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INSTITUTO DE LETRAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
TEORIAS DO TEXTO E DO DISCURSO
IMAGENS À DERIVA:
INTERLOCUÇÕES ENTRE A ARTE, A PSICANÁLISE
E A ANÁLISE DO DISCURSO
Porto Alegre
2010
LUCIENE JUNG DE CAMPOS
IMAGENS À DERIVA:
INTERLOCUÇÕES ENTRE A ARTE, A PSICANÁLISE
E A ANÁLISE DO DISCURSO
2010
LUCIENE JUNG DE CAMPOS
COMISSÃO EXAMINADORA
Ao Antonio, meu pai, pela sua narrativa viva e eficaz, muito à vontade
na abordagem de histórias – tanto as distanciadas no tempo, como as atuais.
À Kátia, minha irmã e companheira, por tudo que me fez aprender, ao me fazer
acreditar que eu poderia ensinar alguma coisa a alguém.
À professora Maria Cristina Leandro Ferreira, orientadora desta pesquisa, por sua
disponibilidade incansável em oferecer subsídios e respaldo para novas aventuras intelectuais
e culturais. Por seu apoio, carinho e dedicação em toda essa trajetória.
À professora Freda Indursky pela grande ajuda nos meus primeiros passos pela
Análise do Discurso, quando me mostrou muitas possibilidades fecundas nas interfaces e
contrapontos no entrecruzamento dos conceitos.
À professora Solange Mittmann pelas aulas, pela leitura atenta de meus textos e
sugestões na escrita.
À professora Liliane Froemming pela leitura desta pesquisa e por suas valiosas
contribuições.
Aos artistas Bianca Araújo, Carlos Goldgrub e Daniel Escobar por permitirem que
suas obras continuem produzindo inquietações.
Aos meus estudantes e orientandos, principalmente aqueles da Psicologia do Trabalho
que estão aguardando e exigindo outras reflexões sobre o valor simbólico do trabalho.
Aos gatos. Aos meus e aos de rua que me fizeram companhia em suas fantásticas e
alentadoras aparições cotidianas e noturnas. Em especial, à Mima, cúmplice e inspiradora em
seu silêncio estético, forçou o eterno retorno ao branco do texto e ao espaço vazio onde as
ideias se produzem.
Walter Roil. Contraste, 1930
RESUMO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................. 12
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LISPECTOR, Clarice. Forma e conteúdo. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Zahar, p. 271.
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como modelos para a divulgação dessas mercadorias. Amplia seus rostos e corpos, guarda os
detalhes e os expõe ampliados nos espaços reservados aos outdoors.
Em (Re)tratos, de Bianca Araújo, a artista toma fotos de colunas sociais dos jornais,
fotocopia e pinta sobre as cópias, num efeito de borrão sobre a imagem. Busca evidenciar os
gestos estereotipados dos colunáveis, tais como sorrisos, abanos e abraços. Superpõe a esta
imagem, outras notícias e outras imagens que estabelecem relações contraditórias entre si.
Nas três séries, é a cultura popular que oferece matéria-prima a esses artistas. A
cultura pop é a herdeira da Revolução Industrial e das revoluções tecnológicas que se
seguiram no encontro entre a máquina, a democracia, a moda e o consumo. A cultura pop
envolve uma mudança nas atitudes para com os objetos, esses objetos deixam de ser únicos.
As coisas que consumimos passam a ser feitas aos milhares e idênticas, sendo impossível
distingui-las umas das outras. De fato, o contexto necessário para o surgimento da arte pop é o
modo de vida pop, ou melhor, a arte pop é em si um derivado desse estilo de vida. Segundo
Stangos (2000, p. 165), só nesse sentido e em nenhum outro se pode usar a palavra “estilo” a
respeito da arte pop, pois ela é carente de estilo. Salienta que a principal atividade do artista
pop, sua justificativa, consiste menos em produzir obras de arte do que em encontrar um
sentido, um nexo para o meio à sua volta, conhecer a lógica daquilo que o cerca em tudo que
ele próprio faz. A descoberta dessa lógica, sua forma e direção tornam-se a principal tarefa
do artista.
Nesta abordagem, a imagem é tomada como um texto. O texto é a unidade do
discurso, especificidade de linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade
social. Um meio que o sujeito encontra de significar e significar-se, o trabalho simbólico do
discurso está na base da produção da existência humana. Orlandi (1999, p. 15) afirma que o
discurso é essa mediação, que torna possível tanto a “permanência e a continuidade quanto o
deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que vive”.
Duchamp, ao comentar sobre o que é uma obra de arte, ele diz que é algo que “o
artista começa e o espectador termina”, segundo o que documentou Calvin Tomkins, seu
biógrafo (TOMKINS, 2004, p. 437). Esse ponto de vista se aproxima da noção de discurso de
Pêcheux, em que a obra pode ser pensada como um efeito de sentidos entre interlocutores.
Levando em conta o homem na sua história, consideram-se os processos e as condições de
produção da linguagem responsáveis pelo estabelecimento das relações de força no interior do
discurso para estabelecer o sentido. As condições de produção fazem parte da exterioridade
linguística e se relacionam ao contexto sócio-histórico-ideológico na sua extensão mais
abrangente. Nessa imbricação, busco uma reflexão sobre a maneira como a linguagem está
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2
COURTINE, Jean-Jacques. Anotações do curso Discurso e imagem. Paris III. Sorbonne, out. 2008.
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A publicidade é tomada neste estudo como uma atividade profissional dedicada à difusão pública de ideias
associadas a empresas, produtos ou serviços, especificamente, propaganda comercial. Comunicação de caráter
persuasivo que visa defender os interesses econômicos de uma indústria ou empresa. Já a propaganda tem um
significado mais amplo, pois refere-se à qualquer tipo de comunicação tendenciosa, abrangendo as campanhas
eleitorais, por exemplo, que busca promover a imagem de pessoas. Portanto, as fotografias em colunas sociais,
enquadram-se como propaganda pessoal.
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os sentimentos contraditórios. Daí que fundação e morte são certezas; reflexão e culpa são
contradições. Isto para falar nas fundações de Saussure e Pêcheux.
A angústia que move Saussure é alcançar o status de ciência para a Linguística. No
que é levado a fazer um corte e num ato de violência, toma a Linguagem e separa a língua da
fala. Busca homogeneidade, eliminando as irregularidades, ajeitando as aparas de seu objeto
teórico para que se torne previsível e facilmente tangenciável, tratando assim, de isolar
fenômenos que fujam ao controle, para que não perturbem o desenvolvimento da nova
ciência. Faz a assepsia na língua.
Neste gesto de zelo para com a ciência que está vindo ao mundo, Saussure empreende
um esforço de separar os elementos da linguagem para que não se misturem e não maculem o
objeto teórico idealizado. Portanto, ficam excluídos o sujeito, o interlocutor, o contexto sócio-
histórico e os processos de significação pertencentes ao escorregadio e descontrolado
domínio da fala. O mesmo gesto que funda a ciência linguística desconsidera tudo o que está
no entorno de seu objeto teórico (INDURSKY, 2005).
A nova ciência segue assim, recatada e sob o rígido controle do modelo estruturalista,
onde o limite do objeto é a frase. No entanto, na década de 60, esta redução científica é
apontada por Chomsky, quando se refere ao falante ideal/ouvinte ideal numa comunidade de
fala muito homogênea que o estudo da língua tem solicitado.
Indursky (2006) oportuniza visualizar em seu quadro-síntese, que o texto para a
Análise do Discurso é tomado em outra dimensão, diferentemente da Linguística Textual e da
Semiótica. Enquanto, para a Linguística Textual interessa examinar a organização interna, a
unidade formal com início, meio e fim, a coesão e coerência, cujo sentido é dado pelo próprio
texto; para a Semiótica, o texto é um objeto semiótico linguístico e não-linguístico, propõe
junção do plano do conteúdo com o plano da expressão, cujo sentido é dado pela construção
do percurso gerativo do sentido.
Já, para a AD, o texto é a materialidade do discurso, uma unidade significativa, objeto
não-acabado, heterogêneo, aberto à exterioridade. O texto é produzido numa tessitura dos
recortes e cadeias, num patchwork heteróclito (PÊCHEUX, 1997a), provocando um efeito de
homogeneidade e completude (efeito-texto) naquilo que é constitutivamente heterogêneo e
disperso. O sentido é intervalar, enquanto efeito de sentido entre sujeito-autor e o sujeito-
leitor, mediado pelo texto, num contexto sócio-histórico. Pêcheux afirma que a posição-
sujeito é inscrita em uma formação discursiva que vai direcionar o sentido e a interpretação
possível.
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Essa mudança de objeto teórico, que a AD propõe, provoca uma pressão no interior do
campo teórico da Linguística positivista. Questiona, sobretudo, as exclusões praticadas. Entre
elas: o sujeito e a significação do próprio discurso. Pois, discurso não é simplesmente fala.
Frente a essas reivindicações, instaura-se um novo corte teórico. O corte pechêutiano
que escovando a linguística a contrapelo, levanta e desacomoda antigos conceitos e, neste
movimento, recupera questões importunas, outrora desprezadas, questões essas, que agora se
impõem. Consequentemente, o objeto de estudo da Análise do Discurso é retirado da lixeira
de Saussure. É aquilo que foi descartado para tornar a linguística científica que interessa a
Pêcheux para dar conta do discurso.
Portanto, o deslocamento da unidade de análise da AD, que não é o signo e também
não é a frase, mas o discurso, exige a criação de um outro corpo teórico-analítico que se
inscreve na articulação de três regiões do conhecimento (PÊCHEUX (1975), 1997b):
A aproximação com outros campos, essa estranha intimidade, como enfatiza a autora,
não se trata de sincretismo teórico, mas de apropriação, deslocamento e reteorização de
conceitos. Também não se trata de interdisciplinaridade, pois a AD é produzida no choque
entre essas três disciplinas, ocupando-se das contradições existentes entre elas.
Mesmo com toda a heterogeneidade e contiguidade de que se constitui o campo da
Análise do Discurso, ainda assim, resolvi puxar mais uma fronteira e estabelecer nova
vizinhança. Pois, se a proposta da AD é juntar as três grandes regiões teóricas da virada do
século XIX: linguística, materialismo histórico e psicanálise certamente têm uma quarta
região valiosa que se deve convocar – a Arte.
A arte não é apenas uma teoria das formas, mas também uma teoria da história, como
nos explicou Walter Benjamin (1992), que se constitui num meio de reflexão sobre a
sociedade a partir de seu presente e voltada para ele, sem a ilusão positivista de se poder
penetrar no passado “tal como ocorreu”.
Freud aborda em seu texto Mal-estar na civilização (1930), a importância da ciência e
da arte para lidarmos com as decepções e as tarefas impossíveis que a vida nos propõe: “a
ciência e a arte são derivativos poderosos que nos fazem extrair luz de nossa própria
desgraça” (FREUD, 1976k, p. 93). Parte do pressuposto que a vida, tal como a encontramos é
árdua demais e por isso, não podemos passar sem essas construções auxiliares que oferecem
guarida para o nosso desamparo.
Para iniciar a aproximação da AD com mais esse outro campo do conhecimento que é
a Arte, gostaria de tomar a obra Cem Terra, de Tunga, que ele classifica como “instauração”,
ao invés de instalação. Tunga considera o termo instalação banalizado e esvaziado, prefere
nomear “instauração”, que para ele significa “inaugurar um fenômeno”4. Abaixo, foto da
instauração:
4
Entrevista concedida pelo artista à Revista Bien’Art, n.15, São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2006.
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O contexto amplo é o que traz para a consideração dos efeitos de sentidos, elementos
que derivam da forma como a nossa sociedade organiza a distribuição dos espaços de
trabalho, dos lugares de passagem, da forma de utilização desses espaços públicos e dos
lugares que as pessoas ocupam nesses espaços sociais. Consequentemente, do acesso às
riquezas materiais e aos bens simbólicos, colocando em jogo trabalho-remuneração, sentido-
significado do trabalho, distribuição de riquezas, divisão dos homens nas relações de força e
dominação no campo da sociedade na história.
A obra Cem Terra liga à memória do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra
(MST) e remete ao interdiscurso. O interdiscurso é definido como aquilo que fala antes, em
outro lugar, independentemente. Entra a história, a produção de acontecimentos que significa
a maneira como o MST está associado ao comunismo, à esquerda, segundo um imaginário
que afeta os sujeitos em suas posições políticas.
A memória quando é trazida para a relação com o discurso, é tratada como
interdiscurso. A memória discursiva, o saber discursivo é o que torna possível todo dizer que
retorna sob a forma do já-dito, sustentando aquilo que está sendo dito. O interdiscurso
disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva
dada. A observação do interdiscurso nos permite remeter a uma filiação de dizeres, a uma
memória, e a identificá-lo em sua historicidade, mostrando seus compromissos políticos e
ideológicos. Há uma relação entre o já-dito e o que está sendo dito, trata-se do cruzamento do
interdiscurso e do intradiscurso, entre a constituição do sentido e sua formulação.
Assim, tudo o que já se disse sobre os Sem Terra, reforma agrária, invasão, ocupação,
trabalho volta a significar na obra de Tunga. A obra em si, é uma ocupação ou uma invasão
segundo a formação discursiva do passante que olha. A formação discursiva (FD) é uma
matriz de sentido que se recorta do interdiscurso e indica uma determinada formação
ideológica. Uma FD é definida a partir do interdiscurso e entre formações discursivas
distintas que podem estabelecer relações de oposição ou de aliança.
Os cem homens, jovens de profissão office-boys que estão ali, ocupando a Avenida
Paulista em carne e osso, se oferecem como material resistente para a depositação de sentido.
Forçam um deslizamento de sentido sobre o trabalho e sobre quem trabalha. A começar pelos
chapéus que portam: não são capacetes para motocicletas, parecem capacetes de pedreiros,
mas como são feitos de tecido se parecem também com bonés de camelôs. O sentido desliza
para outros “100 sem terra”, marginalizados, anônimos, numerados, classificados,
desassentados, desestabilizados pela urgência da nossa sociedade de consumo, noutra forma
qualquer de trabalho precário.
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Tunga, que se diz poeta e não artista, afirma na mesma entrevista: “Toda visão poética
é necessariamente política. É preciso tornar vigente o pensamento poético no campo social. É
um mundo efetivo e transformador. É preciso levar a poesia a sério” (BIEN’ART, 2006, p.
20).
A Análise do Discurso é ocupação e a Arte de Tunga também o é. A obra faz uma
pressão e a potência da ação é dar conta do retorno do recalcado. A arte toca os pontos de
silêncio e de recalque, estranha o óbvio e questiona a sociedade contemporânea: põe em crise
o sujeito e as posições onde se inscreve. A arte é aquilo que o olho humano não quer ver, diz
Marcel Duchamp.
Os Cem Terra de Tunga são como salteadores no caminho, que irrompem armados e
roubam – dos que passam apressados – a convicção. A obra luta. E é essa luta corporal da
obra com a ideologia e o desejo que me interessa analisar sob o dispositivo teórico da Análise
do Discurso.
A imagem abaixo é da instalação Perto Demais que permite observar, nas fotografias,
a projeção de vídeo do momento em que o artista faz a retirada dos fragmentos do outdoor.
Após a apropriação desse material publicitário, os papéis são deslocados para a sala de
exposição, onde são colados em outdoors internos, ou outdoor indoor inaugurando um
conflito semântico com a dinâmica da cidade (ESCOBAR, 2009).
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Figura 2 – Daniel Escobar, Série Perto demais, 2005, Institut Goethe. Performance
Figura 3 – Daniel Escobar. Permeável IX, Série Perto demais, 2008 (225cm x 225cm)
O novo outdoor é um corpo de traços inscritos neste espaço sob formas extremamente
variadas que remete à memória coletiva. O seu autor é um andarilho, um catador que retira
seus elementos de um corpo social. Nas palavras de Pêcheux, o corpo coletivo é composto de
traços que remetem a um conjunto complexo, pré-existente e exterior a esse corpo,
“constituído por séries de tecidos de índices legíveis, constituintes de um corpo sócio-
histórico de traços” (PÊCHEUX, 1990, p. 286).
Trata-se da busca de combinações inesperadas de imagens como justifica a frase do
poeta Lautréamont, tido como um precursor do surrealismo: “Belo como o encontro casual de
uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de operações” (CHILVERS, 2001, p.
513).
A obra baseia-se nas associações antes negligenciadas e no jogo desinteressado do
pensamento. O autor dispõe essas imagens em estilo gestual, enfatizando as qualidades de
elementos incompatíveis e desconexos, aproximando-os ou superpondo-os, numa colagem em
superfície, produzindo efeito quase tridimensional, trabalhando as lacunas, num esforço de
preenchimento vazado, pois é na superposição de furos que a obra de Escobar se sustenta.
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Figura 4 – Daniel Escobar. Permeável VIII Série Perto demais, 2007 (225cm x 225cm)
Acima, as ondas azuis ao mesmo tempo em que equilibram a imagem, vão se tornando
líquidas, evaporam-se, até desfazer a imagem. Laboriosamente, o artista constrói posturas
críticas investigando a efemeridade em exibição no circuito publicitário. Busca inspiração no
ambiente circundante, promove as possibilidades poéticas dos dejetos urbanos e na
contaminação dessas sobras, consegue produzir uma pintura.
Na relação da arte com a paisagem urbana, a Série Outdoor’s, de Goldgrub tem muito
a contribuir. A imagem abaixo, envolve um homem e uma mulher abraçados. A mulher de
perfil com rosto de linhas clássicas e o homem de costas. Trata-se do corpo perfeito,
anatômico, em comunhão, presença do corpo no grau zero, o corpo que não pesa e não dói no
estado de felicidade. A imagem remete a uma experiência idealizada de plena gratificação:
reúne amor, beleza, elegância, sensualidade, juventude.
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A seguir, apresento uma obra da Série (Re)tratos – da artista gaúcha Bianca Araújo –
que são imagens de imagens fotográficas apropriadas de colunas sociais de jornais que
colocam em jogo o conceito do retrato no sentido de mostrar-se para um círculo social, ao
mesmo tempo que a palavra re-tratar significa tratar de outra forma ou ainda retratação como
forma de justificar-se aos outros (ARAÚJO, 2005).
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Neste processo, para descontinuar a imagem veiculada pela mídia de massa, a autora
faz retorno ao interdiscurso e reformula a imagem, intervindo através da pintura que é uma
técnica medieval, comparada ao recurso contemporâneo da fotografia.
A reportagem que está no verso da imagem em texto fragmentado pela ação da pintura
e pelo recorte da foto permite ler parte de frases e parte de palavras, tais como: “dônia”,
“federais e líderes”, “está fundamen”, “extração ilegal de”, “ão une caciqu e gar”, “índio”,
“brancos”, “ipal veio d’água”. Portanto, a reportagem que está no verso da coluna social, trata
de uma provável “ação ilegal relacionada à exploração de recursos naturais que envolve
cacique, garimpeiros, brancos e índios em Rondônia”.
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diferente, o divergente, o estranho”, o que resulta numa formação discursiva heterogênea cuja
peculiaridade é a contradição, que a constitui.
deslizamento [do significante] não desaparece sem deixar traços no sujeito-ego da “forma-
sujeito” ideológica, identificada com a evidência de um sentido (PÊCHEUX, 1997b, p. 300).
O processo de identificação é representado ideologicamente sob a forma da
“intersubjetividade” e do “consenso”. O mundo das ideias não permite assegurar uma
referência, exceto pela força das ilusões que se apoderam de cada sujeito, sob a forma do
consenso e do conformismo (PÊCHEUX, 1997b, p. 129).
O discurso, abordam Pêcheux e Fuchs (1997, p. 82), é um efeito de sentido entre os
pontos A e B. Transpondo para o objeto de análise, a imagem (discurso) veiculada através da
publicidade/propaganda pelo grande capital/grande mídia (A) para o consumidor/espectador
(B), onde A e B designam lugares determinados na estrutura de uma formação social. Então,
no interior do universo da produção econômica, os lugares de grande capital (empresa que
anuncia as vantagens de seus produtos num outdoor ou pessoas que querem “vender-se” na
coluna social de um jornal de grande circulação) e de consumidor são marcados por
especificidades determináveis. Assim como, a relação entre a obra de arte (séries) apresentada
pelo artista trata-se de uma representação, no sentido de que o lugar social se faz presente,
mas transformado.
Segundo Michel Pêcheux (1997a), o que funciona nos processos discursivos é um
conjunto de formações imaginárias que indicam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e
ao outro, a imagem que fazem do seu próprio lugar e do lugar do outro na estrutura social a
que pertencem. Portanto, existem em qualquer formação social normas de projeção, que
organizam as relações entre as situações em que se encontra o sujeito empírico e as posições
que são representações dessas situações. Todo o processo discursivo pressupõe, por parte do
emissor, uma antecipação das representações do receptor, sobre a qual se funda a estratégia
discursiva, assim, a posição dos protagonistas intervém nas condições de produção do
discurso.
A publicidade/propaganda dirige-se para uma posição-sujeito e a arte visual para outra
posição-sujeito, que designam algo diferente do sujeito empírico, designam lugares
determinados na estrutura de uma formação social. Porém, não são apenas lugares empíricos
na esfera da produção econômica, por exemplo, os lugares de consumidor, de socialite e de
artista. São lugares discursivos marcados por propriedades diferenciais determináveis
vinculados ao fantasma – ao roteiro individual de satisfação do desejo e à forma de inscrição
social possível para o sujeito.
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Para dinamizar os fragmentos que se desprendem desses três campos (AD, Psicanálise
e Arte) desenvolvo, a seguir, outra topologia de coexistência para os aspectos
interdependentes na imagem:
Intangível
Evidente Ausente
obsessão de alcançar o todo, pois no todo nada se diz, o artista consegue ver a imagem nesse
espaço de falha inerente e abrir novas possibilidades.
A publicidade/propaganda, sob a perspectiva de Althusser (2007), em Aparelhos
ideológicos de estado, pode ser pensada como um ritual de interpelação ideológica do sistema
dominante, uma prática de manutenção e reprodução do capitalismo. Ao passo que a arte, ao
se apropriar das imagens veiculadas pela propaganda, procura jogar com o non-sens, urde o
equívoco e contamina a ideologia dominante.
Penso que a arte visual e mais diretamente a arte pop no que concerne às estratégias
utilizadas na elaboração da imagem, com preponderância da ideia e transitoriedade dos meios,
opera um deslocamento com a apropriação de fotogramas de jornais e cartazes veiculados em
ruas de intensa circulação, nas grandes cidades. Esse objeto-imagem situa-se na mesma
sequência da série analítica do sonho-lapso-ato falho-witz, apontada por Pêcheux (1975),
enquanto falhas no ritual ideológico:
O lapso e o ato falho (falhas do ritual, bloqueio da ordem ideológica) bem que
poderiam ter alguma coisa de muito preciso a ver com esse ponto sempre-já aí, essa
origem não-detectável da resistência e da revolta: formas de aparição fugidias de
alguma coisa “de uma outra ordem”, vitórias ínfimas que, no tempo de um
relâmpago, colocam em xeque a ideologia dominante tirando partido do seu
desequilíbrio (PÊCHEUX, 1997b, p. 301, o grifo é meu).
Nas três séries Re-tratos, Outdoor’s e Perto demais ocorre a apropriação de imagens
retiradas de fotografias das colunas sociais dos jornais e de outdoors. A re-elaboração daquilo
que foi apropriado é um mecanismo necessário para que a imagem possa ser deslocada de um
espaço para outro.
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exposição da Society of Independent Artists em Nova York em 1917, na qual ele era jurado.
Como os colegas rejeitaram a obra, ele se demite da comissão avaliadora.
Marcel Duchamp refere-se à arte pop com certo amargor e desilusão, dizendo que ele,
ao descobrir os readymades, esperava desencorajar a estética. Porém, esse “neo-dadá”
recupera a beleza estética de objetos tão banais quanto o mictório e o porta-garrafas através
da pintura e da colagem (LUCIE-SMITH, 2000, p.161).
Nas obras de Goldgrub, existe uma recuperação estética – estilo readymade – dos
personagens em meio às mercadorias ou uma afirmação estética destes personagens-
mercadoria que são pinçados e elevados à categoria arqueológica de mitos humanos urbanos
produzidos em massa, bem ao gosto do “design” ideal popular:
Figura 12 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004 Figura 13 – Carlos Goldgrub, Série Outdoor’s, 2004
A arte pop que busca inspiração na cultura de massa passa a convocar seus
observadores a fazer uma viagem pela história da arte e a conhecer os movimentos artísticos
antecedentes para ampliar a sua condição de interpretação. Torna-se assim, ironicamente
popular tanto pelo seu grau de exigência no que concerne aos seus artistas quanto para com
aqueles que a observam.
Conforme observa Marcel Duchamp, o artista moderno era mais um manipulador de
signos/discursos do que um produtor de objetos. A obra de arte se dirige ao seu público,
convidando-o a fazer a sua leitura da obra. Ele aceita que, embora seja o artista que projete
seu trabalho, nele imprimindo uma série de significados, é no público que eles se realizam. É
nele que o universo de possibilidades criado pelo artista adquire, enfim, um sentido. A arte
contemporânea trabalha com conceitos, aciona discursos.
Para Freud, a arte deveria ser parte integrante da formação do analista. Porém, como
assinala Rivera (2002, p. 8): “em vez de convocar os artistas de seu tempo”, faz referência em
seus textos, a obras renascentistas de Michelangelo e Leonardo da Vinci. Colecionador de
antiguidades e de gosto clássico, Freud nunca se aproximou da vanguarda vienense.
Contemporâneo do pintor Gustav Klint (1862-1918), cujas obras apresentavam o feminino
como um tema recorrente, abaixo Judith – um dos quadros mais famosos de Klint:
49
A Judith, de Klint, bem poderia ser uma das histéricas de Freud numa expressão de
vertigem, é um corpo que vibra eletrizado nos adereços que o fazem cintilar. É a metamorfose
ameaçadora do feminino no processo de emancipação da mulher na vida profissional, política
e sexual. É o mesmo corpo feminino que denuncia as mazelas sociais de sua época que Freud
escuta para fundar a psicanálise. Ao que se sabe, Freud e Klint nunca se encontraram, nunca
conversaram, apesar de viverem na mesma cidade.
Freud vira as costas para a arte moderna, faz duras críticas ao expressionismo, embora
os movimentos de vanguarda literária e artística façam referências diretas à psicanálise, entre
eles o poeta francês André Breton que publica em 1924 o primeiro Manifesto do surrealismo.
Freud não reconhece a importância do surrealismo para a divulgação da psicanálise na França,
onde o fechamento do meio médico era grande. Marie Bonaparte traduz o seu texto A questão
50
contradição são as condições que permitem à Análise do Discurso operar, enquanto disciplina
de interpretação.
No contexto filosófico e político, o projeto da Análise do Discurso afirma um registro
triplo na História, na linguagem e no inconsciente tentando lidar com a clivagem e
dissociação que costuma ocorrer entre esses três campos nas pesquisas em ciências sociais e
na psicologia, no esforço de levar em conta a complexidade e heterogeneidade dos fatos.
A Análise do Discurso, enquanto uma disciplina de interpretação, não pretende
instituir-se dominadora do sentido dos textos, mas somente construir intervenções que
exponham o olhar aos níveis opacos da ação estratégica de um sujeito. Não se trata de uma
leitura plural de multiplicação de pontos de vista possíveis sobre um único objeto, mas de
uma leitura na qual o sujeito é ao mesmo tempo responsável pelo sentido que atribui e
alienado a esse mesmo sentido (PÊCHEUX, 1997, p. 53).
O campo da Análise do Discurso, ao contrário dos universos discursivos logicamente
estabilizados – tais como o das ciências da natureza, o das tecnologias e o dos sistemas
administrativos em seu funcionamento formal – é determinado pelo campo dos espaços
discursivos não estabilizados logicamente, nos domínios do filosófico, do sócio-histórico, do
político ou do estético, “portanto também dos múltiplos registros do cotidiano não
estabilizado” (PÊCHEUX, 1997, p. 53).
A Análise do Discurso e a arte pop aproximam-se na questão da aproximação e
desestabilização do cotidiano. A arte pop, enquanto nova sensibilidade estética, rejeita a
crença de que arte e vida sejam esferas separadas da experiência com pouco ou nenhum
contato. Nas suas apresentações utiliza uma linguagem próxima da propaganda e mantém
diálogo com a cultura de consumo, desafiava as hierarquias tradicionais da expressão artística
e chamava atenção para a estética do descartável. Utilizava recorte e colagem de revistas de
circulação de massa, denominava-se o continuum belas artes-arte popular (MCCARTHY,
2002).
Contraditória, a arte pop providenciou uma linguagem que podia ser dirigida para
vários fins, seja celebrando a cultura comercial, seja protestando contra a guerra do Vietnam
ou contra o racismo – tema da obra a seguir Levante racial vermelho, de 1963. Nesta e na
obra de muitos artistas pop aparece uma dívida clara para com fontes fotográficas.
52
Assim como Warhol, Araújo transita da coluna social à pagina policial nas suas obras.
A artista mantém-se interessada nos gestos e nas posturas. Deixando em evidência, pelos
retoques, as mãos brancas dos policiais que seguram os braços negros da pessoa que está
sendo presa. Em diálogo, as obras apontam para diferentes posições-sujeito, problematizam
questões de dominação e de justiça social.
Na obra acima, a artista faz, também, uma intervenção no texto. Evidencia a sua
diagramação, o arranjo dos espaços, a disposição em blocos e colunas. Interroga a forma
como imagens e textos são vistos independentemente e dissociadamente nos jornais. O texto
adquire apenas função de preenchimento e textura, reafirma a força da imagem. A obra isola
texto e imagem para estabelecer ressignificações.
54
Richard Hamilton em seu ensaio For the finest art try Pop (1961) [Se quiser a mais
bela arte, experimente a Pop], afirma que o artista da vida urbana do nosso tempo é
inevitavelmente um consumidor de cultura de massa e potencialmente um contribuinte para
ela; Andy Warhol chamava o seu ateliê de fábrica na conotação de um “negócio” como
qualquer outro (MCCARTHY, 2002, p. 26). Tanto Hamilton, quanto Warhol não negavam o
seu pertencimento à cultura contemporânea e à ideologia dominante. Não pensavam a si
próprios como pertencentes a uma confraria sagrada, acima dos outros mortais. Viam-se como
homens contemporâneos produzidos e produzindo no seu tempo. Abaixo, uma obra
importante obra de Hamilton:
Figura 18 – Richard Hamilton. O que exatamente torna os lares de hoje tão diferentes, tão atraentes? 1956
Segundo Lucie-Smith (2000) Esta é a primeira obra reconhecida como arte pop na
Grã-Bretanha. Foi produzida para uma mostra intitulada “Isto É Amanhã”, na Whitechapel
Art Gallery, em 1955.
Trata-se de uma colagem que contribuiu para apresentar uma nova sensibilidade
estética, que envolve os temas principais da arte pop. O pôster é formado principalmente por
anúncios recortados de revistas populares. Trata-se de um material novo que passa a ser
reconhecido e apropriado pelo artista. A obra exalta as tecnologias recentes do pós-guerra,
56
S a
a’ A
Figura 20 – Esquema L de Lacan
S a
a’ A
Mercadoria PP (Imagem do “bom sujeito” famoso, rico, bem-sucedido)
Objeto da PP Mercadoria falada, nomeação da mercadoria
(atributos, funções, resultados)
Freud iniciou sua investigação pelo sintoma, tratando as histéricas, cujo sintoma
denuncia o estado daquelas mulheres que não podiam se expressar na sociedade conservadora
e autoritária da época. Tratava-se do sujeito inibido histórica e culturalmente determinado.
Cujos sintomas estavam vinculados à impossibilidade de renunciar ao objeto primário e
encontrar outra forma de existência. Por conta disso, a “doença” parece estar ligada a essa
impossibilidade de renúncia a esse desejo originário. Esta demanda provoca inibição e
angústia no homem enquanto um animal alijado da natureza, que perdeu o instinto e com isso
foi jogado na incerteza e no conflito.
Lacan constrói o esquema L do caso Dora, um dos casos clássicos de histeria,
trabalhado por Freud e relido por Lacan no Seminário IV (Relação de objeto):
60
S a
a’ A
Sra. K pai da Dora
Figura 22 – O esquema L do caso Dora, segundo Lacan
O esquema L é uma topologia onde o sujeito (S) se estende entre a e a’, num véu de
miragem narcísica que serve para sustentar tudo o que nela venha se refletir por seus efeitos
de sedução e captura. O desejo da histérica é o desejo de desejo, cujo desejo é o desejo do
Outro. A histérica trata de se colocar na posição de substituir o Outro (o pai) nesta função do
desejo: ela esvazia sua relação com o objeto (Sra. K), fomentando o desejo do Outro por este
objeto. Ela se empenha em sustentar o amor deste outro (Sra. K) que é seu verdadeiro objeto –
situação bastante ambígua Dora sustenta o desejo de seu pai pela Sra. K e mascara seu objeto
que é a Sra. K., portadora de sua questão: O que é uma mulher?
Na clínica médica, o sintoma está ligado à doença e é sempre patológico; para a
psicanálise, ele é o início da cura e indica a presença do sujeito do inconsciente. O sintoma
para a psicanálise não diz respeito a uma doença orgânica, mas a uma formação do
inconsciente. A psicanálise por sua vez, tem sua origem na clínica médica, porém no
momento em que se diferencia como outro campo de saber, ela rompe com essa clínica. E o
sintoma é sintoma desta divergência.
Foucault (2006), em O nascimento da clínica, descreve o sintoma como a primeira
transcrição da doença, na sua condição de inacessibilidade. Para Foucault, o sintoma é uma
linguagem que torna visível o invisível da doença. O sintoma para o médico é signo, que
representa o significado de uma doença. Para o psicanalista e para o analista do discurso o
sintoma é significante.
Freud, em Inibição, sintoma e angústia (1925) explica o processo de produção do
sintoma:
61
Um sintoma surge de um impulso que foi afetado pelo recalque. Se o ego, fazendo
uso do sinal de desprazer, atingiu seu objetivo de suprimir inteiramente o impulso,
nada saberemos como isso aconteceu. Podemos apenas descobrir algo a esse respeito
pelos casos nos quais o recalque em maior ou menor grau, tenha falhado. Nesse
caso, a posição é que o impulso encontrou um substituto apesar do recalcamento,
mas um substituto muito mais reduzido, deslocado e inibido, e que não é mais
reconhecido como uma satisfação. E quando o impulso substitutivo é levado a
efeito, não há qualquer sensação de prazer; sua realização apresenta, ao contrário, a
qualidade de uma compulsão (FREUD, 1976j, p. 116).
Lacan (1998b), em seu texto Do sujeito enfim em questão, aborda uma dimensão do
sintoma que é a do retorno de uma verdade que vem perturbar a “boa ordem”. Nesse sentido,
ele reconhece na crítica de Marx ao capitalismo, os artifícios ridiculamente travestidos da
razão no retorno materialista da verdade que assume forma e corpo na mais-valia. Não se trata
do status de signo, de representação, mas da apresentação de algo que retorna, como registrou
Freud. Lacan conclui que o sintoma só pode ser lido na ordem do significante, não do
significado. O significante só tem sentido na sua relação com outro significante e é nessa
articulação que reside a verdade do sintoma:
Sob este aspecto, a indagação de Zizek é pertinente: “Como foi possível que Marx, em
sua análise do mundo das mercadorias, produzisse uma noção que também se aplica à análise
dos sonhos, aos fenômenos histéricos e assim por diante?” (ZIZEK, 1996, p. 297).
Ele mesmo conclui que ambos, Marx e Freud, evitaram o fascínio pelo “conteúdo” e
se preocuparam com a forma: como os pensamentos adquiriram essa forma no sonho? Por que
o trabalho humano só consegue se afirmar na forma-mercadoria? O que passou interessar para
Freud eram os mecanismos de deslocamento e condensação que trabalham a forma do sonho
(na elaboração do conteúdo manifesto que é apresentado). O importante não é só “descobrir”
o conteúdo latente, mas reconhecer o que se produziu neste intervalo entre o latente e o
manifesto.
Freud busca explicar esse fenômeno. Preocupa-se em superar a ideia de que o sonho é
uma confusão sem sentido, simples interferência de processos fisiológicos. Inicialmente, é
preciso dar um passo em direção à abordagem hermenêutica e admitir que o sonho veicula
uma mensagem encoberta que necessita ser revelada através de um método interpretativo.
Depois, é preciso abandonar esse centro de significação de sentido oculto e profundo do
sonho e buscar o processo ao qual esses pensamentos oníricos latentes foram submetidos.
Zizek (1996) compara os esforços de Freud com os de Marx, na análise do “segredo da
forma-mercadoria”, onde ele faz uma articulação semelhante, em dois tempos. Primeiro
devemos descartar a aparência de que o valor estipulado para uma mercadoria é um mero
acaso, simples consequência da lei de oferta e procura. Em seguida, é preciso admitir o
“sentido oculto” por trás da forma-mercadoria, o que expressa essa forma; devemos penetrar
64
O que está sendo questionado é que os equivalentes não são equivalentes como dissera
Saussure (2004): uma palavra é o que a outra não é, não existem equivalentes na língua.
Trata-se de uma estrutura de ficção que busca impor-se como “natural” e lógica. É o grande
Outro da cultura produzindo o imaginário do sujeito. O “equivalente” é imaginário no sentido
de cristalizar uma imagem do processo. O equivalente nunca é equivalente.
Nessa linha, instala-se um certo Universal ideológico (o da troca equivalente e
equitativa) e uma troca paradoxal particular (a da força de trabalho por seus salários) que,
como um equivalente, funciona como a própria forma de exploração. A universalização da
produção de mercadorias acarreta um sintoma, que funciona como sua negação interna. Marx
(1983) afirma em O Capital, que esse elemento irracional é o proletariado, desrazão da
própria razão, engendramento arbitrário do próprio capitalismo.
Pêcheux (1975) contribui com esta questão, referente ao estudo das práticas
repressivas ideológicas, onde se esforça por compreender o processo de resistência-revolta-
revolução:
Se a revolta é contemporânea da linguagem como diz Pêcheux, (as obras que estou
analisando também confirmam isso) e se o inconsciente é mesmo efeito de linguagem e se o
tratamento só é possível por meio da palavra, não seria a língua que determina o destino
do sintoma? Esta é uma questão que Lacan se coloca em seu Seminário XXIII: O sinthoma
(1975-1976). Trata-se de uma questão interessantes para nós, analistas do discurso. Penso que
enriqueceria a reflexão, o diálogo entre o sintoma e a sintaxe.
Leandro Ferreira (2000), ao abordar a sintaxe como o lugar de observação do discurso,
trabalha a interface sintaxe/discurso. Conclui que é através da sintaxe como espaço de
mediação entre a forma e o sentido que se dá o acesso à ordem da língua e à materialidade
66
linguístico-histórica. É nesta zona que se situam os fatos linguísticos que forçam seus limites
e desafiam as suas próprias regras.
Então, o que é possível dizer sobre o desejo que o sintoma concorda em inibir e
transformar? Para isso, a língua precisa encontrar o equívoco, o melhor equívoco. Para tanto,
a língua não pode ser um sistema dedutivo fechado, livre de lacunas, livre de excessos, mas
capaz de rupturas. Isso acontece porque a língua é um sistema sintático intrinsecamente
passível de jogo, afirma a autora:
Está claro que todo ato falho é um discurso bem-sucedido, ou até formulado com
graça e que no lapso é a mordaça que gira em torno da fala, e justamente pelo
quadrante necessário para que um bom entendedor encontre ali sua meia-palavra
(LACAN, Escritos, p. 269, o grifo é meu).
Na obra apropriada da PP e recriada pelo artista, é a viseira que gira sobre a imagem
e mostra Outra-coisa e permite que o leitor encontre ali a sua meia-imagem, a imagem não-
toda, capaz de ressignificá-lo momentaneamente. Neste desenfreamento do significante,
encontramos o sujeito em formação discursiva heterogênea. As obras de arte que estão em
análise me fazem pensar em produções novas que resultam dos efeitos subversivos da
“condensação” e do “deslocamento” podem ser entendidas como emergências significantes do
inconsciente que se estruturam em outra linguagem.
A sintaxe pode constituir uma forma de acesso importante para o analista do discurso e
para o psicanalista, pois não há língua sem sintaxe e a organização das palavras não é jamais
aleatória. O próprio Pêcheux (1975) “brinca” com seu estilo e reafirma seu esforço intelectual
e afetivo para expressar um pensamento que perturba “a boa ordem”:
67
Parece-me, hoje, que Les Verités de La Palice roçaram essa questão [dos estudos das
práticas repressivas ideológicas] de uma maneira estranhamente abortada, pelo viés
de um sintoma recorrente que soava de maneira oca: estou querendo designar o
prazer sistemático, compulsivo (e incompreensível para mim) que eu tinha em
introduzir a maior quantidade possível de chistes – o que, pelo que sei, acabou por
irritar mais de um leitor (PÊCHEUX, 1997b, p. 303).
No tocante às inibições, podemos então dizer, em conclusão, que são restrições das
funções do ego que foram ou impostas como medida de precaução ou acarretada
como resultado de um empobrecimento de energia; e podemos ver sem dificuldade
em que sentido uma inibição difere de um sintoma, porquanto um sintoma não pode
mais ser descrito como um processo que ocorre dentro do ego ou que atua sobre ele
(FREUD, 1976j, p. 111).
Era – percebo agora – o único meio de que eu dispunha para expressar, pela guinada
do non-sens no chiste, o que o momento de uma descoberta tem fundamentalmente a
ver com o desequilíbrio de uma certeza: o chiste é um indicador determinante pois,
sendo estruturalmente análogo ao caráter de falta do lapso, acaba por representar, ao
mesmo tempo, a forma de negociação máxima com a “linha de maior inclinação”, o
instante de uma vitória do pensamento no estado nascente, a figura mais apurada de
seu surgimento. Isso reforça que o pensamento é fundamentalmente inconsciente
(“isso [ça] pensa!”), a começar pelo pensamento teórico (e o “materialismo teórico
de nosso tempo” não pode, sob risco grave, permanecer cego a esse respeito). Em
outras palavras, o Witz representa um dos pontos visíveis em que o pensamento
teórico encontra o inconsciente: o Witz apreende algo desse encontro, dando
aparência de domesticar seus efeitos (PÊCHEUX, 1997b, p.303).
A citação acima pode ser um pouco longa, mas nada dela eu consegui retirar. Talvez
por dizer tão bem da certeza da existência do inconsciente. Pêcheux narra o seu trajeto na
Outra cena. Nesse diálogo, impossível não registrar as palavras de Lacan:
A Outra cena, essa Outra-coisa, esse outro lugar, dimensão do Alhures presente para
todos e vetado para cada um, “que sem que se pense nisso, e portanto, sem que
qualquer um possa pensar estar pensando melhor que outro, isso pensa. Isso pensa
um bocado mal, mas pensa com firmeza, pois foi nesses termos que ele (Freud) nos
anunciou o inconsciente: pensamentos que, se suas leis não são de modo algum as
mesmas de nossos pensamentos de todos os dias, nobres ou vulgares, são
perfeitamente articulados” (LACAN, 1998, p. 554).
É por circularem em uma Outra cena que Pêcheux, Freud e Marx pensam ser possível
a mudança: a revolta e a revolução. Esta Outra cena que consiste na existência do
inconsciente, tanto pode viabilizar o assujeitamento, quanto disponibilizar e construir
artefatos de resistência.
Lacan em Escritos (1998b, p. 267-8), comenta que o sonho funciona como uma
charada, no sentido de enigma. Afirma que o sonho tem a estrutura de uma frase: “Porém, é
na versão do texto que o importante começa, o importante de que Freud nos diz está dado na
elaboração do sonho, isto é, em sua retórica”.
Lacan aponta que Freud nos ensina a ler o discurso onírico que o sujeito modula com
suas intenções ostentatórias ou as demonstrações dissimuladoras ou persuasivas, retaliadoras
ou sedutoras:
no mesmo nível de suas outras propriedades efetivas “naturais” que constituem seu valor de
uso. A essas reflexões, mais uma vez, Marx acrescentou uma nota muito interessante:
Tais expressões das relações em geral, chamadas por Hegel de categorias reflexas,
compõem uma classe muito curiosa. Por exemplo, um homem só é rei porque outros
homens colocam-se numa relação de súditos com ele. E eles, ao contrário, imaginam
ser súditos por ele ser rei (MARX, 1983, p. 63).
A a
Quem é ele para que eu lhe fale assim?
Quem sou eu para lhe falar assim?
a’ B
Quem sou eu para que ele me fale Quem é ele para que me fale assim?
Portanto, “ser rei” é um efeito da rede de relações sociais entre um “rei” e seus
“súditos”. Os súditos imaginam que ser rei é uma propriedade natural da pessoa de um rei. E
esse é o desconhecimento fetichista para os envolvidos nesse vínculo social. O rei só é rei
porque os súditos são súditos e dispensam ao rei o tratamento de rei.
Zizek (1996) analisa duas modalidades de fetichismo: nas sociedades capitalistas e nas
sociedades feudais. Nas sociedades capitalistas onde predomina a produção e a competição, as
relações entre os homens não são fetichizadas. O que pode ser constatado é o fetichismo da
mercadoria. As relações entre as pessoas “livres” para ser o que quiserem e para fazer o que
quiser, são relações egoístas onde cada um segue os seus interesses. O modelo dessas relações
não segue o padrão de dominação-servidão, já que são pessoas que gozam de “liberdade” e
“igualdade”. Seu modelo é a troca mercantil, livre do fardo da veneração ao Senhor e da
proteção do Senhor para com o escravo. As relações interpessoais são relações utilitárias, de
interesses.
As duas formas de fetichismo, portanto, são incompatíveis: o fetichismo da mercadoria
e o fetichismo do Senhor. O recuo do Senhor no capitalismo mostra-se apenas como um
deslocamento, como se a desfetichização das relações “entre os homens” fosse paga com o
fetichismo da mercadoria. O lugar do fetichismo apenas se desloca das relações
intersubjetivas para as relações “entre coisas”. As relações sociais decisivas, as de produção,
deixam de ser imediatamente transparentes, como o eram relações do Senhor com seus servos.
Elas passam a se disfarçar sob a forma de relações sociais entre coisas, entre os produtos do
trabalho.
Nesse raciocínio, considerando o mecanismo de deslocamento na produção das novas
relações sociais, descobre-se o sintoma à maneira de Marx na passagem do feudalismo para o
capitalismo: as relações de dominação e servidão continuam existindo, mas são recalcadas.
Existe um mediador nas relações sociais capitalistas que disfarça as relações de dominação e
servidão – que é a mercadoria.
A imagem abaixo é uma das obras de Rosenquist. Ele produz imagens enormes, mas
fragmentadas. As várias partes são reunidas, formando um padrão próximo ao abstrato
(STANGOS, 2000, p. 163):
72
Nos anos de pós-guerra, era comum que as letras da música pop e do rock exaltassem
os carros, no Brasil, fez muito sucesso Meu calhambeque, de Roberto Carlos. Dirigir um carro
estava associado à iniciação e à potência sexual. Trata-se de uma imagem dividida em três
planos: na parte superior, a grade estilizada de um Ford modelo 1950; na parte inferior, o
espaguete com molho de tomate, provavelmente, enlatado de colorido enjoativo em menção à
qualidade inferior dos alimentos produzidos em massa. Na parte central da obra, entre o
espaguete instantâneo e o carro glamouroso está um casal encenando um romance
hollywoodiano e insinuando que os americanos fazem sexo com o carro e em seus carros.
Essas relações mútuas que se disfarçam sob a forma de relações sociais entre coisas,
deixa escapar na imagem a opressão e a supressão do casal pela pressão das mercadorias: o
automóvel e o espaguete, entre sofisticação e massificação. Talvez seja possível fazermos
uma aproximação com o sintoma histérico que trata de substituir o Outro nesta função do
desejo. O desejo na histeria e o desejo no capitalismo é o desejo de desejar.
Numa base sócio-histórica, a imagem acima funciona como metáfora do modo de
viver e de amar de uma classe social, uma forma de uso da relação amorosa motivada pela
valorização da sensualidade humana. O valor de troca da mercadoria e libido amolda-se, os
meios de expressão dos sentimentos humanos tornam-se valiosos, custando também uma
fortuna. O prazer se submete à mercadoria e o sujeito que goza àquele que capitaliza.
Conforme afirma Marx nos manuscritos parisienses: “Toda pessoa especula sobre a
73
possibilidade de criar no outro uma nova necessidade, a fim de obrigá-lo a um novo sacrifício,
de impingir-lhe uma nova dependência, de induzi-lo a uma nova forma de prazer levando-o à
ruína econômica” (HAUG, 1997, p. 31).
A imensa e variada oferta de mercadorias e a onipresença dos apelos da publicidade,
emitidas a partir desta encarnação do grande Outro, chamado ideologia capitalista, e que tem
na mídia de massa seu porta-voz – produzem uma ilusão. A ilusão de que nada foi perdido e
que temos ao alcance da mão uma quantidade de objetos inusitados para simular o objeto
perdido do nosso mais-gozar, o objeto a (BUCCI; KEHL, 2004, p. 75).
Bucci e Kehl (2004) defendem a ideia de que as sociedades contemporâneas, as
sociedades do espetáculo tiveram que fazer um retorno para os corpos humanos e que a lógica
do fetichismo da mercadoria deslocou-se para o território de circulação das imagens,
associando alguns seres humanos “especiais”, “escolhidos” a mercadorias:
Para Andy Warhol, autor da frase no futuro todos terão seus quinze minutos de fama
(MCCARTHY, 2002), a fama é geralmente uma imposição ambígua, uma configuração
infeliz de eventos que confirma a vulnerabilidade humana como ele registra em Dezesseis
Jackies (1964). Inclui entre as imagens da primeira-dama a expressão de sofrimento após o
assassinato do marido e presidente. A invasão de privacidade é o preço da fama,
transformação imposta pela revolução da informação no pós-guerra.
74
Como lembra Rivera (2002), o “eu” está irremediavelmente fragmentado após Paul
Cézanne, pintor francês que desestabilizou a ordenação “natural” do espaço visual na pintura,
e com Freud, que de maneira complementar coloca as manifestações do inconsciente no
centro de sua investigação em detrimento da consciência e da razão. Acrescentaria, ainda, ao
espelho fragmentado da Arte e da Psicanálise, um outro espelho em cacos que é o da Análise
do Discurso. Michel Pêcheux (1997b, p. 152) afirma que o homem é um animal ideológico,
portanto que “a ideologia é eterna” – enunciado que faz eco à expressão de Freud: “o
inconsciente é eterno”. Onde o sujeito não é apenas um “suporte” da ideologia, embora não
possa viver fora dela, mas pode se deslocar de um domínio de saber para outro.
76
lugar de interstício, que oscila entre a ideia de “autonomia” e a ideia de “servidão” ao Outro
(aqui, trata-se do Outro da cultura, da ideologia). Na “servidão” é a ausência de palavras o que
se impõe ao sujeito. Na perspectiva da “autonomia” ele pode falar do seu desejo de fazer-se
segundo o Outro e pelo Outro, inscreve-se, assim, o sujeito-falante. A impossibilidade de ser
do sujeito o faz enfrentar sua existência duplamente exposto ao Outro: Esse Outro como
simbólico que impõe o desejo e como o único capaz de responder a esse desejo. Assim, a
sujeição é inerente ao fato da estrutura do sujeito falante, ou seja, não existe a independência
suposta entre sujeito e objeto. A fala é a comunicação de um saber, por isso, ela coloca a
questão da verdade para o inconsciente, que é o lugar de onde ela se origina. E Lacan (1954)
se interroga sobre o que é a fala:
Uma fala só é uma fala à medida que alguém acredite nela [...]. A fala é
essencialmente um meio de ser reconhecido. Ela está na frente de qualquer coisa que
lhe esteja por trás. E, portanto, ela é ambivalente e absolutamente insondável. Isso
que ela diz é verdade? Ou será que não é verdade? É uma miragem. É esta miragem
primeira que lhe assegura que você está no campo da fala (LACAN, 1975, p.127, o
grifo é meu).
No momento em que Lacan aborda a fala, ele condiciona à sua existência o olhar e a
imagem, na expressão “miragem”. Parece impossível falar sem a existência anterior de uma
estrutura de ordem imagética, que retorna no campo da fala, adquirindo a dimensão do
ficcional. Para haver leitura é preciso que haja o registro anterior de uma imagem. Essa
imagem, não é imagem pura, já que convoca a fala, exige significação. Para a análise do
discurso, a significação só pode ser dada na história, no modo como os sentidos são
produzidos e circulam. O que me interessa no presente estudo é a exposição do sujeito à
opacidade da imagem da publicidade/propaganda e a relação desse sujeito com essa
materialidade simbólica e os processos de significação diversos que podem advir.
O gesto do sujeito na posição-artista é determinado pela história da arte e pelo
dispositivo teórico-técnico-metodológico que a arte oferece. Ao passo que o gesto do sujeito
na forma-sujeito consumidor (tomado aqui como o sujeito universal “S” na ideologia
capitalista) é determinado pelo dispositivo ideológico dominante com seu efeito de evidência:
comprar. Nos dois gestos existe mediação. Porém, é a mediação da posição construída pelo
artista ao trabalhar a questão da exterioridade e historicidade que interessa neste estudo.
O que se espera da mediação através da linguagem acionada pelo dispositivo histórico-
teórico-metodológico da arte, é que ela produza um deslocamento e, assim, permita ao sujeito
na posição-artista trabalhar as fronteiras das formações discursivas enunciadas pela
78
publicidade/propaganda e pelas artes visuais. Em outras palavras, que ele entre em relação
crítica com o conjunto complexo de formações discursivas e abale o Sujeito universal da
forma-sujeito consumidor.
Isto não quer dizer que o artista tenha uma posição neutra em relação aos sentidos de
sua obra. Ao contrário, ele está sempre afetado pela interpretação que o dispositivo histórico-
teórico-metodológico instala e que marca uma posição em relação a outras posições. O que
observo é que esse dispositivo de que o sujeito em posição-artista dispõe e que está em uso,
portanto, em aberto, é capaz de deslocar a posição-sujeito. Esse deslocamento da posição-
sujeito se efetiva no trabalho sobre a opacidade da imagem, na sua não-evidência e com isso,
a mediação sujeito-imagem adquire novos sentidos.
No processo de identificação com a forma-sujeito consumidor, o sujeito se inscreve
em uma formação específica para que o seu gesto de consumo tenha sentido e isto lhe parece
como “natural”. Já, a posição-artista, caracteriza-se pela possibilidade de habitar no
entremeio, num espaço deslocado que pode sugerir outras relações visíveis entre diferentes
sentidos. Torna sensível a imagem ao expô-la ao equívoco e torna o sentido suscetível de
tornar-se outro.
O sujeito na posição-artista elabora as suas Séries a partir da imagem à deriva: no
deslize e no efeito metafórico para encontrar um outro na sociedade e na história. Busca
estabelecer uma relação, o encontro com uma alteridade. Marca a existência de uma certa
distância que abre para outras possibilidades de se deslocar do sujeito.
Nessa pesquisa, pretendo indagar os gestos de interpretação que trabalham na imagem
transformada/descontinuada da PP, nas Séries que estão constituindo os sentidos e os sujeitos
em suas posições.
No caso desse estudo, o sujeito na posição-artista é o sujeito na berlinda, com certa
autonomia, que se apropria da ambivalência da imagem e “fala” sobre ela e através dela, por
meio de sua potencialidade de intervenção metafórico-poética estilística. Oferece o seu
testemunho plástico e empreende uma linguagem incompreensível, na perspectiva do
consumo e da publicidade, formação discursiva com a qual passa a se contra-identificar, já
que a mercadoria por si só exerce o seu fascínio. Na sociedade contemporânea, antes de
sermos cidadãos, somos “consumidores”. O sujeito na posição-artista é, pois, o mensageiro
evanescente que circula entre um espaço que se abre ao gozo convidativo do consumo e às
possibilidades de produzir discursos sobre isso. A produção das Séries consiste em poder
desalojar-se de uma posição, sair de um lugar fixo para poder ocupar diferentes lugares. É
79
Ela [a formação discursiva] passa a ser dotada de fronteiras porosas, que permitem
que outros saberes provenientes de outro lugar, de outra FD nela penetrem, aí
introduzindo o diferente e/ou o divergente, que fazem com que esse domínio de
saber se torne heterogêneo a si mesmo (INDURSKY, 2008, p. 14).
consumidor. Desse modo, é a ideologia que está designando “o que é” e “o que deve ser a
imagem”, cujo sentido é dependente do “todo complexo das formações ideológicas”,
conforme refere Pêcheux (1997, p. 160). É o complexo de formações ideológicas que está
designando o que é e o que deve ser a imagem.
Portanto, o sentido não existe em si mesmo, isto é, a “obra de arte” e a “peça
publicitária” são determinadas pelas posições ideológicas que estão em jogo. E também, no
modo como são produzidos o enquadre, o corte e o foco sobre um mesmo tema, o qual muda
de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que fazem uso da imagem. O que quer
dizer que a imagem adquire sentido em relação a essas posições, isto é, em relação às
formações ideológicas como foi mencionada acima, nas quais essas posições se inscrevem. É
pertinente, aqui, o conceito de formação discursiva, do ponto de vista de Pêcheux:
O sentido que Pêcheux atribui à “exposição” talvez não seja, exatamente, o mesmo de
uma “exposição artística”. Mas, posso tomar as Séries enquanto uma expressão que adquire
sentido na formação discursiva na qual são produzidas. Em relação à materialidade do
discurso e do sentido, Pêcheux complementa: “[...] os indivíduos são ‘interpelados’ em
sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam
‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes” (PÊCHEUX, 1997b,
p. 161).
Transpondo para o meu objeto de estudo, o sujeito na função-artista é interpelado e
convocado a se expressar na linguagem da formação discursiva que o representa, através da
arte contemporânea. A linguagem que lhe é própria não é a fala, é a imagem. Portanto, de
ordem visual, trata-se de uma imagem de base fotográfica, que, em duas das três séries,
apresenta-se enquanto imagem mista e heterogênea, associada à pintura. Os artistas, enquanto
sujeitos de seu discurso, ao abordarem as peças publicitárias produzidas em outra formação
discursiva, o fazem a partir de sua formação ideológica, materializada através da arte visual.
As séries artísticas, corpus deste estudo, são transmutações fotográficas dos conteúdos
cotidianos como meio pelo qual o artista apresenta “seu mundo”. Utiliza-se de objetos
apropriados que passam a ser os seus próprios objetos com qualidades e propriedades
84
específicas. Sem esquecer que, para a análise do discurso, a “atividade criadora” está
vinculada à ideia de que a realidade se torna dependente do pensar e do imaginar, enquanto
prolongamento do idealismo próprio à forma-sujeito. Por exemplo, a Mona Lisa de Da Vinci,
a Mona Lisa de Duchamp e o que estou chamando de a “Mona Lisa” de Goldgrub. Esse
“efeito poético” que faz olhar a obra, no caso, a imagem “tem como base a condição implícita
de um deslocamento das origens, deslocamento do presente ao passado, acoplado ao
deslocamento de um sujeito a outros, que constitui a identificação” (PÊCHEUX, 1997b, p.
168).
Acima, a modelo fotografada por Goldgrub apresenta gestos semelhantes à Mona Lisa
de Da Vinci na postura dos braços cruzados, sobrepostos, em ligeiro toque. A cabeça em
rotação. No caso da obra de Da Vinci é mais acentuada a torção do olhar do que da cabeça,
em desviante sutileza. O entorno se atualiza e Goldgrub apresenta a paisagem urbana e a
mulher que faz par com essa paisagem é a “mulher-edifício”. A mulher-edifício tem silhueta
de base perpendicular alongada, prismática e cilíndrica, numa edificação em torre. Ao passo
que a mulher-montanha de Da Vinci (figura 28) tem contornos em formato piramidal em
cenário de inspiração rural. No entanto, a diferença mais marcante está no contexto e nas
vestimentas, ou seja, é a dimensão social-histórica que distingue as duas mulheres uma em
formação ideológica de inspiração rural-feudal; a outra, na paisagem urbano-capitalista,
ambas apreendidas discursivamente pelos artistas.
86
Uma terceira e indispensável Mona Lisa se coloca entre as duas anteriores: a Mona
Lisa de Marcel Duchamp. O artista insere traços masculinos, cavanhaque e bigode, no rosto
feminino. Faz alusão ao andrógino através da combinação de características masculinas e
femininas e ambas estão diante do observador.
A obra de Duchamp se insere no movimento Dadá. Movimento artístico em reação à
Primeira Guerra Mundial que propõe uma volta ao começo, uma volta simbólica ao jogo
infantil e um rechaço às forças de destruição. A Mona Lisa de Duchamp é mais um objeto
fabricado, um de seus readymades que ele intitulou L.H.O.O.Q. Nesta obra, outorgou ao
objeto já existente outros sentidos. O título contém jogos de palavras em dois idiomas e é um
bom exemplo de condensação verbal, pois suas letras lidas em francês dizem Elle a chaud au
cul, “ela tem fogo no rabo”. Lido como uma só palavra, o título tem a pronúncia “LOOK”,
“olha”, uma ordem ao observador. Lido de trás para frente: “KOOL”, traduzido como
“fresco” (ADAMS, 1996). Trata-se de uma combinação de bissexualidade com bilinguismo.
Marcel Duchamp busca elementos na história da arte e com um toque de humor convoca o
espectador que olhe a imagem mais famosa do mundo e encontre a sua divisão, a sua
87
bissexualidade. Seu andrógino, como a Mona Lisa original, devolve o olhar insistente ao
observador estabelecendo o jogo entre o consciente e o inconsciente, o masculino e o
feminino, o eu e outro. Por incrível que pareça, neste mesmo ano de 1919, Freud escreve O
estranho, expondo o duplo que habita cada um de nós.
No ensaio A Obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin
(1992) expõe que com a técnica de reprodução, a legitimidade e a originalidade, próprias da
obra de arte, desaparecem dissipando o que ele denominou de aura. A aura seria a aparição
única de algo distante, por mais próxima que esteja. No caso, a Mona Lisa de Leonardo Da
Vinci teria a sua aura e esta estaria vinculada à soma de tudo o que desde a sua origem nela é
possível de ser transmitido, desde a sua duração material ao seu testemunho histórico. A
Mona Lisa de Da Vinci ao ser reproduzida por Duchamp faz esse testemunho histórico
vacilar, pondo em dúvida a autenticidade da obra. A reprodução técnica é um processo de
racionalização dessacralizador, aniquilador do mito. Redutora do significado mágico da arte
original, enquanto representação pretensiosamente transcendental.
Para Benjamin (1992, p. 79) na “era da reprodutibilidade técnica, o que vacila é a
autoridade da coisa, o que murcha é a aura”, diz ele. Reconhece que o processo é sintomático
e que ultrapassa o saber da arte. À medida que libera o objeto reproduzido da ditadura da
tradição para colocá-lo no lugar da ocorrência massificada. Ao permitir o acesso à
reprodução, possibilita que o reproduzido se atualize em cada um desses contextos.
Os processos de reprodução técnica colocam sob pressão a imagem que está sendo
reproduzida. O abalo da tradição e os movimentos de massa orientados para o consumo
constituem, por um lado a sociedade contemporânea em crise e, por outro, dizem respeito à
renovação da humanidade. Em relação à Mona Lisa de Duchamp, a sociedade machista e
patriarcal é posta em cheque pela ousadia do artista em “profanar” uma obra assim, tão
clássica e cultuada para aportar outros sentidos. Já a Monalisa de Goldgrub (nomeada desta
maneira por mim), vai ao encontro de quem a apreende, separa-se do apelo ao consumo e
(re)instaura o processo de contemplação. Embora não chegue a ser “aurática”, do ponto de
vista benjaminiano, a imagem amplia as possibilidades discursivas através da dinamicidade de
sua composição estética.
88
[...] se manifesta incessantemente e sob diferentes maneiras (lapso, chiste, ato falho)
no próprio sujeito, pois traços inconscientes do significante não são jamais
“apagados” ou esquecidos, mas trabalham sem cessar, na pulsação sentido/não
sentido do sujeito dividido (PÊCHEUX, 1997b, p. 243).
Leandro Ferreira (2004) retoma essa questão da falha do sujeito ao fazer a distinção
entre as duas disciplinas AD e psicanálise, situa o campo da AD como o campo dos sentidos,
reivindicando assim a ideologia, o sujeito, a língua e a história para o seu território. Enquanto
o campo da psicanálise é o inconsciente, por sua vez estruturado pela linguagem,
caracterizando o sujeito desejante. Quanto ao que é comum às duas áreas, a autora identifica a
falta como sendo o “passaporte”, “a via comum” de acesso aos dois “países”, reafirmando que
o sujeito se estrutura na falta. É a falta que permite o desdobramento do desejo e o
deslizamento dos significados na língua e no discurso.
Quanto à psicanálise, campo do saber postulado por Freud, tem como um dos
pressupostos principais que o eu não é o senhor em sua própria casa. Assim, dedica-se a toda
manifestação do sujeito que não interessa à razão: os sonhos, as associações livres, os lapsos,
os esquecimentos e os sintomas. Essas manifestações inconscientes são acolhidas na fundação
89
da Análise do Discurso, como lembra Michel Plom (2005), porém foi muito difícil para
Pêcheux aceitar isso que falha no campo do pessoal, do social e do político, o que muito
contribui para o seu precoce desaparecimento.
Na década de 50, Lacan empreende a releitura de Freud, propondo “retornar a Freud”
através da releitura do inconsciente com a conferência inaugural O Simbólico, o Imaginário e
o Real. No entanto, esse “retorno” é um retorno bem particular, já que o inconsciente de que
trata Lacan não vem de Freud, mas do estruturalismo. Onde a linguagem assume uma posição
central na estruturação da experiência social, enquanto modo de organização das relações na
construção de identidades e de diferenças. “Esse sistema linguístico que estrutura o campo da
experiência é exatamente o que Lacan chama de Simbólico” (SAFATLE, 2007, p. 43). Assim,
Lacan cunha a noção de inconsciente como um sistema de regras, normas e leis que definem o
que pode ser pensado: o inconsciente estruturado como linguagem. Segundo Safatle, é essa
relação com a linguagem que vai permitir a Lacan se livrar da noção psicológica de
inconsciente: “Daí porque Lacan distinguirá as ‘relações autenticamente intersubjetivas’ (que
ocorrem na confrontação entre sujeito e estrutura) e a intersubjetividade imaginária, própria à
relação entre o sujeito e o outro” (SAFATLE, 2007, p. 44).
Da mesma forma, na Análise do Discurso, existe por parte de Michel Pêcheux, a
necessidade de conceituar o sujeito a partir de uma teoria psicanalítica, porém não-subjetiva
da subjetividade, como refere Indursky:
O sujeito passa a ser concebido como aquele que é falado pelo inconsciente, como um
efeito de linguagem. O sujeito só pode falar a partir da estrutura que o determina, como se
fosse um Outro. No entanto, não pode objetivar a estrutura sob um ponto de vista que não seja
determinada por este mesmo Outro. O sujeito ao tentar distanciar-se das leis que o
determinam, já é um indicativo de estar marcado por elas.
O conceito de Outro em Lacan, remete ao sistema estrutural de leis que organiza
previamente a maneira como o outro (outros empíricos) pode se dar a conhecer para o sujeito.
O outro diz respeito aos fenômenos e o Outro diz respeito à estrutura. Em outras palavras, o
outro está sempre submetido/assujeitado ao Outro. Esse sistema estrutural de leis não é uma
lei propriamente normativa, não é uma lei que exprime claramente o que o sujeito deve e o
que não deve fazer. A Lei social de que fala Lacan busca estruturar o universo simbólico.
Organiza distinções e oposições que passam a ter sentido para o sujeito. Como por exemplo, a
Lei da estrutura de parentesco que determina vários lugares de pai, mãe, filho. Mas o que é
realmente ser pai? O sujeito pode ocupar esse lugar ordenado, mas nunca saberá realmente o
que significa esse lugar, o que ele deve fazer ou não fazer nesse lugar de pai.
Neste sentido, lembra Safatle (2007, p. 46) o inconsciente para Lacan não tem
conteúdos mentais, ele é vazio. No entanto, para explicar os sintomas, sonhos, atos falhos,
lapsos e tudo aquilo que é chamado de formações do inconsciente e que se apresenta de forma
tão diferente em sujeitos submetidos ao mesmo sistema de leis, Lacan admitirá uma
“gramática particular” chamada alíngua (lalangue).
A alíngua, enquanto uma gramática pessoal/privatizada é um conceito que une a
Psicanálise e a Análise do Discurso e que vai permitir ao sujeito, nos dois campos, um modo
particular de organização de seu conteúdo semântico, na qual constrói o significado,
condensa, desloca, relaciona, deforma e transpõe em imagens nos sonhos, na arte e na ciência.
Assim, o sujeito produz modos particulares de se inscrever socialmente e de ressignificar o
desejo.
Inconsciente e ideologia se encontram materialmente ligados na ordem significante da
língua, como afirma Pêcheux (1997b, p. 152): “a ordem da língua não coincide com a da
ideologia, mas ambas podem ser pensadas com relação ao registro do inconsciente”.
91
Sob este ponto de vista, Mariani (2008) observa uma correspondência estreita entre o
sujeito de Lacan e o sujeito de Pêcheux:
O sujeito não é um a priori: para a Análise do Discurso, o que se coloca como ponto
de partida é o Outro, o Outro da linguagem e da Historicidade (memória). Ora,
interessa para a Análise do Discurso é que ao falar, ao dizer “eu”, o sujeito se mostra
em sua inscrição na história e na língua, simultaneamente, pois diz “eu” a partir da
formação discursiva a qual se inscreve, se constitui. Ao mesmo tempo porque não
diz apenas de uma formação discursiva, e porque a contradição é constitutiva da
historicidade, o sujeito, ao dizer, (se) mostra em seu percurso no simbólico, no
deslizar dos significados sob os significantes (MARIANI, 2008, p. 147).
Freud expõe em O ego e o id (1923), que “o ego é antes de tudo uma entidade
corporal, não somente uma entidade de superfície, mas uma entidade correspondente à
projeção de uma superfície” (FREUD, 1976i, p. 40, o grifo é meu). Segue argumentando
que o ego é determinado pela projeção do corpo, pelas sensações do corpo, sensações
oriundas das zonas erógenas.
Neste caminho aberto por Freud, a ideia de eu parte do “corpo”, passa a ser abstraído
como “superfície” e vai se constituir em “projeção”. Parece-me que através deste
desdobramento do trajeto corpo-superfície-projeção ele retorna ao mais imediato da
experiência e faz da imagem uma primeira expressão empírica absoluta, manipula o eu como
um objeto do mundo, antes de um espelho representativo.
Por outro lado, se o eu é um corpo para além do bio, por isso corresponde à projeção
de uma superfície, ele não é apenas material, reduzido ao peso do orgânico, torna-se um real
convocado a ser imaterializado em imagem. O corpo passa a ser origem e suporte da imagem,
enquanto a base em que se inscreve a imagem. A relação imagem-suporte vai mais além da
superposição de um ao outro: é a peculiaridade da imagem mesma que está em jogo, ou
melhor, da miragem.
92
Essa extensão quase geométrica do eu proposta por Freud é retomada por Lacan em
seu Estádio do espelho (1966), onde expõe a quadratura imagética que é a captura pelo
espelho da imagem espacial do bebê, constituindo a ideia de eu, no registro do imaginário. O
estádio do espelho é um drama, cujo impulso interno vai da insuficiência para a antecipação.
Fabrica para o sujeito uma identificação espacial que vai desde as fantasias de uma imagem
despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade ortopédica. Armadura assumida de
uma identidade alienante, que marcará todo o seu trajeto pessoal, sua inscrição social.
Pêcheux (1969) elabora o conceito de formações imaginárias (PÊCHEUX, 1997a, p.
101), remetendo-se ao estádio do espelho de Lacan que funciona para produzir identificações,
como uma matriz simbólica em que a arena interna se precipita para sua muralha, criando
dois campos de luta: dos fragmentos internos com sua cercadura. A cercadura é o outro no
qual o bebê se vê refletido e delimitado. Trata-se da identificação primordial antes que a
linguagem lhe institua sua função de sujeito. Para Freud, em Psicologia de grupo e análise do
ego (1921), a identificação é anterior à condição de poder realizar uma escolha objetal, ou
seja, anterior à condição de reconhecer o outro como tal. Lacan nomeia esta condição fazendo
várias articulações da identificação primordial: eu sou o outro, o eu é um outro, o eu é diluído
na imagem do outro.
Essa matriz simbólica pode ser designada no campo freudiano pela noção de eu ideal
que daria origem às identificações secundárias. Mas, o ponto importante é que essa forma
situa a instância do eu, desde antes de sua determinação social, numa linha de ficção. Cabe
neste diálogo, a abordagem do conceito de formações imaginárias (PÊCHEUX, 1997a, p. 82)
que se manifestam no processo discursivo através da antecipação das relações de força e de
sentido. Na antecipação, o emissor projeta uma representação imaginária do receptor. A partir
dessa representação estabelece suas estratégias discursivas, num jogo espelhado dos sujeitos
com os lugares reservados na estrutura de formação social que determinam as condições de
produção discursivas, definindo o lugar ocupado pelos sujeitos no discurso.
Na presente pesquisa, as séries artísticas são discursos, enquanto linguagem
constituída na relação de forças entre as circunstâncias de sua apresentação da obra e o
contexto sócio-histórico-ideológico. Enquanto materialidade significante, as imagens se
oferecem ao olhar do analista do discurso através da dispersão de textos, na
interdiscursividade.
Para Pêcheux (AAD-1969), o discurso é efeito de sentidos entre A e B (sujeitos
ideológicos) com lugares determinados na estrutura de formação social. Esses lugares estão
representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo, porém
93
uma formação discursiva, com a qual o sujeito está identificado e que regula o que pode e o
que não pode ser dito.
Então, para Pêcheux, o discurso é uma prática social, da qual a AD exige
estranhamento daquilo que é posto como óbvio e “natural”, ao mesmo tempo em que
desconfia das origens, das causas e se detém no mecanismo de funcionamento dessa prática e
no processo de tal produção.
O esquecimento n.2 é da ordem do pré-consciente e do consciente, conceitos que
aparecem na obra de Freud – A interpretação de sonhos (1900) – para explicar a estruturação
do aparelho psíquico em três sistemas (inconsciente, pré-consciente e consciente). Essa
estrutura, também é denominada de Primeira Tópica, sendo mais tarde reformulada, mas
jamais abandonada.
O sujeito pode, portanto, penetrar na zona do esquecimento n.2, já que ela é regida
pelos sistemas pré-consciente e consciente e fazer um retorno de seu discurso sobre si mesmo
e reformulá-lo, aprofundá-lo e até, de certa forma, antecipar o seu efeito. É o lugar da
construção parafrástica, que permite a função-autor. Já, o esquecimento n.1, é da ordem do
inconsciente, cuja zona é inacessível ao sujeito, por isso constitutivo da subjetividade da
língua encontrando-se como objeto desse recalque o próprio processo discursivo e o
interdiscurso (PÊCHEUX 1997a, p. 177).
Dessa forma, os artistas das séries que estou analisando apropriam-se de imagens da
publicidade e retornam ao interdiscurso na posição-sujeito autor entre formações discursivas
distintas. É através dos enunciados veiculados pela publicidade e que são reformulados pela
arte que os textos se constituem, e muitas vezes, estão em relações de conflito. Esses artistas
articulam a linguagem para produzir uma suspensão do sentido na ideia que estava posta
anteriormente pela publicidade e re-apresentam a imagem.
Na obra acima, é mais o olho do que o olhar que está em questão. O olho da forma
como está colocado é mais uma peça de maquinaria, cuja luz se assemelha à luz dos faróis dos
carros e à luz das lâmpadas dos postes na cidade. Tem como suporte, não o rosto humano,
mas um bloco de cimento e ferro. É o olho digital em tela escura.
Presença do informe com a divisão do ver e do olhar e com formas geométricas no
jogo de sombra e luz em que aparece: massa de prédios e torres, massa de anúncios e letreiros,
massa de automóveis e, por fim, a massa humana situada na base da imagem. É a estratégia
do excesso que polui a imagem e aponta para o vazio. Os corpos indiferenciados, quase todos
98
PP
ARTE AD
Acima, uma imagem da série (Re)tratos de Bianca Araújo vem escutar aquilo que
ficou ausente na coluna social em meio às posturas rígidas, aos sorrisos estereotipados e às
roupas produzidas. Borrando a imagem, em direção à anamorfose, ela alcança uma certa
singularidade dos sujeitos, que foi perdida nas poses estanques e massificadas da matriz
especular veiculada no jornal, povoada de personagens empertigados de ostentação e domínio.
Observa-se essa esquize nas imagens das séries que têm sua origem na engenharia da
Publicidade/Propaganda e, no entanto, aquilo que é causa dessas imagens fracassa na imagem
recriada pela Arte Visual. O lado fechado da mensagem na publicidade solicita ao sujeito
comprometimento com uma situação não escolhida/alienante, opõe-se ao sentimento velado
do artista que trabalha nas fissuras que a imagem oportuniza e re-articula o desejo do sujeito,
num lugar inesperado, justamente ali, no arsenal, onde ele devia ser assujeitado. Retorna ao
recalcado que está no interdiscurso e refaz a trama da consciência.
Na medida em que o olhar contém o objeto a, pode vir a simbolizar a falta central do
sujeito, segundo Lacan (1964), o olhar é objeto a reduzido, por sua natureza a uma função
mobilizadora: “a esquize do sujeito é determinada pelo objeto a, objeto privilegiado, oriundo
de alguma separação primitiva, de alguma automutilação induzida pela aproximação mesma
do real” (LACAN, 1998a, p. 83).
Então, na relação escópica, ao ser olhado pela mãe e ao olhar-se nela, o olhar é o
objeto. Para existir o olhar, é preciso que haja fantasia, no olho orgânico não tem fantasia. A
fantasia depende da ilusão ficcional de eu, à qual o sujeito está ligado numa vacilação
essencial. O sujeito tenta acomodar-se a esse olhar, ele se torna esse olhar, esse ponto de ser
103
que se esvai com o qual o sujeito confunde o seu próprio desfalecimento. O sujeito não vê sua
possibilidade de existência fora do objeto a. A perda do objeto primordial exige reparo
imediato e constante, o que justificaria a presença magistral da ideologia.
A existência da imagem está vinculada a essa erotização do olhar, da visão, onde o
sujeito se esvai e se dissolve, dá-se a hemorragia do sujeito, ali onde ele se formata na
imagem completa. O fracasso do sujeito não poderia ser pensado enquanto vitória da
ideologia? Ali onde ele é transformado em objeto, mas onde ele pode retornar ao interdiscurso
e a si mesmo e reformular o discurso em posição de autor?
O sujeito se bascula à ação histórica transformante e, em torno deste ponto, ordena os
modos configurados da consciência de si, ativa, através de suas metamorfoses na história. “O
modo de minha presença no mundo é o sujeito” (LACAN, 1998a, p.81). Como negar que
nada do mundo me aparece senão em minhas representações? O mundo é atingido por uma
presunção de idealização, por uma suposição de só me entregar minhas próprias
representações. Segundo Lacan, representações são propriedades!
A psicanálise, a AD e a arte consideram a consciência como irremediavelmente
delimitada, e a instituem como princípio não só de idealização do sujeito centrado, mas de
desconhecimento. A consciência só conta na ficção do texto incompleto, a partir do qual se
tenta re-centrar o sujeito como falando nas lacunas mesmas daquilo em que, à primeira vista,
ele se apresenta como falante.
A jovem vem a furo no bloco de concreto e abre uma porta. Através de suas janelas
abertas, semi-abertas e das áreas com espaços vazados, o prédio aparece como uma rede com
espaços vazios e tramas. Tentativa em dar centralidade ao sujeito. A torção da cabeça assinala
105
Fragmento
Vazio Resto
Esses fragmentos, dispostos sobre uma tela plana, recebem uma sobreposição de papel
perfurado, pintado com verniz. Os furos desestabilizam a imagem, concedendo-lhe
volatilidade. Ao mesmo tempo em que aumentam a espessura da imagem, deixando
transparecer as sucessivas camadas do trabalho pelo efeito da colagem. Remetem à ideia do
fundo falso ou do fundo duplo pelo efeito vazado dos furos. Esses resíduos deslocados
dinamizam os fragmentos e os furos, afirmam a presença do vazio que a
publicidade/propaganda tenta preencher e completar. Torna Permeável aquilo que deveria ser
cheio e em bloco.
ao ser desatado um, os outros dois não se sustentam. Sempre muito próximo, esse objeto a, se
impõe a nós, aparece no nosso dia-a-dia, na arte, na clínica e na nossa prática como analistas
do discurso. A Série Perto demais vem para colocar à prova esse objeto e fazer valer a sua
invenção – cuja topologia dá condições de aproximação da complexa existência do sujeito, de
suas estratégias e de sua estilística – onde esta trama feita de furos afirma uma coexistência
solidária das diferenças entre a Psicanálise, a Arte e a Análise do Discurso, na abordagem do
vazio inerente ao sujeito, nesses três campos que circundam a linguagem.
111
− Primeiro pensamento: Meu amigo R. era meu tio. Tinha por ele grande sentimento
de afeição.
− Primeiro quadro: Vi seu rosto diante de mim, algo mudado. Era como se tivesse
sido repuxado no sentido do comprimento. Uma barba amarela que o circundava,
se destacava de maneira especialmente nítida.
processo de construção do sonho: Sob este ponto de vista, o sonho que recordamos quando
acordamos seria apenas um remanescente fragmentário da elaboração do sonho total.
A obra, na figura 41 é uma litografia sobre papel, com Jagger e Fraser algemados,
vestidos de maneira formal para o julgamento e perseguidos pelos paparazzi. Esta imagem
condensa a coluna social e a página policial. Como refere McCarthy (2002), a obra trata do
uso e exploração financeira da imagem dos jovens músicos pela mídia. Ao mesmo tempo,
denuncia a criminalização dos movimentos de vanguarda, tais como a música pop, a liberdade
sexual e a arte pop.
Aqui eles [os sonhos] atuam como o pintor que num quadro da Escola de Atenas ou
do Parnaso, representa num único grupo todos os filósofos ou todos os poetas. É
verdade que jamais de fato se reuniram todos num salão ou num único cume de
montanha; mas, certamente, formam um grupo no sentido conceitual (FREUD,
1976a, p. 334).
A incapacidade dos sonhos de expressarem essas coisas [ideias, desejos] deve estar
na natureza do material psíquico do qual são formados os sonhos. As artes plásticas
da pintura e da escultura vivem, realmente sob uma limitação semelhante quando
comparadas à poesia, que pode fazer uso da palavra; e mais uma vez aqui o motivo
de sua incapacidade reside na natureza do material que estas duas formas de arte
manipulam em seu esforço para expressar alguma coisa (FREUD, 1976a, p. 332).
Ainda em seu texto A interpretação dos sonhos (1900), ao mesmo tempo em que
Freud apresenta a coletânea de exemplos de condensação, ele identifica outro mecanismo, não
menos importante, na construção do sonho. Trata-se de ver que os elementos pictóricos do
sonho estão distantes do pensamento onírico. Esses elementos apresentados fazem outra
conexão divorciada de seu contexto e consequentemente transformam-se em algo estranho.
Este funcionamento dos sonhos ele denomina deslocamento: “Esta ulterior relação entre os
pensamentos oníricos e o conteúdo [pictórico] do sonho, inteiramente variável como o é, em
seu sentido de direção, é calculado em primeiro lugar para criar assombro” (FREUD, 1976a,
p. 326).
Nos processos psíquicos da vida cotidiana percebemos, às vezes, que uma entre várias
ideias foi escolhida e adquire força. A ideia escolhida manifesta um grau particular de
interesse. Porém, no curso da formação de um sonho, não é assim que acontece. No caso dos
diferentes elementos oníricos, um valor dessa natureza não se mantém ou é relegado. No
curso de um sonho esses elementos marcantes, como a “nitidez da barba do tio”, por exemplo,
nada tem a ver com o que Freud chama de “desejos ambiciosos”. No sonho, esses elementos
particulares, carregados de intenso interesse, podem ser tratados como se tivessem pequeno
valor. E o lugar “de mais alto valor psíquico” – que deve ser diferenciado da intensidade
sensorial ou da intensidade visual da imagem apresentada – pode ser ocupado, no sonho, por
outros elementos como se tivesse pouco valor.
Transpondo o processo de deslocamento para a arte, a obra de Marcel Duchamp,
Porta-garrafa promove um deslocamento de um utensílio doméstico na sua função utilitária,
propriamente dita, de porta-garrafa para o museu, onde se transforma em escultura. O Porta-
117
garrafa no museu provoca estranheza por estar separado do seu contexto habitual e de sua
função.
Freud admite ser plausível pensar que, na construção do sonho ocorre um fenômeno, o
qual, por um lado despoja os elementos de importante valor psíquico de sua força e, por outro,
a partir da superdeterminação, produz importância a partir de elementos de menor valor
afetivo e intelectual que se instalam na cena.
Esses processos não são próprios apenas da arte moderna, mas já se inscreviam desde
a Idade Média na tela de Holbein:
obra, conclui que é um crânio de caveira retorcido: “Holbein nos torna aqui visível algo que
não é outra coisa senão o sujeito nadificado [...]” (LACAN, 1998a, p.87-88).
O artista expõe o sujeito nadificado, inscreve a castração em forma de imagem,
através da caveira deformada. Por estar deformada, não é tão facilmente identificada.
Apresenta-se, num primeiro olhar, como um símbolo fálico, erétil no centro da obra,
reforçador do poder dos personagens. Olhando mais uma vez, é possível ver o fantasma
disforme da caveira.
Ocorre então, na perspectiva freudiana, um deslocamento de intensidades psíquicas: a
ênfase no poder e na riqueza se desfaz, frente à insignificância da existência do sujeito.
Semelhante ao processo de formação do sonho, a obra de arte produz uma diferença entre os
elementos dominantes da imagem em superdeterminação e um elemento secundário, isolado,
que passa a ser central. Este processo que está sendo descrito é a variável essencial da
elaboração do sonho chamada deslocamento. O deslocamento e a condensação são dois
mecanismos que definem a forma assumida pelos sonhos, também encontrados na produção e
no funcionamento da obra de arte. Para Freud, a influência recíproca dos mecanismos de
deslocamento, condensação e superdeterminação é a principal promotora de deformação nos
sonhos.
Em Análise do Discurso, isso que Freud está chamando de despojamento do “valor
psíquico” no sonho, promovido por um deslocamento de “intensidades psíquicas” intelectuais
e afetivas, chamaria de “sentido”. O sentido do elemento pictográfico – caveira retorcida – só
pode ser constituído em referência às condições de produção na superdeterminação de
opulência e riqueza. A superdeterminação pretende oferecer coesão para o texto pictórico,
através de seus elementos formais de conexão e sequência superficial entre a postura, vestes e
objetos dos dois personagens. O sentido também muda de acordo com a formação ideológica
de quem o produz e de quem o interpreta.
Neste sentido, cabe examinar a obra pop de James Gill “Tríptico de Marilyn Monroe”,
1962:
121
As diferentes partes dessa complexa estrutura estão nas relações multiformes umas
com as outras que o artista manipula. Esse enigma imagético é revolvido, fragmentado e
aglutinado, o que faz surgir novas conexões por seleção e combinação que podem ser
restauradas, mas nunca completamente, pela leitura e interpretação.
O sonho e as artes visuais apresentam-se, sobretudo, através de imagens. Freud
sustenta que as imagens no sonho funcionam por condensação e deslocamento. O
deslocamento pressupõe um empreendimento de “disfarce” ou “dissimulação” do sentido,
conforme refere Freud.
Lacan retoma esse mesmo texto – A interpretação de sonhos – para sustentar a
hipótese do inconsciente estruturado como uma linguagem. Para isso, detém-se no processo
de trabalho do sonho, que consiste no funcionamento dos diversos mecanismos inconscientes,
principalmente a condensação e o deslocamento.
Como afirma Joel Dör (1989, p. 49), Lacan vai aproximar esses mecanismos de
condensação e deslocamento dos dois grandes eixos da linguagem: substituição/metáfora e
combinação/ metonímia. Na abordagem lacaniana, o processo de condensação do sonho é
compreendido como um processo metafórico. Ao passo, que o processo de deslocamento é
tido como um mecanismo metonímico, o que abordo a seguir.
Joel Dör (1989) assinala que o valor do signo trabalhado por Saussure e o corte da
linguagem reteorizado por Jakobson são fundamentais para introduzir dois pressupostos
lacanianos: o point de capiton (ponto de estofo) e as construções metafórico-metonímicas.
O valor do signo é o que faz com que um fragmento acústico torne-se concreto, que
seja delimitado, fazendo sentido, que se torne, portanto, signo linguístico: “Os signos de que a
língua se compõe não são abstrações, mas objetos reais”, afirma Saussure (2004, p. 119). Ao
mesmo tempo, esse autor assegura que cada termo tem seu valor por oposição a todos os
outros termos em um sistema linguístico. No entanto, o signo só é signo em conjunto com
outros signos, ou seja, o signo só adquire valor num contexto. O contexto é formado por
vários outros signos.
124
Saussure, o eixo paradigmático é o eixo da língua, diz respeito à escolha no léxico. E o eixo
sintagmático está ligado à fala e a utilização deste léxico, através das combinações dos termos
escolhidos. Em função desta relação entre os termos linguísticos, Jakobson decide chamar de
relação por similitude e substituição o eixo paradigmático, da língua que se dá por seleção
para definir as operações metafóricas; e relação por contiguidade, o eixo sintagmático, da
fala, que se dá por combinação para definir as operações metonímicas.
A metáfora intervém no eixo paradigmático e consiste num processo de
enriquecimento da língua, através do “sentido figurado”. A metáfora é um mecanismo de
linguagem designada por Lacan como uma substituição significante, já que ela consiste em
designar alguma coisa por meio do nome de outra. O estilo desta substituição significante
demonstra a autonomia do significante em relação ao significado e, de imediato, a supremacia
do significante. A metáfora mostra que os significados alcançam sua coerência através da teia
de significantes.
A seguir, examino o processo de construção metafórica de Beldade, uma obra da série
(Re)tratos:
S1
s1
S3
S2 S2 s2
s2 S1
s1
S3
s1
Figura 51 – A construção metafórica de Beldade (adaptado de DÖR, 1989)
Fonte: Luciene Jung de Campos
Para a psicanálise, o sujeito só pode existir como sujeito falante, a partir de uma
metáfora fundadora. Essa metáfora fundadora, segundo Lacan (2002), em As psicoses (1955-
1956), é a estrutura de sentido que antecede e oferece base para toda metáfora linguística. É
nesta direção que Gadet e Pêcheux (1981) comentam a apropriação que a psicanálise se
autorizou fazer em relação a certos conceitos linguísticos, ou seja, a psicanálise se apropria
daquilo que a linguística foraclui de si mesma:
Como se a linguística não quisesse saber nada sobre suas próprias raízes, sobre sua
história. Por que se espantar, então, que esse recalcado faça retorno no interior
mesmo das preocupações linguísticas, na forma de pontos em que a linguística se
trai? (GADET; PÊCHEUX, 2004, p. 20).
Portanto, nas raízes da linguística está uma inscrição afetiva que funda o sujeito
falante e dá acesso ao simbólico, conferindo-lhe o estatuto de sujeito desejante. Para Lacan
(1955-1956), nenhum sujeito escapa da metáfora paterna, metáfora fundadora que faz o
assinalamento da interdição. A partir dessa impossibilidade de acesso irrestrito à mãe, a
criança vai simbolizar a mãe, pois só um símbolo pode dar conta da presença sobre um fundo
de ausência. Assim, Lacan institui que a linguagem é metalinguagem em seu próprio registro.
A linguagem é a expressão que marca a posição do sujeito falante e reafirma que a estrutura
do sujeito é a linguagem, onde só o significante pode dizer sobre a sua existência. Essa é a
metáfora do sujeito.
Lacan (1998b) em Escritos (1966) vai definir a metáfora como a implantação numa
cadeia de significantes de um outro significante num perpétuo intervalo onde outra cadeia de
significantes possa entrar. Essa construção teórica remete aos mecanismos de condensação
que Freud (1900) descreve em A interpretação de sonhos, enquanto elementos de conteúdo
manifesto que são determinados por uma série de pensamentos latentes, cujas ideias não estão
necessariamente ligadas entre si.
Na série (Re)tratos, a artista condensa numa formação compósita a coluna social e a
página policial, ou seja, ela faz surgir o sentido através do “sem sentido”, do non-sens. A
metáfora consiste em substituir o significante para derrubar o significado, o que se pode
observar na inserção da página policial no verso da coluna social. O significante novo (página
129
policial) é o significante latente que aparece no perpétuo intervalo onde ele é introduzido na
cadeia de significantes anterior (coluna social) como pode ser observado na figura abaixo.
Neste intervalo, a artista se inscreve como autora de uma nova obra, onde a página
policial pode estar ligada a outra cadeia de significantes. Ou seja, propõe um outro sentido,
abre para outros discursos. Neste ponto em que a significação se engendra no significante, a
artista está implicada na metáfora.
A metáfora condensa em si a posição do sujeito ideológico no interior das formações
discursivas. A artista está, ela mesma, implicada na metáfora e convocada a se implicar numa
posição. A metáfora não é simplesmente uma obra do acaso ou a distorção de uma imagem,
nem a expressão de um sentido óbvio. Mas, o inconsciente que se oferece como recurso do
pensamento e da resistência. O que permite estranhar a imagem publicitária dada:
A artista elege o pensamento de Peixoto que, segundo ela, sintetiza a sua busca, o qual
me permito transcrever:
Seria preciso que, um dia, o verdadeiro retrato de alguém aflorasse, como uma
pintura sobreposta aos traços do rosto, apenas acentuando o que lá estava – mas o
bastante para causar desconforto – para causar o cancelamento da encomenda. Só
então chegaria o momento de pintar para revelar, não para esconder, um auto-retrato.
Contemplação, introspecção, arqueologia. Haverá o retrato de mostrar este rosto?
(PEIXOTO, 1996, p. 54).
Ideologia
Sujeito Imagem
No esquema imagético, o que faz com que um fragmento visual se torne concreto,
fazendo sentido, são suas relações de oposição que mantém na cadeia imagética. A imagem
aparece como uma série de divisões simultaneamente introduzidas num fluxo de pensamentos
e num fluxo visual. Assim, o papel da imagem não é criar um meio visual para a expressão de
ideias, mas ocupar um lugar intermediário entre o pensamento e o olhar, que conduza
necessariamente a delimitações recíprocas de unidades numa formação discursiva.
O devir da imagem, que ao longo de seu percurso é trocada por diversos substitutos,
nos remete à ordem da linguagem e a seus mecanismos de substituições significantes. Os
personagens da coluna social e da página policial determinados pela sua relação com a mídia
nos conduzem à forma-sujeito, movida à revelia pelos significantes da linguagem em relação
com o inconsciente e a ideologia.
Na verdade, nas imagens em análise, o que está problematizado é a posição-sujeito,
enquanto lugar imaginário, representando no processo discursivo os lugares ocupados pelos
sujeitos na estrutura de uma formação social. Deste modo, o mecanismo de condensação na
obra nos mostra que não há um sujeito único, mas diversas posições-sujeito, as quais estão
relacionadas com determinadas formações discursivas e ideológicas. Deste modo, a
supremacia do significante se demonstra por uma dominação do sujeito pelo significante, que
o determina desde onde ele pensa escapar: a toda a determinação de uma linguagem que ele
imagina controlar.
A metonímia enquanto figura de linguagem é elaborada segundo um processo de
mudança de denominação, onde um termo/objeto é designado de forma diferente da
denominação que lhe é própria num sistema linguístico. Esta mudança de denominação entre
135
os dois termos só é possível com restrição e sob certas condições particulares de ligação entre
os dois termos/objetos.
A seguir, analiso o processo de construção metonímica imagética em uma obra da
série Outdoor’s, onde a parte é colocada no lugar do todo:
Embora o todo (rosto) esteja subtraído, nem por isso a significação (rosto de mulher
jovem) deixa de aparecer, em função dos laços de contiguidade entre a “parte” e o “todo”. O
processo metonímico impõe um novo significante em relação de contiguidade com um
significante anterior, que ele ultrapassa. Este mecanismo pode ser esquematizado pelo
seguinte algoritmo:
S1
s1
s2
S2 S2 S3 S1
s2 s1
S3
s1
Figura 58 – A construção metonímica de Outdoor’s (adaptado de DÖR, 1989)
Fonte: Luciene Jung de Campos
A noção de objeto que tomo na presente abordagem, não quer dizer coisa inanimada e
manipulável. Mas, sim, designa aquilo que para o sujeito é objeto de atração, de investimento
de energia pulsional e que se expressa de forma sublimada como vínculo social. Louise
Bourgeois (2000) explica para nós, ao dizer: minha obra é sexo e morte. No caso deste estudo,
interessa mais as peculiaridades de funcionamento do objeto-imagem no seu polimorfismo,
suas variações, suas vicissitudes fantasmáticas. Seu funcionamento marcado por
características singulares, que é determinado pelo sentido que adquire na história, nas
condições de produção, sinaliza formações discursivas heterogêneas. Este objeto é um misto
de algo interno ao sujeito e de aspectos externos a ele. O objeto-imagem é tomado como um
objeto discursivo, um objeto de linguagem enquanto uma produção do sujeito do desejo que
também é um sujeito atravessado pela ideologia. Deste modo, o objeto-imagem é da ordem
inconsciente-linguagem.
138
i
Figura 60 – A construção metonímica do objeto-imagem ( ), (adaptado de LACAN, 1998)
Fonte: Luciene Jung de Campos
decomposição metonímica. Este duplo movimento comporta sempre um resto recalcado que
circula entre a linguagem (código) e a imagem. Esse resto recalcado ressurge nas séries em
estudo, enquanto imagens investidas de desejo e de sentido. Uma mesma imagem pode sofrer
cortes, enquadres diferentes em outras combinações horizontais, associando elementos pré-
existentes na rede metonímica e fazer aparecer um novo valor, um novo sentido e uma nova
posição-sujeito. Mesmo com uma leve alteração no código e no meio em uso, no caso, a
fotografia.
Abaixo, faço outra tentativa de apresentar graficamente o processo metonímico, tento
ilustrar a relação entre a imagem de circuito da PP, com a posição-autor de sujeito desejante
que transforma a imagem da PP, noutra imagem (i):
Nenhum desejo pode ser recebido socialmente (pelo Outro) sem sofrer transformação.
Freud mostrou isso na estruturação do desejo, na transformação que o processo primário sofre
frente ao processo secundário. O que justifica as expressões sempre ambíguas e equívocas na
linguagem. Dito de outra forma, a relação do significante com o desejo implica que o desejo
seja subvertido, mudado, a partir de sua passagem pelo significante, ou seja, pela linguagem.
A satisfação não passa de um registro que é acordado entre eles.
O inconsciente é a soma dos efeitos da fala sobre um sujeito e aí o sujeito se constitui
dos efeitos do significante, diz Lacan em Os quatro conceitos fundamentais em psicanálise.
Esta analogia inconsciente/linguagem, ou de forma mais ampla, inconsciente/significante se
instala nos mecanismos inconscientes de deslocamento e condensação, que parecem obedecer
142
justamente nesse jogo entre o presente e o ausente que a memória discursiva opera: no
esquecimento daquilo que é óbvio numa FD, mas que não deve ser lembrado em outra FD.
Porém, o fato de lembrarmos o que ficou esquecido ou suprimido na série artística, é
que faz dela uma série subversiva, quando posso notar a ausência daquilo que antes era
evidente e a falta se estabelece, tomando lugar de equívoco: um outdoor sem mercadoria e
sem anúncio. A presença das mercadorias é imprescindível na formação discursiva
apresentada pela publicidade/propaganda. Porém, essas mercadorias podem ou não serem
reafirmadas na formação discursiva mostrada pela arte visual. O fato de que é possível
lembrar que elas foram esquecidas, coloca a imagem em funcionamento, enquanto estrutura.
Ou ainda, a lembrança da mercadoria permite pensar na presença dos corpos dos modelos,
partindo do princípio de que esses corpos é que são, na verdade, a mercadoria por excelência,
talvez, só por isso eles continuem presentes.
Sobre o intangível, Pêcheux, juntamente com Gadet (1981) dedica um de seus títulos a
esse tema em A língua inatingível, onde privilegia as produções do inconsciente, conforme já
foi mencionado mais acima, com atenção especial para os chistes. Procura abordar o equívoco
como fato estrutural que se impõe pela ordem do simbólico e que visa trabalhar ali onde
estanca a consistência da representação lógica da sociedade de consumo, por exemplo.
As imagens das Séries (Re)tratos, Outdoor’s e Perto demais aparecem permeadas por
uma divisão discursiva entre dois campos, o campo que é o da publicidade/propaganda e
aponta para a manipulação de significações estabilizadas, normatizadas por uma pasteurização
do pensamento baseada nas relações de compra e venda; e a arte pop/conceitual que busca as
transformações do sentido, escapando a qualquer norma estabelecida a priori, de um trabalho
de sentido sobre o sentido e na suspensão do sentido, tomado no relançar indefinido das
interpretações.
Essa possibilidade que aparece na estrutura discursivo-visual está muito próxima da
divisão que Pêcheux (2006, p. 51) atribui “ao próprio da língua”, mas como um ato simbólico
e político: “[...] o humor e o traço poético não são ‘o domingo do pensamento’, mas
pertencem aos meios fundamentais de que dispõe a inteligência política e teórica”
(PÊCHEUX, 2006, p. 53).
Então, eu diria que o humor, o traço poético e as Séries em estudo não são exceções,
mas arranjos simbólicos do sujeito para atravessar a ideologia e se inscrever no campo social.
Freud (1976a) vem corroborar esse tema em sua abordagem dos chistes que em seu estágio
inicial enquanto jogo de palavras e pensamentos non-sens que precisam ser salvos dos
protestos da razão, cuja construção sofreu a oposição de graves inibições internas, por isso são
145
deslocadas e condensadas. No enlace que estou buscando, trata-se do esforço para buscar o
ausente no evidente, que não está autorizado a ser referido naquela FD.
O chiste é uma maneira de representar um pensamento por si só valioso, ocorre no
curso de um processo intelectual e se exprime como chiste. A fim de capacitar esse
pensamento a tornar-se um chiste, é necessário selecionar, entre as formas possíveis de
expressão, aquela que há de trazer consigo uma produção de prazer. A arte é um ato movido
pelo desejo intangível sobre o material publicitário evidente.
No entanto, não posso deixar de considerar que para Althusser (2007) existe um
aparelho ideológico de estado (AIE), que se chama AIE cultural, onde ele inclui a arte. Mas,
cabe bem observar que são as “Belas Artes” a que ele refere (p. 68). A arte contemporânea
não pertence à mesma matriz parafrástica das Belas Artes. A arte contemporânea, sobretudo a
arte conceitual e pop, pouco tem de belo, pelo contrário, esforça-se por fazer uma ruptura
nesse campo, distanciando-se do sublime e muitas vezes, já foi questionada sobre o seu valor
de “arte verdadeira” e sobre qual o seu sentido ou a sua falta de sentido.
Aponto para uma subversão das formas de presença imbricadas e heterogêneas na
borromeanidade neste estudo, pois o evidente – que seria a propaganda – encontra-se ausente,
enquanto imagem. E o que é trabalhado, mas que não chega aparecer como evidente, mais por
seu caráter enigmático, é a imagem cuja ideia aborda aquilo que ficou ausente na propaganda.
Já o intangível, próprio dos processos poéticos, chistosos e artísticos, caracteriza-se pelos
mecanismos de deslocamento, condensação e esquecimento. São esses os mecanismos que
vão permitir a subversão evidente-ausente-evidente através da metonímia, da metáfora e do
apagamento para fazer com que diferentes posições-sujeito possam emergir. No caso deste
estudo, a forma-sujeito consumidor interpelado por outdoors, cartazes publicitários e coluna
social, pode vir a ser abalada, quando interpelada por estas Séries.
E quanto à coexistência solidária, dos três campos, na abordagem do objeto-imagem,
eu arriscaria algumas diferenças quanto à heterogeneidade dos olhares. O olhar da Psicanálise
se detém nos fragmentos, acentua a significação dos detalhes, se perde em detalhes mínimos
para encontrar melhor o reprimido, o recalcado, o forcluído. O olhar da Arte vai inventar uma
prática discursiva na tentativa de transformar o que está posto como destino. A AD desloca o
olhar, reconstrói uma história negada, torna exposto e elegível as contradições. Engendra
novas leituras que são outros tantos novos olhares, na tentativa de invenção do futuro com
uma pluralidade de inquietudes inaugurais.
146
Diante das interlocuções teóricas com a arte, a psicanálise e a AD, vejo a imagem
como um corpo de sombras e lacunas. É um corpo de sombras por sua opacidade e densidade
semântica, onde o sentido da imagem não é transparente, mas ao contrário, espesso e
heterogêneo num conjunto de tonalidades. Esta sombra também evoca algo da memória, algo
que estava ali e já passou. Sobras. Presença e ausência obscuras.
É um corpo de lacunas e espaçamentos próprios. A lacuna demarca um território
específico de ação, na história, onde algo se estancou. Lugar em que outras formas surgem
urgentes e errantes. Instaura-se uma experiência nova em sua dimensão de crise. Aloja-se o
equívoco, em direção inversa às representações pragmáticas e funcionais cotidianas. Da
surpresa aparecem frestas inesperadas por onde passa o olhar. Produzem-se rupturas de
sentidos, direções e valores. Deflagra-se alteração de forças e mudança de poder.
A descontinuidade da imagem poderia ser pensada como o estado de suspensão em
que ocorre o encapsulamento do ausente e do intangível pelo evidente. Desse modo, ocorreria
a ligeira presentificação simultânea do passado e do futuro. Nas obras em análise, a
publicidade/propaganda (PP) é o passado da imagem. No entanto, a PP ainda perdura no
presente, mais especificamente, no trânsito passado-futuro, no vir-a-ser da imagem. Meio-do-
caminho marcado pelo intangível. O que torna possível esta presentificação do tempo e o
encapsulamento das formas de presença pelo evidente são os mecanismos de condensação e
deslocamento.
Assim, a partir desses processos de condensação e deslocamento, cria-se um terreno
fértil para o interjogo entre a metáfora e metonímia. Deste interjogo, delineia-se o objeto-
imagem que se origina dos fragmentos e dos restos que se dinamizaram no vazio, nos furos
por onde circulam os significantes.
O inconsciente e a ideologia são as duas estruturas que estão em funcionamento na
descontinuidade da imagem. As obras em análise são imagens basculantes de mobilização do
inconsciente: ora abrindo para o desejo, ora para a ideologia. A imagem tanto pode facilitar a
reprodução e a repetição do padrão imposto num esforço de satisfação e preenchimento
absolutos, quanto promover deslocamento e ruptura.
A imagem, em sua materialidade, produz sentidos a partir da relação com um sujeito,
que por sua vez está inscrito em práticas discursivas e em processos históricos de que é parte,
por isso, o sentido não está na imagem. Ela está impregnada de inconsciente e história,
147
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