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REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA

03 Notas 34 Fortuna Crítica 5


Quinto ensaio da série
discute o desconstrutivismo

04 Entrevista
Vik Muniz fala de Stéphane Mallarmé em montagem a partir 38 Turismo Literário
A região da Provença, berço
de ilustração de Cárcamo
seus ilusionismos da do trovadorismo francês
representação

14 Crítica
43 Capa/Dossiê
Lalo de Almeida/Folha Imagem

Nos 50 anos de Israel, Cem anos sem Stéphane


J. Guinsburg analisa Mallarmé, homenageado
a literatura hebraica por Manuel Bandeira
contemporânea em texto de 1942

21 Criação
Conto de Lizete
64 Do Leitor
Cartas, fax e e-mails dos
Mercadante Machado leitores da CULT

24 Ensaio

Reprodução
A segunda parte do texto
de João Alexandre Barbosa
O artista plástico Vik Muniz
sobre Conhecimento proibido,
do crítico Roger Shattuck

10 Biblioteca Imaginária
Lista das melhores obras em
30 Leituras CULT
Os destaques entre os
língua inglesa abre debate lançamentos de livros
sobre o cânone do século

13 Na ponta da língua
As inquietantes e 31 Memória em Revista
Excertos de O Brasil
polêmicas flexões continua..., livro de Álvaro
do infinitivo verbal Moreira publicado em 1933 O poeta Manuel Bandeira
em foto da década de 40

novembro/98 - CULT 1
Uma série de coincidências norteia o Dossiê desta edição da
REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA CULT. Ou talvez seja mais apropriado falar em acaso para dar
NÚMERO 16 - NOVEMBRO DE 1998

Diretor
conta das efemérides aqui reunidas: há cem anos, em
Paulo Lemos
Gerente-geral
setembro de 1898, morria Stéphane Mallarmé; há trinta,
Silvana De Angelo
Editor e jornalista responsável
em outubro de 1968, perdíamos Manuel Bandeira. Os
Manuel da Costa Pinto – MTB 27445
Editor de arte
dois poetas, é claro, nunca se conheceram, mas a
Maurício Domingues
prosa envolvente de Bandeira dedicou a Mallarmé
Editor-assitente
Bruno Zeni
uma homenagem em forma de conferência,
Diagramação e arte
Rogério Richard
José Henrique Fontelles
proferida em 1942, ano do centenário de
Adriano Montanholi
Yuri Fernandes nascimento do poeta francês. É esse texto que
Eduardo Martim do Nascimento
Produção editorial a CULT publica no Dossiê, unindo as pontas
Danielle Biancardini
Revisão dos dois centenários mallarmaicos. A
Nilma Guimarães
Claudia Padovani trajetória de Mallarmé é uma das mais
Colunistas
Cláudio Giordano singulares da história da literatura. Começa
João Alexandre Barbosa
Pasquale Cipro Neto pelos primeiros sonetos parnasianos, passa
Colaboradores
Heitor Ferraz pela fase simbolista e culmina na
Iury Bueno
Ivan Teixeira
J. Guinsburg
dilaceração da “visão horrível da obra
Júlio Castañon Guimarães
Len Berg pura”. A busca do Absoluto, da “obra
Lizete Mercadante Machado
Mônica Cristina Corrêa pura” como uma espécie de religiosidade
Rosie Mehoudar
Capa
Ilustração de Cárcamo
secular, levou Mallarmé ao que já foi AO LEITOR
Produção gráfica considerado um fracasso de realização B r u n o Z e n i
José Vicente De Angelo
Fotolitos poética, Un coup de dés, e aos inúmeros
Unigraph
Circulação e assinaturas textos inacabados (dentre os quais está
Rosangela Santorsola Arias
Camilla Aparecida Lemme Épouser la notion, que a CULT publica
Adilson Roberto Strutsel
Dept. comercial/São Paulo nesta edição, com tradução inédita de Júlio
Idelcio D. Patricio (diretor)
Valéria Silva
Elieuza P. Campos
Castañon Guimarães). O “fracasso” do
Dept. comercial/Rio de Janeiro
Milla de Souza (Triunvirato Comunicação,
Lance de dados, porém, revelou-se profético
rua México, 31-D, Gr. 1403, tel. 021/533-3121)
Distribuição em bancas
com relação aos rumos da criação não só
FERNANDO CHINAGLIA Distrib. S/A
Rua Teodoro da Silva, 907 - Rio de Janeiro - RJ literária, mas artística como um todo, no
CEP 20563-900- Tel/fax (021) 575 7766/6363
e-mail: Contfc@chinaglia.com.br século XX. Mallarmé encarnou (e antecipou)
Distribuidor exclusivo para todo o Brasil.
Assinaturas e números atrasados dilemas e novas possibilidades hoje tão pró-
Tel. 0800 177899
Departamento financeiro ximos: crise do discurso e do alcance da lingua-
Regiane Mandarino
ISSN 1414-7076 gem, conjugação entre palavra e imagem, deslo-
CULT – Revista Brasileira de Literatura camento do contexto, interferência dos meios e con-
é uma publicação mensal da Lemos Editorial e
Gráficos Ltda. – Rua Rui Barbosa, 70,
Bela Vista – São Paulo, SP, CEP 01326-010
seqüente incorporação do acaso e do processo no
tel./fax: (011) 251-4300
e-mail: lemospl@netpoint.com.br fazer artístico, dissolução dos limites de gênero – o que
se afigurava como uma crise, ou como fim das possibili-
dades criativas, ainda nos surpreende pela infinidade de ca-
minhos que engendra. Reler Mallarmé ensina que o novo – o que
perpetua e reinventa a história – é um imperativo da criação artística.

2 CULT - novembro/98
Kiko Ferrite/Revista Azougue Filosofia, literatura e psicanálise Mito e poesia 1
O Centro de Estudos da Cultura, vincu- O IEA (Instituto de Estudos Avançados
lado ao programa de pós-graduação em da USP) promove nos dias 4 e 5 de
comunicação e semiótica da PUC-SP, novembro, das 9h às 13h, no Centro de
promove este mês um ciclo de palestras Estudos Japoneses, o encontro “Mitopoé-
sobre o tema Filosofia, literatura e psica- ticas: Da Rússia às Américas”, com
nálise. As relações de interdisciplinari- conferências e debates sobre a importância
dade entre esses campos serão discutidas dos mitos e das narrativas arquetípicas para
nos dias 7 e 21 de novembro na PUC-SP o pensamento e para a literatura contem-
por Bento Prado Júnior, Berta Waldman, porâneos. A primeira parte do programa
Leda Tenório da Motta, Arthur Nes- (dia 4) vai homenagear o lingüista russo
A psicóloga e poeta
trovski, Cleusa Rios Passos e Maria Rita Eleazar Meletínski, que completa 80 anos
Maria Rita Kehl
Kehl, entre outros. Os debates serão en- em 1998. Sua obra será analisada por
cerrados com a leitura de dois textos iné- Serguei Nekhliudov (“Novas tendências
ditos de Modesto Carone. Informações das ciências humanas na Rússia”), Jerusa
sobre a programação com Márcio Pires Ferreira (“Meletínski e as poéticas
Seligmann-Silva, pelo tel. 011/813-4531. da oralidade”), Aurora F. Bernardini
(“Meletínski, Campbell e a universalidade
Bienal de Poesia dos mitos”), Paulo Bezerra (“Meletínski
A Secretaria de Cultura de Belo Hori- uma poética histórica da narrativa), Arlete
zonte promove de 3 a 13 de novembro a I Cavaliere e Homero de Andrade (“Os
Bienal Internacional de Poesia, que vai arquétipos literários”) e Boris Scnai-
N O T A S

discutir as correntes poéticas deste século. derman (“O contexto cultural de


Com debates, leituras e espetáculos Meletínski”), entre outros.
multimídia em diversos pontos da cidade,
Mito e poesia 2
participam os poetas brasileiros Décio
Pignatari, Augusto de Campos, Sebastião A segunda parte do encontro (dia 5) será
Uchoa Leite e Antonio Risério, os dedicada às mitopoéticas das Américas,
franceses Claude Royet-Jounod e com participação de Gordon Brotherson,
Emmanuel Hocquard, e o ensaísta Carlos Serrano, Lúcia Santaella, Betty
italiano Alfonso Berardinelli. Informa- Mindlin e Sérgio Medeiros, entre outros.
ções sobre programação e locais dos Após o encerramento das atividades
eventos pelos tels. 031/277-4261, 277- acadêmicas, acontece às 14h o lançamento
4870 e 277-4873. do livro Arquétipos literários, de Meletínski
(Ateliê Editorial), e às 15h o espetáculo
Confraria dos Bibliófilos
teatral Ka, baseado em obra homônima de
A Confraria dos Bibliófilos do Brasil Khlébnikov, com direção de Renato
(CBB) está lançando edições artesanais de Cohen. Informações sobre o encontro
clássicos da literatura brasileira em “Mitopoéticas” podem ser obtidas no IEA
Paulo Couto
tiragens limitadas. Dois livros já foram (tels. 011/818-4442 e 818-3919).
lançados: O quinze, de Rachel de Queiroz,
Lançamento
e o conto A hora e a vez de Augusto Matraga,
de Guimarães Rosa, com gravuras de Poty A escritora paulista Vera Albers, autora
Lazzarotto. O próximo lançamento é o do romance Deformação (editora Pers-
poema Juca mulato, de Menotti Del pectiva), está lançando o livro de contos
Picchia, com gravuras de Paulo Couto. A Surtos urbanos, pela editora 34. Faz parte
CBB prepara também obras de Herman de Surtos urbanos, segundo livro da autora,
Lima e Câmara Cascudo. Para se filiar à o conto “Parque Dom Pedro” (seção
Confraria é necessário adquirir as obras Criação, CULT nº 12). O lançamento
Ilustração para editadas, que custam R$ 130,00. Informa- acontece no próximo dia 19 de novem-
Juca mulato, na edição da ções com o presidente da CBB, José Salles bro, a partir das 18h30 na Livraria
Confraria dos Neto, Caixa Postal 8631, CEP 70312-970, Cultura, av. Paulista, 2073, São Paulo, SP,
Bibliófilos do Brasil
Brasília, DF, tel. 061/368-1792. tel. 011/285-4033.
ASSINATURAS
DISQUE CULT 0800.177899
CULT novembro/98 - 3
entrevista
Lalo de Almeida/Folha Imagem

V I K
M U N I Z

4 CULT - novembro/98
“Nunca fui muito chegado a definições.
Prefiro trabalhar no espaço que separa uma
definição de outra. É esse espaço que lhes
dá forma” – diz o artista plástico Vik Muniz,
cujos trabalhos estão expostos no núcleo
de Arte Contemporânea Brasileira da XXIV
Bienal de São Paulo, que vai até o dia 13 de
dezembro. A frase é ambígua, pois indica
como o artista aguça e conforma o olhar
crítico justamente ao trabalhar com suas
fraturas, suas lacunas – e corresponde às
ambivalências do trabalho de Vik, um artista
que, ao fotografar desenhos feitos sobre
fotografias, realiza uma prospecção en
abîme dos ilusionismos da representação.
Tal desconstrução do modelo pictórico e
fotográfico possui não apenas implicações
estéticas, mas também um forte significado
político – como pode ser visto nas obras
expostas na Bienal, no livro Seeing is believing,
recém-lançado nos EUA (leia texto na página
9 ), e na entrevista com Vik publicada a seguir.

LEN BERG

novembro/98 - CULT 5
Fotos/Galeria Camargo Vilaça
CULT No San Francisco Examiner, em 1990, D. Bonetti já
observava que quase todos os seus trabalhos questionam a arte
enquanto uma entidade separada da vida. Você pode comentar?
Vik Muniz Trabalho com a idéia de representação, essa
tautologia já está implícita. O que importa frisar é que a arte
representativa, mesmo sendo uma cópia separada da vida,
encontra sua força maior quando se altera, na percepção do
espectador, as próprias definições que separam a vida de suas
cópias. A função do elemento ilusório na arte passa a ser a de
uma reflexão sobre a visão. Diante de uma janela, vejo a
paisagem. Diante da pintura de uma janela, sinto que vejo uma
paisagem. É essa separação da imagem que nos põe em contato
com os mecanismos da construção da realidade.
CULT Seu trabalho não é apenas fotografia, não é escultura
mas depende dela, não é mais desenho. Em mais de uma mostra
estavam os pedestais vazios. É uma instalação?
V . M . Eu me vejo como um artista plástico super-
tradicionalista e um fotógrafo ainda mais. É a profana união
dessas duas coisas que dá ao meu trabalho um caráter
contemporâneo. Existe um hermetismo no meu trabalho que
faz com que eu sempre procure estar entre essas duas coisas.
Nunca fui muito chegado a definições. Prefiro trabalhar no
espaço que separa uma definição de outra. É esse espaço que
lhes dá forma.
CULT Sugar children é um novo caminho? Ou apenas uma
variante dos trabalhos anteriores? Elas podem ser vistas como
um comentário sobre a condição humana.
Sem título de 1998, obra do artista plástico Vik Muniz

6 CULT - novembro/98
V.M. Um comentário se torna político por força de sua
intepretação. Meu principal interesse nessa série foi dar uma
identidade material à sintaxe da fotografia, trocando cada
pontinho de retícula por um grão de açúcar. A relação entre a
câmera e o objeto fotografado continua fiel aos modelos
estabelecidos nas séries anteriores: existe uma relação
extremamente intuitiva e pessoal na escolha e no tratamento
dos temas. O que fez de Sugar children um trabalho político tem
mais a ver com os clichês sobre a maneira como crianças do
Terceiro Mundo são representadas do que com minhas próprias
intenções em relação às crianças.
CULT Como se dá esse processo perceptivo – a ilusão da
fotografia – que você chamou de “curto-circuito semântico”?
V.M. Um dos grandes desenvolvimentos em psicologia da
percepção e lingüística foi a criação do conceito de formas
ambíguas pela Gestalt, ou teoria da forma. O cubo de Necker
ou o vaso de Rubin, por exemplo, nos indicam que existem
formas em que vários significados podem coexistir, mas tam-
bém que somos capazes de computar um significado de cada
vez, chegando ao extremo de até poder escolher entre um e
outro através de uma mudança de atenção. A fotografia pare-
ce escapar dessa ambigüidade em função de sua fina sintaxe
e precisão. Ela se torna transparente e nessa transparência é
que esconde sua estrutura como artifício. Meu trabalho tenta
devolver ambigüidade à fotografia por meio de um duplo
negativo ilusionístico. O espectador pensa que vê uma foto,
quando na realidade ele vê uma foto de um desenho de uma
foto. Esses curto-circuitos oferecem a ele uma oportunidade
Balanço, obra realizada por Vik Muniz em 1995

novembro/98 - CULT 7
Na imagem da
esquerda, 6000 yards
(light house),
de 1995. À direita,
Eleven eggs, de 1997.

de atualizar sua atitude em relação à realidade, que por sua V.M. Muito dela existe em função dessa separação. Há até
vez se transforma continuamente. aquele samba irônico, gravado por João Gilberto, que fala da
CULT O espectador percebe o curto-circuito, ou depende de madame que não gosta de samba. Se isso acontece na música,
uma percepção mais “treinada”? imagine nas artes plásticas. Não é lindo que a música popular
brasileira, embora sendo “popular”, seja também respeitada
V.M. Sempre admirei artistas cuja obra tivesse appeal não pelos mais sofisticados críticos? Isso acontece porque ela tem
somente sobre determinado grupo de amantes da arte, mas tam- uma estrutura formal completamente voltada ao prazer dos
bém a pessoas que nunca tiveram uma educação artística. Esses sentidos. Mas é também capaz de transmitir uma profundidade
artistas dirigem seus trabalhos ao intelecto no sentido amplo, intelectual muito grande. Há um outro samba de João Gilberto,
não a uma faixa especializada da cultura, que, por força de rece- Oba-lá-lá, que se você decidir trocar a letra pela teoria da
ber sempre o mesmo tipo de sinais, está saturada de vícios e relatividade de Einstein, continuará bom e a teoria melhor ainda.
maneirismos. Meu trabalho quer estimular idéias em todo aque- Existem mensagens e também a condição formal, que dá a essas
le que tiver um olho. Essas idéias podem ser interpretadas do mensagens os seus significados. Apreciar o prazer formal da
ponto de vista filosófico ou de puro entretenimento. Elitismo teoria é privilégio de alguns, para gostar de samba é só ter
só serve para separar, cristalizar e reduzir. ouvidos. A música brasileira vive ensinando coisas.
CULT Mas a arte contemporânea continua divorciada do Len Berg
espectador comum. jornalista e crítico de arte

8 CULT - novembro/98
Jogos semânticos com humor e inteligência
As cinco enormes fotos de crianças Foi o crítico Andy Grundberg que publicou,
abandonadas, do artista plástico paulistano Vik na revista Artforum, uma das boas incursões pelo
Muniz, na XXIV Bienal de Arte de São Paulo, trabalho de Vik na imprensa americana. Ele
são o resultado de uma performance, com direito comenta sobre Sigmund (retrato de Freud em
a manipulação de lixo, varredura de rua, sobre grandes dimensões, desenhado com xarope de
fotos “originais”, sobre uma mesa de luz. Parte chocolate sobre uma superfície plástica, que Vik
desse rescaldo urbano, “coletado depois de um lambeu depois de fotografar): “Por certo,
baile de carnaval”, foi, então, lenta, Sigmund não é apenas uma fascinante tradução
perfeccionisticamente removido até devolver a de procedimentos e materiais – alfinete em lugar
imagem das crianças. Aí Vik fotografou o de caneta, xarope em lugar de tinta, plástico em
“desenho”. As fotos realçam os traços corporais, lugar de papel – mas também o retrato do pai da
em poses clássicas, um comentário erutido sobre psicanálise, cujo rosto inconfundível é não só
o vocabulário da pintura renascentista do século prontamente identificado mas traz à tona de
XVIII. imediato a história da psicanálise, uma
Elas integram o que Vik, radicado em Nova descoberta que marcou este século.” Diz mais,
York desde 1983, denominou Aftermath, ou citando Vik: “Os retratos com chocolate
Conseqüências, fotos que “tomam como ponto de começaram com o material e evoluíram para
partida um interesse sobre a estrutura de imagens uma busca de temas apropriados. Freud tinha
‘políticas’”. Brotaram de uma série anterior, Sugar tudo a ver porque a peça lidava obviamente com
children, ou Crianças de acúcar, instantâneos sacados desejo e representação. Todo mundo que
em férias na ilha de Saint Kitts, no Caribe, e conheço gosta de chocolate, mas é difícil explicar
fotografados depois de meticulosamente cobertos porque se gosta do sabor de alguma coisa. A
por açúcar granulado, até que se esboçassem psicanálise foi criada para lidar com problemas
rostos de negros caribenhos. dessa natureza, para dar ‘sentido’ a emoções,
Nem Conseqüências nem Crianças de açúcar instintos e sensações.”
sobreviveram após o ato fotográfico. Uma vez Diluição de fronteiras entre técnicas distintas,
clicados, os “desenhos” foram destruídos, como jogos semânticos em que humor e inteligência
em séries anteriores, que vêm sendo realizadas desafiam, à maneira de Marcel Duchamp, o
por Vik nesta década. Nem suas esculturas em espectador a participar do ato criador, aliados a
arame ou as imagens urdidas com fios de costura citações bem sacadas da história da arte – são
– nelas ele copiou pinturas de Corot, Goya – ou De cima para baixo:
elementos constitutivos da produção de Vik
desenhos sobre areia – como fez Joseph Beuys Sigmund (1997, da série Muniz, e podem ser apreciados também com o
“Pictures of chocolate”),
um dia – existem mais. Valentina, the fastest (1996, lançamento do livro Seeing is believing (“Ver é
Suas mostras de fotografias – em que pedestais série “Sugar children”)
e Baudelaire (1998)
crer”), na abertura de sua exposição no
vazios, reservados aos objetos fotografados mas International Center for Photography, em Nova
destruídos, assinalavam sua ausência – atentavam York, inaugurada em setembro. Seeing is believing
na realidade para o fato de que a ele interessa mais traz textos de Charles Stainback, curador da mostra
o registro fotográfico de suas peças, pois eles no ICP, que entrevista longamente o fotógrafo, e
“falam mais sobre a natureza da representação”. Mark Alice Durand.
“A destruição dos modelos após a fotografia Seeing is believing “Este livro traça uma linha que conecta a
justifica a essência do ato fotográfico em sua Charles Stainback confusa diversidade da minha produção, dando
relação com o tempo e enfatiza o caráter e outros ao espectador a possibilidade de compreender
performático do meu trabalho”, disse Vik em Arena Books (EUA) como uma determinada obra se relaciona ao resto
entrevista à CULT, acrescentando que “a 180 págs. – US$ 80 do trabalho como um todo”, disse Vik à CULT
escultura, o desenho e as peças representam e À venda na Galeria Camargo nesta entrevista, que começou em Nova York e
Vilaça (São Paulo),
sempre vão representar a armação estrutural onde tel. 011/813-5594,
terminou em São Paulo, em meio a fax e ligações
o meu trabalho fotográfico se desenvolve”. fax 210-7390. telefônicas. (LEN BERG)

novembro/98 - CULT 9
O cânone
do século
João Alexandre Barbosa
É possível que, a partir de agora, House, buscando, com ela, retomar as curioso volume de ensaios, intitulado The
comecem a aparecer os vários resumos vendagens espantosas da Modern rise and fall of the man of letters. A study of the
daquilo que o século XX foi capaz de Library; e não é, por isso, sem coerência idiosyncratic and the humane in modern
oferecer à tradição literária. Um exemplo que tenha sido o New York Times o literature (The Macmillan Company), cujo
disso é a lista dos cem melhores romances em primeiro jornal a publicá-la, fazendo, por primeiro capítulo é um rico texto sobre o
língua inglesa do século XX, preparada por outro lado, com que a livraria virtual nascimento da resenha crítica em jornais
um grupo de escritores reunidos sob a Amazon.com logo abrisse um site especia- e revistas (“The rise of the reviewer”),
égide da Modern Library, hoje parte da lizado nas cem obras listadas. assim como de dois volumes antológicos
poderosa Random House, especializada (Diga-se, entre parênteses, que, se não para a Oxford University Press (The Oxford
em publicar clássicos da literatura daquela chega aos cem por cento, está muito perto book of aphorisms e The Oxford book of essays),
língua desde 1917, e por onde se nota que disso o número das obras já traduzidas no além de ter sido o editor do próprio Times
o Ulisses, de James Joyce, figura em Brasil e uma, pelo menos, com um título Literary Supplement entre 1974 e 1981 –,
primeiro lugar e que os outros quatro estapafúrdio, quando se traduziu o este volume contém aquilo que de mais
primeiros são O grande Gatsby, de F. Scott romance de Graham Greene, The heart of importante foi publicado no suplemento
Fitzgerald, Retrato do artista quando jovem, londrino, sejam textos completos ou
do mesmo Joyce, Lolita, de Vladimir excertos de ensaios, sobre a literatura a que
Nabokov, e Admirável mundo novo, de se pode chamar de moderna na área anglo-
Aldous Huxley. americana ou mesmo mais largamente
Como todas as listas desse tipo, esta é européia e com repercussão nos países de
muito discutível e o leitor pode ficar se língua inglesa. E o maior interesse, para o
perguntando, por exemplo, por que o leitor de hoje, está não apenas nos próprios
grande livro de William Faulkner, The textos ou nos excertos publicados, como
sound and the fury, aparece em sexto lugar, Italo Svevo Ezra Pound nos autores que são objeto das resenhas e
ou mesmo o notável e dostoievskiano que, vistos de hoje, constituem, por assim
romance de Ralph Ellison, Invisible man, the matter, que é o quadragésimo da lista, dizer, a tradição moderna por excelência.
está apenas em décimo nono na lista. por O coração da matéria!) A própria estrutura do livro já indica
De qualquer modo, não são muitas as Mas se o leitor desejar uma orientação este sentido de escolha operada pelo tempo:
literaturas nacionais que podem oferecer crítica por entre aquilo que se fez, pelo menos são quatro partes, em que a primeira,
um conjunto de obras tão significativas em língua inglesa, na literatura do século intitulada Twelve writers reviewed, coleta
dentro da literatura do século XX, ainda XX, há um livro que reputo essencial. textos sobre W.B. Yeats, Ezra Pound, D.H.
que, para completar o número redondo Refiro-me a The modern movement: A TLS Lawrence, James Joyce, T.S. Eliot,
dos cem, tenha que incluir o inexpressivo companion (The University of Chicago Wyndham Lewis, Virginia Woolf, W.H.
e enxundioso James T. Farrell, de The Studs Press) – que reúne textos publicados no Auden, Marcel Proust, Thomas Mann,
Lonigan trilogy, ou o lacrimoso James Times Literary Supplement desde a sua criação, Rainer Maria Rilke e Franz Kafka; a
Jones, de From here to eternity. em 1902 (uma carta de W.B. Yeats), até 1989 segunda, International focus, trata de
Não é, certamente, uma lista crítica e (um poema de Seamus Heaney). Marianne Moore, Wallace Stevens, Robert
serve antes como orientação para um De fato, editado e introduzido por John Musil, Italo Svevo, Anna Akhmatova,
leitor médio que é visado pela Random Gross – que é autor de um importante e Jorge Luis Borges e Konstantinos Kaváfis;

10 CULT - novembro/98
Lista dos cem melhores romances de língua

Xilogravura de João Leite


inglesa do século XX reacende a discussão
sobre as principais obras de nosso tempo,
tema do livroThe modern movement,
organizado por John Gross, que aponta
nomes como Proust, Joyce e Rilke
a terceira, T.S. Eliot and Virginia Woolf youth, de 1916, até The variorum edition of apenas indiciam a recepção inicial, em
review…, é um conjunto, respectivamente, the poems of W.B. Yeats, de 1958, num texto geral perplexa, do poeta. O que não
de cinco e três resenhas dos dois autores, e a de síntese da evolução do poeta, significa, todavia, que não se possa extrair,
última parte, A TLS treasury, traz resenhas sugestivamente intitulado Yeats in youth and com proveito, uma ou outra observação
ou poemas de W.B. Yeats, Ezra Pound, F.S. maturity, por Joseph Hone, passando por para a leitura dele. É o caso, por exemplo,
Flint, T.S. Eliot, W.H. Auden, Hugh resenhas sobre The tower, recentemente das sumárias observações feitas por Arthur
Walpole, Wyndham Lewis, Wallace traduzido de modo quase inacreditável por Clutton-Brock, ao escrever, em 1915,
Stevens, Gavin Ewart e Seamus Heaney. Augusto de Campos para o português, e sobre Cathay: Translations by Ezra Pound,
(A razão de Proust, Mann, Rilke e sobre The collected poems of W.B. Yeats, de quando, desde já, aponta para aquilo que
Kafka aparecerem na primeira parte e não 1928 e 1934, respectivamente. será parte da herança crítica sobre o poeta:
na segunda, onde seria mais normal que Não são textos de grande densidade o peso concedido seja à língua de que se
estivessem, se explica pelo fato de que crítica, mas resenhas curtas, fragmentos traduz, seja à língua para a qual se traduz.
aqueles quatro autores foram sempre os de resenhas mais abrangentes, cujo maior Deste modo, diz Clutton-Brock:
que, de línguas francesa e alemã, mais interesse, contudo, está precisamente em “Existe uma forte superstição entre nós
freqüentemente tiveram resenhas nas de que uma tradução deve sempre parecer
páginas do Suplemento, sobretudo a partir Inglês. Entretanto, quando é feita de uma
dos anos 20, concorrendo mesmo com os literatura muito diversa em método e
autores fundadores do modernismo anglo- pensamento, não será absolutamente uma
americano) tradução se parecer Inglês. Além disso,
Com exceção de Auden, cuja fortuna uma tradução literal de algo estranho e
crítica é representada, sobretudo, por bom pode surpreender nossa língua com
textos publicados nos anos 30, quando novas belezas. Se convidamos um estranho
começa a publicar os seus poemas, os Marcel Proust W.B. Yeats de gênio para nosso meio, não queremos
autores de língua inglesa reunidos na fazê-lo se comportar apenas como nós
primeira parte são, de fato, aqueles que apontar para os inícios de uma fortuna mesmos; teremos mais prazer com ele e
constituem o cerne do modernismo anglo- crítica que não parou de crescer. E quem aprenderemos mais dele se ele for ele
americano e a abertura com Yeats faz se interessa pelo poeta e pela poesia mesmo. Desse modo, pensamos que Mr.
justiça à sua enorme influência sobre certamente vai encontrar matéria para Pound escolheu o método correto para
aqueles que vieram depois, e não apenas reflexão nos textos coletados. essas traduções e não nos incomodamos
os poetas, Pound e Eliot, ou mesmo De maneira semelhante, os onze textos que elas, com freqüência, ‘não sejam
Auden, o que parece óbvio, mas Joyce, sobre Ezra Pound, desde aquele de 1912 Inglês’. As palavras são Inglês e dão-nos
Woolf, Lewis e Lawrence, como herdeiros que trata de Ripostes até o escrito por o sentido; e, além disso, a tarefa do escritor
de um projeto de pesquisa no universo da Christine Brooke-Rose, de 1960, sobre é moldar a língua a novos propósitos, não
língua inglesa de que o grande irlandês Pavannes and divagations. Thrones: 96-109 dizer algo novo tal como seus predeces-
foi, sem dúvida, um dos pioneiros. de los cantares, são, com exceção do texto sores disseram algo velho. Assim, é tarefa
Yeats é matéria de oito textos que de G.S. Fraser, intitulado The poet as do leitor não ficar aborrecido ou surpreso
abordam desde o remoto Responsabilities translator, de 1953, sobre The translations of com um uso estranho da língua se é um
and other poems. Reveries over childhood and Ezra Pound, resenhas fragmentárias que uso próprio ao sentido.”

novembro/98 - CULT 11
Mas é na resenha citada de G.S. Fraser figuras da literatura moderna”, acres- Que biblioteca do século XX
que se encontra, talvez, o melhor juízo centando: estará completa se não
acerca do trabalho de tradução de Pound: “O sentimento comum a muitos de incluir Um homem sem
“É como uma adição durável e uma seus leitores é o de que, de alguma forma,
qualidades, de Robert Musil,
influência sobre a poesia original na língua sua obra marca uma época.”
inglesa deste século que as traduções de Por outro lado, não obstante o que há A consciência de Zeno, de
Mr. Pound serão finalmente valorizadas. de fragmentário nos textos das resenhas Italo Svevo, ou ainda os
São poemas, não plágios.” incluídas, é notável a recepção imediata que poemas de Kaváfis e a obra
São exemplos que, da mesma maneira, foi dada, desde as primeiras traduções para de Borges?
também podem ser fisgados nos textos que o inglês de suas obras, a Thomas Mann,
concernem aos demais escritores de língua Rilke ou Kafka, sobressaindo textos como
inglesa que compõem a primeira parte do os de Erich Heller ou Michael
livro. Hamburger sobre o primeiro, ou os de Alec
A maior singularidade dessa primeira Randall, dos anos 20, 30 e 40, sobre Rilke
parte está, no entanto, nas resenhas que e, dos mesmos anos, do próprio Randall e
dizem respeito aos quatro escritores de R.D. Charques, Edwin Muir e Anthony
estrangeiros e chega a ser espantoso que Powell sobre Kafka.
Marcel Proust tenha um número de No que diz respeito, entretanto, à
resenhas somente menor àquele dedicado repercussão internacional de alguns
a T.S. Eliot e James Joyce (e neste último autores, ao mesmo tempo em que ratifica
caso, perdendo apenas por uma!). o seu lugar numa biblioteca do século XX,
Desde o primeiro texto coletado, de a leitura da segunda parte do livro,
Mary Duclaux, de 1913, e que trata do International focus, é a grande e inestimável Clóvis Ferreira/AE

aparecimento do primeiro volume de Em contribuição de todo o volume.


busca do tempo perdido, onde há uma curiosa Na verdade, escritos por Thom Gunn,
nota de comparação literária quando a Roy Fuller, Ernst Kaiser, Anthony Burgess,
autora lembra Henry James para pensar na John Bayley, John Sturrock e Henry
presença da infância na literatura, afirma- Gifford, ali estão textos integrais sobre
se a extraodinária importância da obra Marianne Moore, Wallace Stevens, Italo
proustiana e o próprio título da resenha Svevo, Robert Musil, Anna Akhmatova,
indicia o futuro discurso crítico a seu Jorge Luis Borges e Konstantinos Kaváfis.
respeito: “Art or life?”. Mais interessante, Que biblioteca do século XX estará
talvez, seja aquela escrita, em 1923, por John aproximadamente completa se não incluir João Alexandre Barbosa é um dos
Middleton Murry, “Proust and the modern Um homem sem qualidades, de Musil, ou A maiores críticos literários do país,
consciousness”, que é precedido por um consciência de Zeno, de Svevo? Para não falar autor de A metáfora crítica, As
“Tribute to Marcel Proust” assinado por nos poemas de Akhmatova ou de Kaváfis, ilusões da modernidade (pela
numerosos escritores ingleses quando da já traduzidos, com competência, ou Perspectiva), A imitação da forma,
morte do grande escritor (dentre os mais mesmo estudados, com competência, às Opus 60 (Livraria Duas Cidades) e
conhecidos, estão Clive Bell, Arnold vezes, ainda maior, no Brasil? Ou a obra A leitura do intervalo (Iluminuras).
Bennet, Joseph Conrad, E.M. Forster, de Borges, cuja tradução para o inglês já Professor titular de teoria literária
Roger Fry, Aldous Huxley, Lytton Strachey, nos anos 60 é objeto do texto incluído? e literatura comparada, foi diretor
Arthur Waley e Virgina Woolf). Se o leitor acrescentar a todos esses da Faculdade de Filosofia, Letras
Na verdade, o texto de Murry é autores um ou outro de sua preferência e Ciências Humanas da USP,
precioso na medida em que não apenas que não tenha comparecido (e se ele não presidente da Edusp e Pró-reitor de
medita sobre a própria construção da obra esquecer a literatura brasileira, será Cultura da mesma universidade.
de Proust, acentuando o modo pelo qual o obrigatória a presença de um Guimarães João Alexandre assina mensal-
narrador deixa passar ao leitor o sentido Rosa, de um Carlos Drummond de mente esta seção da CULT, cujo
das apreensões da consciência bem de Andrade ou de um João Cabral), já pode nome foi inspirado no título de seu
acordo com teorias até então recentes ir organizando a sua biblioteca para o mais recente livro, A biblioteca
acerca do espaço e do tempo, mas insiste século XX, que será, sem dúvida, o imaginária (Ateliê Editorial). Ainda
em seu modo de recepção pelo público fundamento para o XXI, conforme este ano, o crítico lançará a
leitor inglês que, segundo Murry, logo aconselham ou sugerem os sentimentos de coletânea de ensaios Entre livros,
percebeu em Proust “uma das grandes fim de século. também pela Ateliê.

12 CULT - novembro/98
INFINITIVAMENTE PESSOAL
Pasquale Cipro Neto

Uma das questões mais polêmicas quando muito distante do auxiliar. A nenhuma razão estilística que torne
da língua portuguesa, sem dúvida, é o flexão, nesses casos, às vezes se torna ultranecessário enfatizar que eram os
emprego do verbo no infinitivo. Dizem necessária, por clareza. Certamente não jogadores – e não sabe Deus quem –
que o português é a única língua – ou era essa a situação do locutor do que queriam ouvir as instruções do
uma das poucas – a flexionar o infinitivo, supermercado: auxiliar (“queiram”) e treinador. A flexão (“ouvirem”) seria
ou seja, a apresentar o infinitivo pessoal infinitivo (“comparecerem”) estavam mais do que inútil.
(para eu fazer, para nós fazermos, para muito próximos. Também não era o caso Caetano Veloso, no antológico poema
eles fazerem). do futebolista. “O quereres”, manifestou bela visão do
Também se diz “verbo no infinito”, Agora vamos ao que conta. Numa problema. No texto, Caetano mostra as
como fez Vinicius de Moraes num belo frase como “O presidente fez o possível contradições do comportamento humano
poema que termina justamente com algo para os deputados aceitarem a proposta”, (“Onde queres revólver, sou coqueiro (...)
parecido com “...e conjugar o verbo no a flexão do infinitivo é obrigatória, já que e, onde queres coqueiro, eu sou obus.”
infinito”. seu sujeito (“deputados”) é diferente do No final do poema, diz: “O quereres e o
Não pretendo aqui fechar a questão sujeito do verbo da oração anterior estares sempre a fim do que em mim é de
ou ditar normas cabais a respeito. (“presidente” – sujeito de “fez”). mim tão desigual faz-me querer-te bem,
Gramáticos e gramáticos já trataram do No entanto, quando se diz “Os querer-te mal. Bem a ti: mal ao quereres
assunto, que continua mais aberto do deputados fizeram o possível para assim. Infinitivamente pessoal, e eu
que nunca. Pretendo apenas clarear o comparecer”, a flexão do infinitivo não querendo querer-te sem ter fim...”.
que pode ser clareado. é necessária, já que seu sujeito Caetano se vale justamente do infi-
Lembro-me de um ex-jogador de (“os deputados”) é o mesmo do verbo nitivo pessoal substantivado (“o que-
futebol, hoje treinador, que não perdoava anterior (“fizeram”). reres”, “o estares”, ou seja, o teu querer e
um infinitivo: “Precisamos lutarmos Será errado flexionar o infinitivo o teu estar, o teu modo de querer e o de
para podermos vencermos os jogos que nesses casos? O professor Celso Cunha estar) para, numa demonstração de pleno
vamos disputarmos para conseguirmos tinha uma ótima explicação para isso. domínio do instrumento lingüístico,
nos classificarmos”. Melhor não lhe Dizia o mestre que, quando não se manifestar o pensamento de quem fala
revelar o nome. flexiona o infinitivo, se enfatiza a ação – no poema. E ainda faz brincadeira com a
Lembro-me também de um grande a de comparecer, no caso. Quando se língua ao dizer “infinitivamente pessoal”,
supermercado de São Paulo, em que de flexiona, enfatiza-se o agente – “os misturando elementos gramaticais com
cinco em cinco minutos se ouvia algo deputados”, no caso. os da personalidade humana.
como “Queiram, por gentileza, compa- Na verdade, é preciso que haja um Como se vê, às vezes, a decisão sobre
recerem ao local...”. motivo muito particular para que seja o infinitivo é mesmo pessoal. Às vezes,
É óbvio que, em locuções verbais, o necessário enfatizar o agente. Em textos é meramente gramatical.
infinitivo não deve ser flexionado – literários, várias situações podem justi- Até a próxima. Um forte abraço.
afinal, já se flexiona o verbo principal. ficar essa necessidade.
Não é preciso muito esforço para enten- Já em textos jornalísticos, é pouco Pasquale Cipro Neto
der o porquê disso. Mesmo assim, em provável que isso ocorra. Quando se diz professor do Sistema Anglo de Ensino, idealizador e

textos literários é comum a flexão do “Os jogadores correram para ouvir as apresentador do programa Nossa língua portuguesa, da TV
Cultura, autor da coluna Ao pé da letra, do Diário do Grande
infinitivo que participa de locuções instruções do técnico”, não parece haver ABC e de O Globo, consultor e colunista da Folha de S. Paulo.

novembro/98 - CULT 13
J. Guinsburg

A LITER ATUR A HEBR AICA


NO ESTADO DE ISR AEL
No ano em que o Estado de Israel completa 50 anos, o ensaísta J. Guinsburg
escreve sobre uma literatura que jamais conseguiu desfazer-se do sentimento
de exílio, da nostalgia do passado e da idéia de redenção, mas que em sua
existência israelense realizou a aspiração milenar de retorno às raízes
históricas, respondendo aos desafios do presente com uma arte que
representa o caráter vertiginoso e multifacetado da modernidade
A pós uma peregrinação de dois que, acompanhando o povo judeu pelos onde derivava uma parte fundamental de
milênios, a literatura hebraica retornou à quatro cantos do mundo, jamais con- suas forças vitais e onde contava beber
sua terra de origem, resolvendo o an- seguiu desfazer-se, em essência, do um dia o elixir da juventude.
gustioso dilema que levara Iehudá Halevi sentimento de exílio e da nostalgia de um Israel moderno é, sem dúvida, a rea-
a exclamar: “Meu coração está no passado que era a própria condição de lização dessa busca e desse sonho. Mas, a
Oriente enquanto eu resido no extremo subsistência e o único penhor de futura sua literatura, que hoje cresce com todo o
Ocidente!”. Essa frase, que faz eco ao redenção. Desde a destruição do Segundo vigor de uma existência normalizada, de
salmista de “Junto aos rios da Ba- Templo, em quase todas as fases de sua modo nenhum se tornou um mero reflexo
bilônia...”, consubstancia não só os atribulada trajetória, manteve-se apegada daquelas raízes. Como a planta que brota
anseios pessoais da mais alta expressão a esse passado-futuro, lançado entre a da decomposição de suas sementes, a
da musa hebraica na Espanha moura, lembrança histórica e a esperança esca- criação literária hebraica em Sion es-
como todo o problema de uma literatura tológica. Era o chão de acesso à fonte de palmou-se em direção própria, sob o

14 CULT - novembro/98
Ilustrações de
Iury Bueno

influxo da realidade do solo em que se suas andanças históricas, um forte veio tidos como representativos e designados
baseia, que é a de uma nação e uma sociedade narrativo e estilos epicizados de lingua- como tendência, corrente, geração,
com características sem par em seu passado, gem que, tratados nos cadinhos da escola, onda, entre outras substantivações
e a de uma luz, que é a de nosso tempo, moderna estética literária e, princi- caracterizadoras.
violenta e inovadora, como este o é. palmente, na fala de seus interlocutores No caso de Israel, poder-se-ia falar
Pode-se falar, sem exagero, numa rica israelenses, homens de todos os dias e de de três tendências básicas da exegese, que
produção israelense no campo das letras. todos os países em seu país, resultou numa aliás não definem nenhuma novidade
Se se tomar por base, por exemplo, nesse produção narrativa no conto e no ro- especial. Uma, de caráter histórico e
pequeno país, os números da população mance que diz da vida e do espírito de sociologizante; outra, que trabalha na
e os das obras impressas, que em todos os Israel atual. intersecção de estrutura e sociedade; e,
domínios se lhe apresentam, ter-se-á, sem Mais do que em outras formas de uma terceira, que colhe os seus critérios
dúvida, um índice dos mais elevados, não expressão artística, na moderna literatura nos procedimentos, nos estilos e nas
só em termos da região, como, prova- israelense articulam-se as representações estratégias poéticas da linguagem cria-
velmente, também pelos parâmetros do mais significativas dessa nova experiência tiva. Eu diria que dois dos principais
chamado primeiro mundo. É claro que judaica, em que ecos muito antigos expoentes da crítica israelense mais
se incluem aí, igualmente, aqueles ressoam no discurso da contempora- recente, Gershon Shaked e Dan Miron,
espécimes que a indústria cultural e as neidade, o qual, por sua vez, os resse- pertencem às duas últimas correntes.
mídias oferecem às massas em forma de mantiza com os sentidos da vivência Mas não vou analisar aqui a natureza de
livros. Mas, nem por isso se pode deixar atual. suas colocações. Cito-os apenas para
de notar a abundância, inclusive qua- * aduzir que, apesar de suas notórias
litativa, de sua escritura na ficção roma- Para dar ao leitor uma idéia algo mais divergências de concepção, ambos, assim
nesca mais ambiciosa e, de um modo particularizada do que seja esta produção como analistas filiados à primeira pos-
particular, na invenção poética. literária do gênio hebreu na Terra da tura, coincidem, não para conceituá-las,
Há quem veja neste fenômeno, e na Promissão e quais os desdobramentos de mas para situá-las mediante um dado
especial popularidade que a poesia goza sua criação ficcional, na prosa e na poesia, pragmático de referência no tempo, em
entre os israelenses, um traço de suas sem contar a literatura dramática, é nomear as duas das três gerações de
afinidades com o mundo leste-europeu. preciso naturalmente recorrer a concei- autores nascidos em solo israelense como
Não há por que rejeitar in limine esse tuações e divisões de que se valem as sendo a da Terra e a do Estado. A anterior,
parentesco, mesmo porque, no Ocidente, abordagens críticas em suas tentativas de que se poderia chamar a dos Pais e que
de um modo geral, o gosto pela arte do enfeixá-las e distribuí-las na diacronia e incorpora algumas das figuras seminais
verso tem ficado cada vez mais restrito a na sincronia. Mas, aqui como lá, seme- das letras neo-hebraicas na Terra Prome-
grupos especializados. Mas cumpre não lhante empreendimento constitui sempre tida, como foram Iossef Haim Brenner,
esquecer o poderoso impulso que o leitor uma redução a conceitos e denominações Schmuel Iossef Agnon, Haim Hazaz,
israelense recebe da tradição literária cujos objetos, por este ou aquele lado, se Dvora Baron, Uri Tzvi Greenberg,
hebraica e da própria língua bíblica. Sem recusam a tal sujeição. Sob este ângulo, Avram Schlonski, Natan Alterman, Lea
pretender analisar o quanto ambas são há sempre uma arbitrariedade ou, se se Goldberg, Ionatan Ratosch, para não
responsáveis por este fenômeno, pode-se quiser, certa simplificação didática que mencionar Haim Nachman Bialik
imaginar que o hebraico está entre pode eventualmente corresponder a um (1873-1934) e Saul Tchernikhovski
aqueles idiomas que, por suas formas de ou outro e até a vários traços pertinentes (1875-1943), que seriam neste caso a dos
estruturação e pelas cargas semânticas a algum tipo de comunhão literária, Avós – é um conjunto que foge ao nosso
que neles se depositaram ao longo do estética e/ou cultural segundo feitios foco do momento. Tampouco foi possível
tempo, fazem apelo à literatura poética. determinantes, no plano da história, da encontrar na bibliografia específica uma
De outro lado, é certo que o estro sociedade, da psicologia, da cultura ou nomeação mais expressiva para a leva de
hebreu desenvolveu também, no curso de da mentalidade de grupos de escritores escritores que se apresenta a partir dos

novembro/98 - CULT 15
Fotos/Divulgação

Mosché Aron
Schamir Megued

anos 80 deste século. Fato que talvez tenha se poderia chamar, não de sua mensagem, Para o público brasileiro, os nomes e
a ver com o caráter inteiramente indivi- mas certamente de suas sugestões de leitura as obras que compõem tanto a primeira
dualizado ou irredutível a denominadores e do universo de valores que propõem – geração de escritores propriamente
comuns, marcantes e abarcantes de sua positivos, identificados com uma certa israelenses quanto a que a sucede nos anos
produção e de seus perfis literários, onde, idealidade da terra e do homem, na forma 60, continuam sendo, ainda hoje, se não
se a busca é de algum cabide deno- de uma vinculação simbiótica com as totalmente desconhecidos, ao menos
minativo para pendurar nele a nossa modalidades peculiares assumidas pelo pouco familiares. Isto, mesmo se se levar
desorientação, pode-se apelar para o hoje esforço de construção nacional, pela saga em conta que vários expoentes do ciclo
tão abusado “pós-moderno”... das renúncias pessoais na vida coletiva, dos aqui indicado como inaugural foram
Pretendeu-se que a geração da Terra grupos de companheiros, do Palmach, da objeto de traduções esparsas em revistas
trazia estampada, de maneira indelével, a Haganá, do auto-sacrifício e da luta pela de pouca circulação, de uma pequena
marca do realismo. E, de fato, Mosché independência. recolha Primavera em fogo (seleção de J.
Schamir, S. Izahar (nome literário de Vale assinalar que este é também o Guinsburg, 1952) e de duas coletâneas
Izahar Smilanski), Natan Schakham, Igal momento em que a prosa de ficção ganha mais abrangentes, uma publicada em
Mossinsohn, Aron Megued, Hanokh maior relevo junto ao público leitor 1967 sob o título de Nova e velha pátria
Bartov, quando despontam, a partir dos israelense e, até certo ponto, desloca do (org. de J. Guinsburg, Ed. Perspectiva) e
anos 40, parecem carregar, em sua primeiro plano a poesia, que anterior- outra em 1983, com o nome de A geração
linguagem, temas e modos narrativos, mente ocupava grande parte do cenário da Terra (org. de Rifka Berezin, Summus
este timbre, diferenciando-se de tudo o das letras e projetava-se como a sua Editorial).
que os precedera por uma objetividade e expressão mais inspirada. Isto não Quanto à “Nova Onda”, outra das
um despojamento que, embora não significa, porém, que tenha havido agora designações correntes da geração do
abandonem a luta pelos ideais da reim- uma solução de continuidade criativa e Estado, uma amostragem significativa de
plantação no solo pátrio e da criação de uma incompatibilidade estética no que sua produção, ocasionalmente veiculada
um novo tipo de homem judeu, o sabra, tange à produção poética. Ao contrário, em português na imprensa judaica local,
repudiam a retórica altissonante da tanto quanto antes, o fluxo do verso veio a ser apresentada pela primeira vez
“sionistada” e heroificam as suas persona- hebraico não esmoreceu. É então que em livro, por Rifka Berezin e seu grupo
gens e os motivos de suas ações a partir Haim Guri, Benjamin Galai, A. Hilel e da FFLCH da USP, com O novo conto
de um foco interior, de uma subjetividade Amir Guilboa, um pouco mais velho, israelense (Ed. Símbolo, 1978). Foi em seu
que não se pretende ideológica. começam a publicar seus poemas. A eles contexto que o nosso leitor teve acesso a
Entretanto, nesta mesma plêiade en- cabe acrescentar os nomes de Aba Kovner, narradores como A. B. Ioschua, Amós
contrar-se-á um outro segmento que, desde um dos comandantes do gueto de Vilno, Oz, Aharon Appelfeld, Amália Kahana
logo, se apresenta com viés impressionista e de Dan Pagis, entre outros. Carmon e outros mais, ficcionistas de
e lírico. É o caso de Itzhak Oren, Benjamin No conjunto, embora a arte de cada têmpera com uma abordagem e uma
Tamuz e Iehudá Aezrakhi que fazem soar um seja bastante singularizada, pode-se linguagem que lhes recorta um perfil
notas onde se podem captar ecos de dizer que predominam, nesse grupo, as próprio para além das letras hebraicas,
Schnitzler e até do surrealismo. Mas não só vozes do “nós”, em que pese o fato de na medida em que nos seus relatos a
neles, porque mesmo em Schamir, serem articuladas preferencialmente em problemática específica de seu universo
Schakham e, sobretudo, Izahar não deixa pauta lírica ou mesmo intimista. Como humano no espaço de sua identidade
de transparecer esta atração pela interio- os prosadores, sua dicção desce dos cimos nacional e cultural cruza-se, em escritura
ridade, que se expressa também com românticos e se desfaz da impostação e original, com a do homem moderno em
técnicas do fluxo de consciência, do discurso das simbolizações altiloqüentes, envol- sua projeção universal. E o fato é tão
livre indireto, independentemente do efeito vendo-se num “eu” que guarda nas dobras marcante que no correr dos anos, em
que tais procedimentos possam ter nos de seus versos as representações do particular nas duas últimas décadas, este
universos ficcionais constituídos e do que nacional e coletivo. cepo de criação sobretudo romanesca vem

16 CULT - novembro/98
Benjamin Natan
S. Izahar Tamuz Schakham

atraindo a atenção de editores no Brasil e pendência ou a dos Seis Dias, para o Contudo, a poesia de Iehuda Amichai
as obras de Ioram Kaniuk, A. B. Ioschua, Holocausto e, mesmo, bem para trás nos se apresenta desde o princípio em tom
I. Schabtai e notadamente a de Amós Oz longes da Diáspora e da trajetória menor, à paisana, qual elocução corriqueira
(a maior parte das quais em versão de judaica, mas permanece como uma do homem comum a comentar coisas pouco
Nancy Rozenchan) são divulgadas cada espécie de fonte viva da epicidade e do dramáticas, mas essa clave não subsiste tão
vez mais em vernáculo. Por limitada que substrato traumático de experiência logo o ato de recepção se completa, pois
possa ser tal comunicação, ela evidencia vivida. não só as imagens são descoladas de sua
que se trata de um conjunto de roman- Na poesia, com a nova leva de capa familiar e deixam entrever o seu corte
cistas dotado de poder de ressonância criadores, nos anos 60, o processo iniciado irônico, como as palavras aparentemente
intrínseco e não meramente de um efeito anteriormente faz-se mais sensível: um banais, que falam do despoetizado quo-
gerado pelo montante prestígio inter- real deslocamento de eixos, nos padrões tidiano na sua relação com a vida e a morte,
nacional do autor de Meu Michel. culturais e nos parâmetros literários, com o amor e a guerra, convertem-se sem
Do ponto de vista dos recursos de assume também a clara feição de uma gestos maiores em estranhos e pungentes
construção e da economia formal, não há mudança na esfera das atrações eletivas e desmascaramentos poéticos dos chavões
como distinguir por um caráter incon- das afinidades de gosto que se fixam, agora, institucionais, das opiniões consagradas e
fundível esta segunda “Onda”. Na ver- mais na dicção poética inglesa e americana das gloriolas militares.
dade, se o traço de sensibilização lírico- do que na russa, alemã e francesa, antes David Avidan, ao contrário, chega às
impressionista das personagens e dos privilegiadas. Entretanto, o que pesa aqui portas do transcendente, sem se propor a
cenários se acentua em seu âmbito, ele já não é tanto uma reorientação de linhas de abri-las, quando seu estro enérgico e
figurava, como vimos, na geração da Terra influência, quanto uma modificação de cheio de fé em si mesmo leva ao extremo,
ou, quando não, alguns de seus integrantes estado de ânimo, que refuga o verso ritual pelo absurdo e pela paródia existenciais,
evoluíram nitidamente em tal direção. Ao e épico das grandes questões nacionais e os problemas da vida e do espírito do
mesmo tempo, numa dinâmica que é de públicas e se exprime na preferência pelo homem moderno, ao mesmo passo que
ambas, mas que vai desembocar e se poema curto, de situações circunscritas e tenta libertar seu ego das limitações do
espraiar no terceiro grupo, dos anos 80, personalizadas. A ênfase, pois, transfere- tempo e do espaço. O toque surreal, que
acentua-se nos seus autores e nas suas se do social e coletivo para o existencial e por certo está aí presente, resulta inclusive
obras a estreita desvinculação ideológica pessoal, e encarece um temário profano e da conjugação de um certo prosaísmo
ou programática, seja em nível político, corriqueiro, onde o lirismo, a paródia e o coloquial carregado de elementos verbais
seja em nível estilístico. A opção pela indi- absurdo vasam em linguagem coloquial, da atualidade tecnólogica e comuni-
viduação passa pelo emprego das técnicas em rima livre ou verso branco, uma poesia cacional com um certo fundo clássico.
que, por fragmentação e colagem, des- em essência do viver humano. Assim, algumas das técnicas preferenciais
polarizam figuras, paisagens e situações, Não se pretende, é certo, contrapor aqui do poetar moderno, como a aliteração, a
fazendo-as girar satírica ou grotes- criticamente a geração do Estado à da Terra marcação pelo ritmo e, de outra parte, o
camente em torno dos espectros de sua ou do Palmach, pois não há como deixar de uso da métrica e das rimas acentuadas
unidade ou inteireza – de sua organi- concordar com Dan Miron, quando vê permitem-lhe desenvolver uma escritura
cidade perdida. O estranho, porém, é que, nessa divisão mero jargão jornalístico, epigramática e também analítica que
não obstante o estranhamento imagístico mesmo porque alguns dos partícipes do permeia as suas frases de ironia e reflexão
assim suscitado e seu efetivo descom- novo ciclo começaram a publicar já na e que lhe dão a fluência da língua falada
promisso mimético com eventuais mo- década de 50 e se muitos dos poetas do com a musicalidade de versos simbolistas
delos no mundo real, nem por isso se primeiro grupo jamais pertenceram à ou, segundo alguns, neo-simbolistas.
desfaz o laço narrativo com a memória Palmach, um dos nomes exponenciais do Todavia, se se pode falar de um projeto
histórica. É verdade que esta é recuada, segundo, foi membro dessa tropa de elite e poético desta ou nesta geração, é em
retrocedendo da proximidade temporal lutou em várias de suas mais duras batalhas Natan Zach que se há de encontrá-lo, seja
de eventos como a Guerra da Inde- na Guerra da Independência. expresso em teoria do poema, seja em

novembro/98 - CULT 17
Amália Ioram
Kahana Carmon Kaniuk

texto de poesia. Seu ataque polêmico aqui enumerados como citação para um indica a ausência de grupos seletos na
contra Alterman, 1959, é visto como o eventual futuro encontro com o leitor narrativa ou um congelamento interno.
marco histórico e o manifesto estético da brasileiro. Ao contrário, durante todo o curso dos
nova contra a velha poeticidade. Rejei- Mas a fim de não deixar no vazio, sem anos 80, discerniram-se interessantes
tando os valores da “bela arte” e da arte nenhuma demarcação, o âmbito, a pro- tendências dentro da prosa que não mais
bela, do verso bem-feito e do efeito blemática e as características que o debate eram fruto de um determinado interesse
cerimonial, da reticência sensibilista e da crítico, em Israel, vem atribuindo ao que público. [...] A narrativa jovem sofreu
ênfase exclamativa, reivindica uma poesia se constituiria, na ordenação ora adotada, na década de 80 a influência de uma
da imediatidade concreta e existencial. numa espécie de terceira onda de sua corrente pós-modernista que, talvez, se
Em sua agenda criativa, escrita com a literatura – um vagalhão com muita água possa encarar como uma quarta tendência
inflexão áspera e incisiva do hebraico da primeira e da segunda... – tentou-se que se incorpora aos três estilos clássicos
israelense, registra-se uma lírica fazer ecoar aqui algumas das vozes e das da prosa.”
perpassada de tensão, desalento e des- posturas neste confronto. Elas são de Para Ortzion Bartaná, “a literatura
crença que se tecem como sombras professores universitários, escritores e israelense da década de 80 vai sendo
projetadas, não tanto por um exame de críticos militantes que, numa enquete criada dentro de uma confusão que
consciência na meia-luz de um con- promovida pelo jornal israelense Iediot encobre um total desmoronamento dos
fessionário da subjetividade, quanto por Aharonot, se pronunciaram a respeito das sistemas. Obras superficiais e banais
uma lúcida operação crítica a incidir propensões e das perspectivas atuais da concitam a atenção pública, obras revo-
ironicamente sobre a razão de ser. Com produção literária da nação hebraica. lucionárias não a obtêm e seus autores se
esse enfoque, a obra de Natan Zach deu Nurit Govrin, por exemplo, declara: vêem impossibilitados de salientar sua
relevo a uma produção poética que, “Marca a década de 80 o surpreendente originalidade. [...] Na poesia, o caos é
iniciada pela meditação apolítica acerca volume quantitativo da literatura he- absoluto, tendo ela perdido o seu papel
do banal na condição humana, trans- braica em todos os gêneros. Trata-se de de guia espiritual que desempenhou na
formou sua perplexidade em politizada uma produção variada e pluralista, na primeira metade de nosso século, tanto
militância literária em prol da esquerda qual se registra uma troca de guarda na linguagem como nas idéias. Na prosa,
em Israel. geracional, na qual todas as guardas con- as tendências contraditórias de realismo
É evidente que, aos três poetas acima tinuam ativas e fecundas. Comprovam e fantasia levaram a uma perda da pauta
invocados, seria preciso somar vários esta abundância os 35 textos de prosa do que é conto e do que é romance e qual
outros, como Dahlia Ravikovitch ou dignos de nota, obras de 30 autores de deve ser a relação com a realidade”.
Pinkhas Sadeh, para que se pudesse ter todas as idades no começo da década e os Na opinião de Menakhem Peri, “a
um elenco minimamente representativo 65 volumes de prosa produzidos por 60 tentativa de recortar, dentro da conti-
do segundo grupo na ordem cronológica, autores ao final da mesma década [...]. nuidade da literatura, o que corresponde
a assim apelidada geração do Estado. Mas, O signo dominante deste decênio é a au- à década de 80 é um intento alucinado,
no presente contexto, não haveria como sência de uma linha uniforme, não há um algo como procurar interromper a
encompridar o nosso rol em chamadas modelo de escritura prevalente...”. corrente de um rio. [...] Mas o signo
individuais, do mesmo modo que, por Gabriel Moked, por seu turno, característico dos anos 80 é o desen-
igual razão, nos vemos impossibilitados assinala que “a comercialização e as volvimento de tendências e não uma
de fazê-lo no tocante aos escritores dos relações públicas substituíram, na década coleção de escritores, tendências que
anos 70 e, sobretudo, 80. Narradores de 80, o debate comedido sobre os talvez venham a moldar a narrativa dos
como Iaakov Schabtai, Itzhak Orpaz, problemas da literatura. A idéia de best anos 90. Pela primeira vez, detecta-se o
Iehudit Katzir, Savion Liebrecht, Orli seller popular e a repercussão nos meios estabelecimento de uma igualdade quan-
Castel-Bloom, e poetas como Meir de difusão, fora do âmbito literário, titativa entre ambos os sexos de autores.
Wiseltier, Iona Walach, Iair Hurvitz, tomaram o lugar da avaliação da qua- Verifica-se também o abandono dos
Maia Bejerano, Lea Aialon apenas serão lidade intrínseca da obra... Mas isso não grandes temas sempre em voga na prosa

18 CULT - novembro/98
Amós Natan Iaakov
Oz Zach Schabtai

israelense. Porém, a abordagem é cada vez a vitalização da dimensão política, cuja e multifacetado, edificando, com isso, uma
mais a do homem na sua qualidade de seqüela é o crescente temor apocalíptico, vertente destacada da criação literária
homem e menos a de atalaia da Casa de e o constante ocupar-se do próprio pro- contemporânea nas diferentes feições de
Israel”. cesso de escrever: literatura sobre lite- sua modernidade estética. A que atribuir
Gershon Shaked, escrevendo sobre a ratura.” esse resultado? Sem dúvida, em grande
década de 70, a resumiu como sendo a da Hilel Barzel entende que “a literatura parte ao valor que o novo contexto atribui
vivência “em gris”, enquanto a de 80 lhe hebraica da década de 80 deva ser lem- a tal atividade, de modo que, nesse sentido,
parece ser a do “surgimento e desen- brada como a da época na qual se regis- cabe considerá-la como um fruto não só
volvimento do grotesco”. Sem ajuizar a trou uma mudança significativa: a pas- legítimo mas profundamente repre-
qualidade dos escritores de ofício e sagem do estilo abstrato-simbolista e sentativo do Estado hebreu, da sociedade
novatos, ele encontra nas obras narrativas extremamente imaginário para uma que o constrói e da cultura do povo de
e poéticas, e mesmo na dramaturgia, uma variante que vai em busca da realidade Israel.
“chave comum, que reflete o domínio do revelada [...]. O idioma vertical que luta J. Guinsburg
grotesto em nossa vida”. Isto não significa por ater-se às fontes clássicas é subs- crítico literário, editor, professor de estética teatral da ECA-

que a linha dos anos 60 e 70, na “tradição tituído pelo idioma horizontal que emula USP e autor de Aventuras de uma língua errante – Ensaios de
literatura e teatro ídiche (Perspectiva), entre outros
expressionista-simbolista”, tenham dei- o modo de falar e expressar-se das
xado de marcar presença, mas “a linha diversas vozes, criança, velho, funcionário
grotesca é dominante”. Esse império é ou prostituta, psiquiatra ou soldado, pais
sintetizado pelo crítico, nos seguintes e filhos. Aí se perfila uma tendência para ISRAEL EM
termos: “Em suma, a era do grotesco. inverter as normas do materialismo TRADUÇÃO
Corrupção grotesca na vida, que origina o agônico que compreende também a
A produção poética israelense foi
grotesco artístico na literatura que, por sua substituição de seus elementos religiosos
transposta para o português espo-
vez, dá lugar a uma postura grotesca, por uma postura metafísica geral, que não radicamente. A uma primeira cole-
bastante ridícula, da crítica.” obriga à crença em Deus, ainda que o tânea Poesia em Israel (1962),
Segundo Ruth Carton Blum, “a década materialismo abstrato, que predominou organizada e traduzida por Cecília
se caracterizou pela ousadia da expe- anteriormente, não tenha perdido vigor Meireles, somou-se Quatro mil anos
rimentação, pelo colorido de vozes, e tenha ganho inclusive variedade e de poesia (1969), de Zulmira Ribeiro
fenômeno devido ao acesso a influentes transcendência.” Tavares e J. Guinsburg e, mais
literaturas estrangeiras (Faulkner, García * recentemente, a edição de Poesia
Márquez, Bruno Schultz) que penetraram Como se vê, nos cinqüenta anos de sua moderna de Israel em Poesia sempre
na consciência dos escritores hebreus existência israelense, a literatura hebraica (1997), organizada por Dan Miron
através de excelentes traduções”, embora não só prosseguiu no seu intento de e vertida por vários tradutores, como
o legado de Agnon continue exercendo reimplantar-se no habitat de suas raízes Nancy Rozenchan, Rifka Berezin
forte impacto, ao ver desta crítica. Em sua históricas, como era a sua aspiração etc. Merece destaque ainda o
visão, distinguem-se na década “duas milenar, mas também se empenhou – em trabalho que Haroldo de Campos
tendências cardiais, conforme a relação do um novo salto, como o que a levou, nos vem realizando nesse terreno, com
transcendente metafísico com a dimensão fins do século XVIII, de uma escritura transcriações quer do legado poético
real-física. Em um extremo, a literatura predominantemente religiosa à laicidade bíblico, em livros como Bereshit: A
fantástica cuja essência está na dimensão crítico-beletrística da Hascalá (“Ilus- cena da origem (1990) e Qohelet/O-
trascendente [...] e, no outro, se desenvolve tração”), e depois, do Iluminismo aos que-sabe (1993), quer de poemas
uma literatura que alcança essa dimensão padrões artísticos da literatura européia esparsos de alguns dos mais repre-
pelo aferrar-se ao aqui-agora. [...] Dois do séculos XIX e XX – em responder aos sentativos criadores do novo espírito
movimentos aparentemente contraditórios desafios da atualidade com uma arte da invenção poética hebraica em
penetram nas diversas tendências, a saber, correspondente ao seu caráter vertiginoso Israel moderno.

novembro/98 - CULT 19
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
CONTO

MULHERES
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Lizete Mercadante Machado

novembro/98 - CULT 21
Acende a lâmpada sobre o espelho do É demais, pensa. – Quando você era pequeno tua mãe te
banheiro. A luz ilumina todos os poros do rosto – Olha, Ritinha. Vou andar, tá? chamava como? De Chico?
ainda sem maquiagem. Preciso cuidar da pele, Sai para o meio da rua e vai descendo, Merda! Mas a Ritinha, quando encarna.
pensa. Pelancuda e despencada estou fodida. exagera no rebolado. Um carro diminui a – Não enche, tá Ritinha?
Pega a pinça, vai arrancando um a um os pêlos marcha no semáforo; vai aproximar-se, percebe Ritinha nem ouve.
que apontam. Já nem dói mais. Como ele que é uma mulher. Droga. Melhor rodear o – Meu filho chama Roberto. Por causa do
mesmo, aliás. Não dói? Pára um segundo, o Hilton. Procurar os gringos. Passos. É a Ritinha Roberto Carlos, sabe. Quando fiquei grávida,
gesto cortado ao meio, a pinça no ar. Dói, tem de novo. sonhei que era do Roberto Carlos. Lá em Bom
de admitir. Às vezes a dor volta inteira, aquela – Jesus, mulher! Você não dá folga não? – Repouso o pessoal pensa que o pai dele morreu,
sensação de peso apertando-lhe a cabeça. Mas tem algo morno na voz, desmentindo a que sou viúva. Minha mãe pensa que eu trabalho
– Merda – resmunga. dura. em casa de família. – Ri. – Se descobrisse, acho
Acelera os movimentos. Espalha a base, Ritinha nem liga. Caminha junto. que me matava.
depois a sombra, o rímel, o batom. Tira a peruca – Você não tem família? – pergunta. Pronto. A Ritinha conseguiu. Conseguiu
da cabeça de pau, escova-a mais do que necessário. – Não, nasci da terra, dei em árvore – me estragar a noite. Mulher é foda! Aí franze a
Ajusta-a e afasta-se do espelho, olhando-se de responde mal-humorado. testa. O frio na barriga. E não consigo me livrar
todos os ângulos. Liga o rádio, acende um cigarro, Ritinha ri. Fica bonitinha quando ri, essa dessa putinha! Ela sempre gruda desse jeito.
tentando decidir que roupa usar. puta. Lembra a vez que o rapa levou a Ritinha.
– Jingolbel, jingolbelllll – acompanha com – Não é triste estar sozinho no Natal? Achou que ia ser até bom. Mas acabou indo
o falsete bem acentuado. A Ritinha não se manca! pagar a fiança. Burra. Burra que é.
Suspira. Vai até a janela, olha os prédios – Desgruda um pouco, tá? – diz irritado. – – Lá tem um bar aberto – aponta a Ritinha.
iluminados. Pode ver nas salas em frente grupos Teu ponto não é lá na Consolação? Foram.
conversando, a mesa posta da ceia, pinheiros. – Já desisti. Não tem movimento hoje. Vou – Dois conhaques – pede.
Fragmentos de música. Merda. Movimento tomar um conhaque e ir embora. – Continua Um bêbado roncando no canto do balcão.
hoje só com os gringos. Empresários a negócios, andando ao lado. Miudinha, mal lhe chega ao Mais ninguém. A Ritinha fica com o olhar
presos num quarto de hotel. Esses vêm. Pagam ombro. parado, bebendo aos poucos, fazendo pose.
bem. O saco vai ser ouvir a ladainha. Natal- – Ninguém até agora? – pergunta para Entra uma mulher. Cara de quem chorou ou
longe-de-casa-os-filhos-uma-data-como-essa-e- quebrar o silêncio que já vai pesando. dormiu demais. Ritinha comenta:
a-puta-que-pariu. Decide pôr a mini de cetim – Ninguém. – Essa daí tá na maior fossa, coitada. Deve
negro. A fenda na altura da coxa, ousada. – Daqui a pouco melhora – tenta consolar. ser sozinha.
Valoriza. Arruma-se. Pega a bolsinha de strass. – Lá pelas duas, três. Chegam bêbados. Querem – Um hollywood – pede a mulher, pondo
Antes de sair lança um último olhar ao espelho. esquecer e vêm. uma nota no balcão. Enquanto espera o troco
Bela. Belíssima. Como deve ser. – É... O ano passado ganhei a maior grana olha para as duas. Mas o olhar é de vidro.
• de um doutor. Vestiu-se de Papai Noel e tive de Transpassa.
Como previa, nenhum movimento. O aturar minha filhinha daqui minha filhinha dali, Parece cilada, pensa. Não vou conseguir
ponto está deserto, as outras nem vieram. eu no colo dele que nem bebê. Tive de dar escapar. A Ritinha já destampou de novo:
Encosta-se no poste, levantando bem o joelho. fingindo que era criança. Me deixou a roupa, – Passar o Natal longe da família é foda,
Acende outro cigarro. Quase meia-noite. Um depois mandei pra Minas, meu irmão vai usar né? Saí hoje mais pra andar, mesmo. Não ia
bêbado põe a cara na janela, lá em cima: agora pra fazer o Natal dos meninos. Queria só agüentar aquelas quatro paredes. A Solange
– Cadê Papai Noeeeelllll? ver a cara do meu filho... Comprei um robô pra queria que eu fosse com ela num baile da Moóca,
Passos. Vira-se, na expectativa. É só a ele, lá no Mappin. Anda, fala, acende umas mas detesto sair com a Solange. Ela é tão pé-
Ritinha. luzinhas. frio, sempre dá encrenca.
– Tá uma merda – ela vem dizendo. – Quantos anos tem seu filho? A mulher do hollywood recolhe o troco,
– É – responde. – Natal, meu bem. – Sete. Fez sete agora em dezembro. sai. Não é de michê, se vê.
– Tou aqui mas a cabeça tá em casa – – Não tem mais bar aberto nesta merda – – Outro conhaque – pede. Começa a sentir
continua a Ritinha. – Lá em Minas, sabe? Tenho resmunga. A Ritinha se cala. Continuam uma desesperada vontade de beber. Ou de dar
um filho lá, mora com a minha mãe. andando. uma porrada na Ritinha.
Lá vem fossa, pensa. Saco. – Diana – ela pergunta de repente. – Como – Vamos pra minha casa? – pergunta Ritinha
– Meu filho – Ritinha repete. E começa a é seu nome de verdade? de repente.
chorar. – Francisco. – O mau humor começa a voltar. – Pra sua casa pra quê? – assusta-se.

A revista CULT publica mensalmente a seção CRIAÇÃO – um espaço destinado a poemas, contos e textos literários
inéditos. Os originais – contendo no máximo 150 linhas de 70 caracteres – serão avaliados e selecionados
pela equipe da revista CULT. Os trabalhos e os dados biográficos do autor (incluindo endereço e telefone
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obrigatoriamente ser acompanhados pelo texto em disquete, gravado no formato Word). O endereço da revista
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22 CULT - novembro/98
– Vamos, vá! Não vai dar movimento – Você é tão boa – diz a Ritinha, erguendo – Você me machucou – reclama ela,
nenhum, mesmo. Pelo menos a gente não cansa os olhos. – Como uma irmã pra mim. – E esfregando o ombro.
de tanto rodar calçada. Vamos, Diana! Tem sorri. Levanta-se e fica em silêncio, dando as
conhaque, a gente bebe, conversa... Lá pelas – Você até que fica bonitinha quando ri – costas a Ritinha, mexendo na bolsa. Pega os
três a gente sai de novo. ouve-se falando. Força o falsete. – Anda, cosméticos, vai ao banheiro, os soluços ainda
Devia era dar uma porrada nessa cara de mulher! Você está hor-ro-roo-sa com esse rímel soando na sala. Ouve foguetes. Sirenes. Freada
sonsa, mas em vez disso topa. A Ritinha paga o escorrendo! brusca na rua. Porcaria de luz.
táxi. A Ritinha continua olhando, nem se mexe. – Por que não bota uma lâmpada
• – Tá olhando o quê, ô múmia? fosforescente nesta droga de banheiro? – grita.
Quando se vê na sala, a Ritinha tirando o – Teus olhos – diz a Ritinha, sem entrar no Nenhuma resposta. Interrompe a pintura,
sapato e abrindo a janela, não acredita. Caralho! jogo. – Teus olhos. Você olha igual o Roberto. tira a peruca, pega outro cigarro. Resolve urinar.
Que vim fazer aqui? Ritinha já vai colocando o – O Roberto Carlos? Credo! Isola! – A Ritinha na porta, olhando.
CD do Roberto. Levanta a mão traçando um longo vôo que vai – Você mija em pé?
– Ouvi o dia inteiro. Cada vez que ouço, terminar alisando o cetim negro. – Não, voando, não vê?
choro, porque lembro o Robertinho lá em Bom – Não. O Roberto, meu filho. Ritinha ri. Bonitinha, rindo.
Repouso... Merda. – Por que você não põe silicone no busto,
– Por que não foi passar o Natal lá? – – Ele tem esse jeito de encarar, meio triste, como os outros? – ela pergunta. – Ia ficar
interrompe, enchendo o copo. Conhaque como querendo e não podendo, sabe? melhor que eu. Você acha que eu tenho o peito
vagabundo, pensa, vai dar a maior ressaca. Putinha! Merda de putinha! De novo. A caído? – Abre a blusa, mostra os seios.
Ritinha de novo com aquele olhar longe, meio sensação na boca do estômago. Indecifrável. Pequenos, nota. Quase como um rapaz.
estrábico, que até que não fica feio. – Ah, Ritinha! Pára com essa conversa – Não – consola. – Você tem seios lindos.
– Não sei. Acho que é medo. Enfrentar a mole! Vamos trabalhar, anda! Ritinha encolhe os ombros.
mãe, as perguntas... Inventar, inventar, contar Ritinha nem se abala. Cruza as mãos sob a – Sou muito magra...
mundos e fundos da minha ‘patroa’ aqui de São cabeça, levanta mais o joelho. Igual falar com Retorna à maquilagem.
Paulo... Acho que não tava a fim de encheção. pedra. – Quer que ajude? – pergunta a Ritinha.
– Ela se estica na almofada. A saia sobe, – Você seria um homem bonito, se quisesse – Não, estou acostumada.
descobrindo uma coxa morena, lisinha. Calcinha – diz ela, depois de um silêncio abafado. Mas a Ritinha já está com o blush na mão.
vermelha. – Mas não quero! – berra. – Saco! Porra! – Senta aqui no bidê.
– Não te entendo, mulher. Fica aí toda Pára com isso, Ritinha! Obedece. Ritinha vai passando o pincel,
nhemnhemnhem porque o filho, o filho, a droga – Você tá mal da cabeça, não tá? – Ritinha compenetrada, aproximando-se, aproximando-
do filho, e não vai vê-lo? Há quanto tempo não implacável. – Está aí dando uma de durona, se. A blusa ainda aberta.
vai? mas está mal pra caralho, né? – Pára! – corta, segurando o pulso da outra.
– Dois anos – responde a Ritinha, baixando – Não estou! – Está berrando. Sabe que – Pára, me faz cócegas.
a cabeça. E começa a chorar de novo. está berrando, mas nem tenta parar. – Ritinha, Ritinha olha bem dentro dos seus olhos.
Levanta, indeciso. Agora já é efeito do chega! Pára com essa merda de uma vez! – Faz um muxoxo.
conhaque. Só pode. Mas o frio na barriga é Sente escorrer algo pela face. Rios pretos de – Tá bem. Larga meu pulso.
outra coisa. O menino. Desde os cinco anos rímel. – Odeio você, sua puta! Odeio essa Relaxa, percebendo a força que fazia. Silêncio.
que não vê a mãe. Conhece bem essa história. fungação de meu-filho-Bom-Repouso-minha- Ritinha começa a abotoar a blusa, pensativa.
E a mãe é essa Ritinha. Essa daí. É o conhaque. mãe-pensa. Porra, Ritinha. Você, eu, todo esse – Deixa – diz.
Claro que é. lixo. Natal? Saco! Qual a diferença, me diz? – O quê? – pergunta a Ritinha.
– Pára, saco! Qual? Essa e as outras noites, não é bater perna – Deixa assim – repete, estendendo a mão,
Ritinha soluça mais alto, o corpo começa a na calçada, arrancar grana desses porcos, todos puxando de novo aquele pulso frágil. – Vem cá
tremer. cheirozinhos, engravatadinhos, esses, esses... – – murmura, sem nenhum falsete na voz.
Bota o copo na mesinha, senta ao lado dela. Está agarrando Ritinha. Sacode a outra pelos A luz fraca do banheiro vai sumindo. O
– Tá bem, Ritinha, pára. – A voz sai mais ombros, músculos retesados. som dos foguetes, a sirene, Ritinha, a maqui-
mansa. Quis um gesto de tocar-lhe a cabeça, – Diana, me deixa, me deixa – Ritinha lagem borrando dois seios pequenos como os
mas impediu-se a tempo. – Não adianta choraminga. – O que você tem, o quê? de um rapaz. Amanhã mudo de ponto, pensa.
esquentar, piora. Vamos pra rua, é melhor. Vai Pára de repente. Larga a Ritinha, que desaba Amanhã vou pro Morumbi, decide, antes de
mulher, anda! Vai retocar essa cara, tá um lixo. na almofada. rasgar a última máscara.

Lizete Mercadante Machado


nasceu em São José dos Campos (SP), trabalha há 12 anos como editora e é
autora do livro de poemas Anjos clandestinos, publicado em 1982; o conto
“Mulheres”, publicado nestas páginas, recebeu menção honrosa no concurso
Mulheres entre Linhas, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, em 1986;
seu trabalho literário pode ser visto na Internet, no site “O caixote”
(www.abordo.com.br/ocaixote).

novembro/98 - CULT 23
Patricia Lambert/Divulgação

Ensaio Segunda Parte


Oslimitesdacuriosidade
João Alexandre Barbosa

Na segunda parte de seu ensaio Conhecimento proibido


Roger Shattuck
Tradução de S. Duarte
sobre o livro Conhecimento Companhia das Letras
376 págs. – R$ 31,00
proibido, João Alexandre
N a primeira parte deste ensaio
(publicada na CULT nº 15), João Alexandre
Barbosa analisa a forma como Barbosa mostrou que a noção de “conhe-
cimento proibido”, formulada por Roger
Shattuck, está presente nos mitos de Pro-
Roger Shattuck discute os meteu, Pandora, Adão e Eva – nos quais a
ambição humana de conquistar um saber
absoluto do mundo é punida pelos deuses. O
mitos literários e científicos que tema dos limites de nossa curiosidade
reaparece em Dante, em Montaigne, em
Pascal e na releitura da Bíblia por Milton,
tematizam a noção de limite do até o ponto em que a renúncia ao conhe-
cimento, aos sentimentos e à experiência se
saber humano, explorando suas transforme num valor positivo, como no caso
da escritora Mme. de La Fayette (no século
XVII) e da poeta Emily Dickinson – a
contradições nas obras de Emily partir da qual o ensaísta continua sua análise
do livro de Shattuck.
•
Dickinson, Melville e Camus, Para o caso do romance La Princesse
de Clèves, de Mme. de La Fayette – que
tem por eixo narrativo a resistência da
apontando os equívocos jovem Princesa aos sentimentos expe-
rimentados em relação a um homem fora
de seu casamento – Shattuck usa tam-
da reabilitação de Sade e bém, como termo de descrição, o
conceito de ascetismo. Para o outro
exemplo de positividade das limitações,
abordando as implicações éticas ele fala de esteticismo de Emily Dickinson.
E, compreendendo os dois, o termo
utilizado é o de sublimação: ambos os
de experiências nas áreas da exemplos “não falam de sobrepujar
limites e restrições no que diz respeito à
experiência, mas de acolhê-los e tirar
energia nuclear e da biologia partido deles”.

24 CULT - novembro/98
Emily Dickinson, autora do poema A Charm

Pela leitura miúda e detalhada do poética que ela pressentia ameaçada se cada uma das estrofes: os verbos lift, na
poema A Charm1 e por algumas obser- baixasse a guarda de sua intimidade. Há, primeira, e annul, na segunda, quando
vações acerca de sua correspondência, entretanto, um elemento que distancia entre levantar e anular parece estar a
Emily Dickinson é incluída por Shattuck ainda mais as duas escritoras e que, a meu tensão primordial do texto!), Roger
nos prazeres da abstinência. ver, não foi suficientemente abordado por Shattuck, a meu ver, corre o risco de
Na verdade, o rigor e a discrição com Shattuck. Refiro-me à formação em desencaminhar o leitor, ainda que a sua
que cercou a sua existência pessoal fez de meios sociais inteiramente distintos das intenção parafrástica fosse exatamente o
Emily Dickinson um caso exemplar de duas: Mme. de La Fayette existindo num contrário. Embora haja, em parte, uma
entrega total à poesia, não apenas pro- ambiente cortesão em que a literatura era recuperação no último item do capítulo,
piciando um modo muito particular de parte de uma educação de requinte; Emily intitulado “Um epicurista em O banquete
escrita – que está não somente nos Dickinson convivendo com os rigores de da temperança”, a sua leitura inicial
poemas, mas na correspondência trocada uma educação puritana para a qual a inclina-se demasiadamente para o lado
com poucos amigos –, como ainda leitura que transcendesse os limites das da clareza do texto, conseguida pela
transformando o lirismo subjetivo em continuadas interpretações bíblicas era paráfrase, quando, na verdade, é preci-
agudos momentos de reflexão objetiva. vista, sobretudo em se tratando de uma samente daquilo que é dito de modo
Como se vivendo de e para a fabricação mulher, como aventura arriscada de oblíquo e enviesado que o poema extrai a
de seus curtos textos, a sua relação com a formação espiritual. sua extraordinária força de sentido. Ou
experiência do mundo fosse sempre uma Sendo assim, o campo de atuação da seja: entre não levantar o véu (The Lady
renovada forma de inquietação pessoal e norte-americana era muito mais estreito: dare not lift her Veil) e posicionar-se de tal
solitária. a sua poesia só seria admissível se deixasse modo que seja anulado o desejo (Lest
Nesse sentido, a sua abstinência, para passar, por sob o lirismo pessoal, algo Interview – annul a want), a realização
usar o termo adotado por Shattuck, é daquela tensão intelectual e meditativa maior cabe à própria instauração da
diversa da de Mme. de La Fayette: se na que a própria poeta lia nos textos, às vezes imagem que é o poema (That Image –
romancista ela decorre de uma escolha grandiloqüentes e enviesados, de satisfies –). Ou ainda, dizendo de outro
pessoal e pensada de recusa de uma Emerson. A leitura efetuada por Shattuck modo, a abstinência de Emily Dickinson
experiência contrária às bienséances da do poema A Charm termina apontando é de ordem estética, ou poética, porque
época, no caso da poeta trata-se, de fato, para este difícil equilíbrio em que se ela implica precisamente não buscar ir
como quer Shattuck, de uma eleição parece manter o texto dickinsoniano: além daquilo que foi possível dizer nos
estética. Nem mesmo a recusa, men- cutucando com vara curta os mais escon- limites da linguagem do poema. Que a
cionada pelo crítico, do casamento didos valores semânticos da língua experiência que fica do texto seja também
proposto pelo Juiz da Suprema Corte de inglesa, criando ecos não apenas de de autolimitação é outra história, ou
Massachusetts, Otis Lord, que, na significantes, mas de significados, a poeta melhor, é uma história que compete ao
verdade, possui algo de semelhante com consegue comunicar os mais sutis jogos leitor elucidar trazendo para o jogo da
relação ao assédio do Duque de Namours que vão articulando os sentidos e a linguagem dickinsoniana a sua própria
no caso da Princesa de Clèves, iguala as inteligibilidade deles pelo poema. experiência, ou não, de limitações. O que
abstinências das duas. Nesse sentido, ao fazer a sua leitura a fica, sobretudo, como queria a poeta, é a
No caso de Emily Dickinson, a partir de uma tradução literal de cada uma imagem: tradução sempre aproximativa
recusa é antes uma maneira de conservar das palavras utilizadas no texto (ficando, da experiência pessoal que se traduziu em
intocável a esfera pessoal da realização curiosamente, sem comentário uma em literatura.

novembro/98 - CULT 25
O americano Herman Melville

Por enfatizar em excesso a experiência goria realista”, dando razão ao subtítulo absolvê-lo, sem que, em nenhum mo-
como motivação poética, o que, no do livro: uma narrativa interior. Diz mento, atente para que um homicídio foi
demais, faz sentido com relação aos Shattuck: cometido e confessado, nem sequer
propósitos básicos do ensaio, Shattuck “O fato de Billy Budd penetrar em refletindo sobre a existência de uma outra
opera um desvio de leitura tão danoso estados de espírito que não são expressos vida humana que foi destruída por seu
quanto qualquer outro de uma inter- pode muito bem ser o que Melville quis ato. Uma coisa, entretanto, parece ser o
pretação mecanicista ou ingenuamente designar com o enigmático subtítulo que julgamento do personagem, problema a
biográfica. escreveu a lápis na margem do manus- ser indefinidamente discutido a partir do
É o que parece ocorrer também no crito: ‘Uma narrativa interior’. O termo romance, outra coisa é fazer, como o faz
capítulo seguinte, dedicado à leitura de não se refere a nenhuma forma de onis- Shattuck, uma confusão de ordem moral
Melville e Camus, através do exame das ciência narrativa; muitos eventos im- e estética, condenando o escritor e sua
obras Billy Budd, marinheiro (Uma nar- portantes permanecem ocultos até mes- obra por não se posicionarem quanto à
rativa interior), texto de um manuscrito mo para o narrador desconhecido.” culpabilidade do personagem. E, o que
deixado inédito por Melville, quando de Mas se na narrativa de Melville, me parece ainda mais estranho, embora
sua morte em 1891, e somente publicado segundo Shattuck, o leitor tem a possi- coerente, é vincular essa neutralidade ao
em 1924, e O estrangeiro, de 1942. bilidade de julgar a partir do veredito a próprio estilo do romance, como se entre
No primeiro texto, trata-se do jul- que chega o tribunal instalado pelo a representação que ocorre na obra e sua
gamento e da condenação de um ma- Capitão Vere, a este cabendo tão somente recepção pelo leitor não estivesse
rinheiro, Billy Budd, que, num rompante a aplicação de seu resultado, no caso da precisamente todo o trabalho de sua
de raiva ao se ver acusado de motim por narrativa de Camus, ainda segundo construção, sem a qual o mesmo leitor
outro, Claggart, na presença do Capitão Shattuck, “o lugar do Capitão Vere é não chegaria àquela. Diz Roger Shattuck:
Vere, agride o acusador e termina por ocupado não por uma personagem, não “Camus criou para a maior parte de
matá-lo. Segue-se o julgamento e a pelos três juízes e pelo júri, mas pelo leitor. seus episódios um estilo frio, chão,
sentença de morte é proferida, con- Trata-se de uma enorme diferença. O artificialmente natural. Visto contra este
denando-se Billy ao enforcamento. Para leitor tem de decidir entre o relato panorama monótono, o assassinato semi-
o Capitão Vere, entretanto, que presidiu interior de Meursault, aparentemente ritualístico que ocorre na praia suscita em
o julgamento e a condenação de acordo sincero, sobre como os terríveis acon- Meursault, uma gloriosa explosão de
com as leis marciais, não há certeza tecimentos ocorreram, sem que tivesse intensidade lírica. A cena do crime
quanto à culpabilidade de Billy ou à nenhuma culpa, e a narração divagante e combina os crescendos de um ato gratuito
pureza de Claggart, os valores do bem e por vezes odiosamente íntegra do pro- e uma epifania. Ao apreender aquele
do mal sendo permanentemente trocados motor sobre o comportamento criminoso momento, Meursault claramente perde
pelo que, num determinado trecho da de Meursault”. a consciência e a memória. Suas atitudes
obra, recorrendo à Bíblia, chama de Por isso, para Shattuck, o subtítulo da e comportamento posteriores permane-
“mistério da iniqüidade”. Entre os narrativa de Melville cabe “como uma cem misteriosos, porque jamais temos
rigores da lei marcial e as motivações luva” no texto camusiano. Quer dizer: por um relato completo do que aconteceu
subjetivas, instaura-se um campo de ser “interior”, a escrita de Camus, após o crime ou das circunstâncias em
dúvidas, indecisões e incertezas que protegendo Meursault de possíveis que ele foi preso.”
transformam a sentença de morte naquilo acusações de cinismo e de indiferença Agora, à diferença daquilo que ocorria
que o próprio Shattuck chama de “ale- pelo assassínio do árabe, induz o leitor a na leitura de Emily Dickinson, como

26 CULT - novembro/98
O argelino Albert Camus

ficou assinalado, não é apenas a expe- pela releitura da obra. Aliás, esse traço energia nuclear, e, por outro, as expe-
riência do criador que é enfatizada, mas torna-se ainda mais claro no pequeno riências nas áreas da biologia molecular
uma derivada: a experiência do leitor que, capítulo final desta primeira parte do e da engenharia genética, buscando
caindo na armadilha do autor, ultrapassa livro, intitulado “Interlúdio: Recapi- assinalar os momentos de inquietação e
os limites da moral e compactua com o tulação”, em que resume a sua posição de dúvida e também de euforia que
personagem, por intermédio do que no que se refere aos conceitos de conhe- marcaram essas mesmas fases.
Shattuck chama de empatia, terminando cimento proibido e conhecimento aberto, As duas epígrafes utilizadas para o
não apenas por compreender e perdoar o buscando marcar a sua eqüidistância e, capítulo dão bem conta desta oscilação:
assassinato por ele cometido como, o que portanto, fugindo à pecha de “política e a primeira, de J. Robert Oppenheimer, o
parece muito mais grave, por louvar o intelectualmente reacionário”. Diz ele: principal articulador do Projeto
modo de sua expressão. E, embora o “Hoje, o princípio de conhecimento Manhattan, do qual resultou a explosão
crítico conceda em ver o romance de aberto e a livre circulação de idéias se da primeira bomba em Alamogordo,
Camus como uma parábola, ao que parece estabeleceram tão firmemente no Oci- New Mexico, é expressão do momento
menos evidente do que no caso de dente que qualquer reserva a esse respeito de dúvida e inquietação. Diz ela: “Num
Melville, o seu julgamento final da obra é em geral considerada política ou sentido primário […] os físicos conhe-
é decepcionante: intelectualmente reacionária. No en- ceram o pecado”; a segunda, de Walter
“É impossível não considerar essa tanto, as histórias examinadas nos capí- Gilbert, um dos responsáveis pelo cha-
novela em miniatura como uma parábola, tulos precedentes demonstram de diversas mado The Human Genome Project, isto é,
uma peça literária com uma didática sutil, formas que o princípio de conhecimento pelo mapeamento do código genético
cujo sentido vai se revelando aos poucos aberto nem sempre suplantou o princípio humano, cujo conhecimento resultou das
aos que lêem com cuidado. Mas a nar- do conhecimento proibido.” pesquisas do DNA, é indicadora da
rativa interior sutilmente seduz muitos Não só as estórias anteriores: os Casos euforia com que foi, e ainda é, vista a
leitores, que passam a sentir empatia por concretos, da segunda parte do livro, possibilidade que se abre para o conhe-
um criminoso, e com isso a parábola sai apontam para formas perigosas de trans- cimento a partir de tais pesquisas: “[O
pela culatra. A lição moral – a de que não gressão nos limites da proibição do Projeto Genoma] é o graal da genética
pode ser chamada humana uma existência conhecimento, seja no caso das pesquisas humana […] a resposta final ao man-
que não assuma um mínimo de respon- e aplicações nas áreas científicas e damento: Conhece-te a ti mesmo”.
sabilidade por si mesma, por suas ações e tecnológicas, seja na leitura que Shattuck É pena que, tendo sido publicado
pelos outros – é esquecida com dema- realiza da obra do Marquês de Sade. alguns meses antes, o livro não pudesse
siada facilidade.” Sendo assim, o primeiro capítulo acrescentar, aos cinco casos de limites à
Por não reconhecer o intervalo que desta segunda parte, intitulado “A ex- pesquisa científica explorados por
está entre a representação da obra e sua plosão do conhecimento: ciência e Shattuck, o da clonagem da ovelha Dolly,
apreensão pelo leitor, que, ao fim e ao tecnologia”, é um belo exemplo da cujas conseqüências éticas e morais
cabo, é a recuperação de seus valores habilidade de Shattuck em realizar foram, são e ainda serão muito discutidas
propriamente estético-estruturais, o sínteses significativas e esclarecedoras, quer pela comunidade científica, quer
crítico, mesmo sem querer, deixa passar percorrendo as várias fases que vão da pela sociedade de modo geral, pois os
aquele ranço moralista sobre o qual se ciência pura à aplicada, tomando por eixo cinco casos de limites estudados por
montava a minha desconfiança desde o de reflexão, por um lado, os vários Shattuck, isto é, considerações práticas,
início de sua leitura e que se confirma momentos de pesquisa e utilização da prudentes, legais, morais e mistas,

novembro/98 - CULT 27
Ilustração computadorizada de uma cadeia de ácido desoxirribonucléico (DNA) J.R. Oppenheimer

abrangem, de fato, o espectro de in- Shattuck e para o qual chamei, logo de biográficas com as circunstâncias histó-
quietações eufóricas e disfóricas mo- início, a atenção do possível leitor, ricas, sociais e políticas de sua existência
tivadas pelas pesquisas científicas e acentuando a sua estranheza – para a qual (“O caso Sade”), em seguida, todo o
tecnológicas. E os últimos parágrafos do parecem convergir as linhas essenciais de processo de releitura a que foi submetida
capítulo são, ao mesmo tempo, um discussão sobre o conhecimento proibido. a sua obra, desde o citado Apollinaire,
reconhecimento do que há de irreversível De fato, usando como título do passando por Klossowski, Bataille,
nas descobertas científicas e uma me- capítulo a mesma frase que Apollinaire Paulhan, Camus, Foucault, Barthes, até a
ditação sobre suas aplicabilidades: utilizou para nomear o seu ensaio consagração atual nas referidas edição e
“O conhecimento daquilo que nossas introdutório à antologia das obras do história literária (“Reabilitação de um
muitas ciências descobrem não é proi- Marquês de Sade de 1909, “O divino profeta”); os dois capítulos seguintes são,
bido em si mesmo e por si mesmo. Mas Marquês”, com a qual iniciou o processo por assim dizer, provas da realidade pela
os agentes humanos que buscam esse de reabilitação do escritor, o texto de narração de dois casos famosos, nos
conhecimento jamais foram capazes de Shattuck é não apenas uma excelente Estados Unidos, de assassínios perpe-
afastar-se de sua aplicação a nossas vidas introdução a Sade, narrando aspectos trados sob a aparente ou comprovada
ou de controlá-la. Apesar da história de decisivos de sua vida e de sua obra, e inspiração das obras do Marquês (“O
Ulisses e as sereias, a ‘pesquisa pura’ é fazendo, por assim dizer, o processo de caso dos assassinos nos pântanos” e “O
um mito moderno. Portanto, à medida sua recepção, mas uma prova de fogo para sermão de Ted Bundy”); o quinto item é
que a ciência explode em certos campos, a sua habilidade em discutir, no âmbito o centro da leitura de Shattuck: uma
tornando-se uma empresa impulsionada da criação literária, as implicações morais análise minuciosa de alguns textos da obra
tanto pelo comércio e preocupações de uma obra. Porque, na verdade, a de Sade, sem exclusão daqueles mais
bélicas como pela curiosidade, temos pergunta, depois de mais de dois séculos explicitamente perversos – o que oca-
necessidade de inspecionar esse cres- de sua existência, é ainda a mesma: o que siona mais uma advertência, a meu ver
cimento desproporcionado. O livre- fazer com Sade? Que ele fazia parte dos desnecessária, aos pudibundos leitores,
mercado pode não ser o melhor guia para “infernos” das bibliotecas é fato corri- através dos quais vai marcando, sobre-
o desenvolvimento do conhecimento. O queiro. Que hoje se tenha que usar o tudo, os equívocos da reabilitação do
planejamento estatal nem sempre trouxe pretérito imperfeito é a novidade, confir- autor (“Um passeio com Sade”); no sexto
mais vantagens. Enquanto pensamos mada por sua edição na prestigiosa item, retomando a famosa questão pro-
nessas questões dilacerantes, não po- coleção Pléiade, da Gallimard, ou, como posta por Simone de Beauvoir, que dá
demos nos esquecer da história de Ícaro lembra o próprio Shattuck, pelo fato de título ao item, discute as teses de inclusão
e da ‘Esfinge’ de Bacon, e dos casos que, na mais recente e revisionista história ou exclusão da obra do Marquês do
concretos bastante diversos do Lebensborn da literatura francesa, aquela organizada cânone da cultura e da literatura (“De-
de Himmler e do Projeto Manhattan. por Dennis Hollier e publicada em 1989 vemos queimar Sade?”) e, finalmente, no
Nesta era de libertação e permissibi- pela Harvard University Press, “em nove último item, trata-se de escolher uma
lidade, é bem possível que um juramento séculos de literatura, somente um autor maneira adequada de situar o autor no
criterioso por parte dos cientistas ajude a merece dois verbetes completos: o Mar- universo de nossas experiências culturais,
impedir que nos comportemos como o quês de Sade”.2 tendo anteriormente recusado quer a sua
Aprendiz de Feiticeiro.” Os sete itens do capítulo “O divino consagração, quer a sua rasura radical que
Mas é para o sétimo capítulo – aquele Marquês” são de uma organização exem- ocorreria caso a questão de Beauvoir
mesmo ao qual se dirige a advertência de plar: em primeiro lugar, algumas notas recebesse uma resposta positiva.

28 CULT - novembro/98
O Marquês de Sade Georges Bataille

É um capítulo decisivo para o julga- sua visão trágica, da caridade e missão citações, ou mesmo redundâncias, de
mento dessa obra de Shattuck: a sua orga- cristãs, e de todos os princípios de justiça argumentos já desenvolvidos. Mas são
nização, o modo pelo qual desenvolve os e democracia equânimes. Procura reviver generosos, oferecendo ao leitor elementos
seus argumentos, a erudição precisa e a Lei de Talião, o olho por olho e a de sobra para uma reflexão de bom
adequada com que cerca o seu objeto e, máxima de que poder é justiça. Talvez haja tamanho. Entre a admiração e a descon-
enfim, os juízos serenos e objetivos com alguma ‘grandeza’ na absoluta atrocidade fiança do início, a leitura e a releitura
que lê a tradição crítica já existente sobre da obra de Sade, alguma monumental terminaram impondo a primeira.
Sade, dão prova de sua iluminadora aberração e lição objetiva, que nos faça
perspicácia em repropor o exame de uma admirá-lo. Mas nos parecerá menos
obra tão polêmica quanto a do Marquês. admirável se o lermos por inteiro e jun-
Mais do que isso, no entanto, a leitura de tarmos suas idéias niilistas sobre egoísmo
Sade é também uma prova de fogo para e poder com as cenas sinistras das quais
toda a sua discussão anterior acerca do gotejam sangue e fezes. Ele sabia como
conhecimento proibido. A necessidade de eram ‘importantes essas imagens para o
ler o autor do século XVIII parece, para desenvolvimento da alma’ e como ‘agarrar
ele, resultar precisamente do conhe- sem medo o coração humano e representar
cimento que se obtém de um extremo de imensas divagações (Justine)’. Sade sempre
ilimitação e não é por acaso que, já nos foi o professor e o evangelista.”
últimos parágrafos do item quinto, ocorre Não se deve queimar Sade, parece
a lembrança de Nietzsche, como que dizer Shattuck: deve-se ler o Marquês
acentuando a presença do Marquês num como a qualquer outro autor extremado,
aspecto fundamental de nossa cultura. Diz sem cair na idolatria nem, por outro lado,
ele: na perseguição inquisitorial. Os seus
Notas:
1 Eis o texto do poema lido por Shattuck:
“Em Nietzsche, a ética da transgressão excessos são também parte de uma con-
perdeu as cenas de tortura e destruição dição que, ainda nos limites, continuamos A Charm invests a face
Imperfectly beheld –
sexual explícitas, transformando-se em um chamando de humana. E essa condição, The Lady dare not lift her Veil
atraente Valhala da filosofia lírica. Não quer se queira ou não, inclui a curiosidade For fear it be dispelled –
temos indícios de que Nietzsche tenha lido e, o que é terrivelmente difícil de aceitar, But peers beyond her mesh –
alguma vez o divino marquês. Não os seus limites. A conclusão de Shattuck And wishes – and denies –
obstante, o filósofo do Super-homem para este capítulo, e que poderia ser a do Lest Interview – annul a want –
oferece um produto modificado que atrai livro, é exemplar: That Image –satisfies –
a muitos: Sade sem orgasmo. “O divino marquês representa um (Encanto veste um rosto/ Não mais do que
“Os escritos de Sade fazem-nos en- conhecimento proibido que não podemos entrevisto –/ Erguer o véu não ousa a dama/
Por medo que lhe fuja –// Mas olha além da
frentar a tentativa extrema da cultura proibir. Conseqüentemente, devemos trama –/ Deseja – e logo nega –/ Teme
ocidental de arrancar as restrições da rotular suas obras cuidadosamente: ve- que a vista anule a falta –/Que a imagem
civilização a fim de regressar à barbárie. neno potencial, poluidor de nosso am- satisfaz)
Em todas as suas principais obras, Sade biente moral e intelectual.” 2 A edição francesa da obra de Hollier é de
visualiza uma rejeição completa das leis e Poderia ser o capítulo final do livro, quatro anos depois, De la littérature
profecia hebraicas, da filosofia grega com como disse, pois os demais são expli- française, Paris, Bordas.

novembro/98 - CULT 29
SOCIOLOGIA
: O mal-estar da pós- Estudo do sociólogo de origem polonesa Zygmunt Bauman, professor das Universidades de
modernidade Leeds e Varsóvia. O título remete ao O mal-estar na civilização, texto clássico de Freud que
: Zygmunt Bauman segundo Bauman é um marco na análise sociológica da modernidade, cujo principal valor, a
: Mauro e Cláudia Gama liberdade pessoal, era representado pela busca de ordem, beleza e limpeza. De acordo com
: Jorge Zahar Bauman, depois de 65 anos da publicação do texto freudiano, a liberdade pessoal ainda é o valor
: 272 págs. : R$ 26 ,00 supremo, mas agora travestido de espontaneidade, desejo e esforço individual.

: A borra do café Mais novo romance de Mario Benedetti, romancista, poeta e ensaísta uruguaio, que passou
ROMANCE

: Mario Benedetti 20 anos exilado em Madri depois do golpe que instaurou uma ditadura militar em seu país, na
: Ari Roitman e Paulina década de 70. Em A borra do café, Benedetti transfere seus momentos líricos de memória para
Wacht o protagonista Claudio, um garoto que percorre com a família os bairros da Montevidéu dos
: Record anos 40. Ancorado na narrativa poética cara ao escritor, o romance constrói o reencontro de
: 192 págs. : R$ 18,00 Benedetti com lugares, pessoas e imagens que marcaram sua infância e formaram sua poética.

: Diário íntimo O general José Vieira Couto de Magalhães foi uma das figuras públicas mais atuantes do
MEMÓRIA

: José Vieira Couto de Brasil da segunda metade do século passado, tendo contribuído com áreas tão diversas como a
Magalhães política, a literatura e a astronomia. A descoberta e a organização deste Diário íntimo, a cargo da
: Cia. das Letras historiadora Maria Helena P. T. Machado, revelam uma personalidade complexa, que participara
: 246 págs. da Guerra do Paraguai, mantinha relações com grandes capitalistas e negociantes do império e
: R$ 18,50 anotava seus sonhos e aspirações cifradamente em tupi.

: Caravana contrária Novo livro de poemas de Mário Chamie, um dos fundadores e principal teórico do grupo
POESIA

: Mário Chamie Praxis, reunido na década de 60 em torno da revista de mesmo nome, surgida de uma dissidência
: Geração Editorial do movimento concretista. Os poetas do grupo, como Reinaldo Jardim e Mauro Gama,
: 204 págs. faziam oposição ao “apriorismo mecanicista”, apropriando-se de termos e conceitos semiológicos,
: R$18,00 transformando as palavras em “elementos vivos”. Mário Chamie é autor de Espaço inaugural
(1955), Lavra, lavra (1962) e A linguagem virtual (1976).

: Espaços da memória Espaços da memória. Um estudo sobre Pedro Nava examina o discurso memorialista do autor
ENSAIO

: Joaquim Alves de Aguiar mineiro, dividindo-o em quatro espaços de realização: da casa, da escola, do trabalho e da rua.
: Edusp Segundo a tese de Joaquim Alves de Aguiar, a esses espaços corresponderiam quatro fases da
: 220 págs. vida do escritor: a infância, a adolescência, a juventude e a maturidade. O autor analisa as
: R$ 15,00 relações entre verossimilhança e veracidade no discurso do narrador memorialista de Nava,
construindo um retrato itinerante, desenraizado e andarilho do eu poético do escritor mineiro.

: Variações sobre o livro Coletânea de ensaios e escritos do jornalista e roteirista de cinema catarinense Salim Miguel.
: Salim Miguel Variações sobre o livro (e temas correlatos), como o autor prefere chamar a coletânea, agrupa textos
: Editora da UFSCar publicados na imprensa de Florianópolis e de outros estados, palestras proferidas no Brasil e no
: 112 págs. exterior, e outros estudos sobre poetas como Cruz e Sousa, escritores como Juan Rulfo, sobre
: R$ 11,00 a permanência do livro e novas tendências literárias, acerca do papel das editoras universitárias
e de sua trajetória como autor e editor.

: Afeto e representação Afeto e representação. Para uma psicanálise dos processos cognitivos, do psicólogo e psicanalista
PSICOLOGIA

: Antonio Imbasciati italiano Antonio Imbasciati, retoma criticamente a tradicional dicotomia afeto/cognição,
: Neide Luzia de Rezende estabelecendo uma leitura cognitiva da psicanálise. Para ele, afeto e representação são a forma
: Editora 34 do ser configurar uma experiência, duas manifestações coincidentes no início da formação
: 224 págs. mental. Apontando a impossibilidade de haver afeto sem sentido cognitivo e vice-versa, Imbasciati
: R$ 22,00 questiona princípios sagrados da psicanálise e de sua dissociação com a psicologia.

: Lewis Carrol Esta biografia do autor de Alice no País das Maravilhas é resultado de mais de 30 anos de
BIOGRAFIA

: Raffaela de Filippis pesquisa em cartas, diários e documentos deixados por Lewis Carroll. O livro especula sobre as
: Record razões de sua gagueira, sua mania de ordem e sua suposta preferência sexual por menininhas. O
: 672 pág. biógrafo Morton N. Cohen, professor da Universidade de Nova York, teve acesso aos arquivos
: R$ 60,00 da família Dogdson (a quem pertence o espólio de Carroll, cujo verdadeiro nome era Charles
Luttwidge Dodgson), elaborando a mais completa biografia de Carroll já publicada.

: Brecht no teatro brasileiro Originalmente uma tese de doutoramento apresentada na Alemanha, Brecht no teatro brasileiro
TEATRO

: Kathrin Sartingen analisa a recepção do teatro do dramaturgo alemão em terras brasileiras. O estudo de Kathrin
: José Pedro Antunes Sartingen avalia em que medida as encenações de Brecht influenciaram diretores e grupos brasileiros,
: Hucitec interpreta peças brasileiras dos anos 60 e 70 e discute a idéia de aceitação de uma cultura “estranha”
: 338 págs. na literatura deste século. A autora morou durante alguns anos no Brasil, tendo estagiado no Instituto
: R$ 30,00 Goethe de São Paulo e lecionado Literatura Comparada na Universidade Estadual de Campinas.

: Título : Autor : Tradutor : Editora : Número de páginas : Preço

30 CULT - novembro/98
Justamente (embora com parcas informações) incluído no Pequeno
dicionário de literatura brasileira (Cultrix, 1987, 3ª ed.), poucos se
lembrarão hoje do acadêmico Álvaro da Silva Moreira (1888-1969),
poeta simbolista e modernista e ativo colaborador de nossas revistas da
primeira metade do século – O Malho, Fon-Fon, A Ilustração Brasileira,
Para-Todo, etc. –, além de agitador cultural. Dele lembramos aqui o livro
O Brasil continua..., editado em 1933.

novembro/98 - CULT 31
F O R T U N A C R Í T I C A 5
Ivan Teixeira

DESCONSTRUTIVISMO
Desenvolvida a partir das formulações do

Reprodução
filósofo francês Jacques Derrida,
a desconstrução atribui aos significados
a condição de construções culturais,
questionando a concepção metafísica
de centros unificadores do mundo O lingüista e filósofo Jacques Derrida

Série destaca as principais O movimento da desconstrução, filósofo francês, como é o caso, em


tendências da crítica literária representado sobretudo pelo filósofo diferentes graus, de Paul de Man, J. Hillis
francês Jacques Derrida, é apenas uma Miller, Geoffrey Hartman e Harold
“Fortuna Crítica” é uma série de seis das diversas tendências do pensamento Bloom.
artigos de Ivan Teixeira sobre as princi- crítico do chamado pós-estruturalismo, Derrida é ao mesmo tempo herdeiro
pais correntes da crítica literária. O pri-
dentre as quais se contam também as e crítico do estruturalismo. Começa por
meiro, publicado no número 12 da
CULT (julho), abordou a retórica de Aris- formulações de Michel Foucault e as do questionar a noção de centro no conceito
tóteles e Quintiliano; o segundo texto new historicism, proposto por Stephen de estrutura. Para o filósofo, centro é tudo
(agosto) foi sobre o formalismo russo; o Greemblatt no início dos anos oitenta. A o que preside a ordenação dos elementos
terceiro (setembro) estudou o new criti- desconstrução passou a tomar corpo de um sistema, mas que não participa da
cism; o quarto (outubro) apresentou o como movimento crítico depois da mobilidade das unidades que coordena.
estruturalismo. Na próxima edição, será
analisado o new historicism. Ivan Tei- célebre conferência proferida por Nesse sentido, o centro encontra-se ao
xeira é professor do Departamento de Derrida na Johns Hopkins University, mesmo tempo dentro e fora da estrutura.
Jornalismo e Editoração da ECA-USP, em 1966, quando o filósofo leu o ensaio Enquanto elemento interno, explica-se
co-autor do material didático do Anglo “A estrutura, o signo e o jogo no discurso por sua condição coordenadora; en-
Vestibulares de São Paulo (onde lecio- das ciências humanas”, que hoje integra quanto elemento externo, explica-se por
nou literatura brasileira durante mais de
20 anos) e autor de Apresentação de o volume A escritura e a diferença. Desde não participar do jogo e dos riscos do
Machado de Assis (Martins Fontes) e então, a desconstrução tem encontrado movimento inerente à idéia de estrutura.
Mecenato pombalino e poesia neo- muita ressonância nos Estados Unidos, Em rigor, o centro é uma entidade
clássica (a sair pela Edusp). Tem-se de- assumindo diferentes matizes conforme metafísica, pois possui valor absoluto e
dicado a edições comentadas de clás- o autor que se inspire nos fundamentos independe das contingências do todo.
sicos – entre eles, as Obras poéticas de
Basílio da Gama (Edusp) e Poesias de
de Derrida. Assim se explicam alguns Como toda verdade metafísica, a noção
Olavo Bilac (Martins Fontes) – e dirige trabalhos dos integrantes da Escola de de centro deve ser posta em questão, deve
a coleção “Clássicos para o vestibular”, Yale, preocupada em divulgar, comentar, ser desprezada na análise da estrutura de
da Ateliê Editorial. criticar e desenvolver os pressupostos do que participa. O centro não é uma

34 CULT - novembro/98
realidade, mas uma construção do possível por contrastar com a idéia de cultura de referência por princípio. Foi a
pensamento ocidental. O analista deve planície ou de depressão. Como se vê, partir do homem europeu que se
desconstruir esse construto, escolhendo Derrida é responsável pelo esboço de formularam todas as conclusões universa-
um enfoque que aborde a estrutura por uma espécie de teoria geométrica do lizantes (metafísicas) sobre o que se
um ângulo até então secundário na ordem conhecimento, cuja tradição se origina, entende por cultura ocidental. Os estudos
geral das coisas. Toda a filosofia ocidental pela ruptura com os significados de Lévi-Strauss provocaram um deslo-
partilha da idéia de centro, essencial- universais, em Nietzsche, Freud e camento desse foco de atenção: o interesse
mente vinculada ao princípio de valor e Heidegger. Fala-se aqui em teoria das pesquisas desviou-se da Europa para
de significado absoluto, característica geométrica do conhecimento, porque já culturas consideradas primitivas, sobre-
básica do pensamento metafísico. A Luís Antônio Verney divulgava, na época tudo a partir da análise de mitos sul-
noção de centro preside o próprio americanos. Tal descentramento estabe-
conceito do ser, determinado pela idéia leceu uma crise na história da metafísica,
João Carlos Volatão/Folha Imagem

de presença, de essência, de origem, de por questionar a noção de totalidade do


finalidade. A história do Ocidente seria humano, concebida exclusivamente com
uma sucessão de centros inquestionáveis, base no etnocentrismo europeu. Além
como Deus, homem, consciência, disso, ao desconstruir a noção de etno-
transcendência, eu, verdade – noções centrismo, Lévi-Strauss estaria, segundo
responsáveis pela idéia de centro Derrida, realçando a necessidade de uma
unificador do mundo. A esse pensamento linguagem crítica no discurso das
essencialista e transcendental Derrida ciências humanas. Antes disso, as
chama de “logocentrismo”. verdades do etnocentrismo apresen-
Derrida coloca-se contra a concepção tavam-se como dados da natureza, e não
logocêntrica do pensamento metafísico. como construtos de ordem cultural. Na
Para ele, o valor do centro é sempre prática, isso contribuía para a hegemonia
afirmado pelo não-valor de seu oposto: do pensamento metafísico, responsável
Deus/diabo, homem/mulher, natureza/ pela noção da superioridade da Europa
cultura, fala/escrita, espírito/corpo, sobre os demais continentes.
inteligível/sensível etc. O pensamento Harold Bloom, um dos Outra desconstrução importante
metafísico atribui valor intrínseco aos maiores críticos literários dos operada pelo pensamento de Derrida
elementos que compõem essas duali- Estados Unidos, país em que consiste no questionamento da ascen-
dades, em que se fundamenta quase toda a desconstrução encontra dência da fala sobre a escrita. O filósofo
a filosofia européia. Todavia, Derrida não ressonância assumindo denomina essa hierarquia de “fonocen-
reconhece significado essencial nos diferentes matizes conforme trismo”, entendendo-a como um aspecto
elementos desses pares. Nega qualquer o autor que se inspire em do logocentrismo. O pensamento meta-
verdade transcendental. Aplica a todos os seus fundamentos
físico sempre considerou a fala como
significados a condição de construções elemento mais importante desse par, não
culturais, entendendo-as a partir do só por pressupor a presença do falante,
relativismo da função distintiva do da Ilustração portuguesa, o princípio de como também por ser considerada a
conceito saussuriano de fonema. Isto é, que o conhecimento das formas cor- matriz da escrita, que foi interpretada
assim como o significante vaca se torna póreas depende da percepção da super- desde sempre como mera reprodução
perceptível apenas por contrastar com fície das coisas, de que trata a geometria. artificiosa do ato natural da fala. Assim, a
faca, o filósofo julga que só se conhece Derrida privilegia a etnologia na oposição fala/escrita gera outra dualidade
Deus por se tratar de um construto formação do discurso das ciências supostamente verdadeira: presença/
diferente de diabo. Da mesma forma, a humanas. Observa que, antes de Lévi- ausência, que acaba por implicar a su-
natureza só é percebida por se distinguir Strauss, essa ciência tomava exclusi- perioridade do presente sobre o passado,
da cultura, e assim por diante. Por essa vamente a Europa como origem para da natureza sobre a cultura. Eis o que
perspectiva, pode-se supor também que qualquer generalização acerca do Derrida chama a “metafísica da pre-
a percepção de uma montanha só se torna homem. A Europa era tomada como sença”, que o filósofo pretende descons-

novembro/98 - CULT 35
truir, invertendo a hierarquia desses pares a natureza da consciência humana, que de um trocadilho grafo-sonoro, porque
antitéticos. Esclarece que, tanto quanto a se confunde com a noção de linguagem. essas palavras possuem grafias distintas e
escrita, a fala obedece a um código Essa perspectiva não admite um centro uma só pronúncia. O neologismo do
preestabelecido, que ele denomina exterior responsável pela geração dos filósofo deriva de différer, que tanto pode
“arquiescritura”. Trata-se de um código significados a serem captados pelo significar diferenciar quanto adiar. Dife-
matricial abstrato, do qual nascem as espírito humano e “depois” veiculados renciar pressupõe a geometria dos corpos,
diferenças geradoras do sentido, tanto na pela linguagem. Ao contrário, ao criar espacialidade, pois o signo se explica pela
língua falada quanto na escrita. A maior configuração de seu contrário; adiar
conseqüência dessa desconstrução é a implica temporalidade, pois o signo
Milton Michida/AE
ratificação de uma idéia consagrada pela também retarda continuamente a idéia de
lingüística estrutural, segundo a qual não presença. Observem-se os fonemas /b/ e
existe origem absoluta para o significado. /p/: ambos são bilabiais explosivos. A
Este decorre de relações, e não de essên- diferença essencial entre eles é que o
cias isoladas: é sintagmático, jamais para- primeiro se caracteriza por uma
digmático. propriedade positiva: é sonoro; ao passo
O princípio de que o significado que o segundo, por uma propriedade
decorre de relações possibilita ao teórico negativa: é surdo. Por causa de sua
a formulação da idéia de suplemen- condição positiva, a lingüística tradi-
taridade, que consiste no pressuposto de cional tende a atribuir ao fonema /b/ o
que os termos dos pares do pensamento privilégio do centro. Derrida considera
metafísico se complementam mutua- essa conclusão uma construção meta-
mente. Esse princípio não só implica a física, afirmando que a propriedade
inversão dos elementos que constituem positiva do primeiro decorre da condição
as relações binárias, mas também negativa do segundo, assim como o
permite conceber esses elementos numa Há uma nova espécie de sentido de Deus depende da noção de
dimensão de antítese inclusiva, e não desconstrução em diabo. O vocábulo différance foi inventado
exclusiva. Nesse sentido, o conceito de andamento no ensaísmo para caracterizar esse processo de geração
verdade, por depender do de mentira, brasileiro, representada
do sentido, em que um significado
contém necessariamente um pouco de continuamente se refere a outro signi-
pelos textos de João Adolfo
seu oposto. Observe-se a idéia do bem. ficado e a toda a rede de significados da
Hansen (acima), que
Sabe-se que decorre de Deus, a origem língua, processo também designado de
utiliza fundamentos
total do ser. A noção do mal vem em suplementaridade do signo.
do historicismo de
segundo lugar e completa a plenitude As práticas de Derrida orientaram-se
de Deus, ao mesmo tempo que suple- Michel Foucault sobretudo para sistemas de interpretação,
menta e contamina a idéia de bem: pois, e não propriamente para obras literárias.
caso não houvesse o princípio da Queda, os significados e o respectivo sistema de Fundam-se principalmente em análises
seria impensável o conceito de bem. Vem signos, o homem estaria forjando a de pensadores como Platão, Rousseau,
daí que as antíteses conceituais do própria consciência, também constituída Nietzsche, Husserl, Freud, Marx e Lévi-
pensamento metafísico não passam de por elementos contrastivos. Strauss. Evidentemente, o filósofo de-
construtos culturais. Pertencem à ordem Como se vê, a linha de força do pen- teve-se também em textos ou concepções
dos signos, e não ao domínio das enti- samento derridiano consiste na teoria da artísticas, como é o caso de seus estudos
dades naturais. Mas qual a vantagem diferença, resultante de uma interpretação sobre Antonin Artaud e Mallarmé. A
desse tipo de desconstrução para a radical da lingüística de Saussure. partir daí, os sistematizadores da nova
filosofia da linguagem? Pela perspectiva Desenvolvendo criticamente a teoria do teoria estabeleceram alguns passos para
de Derrida, não só representaria um signo saussuriano, Derrida criou o a abordagem desconstrucionista do texto
estágio agudo do exercício crítico no vocábulo différance. Não só para se literário, como a seguinte, elaborada a
discurso das ciências humanas, como contrapor ao termo francês différence como partir de sugestões de Charles E. Bressler
também – e principalmente – revelaria também para complementá-lo. Trata-se e Jonathan Culler: (1) descobrir as

36 CULT - novembro/98
B I B L I O G R A F I A

operações binárias que estruturam o episteme o padrão que unifica a diver-


texto; (2) comentar os valores, os con- sidade de discursos de uma época. A
ceitos e as idéias que subjazem a essas partir daí, a produção de um autor passou • A escritura e a diferença, de Jacques
operações; (3) subverter as operações a ser entendida como a apropriação
Derrida. Tradução de Maria Beatriz
binárias existentes no texto; (4) descons- singular dos discursos coletivos de seu
truir as concepções implícitas no texto; tempo. Em função disso, reinaugura-se Marques Nizza da Silva. São Paulo,
(5) a partir das novas relações binárias, o esforço pela reconstrução das formas Perspectiva, 1971.
admitir a hipótese de uma terceira saída mentais do passado: redesenha-se o
• Gramatologia, de Jacques Derrida.
e de outros níveis de significação; e (6) espaço da arqueologia, que conduz ao
deixar em aberto a interpretação do texto, abandono de certas generalizações que Tradução de Miriam Schnaiderman e
supondo-se o princípio de que o sig- procuram unificar a diversidade da Renato Janine Ribeiro. São Paulo,
nificado é sempre móvel, múltiplo e história a partir de categorias do presente.
ilimitado. É o que se observa, por exemplo, com o Perspectiva, 1973.
No Brasil, Derrida foi muito bem- conceito de escola literária. Boa parte dos • Glossário de Derrida, supervisão de
recebido a partir dos anos 70, como deixa chamados estilos de época não passam Silviano Santiago. Rio de Janeiro,
ver, por exemplo, o útil Glossário de de discursos atuais voltados para a
Derrida, elaborado por alunos da PUC- anulação da diversidade de práticas do Francisco Alves, 1976.
RJ, sob a supervisão de Silviano San- passado. Paralelamente, recusa-se a • Critical theory & practice: A
tiago. Haroldo de Campos aplicou prin- leitura sincrônica das formas literárias, coursebook, de Keith Green e Jill
cípios do filósofo francês em seu O em franco progresso em outros setores
seqüestro do barroco na literatura brasileira: da produção cultural brasileira. Uma Lebihan. London, 1997.
O caso Gregório de Matos, com o propósito possível alternativa contra essas supostas • Fifty key contemporary thinkers: From
de rever alguns aspectos da teoria formu- formas anacrônicas de leitura tem sido o
structuralism to postmodernity, de John
lada por Antonio Candido na Formação estudo das poéticas, que faculta a
da literatura brasileira. apreensão da diversidade sem descon- Lechte. London/New York,
Registre-se, por fim, que há uma nova siderar a unidade específica de cada Routledge, 1996.
espécie de desconstrução em andamento período. Tal estudo pressupõe o conceito
no ensaísmo brasileiro, representada de história literária como a contínua • Literary criticism: An introduction to
sobretudo pelos textos de João Adolfo reapropriação dos diversos discursos do theory and practice, de Charles E.
Hansen. Desta vez, os fundamentos já homem. Nesse sentido, o passado não Bressler. Englewood Cliffs, New
não decorrem de Derrida, mas do histo- atua sobre o presente; o presente é que se
ricismo de Michel Foucault, para quem apropria do passado como forma de Jersey, Prentice Hall, 1994.
cada época possui uma episteme específica legitimação do ponto de vista segundo o • On deconstruction: theory and criticism
e intransferível. Foucault entende por qual se emitem os juízos. after structuralism, de Jonathan Culler.
Ithaca, New York, Cornell University
Luciana Whitaker/Folha Imagem
Press, 1992.
Nota-se que as idéias
de Derrida foram • Literary theory: a very short
bem-recebidas no Brasil introduction, de Jonathan Culler.
pelo aparecimento do
Oxford/New York, Oxford University
Glossário de Derrida,
organizado por Silviano Press, 1997.
Santiago (ao lado), e pela • A reader’s guide to contemporary literary
aplicação de princípios theory, de Raman Selden e Peter
desconstrutivistas por
Haroldo de Campos Widdowson. New York/London,
Harvester Wheatsheaf, 1993.

novembro/98 - CULT 37
Fotos/Reprodução

O moinho que deu origem às narrativas


de Les lettres de mon moulin, de Daudet

3 8 CULT - novembro/98
Fotos/Reprodução

Berço do trovadorismo, a Provença mantém


uma singularidade cultural e lingüística
dentro do território francês, eternizada na
obra de escritores como Alphonse Daudet,
Frédéric Mistral, Marcel Pagnol e Jean Giono Jean Giono

Mônica Cristina Corrêa

N o sudeste da França, em Arles, no ano de 1909 ergueu-se uma estátua a Frédéric


Mistral, homem de letras, homenagem e reconhecimento de seu imenso trabalho na
conservação de um mundo que estaria fadado ao esquecimento e à destruição pela violência
da industrialização e pela invasão de imigrantes. Esse mundo – imortalizado na obra
poética de Mistral – é o provençal, ou seja, o mundo do Midi, que guardou durante
séculos uma tradição consideravelmente diferente daquela do norte do país.
A Provença foi uma das primeiras regiões a ser romanizada na Gália, e desde
então sofreu contínuas modificações históricas. Limitada ao sul pelo Mediterrâneo,
Frédéric Mistral
ao norte de maneira um pouco incerta e contígua a Côte d’Azur, a região provençal
não tem claras, do ponto de vista da tradição, as fronteiras com seus arredores,
especialmente no que se refere à língua e à literatura.
Com efeito, o sul da França foi marcado pelos domínios da langue d’oc (do latim hoc
como “sim”) que, durante séculos, se opôs ao francien ou langue d’oïl (contração de hoc
e il do latim hoc ille), que era a língua da corte, repleta de germanismos, falada no norte
do país, desde a época merovíngea. Ao longo dos séculos, porém, apesar da notável
produção artística medieval – pois a Provença foi o grande berço do Trovadorismo –, as
línguas derivadas do occitan (langue d’oc) perderam terreno para o francien que, ao
contrário, falado inicialmente apenas na Île de France (região de Paris), se impôs, aos
poucos, no território compreendido pelo que é hoje a França.
Terra de trovadores, a Provença registra grande número de poetas desse gênero
(mais de cem), muitos deles reunidos e protegidos em Les Baux-de-Provence, onde
se instalara uma poderosa família feudal no século X, que se acreditava descendente
Alphonse Daudet
de um dos reis magos, Baltazar. Por ali passou o trovador Fouquet de Marselha
(1180-1231), que em 1205 foi eleito bispo inquisidor e passou a semear o terror na
região, dedicando-se a destruir a sociedade que o acolhera.
Mas a vida de Baux terminou com a demolição do castelo e da cidade, comandada
pelo rei Luís XIII – preocupado com sua insubmissão. Hoje, a 280 metros de altitude,
pode-se visitar ali as ruínas do castelo medieval, as quais se confundem com a formação
rochosa (baux, bauxita) do local. Tão particular se tornou essa paisagem que há até
uma lenda contando que Dante Alighieri teria se inspirado em seu exotismo para
escrever os círculos do Inferno.
Aliás, outro poeta italiano teria sido influenciado – desta vez, veridicamente –,
pela mágica paisagem provençal. Petrarca, que encontrara a jovem Laura na cidade
de Avignon em 1327, apaixonou-se por toda a vida. Convidado por seu amigo Philippe
de Cabassol, Petrarca viveu, com intervalos, de 1337 a 1353 em Fontaine de Vaucluse. Marcel Pagnol

novembro/98 - CULT 3 9
Acima, Fontaine de Vaucluse, Foi em torno desse deslumbrante fenômeno natural – o término de um imenso rio
paisagem que inspirou o poeta italiano Petrarca.
Acima, à dir., ruínas do castelo de Philippe de Cabassol,
subterrâneo cujo percurso permanece misterioso –, isto é, da belíssima fonte da Sorgue,
amigo de Petrarca, que ali morou, com intervalos, que o poeta teria buscado refúgio para escrever sua obra lírica dedicada à amada
entre 1337 e 1353.
Laura, ou seja, à beira de “le chiare, fresche e dolci acque...”.
Apesar da inspiração que tantos encontraram nos domínios da langue d’oc, a
produção literária nas línguas derivadas do occitan padeceu de sérios prejuízos quando
da imposição do francês como língua nacional (século XIX). Com objetivos de
assegurar o progresso, a unificação lingüística acabou por fazer com que quase
desaparecessem as línguas derivadas do occitan. Fredéric Mistral (1830-1914), nascido
e criado na vida rústica dos campos do sul, sofreu grande humilhação por causa de seu
falar provençal, quando enviado à escola.
Todavia, o preconceito fez fortalecer seu patriotismo e seu gênio, levando-o à expressão
literária em sua língua. De sua vasta obra, o poema mais importante é Mireille, vertido
para o português pelo poeta Manuel Bandeira com o nome de Miréia e publicado em livro
pela Editora Delta em 1962. Foi, porém, a grande “ação lingüística” de Mistral que lhe
valeu o Prêmio Nobel de 1904 e o prestígio internacional. Um de seus feitos mais
importantes – que colaborou para a indicação ao Nobel – foi a fundação, em 1854, da
Félibrige, uma escola literária com objetivo de promover um renascimento da cultura
provençal. E com os recursos adquiridos pela premiação, Mistral decidiu-se a criar o seu
“último poema” (como definiu), o Museu Arlaten, dedicado às tradições e artes de sua
terra. Situado num antigo palácio do século XVI (sobre os vestígios de um templo romano),
o museu oferece ao visitante uma bela amostra da história dos costumes regionais.
As terras meridionais francesas são, incontestavelmente, sacudidas por alguns
fenômenos naturais que tiveram no homem uma resposta artística condizente com a
variedade e o colorido local. As chuvas, por exemplo, mais violentas do que abundantes,
fazem alternar inundações com períodos de seca, sempre castigados pelo mistral, vento
típico que forçou a construção de casas campestres (“mas”) com paredes cegas na fachada
norte, e aglomerados em ruas estreitas nas cidades, com casas altas e fechadas, cobertas
de telhas caneladas. A essa paisagem somam-se ruínas de monumentos romanos,
iluminados por um sol ardente na primavera e no verão, cuja claridade se prolonga até
dez horas da noite. Bom número de pintores captou essa luz. Na região, há especialmente
Paul Cézanne, originário de Aix-en-Provence, em cujas telas se apresenta uma Provença
agrícola e rupestre, onde reinam as oliveiras. Dentre os estrangeiros, a grande marca
ficou por conta de Van Gogh, que viveu certo tempo em Arles.
Provavelmente aconselhado por seu amigo, o também pintor Toulouse Lautrec,
Van Gogh teria ido a Arles ao encontro do sol. E em suas telas estão pintados os cantos

4 0 CULT - novembro/98
Vales aromáticos
e claustros
Os dois primeiros parágrafos do primeiro
capítulo das Memórias de Mistral resumem
com precisão e beleza a paisagem da Provença:
“Desde que me lembre, vejo diante de meus
olhos, no sul, lá embaixo, uma barreira de
montanhas cujos outeiros, declives, falésias e vales
A cadeia dos Alpilles azulavam, de manhã à tarde, mais ou menos claro
ou escuro, em altas vagas. É a cadeia dos Alpilles,
um verdadeiro belvedere de glória e de lendas.
Foi ao pé dessa muralha que o benfeitor de
Roma, Caio Mário, ainda popular em toda a
região, esperou os bárbaros, atrás das paredes de
seu campo; e seus troféus triunfais, em Saint-
Rémy sur les Antiques são, há dois mil anos,
dourados pelo sol. É na inclinação dessa costa
que se encontram os destroços do grande
aqueduto romano que levava as águas de Vaucluse
para dentro das Arenas de Arles: conduto que a
gente da terra denominava Ouide di Sarrasin (via
dos Sarracenos), pois é por ali que os mouros de
Espanha adentraram em Arles. É sobre as rochas
As Arenas de Arles
escarpadas dessas colinas que os príncipes de Baux
tinham o seu castelo. É nesses vales aromáticos,
em Baux, Romanin e Roque-Martine, que
tratavam das questões amorosas as belas castelãs
do tempo dos trovadores. É em Montmajour1
que dormem, debaixo das lajes do claustro,
nossos velhos reis arlesianos. É nessas grutas do
Vale do Inferno, de Cordes, que erram ainda
nossas fadas. É sob todas essas ruínas, romanas
ou feudais, que jaz a Cabra de Ouro2. ”
Frédéric Mistral

tradução de Mônica Cristina Corrêa


1 Grande abadia do século X, próxima a Arles.
2 Trata-se de uma figura das lendas provençais, que é uma espécie
A Abadia de Montmajour de Graal, ou seja, um tesouro muito secreto.

setembro/98 - CULT 4 1
novembro/98
da cidade nas cores das quatro estações. Sempre irascível, o renomado pintor teve de À esq., as ruínas do castelo de Baux-de-Provence,
região em que Dante teria se inspirado
tratar-se, durante suas crises de loucura, no hospital que hoje é um centro cultural em para escrever os círculos do Inferno.
sua homenagem: L’ Espace Van Gogh. Acima, o Museu Arlaten, “último poema” de Mistral.

Além da pintura, observa-se que a paisagem e a luminosidade mediterrâneas


imprimem um efeito pictórico na obra dos escritores que ali se inspiraram ou nasceram,
marcando a literatura da Provença. Alphonse Daudet (1840-1897), por exemplo, após
uma infância feliz no Midi, foi forçado a mudar-se devido à ruína de seus pais. Mas
deixou aos franceses suas célebres Lettres de mon moulin (1866), narrando aventuras
provençais em contos que unem humor e poesia. Bastaria hoje ir a Fontvieille – pequeno
distrito próximo a Arles – para conhecer o moinho que deu origem às narrativas de
Daudet, para imaginar seus passeios pela região e suas conversas com o moleiro.
Enfim, em terra de tantas belezas e tantas proezas, a arte ultrapassou o terreno do
pictórico e do literário, cultivando também o cinema. Vários foram os diretores que ali
filmaram. Claude Berri adaptou para a tela Jean de Florette e A vingança de Manon, da obra
de Marcel Pagnol (1895-1974), escritor pertencente à Academia Francesa desde 1946,
que nessa seqüência aponta os problemas de uma sociedade ainda basicamente rural no
começo deste século. Da trilogia das memórias de Pagnol, Yves Robert adaptou ainda
A glória de meu pai e O castelo de minha mãe, que são o relato despretensioso porém sensível
das descobertas do menino Marcel, durante sua infância na Provença.
E foi o próprio Marcel Pagnol, que além de escritor se tornou dramaturgo e
posteriormente cineasta, a verter para a tela a obra de Daudet (Les lettres de mon
moulin) e de outro escritor provençal, Jean Giono (Angèle, Regain, la femme du boulanger).
Também pertencente à Academia Francesa, Giono (1895-1970) é um escritor de
origem franco-piemontesa, ou seja, da chamada “Haute-Provence” (Alta Provença).
Não fossem, pois, tantos artistas a retratar a Provença, pouco restaria de seu
mundo, que, se não é à parte, tem características próprias. Desde a Revolução
Industrial, a região passou por uma profunda modificação em sua paisagem original
– fato que a despersonalizou tanto no que diz respeito à terra quanto às tradições.
Mas graças à produção artística, os domínios da langue d’oc são ainda hoje uma
invitation au voyage, que podem proporcionar mesmo ao mais desavisado uma síntese
da longa vida romana na Europa, e do Medievo à Idade Contemporânea. Trata-se
de uma terra peculiar, eternizada na arte e cujo passado se projeta de forma tentacular
aos olhos dos transeuntes.
Mônica Cristina Corrêa
mestranda em tradução em língua e literatura francesa na USP

4 2 CULT - novembro/98
100 ANOS
sem Mallarmé

Montagem de José Henrique Fontelles


sobre ilustração de Cárcamo
novembro/98 - CULT 43
Há cem anos
morria Stéphane
Mallarmé, poeta
que buscou a
“obra pura”,
incorporou a
colaboração do
acaso e encarnou
o drama da
impotência
criadora. Leia
a seguir a
conferência
proferida por
O CENTENÁRIO DE Manuel Bandeira
na Academia
Brasileira de
STÉPHANE Letras em 1942,
ano do centenário

MALLARMÉ
de nascimento do
poeta francês.
44 CULT - novembro/98
Ao lado, Manuel Bandeira na
Academia Brasileira de Letras,
em 1966. Na página oposta,
Mallarmé fotografado por
Nadar, por volta de 1882.

Não foi sem grandes perplexidades duzida ao seu ritmo essencial, no sentido se roulait le maigre chat noir; les grands feux!
que recebi do presidente desta casa o secreto das aparências do mundo era para et la bonne aux bras rouges versant les
encargo de celebrar a passagem do ele a única tarefa que autenticava a charbons, et le bruit de ces charbons tombant
centenário de Mallarmé. Como fazê-lo? existência terrestre do verdadeiro artista. du seau de tôle dans la corbeille de fer, le matin
A homenagem mais cara do mestre seria A poesia foi o seu culto, e a sua iniciação – alors que le facteur frappait le double coup
esculpir em soneto um túmulo à maneira literária na adolescência assumiu o solennel, qui me faisait vivre! J’ai revu par
dos que ele próprio levantou, em versos aspecto de uma clausura religiosa. Mal les fenêtres ces arbres malades du square désert
imperecíveis, à memória de Poe, de saído do liceu de Sens, onde terminou os – j’ai vu le large, si souvent traversé cet hier-
Baudelaire e de Verlaine. Seria para mim estudos, e tendo aprendido o inglês para là, grelottant sur le pont du steamer mouillé
demasiada ambição: le pietre serait châtié. ler Poe no original, partiu para a Ingla- de bruine et noirci de fumée – avec ma pauvre
Os versos de Mallarmé são daqueles que terra, a fim de fugir principalmente (toda bien-aimée errante, en habits de voyageuse,
nos introduzem de golpe na cidadela a sua vida e obra foi sobretudo uma evasão une longue robe terne de couleur de la poussière
mesma da poesia. Temi o desastre numa do “vomissement impur de la bêtise”), mas des routes, un manteau qui colait humide à ses
tentativa de interpretação das palavras também para aprender a falar o inglês e épaules froides, un de ces chapeaux de paille
magistrais de Valéry e Claudel, para só ensiná-lo num curso, sem outro ganha- sans plume et presque sans rubans, que les
citar dois críticos que são dois grandes pão obrigado, conquistando assim a riches dames jettent en arrivant, tant ils son
poetas. Relembrar-lhe a vida exemplar? independência literária. Tinha então vinte déchiquetés par l’air de la mer et les pauvres
“Ordonner, disse ele, en fragments intelli- anos e já havia se casado. Um ano depois bien-aimées regarnissent pour bien des saisons
gibles et probables, pour la traduire, la vie de regressar à França, evocava ao calor encore...”. Cito o trecho para mostrar, aos
d’autrui, est tout juste impertinent”. Mas já de seu cachimbo a Londres onde viveu que só conhecem Mallarmé pela sua
que o fez a propósito de Rimbaud, pobremente de lições de francês, muito fama de hermetismo, a funda ternura
julguei-me autorizado à ce genre de méfait. só, porque a esposa não pudera acom- existente nesse homem que poderia, se
Singular momento este, de universal panhá-lo e visitava-o de raro em raro. quisesse, ter conquistado o grande
convulsão, para falar de um homem que Mallarmé amava os nevoeiros londrinos, público, mas preferiu isolar-se, quase
no seu tempo deu resolutamente as costas inseparáveis da cidade, nevoeiros inacessível, no seu altivo sonho de
à vida, considerando a época em que monumentais “qui emmitoufflent nos absoluto. Onde, em qualquer literatura,
viveu, como um interregno para o poeta, cervelles et ont, là-bas, une odeur à eux, quand alguma coisa mais tocante que esse triste
um interregno de efervescência prepa- ils pénètrent sous la croisée”. Essa página chapéu batido “que les pauvres bien-aimées
ratória, em que o seu papel não deveria em que ele revive os seus dias na Inglaterra regarnissent pour bien des saisons encore”?
ser outro senão trabalhar com mistério é das mais simples e das mais comovidas Em setembro de 63 obtinha
en vue de plus tard ou jamais. Trabalhar em que escreveu: “Mon tabac sentait une Mallarmé o certificado de habilitação ao
quê? Na interpretação do universo, pois chambre sombre aux meubles de cuir sau- ensino, e dois meses depois era nomeado
exprimir pela humana linguagem, recon- poudrés par la poussière du charbon sur lesquels professor no colégio de Tournon, com

novembro/98 - CULT 45
Para Mallarmé, a única tarefa Charles Baudelaire,
fotografado por Nadar
que autenticava a existência
do verdadeiro artista era
trabalhar na interpretação do
universo e exprimi-lo pela
humana linguagem. A poesia
foi o seu culto, e sua iniciação
literária assumiu o aspecto de
uma clausura religiosa.

1.700 francos anuais. Começa então seu Qui mire aux grands bassins sa langueur trofe do velho náufrago: non, un coup de
martírio. Era a independência literária [infinie dés, jamais, quand bien même lancé dans des
que desejara, mas a que preço! o ramerrão Et laisse, sur l’eau morte où la fauve agonie circonstances éternelles n’abolira le hasard.
de classes em face de alunos desatentos Des feuilles erre au vent et creuse un froid Todavia a visão da obra pura apontou
que o chamavam le bonhomme Mallarmé [sillon, ao poeta o seu caminho, e desde aquela
e chegaram muitas vezes ao desplante dos Se traîner le soleil jaune d’un long rayon. noite de Tournon ele poderia dizer que o
apupos e das pedradas, as manhãs e as exprimirá mais tarde na Prose pour des
tardes perdidas no ofício insulso e fati- Bastaria a Mallarmé persistir a meio
esseintes:
gante, o extenuamento aussitôt que s’allume de sua personalidade para se revelar, como
Glorie du long désir, Idées
la lampe du soir, ô derision! disse Valéry, o que de fato era – o primeiro
Tout en moi s’exaltait devoir
Entretanto, os seus primeiros poemas poeta de seu tempo. Mas ele não nascera
La famille des iridées
– “Les fenêtres”, “Les fleurs”, “Azur”, “Brise senão para tentar o desastre obscuro, para
Surgir à ce nouveau devoir
marine”, – publicados em L ’artiste ou no realizar o Livro a que converge toda a
primeiro Parnasse começavam a despertar a vida, para escrever a versão condensada e Em 65, nascimento de sua filha
atenção e a estima das rodas literárias definitiva do único assunto: l’antagonisme Geneviève, a que devemos os quatorze
parisienses. Eram versos onde se traía ainda du rêve chez l’homme avec les fatalités à son versos de “Don du poème” com o seu mara-
a influência absorvente de Baudelaire, mas existence départies par le malheur, o drama vilhoso alexandrino inicial:
aqui e ali já repontavam as “deliciosas, da impotência criadora, da ação Je t’apporte l’enfant d’une nuit d’Idumée!
pudicas metáforas” mallarmeanas. Assim consciente do artista – o lance de dados – Já aqui vemos aplicado o conceito
em “Soupir”, jogo d’água com a sua parábola em luta com o acidental, com o acaso. orquestral de poesia desenvolvido em
perfeita e aquele sortilégio de dissolver em Foi em Tournon, aos 24 anos, que Mal- prosa nas Divagations: através dos véus da
imagens os elementos esparsos da beleza larmé teve o que chamou “a visão hor- ficção, desprender o assunto de sua
para reordená-los em seus valores essenciais: rível de uma obra pura”, cometeu o estagnação acumulada ou dissolvida com
Mon âme vers ton front où rêve, ô calme pecado “de ver o Sonho em sua nudez arte – começar por uma afirmação como
[soeur, ideal”. Dessa noite de vigília, dessa um pórtico de acordes convidando a que
Un automne jonché de taches de rousseur, iluminação fulminante e dolorosa resul- se componha, em retardos liberados pelo
Et vers le ciel errant de ton oeil angélique tou Igitur, que Mallarmé só leu para eco, a surpresa; ou o inverso: atestar um
Monte, comme dans un jardin alguns raros amigos e nunca publicou, estado de espírito em certo ponto por um
[mélancolique, que Claudel classifica como um drama, sussurro de dúvidas para que delas saia
Fidèle, un blanc jet d’eau soupire vers “o mais belo, o mais comovente produ- um esplendor definitivo simples. O pri-
[l’Azur! zido no século XIX”. Trinta anos depois meiro processo, empregado em Don du
– Vers l’Azur attendri d’Octobre pâle et a vitória do herói criança – le hasard poème como em L ’après-midi d’un faune
[pur vaincu mot par mot – se converte na catás- (Ces nymphes, je les veux perpétuer!); o

46 CULT - novembro/98
Mallarmé
Seus primeiros poemas cedo em 1896
despertaram a atenção e a
estima das rodas literárias
parisienses. Eram versos onde
se traía ainda a influência
absorvente de Baudelaire, mas
aqui e ali já repontavam as
deliciosas, pudicas metáforas Vida e obra
mallarmeanas.
1842 Nascimento de Étienne
Mallarmé – nome verda-
deiro do poeta Stéphane
Mallarmé – no dia 18 de
março, em Paris, filho do
funcionário público
Numa Florent Joseph
Mallarmé e de Élisabeth
segundo mais freqüente, em vários título até os anúncios, tudo, salvo Félicie Desmolins.
sonetos, rematados por um verso que se algumas colaborações literárias, era da
diria organizar todo o poema numa própria mão de Mallarmé. A revis- 1847 Morte de sua mãe.
constelação de que ele fica sendo a estrela tazinha definia-se como uma gazeta do
alfa: mundo e da família, onde se promul-
1852 Estuda no pensionato dos
Ainsi qu’une joyeuse et tutélaire torche... gavam as leis e verdadeiros princípios
padres das Écoles
De scintillations sitôt le septuor... da vida estética, com o exame dos
Chrétiennes de Passy.
Une rose dans les ténèbres... menores detalhes: “toilettes”, jóias,
mobiliário e até espetáculos e “menus”
Em 66 as manobras, junto à admi- 1853 Seu pai é transferido para
de jantares. Oito páginas de pequeno
nistração, de alguns pais de alunos a cidade de Sens.
formato in-folio, capa azul-turquesa, e
escandalizados com os versos do pro- no texto, aqui e ali, vinhetas desenhadas
fessor-poeta conseguem, senão a demis- 1854 Escreve seus primeiros
por Morin. Durante nove números,
são, ao menos a remoção do funcionário poemas.
Mallarmé despendeu em benefício de
para Besançon, onde a vida se lhe tornou suas caras leitoras desconhecidas, de ses
ainda mais dura, longe de seus caros très vraies chères abonnées, os tesouros de 1856 Estuda no liceu de Sens
felibres, Mistral, Aubanel, Roumanille, suas delicadezas de poeta. As descrições como aluno interno.
Gras, Roumieux. Felizmente um ano dos vestidos na Dernière Mode têm o
depois volta ele ao sul e até 72 assiste sabor de poemas compostos especial- 1858 Depois de terminar o
em Avignon. No mês de outubro, graças mente para lisonjear a imaginação curso secundário, estuda
ao historiador Seignobos, seu ex-aluno feminina. As senhoras aqui presentes retórica e lógica no
de Tournon, que aliás o considerava uma gostarão de ouvir, estou certo, um ou mesmo liceu.
espécie de degenerado inofensivo, Mal- dois grandes exemplos dessa literatura
larmé obtém a nomeação para o liceu de modas introduzida no domínio da
Fontanes, depois Condorcet, em Paris. grande arte de um grande poeta:
A vinda para a capital encheu-o de Toilette de dîner (en cachemire, je l’ai
grandes esperanças, e houve um mo- vue rose, comme vous pouvez la voir bleue):
mento mesmo que aquele Hamlet- le tablier de la première jupe est garni de
professor, como lhe chamou Remy de maint bouillon horizontal, froncé à deux fils
Gourmont, teve a ilusão de poder avec têtes étroites de chaque côté... Continua
evadir-se do ingrato ofício de ensinar a descrição e acaba estas palavras que
inglês em liceus, lançando uma revista esclarecem a origem do costume atual dos Mallarmé,
– La Dernière Mode, na qual, desde o Worth e das Schiapparelli, de dar nome por ele mesmo

novembro/98 - CULT 47
Mallarmé foi, como disse Paul Valéry, que
Valéry, o primeiro poeta de costumava visitar
Mallarmé nos últimos
seu tempo. Mas ele não anos de vida do poeta

nascera senão para realizar o


Livro a que converge toda a
vida, para escrever a versão
condensada e definitiva do
único assunto: o drama da
impotência criadora. Aos 24
anos Mallarmé teve “a visão
horrível de uma obra pura”.

aos vestidos-modelos: À celle d’entre vous, gratuitamente. Ia algumas vezes à casa O alexandrino de L’après-midi marca o
Mesdames, qui la prèmiere portera cette de Hugo, que gostava de o chamar, rompimento com a técnica oficial
toilette, l’honneur de l’appeler, car un joli beliscando-lhe afetuosamente a orelha, parnasiana. Não que Mallarmé aborre-
usage, datant de quelques jours (a revista é “mon cher poète impressioniste”; avistava- cesse o alexandrino clássico, o alexan-
de 74) veut qu’une robe se nomme de la femme se freqüentemente com Banville, que drino en grande tenue, grande voz da
qui, par son port, charme et distinction, lui a, com Villiers de l’Isle Adam, tinham a tradição, cara a quem não aceitava o
dans le monde, acquis la célébrité et le prestige! preferência entre todos os confrades que banimento de nada que tivesse sido belo
Outro vestido, este bleu-rêve, é assim admirava, e Mallarmé, não obstante os no passado; mas ao lado do órgão
descrito: On n’a qu’à le vouloir, pour se figurer seus pontos de vista e gosto tão venerável queria ele também a maliciosa
une longe jupe à traîne de reps de soie, du bleu requintadamente pessoais, possuía o siringe, instrumento das fugas; queria,
le plus idéal, ce bleu si pâle, à reflets d’opale, raro dom generoso da admiração, distin- ao lado do alexandrino bem ortodoxo
qui enguirlande quelquefois les nuages guindo prontamente em cada um o que na sua cesura regular, uma espécie de jeu
argentés... era digno de apreço e assinalando-o com courant pianoté autour, como um
Não tardou a se desfazer a ilusão do tato impecável. Teve verdadeiramente o acompanhamento musical feito pelo
cronista estético: Mallarmé foi roubado gênio da amizade, exercido em derra- próprio poeta e não permitindo ao verso
de sua iniciativa e do seu trabalho. Je ne mamentos, antes com uma discrição que oficial comparecer senão nas grandes
sais au juste entre les mains de qui va tomber deixava encantados os que dele recebiam ocasiões.
cette feuille, mais tout me fait croire qu’elle uma palavra ou uma linha de louvor. Muitos são os poemas de Mallarmé
va servir à de vagues chantages, à des Nunca disse mal de ninguém nem jamais de interpretação difícil senão impossível.
mariages et à d’autres combinaisons. De fato, revidou a campanha de ridículo que lhe Não assim a sua estética e a sua técnica,
a gazeta caiu nas mãos de uma mulher moviam na imprensa os que não lhe de que podemos colher quase toda a teoria
que fez dela uma revista banal. compreendiam a poesia. nas páginas de prosa das Divagations.
Foi nesse mesmo ano de 74 que Em 75 estava concluído “L’après-midi Não me parece a poesia mallar-
Mallarmé se instalou no famoso aparta- d’un faune”, o qual, na falta do grande meana tão pura quanto se tem afigurado
mento da rue de Rome e alugou em Livro sonhado na memorável noite de aos seus críticos. Certo purificou-a o
Valvins, à beira do Sena e à vista da Tournon, de que Igitur permaneceu poeta de todo elemento estranho ao
floresta de Fontainebleau, uma casinha esboço e Un coup de dés um capítulo que sentido poético essencial, da humana
onde passava as férias. A sua vida era a a ele próprio deixava em estado ver- paixão que chora (porque não se assoa
mais discreta possível: não ia a parte tiginoso, representa a sua realização também? perguntou de uma feita), e
alguma, salvo os concertos dominicais e mais perfeita. O poema deveria ser dito daquilo a que chamou o dom elocutório,
a visita diária, de volta do liceu, ao pintor por Coquelin aîné, pois o poeta e mesmo da mera realidade dos materiais
Manet; não dava colaboração literária imaginara-o absolutamente cênico, não naturais. A este último aspecto é a sua
senão às pequenas revistas de novos e possível no teatro, mas exigindo o teatro. poesia de natureza platônica, no esforço

48 CULT - novembro/98
Água-forte
Teve a ilusão de poder evadir- de Gauguin,

se do ingrato ofício de ensinar


com alusão
a O corvo, de
inglês em liceus, lançando Edgar Allan Poe

uma revista – La Dernière


Mode, uma gazeta do mundo
e da família, na qual tudo saía
de sua própria mão.
1860 Traduz Poe. Trabalha
como funcionário de um
cartório em Sens.

1861 Corteja a governanta alemã


Maria Gerhard, com quem
vai para Londres.

1863 Morte de seu pai. Casa-se


com Maria Gerhard e
de subir dos acidentes à noção pura, cionante, de um estado de alma; as pala- volta para a França como
espécie de metafísica poética em que a vras se iluminam de reflexos recíprocos professor de inglês no
flor, por exemplo, se transcendentaliza como um virtual rastilho de luzes sobre liceu de Tournon.
em l’absente de tous bouquets. A divina pedrarias... Esse caráter aproxima-se da
transposição, obra por excelência do espontaneidade da orquestra; buscar, 1864 Começa a escrever o
poeta, devia ir do fato ao ideal. Mas se o diante de uma ruptura dos grandes drama poético Hérodiade.
conceito de poesia pura exige a ritmos literários e sua dispersão em Nasce sua filha, Françoise
autonomia dela em relação às outras frêmitos articulados, próximos da instru- Geneviève Stéphanie
artes, não se pode falar de pureza em mentação, uma arte de rematar a trans- Mallarmé.
Mallarmé, porque a sua poesia está posição para o livro da sinfonia ou
refeita de elementos plásticos, e nisto ela simplesmente retomar-lhe o que nos 1865 Escreve a primeira versão
é ainda bem parnasiana, e musicais, no pertence: pois não é das sonoridades L’après midi d’un faune.
que consuma, com o seu caráter espiri- elementares dos metais, das cordas e das
tual, o simbolismo. madeiras inegavelmente mas da inte- 1866 Publicação de dez poemas
A poesia mallarmeana é essencial- lectual palavra em seu apogeu, que deve no Parnasse contemporain
mente musical, ele mesmo o declarou. com plenitude e evidência, resultar, (série de antologias da
Musical não no sentido puramente so- como o conjunto das relações em tudo poesia francesa do século
noro ou melodioso, mas no sentido defi- existentes, a Música. Poderia prolongar XIX). Seus versos geram
nido por Boris de Schloezer, ou seja, na as citações, mas essas bastam. Quem não protestos dos pais dos
imanência do conteúdo com a forma. percebe a face orquestral, na poesia de alunos de Tournon e
Neste sentido diz o crítico russo, que é Mallarmé, não poderá compreendê-la; Mallarmé é transferido para
autoridade em música, um texto pode ser não poderá sentir a beleza do alexan- o liceu de Besançon.
musical apesar de duro aos ouvidos, e a drino Hilare or de cimbale à des poings
esse ângulo a música nos parece como o irrité, e só verá nela a ousadia insólita da
limite da poesia. Mallarmé foi sobretudo imagem. Mas na infinidade dos idiomas
sensível ao lado orquestral da música. A nem sempre o timbre da palavra corres-
sua técnica de poeta é uma orquestração ponde à imagem por ela evocada: Mal-
da linguagem, e o alexandrino foi princi- larmé confessou a sua decepção em face
palmente para ele uma combinação de da perversidade que confere a jour timbre
doze timbres. Toda vez que define a escuro, a nuit timbre claro. Precisamente
poesia, Mallarmé se reporta à música. para remediar essas contradições das
Alguns fragmentos: A Poesia não é senão línguas existe o verso, complemento Geneviève Mallarmé,
a expressão musical, superaguda, emo- superior de cada uma delas na falta do filha do poeta

novembro/98 - CULT 49
Em 1874, Mallarmé se Ao lado, Victor Hugo,
instalou no apartamento da fotografado por Nadar.
À dir., retrato de Mallarmé,
rue de Rome. Não ia a parte pintado por Manet.

alguma, salvo os concertos


dominicais e a visita diária ao
pintor Manet. Ia às vezes à
casa de Victor Hugo, que
gostava de o chamar “mon
cher poète impressioniste”.

idioma supremo em que as palavras Sens-tu le paradis farouche que se fazem versos: é com palavras”.
figurassem materialmente a verdade. A Ainsi qu’un rire enseveli Para Mallarmé, como para todo ver-
Poesia é que dá o verdadeiro timbre às Se couler du coin de ta bouche dadeiro poeta, a poesia confunde-se com
coisas por meio das imagens. E aqui Au fond de l’unanime pli! a linguagem, e, como explicou Valéry, é
entramos em outro domínio, onde o leitor linguagem em estado nascente.
mal dotado de instinto poético se perde Le sceptre des rivages roses Todos esses aspectos, pontos capitais
na incompreensão do poeta. Mallarmé Stagnants sur les soirs d’or, ce l’est, da técnica de Mallarmé, e aquele per-
jogava com as analogias numa espécie de Ce blanc vol fermé que tu poses
pétuo desígnio de transmudar a realidade
contraponto, instituía entre as imagens Contre le feu d’un bracelet.
em sonho, motivo de todos os seus
(e raramente exprimia o primeiro termo Essa incomparável jóia de poesia está devaneios, ou nas noites de vigília no
delas) uma certa relação donde se cheia de imagens audaciosas em sua gabinete da rue de Rome, junto à fulgurante
destacava um terceiro aspecto fusível e extrema delicadeza. Assim ampliar o vai- console, ou em suas horas solitárias na iole
encantatório apresentado à adivinhação. vem do leque no gesto de aproximar e de Valvins, estão presentes nesse poema
Nomear o objeto seria a seu ver suprimir recuar o horizonte. Imagens que re- do fauno, em que renovou magistral-
três quartas partes do gozo do poema, pugnam a tantos, cuja incompreensão se mente o gênero antigo da égloga. Por isso
gozo que nasce da felicidade de adivinhar. assemelha à de certos maus alunos de Thibaudet classificou-o na obra do poeta
A poesia é um sortilégio, uma força de literatura, adolescentes mal iniciados à como le morceau des connaisseurs.
sugestão. No poema feito para sua filha verdade superior da poesia e que riem Pois bem, essa obra-prima, transpa-
Geneviève a palavra “leque” só aparece quando lhes cito a comparação do Cântico rente em seu tema e tão límpida de forma,
no título e seria dispensável: dos Cânticos: “O teu cabelo é como o foi recusada pelo leitor de Lemerre para
O revêuse, pour que je plonge rebanho de cabras que pastam no monte o terceiro fascículo do Parnasse Contem-
Au pur délice sans chemin, de Gilead”. A mesma incompreensão dos porain. E sabeis quem era esse leitor?
Sache, par un subtil mensonge, discípulos de Jesus que, ouvindo-o dizer: Anatole France. O voto de France foi
Garder mon aile dans ta main. “Eu sou o pão que desceu do céu”, se secundado por Coppée e venceu, apesar
Une fraîcheur de crépuscule puseram a murmurar perplexos: “Duro é do protesto de Banville. – Non, ponderou
Te viente à chaque battement. este discurso: quem o pode ouvir?” France, on se moquerait de nous! O mesmo
Dont le coup prisonnier recule Conta Valéry que certa vez o pintor júri condenou um soneto de Verlaine.
L’horizon délicatement Degas se queixou a Mallarmé de ter Que soneto? Aquele, incluído depois em
perdido o dia na vã tentativa de escrever Sagesse, que começa pelo verso famoso:
Vertige! voici que frissonne um soneto. “No entanto”, acrescentou Beauté des femmes, leur faiblesse et ces mains
L’espace comme un grand baiser “não são as idéias que me faltam... Tenho- pâles... A sentença de France: Non, l’auteur
Qui, fou de naître pour personne, as até demais”. Ao que o mestre res- est indigne et les vers sont des plus mauvais
Ne peut jaillir ni s’apaiser. pondeu: “Mas, Degas, não é com idéias qu’on ait vus. Cabe lembrar aqui a dife-

50 CULT - novembro/98
1867 Leciona no liceu de
Avignon.

1871 Retorna a Sens.


Nascimento de seu filho,
Anatole Mallarmé.

1872 Encontro com Rimbaud.

1873 Publica Toast funèbre.

1874 Lançamento do jornal La


dernière mode,
inteiramente redigido por
Mallarmé.
Capa de edição
de La Dernière Mode

rença de tratamento dispensada a Verlaine afeiçoam como um ídolo. O mestre


por France e por Mallarmé. France, cuja recebia-os às terças-feiras. Quem quiser
libertinagem de autor e de homem todos sentir o encanto dessas noites de inti-
nós conhecemos, puritaníssimo diante midade intelectual com o poeta não tem
dos erros de seu desgraçado confrade; mais que ler as páginas de Camille Mau-
Mallarmé, tão puro em sua arte e na sua clair no seu livro Mallarmé chez lui. O 1875 Publica a tradução do
vida, salvo o leve pecadilho com Méry próprio Mallarmé vinha abrir a porta aos poema O corvo, de Poe,
Laurent, mais tema de luminosos sonetos visitantes e introduzia-os num aposento com ilustrações de
do que de evasão na sensualidade, com- que era ao mesmo tempo salão e sala de Manet.
preendendo fraternalmente a atitude do jantar: um fogão de faiança a um canto,
homem e até exaltando-a como a única alguns móveis de nogueira e ao centro 1876 A versão definitiva de
numa época em que o poeta está fora da uma mesa onde pousava um vaso da L’après midi d’un faune é
lei: a de aceitar todas as dores e todas as China cheio de tabaco; nas paredes uma publicada com
misérias com uma tão soberba crânerie. paisagem de rio de Monet, um desenho ilustrações de Manet.
Mallarmé e Verlaine foram excluídos do de Manet representando Hamlet, uma
Parnasse, onde tiveram entrada D’Artois, água-forte de Whistler, o retrato de 1879 Morte do filho Anatole.
Delthil, Dujolier, Marc, Marrot, Grand- Mallarmé por Manet, uma aquarela de
moujin, Pigeon e Popelin. Já ouvistes Berthe Morissot e um pastel de flores 1883 Verlaine publica o
falar nesses nomes? Não, de certo. Então pintado por Odilon Redon; sobre o terceiro artigo da série
moquons-nous d’Anatole France. guarda-louça um gesso de Rodin, ninfa Poètes maudits, tendo por
O poeta, tão atormentado na sua nua agarrada por um fauno, e uma tema a obra de Mallarmé.
ingrata labuta de professor que todas as esculturazinha em madeira de Gauguin.
tardes ao voltar do liceu nunca atraves- Às 10 horas, Geneviève, a filha do poeta,
sava a ponte sem que o assaltasse a entrava, grande, silenciosa e sorridente,
vontade de acabar com a vida atirando-se trazendo o grog para os visitantes, e se
ao Sena, viveu desconhecido e solitário retirava logo. Só então começava a
até que o retrato entusiástico de Verlaine conversação, ou antes o monólogo, por-
em Les poètes maudits e as páginas de que os amigos e admiradores do poeta se
Huysmans em À rebours vieram revelá-lo limitavam a lançar-lhe alguma deixa para
ao grande público. Se a compreensão não ouvi-lo discorrer. Quando Mauclair
chegou, todavia, a partir de então, em 84, principiou a freqüentar as terças-feiras do
Ilustração de Manet
Mallarmé começa a sentir em torno de si mestre, tinha Mallarmé 48 anos, mas para O corvo,
a veneração de um grupo de moços que o parecia mais velho. Estatura mediana, traduzido por Mallarmé

novembro/98 - CULT 51
Em 1875, estava concluído Caricatura de uma
L’après-midi d’un faune, edição do poema
L’après-midi d’un faune
poema que marca sua ruptura
formal com o parnasianismo.
Imaginara-o absolutamente
cênico, não possível no teatro,
mas exigindo o teatro. É sua
realização mais perfeita.

barba e cabelos grisalhos, bigode espesso, mestre: “Wilde viendra chez vous. Serrez vírgula como para marcar entre os dois
olhos penetrantes, muito afastados, l’argenterie”. um instante de reflexão, de escolha. Ainsi,
orelhas de fauno, voz melodiosa, de um “Mallarmé”, conta Mauclair, “não par ce midi, l’autre dimanche, automnal... le
timbre raro, com súbitas notas agudas, nos ensinava. Mas fazia melhor do que pauvre trumeau, suranné, avec le rien de
talvez já sintoma da moléstia de laringe isso: pelo encanto de sua palavra e de sua mystère, indispensable... plutôt que tendre le
que o vitimaria. Sorriso de extraordinário pessoa punha cada um de nós em estado nuage, précieux... Escrever para ele era
encanto. Vestia sempre roupa preta, de poesia”. Foi essa mocidade que, em mobilizar toda a sorte de sugestões
comprada pronta, lavallière preta e nos 97, elevou Mallarmé ao posto de Príncipe fugitivas em torno da idéia e nessa
ombros, porque era muito friorento, um dos Poetas, vago com a morte de Verlaine. mobilização a sua disposição habitual era
plaid. Na atitude em que o representa o Nada, porém, desarmava a incom- refugar a solução imediata com a sua luz
famoso retrato de Whistler, encostava-se preensão. É verdade que o poeta por seu crua, a solução vulgar, pois vulgaire l’est es
ao fogão e ficava em pé todo o tempo, lado nada fazia para desarmá-la. Ao à quoi on decérne, pas plus, un caractère
fumando o seu inseparável cachimbo. contrário, cada vez se envolvia em névoas immédiat. Eis um bom exemplo da sua
Quem eram os visitantes? Henri de mais densas, ironicamente satisfeito de sintaxe. Falando da Academia Francesa,
Régnier, que Remy de Gourmont conta afastar de sua obra os espíritos superficiais, prezada tão alto que o ato de a nivelar às
ter visto corar ao receber o primeiro encantados de ver num escrito que nada outras classes do Instituto lhe parecia de
discreto elogio de Mallarmé, Gide, que lhes concerne à primeira vista. Diante da mão política e sacrílega, começou com
acabara de publicar Les cahiers d’André agressão de inteligibilidade, preferia estas palavras: La plus haute institution
Walter, Pierre Louÿs, André Fointainas, retorquir que a maioria dos contem- puisque la royauté finie et les empires, grave,
Odilon Redon, Albert Mockel, Viélé porâneos não sabe ler senão os jornais. superbe, rituelle est, n’attendez la Chambre
Griffin, Stuart Merrill, Edouard Dujar- Às obscuridades naturais resultantes représentative, directe, du pays si une autre
din, o médico Edouard Bonniot, que de seu conceito de poesia, juntou as de dure que tarder à nommer paraît irrespectuex,
depois veio a casar com Geneviève, uma sintaxe própria, substancial e l’Académie. Este curto período resume
Valéry, que confessou ter sentido diante concentrada como uma fórmula algé- todo o processo mallarmeano de compo-
da obra e da figura do mestre “a progres- brica. O que ele escrevia não parece pro- sição, de organização de um sistema de
são fulminante de uma conquista espiri- duto do pensamento, mas o próprio incidentes em torno de uma idéia e
tual definitiva”. E outros. Às vezes apare- pensar em sua origem e evolução dialé- tendendo não à cadência redonda, mas a
ciam estrangeiros de passagem por Paris: tica, fecundo em incidentes atentos em se um remate agudo com o bico da pena
o inglês Symonds, o alemão Stefan organizar num sistema indeformável à pingando o ponto final. Este último
George, o dinamarquês Brandes. Oscar balancement prévu d’inversions. Despojava- processo, tão inabitual na prosa francesa
Wilde anunciou-se uma noite, o que pro- se por elipse o mais possível dos termos desde a reforma de Guez de Balzac, é
vocou um petit-bleu do malicioso Whistler da relação. Gostava de separar, às vezes, freqüentíssimo em Mallarmé. A análise
com a recomendação cautelosa ao o adjetivo qualificativo ou uma simples do segredo é aliás fácil: um substantivo,

52 CULT - novembro/98
A poesia mallarmeana é Méry Laurent,
amante do poeta
essencialmente musical, não
no sentido puramente sonoro
ou melodioso, mas na
imanência do conteúdo com
a forma. Sua técnica de poeta
é uma orquestração da
linguagem, e o alexandrino foi
para ele uma combinação de 1884 É nomeado professor de
doze timbres. inglês no liceu Janson-de-
Sailly.

1889 Mantém um
relacionamento amoroso
com Méry Laurent.
Mallarmé e Manet visitam
Monet em Giverny.
de uma ou duas sílabas, separado de sua brar festas e aniversários, para enviar um
regência por uma longa incidência, presente – flores ou frutas, ovos de Páscoa, 1891 No auge da glória
termina bruscamente o período: À côté de um livro, um leque, um retrato, Mal- literária, recebe a visita
l’Amérique que vous et moi portons haut dans larmé fazia-o sempre acompanhar de de Paul Valéry.
notre estime (il est, hélas! comme un pays dans alguns versos onde punha a dupla deli-
un pays), j’en sais une à jamais offusquée par cadeza do seu afeto e da sua arte. A ima- 1894 Primeira audição do
cet état trop vif, Poe... Outro exemplo: gem do horizonte no leque de mlle. Prélude à L’après midi
Constater que la notation de vérités ou de Mallarmé reaparece com uma nova graça d’un faune, do compositor
sentiments pratiquée avec une justesse presque nesta quadra: Claude Debussy, baseado
abstraite, ou simplement littéraire dans le Jadis frôlant avec émoi na obra de Mallarmé.
vieux sens du mot, trouve, à la rampe, la vie. Ton dos de licorne ou de fée,
Todos esses traços pessoais de sintaxe Aile ancienne, donne-moi 1897 Publicação de Un coup
dificultam a leitura de Mallarmé, mas L’horizon dans une bouffée. de dés.
essa espécie de obscuridade se dissipa com Algumas dessas quadras são madri-
alguma prática do autor. Afinal a sintaxe gais de uma sutileza jamais excedida: 1898 Retoma o trabalho da
é um hábito, e como condenar por Avec mon souhait le plus tendre, Hérodiade, que
ininteligíveis as singularidades do poeta Comme il sied entre vieux amis, permanecerá inacabada.
em nome de uma sintaxe oficial que Dans cette main qu’on aime à tendre Sofre uma crise respiratória
admite o anacoluto? A sintaxe de Mal- Je dépose le fruit permis. e morre em Valvins no dia
larmé reagiu contra a sintaxe corrente do 9 de setembro.
século XIX para acentuar os mil cam- Ces vers qui se ressembleront!
biantes do ato de pensar, aos quais corres- Prêtez-leur la voix spontanée
pondiam nos séculos anteriores outras De dire, moins que votre front,
tantas formas de construção, ricas de Le mensonge de toute année.
expressividade, e infelizmente banidas da Um copo de água lhe suscita este
linguagem escrita em nome de uma cristal do mais puro brilho mallarmeano:
clareza tão empobrecedora do mistério Ta lèvre contre le cristal
poético da palavra. Gorgée à gorgée y compose
O austero conceito de arte a que o Le souvenir pourpre et vital
poeta sacrificou materialmente a sua vida, De la moins éphémère rose.
não admitiu nunca outra diversão senão Nesses momentos de détente no seu
aquelas deliciosas bagatelas por ele árduo esforço para o livre ideal, o poeta
chamadas vers de circonstance: para cele- se permite até o sorriso de um trocadilho: A casa do poeta em Valvins

novembro/98 - CULT 53
Diante da agressão de Auto-retrato

inteligibilidade, Mallarmé de Auguste Renoir, a quem


Mallarmé costumava mandar
preferia retorquir que os seus envelopes póeticos

contemporâneos não sabem


ler senão os jornais. O que ele
escrevia não parece produto
do pensamento, mas o
próprio pensar em sua
origem e evolução dialética.

Ici même l’humble greffier Que rêve mon ami Verlaine Facteur qui de l’état émanes
Atteste la mélancolie Ru’ Didot, Hôpital Broussais. C’est au neuf que nous nous plaisons
Qui le prend d’ortographier De te lancer, Boulevard Lannes,
Julie autrement que Jolie. L ’âge aidant à m’appensantir, À la seule entre les maisons.
Il faut que toi, ma pensée, ailles
Às vezes lhe bastam apenas dois versos Seule rue, 11, de Traktir, Estes últimos endereços não levavam
de oito sílabas para captar o infinito da Chez l’aimable Monsieur Séailles. o nome da destinatária, só escrito num
aurora ou de um rosto feminino: impessoal e irônico:
Tends-nous aujourd’hui comme joue Leur rire avec la même gamme Paris, chez Madame Méry
Cette rose où l’aube se joue. Sonnera si tu te rendis Laurent, qui vit loin des profanes
Chez Monsieur Whistler et Madame, Dans sa maisonnette very
E enviando uma redezinha de pesca: Rue antique du Bac 110. Select du 9 Boulevard Lannes.
Je vous rends, Claire de Paris,
Le filet, mais j’y reste pris. Até aqui temos apenas o jogo verbal, Por mais óbvio que seja nessas ba-
que não exclui o balancement d’inventions gatelas o desejo de brincar, há sempre
Um dia a relação evidente entre o habitual na sua grande arte. Mas os dois nelas aquela intenção que Mallarmé pôs
formato dos envelopes e a disposição de endereços seguintes, feitos para pintores em seus poemas mais ambiciosos, isto é,
uma quadra levou Mallarmé, por puro queridos, já são autênticos poemas: a de traduzir o fugaz e o súbito em idéia,
sentimento estético, a escrever em versos Ville des Arts, près l’Avenue de isolar para os olhos um sinal da esparsa
os endereços das cartas que mandava aos De Clichy, peint Monsieur Renoir beleza geral. Pode-se dizer que depois de
amigos. E convém que se diga, para Qui devant une épaule nue Hérodiade e de L ’après-midi d’un faune, e
honra dos Correios de França, que Broie autre chose que du noir. excetuados o soneto do Cisne e o que
nenhuma deixou de chegar ao destina-
Au cinquante-cinq, avenue começa pelo verso Quand l’ombre menaça
tário, por mais mallarmeano que fosse o
Bugeaud, ce gracieux Helleu de la fatale loi, e o poema tipográfico do
endereço, o que sem dúvida deve ter
Peint d’une couleur inconnue Coup de dés, toda a obra poética de
consolado um pouco o poeta da agressão
Entre le délice et le bleu. Mallarmé são versos de circunstância, em
de obscuridade.
que no fundo ele como que descansava
Alguns exemplos:
A casa nº 9 do Boulevard Lannes ficou da sua eterna meditação sobre o grande
Courez, les facteurs, demandez
Afin qu’il foule ma pelouse imortalizada em várias quadras, tanto tema único.
Monsieur Francois Coppée, un des quanto em vários sonetos, fulgurantes e Em 85, depois de passar pelo liceu
Quarante, rue Oudinot, douze. sibilinos, a sua locatária, por quem o Janson-de-Sailly, foi o professor de inglês
coração do poeta ardeu numa chama, de transferido para o Collège Rollin, onde
Je te lance mon pied vers l’aine, que fez confidente a administração dos permaneceu até à sua jubilação em 93. O
Facteur, si tu ne vas où c’est Correios. Pois não é confidência dizer: seu pedido de aposentadoria é um docu-

54 CULT - novembro/98
A relação entre o formato dos Obras de Mallarmé na França
envelopes e a disposição de •Oeuvres complètes, Paris, Gallimard,
uma quadra o levou a escrever Bibliothèque de la Pléiade.
•Correspondance, organizée par Henri
em versos os endereços das Mondor et L.J. Austin, Paris,
cartas que mandava aos amigos. Gallimard.
•Propos sur la poésie, org. par H.
Para honra dos correios da Mondor, Monaco, Rocher.
França, nenhuma deixou de •Le “Livre” de Mallarmé, Paris,
Gallimard.
chegar ao destinatário, por mais
mallarmeano que fosse o Mallarmé no Brasil
endereço. •Mallarmé, traduções e ensaios de
Augusto de Campos, Decio Pignatari e
Haroldo de Campos, Ed. Perspectiva.
•Poesia-Experiência, traduções e ensaio
de Mário Faustino, Ed. Perspectiva.
•Poemas, organização e tradução de
José Lino Grünewald, Ed. Nova
Fronteira.
•Contos indianos, tradução de Yolanda
Steidl de Toledo, Ed Experimento.
mento comovente em sua digna sim- encanta par une fidélité à tout ce qui fut une •O espelho interior. O mito solar nos
plicidade: “Après trente ans de service, je me simple et superbe tradition et ni gêne ni ne Contos indianos de Mallarmé, de Lucia
Fabrini de Almeida, Ed. Annablume.
trouve à cause d’un état maladif que détermine masque l’avenir.
•Prosas de Mallarmé, tradução de
la fatigue de l’enseignement, arrêté dans mes Minhas senhoras e meus senhores, Dorothée de Bruchard, Ed. Paraula.
fonctions et incapable de continuer, quoique je chegando ao fim destas pobres palavras, •Brinde fúnebre e prosa, tradução e
n’aie que cinquante et un ans et demi d’âge...” dom obscuro à glória do grande artista anotações de Júlio Castañon
Mas o cansaço de Mallarmé não o de França, sinto que o meu caro amigo, o Guimarães, Ed. Sette Letras.
incapacitava tão-somente para o ensino: ilustre Presidente desta casa, fiou demais Livros sobre Mallarmé fora
incapacitava-o também para a obra da minha qualidade de poeta. Reli o do Brasil
sonhada na vigília de Tournon. O poeta mestre muitas vezes, li tudo o que pude •La métaphore dans l’oeuvre de Stéphane
foge de Paris e se recolhe à solidão da achar sobre ele. Mas de toda essa apli- Mallarmé, de Deborah Amelia Kirk
casinha de Valvins. Foi lá que concluiu, cação não pude tirar senão o conforto de Aish, Paris, Droz, 1938.
em 97, Un coup de dés, tão estranho a viver durante algumas semanas na som- •L’entretien infini, de Maurice Blanchot,
todos os aspectos que o próprio Mal- bra do morto inesquecível. Guardo a Paris, Gallimard, l969.
larmé, lendo-o para um amigo, per- impressão de ter freqüentado um pouco •L’oeuvre de Mallarmé. Un coup de dés,
de Robert Greer Cohn, Paris, Les
guntou-lhe depois: – Est-ce que cela ne o salãozinho da rue de Rome, de ter Lettres, 1951.
vous parâit tout à fait insensé? N’est-ce pas ouvido o mestre dizer através das fumaças •Vues sur Mallarmé, de Robert Greer
un acte de démence? do seu cachimbo as palavras que nos Cohn, Paris, Nizet, 1991.
É de fato um ato de demência mas o confirmam na dignidade do labor poé- •La dissémination, de Jacques Derrida,
amigo poderia responder-lhe com as tico. E vejo mais claro do que antes aquela Paris, Seuil, 1972.
palavras de Novalis: “O poeta é ver- plumazinha que se salvou da catástrofe •La religion de Mallarmé, de Bertrand
Marchal, Paris, Corti, 1988.
dadeiramente insensato, e é por isso que do Coup de dés, pluma certamente caída •Vie de Mallarmé, de Henri Mondor,
tudo acontece realmente nele. O poeta da gorra de Hamlet, frémissement vers Paris, Gallimard, 33e édition, 1941.
representa, no sentido próprio da pa- l’idée, pousar, misteriosa e eterna no céu •Vingt poèmes de Stéphane Mallarmé, de
lavra, o sujeito-objeto: a alma deste da mais alta poesia. E. Noulet, Genève, Droz, 1967.
mundo”. •L ’univers imaginaire de Mallarmé, de
No dia 9 de setembro de 98 o Mestre Copyright © Antonio Manuel Bandeira Jean Pierre Richard, Paris, Éditions du
Seuil, 1961.
morria quase subitamente num espasmo Cardoso
•Grammaire de Mallarmé, de Jacques
da laringe. Morria sem realizar o sonho Este ensaio foi publicado recentemente na
Scherer, Paris, Éd. A.G. Nizet, 1977.
da juventude, mas deixando à posteridade antologia Seleta de prosa (editora Nova •Variété 1 et 2, de Paul Valéry, Paris,
uma obra da natureza daquelas que lhe Fronteira), que reúne textos de Manuel Gallimard, Colléction Idées, 1978.
mereciam, sobre todas, a simpatia: obra Bandeira organizados por Júlio Castañon •La révolution du langage poétique, de
restrita e perfeita, onde há uma arte que Guimarães Julia Kristeva, Paris, Seuil, 1974.

novembro/98 - CULT 55
Um café com
A trinca do Curvelo voltou a se
reunir. E também pode-se dizer que a
velha boemia carioca com seus estranhos
personagens, como o místico Jayme
Ovalle, está novamente ao alcance de
qualquer leitor. Depois de muitos anos
longe das livrarias, a crônica, a melhor
crônica, de Manuel Bandeira, com alguns
de seus ensaios e a íntegra de Itinerário de
Pasárgada surgem no livro Seleta de prosa,
organizado pelo crítico Júlio Castañon
Guimarães e publicado pela Nova Fron-
teira. A obra de fato saiu no ano passado
com o carimbinho do MEC, porém,
agora, chega às livrarias. Mais que na
hora, pois a prosa de Bandeira, além de
iluminar muito de sua poesia, é sempre
saborosa (basta ler o ensaio “O
centenário de Stéphane Mallarmé”, que
a CULT publica neste número).
O livro aparece como uma home-
nagem aos 30 anos de morte do poeta.
Bandeira morreu na sua adorada Rio de
Janeiro, no dia 13 de outubro de 1968,
aos 82 anos (para quem acreditava que
não passaria dos 19, por causa da turber-
culose, Bandeira acabou sendo um desses
premiados do céu, tendo uma “sobrevida”
invejável – hoje em dia algo quase
Bandeira no Rio de Janeiro, década de 60 impensável até mesmo para quem não
fuma, não bebe e tem a saúde de um
Como homenagem aos 30 anos da morte de Manuel atleta). Os assíduos de Bandeira tinham
contato com sua crônica através da velha
Bandeira, Seleta de prosa reúne crônicas e ensaios do edição da Editora José Aguilar, de 1958,
ainda preparada pelo próprio poeta; na
poeta brasileiro, incluindo conferência sobre Mallarmé edição posterior, em um só volume, onde
muito texto acabou sendo descartado; e,
Heitor Ferraz por fim, na organização feita por Carlos
Drummond de Andrade em Andorinha,
andorinha.
Seleta de prosa Essa nova edição, apesar de alguns
Manuel Bandeira deslizes de editoração, como não incluir
org. Júlio C. Guimarães um índice das crônicas, somente das
Nova Fronteira partes, e do acabamento editorial deixar
596 pág. – R$ 34,80 a desejar, ela é sem dúvida uma dessas
obras que reaparecem para se tornar,

56 CULT - novembro/98
Bandeira
novamente, leitura obrigatória para para a Editora José Aguilar. Na crônica Esse profundo conhecimento do
qualquer poeta ou escritor. Bandeira foi “Carlos Drummond de Andrade”, verso também lhe serviu para escrever o
um dos grandes mestres da crônica Bandeira comenta, numa deliciosa prosa brilhante verbete “A versificação em
brasileira, assim como foram Rubem de café, de conversa entre amigos, o língua portuguesa”, publicado em 1960,
Braga e Otto Lara Resende. Para o surgimento de Alguma poesia, “um livro na enciclopédia Delta Larousse e que
poeta, como ele mais de uma vez confi- que ficará como um dos mais puros da agora aparece incluído nessa Seleta. Um
denciou aos seus amigos, esse era seu nossa poesia”. Ele já observa a atuação texto que durante anos circulava pelas
ganha-pão. Mas um ganha-pão bastante corrosiva do humor de Drummond, universidades em cópias xerocadas. E
prazeroso, já que era nas crônicas que contrabalançando com alguma ternura: havia até mesmo quem cobrasse boa e
ele repassava suas leituras, seus comen- “De ordinário ironia e ternura agem na alta quantia pelo volume da enciclopédia
tários sobre o cotidiano, traçava o poesia de Carlos Drummond de Andrade no qual constava esse texto. Só esse
quadro da ebulição e das discussões como um jogo automático de alavancas exemplo já caracteriza a importância do
modernistas chegando até o concre- de estabilização. Não há manobra falsa livro preparado por Castañon
tismo, sempre vazado por seu estilo de nesse aparelho admirável de lirismo”. E Guimarães.
conversa-inteligente. continua: “Não fosse esse senso de humor O ensaio “O centenário de Stéphane
Sobre os modernistas, é interessante e a poesia deste livro seria de uma Mallarmé” que a CULT está publicando
notar como as escolhas de uma época melancolia intolerável, senão mortal”. também consta nessa nova edição da prosa
foram marcantes e determinantes para a Nessa frase, encontra-se o estilo franco bandeiriana. Ele havia sido pronunciado
história da poesia brasileira. Num de seus pelo poeta na Academia Brasileira de
de Bandeira, que perpassa cada página
ensaios mais famosos, “A poesia de 1930”, Letras (Bandeira foi eleito para a cadeira
desse livro.
Mário de Andrade analisava o surgi- 24, em 1940. Hoje, ela é ocupada pelo
Outra obra fundamental de Bandeira
mento de quatro livros importantes: Algu- crítico de teatro Sábato Magaldi). Depois,
que pode ser encontrada em Seleta de
ma poesia, de Drummond, Libertinagem, o texto foi incluído no volume “De poetas
prosa é o livro autobiográfico Itinerário de
de Bandeira, Pássaro cego, de Augusto e de poesia”, publicado pelo MEC em
Frederico Schmidt e Poemas, de Murilo Pasárgada, publicado originalmente em
1954, com capa concebida e realizada por 1954. Nesse ensaio, Bandeira, mais do que
Mendes. Em “Crônicas da província do sobre Mallarmé, acabava escrevendo
Brasil”, de 1937, incluído nesse novo Carlos Drummond de Andrade. Um caso
raro dentro da poesia brasileira, ou seja, sobre sua relação amorosa e livre com a
livro, Bandeira faz um caminho muito poesia, deliciando-se mesmo ao comentar
parecido, também comentando uma reflexão de um poeta importante
sobre sua formação literária e sobre as os versos de circunstância do poeta
Drummond, Schmidt e o próprio Mário francês. Coisa que o próprio Bandeira foi
de Remate de males. Curiosamente, os correntes poéticas que agiam dentro da
poesia brasileira. Itinerário é daqueles um dos mestres na literatura brasileira
mesmos poetas que chamaram a atenção com o seu Mafuá de Malungo. E ao falar
do francês Roger Bastide. Acaba havendo livros que não só falam sobre a vida do
próprio poeta, sobre o seu aprendizado sobre isso, acaba falando de sua própria
um verdadeiro diálogo de eleição e des- visão poética: “Por mais óbvio que seja
carte entre esses textos. No caso de Mário da poesia, mas é mesmo um verdadeiro
manual sobre poesia. Ao contar sobre a nessas bagatelas o desejo de brincar, há
e Bandeira é bastante evidente, já que os
composição de seus poemas, Bandeira vai sempre nelas aquela intenção que Mal-
dois mantiveram uma correspondência
abrindo seu rico baú de ritmos, passando larmé pôs em seus poemas mais ambi-
intensa e franca, a ser publicada em breve
pelo soneto, pelo seu aprendizado do ciosos, isto é, a de traduzir o fugaz e o
pela Edusp, em que puderam falar livre-
verso livre e até pelas formas das cantigas súbito em idéia, de isolar para os olhos
mente sobre as poéticas em andamento,
trovadorescas. “Li tanto e tão segui- um sinal de esparsa beleza geral”. Será
fazendo um recorte do que era realmente
preciso dizer mais?
importante na poesia nacional. damente aquelas deliciosas cantigas, que
Uma das grandes novidades de Seleta fiquei com a cabeça cheia de ‘velidas’ e
de prosa é o texto de Bandeira sobre ‘mha senhor’ e ‘nula ren’; sonhava com as Heitor Ferraz
Drummond, que havia sido suprimido ondas do mar de Vigo e com as romarias jornalista e poeta, autor de Resumo do dia (Ateliê
pelo próprio poeta quando reuniu sua obra de San Servando.” Editorial) e A mesma noite (Sette Letras)

novembro/98 - CULT 57
A busca do absoluto é tema recorrente de
suas correspondências. Ao lado, Mallarmé
pelo pintor impressionista J. M. Whistler, com
quem o poeta se correspondia.

I mpressiona em Mallarmé, quando


lemos a sua obra e biografia (alicerçada
em boa parte na rica correspondência), a
agudeza com que penetrou em si mesmo
e nas operações do pensamento. Foi tanto
poeta quanto filósofo, por necessidade
imperativa de descobrir e exercer um
desejo essencial.
Se a prosa mallarmaica não deixa de
ser poesia é porque pesquisa e opera leis

O T O D O
do funcionamento da linguagem que
atendem a esse desejo e o reevocam (vale
lembrar das palavras sobre o verso livre
em seu texto “Crise de vers”: “Et
envisageons la dissolution maintenant du

P O É T I C O
nombre officiel, en ce qu’on veut, à l’infini,
pourvu qu’un plaisir s’y réitère.” Assim, o
que é reiteradamente criado pelo estilo
(pontuação, sintaxe, léxico etc.) aparece
conceitualizado ora nos brilhantes “tra-
tados” de, por exemplo, “Crayonné au
A obra em prosa de Mallarmé – que inclui estudos, théâtre, variations sur un sujet, la musique
et les lettres”, e no próprio Un coup de dés
tratados, os Contos indianos e sua correspondência – ou no esboço do Livre, ora em aforismos
que pontuam, à semelhança do que vemos
nos contos de Guimarães Rosa, um texto
opera leis do funcionamento da linguagem que narrativo como Les contes indiens.
“Il y a des lois!”, escrevia o poeta. Que
acarretam a dissolução dos limites de gênero, leis são essas que inauguram a dissolução
da fronteira entre a prosa e a poesia, e,
por outro lado, tornam a sua acurada
resultando em textos que conjugam poesia e filosofia filosofia menos reconhecível do que
pareceria justo?
Há um abismo, propriamente, entre
Rosie Mehoudar Mallarmé, a partir de Igitur, e a

58 CULT - novembro/98
Mallarmé por
Edvard Munch

literatura que se apóia no espelho, na agrega o crítico, o absoluto torna-se est l’agent, et le moteur dirais-je si je ne
reflexão de si concebido como que fora paralisante, um obstáculo à criação, e o répugnais à opérer, en public, le démontage
do fluxo de linguagem e que se põe de tema do desafio da Impotência será impie de la fiction et conséquemment du
anteparo entre o sujeito e o mundo. Um recorrente na obra do autor e na sua mécanisme littéraire, pour étaler la pièce
percurso leva o autor à sua “morte” e correspondência, reunida em vários principale ou rien. Mais, je vénère comment,
descoberta da Idéia pura: “Je viens de volumes, que contêm passagens de pura par une supercherie, on projette, à quelque
passer une année effrayante: ma pensée s’est filosofia e poesia. Um trajeto leva-o élévation défendue et de foudre! le conscient
pensée et est arrivée à une Conception pure. então não exatamente à derrocada do manque chez nous de ce qui là-haut éclate.
Tout ce que, par contrecoup, mon être a absoluto, mas à sua como que inclusão A quoi sert cela -
souffert, pendant cette longue agonie est num fluxo temporal criador. Passagens A un jeu.
inénarrable, mais heuresement, je suis de Igitur, de 1868, sinalizam as soluções En vue qu’une attirance supérieure comme
parfaitement mort, et la région la plus que serão desenvolvidas pela seqüência d’un vide, nous avons droit, le tirant de nous par
impure où mon Esprit puisse s’aventurer de sua obra: “Ce simple fait qu’il peut de l’ennui à l’égard des choses si elles s’établissaient
est l’Eternité, mon Esprit, ce solitaire causer l’ombre en soufflant sur la lumière”, solides et prépondérantes – éperdument les
habituel de sa propre Pureté, que n’obscurcit ou “(...) j’entends les pulsations de mon détache jusqu’à s’en remplir et aussi les douer de
plus même le reflet du Temps.” Essa carta propre coeur.//Je n’aime pas ce bruit: cette resplendissement, à travers l’espace vacant, en
a Cazalis testemunha um primeiro perfection de ma certitude me gêne: tout est des fêtes à volonté et solitaires.
desfecho da crise de Tournon, cidade trop clair, la clarté montre le désir d’une Quant à moi, je ne demande pas moins à
em que morou logo que se casou e onde évasion; tout est trop luisant, j’aimerais l’écriture et vais prouver ce postulat.
iniciava, em 1864, a escrita do poema rentrer en mon Ombre incréée et antérieure”. (...)
Hérodiade, com suas descobertas e Uma passagem de “La musique et les A l’égal de créer: la notion d’un objet,
impasses – noites sem dormir, agonia e lettres”, texto já de 1894, é um dos vários échappant, qui fait défaut.”
sensação de enlouquecimento, seguidas escritos que formulam, por ângulos Nessa reflexão sobre o desejo, lemos
pelo ofício diurno de professor de inglês diversos, o funcionamento harmônico “car cet au-delà en est l’agent, et le moteur”,
gozado pelos alunos e de poucos re- do paradoxo absoluto/devir, ou forma/ e este logo graciosamente nos surpreende
cursos. Na mesma carta, o poeta evoca vazio: como sendo... um nada. Porém, da
sua “lutte terrible avec ce vieux et méchant “Autre chose... ce semble que l’épars natureza também da “coisa”: observe-se
plumage, terrassée, heuresement, Dieu” – frémissement d’une page ne veuille sinon o texto acima. Ora o vazio se fragmenta
e críticos como Charles Mauron vêem surseoir ou palpite d’impatience, à la em centros focais à semelhança de um
nessa metáfora um eco do autoritarismo possibilité d’autre chose. sentido, pontualmente perceptível na
do pai. Mallarmé descobre na impes- Nous savons, captifs d’une formule absolue sucessão dos signos, ora – numa reversão
soalidade do pensar e da Idéia, reflete que, certes, n’est que ce qui est. Incontinent repentina – ele é um grande recipiente
Bertrand Marchal, o absoluto antes écarter cependant, sous un prétexte, le leurre, (espace vacant) para esses signos. O nada
atribuído a um Deus externo. Porém, accuserait notre inconséquence, niant le plaisir congrega assim o sentido de continente
mesmo no próprio sujeito contemplado, que nous voulons prendre: car cet au-delà en imaginário cristalino, como o tinteiro –

novembro/98 - CULT 59
Um mês antes de sua morte,
Mallarmé respondia a uma
pesquisa sobre o “Ideal aos 20
anos”. À esq., o poeta com
essa idade, em 1862.

Desenho de Henri Mondor


sobre foto de Mallarmé,
por volta de 1873

“L’ encrier, cristal comme une conscience, avec Éden, reiteradamente é tirado de “nós” de Mallarmé se presta à captação do
sa goutte, au fond, de ténèbres relative à ce que e se dissemina pela prosa mallarmaica. motor central da fala – existindo como
quelque chose soit: puis, écarte la lampe” Veremos logo mais um pouco de como latência no primeiro segmento. Num
(repare-se um eco aqui do apagar a vela isso se dá. recuo, Mallarmé apreende o desejo do
de Igitur), além de seu sentido de Nem um mês antes de sua morte, personagem de conservar a propagação
dissolução, e o de “coisa”. Greer Cohn Mallarmé respondia à pesquisa de Le da ventura. É do ponto de vista do bonheur
aponta para a origem etimológica de rien: Figaro sobre o “Ideal aos 20 anos”: (qui est muet, em outra passagem) que
rem, que significa “coisa” em latim. “Suffisamment, je me fus fidèle, pour que mon emana a fala. Uma contemplação se abre,
Em carta para René Ghil, Mallarmé humble vie gardât un sens. Le moyen, je le o imediatismo concreto se aquieta um
escrevera: “On ne peut se passer d’Éden”. publie, consiste quotidiennement à épousseter, pouco. Tchandra Rajah, Lakhsmi e o
Em seu livro L’oeuvre de Mallarmé. Un de ma native illumination, l’apport hasardeux leitor “olham” como as coisas do espírito
coup de dés, Cohn assim comenta o penúl- extérieur, qu’on recueille, plutôt, sous le nom funcionam; é ainda um outro motor da
timo verso do poema, à quelque point der- d’expérience. Heureuse ou vaine, ma volonté linguagem.
nier qui le sacre (precedido de avant de des vingt ans survit intacte.” No silêncio ou vazio marcado pela
s’arreter), comparável ao Éden (ou Num tempo em que a pressão do vírgula, a captação do desejo do rei-
absoluto): “A última estrela da conste- imediato e o perigo de sermos suas amante dá-se mediante o aproveitamento
lação, o ponto final do pensamento, um presas alienadas não parecem menores das potencialidades de significação das
repouso, em direção ao qual se dirige a que na época de Mallarmé, é precioso palavras anteriores. Um sema metoní-
constelação como toda a realidade (...) O seguir o desembaraçamento ou de- mico – a linha descendente da sobran-
ponto supremo (sacre) do ato cinético, em puração que a sua escrita faz desse celha franzida e paralisada, consoante a
todos os planos, do plano físico ao ideal, imediato, em busca do essencial. Segue uma retração no espírito – parece inspirar
que é sua razão de ser e sua morte ao uma passagem dos Contos indianos, rees- a metáfora tomberait dans notre bonheur.
mesmo tempo. A convergência de duas critura mallarmaica da versão francesa Outros semas metonímicos – a cor negra,
dimensões seria alcançada imediata e de Mary Summer de histórias clássicas habitual do cabelo indiano, e o pequenino
simultaneamente pela criação desse da Índia. O rei reassegura à amada cil contido em sourcil – fazem eco na
ponto mesmo, mas essa convergência é apreensiva e com ciúme: metáfora une minute noire. Tomberait
assintótica, infinitamente diferida e “Ne froncez pas ce sourcil, il en tomberait aproveita-se do plano físico da sobran-
cumprida.” dans notre bonheur, une minute noire: Lakshmi, celha, fazendo-a cair numa abstração –
Como pólo de atração (en vue qu’une je refusai avec dédain. Je n’aimais pas.” da felicidade, numa quebra surpreendente
attirance supérieure comme d’un vide), o O trecho de M. Summer corres- de registro, numa súbita desmateria-
vazio (cet au-delà) não é tão diferente do pondente é mais curto: lização.
ponto edênico, comentado por Greer “Ne froncez pas le sourcil, Lakshmi, je O esvaziamento do autor manifesta-
Cohn. A unidade de fora atrai a de refusai avec dédain; je ne l’aimais pas.” se seja no silêncio-escuta, indiciado pela
dentro, naquela transmutada. Porque o A vírgula depois de sourcil instaura vírgula, seja na sua concedida transmu-
vazio reiteradamente aparece como um momento de suspensão, que no texto tação no corpo de cada significante

60 CULT - novembro/98
Os achados filosóficos de Mallarmé
lembram conceitos desenvolvidos
posteriormente por autores
como Jacques Lacan (ao lado)

desejado e desejante que então acorre – O “princípio” é compreensível também formarem em sistema. Preferem a di-
“transforma-se o amador na cousa no sentido de o que é, no poeta, o mensão de ato do teatro – “Dont les
amada” (Camões). originário: vazio-fonte de todo sujeito représentations seront le vrai culte moderne;
“L’oeuvre pure implique la disparition (l’enfant est plus près de rien et limpide), que un Livre, explication de l’homme, suffisante
élocutoire du poète, qui cède l’initiative aux vai Verso... à nos plus beaux rêves.” Surpreendem-nos,
mots, par le heurt de leur inégalité mobilisés; O princípio (em outra acepção) que às vezes, na semelhança com o que
ils s’allument de reflets réciproques comme sai de dentro de nós é tão-somente o da veremos depois em Lacan e numa
une virtuelle traînée de feux sur des pierreries, difusão de nosso princípio-origem, sua filosofia que desajola o real como
remplaçant la respiration perceptible en propagação, ir em direção a... E é o que o substância última furtável ao devir e
l’ancien souffle lyrique ou la direction Verso poético, musical ou essencial promulga a ficção. Não se trata de abolir
personnelle enthousiaste de la phrase.” (“Crise cumpre. a referência, que perde apenas o caráter
de vers”) Le principe qui n’est – que le Vers!: além absoluto, para que o central ou virgem
Depura-se em Verso o poeta homena- de “em direção a”, verso pode significar continue a emanar. O nada – ou “une
geado nesta passagem de “Crayonné au “contrário”. O verso do princípio é o fim: âme ou bien notre idée (à savoir la divinité
theâtre”: lembrando o Éden, o “ponto sempre présent à l’esprit de l’homme)” – constitui
“Personne, ostensiblement, depuis cumprido e diferido” ao qual se refere uma alteridade fundamental em re-
qu’étonna le phénomène poétique, ne le résume Greer Cohn. Aquilo em direção ao qual lação a qualquer significado, momento
avec audacieuse candeur que peut-être cet esprit se vai já está contido no Verso poético em que todo significado anterior pode
immédiat ou originel, Théodore de Banville et (que le Vers!) – festeja conclusiva e simples se desvanecer (sem abolir-se na me-
l’épuration, par les ans, de son individualité en a exclamação! E o texto logo dirá que os mória ou contradizer-se, apesar dos
le vers, le désigne aujourd’hui un être à part, versos só vão de dois em dois, ou em paradoxos engraçados), e corte latente
supérieur et buvant tout seul à une source occulte muitos, no devir velado pela “lei mis- fundamental no processo da raciona-
et éternelle; car rajeuni dans le sens admirable teriosa da Rima”, que evita que “um lidade. Assim, nos Contos indianos,
par quoi l’enfant est plus près de rien et limpide, usurpe”. depois de dar instruções minuciosas
autre chose d’abord que l’enthousiame le lève à O modo de a escritura em Mallarmé sobre um ritual, Oupahara diz à
des ascensions continues (...) contemplar cada fenômeno e a obra da rainha: “Je ne t’ai rien dit, mais sache. Je
“Ainsi lancé de soi le principe qui n’est - natureza (“Je crois tout cela écrit dans la n’ai fait, avec ses paroles inutiles mais dont
que le Vers! attire non moins que dégage pour nature”) preserva o espaço não-verbal, chacune importe, que baiser l’air qui te
son épanouissement (l’instant qu’ils y brillent fonte, mistério ou céu, ao qual seremos contient, pour qu’il s’émeuve doucement
et meurent dans une fleur rapide, sur quelque sempre filiados, daí seus achados filosó- autour de toi!”
transparence comme d’éther) les milles ficos, por coerência às próprias leis que
éléments de beauté pressés d’accourir et de descobre (muitas mais que os pontos
s’ordonner dans leur valeur essentielle. (...)” aqui tocados, e atualizadas em formas Rosie Mehoudar
“Ainsi lancé de soi le principe qui n’est - cujas ambigüidades reproduzem a mestre em teoria literária pela USP, onde
que le Vers!” – quantas ambigüidades aqui! mensagem ao infinito) não se trans- defendeu tese sobre Mallarmé

novembro/98 - CULT 61
Épouser la notion
Poema de Stéphane Mallarmé

O texto de Stéphane Mallarmé Épouser la notion consiste num esboço de provável poema que permaneceu inacabado.
Foi editado por Jean-Pierre Richard, que considera impossível estabelecer uma data para o manuscrito. Este se
compõe de dezesseis folhas, contendo igual número de esboços de estrofes. A situação desse texto pode ser comparada
à do manuscrito de Pour un tombeau d’Anatole, o conjunto das anotações de Mallarmé feitas sob o impacto da morte de

1.
il ne lui
faut pas moins
qu’épouser la notion 4.
il veut tout épouser, lui –
faute d’une dame à sa taille et, pour ne pas
se faire prendre
par le juge, qui
guette toujours –
2.
(c’est moi + toi
Je veux épouser la soi
notion, criait-il
je veux il criait plus
elle seule peut fort que
satisfaire les vastes
élans
– en vain le
retenait-on, 5.
tous les autres
qu’il la voulait
3. vierge – plus
que tous les autres
en vain vierge à lui
lui faisait-on seul
entendre pas le droit
qu’elle non – à Personne
n’existe que si
vierge.
Comment?
disait-il
Comment?

62 CULT - novembro/98
Desposar a noção

Tradução de Júlio Castañon Guimarães


seu filho e que não chegaram a constituir um texto concluído. Épouser la notion, segundo Jean-Pierre Richard, constitui
“o roteiro de uma espécie de fábula, ao mesmo tempo filosófica e amorosa”. As estrofes iniciais aqui apresentadas
fazem parte da tradução a ser publicada em breve pela Editora Sette Letras.

JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES

1.
só o que lhe
falta é
desposar a noção 4.
quer, ele, desposar tudo –
por falta de mulher a sua altura e, para não
se deixar pegar
pelo juiz, que
espreita sempre –
2.
(é mim + ti
Quero desposar a si
noção, dizia ele
quero gritava mais
só ela pode alto que
satisfazer os vastos
impulsos
– em vão o
detinham 5.
todos os outros
que a queria
3. virgem – mais
que todos os outros
em vão virgem dele
se fazia com só
que entendesse
que ela sem o direito
só existe se não – de Ninguém
virgem.
Como?
dizia ele
Como?

novembro/98 - CULT 63
Cartas para a revista CULT devem ser enviadas para a Lemos Editorial (r. Rui Barbosa, 70, São Paulo, CEP
01326-010). Mensagens via fax podem ser transmitidas pelo tel. 011/251-4300 e, via correio eletrônico, para o
e-mail “lemospl@netpoint.com.br”.

Haroldo de Campos cação da revista algo sobre a vida e


obra desta autora.
Parabéns a José Guilherme Rodrigues Priscila Maranho
Ferreira e Manuel da Costa Pinto pela por e-mail
epifânica entrevista-ensaio com o poeta
Haroldo de Campos. Só mesmo a Resposta da redação
providência dos deuses Iorubá e Guarani Ainda não tivemos a oportunidade de
para presentear o leitor/pesquisador com publicar matéria sobre essa importante
esse operador da “agoridade”. Como escritora, mas registramos seu interesse
pesquisadora de mitos indígenas, e pretendemos tratar do tema numa
aproveito a ocasião para solicitar maiores edição futura.
informações sobre o trabalho da profes-
sora Josely Viana Batista, citada por
Rohinton Mistry
Haroldo de Campos na entrevista.
Benigno número 13 da CULT. Congra- Parabenizo pela excelente qualidade
tulações também a Juan Esteves pelo gráfica e editorial da revista e apro-
conjunto de fotos harmoniosas do nosso veito para sugerir uma reportagem com
poeta pós-utópico. Saudações literárias. o escritor indiano Rohinton Mistry, autor
Haroldo de Campos fotografado por
Maria das Graças Ferreira do belíssimo romance Um delicado
Juan Esteves
Recife, PE equilíbrio (editora Objetiva).
Wylka Vidal
os dois são seus colunistas? Sugiro ainda por e-mail
Biblioteca Imaginária matéria sobre Valéry, autor que não
Tem razão o leitor Antonio Fernandes conheço e acho que muitos leitores no
Literatura argentina
na crítica que me faz na seção Do Brasil também desconhecem.
Leitor do número 15 de CULT. Deveria Luiz Araújo Siqueira Aproveito para dar os parabéns pela
ter nomeado Carlito Azevedo, Josely Aracaju, SE CULT, a cada edição mais bonita e
Vianna Baptista, Cláudia Roquette- instigante. O especial sobre literatura
Pinto, Júlio Castañon Guimarães ou Resposta da redação argentina (CULT nº 14) está fantástico.
Carlos Ávila como exemplos de que, “Diálogos impertinentes” é uma série de Continuem assim! Grande abraço,
como afirmava no texto criticado pelo programas mensais promovidos em Ronaldo Bressane
leitor, “quatro ou cinco poetas mais convênio pela PUC (Pontifícia Univer- por e-mail
jovens dão prova de que a poesia é rara sidade Católica de São Paulo) e pela
mas possível” (“A raridade da poesia”, Folha de S. Paulo – aos quais pertencem Mario Quintana
Biblioteca Imaginária, CULT nº 11). os direitos de utilização do material É com muita alegria que vejo surgir mais
João Alexandre Barbosa veiculado. O leitor pode comprar fitas uma revista que aborda a literatura, no
São Paulo, SP de vídeo dos programas, à venda na TV- meio das “velhacas velharias” que nos
PUC (tel. 011/864-6816). Quanto a Valéry, fartam as vistas. Artigos vigorosos, infor-
Valéry agradecemos a sugestão de pauta. mações pertinentes, tudo emoldurado por
Li recentemente no caderno “Mais!”, da um acabamento gráfico digno das “loas”
Folha de S. Paulo, matéria que reportava Zulmira Ribeiro Tavares do Elomar. Peço que continuem firmes e
um programa da TV-PUC, “Diálogos Antes de mais nada, gostaria de “em posição de lótus”, conforme sen-
impertinentes”, do qual participavam parabenizar a revista pelo dossiê Albert tenciou nosso querido Haroldo de
dois colaboradores da CULT: os Camus da CULT nº 13. Obrigada pela Campos. Gostaria ainda de sugerir uma
professores Pasquale Cipro Neto e João grande matéria! Sou estudante de seção Dossiê com o tão extraordinário,
Alexandre Barbosa. Este último, ao que jornalismo da PUC-SP e estou fazendo quanto injustiçado, poeta gaúcho Mario
parece, citou frase do poeta Paul Valéry uma crítica literária do livro Jóias de Quintana.
sobre o fazer poético. Por que a CULT família, de Zulmira Ribeiro Tavares. Luiz Carlos Vieira
não publica a íntegra do debate, já que Preciso saber se há em alguma publi- Indaiatuba, SP

6 4 6CULT
4 CULT
- outubro/98
- novembro/98

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