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A FCP chega aos 21 anos

Tempo de cidadania e diversidade


Editorial
Tempo de cidadania e diversidade

Há 21 anos, o Estado brasileiro deu um passo importante para o


reconhecimento da sua diversidade. Criou a Fundação Cultural Palmares.
Fruto de dois movimentos convergentes, expressos, de um lado, pelos
movimentos negros brasileiros – políticos e culturais, e, de outro, pelo novo
ordenamento político e jurídico do país, materializado na Constituinte de
1988, a criação da Fundação Palmares levou a um novo patamar o exercício da
cidadania no Brasil.
Nessa trajetória, é incontestável a liderança que a FCP exerceu ao longo
desses anos na luta pela igualdade racial, pela valorização, preservação
e difusão das manifestações culturais afro-brasileiras. Muita água rolou
debaixo desta ponte, assim como debates, reflexões, intercâmbios, troca de
experiências, frustrações, erros e tudo mais que uma caminhada de 21 anos
pode proporcionar. Mas, hoje, podemos afirmar com segurança que valeu
e continua valendo a pena, parafraseando o poeta português, “desde que a
alma não seja pequena”.
Nesses 21 anos, a Fundação Palmares potencializou talentos, proporcionou
o intercâmbio cultural interno e externo, notadamente com o continente
africano, certificou e acolheu mais de 1.300 comunidades remanescentes
de quilombos, tendo participado, nesse período, de mais 200 ações judiciais
em sua defesa. Mapeou terreiros de candomblés, criou o Parque Memorial
Quilombo dos Palmares, esteve presente nos principais fóruns internacionais,
a exemplo da Conferência de Durban/África do Sul, em 2001, e a Conferência
dos Intelectuais da África e da Diáspora, realizada na Bahia/Brasil, em 2006.
Em nossa gestão, avançamos um pouco mais. Reestruturamos o quadro
administrativo da Palmares, criamos cinco novas representações regionais
(São Paulo, Rio Grande do Sul, Maranhão, Minas Gerais e Alagoas), inauguramos
uma nova sede, digna e confortável, com mais de 4.000m2 de área e dotada
de equipamentos tecnológicos modernos e ampliamos o nosso orçamento
em mais 100%. No campo cultural, criamos o Observatório Afro-Latino,
democratizamos a seleção de projetos por meio de editais, ampliamos o
intercâmbio com a África, tanto na CPLP, como em eventos internacionais, a
exemplo do Festival Mundial de Artes Negras, ou ações com o Benim, África
do Sul, Nigéria, Togo, Burkina Fasso, Senegal etc.
Portanto, comemorar esses 21 anos da Palmares, não deve servir apenas
para fazer um balanço do que fizemos no passado, mas, sobretudo para
pensar e organizar os nossos passos futuros. Passos estes que precisam estar
articulados com os demais setores e segmentos do campo cultural brasileiro,
respeitando a diversidade e exercitando a cidadania.

Axé !

Zulu Araújo
Presidente da Fundação Cultural Palmares
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro da Cultura
Juca Ferreira

Fundação Cultural Palmares


Presidente
Zulu Araújo
Departamento de Fomento e Promoção da
Cultura Afro-Brasileira
Elisio Lopes Junior
Departamento de Proteção ao Patrimônio
Afro-Brasileiro
Mauricio Reis
Chefia de Gabinete
Eliane Borges
Centro Nacional de Informação e Referência
da Cultura Negra
Cléo Carvalho
Coordenação-Geral de Gestão Estratégica
Maria Aparecida Chagas Ferreira
Coordenação Geral de Gestão Interna
Simoni Hastenreiter
Procuradoria Geral
Dora Lúcia de Lima Bertúlio

Revista Palmares
Edição
Inês Ulhôa
Textos
Inês Ulhôa
Marcus Bennett
Diagramação
Alessandro Naves Resck
Fotos
Arquivo/Palmares
Foto Capa: Januario Garcia
Grafite muro do Mundo Afro
Cidade de Rivera - Uruguai

Endereço:
Setor Bancário Sul, Quadra 2, Lote 11
Asa Sul - Brasília/DF
Tel: (61) 3424-0164/ 0165/0166
Sumário

Manifestações Culturais
Jongo 5
Capoeira 10
Samba de Roda 15
Maracatu 18
Congada 23
Tambor de crioula 26

Negrice Cristal 28

Aos 21, 31

Artigos

Comunidades quilombolas, suas lutas,


sonhos e utopias
Joseane Maia Santos Silva 33

Reconhecimento e Proteção das Comunidades


Quilombolas 40

Desafios e conquistas
Maurício Jorge Reis 42

As Cinderelas e os Lobos - a mulher


negra e o turismo sexual
Joel Zito Araújo 44

Interação cultural e social do


movimento hip hop
Christian Carlos Rodrigues Ribeiro 48

A África brasileira: geografia e territorialidade


Rafael Sanzio Araújo dos Anjos 56

Ministério Ministério
MINISTÉRIO DA CULTURA MINISTÉRIO DA CULTURA
FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES da Cultura FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES da Cultura
3
4
Foto: Sandreana de Melo e Silva
Manifestações culturais
As manifestações culturais de raiz africana são destaque nestes 21
anos da Fundação Cultural Palmares. Uma pequena mostra da valiosa
diversidade cultural. Expressões de origem africana que se mantêm
ao longo do tempo, em seus diferentes contextos, graças à política de
valorização da cultura popular empreendida pelo Ministério da Cultura
e seus órgãos vinculados, incluindo a FCP, que em toda a sua trajetória
tem sido parceira na divulgação e difusão desse rico patrimônio do
povo negro. Consideradas patrimônios imateriais e culturais pelo
Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN), essas
manifestações são a expressão da identidade e dos saberes de um
amplo e diversificado legado das tradições culturais de matriz africana
enraizadas de norte a sul do Brasil.

Jongo

O Jongo é uma dança de


origem banto, ancestral do
samba e do pagode, que resiste
também pela Zona da Mata
mineira, onde é conhecido por
“caxambu”, aliás, denominação
saberes, ritos e crenças dos povos
africanos, principalmente os de
língua bantu.
em alguns pontos da região dada também ao instrumento As cantigas que acompanham
Sudeste do Brasil, nos estados do fundamental dessa dança, o as danças são conhecidas
Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito ataque grande, ora chamado como pontos. De acordo com
Santo. Graças a uma iniciativa do tambu, ora angona, ora as pesquisas do historiador
Grupo Cultural Jongo da Serrinha, caxambu. Tem como elementos Stanley Stein e publicadas no
o ritmo foi tombado pelo Instituto comuns a dança de roda ao som livro Vassouras, um município
do Patrimônio Histórico e Artístico de tambores e cantoria com brasileiro do café (editado pela
Nacional (IPHAN), em 2005, como elementos mágico-poéticos. Universidade de Harvard, em
o primeiro Bem Imaterial do O jongo é praticado quase 1957), os jongos ou pontos são
Estado do Rio de Janeiro. sempre nas festas dos santos cantados em português, mas com
O jongo do sudeste tem suas católicos e divindades afro- frequência apresentam palavras
expressões relacionadas à cultura brasileiras, nas festas juninas, e expressões de origem bantu.
do café e da cana-de-açúcar. festas do Divino e no dia 13 Formados por versos curtos,
Surgiu na Baixada Fluminense de maio – data da abolição da os pontos são iniciados por
e subiu a Mantiqueira. Entrou escravatura. Tem suas raízes nos um dos participantes, o solista,

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e respondidos pelo coro por os dançantes dão um giro com o poética metafórica, que com
alguns minutos até que um dos corpo e quando se cansam, saem frequência servem para transmitir
presentes ponha a mão sobre os da roda para descansar. mensagens ou enigmas a serem
tambores e grite “machado!” ou Os pontos podem ser decifrados ou, no linguajar dos
“cachoeira!”, dando sinal para que cantados com diferentes funções, jongueiros, desatados pelos
um novo ponto tenha início. como animar a dança, saudar participantes. As pessoas eram
O solista improvisa passos pessoas ou entidades espirituais, substituídas por árvores, pássaros
movimentando todo o seu transmitir um outro desafio a e animais da floresta. “Havia
corpo. Sozinho ou em pares, os outro jongueiro por meio de um uma recompensa pela concisão,
praticantes vão ao centro da roda, enigma a ser decifrado ou para quanto menos palavras e mais
dançam até serem substituídos encerrar o jongo (pontos de obscuros o sentido, melhor o
por outros jongueiros. Neste despedida). jongo”, explica Stein.
momento da substituição há Segundo Stein, os pontos de O uso frequente de metáforas,
o elemento coreográfico da jongo têm como característica juntamente com palavras e
umbigada De vez em quando central o uso de uma linguagem expressões de origem africana,
Reprodução

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dificultava a compreensão dos
pontos pelos não escravos. No
tempo da escravidão, esse tipo
de poesia metafórica permitia
que os praticantes da dança
se comunicassem por meio
de pontos que os capatazes e
os senhores não conseguiam
compreender. Assim, podiam
fazer suas combinações, contar
suas amarguras e criticar seus
senhores, como na cantiga
abaixo:

“Ô ô, com tanto pau no mato


Embaúba é coroné
Com tanto pau no mato, ê ê
Com tanto pau no mato
Embaúba é coroné”

O livro de Stein explica que,


de acordo com um ex-escravo,
a embaúba era uma árvore
comum, inútil por ser podre por
dentro. E muitos fazendeiros
eram conhecidos como coronéis
porque ocupavam esse posto
na Guarda Nacional. Portanto,
combinando os dois elementos
– embaúba e coroné – os
escravos produziam o sarcástico
comentário.
Os tambores são feitos a partir
de troncos de madeira e couro
de animal. Segundo o Iphan,
esses são elementos centrais no
jongo, sempre reverenciados
pelos jongueiros, pois fazem
a ligação com as entidades do
mundo espiritual e expressam
a conexão do jongo com outras
manifestações afro-brasileiras,
como a umbanda e o candomblé.
Alguns tambores chegam a ter
mais de cem anos de batuque
e são passados de geração em
Reprodução

geração.

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Jongo da Serrinha num belo espetáculo. em cultura e tradições afro-
Morro da Serrinha, localizado brasileiras.
Atualmente, a maior referência na zona norte do município do Ao transformar a antiga
da dança é o Grupo Cultural Rio de Janeiro, é uma comunidade dança de roda num espetáculo,
Jongo da Serrinha, formado urbana com aproximadamente Mestre Darcy e Vovó Maria
pela quinta geração de sete mil moradores, na sua inovaram ao introduzir violão e
jongueiros e por crianças e maioria negros. Com 103 anos de cavaquinho no jongo e ao ensinar
jovens da comunidade, sob a existência, a Serrinha é uma das crianças a dançar, antigamente só
liderança de Tia Maria do Jongo. primeiras favelas do país, tendo
O Jongo da Serrinha é um recebido no início do século
dos mais tradicionais grupos de passado um enorme contingente
de escravos negros recém-
O Jongo da Serrinha é
cultura do país, tendo recebido
diversos prêmios por seu trabalho alforriados. um dos mais tradicionais
artístico e social. Com 40 anos de Os moradores da Serrinha
história, o grupo de Madureira constituíram um núcleo religioso grupos de cultura
foi fundado por Mestre Darcy e cultural potencial, visitado não do país. Já recebeu
e sua mãe, Vovó Maria Joana só pelos moradores das cidades
Rezadeira que, preocupados com próximas, como também por diversos prêmios por
a extinção do jongo na cidade, jornalistas, artistas e turistas de
seu trabalho artístico e
transformaram a antiga dança vários pontos do Estado do Rio,
praticada nos quintais da Serrinha do Brasil e exterior, interessados social
Reprodução

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Reprodução
permitido aos “cabeça branca”, Petrobrás Rival BR (2002) e Orilaxé do Rio de Janeiro, com o projeto
criando uma nova referência do (2002). A ONG tem duas missões Célula Cultural.
jongo na cidade e garantindo institucionais: educar crianças e Pa r a a co n s t r u ç ã o d e
sua sobrevivência no contexto da jovens e preservar o jongo como m e t o d o l o g i a e planejamento
globalização. patrimônio imaterial. estratégico, o grupo participa
Em sua trajetória, o Jongo da Uma das estratégias de das Redes Social da Música, Rede
Serrinha transformou-se em uma preser vação e capacitação Circo Social e Rede de Memória do
das mais genuínas referências profissional é a criação de Jongo. Na elaboração do projeto
da cultura carioca e vem se espetáculos de alta qualidade, Centro de Memória da Serrinha,
apresentando em diversas cidades apresentados em teatros de museu-escola, a instituição conta
do Brasil e exterior divulgando grande porte da cidade a fim com o apoio do Escritório Modelo
e preservando o ritmo com de formar platéia para o jongo de Arquitetura da Universidade
espetáculos de alta qualidade. e divulgar a história e cultura Estácio de Sá, Unesco, Museu do
Em 2000, o grupo criou a populares. Folclore Edison Carneiro, IPHAN,
ONG Grupo Cultural Jongo da O Grupo Cultural Jongo da Fundação Getúlio Vargas e
Serrinha (GCJS) para desenvolver Serrinha está inserido em diversas G.R.E.S. Império Serrano.
estratégias de preservação da redes do terceiro setor e conta A instituição conta ainda
memória da comunidade Serrinha com o apoio de vários parceiros com o apoio de diversos
e do jongo e de educação e institucionais. No projeto Escola artistas, intelectuais, jornalistas,
capacitação profissional para de Jongo, seu principal projeto e formadores de opinião entre
jovens e crianças, através da educacional, o GCJS, conta com eles, a atriz Letícia Sabatella, as
Escola de Jongo (EJ). Recebeu o apoio financeiro da Petrobrás, cantoras Sandra de Sá, Dona
diversos prêmios, entre eles, o Criança Esperança, Ministério da Ivone Lara, Beth Carvalho e dos
Cultura Nota Dez (2006), Cultura Cultura, por meio do projeto cantores Luís Melodia, Arlindo
Viva (2006), Itaú-Unicef (2005), Ponto de Cultura, e da Prefeitura Cruz e Dudu Nobre.

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Capoeira

T ambém reconhecida pelo


IPHAN como patrimônio
cultural imaterial, em julho de
grandes cidades escravistas
litorâneas, que foi desenvolvido
entre africanos escravizados
cidades portuárias apontadas
como prováveis origens dessa
manifestação, e por serem os
2008, a Roda de Capoeira é uma ligados às atividades “de ganho” locais onde havia documentação
arte multidimensional e também da zona portuária ou comercial. A a respeito.
dança, luta, jogo e música. maioria dos capoeiras dessa época O mais antigo registro vem
Essa arte apresenta registros trabalhava como carregador e do Rio de Janeiro, em 1789 – um
documentais e iconográficos estivador, atividades ligadas à documento sobre a libertação
desde o século XVIII. região dos portos, onde muitos de um escravo de nome Adão,
Na pesquisa realizada pelo realizavam trabalho braçal. que havia sido preso por praticar
IPHAN, a capoeira é definida As pesquisas foram realizadas “capoeiragem”.
como um fenômeno urbano nas cidades do Rio de Janeiro, No período da República
surgido provavelmente nas Salvador e Recife, principais Velha, a capoeiragem era

Litografia do Pintor Rugendas, um dos primeiros registros iconegráficos da capoeira no Brasil

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uma manifestação de rua, de conflitos, também se utilizava Mestres Bimba e
afrodescendente, e muitos dos dos golpes e movimentos da
seus praticantes tinham ligações capoeira. Pastinha foram os
com o candomblé, o samba e Tanto no Rio de Janeiro como responsáveis pela
os batuques. A iniciação dos em Salvador e Recife, o jogo
capoeiras nessas atividades surge como prática associada adaptação da capoeira
acontecia provavelmente na à marginalidade social, porém
aos novos tempos, de
própria família, no ambiente de amplamente presente na vida
trabalho e também nas festas política das cidades e do país, forma que ela pudesse
populares. na medida em que os capoeiras
Ainda sobre o universo envolveram-se, por exemplo, sobreviver, e formaram
das ruas, estudiosos revelam em “capangagem” eleitoral e na outros mestres, que
que o cancioneiro da capoeira Guerra do Paraguai.
se enriqueceu dos cantos de A partir de 1890, quando continuaram suas
trabalho e que o trabalhador de a capoeira foi criminalizada linhagens
rua, em momentos lúdicos ou – artigo 402 do Código Penal –

como atividade proibida (com


pena que poderia levar de dois
a seis meses de reclusão), a
repressão policial foi dura com os
seus praticantes. Os capoeiristas
eram considerados por muitos
como“mendigos ou vagabundos”.
Outras práticas afro-brasileiras,
como o samba e os candomblés,
foram igualmente perseguidas.
Já na década de 1920,
com o apoio de intelectuais
modernistas, que procuraram
reconstituir as bases ideológicas
da nacionalidade, as práticas
afro-brasileiras começaram a ser
discutidas e passaram a constituir
um referencial cultural do país.
Ao final dos anos 1930, a
capoeira foi descriminalizada e
passou de um extremo a outro,
a ponto de ser defendida por
historiadores e estudiosos como
esporte nacional e considerada
a verdadeira ginástica brasileira.
Getúlio Vargas a proclamou o
“único esporte genuinamente
nacional”.
A capoeira já foi apontada
como esporte, luta e folguedo e
praticada por diferentes grupos

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sociais, principalmente a partir

Foto: Marcus Bennett


do século XX.
Os mestres Bimba e Pastinha
foram os responsáveis pela
adaptação da capoeira aos
novos tempos, de forma que ela
pudesse sobreviver, e formaram
inúmeros outros mestres ilustres,
que continuaram suas linhagens.
A partir dos anos 1950, a capoeira
expande-se por todo o Brasil e
para outros países e multiplica-se
em diversos estilos.
Em 1937, a capoeira começou
a ser treinada como uma prática
esportiva, e não apenas como
uma “vadiação” de rua. Neste
mesmo ano Mestre Bimba criou
o Centro de Cultura Física e
Capoeira Regional da Bahia.
A capoeira regional nasceu
como forma de transformar a
imagem do capoeira vadio e
desordeiro em um desportista
saudável e disciplinado. Ele
criou estatutos e manuais de
técnicas de aprendizagem,
descreveu os golpes, toques,
cantos, indumentárias especiais,
batizados e formaturas.
Em seguida, Mestre Pastinha
fundou o Centro Esportivo de
Capoeira Angola, em 1941, e

Para Mestre Pastinha,


a capoeira era um
esporte, uma luta, mas
também uma reza,
lamento, brincadeira,
vadiagem, dança
e um momento de
comunhão
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assim este estilo passou a ser conceitos centrais, como a vestuário às regras para tocar
ensinado por métodos próprios. malícia e a ilusão do adversário instrumentos, início dos treinos
A idéia da capoeira como sempre que possível, para e até a forma de entrar na roda),
arte marcial brasileira criou evitar movimentos mecânicos e estabelecendo-se assim uma
polêmica, pois era defendida previsíveis. Para ele, a capoeira metodologia de ensino.
por uns e criticada por outros, era um esporte, uma luta, mas A roda de capoeira é a forma
principalmente pelos angolanos, também uma reza, lamento, de expressão que permitiu o
que afirmavam a ancestralidade brincadeira, dança, vadiagem e aprendizado e a expansão do
africana do jogo. um momento de comunhão. jogo. São encenados golpes e
Mestre Pastinha enfatizou o Essas iniciativas propiciaram o movimentos acrobáticos; cânticos
lado lúdico e artístico da capoeira, surgimento de outras academias antigos são reutilizados e outros
destacando os treinos de cantos e centros destinados a este inventados (acompanhados por
e toques de instrumentos. fim. Constituiu-se então uma uma orquestra de instrumentos
Também ressaltou a necessidade hierarquização na transmissão que produz uma sonoridade
da manifestação ser exercida deste saber, e foram criados múltipla e característica desta
em busca da integridade física e códigos de conduta a serem arte) e as trocas de conhecimento
espiritual, e buscou na tradição seguidos nas rodas e treinos (do se estabelecem.
Foto: Inês Ulhôa

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O oficio dos mestres e como tal reconhecidos por seus da manutenção da cadeia de
pares. O ofício dos mestres de transmissão desses mestres
O Iphan também reconheceu o capoeira é exercido por aqueles para sua continuidade como
ofício dos mestres de capoeira detentores dos conhecimentos manifestação cultural: “O saber
como patrimônio imaterial, tradicionais desta manifestação da capoeira é transmitido de
inscrito no Livro dos Saberes. e responsáveis pela transmissão modo oral e gestual, de forma
Para o Instituto, dentre os oral das suas práticas, rituais e participativa e interativa nas
aspectos que constituem a herança cultural. rodas, nas ruas e nas academias,
capoeira como prática cultural Ainda de acordo com assim como nas relações de
desenvolvida no Brasil está o a cer tidão do IPHAN, que sociabilidade e familiaridade
saber transmitido pelos mestres reconheceu o ofício dos construídas entre mestres e
formados na tradição da capoeira mestres, a capoeira depende aprendizes”.
Foto: Inês Ulhôa

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Samba de roda

O Samba de roda, muito


semelhante à dança do
Jongo, também é um gênero
musical de tradição afro-
brasileira. No entanto, difere-se
das demais por ser associada
à capoeira e ter referências de
diversos ritmos tribais africanos.
Essa diversidade cultural dentro
da raça negra brasileira deve-
se ao fato de que, durante a
escravidão, os escravos eram
comprados sem a preocupação
de ficarem agrupados com suas
etnias de origem, o que levou
à formação de sociedades com
grupos africanos bem diferentes,
inclusive, juntando algumas
tribos que eram rivais na África.
Além da capoeira, o samba
de roda está ligado ao culto
aos orixás e caboclos. É o estilo
musical mais primitivo do samba,
sendo tocado com pandeiros,
atabaques, berimbaus, chocalho
e viola. Esta última, resultado da
forte influência dos portugueses.
A origem do samba seria
uma derivação da língua banto
“semba”, que significa umbigada,
ou do umbumdo “samba”, que
significa estar animado ou estar
excitado. No entanto, o vocábulo
designava um tipo de dança de
roda e batuque praticado em
Angola e em várias regiões do
Brasil, principalmente na Bahia.
Do centro de um círculo e ao
som de palmas, coro e objetos de
percussão, um dançarino solista,
em requebros e volteios, dava
uma umbigada em um outro
companheiro a fim de convidá-lo
Foto: Any Freitas

a dançar, sendo substituído então


por esse participante.
A umbigada, ou choque

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de umbigos, é um dos gestos por pandeiros, viola, chocalho, aproximado, por isso o nome
mais típicos do samba de roda. prato de cozinha arranhado samba de roda.
Traço cultural de origem banto, por uma faca e, às vezes, pelo
a umbigada é um sinal por berimbau. O canto é puxado . Os instrumentos musicais
meio do qual a pessoa que está por uma pessoa, respondido utilizados podem ser a viola; o
sambando designa quem irá pelos demais, acompanhado por pandeiro e o prato-e-faca. Os
substituí-la na roda. palmas. tocadores fazem parte do círculo.
A própria palavra samba já era A cultura do samba é dividida Os presentes participam do
empregada no final do século XIX em dois grupos: o samba chula acompanhamento musical com
dando nome ao ritual dos negros e o samba corrido. No chula, palmas.
escravos e ex-escravos. os participantes não sambam
No Samba de Roda o mais enquanto os cantores bradam . Cantos estróficos e silábicos e
importante instrumento de a chula (um tipo de cântico e repetitivo. A estrofe principal, em
acompanhamento é a viola poesia). No samba corrido, todos certos casos, chamada de chula,
machete, construção artesanal sambam enquanto dois solistas e pode ser cantada por um ou dois
de origem portuguesa. Hoje, o coral se alternam no canto. cantores, enquanto a resposta
o machete é uma raridade e As principais características pode ser cantada por todos os
seu substituto mais comum, de do samba de roda são: presentes ou, às vezes, por dois
fabricação industrial, é a chamada cantores, diferentes dos dois
viola paulista. A orquestra de . A disposição dos participantes primeiros, com ou sem reforço
samba geralmente é composta é feita em círculo ou em formato das mulheres presentes. As

Foto: Inês Ulhôa

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O samba de roda está

Foto: Arquivo Palmares


ligado ao culto aos
orixás e caboclos. É
o estilo musical mais
primitivo do samba.
É tocado com viola,
pandeiros, atabaques,
berimbaus e
chocalho

estrofes são relativamente curtas,


podendo ser de um único verso,
e raramente indo além de oito
versos. Há ocorrência eventual
de improvisação verbal.

. A coreografia, sempre feita


dentro da roda, pode ser muito Samba de Roda do
variada, mas seu gesto mais Recôncavo Baiano ibeji. O Samba de Roda também
típico é o chamado miudinho. é parte fundamental do culto
Feito, sobretudo, da cintura O Samba de Roda do aos caboclos e nas festas de
para baixo, consiste num R ecôncavo Baiano foi candomblés de rito nagô ou
quase imperceptível sapatear reconhecido pelo Iphan como angola.
para frente e para trás dos pés Patrimônio Cultural Imaterial, Na cidade de Cachoeira,
quase colados ao chão, com a inscrito no Livro de Registro das o samba de roda tem forte
movimentação correspondente Formas de Expressão em 2004. presença na festa de Nossa
dos quadris. Embora homens Também foi proclamado como Senhora da Boa Morte, no mês
também possam dançar, há clara obra-prima do Patrimônio Oral e de agosto.
predominância de mulheres na Imaterial da Humanidade, título O samba de roda é uma
dança, enquanto no toque dos que foi outorgado pela Unesco expressão musical, coreográfica,
instrumentos a predominância em 2005. poética e festiva das mais
é masculina, com exceção do No Recôncavo Baiano, as importantes e significativas da
prato-e-faca. festas do catolicismo popular cultura brasileira. Exerceu forte
Não há datas específicas são associadas às tradições influência no samba carioca e até
para se dançar o Samba de religiosas afro-brasileiras. Uma hoje é uma das referências do
Roda, mas há ocasiões típicas das maiores ocasiões é a festa, samba nacional. De acordo com
que costumam se integrar às no mês de setembro, para São historiadores, esse fato ocorreu
celebrações de alguns santos Cosme e Damião, sincretizados devido à migração de negros
católicos como, por exemplo, São com os orixás iorubanos baianos para o Rio de Janeiro, no
Cosme e Damião e São Roque. relacionados aos gêmeos, os final do século XIX.

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Maracatu

O Maracatu é mais um
dos ritmos de tradição
africana, que hoje é difundido
marinho, o pastoril etc. Os
personagens Mateus e Catirina,
que abrem o desfile, divertindo
couro de carneiro ou de material
sintético, onde são pendurados
vários chocalhos. O rosto do
em todo o nordeste brasileiro, o público, vem da brincadeira caboclo é todo pintado com
especialmente, nas cidades de cavalo-marinho. Em seguida, urucum e os grandes óculos
Recife e Olinda, Pernambuco. vem os caboclos de lança, com escuros completam o visual.
Provavelmente, a tradição sua vistosa indumentária – calças Diz a lenda, que os caboclos
vem da segunda metade do e camisa de chitão, a imensa de lança fazem parte dos
século XIX e é uma fusão de gola bordada de lantejoulas, a mistérios da jurema, um
vários folguedos que existiam nos cabeleira de celofane e o surrão: sistema de crenças que mistura
engenhos de cana-de-açúcar, uma estrutura de madeira presa candomblé e elementos místicos
como o caboclinho, o cavalo- às costas do caboclo, coberta de indígenas. São muitas histórias

Reprodução

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Alguns autores afirmam
que o maracatu
nasceu nos terreiros de
candomblé, quando os
escravos reconstituíam
a coroação do reis do
Congo

“bom, bonito”, em tupi; mara =


“guerra, confusão”; resultando em
maracatu, significando “guerra

Reprodução
bonita”, isto é, reunindo o sentido
festivo e o sentido guerreiro no
mesmo termo.
O Maracatu se distingue
das outras danças pela sua
que alimentam o imaginário por instrumentos de percussão e
coreografia. Há uma forte
popular. Mas o que se sabe de de sopro.
presença de misticismo na
real é que, antes do desfile, eles Alguns historiadores acreditam
maneira com que se dança
têm que passar por um ritual que a palavra maracatu
o maracatu, o que lembra as
de preparação, que inclui um designou, primeiramente, um
danças do candomblé. Balizas e
período de abstinência sexual instrumento de percussão e,
caboclos dançam todo o cortejo.
e não pode beber nenhuma só, então, a dança. No entanto,
Baianas e damas do Paço têm
bebida que não seja o azougue, sua origem não é certa, pois
coreografias especiais. Todos
uma mistura de cachaça, limão e alguns autores afirmam que o
os outros se movimentam mais
pólvora. Dizem que essa bebida maracatu nasceu nos terreiros de
discretamente. Já os caboclos e
é que dá sustentação para o candomblé, quando os escravos
guias fazem muitas acrobacias,
caboclo desfilar os três dias de reconstituíam a coroação do reis
que parecem com os passos dos
carnaval, sustentando o peso de do Congo. Com o advento da
frevos de carnaval.
suas roupas, que chegam a pesar abolição, este ritual ganhou as
Desde o início, o Maracatu é
25 quilos. ruas, tornando-se uma atração
tocado mais ou menos como
Depois dos caboclos, vem, na carnavalesca.
hoje: o gongue faz o ritmo; as
seqüência do desfile, os demais O escritor Mário de Andrade,
caixas, tambores de guerra; os
personagens, como rei, rainha, no capítulo Maracatu, no livro
ganzas e as alfaias mantêm o ritmo
baianas, porta-estandarte, pés- Danças Dramáticas Brasileiras
e os tambores de madeira tocam
de-bandeira, damas-de-buquê, II, relata diversas possibilidades
variados ritmos. A parte falada
dama-de-paço, caboclos de de origem da palavra maracatu,
foi sendo eliminada lentamente,
pena. Na ordem, vem o mestre, entre elas, uma provável origem
resultando em música e dança
aquele que canta as toadas e americana: maracá =“instrumento
próprias para homenagear a
comanda a orquestra, composta ameríndio de percussão”; catu =
coroação do rei.

19
O Maracatu Rural Águia garantindo o repasse desses desses conhecimentos pela
Formosa costumes e práticas culturais aproximação com a comunidade
às gerações seguintes. Criado e de oficinas informais de difusão
Da cidade de Tracunhaém, em 1999, o Águia Formosa só de saberes.
na Zona da Mata Norte de se oficializou em 2002, quando O Maracatu também realiza,
Pernambuco, o Grupo Maracatu se cadastrou na Associação dos desde 2006, o encontro dos
Rural Águia Formosa tem dez Maracatus de Baque Solto de Mestres de Cultura Popular,
anos de existência. O grupo se Pernambuco. perpetuando o conhecimento e a
destaca por preservar a essência O Grupo mantém outras sabedoria popular. O evento tem
do maracatu e manter, a cada atividades culturais, como o periodicidade anual.
ano, uma trajetória marcada cavalo-marinho e a ciranda. Por O Águia Formosa é presidido
pela originalidade na criação esse motivo, o Águia Formosa desde a sua criação pelo Mestre
de novos temas e adereços pode ser considerado como Edmilson Honório da Silva,
que surpreende o público e um centro de difusão e vivência reconhecido pelo vasto currículo
maracatus antigos do Estado. cultural, pois, além de conservar nas brincadeiras populares.
O grupo surgiu da vontade de três manifestações culturais, Desde 1988 ele brinca em
trabalhadores rurais de vivenciar mantém em suas atividades maracatus.
a sua cultura, perpetuando e ações de repasse e difusão Até fundar o Águia Formosa,
Foto: Glauco Spíndola

Foto: Glauco Spíndola

20
Foto: Glauco Spíndola

21
Os brincantes e folgazões
(como são chamadas as pessoas
que participam desses grupos),
são, na sua maioria, moradores da
região canavieira e os cortadores
de cana-de-açúcar, que trocam as
enxadas, as roupas de trabalho e
os chapéus de palha do dia-a-dia
pela gola, bordada em lantejoulas
coloridas, e pelas fitas de cor
viva das lanças dos caboclos,
personagens mais conhecidos
do folguedo. Sua indumentária
confere-lhes um aspecto de
grande imponência. Personagens
místicos do maracatu, os lanceiros
representam a figura do guerreiro
de Ogum.
O ritmo marcante do
Maracatu Rural se dá pelo ‘terno
de maracatu’, composto por
Foto: Glauco Spíndola

percussão que inclui chocalhos,


surdos, taróis, cuícas, gonguês
e ganzás e pela orquestra de
sopros que cadenciam a música.
Os versos, que tratam sobre o
universo dos maracatuzeiros
o Mestre Edmilson passou por Salú. Mestre do grupo, entoa loas, e dos temas da atualidade,
seis grupos, o primeiro deles improvisando a poesia rimada e são rimados e feitos de
foi o Estrela de Tracunhaém, de coordenando a apresentação do improviso pelos Mestres dessa
onde seguiu no ano seguinte grupo. manifestação.
para o Piaba de Ouro, do Mestre O cortejo desfila em círculo,
Salustiano, em Olinda. Maracatu Rural - Também
tendo ao centro o estandarte
Ele também foi Mestre dos conhecido como Maracatu de
e o terno de músicos, rodeado
maracatus Águia de Ouro (1992) e Baque Solto ou de orquestra,
por baianas, damas-de-buquê
Estrela da Tarde (1996), no Recife; o Maracatu Rural é originário
com ramos de flores de goma,
o Leão das Cordilheiras (2001), no da região canavieira, da Zona
boneca (calunga) e caboclos de
município de Carpina; além do da Mata de Pernambuco. É de
pena, conhecidos também como
Leão Coroado (2002) da cidade de tradição recente (século XIX) e
Reiamar. Rodeando este primeiro
Chão de Alegria, os dois últimos tem origem afro-indígena, dos
círculo vêm os Caboclos de Lança,
no interior de Pernambuco. grupos chamados “cambindas”
empunhando lanças compridas e
– brincadeira em que os homens
abrindo espaço na multidão, com
Maciel Salú - Na apresentação se travestem de mulheres. O
saltos e malabarismos.
do dia 18 de agosto, durante as Maracatu Rural é uma fusão de
Atualmente, existem 119
comemorações dos 21 anos de elementos de vários folguedos
Maracatus de Baque Solto
existência da Fundação Cultural populares existentes em
cadastrados na Associação dos
Palmares, o Maracatu Águia Pernambuco, como é o caso do
Maracatus de Baque Solto de
Formosa um convidado especial: pastoril, baianas, cavalo-marinho,
Pernambuco. O Maracatu Águia
o músico e rabequeiro Maciel caboclinho e folia de reis.
Formosa é um deles.

22
Congada

A congada, também chamada


de congo cucumbi ou terno
do congo, reúne elementos das
para filho. Esses cantos são
importantes para a preservação
da religiosidade e da memória
tradições tribais de Angola e do afro-brasileira.
Congo, com algumas influências Os instrumentos musicais
espanholas e portuguesas. utilizados são a cuíca, a caixa, o
Constitui-se em sua essência pandeiro, o reco-reco. Ocorre em
pela espiritualidade de religiões várias festividades ao longo do
africanas, como o candomblé e a ano, mas especialmente no mês
umbanda, mesclado com cultos de outubro, na festa de Nossa
católicos. Senhora do Rosário, considerada
A primeira notícia que se tem protetora do povo negro.
de uma festa de Congada no O ponto alto da festa é a
Brasil data de 1674, na Igreja de coroação do rei do Congo. A
Nossa Senhora do Rosário dos instrumentação varia em cada
Homens Pretos do Recife, em região, havendo destaque para
Pernambuco. Resiste ao tempo a percussão, estimulando muitos
graças à devoção passada de momentos de bailados vigorosos Os instrumentos
geração em geração. e manobras complicadas. Há
A Congada é uma procissão congos com grande quantidade
musicais utilizados
de personagens como escravos de caixas, chapéus de fitas, com são a cuíca, a caixa,
feiticeiros, capatazes, damas de manejos de bastões e espadas,
companhia e guerreiros que alguns grupos, inclusive, exibem o pandeiro, o reco-
levam o rei e a rainha até a Igreja, exemplares dos Exércitos dos reco. Ocorre em várias
onde serão coroados. O cortejo tempos do Império e início da
vai parando durante o trajeto República. festividades ao longo
para realizar danças e exercícios Animada por danças, cantos
do ano
de simulação de guerra ao som e músicas, o cortejo sempre
de tambores, pandeiros, reco- acaba numa igreja, em geral, as
recos, chocalhos e violas. de irmandades de negros, como
Existem três enredos básicos: Nossa Senhora do Rosário, onde, manifestação da Congada está
a luta entre mouros e cristãos, com a presença da corte e seus relacionada diretamente com a
em homenagem aos patronos, vassalos, acontece a cerimônia participação dos escravos bantos
Nossa Senhora do Rosário e São de coroação do Rei Congo e da nas diferentes fases da história da
Benedito; a dramatização de Rainha Ginga de Angola. escravidão.
uma batalha medieval na França; A coroação do rei negro se dá Na festa da congada também
e a saga do rei de Angola, Gola durante os rituais em louvor aos não pode faltar comida. A festa e
Bândi, envenenado pela meia- santos católicos Nossa Senhora a comida ocorrem no ponto mais
irmã, a princesa Ginga Bândi, por do Rosário, Santa Efigênia ou alto da comunhão. A ausência
ter-se recusado a converter-se ao São Benedito. A presença dos de uma delas é como se fosse
cristianismo. escravos de origem banta no o silêncio de Deus. Afinal, a
A evolução do congado é sudeste brasileiro explica a finalidade da festa representa
acompanhada por cantigas predominância da Congada na a revitalização, estimula a
e embaixadas – músicas região, marcada pelo ciclo da esperança e renova a força para
transmitidas oralmente de pai cafeicultura e da mineração. A seguir a vida cotidiana.

23
Congada de Uberlândia brasileiras tem lugar central no Congada como expressão das
calendário da cidade. O terno religiosidades afro-brasileiras.
A Congada na cidade de Moçambique de Belém tornou- A par de tudo isso, os
Uberlândia, Minas Gerais, é se um importante ponto de congadeiros de Uberlândia
uma das mais famosas do país. cultura com apoio do Ministério ocupam cada vez mais os espaços
Durante os dias de festa, os da Cultura. públicos procurando visibilidade
congadeiros ocupam as ruas e Os grupos de Congada de à sua manifestação e louvando os
aproveitam para protestar, nos Uberlândia possuem uma média seus santos devocionais.
rituais e cantigas, acerca das de cem a duzentos componentes
condições precárias em que e têm um público bastante Contos do Congo de
vivem os afrodescendentes. heterogêneo, composto por fiéis Itabira
A cidade de Uberlândia foi do catolicismo, da Umbanda, do
marcada durante décadas pela Candomblé, políticos, estudantes O grupo folclórico mineiro
discriminação e segregação universitários etc. Contos do Congo traz, direto de
racial, destinando inclusive Os católicos vêem a festa Itabira, um pouco da animação,
locais específicos em cinemas como homenagem aos seus da dança e da música herdadas
para brancos e negros. Hoje, a santos protetores, enquanto há séculos dos escravos das
Congada, uma das mais fortes os seguidores da Umbanda Minas Gerais.
manifestações culturais afro- e candomblé concebem a As congadas de Minas Gerais

24
são manifestações culturais que nos contagiam até hoje. tambor, mantendo o ritmo do
realizadas por nações negras O grupo Contos do Congo grupo. Também integram o
diversas e possuidoras de surgiu em 2006 e vem mantendo conjunto: Luís, no violão e voz;
antepassados comuns, que as tradições e divulgando a arte Edson, no tambor; Leonardo,
desenvolveram significados. e as origens do Congado mineiro, também no violão; Elvecinho,
Elas se expressam por meio remetendo o público à mais pura tambores e percussão; Rosário,
de danças, de percussões expressão conga, fazendo com se Aline e Cristina, formando o coro;
africanizadas e de cantorias que vivencie a verdadeira Folia de Reis. e, ainda, as crianças Emily e Joel,
conviveram com as imposições O grupo nasceu da necessidade que já formam a futura geração
e perseguições do ritualismo das pessoas preocupadas em do Congado mineiro.
cristão – nos tempos remotos resgatar e preservar o congo O repertório é variado e
em que os negros não podiam nas suas mais diversas formas de voltado às cantigas de Folia
participar dos cultos dos manifestação cultural. de Reis e marujada, congada,
brancos – ora adaptando-se, ora Hoje, o Grupo Contos do embaixadas e outras canções
afirmando-se como diferente, Congo é formado por dez de autores mineiros, sempre
mas sempre arranjando uma participantes, tendo como líder o mostrando a pluralidade dos
maneira de se expressarem com congadeiro Newton, responsável ritmos desenvolvidos nessas
simplicidade e alegria em ritmos por puxar os cantos e bater o manifestações.

Carlos Julião: cortejo da rainha negra, cerca de 1776

25
Tambor de crioula

P raticada principalmente
no Maranhão desde a época
da escravidão, a dança Tambor
cultural afro-brasileira.
O título de patrimônio
imaterial para o Tambor de
dos tambozeiros, enquanto as
demais, completando a roda
entre tocadores e cantadores,
de Crioula foi também inscrita Crioula reforça as origens, a fazem pequenos movimentos
pelo IPHAN como patrimônio história e a força cultural dessa para a esquerda e a direita;
imaterial, em novembro de 2007. manifestação, além de valorizar esperando a vez de receber a
Salvaguardar o Tambor e preservar a tradição. Ela é punga e ir substituir a que está no
de Crioula faz parte do praticada ao ar livre, nas praças meio. Quando a coreira que está
projeto do governo federal de ou no interior de terreiros. É muito dançando quer ser substituída, vai
reconhecimento das formas ligada também às festividades do em direção a uma companheira e
de expressão que compõem o bumba-meu-boi. Também possui aplica-lhe a punga. A que recebe,
amplo e diversificado legado características muito próximas vai ao centro e dança para cada
das tradições culturais de matriz de certas modalidades do samba um dos tocadores, requebrando-
africana no país. carioca, como o partido alto e o se em frente do tambor grande,
Considerada uma das mais samba de terreiro. do meião e o pequeno, e repete
belas expressões culturais dos Os tocadores e cantadores, tudo de novo até procurar uma
descendentes de escravos, o também denominados coreiros, substituta.
Tambor de Crioula envolve são conduzidos pelo ritmo As mulheres se vestem de saia
dança circular, canto e percussão dos tambores e das toadas, de chitão florido, bem rodada,
de três tambores e tem como acompanhados da punga para acentuar o movimento,
santo padroeiro são Benedito (ou umbigada): movimento anágua por baixo da saias, blusa
– protetor dos negros. O santo coreográfico no qual as branca de renda, com babado
faz parte do imaginário dos dançarinas, num gesto na gola, torso na cabeça, colares,
brincantes como um escravo entendido como saudação e geralmente descalças. Os
que foi à mata, cortou um tronco convite, tocam o ventre umas homens se vestem de calça,
de árvore e ensinou os outros das outras. Uma dançante de camisa de botão e chapéu de
negros a fazer e a tocar o tambor. cada vez faz evoluções diante couro ou de palha.
Outras vezes, ele surge como o
cozinheiro do monastério que
levava comida escondida em
suas vestes para os pobres.
De acordo com o então
ministro Gilberto Gil, ao
justificar a salvaguarda do
Tambor de Crioula, “um Plano
de Salvaguarda do Tambor
de Crioula deverá contemplar
políticas que assegurem a
transmissão dos saberes, o
estímulo a novos compositores
e o apoio ao registro fonográfico
e audiovisual”. O ex-ministro
Foto: Marcus Bennett

também destacou a necessidade


de se investir na difusão e no
incentivo de pesquisas sobre
a essa dessa rica manifestação

26
Cada cântico se inicia com
um solista que canta toadas
de improviso ou conhecidas,
repetidas ou respondidas pelo
coro, composto por homens
que se substituem nos toques
e por mulheres dançantes.
Os cânticos possuem temas
líricos relacionados ao trabalho,
devoção, apresentação, desafio,
recordações amorosas e outros.
O conjunto de instrumentos
que produz a música no Tambor
de Crioula é chamado de parelha.
Inclui básica e obrigatoriamente
três tambores de madeira –
ou, atualmente, também de
PVC – afunilados e escavados,
e cobertos com couro, preso
por cravelhas. Alguns grupos
utilizam-se também de matracas.
O tambor grande é amarrado
à cintura do tocador chefe, de
pé, preso entre suas pernas. Os
dois menores são apoiados no
chão, sobre um tronco, com os
tocadores sentados sobre os
tambores entre suas pernas.
Um ajudante, agachado atrás
do tambor grande percute
duas matracas, produzindo
interessantes variações de
acompanhamento.
A comida na festa de São
Benedito é de uma importância
significativa. Distribuí-la não
representa apenas alimentar
os convidados, mas seguir
o exemplo de caridade do
santo, demonstrar abundância,
superação das dificuldades.
E o seu preparo além de unir
brincantes e comunidade, revela
aspectos fundamentais para a
Foto: Marcus Bennett

continuidade dessas práticas.


O cardápio é popular: galinha,
carne de gado e porco, torta de
camarão, tapioca, farofa, bolos.

27
NEGRICE CRISTAL

Carnaval em Abuja - Nigéria

P
assados 21 anos podemos olhar orgulho. Agora que completa a maior
para trás e ver um longo caminho idade, quero participar da festa, mas
que percorreu até chegar aqui. não venho sozinho trago comigo o meu
Criticada por alguns, odiada por outros, trabalho, ou melhor, a minha obra que
incompreendida por tantos outros, mas tem sido muito respeitada por ela, para
querida por muitos, ninguém pode negar participar dessa festa.
que a Fundação Cultural Palmares é a Negrice Cristal é uma proposta de
única organização de Estado voltada trabalho que equaliza em sua essência
para desenvolver políticas culturais o pensamento desde dentro, para
para o povo descendentes de escravos desde fora, através de um conjunto de
africanos no Brasil e o conjunto da fotografias.
sociedade brasileira. Nós, brasileiros, temos maneiras
Em parceria com outros militantes, próprias de ser, agir e pensar, diferentes
participei do seu nascimento com muito de qualquer outro povo do mundo.

28
Lavagem do Bonfim - Salvador - Brasil
Nasceram por aqui os “jeitinhos à
brasileira”, tanto para o lado do bem
quanto para o do mal.
Sim, como diriam alguns estudiosos do
assunto, a primeira coisa que nos vêm à
mente, quando nos expressamos sobre
os “jeitinhos”, é a atitude da esperteza.
Ou será um jeito criativo de ser?
Eu só sei dizer que o brasileiro dá
jeito para tudo, embora os famigerados
“jeitinhos” não sejam a única adjetivação
com que se possa defini-los.
O professor Lourenço Stelio Rega,
teólogo, educador e escritor, escreveu
um tratado sobre o “jeitinho” e não o
vê como atitude do gesto cultural. Só
como saídas para situações sem saída.
O autor apresenta o lado positivo desta
personal característica brasileira, qual
seja: inventividade/criatividade, função
solidária e o lado conciliador do jeitinho.
Nós, negros brasileiros, podemos
colocar mais “dendê” neste debate, uma
pitada afro-descendente nos “jeitinhos”,
porque não? Quando um olhar de dentro
enxerga um outro Brasil – portanto um
olhar de fora –, reforça duas vertentes
fundamentais e estruturantes no cenário
em questão: o ideológico e o cultural. E
são nessas vertentes que nós, negros,
estamos inseridos no imaginário do
conjunto da população brasileira.
Sob o olhar ideológico, somos
desiguais, mas o olhar cultural nos torna
igual. Essa contradição nos persegue
desde o período da escravidão. Os
africanos, que aqui chegaram na condição
de escravizados, eram considerados
“coisas” e desprovidos de humanidade.
A “humanidade” do escravo só era
reconhecida, quando ele cometia crimes,

29
Cocadeira do Palenque de San Basílio - Colômbia

porque era julgado pelos tribunais, como discriminam o que chamariam de “o


qualquer cidadão. nosso jeito de ser”.
No meu trabalho, apresento e realço São imagens que aguçam as percepções
“esse negro jeito de ser”, presente nos cravadas na resistência das populações
africanos e em seus descendentes. quilombolas, nas práticas religiosas
Procuro, através do meu olhar fotográfico, de matriz africana, comportamento no
mostrar que nós, negros, temos maneiras cotidiano e nas “pegadas” deixadas
de representar, simbolicamente e de como marcas civilizatórias de um homem
forma original, os usos e costumes, novo, que se sente pertencido à diáspora
valores materiais e imateriais, sem africana propositiva na atualidade.
passar pelas desqualificações impostas
pelo conceito do “exótico e do “primitivo”,
mesmo vivendo dentro dos padrões Januário Garcia
ideológicos e culturais ocidentais, que Fotógrafo

30
Aos 21,
O s olhares de boa parte
do Brasil e dos brasileiros
se voltam, hoje, para esses 21
como elemento fortalecedor
da cidadania, capaz de inserir
socialmente e gerar economia.
e democrática, adotada pela
Fundação Cultural Palmares
na sua trajetória, valorizada
anos da Fundação Cultural Por isso, cada vez mais aposta pelo trabalho competente dos
Palmares comemorados com na necessidade de estimular o dirigentes que aqui passaram:
muito orgulho. Nessa trajetória, interesse público para as muitas Carlos Moura, Adão Ventura,
é incontestável sua liderança expressões da cultura brasileira. Joel Rufino dos Santos, Dulce
em todas as dimensões da luta Comemorar esses 21 anos Pereira e Ubiratan Castro.
por igualdade de direitos e pela da Fundação Cultural Palmares Um diálogo que dá à cultura o
valorização e preservação das é também ver e saber a cultura lugar estratégico que lhe cabe
manifestações culturais afro- brasileira em toda a sua na dimensão do Estado e em
brasileiras nesse Brasil profundo complexidade e especificidade. parceria com a sociedade. Assim
e rico em diversidade. É ter uma política da cultura é que entendemos o papel
Aos 21 anos, a FCP voltada para uma dinâmica de da Fundação no contexto de
potencializou a cultura afro- diálogo que se perpetue na troca responsabilidades que lhes foram
brasileira, oferecendo o apoio de saberes e no desafio de uma conferidas nesses 21 anos na
institucional e disponibilizando gestão compartilhada com uma cena cultural brasileira. Somos
as suas várias manifestações a agenda social voltada para a protagonistas e consumidores
um público cada vez maior e mais irradiação das manifestações. de cultura. Mas, mais do que
interessado em conhecer essa Esse diálogo, que a todos isso, levamos a todos a certeza
cultura sempre referenciada como enriquece, é o ponto central de de que a cor da cultura brasileira
“popular”. Mas a entendemos uma política cultural humanística também é negra.

Troféu Palmares
A Fundação Cultural Palmares, Afonjá, e o ministro da Cultura
instituiu o Troféu Palmares com Juca Ferreira, na comemoração
o propósito de prestar justa do aniversário dos vinte anos da
homenagem a pessoas que instituição, em agosto de 2008.
contribuíram com a trajetória No aniversário dos 21 anos,
da Fundação e que tenham os homenageados indicados são:
representatividade e destaque Mãe Beata de Iemanjá (Beatriz
na luta contra o preconceito e Moreira Costa. Religiosa de
a favor da igualdade racial. O matriz africana do candomblé, é
Troféu reproduz a logomarca da conhecida sacerdotisa e ativista
Fundação Palmares, com a forma social do Rio de Janeiro, dedica-
do machado de Xangô, que se há décadas à valorização
simboliza a justiça. da cultura e da religião afro-
Já foram homenageados brasileira, como também pelos
a atriz Zezé Motta, conhecida direitos das mulheres.
ativista da causa negra, a ialorixá Esther Grossi. Professora,
Mãe Stella de Oxóssi, ialorixá de escritora e ex-deputada federal, no ensino fundamental e médio,
um dos mais conhecidos terreiros é autora da lei nº 10.639/2003, a História e a Cultura da África e
de Salvador, o Ilê Axé Opô que institui a obrigatoriedade dos afro-brasileiros.

31
Foto: Regina Santos

32
Artigos
Comunidades
quilombolas, suas lutas,
sonhos e utopias
Para uma abordagem inicial acerca do negro no Brasil é fundamental reconhecer que a
omissão da historiografia oficial sobre a sua participação em vários momentos de luta
pelos direitos humanos contribui para o não reconhecimento do papel desempenhado
na construção do país. Apesar de visto apenas como massa escravizada indispensável
ao processo de enriquecimento das classes abastadas, o negro não foi passivo, muito
menos resignado, nem durante o período da escravidão, tampouco no período pós-
escravidão, em que a busca por cidadania plena constitui-se a marca do movimento
social negro brasileiro em tempos pós-modernos.

Joseane Maia Santos Silva

D e acordo com Munanga &


Gomes (2006), a história
da escravidão mostra que luta e
coletivo da terra formaram as
bases de uma sociedade fraterna
e livre das formas mais cruéis de
Guerra da Balaiada (Maranhão,
1838-1841).

Personagens históricos
organização, marcadas por atos preconceitos e de desrespeito a
de coragem, caracterizaram o sua humanidade. O principal desses movimentos,
que se convencionou chamar As poucas linhas nos livros a Balaiada, de cunho social,
de “resistência negra”, cujas didáticos que circularam até a por reunir as massas oprimidas
formas variavam de insubmissão década passada, com destaque, (pobres, índios, fugitivos e
às condições de trabalho, às vezes, apenas para o Quilombo prisioneiros). Opunha-se aos
revoltas, organizações religiosas, de Palmares, em Alagoas, abusos dos proprietários de terras
fugas, até aos chamados escondem fatos importantes e aos comerciantes portugueses,
mocambos ou quilombos. De como população (cerca de 30 tendo nos quilombolas apoio
inspiração africana, os quilombos mil) e a efetiva participação ostensivo até o fim do combate,
brasileiros co n s t i t u í r a m - do negro nos movimentos com destaque para a figura
s e estratégias de oposição “a populares em diferentes regiões de Negro Cosme, considerado
uma estrutura escravocrata, do país. Engajado coletivamente, um dos mais importantes
pela implementação de uma sua luta ultrapassou a questão personagens da luta contra a
outra forma de vida, de uma escravagista como comprovam escravidão.
outra estrutura política na qual os fatos ocorridos na Revolta dos Liderando milhares de
se encontraram todos os tipos Alfaiates (Bahia, 1798-1799), na negros, escravos e pretos libertos,
de oprimidos”. Desse modo, os Cabanagem (Pará, 1835-1840), na africanos e crioulos, ele tinha um
laços de solidariedade e o uso Sabinada (Bahia, 1837-1838) e na projeto específico – a insurreição

33
contra a escravatura, em favor da O quilombo não

Foto: Regina Santos


liberdade – o qual muitas vezes
foi confundido com a luta mais significou apenas
geral dos chamados bem-te-vis1. um lugar de refúgio
Preso em fevereiro de 1841, foi
executado em setembro de 1842, de escravos fugidos,
após ser condenado à forca por
mas a organização de
liderar no Maranhão uma das
mais temidas insurreições do uma sociedade livre
povo negro ocorridas no Brasil.
Até aqui, visitando o passado, formada de “homens
de forma resumida, pode-se e mulheres que se
constatar que o quilombo não
significou apenas um lugar de recusavam viver sob o
refúgio de escravos fugidos, mas regime da escravidão e
a organização de uma sociedade
livre formada de “homens e desenvolviam ações de
mulheres que se recusavam viver
rebeldia e de luta
sob o regime da escravidão e
desenvolviam ações de rebeldia
e de luta contra esse sistema”,
como define Munanga & Gomes comunidades de quilombolas”
(2006). comprovam não haver consenso
quanto à questão quilombola,
Proprietários legítimos visto que a origem dessas
comunidades apontam para a
Hoje, mais especificamente a compra da terra pelos escravos
partir dos anos 1970, a questão alforriados, para a doação de
quilombola foi recolocada terras pelos proprietários falidos,
no contexto nacional com a para a prestação de serviços
“descoberta das comunidades em revoltas e não somente
quilombolas”, graças, em grande pela referência aos redutos de
parte, ao movimento negro negros fugitivos. Nesse sentido,
contemporâneo e ao exercício historiadores e antropólogos
intelectual de vários autores como advertem para o fato de o termo
Abdias do Nascimento, Clóvis quilombo, tomado político e
Moura, Beatriz Nascimento, Lélia juridicamente, abrigar, sob um
Gonzalez, Joel Rufino, Kabengele mesmo teto conceitual, todas
Munanga, dentre outros. Ao lado as comunidades negras cujas
disso, é importante mencionar formações são particulares e
a mobilização política que adversas.
culminou na publicação de Aqui importa lembrar, ainda,
um artigo das Disposições que muitas comunidades foram
Transitórias (68), da Constituição formadas após a promulgação
de 1988, que dá direito à titulação da Lei Áurea, que extinguiu a
das terras ocupadas. escravidão, por uma forte razão:
Variações como “Terras de era a única possibilidade do
pretos”, “comunidades negras negro viver em liberdade, em um
rurais”, “remanescentes das espaço onde sua cultura não era

34
desprezada, sendo possível, por
isso, preservar a dignidade.
Por essa razão, em que pese
a advertência, é incontestável
a existência de territórios
remanescentes de quilombos
em todas as regiões do Brasil,
como comprovam vários estudos
citados por Ratts (2001) para
quem não faz sentido “enquadrá-
los outra vez num tempo e num
espaço únicos”.

Resistência e organização

Assim sendo, tendo como marcas


incontestes a resistência e a
organização, essas comunidades
negras rurais têm empreendido
uma luta pelos direitos à liberdade,
cidadania e igualdade, no conjunto
das reivindicações pela posse da
terra – bens considerados sagrados
e formadores de uma identidade
étnica. Demanda essa legítima, na
medida em que o Estado brasileiro
contraiu uma dívida secular com
a população negra, formando,
assim, juntamente com outras
classes sociais marginalizadas,
o que Ariano Suassuna chama
de Brasil real em contraposição
ao Brasil oficial das classes
privilegiadas.
O fato é que, concentrando a
maior quantidade de quilombos,
o Nordeste possui centenas
de comunidades negras cuja
resistência cultural imprime-lhes
características próprias, verificáveis
nos costumes, nas tradições, nas
festividades e nas manifestações
religiosas.
Detentores de um patrimônio
cultural rico e valoroso, porém,
desconhecido de muitos, as
comunidades remanescentes
de quilombos são formadas de
grupos sociais cuja identidade

35
étnica constitui a base de suas perceberem-se como sujeitos Atualmente, os encontros
vivências cotidianas, bem como históricos, sociais, capazes de são organizados pela Associação
das ações políticas levadas a efeito modificar a realidade de opressão de Comunidades Negras Rurais
pelas entidades que lutam pelos em que vivem – resquício da forma Quilombolas (Aconeruq), criada
seus direitos, caso do Estado do de racismo ainda existente no em 1997, filiada à Coordenação
Maranhão, por exemplo, onde país. Valorizando a arte e a cultura Nacional de Articulação das
existem mais de seiscentas negra como legado importante Comunidades Negras Rurais
comunidades. no processo de civilização do Quilombolas (Conaq), assim como
A questão dos remanescentes Brasil, o CCN tem se destacado vários projetos cujos objetivos
de quilombolas maranhenses pela pesquisa, pelos projetos e abarcam a formação cultural e
insere-se na história do Centro de pelos contatos diretos com as qualificação profissional de jovens,
Cultura Negra do Maranhão (CCN), comunidades negras rurais, bem regularização das associações
criado em 19 de setembro de 1979, como pela realização de encontros, quilombolas, o processo de
entidade cuja luta, organização e desde 1986, em parceria com a identificação e mapeamento das
projetos visam ações de formação Sociedade Maranhense de Direitos comunidades quilombolas.
para os afrodescendentes Humanos (SMDH). Em 2006, o maior evento desse

36
seguimento no Brasil aconteceu comunidades estão vinculadas à se deslocam para a zona urbana do
em Itapecuru-Mirim/MA, quando crise açucareira e algodoeira, na município ou para a capital.
foi realizado o VIII Encontro segunda metade do século XIX, No município de Caxias2,
Estadual de Comunidades Negras que obrigou muitos proprietários distante 360 km da capital, por
Quilombolas do Maranhão, endividados a abandonarem exemplo, há situações de conflitos
com a participação de mais de suas terras, possibilitando que não giram apenas em torno
duas mil pessoas no qual foram muitas famílias de escravos e ex- da manutenção da terra, mas
discutidos temas como Território escravos a apropriação de terras pelo reconhecimento, por parte
e Identidade, além de prestarem incultas e abandonadas, gerando, do poder público, da propriedade
homenagens ao líder da Balaiada, atualmente, intensas disputas com garantida pela Constituição
Negro Cosme. fazendeiros, grileiros e um projeto Federal, uma vez que “há
de base espacial, como é o caso comunidades cujas áreas ainda
Situações de conflito de Alcântara, onde existiu e ainda estão em poder daqueles que
existe ameaças de deslocamento se autodeclaram ‘proprietários’,
Vale acrescentar que, no forçado das comunidades, e as famílias são forçadas ao
Maranhão, a origem dessas desestruturação das famílias que aforamento, obrigadas a pagar

Foto: Regina Santos

37
‘renda’ para permanecerem na Detentores de um de bens materiais e imateriais
terra”, de acordo com o Projeto que compõem um patrimônio
Nova Cartografia Social da patrimônio cultural simbólico, preservado pela
Amazônia. memória também coletiva. Como
rico e valoroso, porém,
Às vezes, a intervenção do exemplo, destacam-se a realização
poder público não põe fim ao desconhecido de da Festa do Divino e a contação de
conflito, pois a área desapropriada estórias populares.
muitos, as comunidades
não corresponde ao território Passadas duas décadas da
reclamado pelas comunidades remanescentes de publicação do Artigo 68, da
quilombolas, ficando muitas Constituição Federal de 1988, e seis
relíquias (ruínas das antigas sedes quilombos são formadas anos da publicação do Decreto
das fazendas, das senzalas, poços, de grupos sociais cuja nº 4.887/2003, que regulamenta
cemitérios etc.) dentro das áreas o processo de identificação,
privadas. identidade étnica constitui reconhecimento, demarcação e
Geralmente, esses povoados, titulação das terras ocupadas por
a base de suas vivências
se caracterizam pelo sistema remanescentes das comunidades
de uso comum da terra, base cotidianas de quilombolas, atualmente, a luta
essencial para um modo de vida continua nos âmbitos jurídico e
“norteado por valores, onde educacional.
os laços de consangüinidade e aglutinador no processo de Ao longo desses anos, o
compadrio têm relevância com preservação de uma identidade processo de titulação da posse
cumprimento de ritos recebidos étnica, cuja ligação com o passado da terra caracteriza-se pela
dos antepassados”, como veicula o contribui para a manutenção morosidade e pelos conflitos em
site do CCN. de práticas sociais e culturais várias regiões do país, e o que
Assim, é possível afirmar singulares em um espaço próprio parecia apenas ameaça de não
que isso se constitui elemento onde prevalece o uso coletivo cumprimento da lei, em setembro
Foto: Regina Santos

38
de 2008, virou fato concreto, na e Africana, um dispositivo que e contemporâneos. In: De vôos e
audiência pública sobre o decreto realmente ponha na pauta do ilhas: literatura e comunitarismo.
4.887/2003, quando cerca de 500 currículo o que a historiografia São Paulo: Ateliê Ediitorial, 2003.
quilombolas de vários estados omitiu durante séculos. Fazer
MUNANGA, Kabengele & GOMES,
do país compareceram a Brasília acontecer um ensino que analise e
Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje.
para discutir o Projeto de Decreto discuta acerca do papel do negro
São Paulo: Editora Global, 2006.
Legislativo (PDL) 44/2007 que, se na história do Brasil e do mundo é
aprovado, suspende o decreto tarefa articulada entre educadores, MÜNSTER, Arno. Ernst Bloch e o
de 2003, o que significa lutar diretores, pessoal de apoio novo espírito utópico. In: Ernest
novamente para manter um direito pedagógico e administrativo Bloch – filosofia da práxis e utopia
já adquirido. da escola e membros das concreta. São Paulo: Editora UNESP,
O depoimento de uma comunidades. Isso leva a crer que 1992.
componente do Quilombo Olho se está a iniciar uma outra luta RATTS, Alecsandro J. P. (Re)
D’ Água do Raposo, de Caxias-MA, para a qual todos, e não somente conhecer quilombos no território
expõe de maneira apropriada o os negros e/ou as comunidades brasileiro. In: FONSECA, Maria
sentido dessa resistência: A forma remanescentes de quilombolas, de Nazareth Soares (Org.) Brasil
da chibatada se modernizou, a são convocados a fazerem uma afro-brasileiro. Belo Horizonte:
situação é a mesma, o conflito é o releitura da história brasileira. Autêntica, 2001.
mesmo. Quanto ao sonho – de
Projeto Nova Cartografia Social
Assim posto, no presente, igualdade racial - tomara que seja
da Amazônia. Série: Movimentos
a situação das comunidades diurno, como advoga Abdala Júnior
sociais, identidade coletiva e
rurais negras gira em torno da (2003) porque, ao contrário do
conflitos. Fascículo 8: Quilombolas
necessidade de permanência na sonho noturno, é capaz de mover
de Caxias do Maranhão, maio de
terra, com direito à titulação, bem as sociedades. Quanto à utopia – o
2006.
como a todas as políticas públicas direito à vida digna – que seja no
destinadas ao povo brasileiro, com sentido defendido por Ernst Bloch, SYDOW, Evanize. Alcântara:
destaque para a saúde e educação. em Münster (1992), que, diferente Vida e resistência: comunidades
A propósito, outra iniciativa do do conceito abstrato de Thomas remanescentes de quilombos de
poder público, o Programa Brasil Morus, articula esperança e desejo Alcântara, Maranhão. São Paulo:
Quilombola, criado em 2004, com práxis humana. Rede Social de Justiça e Direitos
sob a coordenação da Secretaria ------------------------------------------- Humanos, 2004.
Especial de Políticas de Promoção Notas
da Igualdade Racial (Seppir), 1 - Os bem-te-vis representavam Site do Centro de Cultura Negra do
tem como objetivo articular a classe média que deu início ao Maranhão: www.ccnma.org.br
ações “transversais, setoriais e movimento contra os grandes
fazendeiros e que, depois, aliaram-se
interinstitucionais”, juntamente às tropas que combateram os balaios
com a sociedade civil. e, principalmente, ao negro Cosme.
2 - Município onde desenvolvo
Na sala de aula pesquisa de doutorado que consiste
em coletar contos, mitos, lendas e
causos como manifestação folclórica
Do ponto de vista educacional, de quatro comunidades: Jenipapo,
vale lembrar que não basta apenas Mandacaru dos Pretos, Olho D’Água Joseane Maia Santos Silva é
do Raposo e Cana Brava das Moças.
tornar concreto o acesso à escola, professora do Centro de Estudos
-------------------------------------------
sendo indispensável um programa Superiores de Caxias (UEMA)
Referências
de formação dos professores, e doutoranda em Estudos
tornando a Lei nº 10.639/2003, Comparados de Literaturas de
ABDALA JÚNIOR, Benjamin. De
que torna obrigatórios o ensino Língua Portuguesa, FFLCH-USP.
Vôos e Ilhas – Imagens utópicas e o
da História e Cultura Afro-Brasileira joseanemssilva@yahoo.com.br
mito de Ícaro em recortes clássicos

39
Foto: Regina Santos

Reconhecimento e Proteção
das Comunidades Quilombolas
A
Fundação Cultural Palmares já firmou voltadas para a população negra, visando à
o registro e a certificação de 1.342 preservação de seus valores culturais,
comunidades remanescentes de quilombos, sociais e econômicos.
abrindo caminho para que esses grupos A Fundação Cultural Palmares é
historicamente excluídos e isolados tenham responsável também pela promoção e o
acesso aos bens e serviços voltados apoio de pesquisas e estudos relativos à
ao fortalecimento da cidadania, como história e à cultura dos povos negros e pela
saúde, educação, justiça social e direito à inclusão dos afro-brasileiros no processo
propriedade. de desenvolvimento. Consideram-se
A FCP é o órgão responsável por esse remanescentes de quilombos os grupos
reconhecimento porque sua missão, entre étnicos raciais, segundo critérios de
outras, é promover políticas públicas autodefinição de cada comunidade, desde

40
que tenham trajetória histórica própria, autossustentabilidade das comunidades
relações territoriais específicas e presunção remanescentes de quilombos.
de ancestralidade negra relacionada com Os resultados dessa ação implicaram
formas de resistência à opressão histórica a redução do êxodo rural, por meio da
sofrida. formação de lideranças para o enfrentamento
A primeira certidão emitida pela Fundação dos principais conflitos decorrentes da
Cultural Palmares foi para a comunidade reivindicação dos direitos de posse da
de Morro Alto, localizada na divisa entre terra. Outros avanços importantes foram a
os municípios de Osório e Maquiné, no construção de cadastro socioeconômico e
Rio Grande do Sul, em março de 2004. cultural das comunidades remanescentes de
A Fundação Cultural Palmares não se quilombos e o fortalecimento e a organização
limita a emitir as certidões e acompanhar a de suas representações estaduais e
regularização das terras dos quilombolas. A regionais, com formação e capacitação de
marca principal de sua atuação é a proteção gestores para a construção de parcerias,
do patrimônio cultural (material e imaterial) elaboração e implementação de projetos de
e o estímulo de iniciativas que garantam a etnodesenvolvimento.

41
Desafios e
conquistas
Maurício Jorge Reis

A lei nº 7.668, de 22 de
agosto de 1988, instituiu a
Fundação Cultural Palmares (FCP)
remanescentes de quilombos,
como:
. a Constituição Federal de
de novembro de 2007, que trata
dos procedimentos para emissão
da Certidão de autodefinição.
com a finalidade de promover 1988, por meio dos artigos 215, Esse conjunto de ações legais
a preservação dos valores 216 e o Artigo 68 do Ato das faz-se necessário para promover
sociais econômicos e culturais, Disposições Constitucionais a implementação de políticas
decorrente da influência negra Transitórias–ADCT 68, verbis: públicas em prol da inclusão
na formação da sociedade “Aos remanescentes das social, econômica e cultural
brasileira. Cumprindo sua missão comunidades dos quilombos dessas comunidades.
institucional, a FCP foi, até o início que estejam ocupando Vale destacar que por meio do
de 2003, a primeira instituição suas terras é reconhecida a decreto nº 4.887/2003 compete
pública federal que tinha dentre propriedade definitiva, devendo à FCP a emissão da certidão
as várias ações necessárias o Estado emitir-lhes os títulos de autodefinição, levando em
ao Estado para propiciar o respectivos”; consideração a definição do
processo de promoção da . o decreto nº 4.887, de 20 de referido Art. 2, do citado decreto
igualdade racial. Notadamente, novembro de 2003, art. 2, verbis: e de acordo com a Portaria 98,
destacamos as seguintes ações, “Consideram-se remanescentes que estabelece os procedimentos
exclusivamente p ar a os p ovos das comunidades dos quilombos, para emissão da certidão.
remanescentes de quilombos: para os fins deste Decreto, os Dentre as informações,
o etnodesenvolvimento, a grupos étnico-raciais, segundo destacamos que a comunidade
proteção aos bens culturais afro- critérios de auto-atribuição, que possui ou não associação
brasileiros e a capacitação de com trajetória histórica própria, legalmente constituída deverá
recursos humanos em cultura dotados de relações territoriais apresentar ata de reunião
e patrimônio afro-brasileiros. O específicas, com presunção de convocada para específica
próprio conceito de “quilombo” ancestralidade negra relacionada finalidade de deliberação a
também fora difundido e com a resistência à opressão respeito da autodefinição,
ampliado com a participação da histórica sofrida”; aprovada pela maioria de seus
Fundação Cultural Palmares.
To d a s e s s a s a çõ e s s ã o
.a Convenção nº 169, da
moradores, acompanhada de
lista de presença devidamente
Organização Internacional do
l e g i t i m a d a s p o r m a r co s assinada.
Trabalho; e
regulatórios que asseguram Até julho de 2009, foram
o exercício da cidadania dos . a portaria interna nº 98, de 26 certificadas 1.342 comunidades

42
remanescentes de quilombos. participação efetiva dessas
Esta ação tem propiciado o resgate comunidades na formação
à identidade, a diversidade cultural, da sociedade brasileira,
o pertencimento de sua trajetória como patrimônio cultural
histórica. Vale destacar que essa brasileiro, respeitando a
política tem permitido a inclusão diversidade cultural, suas
das comunidades quilombolas formas de expressão, os modos
nos programas sociais do governo de criar, fazer e viver; as
federal como: Programa Brasil criações científicas, artísticas
Quilombola (coordenado pela e tecnológicas; as obras, os
Secretaria Especial de Políticas objetos, os documentos, as
de Promoção da Igualdade edificações e demais espaços
Racial – SEPPIR), Agenda Social destinados às manifestações
Quilombola, a construção artístico-culturais; os conjuntos
de escola, qualificação dos urbanos e sítios de valor
professores quilombolas pelo histórico, paisagístico, artístico,
Ministério da Educação, merenda arqueológico, paleontológico,
escolar diferenciada (Ministério ecológico e científico.
da Educação), Programa Saúde Garantir as terras quilombolas,
da Família, saneamento básico embora não mais nas atribuições
(Ministério da Saúde), Luz para da FCP, é preservar a identidade,
Todos (Ministério de Minas a forma de organização política,
Energia), a construção de Centro econômica, social, religiosa e
de Referência de Assistência cultural com suas especificidades.
Social (CRAS), distribuição de É respeitar a ancestralidade
cestas alimentares (Ministério e a trajetória histórica dessas
de Desenvolvimento Social comunidades na formação da
e Combate à Fome), dentre sociedade brasileira.
outras ações governamentais,
retratando o compromisso na
implementação de políticas Maurício Jorge Reis é
Foto: Regina Santos

públicas para essas comunidades. diretor do Departamento


Entendemos que promover de Proteção ao Patrimônio
o exercício pleno da cidadania Afro-Brasileiro da Fundação
é reconhecer e valorizar a Cultural Palmares

43
As cinderelas e os lobos
a mulher negra e o turismo sexual

O sonho de encontrar o príncipe encantado leva jovens mulheres e adolescentes, em


sua maioria negras, a entrar no mundo cruel da exploração sexual. Cinderelas e lobos se
encontram numa intricada rede de sedução e exploração em que sonhos são desfeitos de
maneira brutal.

Joel Zito Araújo

A existência de um crescente
turismo sexual de homens
estrangeiros no Brasil é resultado
filme, buscamos compreender
como esses atores, em seus
encontros e desencontros,
existência da mestiçagem.
Pa r a d ox a l m e n t e ,
“excepcionalismo” defendido
este

de uma complexa rede de atores atuam e redefinem a interação está confirmando, ao invés
e motivos. Ela é constituída por de imaginários sexuais, raciais de negando, a existência do
crianças e jovens brasileiras e de poder que contradizem o racismo como problema social
pobres, turistas europeus e enfatizado discurso de ausência e de direitos humanos que
norte-americanos em sua de preconceitos raciais na demandam consciência pública
maioria, além de contar com América Latina e em países e políticas específicas. Um
o envolvimento de uma rede europeus. racismo que também se expressa
de diversos agentes legais e No Brasil, manejam-se na circulação de estereótipos
ilegais da indústria internacional discursos públicos em que a sobre a mulher negra em
do turismo sexual, tais como prática da discriminação racial geral e a mulher brasileira em
agências de viagens, hotéis, é negada ou minimizada. Tal particular, como podemos ver
boates, sites de relacionamento e entendimento segue uma nos depoimentos tomados no
grupos mafiosos. tradição intelectual enfatizada processo de filmagens.
Mas, o que motivou a desde a construção do mito da Apesar do romantismo e
realização do filme Cinderelas, democracia racial, na primeira do sonho de cinderela que
Lobos e um Príncipe Encantado metade do século XX, e encontramos nas jovens e
foi perceber que dois terços enriquecido, no período atual, adultas, essas práticas estão
das mulheres, adolescentes e pelas discussões sobre o suposto repletas de violência e ofensas
crianças, objetos do desejo dos excepcionalismo das relações cotidianas aos direitos de
turistas estrangeiros são afro- raciais na América Latina, crianças, adolescentes e
descendentes. segundo a qual a discriminação mulheres.
Na jornada de construção do racial foi superada pela Mas, a contradição do real é

44
que, mesmo tendo uma certa
consciência e até mesmo vivência
dos perigos que as cercam,
jovens mulheres brasileiras, ao
entrarem no mundo do turismo
sexual acreditam que vão mudar
de vida, que poderão ascender
socialmente e estão seguras
que acabarão por superar os
obstáculos e encontrarão o tão
sonhado príncipe encantado –
homens nórdicos, com padrão
de vida estável e confortável,
inte ress a d os em gat as
b o r r alh e ir as qu e encondem
dentro de si uma cinderela
disposta a encaixar-se no
estereótipo da mulher brasileira
que foi construido em suas
cabeças.
O filme documentário
Cinderelas, Lobos e um Príncipe
Encantado buscou também
encontrar e mergulhar no
imaginário desse homem
europeu que, através do turismo
sexual, parece conseguir viver a
concretização de duas grandes
nostalgias: a dupla superioridade
oriunda da herança de um
imaginário colonial e das
relações machistas (que tem sido
progressivamente derrotada
pelo movimento feminista de
seus países).
É interessante perceber que
a maioria dos estrangeiros que
vem ao Brasil em busca de seus
15 dias de “aventura, praia e sexo”
é das classes subalternas. Em
seu imaginário consolidou-se a
imagem da mulher afro-brasileira
como sensual, lasciva, meiga,
submissa e sempre predisposta
ao sexo. Uma mulher interessada
mais no mundo doméstico, da
cama e mesa, do que nos valores
da mulher autônoma que disputa
o mundo do trabalho e tem os

45
direitos e deveres típicos do
mundo contemporâneo.
No resultado desse encontro,
contastamos que uma minoria
das mulheres consegue
encontrar um grande amor
e casar, mesmo que tenham
de submeter-se a tais valores
masculinos conservadores
e machistas, como pode ser
visto no filme, especialmente
nos depoimentos tomados na
Alemanha e na Itália.
Mas a adolescente e a
mulher, em sua maioria afro-
brasileira, nunca se vêem como
exploradas. Elas idealizam no
turismo sexual, em seus namoros
com estrangeiros, a conquista de
um passaporte simbólico para o
“primeiro mundo” que poderá
tirá-las do cinturão de pobreza,
da baixa-estima e dos ostracismos
preconceituosos de classe e raça.
É portanto, também um ideal de
“autonomia” diante do machismo
local que também se alimenta de
uma extrema pobreza e falta de
alternativas.
Entretanto, foi possível
ver que em muitas delas,
especialmente naquelas mais
objetivas e realistas, que o mais favorecidos no Brasil, e Elas idealizam no turismo
romantismo está caindo em amplamente difundido pela
desuso. Pragmáticas, elas publicidade e pela mídia. sexual, em seus namoros
Acabamos por compreender
justificam sua incorporação nesta com estrangeiros,
forma de indústria do sexo como que o fenômeno do turismo
uma maneira muito concreta sexual vai além dos desejos a conquista de um
de participar da sociedade de intercurso sexual e afeto
passaporte simbólico
de consumo, de vivenciar temporário ou permanente
os equipamentos de lazer e entre homens brancos europeus para o “primeiro mundo”
entretenimento que somente os e jovens mulheres negras e
mestiças, ou da exploração que poderá tirá-las da
extratos de classe média ou alta
tem condições de ter. erótica perversa de crianças e pobreza, da baixa-estima
Em outras palavras, é a adolescentes, ele é também um
maneira que elas têm de fenômeno social e migratório e dos preconceitos de
que está reconfigurando a
participar dos valores e de classe e raça
um estilo de vida que são costa nordeste do Brasil e está
comuns a segmentos sociais conectado aos problemas e ao

46
debate contemporâneo europeu
sobre os imigrantes na Europa,
em seus aspectos cultural, racial,
econômico e reprodutivos.
O trabalho Cinderelas, lobos
e um príncipe encantado que
começamos a lançar, desde maio
de 2009, nos cinemas de várias
capitais do Brasil é resultado de
tudo que vimos, conversamos e
captamos. E das inquietações que
ele nos deixou. Porém, ao invés
de atuar como juizes de uma
realidade complexa e plástica,
resolvemos, “jogar no colo do
público” as mesmas dúvidas que
nasceram em sua realização.
O que o público vai ver são
histórias reais, vidas em processo.
São cenas do cotidiano, de espaços
públicos e privados, de pessoas
que buscam, que sonham, que
desejam, que exploram, que são
exploradas, que ajudam, que são
ajudadas...
Enfim, este é o meu novo
filme: uma espécie de mosaico
constituído por fragmentos do
real que tem a intenção de, mais
do que explicar, fazer pensar.
-------------------------------------------

Joel Zito Araújo é criador e


diretor dos filmes A Negação
do Brasil, vencedor do É Tudo
Verdade (2001) e Filhas do Vento,
(ganhador de 8 kikitos no Festival
de Gramado de 2005). Autor dos
livros A Negação do Brasil – o
negro na telenovela brasileira e O
Negro na TV Pública (no prelo), e
vários artigos sobre a mídia e a
questão racial no Brasil. Doutor
em Ciências da Comunicação
pela ECA /USP. Pós-doutorado no
Department of Radio-TV-Film da
University of Texas em Austin.

47
Interação cultural e
social do movimento
hip hop
A inserção de jovens afrodescendentes nos processos formais de gestão urbana e
política é muitas vezes objeto de estudos, nos quais procura-se as novas formas de
práticas políticas desenvolvidas a partir da realidade (urbana) cotidiana dos excluídos
sociais habitantes das periferias e o processo, concomitante, de valorização da origem
étnica-racial (afrodescendente) desses jovens periféricos.

Christian Carlos Rodrigues Ribeiro

A pesquisa O movimento
hip hop como gerador de
urbanidade: um estudo de caso
representam “um agente
revitalizador da vida social.”
(Manheim, 1973: 51)
destacadas as suas qualidades
como escravo, produtor de uma
riqueza de que não participava.
sobre gestão urbana em Campinas, Esses sujeitos, quando Os historiadores que se
realizada em 2006, representa aparecem em estudos das debruçavam sobre a nossa
uma contribuição sociológica ciências humanas, são retratados, realidade jamais, ou muito
com o objetivo de analisar geralmente, pela historiografia raramente, viram o negro
aqueles que historicamente são como personagens secundários como força dinâmica na nossa
classificados à margem de nossa de nossa história, sempre formação política, social,
sociedade como os “outros”, os dependentes da “boa vontade” cultural ou psicológica. Todos os
“indesejáveis”, os não cidadãos, de grandes figuras históricas, e antigos preconceitos bíblicos,
os sujeitos invisíveis ante aos quase nunca como atores-sujeitos cientificistas ou racistas foram
processos formais das relações históricos principais, senhores de unidos, compactados e aplicados
sociais brasileiras (Benevides, seu próprio destino e de suas na análise do comportamento da
1998; Chauí, 2001; Ianni, 1988). vontades (Fernandes, 2008; Ianni, população negra. (Moura, 1990).
A juventude afrodescendente 2005; Ianni, 2004; Lopes, 1988; Nesse sentido, optamos em
da cidade de Campinas, São Moura, 1994; Moura, 1990). realizar um recorte analítico
Paulo, foi a escolha para esse O negro, no particular, é o que enfatize uma das atuais
recorte interpretativo – enquanto grande desconhecido. Durante facetas dos seculares processos
elemento de transformação todo o percurso da história de resistências negras no Brasil
social – pelo fato de que os jovens do Brasil, a sua contribuição (Ianni, 2004; Mello, 1994; Moura,
de maneira geral, numa análise tem sido negada direta 1994; Moura, 1990; Moura,
de recorte mannheimniana, ou veladamente e apenas 1988; Moura, 1983; Moura, 1959;

48
Nascimento, 1994; Ribeiro, forma de urbanidade, a partir É destacado nesse processo
2006a), em especial nesse caso das periferias urbanas para as uma nova maneira de formulação,
da atuação de sua juventude áreas centrais da cidade, dentro prática, e gestão política não
radicada nas periferias das médias do vasto e conflituoso universo usual ou formal, que incorpora os
e grandes cidades do país, como urbano brasileiro (Daniel, 1990; anseios, as vontades, as opiniões
ocorre por exemplo na cidade de Lopes, 1997; Rolnik, 1997; Rolnik, daqueles que são politicamente
Campinas. 1988; Santos, 1993; Silva, 2006; e socialmente marginalizados
Nossa investigação baseou-se Silva, 2000). (Maciel, 1997; Xavier, 1996) e
na valorização das manifestações Acreditamos ser importante segregados urbanisticamente
sociais e culturais desses novos destacar que o conceito de “nova (Kehl, 2000; Kowarick, 2000) - os
sujeitos políticos, decorrentes urbanidade” neste artigo deve ser jovens afrodescendentes locais a
de seus universos microssociais entendido como a expansão de partir de seu universo urbano
cotidianos (Heller, 1972; Mafessoli, uma vontade, e principalmente, periférico. (Ribeiro, 2006a;
1984; Pais, 2003) nas áreas de um direito de qualquer Ribeiro, 2006b).
urbanas periféricas da cidade cidadão e grupo social, de Buscou-se, assim, contribuir
de Campinas, que acabam por acordo com suas especificidades com as análises críticas
influir, mesmo que às vezes, de e características, de viver, sentir (problematização) que se centram
maneira imperceptível nos rumos e usufruir a cidade, em toda aos processos de ocupações/
políticos, decisórios, do processo sua plenitude, participando vivências urbanas das populações
de gestão formal (institucional) ativamente dos processos, como negras (afrodescendentes) nas
da cidade (Ribeiro, 2009; Ribeiro, elemento político decisório, de cidades brasileiras em geral
2006a; Ribeiro, 2006b). Assim, elaboração e aplicação da gestão (Gomes, 2006; Jovino, 2005;
desenvolvendo uma nova urbana local. (Ribeiro, 2006b: 58). Munanga, 2006; Silva, 2006).

49
O hip hop como instrumento de explicação do objeto das e social exercida na cidade de
reivindicatório Ciências Humanas, para além Campinas a partir de meados dos
dos recortes disciplinares – o anos de 1980.
O movimento hip hop e suas que é “social”, “o histórico”, “o O hip hop em Campinas
manifestações, tanto culturais político”, “o educacional”, “o se constitui no início dos anos
quanto sociais, são analisados psicológico” –, sugerindo-se, 1980, quando jovens vindo
desde os anos 1990 na cidade com força, a construção de das periferias passam a ocupar
de Campinas como instrumento objetos de investigação para os espaços de convivência pública
reivindicatório desses jovens quais combinadas ferramentas no centro da cidade para
sujeitos políticos / atores conceituais seriam utilizadas realizarem suas “rodas de dança”
sociais, que assim buscam pelos cientistas sociais. e com o auxílio de potentes
questionar e alterar as práticas Nesta linha, teríamos de aparelhos de som (microsistems)
– formais – políticas excludentes, construir a possibilidade de os dançarinos (breakboys)
segregadoras, caracterizantes da que um conjunto de saberes executavam os passos da dança
história campinense. transdisciplinares viesse a se de rua. (Ribeiro, 2006a: 87)
O hip hop tem sido um dos constituir para a investigação Foi t amb é m realiz a da
movimentos sociais, que ao e a interpretação dos objetos co n co mit ante m e nte uma
menos nos últimos dez anos, privilegiados das ciências análise acerca da urbanização
vem recebendo uma maior humanas: sobre as estruturas e gestão urbana da cidade
atenção das ciências humanas sociais, os processos, as relações que relega as suas áreas mais
no Brasil. Pode ser definido sociais, os grupos, as instituições periféricas e urbanisticamente
como um fenômeno tipicamente e as lutas sociais. (Barreira, 2003). desaparelhadas para habitação,
urbano, que tem revelado uma Utilizou-se, para tanto, de vivência, das camadas pobres
particularidade de conflitos pesquisa documental, com (Lopes, 1997) e negras (Ribeiro,
sociais em certas regiões urbanas a utilização de entrevistas e 2006a; Ribeiro, 2006b) de sua
periféricas na relação destas com questionários, que possibilitaram população local1.
as áreas centrais das cidades, em desenvolver um diálogo, entre Constatatou-se pela pesquisa
especial a partir dos anos 1990, as bibliografias, referente à que o hip hop campinense atua
constituindo-se como um dos área social/política e cultural, como um movimento político,
instrumentos para efetivação de para sanar essa lacuna por nós que, embora não plenamente
uma nova urbanidade. (Ribeiro, detectada acerca da falta de reconhecido como tal, exerce a
2006b: 58) estudos que abordem a atuação inserção de seus sujeitos sociais
É importante ressaltar que de movimentos que tenham constituintes (hip hoppers) como
para se buscar analisar, entender como característica uma atuação membros ativos, caracterizantes
o movimento hip hop em toda sua reivindicatória, tanto por uma e transformadores do tecido
complexidade e (re)significação, vertente cultural, quanto social. urbano local, pela constituição
optamos em “alargar” o nosso Foram consultados materiais e de espaços públicos (políticos)
arcabouço metodológico e fontes que fundamentaram a informais nas áreas periféricas da
referencial teórico para além dos discussão acerca da origem e cidade, denominadas pelos hip
recortes tradicionais disciplinares formação do movimento hip hop hoppers como “quebradas”.
oferecidos pelas ciências nos guetos norte-americanos O hip hop acaba por
humanas em geral (Barreira, 2003; (Davis, 1993; Gilroy, 2001; Porter, transformar assim a periferia,
Herschmann, 2005; Jovino, 2005). 1995; Thompson, 2006; Toop, ou parte dela, como local de
Pois, como bem destaca César 2000) e a sua incorporação aos referência urbana importante,
Barreira em seu artigo “Novas processos seculares de resistência vivente e pulsante ao dia-a-dia
utopias, velhas questões” (2003): negra no Brasil (Andrade, 1999; de sua pólis que teima em não
“Em face das grandes mutações Ribeiro, 2009; Ribeiro; 2006a; reconhecer sua importância
dos últimos trinta anos, a questão Ribeiro, 2006b), e em especial o como um espaço urbano
acerca da própria viabilidade seu processo de atuação cultural constituinte e fundamental a

50
o desenvolvimento da cidade. das culturas negras perante sua a sua transversalidade em
(Ribeiro, 2006a: 122). população juvenil, que acaba por situar-se em universos sociais
Desse modo, são gerados influenciar no processo de auto- distintos, referentes a questões
novos espaços e formas estima individual e coletiva deste como racialidade/etnicidade,
de poder, modificando o segmento étnico/racial e social. juventude, cidade e política;
processo de gestão urbana Ao buscar transformar em e ao mesmo tempo ser um
local – exercendo uma ação realidade o imaginário social/ movimento de características
reivindicatória que vai além cultural juvenil – baseado em tanto social, quanto cultural.
do combate ao racismo e à suas características étnicas- Considerar o imaginário
violência policial – por meio raciais, urbanas e de juventude político e o território como
da politização uso do espaço – os hip hoppers acabam por termos que possam se articular
físico, territorial, em que estão politizar o espaço urbano, o coerentemente numa discussão
situados no universo urbano lugar (território), como espaço acadêmica decorre da acepção
de Campinas, produzindo ao de transformação social de mínima da política como
mesmo tempo um processo acordo com a vivência (uso/ controle das paixões humanas
de recuperação de símbolos experiência) cotidiana de seus e do território como o suporte
de negritude ao exercer uma sujeitos políticos juvenis. material para a convivência,
(re)estruturação e modificação O que acreditamos ser uma necessária à liberação da energia
pró-positiva dos elementos de suas características mais inerente àquela pulsão. O
constituintes e caraterísticos importantes, pois destaca imaginário social, por sua vez, é

51
o cimento dessa coerência por a existência de uma forma recursos, em que as diferenças
tornar visível e interpretável diferenciada de se olhar, viver são também, ou sobretudo,
os simbolismos presentes nas e sentir a cidade, ao qual não desenhadas pela ordem das
relações dos homens entre estamos tradicionalmente carências acumuladas no
si e com o seu meio, os quais acostumados e os conflitos e decorrer dos anos, vem dando
materializam-se nos diferentes potencialidades (Herschmann, lugar a uma conflituosidade
modos de organização sócio- 2005; Ribeiro, 2009; Ribeiro, visível e inédita que atravessa
espacial. (Castro, 2006: 155) 2006a; Ribeiro, 2006b) gerados todas as dimensões da vida
A terceira parte deste estudo, por esse processo não usual de social. (Herschmann, 2005: 43)
foi subsidiada por questionários se viver uma pólis. Constatou- É possível, então, enfatizar, a
e entrevistas com adeptos do se assim a existência dessa partir desse contexto, que, à sua
movimento hip hop, baseando- nova cultura de política urbana; maneira, o movimento hip hop
se na análise acerca do impacto dessa forma de produção de em Campinas já atua criticamente
das políticas públicas geradas, memória e identidade urbana nesse sentido, visando, por meio
direta ou indiretamente, pelo hip contemporânea – segregada, da representação política de seus
hop local. ou não reconhecida, pelas sujeitos sociais constituintes,
O alcance dessas políticas elites econômicas e políticas tornar a pólis mais democrática,
para as populações juvenis, locais – o que pode contribuir includente e participativa para
negras e pobres, ocupantes decisivamente para um melhor todos que nela vivem, habitam e
das periferias campinenses aprofundamento da discussão a caracterizam enquanto tal.
e o quanto o hip hop se acerca da necessidade de se Os resultados mais
tornou mais uma das formas, gerar cada vez mais formas de importantes dessas ações
de se buscar exercer uma gestão local que leve em conta políticas do movimento até
democratização, apor meio da o pensar de sujeitos políticos, agora ante o poder público
participação popular (Daniel, de atores sociais historicamente foram as constituições de
1990; Ghon, 2005; Krischke, 2005; marginalizados/discriminados. espaços públicos institucionais
Paoli & Telles, 2000; Santos, 2004; Ao contrário do que ocorre em próprios para o hip hop, como
Silva, 1990) da gestão urbana outros países com uma tradição a “Casa do Hip Hop” e o
local. Dessa maneira, contribui democrática mais consolidada, Conselho Municipal do Hip Hop
com o processo de radicalização no Brasil, o reconhecimento cada (lei nº 12.031), para que nestes
democrática exercido pelos vez mais constante das inúmeras locais o movimento possa dar
movimentos sociais brasileiros diferenças sociais, quando não continuidade as suas políticas
desde o final do processo reifica privilégios, está submetido reivindicatórias auto-afirmativas
constituinte de 1988, visando a uma lógica de discriminações que acabam por redefinir mesmo
contrapor-se, dessa maneira, e preconceitos que não aponta que de maneira imperceptível os
à polarização da sociedade na direção da negociação e da processos de gestão urbana local.
nacional, que se caracteriza entre justiça como base da estrutura (Ribeiro, 2006a: 104), produzindo,
a carência absoluta das camadas social. assim , uma f o r mali da d e
populares e o privilégio absoluto Uma das argumentações política para uma parcela de
das camadas dominantes e mais recorrentes é que as um segmento populacional
dirigentes. fissuras sociais são profundas, (juventude afrodescendente)
O autoritarismo social, que, e isso parece ser determinante historicamente ignorados como
enquanto “cultura senhorial”, na obstrução da possibilidade sujeitos plenamente constituídos
naturaliza as desigualdades e de uma interlocução e de um de direitos nos processos
exclusões socioeconômicas, debate consistentes em torno decisórios de gestões das
vem exprimir-se no modo de de questões pertinentes. Essa cidades brasileiras (Jovino, 2005;
funcionamento da política. sociedade tão heterogênea Lindolfo Filho, 2002; Moreno
(Chauí, 2001: 93) quanto desigual nas formas de & Almeida, 2007; Ribeiro 2009;
Os estudos revelaram distribuição e acesso a bens e Ribeiro, 2006a). O que nos leva
52
afirmar que a atuação política BARREIRA, César. A sociologia no Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
transformadora do hip hop, tempo: memória, imaginação e
GOMES, Flávio dos Santos. Sonhando
enquanto movimento social, está utopia. São Paulo: Cortez, 2003. cap.
com a terra, construindo cidadania. In:
comprovada, ficando a dúvida 7: Novas utopias, velhas questões.
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e a expectativa, de como será BENEVIDES, Maria Victoria Mesquita. (orgs.). História da cidadania. 4ª ed.
a consolidação, ou não, deste O desafio da educação para a São Paulo: Contexto, 2006. Quarta
movimento em seu futuro. cidadania. In: AQUINO, Julio Groppa parte (Cidadania no Brasil), cap. 17.
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1 - Com isso não estamos afirmando
CASTRO, Iná Elias de. Explorações Editora UFMG; Brasília: Representação
que a vivência na cidade, por um
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viés macro-social (pobres) ou micro-
século. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, Cap. Codificação/Decodificação.
social (jovens afrodescendentes),
2006. Cap. 5: Imaginário político e
ocorra de maneira restrita apenas .A questão da identidade cultural.
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na área urbana (periferias) a que Trad. Andréa B. M. Jacinto; Simone M.
representação.
estão localizados geograficamente, Frangella. 3ª ed. revista e ampliada.
mas sim que a sua relação de CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito Campinas: IFCH/UNICAMP, 2003.
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a partir desse território, dessa 4ª reimpressão. São Paulo: Editora
. O cotidiano e a História. Trad.
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submetidos não é excludente em DANIEL, Celso. As adminstrações e Terra, 1972. (Série: Interpretações
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circular e transformar a cidade Revista de Estudos Regionais e
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Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
o seu local de trabalho/serviço.
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Dessa forma alterando e se opondo IANNI, Octavio. O negro e o
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– mesmo que de maneira, para socialismo. In. IANNI, Octavio [et al].
Trad. Renato Aguiar. 1ª ed. São Paulo:
alguns, imperceptível – as estruturas O negro e o socialismo. São Paulo:
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fazer presente, e transformadora, aos das elites. In: VALLE, Edênio; QUEIRÓZ,
solidárias. São Paulo: Cortez, 2005.
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v. 123).
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53
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Editora Fundação Peirópolis Ltda.; apresentada para obtenção do
apresentada ao Departamento
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de Ciências Sociais do Instituto
na Faculdade de Arquitetura e
de Filosofia e Ciências Humanas - SOUZA, Marina de Mello e. África
Urbanismo (FAU), na PUC/Campinas.
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em São Paulo. 2ª ed. Brasília/DF: Heroìsmo e as Ruas: A Arte de Jean-
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com.br/bienal/23bienal/especial/ é sociólogo, mestre em Urbanismo
SILVÉRIO, Valter Roberto. Sons
peba.htm, acessado em 09/06/06. (Gestão Urbana), professor de Socio-
negros com ruídos brancos. In: Vários
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Editora Fundação Peirópolis Ltda.; rap to global hip hop. Expanded third Estado de São Paulo.
ABONG, 2002. edition. London: Serpent’s Tail. 2000. khristiancarlos@hotmail.com

55
A África brasileira:
geografia e
territorialidade
A terra, o terreiro, o território e a territorialidade assumem grande importância dentro
da temática da pluralidade cultural brasileira, no seu processo de ensino, planejamento
e gestão, principalmente no que diz respeito às características territoriais dos diferentes
grupos étnicos que convivem no espaço nacional.

Rafael Sanzio Araújo dos Anjos

56
N o Brasil, país
dimensões continentais,
há uma historicidade em
de a referência cultural e étnica
mais marcante na formação
da população e do território
e interpretação das inúmeras
indagações desse momento
histórico e contribuir para as
processo de reconstrução e brasileiros. A incorporação reflexões sobre os aspectos da
uma diversidade étnica com verdadeira, o respeito e o espaço distribuição da população de
conflitos, as interpretações da cultura africana no Brasil matriz africana e seu rebatimento
mais amplas das suas formas continuam sendo questões na formação do território
de organização, principalmente estruturais, que ainda merecem brasileiro.
os elementos essenciais da sua investigação, conhecimento e O Projeto Geograf ia
real historiografia, das suas ação. Ou seja, alcançar o direito Afro-Brasileira: Educação &
identidades territoriais e dos efetivo de uma participação Planejamento do Território,
componentes da sua pluralidade plena na vida nacional. desenvolvido no Centro
racial, são pontos estruturais Assim, as demandas para a de Cartografia Aplicada e
que preconizam a busca de compreensão das complexidades Informação Geográfica (CIGA), do
equilíbrio na sua sociedade e no da dinâmica da nossa sociedade Departamento de Geografia, da
seu território e, sobretudo um são grandes e existem poucas Universidade de Brasília, tem, ao
tratamento ético. disciplinas mais bem colocadas longo de sua existência, buscado
Podemos apontar as matrizes do que a geografia e a cartografia contribuir efetivamente para
africanas presentes no país como para auxiliar na representação a ampliação e a continuidade

57
dessas discussões para que o referências culturais e simbólicas como a ferramenta cartografia
conhecimento da população da população. Dessa forma, o constitui um meio poderoso
brasileira, a educação geográfica território étnico seria o espaço e eficaz no vasto universo
étnica e a questão racial no construído, materializado a partir da comunicação visual da
Brasil sejam tratados com mais das referências de identidade informação geográfica.
seriedade. e pertencimento territorial e, O território africano,
geralmente, a sua população componente fundamental
Território étnico e a África tem um traço de origem comum. para uma compreensão mais
A geografia é a ciência do As demandas históricas e apurada das questões que
território e este componente os conflitos com o sistema envolvem o papel da população
fundamental, a terra, num sentido dominante têm imprimido a de ascendência africana na
amplo, continua sendo o melhor esse tipo de estrutura espacial sociedade brasileira, não pode
instrumento de observação exigências de organização deixar de ser entendido como um
porque apresenta as marcas da e a instituição de uma auto- espaço produzido pelas relações
historicidade espacial e do que af irmação política -social - sociais ao longo da sua evolução
está acontecendo, isto é, tem econômica -territoral. histórica, suas desigualdades,
registrado os agentes que atuam Os mapas, por sua vez, são contradições e apropriação que
na configuração geográfica atual as representações gráficas esta e outras sociedades fizeram,
e o que pode acontecer. Ou seja, do mundo real, se firmam
é possível capturar as linhas de como ferramentas eficazes
forças da dinâmica territorial de interpretação e leitura do
e apontar as possibilidades da território, possibilitando revelar
estrutura do espaço no futuro a territorialidade das construções
próximo. sociais e feições naturais do
Não podemos perder espaço e, justamente por isso,
de vista que é essa a área mostram os fatos geográficos e
do conhecimento que tem os seus conflitos.
o compromisso de tornar Esses mapas possibilitam
o mundo e suas dinâmicas revelar graficamente o que
compreensíveis para a acontece na dinâmica do
sociedade, de dar explicações espaço e tornam-se cada vez
p ar a as tr ans f o r maçõ es mais imprescindíveis, por
te r r ito r iais e de apontar constituírem, uma ponte entre
soluções para uma melhor os níveis de observação da
organização do espaço. realidade e a simplificação, a
A geografia é, portanto, redução, a explicação e de pistas
uma disciplina fundamental para a tomada de decisões e
na formação da cidadania do soluções dos problemas.
povo brasileiro, que apresenta Importante lembrar que um
uma heterogeneidade singular mapa não é o território, mas
na sua composição étnica, que nos produtos da cartografia
socioeconômica e na distribuição estão as melhores possibilidades
espacial. de representação e leitura da
O território é na sua essência história do espaço. Ou seja, os
um fato econômico, físico, dados geográficos tornam-se
político, social, categorizável, mais significativos e possibilitam
possível de dimensionamento, construções analíticas mais
onde, geralmente, o Estado está completas quando observados
presente e estão gravadas as num contexto espacial, assim
58
e ainda fazem, dos recursos da Um dos efeitos políticos da geográfico e cartográfico,
natureza. distorção e da invisibilidade da visando, portanto, reconhecer,
As populações do hemisfério África nas estratégias do sistema representar e superar a
norte e seu processo de dominação dominante é lugar insignificante discriminação aqui existente,
e exploração do continente a e secundário que foi dedicado é ter uma atuação sobre um
partir do século XV, acabaram à sua historiografia em todas dos mecanísmos estruturais da
por fixar uma imagem hostil as histórias da humanidade. As exclusão social, componente
dos trópicos, cheios de forças matrizes culturais e tecnológicas básico para caminhar na
naturais adversas ao colonizador do continente africano foram direção de uma sociedade
e ocupadas por homens ditos as mais comprometidas pelo mais democrática, na qual as
indolentes. Essa “geografia racionalismo científico e as populações de ascendência
da imagem e da dominação estratégias de dominação, africana no Brasil, principalmente,
justificada dos trópicos” foi sendo ocultação e apropriação dos se sintam e sejam, de fato,
ampliada e não considerava os saberes ainda são contextos brasileiros. Isto porque, uma parte
processos históricos como fatores não resolvidos neste início significativa desse contigente
modeladores da organização de século XXI. populacional não se sente
social e política, mesmo diante Tratar da diversidade pertencente ao Brasil, devido à
dos elementos da natureza. cultural brasileira num contexto tamanha exclusão.

59
A falta de pertencimento despovoamento em numerosas que o documento cartográfico
territorial áreas do continente. A barreira suscita é a seguinte: para onde se
No Brasil, onde a questão da das condições ambientais e deslocaram tantos componentes
cidadania é, geralmente, limitada, a resistência das populações das sociedades e estados políticos
mutilada, a situação da população africanas à desestruturação que foram desestruturados?
afro-brasileira é emblemática. de suas sociedades vão O Gráfico 1 mostra uma
Alguns aspectos geográficos impor níveis diferenciados no estimativa dos povos africanos
merecem atenção nesta questão território atingido pela retirada desembarcados nos principais
secular. Primeiro, a referência que de populações para serem portos de diferentes regiões do
o sistema brasileiro tem induzido escravizadas. O Mapa 1 mostra mundo. Pelo menos dois aspectos
ao longo dos tempos, de maneira a extensão do território atingido são significativos de observação
explícita e às vezes de forma pela dinâmica do tráfico e nos números representados.
subliminar, de que o território da os diferentes gradientes de Primeiramente, o Brasil apresenta
população afro-brasileira é do intensidade de retiradas de a maior estatística, ultrapassando
outro lado do Oceano Atlântico, populações. a casa dos quatro milhões de
na África, como se aqui não fosse Uma das questões de fundo seres humanos transportados,
o seu lugar. Não tivesse o direito
de ter terras e nem referência de
identidade territorial aquí. O país
tem se declarado oficialmente
europeu e essa estratégia de
negar os componentes africano e
indígena é uma forma de registro
do desinteresse pelos problemas
do preconceito, da tentaiva de
inferiorização e da exclusão
secular no sistema.
Importante lembrarmos que
o tráfico de seres humanos da
África para o Novo Mundo foi,
durante quase quatro séculos,
uma das maiores e mais rendosas
atividades dos negociantes
europeus, a tal ponto de se tornar
impossível precisar os números
dos africanos e africanas,
retirados dos seus habitats, com
suas bagagens culturais, a fim de
serem incorporados às tarefas
básicas para formação de uma
nova realidade econômica e
social. As pesquisas divergem,
ainda atualmente, sobre as
estatísticas do período dessa
diáspora africana. É consenso
na comunidade científica,
entretanto, de que a dinâmica
do tráfico trouxe problemas de

60
fato que possibilita entender de territórios pelas mobilidades cobiça aos recursos minerais, da
porque este foi o território mais das migrações, tanto de forma apropriação dos conhecimentos,
acabadamente escravista e, por voluntária quanto das migrações da acumulação de capitais e da
sua vez, o de maior extensão forçadas. Na África, podemos desestruturação das sociedades
racista. Em segundo lugar, os identificar alguns desses grandes e do Estado. Esse jogo de
franceses, os espanhóis e os movimentos demográficos, a trocas estabelecido imprimiu
britânicos, povos europeus de começar pela primeira diáspora, relações precisas entre clientes e
influência e pressão marcante no que corresponde ao processo fornecedores dos dois lados do
sistema escravista na América, espacial milenar de povoamento Atlântico e, estrategicamente,
estão com dados em torno e ocupação do próprio continente a distribuição das populações
de 1,7 milhão de africanos e posteriormente para outras africanas dos seus diferentes
desembarcados. É evidente que terras emersas do mundo. reinos e nações foi realizada
o Brasil português incomodava O fenômeno geográfico que indiscriminadamente nos
pela dimensão territorial, o abordamos, nesta oportunidade, territórios da América.
co ntin g e nte p o p ulaci o nal está ligado aos séculos do tráfico Rapidamente, os mercados
mobilizado e a diversidade da negreiro para a América, fruto transatlânticos tornam-se mais
dinâmica comercial. de longos períodos de migração importantes do que as antigas
O conceito geográfico forçada do continente africano, rotas dos mercados transaarianos
de diáspora tem a ver com a contexto propulsor do sistema (floresta-savana-deserto), por
referência de dispersão de uma escravista e base fundamental do onde passavam e desaguavam
população e das suas matrizes capitalismo primitivo. o ouro, a cola e o africano
culturais e tecnológicas. Ao O continente africano foi, escravizado. Esta rota se tornou
longo da história da humanidade ao longo de quatro séculos, o secundária, diante da força da
podemos identificar a construção centro das atenções mundiais, da ligação savana-floresta-praias.

61
Dinâmica do tráfico e quantitativas do período historiografia oficial do país.
clandestino do tráfico, ainda Essa demanda secular, que
Nas respostas territoriais da estão para serem caracterizados possibilitaria uma ligação espacial
dinâmica do tráfico por quase pela historiografia brasileira. mais referenciada, mais precisa
quatro séculos, o Brasil aparece Temos aí uma das questões na África, continua sem resposta
com alguns destaques: foi o estruturais do país. As grandes satisfatória e nem perspectiva de
país contemporâneo de maior referências espaciais e temporais solução. Esse contexto estrutural
importação de populações e os documentos pontuais não de fragilidade na unidade
africanas e registro de quilombos atendem mais às demandas nacional traz outras questões
(antigos e territórios étnicos do povo brasileiro africano, pouco tocadas que são: Como
atuais); foi a nação na América que requerem respostas mais seria o processo de solicitação
do Sul que continuou impondo plausíveis e precisas. de dupla cidadania da população
o sistema escravocrata, mesmo Esse é mais um fator de origem africana no Brasil?
depois da independência de geográfico que colabora para a Quais e quantos brasileiros e
Portugal (66 anos) e um dos falta de uma referência ancestral brasileiras poderiam solicitar essa
últimos Estados a sair do regime de origem da população possibilidade de alargamento
escravista. brasileira de matriz africana, das suas referências familiares
O Brasil sabe com clareza com interferências profundas na e de ancestralidade? A nação
que no período entre 1871 e sua cidadania e no sentimento ainda não tem como responder a
1920, 3.390.000 imigrantes de pertencimento territorial. essas indagações relevantes que
europeus chegaram ao país, dos Colocar para esse contingente permanecem “silenciosas” no
quais: 1.373.000 eram italianos; que os seus antepassados foram bojo do sistema dominante.
901.000, portugueses, e 500.000, “trazidos” do continente africano Importante não perdermos
espanhóis. É importante notar é vago, sem consistência, de vista que vários setores
que esse número aproxima- desrespeitoso, quando se trata da população brasileira
se dos quase 4 milhões de de um espaço com 30.277.467 continuam sendo vítimas de
africanos que foram retirados Km2, o terceiro continente em discriminação e preconceitos
de seu habitat natural e trazidos extensão territorial do mundo de toda a ordem. Entre os tipos
para o Brasil oficialmente entre e constituído por centenas de de discriminação, a étnica,
1520 e 1850. Isto porque, as antigos reinos, impérios e grupos que atinge particularmente o
referências espaciais, temporais étnicos desconhecidos da contingente de ascendência
africana no país, é sem dúvida
a de maior extensão social
e territorial, devido à grande
expressão demográfica. Os
problemas revelam-se quando
se quer saber qual o número
real de “negros” e “negras” ou da
população de ascestralidade da
África presentes no Brasil.
A palavra “negro” foi uma
invenção do colonialismo, do
sistema escravista, da retirada
de seres humanos do continente
africano denominado “tráfico
negreiro”. Secularmente, ficou
associado a um significado
pejorativo, de algo ruim, que
não é humano, mas relacionado
62
a animal. Esse é um ponto de O espaço contemporâneo e minimização da população de
reflexão e correção histórica ascendência na África existente
necessária e que requer uma A questão demográfica do no país. No Gráfico 2, que
ação política e educacional “Brasil africano” tem ficado mostra a evolução da população
consequente, até porque, está historicamente sem resposta “preta” e “parda” recenseada de
incorporado de forma consistente adequada, por um conjunto 1940 a 2000, os aspectos mais
no pensamento social brasileiro. complexo de fatores. Um dos relevantes constatados são a
Se não fossem os negreiros e estruturais está relacionado discrepância entre os números
seus navios, comerciantes de aos critérios de aferição sempre crescentes do contigente
populações escravizadas no racial oficiais, que levam à “pardo” ao longo das décadas
continente africano, não existiria subestimação do número real e os pequenos acréscimos
os “negros”, tratados como de cidadãos de matriz afro- dos registros de “pretos”, com
mercadoria. Daí vem a “invenção” brasileira que integram o país. O uma ocorrência de decréscimo
e promoção do engano secular Instituto Brasileiro de Geografia (19 4 0 -1950), ev i d e n cian d o
denominado “raça negra”. e Estatística (IBGE), principal que a expansão demográfica
Um dos problemas estruturais organismo responsável pela da popuação denominada
que dificultam a identificação e a produção e divulgação das “preta”apresenta problemas para
quantificação da população afro- informações demográficas da evoluir, ao contrário dos “pardos”,
brasileira está nessa mentalidade nação, ainda, tem agrupado os cujas estatísticas históricas
preconceituosa, está na falta indivíduos em brancos, pretos, são de números significativos.
de informações básicas que amarelos e pardos, considerando Outro componente relevante
contaminam o pensamento brancos, pretos ou amarelos os evidenciado na representação
social coletivo da população que assim se declararem e os gráfica é a década de 1970,
basileira. Um dos grandes danos “outros” ficam classificados como que não foram pesquisados
dessa problemática é a hipocrisia pardos. e nem computados os dados
permanente e o não tratamento A história recente dos censos das distintas matrizes étnicas
do assunto de forma adequada e realizados no território brasileiro existentes no Brasil. Dessa forma,
sistêmica. reconstitui, muito bem, a negação a série histórica dos dados fica

63
comprometida pela inexistência de se sentir “dentro” de uma “preta” e “parda” do Brasil no
das informações, fato que fronteira social explícita dos ano 2000, teremos 69.649.861
reintera o processo de exclusão ïncluídos”e “excluídos”do sistema habitantes (47% do contingente
social instaurado no sistema dominante. nacional). Importante lembrar o
oficial brasileiro. O Mapa 2 (Anjos, 2005), ditado popular: “de noite todos
Uma parte do contigente que não pretende retratar a os gatos são pardos”. Ou seja,
demográf ico informado complexidade da presença associado ao “pardo” está a
e desinformado no Brasil, da população afro-brasileira, indefinição da sua identidade, do
geralmente, sem identidade mostra apenas a expressão seu lugar na sociedade, da sua
firmada e profundamente espacial quantitativa recenseada referência ancestral, em síntese,
divididos nas suas referências como “preta” no último Censo da sua territorialidade.
individuais e familiares, Demográfico realizado em 2000, São milhares de homens,
registram-se no recenseamento pelo IBGE. mulheres, crianças e idosos que
como “pardos”ou “brancos”. Ä O documento cartográfico, sentem internamente que não
continuidade de uma postura mesmo com dados de quase existe, ainda, um lugar definido
do país de se “mostrar”, de ser dez anos passados, revela uma na estrutura social do país. Por
representado e de ser valorizado distribuição expressiva dessa ser um contingente populacional
a partir das referências européias população no país, destacando, oriundo de um processo secular
constitui um dos componentes principalmente que o Brasil de “mistura” étnica, as relações
estruturais da negação das outras urbano, peri-urbano e rural é de valor que foram associados,
matrizes culturais existentes. significativamente africano. sistematicamente, aos povos
Seria uma forma consciente ou Se fizermos uma simulação europeus, como o “modelo” de
não de ser aceito ou inserido e juntarmos as populações referência e aceito pelo sistema
no sistema dominante, ou seja, recenseadas pelo IBGE como dominante, imprimem vários

64
desajustes nas formas de pensar, um número de pessoas menor A representação cartográfica
de se inserir e de se enquadrar na que o de fato, utilizando-se do Mapa 3 (Anjos, 2005) revela
sociedade brasileira. de artifícios numéricos. Se essa significativa expressão
No “Brasil Africano” existem assumirmos que a população quantitativa e uma constatação
evidências de que o contingente considerada como “parda” nesse espacial de que o Brasil é um país
populacional brasileiro de Censo é de fato uma população de essência na África e, realmente,
matriz africana não é minoria e mestiça, que tem graus somente a que não conhece o
essa é mais uma estratégia do diferenciados de ascendência continente africano pode ignorar
sistema de classificar os grupos africana, ficará evidente que a o quanto há de “Áfricas” em cada
discriminados de minorias, população afro-brasileira não é um de nós, na nossa essência, no
fazendo supor que esses atingem minoria. nosso ser humano.

65
Referências africanas nossa sociedade e do território privilégios e nem oportunidades.
brasileiro. No “fundo” o que não As estatísticas apontam
Este é um momento oportuno podemos perder de vista é que o Brasil como a segunda
para nos perguntarmos: O o Brasil é o que é porque teve maior nação com população
que seria a Bahia, São Paulo, e tem as referências africanas de ascendência africana do
Rio de Janeiro, Pernambuco, marcadas, irreversivelmente, no planeta e é com relação a
Maranhão, Goiás, Minas Gerais, seu espaço geográfico, na sua esse contingente que são
Rio Grande do Sul, Mato Grosso, população e, sobretudo, na sua computadas as estatísticas mais
enfim, o Brasil, sem a presença cultura. discriminatórias e de depreciação
dos povos africanos e seus Apesar da política de socioeconômica. Nos piores
descendentes? Que configuração “branqueamento” desenhado lugares da sociedade e do
territorial de Brasil teríamos sem para o Brasil e implementada território, com raras exceções,
a presença da África? Como no final do século XIX e início estão as populações afro-
seria a nossa religiosidade? E as do século XX, onde os asiáticos, brasileiras. Numa grande cidade
práticas medicinais? Os padrões chineses e africanos eram brasileira é possível verificar, sem
construtivos e de arquitetura? E considerados seres inferiores, as consultar estatísticas sofisticadas,
as formas de atividades agrícolas? respostas dos mapas mostram a segregação sócio-espacial
Essas são simulações necessárias a constatação do mosaico evidente, como por exemplo:
para a reconstrução de posturas, demográfico afro-brasileiro que quem é o homem – mulher que
de conceitos errôneos e construiu a estrutura territorial, pede esmola no sinal de trânsito?
impressões cristalizadas da social e econômica do país, sem Qual o aspecto do ser humano

66
que dorme na rua ou no metrô? existe um outro extrato social e uma energia adicional para ser –
Qual a referência da criança uma outra referência étnica. estar inserido. É uma luta secular
caracterizada como menino ou Não é possível mais esconder contra a exclusão territorial, social
menina de rua, ocorrente no que temos diferenças sociais, e econômica.
espaço urbano do país? Qual o econômicas, territoriais seculares Considerando-se que as
perfil do morador, da moradora e estruturais, para as quais os construções analíticas e as
da “favela” brasileira? Quais as ”remédios” ainda estão chegando especulações não se esgotaram,
condições do transporte coletivo e os assuntos são empurrados concluímos e recomendamos o
que se direciona para a periferia para um outro dia, para a próxima seguinte:
das cidades? Como é o cidadão semana, no mês que vem, para o . A questão do desconhecimento
que vai neste ônibus ou trem? próximo ano ou para o governo da população brasileira no que
Esses lugares da sociedade são seguinte, que nunca chega. E os se refere ao continente africano é
ocupados, predominantemente, séculos estão passando! um entrave para uma perspectiva
por populações afro-brasileiras Assim, ser descendente do real de democracia racial no
e num país onde quase 50% do continente africano no Brasil, país. Não podemos perder de
seu contingente populacional secularmente continua sendo um vista que entre os principais
oficial é de matriz africana, fator de risco, um desafio para obstáculos criados pelo sistema a
constatamos que estamos diante manutenção da sobrevivência inserção da população de matriz
de um problema estrutural da humana, um esforço adicional africana na sociedade brasileira,
nação. Nos espaços de ocupação para ter visibilidade no sistema está a inferiorização desta no
privilegiada e de valorização dominante e , sobretudo, colocar ensino. Esse contexto somente

67
poderá mudar com uma política Aprendizagem (2005 e 2007), Ministério da Educação, Secretaria
educacional mais agressiva e que constituem um conjunto de Educação Fundamental, 2005.
com o foco direcionado para de vários mapas temáticos para . Geografia, território étnico e
desmistificar o continente auxiliar o professor a transmitir quilombos. In: GOMES, N. L. (org.).
africano para a população do informações sobre a Geografia Tempos de lutas: as ações afirmativas
Brasil; da África e a Geografia Afro-
. Outro ponto estrutural, ainda Brasileira. Outras informações do
no contexto brasileiro. Brasília: MEC-
Secad, 2006.
dirigido ao setor decisório do Projeto Geografia Afro-Brasileira
país, se refere à criação das e desses produtos podem ser . Quilombos: geografia africana
condições necessárias para acessadas: www.unb.br/ih/ciga – cartografia étnica – territórios
a realização de um censo Tomamos como premissa tradicionais. Mapas Editora &
demográfico mais realista e que que as informações por si só Consultoria. Brasília, 2009, 190p.
retrate melhor a diversidade não significam conhecimento. . & CYPRIANO, A. Quilombolas –
étnica brasileira. Este tema é Entretanto, elas nos revelam que tradições e cultura da resistência. Aori
complexo, porque significa com o auxílio da ciência e da Comunicações. Petrobras, 2006. São
mudar os métodos de aferição da tecnologia é que temos condições Paulo, 240 p.
população e, por conseguinte, a de colaborar na modificação das
SANTOS, M. Pesquisa reforça
possibilidade de registro oficial políticas pontuais e superficiais
preconceito. Folha de S. Paulo,
de um “Brasil Africano” até então a fim de subsidiar a adoção
São Paulo, 1995, Caderno Especial
sem evidência; de medidas concretas para
. Acreditamos no processo alteração, de forma estrutural,
Domingo, p. 8.

educacional como um das situações das populações do ---------------------------------------------


elemento de transformação e “Brasil Africano”. Este artigo é parte das Conferências
de reconstrução dos conteúdos Matrizes Africanas do Território
e informações errôneas, assim Referências Brasileiro, promovidas pelas
como a visibilidade na sociedade Embaixadas do Brasil na República
civil, como ferramentas para ANJOS, R. S. A. Coleção África– Democrática do Congo (Kinshasa)
ampliação do conhecimento e Brasil: Cartografia para o ensino– e em Angola (Luanda), realizadas
minorar o preconceito. Neste aprendizagem. Brasília: Mapas Editora em parceria com a Universidade
sentido, algumas atividades & Consultoria, 2ª ed. 2005. de Brasília (UnB) e o Museu Real da
itinerantes, como a Exposição África Central (Bélgica), em julho-
. Territórios das comunidades
Cartográfica: A África, o Brasil agosto de 2008.
remanescentes de antigos quilombos
e os Territórios dos Quilombos
no Brasil – Primeira configuração
e a Oficina Temática: Matrizes
espacial. Brasília: Mapas Editora &
Africanas do Território Brasileiro,
Consultoria, 3ª. ed. 2005.
são eventos educacionais
que têm buscado uma maior . Territórios das comunidades
visibilidade espacial e junto quilombolas do Brasil – Segunda
aos educadores e estudantes, configuração espacial. Brasília: Mapas
Editora & Consultoria. 2005. Rafael Sanzio Araújo dos Anjos é
para essas questões geográficas
geógrafo, doutor em informações
estruturais da formação étnica . A África, a educação brasileira e
espaciais; pós-doutor em cartografia
do país. Outro segmento a geografia - Educação antirracista:
étnica, professor associado do
importante são as publicações caminhos abertos pela lei Federal nº.
departamento de Geografia –
com toda a documentação 10.639/2003. Brasília: MEC-Secad,
Universidade de Brasília e diretor
cartográfica e historiográfica 2005.
do Centro de Cartografia Aplicada e
das comunidades quilombolas
. A geografia, a África e os negros Informação Geográfica – UnB.
(2000, 2005, 2006 e 2009) e os
brasileiros. In: MUNANGA, K. (org.).
volumes da Coleção África-
Superando o racismo na escola. Brasília: quilombo.sanzio@gmail.com
Brasil: Cartografia para o Ensino-
68
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no mar em imundos tumbeiros

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em doces palavras

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...... cantos
em furiosos tambores

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encontrei minhas origens

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q a nos lanhos de minha alma

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em mim

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em minha gente escura

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em meus heróis altivos
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encontrei

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encontrei-as enfim
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me encontrei

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Oliveira Silveira

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Oliveira Silveira (1941-2009), formado em Letras, foi pesquisador e historiador, além

e
de ter o mérito de ser um dos idealizadores da transformação do 20 de novembro em

ib fri a
data máxima da comunidade negra brasileira.

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