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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE LETRAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
TEORIAS DO TEXTO E DO DISCURSO

LUCIENE JUNG DE CAMPOS

IMAGENS À DERIVA:
INTERLOCUÇÕES ENTRE A ARTE, A PSICANÁLISE
E A ANÁLISE DO DISCURSO

Porto Alegre

2010
LUCIENE JUNG DE CAMPOS

IMAGENS À DERIVA:
INTERLOCUÇÕES ENTRE A ARTE, A PSICANÁLISE
E A ANÁLISE DO DISCURSO

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação


em Letras, Teorias do Texto e do Discurso da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
para obtenção do título de Doutora em Estudos
da Linguagem, especialidade de Teorias do
Texto e do Discurso.

Professora Orientadora: Dra. Maria Cristina Leandro Ferreira

Porto Alegre, setembro

2010
LUCIENE JUNG DE CAMPOS

IMAGENS À DERIVA: INTERLOCUÇÕES ENTRE A ARTE, A PSICANÁLISE


E A ANÁLISE DO DISCURSO

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Letras, Teorias do Texto e do Discurso da


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para obtenção do título de Doutora em Estudos
da Linguagem, especialidade de Teorias do Texto e do Discurso, sob a orientação Dra. Maria
Cristina Leandro Ferreira.

COMISSÃO EXAMINADORA

Profa. Dra. Maria Cristina Leandro Ferreira


Orientadora
Departamento de Letras – PPGLET/UFRGS

Profa. Dra. Freda Indursky


Departamento de Letras – PPGLET/UFRGS

Profa. Dra. Liliane Froemming


Departamento de Psicologia/UFRGS

Profa. Dra. Tania Rivera


Departamento de Psicologia/UFF

Porto Alegre, 28 de setembro de 2010.


Este trabalho é dedicado

À Nancy, minha mãe por me contar seus sonhos e por ter-me


permitido brincar com as revistas de sua juventude, verdadeiros tesouros.

Ao Antonio, meu pai, pela sua narrativa viva e eficaz, muito à vontade
na abordagem de histórias – tanto as distanciadas no tempo, como as atuais.

À Kátia, minha irmã e companheira, por tudo que me fez aprender, ao me fazer
acreditar que eu poderia ensinar alguma coisa a alguém.

Ao Alfredo, com amor.

À Alice, Murilo e Noah pelo devir.


AGRADECIMENTOS

À professora Maria Cristina Leandro Ferreira, orientadora desta pesquisa, por sua
disponibilidade incansável em oferecer subsídios e respaldo para novas aventuras intelectuais
e culturais. Por seu apoio, carinho e dedicação em toda essa trajetória.

À professora Freda Indursky pela grande ajuda nos meus primeiros passos pela
Análise do Discurso, quando me mostrou muitas possibilidades fecundas nas interfaces e
contrapontos no entrecruzamento dos conceitos.

À professora Solange Mittmann pelas aulas, pela leitura atenta de meus textos e
sugestões na escrita.

À professora Ana Zandwais que estranhou o meu interesse intelectual, mas me


acolheu no Programa de Pós-Graduação em Letras.

Ao professor Édson Luis André de Sousa pelo seu acolhimento no Experimentum


Mundi e o seu grande apoio na ideia inicial deste projeto.

À professora Liliane Froemming pela leitura desta pesquisa e por suas valiosas
contribuições.

À professora Tania Rivera pela disponibilidade em compartilhar sua trajetória e


discutir o meu texto.

À professora e amiga Rosinha Carrion por sua curiosidade e condição de transitar em


vários contextos, foi quem me apresentou a obra de Goldgrub.

Aos artistas Bianca Araújo, Carlos Goldgrub e Daniel Escobar por permitirem que
suas obras continuem produzindo inquietações.
Aos meus estudantes e orientandos, principalmente aqueles da Psicologia do Trabalho
que estão aguardando e exigindo outras reflexões sobre o valor simbólico do trabalho.

Aos meus colegas, em especial à Fabiele de Nardi por me apresentar à Análise do


Discurso; à Patrícia Laubino por acreditar no complexo objeto em interface; ao Rubens
Prawucki pelo apoio amigo, durante toda a trajetória compartilhada e à Paula Gil pela
sensibilidade e força nas discussões-encruzilhadas.

Aos gatos. Aos meus e aos de rua que me fizeram companhia em suas fantásticas e
alentadoras aparições cotidianas e noturnas. Em especial, à Mima, cúmplice e inspiradora em
seu silêncio estético, forçou o eterno retorno ao branco do texto e ao espaço vazio onde as
ideias se produzem.
Walter Roil. Contraste, 1930
RESUMO

Nesta pesquisa procuro apresentar a descontinuidade da imagem de mídia de massa


apropriada pelas artes visuais. O que se coloca não é “o que é visto”, mas “como é visto” na
imagem em sua potencialidade discursiva. A construção deste olhar se dá na interface entre os
campos da Arte, da Psicanálise e da Análise do Discurso, fazendo torções de um campo a
outro. Nessa imbricação de intervenções subversivas busco refletir sobre as transformações
estéticas da linguagem comercial para a linguagem poética. Através do dispositivo teórico-
analítico da Análise do Discurso francesa pude observar que o olhar está organizado por algo
que não se vê, algo que cai fora do campo da visão e que só adquire sentido na relação com a
cultura e com a história, onde se configura o desdobramento do desejo do sujeito. A imagem
publicitária é uma linguagem que não diz tudo, por isso, enquanto saber incompleto se deixa
apropriar pela arte visual. O fato de não dizer tudo, é o que faz com que os artistas tenham a
dizer, ainda. A Arte ao jogar com o non-sens urde o equívoco e contamina a ideologia
dominante através dos processos metafóricos e metonímicos. A descontinuidade da imagem
aparece nesse espaço de real no simbólico, por meio dos mecanismos de condensação e
deslocamento em que o ponto de existência do sujeito é o ponto de separação e de
intercâmbio entre a posição-sujeito e a formação discursiva que o domina na trama simbólica.
A descontinuidade é o mais além do simbólico, propriamente, a dimensão do real na qual
eclode e faz insistir no desejo e resistir na ideologia.

Palavras-chave: Análise do Discurso e imagem. Arte e Psicanálise. Análise do


Discurso e Psicanálise. Análise do Discurso e Arte Contemporânea. Análise do Discurso e
Arte Pop.
RÉSUMÉ

Dans cette recherche j’essaie présenter la discontinuité de l’image des médias de


masse appropriée par les arts visuels. Ce qui est en jeu n’est pas « ce qui est vu », mais
« comme est vu » dans l’image dans sa potentialité discursive. La construction de ce regard
est faite par l’interface entre les domaines d’Art, de la Psychanalyse e de l’Analyse du
Discours, en fessant des torsions d’un champ à autre. Dans cette imbrication des interventions
subversives je cherche réfléchir sur les transformations esthétiques du langage commercial
pour le langage poétique. Par le biais du dispositif théorique-analytique de l’Analyse du
Discours Française j’ai pu observer que le regard est organisé par ce qui n’est pas vu, ce qui
tombe hors du champ de la vision et qui n’acquiert que sens par rapport la culture et l’histoire,
qui configure le déroulement du désir du sujet. L’image publicitaire est un langage qui ne dit
pas tout, par cela étant un savoir incomplet se laisse approprier par l’art visuel. Le fait de ne
dire pas tout est ce qui fait les artistes avoir choses à dire encore. L’Art en jouant avec le non-
sens tisse l’équivoque et contamine l'idéologie dominante à travers des processus
métaphoriques et métonymiques. La discontinuité de l’image apparaît dans cet espace de réel
dans le symbolique, à travers les mécanismes de condensation et de déplacement où le point
de l'existence du sujet est le point de séparation et des échanges entre la position-sujet et la
formation discursive qui domine le tissu symbolique. La discontinuité est au-delà du
symbolique, précisément, est la dimension du réel dans laquelle éclate et insiste dans le désir
et résiste dans l'idéologie.

Mots-clés: Analyse du Discours et image. Arte et Psychanalyse. Analyse du Discours


et Psychanalyse. Analyse du Discours et Art Contemporain. Analyse du Discours et pop Art.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Tunga, Cem Terra, 1990 ......................................................................................... 21


Figura 2 – Daniel Escobar, Série Perto demais, 2005, Institut Goethe. Performance ........... 24
Figura 3 – Daniel Escobar. Permeável IX, Série Perto demais, 2008 (225cm x 225cm) ........ 26
Figura 4 – Daniel Escobar. Permeável VIII Série Perto demais, 2007 (225cm x 225cm) ...... 27
Figura 5 – Carlos Goldgrub. Série Outdoor’s, 2004 ................................................................ 28
Figura 6 – Carlos Goldgrub. Série Outdoor’s, 2004 ................................................................ 30
Figura 7 – Bianca Araújo. Processo fotogramático. Série Retratos, 2005 ............................... 31
Figura 8 – Bianca Araújo. Processo fotogramático. Série Retratos, 2005 ............................... 32
Figura 9 – Bianca Araújo. Processo pictórico. Série (Re)tratos, 2005..................................... 33
Figura 10 - Bianca Araújo, Série polícia .................................................................................. 34
Figura 11 – A trama do objeto-imagem (adaptado de ORLANDI, 2004b) .............................. 40
Figura 12 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004 .............................................................. 47
Figura 13 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004 .............................................................. 47
Figura 14 – Andy Warhol, Elvis I e II, 1964 ............................................................................ 48
Figura 15 – Gustav Klint, Judith, 1901 .................................................................................... 49
Figura 16 – Andy Warhol, Levante racial vermelho, 1963 ...................................................... 52
Figura 17 – Bianca Araújo, Série Polícia, 2002 ....................................................................... 53
Figura 18 – Richard Hamilton. O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes,
tão atraentes? 1956 .................................................................................................................. 55
Figura 19 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004 .............................................................. 56
Figura 20 – Esquema L de Lacan ............................................................................................. 58
Figura 21 - A relação imaginária do consumidor com a Publicidade/Propaganda .................. 58
Figura 22 – O esquema L do caso Dora, segundo Lacan ......................................................... 60
Figura 23 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004 .............................................................. 61
Figura 24 – Jenny Holzer ......................................................................................................... 62
Figura 25 – O Esquema L das Formações Imaginárias ............................................................ 70
Figura 26 – James Rosenquist. Eu te amo com meu Ford (1961) ............................................ 72
Figura 27 - Andy Warhol. Dezesseis Jackies (1964)................................................................ 74
Figura 28 – Leonardo da Vinci, Mona Lisa, 1503-1506 .......................................................... 84
Figura 29 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004 .............................................................. 85
Figura 30 – Marcel Duchamp, L.H.O.O.Q., 1919 .................................................................... 86
Figura 31 – Carlos Goldgrub. Outdoor’s, 2004 ....................................................................... 95
Figura 32 – Carlos Goldgrub. Outdoor’s, 2004 ....................................................................... 97
Figura 33 – Nó borromeano da imagem PP, ARTE e AD ....................................................... 99
Figura 34 - Bianca Araújo. Série (Re)tratos, 2005 ................................................................. 102
Figura 35 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004 ............................................................ 103
Figura 36 - Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004 ............................................................. 104
Figura 37 – A trama do objeto a, segundo Lacan ................................................................... 107
Figura 38 - Daniel Escobar, permeável I, Série Perto demais, 2006 ..................................... 108
Figura 39 – Daniel Escobar, Permeável I, Série Perto demais (detalhe) ................................ 109
Figura 40 – Glamourosa, 2005, fotografia, 46x 46cm ........................................................... 112
Figura 41 – Richard Hamilton. Swingeing London 1967 (1967). Tate Gallery ..................... 113
Figura 42 – Richard Hamilton, Swingeing London 1967 ....................................................... 114
Figura 43 – Marcel Duchamp, Porta-garrafa, (1915) ........................................................... 117
Figura 44 - Andy Warhol, 200 latas de sopa Campbells (detalhe), 1962 .............................. 118
Figura 45 – Hans Holbein, Os Embaixadores, 1533 .............................................................. 119
Figura 46 - James Gill, Tríptico de Marilyn Monroe, 1962 ................................................... 121
Figura 47 – Daniel Escobar. Série Perto Demais ................................................................... 122
Figura 48 – Bianca Araújo, Vedação rosa (S1/s1) ................................................................. 125
Figura 49 – Bianca Araújo, fotograma negativo (S2/s2) ........................................................ 126
Figura 50 – Bianca Araújo, (S3/s1) ........................................................................................ 126
Figura 51 – A construção metafórica de Beldade (adaptado de DÖR, 1989) ........................ 127
Figura 52 – O processo fotogramático – fusão entre pintura e fotografia .............................. 129
Figura 53 – Bianca Araújo. Processo pictórico série (Re)tratos, 2005 .................................. 131
Figura 54 – Andy Warhol, Marilyn. Serigrafia sobre tela ...................................................... 131
Figura 55 – Bianca Araújo. Série (Re)tratos .......................................................................... 132
Figura 56 – Nó borromeano da mediação sujeito-ideologia-imagem .................................... 134
Figura 57 – Carlos Goldgrub, série Outdoor’s, 2004 ............................................................. 135
Figura 58 – A construção metonímica de Outdoor’s (adaptado de DÖR, 1989) ................... 136
Figura 59 – Carlos Goldgrub, Série Outdoors, 2004.............................................................. 139
Figura 60 – A construção metonímica do objeto-imagem (i), (adaptado de LACAN, 1998). 140
Figura 61 – A Demanda do Artista (adaptado de LACAN, 1998) ......................................... 141
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................. 12

1 ÀS VOLTAS COM O OBJETO E O DISPOSITIVO TEÓRICO-ANALÍTICO ..... 15


1.1 ANÁLISE DO DISCURSO: OCUPAÇÃO EM ZONA DE FRONTEIRA ..................... 17
1.2 DESCONTINUIDADE: APROPRIAÇÃO, RESSIGNIFICAÇÃO E
REAPRESENTAÇÃO ............................................................................................................. 23
1.2.1 Outro suporte para a efemeridade ............................................................................ 25
1.2.2 O re-enquadre da promessa impossível .................................................................... 27
1.2.3 Desfocar, sobrepor, inquietar .................................................................................... 30
1.2.4 A imagem e os processos de interpelação-reprodução-transformação .................. 35
1.2.5 Na trama do evidente, ausente e intangível .............................................................. 40

2 CONFLUÊNCIAS QUE FALHAM ............................................................................... 44


2.1 A ARTE POP, SEUS ANTECEDENTES HISTÓRICOS E O PANORAMA DOS
ANOS 60 .................................................................................................................................. 44
2.2 A ESPETACULARIZAÇÃO DA IMAGEM NA SOCIEDADE DE CONSUMO.......... 54
2.3 O SINTOMA: UMA METÁFORA DA HISTÓRIA ........................................................ 59
2.4 O FETICHISMO DA IMAGEM-MERCADORIA .......................................................... 69

3 OLHAR E IMAGEM: CONSTRUÇÕES BASCULANTES DO SUJEITO ............. 76


3.1 O SOBREVÔO DO SUJEITO NA TOMADA DE POSIÇÃO ........................................ 76
3.2 O SUJEITO DESALOJADO ENTRE A PSICANÁLISE E A ANÁLISE DO
DISCURSO .............................................................................................................................. 88
3.3 SEREI EU, EU MESMO? ................................................................................................. 91
3.4 ASSUJEITAMENTO E DIRECIONAMENTO DO OLHAR .......................................... 94
3.5 NO CAMPO DO VISÍVEL: O OBJETO A PERTO DEMAIS ........................................ 106

4 IMAGEM, MARGEM E APARAS ............................................................................. 111


4.1 OS PROCESSOS DE CONDENSAÇÃO, SUPERPOSIÇÃO E FUSÃO NA
IMAGEM ............................................................................................................................... 112
4.2 OS PROCESSOS DE DESLOCAMENTO CENTRO-BORDA .................................... 116
4.3 A IMAGEM EM SUSPENSÃO...................................................................................... 123
4.4 ISSO MONSTRA NOS (RE)TRATOS .............................................................................. 128
4.5 O OBJETO-IMAGEM EM OUTDOOR’S ...................................................................... 137

5 ENTRE SOMBRAS E LACUNAS: UM EFEITO DE FECHAMENTO ................. 146

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 149


APRESENTAÇÃO

Nesta pesquisa procuro observar a descontinuidade da imagem veiculada pela mídia


de massa que é apropriada e trabalhada pelo artista. A imagem apresentada pela
publicidade/propaganda é tomada como a forma voluntariosa que ao se impor, impulsiona o
desejo de construir algo de algo que vem de algo para algo que vai1.
A imagem que interessa é a imagem fragmentada e deslocada, que não se ocupa do
todo, mas da parte, do detalhe – do resto – que assim adquire potência para veicular o desejo.
Esse fragmento assume uma estrutura singular, pois é um recorte no espaço, limitado por
contornos que produz suas próprias aparas, indicando o que a imagem não é. E ali onde a
imagem é, ocorre a inscrição de um sujeito na função-artista, na história.
O que se coloca não é “o que é visto”, mas “como é visto”, distanciando-se da ideia
positivista que tenta fixar um significado. Esta pesquisa considera que a imagem – enquanto
linguagem – não é transparente. Desse modo, ela não busca sentidos secretos, mas indícios
que estão na superfície. Produz um conhecimento partindo da imagem como detentora de uma
espessura semântica, que lhe confere materialidade própria e significativa, concebendo-a em
sua potencialidade discursiva. A construção deste olhar se dá na interface entre os campos da
arte, da psicanálise e da análise do discurso, fazendo torções de um campo a outro.
As obras de arte em análise são recortes das séries Perto demais, Outdoor’s e
(Re)tratos, dos artistas Daniel Escobar, Carlos Goldgrub e Bianca Araújo, respectivamente.
Os três artistas retiram insumos das imagens de outdoors e de jornais para produzir seu
trabalho.
A série Perto demais, de Daniel Escobar é uma criação a partir de fragmentos de
outdoors, recolhidos pelo próprio artista, que são perfurados e colados em superposição,
produzindo uma renda que permite a passagem do olhar do observador pelas múltiplas
camadas. Ao reverso, faz a imagem retornar ao seu estado pontilhado inicial. Provoca um furo
na mídia massiva, o que só se torna possível a partir de seus próprios resíduos.
Na série Outdoor’s, de Carlos Goldgrub, o artista re-fotografa o outdoor e, neste
enquadre fotográfico, “limpa” as imagens veiculadas nos prédios e nas ruas da cidade de São
Paulo. Geralmente, descarta a imagem dos produtos que estão sendo comercializados e omite
o texto que acompanha essas imagens. Privilegia as figuras humanas que estão sendo usadas

1
LISPECTOR, Clarice. Forma e conteúdo. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Zahar, p. 271.
13

como modelos para a divulgação dessas mercadorias. Amplia seus rostos e corpos, guarda os
detalhes e os expõe ampliados nos espaços reservados aos outdoors.
Em (Re)tratos, de Bianca Araújo, a artista toma fotos de colunas sociais dos jornais,
fotocopia e pinta sobre as cópias, num efeito de borrão sobre a imagem. Busca evidenciar os
gestos estereotipados dos colunáveis, tais como sorrisos, abanos e abraços. Superpõe a esta
imagem, outras notícias e outras imagens que estabelecem relações contraditórias entre si.
Nas três séries, é a cultura popular que oferece matéria-prima a esses artistas. A
cultura pop é a herdeira da Revolução Industrial e das revoluções tecnológicas que se
seguiram no encontro entre a máquina, a democracia, a moda e o consumo. A cultura pop
envolve uma mudança nas atitudes para com os objetos, esses objetos deixam de ser únicos.
As coisas que consumimos passam a ser feitas aos milhares e idênticas, sendo impossível
distingui-las umas das outras. De fato, o contexto necessário para o surgimento da arte pop é o
modo de vida pop, ou melhor, a arte pop é em si um derivado desse estilo de vida. Segundo
Stangos (2000, p. 165), só nesse sentido e em nenhum outro se pode usar a palavra “estilo” a
respeito da arte pop, pois ela é carente de estilo. Salienta que a principal atividade do artista
pop, sua justificativa, consiste menos em produzir obras de arte do que em encontrar um
sentido, um nexo para o meio à sua volta, conhecer a lógica daquilo que o cerca em tudo que
ele próprio faz. A descoberta dessa lógica, sua forma e direção tornam-se a principal tarefa
do artista.
Nesta abordagem, a imagem é tomada como um texto. O texto é a unidade do
discurso, especificidade de linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade
social. Um meio que o sujeito encontra de significar e significar-se, o trabalho simbólico do
discurso está na base da produção da existência humana. Orlandi (1999, p. 15) afirma que o
discurso é essa mediação, que torna possível tanto a “permanência e a continuidade quanto o
deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que vive”.
Duchamp, ao comentar sobre o que é uma obra de arte, ele diz que é algo que “o
artista começa e o espectador termina”, segundo o que documentou Calvin Tomkins, seu
biógrafo (TOMKINS, 2004, p. 437). Esse ponto de vista se aproxima da noção de discurso de
Pêcheux, em que a obra pode ser pensada como um efeito de sentidos entre interlocutores.
Levando em conta o homem na sua história, consideram-se os processos e as condições de
produção da linguagem responsáveis pelo estabelecimento das relações de força no interior do
discurso para estabelecer o sentido. As condições de produção fazem parte da exterioridade
linguística e se relacionam ao contexto sócio-histórico-ideológico na sua extensão mais
abrangente. Nessa imbricação, busco uma reflexão sobre a maneira como a linguagem está
14

materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na linguagem. Portanto, a


materialidade específica da ideologia é o discurso e a materialidade do discurso é a linguagem
na relação imagem-discurso-ideologia.
De vertente materialista-dialética, esta pesquisa não deve entulhar a prática com a
teoria, neste caso, é o campo que puxa a teoria e não o contrário. A teoria não pode
congestionar o sentido. Sabendo da densidade teórica dos três campos envolvidos, cuidei para
que os conceitos fossem apresentados aos poucos e não se impusessem à prática, ou melhor, à
imagem. Mas, que a obra venha exigir os conceitos.
A proposta de analisar uma obra de arte é um empreendimento perigoso, em função do
risco de descontextualizá-la ou de cair num didatismo, usando-a para explicar determinados
conceitos de outro campo teórico. O próprio Duchamp manifestou o seu incômodo frente à
vulgarização da arte feita por um público leigo: “enquanto ninguém ousa dar palpite na
conversa de dois matemáticos por medo de parecer ridículo, é perfeitamente natural ouvir
longas conversas num jantar sobre o valor de um pintor em relação a outro” (TOMKINS,
2004, p. 433). O meu compromisso com essa abordagem é retribuir, fazendo trabalhar a arte
para continuar produzindo outros questionamentos.
Pensar com imagens, analisar com imagens, discutir com imagens. Opor, contrapor,
articular e relacionar imagens nas transformações estéticas da linguagem comercial para a
linguagem poética, nessas intervenções subversivas que trazem para o centro o que está na
borda e para dentro o que está fora. Sempre me fascinaram as formas de resistência do sujeito
em seu gesto singular de existência, frente ao que está posto como óbvio e evidente. Busco o
trabalho de artistas que se apropriam de imagens veiculadas na mídia para apresentar facetas
laterais da sociedade em que vivemos. A imagem original é a publicidade/propaganda, ponto
de partida destas obras. Porém, a imagem da publicidade/propaganda está sempre ausente
nesta pesquisa, o que interessa são apenas os seus vestígios e resíduos, presentes na produção
dos artistas.
Courtine2 insiste no fato de que uma imagem nunca nos chega sozinha, ela convoca
sempre outras imagens. Falar de imagens significa falar de uma cadeia, uma rede, uma série.
Na conversa com mil imagens, articulo obras de outros artistas para pensar o meu
corpus. As referências, mais que bibliográficas, são imagéticas. As imagens de outros autores
problematizam e dialogam com as obras em análise. Nenhuma dessas imagens é indiferente
para mim. São imagens que me provocam e me dividem e o que me une a elas é o espanto.

2
COURTINE, Jean-Jacques. Anotações do curso Discurso e imagem. Paris III. Sorbonne, out. 2008.
15

1 ÀS VOLTAS COM O OBJETO E O DISPOSITIVO TEÓRICO-ANALÍTICO

Assim, enquanto os legumes dormem um sono pesado


sem suspeitar de que possam ser surpreendidos pelo
olhar de um espião (BAUDELAIRE, 2008, p. 56.).

Neste capítulo, pretendo abordar as características da materialidade do objeto de


pesquisa, cuja linguagem é a imagem, mais especificamente, a fotografia e a pintura sobre
fotografia. Busco apresentar a descontinuidade entre dois campos: o da
publicidade/propaganda (PP) e o das artes visuais (AV), enquanto dois campos de luta, onde
um campo se origina da resistência frente ao outro. Esses campos se delimitam e se instalam
através dos processos de produção-reprodução-transformação que são acionados para
interpelar o sujeito. Procuro situar as contradições e as alianças inerentes a esses dois
procedimentos de interpelação da PP e da AV. A Publicidade/Propaganda convoca o sujeito
na forma-sujeito consumidor. Porém, o mesmo sujeito pode se contra-identificar com a
forma-sujeito consumidor e tomar outra posição-sujeito na função-artista. Pretendo analisar
os desdobramentos do sujeito, através da imagem que funciona nos espaços de
descontinuidade entre o sujeito e as suas posições que não são definitivas, mas reversíveis.
A noção de descontinuidade, entre os dois campos (AV e PP), é tratada neste estudo,
conforme a perspectiva de Pêcheux (1975) em Semântica e Discurso, enquanto um processo
sem fim de retificações coordenadas, que se amparam na emergência de uma posição a ser
assumida e fortalecida na adversidade das ideias, como uma luta de classes no campo dos
saberes. Desse modo, face à publicidade/propaganda, a arte visual constitui outra produção de
conhecimento, cujo funcionamento da imagem é co-extensivo aos efeitos de paráfrase-
reformulação no interdiscurso. A arte retira da propaganda aquilo que lhe interessa: um resto,
a parte de um todo que sobrou ou que caiu da “imagem total” que a propaganda pretendia
oferecer. Porém, a arte enquanto uma prática social funciona como toda prática, isto é,
também é uma prática ideológica que interpela. Trata-se de uma descontinuidade de sentido
da imagem que, por sua vez, convoca outras posições-sujeito para além da forma-sujeito
consumidor.
O que interessa aos meus propósitos é conhecer o processo em que o sujeito na
função-artista retoma a imagem veiculada pela PP e chega à formação de uma nova
apresentação imagética, que aparece intencionalmente/explicitamente vinculada com a
16

primeira, de mídia de massa. É esse vínculo entre as duas (re)-(a)presentações de imagens, em


causa, que eu gostaria de restabelecer na discursividade, na medida em que ambas enunciam
formações discursivas diferentes, porém uma remete à outra em relações de transformação.
Esse trabalho vem questionar a concepção reducionista de linguagem enquanto
instrumento de comunicação e de informação que significaria independentemente e
livremente. A prova de que a linguagem “não serve para comunicar”, ou seja, de que não
controla o sentido que veicula, está no fato de a própria comunicação publicitária possibilitar
outros deslizamentos, ao invés da simples “adesão às compras”, esperada pelas pesquisas de
marketing. Almejo conhecer o movimento, ao mesmo tempo realizado e dissimulado, sobre o
qual os agentes são colocados em seus lugares, geralmente apagado, ficando em evidência as
aparências externas e as consequências. O que mais uma vez se faz presente, conforme
Pêcheux já havia observado é que “todo discurso é ocultação do inconsciente” (PÊCHEUX,
1997a, p. 175).
A linguagem com que estou trabalhando é a imagem veiculada pela
publicidade/propaganda3 e transformada pela arte visual. Então, nessa abordagem, a imagem é
o elemento estrutural das condições de produção do discurso em questão, cuja materialidade
discursiva é a fotografia ou a pintura sobre fotografia, portanto uma estrutura discursivo-
visual, como aponta Clemente de Souza (1998), que exige outros recursos para descrição e
análise de sua tessitura. Esta materialidade não pressupõe uma tradução direta ao verbal e nem
a simples compreensão do não-verbal perpassado pela linguagem verbal, pois a imagem é
uma linguagem com outros modos de significação. Essa modalidade de discurso, conforme é
trabalhada por Clemente de Souza (1998) é a base de interpretação do tecido visual, que não
segue a mesma orientação de leitura linear escrita da esquerda para a direita.
A imagem permite um trajeto do olhar sem roteiro prévio, imprevisível e, assim, torna
ativas outras camadas de materialidade do que não está evidente, produzindo uma experiência
rara. O olhar se fixa, contorna e agrupa pontos, construindo delineamentos numa cartografia
singular onde se configura o desdobramento do desejo do sujeito. Portanto, o olhar está
organizado por algo que não se vê, algo que cai fora do campo da visão e que só adquire
sentido na relação com a cultura e com a história.

3
A publicidade é tomada neste estudo como uma atividade profissional dedicada à difusão pública de ideias
associadas a empresas, produtos ou serviços, especificamente, propaganda comercial. Comunicação de caráter
persuasivo que visa defender os interesses econômicos de uma indústria ou empresa. Já a propaganda tem um
significado mais amplo, pois refere-se à qualquer tipo de comunicação tendenciosa, abrangendo as campanhas
eleitorais, por exemplo, que busca promover a imagem de pessoas. Portanto, as fotografias em colunas sociais,
enquadram-se como propaganda pessoal.
17

Nesta pesquisa, a investigação da imagem enquanto uma estrutura discursivo-visual-


em-funcionamento se dá através do dispositivo teórico-analítico da Análise do Discurso
francesa, fundada por Michel Pêcheux, na interface com a Psicanálise e a Arte.

1.1 ANÁLISE DO DISCURSO: OCUPAÇÃO EM ZONA DE FRONTEIRA

Na tentativa de explicar o que é a Análise do Discurso (AD), me vem à cabeça, a fala


de Jean-Jacques Courtine, no I CIAD em São Carlos: “A Análise do Discurso na França, foi
algo como uma maladie d’enfant”. A frase de impacto me remeteu a mim mesma, o que me
fez tentar explicá-la por minha conta, deixando de seguir a sequência da exposição do autor.
Passei a imaginar algo como o sarampo, ou a catapora: afecções acompanhadas de febre alta
que se contrai na infância e que deixam marcas para o resto da vida.
Tento imaginar o clima social na efervescente Paris do final da década de 60 e
visualizar Michel Pêcheux, pensador engajado que tenta antecipar e perseguir os ideais
revolucionários – condenado a seguir na trilha aberta por Voltaire na direção das reformas
políticas e institucionais. Aquilo que é urgente e grande se precipita numa avalanche de
transformações e a grandeza do movimento empurra Michel Pêcheux a criar uma nova
disciplina: a Análise do Discurso.
Nascida na contracultura, a Análise do Discurso desafia as estruturas, ocupa um novo
território, reteoriza conceitos de outras disciplinas e provoca uma ruptura com sua área de
origem. Enquanto ato criativo, a AD é datada historicamente, produzida pelo homem de seu
tempo num duplo movimento: por um lado, impelido pela necessidade de re-arranjar seus
conflitos, enquanto sujeito-histórico-interpelado; por outro lado, se propõe a deixar um
dispositivo teórico-analítico, uma maneira de pensar, na tentativa de viabilizar uma senha para
alertar seus companheiros, indicando que existe outra forma de olhar, que não é a certa, que
não é a única, mas que é outra. Outra possibilidade.
Toda fundação implica um ato de violência para conseguir romper com uma ordem
anterior e estabelecer um novo pacto, refere Freud (1976k) na história do mito da horda
primitiva que consiste no assassinato do pai e no consequente pacto fraterno estabelecido
entre os irmãos: não matarás! Metáfora que ele cria para tratar da passagem natureza-
civilização. No entanto, para que o pacto se estabelecesse, a violência necessitou vir seguida
de culpa. Pois, segundo Freud, é a culpa que força no homem a reflexão, por colocar em jogo
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os sentimentos contraditórios. Daí que fundação e morte são certezas; reflexão e culpa são
contradições. Isto para falar nas fundações de Saussure e Pêcheux.
A angústia que move Saussure é alcançar o status de ciência para a Linguística. No
que é levado a fazer um corte e num ato de violência, toma a Linguagem e separa a língua da
fala. Busca homogeneidade, eliminando as irregularidades, ajeitando as aparas de seu objeto
teórico para que se torne previsível e facilmente tangenciável, tratando assim, de isolar
fenômenos que fujam ao controle, para que não perturbem o desenvolvimento da nova
ciência. Faz a assepsia na língua.
Neste gesto de zelo para com a ciência que está vindo ao mundo, Saussure empreende
um esforço de separar os elementos da linguagem para que não se misturem e não maculem o
objeto teórico idealizado. Portanto, ficam excluídos o sujeito, o interlocutor, o contexto sócio-
histórico e os processos de significação pertencentes ao escorregadio e descontrolado
domínio da fala. O mesmo gesto que funda a ciência linguística desconsidera tudo o que está
no entorno de seu objeto teórico (INDURSKY, 2005).
A nova ciência segue assim, recatada e sob o rígido controle do modelo estruturalista,
onde o limite do objeto é a frase. No entanto, na década de 60, esta redução científica é
apontada por Chomsky, quando se refere ao falante ideal/ouvinte ideal numa comunidade de
fala muito homogênea que o estudo da língua tem solicitado.
Indursky (2006) oportuniza visualizar em seu quadro-síntese, que o texto para a
Análise do Discurso é tomado em outra dimensão, diferentemente da Linguística Textual e da
Semiótica. Enquanto, para a Linguística Textual interessa examinar a organização interna, a
unidade formal com início, meio e fim, a coesão e coerência, cujo sentido é dado pelo próprio
texto; para a Semiótica, o texto é um objeto semiótico linguístico e não-linguístico, propõe
junção do plano do conteúdo com o plano da expressão, cujo sentido é dado pela construção
do percurso gerativo do sentido.
Já, para a AD, o texto é a materialidade do discurso, uma unidade significativa, objeto
não-acabado, heterogêneo, aberto à exterioridade. O texto é produzido numa tessitura dos
recortes e cadeias, num patchwork heteróclito (PÊCHEUX, 1997a), provocando um efeito de
homogeneidade e completude (efeito-texto) naquilo que é constitutivamente heterogêneo e
disperso. O sentido é intervalar, enquanto efeito de sentido entre sujeito-autor e o sujeito-
leitor, mediado pelo texto, num contexto sócio-histórico. Pêcheux afirma que a posição-
sujeito é inscrita em uma formação discursiva que vai direcionar o sentido e a interpretação
possível.
19

Essa mudança de objeto teórico, que a AD propõe, provoca uma pressão no interior do
campo teórico da Linguística positivista. Questiona, sobretudo, as exclusões praticadas. Entre
elas: o sujeito e a significação do próprio discurso. Pois, discurso não é simplesmente fala.
Frente a essas reivindicações, instaura-se um novo corte teórico. O corte pechêutiano
que escovando a linguística a contrapelo, levanta e desacomoda antigos conceitos e, neste
movimento, recupera questões importunas, outrora desprezadas, questões essas, que agora se
impõem. Consequentemente, o objeto de estudo da Análise do Discurso é retirado da lixeira
de Saussure. É aquilo que foi descartado para tornar a linguística científica que interessa a
Pêcheux para dar conta do discurso.
Portanto, o deslocamento da unidade de análise da AD, que não é o signo e também
não é a frase, mas o discurso, exige a criação de um outro corpo teórico-analítico que se
inscreve na articulação de três regiões do conhecimento (PÊCHEUX (1975), 1997b):

1) linguística: para a Análise do Discurso a linguagem se constitui na opacidade, na


não-transparência, o seu objeto que é a língua tem sua ordem própria. Centramento
nas formulações irremediavelmente equívocas da língua. Considera a língua como
processo. A AD vai se preocupar em descrever os funcionamentos responsáveis
pela produção de sentidos.

2) materialismo histórico: a sociedade civil e a luta de classes passam a ser a base da


História. Existe um real da História que não pode ser apreendido pelo sujeito que
faz a História. A conjunção língua-história é o que os estudos discursivos chamam
de forma material, não abstrata para produzir sentido.

3) psicanálise: o sujeito da AD é o sujeito do inconsciente estruturado na linguagem,


das formações imaginárias, em cujo discurso aparecem as condições de sua
produção. A ideologia está materialmente relacionada ao inconsciente. O sujeito
discursivo é atravessado pelo inconsciente e interpelado pela ideologia.

Como lembra Leandro Ferreira, no I Seminário de Estudos em Análise do Discurso


(SEAD) em 2003, em homenagem aos 20 anos do desaparecimento de Michel Pêcheux, a
Análise do Discurso situa-se numa zona já povoada e tumultuada:
20

A zona de fronteira é, assim, um espaço tenso, instável, contraditório... e fecundo.


Quem nele habita, desfruta de uma amplidão de horizontes e de uma maior ilusão de
liberdade; liberdade ilusória, porque implica, ao mesmo tempo, e paradoxalmente,
um espaço a ser compartilhado com o outro, o estrangeiro (LEANDRO FERREIRA,
2005b, p. 213).

A aproximação com outros campos, essa estranha intimidade, como enfatiza a autora,
não se trata de sincretismo teórico, mas de apropriação, deslocamento e reteorização de
conceitos. Também não se trata de interdisciplinaridade, pois a AD é produzida no choque
entre essas três disciplinas, ocupando-se das contradições existentes entre elas.
Mesmo com toda a heterogeneidade e contiguidade de que se constitui o campo da
Análise do Discurso, ainda assim, resolvi puxar mais uma fronteira e estabelecer nova
vizinhança. Pois, se a proposta da AD é juntar as três grandes regiões teóricas da virada do
século XIX: linguística, materialismo histórico e psicanálise certamente têm uma quarta
região valiosa que se deve convocar – a Arte.
A arte não é apenas uma teoria das formas, mas também uma teoria da história, como
nos explicou Walter Benjamin (1992), que se constitui num meio de reflexão sobre a
sociedade a partir de seu presente e voltada para ele, sem a ilusão positivista de se poder
penetrar no passado “tal como ocorreu”.
Freud aborda em seu texto Mal-estar na civilização (1930), a importância da ciência e
da arte para lidarmos com as decepções e as tarefas impossíveis que a vida nos propõe: “a
ciência e a arte são derivativos poderosos que nos fazem extrair luz de nossa própria
desgraça” (FREUD, 1976k, p. 93). Parte do pressuposto que a vida, tal como a encontramos é
árdua demais e por isso, não podemos passar sem essas construções auxiliares que oferecem
guarida para o nosso desamparo.
Para iniciar a aproximação da AD com mais esse outro campo do conhecimento que é
a Arte, gostaria de tomar a obra Cem Terra, de Tunga, que ele classifica como “instauração”,
ao invés de instalação. Tunga considera o termo instalação banalizado e esvaziado, prefere
nomear “instauração”, que para ele significa “inaugurar um fenômeno”4. Abaixo, foto da
instauração:

4
Entrevista concedida pelo artista à Revista Bien’Art, n.15, São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2006.
21

Figura 1 – Tunga, Cem Terra, 1990

A instauração Cem Terra é composta de 100 office-boys, que ocuparam um quarteirão


da Avenida Paulista para a comemoração do Dia da Escultura. Na ótica de Tunga, tratava-se
de comemorar o dia da “ex-cultura”, pois conceitos como esse já estariam ultrapassados para
a arte: “Sou radicalmente contra colocar uma escultura em via pública e obrigar os passantes a
engolir aquilo. É uma forma autoritária de criar um diálogo com a arte. Então, propus colocar
outros passantes” (TUNGA apud SIMÕES, 2006, p. 20).
Na interface com a Análise do Discurso, as obras adquirem sentido, não tanto pelo seu
conteúdo, mas pelo seu funcionamento, que é o que busco examinar através dos conceitos de
condições de produção e interdiscurso.
Orlandi (1999) assinala que as condições de produção compreendem
fundamentalmente os sujeitos e a situação. Também a memória faz parte da produção do
discurso. A forma como a memória mobiliza, afirma as condições de produção. As condições
de produção em sentido estrito são as circunstâncias de enunciação; consideradas em sentido
amplo, as condições de produção pressupõem o contexto sócio-histórico-ideológico.
A circunstância da enunciação da obra Cem Terra é o contexto imediato do território
urbano: a ocupação de um quarteirão da Avenida Paulista, os cem office-boys acampados, o
Dia da Escultura e o fato da obra ser uma instauração e não uma instalação, escultura ou
pintura.
22

O contexto amplo é o que traz para a consideração dos efeitos de sentidos, elementos
que derivam da forma como a nossa sociedade organiza a distribuição dos espaços de
trabalho, dos lugares de passagem, da forma de utilização desses espaços públicos e dos
lugares que as pessoas ocupam nesses espaços sociais. Consequentemente, do acesso às
riquezas materiais e aos bens simbólicos, colocando em jogo trabalho-remuneração, sentido-
significado do trabalho, distribuição de riquezas, divisão dos homens nas relações de força e
dominação no campo da sociedade na história.
A obra Cem Terra liga à memória do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra
(MST) e remete ao interdiscurso. O interdiscurso é definido como aquilo que fala antes, em
outro lugar, independentemente. Entra a história, a produção de acontecimentos que significa
a maneira como o MST está associado ao comunismo, à esquerda, segundo um imaginário
que afeta os sujeitos em suas posições políticas.
A memória quando é trazida para a relação com o discurso, é tratada como
interdiscurso. A memória discursiva, o saber discursivo é o que torna possível todo dizer que
retorna sob a forma do já-dito, sustentando aquilo que está sendo dito. O interdiscurso
disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva
dada. A observação do interdiscurso nos permite remeter a uma filiação de dizeres, a uma
memória, e a identificá-lo em sua historicidade, mostrando seus compromissos políticos e
ideológicos. Há uma relação entre o já-dito e o que está sendo dito, trata-se do cruzamento do
interdiscurso e do intradiscurso, entre a constituição do sentido e sua formulação.
Assim, tudo o que já se disse sobre os Sem Terra, reforma agrária, invasão, ocupação,
trabalho volta a significar na obra de Tunga. A obra em si, é uma ocupação ou uma invasão
segundo a formação discursiva do passante que olha. A formação discursiva (FD) é uma
matriz de sentido que se recorta do interdiscurso e indica uma determinada formação
ideológica. Uma FD é definida a partir do interdiscurso e entre formações discursivas
distintas que podem estabelecer relações de oposição ou de aliança.
Os cem homens, jovens de profissão office-boys que estão ali, ocupando a Avenida
Paulista em carne e osso, se oferecem como material resistente para a depositação de sentido.
Forçam um deslizamento de sentido sobre o trabalho e sobre quem trabalha. A começar pelos
chapéus que portam: não são capacetes para motocicletas, parecem capacetes de pedreiros,
mas como são feitos de tecido se parecem também com bonés de camelôs. O sentido desliza
para outros “100 sem terra”, marginalizados, anônimos, numerados, classificados,
desassentados, desestabilizados pela urgência da nossa sociedade de consumo, noutra forma
qualquer de trabalho precário.
23

Tunga, que se diz poeta e não artista, afirma na mesma entrevista: “Toda visão poética
é necessariamente política. É preciso tornar vigente o pensamento poético no campo social. É
um mundo efetivo e transformador. É preciso levar a poesia a sério” (BIEN’ART, 2006, p.
20).
A Análise do Discurso é ocupação e a Arte de Tunga também o é. A obra faz uma
pressão e a potência da ação é dar conta do retorno do recalcado. A arte toca os pontos de
silêncio e de recalque, estranha o óbvio e questiona a sociedade contemporânea: põe em crise
o sujeito e as posições onde se inscreve. A arte é aquilo que o olho humano não quer ver, diz
Marcel Duchamp.
Os Cem Terra de Tunga são como salteadores no caminho, que irrompem armados e
roubam – dos que passam apressados – a convicção. A obra luta. E é essa luta corporal da
obra com a ideologia e o desejo que me interessa analisar sob o dispositivo teórico da Análise
do Discurso.

1.2 DESCONTINUIDADE: APROPRIAÇÃO, RESSIGNIFICAÇÃO E


REAPRESENTAÇÃO

A imagem abaixo é da instalação Perto Demais que permite observar, nas fotografias,
a projeção de vídeo do momento em que o artista faz a retirada dos fragmentos do outdoor.
Após a apropriação desse material publicitário, os papéis são deslocados para a sala de
exposição, onde são colados em outdoors internos, ou outdoor indoor inaugurando um
conflito semântico com a dinâmica da cidade (ESCOBAR, 2009).
24

Figura 2 – Daniel Escobar, Série Perto demais, 2005, Institut Goethe. Performance

O trabalho de colagem expõe a textura e a densidade dos materiais. As imagens vão


sofrendo alterações durante a exposição, pois recebem continuamente novos fragmentos que
são mais uma vez colados em sobreposição. Formando uma crosta, ressignificam-se nesta
nova e sempre outra (re)apresentação. “A delicadeza e a fragilidade destas folhas são algo
incompatível com o imenso painel que mobiliza nossa atenção”, comenta Santos (2006, p. 32)
no catálogo da Mostra.
No presente estudo, a publicidade/propaganda é a exterioridade da qual o sujeito na
função-artista se apropria para realizar a sua obra. Pode ser entendida como o pré-construído,
que permite a ele produzir uma nova imagem com formulações distintas e dispersas,
articulando-as entre si em formas artísticas determinadas. Ele revisita, apropria-se, opõe,
transforma, remete-se à história da arte, aos movimentos artísticos e aos seus representantes.
É nesse espaço interdiscursivo – domínio da memória – que se constitui a exterioridade para
as apropriações do artista na proposição dos elementos de ressignificação e reapresentação da
imagem.
25

A publicidade/propaganda e a arte visual são duas práticas discursivas. Segundo


Michel Pêcheux (1997b, p. 213), toda prática discursiva está inscrita “no complexo
contraditório-desigual-sobredeterminado das formações discursivas”. Essas formações
discursivas mantém entre si relações diferenciadas e nelas ocorre um trabalho de
reconfiguração.
Para trabalhar a imagem apropriada da mídia precisei expandir o meu campo
discursivo, que vai além do meu objeto. O meu campo discursivo abrange a arte visual e de
maneira indireta, a publicidade/propaganda. A arte visual (AV) e a publicidade/propaganda
(PP) são dois domínios do conhecimento que por vezes se articulam, noutras se opõem e
ainda podem se apresentar justapostos. O meu corpus discursivo volta-se para a arte visual, aí
me encontro frente um arquivo muito amplo de imagens que são apropriadas da mídia e
trabalhadas por artistas. Deste arquivo, fiz um corte abarcando um conjunto de obras onde
incluo a Série Outdoor’s, de Carlos Goldgrub; a Série (Re)tratos, de Bianca Araújo e a Série
Perto demais, de Daniel Escobar. Destas Séries retirei um conjunto de obras que serão
examinadas pelo observatório da Análise do Discurso em diálogo com outras obras, outras
imagens.
O que interessa neste estudo é indagar: Como funciona esta imagem apropriada? Que
estruturas estão organizando esta imagem? Que posições-sujeito estão em jogo? Quais os
sentidos que estão em deslizamentos?

1.2.1 Outro suporte para a efemeridade

Na Série Perto demais, Daniel Escobar sobrepõe os fragmentos de papel, resultando


numa camada espessa de “enunciados imagéticos” que se interpõem entre a irregularidade da
imagem primeira e da imagem que retirou traços para a sua composição. As imagens de base
publicitária se ajuntam na espessura policromática da estrutura discursivo-visual, em cujo
trajeto, elas se transformam, truncam-se e escondem-se para se apresentarem mais tarde,
atenuam-se ou desaparecem, engendrando memória e esquecimento.
É a tessitura de um texto que se estabelece, enquanto materialidade, efeito do trabalho
de elaboração de uma fantasia que dá lugar ao sujeito. O novo outdoor deixa entrever um
casal que se abraça sob um grande relógio de pulso que lhes oculta as cabeças. No entanto,
mais do que o valor plástico das imagens e as figuras, o que está em jogo é a plasticidade da
paisagem urbana em constante mutação.
26

Figura 3 – Daniel Escobar. Permeável IX, Série Perto demais, 2008 (225cm x 225cm)

O novo outdoor é um corpo de traços inscritos neste espaço sob formas extremamente
variadas que remete à memória coletiva. O seu autor é um andarilho, um catador que retira
seus elementos de um corpo social. Nas palavras de Pêcheux, o corpo coletivo é composto de
traços que remetem a um conjunto complexo, pré-existente e exterior a esse corpo,
“constituído por séries de tecidos de índices legíveis, constituintes de um corpo sócio-
histórico de traços” (PÊCHEUX, 1990, p. 286).
Trata-se da busca de combinações inesperadas de imagens como justifica a frase do
poeta Lautréamont, tido como um precursor do surrealismo: “Belo como o encontro casual de
uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de operações” (CHILVERS, 2001, p.
513).
A obra baseia-se nas associações antes negligenciadas e no jogo desinteressado do
pensamento. O autor dispõe essas imagens em estilo gestual, enfatizando as qualidades de
elementos incompatíveis e desconexos, aproximando-os ou superpondo-os, numa colagem em
superfície, produzindo efeito quase tridimensional, trabalhando as lacunas, num esforço de
preenchimento vazado, pois é na superposição de furos que a obra de Escobar se sustenta.
27

Figura 4 – Daniel Escobar. Permeável VIII Série Perto demais, 2007 (225cm x 225cm)

Acima, as ondas azuis ao mesmo tempo em que equilibram a imagem, vão se tornando
líquidas, evaporam-se, até desfazer a imagem. Laboriosamente, o artista constrói posturas
críticas investigando a efemeridade em exibição no circuito publicitário. Busca inspiração no
ambiente circundante, promove as possibilidades poéticas dos dejetos urbanos e na
contaminação dessas sobras, consegue produzir uma pintura.

1.2.2 O re-enquadre da promessa impossível

Na relação da arte com a paisagem urbana, a Série Outdoor’s, de Goldgrub tem muito
a contribuir. A imagem abaixo, envolve um homem e uma mulher abraçados. A mulher de
perfil com rosto de linhas clássicas e o homem de costas. Trata-se do corpo perfeito,
anatômico, em comunhão, presença do corpo no grau zero, o corpo que não pesa e não dói no
estado de felicidade. A imagem remete a uma experiência idealizada de plena gratificação:
reúne amor, beleza, elegância, sensualidade, juventude.
28

Figura 5 – Carlos Goldgrub. Série Outdoor’s, 2004

Aí está a superfície material: um objeto de potencial fascínio, corpo de sombra e luz a


dar-lhe forma e figura, solicita investimento. A fotografia particulariza e corta uma totalidade
inapreensível. No corte faz a ruptura, tanto na publicidade como na arte, ou numa ou noutra,
para em seguida voltar a reproduzir relações estanques, vulgarizadas, entrecruzando
proposições de aparência logicamente estável, suscetíveis de respostas unívocas.
O compromisso ético das imagens é frágil. Exige novo enquadre, exige transformação
no meio dessa circulação-confronto de formulações irremediavelmente equívocas para voltar
a interpelar produzindo outros sentidos. Convida, dessa maneira, a aprofundar as relações
entre o funcionamento da imagem tanto na publicidade como na arte.
Um anúncio publicitário, embora contenha sentidos em deslizamento, busca uma série
de respostas unívocas – tais como apresentar um produto ou provocar uma reação de compra
– num espaço de predicados, de argumentos e de relações logicamente estabilizadas. Busca
marcas e objetos simbólicos suscetíveis de se associarem a este produto ou marca e espera que
sejam “apropriados” pelos consumidores que se identificam com a proposta.
Porém, no momento em que, simultaneamente, o mesmo anúncio é tomado pelo artista
e recortado – retirado o produto e os enunciados sobre as suas qualidades – emerge uma nova
imagem, nova formulação em uma rede de relações associativas indiretas e heterogêneas,
funcionando sob diferentes registros discursivos, e com uma estabilidade lógica variável.
Assim, o recorte artístico que toma por base a estrutura da publicidade produz uma torção
nesse arcabouço e instaura um outro discurso, conforme teoriza Pêcheux (1983), ou seja, “não
funciona como uma proposição estabilizada, mas como um ponto em um espaço de
disjunções lógicas” (PÊCHEUX, 2006, p. 23), que vai mobilizar a identificação de leitores
29

que, não necessariamente, estejam interessados no produto veiculado ou em suas


propriedades.
O apagamento do produto na imagem artística desestabiliza a imagem e provoca uma
disjunção, induz a um complexo efeito de sentido à imagem, outros objetos discursivos vêm
trocar seus trajetos com outros tipos de objetos, convocando outras posições-sujeito.
No presente estudo, a imagem fotográfica é uma materialidade onde se efetivam as
relações de interdependência entre a linguagem e a ideologia. Trata-se de uma estrutura-em-
funcionamento, linguagem que só se oferece à compreensão no viés ideológico: a princípio
criada para interpelar o consumidor, porém transformada pelo artista, subverte-se e convoca
outras tomadas de posição.
Pêcheux (1999a) em O mecanismo do (des)conhecimento ideológico considera um
engano, tendo por referência o pensamento dialético, localizar em lugares diferentes, de um
lado aquilo que reforça a reprodução das relações de produção e, de outro, o que contribui
para a sua transformação. Portanto, não se pode partir da premissa de que a PP é da ordem da
reprodução das relações de produção e a AV é da ordem da transformação, ambas são práticas
discursivas que contribuem igualmente para a sua reprodução e a sua transformação. Nessa
linha, tanto a arte, quanto a propaganda constituem, simultânea e contraditoriamente, a sede
das condições ideológicas da transformação das relações de produção. Essas condições
contraditórias são constituídas num determinado momento histórico e numa formação social
específica, num conjunto complexo com relações de “contradição-desigualdade-
subordinação” entre seus elementos.
No presente estudo, Publicidade e Artes Visuais são dois campos em tensão, já que
oferecem seus “objetos” ideológicos, de acordo com seus interesses, descrevendo o seu
“modo de usar”, isto é, seu sentido, de acordo com os interesses da classe a que servem. Esses
objetos ideológicos, que muitas vezes são retirados do campo do outro, enquanto restos que
sofrem uma bricolagem são reaproveitados e reposicionados no novo campo. Segundo
Pêcheux, “não são os objetos ideológicos tomados um a um, mas a própria divisão em regiões
e as relações de desigualdade-subordinação que estão em jogo” (PÊCHEUX, 1999a, p. 45).
A variação da superfície da imagem – que se dá através de um novo enquadramento
fotográfico – ressalta alguns traços da imagem, cujo efeito é possibilitar um deslizamento
semântico do domínio da Publicidade/Propaganda para o domínio da Arte Visual. Trata-se do
confronto discursivo por um intenso trabalho de formulações retomadas, deslocadas e
invertidas de um campo a outro. Na figura 6, a imagem remete a um “Amilcar de Castro
mole”, onde corte e dobra se ordenam no entranhamento do corpo. A tensão estrutural da
30

dobra se instala na possibilidade de sua iminente reversibilidade, combinando-se com os


olhos e os lábios, que são cortes e dobras do corpo.

Figura 6 – Carlos Goldgrub. Série Outdoor’s, 2004

1.2.3 Desfocar, sobrepor, inquietar

A seguir, apresento uma obra da Série (Re)tratos – da artista gaúcha Bianca Araújo –
que são imagens de imagens fotográficas apropriadas de colunas sociais de jornais que
colocam em jogo o conceito do retrato no sentido de mostrar-se para um círculo social, ao
mesmo tempo que a palavra re-tratar significa tratar de outra forma ou ainda retratação como
forma de justificar-se aos outros (ARAÚJO, 2005).
31

Figura 7 – Bianca Araújo. Processo fotogramático. Série Retratos, 2005

A artista fotocopia a imagem e depois procede à pintura a óleo sobre as imagens.


Através das intervenções pictóricas procura ressaltar as poses repetidas, ao interferir nos olhos
ou na boca criando os aspectos borrados e desfocados da fotografia original, no intuito de
ressaltar gestos que são produtos de aceitação social. A artista acerca-se da pose forjada no
enquadramento dos sorrisos padronizados expressos para produzir inscrição em determinada
classe social. Massificados, os gestos não guardam singularidade, a não ser pela manipulação
que lhes retoca as expressões.
A imagem fotográfica que fora apropriada de um veículo de comunicação de massa
transformou-se em fotocópia, depois em pintura e é novamente fotografada pela artista. Essas
imagens em positivo revelam uma fusão entre pintura e fotografia, sendo que o jornal também
está presente, pois a imagem revela o texto do verso da página, mesmo com a pintura,
conserva certa transparência.
A figura 8 refere-se ao processo de fotograma, agora em negativo, segunda etapa de
construção da imagem, permite visualizar melhor o texto no verso.
32

Figura 8 – Bianca Araújo. Processo fotogramático. Série Retratos, 2005

Neste processo, para descontinuar a imagem veiculada pela mídia de massa, a autora
faz retorno ao interdiscurso e reformula a imagem, intervindo através da pintura que é uma
técnica medieval, comparada ao recurso contemporâneo da fotografia.
A reportagem que está no verso da imagem em texto fragmentado pela ação da pintura
e pelo recorte da foto permite ler parte de frases e parte de palavras, tais como: “dônia”,
“federais e líderes”, “está fundamen”, “extração ilegal de”, “ão une caciqu e gar”, “índio”,
“brancos”, “ipal veio d’água”. Portanto, a reportagem que está no verso da coluna social, trata
de uma provável “ação ilegal relacionada à exploração de recursos naturais que envolve
cacique, garimpeiros, brancos e índios em Rondônia”.
33

Figura 9 – Bianca Araújo. Processo pictórico. Série (Re)tratos, 2005

Esta imagem funciona como um texto de grande heterogeneidade, atravessado por


diferentes formações discursivas. Observa-se um discurso jurídico que regulamenta a
exploração e uso de recursos naturais. No entanto, a notícia deixa entrever diferentes sentidos
em relação à questão da extração e propriedade desses recursos. Esses sentidos são
ressignificados nas diferentes FDs na forma-sujeito garimpeiro e na forma-sujeito índio e na
posição-sujeito de cacique e de outras lideranças que não reconhecem o sentido instituído
proveniente do discurso jurídico. O texto marca uma polarização entre o discurso jurídico
versus o discurso das formas-sujeito de índio e garimpeiro. A forma-sujeito índio e a forma-
sujeito garimpeiro são duas posições de sujeito bem marcadas, atravessadas pela ideia de
unicidade e de oposição entre elas. No entanto, no momento em que essas duas formas-sujeito
se unem numa ação conjunta de interesse comum, deixam em evidência a sua
heterogeneidade. Revelam a troca de saberes entre as respectivas formações discursivas que
em outros momentos estiveram em oposição, mas que hoje estabelecem alianças.
Portanto, não se trata mais de uma forma-sujeito homogênea; estamos diante de um
conjunto de diferentes posições de sujeito, e não apenas duas, e esse rol de posições-sujeito é
que vai produzir a forma-sujeito. Por outro lado, “uma forma-sujeito fragmentada, como
afirma Indursky (2008, p. 18) abre espaço não só para o semelhante, mas também para o
34

diferente, o divergente, o estranho”, o que resulta numa formação discursiva heterogênea cuja
peculiaridade é a contradição, que a constitui.

Figura 10 - Bianca Araújo, Série polícia

A artista inicialmente trabalhou com imagens de jornal, onde duas formações


discursivas antagônicas se apresentavam lado a lado, como é o caso das duas figuras acima. O
texto escrito é recoberto e se transforma em blocos, semelhante a uma parede que dá
sustentação às duas imagens irreconciliáveis.
Na segunda fase do seu trabalho, a artista opta pelo efeito da sobreposição imagem-
texto. Através desta estrutura-discursivo-visual, provoca tensão e estranhamento superpondo à
coluna social outra notícia sobre personagens excluídos da história oficial. Aqueles que
sofrem um apagamento social e que, facilmente, são conduzidos à ilegalidade. É um exemplo
da interpelação ideológica funcionando contra si mesma, conforme refere Pêcheux. E essa é a
potência da arte e o compromisso ético das imagens.
35

1.2.4 A imagem e os processos de interpelação-reprodução-transformação

Pêcheux situa, na interpelação, a trama vincular entre a constituição do sentido e a


constituição do sujeito (PÊCHEUX, 1999a, p.149). Associa a interpelação à metáfora de
constituição e controle social, vinculados à convocação tanto da Igreja quanto à da Polícia.
Assim, como a interpelação do Capital convoca “no mercado” o consumidor e torna palpável
o vínculo superestrutural – jurídico-político e ideológico – determinado pela infraestrutura
econômica. Nesta perspectiva da metáfora de constituição e controle social capitalista, a
interpelação é intermediada pela mercadoria exposta através da publicidade/propaganda. Esse
tipo de interpelação configura sujeitos compostos por uma coletividade de sujeitos
consumidores. Tal coletividade de sujeitos pré-existe aos sujeitos, como uma forma de
socialização dos indivíduos através das mercadorias que os significam e a quem esses
atribuem sentido.
A interpelação tem, assim, um efeito retroativo: todo indivíduo é desde sempre-já
sujeito. O sujeito sempre foi um indivíduo interpelado como sujeito na evidência do sujeito
como único, insubstituível e idêntico a si mesmo: “Eu tenho!” “Sou eu!” “É comigo mesmo!”
“Eu comprei!”. O que está subentendido: a evidência da identidade esconde o fato de que ela
é o resultado de uma identificação-interpelação do sujeito, cuja origem externa está próxima
ao que Lacan chamaria de êxtimo, ou seja, esse externo que constitui o íntimo.
Pêcheux (1975), ao abordar a questão ideológica do “conhecimento científico”, abre a
possibilidade para que se estabeleça relação, no presente estudo, com a situação circunscrita
que delimita os dois campos da publicidade/propaganda e da arte visual, enquanto uma
simulação especulativa, isto é, em espelho que acolhe projeções e que se torna possível
através de duas figuras articuladas de sujeito ideológico: identificação-unificação do sujeito
consigo mesmo (eu vejo assim, portanto, eu sou assim) e identificação-unificação do sujeito
com o universal (cada um sabe que, todo mundo sabe) (PÊCHEUX 1997b, p. 125). Quando se
fala de “consumidor” ou de “autor”, fala-se de efeito-sujeito, determinado pelas posições
transitórias produzidas na descontinuidade. São os processos de imposição/dissimulação que
constituem o sujeito, que pensam o sujeito “situando-o” (significando para ele o que ele é) e,
ao mesmo tempo, dissimulando para ele essa situação (esse assujeitamento) pela ilusão de
autonomia constitutiva do sujeito, de modo que o sujeito “funcione por si mesmo”. Para
Althusser, a teoria não-subjetivista do sujeito é a teoria das condições ideológicas da
36

reprodução/transformação das relações de produção: a relação entre inconsciente freudiano e


ideologia no sentido de Marx.
A reprodução-transformação das relações de produção é um processo material, porém
complexo, cujo enigma tem que ser investigado, onde uma simples observação não dá conta.
Daí a importância de estreitar as relações entre inconsciente e ideologia, enfatizadas por
Pêcheux.
Tanto o inconsciente, quanto a ideologia se constituem de representações. O
inconsciente freudiano é a sede de pensamentos, imagens e recordações recalcadas – portanto,
de representações – ligadas a uma pulsão que o sujeito procura repelir. A ideologia funciona
por representações de situações objetivamente definíveis nos mecanismos de formação social
– posições – que são esses lugares sociais representados nos processos discursivos, às quais o
sujeito procura aderir no sentido de precisar da ideologia para se inscrever. Ou seja, a questão
mesma do assujeitamento para existir socialmente.
Então, o mesmo sujeito pode “aderir” às posições, ou seja, às representações de
consumidor, identificando-se com a publicidade/propaganda; ou de artista, identificando-se
com a arte, dependendo da situação concreta em que se encontra. Conforme Pêcheux (1969),
uma situação pode desencadear várias representações de posição e diferentes situações podem
corresponder a uma mesma posição (PÊCHEUX, 1997a).
Segundo as proposições de Althusser (2007) a ideologia interpela os indivíduos em
sujeitos, logo não existe ideologia, exceto pelo sujeito e para os sujeitos. Também não existe
prática a não ser na ideologia e pela ideologia. E as relações de produção são relações entre os
homens, não são relações entre coisas, produtos ou máquinas.
A ideologia é a-histórica, ou seja, oni-histórica, portanto, a ideologia é eterna, no
sentido de ser uma condicionante para a existência do sujeito. Da mesma forma, o
inconsciente é eterno, como afirma Freud, já que não existe sujeito livre de recalcamento. O
sujeito só existe a partir do recalcamento das pulsões, ou seja, sua existência só é possível
pela via do inconsciente. Pêcheux ressalta outro traço comum entre essas duas estruturas que é
o fato delas funcionarem ocultando a sua própria existência e produzindo uma rede de
evidências em que o sujeito se constitui (PÊCHEUX, 1999a, p. 148), que são os lapsos, atos
falhos e chistes.
Como já foi dito, as imagens, enquanto estruturas de base, são suscetíveis de servir
tanto à publicidade quanto à arte. No entanto, a presença de uma descontinuidade, uma não-
neutralidade, uma não-indiferença entre publicidade e arte é que remete ao domínio do
esquecimento, apagando a presença da peça publicitária na obra de arte, ou seja, esse
37

esquecimento provoca um desconhecimento engendrado por uma concepção ideológica de


descontinuidade entre publicidade/arte.
A análise do discurso – teoria de vertente materialista – busca o processo discursivo-
ideológico por meio das relações de discrepância e de descontinuidade na estrutura de base da
propaganda e da arte visual. Os apaziguadores mecanismos de encaixe e articulação que
possam existir entre elas, não seriam muito interessantes, nesta análise. No caso em que a
arte visual é a base estrutural da publicidade/propaganda, existe uma relação mais presente de
encaixe e articulação, ou seja, a propaganda se serve da arte para produzir harmonia e/ou
sedução na mercadoria, cujo efeito deve conduzir ao comportamento afirmativo do
consumidor de concretizar a compra. Quanto à outra via, a via que me interessa, onde a arte
visual se serve da publicidade/propaganda, as relações são em geral de discrepância, pois
desterritorializa e desconecta a superfície de seu campo de origem e faz a reapresentação do
objeto e do problema. Em síntese, a relação de encaixe e articulação da arte na publicidade é
de uma ordem mais preditiva, portanto redutora do comportamento humano; ao passo que a
relação de descontinuidade e discrepância da publicidade capturada e manipulada na teia da
arte aponta para a imprevisibilidade e reinvenção no campo político, abre espaço para a
suspensão do sentido que está posto e para outras práticas políticas.
A arte cria a partir da ideologia, retira elementos dela. Marcel Duchamp, através de
seus readymades, fez ver que existe algo de estético nas mercadorias produzidas em série que
transcende a mera utilidade a que ficam reduzidas, o que pode ser observado quando elas são
desterritorializadas das lojas para os museus ou salas de exposição. De forma semelhante, nos
trabalhos de Goldgrub, Araújo e Escobar existe um esforço em dar passagem ao singular
naquilo que é produzido pela Publicidade/Propaganda, fazendo um apagamento da produção
em série e da estimulação em (de) massa.
A concepção de descontinuidade, como é tratada por Pêcheux (1975), substitui a ideia
de oposição abandonada a si mesma, fechada na sua natureza idealista entre Publicidade de
um lado, e Arte, de outro lado, ambas ilesas e preservadas. Portanto, arte e publicidade não
são opostas, são descontínuas e ambas com atravessamento ideológico. O par publicidade/arte
está pronto a prestar serviço: mobilizar certo tipo de comportamento por parte daquele a quem
está se dirigindo. A arte e a publicidade produzem uma intervenção com elementos do
cotidiano, tornam-se uma força material, que toca os olhos e o coração e aportam
possibilidades dialéticas, fazendo com que as evidências do cotidiano não sejam óbvias, mas à
deriva. Os traços inconscientes do significante não descansam e o sentido é produzido no non-
sens pelo deslizamento sem origem do significante. Pêcheux (1975) acrescenta que esse
38

deslizamento [do significante] não desaparece sem deixar traços no sujeito-ego da “forma-
sujeito” ideológica, identificada com a evidência de um sentido (PÊCHEUX, 1997b, p. 300).
O processo de identificação é representado ideologicamente sob a forma da
“intersubjetividade” e do “consenso”. O mundo das ideias não permite assegurar uma
referência, exceto pela força das ilusões que se apoderam de cada sujeito, sob a forma do
consenso e do conformismo (PÊCHEUX, 1997b, p. 129).
O discurso, abordam Pêcheux e Fuchs (1997, p. 82), é um efeito de sentido entre os
pontos A e B. Transpondo para o objeto de análise, a imagem (discurso) veiculada através da
publicidade/propaganda pelo grande capital/grande mídia (A) para o consumidor/espectador
(B), onde A e B designam lugares determinados na estrutura de uma formação social. Então,
no interior do universo da produção econômica, os lugares de grande capital (empresa que
anuncia as vantagens de seus produtos num outdoor ou pessoas que querem “vender-se” na
coluna social de um jornal de grande circulação) e de consumidor são marcados por
especificidades determináveis. Assim como, a relação entre a obra de arte (séries) apresentada
pelo artista trata-se de uma representação, no sentido de que o lugar social se faz presente,
mas transformado.
Segundo Michel Pêcheux (1997a), o que funciona nos processos discursivos é um
conjunto de formações imaginárias que indicam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e
ao outro, a imagem que fazem do seu próprio lugar e do lugar do outro na estrutura social a
que pertencem. Portanto, existem em qualquer formação social normas de projeção, que
organizam as relações entre as situações em que se encontra o sujeito empírico e as posições
que são representações dessas situações. Todo o processo discursivo pressupõe, por parte do
emissor, uma antecipação das representações do receptor, sobre a qual se funda a estratégia
discursiva, assim, a posição dos protagonistas intervém nas condições de produção do
discurso.
A publicidade/propaganda dirige-se para uma posição-sujeito e a arte visual para outra
posição-sujeito, que designam algo diferente do sujeito empírico, designam lugares
determinados na estrutura de uma formação social. Porém, não são apenas lugares empíricos
na esfera da produção econômica, por exemplo, os lugares de consumidor, de socialite e de
artista. São lugares discursivos marcados por propriedades diferenciais determináveis
vinculados ao fantasma – ao roteiro individual de satisfação do desejo e à forma de inscrição
social possível para o sujeito.
39

Quanto ao deslizamento de sentido da imagem de base da publicidade/propaganda


para a arte visual, observa-se que ambas utilizam-se de práticas científicas anteriores, no caso
– a fotografia – técnica em comum, ponto de origem e de disjunção ao mesmo tempo, garantia
tanto da propaganda como da arte visual. O próprio surgimento da fotografia transformou em
procedimento mecânico a técnica que já havia sido construída pelo olhar dos pintores
renascentistas, como mostra Arlindo Machado (1984) em A ilusão especular. A fotografia
automatizou o uso da perspectiva, que já era uma prática desde o século XV, incluindo a
utilização de diagramas e de aparelhos de precisão que permitiam estabelecer a “perspectiva
artificialis”.
Importante lembrar que a Arte nesse período histórico, cumpria uma função muito
próxima à Publicidade/Propaganda, divulgando as dinastias e a igreja. Ou seja, a Arte estava a
serviço da ideologia dominante patrocinada para divulgar e perpetuar a monarquia e o clero.
Portanto, já não é de agora que a báscula se abre e se fecha na relação AV-PP-AV. É o que se
pode observar nas condições de produção, os processos de reprodução-transformação.
Pêcheux (1975) afirma que em cada ciência dois momentos se sucedem: um primeiro
momento, que é o momento fundador da transformação produtora de seu objeto, que é
dominado por uma ênfase de elaboração teórico-conceitual que subverte o discurso ideológico
com que esta ciência rompe (PÊCHEUX, 1997b). O segundo momento é o da reprodução
metódica do objeto de uma ciência, em cujo processo uma ciência cria o seu espaço de jogo,
propõe questões específicas, ajusta o discurso teórico, desenvolve consistência e necessidade.
Althusser (2007), em Aparelhos ideológicos de estado, alerta para o conceito de reprodução,
que não se trata de repetição, mas de uma forma de existência e de continuidade de um
sistema.
A ideia do momento fundador de um campo poderia ser transposta para o estudo em
questão, na transformação que a arte faz no território da publicidade/propaganda, subvertendo
esse discurso ideológico com o qual rompe. E o momento da reprodução metódica do objeto
como um espaço de jogo, pode ser observado na produção das Séries, onde os artistas
desenvolvem a consistência de seu objeto e propõem questões específicas, através de
múltiplas formulações e intervenções nas imagens fotográficas anteriores.
A descontinuidade de uma superfície – da imagem – para a Arte trata-se de uma
reinvenção, de uma exposição, de uma “aventura”. Para a Psicanálise, a busca do sujeito em
reconhecer um significante capaz de representá-lo. Para a Análise do Discurso, outro discurso,
ponto de ruptura que instaura nova rede de dizeres, novas práticas discursivas.
40

1.2.5 Na trama do evidente, ausente e intangível

Para dinamizar os fragmentos que se desprendem desses três campos (AD, Psicanálise
e Arte) desenvolvo, a seguir, outra topologia de coexistência para os aspectos
interdependentes na imagem:

Intangível

Evidente Ausente

Figura 11 – A trama do objeto-imagem (adaptado de ORLANDI, 2004b)


Fonte: Luciene Jung de Campos

Tomo a trama do evidente, do ausente e do intangível, enquanto enlace em


superposição das três formas possíveis de presença que são referidas por Orlandi (2004b), e
coloco em seu centro, a imagem. Da mesma forma, Lacan trabalhou o objeto a no centro da
topologia do real, simbólico e imaginário, na releitura do inconsciente. É nesse espaço
vazado, de fronteiras nômades onde disponho as séries Outdoor’s, Re-tratos e Perto demais –
imagens mobilizadoras da estrutura – que fazem acionar o referencial teórico-metodológico
da AD.
A imagem é uma linguagem que não diz tudo, enquanto saber incompleto, e por isso
se deixou apropriar pela arte visual (AV). O fato da publicidade/propaganda (PP) não dizer
tudo, é o que faz com que Goldgrub, Araújo e Escobar tenham a dizer, ainda. Toda imagem
traz consigo, além do evidente, aquilo que não pode ser simbolizado e integrado. Longe da
41

obsessão de alcançar o todo, pois no todo nada se diz, o artista consegue ver a imagem nesse
espaço de falha inerente e abrir novas possibilidades.
A publicidade/propaganda, sob a perspectiva de Althusser (2007), em Aparelhos
ideológicos de estado, pode ser pensada como um ritual de interpelação ideológica do sistema
dominante, uma prática de manutenção e reprodução do capitalismo. Ao passo que a arte, ao
se apropriar das imagens veiculadas pela propaganda, procura jogar com o non-sens, urde o
equívoco e contamina a ideologia dominante.
Penso que a arte visual e mais diretamente a arte pop no que concerne às estratégias
utilizadas na elaboração da imagem, com preponderância da ideia e transitoriedade dos meios,
opera um deslocamento com a apropriação de fotogramas de jornais e cartazes veiculados em
ruas de intensa circulação, nas grandes cidades. Esse objeto-imagem situa-se na mesma
sequência da série analítica do sonho-lapso-ato falho-witz, apontada por Pêcheux (1975),
enquanto falhas no ritual ideológico:

O lapso e o ato falho (falhas do ritual, bloqueio da ordem ideológica) bem que
poderiam ter alguma coisa de muito preciso a ver com esse ponto sempre-já aí, essa
origem não-detectável da resistência e da revolta: formas de aparição fugidias de
alguma coisa “de uma outra ordem”, vitórias ínfimas que, no tempo de um
relâmpago, colocam em xeque a ideologia dominante tirando partido do seu
desequilíbrio (PÊCHEUX, 1997b, p. 301, o grifo é meu).

Nessa constatação de Pêcheux, posso observar o seu interesse nas produções do


inconsciente, todavia com um foco diferente daquele de Freud, pois a Pêcheux mais do que a
vinculação aos processos mentais, interessa e desafia a ligação existente dessas erupções com
a ideologia, no intuito de analisar como essas presenças fazem furo nas práticas sociais.
Assim, a série analítica subversiva sonho-lapso-ato falho-witz é tomada como uma outra
forma de presença, até então ausente.
Quanto às séries artísticas Outdoor’s, Re-tratos e Perto demais em análise no presente
estudo, também as vejo como “séries subversivas”, imprevisíveis, que se revoltam e
desequilibram as evidências da sociedade de consumo, enquanto falha do ritual e bloqueio da
ordem ideológica no seio do aparelho de reprodução da publicidade e propaganda. Por isso,
parece-me possível estabelecer um diálogo direto entre os dois pensadores, Freud e Pêcheux,
para pensar a presença intangível dos processos de deslocamento e condensação que vão
determinar o jogo entre aquilo que deve e não deve ficar ausente para que o evidente se
desinstale.
42

Pêcheux (1997b) assinala uma característica atemporal (sempre-já aí) e intangível de


um detonador que provoca fissuras na ideologia dominante. Essa questão da atemporalidade é
apresentada por Freud (1976a) em A interpretação de sonhos (1900), como uma das
características do inconsciente. Na Psicopatologia da vida cotidiana (1901), além dessas
constatações sobre as manifestações do inconsciente no consciente, ele aborda as
manifestações do inconsciente como visíveis na trivialidade do dia-a-dia. Portanto, não estão
soterradas nas profundezas da mente, mas justamente, elas aparecem enquanto uma aparição
fugidia, como assinala Pêcheux. Pode-se observar que os dois autores compreendem os
fenômenos inconscientes numa dimensão moebiana, de dupla face, que relampeja sob leve
torção da superfície.
Para Freud (1976c), o chiste (witz) é a capacidade de deslocamento de energia psíquica
ao longo de certos trajetos associativos que sugere uma tentativa de figurar de outra forma o
desconhecido. Esse processo “submete” alguns elementos, dos quais retira a energia, em prol
de outros elementos que receberão esta energia desinvestida, agora reinvestida. Certamente,
essa energia psíquica que se desloca, a que se refere Freud, vem acompanhada de uma ideia
inconsciente que irrompe na consciência. Ou seja, algo que estava ausente, precisou fazer um
percurso entre um sistema e outro para se fazer presente, havendo uma alteração da
cartografia da consciência.
Neste sentido, também se podem relacionar as formações discursivas que se
comunicam no interdiscurso, enquanto fronteiras deformáveis que se afetam mutuamente.
Penso que existe um funcionamento análogo na forma-sujeito, por exemplo, em que alguns
elementos constitutivos da formação discursiva (FD) são desinvestidos e ficam submetidos a
outros que recebem um reinvestimento, fazendo deslocar a ideia e migrar o sentido de um
espaço para outro.
Portanto, construir e compartilhar uma série analítica subversiva ou uma série
artística pressupõe interpelação ideológica que possibilite a transcrição mutilada e alterada de
certas estruturas e que ainda assim elas possam ser reconhecidas. Esses processos, que são da
ordem do intangível, pressupõem deslocamento e condensação. É preciso que o autor do
chiste e seu ouvinte, ou o artista e o observador, transitem em formações discursivas com
relativa proximidade, em função da heterogeneidade e permeabilidade das FDs, o que vai
permitir ao artista e, ao observador de sua obra, novas tomadas de posição.
43

Nas três séries Re-tratos, Outdoor’s e Perto demais ocorre a apropriação de imagens
retiradas de fotografias das colunas sociais dos jornais e de outdoors. A re-elaboração daquilo
que foi apropriado é um mecanismo necessário para que a imagem possa ser deslocada de um
espaço para outro.
44

2 CONFLUÊNCIAS QUE FALHAM

Neste capítulo pretendo abordar litorais, cujas correntes, na tentativa de se encontrar,


falham. Essas correntes ao se cruzarem ao acaso ou intencionalmente, se chocam e se
dispersam, mesmo no ensaio de se respaldarem teórica e politicamente. Ao contrário, essas
confluências resultam em abandonos, errâncias, transformações, revisões e problematizações.
Quando me proponho abordar confluências que falham, refiro-me à impossibilidade de
fazer uma síntese. No entanto, penso que é possível produzir deslocamentos em campos
diversos e complexos como o materialismo histórico, a psicanálise, a arte contemporânea e a
análise do discurso. Opto por trabalhar no nó onde esses campos se cruzam, apertam-se e
afrouxam-se. Esse nó é o lugar teórico do intrincamento da imagem, onde a arte põe em
questão o sujeito, a linguagem e a história, sob o olhar do analista do discurso.

2.1 A ARTE POP, SEUS ANTECEDENTES HISTÓRICOS E O PANORAMA DOS


ANOS 60

Arrisco uma primeira aproximação entre a filosofia materialista-histórico-dialética


repensada por Louis Althusser e o movimento artístico contemporâneo conhecido como arte
pop. Esse mesmo autor que inscreve o marxismo na história da filosofia nos anos 1960-75,
também fornece o registro para o conceito de ideologia – um dos suportes teóricos da Análise
do Discurso.
Althusser, designado como o último pensador marxista, legitima um pensamento
considerado perverso na sociedade capitalista ocidental, opõe a filosofia conceitual à filosofia
da consciência e afirma o conceito de processo sem sujeito para definir o lugar da
subjetividade na história. Assim, distinguia essa teoria, de uma filosofia da consciência
fundada no sujeito centrado, o que ia ao encontro das ideias de Michel Pêcheux, na construção
de seu novo objeto – enquanto disciplina não positivista.
No final dos anos sessenta, a publicação da obra Os Aparelhos ideológicos de estado
(AIE) por Althusser, apresenta-se como uma tentativa de pensar o modo pelo qual as
instituições contribuem para a reprodução das relações de produção vigentes. Mostra que
esses aparatos são plurais na sua origem e que existem em relações de contradição-
desigualdade-subordinação.
45

Segundo Michel Pêcheux, Os Aparelhos ideológicos de estado eram lidos massivamente, e


por diferentes facções – como uma intervenção apenas teórica, enquanto uma tese funcionalista, seja
para reproduzi-la, seja para condená-la:

E alguns ousariam ainda hoje – a despeito de todas as retificações de Althusser, das


quais simplesmente não se considera a existência – ir até o fim afirmando que o
“althusserianismo” é um pensamento da Ordem e do Mestre, que se constitui por
uma dupla circunscrição: da História (enclausurada na reprodução) e do Sujeito
(reduzido ao autômato “que anda sozinho”). Era preciso fazê-lo! Como se o
ressentimento não perdoasse a Althusser o fato de ter designado politicamente a
peste do assujeitamento (PÊCHEUX, 1997b, p. 296).

Essas ideias repercutem no meio artístico, provocando um questionamento quanto às


funções da arte, principalmente em relação às instituições que a sustentam – o mercado e o
museu (WOOD, 2002). Assim, Althusser institui o culto a uma ideologia perturbadora que
parte da universidade e chega até os museus. Consequentemente, é acusado de corromper a
juventude francesa e as duas mais belas instituições da república, conforme lembra
Roudinesco (2007) situando-o como um dos filósofos malditos de sua época.
A arte viveu uma notável e crescente politização, ampliando-se para uma dimensão de
práticas culturais engajadas fora do controle e do universo da arte, abalando a ideia de
sublime e de bom e mau gosto burguês. O sentido de arte que se desenvolvia resultava de uma
mudança na concepção de vida social e o movimento conhecido como arte pop ganha força no
final dos anos 60.
A arte pop floresceu na Inglaterra e nos EUA entre o final da década de 50 e início dos
anos 70, buscava inspiração no consumismo crescente e na cultura popular. A iconografia do
movimento apropriava-se de imagens da televisão e do cinema, de publicidade, histórias em
quadrinhos e embalagens. O que levava alguns críticos a pensar que essa arte era passageira e,
portanto, uma arte menor (MCCARTHY, 2002).
Para Lucie-Smith (2000), a arte pop foi um movimento meio “underground”, quando
veio à tona provou recuo e resistência, principalmente em Nova York. O movimento foi
associado a uma reação ao expressionismo abstrato, que tem como seu principal expoente, o
pintor norte-americano Jackson Pollock (1912-1956). A obra de Pollock era interpretada pelos
críticos como expressão das dolorosas paixões pessoais em detrimento à observação do
mundo exterior. A arte pop foi acusada de tentar destituir o expressionismo abstrato, então
considerado o primeiro estilo a conquistar destaque internacional, que se estabeleceu nos
Estados Unidos.
46

Os artistas pop voltam às imagens figurativas de apresentação quase fotográficas.


Preferiam técnicas comerciais a técnicas pictóricas e usavam colagens, esculturas de latas de
cerveja, latas de sopa, sinais de trânsito, placas e números. Por fazerem uso de temas banais,
às vezes ultrajantes e provocativos, foram considerados neodadaístas. Para alguns críticos, a
arte pop era simplesmente uma contribuição para a crítica de arte. No entanto, apesar de todas
essas desconfianças, a arte pop ganhou penetração no público e foi adquirida por
colecionadores. “Os principais artistas pop conquistaram seu espaço e até ficaram ricos num
prazo espantosamente curto” (LUCIE-SMITH, 2000, p. 161).
Aparentemente popular e compreensível a qualquer um que a observasse, a arte pop é
de fato um movimento intelectualizado e com “aguda consciência de seus antecedentes
históricos”, como lembra McCarthy (2002, p. 15). A arte pop lança mão de ideias e atitudes
de movimentos de arte do início do século XX. A apropriação de recortes de jornais e revistas
remete aos materiais bidimensionais das colagens cubistas de Picasso e Braque, entre 1912 e
1914. O interesse por pôsteres, letreiros, cigarros, enlatados e embalagens associa-se aos
ambientes dos cafés e restaurantes. Existe uma dívida clara com o futurismo italiano, no que
se refere à tecnologia e à velocidade celebrada por meio dos automóveis, enquanto uma
experiência particularmente moderna.
No entanto, o dadaísmo e o surrealismo são considerados os movimentos que tiveram
maior influência no desenvolvimento da arte pop. O dadá é um movimento contemporâneo à
Primeira Guerra Mundial e com frequência adotava o niilismo e a estética anti-arte para
protestar contra a civilização que empreendia a guerra. O surrealismo tinha por base o
dadaísmo, mas se interessava por desestabilizar a consciência e procurava colocar em
evidência os impulsos inconscientes enquanto propulsores das atitudes humanas. Esses
movimentos fazem retorno nos anos 50, após a Segunda Guerra Mundial, tanto junto aos
colecionadores, quanto junto aos jovens artistas que vão se servir nessas fontes.
A atitude irreverente e de desconstrução das Belas Artes que os dadaístas assumiam
deram força à arte pop para retomar algumas técnicas como o objet trouvé. Trata-se do
“objeto achado” pelo artista e apresentado sem nenhuma modificação. Quando esses objetos
eram produzidos industrialmente em larga escala passavam a ser chamados de readymade,
como foram introduzidos por Marcel Duchamp. Os dois tipos de objeto permitiram aos
dadaístas sustentar a ideia de que a arte não precisava ser algo feito com as mãos pelo próprio
artista. A arte estava no novo conceito que o artista atribuía a este mesmo objeto. O exemplo
clássico de readymade é a famosa Fonte de Duchamp. A Fonte se trata de um mictório em
porcelana que o artista inverteu de posição, assinou com pseudônimo e apresentou à
47

exposição da Society of Independent Artists em Nova York em 1917, na qual ele era jurado.
Como os colegas rejeitaram a obra, ele se demite da comissão avaliadora.
Marcel Duchamp refere-se à arte pop com certo amargor e desilusão, dizendo que ele,
ao descobrir os readymades, esperava desencorajar a estética. Porém, esse “neo-dadá”
recupera a beleza estética de objetos tão banais quanto o mictório e o porta-garrafas através
da pintura e da colagem (LUCIE-SMITH, 2000, p.161).
Nas obras de Goldgrub, existe uma recuperação estética – estilo readymade – dos
personagens em meio às mercadorias ou uma afirmação estética destes personagens-
mercadoria que são pinçados e elevados à categoria arqueológica de mitos humanos urbanos
produzidos em massa, bem ao gosto do “design” ideal popular:

Figura 12 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004 Figura 13 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004

As figuras 12 e 13 apresentam os mitos anônimos e fugazes, bem mais perecíveis do


que os mitos humanos identificáveis para consumo na década de 60, (re)produzidos por
Warhol, tais como as representações de Elvis maquiado, em versão andrógina:
48

Figura 14 – Andy Warhol, Elvis I e II, 1964

A arte pop que busca inspiração na cultura de massa passa a convocar seus
observadores a fazer uma viagem pela história da arte e a conhecer os movimentos artísticos
antecedentes para ampliar a sua condição de interpretação. Torna-se assim, ironicamente
popular tanto pelo seu grau de exigência no que concerne aos seus artistas quanto para com
aqueles que a observam.
Conforme observa Marcel Duchamp, o artista moderno era mais um manipulador de
signos/discursos do que um produtor de objetos. A obra de arte se dirige ao seu público,
convidando-o a fazer a sua leitura da obra. Ele aceita que, embora seja o artista que projete
seu trabalho, nele imprimindo uma série de significados, é no público que eles se realizam. É
nele que o universo de possibilidades criado pelo artista adquire, enfim, um sentido. A arte
contemporânea trabalha com conceitos, aciona discursos.
Para Freud, a arte deveria ser parte integrante da formação do analista. Porém, como
assinala Rivera (2002, p. 8): “em vez de convocar os artistas de seu tempo”, faz referência em
seus textos, a obras renascentistas de Michelangelo e Leonardo da Vinci. Colecionador de
antiguidades e de gosto clássico, Freud nunca se aproximou da vanguarda vienense.
Contemporâneo do pintor Gustav Klint (1862-1918), cujas obras apresentavam o feminino
como um tema recorrente, abaixo Judith – um dos quadros mais famosos de Klint:
49

Figura 15 – Gustav Klint, Judith, 1901

A Judith, de Klint, bem poderia ser uma das histéricas de Freud numa expressão de
vertigem, é um corpo que vibra eletrizado nos adereços que o fazem cintilar. É a metamorfose
ameaçadora do feminino no processo de emancipação da mulher na vida profissional, política
e sexual. É o mesmo corpo feminino que denuncia as mazelas sociais de sua época que Freud
escuta para fundar a psicanálise. Ao que se sabe, Freud e Klint nunca se encontraram, nunca
conversaram, apesar de viverem na mesma cidade.
Freud vira as costas para a arte moderna, faz duras críticas ao expressionismo, embora
os movimentos de vanguarda literária e artística façam referências diretas à psicanálise, entre
eles o poeta francês André Breton que publica em 1924 o primeiro Manifesto do surrealismo.
Freud não reconhece a importância do surrealismo para a divulgação da psicanálise na França,
onde o fechamento do meio médico era grande. Marie Bonaparte traduz o seu texto A questão
50

da análise leiga que é primeiramente publicado na revista La Révolution Surréaliste


(RIVERA, 2002).
Já, Lacan, tomava seguidamente obras de arte em seus seminários que ocupavam lugar
correspondente aos casos clínicos de Freud para abordar os conceitos tais como o objeto a.
Segundo Dunker (2006) há duas maneiras insistentes na obra de Lacan de abordar esse objeto:
uma é a matemática e a outra é a arte. Para o autor, Lacan não se interessa apenas pela arte
como mais uma contribuição que ajudaria a entender a relação do sujeito com a cultura. “A
questão em torno da conjectura do objeto a é de outra natureza: é uma questão de método”
(DUNKER, 2006, p. 40). Na abordagem da anamorfose, Lacan faz referência à obra de
Salvador Dali – os relógios moles –, ao comentar a caveira de Holbein. Portanto, relaciona o
clássico com o surrealismo para apresentar a nadificação do sujeito, presente nessas duas
imagens.
Duchamp pôde ressaltar o caráter inconsciente de toda criação artística e denominou
de “coeficiente artístico” precisamente essa diferença entre a intenção e a sua realização, uma
diferença de que o artista não tem consciência. Tal coeficiente é como que uma relação
aritmética entre o que permanece não-expresso embora intencionado, e o que é expresso não-
intencionalmente.
A arte enquanto linguagem, como queria Duchamp, pode ser pensada na perspectiva
da língua de Milner (1987): não é passível de tudo dizer, pois sofre o interdito que marca o
possível de ser dito ou apresentado, marcando um não-todo, logo o artista não controla os
sentidos que sua arte veicula.
Do ponto de vista da visibilidade, conforme lembram Panitz, Rivera e Safatle (2006), a
arte do século XX produziu duas grandes subversões: uma, negava a representação
convencional da realidade e propunha em seu lugar o estatuto de apresentação para a obra de
arte em um sentido que se associa tanto à revelação como ao enigma; a outra, diz respeito
àquilo que, embora presente na obra, não se dá à leitura, porque é tratado pelo observador
como já-visto, num sempre-já-aí. Segundo a autora, esses são pressupostos que só poderiam
ser pensados em uma época que já tinha sido apresentada ao novo estatuto do sujeito não-
cartesiano: “É o sujeito descentrado que vive essa experiência do ver-não ver, do ver depois,
do ver uma outra coisa, do dis-trair-se frente à coisa observada” (PANITZ; RIVERA;
SAFATLE, 2006, p. 80).
Para a arte conceitual, a psicanálise, o marxismo e a análise do discurso só há causa
naquilo que falha (ver p. 78), já que o artista não controla o sentido de sua obra, o sujeito não
é o senhor em sua morada e também não é o motor da história. O vazio, o equívoco e a
51

contradição são as condições que permitem à Análise do Discurso operar, enquanto disciplina
de interpretação.
No contexto filosófico e político, o projeto da Análise do Discurso afirma um registro
triplo na História, na linguagem e no inconsciente tentando lidar com a clivagem e
dissociação que costuma ocorrer entre esses três campos nas pesquisas em ciências sociais e
na psicologia, no esforço de levar em conta a complexidade e heterogeneidade dos fatos.
A Análise do Discurso, enquanto uma disciplina de interpretação, não pretende
instituir-se dominadora do sentido dos textos, mas somente construir intervenções que
exponham o olhar aos níveis opacos da ação estratégica de um sujeito. Não se trata de uma
leitura plural de multiplicação de pontos de vista possíveis sobre um único objeto, mas de
uma leitura na qual o sujeito é ao mesmo tempo responsável pelo sentido que atribui e
alienado a esse mesmo sentido (PÊCHEUX, 1997, p. 53).
O campo da Análise do Discurso, ao contrário dos universos discursivos logicamente
estabilizados – tais como o das ciências da natureza, o das tecnologias e o dos sistemas
administrativos em seu funcionamento formal – é determinado pelo campo dos espaços
discursivos não estabilizados logicamente, nos domínios do filosófico, do sócio-histórico, do
político ou do estético, “portanto também dos múltiplos registros do cotidiano não
estabilizado” (PÊCHEUX, 1997, p. 53).
A Análise do Discurso e a arte pop aproximam-se na questão da aproximação e
desestabilização do cotidiano. A arte pop, enquanto nova sensibilidade estética, rejeita a
crença de que arte e vida sejam esferas separadas da experiência com pouco ou nenhum
contato. Nas suas apresentações utiliza uma linguagem próxima da propaganda e mantém
diálogo com a cultura de consumo, desafiava as hierarquias tradicionais da expressão artística
e chamava atenção para a estética do descartável. Utilizava recorte e colagem de revistas de
circulação de massa, denominava-se o continuum belas artes-arte popular (MCCARTHY,
2002).
Contraditória, a arte pop providenciou uma linguagem que podia ser dirigida para
vários fins, seja celebrando a cultura comercial, seja protestando contra a guerra do Vietnam
ou contra o racismo – tema da obra a seguir Levante racial vermelho, de 1963. Nesta e na
obra de muitos artistas pop aparece uma dívida clara para com fontes fotográficas.
52

Figura 16 – Andy Warhol, Levante racial vermelho, 1963


Serigrafia sobre tela 315 x 210 – Museu Ludwig, Colônia
53

Assim como Warhol, Araújo transita da coluna social à pagina policial nas suas obras.
A artista mantém-se interessada nos gestos e nas posturas. Deixando em evidência, pelos
retoques, as mãos brancas dos policiais que seguram os braços negros da pessoa que está
sendo presa. Em diálogo, as obras apontam para diferentes posições-sujeito, problematizam
questões de dominação e de justiça social.

Figura 17 – Bianca Araújo, Série Polícia, 2002

Na obra acima, a artista faz, também, uma intervenção no texto. Evidencia a sua
diagramação, o arranjo dos espaços, a disposição em blocos e colunas. Interroga a forma
como imagens e textos são vistos independentemente e dissociadamente nos jornais. O texto
adquire apenas função de preenchimento e textura, reafirma a força da imagem. A obra isola
texto e imagem para estabelecer ressignificações.
54

2.2 A ESPETACULARIZAÇÃO DA IMAGEM NA SOCIEDADE DE CONSUMO

“O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social”,


refere Guy Debord (1997, p. 30) em seu livro A sociedade do espetáculo. Com a revolução
industrial, a divisão do trabalho e a produção em massa para o mercado mundial, a mercadoria
aparece como uma das principais forças que orienta a vida social. O espaço social é invadido
pelo excedente de mercadorias e o consumir passa a ser tão obrigatório quanto o produzir, diz
o autor “o consumo alienado torna-se para as massas um dever suplementar à produção
alienada” (DEBORD, 1997, p. 31). Assim, o proletário deixa de ser visto apenas como o
operário que deve receber o mínimo para a garantia de sua sobrevivência, obrigando-se a
vender contínua e incessantemente a sua força de trabalho. E passa a existir fazendo parte da
massa de consumidores, cuja obrigação é regular o estoque de mercadorias em abundância.
Em páginas anteriores, deste mesmo livro, ele conceitua espetáculo: “o espetáculo não
é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”
(DEBORD, 1997, p. 14). As imagens que compõem o meu corpus são imagens mediadoras
entre o olhar e a mercadoria, onde os artistas buscam desestabilizar a relação imaginária que a
PP esforça-se por reproduzir de estímulo ao consumo.
Guy Debord foi o mentor filosófico dos “situacionistas”, geração herdeira do
dadaísmo e do surrealismo. Em julho de 1957, com artistas e escritores de vários países,
fundou na Itália a Internacional Situacionista, cuja revista inaugura o discurso libertário que
ambicionava a mudança de concepção de vida. O debate no mundo da arte tornou-se bastante
politizado no final da década de sessenta, quando a França e a Itália passavam por tensões
sociais que culminariam no Maio de 68. Na França, os situacionistas trabalharam para
produzir uma interpretação da moderna sociedade de consumo e denunciar a conformidade
aos valores da ideologia dominante na manutenção do sistema. Conforme aponta McCarthy
(2002), essa postura dos artistas conduziu a uma mudança no foco da atividade
revolucionária, que passou de uma tradicional orientação marxista voltada à economia e à
política, para uma maior ênfase na cultura e na arte. Apesar do esforço de alguns artistas,
Debord considerava a arte como um elemento irredimível da sociedade do espetáculo.
Reforçadora dos mitos de individualismo e autoexpressão, no sentido inverso à construção de
uma proposta libertadora, para ele, a arte engrossava as fileiras daquilo que mantinha as
massas reféns do consumo.
55

Richard Hamilton em seu ensaio For the finest art try Pop (1961) [Se quiser a mais
bela arte, experimente a Pop], afirma que o artista da vida urbana do nosso tempo é
inevitavelmente um consumidor de cultura de massa e potencialmente um contribuinte para
ela; Andy Warhol chamava o seu ateliê de fábrica na conotação de um “negócio” como
qualquer outro (MCCARTHY, 2002, p. 26). Tanto Hamilton, quanto Warhol não negavam o
seu pertencimento à cultura contemporânea e à ideologia dominante. Não pensavam a si
próprios como pertencentes a uma confraria sagrada, acima dos outros mortais. Viam-se como
homens contemporâneos produzidos e produzindo no seu tempo. Abaixo, uma obra
importante obra de Hamilton:

Figura 18 – Richard Hamilton. O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes? 1956

Segundo Lucie-Smith (2000) Esta é a primeira obra reconhecida como arte pop na
Grã-Bretanha. Foi produzida para uma mostra intitulada “Isto É Amanhã”, na Whitechapel
Art Gallery, em 1955.
Trata-se de uma colagem que contribuiu para apresentar uma nova sensibilidade
estética, que envolve os temas principais da arte pop. O pôster é formado principalmente por
anúncios recortados de revistas populares. Trata-se de um material novo que passa a ser
reconhecido e apropriado pelo artista. A obra exalta as tecnologias recentes do pós-guerra,
56

através dos eletrodomésticos que liberam os consumidores para os prazeres hedonistas. O


casal que ocupa o lar se mostra tão glamouroso e bem-projetado como os objetos à sua volta,
numa composição sobrecarregada de artefatos, envoltos num mundo de fantasia consumista.
McCarthy (2002) analisa a contribuição desta obra para a arte contemporânea,
salientando dois aspectos significativos. Em primeiro lugar, ela traz aquilo que é popular para
o estatuto de arte e sugere a inclusão dos meios de comunicação de massa na cultura erudita
ocidental. Segundo, a obra vem questionar a segmentação tradicional entre o elitista e o
vulgar, o único e o múltiplo. Está inaugurada a nova estética que anuncia a obsolescência da
estética antiga. Ao usar os anúncios, o artista mostra que para muitos o acesso à cultura não se
dava através de museus e salas de exposição, mas nas revistas de grande circulação. Retira as
imagens de seu contexto de origem e as transpõe, sem mudá-las para uma composição nova.
A rica complexidade do pôster tanto reúne atributos da arte moderna anterior, com traços
futuristas e dadaístas, quanto antecipa o design comercial contemporâneo. Os anúncios
guardam algo de sua identidade anterior: continuam a veiculação de mercadorias no interior
dos lares do pós-guerra.
Atualmente, boa parte dos anúncios não espera ser gentilmente conduzida até o
interior dos lares, os anúncios interpelam o público pelas ruas, conforme flagrou Goldgrub em
sua série Outdoor’s:

Figura 19 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004

Na imagem acima, o personagem é bem conhecido, trata-se de um famoso jogador de


futebol. O jogo metafórico da PP é registrado pelo artista, onde um elemento é substituído por
outro: a bola é substituída por um telefone celular e o jogador talentoso é substituído pelo
57

garoto-propaganda. É a imagem pessoal que parece se converter em mercadoria. A exploração


estética da cabeça raspada remete ao formato da bola, a uma cabeça-bola que equilibra um
celular. A sua habilidade desportiva passa para segundo plano e o que fica em evidência são
os contratos milionários que tornam ilimitada a sua capacidade de consumo. A escalada social
parece ser explorada pelo artista no ângulo em que ele ajusta a fotografia, aproveitando os
patamares ascendentes da arquitetura. Contra o fundo branco a imagem expõe o perfil em
degraus que finalizam em uma escada sem fim.
O garoto-propaganda propõe o consumo fácil com um sorriso no rosto, relembra a
felicidade prometida na cultura do efêmero pela aquisição de mercadorias, apelo recorrente na
publicidade/propaganda. Trata-se do sujeito “livre e competente” da formação discursiva (FD)
esportiva que migra das camadas sociais mais desfavorecidas para o topo da pirâmide em
função de seu talento. A imagem de Goldgrub reapresenta o sintoma: disfarça a exploração do
atleta enquanto trabalhador e evidencia um gozo.
Em plena cultura da performance e da liberdade individual “vive-se uma espécie de
mais-alienação”, como refere Kehl “de rendição ao brilho da imagem de algumas personagens
públicas identificadas ao gozo que os objetos deveriam proporcionar” (BUCCI; KEHL, 2004,
p. 65). Maria Rita Kehl propõe um diálogo com a obra de Debord em seu texto O espetáculo
como meio de subjetivação, onde defende que a imagem industrial, nesse caso, tem a
qualidade do fetiche, e sintetiza o modo contemporâneo de alienação que chama de “mais-
alienação” para conceituar a expropriação simbólica análoga ao resultado da mais-valia
(BUCCI; KEHL, 2004, p. 49).
Lacan (1996), no texto O estádio do espelho trata da eficácia da imagem para produzir
a identificação primordial com o Outro antes que a linguagem lhe institua sua função de
sujeito. Dependência inicial e total do olhar do Outro, onde se organiza uma matriz simbólica
que daria suporte às identificações secundárias. Pêcheux inspira-se nesta abordagem para
elaborar o conceito de formações imaginárias na teoria do discurso.
Prosseguindo o diálogo entre a Psicanálise e a Análise do Discurso, atribuo à matriz
simbólica o locus para inscrição da ideologia. Nesta linha, busco refletir sobre a ideologia
enquanto o “espelho” que cumpre a tarefa de organizar a imagem fragmentada do sujeito
dividido e desamparado. Organização essa, imaginária, com a qual o sujeito se identifica pelo
mecanismo de projeção.
Penso que o esquema L proposto por Lacan pode ajudar a elucidar a constituição do
sujeito via o espelhamento no olhar do Outro. No caso, o outro é a publicidade/propaganda,
enquanto imagem da mercadoria, na qual o sujeito se projeta e se identifica.
58

O “esquema L” é considerado o esquema da dialética intersubjetiva que evidencia a


relação dual do eu com sua projeção (a’), esta projeção confunde-se com a imagem de si
mesmo e a do outro. A estrutura busca encenar a relação imaginária de simetria e
reciprocidade que implica a reduplicação de seus termos: o pequeno outro (a) é exponenciado
como grande Outro (A), onde a posição do terceiro implica a do quarto (S):

S a

a’ A
Figura 20 – Esquema L de Lacan

O estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro A. O


que nele se desenrola articula-se como um discurso (o inconsciente é o discurso do Outro), do
qual Freud procurou definir a sintaxe relativa aos fragmentos que nos chegam em momentos
privilegiados como os sonhos, os lapsos e os chistes. Nesse discurso, o sujeito (S) é repuxado
para os quatro cantos do esquema, como diz Lacan: em sua inefável e estúpida existência para
a, seus objetos, a’, seu eu, que é o que se reflete de sua forma na relação imaginária com seus
objetos, e A, lugar de onde lhe pode ser formulada a questão de sua existência.
Abaixo, um esquema para ilustrar a relação imaginária do consumidor (S) com a
publicidade/propaganda (PP):

Quem sou eu? S

S a

a’ A
Mercadoria PP (Imagem do “bom sujeito” famoso, rico, bem-sucedido)
Objeto da PP Mercadoria falada, nomeação da mercadoria
(atributos, funções, resultados)

Figura 21 - A relação imaginária do consumidor com a Publicidade/Propaganda


(Adaptado do esquema L de Lacan)
Fonte: Luciene Jung de Campos
59

No esquema acima, a PP está no lugar do grande Outro (A), enquanto imagem e


discurso sobre a mercadoria. A mercadoria é o objeto da PP. A publicidade dirige-se ao
grande público nomeando os atributos, funções e resultados da mercadoria, que é o seu objeto
(a’). Ao mesmo tempo em que a PP nomeia a mercadoria, ela também nomeia o sujeito. O
sujeito deseja a mercadoria na esperança de que ela diga quem ele é, assim como, a
publicidade (PP) diz quem (o que) é a mercadoria. Neste caso, poder-se-ia dizer que é a
imagem que assume o lugar de fetiche e não mais a mercadoria? É a PP que sustenta as
relações de dominação e exploração negadas na sociedade de consumo?
Para trabalhar essas questões é preciso rever os conceitos de fetiche e de sintoma. Por
sinal, são dois conceitos em confluência na psicanálise e no materialismo histórico.

2.3 O SINTOMA: UMA METÁFORA DA HISTÓRIA

Se Freud assumiu a responsabilidade – ao contrário de Hesíodo, para quem as


doenças enviadas por Zeus avançavam para os homens em silêncio – de nos mostrar
que existem doenças que falam, e de nos fazer ouvir a verdade do que elas dizem,
parece que essa verdade, à medida que sua relação com um momento da história e
com uma crise das instituições nos aparece mais claramente [...] (LACAN, Escritos,
1998b, p. 216).

Freud iniciou sua investigação pelo sintoma, tratando as histéricas, cujo sintoma
denuncia o estado daquelas mulheres que não podiam se expressar na sociedade conservadora
e autoritária da época. Tratava-se do sujeito inibido histórica e culturalmente determinado.
Cujos sintomas estavam vinculados à impossibilidade de renunciar ao objeto primário e
encontrar outra forma de existência. Por conta disso, a “doença” parece estar ligada a essa
impossibilidade de renúncia a esse desejo originário. Esta demanda provoca inibição e
angústia no homem enquanto um animal alijado da natureza, que perdeu o instinto e com isso
foi jogado na incerteza e no conflito.
Lacan constrói o esquema L do caso Dora, um dos casos clássicos de histeria,
trabalhado por Freud e relido por Lacan no Seminário IV (Relação de objeto):
60

O que é uma mulher?

S a

a’ A
Sra. K pai da Dora
Figura 22 – O esquema L do caso Dora, segundo Lacan

O esquema L é uma topologia onde o sujeito (S) se estende entre a e a’, num véu de
miragem narcísica que serve para sustentar tudo o que nela venha se refletir por seus efeitos
de sedução e captura. O desejo da histérica é o desejo de desejo, cujo desejo é o desejo do
Outro. A histérica trata de se colocar na posição de substituir o Outro (o pai) nesta função do
desejo: ela esvazia sua relação com o objeto (Sra. K), fomentando o desejo do Outro por este
objeto. Ela se empenha em sustentar o amor deste outro (Sra. K) que é seu verdadeiro objeto –
situação bastante ambígua Dora sustenta o desejo de seu pai pela Sra. K e mascara seu objeto
que é a Sra. K., portadora de sua questão: O que é uma mulher?
Na clínica médica, o sintoma está ligado à doença e é sempre patológico; para a
psicanálise, ele é o início da cura e indica a presença do sujeito do inconsciente. O sintoma
para a psicanálise não diz respeito a uma doença orgânica, mas a uma formação do
inconsciente. A psicanálise por sua vez, tem sua origem na clínica médica, porém no
momento em que se diferencia como outro campo de saber, ela rompe com essa clínica. E o
sintoma é sintoma desta divergência.
Foucault (2006), em O nascimento da clínica, descreve o sintoma como a primeira
transcrição da doença, na sua condição de inacessibilidade. Para Foucault, o sintoma é uma
linguagem que torna visível o invisível da doença. O sintoma para o médico é signo, que
representa o significado de uma doença. Para o psicanalista e para o analista do discurso o
sintoma é significante.
Freud, em Inibição, sintoma e angústia (1925) explica o processo de produção do
sintoma:
61

Um sintoma surge de um impulso que foi afetado pelo recalque. Se o ego, fazendo
uso do sinal de desprazer, atingiu seu objetivo de suprimir inteiramente o impulso,
nada saberemos como isso aconteceu. Podemos apenas descobrir algo a esse respeito
pelos casos nos quais o recalque em maior ou menor grau, tenha falhado. Nesse
caso, a posição é que o impulso encontrou um substituto apesar do recalcamento,
mas um substituto muito mais reduzido, deslocado e inibido, e que não é mais
reconhecido como uma satisfação. E quando o impulso substitutivo é levado a
efeito, não há qualquer sensação de prazer; sua realização apresenta, ao contrário, a
qualidade de uma compulsão (FREUD, 1976j, p. 116).

Nesta citação, aparece a ideia do sintoma enquanto um compromisso. Compromisso


entre o desejo (impulso) e a defesa contra esse impulso (recalque). No entanto, é um contrato
que não é bem cumprido, ele tem uma falha. Trata-se do retorno do recalcado que insiste: o
impulso encontrou um modo de se fazer presente de forma deslocada e minimizada. A defesa
falhou, mas é vigorosa, pois consegue reduzir um processo de satisfação a uma compulsão
que se consome no próprio sujeito, garantindo a inibição do desejo.
Penso ser pertinente expor uma das imagens da série Outdoor’s, onde aparece uma
cadeia de significantes que nos ajudaria a pensar esta questão. O artista posiciona a sua
câmera de modo que seja possível visualizar o outdoor que veicula a imagem de um casal em
cena íntima, superpondo-se ao pé da imagem, um cartaz de preços de combustíveis (gasolina
comum R$ 1,59 e álcool R$ 0,68). Ele promove um deslizamento de significantes:

Figura 23 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004


62

GAS comum ÁLCO[ol] →Combustível ↔ energia ↔ desejo → preço = mercadoria


A expressão “GAS comum” e a imagem do casal condensa a ideia de combustível/
desejo. A atração sexual e amor são afetos, ou seja, relações de intensidades, de energia. A
energia está sendo comercializada no anúncio, o que vale para o combustível e para os corpos
aos quais os preços estão afixados. O desejo é mercadoria. A imagem é perturbadora, ela lida
com o vácuo, ocupando metade do espaço, com o indicativo monetário sobreposto ao casal,
sugerindo precificação humana. A imagem estaria apontando para a mercantilização das
relações? Para a impossibilidade de desejar, quando o desejo adquire o status de mercadoria?
Para o abandono de Eros? Não temos as respostas, apenas a obra perturbadora.
A artista Jenny Holzer, uma das herdeiras da arte conceitual, faz emprego da
linguagem para promover inquietação. Além da técnica do texto, ela utiliza como estratégia
expor a sua obra no mesmo espaço de divulgação de mercadorias. Na obra a seguir, usa o
neon, material muito encontrado na publicidade/propaganda.
“Proteja-me do que eu desejo” está ocupando o lugar de anúncio. No espaço onde
deveria estar sendo veiculada a imagem comercial de uma mercadoria, a artista veicula a obra
de arte. Trata-se de um deslocamento duplo: a obra sai da sala de exposição ou do museu e vai
para a rua. A obra de arte assim como a publicidade interpela diretamente no cotidiano. A arte
de Jenny Holzer vem perturbar a “boa ordem”:

Figura 24 – Jenny Holzer


63

Lacan (1998b), em seu texto Do sujeito enfim em questão, aborda uma dimensão do
sintoma que é a do retorno de uma verdade que vem perturbar a “boa ordem”. Nesse sentido,
ele reconhece na crítica de Marx ao capitalismo, os artifícios ridiculamente travestidos da
razão no retorno materialista da verdade que assume forma e corpo na mais-valia. Não se trata
do status de signo, de representação, mas da apresentação de algo que retorna, como registrou
Freud. Lacan conclui que o sintoma só pode ser lido na ordem do significante, não do
significado. O significante só tem sentido na sua relação com outro significante e é nessa
articulação que reside a verdade do sintoma:

O sintoma tinha um ar impreciso de representar alguma irrupção da verdade. A


rigor, ele é verdade, por ser talhado na mesma madeira que ela é feita, se afirmarmos
materialisticamente que a verdade é aquilo que se instaura a partir da cadeia de
significante (LACAN, 1998b, p. 235).

Sob este aspecto, a indagação de Zizek é pertinente: “Como foi possível que Marx, em
sua análise do mundo das mercadorias, produzisse uma noção que também se aplica à análise
dos sonhos, aos fenômenos histéricos e assim por diante?” (ZIZEK, 1996, p. 297).
Ele mesmo conclui que ambos, Marx e Freud, evitaram o fascínio pelo “conteúdo” e
se preocuparam com a forma: como os pensamentos adquiriram essa forma no sonho? Por que
o trabalho humano só consegue se afirmar na forma-mercadoria? O que passou interessar para
Freud eram os mecanismos de deslocamento e condensação que trabalham a forma do sonho
(na elaboração do conteúdo manifesto que é apresentado). O importante não é só “descobrir”
o conteúdo latente, mas reconhecer o que se produziu neste intervalo entre o latente e o
manifesto.
Freud busca explicar esse fenômeno. Preocupa-se em superar a ideia de que o sonho é
uma confusão sem sentido, simples interferência de processos fisiológicos. Inicialmente, é
preciso dar um passo em direção à abordagem hermenêutica e admitir que o sonho veicula
uma mensagem encoberta que necessita ser revelada através de um método interpretativo.
Depois, é preciso abandonar esse centro de significação de sentido oculto e profundo do
sonho e buscar o processo ao qual esses pensamentos oníricos latentes foram submetidos.
Zizek (1996) compara os esforços de Freud com os de Marx, na análise do “segredo da
forma-mercadoria”, onde ele faz uma articulação semelhante, em dois tempos. Primeiro
devemos descartar a aparência de que o valor estipulado para uma mercadoria é um mero
acaso, simples consequência da lei de oferta e procura. Em seguida, é preciso admitir o
“sentido oculto” por trás da forma-mercadoria, o que expressa essa forma; devemos penetrar
64

no “enigma” do valor das mercadorias. No entanto, a determinação da grandeza do valor da


mercadoria pelo tempo de trabalho é um segredo que se esconde nas flutuações de valores
dessas mercadorias e mesmo que descoberto, isso não alteraria o modo como se dá essa
determinação. O desmascaramento do segredo, portanto, não basta: é a exploração do trabalho
a verdadeira fonte de riqueza. Não se trata do segredo por trás da forma, mas da própria forma
como essa economia política clássica funciona. Então o segredo da magnitude do valor da
mercadoria continua sendo um mistério indecifrável, da mesma forma que o conteúdo latente
do sonho.
Mas, o que interessa nos dois casos é como o sentido latente se disfarçou desta
maneira. Por que o produto do trabalho tem seu valor alterado assim que assume a forma de
mercadoria? É a questão que a economia política não pode se colocar e que está vinculada à
sua própria presença (ZIZEK, 1996, p. 300).
Trata-se, então, de uma Outra Cena que está em jogo, como alertou Freud, externa ao
pensamento face à qual a forma do pensamento já está articulada de antemão. A ordem
simbólica é uma ordem formal que completa ou que rompe a relação dual da relação factual
“externa” (a troca de mercadorias) com a experiência subjetiva “interna” (a ilusão fetichista
no ato da troca da mercadoria). Assim, chegamos à dimensão do sintoma na sua semelhança
com o ideológico: uma formação cuja força implica um certo não-conhecimento por parte do
sujeito. O sujeito só pode sustentar o seu sintoma na medida em que sua lógica lhe escapa.
Por exemplo, no capitalismo, o uso do ideário setecentista de liberdade e igualdade é
falso. A liberdade específica de o trabalhador vender “livremente” sua força de trabalho no
mercado subverte essa noção universal de liberdade. O mesmo também se pode demonstrar
quanto à justa troca de equivalentes, esse ideal de mercado. A força de trabalho passa a ser
uma mercadoria para os trabalhadores que não são donos dos meios de produção e que, por
conseguinte, são obrigados a vender no mercado seu próprio trabalho, ao invés de produtos.
Com essa nova mercadoria – a força de trabalho – a troca de equivalentes anula-se na
apropriação da mais-valia que materializa a nova forma de exploração do capital. O ponto
decisivo aqui é essa negação que é própria à troca de equivalentes e não sua simples violação:
a força de trabalho não é “explorada” no sentido de seu pleno valor não ser remunerado; em
princípio, pelo menos, a troca entre o trabalho e o capital é plenamente equivalente e
equitativa, comenta Zizek, fazendo a leitura de Marx, ao que acrescenta:
65

O problema é que a força de trabalho é uma mercadoria peculiar, cujo uso – o


trabalho em si – produz uma certa mais-valia, e esse excedente que ultrapassa o
valor da própria força de trabalho é apropriado pelo capitalista (ZIZEK, 1996, p.
307).

O que está sendo questionado é que os equivalentes não são equivalentes como dissera
Saussure (2004): uma palavra é o que a outra não é, não existem equivalentes na língua.
Trata-se de uma estrutura de ficção que busca impor-se como “natural” e lógica. É o grande
Outro da cultura produzindo o imaginário do sujeito. O “equivalente” é imaginário no sentido
de cristalizar uma imagem do processo. O equivalente nunca é equivalente.
Nessa linha, instala-se um certo Universal ideológico (o da troca equivalente e
equitativa) e uma troca paradoxal particular (a da força de trabalho por seus salários) que,
como um equivalente, funciona como a própria forma de exploração. A universalização da
produção de mercadorias acarreta um sintoma, que funciona como sua negação interna. Marx
(1983) afirma em O Capital, que esse elemento irracional é o proletariado, desrazão da
própria razão, engendramento arbitrário do próprio capitalismo.
Pêcheux (1975) contribui com esta questão, referente ao estudo das práticas
repressivas ideológicas, onde se esforça por compreender o processo de resistência-revolta-
revolução:

Se, na história da humanidade, a revolta é contemporânea à extorsão do sobre-


trabalho é porque a luta de classes é o motor dessa história. E se em outro plano, a
revolta é contemporânea à linguagem, é porque sua própria possibilidade se
sustenta na existência de uma divisão do sujeito, inscrita no simbólico (PÊCHEUX,
1997b, p. 302, o grifo é meu).

Se a revolta é contemporânea da linguagem como diz Pêcheux, (as obras que estou
analisando também confirmam isso) e se o inconsciente é mesmo efeito de linguagem e se o
tratamento só é possível por meio da palavra, não seria a língua que determina o destino
do sintoma? Esta é uma questão que Lacan se coloca em seu Seminário XXIII: O sinthoma
(1975-1976). Trata-se de uma questão interessantes para nós, analistas do discurso. Penso que
enriqueceria a reflexão, o diálogo entre o sintoma e a sintaxe.
Leandro Ferreira (2000), ao abordar a sintaxe como o lugar de observação do discurso,
trabalha a interface sintaxe/discurso. Conclui que é através da sintaxe como espaço de
mediação entre a forma e o sentido que se dá o acesso à ordem da língua e à materialidade
66

linguístico-histórica. É nesta zona que se situam os fatos linguísticos que forçam seus limites
e desafiam as suas próprias regras.
Então, o que é possível dizer sobre o desejo que o sintoma concorda em inibir e
transformar? Para isso, a língua precisa encontrar o equívoco, o melhor equívoco. Para tanto,
a língua não pode ser um sistema dedutivo fechado, livre de lacunas, livre de excessos, mas
capaz de rupturas. Isso acontece porque a língua é um sistema sintático intrinsecamente
passível de jogo, afirma a autora:

E dentro desse espaço de jogo, as marcas significantes da língua são capazes de


deslocamentos, de transgressões, de rearranjos. É isso que faz com que um
determinado segmento possa ser ele mesmo ou outro através da metáfora, da
homofonia, da homonímia, dos lapsos de língua, dos deslizamentos sêmicos, enfim,
dos jogos de palavras e da dupla interpretação de efeitos discursivos (LEANDRO
FERREIRA, 2000, p. 108).

Sobre esses recursos da língua e do inconsciente, Lacan pontua:

Está claro que todo ato falho é um discurso bem-sucedido, ou até formulado com
graça e que no lapso é a mordaça que gira em torno da fala, e justamente pelo
quadrante necessário para que um bom entendedor encontre ali sua meia-palavra
(LACAN, Escritos, p. 269, o grifo é meu).

Na obra apropriada da PP e recriada pelo artista, é a viseira que gira sobre a imagem
e mostra Outra-coisa e permite que o leitor encontre ali a sua meia-imagem, a imagem não-
toda, capaz de ressignificá-lo momentaneamente. Neste desenfreamento do significante,
encontramos o sujeito em formação discursiva heterogênea. As obras de arte que estão em
análise me fazem pensar em produções novas que resultam dos efeitos subversivos da
“condensação” e do “deslocamento” podem ser entendidas como emergências significantes do
inconsciente que se estruturam em outra linguagem.
A sintaxe pode constituir uma forma de acesso importante para o analista do discurso e
para o psicanalista, pois não há língua sem sintaxe e a organização das palavras não é jamais
aleatória. O próprio Pêcheux (1975) “brinca” com seu estilo e reafirma seu esforço intelectual
e afetivo para expressar um pensamento que perturba “a boa ordem”:
67

Parece-me, hoje, que Les Verités de La Palice roçaram essa questão [dos estudos das
práticas repressivas ideológicas] de uma maneira estranhamente abortada, pelo viés
de um sintoma recorrente que soava de maneira oca: estou querendo designar o
prazer sistemático, compulsivo (e incompreensível para mim) que eu tinha em
introduzir a maior quantidade possível de chistes – o que, pelo que sei, acabou por
irritar mais de um leitor (PÊCHEUX, 1997b, p. 303).

Pêcheux assinala a dificuldade no campo teórico, político e social no tocante ao que


pode ser dito e como deve ser dito. Algumas inibições resultam no abandono de uma função
porque o exercício desta função produziria angústia. O ego renuncia a essas funções que estão
ao seu alcance para evitar lançar mão de outras medidas de repressão e se poupa de um
conflito com o id ou com o superego. Freud em Inibição, sintoma e angústia (1925), salienta
que este raciocínio permite compreender a inibição generalizada que caracteriza os estados de
depressão e melancolia quando o sujeito se vê impedido no campo das ideias e/ou no campo
dos afetos:

No tocante às inibições, podemos então dizer, em conclusão, que são restrições das
funções do ego que foram ou impostas como medida de precaução ou acarretada
como resultado de um empobrecimento de energia; e podemos ver sem dificuldade
em que sentido uma inibição difere de um sintoma, porquanto um sintoma não pode
mais ser descrito como um processo que ocorre dentro do ego ou que atua sobre ele
(FREUD, 1976j, p. 111).

Nesta citação Freud salienta a complexidade do sintoma em comparação com a


inibição e a angústia. O sintoma se dá entre as instâncias psíquicas entre o ego e o id e entre o
ego e o superego, entre o ego e a realidade. Não se trata de um mero processo de
recalcamento, mas implica outros processos, outros mecanismos, tais como, deslocamento e
condensação.
Pêcheux refere que o seu sintoma era introduzir chistes para dizer o que precisava
dizer, mesmo com grande resistência do meio acadêmico. Este é um ponto de afinidade entre
Pêcheux e Freud. Freud iniciou a demonstração do inconsciente pelos sonhos que era uma
experiência comum a todos. Os chistes de Pêcheux recebem função semelhante:
68

Era – percebo agora – o único meio de que eu dispunha para expressar, pela guinada
do non-sens no chiste, o que o momento de uma descoberta tem fundamentalmente a
ver com o desequilíbrio de uma certeza: o chiste é um indicador determinante pois,
sendo estruturalmente análogo ao caráter de falta do lapso, acaba por representar, ao
mesmo tempo, a forma de negociação máxima com a “linha de maior inclinação”, o
instante de uma vitória do pensamento no estado nascente, a figura mais apurada de
seu surgimento. Isso reforça que o pensamento é fundamentalmente inconsciente
(“isso [ça] pensa!”), a começar pelo pensamento teórico (e o “materialismo teórico
de nosso tempo” não pode, sob risco grave, permanecer cego a esse respeito). Em
outras palavras, o Witz representa um dos pontos visíveis em que o pensamento
teórico encontra o inconsciente: o Witz apreende algo desse encontro, dando
aparência de domesticar seus efeitos (PÊCHEUX, 1997b, p.303).

A citação acima pode ser um pouco longa, mas nada dela eu consegui retirar. Talvez
por dizer tão bem da certeza da existência do inconsciente. Pêcheux narra o seu trajeto na
Outra cena. Nesse diálogo, impossível não registrar as palavras de Lacan:

A Outra cena, essa Outra-coisa, esse outro lugar, dimensão do Alhures presente para
todos e vetado para cada um, “que sem que se pense nisso, e portanto, sem que
qualquer um possa pensar estar pensando melhor que outro, isso pensa. Isso pensa
um bocado mal, mas pensa com firmeza, pois foi nesses termos que ele (Freud) nos
anunciou o inconsciente: pensamentos que, se suas leis não são de modo algum as
mesmas de nossos pensamentos de todos os dias, nobres ou vulgares, são
perfeitamente articulados” (LACAN, 1998, p. 554).

É por circularem em uma Outra cena que Pêcheux, Freud e Marx pensam ser possível
a mudança: a revolta e a revolução. Esta Outra cena que consiste na existência do
inconsciente, tanto pode viabilizar o assujeitamento, quanto disponibilizar e construir
artefatos de resistência.
Lacan em Escritos (1998b, p. 267-8), comenta que o sonho funciona como uma
charada, no sentido de enigma. Afirma que o sonho tem a estrutura de uma frase: “Porém, é
na versão do texto que o importante começa, o importante de que Freud nos diz está dado na
elaboração do sonho, isto é, em sua retórica”.
Lacan aponta que Freud nos ensina a ler o discurso onírico que o sujeito modula com
suas intenções ostentatórias ou as demonstrações dissimuladoras ou persuasivas, retaliadoras
ou sedutoras:

1. Nos deslocamentos sintáticos: através da elipse e pleonasmo, hipérbato ou silepse,


regressão, repetição e oposição.

2. Nas condensações semânticas: metáfora, catacrese, antonomásia, alegoria,


metonímia e sinédoque.
69

Para pensarmos a questão do assujeitamento, discuto o fetichismo da imagem –


conceito trabalhado por Kehl (2004) – na tentativa de atualizar o que Marx chamou de o
fetichismo da mercadoria, e que as obras de arte em análise apresentam e problematizam.

2.4 O FETICHISMO DA IMAGEM-MERCADORIA

Segundo Marx, o fetichismo da mercadoria é uma “relação social definida entre os


homens que assume aos olhos deles a forma fantasiosa de uma relação entre coisas” (MARX,
1983, p. 77).
Zizek (1996) discute essa questão do valor que uma certa mercadoria assume enquanto
uma propriedade quase “natural” de outra coisa-mercadoria, que é o dinheiro. Dizemos que o
valor de uma certa mercadoria é tal ou qual volume de dinheiro que ela solicita. Logo, o
aspecto essencial do fetichismo da mercadoria não consiste na famosa substituição dos
homens por coisas, mas num certo desconhecimento sobre a relação entre a estrutura e os
elementos desta estrutura. Aquilo que é um efeito estrutural, um efeito da rede de relações
entre os elementos, aparece como uma propriedade circunscrita de um dos elementos, como
se essa propriedade também lhe pertencesse fora de sua relação com outros elementos,
independentemente.
Esse efeito da rede de relações de sentido pode ocorrer entre coisas e entre as pessoas.
A atribuição de valor de uma determinada mercadoria acontece quando esta é comparada a
uma outra mercadoria. Da mesma forma, os homens necessitam do olhar uns dos outros para
se reconhecerem como sendo João ou Maria. É a devolução do olhar de um outro ser humano
que oferece a ideia de unidade para o sujeito, conforme a teoria do estádio do espelho de
Lacan. É através do espelho do outro que o sujeito pode encontrar a sua identidade. De onde
se pode conjeturar que o preço pago pela identidade é a alienação.
Marx dá seguimento a essa homologia: a outra mercadoria, B, só é um equivalente na
medida em que a mercadoria A se relaciona com ela como sendo a forma-da-aparência de seu
próprio valor, somente dentro dessa relação. Mas a aparência – e nisso reside o efeito de
inversão que é característico do fetichismo –, a aparência é exatamente oposta: A parece
relacionar-se com B como se, para B, ser um equivalente de A não correspondesse a ser uma
“determinação reflexa” de A – ou seja, como se B já fosse, em si mesmo, equivalente a A; a
propriedade de “ser equivalente” parece pertencer-lhe até mesmo fora de sua relação com A,
70

no mesmo nível de suas outras propriedades efetivas “naturais” que constituem seu valor de
uso. A essas reflexões, mais uma vez, Marx acrescentou uma nota muito interessante:

Tais expressões das relações em geral, chamadas por Hegel de categorias reflexas,
compõem uma classe muito curiosa. Por exemplo, um homem só é rei porque outros
homens colocam-se numa relação de súditos com ele. E eles, ao contrário, imaginam
ser súditos por ele ser rei (MARX, 1983, p. 63).

Esse raciocínio me parece muito próximo do conceito de formações imaginárias de


Pêcheux (AAD-1969) onde os sujeitos A e B designam lugares determinados na estrutura de
uma formação social e esses lugares estão representados nos processos discursivos que se
estabelecem. Pêcheux diz que a posição dos protagonistas do discurso intervém nas condições
de produção do discurso. Nesse estudo, faço uma tentativa de transcrição das formações
imaginárias para o esquema L de Lacan, seguindo a mesma topologia usada para ler a histeria
e para ler a PP. Para tanto, proponho a seguinte superfície:

A a
Quem é ele para que eu lhe fale assim?
Quem sou eu para lhe falar assim?

a’ B
Quem sou eu para que ele me fale Quem é ele para que me fale assim?

Figura 25 – O Esquema L das Formações Imaginárias


Fonte: Luciene Jung de Campos

A questão que o analista do discurso coloca sobre a existência do sujeito é uma


pergunta articulada sobre o lugar de onde fala o sujeito: “Que sou eu nisso?” Que a questão
de sua existência inunde o sujeito, suporte-o, invada-o ou até o dilacere por completo, é o que
testemunham o analista, o psicanalista e o artista. As tensões, as suspensões e as fantasias com
que eles se deparam é que lhes fazem empreender a análise e a arte. É sob a forma de
elementos do discurso na história que essa questão do Outro, no Outro e para o Outro se
articula. Pois é por esses fenômenos se ordenarem nas figuras desse discurso que eles têm
fixidez de sintomas que são legíveis e que podem ser interpretados.
71

Portanto, “ser rei” é um efeito da rede de relações sociais entre um “rei” e seus
“súditos”. Os súditos imaginam que ser rei é uma propriedade natural da pessoa de um rei. E
esse é o desconhecimento fetichista para os envolvidos nesse vínculo social. O rei só é rei
porque os súditos são súditos e dispensam ao rei o tratamento de rei.
Zizek (1996) analisa duas modalidades de fetichismo: nas sociedades capitalistas e nas
sociedades feudais. Nas sociedades capitalistas onde predomina a produção e a competição, as
relações entre os homens não são fetichizadas. O que pode ser constatado é o fetichismo da
mercadoria. As relações entre as pessoas “livres” para ser o que quiserem e para fazer o que
quiser, são relações egoístas onde cada um segue os seus interesses. O modelo dessas relações
não segue o padrão de dominação-servidão, já que são pessoas que gozam de “liberdade” e
“igualdade”. Seu modelo é a troca mercantil, livre do fardo da veneração ao Senhor e da
proteção do Senhor para com o escravo. As relações interpessoais são relações utilitárias, de
interesses.
As duas formas de fetichismo, portanto, são incompatíveis: o fetichismo da mercadoria
e o fetichismo do Senhor. O recuo do Senhor no capitalismo mostra-se apenas como um
deslocamento, como se a desfetichização das relações “entre os homens” fosse paga com o
fetichismo da mercadoria. O lugar do fetichismo apenas se desloca das relações
intersubjetivas para as relações “entre coisas”. As relações sociais decisivas, as de produção,
deixam de ser imediatamente transparentes, como o eram relações do Senhor com seus servos.
Elas passam a se disfarçar sob a forma de relações sociais entre coisas, entre os produtos do
trabalho.
Nesse raciocínio, considerando o mecanismo de deslocamento na produção das novas
relações sociais, descobre-se o sintoma à maneira de Marx na passagem do feudalismo para o
capitalismo: as relações de dominação e servidão continuam existindo, mas são recalcadas.
Existe um mediador nas relações sociais capitalistas que disfarça as relações de dominação e
servidão – que é a mercadoria.
A imagem abaixo é uma das obras de Rosenquist. Ele produz imagens enormes, mas
fragmentadas. As várias partes são reunidas, formando um padrão próximo ao abstrato
(STANGOS, 2000, p. 163):
72

Figura 26 – James Rosenquist. Eu te amo com meu Ford (1961)

Nos anos de pós-guerra, era comum que as letras da música pop e do rock exaltassem
os carros, no Brasil, fez muito sucesso Meu calhambeque, de Roberto Carlos. Dirigir um carro
estava associado à iniciação e à potência sexual. Trata-se de uma imagem dividida em três
planos: na parte superior, a grade estilizada de um Ford modelo 1950; na parte inferior, o
espaguete com molho de tomate, provavelmente, enlatado de colorido enjoativo em menção à
qualidade inferior dos alimentos produzidos em massa. Na parte central da obra, entre o
espaguete instantâneo e o carro glamouroso está um casal encenando um romance
hollywoodiano e insinuando que os americanos fazem sexo com o carro e em seus carros.
Essas relações mútuas que se disfarçam sob a forma de relações sociais entre coisas,
deixa escapar na imagem a opressão e a supressão do casal pela pressão das mercadorias: o
automóvel e o espaguete, entre sofisticação e massificação. Talvez seja possível fazermos
uma aproximação com o sintoma histérico que trata de substituir o Outro nesta função do
desejo. O desejo na histeria e o desejo no capitalismo é o desejo de desejar.
Numa base sócio-histórica, a imagem acima funciona como metáfora do modo de
viver e de amar de uma classe social, uma forma de uso da relação amorosa motivada pela
valorização da sensualidade humana. O valor de troca da mercadoria e libido amolda-se, os
meios de expressão dos sentimentos humanos tornam-se valiosos, custando também uma
fortuna. O prazer se submete à mercadoria e o sujeito que goza àquele que capitaliza.
Conforme afirma Marx nos manuscritos parisienses: “Toda pessoa especula sobre a
73

possibilidade de criar no outro uma nova necessidade, a fim de obrigá-lo a um novo sacrifício,
de impingir-lhe uma nova dependência, de induzi-lo a uma nova forma de prazer levando-o à
ruína econômica” (HAUG, 1997, p. 31).
A imensa e variada oferta de mercadorias e a onipresença dos apelos da publicidade,
emitidas a partir desta encarnação do grande Outro, chamado ideologia capitalista, e que tem
na mídia de massa seu porta-voz – produzem uma ilusão. A ilusão de que nada foi perdido e
que temos ao alcance da mão uma quantidade de objetos inusitados para simular o objeto
perdido do nosso mais-gozar, o objeto a (BUCCI; KEHL, 2004, p. 75).
Bucci e Kehl (2004) defendem a ideia de que as sociedades contemporâneas, as
sociedades do espetáculo tiveram que fazer um retorno para os corpos humanos e que a lógica
do fetichismo da mercadoria deslocou-se para o território de circulação das imagens,
associando alguns seres humanos “especiais”, “escolhidos” a mercadorias:

Diferentemente do caso das mercadorias, que só servem de suporte para a


mistificação dos homens que as trocam, os vendedores, os vendedores de imagens
são presas da própria ilusão que produzem. São, ao mesmo tempo, o fetiche e o
fetichista, o ilusionista e o iludido (BUCCI; KEHL, 2004, p. 82).

Para Andy Warhol, autor da frase no futuro todos terão seus quinze minutos de fama
(MCCARTHY, 2002), a fama é geralmente uma imposição ambígua, uma configuração
infeliz de eventos que confirma a vulnerabilidade humana como ele registra em Dezesseis
Jackies (1964). Inclui entre as imagens da primeira-dama a expressão de sofrimento após o
assassinato do marido e presidente. A invasão de privacidade é o preço da fama,
transformação imposta pela revolução da informação no pós-guerra.
74

Figura 27 - Andy Warhol. Dezesseis Jackies (1964)

Para Jacques Rancière (2006, p.14), a singularidade da arte se aproxima à potência do


Unheimlichkeit (sic) freudiano. A virtude da arte consiste em ser testemunha do “desastre
totalitário, consequência última do sonho de uma humanidade dona de seu próprio destino”. A
arte é o observatório da dependência em relação à potência do Outro, da miséria e do horror
que desconstrói o projeto de autonomia e de unidade do sujeito. A arte opera a revelação
traumática do mal-estar na cultura.
A forma de apresentação do inconsciente, da arte e da ideologia é a estética. Enquanto
o inconsciente e a ideologia funcionam por representações, a arte trata da re-apresentação. De
mostrar de novo, de mostrar mais uma vez o que não pode ser visto na diferença.
O presente capítulo se propôs apresentar no que se tocam, aproximam-se e se repelem
o materialismo histórico, a psicanálise, a arte conceitual e a análise do discurso. Nesta
pesquisa, a análise do discurso se propõe receber todos esses litorais, observando seus
movimentos, ondulações e oscilações na tentativa de fazer uma leitura provisória do mundo
contemporâneo e da condição de resistência do sujeito.
75

Como lembra Rivera (2002), o “eu” está irremediavelmente fragmentado após Paul
Cézanne, pintor francês que desestabilizou a ordenação “natural” do espaço visual na pintura,
e com Freud, que de maneira complementar coloca as manifestações do inconsciente no
centro de sua investigação em detrimento da consciência e da razão. Acrescentaria, ainda, ao
espelho fragmentado da Arte e da Psicanálise, um outro espelho em cacos que é o da Análise
do Discurso. Michel Pêcheux (1997b, p. 152) afirma que o homem é um animal ideológico,
portanto que “a ideologia é eterna” – enunciado que faz eco à expressão de Freud: “o
inconsciente é eterno”. Onde o sujeito não é apenas um “suporte” da ideologia, embora não
possa viver fora dela, mas pode se deslocar de um domínio de saber para outro.
76

3 OLHAR E IMAGEM: CONSTRUÇÕES BASCULANTES DO SUJEITO

A incompletude é a condição de existência do sujeito: ele nunca é, como diz bem


Lacan (1998a), mas isto não impede que ele busque ser. O olhar e a imagem são mediações
entre o sujeito e a cena do Real. O sujeito, enquanto resultado da relação com a linguagem e a
história, só pode se manifestar através de uma matriz de sentido reguladora. Essa matriz de
sentido é delineada de forma heterogênea a partir do interdiscurso, através da antecipação das
relações de força e de sentido que dá condições ao sujeito para se posicionar no processo
discursivo. Portanto, é nas relações de contradição, de dominação, de aliança e de
confrontação que olhar e imagem se constroem.
O objetivo deste capítulo é apresentar a trama de constituição simultânea entre o olhar
e a imagem a partir do dispositivo teórico da análise do discurso. Esta trama é produzida num
espaço intervalar que busca contornar o vazio do sujeito, através dos pontos de nodulação, na
tentativa de costurar a falta. Frente à tamanha inconsistência, resta perguntar: O que pode o
sujeito?

3.1 O SOBREVÔO DO SUJEITO NA TOMADA DE POSIÇÃO

O conceito de sujeito em Análise do Discurso foi re-teorizado por Michel Pêcheux, a


partir do materialismo histórico e da psicanálise. Nesse aporte teórico, o sujeito é o sujeito do
inconsciente, ou seja, o sujeito do recalque operado na linguagem e o sujeito da interpelação
ideológica, o que só é possível pela linguagem. Trata-se, então, do sujeito estruturado pela
linguagem que, assim, pode ser interpelado pela ideologia, através das produções
inconscientes constitutivas da prática discursiva. O sujeito desta relação é tomado, então,
como efeito de linguagem e efeito ideológico, o que permite com que o sujeito se identifique
com a formação discursiva que o domina. Pergunto: se a estrutura que sustenta o sujeito é a
linguagem e esta linguagem só adquire sentido na ideologia, a materialidade do sujeito não
seria o discurso? Que por sua vez é linguagem e como tal, também é inconsciente.
Fora do arcabouço desenvolvimentista psicossomático, biopsíquico, o sujeito sofre por
conta de sua pouca consistência e a forma que ele encontra para lidar com essa
vulnerabilidade é entregar-se às alienações identificatórias. O assujeitamento, portanto, é a
condição do sujeito. Necessita identificar-se para existir. Essa existência só é possível num
77

lugar de interstício, que oscila entre a ideia de “autonomia” e a ideia de “servidão” ao Outro
(aqui, trata-se do Outro da cultura, da ideologia). Na “servidão” é a ausência de palavras o que
se impõe ao sujeito. Na perspectiva da “autonomia” ele pode falar do seu desejo de fazer-se
segundo o Outro e pelo Outro, inscreve-se, assim, o sujeito-falante. A impossibilidade de ser
do sujeito o faz enfrentar sua existência duplamente exposto ao Outro: Esse Outro como
simbólico que impõe o desejo e como o único capaz de responder a esse desejo. Assim, a
sujeição é inerente ao fato da estrutura do sujeito falante, ou seja, não existe a independência
suposta entre sujeito e objeto. A fala é a comunicação de um saber, por isso, ela coloca a
questão da verdade para o inconsciente, que é o lugar de onde ela se origina. E Lacan (1954)
se interroga sobre o que é a fala:

Uma fala só é uma fala à medida que alguém acredite nela [...]. A fala é
essencialmente um meio de ser reconhecido. Ela está na frente de qualquer coisa que
lhe esteja por trás. E, portanto, ela é ambivalente e absolutamente insondável. Isso
que ela diz é verdade? Ou será que não é verdade? É uma miragem. É esta miragem
primeira que lhe assegura que você está no campo da fala (LACAN, 1975, p.127, o
grifo é meu).

No momento em que Lacan aborda a fala, ele condiciona à sua existência o olhar e a
imagem, na expressão “miragem”. Parece impossível falar sem a existência anterior de uma
estrutura de ordem imagética, que retorna no campo da fala, adquirindo a dimensão do
ficcional. Para haver leitura é preciso que haja o registro anterior de uma imagem. Essa
imagem, não é imagem pura, já que convoca a fala, exige significação. Para a análise do
discurso, a significação só pode ser dada na história, no modo como os sentidos são
produzidos e circulam. O que me interessa no presente estudo é a exposição do sujeito à
opacidade da imagem da publicidade/propaganda e a relação desse sujeito com essa
materialidade simbólica e os processos de significação diversos que podem advir.
O gesto do sujeito na posição-artista é determinado pela história da arte e pelo
dispositivo teórico-técnico-metodológico que a arte oferece. Ao passo que o gesto do sujeito
na forma-sujeito consumidor (tomado aqui como o sujeito universal “S” na ideologia
capitalista) é determinado pelo dispositivo ideológico dominante com seu efeito de evidência:
comprar. Nos dois gestos existe mediação. Porém, é a mediação da posição construída pelo
artista ao trabalhar a questão da exterioridade e historicidade que interessa neste estudo.
O que se espera da mediação através da linguagem acionada pelo dispositivo histórico-
teórico-metodológico da arte, é que ela produza um deslocamento e, assim, permita ao sujeito
na posição-artista trabalhar as fronteiras das formações discursivas enunciadas pela
78

publicidade/propaganda e pelas artes visuais. Em outras palavras, que ele entre em relação
crítica com o conjunto complexo de formações discursivas e abale o Sujeito universal da
forma-sujeito consumidor.
Isto não quer dizer que o artista tenha uma posição neutra em relação aos sentidos de
sua obra. Ao contrário, ele está sempre afetado pela interpretação que o dispositivo histórico-
teórico-metodológico instala e que marca uma posição em relação a outras posições. O que
observo é que esse dispositivo de que o sujeito em posição-artista dispõe e que está em uso,
portanto, em aberto, é capaz de deslocar a posição-sujeito. Esse deslocamento da posição-
sujeito se efetiva no trabalho sobre a opacidade da imagem, na sua não-evidência e com isso,
a mediação sujeito-imagem adquire novos sentidos.
No processo de identificação com a forma-sujeito consumidor, o sujeito se inscreve
em uma formação específica para que o seu gesto de consumo tenha sentido e isto lhe parece
como “natural”. Já, a posição-artista, caracteriza-se pela possibilidade de habitar no
entremeio, num espaço deslocado que pode sugerir outras relações visíveis entre diferentes
sentidos. Torna sensível a imagem ao expô-la ao equívoco e torna o sentido suscetível de
tornar-se outro.
O sujeito na posição-artista elabora as suas Séries a partir da imagem à deriva: no
deslize e no efeito metafórico para encontrar um outro na sociedade e na história. Busca
estabelecer uma relação, o encontro com uma alteridade. Marca a existência de uma certa
distância que abre para outras possibilidades de se deslocar do sujeito.
Nessa pesquisa, pretendo indagar os gestos de interpretação que trabalham na imagem
transformada/descontinuada da PP, nas Séries que estão constituindo os sentidos e os sujeitos
em suas posições.
No caso desse estudo, o sujeito na posição-artista é o sujeito na berlinda, com certa
autonomia, que se apropria da ambivalência da imagem e “fala” sobre ela e através dela, por
meio de sua potencialidade de intervenção metafórico-poética estilística. Oferece o seu
testemunho plástico e empreende uma linguagem incompreensível, na perspectiva do
consumo e da publicidade, formação discursiva com a qual passa a se contra-identificar, já
que a mercadoria por si só exerce o seu fascínio. Na sociedade contemporânea, antes de
sermos cidadãos, somos “consumidores”. O sujeito na posição-artista é, pois, o mensageiro
evanescente que circula entre um espaço que se abre ao gozo convidativo do consumo e às
possibilidades de produzir discursos sobre isso. A produção das Séries consiste em poder
desalojar-se de uma posição, sair de um lugar fixo para poder ocupar diferentes lugares. É
79

cortar-se para alcançar um estilo que garanta o sentimento de apresentar-se a si mesmo na


cultura e na história, através de um novo re-ordenamento simbólico.
A tomada de posição do sujeito se configura na articulação do real com o simbólico e
na relação do sujeito com o significante na formação discursiva. As formações discursivas são
exteriores e anteriores ao sujeito, às quais ele se acha assujeitado e das quais resulta, a cada
passo, uma posição que define ao sujeito como interpelado no lugar em que o conflito se
instala.
Exposto aos emblemas do Outro, no caso, à publicidade/propaganda e ao consumo, o
sujeito se descobre no lugar designado pela falta primordial de onde converge a apelação
dirigida ao Outro e ao enfrentamento com a falta. Na demanda, o recurso ao Outro não é outra
saída senão a fuga em relação à falta, saída impossível ante uma carência paradoxal que
determina a volatilização do sujeito. Resta uma esperança que o drama do sujeito possa
encontrar uma saída pela via da criação. No enfrentamento com a falta, onde a obra lhe serve
de proteção, indica-lhe um lugar divergente de sujeito, se constitui o horizonte da dialética
entre o sujeito e o Outro.
Entendo que a tomada de posição do sujeito se configura no interior de um espaço em
fuga, desenhada pela impossível saída frente à falta e às angústias que se originam deste
estado de desamparo. O sujeito se defende desse desamparo com estratégias objetais que
operam no marco fantasmático assinalado pelas angústias sem nome, as inibições e os
sintomas. Portanto, as Séries, enquanto outras saídas possíveis, buscam suturar o fugidio
espaço subjetivo e, ao costurar as fissuras ontológicas, preservam a posição que o sujeito
conseguiu arranjar, defendendo-se da ameaça inquietante que implica a falta que carrega a
demanda ao Outro e do Outro.
Para Duchamp, o ato criativo, não é um ato isolado, é um ato de relação. Onde a obra
não começa nem acaba na cabeça ou na mão do artista. A obra só adquire sentido pelo olhar
do outro: “no final das contas, o ato criativo não é perpetrado somente pelo artista”, como
registrou o seu biógrafo Calvin Tomkins (TOMKINS, 2004, p. 457). Portanto, para o autor, o
artista não tem o controle dos atributos e dos sentidos de sua obra.
Nesta perspectiva, o sentido da obra – enquanto uma linguagem – não existe em si
mesmo, só pode ser constituído em relação às condições de produção da imagem, uma vez
que muda de acordo com a formação ideológica e o lugar discursivo de quem a (re)produz e
de quem a (re)interpreta. Portanto, o sentido para Duchamp e para Pêcheux, nunca é acabado,
está sempre em curso e se produz numa determinação histórico-social.
80

O processo de criação do sujeito, na função-autor só é possível pelo retorno ao


interdiscurso, onde se encontram delineadas as formações discursivas que determinam o
sentido para as imagens. É a partir do interdiscurso que as modalidades de tomada de posição
poderão ser analisadas em suas respectivas formações discursivas. Pois, o pré-construído,
enquanto elemento do interdiscurso, determina o sujeito, impondo e ao mesmo tempo,
dissimulando seu assujeitamento com uma aparente “autonomia”, inserido na estrutura
discursiva da forma-sujeito (PÊCHEUX, 1975).
A forma-sujeito organiza a formação discursiva, determina o que pode e deve ser dito.
O pré-construído representa a presença constante da interpelação ideológica a qual fornece e
impõe, simultaneamente, a “realidade” e “seu sentido” em âmbito universal; por outro lado, a
articulação de enunciado – outro elemento do interdiscurso – constitui o sujeito em sua
relação com o sentido e por isso, determina a dominação da forma-sujeito. Frente a essa
determinação, calcada na linguagem e na ideologia, cabe abordar o processo de tomada de
posição que está diretamente vinculada às identificações e ao assujeitamento ideológico.
Para Pêcheux (1975), o sujeito só pode existir a partir de seu pertencimento a uma
formação discursiva, ou seja, o sujeito só existe enquanto posição. Não existe o sujeito
enquanto essência ou substância, da forma psicossomática positivista. Pêcheux esclarece o
processo de constituição do sujeito: “a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se
efetua pela identificação com a formação discursiva que o domina” (PÊCHEUX, 1997b, p.
163). Ou seja, o sujeito do discurso identifica-se com a forma-sujeito, ou melhor, com Sujeito
histórico e, assim com a formação discursiva.
Desse modo, para Pêcheux, a “marca do inconsciente como ‘discurso do Outro’
designa no sujeito a presença eficaz do ‘Sujeito, que faz com que todo sujeito ‘funcione’, isto
é, tome posição’” (PÊCHEUX, 1997b, p. 171) para que o sujeito possa se inscrever no social
e no histórico. Indursky (2000) aborda as transformações no pensamento de Pêcheux quanto à
forma-sujeito e à tomada de posição, chamando a atenção para o caráter inicial de unicidade
da forma-sujeito, garantida pela tomada de posição, que se torna possível em função do
“desdobramento do sujeito como ‘tomada de consciência’ de seus objetos (de seus
semelhantes e do Sujeito), onde se dá uma reduplicação da identificação” (PÊCHEUX, 1997b,
p. 172). Nesta abordagem inicial, a identificação é maciça e direciona à “homogeneidade da
formação discursiva e da própria forma-sujeito” (PÊCHEUX, 1997b, p. 172). Porém, noutro
momento, na mesma obra de Pêcheux, a identificação é menos compacta e tem mais
mobilidade, quando ele apresenta as “modalidades das tomadas de posição”, tais modalidades
relativizam a “unicidade imaginária do sujeito” (PÊCHEUX, 1997b, p. 163).
81

Pêcheux apresenta três modalidades de tomada de posição: “a do Sujeito universal ou


forma-sujeito (identificação); do mau sujeito (contra-identificação); transformação-
deslocamento da forma-sujeito (desidentificação)” (PÊCHEUX, 1997b, p. 215).
O discurso do mau sujeito é o de contraposição à forma-sujeito que organiza os
saberes da formação discursiva com a qual o sujeito se identifica. O discurso do sujeito na
posição de mau sujeito é aquele que toma um certo distanciamento e se permite duvidar,
desafiar, contestar ao invés de simplesmente reproduzi-lo como é o caso da primeira
modalidade de identificação com a forma-sujeito. A contra-identificação produz tensão na e
sobre a forma-sujeito, ameaçando as “certezas” da forma-sujeito e colocando em risco a sua
unidade. Indursky (2008) afirma que esse abalo abre a possibilidade para outras identificações
parciais que não permitem a reduplicação perfeita dos conhecimentos da forma-sujeito,
instaurando diferença e divergência no domínio da formação discursiva (FD):

Ela [a formação discursiva] passa a ser dotada de fronteiras porosas, que permitem
que outros saberes provenientes de outro lugar, de outra FD nela penetrem, aí
introduzindo o diferente e/ou o divergente, que fazem com que esse domínio de
saber se torne heterogêneo a si mesmo (INDURSKY, 2008, p. 14).

A terceira modalidade funciona sob desidentificação que leva à transformação-


deslocamento da forma-sujeito. Onde o sujeito do discurso desidentifica-se de uma formação
discursiva e sua forma-sujeito para se identificar com outra formação discursiva e sua forma-
sujeito, respectivamente. “O homem é um animal ideológico”, refere Pêcheux (1997, p. 152),
portanto não escapa da ideologia, nem de se identificar em alguma formação discursiva. Esta
terceira modalidade ao mesmo tempo em que aponta para uma determinação, também abre
para uma certa margem de movimentação do sujeito do discurso, como afirma Indursky
(2008, p. 14): “Esta capacidade de migrar de um domínio de saber para outro indica o espaço
e a dimensão de sua ‘liberdade’”.
Na tomada de posição do mau sujeito, ao ser interpelado, o artista contrapõe-se ao
Sujeito universal consumidor, e faz um distanciamento dessa forma-sujeito, ou seja, critica e
desidealiza a imagem colocada para adesão. Ao mesmo tempo, contesta o saber da formação
discursiva que lhe é imposta e contra-identifica-se. Esse movimento do artista ocorre no
interior da forma-sujeito, pois o artista, certamente, também é um consumidor e, por
consequência, o movimento se estende à esfera da formação discursiva da
publicidade/propaganda. A diferença e a contradição tomam espaço e afetam não apenas a
formação discursiva, mas a sua forma-sujeito.
82

Na segunda modalidade, enquanto sujeito do discurso, o artista se utiliza das técnicas


disponíveis em outro campo do saber, produzindo transformação-deslocamento da forma-
sujeito (PÊCHEUX, 1997b, p. 217), desidentifica-se, à medida que se distancia da imagem
inicial da publicidade/propaganda, através da transformação que opera na imagem,
arremessando-a para um outro campo.
Em face dessas diferentes modalidades de tomada de posição de contra-identificação e
de desidentificação, a unicidade e a homogeneidade do sujeito ficam em xeque. Não existe
forma una, no entanto, assegura Pêcheux (1997b, p. 269-70): “o sujeito não ‘desaparece’, o
que acontece é um trabalho na e sobre a forma-sujeito do discurso”, realizando no interior da
forma-sujeito, um questionamento da forma-sujeito. Portanto, a forma-sujeito não pode ser
tomada de forma maciça e a plena identificação com a forma-sujeito (reduplicação da
identificação) também não é viável, pois os processos de contra-identificação e de
desidentificação resultam na tomada de posições divergentes.
A tomada de posição do artista é a contra-identificação, onde ele faz retorno aos
conceitos da Arte, o que Pêcheux chama de representação da necessidade-real em
necessidade-pensada, processo pelo qual “a interpelação ideológica continua a funcionar,
mas, por assim dizer, contra si mesma” (PÊCHEUX, 1997b, p. 270). Transpondo para a
análise das séries artísticas, a peça publicitária, no campo da Arte, pode ainda ser reconhecida
como uma transformação de “matérias-primas” ideológicas em objetividades materialistas que
vai produzir um novo conhecimento. Trata-se, então de anular um apelo e criar outro.
Neutralizar uma luta e propor uma luta nova.
No meu entendimento, as séries passam a funcionar como práticas discursivas que
tensionam o curso de funcionamento da forma-sujeito, na medida em que as formas
pragmáticas da publicidade/propaganda (PP) tornam-se matéria-prima de uma transformação.
As séries incidem sobre o aparelho de reprodução da PP e afeta a forma-sujeito. O trabalho de
contra-identificação na ideologia de consumo se desenvolve através de novas identificações
em que a interpelação funciona às avessas em relação aos “não-sujeitos” como a massa de
consumidores ou o mercado. Eu diria que a obra provoca fissuras na forma-sujeito
consumidor e passa a trabalhar mobilizando outras tomadas de posição no sujeito.
Se a Propaganda encontra um jeito de agarrar alguém, uma singularidade para aplicar
a sua “universalidade” e assim produzir o sujeito sob a forma-sujeito consumidor; a obra de
arte, por sua vez, passa a dirigir o funcionamento dos processos discursivos que nela se
inscrevem e, assim, adquire a potência de uma palavra de ordem. A obra tomada em
determinada conjuntura política perturba o funcionamento “espontâneo” da forma-sujeito
83

consumidor. Desse modo, é a ideologia que está designando “o que é” e “o que deve ser a
imagem”, cujo sentido é dependente do “todo complexo das formações ideológicas”,
conforme refere Pêcheux (1997, p. 160). É o complexo de formações ideológicas que está
designando o que é e o que deve ser a imagem.
Portanto, o sentido não existe em si mesmo, isto é, a “obra de arte” e a “peça
publicitária” são determinadas pelas posições ideológicas que estão em jogo. E também, no
modo como são produzidos o enquadre, o corte e o foco sobre um mesmo tema, o qual muda
de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que fazem uso da imagem. O que quer
dizer que a imagem adquire sentido em relação a essas posições, isto é, em relação às
formações ideológicas como foi mencionada acima, nas quais essas posições se inscrevem. É
pertinente, aqui, o conceito de formação discursiva, do ponto de vista de Pêcheux:

Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação ideológica


dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo
estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a
forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um
programa, etc.) (PÊCHEUX, 1997b, p. 160).

O sentido que Pêcheux atribui à “exposição” talvez não seja, exatamente, o mesmo de
uma “exposição artística”. Mas, posso tomar as Séries enquanto uma expressão que adquire
sentido na formação discursiva na qual são produzidas. Em relação à materialidade do
discurso e do sentido, Pêcheux complementa: “[...] os indivíduos são ‘interpelados’ em
sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam
‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes” (PÊCHEUX, 1997b,
p. 161).
Transpondo para o meu objeto de estudo, o sujeito na função-artista é interpelado e
convocado a se expressar na linguagem da formação discursiva que o representa, através da
arte contemporânea. A linguagem que lhe é própria não é a fala, é a imagem. Portanto, de
ordem visual, trata-se de uma imagem de base fotográfica, que, em duas das três séries,
apresenta-se enquanto imagem mista e heterogênea, associada à pintura. Os artistas, enquanto
sujeitos de seu discurso, ao abordarem as peças publicitárias produzidas em outra formação
discursiva, o fazem a partir de sua formação ideológica, materializada através da arte visual.
As séries artísticas, corpus deste estudo, são transmutações fotográficas dos conteúdos
cotidianos como meio pelo qual o artista apresenta “seu mundo”. Utiliza-se de objetos
apropriados que passam a ser os seus próprios objetos com qualidades e propriedades
84

específicas. Sem esquecer que, para a análise do discurso, a “atividade criadora” está
vinculada à ideia de que a realidade se torna dependente do pensar e do imaginar, enquanto
prolongamento do idealismo próprio à forma-sujeito. Por exemplo, a Mona Lisa de Da Vinci,
a Mona Lisa de Duchamp e o que estou chamando de a “Mona Lisa” de Goldgrub. Esse
“efeito poético” que faz olhar a obra, no caso, a imagem “tem como base a condição implícita
de um deslocamento das origens, deslocamento do presente ao passado, acoplado ao
deslocamento de um sujeito a outros, que constitui a identificação” (PÊCHEUX, 1997b, p.
168).

Figura 28 – Leonardo da Vinci, Mona Lisa, 1503-1506

A Mona Lisa de Da Vinci é uma das imagens clássicas, da Renascença, mais


apropriada pelos artistas e publicitários através dos tempos. As críticas e as análises da obra
são as mais diversas. Entre elas, está a leitura de Schneider e Flann (1977) que fazem relação
da Gioconda com o projeto arquitetônico do artista, num complicado paralelismo entre o
corpo humano e a terra: os rios são as artérias que irrigam o campo e a cidade; as rochas são
os ossos da terra e a terra, sua carne. Esta metáfora tem inspirado interpretações de Mona Lisa
como mulher-montanha, um eco formal da paisagem de fundo.
85

Figura 29 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004

Acima, a modelo fotografada por Goldgrub apresenta gestos semelhantes à Mona Lisa
de Da Vinci na postura dos braços cruzados, sobrepostos, em ligeiro toque. A cabeça em
rotação. No caso da obra de Da Vinci é mais acentuada a torção do olhar do que da cabeça,
em desviante sutileza. O entorno se atualiza e Goldgrub apresenta a paisagem urbana e a
mulher que faz par com essa paisagem é a “mulher-edifício”. A mulher-edifício tem silhueta
de base perpendicular alongada, prismática e cilíndrica, numa edificação em torre. Ao passo
que a mulher-montanha de Da Vinci (figura 28) tem contornos em formato piramidal em
cenário de inspiração rural. No entanto, a diferença mais marcante está no contexto e nas
vestimentas, ou seja, é a dimensão social-histórica que distingue as duas mulheres uma em
formação ideológica de inspiração rural-feudal; a outra, na paisagem urbano-capitalista,
ambas apreendidas discursivamente pelos artistas.
86

Figura 30 – Marcel Duchamp, L.H.O.O.Q., 1919

Uma terceira e indispensável Mona Lisa se coloca entre as duas anteriores: a Mona
Lisa de Marcel Duchamp. O artista insere traços masculinos, cavanhaque e bigode, no rosto
feminino. Faz alusão ao andrógino através da combinação de características masculinas e
femininas e ambas estão diante do observador.
A obra de Duchamp se insere no movimento Dadá. Movimento artístico em reação à
Primeira Guerra Mundial que propõe uma volta ao começo, uma volta simbólica ao jogo
infantil e um rechaço às forças de destruição. A Mona Lisa de Duchamp é mais um objeto
fabricado, um de seus readymades que ele intitulou L.H.O.O.Q. Nesta obra, outorgou ao
objeto já existente outros sentidos. O título contém jogos de palavras em dois idiomas e é um
bom exemplo de condensação verbal, pois suas letras lidas em francês dizem Elle a chaud au
cul, “ela tem fogo no rabo”. Lido como uma só palavra, o título tem a pronúncia “LOOK”,
“olha”, uma ordem ao observador. Lido de trás para frente: “KOOL”, traduzido como
“fresco” (ADAMS, 1996). Trata-se de uma combinação de bissexualidade com bilinguismo.
Marcel Duchamp busca elementos na história da arte e com um toque de humor convoca o
espectador que olhe a imagem mais famosa do mundo e encontre a sua divisão, a sua
87

bissexualidade. Seu andrógino, como a Mona Lisa original, devolve o olhar insistente ao
observador estabelecendo o jogo entre o consciente e o inconsciente, o masculino e o
feminino, o eu e outro. Por incrível que pareça, neste mesmo ano de 1919, Freud escreve O
estranho, expondo o duplo que habita cada um de nós.
No ensaio A Obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin
(1992) expõe que com a técnica de reprodução, a legitimidade e a originalidade, próprias da
obra de arte, desaparecem dissipando o que ele denominou de aura. A aura seria a aparição
única de algo distante, por mais próxima que esteja. No caso, a Mona Lisa de Leonardo Da
Vinci teria a sua aura e esta estaria vinculada à soma de tudo o que desde a sua origem nela é
possível de ser transmitido, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico. A
Mona Lisa de Da Vinci ao ser reproduzida por Duchamp faz esse testemunho histórico
vacilar, pondo em dúvida a autenticidade da obra. A reprodução técnica é um processo de
racionalização dessacralizador, aniquilador do mito. Redutora do significado mágico da arte
original, enquanto representação pretensiosamente transcendental.
Para Benjamin (1992, p. 79) na “era da reprodutibilidade técnica, o que vacila é a
autoridade da coisa, o que murcha é a aura”, diz ele. Reconhece que o processo é sintomático
e que ultrapassa o saber da arte. À medida que libera o objeto reproduzido da ditadura da
tradição para colocá-lo no lugar da ocorrência massificada. Ao permitir o acesso à
reprodução, possibilita que o reproduzido se atualize em cada um desses contextos.
Os processos de reprodução técnica colocam sob pressão a imagem que está sendo
reproduzida. O abalo da tradição e os movimentos de massa orientados para o consumo
constituem, por um lado a sociedade contemporânea em crise e, por outro, dizem respeito à
renovação da humanidade. Em relação à Mona Lisa de Duchamp, a sociedade machista e
patriarcal é posta em cheque pela ousadia do artista em “profanar” uma obra assim, tão
clássica e cultuada para aportar outros sentidos. Já a Monalisa de Goldgrub (nomeada desta
maneira por mim), vai ao encontro de quem a apreende, separa-se do apelo ao consumo e
(re)instaura o processo de contemplação. Embora não chegue a ser “aurática”, do ponto de
vista benjaminiano, a imagem amplia as possibilidades discursivas através da dinamicidade de
sua composição estética.
88

3.2 O SUJEITO DESALOJADO ENTRE A PSICANÁLISE E A ANÁLISE DO


DISCURSO

Na tentativa de compreender os processos de subjetivação, cabe salientar que a


Análise do Discurso e a Psicanálise “se aproximam e se afastam de modo tenso”, como afirma
Mariani (2008, p. 143). O conceito de sujeito é um conceito chave para esses dois campos
teóricos que suscita revisões e discussões em ambas as partes, mobilizando sentidos em
relação à linguagem, ao inconsciente, ao social e ao histórico. Pêcheux ao fundar a Análise do
Discurso no final dos anos 60, busca teorizar um sujeito que se constitui no funcionamento da
linguagem com a história. O conceito de sujeito da Análise do Discurso conduz ao sujeito
dividido da Psicanálise: o sujeito do inconsciente estruturado como linguagem.
Pêcheux em Semântica e Discurso (1975) retoma a expressão de Lacan (1998a, p. 27):
“Só há causa daquilo que falha/que manca”, mencionada em O seminário, livro 11: os quatro
conceitos fundamentais da psicanálise (1964), sem fazer referência à citação de Lacan. No
entanto, Pêcheux não deixa de reconhecer “aquilo que falha” nas várias manifestações do
sujeito:

[...] se manifesta incessantemente e sob diferentes maneiras (lapso, chiste, ato falho)
no próprio sujeito, pois traços inconscientes do significante não são jamais
“apagados” ou esquecidos, mas trabalham sem cessar, na pulsação sentido/não
sentido do sujeito dividido (PÊCHEUX, 1997b, p. 243).

Leandro Ferreira (2004) retoma essa questão da falha do sujeito ao fazer a distinção
entre as duas disciplinas AD e psicanálise, situa o campo da AD como o campo dos sentidos,
reivindicando assim a ideologia, o sujeito, a língua e a história para o seu território. Enquanto
o campo da psicanálise é o inconsciente, por sua vez estruturado pela linguagem,
caracterizando o sujeito desejante. Quanto ao que é comum às duas áreas, a autora identifica a
falta como sendo o “passaporte”, “a via comum” de acesso aos dois “países”, reafirmando que
o sujeito se estrutura na falta. É a falta que permite o desdobramento do desejo e o
deslizamento dos significados na língua e no discurso.
Quanto à psicanálise, campo do saber postulado por Freud, tem como um dos
pressupostos principais que o eu não é o senhor em sua própria casa. Assim, dedica-se a toda
manifestação do sujeito que não interessa à razão: os sonhos, as associações livres, os lapsos,
os esquecimentos e os sintomas. Essas manifestações inconscientes são acolhidas na fundação
89

da Análise do Discurso, como lembra Michel Plom (2005), porém foi muito difícil para
Pêcheux aceitar isso que falha no campo do pessoal, do social e do político, o que muito
contribui para o seu precoce desaparecimento.
Na década de 50, Lacan empreende a releitura de Freud, propondo “retornar a Freud”
através da releitura do inconsciente com a conferência inaugural O Simbólico, o Imaginário e
o Real. No entanto, esse “retorno” é um retorno bem particular, já que o inconsciente de que
trata Lacan não vem de Freud, mas do estruturalismo. Onde a linguagem assume uma posição
central na estruturação da experiência social, enquanto modo de organização das relações na
construção de identidades e de diferenças. “Esse sistema linguístico que estrutura o campo da
experiência é exatamente o que Lacan chama de Simbólico” (SAFATLE, 2007, p. 43). Assim,
Lacan cunha a noção de inconsciente como um sistema de regras, normas e leis que definem o
que pode ser pensado: o inconsciente estruturado como linguagem. Segundo Safatle, é essa
relação com a linguagem que vai permitir a Lacan se livrar da noção psicológica de
inconsciente: “Daí porque Lacan distinguirá as ‘relações autenticamente intersubjetivas’ (que
ocorrem na confrontação entre sujeito e estrutura) e a intersubjetividade imaginária, própria à
relação entre o sujeito e o outro” (SAFATLE, 2007, p. 44).
Da mesma forma, na Análise do Discurso, existe por parte de Michel Pêcheux, a
necessidade de conceituar o sujeito a partir de uma teoria psicanalítica, porém não-subjetiva
da subjetividade, como refere Indursky:

É a partir deste laço entre inconsciente e ideologia que o sujeito da Análise do


Discurso se constitui. É sob o efeito desta articulação que o sujeito da AD produz
seu discurso. E esta é a natureza da subjetividade convocada por Pêcheux: uma
subjetividade não-subjetiva (INDURSKY, 2008, p. 11).

Trata-se então de uma dupla marca na constituição do sujeito. É um sujeito histórico e


ideológico, mas que desconhece que o é, na evidência de seu funcionamento inconsciente. O
sujeito é interpelado ideologicamente, mas não sabe disso e suas práticas discursivas se
estabelecem sob a ficção de que ele é a origem de seu dizer e de que tem o controle sobre o
que diz.
O assujeitamento parece ser outro ponto em comum entre o sujeito da Psicanálise e o
sujeito da Análise do Discurso, conforme escreve Lacan em O Seminário de um Outro ao
outro (1968-1969):
90

Se o animal falante não pode abraçar-se com o parceiro senão inicialmente


assujeitado, é por já ter sido falante desde sempre, e por que, na própria aproximação
deste abraço, só pode formular o Tu és matando a si mesmo. Ele “outrifica” o
parceiro, faz dele o lugar do significante (LACAN, 2008, p.78).

O sujeito passa a ser concebido como aquele que é falado pelo inconsciente, como um
efeito de linguagem. O sujeito só pode falar a partir da estrutura que o determina, como se
fosse um Outro. No entanto, não pode objetivar a estrutura sob um ponto de vista que não seja
determinada por este mesmo Outro. O sujeito ao tentar distanciar-se das leis que o
determinam, já é um indicativo de estar marcado por elas.
O conceito de Outro em Lacan, remete ao sistema estrutural de leis que organiza
previamente a maneira como o outro (outros empíricos) pode se dar a conhecer para o sujeito.
O outro diz respeito aos fenômenos e o Outro diz respeito à estrutura. Em outras palavras, o
outro está sempre submetido/assujeitado ao Outro. Esse sistema estrutural de leis não é uma
lei propriamente normativa, não é uma lei que exprime claramente o que o sujeito deve e o
que não deve fazer. A Lei social de que fala Lacan busca estruturar o universo simbólico.
Organiza distinções e oposições que passam a ter sentido para o sujeito. Como por exemplo, a
Lei da estrutura de parentesco que determina vários lugares de pai, mãe, filho. Mas o que é
realmente ser pai? O sujeito pode ocupar esse lugar ordenado, mas nunca saberá realmente o
que significa esse lugar, o que ele deve fazer ou não fazer nesse lugar de pai.
Neste sentido, lembra Safatle (2007, p. 46) o inconsciente para Lacan não tem
conteúdos mentais, ele é vazio. No entanto, para explicar os sintomas, sonhos, atos falhos,
lapsos e tudo aquilo que é chamado de formações do inconsciente e que se apresenta de forma
tão diferente em sujeitos submetidos ao mesmo sistema de leis, Lacan admitirá uma
“gramática particular” chamada alíngua (lalangue).
A alíngua, enquanto uma gramática pessoal/privatizada é um conceito que une a
Psicanálise e a Análise do Discurso e que vai permitir ao sujeito, nos dois campos, um modo
particular de organização de seu conteúdo semântico, na qual constrói o significado,
condensa, desloca, relaciona, deforma e transpõe em imagens nos sonhos, na arte e na ciência.
Assim, o sujeito produz modos particulares de se inscrever socialmente e de ressignificar o
desejo.
Inconsciente e ideologia se encontram materialmente ligados na ordem significante da
língua, como afirma Pêcheux (1997b, p. 152): “a ordem da língua não coincide com a da
ideologia, mas ambas podem ser pensadas com relação ao registro do inconsciente”.
91

Sob este ponto de vista, Mariani (2008) observa uma correspondência estreita entre o
sujeito de Lacan e o sujeito de Pêcheux:

O sujeito não é um a priori: para a Análise do Discurso, o que se coloca como ponto
de partida é o Outro, o Outro da linguagem e da Historicidade (memória). Ora,
interessa para a Análise do Discurso é que ao falar, ao dizer “eu”, o sujeito se mostra
em sua inscrição na história e na língua, simultaneamente, pois diz “eu” a partir da
formação discursiva a qual se inscreve, se constitui. Ao mesmo tempo porque não
diz apenas de uma formação discursiva, e porque a contradição é constitutiva da
historicidade, o sujeito, ao dizer, (se) mostra em seu percurso no simbólico, no
deslizar dos significados sob os significantes (MARIANI, 2008, p. 147).

Desde Freud que o processo de socialização é um processo de alienação, o que ele


argumenta com paciência em seu texto O mal-estar na civilização (1930). Admite a influência
do social no individual através da internalização de uma imagem ideal, onde o outro intervém
constantemente enquanto modelo, sustentação e adversário através dos processos de
identificação.

3.3 SEREI EU, EU MESMO?

Freud expõe em O ego e o id (1923), que “o ego é antes de tudo uma entidade
corporal, não somente uma entidade de superfície, mas uma entidade correspondente à
projeção de uma superfície” (FREUD, 1976i, p. 40, o grifo é meu). Segue argumentando
que o ego é determinado pela projeção do corpo, pelas sensações do corpo, sensações
oriundas das zonas erógenas.
Neste caminho aberto por Freud, a ideia de eu parte do “corpo”, passa a ser abstraído
como “superfície” e vai se constituir em “projeção”. Parece-me que através deste
desdobramento do trajeto corpo-superfície-projeção ele retorna ao mais imediato da
experiência e faz da imagem uma primeira expressão empírica absoluta, manipula o eu como
um objeto do mundo, antes de um espelho representativo.
Por outro lado, se o eu é um corpo para além do bio, por isso corresponde à projeção
de uma superfície, ele não é apenas material, reduzido ao peso do orgânico, torna-se um real
convocado a ser imaterializado em imagem. O corpo passa a ser origem e suporte da imagem,
enquanto a base em que se inscreve a imagem. A relação imagem-suporte vai mais além da
superposição de um ao outro: é a peculiaridade da imagem mesma que está em jogo, ou
melhor, da miragem.
92

Essa extensão quase geométrica do eu proposta por Freud é retomada por Lacan em
seu Estádio do espelho (1966), onde expõe a quadratura imagética que é a captura pelo
espelho da imagem espacial do bebê, constituindo a ideia de eu, no registro do imaginário. O
estádio do espelho é um drama, cujo impulso interno vai da insuficiência para a antecipação.
Fabrica para o sujeito uma identificação espacial que vai desde as fantasias de uma imagem
despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade ortopédica. Armadura assumida de
uma identidade alienante, que marcará todo o seu trajeto pessoal, sua inscrição social.
Pêcheux (1969) elabora o conceito de formações imaginárias (PÊCHEUX, 1997a, p.
101), remetendo-se ao estádio do espelho de Lacan que funciona para produzir identificações,
como uma matriz simbólica em que a arena interna se precipita para sua muralha, criando
dois campos de luta: dos fragmentos internos com sua cercadura. A cercadura é o outro no
qual o bebê se vê refletido e delimitado. Trata-se da identificação primordial antes que a
linguagem lhe institua sua função de sujeito. Para Freud, em Psicologia de grupo e análise do
ego (1921), a identificação é anterior à condição de poder realizar uma escolha objetal, ou
seja, anterior à condição de reconhecer o outro como tal. Lacan nomeia esta condição fazendo
várias articulações da identificação primordial: eu sou o outro, o eu é um outro, o eu é diluído
na imagem do outro.
Essa matriz simbólica pode ser designada no campo freudiano pela noção de eu ideal
que daria origem às identificações secundárias. Mas, o ponto importante é que essa forma
situa a instância do eu, desde antes de sua determinação social, numa linha de ficção. Cabe
neste diálogo, a abordagem do conceito de formações imaginárias (PÊCHEUX, 1997a, p. 82)
que se manifestam no processo discursivo através da antecipação das relações de força e de
sentido. Na antecipação, o emissor projeta uma representação imaginária do receptor. A partir
dessa representação estabelece suas estratégias discursivas, num jogo espelhado dos sujeitos
com os lugares reservados na estrutura de formação social que determinam as condições de
produção discursivas, definindo o lugar ocupado pelos sujeitos no discurso.
Na presente pesquisa, as séries artísticas são discursos, enquanto linguagem
constituída na relação de forças entre as circunstâncias de sua apresentação da obra e o
contexto sócio-histórico-ideológico. Enquanto materialidade significante, as imagens se
oferecem ao olhar do analista do discurso através da dispersão de textos, na
interdiscursividade.
Para Pêcheux (AAD-1969), o discurso é efeito de sentidos entre A e B (sujeitos
ideológicos) com lugares determinados na estrutura de formação social. Esses lugares estão
representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo, porém
93

transformados, funcionando segundo o que denominou de formações imaginárias


(PÊCHEUX, 1997a). O que ocorre é um jogo de imagens: dos sujeitos entre si, dos sujeitos
com os lugares que ocupam e dos discursos já-ditos com os possíveis e imaginados e que
ainda poderão vir-a-ser ditos e que estão no interdiscurso.
Prosseguindo o diálogo entre Psicanálise e Análise do Discurso, relaciono a matriz
simbólica ou o eu ideal que por antecipação reservam o locus para a inscrição da ideologia,
que se apresenta como um espelho, que tenta organizar a imagem despedaçada do sujeito.
Organização essa, imaginária, com a qual o sujeito se identifica pelo mecanismo de projeção.
O eu ideal, enquanto um eu rudimentar, conserva para sempre a marca da gratificação
narcísica de diluição no desejo do outro, a alienação. Posso inferir que essa marca de
alienação narcísica nos objetos primários dá lugar ao assujeitamento ideológico. Aqui, tento
trabalhar a relação entre formação imaginária (PÊCHEUX, 1969), a matriz simbólica
(LACAN, 1966) e o eu ideal (FREUD, 1914 e 1923) para compreender as formações
imaginárias como um componente inconsciente do discurso e da história, conforme traz
Michel Pêcheux.
No entanto, o assujeitamento ideológico requer mediação, trata-se de uma relação da
ordem do simbólico que tem a mediação da linguagem. Tal assujeitamento ideológico
pressupõe aceitação da castração simbólica – “o bebê não é o falo da mãe”. Lançado, assim,
na falta e no desamparo pelo não-do-pai, o sujeito é introduzido no social e “acolhido” pela
ideologia.
A ideologia se oferece como o novo, mas mantém o mesmo funcionamento de captura
do eu ideal arcaico, fundante: solicita identificação maciça e ortopédica. Essa captura permite
que o sujeito acesse e reproduza um saber constituído que está no interdiscurso, onde
teríamos o esquecimento n.1. Já no esquecimento n.2 essa mesma captura pode, também,
acionar a condição de reformulação e retorno do discurso do sujeito sobre si, abrindo
possibilidades para a função-autor e para o desdobramento do desejo.
Para Pêcheux (1975), o processo de enunciação coloca barreiras entre o que é
“selecionado” e o que é “rejeitado”, constituindo o universo do discurso (1997a, p. 176). Na
zona do rejeitado, ele vai situar os dois tipos de esquecimento. Portanto, da ordem do
inconsciente, a ideologia opera através dos esquecimentos n.1 e n.2. A ideologia é o elemento
determinante do sentido que está presente no interior do discurso. Não é algo exterior ao
discurso, mas sim constitutiva da prática discursiva, enquanto efeito da relação sujeito-
linguagem, presente em toda manifestação do sujeito. Manifesta-se no discurso através de
94

uma formação discursiva, com a qual o sujeito está identificado e que regula o que pode e o
que não pode ser dito.
Então, para Pêcheux, o discurso é uma prática social, da qual a AD exige
estranhamento daquilo que é posto como óbvio e “natural”, ao mesmo tempo em que
desconfia das origens, das causas e se detém no mecanismo de funcionamento dessa prática e
no processo de tal produção.
O esquecimento n.2 é da ordem do pré-consciente e do consciente, conceitos que
aparecem na obra de Freud – A interpretação de sonhos (1900) – para explicar a estruturação
do aparelho psíquico em três sistemas (inconsciente, pré-consciente e consciente). Essa
estrutura, também é denominada de Primeira Tópica, sendo mais tarde reformulada, mas
jamais abandonada.
O sujeito pode, portanto, penetrar na zona do esquecimento n.2, já que ela é regida
pelos sistemas pré-consciente e consciente e fazer um retorno de seu discurso sobre si mesmo
e reformulá-lo, aprofundá-lo e até, de certa forma, antecipar o seu efeito. É o lugar da
construção parafrástica, que permite a função-autor. Já, o esquecimento n.1, é da ordem do
inconsciente, cuja zona é inacessível ao sujeito, por isso constitutivo da subjetividade da
língua encontrando-se como objeto desse recalque o próprio processo discursivo e o
interdiscurso (PÊCHEUX 1997a, p. 177).
Dessa forma, os artistas das séries que estou analisando apropriam-se de imagens da
publicidade e retornam ao interdiscurso na posição-sujeito autor entre formações discursivas
distintas. É através dos enunciados veiculados pela publicidade e que são reformulados pela
arte que os textos se constituem, e muitas vezes, estão em relações de conflito. Esses artistas
articulam a linguagem para produzir uma suspensão do sentido na ideia que estava posta
anteriormente pela publicidade e re-apresentam a imagem.

3.4 ASSUJEITAMENTO E DIRECIONAMENTO DO OLHAR

Para Didier-Weil (1997) o sofrimento inerente ligado à imagem do corpo deve-se ao


fato de que esta imagem está estruturada na dependência do olhar do outro. Refere que “a
função do olhar é a de procurar uma imagem” (p. 22). No entanto, nessa busca o sujeito
encontra o seu próprio silenciamento, desqualifica-se como ser falante, consente em ser
apenas uma imagem visível, ou seja, o sujeito transparente, sem nada de não-evidente. Pois o
intangível é próprio daquele que precisa falar para constituir o sentido.
95

Para pensar os olhares onividentes da série Outdoor’s, coloco algumas questões na


qual o sujeito se faz em meio ao seu desconforto causado pela imagem de si mesmo por estar
preso ao olhar do outro: Tenho eu a única forma: a performance?

Figura 31 – Carlos Goldgrub. Outdoor’s, 2004

A obra acima traz a experiência do individualismo presente na expressão de homens e


mulheres que caminham quase todos na mesma direção sem olhar para nada/sem devolver um
olhar. Numa quase total uniformização de destinos, vistos de cima sob um olhar onividente.
A tomada da Estação Brigadeiro lembra o portal de uma catedral gótica. A obra joga
com a ideia de tela e moldura através da circularidade dos feixes que trabalham como moldura
na imagem, abarcando as personagens. A solidão é compensada pelo caráter ogival do portal
da Estação que procura reunir e de certa forma “proteger” um conjunto desligado de pessoas
que têm em comum o trajeto e a expressão enfadonha. Bem poderia ser a cena de um dia de
trabalho que começa. Na parte superior do portal aberto tem dois olhos que olham a todos por
todos os lados como se a cada dia fosse o dia do juízo final onde a prestação de contas não se
dirige a Deus, mas ao capital. Das raias de uma armadilha, ou dos raios, de uma cintilação da
qual de começo sou uma parte, o sujeito surge como um olho, ganhando, de algum modo,
emergência, enquanto sujeito anterior à fala, através daquilo que Lacan vai chamar de função
voyura (LACAN, 1997, p. 82).
96

O horário de trabalho funciona como uma convenção na rotina de mais um dia, de


reprodução das condições de produção material. Trata-se de um ritual de assujeitamento na
posição-sujeito de trabalhador, empregado, funcionário, capital humano, talento, capital
intelectual, colaborador, arigó, etc. A maioria segue em frente, alguns olham para o lado, mas
nenhum dá as costas ao roteiro pré-fixado, corroboram a premissa de que é impossível se
expressar e se inscrever fora da ideologia. No que se refere à exterioridade, trata-se do sujeito-
conforme, prontamente interpelado pelo mercado. É o sujeito exposto ao “olhar” da mídia
torna-se transparente, óbvio e tende a deixar cair de si mesmo a sua outra parte, a
inimaginável, a intangível.
Quanto à sua interioridade, o sujeito visto de cima e por todos os lados por um olhar
onividente/onipresente torna-se expropriado de seus mistérios, fica reduzido e coisificado.
Esse olhar remete à instância psíquica do supereu que é o representante da cultura no sujeito,
naquilo que ela tem de mais cruel. Acarreta mal-estar sob a forma de sentimento de culpa,
pois o supereu está sempre avaliando o sujeito com o padrão dos ideais da cultura, em relação
ao qual o sujeito está sempre em dívida. Instância de observação crítica, o supereu não libera
o sujeito, indica-lhe de forma imperativa o que deve ser feito.
Para Quinet (2004, p. 272), as duas funções do supereu de observação e crítica, “são
representadas pelos dois objetos de gozo que escapam da simbolização e, portanto, da
civilização: o olhar e a voz como mais-de-gozar: mais-de-olhar e mais-de-voz”. O mais-de-
olhar é a modulação do supereu que vigia o sujeito, cobra dele transparência e retidão. É a
presença voraz e mortífera do olhar sobre o sujeito, transformando o sujeito num ser visto por
um olhar que ele atribui ao Outro da cultura. A sociedade aproveita e faz uso desse
dispositivo, instala-se o mal-estar no mal-olhar.
É o retorno do gozo do olhar como refere Quinet (2004, p. 272), na “Sociedade
Escópica”, como ele chama a nossa sociedade atual, onde se institui “o poder da imagem, a
prevalência do ideal do espetáculo, o imperativo da transparência e a vigilância social como
forma de controle da sociedade”.
Entre os atributos da ideologia está a onipresença e também a onividência – que tudo
vê. Vê a todos e a toda hora, como um grande reality show, pois a forma-sujeito consumidor
(cliente) e de trabalhador (colaborador) exige conformidade, portanto, permanência na
cercadura para conter os fragmentos do sujeito dividido. O sujeito se oferece ao social em
pseudo-transparência, que remete à anulação mesma do sujeito. Para conseguir a
conformidade de si mesmo junto ao olhar do Outro, o sujeito faz a sua própria negação. Daí, o
97

sofrimento vinculado à imagem do corpo, devido ao fato de que essa imagem é


inexoravelmente constituída a partir da dependência do olhar do Outro.
O sujeito transparente é formatado e exposto ao olhar petrificador desse Outro.
Confinado, o sujeito é olhado por todos os lados. A imagem constituída sob a exigência do
olhar do Outro evoca a experiência de perder a sua parte inimaginável. Esse olhar que
discerne o sujeito e que de saída, faz dele seu olhado, mas sem que isso se mostre a ele, o
constitui (o possui) no mesmo golpe.
Trata-se do espelho do mundo: a sociedade de consumo e a sociedade do espetáculo
que, nesse sentido, nos aparece como onyvoyer. É mesmo essa fantasia de um ser absoluto à
qual é transferida a qualidade de onividência.

Figura 32 – Carlos Goldgrub. Outdoor’s, 2004

Na obra acima, é mais o olho do que o olhar que está em questão. O olho da forma
como está colocado é mais uma peça de maquinaria, cuja luz se assemelha à luz dos faróis dos
carros e à luz das lâmpadas dos postes na cidade. Tem como suporte, não o rosto humano,
mas um bloco de cimento e ferro. É o olho digital em tela escura.
Presença do informe com a divisão do ver e do olhar e com formas geométricas no
jogo de sombra e luz em que aparece: massa de prédios e torres, massa de anúncios e letreiros,
massa de automóveis e, por fim, a massa humana situada na base da imagem. É a estratégia
do excesso que polui a imagem e aponta para o vazio. Os corpos indiferenciados, quase todos
98

de costas e em movimento, fundem-se à paisagem urbana onde são relançados no curso da


vida em episódio de certa violência. Trata-se da versão contemporânea do Jardim das delícias
de Bosch – um amontoado de corpos sem singularidade onde a tecnologia, a mercadoria e as
máquinas são ao mesmo tempo fontes de martírio e de prazer, de pecado e penitência. E a
luminosidade na brecha, ao fundo, parece indicar que só através dessas condições
irreconciliáveis é possível se chegar à transcendência.
Essas duas fotografias poderiam se constituir em díptico: quadro articulado, dividido
em sequência temporal: num primeiro momento o dia que começa e a ida ao trabalho na
Estação Brigadeiro; segundo, o crepúsculo do dia e a saída do trabalho no movimento das
ruas. No início do dia, ainda é possível visualizar a expressão dos rostos, embora apreensivos.
Mas, ao final da jornada, temos uma massa desfigurada e assediada pela vertigem dos bens de
consumo.
Ambas as cenas apresentam uma simulação especulativa (em espelho) promovida pela
ideologia, como nos fala Pêcheux (1975) que se torna possível através de duas figuras
articuladas de sujeito ideológico: “identificação-unificação do sujeito consigo mesmo (eu vejo
assim, portanto, eu sou assim) e identificação-unificação do sujeito com o universal (cada um
sabe que, todo mundo sabe que é assim)” (PECHÊUX, 1997b, p. 133).
Trata-se dos processos de imposição/dissimulação que constituem o sujeito, que
pensam o sujeito “situando-o” (significando para ele o que ele é) e, ao mesmo tempo,
dissimulando para ele essa situação (esse assujeitamento) pela ilusão de autonomia
constitutiva do sujeito, de modo que o sujeito “funcione por si mesmo”. Para Althusser, a
teoria não-subjetivista do sujeito é a teoria das condições ideológicas da
reprodução/transformação das relações de produção: a relação entre inconsciente freudiano e
ideologia no sentido de Marx. Nesse interjogo ideológico, a ideologia interpela os indivíduos
em sujeitos para que eles “livremente” se submetam às ordens do Sujeito, e assim, aceitar sua
submissão “pacificamente”.
Pêcheux (1975) comenta sobre o Sujeito com S maiúsculo, o sujeito universal e
absoluto, que corresponde ao Outro (Autre, com A maiúsculo) de Lacan:

[...] “o inconsciente é o discurso do Outro”, podemos discernir de que modo o


recalque inconsciente e o assujeitamento ideológico estão materialmente ligados
(sem ser confundidos), como processo do Significante na interpelação e na
identificação, processo pelo qual se realiza o que chamamos as condições
ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção (PECHÊUX,
1997b, p. 133-4, grifo do autor).
99

Para devolver ao sujeito a condição de mobilidade, é preciso o olhar do artista que


recorta. No recorte está um olhar que não sabe tudo, que não vê tudo, mas pode aportar o que
estava ausente no sujeito. As séries fazem um afrouxamento da cercadura da imagem
matricial. Trata-se de um outro olhar, um olhar que escuta no jogo de sombra e luz o sujeito
de massa, atormentado por um ser em posição-espectador-anônimo e coletivo.
Sobre este aspecto, eu me interrogo quanto à estrutura do olhar que a mídia e a arte
pousam no sujeito e gostaria de deixar à mostra algo de seu funcionamento através de duas
imagens míticas que sempre retornam. E aqui, retornam mais uma vez: a arte ao se apropriar
da propaganda estaria reconciliando Apolo e Dionísio. Ou seja, o mundo da imagem da forma
perfeita, ideal e calculada, que é o mundo de Apolo, que estou vinculando à propaganda, dá
ao poeta, no caso, ao artista, a condição de retirar dali uma leveza inaudita que inscreve o
sujeito em outra dimensão: o sujeito do inconsciente. O artista (Dionísio) torna visível aquilo
que a imagem especular, enquanto a imagem que deve servir de espelho na forma-sujeito, tem
de não-dito e que possibilita ao inaudito apresentar-se como o intangível na imagem.
O olhar do artista é o olhar que ouve o inaudito e consegue que o ilimitado da arte
encarne-se nos limites da imagem da publicidade. A imagem pelo artista funciona como um
significante pelo qual se podem amarrar o real da imagem e a imagem especular. O olhar do
analista do discurso reconhece os processos de assujeitamento e de dominação social e
histórica, ouve o inaudito na heterogeneidade dos discursos e denuncia as falhas no ritual
ideológico. Essa nodulação não deixa de evocar o nó borromeano, na tensão que assim se
estabelece entre os três campos: da publicidade, da arte e da análise do discurso, na figura
abaixo:

PP

ARTE AD

Figura 33 – Nó borromeano da imagem PP, ARTE e AD


Fonte: Luciene Jung de Campos
100

Este nó borromeano entre a publicidade, a arte e a análise do discurso faz surgir um


diálogo que introduz a ética, pois convoca o sujeito do inconsciente a engajar-se. Embora ao
artista não seja exigido dizer qual o real ausente que ele consegue encarnar numa imagem
tangível, no entanto ele traz uma promessa não-formulada de suspensão da incitação ao
consumo.
As obras de arte em estudo apontam para o mal-estar na nossa cultura que se traduz na
onipotência de um olhar posto sobre o homem que resulta dos efeitos da mídia global. Somos
olhados de todos os lados: por satélites longínquos, por câmeras de segurança privada e
empresarial. Além do olho televisivo que introduz, como uma sonda, um saber anônimo e
liquefeito no interior dos lares. Esse olho anônimo tecnológico e mercadológico que toma o
lugar do olho divino não é perigoso, como o olho de Deus, por induzir à culpa, mas por
destroçar o sujeito do inconsciente – isto é, conforme lembra Didier-Weil (1997, p. 31) “o do
sujeito não sabido de todo saber exterior”. Para esse autor, o sujeito do inconsciente só pode
existir à medida que permaneça inconsciente.
Portanto, o sujeito não pode ser de todo apreendido, nem de todo previsível, nem de
todo motivável às compras, como quer a publicidade, e ao trabalho, como quer a produção de
bens e serviços. Didier-Weil (1997, p. 32) afirma que o sujeito “perdendo o seu incógnito,
perde sua relação com o que institui este incógnito: a palavra”. Do ponto de vista da
psicanálise, existe uma diferença entre esses dois olhares: o olhar de Deus e o olhar técnico-
científico-mercadológico em que o primeiro conduz ao recalque, causa da neurose. Ao passo
que o segundo, promove uma foraclusão do sujeito que perdendo a sua condição de opacidade
e não-transparência, perde sua relação com o desejo, o pensamento e a palavra.
Para a psicanálise, o sujeito é instituído não pelo domínio do que pensa, mas pelo que
diz. É a palavra que dispõe do poder criador de transgredir o código e de deixar transparecer
significações inéditas. Quando o sujeito silencia a palavra, não assume o poder metafórico da
palavra, ele é induzido ao sintoma. Na arte, o poeta e o artista convidam a subverter o que a
palavra faz ver de insensato, fazendo ver pelo poema, pela pintura e pela fotografia o que
havia de intangível e que parecia ausente. Na Análise do Discurso, o analista do discurso faz
reconhecer o sujeito que se presta a ser olhado, assujeitado a uma palavra constituída por uma
sociedade do espetáculo na qual ele é tratado como espetacular, ou seja, não como sujeito,
mas reduzido a uma imagem especular. Porém, caso o sujeito não se ofereça como espetáculo,
ele é reduzido à posição-sujeito-espectador que contempla a cena da qual está excluído da
posição-sujeito-autor.
101

De volta ao mal-estar na civilização, toda criança experimenta o trauma do corpo


petrificado, no início de sua vida, reduzido à organicidade evolutiva, destituído de qualquer
habitação simbólica. Se existe, portanto, uma relação, entre o homem moderno traumatizado
pela onisciência de um saber mercadológico que olha e a criança traumatizada pela grandeza
do saber absoluto do olhar, é que o homem, fundamentalmente, é facilmente reduzido à
condição de objeto. O momento social e histórico em que vivemos conjuga, paradoxalmente,
à emergência de um progresso econômico-financeiro, as posições de sujeito-consumidor e de
sujeito-trabalhador. Onde o mesmo sujeito é, concomitantemente, beneficiário da produção de
bens e serviços, mas vítima do trabalho. Simultaneamente, ao aparecimento de um olhar que
ameaça e destitui o sujeito da condição desejante.
Posso compreender o ato artístico como o esforço feito pelo homem de resistir contra
essa expropriação, devolvendo ao homem ameaçado de anulação pelo saber total, o direito à
sua parte desconhecida, que é seu grande trunfo. Frente ao cidadão comum observado e
controlado de todos os lados, eis que o fotógrafo recorda-lhe que ele continua habitado pelo
que não é evidente. Ali onde o homem é vasculhado por todas as mídias, pelas estatísticas,
pelas pesquisas de opinião, a arte vem lembrar-lhe que ao contrário, o intangível conserva seu
ultimato. O artista é aquele que avisa ao companheiro a sua capacidade de lançar um olhar
original, condição essa que ele tende a desprezar, dada a força das imagens que apelam para a
adesão em massa.
Portanto, o artista é aquele que sabe ouvir o inaudito e consegue deixá-lo à mostra com
algumas manchas de cor e sombra: ali o sujeito se localiza. A mancha é anterior a qualquer
forma, portanto, ela desestrutura a imagem especular e restitui ao sujeito a condição de
modulação do desejo. Lacan (1998a) vai dizer que se o olhar “encontra” alguma coisa, é
porque algo foi perdido. Se existe encontro é porque houve separação, divisão,
distanciamento. É a esquize que permite a experiência da descoberta e do encontro.
102

Figura 34 - Bianca Araújo. Série (Re)tratos, 2005

Acima, uma imagem da série (Re)tratos de Bianca Araújo vem escutar aquilo que
ficou ausente na coluna social em meio às posturas rígidas, aos sorrisos estereotipados e às
roupas produzidas. Borrando a imagem, em direção à anamorfose, ela alcança uma certa
singularidade dos sujeitos, que foi perdida nas poses estanques e massificadas da matriz
especular veiculada no jornal, povoada de personagens empertigados de ostentação e domínio.
Observa-se essa esquize nas imagens das séries que têm sua origem na engenharia da
Publicidade/Propaganda e, no entanto, aquilo que é causa dessas imagens fracassa na imagem
recriada pela Arte Visual. O lado fechado da mensagem na publicidade solicita ao sujeito
comprometimento com uma situação não escolhida/alienante, opõe-se ao sentimento velado
do artista que trabalha nas fissuras que a imagem oportuniza e re-articula o desejo do sujeito,
num lugar inesperado, justamente ali, no arsenal, onde ele devia ser assujeitado. Retorna ao
recalcado que está no interdiscurso e refaz a trama da consciência.
Na medida em que o olhar contém o objeto a, pode vir a simbolizar a falta central do
sujeito, segundo Lacan (1964), o olhar é objeto a reduzido, por sua natureza a uma função
mobilizadora: “a esquize do sujeito é determinada pelo objeto a, objeto privilegiado, oriundo
de alguma separação primitiva, de alguma automutilação induzida pela aproximação mesma
do real” (LACAN, 1998a, p. 83).
Então, na relação escópica, ao ser olhado pela mãe e ao olhar-se nela, o olhar é o
objeto. Para existir o olhar, é preciso que haja fantasia, no olho orgânico não tem fantasia. A
fantasia depende da ilusão ficcional de eu, à qual o sujeito está ligado numa vacilação
essencial. O sujeito tenta acomodar-se a esse olhar, ele se torna esse olhar, esse ponto de ser
103

que se esvai com o qual o sujeito confunde o seu próprio desfalecimento. O sujeito não vê sua
possibilidade de existência fora do objeto a. A perda do objeto primordial exige reparo
imediato e constante, o que justificaria a presença magistral da ideologia.
A existência da imagem está vinculada a essa erotização do olhar, da visão, onde o
sujeito se esvai e se dissolve, dá-se a hemorragia do sujeito, ali onde ele se formata na
imagem completa. O fracasso do sujeito não poderia ser pensado enquanto vitória da
ideologia? Ali onde ele é transformado em objeto, mas onde ele pode retornar ao interdiscurso
e a si mesmo e reformular o discurso em posição de autor?
O sujeito se bascula à ação histórica transformante e, em torno deste ponto, ordena os
modos configurados da consciência de si, ativa, através de suas metamorfoses na história. “O
modo de minha presença no mundo é o sujeito” (LACAN, 1998a, p.81). Como negar que
nada do mundo me aparece senão em minhas representações? O mundo é atingido por uma
presunção de idealização, por uma suposição de só me entregar minhas próprias
representações. Segundo Lacan, representações são propriedades!
A psicanálise, a AD e a arte consideram a consciência como irremediavelmente
delimitada, e a instituem como princípio não só de idealização do sujeito centrado, mas de
desconhecimento. A consciência só conta na ficção do texto incompleto, a partir do qual se
tenta re-centrar o sujeito como falando nas lacunas mesmas daquilo em que, à primeira vista,
ele se apresenta como falante.

Figura 35 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004


104

O corpo edificado. Posturas do interno no externo: recostados, apoiados, não


transitam, não se cansam. São os luxuosos moradores de rua. Novas formas de apresentação
das classes e dos gêneros. Os deuses andróginos, onde o masculino parece feminino e o
feminino parece masculino, a coexistência das duas personagens aciona/veicula a ideia dos
múltiplos gêneros para além do masculino e do feminino. As janelas são básculas que se
entreabrem e se entrefecham sobre a superfície espelhada dando espaço para o dentro no fora,
joga com a ideia de permeabilidade. São porta-retratos a céu aberto no jogo do interno com o
externo. Novas/outras configurações de gênero. Braços são colunas que sustentam a cabeça. A
moldura que se recorta contra o fundo... Um terceiro porta-retrato que emerge ainda não
acessível na base da imagem.
A estrutura em reviravolta do olhar: uma camada limítrofe entre o interno e o externo.
A ilusão da consciência seria algo que está abaixo e que sobe à tona? Aquilo que estava
embaixo vem para cima, ou seja, vejo com o que estava mais interno. De novo, a fita de
Moebius fazendo sua torção entre a imagem, o sujeito e a história. No lugar do teatro antigo, o
que é colocado na praça, na Ágora contemporânea são os grandes espelhos. Os espelhos
impassíveis de Carlos Goldgrub com modelos de corpos-ideais.

Figura 36 - Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004

A jovem vem a furo no bloco de concreto e abre uma porta. Através de suas janelas
abertas, semi-abertas e das áreas com espaços vazados, o prédio aparece como uma rede com
espaços vazios e tramas. Tentativa em dar centralidade ao sujeito. A torção da cabeça assinala
105

a presença do sujeito. Como uma fita de Moebius a imagem externa do edifício/estrutura


deixa entrever o ambiente interno. Trata-se do jogo entre o ângulo reto e a dureza da
superfície externa com o macio e o sinuoso do sofá, tapete e pés descalços.
O sujeito em causa não é o da consciência reflexiva, mas o do desejo. Esse privilégio
do olhar pode ser percebido na função do desejo, onde o domínio da visão foi integrado ao
campo do desejo. Mas, é ainda mais longe que é preciso procurar pela função da visão. O
artista contempla a fotografia midiática, é capturado pelo que não está evidente e duvida do
excesso de nitidez de alguns aspectos no conjunto da imagem.
Freud comenta que a parte dos sonhos que apresenta grande nitidez através de uma
imagem carregada que intensifica a visualidade, em geral, é um efeito que busca a obstrução
do sentido. O hipernítido se produz para enganar o olhar. Então, a intensidade da imagem na
propaganda, conhecida como hiper-realidade busca o inebriamento do sujeito, funciona a
serviço do encobrimento. Neste sentido, o que o sujeito não sabe é que ao mesmo tempo em
que ele vê a propaganda, ele também é olhado. Ele é olhado pela cena diante da mercadoria.
Segundo Lacan: “Nessa matéria do visível, tudo é armadilha” (s.11, 1998a, p. 92),
onde ele afirma uma ruptura entre o que vemos e o que nos olha. No quadro, não existe a
dialética da superfície, mas esquize entre olho e olhar na relação com a imagem e o sentido
que divide o sujeito. Onde o enigma/armadilha proposto pelo quadro é: “jamais me vês de
onde te olho”.
Com isso, a obra de arte não é uma representação, nem da realidade, nem do sujeito,
mas é da ordem da apresentação e da temporalidade. A arte pressupõe diálogo com a história.
A historicidade da obra não pode prescindir das suas condições de produção. Para Lacan a
arte é uma das estratégias que o sujeito tem para lidar com o vazio. Por ter sua base no furo, a
arte só acontece na ruptura da superfície e da continuidade. Em outras palavras, a arte abala o
campo de que se origina. No caso da análise que procuro apresentar com base nas imagens
das séries Outdoor’s, (Re)tratos e Perto demais, a ruptura é com o campo pré-construído da
propaganda.
O artista é o dono do olho variável, do olho móvel que faz retorno ao interdiscurso,
capaz de se lançar sobre a arte ou em sua periferia e recolher algo sobre si mesmo, enquanto
sujeito de discurso heterogêneo e sobre o mundo que o rodeia, mas não sem relação com a
visão e a re(a)presentação. Trata-se do sujeito fragmentado capaz de reconstruir a imagem a
partir de suas ruínas. O artista é aquele que ao realizar seu trabalho, na fotografia e na pintura,
nos ensina sobre a capacidade para recusar o peso do corpo orgânico e dá o testemunho de sua
106

imaterialidade. Ao mesmo tempo em que nos afirma a necessidade da imagem, assegura a


urgência da fantasia na miragem.

3.5 NO CAMPO DO VISÍVEL: O OBJETO A PERTO DEMAIS

A noção de objeto em psicanálise, mais especificamente, em Freud e Lacan. Freud


(1976g) conduziu a questão do objeto enquanto um objeto de amor ou objeto do desejo
perdido no jogo da repetição. Ele identifica a presença do objeto ausente na brincadeira
infantil do esconde-esconde (desaparecer-reaparecer) ou no ato de jogar o brinquedo no chão
para alguém juntar (fort-da) repetidas vezes.
Lacan agrega a essa questão, a do traço que inscreve a repetição. Parte da situação da
problemática do objeto perdido, que reaparece na repetição e conduz à questão do ato. Nesse
interjogo, ele trabalha o papel dos significantes e os seus efeitos na linguagem. Importante
salientar que na problemática do objeto a em psicanálise se propõe uma mudança de
perspectiva, onde o objeto se torna ativo e o sujeito se torna efeito. Esse desdobramento do
objeto implica em um “duplo fio” que é tomado por Lacan como o objeto a. Lacan afirma,
também, que “o objeto a, no campo do visível, é o olhar” (LACAN, 1998b, p. 103). Motivo
pelo qual o objeto a interessa, particularmente, neste estudo. “O objeto a não passa de uma
letra [...] onde se inscreveria uma relação plena do Um com aquilo que resta irredutivelmente
do Outro”, diz Lacan (1998b) no Seminário A instância da letra no inconsciente (1957).
Porém, esse objeto a só existe na fragmentação das pulsões parciais por zona corporal: de
sucção, de excreção, do olhar e da voz, que marcam a sua diversidade. Portanto, uma das
condições de presença do objeto a é a fragmentação, mas não é a única.
O objeto a em si se constitui em segundo. Antes dele, tem o objeto primeiro que Lacan
definiu como “o objeto que não tem uma ideia”. Não se pode considerar essa definição como
apenas negativa. O objeto a pode elaborar-se como vazio sem contradizer essa definição.
Como não se pode conceber o objeto primeiro como autônomo, propõe-se conceber seu
funcionamento como uma espécie de um fundo falso, um fundo duplo, usado pelos mágicos
ou no recobrimento de fundo na pintura.
O terceiro aspecto do objeto a, além da fragmentação e do vazio, é o resto que se
adiciona à complexidade do objeto a, enquanto resíduo. Este aspecto de resto, como o aspecto
de vazio parece poder se destacar no movimento dos fragmentos pulsionais. Mas, antes de
107

tudo, o resto mantém-se solidário com os fragmentos e o vazio. O resto os dinamiza e os


reativa na questão do resto do gozo inicial perdido.
Volta-se à questão do objeto perdido em jogo na repetição. O perdido é,
necessariamente, o esperado que apareça no jogo de esconde-esconde. Porém, o objeto pode
não parecer perdido, até porque fica um “resto”. Ele é, no entanto, suscetível de ser perdido.
Nos diferentes aspectos do objeto, uma espécie de báscula se instala e conduz à elaboração do
vazio, já que tem um resto que pode tentar preenchê-lo.
Assim, instala-se a solidariedade entre os três aspectos: fragmento, vazio e resto do
objeto a, que exige uma cumplicidade tensa. A elaboração do vazio é que se acha em maior
dificuldade: ela se encontra fora dos fragmentos das pulsões parciais, sendo esses os
fragmentos a serem recuperados.
A elaboração do vazio poderia surgir da cooperação entre os três aspectos do objeto a.
A elaboração do vazio é um processo particular de gozo. O problema, portanto implica o
horizonte do vazio, mesmo como objeto, enquanto resto paradoxal que não pode ser
abordado. Por isso é necessário colocar o vazio como objeto, na ordem do objeto primeiro: o
objeto que não tem uma ideia, definido por Lacan. Mas colocar o vazio como objeto,
comporta assim, a possibilidade de autonomia do aspecto do vazio no objeto a, o que seria
falso, pois as relações entre as dimensões do objeto são de interdependência. O objeto a
designa ainda o resto, mas esse resto é ambíguo: ele não se trata somente da função de resto,
mas também de resíduos do gozo, com os quais é constituído o próprio objeto, num sentido
mais geral. Ora, estas três dimensões do nó são coexistentes e indissociáveis para que
resultem no objeto a, que é, intrinsecamente, heterogêneo.
Abaixo, o estatuto do objeto a, exposto graficamente, a partir do nó borromeano:

Fragmento

Vazio Resto

Figura 37 – A trama do objeto a, segundo Lacan


108

A Série Perto demais, apresenta em sua linguagem de produção da imagem, ou seja,


em seu funcionamento técnico, as mesmas condições de apresentação do objeto a. No que
consiste: o artista se apropria de fragmentos que se despregam de cartazes publicitários,
geralmente de outdoors. Reúnem nesta técnica os fragmentos que caíram da imagem
publicitária. Trabalha com os dejetos, de veiculação imagética da cultura de consumo, que a
princípio são vazios de sentido pela sua desconexão com a rede de significantes na formação
discursiva enunciada pela publicidade/propaganda. No entanto, recolhidos e dispostos numa
certa ordem, em outra lógica que o artista determina, ganham novo sentido.
O olhar pode conter em si mesmo o objeto a, diz Lacan (1998a, p.77) e pode vir a
simbolizar a falta central do sujeito. Está no registro do desejo e por isso mesmo, do
inapreensível. O olhar se especifica como inapreensível, pois se sustenta numa função de
desejo. A obra de Escobar nos olha a partir de seus infinitos furos.

Figura 38 - Daniel Escobar, permeável I, Série Perto demais, 2006


Papel de outdoor e perfurador (310cm x 225cm)
109

Esses fragmentos, dispostos sobre uma tela plana, recebem uma sobreposição de papel
perfurado, pintado com verniz. Os furos desestabilizam a imagem, concedendo-lhe
volatilidade. Ao mesmo tempo em que aumentam a espessura da imagem, deixando
transparecer as sucessivas camadas do trabalho pelo efeito da colagem. Remetem à ideia do
fundo falso ou do fundo duplo pelo efeito vazado dos furos. Esses resíduos deslocados
dinamizam os fragmentos e os furos, afirmam a presença do vazio que a
publicidade/propaganda tenta preencher e completar. Torna Permeável aquilo que deveria ser
cheio e em bloco.

Figura 39 – Daniel Escobar, Permeável I, Série Perto demais (detalhe)

É o objeto a Perto demais constituído pela tríade borromeana em fragmento, resto e


vazio, situado na injunção vazada dos três elos onde o nó pode ser apertado. Estrutura
heterogênea e interdependente que se sustenta nessas diferenças. A figura do nó borromeano é
uma topologia de fronteiras imprecisas, uma ligação paradoxal por relações deformáveis. Ou
melhor, uma topologia transfigurável e passível de alteração cromática. Corrente de três nós,
110

ao ser desatado um, os outros dois não se sustentam. Sempre muito próximo, esse objeto a, se
impõe a nós, aparece no nosso dia-a-dia, na arte, na clínica e na nossa prática como analistas
do discurso. A Série Perto demais vem para colocar à prova esse objeto e fazer valer a sua
invenção – cuja topologia dá condições de aproximação da complexa existência do sujeito, de
suas estratégias e de sua estilística – onde esta trama feita de furos afirma uma coexistência
solidária das diferenças entre a Psicanálise, a Arte e a Análise do Discurso, na abordagem do
vazio inerente ao sujeito, nesses três campos que circundam a linguagem.
111

4 IMAGEM, MARGEM E APARAS

Neste capítulo, procuro observar os processos de condensação e deslocamento e


analisar os movimentos metafóricos e metonímicos na imagem – guardiões da supremacia do
significante. Com esse intuito, faço retorno a Freud, mais especificamente ao capítulo IV de A
Interpretação de Sonhos (1900), onde é abordada a deformação nos sonhos. Aí, Freud
descreve um sonho seu que é constituído por dois “pensamentos” e dois “quadros”, cada
pensamento seguido por um quadro. Descrevo a seguir, o primeiro pensamento e o primeiro
quadro do sonho de Freud (1976a, p. 147):

− Primeiro pensamento: Meu amigo R. era meu tio. Tinha por ele grande sentimento
de afeição.

− Primeiro quadro: Vi seu rosto diante de mim, algo mudado. Era como se tivesse
sido repuxado no sentido do comprimento. Uma barba amarela que o circundava,
se destacava de maneira especialmente nítida.

A citação acima me parece muito interessante, pois o sonho se apresenta através de


“quadros pictóricos”: “O conteúdo onírico, por outro lado, é expresso por assim dizer num
roteiro pictográfico [...]. Suponhamos que eu tenha um enigma de figuras, ou um rébus
diante de mim” (FREUD, 1976a, p. 296, o grifo é meu).
Freud diz ainda que a primeira coisa que aparece clara é que neste “roteiro pictórico
se efetuou um amplo trabalho de condensação: Os sonhos são breves, insuficientes e
lacônicos [...]” (FREUD, 1976a, p. 297). Salienta ainda que a análise de um sonho, muitas
vezes, é maior que a sua descrição e de fato nunca se tem a certeza de que um sonho foi
completamente interpretado: “Mesmo que a solução pareça satisfatória e sem lacunas, resta
sempre a possibilidade de que o sonho possa ter ainda outro significado. Rigorosamente
falando, então, é impossível determinar o volume de condensação” (FREUD, 1976a, p. 297,
o grifo é meu).
Freud (1976a, p. 297) assinala ser comum termos a impressão de que sonhamos
durante toda a noite, mas ao acordarmos, lembramos apenas de uma pequena cena. Segundo
ele, isso implica que o material psíquico passou por extenso processo de condensação no
112

processo de construção do sonho: Sob este ponto de vista, o sonho que recordamos quando
acordamos seria apenas um remanescente fragmentário da elaboração do sonho total.

4.1 OS PROCESSOS DE CONDENSAÇÃO, SUPERPOSIÇÃO E FUSÃO NA IMAGEM

No famoso capítulo VI de A interpretação de sonhos (1900), Freud registra o processo


de criação de pessoas coletivas ou pessoas que foram sacrificadas ao longo do trabalho de
condensação na construção do sonho. Trata-se de um tipo de condensação que se dá através
da superposição e fusão do material latente. Nesta linha, busco uma aproximação entre o
quadro pictórico nos sonhos e as imagens na presente análise, onde a imagem se apresenta
como uma cena condensada. A seguir, Glamourosa da série (Re)tratos permite problematizar
essa questão:

Figura 40 – Glamourosa, 2005, fotografia, 46x 46cm


113

Aqui, o personagem colunável é “sacrificado” através da fusão entre a fotografia e a


pintura que dissimula os traços originais da foto, que em seguida é superposta à página
policial, constituindo uma nova personagem condensada. A página de jornal é a base comum
que reúne os personagens em diferentes formações sociais no mesmo momento sócio-
histórico. A foto inicial, assim como seu título Glamourosa é de uma pessoa, mas o texto
“que mata” escrito no verso da página, é o discurso sobre outra pessoa. No entanto, existe
uma pessoa remanescente, que sofreu apagamento de sua imagem corporal, suprimida na
obra, restando somente o relato de sua experiência trágica. Essa imagem compósita força uma
estranha identificação entre as duas personagens pela notoriedade, que é o elemento comum
em situação. A notoriedade é o componente que justifica a seleção das duas páginas que
foram combinadas, que parece como o elemento comum ao mesmo tempo deslocado e
combinado. O processo duplica a personagem e a divide. Permite a emergência do outro, do
duplo. Revela a tensão entre o eu e o outro na cultura. Nesta série, a artista não busca o
oculto, mas não desconhece o espelho. Faz a travessia de uma superfície e introduz a questão
do estranhamente familiar: “O que quer esse outro que fala em mim?”.
A série (Re)tratos de Bianca Araújo convoca a estabelecer um diálogo direto com duas
obras de Richard Hamilton Swingeing London 1967. Estas obras têm como tema os músicos
do grupo Rolling Stones: Mick Jagger e Keith Richards, que juntamente com o marchand
Robert Fraser foram detidos por posse de drogas ilegais. Richard Hamilton condensa duas
palavras para construir o título comum a mais de uma obra com o mesmo tema swing
[trepidar] e swinge [castigar]:

Figura 41 – Richard Hamilton. Swingeing London 1967 (1967). Tate Gallery


114

A obra, na figura 41 é uma litografia sobre papel, com Jagger e Fraser algemados,
vestidos de maneira formal para o julgamento e perseguidos pelos paparazzi. Esta imagem
condensa a coluna social e a página policial. Como refere McCarthy (2002), a obra trata do
uso e exploração financeira da imagem dos jovens músicos pela mídia. Ao mesmo tempo,
denuncia a criminalização dos movimentos de vanguarda, tais como a música pop, a liberdade
sexual e a arte pop.

Figura 42 – Richard Hamilton, Swingeing London 1967


Acrílico, emulsão, serigrafia, tinta e colagem sobre tela 67,3 x 85,1 Tate Gallery.
115

O pôster na figura 42 apresenta uma coletânea de notícias de jornal e fotografias


mostrando que primeiro a mídia invade a vida privada dos astros, depois busca a condenação
da opinião pública. A arte pop se caracteriza pelo imediatismo e efemeridade. Porém, ao
registrar esses instantes, ela começa a produzir uma memória imagética sobre o efêmero e
promove uma consciência sobre a passagem do tempo. O “aqui e agora” passa a se
transformar no “lá, naquela época” quando ocorreu tal coisa.
Freud tenta compreender a relação de simultaneidade no tempo das imagens do
passado e do presente que coexistem nos sonhos, a partir da arte:

Aqui eles [os sonhos] atuam como o pintor que num quadro da Escola de Atenas ou
do Parnaso, representa num único grupo todos os filósofos ou todos os poetas. É
verdade que jamais de fato se reuniram todos num salão ou num único cume de
montanha; mas, certamente, formam um grupo no sentido conceitual (FREUD,
1976a, p. 334).

Neste mesmo texto, o autor continua sua abordagem salientando a importância de


valorizarmos a forma como os sonhos são elaborados, em detrimento do seu conteúdo.
Interessa-lhe a operação intelectual e não o “pensamento ostensivo” como ele diz para se
referir ao conteúdo/representação. Mais importante é a lógica existente entre as diferentes
ideias no sonho e não apenas uma ideia.
Ao se questionar sobre os meios que os sonhos possuem para lidar com as diferentes
ideias que estão em cena, Freud faz relação direta entre a plástica dos sonhos e a estética das
artes visuais. Então, afirma a imagem como materialidade tanto dos sonhos quanto das artes
visuais:

A incapacidade dos sonhos de expressarem essas coisas [ideias, desejos] deve estar
na natureza do material psíquico do qual são formados os sonhos. As artes plásticas
da pintura e da escultura vivem, realmente sob uma limitação semelhante quando
comparadas à poesia, que pode fazer uso da palavra; e mais uma vez aqui o motivo
de sua incapacidade reside na natureza do material que estas duas formas de arte
manipulam em seu esforço para expressar alguma coisa (FREUD, 1976a, p. 332).

Na citação acima, Freud admite diferentes formas de apresentação da linguagem que


se materializam nos sonhos, nas artes plásticas e na poesia. A construção de figuras coletivas
e compostas é um dos principais métodos pelos quais a condensação atua nos sonhos e talvez
na arte, aspecto que interessa discutir neste capítulo. Novas entidades são arquitetadas sob a
forma de estruturas compostas e, assim, entidades comuns ou intermediárias são construídas.
116

As agregações aparentemente caóticas associadas a uma imagem anterior possuem um sentido


e transmitem novos conhecimentos.
A imagem, quando examinada pelo observatório do discurso, perde a aparência inicial
de absurdo e assume o aspecto de um discurso que admite o equívoco. Mostra em seus
caracteres visuais, vestígios de aspectos inconciliáveis, numa comunicação contemporânea e
preciosa. Para a AD, não é o conteúdo que deve ser privilegiado, pois a imagem não remete à
transparência, mas à torção na forma, que tem a potência para colocar no centro, algo que
estava na borda.

4.2 OS PROCESSOS DE DESLOCAMENTO CENTRO-BORDA

Ainda em seu texto A interpretação dos sonhos (1900), ao mesmo tempo em que
Freud apresenta a coletânea de exemplos de condensação, ele identifica outro mecanismo, não
menos importante, na construção do sonho. Trata-se de ver que os elementos pictóricos do
sonho estão distantes do pensamento onírico. Esses elementos apresentados fazem outra
conexão divorciada de seu contexto e consequentemente transformam-se em algo estranho.
Este funcionamento dos sonhos ele denomina deslocamento: “Esta ulterior relação entre os
pensamentos oníricos e o conteúdo [pictórico] do sonho, inteiramente variável como o é, em
seu sentido de direção, é calculado em primeiro lugar para criar assombro” (FREUD, 1976a,
p. 326).
Nos processos psíquicos da vida cotidiana percebemos, às vezes, que uma entre várias
ideias foi escolhida e adquire força. A ideia escolhida manifesta um grau particular de
interesse. Porém, no curso da formação de um sonho, não é assim que acontece. No caso dos
diferentes elementos oníricos, um valor dessa natureza não se mantém ou é relegado. No
curso de um sonho esses elementos marcantes, como a “nitidez da barba do tio”, por exemplo,
nada tem a ver com o que Freud chama de “desejos ambiciosos”. No sonho, esses elementos
particulares, carregados de intenso interesse, podem ser tratados como se tivessem pequeno
valor. E o lugar “de mais alto valor psíquico” – que deve ser diferenciado da intensidade
sensorial ou da intensidade visual da imagem apresentada – pode ser ocupado, no sonho, por
outros elementos como se tivesse pouco valor.
Transpondo o processo de deslocamento para a arte, a obra de Marcel Duchamp,
Porta-garrafa promove um deslocamento de um utensílio doméstico na sua função utilitária,
propriamente dita, de porta-garrafa para o museu, onde se transforma em escultura. O Porta-
117

garrafa no museu provoca estranheza por estar separado do seu contexto habitual e de sua
função.

Figura 43 – Marcel Duchamp, Porta-garrafa, (1915)

Duchamp (1994) em uma breve conferência no Museu de Arte Moderna de Nova


York realizada em 1961 relembra que a palavra “readymade” lhe vem à cabeça por volta de
1915 para designar esta forma de manifestação. Esclarece na mesma conferência que a
escolha dos readymades não foi determinada por nenhum deleite estético: “Esta escolha está
embasada numa reação de indiferença visual e ao mesmo tempo numa ausência total de bom
ou mau gosto... de fato, uma anestesia completa” (DUCHAMP, 1994, p. 191).
Na mesma conferência, chama atenção para frases curtas que escrevia sobre o
readymade, como é o caso da pá para retirar neve: En prévision du bras casse , o que nomeou
de readymade aidé. Segundo ele, esta frase em vez de descrever o objeto como faz um título,
tinha “o intuito de transportar o espírito do espectador para outras regiões mais verbais”
(DUCHAMP, 1994, p. 191).
No diálogo arte-psicanálise é importante ressaltar as relações entre o processo de
deslocamento no sonho e o processo de deslocamento na arte. Freud defende que a força de
uma ideia ou “valor psíquico” de uma ideia é diferente da “intensidade sensorial” ou da
imagem mostrada, como no caso do readymade. No readymade, o apelo visual é intenso e
chocante, quando remete à própria anulação do objeto em sua função. Duchamp refere-se à
oposição fundamental que existe entre a arte e os readymades: “Eu imagino um ‘readymade
118

recíproco’: se servir de um Rembrandt como tábua de passar roupa” (DUCHAMP, 1994, p.


191).
Assim como nos readymades, nos sonhos as ideias mais importantes circulantes nos
pensamentos oníricos podem não ocupar o centro da cena, em contrapartida, aquele elemento
que se apresenta em grande evidência, acentuado e reforçado a partir de muitas direções, pode
ser secundário. Parecem “interpolações artificiais” que constituem, de modo geral, uma
conexão forçada. Freud chama de superdeterminação isso que procura fixar um “falso”
sentido de obviedade (FREUD, 1976a, p. 326).
A ideia de anestesia provocada pelo objeto esteticamente indiferente, produzido em
massa, como refere Duchamp e a superdeterminação apontada por Freud retornam em Andy
Warhol com as 200 latas de sopa Campbells:

Figura 44 - Andy Warhol, 200 latas de sopa Campbells (detalhe), 1962

As 200 latas de sopa Campbells reafirmam o “transe” do readymade e o exame


minucioso do banal promovido pela repetição, funciona como uma piada sem graça, contada
várias vezes. Ao problematizar o sentido de obviedade no consumo do produto industrializado
em massa, Warhol promove ao mesmo tempo repulsão e identificação com o que é mostrado.
119

Freud admite ser plausível pensar que, na construção do sonho ocorre um fenômeno, o
qual, por um lado despoja os elementos de importante valor psíquico de sua força e, por outro,
a partir da superdeterminação, produz importância a partir de elementos de menor valor
afetivo e intelectual que se instalam na cena.
Esses processos não são próprios apenas da arte moderna, mas já se inscreviam desde
a Idade Média na tela de Holbein:

Figura 45 – Hans Holbein, Os Embaixadores, 1533

No quadro acima, observam-se os dois personagens retratados em ricas vestes de seda


e peles. Estão duros e enrijecidos em seus adereços de ostentação, parece fácil deduzir que os
dois retratados eram pessoas de muitas posses. Entre eles, vários objetos que representam
tanto a arte quanto a ciência. Certamente, os senhores que encomendaram este quadro ao
artista buscavam passar uma ideia de grande poder e dominação para a sociedade da época. É
a presença do mecanismo de superdeterminação na ordenação e exposição de todos esses
elementos. Porém, o elemento intrigante da imagem é um objeto oblíquo que ocupa o centro
da cena em primeiro plano, voando à frente, entre os dois personagens. Lacan ao analisar esta
120

obra, conclui que é um crânio de caveira retorcido: “Holbein nos torna aqui visível algo que
não é outra coisa senão o sujeito nadificado [...]” (LACAN, 1998a, p.87-88).
O artista expõe o sujeito nadificado, inscreve a castração em forma de imagem,
através da caveira deformada. Por estar deformada, não é tão facilmente identificada.
Apresenta-se, num primeiro olhar, como um símbolo fálico, erétil no centro da obra,
reforçador do poder dos personagens. Olhando mais uma vez, é possível ver o fantasma
disforme da caveira.
Ocorre então, na perspectiva freudiana, um deslocamento de intensidades psíquicas: a
ênfase no poder e na riqueza se desfaz, frente à insignificância da existência do sujeito.
Semelhante ao processo de formação do sonho, a obra de arte produz uma diferença entre os
elementos dominantes da imagem em superdeterminação e um elemento secundário, isolado,
que passa a ser central. Este processo que está sendo descrito é a variável essencial da
elaboração do sonho chamada deslocamento. O deslocamento e a condensação são dois
mecanismos que definem a forma assumida pelos sonhos, também encontrados na produção e
no funcionamento da obra de arte. Para Freud, a influência recíproca dos mecanismos de
deslocamento, condensação e superdeterminação é a principal promotora de deformação nos
sonhos.
Em Análise do Discurso, isso que Freud está chamando de despojamento do “valor
psíquico” no sonho, promovido por um deslocamento de “intensidades psíquicas” intelectuais
e afetivas, chamaria de “sentido”. O sentido do elemento pictográfico – caveira retorcida – só
pode ser constituído em referência às condições de produção na superdeterminação de
opulência e riqueza. A superdeterminação pretende oferecer coesão para o texto pictórico,
através de seus elementos formais de conexão e sequência superficial entre a postura, vestes e
objetos dos dois personagens. O sentido também muda de acordo com a formação ideológica
de quem o produz e de quem o interpreta.
Neste sentido, cabe examinar a obra pop de James Gill “Tríptico de Marilyn Monroe”,
1962:
121

Figura 46 - James Gill, Tríptico de Marilyn Monroe, 1962

O tríptico é um formato pictórico originalmente reservado para pinturas sacras. O


artista coloca em evidência a veneração quase religiosa à imagem de Marilyn Monroe. Expõe
ao fundo as capas de revista que contribuíram para a propagação da imagem do rosto da atriz
à exaustão. Em primeiro plano do tríptico está o corpo de Marilyn em vertigem. E, como bem
aborda McCarthy (2002, p. 43), “esse corpo tão explorado no cinema e na fotografia, é aqui
despido não para produzir fascinação erótica, mas para sublinhar enfaticamente sua
vulnerabilidade e vitimização”.
Mídia, religião e arte são presenças registradas na obra de Gill. Para a Análise do
Discurso são presenças ideológicas, cada uma com o seu elemento dominante de sentido.
Impõe-se, ainda, nesse tríptico uma terceira presença: o feminino. A obra propõe o
relançamento do feminino enquanto conceito, não empírico, abordado em outra formação
discursiva, diferente da hollywoodiana.
Delineia-se aqui, o complexo campo das formações. As formações discursivas (FDs)
são dispositivos teóricos do analista do discurso para demarcar diferentes regiões de sentido.
O analista trabalha o efeito da relação entre sujeito e linguagem, presente em toda
manifestação do sujeito, através da ideologia. De efeito metafórico, observa-se no objeto-
imagem, a cenificação das três FDs: mídia, religião e arte com suas regularidades específicas,
cujo tema é a exploração do Feminino que padece. O próprio corpo de Marilyn é o lugar de
atravessamento dessas formações, cujas intensidades deslocam-se entre si, modificando a
ênfase de mulher idealizada, apontando também para a “nadificação” do sujeito.
122

A obra de Escobar, abaixo, retoma a imagem do feminino na mídia e desconstrói:


consumidora ou modelo, a personagem sofre uma diluição, uma hemorragia em meio às
sucessivas e excessivas camadas de anúncios perfuradas. No entanto, a figura rotada e quase
abstrata, ainda guarda a presença humana. A obra remete à matéria-prima inicial (couro,
tecido, papel) das mercadorias, antes de sofrer o trabalho humano que vai lhe imputar valor e
conferir-lhe outras intensidades.

Figura 47 – Daniel Escobar. Série Perto Demais

Observo que a obra de arte na figura 47 emerge como um complexo intelectual,


afetivo e ideológico da mais imbricada estrutura possível, são, pois encadeamentos que
partem de mais de um campo, embora com pontos de contato entre si. Cada encadeamento de
sentido é quase sempre acompanhado por sua contraparte contraditória, ligada ao sentido por
sua associação antitética, assim como o sonho.
123

As diferentes partes dessa complexa estrutura estão nas relações multiformes umas
com as outras que o artista manipula. Esse enigma imagético é revolvido, fragmentado e
aglutinado, o que faz surgir novas conexões por seleção e combinação que podem ser
restauradas, mas nunca completamente, pela leitura e interpretação.
O sonho e as artes visuais apresentam-se, sobretudo, através de imagens. Freud
sustenta que as imagens no sonho funcionam por condensação e deslocamento. O
deslocamento pressupõe um empreendimento de “disfarce” ou “dissimulação” do sentido,
conforme refere Freud.
Lacan retoma esse mesmo texto – A interpretação de sonhos – para sustentar a
hipótese do inconsciente estruturado como uma linguagem. Para isso, detém-se no processo
de trabalho do sonho, que consiste no funcionamento dos diversos mecanismos inconscientes,
principalmente a condensação e o deslocamento.
Como afirma Joel Dör (1989, p. 49), Lacan vai aproximar esses mecanismos de
condensação e deslocamento dos dois grandes eixos da linguagem: substituição/metáfora e
combinação/ metonímia. Na abordagem lacaniana, o processo de condensação do sonho é
compreendido como um processo metafórico. Ao passo, que o processo de deslocamento é
tido como um mecanismo metonímico, o que abordo a seguir.

4.3 A IMAGEM EM SUSPENSÃO

Joel Dör (1989) assinala que o valor do signo trabalhado por Saussure e o corte da
linguagem reteorizado por Jakobson são fundamentais para introduzir dois pressupostos
lacanianos: o point de capiton (ponto de estofo) e as construções metafórico-metonímicas.
O valor do signo é o que faz com que um fragmento acústico torne-se concreto, que
seja delimitado, fazendo sentido, que se torne, portanto, signo linguístico: “Os signos de que a
língua se compõe não são abstrações, mas objetos reais”, afirma Saussure (2004, p. 119). Ao
mesmo tempo, esse autor assegura que cada termo tem seu valor por oposição a todos os
outros termos em um sistema linguístico. No entanto, o signo só é signo em conjunto com
outros signos, ou seja, o signo só adquire valor num contexto. O contexto é formado por
vários outros signos.
124

A noção de valor do signo justifica o sistema da linguagem como um sistema


estrutural, pois além dos elementos (signos) ela possui leis que governam esses elementos
entre si. Os signos linguísticos não significam apenas por seu conteúdo, mas principalmente,
pelas relações de oposição que mantêm entre si na cadeia falada. Saussure menciona:

O pensamento, caótico por natureza, é forçado a precisar-se ao se decompor [...]. A


linguística trabalha, pois, no terreno limítrofe onde os elementos das duas ordens
[pensamento e som] se combinam; esta combinação produz uma forma, não uma
substância (SAUSSURE (2004, p. 131, o grifo é meu).

Então, a língua de Saussure é prioritariamente, um sistema de diferenças de elementos


e um sistema de oposição desses elementos: a estrutura do signo linguístico procede de um
“corte” que interviria no fluxo dos sons e dos pensamentos. O surgimento do significante
provém desse corte. Portanto, não existe um “fluxo de significantes”, mas um corte. É a
intervenção do corte que faz nascer a ordem do significante, ao mesmo tempo em que o
associa a um conceito.
Lacan reteoriza as ideias de Saussure onde não se trata mais de aceitar a ideia de
“corte” que une o significante ao significado na determinação simultânea, mas de introduzir
essa delimitação através do conceito de ponto-de-estofo. Esta inovação surge a partir da sua
experiência psicanalítica onde pode ser observada a relação fluida entre significante e
significado, sempre pronta a se desfazer. O ponto-de-estofo é a operação pela qual o
significante detém o deslizamento indeterminado e infinito da significação. É aquilo por meio
do qual o significante se associa ao significado na cadeia discursiva. É o significante que
governa no discurso do sujeito; ou melhor, é ele que governa o próprio sujeito.
Assim, Lacan traz à tona o papel desempenhado pela metáfora e a metonímia no
advento dos processos inconscientes. Embora se busque incessantemente o significado das
produções inconscientes na clínica, é o significante que se apresenta como elemento guia, em
seu papel mediador e principal que vem desequilibrar os significados estabilizados e com o
qual se exprime o significado ausente.
Jakobson (1995) retoma em Saussure o “duplo corte do sistema da linguagem”, onde
falar pressupõe efetuar duas operações simultâneas: a seleção de unidades linguísticas e a
combinação dessas unidades escolhidas. A seleção pressupõe a escolha de um termo entre
outros termos. Já a combinação exige articulação entre as unidades linguísticas. Portanto, dois
eixos dividem a linguagem de uma maneira geral: 1)um eixo paradigmático – segundo o
plano da seleção e 2) outro eixo sintagmático – segundo o plano da combinação. Para
125

Saussure, o eixo paradigmático é o eixo da língua, diz respeito à escolha no léxico. E o eixo
sintagmático está ligado à fala e a utilização deste léxico, através das combinações dos termos
escolhidos. Em função desta relação entre os termos linguísticos, Jakobson decide chamar de
relação por similitude e substituição o eixo paradigmático, da língua que se dá por seleção
para definir as operações metafóricas; e relação por contiguidade, o eixo sintagmático, da
fala, que se dá por combinação para definir as operações metonímicas.
A metáfora intervém no eixo paradigmático e consiste num processo de
enriquecimento da língua, através do “sentido figurado”. A metáfora é um mecanismo de
linguagem designada por Lacan como uma substituição significante, já que ela consiste em
designar alguma coisa por meio do nome de outra. O estilo desta substituição significante
demonstra a autonomia do significante em relação ao significado e, de imediato, a supremacia
do significante. A metáfora mostra que os significados alcançam sua coerência através da teia
de significantes.
A seguir, examino o processo de construção metafórica de Beldade, uma obra da série
(Re)tratos:

Figura 48 – Bianca Araújo, Vedação rosa (S1/s1)


126

Figura 49 – Bianca Araújo, fotograma negativo (S2/s2)

Figura 50 – Bianca Araújo, (S3/s1)

S1 imagem visual: vedação rosa


s1 coluna social e seus gestos estereotipados

S2 imagem visual: fotograma negativo


s2 página policial e suas ocorrências

S3 imagem visual: fotograma positivo


s1 Beldade, série (Re)tratos
127

A imagem tomada pela artista adquire significação de um buraco, onde circulam os


significantes. A substituição significante irá consistir em substituir S1 (vedação rosa) por S2
(fotograma negativo) e S2 por S3 (fotograma positivo). Tudo se passa, então, como se o signo
S1/s1(vedação rosa/coluna social e seus gestos estereotipados) se tornasse o novo significado
(Beldade) de S3. De fato, é a significação que resulta da associação originária S1 à s1 que
serve de significado ao término da construção metafórica em S3 (fotograma positivo). Em
contrapartida, o significado s2 (página policial) é afastado. Será preciso realizar uma operação
mental para reencontrá-lo:

S1
s1
S3
S2 S2 s2
s2 S1
s1
S3
s1
Figura 51 – A construção metafórica de Beldade (adaptado de DÖR, 1989)
Fonte: Luciene Jung de Campos

Na metáfora, o significado associado (Beldade) ao significante substitutivo S3,


necessita do significante substitutivo S2 para retornar ao significado s1 (coluna social e seus
gestos estereotipados). Na rede de significantes desta sequência imagética, onde intervém a
metáfora é, pois, S1/s1 que se encontra imediatamente associado a S3 como significado. Com
efeito, se existisse S3/s3 seria apenas uma nova imagem se o processo de substituição
significante consistisse simplesmente numa permutação de significante, quando teríamos uma
nova imagem e não uma metáfora. “Vemos que a metáfora se coloca no ponto exato em que o
sentido se produz no non-sens”, formula Lacan (Escritos, 1998b, p. 512).
A construção metafórica de Beldade põe em evidência uma propriedade específica da
linguagem, seja ela falada ou imagética, a de que a cadeia dos significantes comanda o
conjunto de significados. Onde os significados extraem a sua coerência da rede de
significantes.
128

4.4 ISSO MONSTRA NOS (RE)TRATOS

Para a psicanálise, o sujeito só pode existir como sujeito falante, a partir de uma
metáfora fundadora. Essa metáfora fundadora, segundo Lacan (2002), em As psicoses (1955-
1956), é a estrutura de sentido que antecede e oferece base para toda metáfora linguística. É
nesta direção que Gadet e Pêcheux (1981) comentam a apropriação que a psicanálise se
autorizou fazer em relação a certos conceitos linguísticos, ou seja, a psicanálise se apropria
daquilo que a linguística foraclui de si mesma:

Como se a linguística não quisesse saber nada sobre suas próprias raízes, sobre sua
história. Por que se espantar, então, que esse recalcado faça retorno no interior
mesmo das preocupações linguísticas, na forma de pontos em que a linguística se
trai? (GADET; PÊCHEUX, 2004, p. 20).

Portanto, nas raízes da linguística está uma inscrição afetiva que funda o sujeito
falante e dá acesso ao simbólico, conferindo-lhe o estatuto de sujeito desejante. Para Lacan
(1955-1956), nenhum sujeito escapa da metáfora paterna, metáfora fundadora que faz o
assinalamento da interdição. A partir dessa impossibilidade de acesso irrestrito à mãe, a
criança vai simbolizar a mãe, pois só um símbolo pode dar conta da presença sobre um fundo
de ausência. Assim, Lacan institui que a linguagem é metalinguagem em seu próprio registro.
A linguagem é a expressão que marca a posição do sujeito falante e reafirma que a estrutura
do sujeito é a linguagem, onde só o significante pode dizer sobre a sua existência. Essa é a
metáfora do sujeito.
Lacan (1998b) em Escritos (1966) vai definir a metáfora como a implantação numa
cadeia de significantes de um outro significante num perpétuo intervalo onde outra cadeia de
significantes possa entrar. Essa construção teórica remete aos mecanismos de condensação
que Freud (1900) descreve em A interpretação de sonhos, enquanto elementos de conteúdo
manifesto que são determinados por uma série de pensamentos latentes, cujas ideias não estão
necessariamente ligadas entre si.
Na série (Re)tratos, a artista condensa numa formação compósita a coluna social e a
página policial, ou seja, ela faz surgir o sentido através do “sem sentido”, do non-sens. A
metáfora consiste em substituir o significante para derrubar o significado, o que se pode
observar na inserção da página policial no verso da coluna social. O significante novo (página
129

policial) é o significante latente que aparece no perpétuo intervalo onde ele é introduzido na
cadeia de significantes anterior (coluna social) como pode ser observado na figura abaixo.

Figura 52 – O processo fotogramático – fusão entre pintura e fotografia

Neste intervalo, a artista se inscreve como autora de uma nova obra, onde a página
policial pode estar ligada a outra cadeia de significantes. Ou seja, propõe um outro sentido,
abre para outros discursos. Neste ponto em que a significação se engendra no significante, a
artista está implicada na metáfora.
A metáfora condensa em si a posição do sujeito ideológico no interior das formações
discursivas. A artista está, ela mesma, implicada na metáfora e convocada a se implicar numa
posição. A metáfora não é simplesmente uma obra do acaso ou a distorção de uma imagem,
nem a expressão de um sentido óbvio. Mas, o inconsciente que se oferece como recurso do
pensamento e da resistência. O que permite estranhar a imagem publicitária dada:

As imagens que obtenho assemelham-se a radiografias quando utilizo a técnica do


fotograma. A luz atravessa a imagem ainda pictórica como a irradiação de uma
radiografia atravessa um corpo. A primeira imagem está em negativo como se eu
pudesse ver o que existe dentro dessa imagem, dentro desse corpo (ARAÚJO, 2005,
p. 6).
130

A artista trabalha na resistência que o material imagético oferece e busca um meio de


contornar a sua opacidade. É a presença do sujeito da linguagem que não se expressa com a
linguagem, mas através da linguagem. Remete à questão de que o sujeito na emergência de
forças opostas é o artesão de seus suportes. Os significantes são modelados pelo sujeito,
talvez mais com suas mãos do que com seu intelecto. Conforme refere Lacan (1997), sobre o
pote de barro presente em todas as civilizações para sinalizar a presença humana e a presença
do significante no jogo do cheio e do vazio.
A intervenção na imagem com pintura se constitui em outro significante no perpétuo
intervalo na cadeia de significantes. As imagens das quais a artista se apropria são geralmente
em preto e branco, recortadas e fotocopiadas de jornais. No entanto, utiliza-se do vermelho e
o rosa para pintar, misturando o preto e o branco com o objetivo de clarear ou escurecer a
imagem: “O branco me faz criar halos de luz em torno da figura, o preto dramatiza por ser a
cor que me deixa distorcer e esconder partes do rosto” (ARAÚJO, 2005, p. 32).
A artista mesma se questiona sobre o uso de cores na pintura, já que a imagem final é
um resultado em preto e branco. Diz que não sabe bem porque começou a trabalhar com rosa,
mas que mais tarde percebeu a presença significativamente maior de mulheres que de homens
na coluna social. O rosa é a cor associado ao feminino e colado à imagem da boneca Barbie,
ilustração da mulher objeto e do culto ao corpo formatado e maquiado. É a derrisão do sujeito
que a artista faz desdobrar em suas cores e traços. Através da pintura, o sujeito de ostentação
da coluna social se destrama e deixa entrever entre sombras e luz a sua fragilidade e
exposição.
131

Figura 53 – Bianca Araújo. Processo pictórico série (Re)tratos, 2005

A imagem acima expõe o recobrimento em rosa, o que garante a discursividade da


imagem, por isso remete à forma-sujeito de uma formação discursiva específica, oriunda de
uma determinada formação social. Trata-se da imagem-em-funcionamento. A artista faz
retorno ao interdiscurso e articula seus (Re)tratos com Warhol:

Figura 54 – Andy Warhol, Marilyn. Serigrafia sobre tela


132

Abaixo, a imagem que a artista dá por finalizada no processo da série (Re)tratos:

Figura 55 – Bianca Araújo. Série (Re)tratos

A artista elege o pensamento de Peixoto que, segundo ela, sintetiza a sua busca, o qual
me permito transcrever:

Seria preciso que, um dia, o verdadeiro retrato de alguém aflorasse, como uma
pintura sobreposta aos traços do rosto, apenas acentuando o que lá estava – mas o
bastante para causar desconforto – para causar o cancelamento da encomenda. Só
então chegaria o momento de pintar para revelar, não para esconder, um auto-retrato.
Contemplação, introspecção, arqueologia. Haverá o retrato de mostrar este rosto?
(PEIXOTO, 1996, p. 54).

É a imagem metafórica que resulta num espaço saturado de significantes, onde


fotografia, pintura e texto se justapõem. O texto não diz respeito à imagem. Conta outras
histórias fragmentadas; incompleto, não pode ser lido na íntegra. Assinala a existência de
outras presenças e de outras classes sociais, das quais a coluna social não dá conta, pois
reconhece a existência de apenas uma classe.
133

O sujeito na posição-artista é interpelado pela imagem da publicidade, no caso, a


coluna social. Mergulha no interdiscurso e retira elementos para articular o fio de seu
discurso, expresso na sua obra: a Série (Re)tratos, que tomada discursivamente se constitui
em uma metáfora condensada que faz a mediação entre a imagem publicitária e o artista, na
descontinuidade.
A coluna social aparece como a imagem oceânica, a imagem para ser vista e para
satisfazer, no entanto, essa imagem é uma imagem que frustra. Enquanto imagem simbólica,
ela aparece contraditória. Por um lado, reforça a onipotência do leitor através da identificação
com a imagem idealizada do colunável; por outro lado, assinala a sua impotência. Impotência
não só no sentido de ascensão social, mas também na sua incapacidade para resolver as
desigualdades sociais em que está imerso. Nos dois sentidos, a imagem assujeita o
observador. No plano ideológico, sempre que houver dominação vai haver resistência, frente a
isso o artista recria o seu mundo simbólico, pois é um sujeito de linguagem.
No ato de recriação da imagem o artista implanta na cadeia de significantes “coluna
social” um outro significante que é a “pintura em rosa”. Assim, quebra o significado anterior
da cadeia de significantes “coluna social” que perde o sentido. Neste perpétuo intervalo entre
um significante e outro, a autora introduz na cadeia de significantes um segundo significante,
que é a página policial. Dessa forma ela vai substituindo uma imagem por outra.
A metáfora, como é tomada nesse estudo, condensa em si o movimento do sujeito nas
suas tomadas de posição através das imagens. A metáfora se apresenta como a trama do
pensamento no inconsciente, onde o sujeito é sujeito do desejo. É o sujeito do desejo que
resiste enquanto assujeitado no interior de uma formação discursiva para “livremente” se
submeter a outra, dissimulando o seu assujeitamento. A metáfora não é simplesmente uma
deturpação do sentido dado de uma imagem. Articuladora do inconsciente ela aparece como
uma figura essencial, segundo a qual é o inconsciente que se dá como pensamento, onde isso
mostra.
Penso que seria possível estabelecer alguma relação entre os processos metafóricos e
metonímicos com as formações discursivas, pois a ideologia faz a mediação entre o sujeito-
artista e a imagem. O significante é o furo da imagem, onde podem ser depositados os
sentidos ideológicos, a partir da formação discursiva com que o artista está identificado. É
essa matriz de sentido que permite com que o artista apresente o que pode ser mostrado.
134

Ideologia

Sujeito Imagem

Figura 56 – Nó borromeano da mediação sujeito-ideologia-imagem


Fonte: Luciene Jung de Campos

No esquema imagético, o que faz com que um fragmento visual se torne concreto,
fazendo sentido, são suas relações de oposição que mantém na cadeia imagética. A imagem
aparece como uma série de divisões simultaneamente introduzidas num fluxo de pensamentos
e num fluxo visual. Assim, o papel da imagem não é criar um meio visual para a expressão de
ideias, mas ocupar um lugar intermediário entre o pensamento e o olhar, que conduza
necessariamente a delimitações recíprocas de unidades numa formação discursiva.
O devir da imagem, que ao longo de seu percurso é trocada por diversos substitutos,
nos remete à ordem da linguagem e a seus mecanismos de substituições significantes. Os
personagens da coluna social e da página policial determinados pela sua relação com a mídia
nos conduzem à forma-sujeito, movida à revelia pelos significantes da linguagem em relação
com o inconsciente e a ideologia.
Na verdade, nas imagens em análise, o que está problematizado é a posição-sujeito,
enquanto lugar imaginário, representando no processo discursivo os lugares ocupados pelos
sujeitos na estrutura de uma formação social. Deste modo, o mecanismo de condensação na
obra nos mostra que não há um sujeito único, mas diversas posições-sujeito, as quais estão
relacionadas com determinadas formações discursivas e ideológicas. Deste modo, a
supremacia do significante se demonstra por uma dominação do sujeito pelo significante, que
o determina desde onde ele pensa escapar: a toda a determinação de uma linguagem que ele
imagina controlar.
A metonímia enquanto figura de linguagem é elaborada segundo um processo de
mudança de denominação, onde um termo/objeto é designado de forma diferente da
denominação que lhe é própria num sistema linguístico. Esta mudança de denominação entre
135

os dois termos só é possível com restrição e sob certas condições particulares de ligação entre
os dois termos/objetos.
A seguir, analiso o processo de construção metonímica imagética em uma obra da
série Outdoor’s, onde a parte é colocada no lugar do todo:

Figura 57 – Carlos Goldgrub, série Outdoor’s, 2004

Embora o todo (rosto) esteja subtraído, nem por isso a significação (rosto de mulher
jovem) deixa de aparecer, em função dos laços de contiguidade entre a “parte” e o “todo”. O
processo metonímico impõe um novo significante em relação de contiguidade com um
significante anterior, que ele ultrapassa. Este mecanismo pode ser esquematizado pelo
seguinte algoritmo:

S1 imagem visual: rosto parcial


s1 rosto de mulher jovem

S2 imagem visual: avião


s2 espaço aéreo urbano

S3 imagem visual: rosto parcial e avião


s1 rosto de mulher jovem
136

Na figura metonímica ocorre uma substituição significante que resulta em substituir


S1 (rosto parcial) por S3 (rosto parcial + avião):

S1
s1

s2
S2 S2 S3 S1
s2 s1

S3
s1
Figura 58 – A construção metonímica de Outdoor’s (adaptado de DÖR, 1989)
Fonte: Luciene Jung de Campos

No entanto, ao contrário do que se passa na metáfora, o significante “descartado” não


passa pela barra de significação. Ele continua acima, pois na metonímia o sentido está
condicionado à manutenção de S1 (rosto parcial) em contiguidade imediata com S2 (avião) e
em associação com s1 (rosto de mulher jovem urbana). Em contrapartida, s2 (espaço aéreo
urbano) é provisoriamente excluído. Assim como na metáfora, a manutenção da presença de
dois significantes garante a impossibilidade de construção de um signo novo que associaria de
forma aleatória um significante a um significado.
Da mesma forma que a metáfora, a metonímia reafirma a autonomia dos significantes
em relação à rede de significados, e, por conseguinte, em favor da supremacia do significante.
Na formulação do processo metonímico existe uma conexão de um significante novo
com um significante anterior, com o qual ele está em relação de contiguidade e que ele
substitui. A imagem metonímia oferece resistência à significação, à medida em que a figura
aparece como um não-sentido aparente (um avião não pode substituir a parte superior de um
rosto). Em outras palavras, uma operação de pensamento é necessária para apreender o
sentido da apresentação metonímica.
137

Como afirma Joel Dör (1989), as noções de metáfora e metonímia, na perspectiva


lacaniana, são cruciais na concepção estrutural de apresentação do inconsciente. Elas
sustentam, teoricamente, a tese o inconsciente estruturado como linguagem. Portanto, os
processos metafóricos e metonímicos estão na base dos processos primários e das formações
inconscientes, propriamente ditas.
A musa de Goldgrub no Outdoor tem o sorriso ingênuo de quem não vê e de quem não
sabe. Seria uma versão feminina contemporânea às avessas dos olhos vazados de Édipo? A
grande metrópole é a esfinge que enuncia um enigma sobre o significado da existência
contemporânea. Através da ampliação exorbitante de parte de um rosto feminino, combinado
com o avião que levanta vôo e um toque cubista que a arquitetura ordena, o artista põe em
questão tecnologia, velocidade e concreto com o sorriso ingênuo de uma jovem.
Consumidora, talvez, ela demonstra uma certa alienação ao entorno claudicante; à delicada e
difícil convivência entre o barulho dos motores e os arranha-céus. Remete ao lugar do sujeito
contemporâneo que faz corpo com outras coisas, outros objetos, outros materiais, outras
máquinas. E que, por vezes, vive uma turbulenta viagem estática, correndo muito para
permanecer no mesmo lugar como a Alice, de Lewis Carroll.

4.5 O OBJETO-IMAGEM EM OUTDOOR’S

A noção de objeto que tomo na presente abordagem, não quer dizer coisa inanimada e
manipulável. Mas, sim, designa aquilo que para o sujeito é objeto de atração, de investimento
de energia pulsional e que se expressa de forma sublimada como vínculo social. Louise
Bourgeois (2000) explica para nós, ao dizer: minha obra é sexo e morte. No caso deste estudo,
interessa mais as peculiaridades de funcionamento do objeto-imagem no seu polimorfismo,
suas variações, suas vicissitudes fantasmáticas. Seu funcionamento marcado por
características singulares, que é determinado pelo sentido que adquire na história, nas
condições de produção, sinaliza formações discursivas heterogêneas. Este objeto é um misto
de algo interno ao sujeito e de aspectos externos a ele. O objeto-imagem é tomado como um
objeto discursivo, um objeto de linguagem enquanto uma produção do sujeito do desejo que
também é um sujeito atravessado pela ideologia. Deste modo, o objeto-imagem é da ordem
inconsciente-linguagem.
138

Nesta linha, em Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise, mais


especificamente, no item IV “Da rede dos significantes”, Lacan aborda a noção de
recalcamento primário, constitutivo do inconsciente que se inscreve sobre a base de um
processo metafórico. Esta metáfora é chamada de o Nome-do-pai que, antes de tudo, é uma
substituição significante: o significante do desejo da mãe é recalcado e o sujeito é barrado
com o ganho de um significante novo, que é o Nome-do-pai. O pai real, seja ele o genitor ou
não, passa a ser investido da função de pai simbólico. Essa metáfora é a operação simbólica
fundadora do sujeito do inconsciente. Porém, o significante do desejo da mãe nunca vai ser
anulado, ele persiste em estado inconsciente porque está recalcado, mas insiste em se
reapresentar compulsiva e repetidamente. Para exprimir seu desejo impossível e reiterar a sua
demanda, o sujeito não tem outra saída, a não ser se apegar à cadeia metonímica da
linguagem. Assujeitado à lei do Outro (o significante Nome-do-pai), o sujeito fala sem saber
exatamente o que ele diz.
Essa retomada na relação inconsciente-linguagem permite conectar a questão da
metáfora e da condensação, da metonímia e o do deslocamento para propor a análise da Série
Outdoor’s no que ser refere ao intangível. Pretendo abordar a metonímia e o deslocamento,
enquanto processo de construção da imagem. A metonímia se define etimologicamente como
uma substituição de uma palavra pela outra, onde uma representa certa parte do todo que é a
outra palavra. Um termo é designado por outro termo, diferente daquele que é usado
habitualmente, em paráfrase, para falar “da mesma coisa”. Então, se isso ocorre é porque uma
relação deve existir entre as duas palavras ou entre os dois elementos.
Na imagem abaixo, o artista dá visibilidade a outra intervenção, além da sua: uma
“poética marginal” que procura conquistar uma posição neste mesmo espaço. Para Baudrillard
(1981, p. 225-26): “a rua é a forma alternativa e subversiva de todas as mídias de massa. [...]
ela não é suporte objetivado de mensagens sem respostas, rede de trânsito à distância, ela é o
espaço aberto de troca simbólica”.
139

Figura 59 – Carlos Goldgrub, Série Outdoors, 2004

Na poética de Goldgrub, um detalhe da imagem ocupa todo o cartaz. A parte toma o


lugar do todo. No lugar da imagem original da publicidade/propaganda, outra imagem
sobrevém. Existe um deslocamento de uma imagem a outra, o que era evidente na primeira
(publicidade/propaganda), passa a estar ausente na segunda (arte visual). Apenas um traço da
primeira imagem é suficiente para oferecer seu conteúdo como ponto de contato desta
expressão imagética atual com a anterior. Os elementos da imagem não mantêm os mesmos
apelos na formação discursiva do consumo e na formação discursiva de resistência ao
consumo.
A metonímia é fundamentalmente articulada ao desejo e mediada pela linguagem. O
artista busca resistir à forma-sujeito consumidor, na busca de elementos substitutivos, que são
mobilizados no corte e na ampliação do fragmento da imagem original. O objeto-imagem é
sempre metonímico, já que ele é o objeto de desejo de resistência. Como refere Lacan, o
desejo é sempre desejo de outra coisa, já que se refere ao objeto primordialmente perdido, por
um lado. Por outro, ele é objeto de resistência contra o sistema dominante que procura
reproduzir a forma-sujeito consumidor.
140

Lacan construiu em seus graphos um esquema para explicar a produção de sentido, no


qual eu me inspiro para dar conta do mecanismo de produção da imagem fotográfica que é
apropriada, re-fotografada, re-enquadrada e reaplicada nos espaços reservados para anunciar
serviços ou produtos, no caso da Série Outdoor’s:

i
Figura 60 – A construção metonímica do objeto-imagem ( ), (adaptado de LACAN, 1998)
Fonte: Luciene Jung de Campos

Duas linhas que se cruzam em sentido inverso. DA é a cadeia significante permeável


aos efeitos da metáfora e da metonímia. X’X é a linha que recebe intervenção do significante,
é a imagem total veiculada pela publicidade/propaganda. Estas duas linhas se cortam em A e
y, onde aparece a imagem da Série Outdoor’s (i): a imagem se combina com o significante e
outro sentido pode surgir. Mas, se a imagem permanece estanque, ou seja, não mobiliza
outros dizeres, outras imagens, ela permanece em curto-circuito XX’. Em y, o inconsciente
pode fazer surgir um sentido inédito, a partir da conexão que estabelece com a tomada de
posição do sujeito na formação discursiva (FD). A imagem incongruente, produzida no corte
pode “violar o código” utilizado na Publicidade/Propaganda (PP) e só pode ser acolhida em
outra FD. A imagem propõe um enigma e instala o non-sens. Na imagem, é possível ver em
cima, na curva de retorno a aparição de um objeto metonímico sempre cortado. Esse objeto
cortado é a presentificação de uma tomada de posição, onde o sujeito expressa uma demanda,
onde pode aparecer a metáfora. Portanto, não existe metáfora sem a antecipação de uma
141

decomposição metonímica. Este duplo movimento comporta sempre um resto recalcado que
circula entre a linguagem (código) e a imagem. Esse resto recalcado ressurge nas séries em
estudo, enquanto imagens investidas de desejo e de sentido. Uma mesma imagem pode sofrer
cortes, enquadres diferentes em outras combinações horizontais, associando elementos pré-
existentes na rede metonímica e fazer aparecer um novo valor, um novo sentido e uma nova
posição-sujeito. Mesmo com uma leve alteração no código e no meio em uso, no caso, a
fotografia.
Abaixo, faço outra tentativa de apresentar graficamente o processo metonímico, tento
ilustrar a relação entre a imagem de circuito da PP, com a posição-autor de sujeito desejante
que transforma a imagem da PP, noutra imagem (i):

Circuito da imagem Construção metonímica do objeto-imagem ( ) i


Figura 61 – A Demanda do Artista (adaptado de LACAN, 1998)
Fonte: Luciene Jung de Campos

Nenhum desejo pode ser recebido socialmente (pelo Outro) sem sofrer transformação.
Freud mostrou isso na estruturação do desejo, na transformação que o processo primário sofre
frente ao processo secundário. O que justifica as expressões sempre ambíguas e equívocas na
linguagem. Dito de outra forma, a relação do significante com o desejo implica que o desejo
seja subvertido, mudado, a partir de sua passagem pelo significante, ou seja, pela linguagem.
A satisfação não passa de um registro que é acordado entre eles.
O inconsciente é a soma dos efeitos da fala sobre um sujeito e aí o sujeito se constitui
dos efeitos do significante, diz Lacan em Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise.
Esta analogia inconsciente/linguagem, ou de forma mais ampla, inconsciente/significante se
instala nos mecanismos inconscientes de deslocamento e condensação, que parecem obedecer
142

às figuras de linguagem como a metonímia e a metáfora. Assim, inconsciente e linguagem


tornam-se solidariamente articulados, de tal forma que o inconsciente se institui sobre o
campo do significante recalcado e a linguagem só pode aparecer como a condição mesma do
inconsciente.
Nas três séries ocorre uma transformação pelo processo de deslocamento e
condensação, semelhante aos sonhos em que a imagem inicial perde alguns atributos para
adquirir outros e assim, deixa de interpelar um sujeito em determinada forma-sujeito para
convocá-lo em outra posição-sujeito, produzindo diferentes efeitos-sujeito no mesmo
observador. Segundo Indursky (2007, p. 163) esse fenômeno só pode ocorrer graças à
heterogeneidade das FDs, pois para a autora, não é possível “pensar em FD de forma
dissociada à noção de Forma-Sujeito e sua fragmentação em posições-sujeito”. Não existe
fechamento da FD, mas impõe-se seu caráter lacunar, sendo retomada e interpretada em uma
nova constelação, como é o caso da apropriação das imagens da propaganda pela arte pop e
conceitual.
As séries artísticas possuem cada uma em seu bloco um princípio organizador em sua
individuação, regido por regularidades que articulam uma obra com a outra para afirmar uma
ideia ou conceito; assim como as diferentes etapas das campanhas publicitárias, desde a
concepção do serviço ou produto até a sua comercialização estão sob regras de formação que
permite a repartição de seus elementos.
Para Pêcheux (1975), “uma palavra pela outra é a definição da metáfora, mas é
também o ponto em que o ritual se estilhaça no lapso” (PÊCHEUX, 1997b, p. 301). Em se
tratando de linguagem, eu transporia para “uma imagem pela outra”, ali onde a arte se
apropria da propaganda, numa mudança de tomada de posição, veicula outros saberes e
interpela o “mau sujeito” (o sujeito-autor) que se contrapõe à forma-sujeito de consumidor,
um sentido torna-se outro sentido, portanto, a interpelação do sujeito está vinculada à
produção de sentido que articula outra posição-sujeito.
Indursky (2007, p. 170) chama de “acontecimento enunciativo o momento em que se
dá a instauração de uma nova posição-sujeito no interior de uma FD”, portanto as Séries
artísticas em análise poderiam ser interpretadas como acontecimentos enunciativos para
aquele observador que já está interpelado pela publicidade, mas que suporta o estranhamento
e a tensão de se deparar com o saber outro que os artistas aportam. Como diria a autora: há
agitação nas fileiras dos sentidos.
143

Tais imagens confrontam a experiência cotidiana do observador com algo inesperado,


em função do contraste de ideias que vão em direção diferente daquelas veiculadas na mídia.
Segundo Freud (1976c), ao tratar dos chistes, é a presença do non-sens e da contradição, cuja
origem não se pode explicar de maneira alguma que produz interesse e desconcerto.
Pêcheux trabalha com a ideia de que por mais que o sujeito-centro-sentido se esforce
para segurar o “sentido evidente”, o non-sens não cessa de voltar produzindo uma pressão
sentido/non-sens no sujeito dividido:

o sentido é produzido no non-sens pelo deslizamento sem origem do significante


[...], mas é indispensável salientar que esse deslizamento não desaparece sem deixar
traços no sujeito-ego da forma-sujeito ideológica, identificada com a evidência de
um sentido (PÊCHEUX, 1997b, p. 300).

Na série analítica subversiva, o chiste dispõe de maior proximidade com a arte


conceitual do que o ato falho e o sonho, por ser uma produção compartilhada socialmente. Ou
melhor, o chiste é, ao mesmo tempo, uma transformação de energia afetiva e intelectual e
também um empreendimento social. De forma semelhante, a arte necessita contar com mais
alguém que pertença àquela FD, ou pelo menos, formação social para estabelecer contato com
a criação e desfrutá-la. O processo psíquico da construção do chiste e da obra de arte não
termina quando passa pela cabeça de alguém, mas permanece algo que procura pela
apresentação da ideia para que se conclua. Quanto ao chiste (witz), Freud (1976c) considera
que o seu ouvinte é presenteado, já que o seu custo psíquico foi muito baixo em função da
descarga proporcionada pela ligação de elementos inconscientes que obtiveram gratificação,
antes ausentes e que agora aparecem e fazem a festa! Essas criações – o chiste e a obra de arte
– aproveitam-se de um desequilíbrio do sistema dominante, de uma falha desse ritual,
irrompem e se apresentam em formato de equívoco em relação ao que estava posto.
O equívoco, como o real da língua, transposto para a linguagem, também pode ser
tomado como o real da imagem. Permite o deslizamento nas certezas lógicas, faz mexer com
as regularidades da sociedade de consumo, torna-se um ato. E como todo ato, exige
interpretação. Adquire um sentido antes ausente, mas que é possível de ser produzido no
encontro das formulações artísticas com a historicidade.
Quanto ao ausente, é necessário referir o esquecimento no mesmo campo,
caracterizando-o como o real da história, muitas vezes, para dissimular a contradição de certos
aspectos que não deveriam aparecer na formação discursiva (FD) em questão. Na série
Outdoor’s, as mercadorias estão ausentes, apenas os corpos gozosos estão presentes. É
144

justamente nesse jogo entre o presente e o ausente que a memória discursiva opera: no
esquecimento daquilo que é óbvio numa FD, mas que não deve ser lembrado em outra FD.
Porém, o fato de lembrarmos o que ficou esquecido ou suprimido na série artística, é
que faz dela uma série subversiva, quando posso notar a ausência daquilo que antes era
evidente e a falta se estabelece, tomando lugar de equívoco: um outdoor sem mercadoria e
sem anúncio. A presença das mercadorias é imprescindível na formação discursiva
apresentada pela publicidade/propaganda. Porém, essas mercadorias podem ou não serem
reafirmadas na formação discursiva mostrada pela arte visual. O fato de que é possível
lembrar que elas foram esquecidas, coloca a imagem em funcionamento, enquanto estrutura.
Ou ainda, a lembrança da mercadoria permite pensar na presença dos corpos dos modelos,
partindo do princípio de que esses corpos é que são, na verdade, a mercadoria por excelência,
talvez, só por isso eles continuem presentes.
Sobre o intangível, Pêcheux, juntamente com Gadet (1981) dedica um de seus títulos a
esse tema em A língua inatingível, onde privilegia as produções do inconsciente, conforme já
foi mencionado mais acima, com atenção especial para os chistes. Procura abordar o equívoco
como fato estrutural que se impõe pela ordem do simbólico e que visa trabalhar ali onde
estanca a consistência da representação lógica da sociedade de consumo, por exemplo.
As imagens das Séries (Re)tratos, Outdoor’s e Perto demais aparecem permeadas por
uma divisão discursiva entre dois campos, o campo que é o da publicidade/propaganda e
aponta para a manipulação de significações estabilizadas, normatizadas por uma pasteurização
do pensamento baseada nas relações de compra e venda; e a arte pop/conceitual que busca as
transformações do sentido, escapando a qualquer norma estabelecida a priori, de um trabalho
de sentido sobre o sentido e na suspensão do sentido, tomado no relançar indefinido das
interpretações.
Essa possibilidade que aparece na estrutura discursivo-visual está muito próxima da
divisão que Pêcheux (2006, p. 51) atribui “ao próprio da língua”, mas como um ato simbólico
e político: “[...] o humor e o traço poético não são ‘o domingo do pensamento’, mas
pertencem aos meios fundamentais de que dispõe a inteligência política e teórica”
(PÊCHEUX, 2006, p. 53).
Então, eu diria que o humor, o traço poético e as Séries em estudo não são exceções,
mas arranjos simbólicos do sujeito para atravessar a ideologia e se inscrever no campo social.
Freud (1976a) vem corroborar esse tema em sua abordagem dos chistes que em seu estágio
inicial enquanto jogo de palavras e pensamentos non-sens que precisam ser salvos dos
protestos da razão, cuja construção sofreu a oposição de graves inibições internas, por isso são
145

deslocadas e condensadas. No enlace que estou buscando, trata-se do esforço para buscar o
ausente no evidente, que não está autorizado a ser referido naquela FD.
O chiste é uma maneira de representar um pensamento por si só valioso, ocorre no
curso de um processo intelectual e se exprime como chiste. A fim de capacitar esse
pensamento a tornar-se um chiste, é necessário selecionar, entre as formas possíveis de
expressão, aquela que há de trazer consigo uma produção de prazer. A arte é um ato movido
pelo desejo intangível sobre o material publicitário evidente.
No entanto, não posso deixar de considerar que para Althusser (2007) existe um
aparelho ideológico de estado (AIE), que se chama AIE cultural, onde ele inclui a arte. Mas,
cabe bem observar que são as “Belas Artes” a que ele refere (p. 68). A arte contemporânea
não pertence à mesma matriz parafrástica das Belas Artes. A arte contemporânea, sobretudo a
arte conceitual e pop, pouco tem de belo, pelo contrário, esforça-se por fazer uma ruptura
nesse campo, distanciando-se do sublime e muitas vezes, já foi questionada sobre o seu valor
de “arte verdadeira” e sobre qual o seu sentido ou a sua falta de sentido.
Aponto para uma subversão das formas de presença imbricadas e heterogêneas na
borromeanidade neste estudo, pois o evidente – que seria a propaganda – encontra-se ausente,
enquanto imagem. E o que é trabalhado, mas que não chega aparecer como evidente, mais por
seu caráter enigmático, é a imagem cuja ideia aborda aquilo que ficou ausente na propaganda.
Já o intangível, próprio dos processos poéticos, chistosos e artísticos, caracteriza-se pelos
mecanismos de deslocamento, condensação e esquecimento. São esses os mecanismos que
vão permitir a subversão evidente-ausente-evidente através da metonímia, da metáfora e do
apagamento para fazer com que diferentes posições-sujeito possam emergir. No caso deste
estudo, a forma-sujeito consumidor interpelado por outdoors, cartazes publicitários e coluna
social, pode vir a ser abalada, quando interpelada por estas Séries.
E quanto à coexistência solidária, dos três campos, na abordagem do objeto-imagem,
eu arriscaria algumas diferenças quanto à heterogeneidade dos olhares. O olhar da Psicanálise
se detém nos fragmentos, acentua a significação dos detalhes, se perde em detalhes mínimos
para encontrar melhor o reprimido, o recalcado, o forcluído. O olhar da Arte vai inventar uma
prática discursiva na tentativa de transformar o que está posto como destino. A AD desloca o
olhar, reconstrói uma história negada, torna exposto e elegível as contradições. Engendra
novas leituras que são outros tantos novos olhares, na tentativa de invenção do futuro com
uma pluralidade de inquietudes inaugurais.
146

5 ENTRE SOMBRAS E LACUNAS: UM EFEITO DE FECHAMENTO

Diante das interlocuções teóricas com a arte, a psicanálise e a AD, vejo a imagem
como um corpo de sombras e lacunas. É um corpo de sombras por sua opacidade e densidade
semântica, onde o sentido da imagem não é transparente, mas ao contrário, espesso e
heterogêneo num conjunto de tonalidades. Esta sombra também evoca algo da memória, algo
que estava ali e já passou. Sobras. Presença e ausência obscuras.
É um corpo de lacunas e espaçamentos próprios. A lacuna demarca um território
específico de ação, na história, onde algo se estancou. Lugar em que outras formas surgem
urgentes e errantes. Instaura-se uma experiência nova em sua dimensão de crise. Aloja-se o
equívoco, em direção inversa às representações pragmáticas e funcionais cotidianas. Da
surpresa aparecem frestas inesperadas por onde passa o olhar. Produzem-se rupturas de
sentidos, direções e valores. Deflagra-se alteração de forças e mudança de poder.
A descontinuidade da imagem poderia ser pensada como o estado de suspensão em
que ocorre o encapsulamento do ausente e do intangível pelo evidente. Desse modo, ocorreria
a ligeira presentificação simultânea do passado e do futuro. Nas obras em análise, a
publicidade/propaganda (PP) é o passado da imagem. No entanto, a PP ainda perdura no
presente, mais especificamente, no trânsito passado-futuro, no vir-a-ser da imagem. Meio-do-
caminho marcado pelo intangível. O que torna possível esta presentificação do tempo e o
encapsulamento das formas de presença pelo evidente são os mecanismos de condensação e
deslocamento.
Assim, a partir desses processos de condensação e deslocamento, cria-se um terreno
fértil para o interjogo entre a metáfora e metonímia. Deste interjogo, delineia-se o objeto-
imagem que se origina dos fragmentos e dos restos que se dinamizaram no vazio, nos furos
por onde circulam os significantes.
O inconsciente e a ideologia são as duas estruturas que estão em funcionamento na
descontinuidade da imagem. As obras em análise são imagens basculantes de mobilização do
inconsciente: ora abrindo para o desejo, ora para a ideologia. A imagem tanto pode facilitar a
reprodução e a repetição do padrão imposto num esforço de satisfação e preenchimento
absolutos, quanto promover deslocamento e ruptura.
A imagem, em sua materialidade, produz sentidos a partir da relação com um sujeito,
que por sua vez está inscrito em práticas discursivas e em processos históricos de que é parte,
por isso, o sentido não está na imagem. Ela está impregnada de inconsciente e história,
147

materialidade significante, que a arte faz trabalhar. A imagem enquanto estrutura-em-


funcionamento é uma trama sociossimbólica que busca reconhecimento subjetivo na
heterogeneidade dos discursos.
Para “existir”, ou melhor, para tomar uma posição, o sujeito precisa se apropriar de um
sentido para expressar-se através da invenção criativa de um estilo singular. Muitas vezes, o
sujeito na posição-consumidor é falado pela publicidade e carece de discurso próprio.
Dominado, desaparece como sujeito falante, é lançado no exílio simbólico e padece de
reconhecimento na trama desejante. Se o sujeito não fala, ele não pode se relacionar com a
forma-sujeito que o domina que é a posição de onde se pode formular a questão da qual o
sujeito é a resposta.
O sujeito-autor se posiciona no corte, ou seja, no intervalo entre um significante e
outro. Portanto, as séries marcam o momento inaugural do sujeito, algo do real que se
manifesta no simbólico e que o excede sempre, para além do simbólico, fazendo retornar o
sujeito da falta. O sujeito na função-artista se inscreve no espaço de contra-identificação, no
momento da suspensão de sentido, ligeiro momento de dessubjetivação onde se dá o eclipse
da forma-sujeito. O sujeito na função-artista é essa brecha que se abre entre uma posição e
outra, entre diferentes formações discursivas.
A descontinuidade da imagem aparece nesse espaço de real no simbólico em que o
ponto de existência do sujeito é o ponto de separação e de intercâmbio entre a posição-sujeito
e a formação discursiva que o domina na trama simbólica. A descontinuidade é o mais além
do simbólico, propriamente, a dimensão do real na posição-autor que eclode e faz insistir no
desejo e resistir na ideologia.
As Séries em análise são o manifesto da resistência e a materialidade da
descontinuidade. Constituem-se pela singularidade e pela repetição, por isso descrever um
conjunto de imagens no que tem de singular, paradoxalmente é descrever a dispersão desses
sentidos. É detectar uma regularidade, uma ordem em seu aparecimento sucessivo,
correlações, posições, funcionamento, transformações. As séries, através de suas múltiplas
formulações, promovem a constituição de um espaço do repetível. Fazem funcionar as
posições-sujeito que regulam os objetos do discurso em que a obra se sustenta e às quais ela
retorna. Ao mesmo tempo em que elas rompem com a PP elas retornam à arte pop, no
entanto, a arte pop tem a PP em seu âmago: é a eficácia do assujeitamento.
Interessa-me realçar como o sujeito e a FD estão em relação moebiana, de maneira que
o sujeito e a FD se constituem em e através do Outro da cultura na forma-sujeito, por meio de
um jogo infinito de posições, circulação de significantes e transmissão de um saber. Ao
148

instalar-se em uma posição definida, o sujeito se assujeita e se apropria de um código que o


define e que o localiza, como consequência, frente aos outros como um ser diferente.
As séries retiram elementos da mídia de massa, mas rompem com a estrutura
publicitária em circulação e instauram um novo processo discursivo para além dos produtos
que procura comercializar, fazendo emergir nova rede de dizeres. Na sociedade midiática
atual, a imagem é uma prática regular que visa reproduzir a ideologia dominante, busca
estimular ao consumo. Por outro lado, enquanto arte, a imagem procura desestabilizar aquilo
que tenta cooptar o sujeito, passando a funcionar como operadora do desejo.
Talvez esta pesquisa ao pensar o fazer do artista, o trabalho do artista, possa contribuir
para a reflexão sobre o valor simbólico do trabalho na sociedade atual, muitas vezes esvaziado
de sentido para o trabalhador e para a instituição.
As obras em análise abrem espaço para a leitura dos sintomas, dos tropeços do
capitalismo, dos apagamentos, dos pontos de embaraço. O sujeito na função-artista re-
formula a ideia que está posta, confronta a imagem com ela mesma e expõe diversas versões
de mesma base.
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