
a vida, oferecido vicariamente em sacrifício pela vida humana, está em Levítico
17.11: “Porque a vida da carne está no sangue. Eu vo-lo tenho dado sobre o altar,
68 Levítico
para fazer expiação pela vossa alma, porquanto é o sangue que fará expiação
pela vida”.
Poucas partes da Bíblia são tão pouco lidas como as que compõem o livro de
Levítico, exatamente por causa do entrelaçado sistema de sacrifícios. Intérpretes
da teologia liberal, por vezes, olham para os sacrifícios como elemento mágico
no culto de Israel. Mas o fato é que o pecado é uma realidade triste e cruel e que
não pode ser ignorada. O pecado corrompe o ser humano na sua integridade,
corpo e alma, e o remédio para esta cura deve ser correspondente: tem preço e
é chocante.
Exteriormente, os sacrifícios de Israel tinham muito em comum com
os sacrifícios de outras nações. Podiam até ser confundidos com eles. Mas,
funcionalmente, no que respeita aos motivos, eles são “sacramentos”, são meios
da graça, ordenados por Deus, para expiar o pecado. Não são mágicos. A fé deve
estar envolvida. O rito sem fé não agrada a Deus. A lei cerimonial servia como
meio pelo qual a fé no Salvador que viria podia ser exibida, antes da Sua real
encarnação. Contudo, o ritual era eficaz apenas quando acompanhado da fé
do ofertante. Tinham valor para a pessoa apenas se ela depositasse fé no que a
cerimônia significava. Os sacrifícios oferecidos por descrentes, e por isso mesmo
impenitentes, eram uma abominação ao Senhor (cf. Pv 15.8; 21.27). Não é muito
diferente do cristão hoje, que recebe perdão por meio da Santa Ceia. É claro que
o povo recebia perdão também fora dos atos cerimoniais, por meio da fé.
Interpretações sobre o sentido das coisas “puras” e “impuras” são muitas e
insuficientes. A mais comum, conforme alguns, seria por razões higiênicas.24 Mas
o texto não oferece explicação de qualquer natureza senão que esta é a vontade
de Deus. A explicação mais plausível seria considerar as coisas impuras como
representando a separação de Israel do paganismo, enquanto as puras como
tipos da “nova criação”.
|| 23 PAYNE, J, Barton. The Theology of the Older Testament. Grand Rapids, MI: Zondervan Publishing
House, 1974, p.383-385.
|| 24 HARRISON, R. K. Introduction to the Old Testament: with a comprehensive review of Old Testament
studies and a special supplement on the Apocrypha. Grand Rapids, MI: William B. Eerdmans
Publishing Company, 1973, p.603-607.
70 Levítico
Atividades
1. Escreva sobre as diferenças que havia entre os sacrifícios de Israel e os
sacrifícios dos cananeus. O conceito de sacrifício em Israel era uma
forma de barganhar com Deus?
Respostas:
2) 4 – 5 – 1 – 2 – 3
3) a
4) 4 – 1 – 3 – 2 – 5
7
Números
7.1 Nome
O título hebraico do livro, “no deserto”, vem do primeiro versículo. O nome
é adequado porque o livro de Números registra fatos importantes associados ao
período da peregrinação no deserto antes da morte de Moisés e da conquista da
Terra Prometida. “Números” é tradução do título adotado pela LXX, Arithmoi,
que reflete os dois censos ordenados por Deus e descritos nos capítulos 1 e 26.
|| 26 HILL, Andrew e WALTON, John. Panorama do Antigo Testamento. Lailah de Noronha, trad. São
Paulo: Editora Vida, 2006, p.130.
Números 75
7.5 O texto
O censo ordenado por Deus serve para confirmar o cuidado providencial
do Senhor pelo Seu povo enquanto ainda este se achava cativo no Egito e o
cumprimento das promessas feitas a Abraão sobre um “grande povo” (Gn 12.2;
17.5,6). A longa viagem do Sinai a Cades e os acontecimentos relacionados a
ela também destacam a fidelidade divina (p. ex., a provisão por meio do maná
e de codornizes, Nm 11.4-15) e a insensatez da rebelião contra Deus, como a
empreendida por Corá (Nm 16).
O simbolismo da organização do acampamento no capítulo 2 é significativo
tanto teológica quanto militarmente. O tabernáculo está no centro e três tribos
acampadas em cada um dos quatro lados, com Judá, messianicamente sendo
posicionada no lado leste do acampamento. Os capítulos 3 e 4 descrevem
a divisão de tarefas entre as famílias levíticas de Gerson, Coate e Merari. O
diagrama abaixo indica a posição de cada grupo no acampamento:
Aser
DÃ
Naftali
Manassés Meraritas Moisés Issacar
EFRAIM Gersonitas TABERNÁCULO Arão e filhos JUDÁ
Benjamim Coatitas Zebulom
Simeão
RÚBEN
Gade
7.6 A bênção
Depois de apresentar novas orientações para ao acampamento (cap. 1-6), o
Senhor acrescenta uma bênção para o povo. A tríplice repetição do nome divino
(cf. Sl 24.8-10; 113.1; 136.1-3) antecipa o tríplice nome que Jesus emprega em
Mateus 28.19, a base para a doutrina da Trindade. A primeira cláusula de cada
linha da bênção evoca um movimento de Deus em relação a Seu povo; a segunda
cláusula evoca Suas ações. É oportuno chamar a atenção que apenas os sacerdotes
tinham permissão para dizer a Bênção Araônica, como o próprio nome indica. A
bênção segue uma fórmula empregada por Arão quando ele “levantou as mãos
para o povo e o abençoou” (Lv 9.22). O ritual em Levítico 9 era a consagração
de Arão. A ocasião específica da bênção em Números 6 não é fornecida. Talvez
fosse proferida no final de cultos regulares no tabernáculo. O uso frequente da
bênção se observa pelos ecos que aparecem nos Salmos e por uma inscrição da
bênção em amuletos de prata encontrados numa caverna-sepultura em Ketel
Hinom, nas imediações de Jerusalém.27
Em Números 10.11 o povo de Deus finalmente levanta acampamento e deixa
o Sinai. Logo adiante, no capítulo 21.9 o povo chega a Moabe. Isso quer dizer que
a maior parte dos 40 anos no deserto se acha comprimida nestes poucos capítulos
do livro de Números. Aparentemente, a maior parte dos 40 anos se passou ao
redor do oásis de Cades (ou Cades-Barneia). O nome “Cades”, em si, significa
“santo” provavelmente, sugerindo uma associação sacra (pagã evidentemente)
mesmo antes de os israelitas peregrinarem pelo local.
A peregrinação do povo de Deus está diretamente vinculada ao movimento da
arca. A peregrinação é uma procissão, tendo a arca como guia, sendo conduzida
pelos sacerdotes. A procissão não se trata de uma imitação pagã como se arca fosse
um “paládio de batalha”, ou seja, uma espécie de representação de divindade que
protegia o povo, como sugerem alguns.28 A arca sinaliza a presença do Senhor. A
“encarnação” do Senhor é descrita em dois trechos poéticos em Números 10.35-
36 por vezes chamados de “Cântico da Arca”. O texto diz assim: “Partindo a arca,
Moisés dizia: Levanta-te, Senhor, e dissipados sejam os teus inimigos, e fujam
|| 27 BARKAY, Gabriel. “The Riches of Ketef Hinnom.” Biblical Archaeology Review 35 (Jul/Aug Sep/
Oct 2009): 22-28, 30-33, 35, 122-126.
|| 28 CROSS, Frank Moore. “The divine warriors in Israel’s early Cult.” Em Biblical Motives. Alexander
Altmann, ed. Cambridge, MA: Harvard University, 1966, p.27. Cf. DeVAUX, R. Instituições de Israel
no Antigo Testamento. Daniel de Oliveira, trad. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p.298.
Números 77
7.7 Rebeliões
A narrativa é pontuada por outras rebeliões espacialmente contra Moisés e
sua autoridade. Em Números 12 Miriã e Arão se opõem ao casamento de Moisés
com a mulher “cuxita” – cujo termo pode ser traduzido por “negra”, mas que aqui
pode simplesmente significar “Midianita”. Não sabemos se a expressão se refere
a Zípora ou a outra mulher. Mais adiante, no capítulo 16, os agitadores são Corá,
Datã e Abirã. O ponto climático desse processo negativo é a rebeldia de Moisés
contra o próprio Deus junto às águas de Meribá (20.7ss.). Este ato passa ser um
dos motivos por que Moisés não entra na Terra Prometida. É preciso lembrar
que o pecado de Moisés foi além da simples desobediência à ordem divina de
falar em vez de ferir a rocha. A ira e a autopromoção de Moisés equivalem a
insubordinação, pois ele, assim como Arão, usurpam o lugar preeminente de
Yahweh perante Israel (Nm 20.2-13). O castigo infligido a Moisés, a saber, a
negação da entrada em Canaã, se justifica dada a natureza da responsabilidade
associada a quem exerce a liderança no Antigo Testamento e o julgamento divino
coerente de rebelião em outros trechos no livro de Números.
|| 29 Culto Luterano: Liturgias. Comissão de Culto da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, Org. e Rev.
Porto Alegre: Editora Concórdia, 2010, p.26.
Números 79
|| 30 Um texto mural descoberto pela arqueologia em 1969 em Deir Alla, na margem oriental do
Jordão, pode trazer mais esclarecimentos à história de Balaão. Na parede, o texto foi inscrito
em preto e vermelho, mas devido ao impacto de um terremoto ficou bastante danificado.
Datado em cerca de 800 a.C., fala da história de uma mensagem transmitida a Balaão, filho
de Beor, por mensageiros de El, o deus supremo dos cananeus. Embora o texto não tenha sido
completamente decodificado, observações preliminares acerca do seu significado bíblico podem
ser buscados em HACKETT, Jo Ann. “Balaam.” In: David Noel Freedman, ed. The Anchor’s Bible
Dictionary. V. 1. New York: Doubleday, 1992: 569-572.
80 Números
Atividade
1. Disserte sobre o que a interação do Senhor com um profeta pagão como
Balaão revela sobre Sua intervenção divina na história.
Respostas:
2) c – d – b – e – a
3) d
4) b
8
Deuteronômio
8.1 Nome
O nome “Deuteronômio”, ou “Segunda Lei”, é uma infelicidade baseada em
má interpretação feita pelos tradutores da Septuaginta da expressão que ocorre
em 17.18. Nesta passagem bíblica, no hebraico é ordenado ao rei que prepare
“uma cópia desta lei”, mas os tradutores gregos equivocadamente verteram para
“esta segunda lei” (deuteronomion touto). Há, sem dúvida, repetição de certas
leis, mas a grande ênfase está na teologia da Torá, ou “Lei”, ou seja, as boas-novas
do evangelho que motiva toda e qualquer inclinação do ser humano diante de
Deus. Não é sem razão que Deuteronômio seja citado com tanta frequência no
Novo Testamento.
8.2 Autoria
O próprio livro de Deuteronômio testifica que sua maior parte foi escrita
por Moisés (1.5; 31.9, 22, 14) e outros livros concordam (1 Rs 2.3; 8.53; 2 Rs
14.6; 18.12), embora o preâmbulo (1.1-5) e o relato da morte de Moisés (cap. 34)
possam ter sido escritos por alguém outro, mas não necessariamente. O próprio
Jesus dá testemunho da autoria mosaica (Mt 19.7-8; Mc 10.3-5; Jn 5.46-47), e
o mesmo fazem escritores do NT (At 3.22-23; 7.37-38; Rm 10.19). Ademais,
Jesus cita Deuteronômio como autoritativo (Mt 4.4, 7, 10). No NT há quase
84 Deuteronômio
8.5 Eleição
A ênfase do capítulo 7 está em dois temas importantes do livro, a saber,
a eleição de Israel e a necessidade do extermínio do paganismo cananeu. A
pergunta é: Por que Deus escolhe Israel? A eleição de Israel tem um fundamento
retroativo na história. Encontra-se no chamado de Abraão (Gn 12.1-3; 15.1-6),
quando a promessa de Deus é dirigida à “descendência” de Abraão. Esta ideia é
lançada na primeira linha do chamado de Deus a Moisés (Êx 3.6). Mais adiante,
é lembrada na revelação da Lei no Sinai (Êx 20.2, 12) e no sistema sacrificial
apresentado em Levítico (Lv 18.1-5, 24-30). Uma referência a esta promessa
86 Deuteronômio
encontra-se no relato sobre o envio dos espias a Canaã (Nm 13.2) e no relatório
da minoria proativa formada por Josué e Calebe (Nm 14.8). Eleição é a ideia
que permeia Deuteronômio.
O verbo “escolher” (bachar) é o mais empregado para definir esta relação
de Israel com Deus. Mas o conceito aparece mesmo quando esta palavra não
ocorre explicitamente (cf. 4.32-35). A escolha foi feita, diz Deus, não por causa
da superioridade numérica de Israel (7.7), mas “porque o Senhor vos amava, e
para guardar o juramento que fizera a vossos pais...” (7.8).
Por causa dessa eleição, Israel devia destruir as nações na terra de Canaã,
“sete nações mais poderosas e mais numerosas do que tu” (7.1). Com tais nações
Israel não devia fazer tratados nem ter misericórdia delas. Casamentos mistos
não devia haver entre Israel e estas nações. Caso isso acontecesse, os israelitas,
influenciados, deixariam Yahweh para servir a outros deuses (7.3-4). Acima de
tudo, Israel deveria destruir os deuses de Canaã (7.5). O capítulo 7, portanto,
volta à temática do herem e da “guerra santa”, assuntos que aparecem em Números
30 e retorna em Deuteronômio 20.
O conceito de eleição tem também outra face. Já na escolha de Abraão havia
um propósito mais amplo e nobre. Deus lhe diz: “em ti serão benditas todas
as famílias da terra” (Gn 12.3). O amor de Deus para com Israel não nasce de
Sua indiferença para com outros povos; ao contrário, surge de Sua vontade de
que Israel passe adiante a verdade divina. Se não houver cuidado em guardar
a verdade que Yahweh revelou em palavra e atos, a verdade jamais chegará ao
conhecimento do restante do mundo.
O cap. 11 resume o segundo sermão, assim como o primeiro é resumido
em 4.1-40. Tendo a cidade de Siquém (a moderna Nablus) como uma espécie
de testemunha, o povo de Israel é convidado por Deus a escolher entre a vida
e a morte, entre bênção e maldição – uma escolha associada aos montes Ebal e
Gerizim, ladeando Siquém.
No chamado “Código deuteronômico” (capítulos 12 – 26), Moisés exemplifica
o que seja viver uma vida fiel à aliança com Deus. É o que podemos chamar, como
dissemos antes, de “Terceiro uso da Lei”. De uma forma geral, as orientações
neste “código” se mostram de um caráter menos civil e mais religioso que nos
“códigos” anteriores. Nas orientações anteriores havia maior ênfase no amor a
Deuteronômio 87
8.6 Rei
Dois temas neste “código” são constantemente mencionados pelos críticos
liberais como argumentos para uma autoria pós-mosaica. O primeiro trata da
profecia em Deuteronômio 13 e 18 e o segundo fala sobre o estabelecimento de
um rei em Israel, no cap. 17.14-20. Esta é a única passagem que aborda o tema
sobre reinado no Pentateuco. Moisés tinha plena consciência das atrações e dos
perigos de um reinado. Talvez muito mais que Samuel tempos depois. No Egito
ele havia, em primeira mão, experimentado os efeitos de um regime monárquico
absoluto. E contatos havia tido com reis menos poderosos na Transjordânia como
Seom, Ogue, Balaque. A história de Gideão, em Juízes 8. 22 ss., mostra quão cedo
este problema aflorou e quão oportuna tinha sido a advertência. Deuteronômio
deixa claro que os reis em Israel deveriam estar sujeitos à aliança – um fato
constantemente lembrado pelos profetas mais tarde.
O segundo tema fala de profecia. O tema não é novo; tanto o texto bíblico
como a arqueologia mostram que profecia, de alguma forma, era anterior a
Moisés. A diferença entre verdadeira e falsa profecia o povo havia percebido na
história de Balaão. Aqui, em Deuteronômio 18.16, a origem e a legitimidade da
profecia bíblica estão atreladas à súplica dos israelitas no monte Sinai, quando,
amedrontados, pedem que Moisés seja o intercessor entre eles e Deus. O vers.
anterior assegura que Israel nunca precisará recorrer a “profetas” pagãos porque
o Senhor continuamente suscitará mediadores da aliança depois de Moisés. Esta
sucessão profética terá sua culminância naquele que é o Profeta e Mediador no
sentido pleno (At 3.22-13; 7.37; cf. Jo. 5.46).
Os capítulos finais de Deuteronômio (31-34) falam da necessidade de o povo
estar vinculado à aliança. Esta ênfase se nota tanto na preparação da passagem
do bastão de Moisés para Josué (31.1-8, 14-23; cf. Nm 27.12 ss.) como nas
providências para uma leitura periódica da Lei (31.9-13, 24-29) e a estipulação
de que o que Moisés escrevera (31.9, 24) seja depositado na arca (31.24-29). A
leitura da Torá, antecipando o que os cristãos fazem hoje em momentos cúlticos
ou domésticos, é aqui prescrita para a Festa dos Tabernáculos no ano sabático (a
cada sete anos), “diante de todo o Israel” e “no lugar que o Senhor escolher”.
88 Deuteronômio
Atividades
1. Descreva a morte de Moisés fornecendo ao menos dois argumentos
sobre a peculiaridade do seu sepultamento.
Deuteronômio 89
Respostas:
2) 3 – 4 – 1 – 5 – 2
3) c
4) c
9
Os profetas – Isaías
A segunda divisão do cânone hebraico se intitula “Os profetas”, ou Nebi’im.
Do ponto de vista moderno, esta secção parece conter dois diferentes tipos de
livros, históricos e proféticos. Mas, olhando-se mais de perto, pode-se notar que
tal diferença não é tão precisa quanto parece. Os chamados livros históricos são
quatro: Josué, Juízes, Samuel e Reis – na maioria das traduções modernas em
português, os dois últimos são divididos em dois volumes cada: 1 e 2 Samuel e 1
e 2 Reis. Esta coleção de livros, entretanto, não engloba todos os livros de caráter
histórico fora do Pentateuco; há livros de caráter histórico na terceira divisão
do cânone, os Escritos: 1 e 2 Crônicas, Esdras e Neemias. As nomenclaturas
tradicionais para os dois tipos de escritos em Os profetas, e que datam do período
medieval, são os Profetas anteriores (os livros históricos) e os Profetas posteriores:
Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze profetas (Daniel pertence aos Escritos).
Profetas anteriores
Os quatro livros que compõem os Profetas anteriores, como os que compõem
o Pentateuco, são tecnicamente obras anônimas. Seus títulos descrevem de
maneira geral o conteúdo de cada livro. Estes livros exibem uma teologia
profética, como “ilustrações de sermões”, que antecipa os “sermões” dos profetas
propriamente.
92 Os profetas – Isaías
Profetas posteriores
A segunda divisão do cânone do Antigo Testamento Os profetas contém não
apenas os livros históricos chamados Profetas anteriores, como também uma
série de livros intitulados Profetas posteriores, que estão mais diretamente ligados
a pessoas específicas, a saber, Isaías, Jeremias e Ezequiel, como mencionamos.
Os Profetas posteriores são chamados Profetas maiores, enquanto o quarto é
uma antologia de 12 livros pequenos (Amós, Oseias, Miqueias, Sofonias, Naum,
Habacuque, Obadias, Joel, Jonas, Ageu, Zacarias e Malaquias) chamada Profetas
menores (“Dodekapropheton” em grego) que juntos equivalem ao tamanho de
cada um dos três profetas maiores. Este arranjo provavelmente surgiu do fato de
os doze profetas menores serem integrados num só pergaminho. Essa distinção
maior/menor decididamente não é a mais apropriada; os termos se referem
apenas ao tamanho de cada livro, não tendo implicação alguma com relação ao
significado ou importância dos profetas como tais.
Que é um profeta?
“Profeta”, no sentido bíblico, é como um “porta-voz, intérprete, mediador
da vontade divina”. Neste sentido, Abraão é um profeta (Gn 20.7) porque ele
intercede junto a Deus pelo bem-estar de Abimeleque. Assim também Arão
é um profeta para Moisés (Êx 7.2), no sentido de porta-voz de Moisés. O
próprio Moisés é o profeta por excelência em razão do seu papel singular como
representante e mediador da aliança sinaítica. No sentido mais amplo, os grandes
profetas foram reformadores na medida em que chamavam de volta Israel às
raízes mosaicas. Cristãos que somos, não há como falar sobre profecia sem
invocar o nome de Cristo como o Profeta Maior da verdadeira profecia.
O profeta também era chamado “vidente”, ou seja, “aquele que tem ou recebe
visões”. Uma passagem (1 Sm 9.9) indica que o termo “vidente” foi empregado
mais no início da profecia, sendo mais tarde substituído por “profeta”; mas,
se havia alguma diferença entre os termos, tornou-se indistinta na época do
Antigo Testamento.
O grande dilema, especialmente para Israel, era distinguir entre a verdadeira
e a falsa profecia. Como aceitar que a profecia de um profeta como Jeremias era
verdadeira enquanto a de um Hananias, seu contemporâneo, era falsa, quando
Os profetas – Isaías 93
ambos diziam que falavam em nome de Yahweh? Como você iria decidir?
Esperar que a profecia se cumprisse? Poderia levar anos e anos e talvez nem
se cumprisse naquele tempo. Sem dúvida que um dos indicativos é o fato que
o falso profeta era adepto da mensagem que o povo gostava de ouvir, a saber,
“paz, paz, quando não há paz” (Jr 6.14; 8.11). Já o verdadeiro profeta aponta
a “guerra, fome e pestilência” como características tradicionais da verdadeira
profecia (28.8, cf. 34.17).
Foram mensagens discordantes como estas que induziram críticos como
Julius Wellhausen a determinar que profetas que pregavam juízo eram profetas
“genuínos” ao passo que os que pregavam mensagem mais amena eram
identificados como de um período mais tardio. Embora em parte isso seja verdade,
a questão não se resolve de maneira tão simples. Se havia preponderância de uma
mensagem de julgamento entre os profetas pré-exílicos, era porque correspondia
às necessidades da época. Junto com a decadência social, talvez apressada pela
guerra dos Arameus, veio o colapso total da religiosidade e da ética do javismo
tradicional. A situação chegara a tal ponto que Deus não tinha alternativa a não
ser executar seu “juízo final” a Israel por intermédio dos Seus profetas.
Mesmo nessas circunstâncias, na sua pregação de juízo, os verdadeiros
profetas pré-exílicos não deixavam de antecipar também os atos escatológicos
da redenção divina. E quando as circunstâncias mudam após o julgamento, mais
que depressa os profetas também mudam o tom profético, anunciando promessa
e esperança. Para uma síntese do significado do termo, podemos dizer que um
profeta é aquele que pode tanto proclamar quanto predizer a mensagem divina.
Em resumo, sua mensagem pode ser uma proclamação como uma predição.
Há pessoas que simplesmente pinçam versículos dos profetas e os agrupam
para apresentar “profecias que comprovam a Bíblia”, criando-se a impressão que
profecia é a “história escrita de antemão”. Mas um estudo mais cuidadoso dos
profetas e de sua mensagem revela que, em primeiro lugar, os profetas falam
para o seu tempo. Eles falam do rei e de suas práticas idólatras, de profetas que
dizem o que são pagos para dizer, de sacerdotes que não instruem o povo de
Deus na Lei de Yahweh, de negociantes que empregam balanças adulteradas, de
juízes que favorecem o rico e não proporcionam justiça ao pobre, de mulheres
cobiçosas que induzem seu marido a práticas corruptas para poderem desfrutar
o luxo. Tudo isso faz parte da profecia bíblica. O povo de Deus precisa de
constante correção. Ao mesmo tempo, trata-se de uma mensagem de esperança,
94 Os profetas – Isaías
pois o Senhor não rompeu sua aliança e completará a Sua obra depois que o
julgamento terminar.
Mas a profecia não é apenas para a situação presente; ela possui também uma
dimensão futura. Deus tem um plano para o Seu povo e para o mundo. E ele
envolve os profetas nesse plano (Am 3.7). A profecia é a mensagem de Deus para
o presente à luz da missão redentora em andamento. Em certos momentos, Deus
fornece detalhes bem precisos do que está para fazer. Mesmo esta predição está
quase sempre ligada à situação presente. O profeta fala de algo que faz sentido
para os seus ouvintes. Ele os transporta daquele momento para o transcorrer
da atividade redentora de Deus e centra-se numa verdade que se tornará ponto
de referência para o povo de Deus. A profecia é uma janela que Deus abre para
o Seu povo por meio dos Seus servos, os profetas.
Isaías
Devido ao espaço, seria quase impossível tratar aqui de todos os profetas
do Antigo Testamento. Por isso, vamos escolher um representante deles e que é
unanimidade em termos de importância, ou seja, o profeta Isaías.
Autoria do livro
O livro de Isaías tem sido o que mais tem sofrido com a questão envolvendo
autoria. Desde o século XVIII, a crítica moderna tem costumeiramente
diferenciado em o “Isaías de Jerusalém” (cap. 1-39) e o anônimo Deutero-Isaías
(cap. 40-66). Naturalmente, pressupostos filosóficos sobre a possibilidade de
haver profecia preditiva estão envolvidos. É possível que em nenhuma outra
parte em todo o Antigo Testamento esse tema seja tão relevante como aqui em
Isaías.
Em Isaías 40-66 não é em apenas uma ou duas profecias que o profeta fala
como se fosse contemporâneo com os eventos do exílio tendo Babilônia, não
a Assíria, como inimigo. A mensagem é extremamente precisa ao apresentar
conforto e promessa aos exilados. O exemplo maior é a identificação por
duas vezes de Ciro pelo nome (44.28 e 45.1), embora a figura de Ciro esteja
implicada outras vezes no contexto. A única situação como esta só ocorre na
Os profetas – Isaías 95
identificação de Josias em 1 Reis 13, mais ou menos três séculos antes do seu
aparecimento histórico. Enquanto para os liberais estes são exemplos típicos
de um autor contemporâneo ao episódio, ou seja, do século VI, para a maioria
dos conservadores eles representam exemplos máximos de profecia preditiva.
Alguns intérpretes conservadores sustentam que a estrutura paralela e climática
de 44.26-28 seria destruída se “Ciro” fosse eliminado do texto.
Para os conservadores, o argumento decisivo para a unidade de autoria de
Isaías repousa no dogma, coisa que os críticos nem querem saber e repudiam
esta posição como de caráter “não científico”. Os dogmas que aqui se aplicam
são os mesmos quando tratamos da autoria mosaica do Pentateuco, a saber,
escriturísticos e cristológicos. Não apenas o Novo Testamento em geral, mas o
próprio Jesus especificamente e repetidamente faz referência às duas metades
do livro como sendo ambas de Isaías. Muitas destas referências são feitas não
apenas ao livro como à própria pessoa de Isaías. Em João 12.38-41, por exemplo,
citações de ambas as partes do livro são atribuídas ao homem Isaías.
Enfim, o que está em jogo não são as circunstâncias históricas para as quais
Isaías se dirige. A única questão é quando isso acontece. Historicamente, o exílio
antes anunciado chegara ao fim. Jerusalém e o templo parecem estar em ruínas.
Mas o grande reverso, tão proeminente também nos oráculos anteriores, está por
acontecer. Logo, o posicionamento de cada um nesta questão é fator crucial que
advém de sua visão teológica e metodológica, a saber, se considera a Escritura
como inerrante ou não; se crê que os autores bíblicos eram inspirados ou não. Ao
fim e ao cabo, tal posicionamento determina se alguém segue o Método Histórico
Gramatical ou Método Histórico-Crítico de interpretação da Escritura.
Em resumo, a posição dominante hoje entre os proponentes do Método
Histórico-Crítico é que o livro de Isaías foi escrito por três principais autores:
a) Isaías, filho de Amoz, que viveu em Jerusalém do século VIII ao VII
a.C. e que teria escrito os capítulos 1-39;
b) Segundo Isaías, ou Deutero-Isaías, que viveu e escreveu na Babilônia
no ano 540 a.C, e que escreveu os capítulos 40-55;
c) Terceiro Isaías, ou Trito-Isaías, que viveu em Judá no período pós-exílico
e que escreveu os capítulos 56-66.
96 Os profetas – Isaías
Propósito do livro
O propósito do livro de Isaías é proclamar que a libertação acontece pela
graça de Yahweh e pelo Seu poder em vez de pelo esforço e empenho humano.
Esta libertação acontece tanto em nível físico (Judá não deve confiar em aliados)
quanto espiritual. No plano espiritual, Isaías profetiza a respeito do Messias e Seu
Reino. O livro sublinha que o Deus vivo não admite um viver perverso da parte
do Seu povo da aliança e, em Lei e Evangelho, adverte que um remanescente
sobreviverá às invectivas da iniquidade.
Estilo
Isaías é, sem dúvida, um dos maiores escritores do Antigo Testamento cujo
estilo se caracteriza pela criatividade e vivacidade. Isaías é um mestre nas figuras
de linguagem. Algumas de tais características transparecem até nas traduções,
embora outras sejam intraduzíveis. Imagens ou ilustrações são seguidamente
empregadas para tonificar a sua mensagem. Veja, por exemplo, figuras como
palhoça no pepinal (1.8) ou uma criança no meio de uma floresta com poucas
árvores (10.19).
A paronomásia, que consiste na repetição de palavras semelhantes no som
para realçar o impacto da mensagem, é uma das preferidas. A mais conhecida
ocorre na “canção da vinha”, com este toque de mestre (5.7b):
Esboço
Esboço Referências principais
1-12 Oráculos contra Judá e Jerusalém 1.2-3 Aliança transgredida
(primeiro período do ministério de 2.24 = Miqueias 4.1-3
Isaías) 5.1-7 Parábola da vinha
7: Isaías x Acaz: “Imanuel”
8.14: “pedra de tropeço e rocha de ofensa”
9.2-7 Rei messiânico
“Príncipe da paz”
13-23 Oráculos aos gentios 11.1-9 Rebento do tronco de Jessé; nova
24-27 “Apocalipse isaiano” criação
28-33 Oráculos contra Judá (segundo 25: banquete messiânico
período do ministério de Isaías) 28.16: “Pedra angular”
34-35 Edom x Israel 40.1-11 Chamado
36-39 Isaías e Ezequias x Senaqueribe 42.1-4, 49.1-6; 50.4-11; 52.13-53.12:
(= 2 Rs 18.13-20.19) quatro “Cânticos do Servo”
Teologia
Isaías é teólogo de primeira linha. Alguns o denominam de “o evangelista
do AT”. Seu livro apresenta várias ênfases teológicas.
a. Santidade de Deus.
Deus é absolutamente santo e transcendente. Ele é o Santo de Israel (cf. Is
6.) Porém ele se revela, torna conhecidas a sua glória e a sua misericórdia.
Percebe-se isto especialmente nos oráculos messiânicos.
b. Fé.
Neste aspecto Isaías compartilha com o profeta Habacuque a designação
de “o São Paulo do Antigo Testamento”. Fé é a única resposta correta do
homem para com Deus. Não há outra forma de relacionar-se com Deus
a não ser pela fé (Is 30.15).
100 Os profetas – Isaías
c. Dia do Senhor.
Este é o dia final, o dia da vingança/salvação do Senhor contra os seus
inimigos. Mas também é o grande dia da salvação dos fiéis, dos que
permaneceram firmes na aliança com Deus (cf. Is 2.6‑22).
d. Remanescente.
O remanescente é composto por aqueles que permanecerão fiéis até o
fim. Após o exílio virá a restauração e os fiéis verão a salvação que Deus
trará. São os resgatados do Senhor (Is 4.3; 6.13; 35.10). “O sangue dos
mártires é a semente da Igreja”.
e. Sião e Messias.
Os temas de Sião e do Messias se acham nos oráculos messiânicos que
apontam para Cristo e a salvação final na eternidade. Sião é o monte
em Jerusalém sobre o qual estava edificado o templo do povo de Deus.
Sião, por um lado, aponta para a Jerusalém terrena, por outro é figura
da Jerusalém celeste. O Messias é o filho de Davi que reina em Sião. Isso
aponta para a eternidade. O tema da “inviolabilidade de Sião” está bem
próximo da mensagem de Isaías mas, claro, a Jerusalém terrena está
condenada à destruição.
f. Servo do Senhor.
Esta figura é proeminente na segunda parte do livro e aponta para Cristo.
No Antigo Testamento, “servo” é título de grande honra e status. Isso
se aplica à função importante a ser cumprida por Jesus. A passagem
clássica mais conhecida referente ao “servo do Senhor” se encontra em
Is 52.13‑53.12, o chamado Cântico do Servo Sofredor.
Mensagem
Capítulos 1-39
Geograficamente, os acontecimentos onde se desenrolam estes capítulos
é Judá, mais especificamente sua capital, Jerusalém. Dois eventos históricos
dominam a narrativa: as marchas do exército assírio sob o comando do rei
Os profetas – Isaías 101
Tiglate-Pileser III (745-727 a.C.) e a destruição de Judá por outro rei assírio
posterior chamado Senaqueribe, em 701 a.C.
Judá está repleta de crimes de toda ordem: rebelião, ritualismo religioso,
imoralidade. Deus está por aplicar julgamento por meio de invasores estrangeiros
cuja velocidade e malignidade assolam a terra.
Isaías estabelece um contraste entre os dois reis que se defrontam com a
ameaça da Assíria. Acaz oscila entre a ordem divina de “manter uma fé firme”
(7.9) e o medo das ciladas dos reis de Israel e Damasco que o atormentam para
que entre na coligação contra Tiglate-Pileser (7.1-2). Ezequias, contudo, não
vacila em sua atitude diante da ameaça de Senaqueribe ao invadir Judá em 701.
Embora o monarca assírio tenha destruído várias cidades fortificadas de Judá, a
confiança de Ezequias no Senhor, ao contrário da de seu pai Acaz, não se abalou.
O exército assírio foi aniquilado. Essas duas narrativas, de Acaz e Ezequias,
ancoram a primeira metade do livro, demonstrando a importância da fé.31
Cap. 1: a abertura do livro é uma introdução para o livro todo. No v. 4 aparece
de imediato a expressão divina preferida de Isaías “o Santo de Israel”.
Cap. 2.2-4: é idêntico a Miqueias 4.1-3, embora cada profeta conclua a seu
jeito. Críticos logo reagem para dizer que provavelmente em ambos há uma
adição posterior. O mais provável é que tanto Isaías quanto Miqueias se utilizam
de uma fonte comum, talvez um hino ou uma parte da liturgia cantada pelo
povo de Deus no culto do Antigo Testamento. Este versículo se acha estampado
no edifício das Nações Unidas, mas o fato é que a paz tanto almejada por todos
está longe das realizações humanas. Ao fim e ao cabo, ela só será estabelecida
pela intervenção divina sobrenatural e escatológica.
Cap. 5: apresenta a famosa “Canção da Vinha”, uma metáfora para representar
o povo de Israel (cf. Estilo, acima). Na Parábola dos Lavradores Maus (Mt
21.33ss.), Jesus faz referência direta a esta passagem.
|| 31 Com o objetivo de dar uma ênfase mais teológica ao livro de Isaías – mesmo numa abordagem
mais introdutória –, esta parte se apoia basicamente nos seguintes autores: RIDDERBOS, J.
Isaías. São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1986; PIEPER, August. Isaiah II: An exposition of
Isaiah 40-66. Milwaukee: Northwestern, 1979; HUMMEL, Horace D. The Word becoming Flesh:
an Introduction to the Origin, Purpose, and Meaning of the Old Testament. St. Louis: Concordia,
1979; OSVALT, John N. The Book of Isaiah: Chapters 40-66. Grand Rapids/Cambridge: William
B. Eerdmans Publishing Company, 1998.
102 Os profetas – Isaías
|| 32 DELITZSCH, Franz. Biblical Commentary on the Prophecies of Isaiah, vol. 1. Grand Rapids: WM.
B. Eerdmans Publishing Company, 1969, p.189-90.
Os profetas – Isaías 103
Capítulos 40-66
Teologicamente, a ênfase desta segunda parte de Isaías está não mais no
Messias como tal, mas na escatologia, ou seja, a alegria da restauração de Sião.
O retorno a Jerusalém após o exílio babilônico com o edito de Ciro, em 538,
não é apenas pintado em cores escatológicas e cosmológicas, mas ambos são
entrelaçados, ou seja, o evento histórico é um tipo ou antecipação do evento
maior, a saber, a restauração de todas as coisas. Longe de ser um fracasso de
Yahweh, o exílio antes de tudo representa uma vitória e de certa forma uma
vingança da Sua revelação aos profetas.
No cap. 40 há uma exortação ao povo redimido a que evangelize as
redondezas. Em Isaías 42.1-4 há uma descrição do “meu servo” em que o foco
é um indivíduo. Conforme Duhm, este é o primeiro dos “Cânticos do Servo”.
Por vezes se analisa os cânticos do servo, entende-se “servo” como implicando
subserviência e também servidão. Contudo, tanto no Antigo Testamento quando
no Antigo Oriente Próximo, o termo “servo” é um título que envolve honra e
status, algo semelhante àquele que está “assentado à direita do rei”, a saber, o
104 Os profetas – Isaías
“ministro” da corte. Em 42.18 há uma forte reprimenda ao servo por ser “cego”
e “surdo” às orientações divinas. A referência, evidentemente, é ao Israel como
povo e que provoca em Deus nenhuma outra reação senão palavras de juízo.
Em Isaías 44 temos a maior secção que trata sobre Ciro culminada na explícita
designação dele como “meu servo” por reconstruir Jerusalém e o templo. Mais
adiante o tema continua onde há referência a ele como o “ungido” (45.1).
Capítulos 46 e 47 contemplam a iminente queda da Babilônia. O capítulo 46
satiriza os deuses Bel e Nebo. O primeiro, Bel, é uma referência a Marduque, o
principal dos deuses babilônicos; o segundo, Nebo, é equivalente ao deus grego
Mercúrio posteriormente, e que aparece com frequência nesse período inclusive
no nome do rei babilônico Nabucodonosor.
O cap. 49 é considerado o segundo Cântico do Servo, em que o servo fala
como um indivíduo. Mas há um explicito paralelo do servo com Israel no
versículo 3. Nos versículos 1 e 5 ele recebe incumbência especificamente para
com Israel bem como para ser “luz para os gentios”.
O terceiro cântico (49.1-60) ressalta a fidelidade do Servo à sua missão, não
obstante o grande sofrimento. Aqui o Servo é bem distinto de Israel (vv. 10-11).
Há um cântico de lamentações que o profeta Jeremias e inúmeros salmos de
lamento apresentam. O cap. 49 é uma introdução para o grande capítulo 53.
O quarto Cântico do Servo inicia em 52.13, numa demonstração de
descuido na divisão de capítulos da Bíblia. Todo mundo, entretanto, se refere
a este cântico como “Isaías 53”. Embora muitos o considerem “climático”, esta
não é a ocorrência final do Servo no livro de Isaías. Alguns entendem que em
61.1-3 o tema retorna, apresentando o Servo em diferente nuança. O Cântico
é estruturado por uma “inclusio”, ou seja, no prólogo e no epílogo Deus fala na
primeira pessoa, descrevendo a exaltação futura do Servo, enquanto no corpo
do poema a congregação medita na Sua presente ignomínia. A polaridade entre
humilhação e exaltação perpassa todo o Cântico.
Os capítulos 54 e 55 fazem uma transição abrupta após o capítulo 53. Nestes,
ao contrário do anterior, há exultação e alegria que só podem ser entendidos
a partir dos acontecimentos narrados no capítulo 53. Isaías 55 emprega uma
imagem marital falando que a mulher “desolada” terá mais filhos que a “casada”.
O versículo 5 é ainda mais incisivo: “o teu criador é o teu marido”, antecipando
o tema neotestamentário da Igreja como noiva de Cristo.
Os profetas – Isaías 105
Atividades
1. Disserte sobre as características da profecia bíblica especificando como
se distingue profecia como proclamação e profecia como predição.
d) Zedequias.
e) Xerxes.
Respostas:
2) 3 – 4 – 2 – 1 – 5
3) b
4) d
10
Os Escritos – Salmos
Não há dúvida de que Salmos é o livro do Antigo Testamento preferido
entre os cristãos. Sua popularidade vem do Novo Testamento, em que são feitas
frequentes citações ou referências a ele. Claro que esta preferência tem motivos
diferentes. Em contraste com o uso monástico enfatizado na Idade Média, a
reação dos reformados exaltou salmos parafraseados acima da hinódia “humana”,
enquanto luteranos centralizavam seu uso em partes litúrgicas do culto, como
introitos e graduais.
Lutero, que sabia de cor os Salmos, vê neles um resumo da mensagem e da
cristologia e da teologia bíblica. Seu apreço pelo Saltério chega ao ponto de ele
o chamar de “pequena Bíblia”.33
Em nível mais pessoal, o clima devocional e intimista que permeia os salmos
e que tem sua origem numa intensa relação do indivíduo com o Senhor encontra
acolhida entre o povo de Deus também hoje. Embora a estrutura de Salmos bem
como a sua forma poética não sejam condizentes com a poesia ocidental, com
os Salmos nos sentimos em casa.
10.1 Nome
O título Salmos reflete o nome do livro na LXX, Psalmós. Há um título em
grego alternativo, Psaltērion, que também é usado e que aparece em português
dando o nome para o conjunto total dos Salmos. Ambos os nomes entraram em
nossa Bíblia através da Vulgata, que simplesmente transliterou os termos gregos.
As palavras gregas, derivadas do verbo psallō, “dedilhar”, foram inicialmente
empregadas para indicar a execução de instrumentos de corda ou o próprio
instrumento. A palavra grega psalmós foi usada para traduzir o termo hebraico
mizmor, cuja raiz verbal zāmar (“cantar” ou talvez “tocar”) relaciona o livro à
música. Não é sem razão que se afirma que “os Salmos são o ventre materno da
música na Igreja”.34 Posteriormente, passaram a ser empregadas para descrever
um cântico, psalmós, ou a coleção de cânticos, psaltērion. O evangelista Lucas
empregou o título grego completo, Livro dos Salmos (Lc 20.42; At 1.20).
|| 34 WESTERMEYER, Paul. Te Deum: the church and music. Minneapolis: Fortress Press, 1998, p.23.
|| 35 KAISER, Walter e SILVA, Moisés. Introdução à hermenêutica bíblica: como ouvir a Palavra de
Deus apesar dos ruídos da nossa época. Paulo César Nunes dos Santos, Tarcízio José Freitas de
Carvalho e Suzana Klassen, trad. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p.81-82.
|| 36 A poesia do Novo Testamento inclui (1) citações de poetas antigos (At 17.28; Tt 1.12; 1 Co
15.33); (2) possíveis hinos cristãos do século I (p. ex., Fp 2.5-11; 1 Tm 3.16; 2 Tm 2.11-13);
(3) passagens nos moldes da poesia do Antigo Testamento, como no Magnificat de Lucas (1.46-
55), Benedictus (1.68-79), Gloria in Excelsis (2.14) e Nunc Dimittis (2.29-32); e (4) passagens
que têm o estilo da poesia tais como o lamento de Jesus sobre Jerusalém (Lc 13.34-35), partes
do discurso no Cenáculo (p. ex., Jo 14.1-7), e hinos e imagens de Apocalipse (p. ex., 4.8, 11;
5.9-19, 12-13; 7.15-17; 11.17-18; 15.3-4; 18. 2,14-24; 19.6-8).
Os Escritos – Salmos 111
A poesia não é uma invenção do povo de Israel. Por detrás da poesia do Antigo
Testamento há a herança de uma tradição literária longa e bem desenvolvida
no Antigo Oriente Próximo. Apesar de a poesia hebraica remanescente mais
antiga datar dos séculos XIII e XII a.C., os rudimentos da poesia das nações
circunvizinhas podem ser traçados até cerca de 3200 a.C. Temos hoje à disposição
“salmos” de toda ordem provindos de quase todos os quadrantes do Levante.
Desde o período das pirâmides (Reino Antigo), o Egito tem produzido poesia,
algumas delas semelhantes à poesia bíblica. O exemplo mais conhecido entre os
estudiosos hoje é a rudimentar semelhança que há entre o Salmo 104 e o hino
ao Sol (Aton), de Aquenaton. Observe esta semelhança:37
|| 37 PRITCHARD, James B., ed. Ancient Near Eastern Texts. 3.ed. Princeton: Princeton University
Press, 1969, p.370.
112 Os Escritos – Salmos
Esta divisão é mais antiga que os manuscritos mais antigos, mas até pouco
tempo atrás os estudiosos do Antigo Testamento tinham poucas informações
sobre o seu significado. Recentemente, houve progresso nas pesquisas e há certo
consenso que dentro de tais conjuntos maiores há outros menores. Dentre estes,
destacam-se:
Grupo davídico I: 1-41
Grupo dos filhos de Corá I: 42-49
Grupo davídico II: 51-65
Grupo de Asafe: 73-83
Grupo dos filhos de Corá II: 84-88 (exceto o 86)
Os Escritos – Salmos 113
Cada uma das divisões maiores dos cinco livros aparentemente tem relação
com o uso litúrgico nas sinagogas, ou seja, o uso de um salmo para cada leitura
do Pentateuco. Cada um dos cinco livros termina com uma doxologia (41.13;
72.18ss; 89.52; 106.48; e 150). O propósito das doxologias é dar louvor pelo
que foi revelado acerca de Deus em cada livro. Esta ênfase no louvor está em
consonância com o título hebraico atribuído ao Saltério: “louvores”. Também
se harmoniza com uma mudança de lamento na primeira metade do Saltério
para louvor na segunda metade. Mesmo que alguns salmos se concentrem nos
interesses humanos em relação a Deus, o propósito fundamental do livro como
um todo se concentra em Deus e Sua ação em benefício do Seu povo.
Diferente numeração dos Salmos remonta à Septuaginta, que, via Vulgata,
está presente hoje nas Bíblias católicas. Visto que os salmos 9 e 10 são ajuntados
e o 147 é dividido em dois, o resultado é que na maior parte do Saltério a
numeração dos Salmos na Bíblia católica está uma abaixo da numeração nas
Bíblias protestantes. O exemplo mais conhecido é o do Salmo 23, que nas Bíblias
católicas será o Salmo 22.
46 Castelo Forte
51 “Cria em mim, ó Deus, um coração puro”
87 “Gloriosas coisas se têm dito de ti”
90 “Tu tens sido nosso refúgio”
95 Venite (“Vinde”)
96 e 98 “Cantai um cântico novo”
103 e 104 “Bendize, ó minha alma...”
110 “A ordem de Melquisedeque”
118 “Bendito O que vem”
119 Acróstico na Torá
121 “Elevo os meus olhos para os montes”
130 “Das profundezas clamo a Ti”
137 “Às margens dos rios da Babilônia”
139 “Tu me sondas e me conheces”
No que respeita à autoria, a notação mais comum é “de Davi” (ledavid, que
aparece 73 vezes), significando, talvez, (1) “de autoria de Davi”, cuja musicalidade
é largamente atestada no Antigo Testamento, (2) “em favor de Davi” (Sl 20), uma
oração pelo rei davídico na véspera da batalha, ou (3) “pertencente a Davi”, parte
de uma coleção real, talvez incluindo composições de Davi. A analogia bíblica
lhe atribui outros cinco salmos cujo título não aparece: 2 (At 4.25); 95 (Hb 4.7);
96, 105, 106 (1 Cr 16).
Alguns salmos são atribuídos aos “filhos de Corá” (42-19, 84, 85, 87, 88) e a
Asafe (50, 73-83). Outros são mencionados nos cabeçalhos dos salmos: Moisés
(Sl 90); Salomão (Sl 72; 127); chefes de família do coro, os ezraítas Hemã (Sl 88)
e Etã (Sl 89) e Jedutum (39; 62; 77).
Os Escritos – Salmos 115
10.6 Melodias
Além dessas, outras notações nos Salmos parecem indicar nomes de melodias
segundo as quais os salmos deveriam ser cantados. O “Sheminith” (talvez:
“oitava”) do Sl 6 parece ser o caso, como também “Lírios” (Sl 45, 60, 69, 80);
“Pomba nos terebintos distantes” (Sl 56); e especialmente “Corça da manhã” do
Sl 22. Visto que “Manhã” (schachar = Aurora) é uma deusa muito popular em
|| 38 KIDNER, Derek. Salmos 1-71: Introdução e comentários aos livros 1 e II dos Salmos. Gordon
Chown, trad. São Paulo: Vida Nova, 1980, 45-60.
|| 39 CHILDS, B. S. “Psalms Titles and Midrashic Exegesis.” Journal of Semitic Studies 16 (1971):
137-50.
|| 40 DILLARD, Raymond B, e LONGMAN III, Tremper. Introdução ao Antigo Testamento. Sueli da Silva
Saraiva, trad. São Paulo: Vida Nova, 2006, p.204.
116 Os Escritos – Salmos
|| 41 Um exemplo é o conhecido Hino “Rocha Eterna”, número 276 no Hinário Luterano, quem tem
a Melodia Toplady, algo como “Dama Maior”.
Os Escritos – Salmos 117
A. Estrutura de pensamento
Estrutura de pensamento ou sentido é o equilíbrio de ideias de forma
sistemática. O veículo principal da transmissão da estrutura de pensamento
é o chamado “paralelismo de termos constituintes” ou também denominado
“paralelismo dos membros”.
Paralelismo
A geometria nos ensina que linhas paralelas são aquelas semirretas que
correm uma junto da outra e sempre mantendo a mesma distância. Mas em
poesia se fala em paralelismo quando as linhas poéticas ou versos são de alguma
forma semelhantes. Por séculos os pesquisadores bíblicos sabem da presença do
paralelismo na poesia hebraica. A era moderna do estudo da poesia do Antigo
Testamento começou em 1753, quando o bispo Robert Lowth publicou sua obra
considerada de grande autoridade sobre esse tema.42 Lowth identificou três tipos
diferentes de paralelismo, que chamou de paralelismo sinônimo, paralelismo
antitético e paralelismo sintético.
Segundo a definição de Lowth, paralelismo sinônimo é aquele em que o
sentido das linhas poéticas paralelas é praticamente idêntico. Veja, por exemplo,
o Salmo 9.8:
“Ele mesmo julga o mundo com justiça;
administra os povos com retidão”.
|| 42 LOWTH, Robert. De sacra hebraeorum praelectiones academicae (Preleções sobre a poesia sagrada
dos hebreus). Oxford: Clarendon Press, 1753.
118 Os Escritos – Salmos
Por vezes aparece uma série de paralelismos e com eles também uma série
de binômios contrastantes como ira/favor, um momento/vida inteira, choro/
alegria, noite/manhã. Observe o Salmo 30.5:
“Porque não passa de um momento a sua ira;
o seu favor dura a vida inteira.
Ao anoitecer, pode vir o choro,
mas a alegria vem pela manhã”.
|| 43 Para uma análise mais ampla e detalhada, veja ZOGBO, Lynell e WENDLAND, Ernst. La poesia
de Antiguo Testamento: pautas para sua traducción. Alfredo Tepox Varela, trad. e adapt. Miami:
Sociedades Bíblicas Unidas, s.d., p.23-79.
120 Os Escritos – Salmos
B. Estrutura sonora
A segunda característica da poesia hebraica, a estrutura sonora, é demonstrada
por vários artifícios técnicos usados pelos salmistas. Podemos indicar os mais
importantes:
1. Acróstico. Acróstico é um poema em que as letras iniciais dos versos
(ou linhas) formam o alfabeto hebraico. O Antigo Testamento possui
13 poemas acrósticos do alfabeto (Sl 9, 10, 25, 34, 37, 111, 112, 119, 145;
Pv 31.10-31; Lm 1-4). O acróstico servia como esquema mnemônico
que, nas traduções, é praticamente impossível reproduzir. Como
recurso literário transmitia ideias de ordem, progressão e plenitude da
mensagem poética.
2. Aliteração. É uma característica bastante frequente nos Salmos. Trata-
se da repetição de consoantes no início de palavras ou sílabas também
com finalidade mnemônica. Lembro que na escola primária, numa
região em que a letra erre, em português, era consoante difícil de ser
pronunciada, a professora insistia com esta frase em aliteração:
“O rato roeu a roupa da rainha da Rússia;
e o rei de raiva roeu o resto.”
1. Hino
Uma das mais importantes classificações feitas por Gunkel é o “Hino”. O
hino tende a seguir um padrão quádruplo: (a) um convite ao louvor, em geral
com um imperativo plural (como “Aleluia!” = “Louvai ao Senhor” ou “Bendize,
ó minha alma, ao Senhor”; algumas vezes aparece com uma forma cooptativa:
“cantemos”; (b) o motivo para o louvor, normalmente introduzido pela cláusula
ki (“porque”) ou simplesmente por ki tob, “porque ele é bom”; (c) segue-se o
corpo ou parte principal do louvor, concluindo, por vezes com (d) novo convite
ao louvor, em geral com as mesmas palavras iniciais.
|| 46 MOWINCKEL, Sigmund. The Psalms in Israel’s worship. 2 vol. New York: Abingdon Press, 1962.
124 Os Escritos – Salmos
2. Lamentos
Estes salmos se destacam pelas orações e súplicas feitas em tempos de
emergência nacional como epidemia, secas, pragas, invasões ou derrotas. Em
geral, há mais lamentos individuais que comunitários. A esta categoria pertencem
os salmos 44, 60, 74, 79-80. Embora alguns distingam entre lamentos individuais
e comunitários, por vezes é difícil estabelecer tal diferença. Um exemplo é o salmo
22. O próprio Gunkel comparou os dois tipos a duas metades de uma concha.
Segundo Bellinger, estruturalmente os salmos de lamento podem ter até seis
elementos: (1) invocação; (2) lamento; (3) petição; (4) motivação (razões para
que o Senhor responda à oração); (5) certeza de ser ouvido; (6) voto.48
O que sempre intrigou os estudiosos é a rapidez de mudança do lamento
para a ação de graças num salmo sem uma transição. A sugestão de J. Begrich
é a mais plausível e obteve aceitação quase unânime. Ele entendeu que num
ambiente de culto, depois do lamento e antes da ação de graças, um sacerdote
pronunciava um “oráculo de salvação” (Heilsorakel) ou uma “fórmula de
absolvição”, assegurando ao adorador que sua oração foi amorosamente ouvida
e respondida.49 O salmo 22.21b pode ser citado como exemplo padrão desse
ritual porque, de outra forma, o “sim, tu me respondes” fica incompreensível no
momento de transição entre o lamento e a ação de graças que segue. Apostando
nessa sugestão de Begrich, vários estudiosos do Antigo Testamento sustentam
que os profetas muitas vezes modelaram sua mensagem escatológica de salvação
neste momento litúrgico do culto.
|| 47 KRAUS, Hans-Joachim. Worship in Israel. G. Buswell, trad. Richmond: John Knox Press, 1966,
p.205-207.
|| 48 BELLINGER, W. H. Psalmody and Prophecy. Shefield: Journal for the Study of the Old Testament,
1984, p.22-27.
|| 49 BEGRICH, J. “Das priesterliche Heilsorakel” Zeitschrift für alttestamentliche Wissenschaft 52
(1934): 81-92. Reimpresso em Gesammelte Studien. Munich: Kaiser Verlag, 1964, p.217-231.
Os Escritos – Salmos 125
3. Ação de graças
No Saltério, o número de salmos de lamento, tanto individuais como
comunitários, vai muito além dos salmos de ação de graças. A conclusão pode
ser que somos mais rápidos em pedir do que agradecer. Isso não quer dizer que
neste aspecto os salmistas estão nos ensinando como fazer, ou seja, mais pedir do
que agradecer; ao contrário, estão mostrando o quanto Deus é condescendente
com nossas necessidades de homens pecadores.
Os salmos de lamento e ação de graças começam com um vocativo ou
invocação; “Ó Senhor”, por exemplo. Às vezes iniciam com imperativo suplicando
auxílio divino: “Ajuda-me!, salva-me!, tem misericórdia!, Levanta-te!”. Outras
vezes o vocativo é acompanhado de títulos honoríficos “lembrando” o Senhor
de Suas promessas ou atos de libertação no passado e indagando sobre o porquê
da demora no atendimento no presente. Essa atitude, para o leitor de hoje, pode
parecer bastante ousada, senão irreverente, mas o fato é que testemunhamos
aqui não apenas uma profunda intimidade com o Pai como também enorme
confiança que “gruda” Deus às Suas promessas e não O deixa ir sem antes
abençoar (cf. Gn 32).
Atividades
1. Como você explica as semelhanças entre a literatura poética e de
sabedoria do povo de Deus no Antigo Testamento e a dos outros povos
do Antigo Oriente Próximo?
Respostas:
2) 2 – 4 – 3 – 1 – 5
3) c
4) a
Bibliografia
AHARONI, Yohanan et alii. Atlas Bíblico. Rio de Janeiro: CPAD, 1999.
ALBRIGHT, William F. The biblical period. Pittsburgh, Pennsylvania, Harper
and Brothers, 1950.
BARKAY, Gabriel. “The Riches of Ketef Hinnom.” Biblical Archaeology
Review 35 (Jul/Aug Sep/Oct 2009): 22-28, 30-33, 35, 122-126.
BEGRICH, J. “Das priesterliche Heilsorakel.” Zeitschrift für alttestamentliche
Wissenschaft 52 (1934): 81-92. Reimpresso em Gesammelte Studien. Munich:
Kaiser Verlag, 1964, p.217-231.
BELLINGER, W. H. Psalmody and Prophecy. Shefield: Journal for the Study
of the Old Testament, 1984.
BRIGHT, John. História de Israel. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 1980.
BRUEGGEMANN, Walter. The message of the Psalms: a theological
commentary. Minneapolis: Augsburg, 1984.
CHILDS, B. S. “Psalms Titles and Midrashic Exegesis.” Journal of Semitic
Studies 16 (1971): 137-50.
CULTO LUTERANO: Liturgias. Comissão de Culto da Igreja Evangélica
Luterana do Brasil, Org. e Rev. Porto Alegre: Editora Concórdia, 2010.
DELITZSCH, Franz. Biblical Commentary on the Prophecies of Isaiah, vol. 1.
Grand Rapids: WM. B. Eerdmans Publishing Company, 1969.
130 Bibliografia
REINO DIVIDIDO
ISRAEL (REINO DO
JUDÁ (REINO DO SUL)
NORTE)
Roboão c. 922 (ou 931)-915 Jeroboão I c. 931-901
Abias c. 915-913 Nadabe c. 901-900
Asa c. 913-873 Baasa c. 900-877
Elá c. 877-876
Zimri (sete dias) c. 876
Onri c. 876-869
Josafá c. 873-849 Acabe (Elias) c. 869-850
Acazias c. 850-849
Jorão (Obadias?) c. 849-842 Jorão c. 849-842
134 Apêndice
REINO DIVIDIDO
ISRAEL (REINO DO
JUDÁ (REINO DO SUL)
NORTE)
Acazias c. 842
Atalia c. 842-837 Jeú c. 842-815
Joás (Joel?) c. 837-800 Jeoacaz c. 815-801
Amazias c. 800-783 Jeoás c. 801-786
Jeroboão II
Uzias c. 783-742 c. 786-746
(Os+Am+Jn)
Jotão (regente) c. 750-742 Zacarias (seis meses) c. 746-745
Salum (um mês) c. 745
Jotão (rei) c. 742-735 Menaém c. 745-738
Pecaías c. 738-737
Acaz c. 735-715 Peca c. 737-732
Oseias c. 732-724
Queda de Samaria 722
REINO DE JUDÁ
Ezequias (Isaías e
c. 715-687
Miqueias)
Manasses c. 687-642 (Naum)
Amom c. 642-640
c. 640-609 (Sofonias
Josias
+ Jeremias)
Jeoacaz (3 meses) 609
609-598
Jeoaquim
(Habacuque)
Joaquim (3 meses) 598
Apêndice 135
REINO DIVIDIDO
ISRAEL (REINO DO
JUDÁ (REINO DO SUL)
NORTE)
598-587/6
Zedequias (Obadias?+ Ezequiel
+ Daniel)
Queda de Jerusalém 587 Cativeiro
(Judá) Babilônico
RETORNO À
PALESTINA
Dedicação do Segundo
515 (Ageu, Zacarias)
Templo
A missão de Esdras 458
A primeira missão de 445 (Malaquias;
Neemias Joel? Obadias?)
Alexandre, o Grande
333
(Helenismo)
Sequência de reis
persas:
Ciro
Dario (cf. Maratona,
490)
Artaxerxes