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RODOLFO VIANA PEREIRA

THIAGO COELHO SACCHETTO


ORGANIZADORES

ADVOCACIA
PÚBLICA
EM FOCO
VOLUME II
ADVOCACIA
PÚBLICA
EM FOCO
VOLUME II

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Pensamento Sustentável. Ações Estratégicas.


RODOLFO VIANA PEREIRA
THIAGO COELHO SACCHETTO
ORGANIZADORES

ADVOCACIA
PÚBLICA
EM FOCO
VOLUME II

Belo Horizonte
2019
2019 - Instituto para o Desenvolvimento Democrático
Capa e Diagramação: Toque Digital
Impressão: Toque Digital

Advocacia pública em foco - Volume II / organização de Rodolfo


A244 Viana Pereira, Thiago Coelho Sacchetto – Belo
Horizonte: IDDE, 2019.
294p.; 15,5cm x 22,5cm.

ISBN: 978-85-67134-09-3

1. Advocacia pública. 2 . Direito administrativo. 3. Direito


constitucional. 4 . Direito processual civil. 5. Direito financeiro. 6 .
Direito previdenciário. 7. Direito tributário. I. Pereira, Rodolfo Viana
(org.). II. Sacchetto, Thiago Coelho (org.).

CDD 340 (22.ed)


CDU 340

Rua Espírito Santo, 1204, Loja Térrea


Centro - Belo Horizonte - MG
CEP 30.160.031
Sumário

APRESENTAÇÃO
Rodolfo Viana Pereira
Thiago Coelho Sacchetto..............................................................................7

A BANALIZAÇÃO DO
CONCEITO DE ATO ÍMPROBO
Caio Mário Lana Cavalcanti...........................................................................9

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS


DUODÉCIMOS REPASSADOS À CÂMARA MUNICIPAL
César Verdade Costa Barros.......................................................................35

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI


FEDERAL Nº 12.846/13 E DO PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS
ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
Fabiana Maria Farias Santos Barretto..........................................................63

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO


AO ASSÉDIO MORAL: ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS
ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
Giovanilza Pessôa......................................................................................99

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO


HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA BH”
Luísa Miranda Scalzo ............................................................................... 139

O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) 841526 E A RESPONSABILIDADE CIVIL


DO ESTADO POR SUICÍDIO DE CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI ERIGIDO À
CONDIÇÃO DE SEGURADOR UNIVERSAL?
Marina Regazzoni de Morais..................................................................... 165
O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO
SEGUNDO A PERSPECTIVA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA
DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
Matheus Silva Campos Ferreira................................................................. 189

CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO PELO INSS NOS CASOS DE


CRIMES DE TRÂNSITO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA SOB A ÉGIDE DA
RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
CIVIL
Natália Neves Marques............................................................................. 219

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS:


POSSIBILIDADES, EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
Thyago de Pieri Bertoldi............................................................................ 243

A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA


AMBIENTAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO JURÍDICO
DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE PARTICULARES E O PODER PÚBLICO
COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES
Tibério Leal Menezes................................................................................ 271
APRESENTAÇÃO
Rodolfo Viana Pereira1
Thiago Coelho Sacchetto2

A Constituição Federal de 1988 alçou a Advocacia Pública ao patamar de função


essencial à Justiça. Inequivocamente, por meio da laudável obra erigida pelo cons-
tituinte, instituiu-se na República um modelo de divisão de poderes estruturalmente
mais organizado para perseguir os interesses primários e secundários das entidades
públicas do Estado Democrático brasileiro.
Ultrapassadas três décadas desde o ápice constitucional, em que pese a evolução
das práticas e das instituições de Advocacia Pública nacionais, importantes ques-
tionamentos e indagações continuam a alimentar o debate institucional acerca de
aperfeiçoamentos, substanciais e procedimentais, necessários para o progresso do
pacto federativo e das funções indispensáveis exercidas pelas procuradorias.
Nesse volume II da obra Advocacia Pública em Foco – redigido exclusivamente por
talentosos profissionais do Direito que frequentaram as turmas de Pós-Graduação em
Advocacia Pública promovidas pelo IDDE – expõem-se trabalhos científicos elaborados
com o objetivo precípuo de superar os mais contemporâneos problemas teóricos, e
pragmáticos, vivenciados por esses profissionais no desempenho de suas atribuições
constitucionais.
Com o propósito comum de fortalecer e aprimorar a democracia, as preocupações
cívicas e acadêmicas de cada um dos autores do livro convergem com os objetivos
institucionais do IDDE de construir um Estado comprometido com os ideais de justiça,
moralidade, legalidade e eficiência.

1 Fundador e Coordenador Acadêmico do IDDE. Professor da Faculdade de Direito da UFMG. Doutor em


Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Constitucional pela UFMG.
Pós-Graduado em Direito Eleitoral e Administração de Eleições pela Universidade de Paris II. Pós-
Graduado em Educação a Distância pela Universidade da Califórinia, Irvine. Advogado sócio da MADGAV
Advogados. Fundador e Consultor da SmartGov Governança Criativa. Fundador e primeiro Coordenador-
Geral da ABRADEP.

2 Professor do Centro Universitário UNA. Doutorando em Direito Político pela Universidade Federal de
Minas Gerais. Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Pós-Graduado em Advocacia Pública pelo IDDE. Advogado.
A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO
ÍMPROBO
Caio Mário Lana Cavalcanti1

Resumo
Em resumo, o presente artigo aborda o conceito de ato ímprobo e a sua
banalização. Primeiramente, será examinado o tema sob um viés histórico,
oportunidade em que será brevemente analisada a responsabilidade do agente
público no âmbito de cada uma das constituições brasileiras. Posteriormente,
serão averiguadas as peculiaridades que envolvem o ato ímprobo e que o
difere de um ato administrativo simplesmente ilegal. Subsequentemente,
será realizada uma crítica ao Ministério Público enquanto legitimado para
o ajuizamento da ação de improbidade administrativa, concluindo-se que,
não raras as vezes, são manejadas tais ações de modo inapropriado, em
nítida banalização do conceito e sepultamento de direitos fundamentais
constitucionalmente assegurados.

Introdução
O presente artigo tem como principal objetivo abordar quais são as peculiaridades
próprias do elemento qualificador caracterizador da improbidade administrativa no
ordenamento jurídico brasileiro que permitem o enquadramento de determinado ato
como ímprobo e, consequentemente, a penalização do seu agente nos moldes das
severas penas da Lei nº 8.429/1992. Vale dizer, em que pese a riqueza do assunto,
o foco do presente trabalho é a investigação do qualificador que diz respeito ao ato

1 Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-Graduado em
Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Pós-Graduado
em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático (IDDE), em parceria com o
Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e com a Faculdade
Arnaldo.
CAVALCANTI, Caio Mário Lana. A banalização do conceito de ato ímprobo. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; SACCHETTO,Thiago
Coelho (Orgs.). Advocacia pública em foco. Volume II. Belo Horizonte: IDDE, 2019. p. 9-33. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671341091
eivado de improbidade administrativa. Tema atualíssimo e de extrema importância pois,
se de um lado a corrupção é um mal social presente na Administração Pública que
deve ser veementemente combatido, fato é que a improbidade administrativa traduz
instituto cuja aplicação requer o preenchimento de pressupostos específicos, sendo,
portanto, vedado o seu amoldamento para todo e qualquer ato ilegal, o que com pesar
está sendo realizado no âmbito da prática forense.

Nesse contexto, assim, será analisada a especificidade do elemento subjetivo


qualificador da improbidade administrativa, de modo a elucidar que, tão importante
quanto a aplicação da Lei nº 8.429/1992 àqueles que realmente a ela se enquadrem
é a sua utilização de forma correta e não banalizada, seja em virtude da indesejável
usurpação das definições e do desvirtuamento conceitual no âmbito doutrinário, seja
porque suas rigorosas consequências causam grandes impactos ao patrimônio jurídico
dos condenados.

1. Breve prólogo histórico


Indubitável que um dos grandes males da sociedade brasileira, desde os tempos
coloniais até o presente instante, é o desvio ético de conduta, traduzido pela imorali-
dade e pela corrupção, que hoje atinge níveis e proporções inimagináveis. Se tal mal
no âmbito privado já causa prejuízos e repugnância àqueles envolvidos, fato é que
quando o desvio ético de conduta alcança os atos dos agentes públicos, em conluio ou
não com particulares beneficiados, estes atos viciados ganham maiores proporções,
preocupações e repulsa pois envolvem a coisa pública, direta ou indiretamente, em
nítida afronta não apenas ao ordenamento jurídico, mas à própria razão de ser do
Estado, que existe para, em essência, promover o interesse público e a pacificação
social. Nesse sentido, comungamos do entendimento de Mauro Roberto Gomes de
Matos2, que concebe os maus tratos à coisa pública como uma verdadeira cultura
nefasta dos agentes públicos do Brasil e da América do Sul em geral.

Historicamente, todas as constituições do Brasil se preocuparam com a respon-


sabilidade dos agentes envolvidos com o Poder Público, de uma maneira ou outra, de
forma mais ou menos rigorosa, abrindo portas para o que hoje consideramos improbi-
dade administrativa. Tecer brevíssimos comentários sobre os textos constitucionais

2 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados
dentro da Lei nº 8.429/92. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2006, p. 2.

10
brasileiros e apontar relações entre eles e o tema discutido é relevante, considerando,
sobretudo, que os institutos jurídicos são desenvolvidos sempre inseridos em um
determinado período histórico, fator que, indubitavelmente, influencia em seu conceito
e aplicação.

A primeira das cartas constitucionais, a Constituição Imperial de 1824, apesar de


prever a irresponsabilidade do imperador em seu art. 99, já estabelecia mecanismos de
responsabilização daqueles envolvidos com a Administração Pública e com as funções
públicas. A título exemplificativo, o art. 179, XXIX, daquele texto constitucional imperial
impunha que “os empregados públicos são strictamente responsáveis pelos abusos, e
omissões praticadas no exercício de suas funções, e por não fazerem effectivamente
responsáveis seus subordinados”.

Posteriormente, com a proclamação da república, a promulgação da Constituição


de 1891 se deu no contexto histórico da alcunhada República Velha e trouxe grandes
avanços normativos no que se refere à responsabilização dos agentes públicos, até
porque, conforme leciona José Roberto Pimenta de Oliveira3, o próprio conceito de
república traz intrínseco a responsabilidade e a devida prestação de contas daqueles
agentes envolvidos com a coisa pública, afastando quaisquer tipos de privilégios de
nobreza aceitos em paradigmas absolutistas. Nesse sentido, a Carta Constitucional
de 1891 firmou a responsabilidade dos agentes públicos, inclusive os políticos,
marcando na história brasileira a gênese da separação dos crimes entre comuns e de
responsabilidade.

Subsequente texto constitucional foi formalizado em 1934, durante a denominada


Era Vargas, e se revelou como resultado incontestável da Revolução Constitucionalista
de 1932. Como é ressabido, o período histórico em referência representa a consolidação
do Estado Social no Brasil, paradigma marcado pelo intervencionismo e assistencia-
lismo estatais afincados. No tocante à responsabilização dos agentes públicos, o
regime anterior restou preservado, com algumas relevantes peculiaridades, dentre
as quais a previsão da ação popular (art. 113, 38), marco importantíssimo na história
brasileira pois determinava que, literalmente, “qualquer cidadão será parte legítima
para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da
União, dos Estados ou dos Municípios”. Ainda durante a gestão de Getúlio Vargas, foi
outorgada a Constituição de 1937, agora diante de um contexto ditatorial reconhecido

3 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Improbidade administrativa e sua autonomia constitucional. Belo
Horizonte: Fórum, 2009, p. 51.

A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO ÍMPROBO 11


como Estado Novo e, em claro regresso no que toca ao tema objeto do presente
artigo, foi retirado do cidadão o direito consubstanciado na ação popular. De fato,
medida coerente com os aspectos ditatoriais do contexto social à época, embora tenha
representado para a população verdadeira degola de direito previamente conquistado.

Após, à medida em que chegava ao fim a Segunda Guerra Mundial, desgastada


ficava a imagem da ditadura do Estado Novo, sobretudo em virtude do óbvio enfra-
quecimento dos regimes totalitários que rondavam o velho continente durante o maior
conflito armado de todos os tempos. Isso porque, após a humanidade vivenciar os mais
diversos horrores entre 1939 e 1945, o movimento de redemocratização ganhava força
na Europa, fato que asseguradamente respingou influências em terras brasileiras. Foi
nesse contexto que sobreveio a Constituição de 1946 que, no atinente à responsabili-
zação dos agentes públicos, também deu seguimento e fortalecimento ao que já havia
sido previsto no texto constitucional anterior.

No que tange às inovações normativas a respeito do tema, é de grande valia


sublinhar dois dispositivos. O primeiro deles é o art. 48, §2º, que determinava a possi-
bilidade de perda de mandato de deputados e senadores quando suas condutas se
mostrarem inconciliáveis com o decoro parlamentar, pela primeira vez na história dos
textos constitucionais brasileiros. Irrefutavelmente, foi um marco importante para
a responsabilização dos agentes públicos, no caso, de uma camada dos agentes
políticos. O segundo dispositivo que merece realce é o art. 141, §31, que concedeu à lei
o poder de dispor “sobre o sequestro e o perdimento de bens, no caso de enriquecimento
ilícito, por influência ou com abuso de cargo ou função pública, ou de emprego em
entidade autárquica”. Enriquecimento ilícito que representa, hoje, uma das hipóteses
de aplicação das penas da Lei nº 8.429/92.

Com o intuito de colocar um basta na impunidade dos agentes públicos desonestos,


que se enriqueciam às custas dos cofres públicos, a pressão para a regulamentação
do disposto no art. 141, §31, da Constituição da República de 1946 era cada vez maior,
culminando com a posterior Lei nº 3.164/57, que regulamentou a matéria. A referida
legislação ficou conhecida como Lei Pitombo-Godói Ilha, em homenagem ao deputado
alagoano Ari Pitombo, responsável pela sua iniciativa perante o Congresso Nacional.
Subsequentemente, o presidente à época Juscelino Kubitschek de Oliveira sancionou
a Lei nº 3.502/58, conhecida como Lei Bilac Pinto, que deu continuidade ao combate
à corrupção no país, ao menos formalmente.

12 Caio Mário Lana Cavalcanti


Por derradeiro, os dois textos constitucionais precedentes à atual Carta Política
sobrevieram durante o regime militar, período da história brasileira marcado pela
repressão social e supressão de direitos fundamentais. A ascensão dos militares ao
poder só foi possível, vale sempre ressaltar, em virtude do apoio de relevante parcela da
população que, inconformada com atitudes de cunho esquerdista do então presidente
João Goulart, apoiou o exército brasileiro na tomada do poder, sobretudo por intermédio
da famosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, ocorrida poucos dias após
um discurso de Jango e Leonel Brizola na Central do Brasil. O receio ao comunismo à
época era demasiado por parte daqueles que se opunham aos ideais esquerdistas em
virtude da Guerra Fria, período relativamente recente da história mundial marcado pela
luta de influências entre os Estados Unidos da América, representante do capitalismo,
e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, representante do comunismo, as
grandes potências mundiais à época.

É nessa conjuntura que foi outorgada a Constituição de 1967 que, malgrado


possua contornos nitidamente ditatoriais (sobretudo após a alteração dada pelo Ato
Institucional nº 5, de 1968), para o enfoque da responsabilização do agente público
manteve os paradigmas do texto constitucional anterior, tais como a previsão dos
crimes de responsabilidade e dos atos ensejadores de enriquecimento ilícito. Importante
frisar também que foi acrescentada, a estes últimos, a conduta causadora de dano
ao erário4. A posteriori, o referido texto constitucional recebeu nova redação com a
Emenda Constitucional nº 1, de 1969, que, para a esmagadora maioria da doutrina
constitucionalista5, representou um novo texto constitucional. Neste, as mesmas linhas
gerais da responsabilização do agente público foram mantidas.

Contudo, é de conhecimento geral que, em tempos autoritários, a letra da lei


muitas vezes resta morta e inaplicável, de modo que, na prática, a realidade do regime
militar brasileiro representou não a responsabilização dos agentes públicos de alto
escalão, mas a perseguição sangrenta a opositores políticos, a prática da tortura,
a supressão de direitos fundamentais, a arbitrariedade, a censura, a violação aos
direitos humanos, dentre outras atrocidades. No que toca ao combate à corrupção,
um verdadeiro fracasso. Sob a ótica da cidadania, em seu mais amplo entendimento,

4 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta. Improbidade administrativa e sua autonomia constitucional. Belo
Horizonte: Fórum, 2009, p. 56.

5 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 124; SILVA,
José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 89.

A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO ÍMPROBO 13


indubitavelmente foram anos sombrios: impunidade de muitos culpados, e condenação
de muitos inocentes.

É nesse contexto de corrupção e intolerância que, progressivamente, a pressão


popular em busca de uma sociedade democrática fez com que o regime militar perdesse
força. Comícios, passeatas e ações visando a redemocratização do Brasil eram cada
vez mais constantes, dentre as quais merece destaque o movimento civil das Diretas Já
que, de forma determinante, conferiu o respaldo popular necessário para a promulgação
da vigente Constituição de 1988.

A atual Carta Política, observando os anseios sociais, foi inédita ao trazer lite-
ralmente a expressão improbidade administrativa em seu art. 37, §4º, determinando
que os atos ímprobos culminarão com “a suspensão dos direitos políticos, a perda da
função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”, confirmando a hipótese
de suspensão dos direitos políticos já prevista no art. 15, V.

Desta feita, observa-se que a intenção do constituinte originário foi tão somente
instituir o sancionamento por ato de improbidade administrativa, complementando os
princípios norteadores da Administração Pública contemplados no art. 37, caput, sem,
contudo, adentrar especificamente nos meios e formas para tanto, concedendo à lei o
poder para tratar e traçar tais contornos.

Para regulamentar a questão, foi enviado ao Legislativo, pelo então presidente


Fernando Collor de Mello, o Projeto de Lei nº 1.446/91, cuja exposição de motivos
deixa claro que o objetivo é combater a corrupção e a usurpação da coisa pública.
Por coincidência ou ironia do destino, em momento posterior, o mesmo presidente que
em tese buscou favorecer o combate à cultura da desonestidade no país renunciou à
presidência em virtude de, justamente, acusações de corrupção ligadas ao empresário
Paulo César Farias, alegações que levaram ao primeiro processo de impeachment do
Brasil.

Assim, posteriormente entrou em vigor a Lei nº 8.429/92, cujo objeto, em última


análise, como bem coloca Alexandre de Moraes6, é evitar a corrosão do Estado causada
por uma Administração Pública corrupta. Vale dizer, o escopo da legislação ordinária
em comento é combater a corrupção, que tanto maltrata a coisa pública, em nítida

6 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 344. No mesmo sentido:
NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 877.

14 Caio Mário Lana Cavalcanti


busca e defesa à moralidade e à honestidade no âmbito do Poder Público. Ou seja,
consoante lição de Sérgio Monteiro Medeiros7, “fato é que o aspecto fulcral parece
estar no malferimento ao princípio constitucional da moralidade administrativa.”

2. O elemento subjetivo qualificador do ato ímprobo

2.1. Análise acerca do supradito elemento


A Lei nº 8.429/92 estabelece e detalha, nos seus três primeiros artigos, os sujeitos
ativos e passivos da improbidade administrativa. Quanto aos primeiros, são os agentes
públicos e aqueles que, mesmo não os sendo, concorram ou induzam para a prática
do ato ímprobo, ou dele se beneficie. Quanto aos segundos, são aqueles contra os
quais o ato é praticado, a saber, a administração direta ou indireta de quaisquer dos
entes federados ou de território, entidade cuja criação ou custeio os cofres públicos
tenham concorrido ou concorram com mais de 50% (cinquenta por cento) ou, por fim,
empresa incorporada ao patrimônio público. Ainda, para o enquadramento na legislação
em comento, a conduta deve necessariamente resultar em enriquecimento ilícito (art.
9º), lesão ao erário (art. 10) ou violação aos princípios da Administração Pública (art.
11), que será penalizada de acordo com o disposto no art. 12 da Lei de Improbidade
Administrativa – LIA.

Embora rico seja o tema envolvendo as questões acima elencadas, não é o objeto
deste estudo, razão pela qual não serão aprofundadas as suas peculiaridades. A fina-
lidade da presente análise, e é o que se passará a explicitar, é demonstrar que mesmo
que presentes os pressupostos do sujeito ativo, do sujeito passivo e da conduta que
enseje enriquecimento ilícito, lesão ao erário ou violação a princípios norteadores da
Administração Pública, ainda assim não é possível, automaticamente, o enquadramento
da conduta como ímproba. É condição sine qua non, para tal, um elemento subjetivo
qualificador específico: a má-fé8, a desonestidade, o conluio, o dolo, enfim, a vontade
consciente do sujeito ativo em praticar condutas cujas consequências sejam aquelas

7 MEDEIROS, Sérgio Monteiro. Lei de improbidade administrativa: comentários e anotações


jurisprudenciais. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2003, p. 10.

8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 480367/SP. Brasília, DF, Relator: Min. Luiz Fux,
publicado no DJ de 24 maio 2014, p. 163.

A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO ÍMPROBO 15


previstas no caput dos arts. 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92. Sem tal qualificadora, não
há que se falar em ato ímprobo.

Vale dizer, é imprescindível para a caracterização da improbidade administrativa a


comprovação indubitável do elemento qualificador em análise. Isso porque, consoante
já exposto, o escopo da lei é combater a corrupção, sendo a improbidade a ilegalidade
qualificada pela desonestidade, pela violação ao princípio da moralidade administrativa.
Justamente por isso que, segundo José dos Santos Carvalho Filho, “o agente ímprobo
sempre se qualificará como violador do princípio da moralidade”9.

Não é o nosso almejo, com o exposto, dificultar a responsabilização daqueles


que fazem uso equivocado da coisa pública, afastando a consecução do interesse
público e atuando de forma ineficiente. Interpretação nesse sentido restaria dissonante
com o texto constitucional, sobretudo após a Emenda Constitucional nº 19/98 que,
modificando o art. 37 da Lei Maior, adicionou ao seu caput o princípio da eficiência
como basilar da atuação administrativa. O objetivo é tão somente esclarecer que não é
o escopo da Lei nº 8.429/92 punir o agente inábil, mas o agente desonesto10. É esta a
finalidade da Lei de Improbidade Administrativa, desde a sua gênese, razão pela qual seu
espírito deve ser preservado, e sua utilização, não vulgarizada e banalizada. Aos mera-
mente inábeis, ingênuos, inexperientes ou equivocados, certamente há formas outras
de controle e punição, mas não por meio da severa ação de improbidade administrativa.

Advogar de modo diverso seria cogitar que ilegalidade e improbidade são termos
coincidentes, e certamente não são. Embora não seja terreno incontroverso na doutrina
administrativista, comungamos do entendimento de que é inconcebível existir improbi-
dade administrativa sem ilegalidade, mas a recíproca nem sempre é verdadeira. Afinal,
é possível que um agente cometa um ato ilegal, embora por intermédio de uma conduta
dotada de boa-fé. Lado outro, não vislumbramos a possibilidade de um agente ímprobo,
desonesto, atuando de má-fé, causar lesão ao erário, se enriquecer ilicitamente ou violar
os princípios da Administração Pública sem que, ao menos, tenha violado a moralidade
administrativa, esculpida no art. 37, caput, da Constituição da República. O simples
fato de um agente público nortear suas condutas pela má-fé configura, a nosso ver,

9 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p.
1.089.

10 FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade administrativa. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 42-43; BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 213.994-0, Brasília, DF, Relator: Min. Garcia Vieira,
publicado no DO de 27 setembro de 1999.

16 Caio Mário Lana Cavalcanti


violação ao referido princípio. Ora, se os princípios são não somente diretrizes, mas
verdadeiras normas integrantes do ordenamento jurídico a serem seguidas11, a atuação
de um agente público desonesto é uma atuação eivada de ilegalidade, pelo simples
fato de ter violado o princípio da moralidade administrativa12.

Nesse sentido, todo ato ímprobo certamente é ilegal, embora nem todo ato ilegal
seja necessariamente ímprobo: afinal, a improbidade administrativa é a ilegalidade
qualificada pelo elemento subjetivo da corrupção, revelado pela desonestidade, pela
má-fé, pela má índole, pelo mau caráter, pela imoralidade, pela intenção consciente de
utilizar a coisa pública de forma indevida, ocasionando enriquecimento ilícito, lesão
ao erário ou violação aos princípios estruturantes da Administração Pública. Destarte,
nem toda ilegalidade é ímproba, mas toda improbidade administrativa é ilegal. Em
harmonia com o exposto é magistral o magistério de Maria Sylvia Zanella Di Pietro13,
quando explica que “o agente ímprobo pode ser conceituado como aquele que, muito
além de agir em desconformidade com a lei, transgride os princípios norteadores da
moral, configurando-se como um agente desonesto.”

Logo, a vontade exacerbada da sociedade de punir os agentes públicos e o parti-


cular com eles em conluio, justificável diante do cenário de corrupção sem precedentes,
deve ser vista com muita cautela pelos operadores do direito, sob pena de banalização
do ato ímprobo. A pressão popular e midiática por respostas imediatas e punições
apressadas não pode, jamais, levar à penalização por improbidade administrativa de
uma pessoa, física ou jurídica, sem que tenha sido vislumbrado um mínimo de má-fé14,
vez que o escopo da Lei nº 8.429/92, repita-se, é a penalização do agente corrupto, e
não do inábil.

11 CANOTILHO, J.J Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1998,
p. 1.035.

12 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2000,
p. 748. Para o administrativista, a violação a um princípio “é a mais grave forma de ilegalidade.”

13 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 709. No
mesmo sentido: PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos
constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal; legislação
e jurisprudência atualizadas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 18; HARGER, Marcelo. Improbidade
administrativa: comentários à Lei nº 8.429/92. São Paulo: Atlas, 2015, p. 17; NEIVA, José Antônio Lisboa.
Improbidade administrativa. 2. ed. Niterói: Impetus, 2006, p. 125; MATTOS, Mauro Roberto Gomes de.
O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92. Rio de
Janeiro: América Jurídica, 2006, p. 14; STJ, BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial
269683, Rel. Min. Laurita Vaz, publicado no DJ de 03 novembro de 2004, p. 168.

14 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 689.

A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO ÍMPROBO 17


Ademais, vale lembrar que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado
Democrático de Direito, razão pela qual a intimidade, a honra e a imagem são, assim
como a moralidade administrativa, valores e direitos constitucionalmente protegidos
que não podem ser abalados de forma aleatória, abusiva ou irresponsável. Afinal,
recai sobre a pessoa física ou jurídica que componha o polo passivo de uma ação de
improbidade efeitos graves e reais para a sua vida privada e, em caso de procedência
da ação, as consequências são da magnitude de, a depender do caso, ressarcimento
integral do dano, suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, multa civil
(que pode chegar a cem vezes o valor da remuneração do agente, nos moldes do art.
12, III, da Lei nº 8.429/92), proibição de contratar com o Poder Público e proibição de
receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.

Em virtude do exposto, enfatiza-se que a Lei de Improbidade Administrativa deve


ser manejada com cautela e responsabilidade, observando sua essência e o elemento
subjetivo qualificador do ato ímprobo, com vistas a condenar aquele que, realmente,
atuou com deslealdade para com a coisa pública, revelando-se desonesto.

2.2. Da consequente incongruência entre a essência do ato


ímprobo e a sua modalidade culposa
Diante do aduzido é que entendemos, inclusive, existir uma incongruência entre o
instituto da improbidade administrativa e a previsão do ato ímprobo culposo, no art. 10,
caput, da Lei nº 8.429/92. Isso pois há cristalina incompatibilidade entre o inafastável
elemento subjetivo qualificador do ato ímprobo – repisa-se: a má-fé, a desonestidade, o
conluio, a corrupção – e o seu enquadramento em condutas culposas em sentido estrito.

Vale dizer, em desconformidade com sua verdadeira razão de ser e com o conceito
de improbidade, contudo, a Lei nº 8.429/92 prevê a possibilidade de penalização por
ato de improbidade administrativa na modalidade culposa, nos casos de lesão ao erário
(art. 10 – para a configuração do ato ímprobo por enriquecimento ilícito ou violação aos
princípios norteadores da Administração Pública, não há discussões maiores que o dolo
é imprescindível). Trata-se, a nosso ver, de disposição que diverge da intenção verda-
deira do constituinte originário, exposta no art. 37, §4º da Constituição da República
e regulamentada pela Lei de Improbidade Administrativa. E, outrossim, trata-se de
incongruência com o próprio conceito de improbidade administrativa, já discutido

18 Caio Mário Lana Cavalcanti


alhures. Em consonância com o aduzido é o entendimento de Eurico Bitencourt Neto,
com o qual comungamos:
Já foi dito que improbidade significa desonestidade, deslealdade. Tais condutas
não se configuram por culpa. Mesmo quando a Lei n. 8.429/92 estabelece, no
caput do art. 10, a possibilidade de conduta culposa, quando se tratar de dano
ao erário, tal entendimento não deve prevalecer, por incompatibilidade com o
sistema constitucional.
As sanções pela prática de atos de improbidade são de extrema gravidade; não
pode o legislador infraconstitucional estender o conceito de probidade, imputar
conduta desonesta a quem age com imprudência, imperícia ou negligência. A
prática dos atos previstos na citada Lei de Improbidade pode resultar em outras
esferas de responsabilização: criminal, política, administrativa ou civil, previstas
em normas esparsas. Não é a Lei n. 8.429/92 – a despeito de sua importância
para o sistema jurídico – a tábua de salvação da Administração Pública, o último
bastião da moralidade pública.15

Neste ponto, críticas podem surgir acerca do posicionamento aqui defendido,


em virtude de a própria lei, expressamente, prever a culpa em seu texto. No entanto,
com respaldo na mais respeitada doutrina administrativista, já foi exposto que é
indispensável para a configuração do ato ímprobo a existência do dolo, da má-fé, da
desonestidade, enfim, do intuito deliberado de infringir a moralidade administrativa.

Ainda, também deve ser ressaltado, à luz de uma hermenêutica norteada pela
interpretação histórica, que a própria exposição de motivos16 da Lei nº 8.429/92 deixa
claro que a corrupção é uma das maiores mazelas que ainda afligem o país, o que
robustece ainda mais a tese aqui adotada, no sentido de que não há que se falar em
improbidade – e, consequentemente, de aplicação da LIA – se ausente a desonestidade
do agente da conduta atacada. E, por sua vez, impossível cogitar desonestidade sem

15 BITENCOURT NETO, Eurico. Legalidade e improbidade administrativa: justa aplicação da lei n. 8.429/92.
In: FERRAZ, Luciano; MOTTA, Fabrício (coord. e coautores). Direito público moderno. Belo Horizonte: Del
Rey, 2003, p. 249-250.

16 DO de 17/08/1991, Seção I, p. 14.124. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1992/lei-


8429-2-junho-1992-357452-exposicaodemotivos-149644-pl.html> Acesso em: 04/06/2018. Na referida
exposição de motivos, é cristalina a conclusão segundo a qual a Lei nº 8.429/92 sobreveio para combater
a corrupção. Literalmente, afirmou-se que: “Sabendo Vossa Excelência que uma das maiores mazelas
que, infelizmente, ainda afligem o País, é a prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato
com os dinheiros públicos, e que a sua repressão, para ser legítima, depende de procedimento legal
adequado - o devido processo legal - impõe-se criar meios próprios à consecução daquele objetivo sem,
no entanto, suprimir as garantias constitucionais pertinentes, caracterizadoras do estado de Direito”.

A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO ÍMPROBO 19


dolo, vale dizer, é impossível um agente agir de forma desonesta em decorrência de
negligência, imperícia ou imprudência: o agir corrupto é o agir com vontade, com
consciência do ato a ser praticado17.

Desta feita, a corrupção e a má-fé exigem, necessariamente, o dolo, afinal, é impos-


sível ser desonesto por engano, por inabilidade, por ingenuidade ou por inexperiência.
Nesta acepção, impecável é a colocação de Aristides Junqueira Alvarenga, quando
ensina o jurista que é muito difícil, para não dizer impossível, “excluir o dolo do conceito
de desonestidade e, consequentemente, do conceito de improbidade, tornando-se
inimaginável que alguém possa ser desonesto por mera culpa, em sentido estrito18.”

É nesse sentido, inclusive, que Marcelo Harger imputa inconstitucional a moda-


lidade culposa prevista no art. 10, da Lei nº 8.429/9219, em lição que merece ser
transcrita:
Já se afirmou no presente trabalho que a improbidade exige conduta dolosa,
pois está ínsita em sua matriz constitucional o elemento desonestidade. Isso
significa dizer que somente pode haver improbidade administrativa quando o
agente tiver consciência ou assumir o risco de praticar uma conduta ímproba.
Essa constatação é bastante relevante, especialmente, em relação ao art. 10 da
lei de improbidade. É que, partindo desse raciocínio, a expressão culposa prevista
no referido artigo é inconstitucional, e isso significa dizer que as hipóteses nele
previstas dependem da ocorrência do dolo específico de causar lesão ao erário.

Isso porque, repisa-se à exaustão, o ato de improbidade ultrapassa a noção


de inabilidade, de descuido, de imprudência, de negligência ou imperícia. Mas, sim,
extirpa os padrões mínimos de honestidade, em conduta intrinsecamente eivada de
desonestidade, exprimindo a malversação administrativa. Agente público ímprobo é,
necessariamente, agente público desprovido de boa-fé.

É, aliás, entendimento bastante proporcional e razoável se analisarmos um caso


hipotético: não nos parece justo tampouco razoável que um agente público honesto,

17 BITENCOURT NETO, Eurico. Improbidade administrativa e violação a princípios. Belo Horizonte: Del Rey,
2005, p. 137.

18 ALVARENGA, Aristides Junqueira. Reflexões sobre improbidade administrativa no direito brasileiro. In:
BUENO, Cassio Scarpinella; PORTO FILHO, Pedro Paulo de Rezende (coord.). Improbidade administrativa:
questões polêmicas e atuais. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 89.

19 HARGER, Marcelo. Improbidade administrativa: comentários à Lei nº 8.429/92. São Paulo: Atlas, 2015, p.
45.

20 Caio Mário Lana Cavalcanti


porém inábil, seja taxado de ímprobo nos mesmos moldes que um outro que seja
manifestamente corrupto. Entre a corrupção e a inexperiência há um abismo conceitual
que deve necessariamente ser considerado: o agente corrupto é um agente ímprobo,
enquanto o agente meramente inexperiente é, inicialmente, probo, até que se prove o
contrário, à luz da constitucional presunção de inocência. Neste diapasão, comungamos
do entendimento de Márcio Cammarosano e Flávio Henrique Unes Pereira20, para os
quais a improbidade administrativa pressupõe “grave desvio ético, inexistente nos
casos de culpa.”

Nessa continuidade, ainda que a legislação preveja a culpa para as hipóteses de


lesão ao erário (art. 10, da Lei nº 8.429/92), há que se reconhecer que o espírito constitu-
cional que a ela deu origem é incompatível com a modalidade culposa de conduta, pelo
simples fato de que o escopo da Lei de Improbidade Administrativa, repita-se, é punir
o desonesto, e não o inábil. O escopo é, assim, punir o agente ímprobo, e não o agente
que, por incompetência diante de suas funções, comete erros perante a Administração
Pública. Para estes últimos, existem formas outras de controle e punição pertinentes.
Existe, portanto, verdadeira impropriedade cometida pelo legislador ordinário, porquanto
o elemento subjetivo qualificador do ato ímprobo é claramente incompatível com
condutas culposas em sentido estrito.

Ora, se probidade é a qualidade daquele que atua com boa-fé21 e honestidade


frente ao agir administrativo, logo, improbidade é o antônimo, a saber, é a qualidade
daquele que atua com má-fé, desonradez e desonestidade22 perante a Administração
Pública, e é em relação a estes últimos que as penas da Lei nº 8.429/92 devem recair.
Realça-se, novamente, que com isso não se quer dificultar ou afastar o controle dos
agentes públicos, tampouco eximi-los de consequências jurídicas em virtude de seus
atos. O objetivo deste trabalho é expor que a Lei de Improbidade Administrativa exige
em sua essência a figura do dolo, sendo inconciliável com o espírito da legislação em

20 CAMMAROSANO, Márcio; PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Improbidade e esvaziamento do dolo. In:
Revista de Direito Administrativo Contemporâneo – ReDAC. Fevereiro/2014. São Paulo: Revista dos
Tribunais.

21 STOCO, Rui. Abuso de direito e má-fé processual. São Paulo: RT, 2002, p. 38.

22 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Improbidade administrativa e crimes de prefeitos: comentários, artigo por artigo,
da lei nº 8.492/92 e do DL 201/67. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 51; SILVA, De Plácito e. Vocabulário
jurídico. Atualizado por Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. 26. ed. São Paulo: Forense, 2005, p. 715.

A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO ÍMPROBO 21


comento a modalidade culposa23. É este o entendimento de Mauro Roberto Gomes de
Mattos que, de forma brilhante, atesta:
Portanto, é preciso verificar se existe indício, nem que seja um mínimo de má-fé,
que revele realmente a presença de um comportamento desonesto do agente
público, pois não basta a prática de um ato ilegal, tendo em vista que, se for
inconsciente, não será caracterizador de uma improbidade administrativa. A
expressão culposa é inconstitucional, ferindo o que vem estatuído no art. 37,
da CF, pois a “gradação da lei” não pode inovar e considerando todo e qualquer
ato involuntário ou de boa-fé como de improbidade.
A partir do momento em que o ato de improbidade é aquele que se correlaciona
com a consumação de um desvio de conduta ilegal ou imoral do agente
público, visando ao fim proibido pela lei, a atuação culposa sem o dolo fica
fora do presente contexto, pois a finalidade da lei é responsabilizar e punir o
administrador desonesto e não o inábil ou desastrado24.

Em harmonia com o deslindado também é o entendimento de Thiago Marrara, ao


esclarecer que “improbidade é o ato de má-administração marcado pela desonestidade
de quem o pratica”25.

Por todo exposto, entende-se que, para a configuração do ato de improbidade


administrativa, é condição inafastável a presença da desonestidade, mesmo para as
condutas geradoras de lesão ao erário, elencadas de forma exemplificativa no art. 10 da
Lei nº 8.429/92. Conclusão outra, com a devida vênia aos que pensam de forma diversa,
implica tratar como se idênticas fossem a ilegalidade e a improbidade administrativa,
equívoco manifestamente crasso.

Em contrapartida, importa oferecer interpretação sistemática à modalidade


culposa exposta no referido artigo pois, em que pese a crítica doutrinária a respeito

23 Em sentido oposto: OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública.
corrupção. ineficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 270 e seguintes. Entende o doutor
em Direito Administrativo que não há óbice para a configuração da modalidade culposa. Não é, contudo,
a nossa visão. Compreende-se, nesta oportunidade, que a improbidade não é harmônica com a culpa
strictu sensu.

24 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados
dentro da Lei nº 8.429/92. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2006, p. 290.

25 MARRARA, Thiago. O conteúdo do princípio da moralidade: probidade, razoabilidade e cooperação. In


MARRARA, Thiago (organizador). Princípios de direito administrativo: legalidade, segurança jurídica,
impessoalidade, publicidade, motivação, eficiência, moralidade, razoabilidade, interesse público. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 168.

22 Caio Mário Lana Cavalcanti


da previsão (a qual nos filiamos), fato é que ela existe e, até o presente momento, não
foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, parte da
doutrina compreende que o elemento culpa previsto no art. 10 da Lei de Improbidade
Administrativa deve recair sobre o resultado danoso da conduta, mantendo-se a
exigência de comprovação do dolo na prática da conduta propriamente dita. Em outras
palavras, a aferição da culpa se dá quando do resultado lesivo ao erário, sendo ainda
necessário comprovar o dolo quando da transgressão consciente e voluntária do dever
de probidade26.

Vale dizer, embora o dano ao erário tenha ocorrido por negligência, imperícia
ou imprudência, o agente age com deslealdade ou desonestidade na medida em que
conscientemente tem conhecimento que sua conduta configura uma violação ao dever
de probidade. Ou seja: por culpa o erário restou lesado, mas a conduta ensejadora do
dano restou praticada com repleta consciência da ilicitude, com total voluntariedade
quando da transgressão à probidade.

Malgrado insista-se na falta de correspondência entre a modalidade culposa


de improbidade administrativa e o espírito da lei, parece-nos minimamente razoável
também o entendimento supra, a equilibrar a previsão expressa da culpa, no art. 10,
caput, da Lei nº 8.429/92, com o cerne da legislação em comento, haja vista que mantém
o dolo como figura indispensável para que a conduta em análise seja considerada
ímproba. Por derradeiro, firmamos o entendimento no sentido de que, com todo o
respeito às posições divergentes, improbidade e culpa são totalmente inconciliáveis,
razão pela qual o ato ímprobo necessariamente deve ser doloso, porquanto o escopo
da legislação em comento é a punição do agente desonesto, e não do inábil.

26 AMARAL, Paulo Osternack. O elemento subjetivo nas ações de improbidade administrativa: uma
análise do entendimento do Superior Tribunal de Justiça. In: Informativo Justen, Pereira, Oliveira e
Talamini, Curitiba, nº 24, fev. 2009. No mesmo sentido: PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade
administrativa comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de
responsabilidade fiscal; legislação e jurisprudência atualizadas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006., p. 60 e
seguintes.

A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO ÍMPROBO 23


3. Crítica ao Ministério Público enquanto legitimado
para o ajuizamento da ação de improbidade
administrativa
Primeiramente, deve ser realçado que o Ministério Público é um dos grandes
responsáveis pelo combate à corrupção no país, razão pela qual é uma instituição que
merece todo o respeito e admiração dos brasileiros. De fato, não poderia ser diferente,
haja vista que representa instituição permanente essencial à defesa da ordem jurídica
e do regime democrático, consoante o art. 127, caput, da Carta Política. É, destarte,
imprescindível para o resguardo da justiça, da legalidade, da democracia, dos interesses
difusos e coletivos, enfim, do Estado Democrático de Direito. Todavia, críticas ao Parquet
merecem ser feitas no que toca ao tema deste trabalho, não com o intuito de depreciar
ou maldizer o órgão ministerial, mas com vistas a uma atuação mais justa e condizente
com o instituto da improbidade administrativa, visando a contínua melhoria do Estado
Democrático de Direito brasileiro.

É sabido que o Ministério Público é um dos legitimados para o ajuizamento da


ação de improbidade administrativa, consoante o art. 17, caput, da Lei nº 8.429/92.
Ou, quando não é o autor, sua atuação no processo enquanto custos legis (fiscal da
lei) é imprescindível, sob pena de nulidade, nos termos do §4º do mesmo dispositivo.
Na concretude dos fatos, apesar de não ser o único legitimado para tal, a verdade é
que o órgão ministerial é o responsável por grande parte das ações de improbidade
administrativa ajuizadas nos quatro cantos do país.

E, no campo prático, o Ministério Público muitas vezes não realiza uma investigação
minimamente suficiente para expor um agente público a uma ação de improbidade
administrativa. E, quando o faz, não apresenta indícios mínimos de má-fé a caracterizar
o ato ímprobo, tratando de forma equivalente o agente desonesto e o agente inábil,
contribuindo, portanto, para a banalização do ato ímprobo e para a vulgarização da Lei
nº 8.429/92, o que não é desejável e claramente contrário ao espírito constitucional.
Afinal, como já elucidado, do mesmo modo que a moralidade administrativa deve
ser defendida, o sossego, a intimidade e a imagem são igualmente valores e direitos
a serem preservados, sobretudo se tratando de agentes políticos e de empresas
privadas, pessoas que possuem como bens mais valiosos a boa fama, a boa imagem
e a credibilidade.

24 Caio Mário Lana Cavalcanti


Portanto, é imprescindível que a exordial da ação de improbidade administrativa
seja bem formulada, com a devida cautela, demonstrando objetivamente a relação
entre os réus e os atos ímprobos atacados. Assim, ações mal elaboradas, que não
apresentam indícios mínimos de desonestidade ou de correlação entre os atos e os
réus, não merecem ser recebidas. Em harmonia com o deslindado é o entendimento
de Waldo Fazzio Júnior:
Exige-se que a peça vestibular seja precisa quanto à indicação do fato e os
fundamentos jurídicos do pedido. É ônus do autor da ação civil de improbidade
administrativa inscrever, na peça vestibular, o que quer, por que quer, com
fundamento em que quer. Leia-se, em que consistiu o ato de improbidade
imputado ao réu, ou, conforme o caso, o ato cuja decretação de invalidade
postula, ou, ainda, em que consistiu sua lesividade ao patrimônio da entidade
pública, se for o caso. Também, incumbe-lhe apontar, de forma concreta
e objetiva, como e em que condições teria o requerido praticado os atos de
improbidade que lhe são imputados. É lógico27.

Nesse trilho, não poucas vezes agentes públicos honestos ou empresas privadas
idôneas, embora incompetentes em sentido lato, se sujeitam a ações de improbidade
administrativa que, por sua própria natureza, independentemente do seu desfecho,
marcam a vida privada e profissional de tais pessoas. Estar no polo passivo de uma ação
nos moldes da Lei nº 8.429/92, conhecida por condenar agentes públicos desonestos
e empresas corruptas, é estar marcado por uma nódoa que não se dissolve facilmente,
contribuindo largamente para prejuízos pessoais e financeiros sem precedentes,
gerando constrangimento ilegítimo. Em consonância com o aduzido, é primorosa a
colocação de Marcelo Harger, ao criticar o Ministério Público enquanto polo ativo da
ação de improbidade administrativa:
Atualmente quaisquer equívocos ou ilegalidades praticados por um servidor
público podem ser enquadrados na lei de improbidade. Muitas dessas ações,
no entanto, são injustificadas e geram danos irreparáveis aos acusados, pois a
propositura da ação normalmente é acompanhada de matérias jornalísticas. A
absolvição, que somente irá ocorrer tempos depois, jamais servirá para reparar o
dano causado a essas pessoas, que foram marcadas com a pecha de desonestas
antes mesmo de terem sido julgadas. A exemplo do que acontecia em tempos
idos, dá-se aos acusados uma “pena infamante”, que é mais grave do que aquelas
praticadas séculos atrás. É mais séria porque no mundo atual a vergonha não

27 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Atos de improbidade administrativa. São Paulo: Atlas, 2008, p. 315.

A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO ÍMPROBO 25


se resume aos membros da coletividade, mas se espalha por toda a nação e
quiçá pelo mundo. É mais séria porque implica em um retrocesso inadmissível
em um Estado de Direito, pois se condena primeiro para julgar depois. É mais
séria porque o autor de tais afrontas é aquele que recebeu pela Constituição
Federal o dever de ser o curador da legalidade em nosso país28.

Nesse contexto, é harmônico e pertinente recorrermos ao brocardo em latim do


summum jus, summa injuria, máxima que expressa a ideia de que o excesso de justiça
ocasiona, justamente, a injustiça; o excesso da busca pela aplicação do ordenamento
jurídico ocasiona, justamente, a sua não aplicação. Em tal esteira, relembrar Aristóteles
é sempre tarefa que se amolda à atualidade: para o filósofo grego, cuja influência para
o pensamento ocidental dispensa comentários, a virtude (aretê) está mesmo no meio
termo (mesótês) entre dois extremados vícios, está na equidistância entre o excesso
e a falta, sendo o equilíbrio, pois, revelador da virtude da justiça.

Nesta senda, tanto o excesso quanto a deficiência, sob o viés aristotélico, devem
ser evitados: ambos são vícios que estão igualmente distantes da realização da
virtude. Por conseguinte, a provocação do Poder Judiciário deve sempre observar o
agir prudente, meio termo – e, portanto, a virtude in casu – entre o agir temerário e a
ausência do agir, de modo a evitar espetáculos fantasiosos que em nada ajudam na
concretização e no fortalecimento da justiça e do ordenamento jurídico. Sem dúvida,
tão indignante quanto a cultura da impunidade é a injustiça, tão reprovável quanto
a falta de atuação do Ministério Público é, por conseguinte, o seu agir temerário e
desarrazoado. O equilíbrio, pois, revela a virtude a ser buscada pelo órgão ministerial.

Não bastassem as severas penas da Lei nº 8.429/92, muitas vezes aplicadas a


agentes que, de boa-fé, cometem tão somente erros de gestão, a legislação permite,
em sede de medida liminar (e, portanto, em cognição meramente sumária, ausente o
exaurimento do contraditório e da ampla defesa), medidas como a indisponibilidade
de bens e a quebra de sigilo bancário e telefônico, não raras as vezes por motivos
não jurídicos, mas pelo clamor social, sobretudo nos municípios interioranos. Se a
população com razão é ávida por punição aos que maltratam a coisa pública, e se a
mídia é aflita por linchamentos morais espetaculosos, as instituições operadoras do
direito, dentre as quais o Ministério Público, devem guiar sua atuação com cautela,

28 HARGER, Marcelo. Improbidade administrativa: comentários à Lei nº 8.429/92. São Paulo: Atlas, 2015, p.
2.

26 Caio Mário Lana Cavalcanti


sensatez, razoabilidade e de acordo com os estreitos limites da lei e da Constituição
da República.

Outrossim, também é mister enfatizar que o Ministério Público, enquanto legiti-


mado ativo para o ajuizamento das ações de improbidade administrativa, atua não em
interesse próprio, mas no interesse da coletividade, na defesa da ordem jurídica, no
resguardo do Estado Democrático de Direito e em prol do interesse público. Este, por
sua vez, se revela não na provocação do Poder Judiciário de maneira arbitrária, mas em
uma atuação sensata, em consonância com a razoabilidade e com a proporcionalidade
que guiarão o caso concreto.

Desta feita, a defesa da ordem jurídica e do regime democrático, função precípua


do Ministério Público29, se realiza não em perseguições infundadas e em ajuizamento
de ações de improbidade sem respaldo fático-probatório, mas na proteção à probi-
dade administrativa nas hipóteses em que realmente os ditames da Lei nº 8.429/92
se mostrem aplicáveis e necessários, conforme o entendimento desenvolvido neste
trabalho. Nesta senda, pertinente é trazer à baila a reflexão feita por Nestor Távora e
Rosmar Rodrigues de Alencar, ao refletirem acerca da função do Parquet no campo
processual penal, reflexão esta que, indubitavelmente, possui também aplicação e
relevância in casu:
Cumpre ainda observar que o MP não é um colecionador de condenações,
assumindo o relevante papel de guardião da sociedade e fiscal da justa aplicação
da lei. Apesar de não poder dispor da ação, pode validamente, em sede de
alegações finais, pleitear a absolvição do réu, impetrar habeas corpus em favor
deste, e até recorrer para beneficiá-lo30.

Em consonância com o aduzido também são as reflexões de Eugenio Pacelli,


quando assevera que o Parquet não é órgão de acusação, mas, diversamente, órgão
legitimado para a acusação31. Trata-se de diferenciação sutil, mas de brilhante conteúdo,
em harmonia com o defendido nesta oportunidade: deve o Ministério Público, enquanto
órgão essencial para o Estado Democrático de Direito e legitimado ativo para a

29 BRASIL. Constituição da República. Art. 127, caput.

30 TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. Salvador: Ed.
JusPodivm, 2017, p. 262.

31 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 421.

A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO ÍMPROBO 27


propositura das ações de improbidade administrativa, não agir de forma temerária e
infundada, mas pautar suas condutas com razoabilidade e com prudência.

Ademais, o ajuizamento indiscriminado de ações de improbidade administrativa,


para além de toda a problemática já exposta, resulta em instrumento de inviabilização
da função administrativa. Isso pois os agentes públicos, receosos em integrar o polo
passivo desse tipo de demanda (que deveras vezes é ajuizada de forma descriteriosa),
mantêm sua atuação engessada, dificultando a busca pelo interesse público. Também
sob um viés pragmático e prático, portanto, importa afastar a banalização do ato
ímprobo.

É por isso que insistimos que a ação de improbidade constitui um escopo próprio,
a saber, o de combater a corrupção por intermédio da penalização do agente público
desonesto. Logo, equivoca-se o Parquet ao, muitas vezes, sequer analisar se há indícios
mínimos de má-fé do acusado previamente ao ajuizamento da ação de improbidade,
configurando abuso do seu direito de ação e causando tumulto ilegítimo na vida pessoal
e pública de agentes honestos32. Importa destacar, nesse sentido, o entendimento de
Carolyne da Frota Cavalcante, que de forma brilhante e digna de aplausos sintetiza o
esboçado ao longo desta oportunidade:
Assim, a ação civil de improbidade administrativa é instrumento hábil para punir
atos deliberados de corrupção, praticados por gestores que se enriquecem
ilicitamente em prejuízo de toda a sociedade. (...)
Deve-se sempre ter em mente que não é qualquer dano ou qualquer ato que é
passível de aplicação das severas sanções previstas na Lei de Improbidade
Administrativa, e esse ponto merece grande reflexão.
Isso porque os membros do MP, titulares dessas ações, vêm buscando, através
das Ações de Improbidade Administrativa, responsabilizar gestores públicos e
particulares por todo e qualquer ato que considere ensejador de danos ao erário,
o que, em verdade, não se coaduna com a ratione da lei.
Na prática, é possível verificar casos em que o Parquet ingressa com ações de
improbidade sem que haja qualquer juízo de valor sobre o ato a ser combatido,
tão somente tentando evitar a prescrição de seu direito de agir, sobretudo em

32 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados
dentro da Lei nº 8.429/92. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2006, p. 286.

28 Caio Mário Lana Cavalcanti


decorrência do lapso temporal necessário para se verificar a fundo se houve ou
não a prática delituosa.
Entretanto, é certo que para respeito da intenção da lei e sua salvaguarda, há
que se separar o “joio do trigo”, o “simples” dano ao erário por equívocos de
gestores e particulares daqueles atos corruptos, desonestos, fraudulentos, etc.
Não é justo e nem razoável que se coloque na mesma balança gestores corruptos,
que se enriquecem dolosa e ilicitamente às custas dos recursos públicos, e
gestores corretos que, sob a ótica ministerial, tenham causado algum prejuízo
ao Estado, seja por incompetência ou até mesmo por má-gestão. (...)
Não se está aqui querendo aceitar atos de má-gestão, esse não é o intuito, posto
que os recursos públicos devem ser utilizados com zelo e eficiência. O que se
pretende é separar as condutas que devem, sim, ser vistas como diversas, sob
pena de comprometimento do interesse precípuo da lei.
Com efeito, é importante que não seja esquecida a finalidade da lei, que é
justamente a responsabilização por atos ímprobos, sob pena de fragilizarmos
o instituto da ação de improbidade. Isso porque, quando se categoriza tudo
como ato de improbidade, automaticamente, nada o será mais33.

É nessa acepção que, por fim, coadunamos com a lição de Thiago Marrara, que
afirma que “um exame sistemático da improbidade no caso concreto é imprescindível,
pois não é ideal, nem tampouco justo, que meros erros de gestão sejam confundidos
com atos de improbidade.34”

Considerações finaiS
A corrupção é um mal que deve ser fortemente combatido. É, atualmente, um dos
grandes responsáveis pelo afastamento da consecução do interesse público, na medida
em que muitos agentes públicos utilizam da máquina pública não para a satisfação
dos anseios e necessidades da população, mas para a busca egoísta e desonesta dos

33 CAVALCANTE, Carolyne da Frota. A indisponibilidade financeira e a substituição pelo seguro-


garantia nas ações de improbidade administrativa. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/
dePeso/16,MI279178,41046-A+indisponibilidade+financeira+e+a+substituicao+pelo+segurogarantia>.
Acesso em: 14/05/2018.

34 MARRARA, Thiago. O conteúdo do princípio da moralidade: probidade, razoabilidade e cooperação. In:


MARRARA, Thiago (organizador). Princípios de direito administrativo: legalidade, segurança jurídica,
impessoalidade, publicidade, motivação, eficiência, moralidade, razoabilidade, interesse público. São
Paulo: Atlas, 2012, p. 170.

A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO ÍMPROBO 29


seus próprios interesses particulares, em nítida afronta aos mais comezinhos preceitos
éticos e aos princípios norteadores do Poder Público. A indignação da população é,
por óbvio, justificável e compreensível.

Mais que um desvio ético de conduta isolado, a corrupção na Administração


Pública é uma verdadeira cultura digna de repulsa e repúdio que, hoje, chegou a tal
ponto que falar de política é gerar aversão, antipatia e abominação em parcela da
população. É por isso que, cada vez mais, o povo está ávido por condenação e punição
daqueles envolvidos com a deturpação da coisa pública, em um plausível sentimento
de indignação. Comungamos, sim, desse sentimento, e a Lei nº 8.429/92 foi editada
justamente neste sentido.

Em contrapartida, os operadores do direito devem nortear suas condutas com


sensatez, prudência e razoabilidade. Devem despir-se da paixão irracional proveniente
da indignação ao cuidar da correta e justa aplicação do ordenamento jurídico pátrio.
Isso pois, consoante exaustivamente defendido, a Lei de Improbidade Administrativa
não possui como finalidade a punição do agente público inábil, desastrado, inexperiente
ou ingênuo que, dotado de boa-fé, comete erros; mas a punição do agente público
desonesto, perverso ou desleal que, dotado de má-fé, possui o dolo de infringir o
ordenamento jurídico, na medida em que voluntariamente se enriquece ilicitamente, lesa
o erário ou viola os princípios da Administração Pública, na mais repleta consciência de
seus atos. É por isso que, aliás, a modalidade culposa de improbidade administrativa,
prevista no art. 10, caput, da Lei nº 8.429/92, merece com razão todas as críticas
possíveis da doutrina administrativista, ante a incongruência e incompatibilidade com
o instituto in casu. É preciso, utilizando da sabedoria popular proveniente da literatura
bíblica, separar o joio do trigo, vale dizer, separar os agentes dotados de boa-fé daqueles
eivados de má-fé.

Nesse sentido, entendemos abusivo o direito de ação daquele que ajuíza a ação
de improbidade administrativa sem sequer demonstrar ou vislumbrar um mínimo de
má-fé daqueles integrantes do polo passivo da demanda, em nítida vulgarização do ato
ímprobo, ultrapassando os limites da aplicação da Lei nº 8.429/92. Banalização esta
que não apenas constitui uma afronta aos direitos individuais dos réus, mas contribui
para o enfraquecimento do instituto e para a inviabilização da própria função adminis-
trativa, na medida em que o agente público, por receio, limita suas próprias condutas
na busca do interesse público. Assim, a banalização do ato ímprobo é prejudicial em
todos os aspectos.

30 Caio Mário Lana Cavalcanti


Nesta senda, é emergencial a conscientização do operador do direito no que tange
à ação de improbidade administrativa, na medida em que, uma vez banalizada, é difícil
que a sua utilização retorne à sua verdadeira razão de ser, a saber, a condenação do
agente público eivado de desonestidade. Fim semelhante observa-se cada vez mais
com a corrupção no Brasil, o que é deveras temerário: após séculos sendo praticada
habitualmente, dia após dia, muitos a consideram algo normal, usual, banal, daí dizeres
populares tais como o “rouba, mas faz”.

Neste horizonte, comungar com o ajuizamento e posterior êxito de ações de


improbidade em que não há a preocupação e a robusta comprovação do elemento
subjetivo qualificador do ato ímprobo, a saber, a desonestidade, é observar lentamente
a banalização da condenação de agentes públicos honestos às severas penas da Lei nº
8.429/92. É imperioso, portanto, a conscientização do operador do direito neste sentido,
afinal, como bem colocou Fiódor Dostoiévski, “há em tudo um limite que é perigoso
transpor, porque, uma vez transposto, já não há processo de voltar-se atrás”, se tudo
pode ser enquadrado como improbidade administrativa, nada mais o será, como bem
lembrou Carolyne da Frota Cavalcante, em reflexão já exposta.

À guisa de remate, se a corrupção é um mal que deve ser fortemente eliminado,


do mesmo modo deve ser eliminada a aplicação da Lei nº 8.429/92 de forma descri-
teriosa e desarrazoada, isto é, do mesmo modo deve ser combatida a banalização do
conceito de ato ímprobo. Na mais coloquial linguagem, um erro não pode levar a outro.
Tão reprovável quanto a impunidade, repita-se, é a injustiça e a aplicação errônea do
ordenamento jurídico.

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A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO ÍMPROBO 31


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32 Caio Mário Lana Cavalcanti


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A BANALIZAÇÃO DO CONCEITO DE ATO ÍMPROBO 33


O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB
NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS
REPASSADOS À CÂMARA MUNICIPAL
César Verdade Costa Barros1

Resumo
O presente artigo discute se os valores repassados pelos municípios
ao Fundeb devem integrar a base para o cálculo dos duodécimos transfe-
ridos pelo Poder Executivo Municipal à Câmara Municipal. A análise parte
da interpretação do art. 29-A da Constituição Federal. A partir da norma
constitucional são delineados quais fatores devem integrar obrigatoriamente
o somatório da base de cálculo para o repasse duodecimal. Em seguida,
faz-se uma pesquisa acerca da natureza jurídica do Fundeb, do histórico
de sua criação e de seu funcionamento. Os parâmetros operacionais e de
distribuição dos valores do Fundeb aos municípios são delineados. A partir
da compreensão do funcionamento do Fundeb, é discutido se os recursos
destinados ou provenientes do fundo podem ser identificados como fatores
que compõem a base de cálculo dos duodécimos. Tendo como parâmetro o
conceito doutrinário de receita tributária, os valores provenientes do Fundeb
são categorizados, de modo a definir em quais circunstâncias eles devem
compor a base de cálculo dos repasses à Câmara. O posicionamento do
STJ sobre a matéria é exposto e contrastado com o presente estudo. Ao
final, conclui pela inclusão dos recursos do Fundeb na base de cálculo dos
duodécimos, com relevantes ressalvas.

1 Especialista em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático – IDDE. Graduado
em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Foi Procurador-Geral do Município de Taquaraçu
de Minas. Assessor Administrativo no Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais.
BARROS, César Verdade Costa. O computo dos recursos do Fundeb na base de cálculo dos duodécimos repassados à câmara
municipal. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; SACCHETTO,Thiago Coelho (Orgs.). Advocacia pública em foco. Volume II. Belo Horizonte:
IDDE, 2019. p. 35-62. Disponível em https://doi.org/10.32445/97885671341092
Introdução
O Poder Executivo da União tem a obrigação constitucional (art. 168 da CF/1988)
de entregar aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público e à Defensoria
Pública, até o dia vinte de cada mês, os recursos consignados em orçamento para estes
entes. Esse repasse é feito na forma de duodécimos. Trata-se da instrumentalização
do princípio da separação dos poderes. Uma vez que o Poder Executivo é o destinatário
primário das receitas, compete a ele realizar a repartição entre os outros poderes,
garantindo assim que os demais possam exercer suas funções com autonomia e
independência.

No âmbito municipal, o art. 29-A da CF/1988 fixou o total da despesa do Poder


Legislativo Municipal em seis índices percentuais, que decrescem na medida em que
se aumenta a população municipal. Este índice é aplicado sobre o total da receita
tributária e das transferências relativas à repartição das receitas tributárias da União
e dos Estados, efetivamente realizado no ano anterior. O limite deve ser respeitado,
competindo ao Poder Executivo repassar os recursos consignados em orçamento até
o dia vinte de cada mês, sob pena de incorrer o Prefeito em crime de responsabilidade
(art. 129-A, §2º da CF/1988).

Desse modo, a Lei Orçamentária Anual deverá consignar despesas a serem


realizadas pela Câmara dentro do limite estabelecido nos incisos I a VI do art. 168-A
da CF/1988. Para tanto, deve ser observado o somatório da receita efetivamente
arrecadada no exercício financeiro anterior. Procede-se, portanto, o cálculo do total
arrecadado, e aplica-se o índice percentual de acordo com a população do município.

Ocorre que algumas espécies de recursos são objetos de controvérsias em relação


a estarem ou não inclusas na base de cálculo dos limites dos duodécimos repassados à
câmara municipal. Entre elas, estão os recursos repassados pelo Fundo de Manutenção
e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
(Fundeb) aos municípios.

Em 03 de novembro de 2015, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), pela primeira


vez se posicionou sobre o tema e, por maioria, decidiu que as verbas que compõem
2

o Fundeb devem ser excluídas da base de cálculo dos duodécimos. A decisão do STJ

2 O STJ, em 02/08/2005, no julgamento do Recurso Ordinário 15.173/RJ, de relatoria do Ministro Francisco


Peçanha Martins, decidiu que a Câmara Legislativa de Belford Roxo não possuía direito líquido e certo ao
repasse pelo Executivo Municipal das receitas proveniente do SUS, Fundef e Royalties do petróleo.

36
anulou o acórdão do Tribunal de Contas de Minas Gerais (TCEMG) proferido na proferido
na Consulta n. 837.614/TCE.

O Tribunal de Contas mineiro, neste julgado, revendo seu entendimento anterior,


consignou que “a contribuição municipal feita ao Fundef ou ao Fundeb, custeada por
recursos próprios, deve integrar a base de cálculo para o repasse de recursos do Poder
Executivo à Câmara Municipal, previsto no art. 29-A da Carta Magna.”3 O acórdão do
STJ foi objeto de recurso extraordinário, o qual tramita no Supremo Tribunal Federal
(STF), ainda sem julgamento.

Ante a divergência de posicionamento do Tribunal de Contas de Minas Gerais e


o Superior Tribunal de Justiça, e considerando que o STF ainda não manifestou seu
entendimento sobre o assunto, este trabalho procura aprofundar o estudo da matéria, de
modo a encontrar a resposta à seguinte questão-problema: os recursos destinados ao
Fundeb pelos Municípios devem integrar a base de cálculo dos duodécimos repassados
à Câmara Municipal?

A resposta à indagação foi buscada neste artigo por meio da extração da norma
constitucional contida no art. 29-A da CF/1988, da compreensão do histórico e do
funcionamento do Fundeb e dos conceitos doutrinários sobre receita tributária.
Percorrendo esse caminho, conseguimos realizar o enquadramento jurídico das verbas
destinadas à formação do fundo, com vistas a determinar se elas devem ou não compor
a base de cálculo dos repasses à Câmara Municipal.

1. Os duodécimos da Câmara Municipal

1.1 A obrigatoriedade do repasse dos duodécimos e art. 29-A da


CF/1988
O governo municipal possui funções divididas, cabendo à Câmara, as legislativas e
à Prefeitura, as executivas, entretanto, não há nenhuma espécie de subordinação admi-
nistrativa ou política entre os poderes4. Em decorrência do Princípio da Separação dos

3 MINAS GERAIS. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Consulta n.837.614. Relator Conselheiro
Antônio Carlos Andrada. Tribunal Pleno. Sessão 29/06/2011. Disponível em: http://tcnotas.tce.mg.gov.
br/tcjuris/Nota/BuscarArquivo/83739. Acesso em: 07 ago. 2018.

4 MEIRELLES, Henly Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 437.

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 37


CÂMARA MUNICIPAL
Poderes, expresso no art. 2º da CF/1988, o Poder Legislativo Municipal é independente
do Poder Executivo Municipal, disso decorre que no exercício das atribuições que lhe
são próprias, não precisam seus titulares consultar os representantes do Executivo,
nem necessitam de sua autorização5.

Para garantir a autonomia e independência da Câmara Municipal, o Poder Executivo


local tem a obrigação de entregar os recursos correspondentes às dotações orçamen-
tárias, compreendidos os créditos suplementares e especiais, destinados ao Poder
Legislativo Municipal, até o dia vinte de cada mês. Tal obrigação decorre do comando
fixado no art. 168 da Constituição Federal6, que é reproduzido, com as devidas altera-
ções, em respeito ao princípio da simetria, nas Leis Orgânicas Municipais.

Este repasse deve ser realizado em duodécimos, ou seja: o valor total dos recursos
a ser entregue no ano-exercício deve ser dividido em doze vezes e repassado mensal-
mente. Neste caso, o Poder Executivo atua apenas como órgão de arrecadação, a verba
é do Poder Legislativo. Caso o Executivo não faça a transferência, estará no exercício
irregular do poder, o que habilita a Câmara de ingressar em juízo para obter recursos7.

Por meio da edição da Emenda Constitucional nº 25, de 2000, foi incluído na


Constituição Federal o art. 29-A8. A norma constitucional divide os municípios em seis
categorias populacionais e atribui limites percentuais ao total da despesa do Poder
Legislativo Municipal. Os percentuais, que variam de 3,5% até 7%, são aplicados sobre
o somatório da receita tributária e das transferências previstas no § 5º do art. 153 e
nos arts. 158 e 159, efetivamente realizado no exercício anterior, no Município.

A norma constitucional em apreço limitou os gastos das Câmaras Municipais, tendo


como parâmetro a população local e a capacidade arrecadatória do ente municipal.

5 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32 ed. São Paulo: Malheiros, 2009.p.
110.

6 Art. 168. Os recursos correspondentes às dotações orçamentárias, compreendidos os créditos


suplementares e especiais, destinados aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário, do Ministério
Público e da Defensoria Pública, ser-lhes-ão entregues até o dia 20 de cada mês, em duodécimos, na
forma da lei complementar a que se refere o art. 165, § 9º.

7 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
p. 446.

8 Art. 29-A. O total da despesa do Poder Legislativo Municipal, incluídos os subsídios dos Vereadores
e excluídos os gastos com inativos, não poderá ultrapassar os seguintes percentuais, relativos ao
somatório da receita tributária e das transferências previstas no § 5º do art. 153 e nos arts. 158 e 159,
efetivamente realizado no exercício anterior:

38 César Verdade Costa Barros


Os índices constantes dos incisos I a VI do art. 29-A da CF/1988 são aplicados sobre
o total da receita tributária, tanto as provenientes de tributos de sua competência,
quanto aquelas derivadas da participação em receita de tributos federais e estaduais.

1.2. A base de cálculo do limite de gastos do Poder Legislativo


Municipal.
A base de cálculo do limite de castos do Poder Legislativo Municipal é composta:
1) da receita tributária do município; 2) das transferências realizadas pelos Estados
e pela União aos municípios em decorrência da repartição das receitas tributárias.

A receita tributária é aquela proveniente dos impostos, taxas e contribuição de


melhoria, de competência dos Municípios, e da Receita da Dívida Ativa Tributária. Dentre
os impostos estão compreendidos o: 1) Imposto Predial e Território Urbano (IPTU); 2)
Imposto sobre Transação Intervivos de Bens Imóveis (ITBI); 3) Imposto sobre Serviço
de Qualquer Natureza (ISS).

Quanto às transferências, elas são as provenientes do repasse que a União


ou o Estado entrega aos municípios decorrentes do: 1) Imposto sobre operações
financeiras das operações com ouro, quando definido em lei como ativo financeiro
ou instrumento cambial (IOF-ouro); 2) Imposto sobre a renda retido na fonte (IRRF);
3) Fundo de Participação dos Municípios (FPM); 3) Imposto Territorial Rural (ITR);
Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações
de serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação (ICMS); 4)
Imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA); 5) Imposto sobre produtos
industrializados para a exportação (IPI-exportação) e 6) Contribuição de Intervenção
no Domínio Econômico sobre combustíveis (CIDE-combustíveis).

Ocorre que a listagem das espécies de recursos que compõem a base de cálculo
dos duodécimos não é suficiente para resolver a questão proposta no presente estudo.
Para tanto, faz-se necessário buscar a conceituação doutrinária de receita pública,
receita municipal, receita tributária e diferenciar entrada de receita. Desse modo,
será possível verificar mais adiante, se as receitas que formam o Fundeb são receitas
tributárias e, por consequência, compõem a base de cálculo dos duodécimos.

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 39


CÂMARA MUNICIPAL
Meirelles define receita municipal como “o conjunto de recursos financeiros que
entram para os cofres locais, provindos de quaisquer fontes, a fim de ocorrer as despesas
orçamentárias e adicionais do orçamento9”. Meirelles10 também nos leciona que:
Os tributos e os preços constituem as rendas públicas, que, somadas aos demais
recursos conseguidos pelo Município, fora de suas fontes próprias, formam a
receita pública.
A receita pública é, pois, o conjunto de recursos financeiros que entram para
os cofres estatais, provindo de quaisquer fontes, a fim de acorrer às despesas
orçamentárias e adicionais do orçamento. Na receita municipal, espécie do
gênero receita pública – incluem-se as rendas municipais e demais ingressos
que o Município recebe em caráter permanente, como os provenientes da
participação em receitas de tributos federais e estaduais, ou eventual, como os
advindos de financiamentos, empréstimos, subvenções, auxílios e doações de
outras entidades ou pessoas física

Segundo Aliomar Baleeiro11 “Receita pública é a entrada que, integrando-se no


patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo,
vem acrescer o vulto, como elemento novo e positivo”. O eminente autor ensina que
as quantias recebidas pelos cofres públicos são genericamente denominadas como
“entradas” ou “ingressos”, e pondera que “nem todos esses ingressos, porém, constituem
receitas públicas, pois alguns deles não passam de ‘movimentos de fundo’, sem qualquer
incremento do patrimônio governamental”. Desse modo temos que toda receita pública
é uma entrada, porém, nem toda entrada é receita pública.

Ainda de acordo com a lição de Baleeiro12, a receita pública pode ser classificada
entre ordinária e derivada. A receita ordinária advém da exploração estatal da atividade
econômica, enquanto a derivada decorre daquelas provenientes do constrangimento
legal para sua arrecadação, como os tributos, penas pecuniárias, o confisco e as
reparações de guerra13. Oliveira14 trás ainda a categorização das receitas transferidas,

9 MEIRELLES, Henly Lopes. Finanças Municipais. São Paulo: RT, 1979. p.4-5.

10 MEIRELLES, Henly Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 135.

11 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 152.

12 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 153.

13 HARADA, Kiroshi. Direito Financeiro e Tributário. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2010. p.33.

14 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
p.150.

40 César Verdade Costa Barros


que seriam aquelas que “embora provindas do patrimônio particular (a título de tributo),
não são arrecadadas pela entidade política que vai utilizá-las”.

O art. 29-A da CF/1988, ao utilizar a expressão receitas tributárias e transferências


se refere, portanto, à receita derivada de origem tributária e à receita transferida, espécies
do gênero receita pública. Desse modo, a base de cálculo dos duodécimos a serem
entregues à Câmara deverá abranger toda receita pública que puder ser categorizada
como receita derivada de origem tributária ou de receita transferida.

Para identificar se a receita derivada é de origem tributária ou não, bastará verificar


se a origem dos recursos advém de obrigação jurídica que nascer de pressuposto de
ato lícito, independente do consentimento do obrigado, conforme o conceito de tributo
insculpido no art. 3º do Código Tributário Nacional15.

2. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da


Educação Básica (Fundeb)

2.1. Do Fundef ao Fundeb


A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada no ano de 1988,
trouxe seu texto original, no art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias16,
mandamento direcionado à erradicação do analfabetismo e a universalização do
ensino fundamental. Foi estabelecido que, no prazo de 10 anos após a promulgação
da Constituição, o Poder Público destinaria, àquela finalidade, cinquenta por cento
dos recursos que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicam
obrigatoriamente na manutenção e desenvolvimento do ensino, por força do art. 212

15 BALEEIRO, Aliomar. Uma Introdução à Ciência das Finanças. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 63.

16 Art. 60. Nos dez primeiros anos da promulgação da Constituição, o Poder Público
desenvolverá esforços, com a mobilização de todos os setores organizados da sociedade
e com a aplicação de, pelo menos, cinquenta por cento dos recursos a que se refere o art.
212 da Constituição, para eliminar o analfabetismo e universalizar o ensino fundamental.
Parágrafo único. Em igual prazo, as universidades públicas descentralizarão suas atividades, de modo a
estender suas unidades de ensino superior às cidades de maior densidade populacional.

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 41


CÂMARA MUNICIPAL
do texto constitucional17. À época, o artigo possuía apenas um parágrafo único, o qual
previa a descentralização das unidades de ensino superior.

O texto vigorou desta forma até a promulgação da Emenda Constitucional nº


14, de 12 de setembro de 1996. A alteração teve origem na Proposta de Emenda à
Constituição nº 223, de 1995, de autoria do então Presidente da República, Fernando
Henrique Cardoso. Na exposição de motivos que acompanhou a proposta de emenda
constitucional, foram delineadas as razões pelas quais o Poder Executivo buscou a
alteração do texto constitucional.

Na Exposição de Motivos nº 273, de 13 de outubro de 1995, os Ministros de Estado


que a elaboraram, arguiram que a Constituição Federal, apesar de ampliar as obrigações
do Estado com a educação, não delimitou as responsabilidades e competências de cada
esfera de governo. Além disso, foi apontado que a simples destinação dos recursos do
art. 212 da CF ao ensino fundamental não soluciona o problema da má distribuição de
recursos entre os estados e municípios, gerando disparidades enormes no valor gasto
por aluno em diferentes regiões do país.
O que se verifica é que a distribuição dos recursos não é compatível com
as efetivas responsabilidades na manutenção das redes de ensino. Dadas
as diferentes capacidades de arrecadação e o fato de que as transferências
constitucionais da União para Estados e Municípios, dos Estados para os
Municípios, não se fazem segundo critérios que levem em consideração
necessidades específicas, seja na educação, seja em qualquer outra área, resulta
que os distintos governos subnacionais apresentam diferenças substanciais na
sua capacidade de investimento na educação.
Uma das disparidades mais gritantes é o fato de que, precisamente nas regiões
mais pobres do País, os Municípios respondem pela maior parte do atendimento no
ensino fundamental obrigatório. Já nas regiões mais desenvolvidas, os Governos
Estaduais provêem a maior parte do atendimento. Em ambas as situações, no
entanto, o volume de recursos disponíveis em cada esfera de governo, apesar
da vinculação constitucional de parte significativa das suas receitas (art. 212,

17 Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e
os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a
proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

42 César Verdade Costa Barros


CF), é claramente insuficiente quando se examina a disponibilidade média de
recursos fiscais, por aluno e por ano. 18

Visando solucionar o problema da má distribuição da capacidade de investimento


na educação entre os entes federados, a PEC propôs a “criação, por um período transi-
tório, de um mecanismo de redistribuição dos recursos fiscais dos Estados e Municípios,
destinados ao Ensino Fundamental”. Este mecanismo foi materializado por meio da
adição do §1º ao art. 60 do ADCT19, pelo qual ficou estipulada a criação, no âmbito
de cada Estado e do Distrito Federal, de um fundo de manutenção e desenvolvimento
do ensino fundamental e de valorização do magistério (Fundef), de natureza contábil.

O Fundef era constituído por20, no mínimo, quinze por cento dos recursos prove-
nientes do: 1) Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre
prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação
(ICMS, art. 115, II, da CF/88); 2) Imposto sobre Produtos Industrializados, proporcional
às exportações (IPIexp, art. 159, inciso II da, CF/88); 3) Fundo de Participação dos
Estados (FPE, art. 159, inciso I, alínea “a”, da CF/88) e; 4) Fundo de Participação dos
Municípios (FPM, art. 159, inciso I, alínea “b” da CF/88).

Os recursos arrecadados ao Fundef eram distribuídos entre cada Estado e seus


Municípios de maneira proporcional aos alunos da respectiva rede de ensino funda-
mental. Esta foi a inovação mais relevante trazida pela EC nº 14/1996. Com a formação
dos fundos, criou-se um mecanismo de repartição de receitas entre cada estado e
os municípios que o integram, juntamente com a União, em caso de necessidade de
suplementação.

18 BRASIL. Exposição de Motivos nº 273, de 13 de outubro de 1995. Mensagem nº 1078, de 15 de outubro


de 1995. Ministros de Estado da Educação e do Desporto, da Justiça, da Administração Federal e Reforma
do Estado, do Planejamento e Orçamento da Fazenda, interino. Disponível em: 15http://www.stf.jus.br/
arquivo/biblioteca/pec/EmendasConstitucionais/EC14/Camara/EC014_cam_23101995_ini.pdf. Acesso
em 18 jun. 2018

19 § 1º A distribuição de responsabilidades e recursos entre os estados e seus municípios a ser concretizada


com parte dos recursos definidos neste artigo, na forma do disposto no art. 211 da Constituição Federal,
e assegurada mediante a criação, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, de um fundo de
manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental e de valorização do magistério, de natureza
contábil.

20 § 2º O Fundo referido no parágrafo anterior será constituído por, pelo menos, quinze por cento dos
recursos a que se referem os arts. 155, inciso II; 158, inciso IV; e 159, inciso I, alíneas “a” e “b”; e inciso
II, da Constituição Federal, e será distribuído entre cada Estado e seus Municípios, proporcionalmente ao
número de alunos nas respectivas redes de ensino fundamental.

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 43


CÂMARA MUNICIPAL
Com o Fundef, os Municípios e os Estados passaram a entregar parte de sua
receita tributária em percentual fixo, de quinze por cento, para a formação do fundo,
ao passo que recebiam de volta valor proporcional à sua necessidade (considerada a
quantidade de alunos matriculados). Tal mecanismo gerou, de fato, a redistribuição
da receita tributária entre os entes federados, de modo a garantir a aplicação de um
gasto mínimo por aluno, em todos os Estados e Municípios brasileiros. Ainda que na
repartição das receitas de determinado Estado o valor dividido não chegasse ao mínimo,
a União deveria destinar recursos ao fundo deficitário, garantindo a receita suficiente.

Antes, os Estados, Distrito Federal e Municípios contavam apenas com a própria


receita para a manutenção e desenvolvimento da educação. Apesar de estarem
obrigados a destinar vinte e cinco por cento de sua receita resultante de impostos
na educação, sendo que metade dela na educação fundamental, a regra não tinha
efetividade nos entes com baixa arrecadação e grande necessidade de investimento.

A partir da criação dos Fundef’s, institui-se um regime solidário, no qual o ente


cujo resultado do quociente capacidade/necessidade de investimento em educação
era maior contribuía para aqueles que tivessem quocientes menores. Além disso, o
governo federal fixava um valor mínimo anual a ser gasto por aluno, e a União ficou
responsável por suplementar nos casos em que a divisão interna em cada Estado não
fosse suficiente para garantir este valor.

O sistema de redistribuição baseado no Fundef, conforme já previsto no próprio


caput do art. 60 do ADCT, durou dez anos, de 1º de janeiro de 1997 a 1º de janeiro
de 2007. O mecanismo de redistribuição inaugurado pelo Fundef, conforme apontam
estudos da época21 em que ainda era vigente, acarretou na diminuição das desigual-
dades regionais no âmbito do ensino fundamental, no aumento da duração dos turnos
de aula, no total de alunos matriculados, no número de professores em atividade e
incentivou a municipalização do ensino.

Entretanto, a maior crítica que se fez à EC nº 14/1996, foi em relação ao fato da


União ter diminuído sua responsabilidade com o ensino fundamental, causando um
expressivo aumento no número de alunos matriculados em escolas municipais, sem que

21 MENDES, Marcos. Descentralização do ensino fundamental: avaliação de resultados do Fundef.


Disponível em: http://www.en.ipea.gov.br/ppp/index.php/PPP/article/view/69/79. Acesso em 09 set.
2018.

44 César Verdade Costa Barros


os municípios tenham recebido aportes financeiros para contrabalancear os gastos22.
Tais críticas deram ensejo à nova alteração do texto do art. 60 do ADCT.

2.2. Aspectos gerais do Fundeb e sua natureza jurídica


Em 2006, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 53, que deu nova redação
ao art. 60 do ADCT e trouxe a sistemática do Fundo de Desenvolvimento da Educação
Básica (Fundeb). A substituição do termo “fundamental” para “básico”, não foi apenas
uma alteração semântica, ela revela a intenção por detrás da alteração constitucional.
O Fundeb, em comparação com o Fundef, ampliou a área de abrangência para além
do ensino fundamental e passou a contemplar todas as etapas e modalidades que
compõem a educação básica.

O caput os incisos I e II do art. 60 do ADCT passaram a vigorar com a seguinte


redação:
Art. 60. Até o 14º (décimo quarto) ano a partir da promulgação desta Emenda
Constitucional, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios destinarão parte
dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da Constituição Federal à
manutenção e desenvolvimento da educação básica e à remuneração condigna
dos trabalhadores da educação, respeitadas as seguintes disposiçõe
I - a distribuição dos recursos e de responsabilidades entre o Distrito Federal, os
Estados e seus Municípios é assegurada mediante a criação, no âmbito de cada
Estado e do Distrito Federal, de um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento
da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - Fundeb,
de natureza contábil;
II - os Fundos referidos no inciso I do caput deste artigo serão constituídos por
20% (vinte por cento) dos recursos a que se referem os incisos I, II e III do art.
155; o inciso II do caput do art. 157; os incisos II, III e IV do caput do art. 158; e as
alíneas a e b do inciso I e o inciso II do caput do art. 159, todos da Constituição
Federal, e distribuídos entre cada Estado e seus Municípios, proporcionalmente
ao número de alunos das diversas etapas e modalidades da educação básica
presencial, matriculados nas respectivas redes, nos respectivos âmbitos de

22 RODRIGUEZ, Vicente. Financiamento da educação e políticas públicas: O Fundef e a política de


descentralização. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/%0D/ccedes/v21n55/5540.pdf Acesso em
03 set. 2018.

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 45


CÂMARA MUNICIPAL
atuação prioritária estabelecidos nos §§ 2º e 3º do art. 211 da Constituição
Federal;

A Emenda Constitucional nº 53/2006 trouxe outras diversas e importantes alte-


rações, entretanto nem todas elas são relevantes para o presente trabalho de modo
que serão analisados apenas os aspectos operacionais do Fundeb que importam para
a definição da natureza jurídica das verbas que compõe o fundo.

A natureza jurídica do Fundeb é a de fundo público constitucional. Segundo Torres23


os fundos públicos são “destaques patrimoniais de entes públicos, desprovidos de
personalidade jurídica, vinculados à realização de finalidades previamente determinada
pela Constituição ou por leis”. É também, conforme preceitua o art. 60, I, do ADCT, é um
fundo de natureza contábil, em razão de ser desprovido de qualquer gestão patrimonial,
por ter unicamente a função de repasse segundo os critérios definidos na legislação
de regência24.

É de fundamental relevância constatar que a alteração da norma não modificou a


sistemática de redistribuição de recursos entre o Estado e seus municípios, de acordo
com a necessidade de cada ente participante. No Fundeb, assim como no Fundef, a
formação do fundo se dá por meio da contribuição dos Estados e dos Municípios de
um percentual fixo de sua receita tributária, com a posterior redistribuição de recursos
entre os participantes.

2.3. Verbas que compõem o Fundeb


O Fundeb é atualmente composto de 20% dos recursos do: 1) Fundo de
Participação dos Estados (FPE); 2) Fundo de Participação dos Municípios (FPM); 3)
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS); 4) Imposto sobre Produtos
Industrializados, proporcional às exportações (IPIexp) 5) Desoneração das Exportações
(LC nº 87/96); 5) Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD); 6)
Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA); 7) cota parte de 50% do
Imposto Territorial Rural (ITR) devida aos municípios; 8) das receitas da dívida ativa e

23 TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.
287.

24 TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p.
289.

46 César Verdade Costa Barros


de juros e multas incidentes sobre as fontes acima relacionadas e; 9) eventualmente,
da complementação da União.

Os recursos do Fundeb devem ser empregados exclusivamente em ações de


manutenção e de desenvolvimento da educação básica pública, particularmente na
valorização do magistério. Pelo menos sessenta por cento dos recursos anuais totais
dos Fundos deverão ser destinados ao pagamento da remuneração dos profissionais do
magistério da educação básica em efetivo exercício na rede pública. O Fundeb é uma
exceção à regra de não vinculação da receita de impostos, uma vez que se encontra
abarcado no permissivo constitucional do art. art. 167, IV, da CF, em razão de seus
recursos serem destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino.

A Lei nº 11.494, de 20 de julho de 2017, regulamentou o Fundeb e trouxe as regras


que norteiam o funcionamento dos fundos estaduais. Dentre as regras estabelecidos
pelo diploma legal, estão as que gerem a transferência e a gestão dos recursos, inclusas
no Capítulo IV da mencionada lei. Entre elas, está a do art. 17, que estabelece que:
Art. 17. Os recursos dos Fundos, provenientes da União, dos Estados e do Distrito
Federal, serão repassados automaticamente para contas únicas e específicas
dos Governos Estaduais, do Distrito Federal e dos Municípios, vinculadas ao
respectivo Fundo, instituídas para esse fim e mantidas na instituição financeira
de que trata o art. 16 desta Lei.

O art. 17 da lei regulamentadora estabelece no seu caput e parágrafos a siste-


mática de transferência dos recursos que compõem a base de cálculo do Fundeb. Na
medida em que a instituição oficial de crédito recebe recursos provenientes de algumas
das receitas tributárias que compõem o Fundeb ela, automaticamente, deposita 20%
daquele valor para a conta específica do Fundeb. Trata-se do mecanismo de retenção
na fonte.

Ou seja, no dia programado para que seja creditado nas contas dos Estados e dos
Municípios o recurso proveniente do ICMS, 20% da parcela que pertence ao Estado e o
mesmo percentual da participação dos municípios é creditada diretamente na conta
do Fundeb, de modo que os entes recebem em seu caixa somente 80%.

Em um caso hipotético, caso o Banco do Brasil tenha recebido R$1.000.000,00


proveniente do ICMS arrecadado pelo estado de Minas Gerais na primeira semana de
setembro, o banco, na data prevista, depositará R$ 600.000,00 no caixa único do Estado,
referente à sua parte do ICMS, e R$ 150.000,00 na conta do Fundeb, referente aos 20%
que o Estado deve contribuir. Além disso, simultaneamente, depositará R$50.000,00

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 47


CÂMARA MUNICIPAL
na conta do Fundeb, referente aos 20% que os municípios devem contribuir com sua
participação no ICMS e R$ 200.000,00 depositará nas contas dos municípios, de acordo
com os critérios da lei estadual que regula o ICMS, em razão da repartição da receita
do imposto determinada na Constituição.

Tal aspecto é extremamente relevante, uma vez que a receita tributária que
pertence aos municípios em decorrência da repartição constitucional não é entregue
ao ente municipal para que este separe 20% e destine ao Fundeb. Os 20% são creditados
diretamente na conta específica do fundo, não transitando previamente pelas contas
dos municípios. Os Estados e Municípios receberão posteriormente na data prevista
para o repasse, a sua cota no valor arrecadado pelo Fundeb.

2.4. Distribuição das verbas do Fundeb: Municípios Pagadores e


Municípios Recebedores.
Uma vez arrecadados os recursos que compõem o Fundeb, o Estado e os muni-
cípios receberão sua cota parte de acordo com os coeficientes de distribuição de
recursos. De acordo com o Manual de Orientação do Fundeb25:
Os coeficientes de distribuição dos recursos do Fundeb representam a
participação de cada ente governamental no montante de recursos do Fundo
no âmbito do Estado de sua localização. O coeficiente, portanto, multiplicado
pelo total de recursos do Fundo de um determinado Estado, resulta no valor
financeiro que cada governo, municipal e estadual, irá receber do montante
total de recursos do Fundo daquele Estado. No seu cálculo são consideradas
as seguintes variáveis e critérios:
valor da receita que compõe o Fundo (originária dos Estados, Municípios e
União);

• número de alunos matriculados;


• fatores de ponderação definidos;
• garantia do valor por aluno/ano verificado em cada Estado no Fundef em
2006, no âmbito do ensino fundamental;
• garantia do valor mínimo nacional por aluno/ano verificado no Fundef em

25 BRASIL. Ministério da Educação. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Fundeb: Manual de


Orientação. Brasília: MEC/FNDE, 2009.

48 César Verdade Costa Barros


2006, no âmbito do ensino fundamental;
• apropriação de, no máximo, 15% dos recursos do Fundo em cada Estado,
para a educação de jovens e adultos.

Uma vez definidos, os coeficientes são utilizados na distribuição dos recursos do


Fundo durante o exercício, sendo divulgados pelo FNDE/MEC para conhecimento
e eventual utilização pelos entes federados.

Denota-se, portanto, que os municípios contribuem com percentual fixo de 20%


de sua receita tributária para a formação do Fundeb, ao passo que recebem o valor
resultante do produto da multiplicação de seu quociente de participação com o valor
do total arrecadado na conta do fundo. É exatamente essa sistemática que garante
a redistribuição de recursos com vistas à redução das desigualdades regionais no
financiamento do ensino.

Disso resulta que o município, em razão de seu quociente de participação e de


sua receita tributária efetivamente realizada no ano anterior poderá se enquadrar em
uma das três seguintes situações: 1) o valor que destina ao Fundeb é menor do que o
valor recebido, situação em que o chamaremos de “Município Recebedor”; 2) o valor
que destina ao Fundeb é maior do que o valor recebido, situação em que o chamaremos
de “Município Pagador”; 3) o valor que destina ao Fundeb é igual ao valor que recebe,
situação que o chamaremos de “Município Neutro”.

Os municípios com grande número de alunos matriculados em sua rede pública


possuem maiores índices de participação, entretanto, isso não denota que sua arre-
cadação tributária seja alta. Nesse caso, o município tenderá a ser um Município
Recebedor. Noutra ponta, temos os municípios com grande arrecadação e com poucos
alunos matriculados, o que lhe acarreta em serem Municípios Pagadores. O caso
do Município Neutro, apesar de teoricamente possível, encontra-lo na prática seria
extremamente raro, pois depende de que a o produto da multiplicação do coeficiente
coincida com sua contribuição.

Para fins de comprovarmos a argumento, compararemos dados referentes à receita


tributária, receita total do Fundeb, valor pago ao Fundeb e coeficiente de distribuição,
todos referentes ao ano-exercício de 2017, bem como o número de alunos matriculados
no ensino público municipal de dois municípios da Região Metropolitana de Belo

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 49


CÂMARA MUNICIPAL
Horizonte. Os dados foram extraídos do site do Tribunal de Contas de Minas Gerais26
e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação27.

O Município de Nova Lima, em 2016, possuía, 8.520 alunos matriculados em


sua rede municipal de ensino. Seu coeficiente de distribuição definido para o ano
de 2017 foi de 0,002129130110. No ano de 2017, sua receita tributária realizada foi
de R$184.590.094,11, sendo que destinou ao Fundeb o valor total R$40.426.517,38,
ao passo que recebeu do Fundeb o valor total de R$ 28.547.058,91. Desse modo,
recebeu R$11.879.458,47 a menos do que enviou. Em 2017, portanto, Nova Lima foi
um Município Pagador.

Ribeirão das Neves, em 2016, possuía 22.157 alunos matriculados em sua rede
municipal de ensino. Seu coeficiente de distribuição definido para o ano de 2017
foi de 0,005470623934. No ano de 2017, sua receita tributária realizada foi de
R$57.419.054,25, sendo que destinou ao Fundeb o valor total R$30.816.541,03, ao
passo que recebeu do Fundeb o valor total de R$ 71.179.973,56. Desse modo, recebeu
R$40.363.432,53 a mais do que enviou. Em 2017, portanto, Ribeirão das Neves foi um
Município Recebedor.

Perceba-se que Nova Lima, apesar de ter uma receita tributária maior do que
Ribeirão das Neves e de contribuir com valor maior para a formação do Fundeb, recebeu
valor muito inferior em comparação com o outro município da Região Metropolitana.
Isso ocorre porque seu coeficiente de distribuição é menor. Por esse motivo, temos
que Nova Lima acaba por perder receita em razão da existência do Fundeb, ao passo
que Ribeirão das Neves acresce suas entradas.

3. Enquadramento dos repasses do Fundeb ao conceito de


receita pública.
As verbas que compõem o “bolo” de recursos do Fundeb são todas elas advindas
de receitas tributárias, sejam elas próprias dos Estados (e da União, em caso de

26 Dados extraídos das Demonstrações Contábeis Aplicadas ao Setor Público (DCASP), referentes ao
ano de 2017, enviados pelos Municípios de Nova Lima e Ribeirão das Neves ao TCEMG. Disponível em:
phttps://fiscalizandocomtce.tce.mg.gov.br/Home/Index. Acesso em 02 set. 2018.

27 Dados extraídos do documento intitulado “Matrícula, coeficientes de distribuição de recursos e receita


anual prevista por Estado e Município - 2017 (com base na Portaria Interministerial nº 8, de 26/12/2016)”.
Disponível em: http://www.fnde.gov.br/financiamento/fundeb/area-para-gestores/dados-estatisticos.
Acesso em 02 set. 2018.

50 César Verdade Costa Barros


complementação) ou de receitas transferidas municipais (também tributárias). Pela
sistemática de repasse automático os municípios acabam por receber suas receitas
transferidas somente após elas transitarem pela conta do Fundeb, e serem posterior-
mente repartidas de acordo com o coeficiente de distribuição.

Em razão disso, uma parte dos recursos que constitucionalmente pertencem


aos Municípios Pagadores são entregues aos Municípios Recebedores. Como essa
transferência é automática, a diferença entre o valor de contribuição e o valor recebido
jamais entra no caixa dos Municípios Pagadores. Os R$11.879.458,47 que Nova Lima
deixou de receber foram automaticamente transferidos para as contas dos Municípios
Recebedores de Minas Gerais.

Retomando à definição da base de cálculo dos duodécimos, concluímos que ela


deve abarcar qualquer receita que puder ser categorizada como derivada de tributos
ou transferida. O Fundeb, como exposto supra é composto por parcelas de impostos
federais e estaduais, bem como dos Fundos de Participação, que por sua vez são
compostos de impostos federais. O Estado contribui com a parcela que lhe pertence
dos impostos de sua competência e com a sua participação nos impostos da União.
Os Municípios, por sua vez, contribuem com sua participação nos impostos da União
e do Estado.

A origem de toda receita que compõem o Fundeb é tributária. Entretanto, isso não
basta para afirmarmos que todo recurso que o Município contribui para o Fundeb (ou
que dele recebe) é receita tributária daquele município. A receita pública pressupõe
uma entrada no caixa, razão pela qual inexistindo entrada, não há que se falar em
receita. Desse modo, uma vez que os recursos do Fundeb só acrescem ao patrimônio
do Município após transitarem pela conta do Fundeb Estadual e, posteriormente, serem
divididos para as contas municipais, somente nesse momento haverá ocorrido a entrada.

Os valores destinados pelos municípios para a formação do Fundeb não podem


ser considerados como receita pública, uma vez que pelo mecanismo de repasse
automático, esses recursos são depositados diretamente na conta do fundo estadual.
Não há, nesse primeiro momento entrada nos cofres municipais, razão pela qual não
há receita.

Além disso, como vimos no caso dos Municípios Pagadores, nem todo recurso
com o qual o município participa para a formação do Fundeb chegará aos seus caixas.
Caso a base de cálculo seja a contribuição municipal feita ao fundo, em nosso exemplo,

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 51


CÂMARA MUNICIPAL
Nova Lima deverá considerar como receita tributária os mais de 11 milhões de reais
que não recebeu, apesar daqueles valores jamais terem somado ao seu patrimônio.

A entrada dos valores do Fundeb ocorre em um segundo momento, quando da


distribuição dos valores pelo fundo, de acordo com o coeficiente de distribuição de
cada município. É somente nesse momento que poderá ser caracterizada a realização
de receita tributária. No caso de Nova Lima, a entrada correspondeu a R$ 28.547.058,91
em 2017. Uma vez que recebeu menos do que contribuiu, todo o valor recebido é
decorrente de sua própria receita tributária transferida. O valor recebido enquadra-se
no conceito de receita transferida, razão pela qual deverá compor a base de cálculo.

Entretanto, no caso de Ribeirão das Neves, que é um Município Recebedor, o


Fundeb destinou mais verbas à municipalidade do que dele recebeu. Ribeirão das Neves
recebeu valores que constitucionalmente pertenciam a outros entes da Federação. Cabe
agora indagar se a totalidade dos recursos transferidos aos Municípios Recebedores
pode ser caracterizada como receita pública.

Usando como base o conceito formulado por Meirelles28, no qual a “receita pública
é, pois, o conjunto de recursos financeiros que entram para os cofres estatais, provindo de
quaisquer fontes, a fim de acorrer às despesas orçamentárias e adicionais do orçamento”,
toda a entrada decorrente dos depósitos realizados pelo Fundeb nos caixas municipais
poderia ser caracterizada como receita pública, e também como receita tributária, vez
que deriva de tributos. Isso porque o valor, ainda que parcialmente originado de recursos
tributários de outros entes, entrou nos cofres municipais a fim de acorrer às despesas
do município com o desenvolvimento e manutenção do ensino básico.

Entretanto, nesse caso há que se fazer uma ponderação para que o propósito da
norma constitucional não seja deturpado. Como vimos, o Fundeb, assim como seu
antecessor, baseia-se na ideia de redistribuição solidária dos recursos destinados à
educação básica entre os entes federativos. A intenção do fundo era exatamente de que
alguns entes perderiam receita em prol de outros menos favorecidos, os quais teriam
melhores condições de investir em sua educação básica, reduzindo as desigualdades
regionais.

Noutro lado, temos que o art. 29-A da CF/1988, fixou a base de cálculo do limite
dos duodécimos repassados à Câmara, de modo a limitar os gastos do Poder Legislativo
Municipal, como modo de evitar abusos e garantir que os recursos orçamentários

28 MEIRELLES, Henly Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 1993. P. 135.

52 César Verdade Costa Barros


pudessem ser gastos nos fins essenciais do município. Na Justificação da Proposta
de Emenda à Constituição29 que deu origem ao art. 29-A, constou que:
Assim, e por considerar que a matéria deve ser melhor disciplinada, em
consonância com as finanças municipais e outros aspectos da realidade
sócio-econômica dos municípios, estou apresentando Proposta de Emenda à
Constituição que estabelece limites, de acordo com o porte do município, ao total
da despesa com o funcionamento do Poder Legislativo, incluída a remuneração
dos vereadores.

Veja-se que o constituinte derivado usa termos como “realidade socioeconômica”


e “porte do município” como parâmetros para a fixação dos limites de gastos das
Câmaras de Vereadores. Portanto, o art. 29-A da CF/1988, ao se referir a “receita
tributária e transferências” está a indicar aquelas que são próprias dos Municípios,
pois são indicadoras do porte econômico do município.

O acréscimo que o Fundeb acarreta na receita dos Municípios Recebedores não


altera suas capacidades econômicas. Os valores recebidos a maior devem ser vistos
como um auxílio aos municípios mais necessitados de recursos para o desenvolvimento
de sua educação básica. Considerar o superávit entre o valor de contribuição e o valor
recebido, no caso dos Municípios Recebedores, como integrantes da base de cálculo
dos duodécimos não prestigiaria nem as finalidades da norma do art. 29-a da CF/1988,
nem as do art. 60 do ADCT.

Caso a receita a maior seja incluída na base de cálculo, o Poder Executivo teria
que destinar mais recursos ao Poder Legislativo, os quais não poderiam ser aplicados
em suas atividades essenciais. A sistemática de redistribuição solidária dos recursos
do Fundeb traria o efeito colateral de fazer aumentar os gastos com as Câmaras
Municipais, entretanto que esse nunca foi o propósito do fundo.

Há que se ponderar que os recursos recebidos pelo Fundeb têm destinação


previamente definida por lei, e deverão ser aplicados obrigatoriamente na manutenção
e desenvolvimento da educação básica. Entretanto, vinculação das receitas do fundo
não descaracteriza seu caráter de receita tributária. O fato de a entrada de recursos
ser vinculada ou não é irrelevante para sua caraterização como receita.

29 BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 15, de 1998. Mesas da Câmara dos Deputados e do
Senado Federal. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/biblioteca/pec/EmendasConstitucionais/
EC25/Senado/EC025_sen_25031992_ini.pdf. Acesso em 15 ago 2018.

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 53


CÂMARA MUNICIPAL
Mesmo que não existisse o Fundeb, os Municípios estariam obrigados, por força do
art. 212 da CF/1988 a destinarem 25% da receita resultante de impostos, compreendida
a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. Também
não foi intenção do art. 60 do ADCT retirar da base de cálculo dos duodécimos as
receitas tributárias municipais destinadas para a formação do Fundeb.

Por conseguinte, considerando a definição doutrinária de receita tributária e de


receita transferida, a sistemática de distribuição dos recursos do Fundeb e a interpre-
tação art. 29-A da CF/1988 e 60 do ADCT afirmamos os seguintes pressupostos: 1)
as verbas que compõem o Fundeb são derivadas da atividade tributária do Estado; 2)
as contribuições feitas pelos municípios para a formação do Fundeb não podem ser
consideradas receitas destes enquanto não tiverem entrada nos caixas municipais; 3)
apenas o valor efetivamente repassado pelo Fundeb ao Município pode ser considerado
como receita pública; 4) a expressão “receita tributária e transferências” art. 29-A
da CF/1988 deve ser interpretada de maneira a incluir apenas a receita própria do
município, excluindo-se a receita originalmente pertencente a outros entes federativos.

Considerando as premissas, chegamos à seguinte fórmula: deverão compor a base


de cálculo do limite de gastos da Câmara Municipal os recursos efetivamente repassados
pelo Fundeb ao Município, no exercício anterior, até o limite de recursos que o Município
contribuiu para a formação do fundo.

Aplicando-se a fórmula descrita acima nos dois municípios que foram usados
como exemplo, teríamos a determinada situação: a base de cálculo do limite de gastos
da Câmara de Nova Lima para 2018 abarcaria apenas o valor recebido em 2017 (R$
28.547.058,91), enquanto a base de cálculo do limite de gastos da Câmara de Ribeirão
das Neves para 2018 incluiria os valores recebidos somente até o valor da contribuição
(R$30.816.541,03).

A solução adotada no presente estudo preserva a finalidade das normas constitu-


cionais, garantindo que o limite de gastos do Poder Legislativo Municipal continue tendo
como base a capacidade econômica do município. Outrossim, mantém a sistemática
de distribuição solitária de recursos entre os participantes do Fundeb, sem acarretar
ônus aos Municípios Recebedores. Acreditamos que esta é a solução mais adequada
tanto do ponto de vista doutrinário quando do ponto de vista teleológico.

54 César Verdade Costa Barros


4. Crítica à decisão do STJ no julgamento do RMS nº 44.795 – MG
O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais possuía o Enunciado de Súmula
nº 102, no qual estava expresso o entendimento de que:
A contribuição ao Fundef e ao Fundeb, bem como as transferências recebidas
desses Fundos pelos Municípios, incluída a complementação da União, a
qualquer título, não integram a base de cálculo a que se refere o art. 29-A da
Constituição Federal/88 para o fim de repasse de recursos à Câmara Municipal30.

Entretanto, no julgamento da Consulta n. 837.614/TCE/MG, o TCE-MG reviu seu


posicionamento. O argumento principal que embasou a mudança do entendimento
consta do voto do relator, Conselheiro Antônio Carlos Andrada, o qual afirmou que:
A Súmula 102 do TCEMG faz uma interpretação extensiva do dispositivo em
comento, criando exclusão de uma parcela que a Constituição não prevê, na
base de cálculo do valor que deve ser repassado ao legislativo municipal.31

O voto do Conselheiro relator foi acompanhado à unanimidade pelos demais


membros do tribunal para determinar a suspensão da eficácia do enunciado da Súmula
102 do TCE-MG, e responder à consulente que a contribuição municipal feita ao Fundef
ou ao Fundeb, custeada por recursos próprios, deve integrar a base de cálculo para o
repasse de recursos do Poder Executivo à Câmara Municipal, previsto no art. 29-A da
Constituição da República.

Posteriormente, o Município de Belo Horizonte impetrou perante o Tribunal de


Justiça de Minas Gerais mandado de segurança contra o referido acórdão do TCE/
MG, com vistas a anular o novo entendimento do Tribunal de Contas do Estado de
Minas Gerais proferido na Consulta n. 837.614/TCE/MG. O TJMG32, no dia 07/08/2013,

30 MINAS GERAIS. Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Súmula 102. Publicada no “MG”
de 01/02/2006 - pág. 26. Disponível em: http://www.tce.mg.gov.br/IMG/Legislacao/legiscont/
S%C3%BAmula/S%C3%BAmula%20102-06.pdf. Acesso em 19 ago. 2018.

31 MINAS GERAIS. Tribunal de Contas do Estado de Minas. Tribunal Pleno. Sessão 26 jun. 2011. Processo
nº 837614. Consulta. Notas Taquigráficas. Disponível em: http://tcnotas.tce.mg.gov.br/tcjuris/Nota/
BuscarArquivo/74639

32 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Mandado de Segurança


1.0000.11.085696-0/000, Relator(a): Des.(a) Hilda Teixeira da Costa , 2ª CÂMARA
CÍVEL, julgamento em 07/08/2013, publicação da súmula em 21/08/2013. Disponível em:
http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaPalavrasEspelhoAcordao.do?&numero
Registro=4&totalLinhas=8&paginaNumero=4&linhasPorPagina=1&palavras=tribunal%20
e%20contas%20e%20estado%20e%20fundeb&pesquisarPor=ementa&pesquisaTesauro-
=true&orderByData=1&pesquisaPalavras=Pesquisar&. Acesso em 20 ago. 2018.

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 55


CÂMARA MUNICIPAL
denegou a segurança por entender que o impetrante não demonstrou possuir direito
líquido e certo. Ante a denegação, o Município de Belo Horizonte recorreu da decisão
do Tribunal de Justiça.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ)33, no julgamento do recurso ordinário em


mandato de segurança nº 44.795 – MG, em 03/11/201, interposto pelo Município de
Belo Horizonte, por maioria de votos, fixou a tese de que as verbas que compõem o
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação (Fundeb) devem ser excluídas da base de cálculo dos
duodécimos repassados às Câmaras Municipais. O acórdão foi assim ementado:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS
DO ESTADO DE MINAS GERAIS. ANULAÇÃO. CONTRIBUIÇÕES DO MUNICÍPIO
AO FUNDEB. REPASSE DE RECURSOS. PODER EXECUTIVO FEDERAL. CÂMARA
DE VEREADORES. ART. 29-A DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. EXCLUSÃO DA BASE
DE CÁLCULO.
1. As verbas que compõem o Fundeb não estão compreendidas nas receitas
tributárias, nem nas transferências que pertencem aos municípios, nos termos
dos arts. 153, § 5º, 158 e 159 da CF/88. Logo, devem ser excluídas da base
de cálculo dos duodécimos repassados pela União às Casas Legislativas
Municipais, nos moldes do art. 29-A, da CF/88.
2. A expressão “efetivamente realizada”, constante do art. 29-A do Texto
Constitucional, significa a receita que foi arrecadada e incorporada ao patrimônio
do Município no exercício anterior. Não se consideram, portanto, para fins de
apuração dessa quantia, os valores que devam ser arrecadados no corrente
exercício, tais como a complementação do Fundeb.
3. Além disso, os recursos do Fundeb, independentemente da origem, não podem
ser utilizados para fins diversos de suas destinações constitucional e legalmente
definidas - art. 60, caput, e I, da CF/88 e 8º, parágrafo único, da Lei Complementar
n. 101/00 - isto é, a educação básica e a remuneração dos trabalhadores da
educação, o que reforça a compreensão de que devem ser excluídos do cálculo
do repasse previsto no art. 29-A da CF/88.
4. No caso, a mitigação do enunciado da Súmula 102 do Tribunal de Contas
do Estado de Minas Gerais desbordou da melhor interpretação a ser conferida

33 BRASIL. RMS 44.795/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, Rel. p/ Acórdão Ministro OG FERNANDES,
SEGUNDA TURMA, julgado em 03/11/2015, DJe 12/02/2016. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/
processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201400133556&dt_publicacao=12/02/2016. Acesso em 09
Set. 2018.

56 César Verdade Costa Barros


aos normativos constitucionais e infraconstitucionais aplicáveis à matéria, o
que justifica a anulação do acórdão proferido na Consulta n. 837.614/TCE/MG.
5. Recurso ordinário em mandado de segurança a que se dá provimento.
(RMS 44.795/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, Rel. p/ Acórdão Ministro
OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/11/2015, DJe 12/02/2016)

O Ministro Humberto Martins, relator do recurso, proferiu seu voto pela denegação
do Recurso em Mandado de Segurança, por entender que: “Em suma, não é possível criar
interpretativamente restrição à fixação do totum contábil do art. 29-A da Constituição
Federal, por ausência de previsão constitucional ou legal e, assim, não se vê o direito
líquido e certo postulado.”.

Após pedido de vista, o Ministro OG Fernandes, inaugurou a divergência com seu


voto. Seus dois principais argumentos foram de que:
o Fundeb “não se enquadra no conceito de receita tributária ou de transferências
que compõem a base de cálculo do repasse para o Legislativo Municipal” e de
“os recursos do Fundeb, independentemente da origem, não podem ser utilizados
para fins diversos de suas destinações constitucional e legalmente definidas”.

Os Ministros Herman Benjamin e Mauro Campbell Marques acompanharam o voto


do Ministro Humberto Martins, formando a maioria.

Também em voto-vista, a Ministra Assusete Magalhães proferiu voto acompa-


nhando o entendimento do relator. O voto da Ministra foi o mais extenso e fundamentado
de todo o acórdão, suas razões principais estão dispostas no seguinte trecho:
Conforme mencionado acima, o art. 29-A da Constituição Federal estabelece
que as transferências recebidas pelo Município, por força do art. 158 da
Constituição Federal, integram a base de cálculo do total de despesa do Poder
Legislativo Municipal, não havendo qualquer ressalva relacionada aos valores
que, posteriormente, devam ser repassados ao Fundeb ou a outras despesas
vinculadas. Assim, como destacado no acórdão recorrido, o art. 29-A da CF/88,
por ser norma que, além de fixar um limite para as despesas, tem como objetivo
assegurar a independência financeira do Poder Legislativo Municipal, as restrições
à base de cálculo dos valores a serem repassados devem ser interpretadas de
forma restritiva. Ademais, o fato de o repasse ao Fundeb ser compulsório, com
retenção na fonte dos valores devidos, não tem o condão de criar a exceção
pretendida pelo recorrente, pois, conforme expressamente previsto no art. 158
da Constituição Federal, as verbas mencionadas em seus incisos pertencem

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 57


CÂMARA MUNICIPAL
aos Municípios. Assim, por serem verbas pertencentes ao Município, não
prospera a alegação de que, por terem destinação vinculada, configurariam
“mera entrada provisória” (fl. 218e) em seu orçamento, pelo que não poderiam
ser consideradas receita pública. Isso porque o art. 6º da Lei 4.320/64 determina
que “todas as receitas e despesas constarão da Lei de Orçamento pelos seus
totais, vedadas quaisquer deduções”. Além disso, o entendimento adotado no
ato impugnado não significa que os recursos do Fundeb serão utilizados para
fins diversos de suas destinações constitucionalmente definidas (educação
básica e remuneração dos professores), mas apenas que a integralidade dos
valores recebidos pelo recorrente, por força do art. 158 da Constituição Federal,
deverá integrar a base de cálculo do montante do qual, posteriormente, 4,5%
irão constituir o limite de despesa do Poder Legislativo Municipal. Por fim,
cumpre salientar que as verbas destinadas, pelo Município, ao Fundeb, não são as
únicas receitas vinculadas a determinadas despesas. Com efeito, o Documento:
1305975 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 12/02/2016 Página 27
de 10 Superior Tribunal de Justiça art. 167, IV, da Constituição Federal, ao vedar
a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvou “a
repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts.
158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde,
para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades
da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts.
198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por
antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º
deste artigo”. Desta forma, por exemplo, nos termos do art. 212 da Constituição
Federal, além da contribuição ao Fundeb, os Municípios deverão aplicar, no
mínimo, 25% da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente
de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. E, conforme
salientado pela autoridade impetrada, em suas informações (fls. 103/104e),
mesmo tendo destinação vinculada, tais receitas integram a base de cálculo
do limite de despesas do Poder Legislativo Municipal.

Da análise dos votos proferidos no acórdão em comento, percebemos que o prin-


cipal argumento que formou a tese vencedora foi o que a transferência do Fundeb não
caracteriza receita pública, uma vez que possui destinação específica. Tal argumento
foi refutado no voto da Ministra Assusete Magalhães.

O conceito doutrinário de receita pública não exige que o recurso que entrou nos
cofres públicos não tenha destinação específica. O STJ no julgamento do RMS 44.795
criou critério para a caracterização de receita pública, sem, entretanto, justificar sua

58 César Verdade Costa Barros


inovação. É fato de que os Municípios deverão gastar os recursos advindos do Fundeb
em determinadas ações ligadas à manutenção e desenvolvimento da educação básica.
Entretanto, isso, por si só, não tem o condão de descaracterizar tais verbas como
receita pública.

A decisão do STJ não prestigiou a doutrina sobre a matéria, bem como deu inter-
pretação desarrazoada ao art. 29-A, criando limitação onde a norma constitucional não
previu. Mais acertada esteve a divergência, principalmente no voto-vista da Ministra
Assusete Magalhães. Entretanto, os votos divergentes, não levaram em consideração
o fato de que alguns municípios não recebem em seu caixa todo o valor destinado ao
Fundeb.

De acordo com os preceitos estabelecidos neste estudo, tanto o entendimento do


TCEMG, manifestado na Consulta 837.614/TCE/MG, quando o dispositivo do acórdão
do RMS 44.795 não traz a melhor solução para a controvérsia. A nosso ver, o TCEMG se
equivoca estabelecer que a base de cálculo dos duodécimos deverá incluir os recursos
próprios que o município contribuiu para o fundo. O parâmetro deverá ser sempre os
recursos próprios recebidos, pois somente esses podem ser conceituados como receita
pública. O TCEMG, desconsidera a sistemática de redistribuição solidária e a existência
dos Municípios Pagadores.

Entretanto, entendimento do Tribunal de Contas mineiro é mais acertado do que


a decisão do STJ. O STJ, ao excluir da base de cálculo todos os recursos do Fundeb,
sem qualquer justificação suficiente para tanto, deturpa tanto a finalidade da norma
do art. 29-A quanto o art. 60 do ADCT.

Considerações finaiS
A obrigação de repasse dos duodécimos pelo Poder Executivo ao Poder Legislativo
instrumentaliza o Princípio da Separação de Poderes, ao passo que a fixação de limites
dos gastos do Poder Legislativo Municipal garante que não haja abusos na aprovação
das Leis Orçamentárias Anuais dos municípios. A função da norma do art. 29-A foi
criar um teto de gastos para as Câmaras Municipais com base no porte populacional
e arrecadatório dos Municípios.

Doutro lado, a criação do Fundef e do Fundeb, por meio das alterações na redação
original do art. 60 do ADCT, visou criar um mecanismo de participação solidária entre
as três esferas da Federação. Os Estados, o Distrito Federal os Municípios e a União

O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 59


CÂMARA MUNICIPAL
contribuem para a formação dos 27 fundos destinados ao desenvolvimento e manu-
tenção do ensino. A sistemática dos fundos envolve a captação e retenção na fonte
de parte da receita tributária desses entes, destinando-a ao fundo e, posteriormente,
distribuindo o montante entre o Estado e seus Municípios, de acordo com o coeficiente
de distribuição de cada um.

A sistemática de distribuição causa o efeito de redirecionar receitas tributárias


originalmente pertencentes a um ente, para que outro seja favorecido. Por essa razão
existem municípios que ganham receita com a existência do fundo e outros que perdem.
Nosso estudo os denominou, respectivamente, de Municípios Recebedores e Municípios
Pagadores. Estes primeiros recebem a totalidade dos recursos que destinaram ao
fundo e um montante extra que pertencia originalmente a outros entes. Os segundos
recebem apenas uma parte dos recursos que contribuíram.

Os recursos recebidos pelos Municípios do Fundeb são receitas públicas, uma vez
que acrescem permanentemente ao patrimônio do ente municipal. O fato de os recursos
serem vinculados a uma espécie de gastos não tem o condão de descaracterizá-lo
como receita pública. Entretanto, parte desses recursos não é oriundo da receita
própria daquele município. A expressão “receita tributária e transferências” art. 29-A da
CF/1988 faz menção à receita própria do município, e não a transferida de outros entes.

Por tais razões, deverão compor a base de cálculo do limite de gastos da Câmara
Municipal os recursos efetivamente repassados pelo Fundeb ao Município, no exercício
anterior, até o limite de recursos que o Município contribuiu para a formação do fundo.

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60 César Verdade Costa Barros


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Educação - Fundeb, de que trata o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias; altera a Lei no 10.195, de 14 de fevereiro de 2001; revoga dispositivos
das Leis nos 9.424, de 24 de dezembro de 1996, 10.880, de 9 de junho de 2004,
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O COMPUTO DOS RECURSOS DO FUNDEB NA BASE DE CÁLCULO DOS DUODÉCIMOS REPASSADOS À 61


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62 César Verdade Costa Barros


ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE
DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI
FEDERAL Nº 12.846/13 E DO PAPEL DA
ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS
DE CONTROLE NESTE ACORDO
Fabiana Maria Farias Santos Barretto1

Resumo
Este trabalho busca realizar análise crítica do acordo de leniência
previsto na Lei federal nº 12.846, de 01 de agosto de 2013, para verificar
lacunas existentes nesta lei que impactam no êxito deste acordo e o papel
dos órgãos públicos de controle. Após a exposição da origem do ajuste, foi
apreciado o artigo 16 da referida norma, ocasião em que foram explicitados
os requisitos do acordo de leniência, a competência para celebração e as
suas consequências, analisando as regras do artigo 17. Foram explicadas as
modificações realizadas pela Medida Provisória nº 703, de 18 de dezembro
de 2015 e dispositivos do decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015 sobre o
acordo. Após diferenciar o ajuste de outros instrumentos jurídicos previstos
na legislação, foram apreciadas as lacunas legais existentes quanto à
participação do Ministério Público federal e Tribunal de Contas da União,
à ausência de benefícios para o signatário do acordo em ações judiciais
cíveis ou penal, bem como em relação à atuação da Advocacia-Geral da
União. Destacou-se como indispensável a participação da Advocacia Pública
para implementação dos efeitos do acordo, concluindo como fundamental
uma atuação colaborativa de todos os órgãos de controle nos resultados
do acordo de leniência.

1 Procuradora do Estado da Bahia, Especialista em Direito Público pela UFBA, Especialista em Direito
Social e Infraestrutura pela FGV e Especialista em Advocacia Pública pelo IDDE.
BARRETTO, Fabiana Maria Farias Santos. Acordo de leniência: análise das principais lacunas da lei federal nº 12.846/13 e do papel da
advocacia pública e demais órgãos de controle neste acordo. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; SACCHETTO,Thiago Coelho (Orgs.). Advo-
cacia pública em foco. Volume II. Belo Horizonte: IDDE, 2019. p. 63-98. Disponível em: https://doi.org/10.32445/97885671341093
INTRODUÇÃO
O Acordo de Leniência, previsto na Lei federal nº 12.846, de 01 de agosto de 20132
(conhecida como Lei Anticorrupção - LAC), ganhou muita relevância no cenário atual
com a operação policial intitulada “Lava Jato”, que apura delitos envolvendo empresá-
rios e agentes públicos. Com efeito, os crimes praticados no âmbito de contratações
públicas podem ser enquadrados como atos lesivos em licitações e contratos, conforme
o disposto no art. 5º, IV da referida lei, razão pela qual as empresas investigadas
estariam manifestando interesse na celebração do acordo de leniência para obter
atenuação das sanções.

Contudo, observa-se alguns problemas na implementação deste novo instrumento


jurídico trazido pelo supracitado diploma federal. Em primeiro lugar, é possível veri-
ficar que a norma em questão possui lacunas quanto à atuação dos diversos órgãos
de controle na pacutação deste ajuste em face de atos lesivos praticados contra a
Administração Pública direta e indireta federal. Esta deficiência foi agravada com a não
aprovação da Medida Provisória nº 703, de 18 de dezembro de 2015. Além disso, sem
que houvesse previsão expressa na LAC conferindo-lhe tal atribuição, constatou-se que
o Ministério Público, por estar atuando na apuração dos crimes imputados aos gestores
das empresas investigadas na operação acima mencionada, vem sendo celebrando,
isoladamente, acordos de leniência3. Foi com base nesse entendimento – ausência
de permissivo legal – que o Tribunal Regional da 4ª Região, no julgamento do Agravo
de Instrumento 5023972-66.2017.4.04.0000, anulou acordo de leniência celebrado
pelo órgão parquet4.

Por isso, após traçar um histórico sobre o acordo de leniência no âmbito federal,
serão analisadas as regras trazidas pela Lei Anticorrupção, a natureza jurídica deste
instituto, diferenciando-o em relação a outros instrumentos jurídicos, bem como serão
demonstradas as principais lacunas existentes na legislação vigente, para finalmente
compreender o papel da Advocacia Pública, ao lado do Ministério da Transparência

2 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12846.htm, acesso em


20.12.17

3 Segundo o site g1.globo.com, 9(nove) empresas envolvidas na operação “Lava Jato” celebraram acordo
de leniência com o MPF. Disponível em https://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/com-
odebrecht-chegam-a-16-os-acordos-de-leniencia-motivados-pela-lava-jato.ghtml. Acesso em 19.11.2017

4 Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-ago-22/ministerio-publico-nao-acordos-leniencia-decide-
trf. Acesso em 19.10.2017.

64 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


e Controladoria-Geral da União, e dos demais órgãos de controle externo, no êxito da
celebração destes acordos que envolvem atos lesivos contra a Administração Pública.

1. REGRAS DO ACORDO DE LENIÊNCIA NA LEI FEDERAL Nº


12.846/13

1.1. Origem do acordo de leniência na legislação federal


O acordo de leniência celebrado entre pessoa jurídica e órgãos públicos não é
uma novidade trazida pela Lei federal nº 12.846/13, visto que este instrumento já era
previsto em outros diplomas legais que a precederam. A Lei federal nº 10.149, de
21 de dezembro de 20005, ao alterar a Lei federal nº 8.884, de 11 de junho de 1994,
acrescentando o art. 35-B, foi o primeiro diploma a trazer a previsão de celebração
de acordo de leniência no Ordenamento Jurídico brasileiro. Segundo o art. 35-B, este
acordo podia ser formalizado entre a pessoa jurídica acusada de prática de infração à
ordem econômica e a União, através da Secretaria de Direito Econômico do Ministério
da Justiça, com vistas à extinção da ação punitiva da Administração ou com o propósito
de obter redução da penalidade cabível no processo administrativo a ser julgado pelo
Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

Importante destacar que os pressupostos e requisitos para realização do referido


ajuste no âmbito do processo administrativo, instaurado para apurar infração à ordem
econômica, já apresentavam características comuns ao acordo de leniência previsto
pela Lei federal nº 12.846/13, como se observará no tópico seguinte. Esta similaridade
decorre do fato de que o art. 35-B possuía redação semelhante às disposições contidas
no art. 16 da Lei Anticorrupção, quando exigia para pactuação deste acordo, além
da cessação da atividade ilícita, a colaboração efetiva da pessoa jurídica celebrante
nas investigações e processo administrativo, com indicação dos demais infratores,
fornecimento de documentos, comparecimento aos atos processuais. Importante
destacar a exigência de que a SDE não possuísse provas suficientes para assegurar a
condenação da pessoa física e da empresa quando da propositura do acordo, requisito
que não expressamente previsto na LAC.

5 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L10149.htm , acesso em 20.12.17

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 65


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
Mais adiante, foi editada a Lei federal nº 12.529, em 30 de novembro de 20116, esta-
belecendo o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, norma que revogou o art.
35-B da Lei federal nº 8.884/94, passando o art. 86 do novo diploma legal a disciplinar
o acordo de leniência em caso de infrações contra a ordem econômica praticadas por
pessoas físicas ou jurídicas. Este dispositivo da Lei federal nº 12.529/11 pouco inovou
em relação ao que já era previsto art. 35-B da Lei federal nº 8.884/94 quanto aos seus
requisitos mencionados acima. No que diz respeito às consequências da pactuação
deste ajuste, o signatário que cumpre o acordo tem direito à imunidade administrativa
se o CADE não tiver prévio conhecimento da infração, cabendo a redução de um até
dois terços na hipótese de a referida autarquia já ter iniciado o processo administrativo
quando da proposição do acordo. Merece destaque a previsão no art. 87, segundo a
qual o cumprimento do acordo também implica na extinção da punibilidade de crimes
contra a ordem econômica previstos na Lei federal nº 8.137, de 27 de dezembro de
1990), dos crimes tipificados na Lei federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993 e do delito
previsto no art. 288 do Código Penal.

Logo, em face da semelhança existente entre as regras previstas para o acordo de


leniência na Lei Concorrencial em relação aos requisitos estabelecidos no art. 16 da LAC
para o ajuste objeto de estudo, a comparação entre estes dois tipos de instrumentos,
que possuem a mesma nomenclatura, é inevitável, como será exposto mais adiante.

Feitas estas considerações iniciais, cumpre analisar as regras contidas na Lei


federal nº 12.846/2013 sobre o acordo de leniência, as alterações que foram realizadas
pela Medida Provisória 703/2015, bem como as disposições do decreto regulamentar
da LAC.

1.2. Lei federal nº 12.846, 01 de agosto de 2013


A Lei federal nº 12. 846/13 foi editada com o nítido propósito suprir ausência de
diploma legal na legislação brasileira dispondo sobre a responsabilização administra-
tiva e civil de pessoa jurídica em face de atos de “corrupção”, como foi informado na
exposição de motivos quando o projeto de lei 6.826-A, de 2010 foi encaminhado para
aprovação pelo Congresso Nacional7.

6 Disponível http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12529.htm, acesso em


20.12.17

7 Disponível em http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1084183.pdf, acesso em 20.12.17

66 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


Ademais, somente quando a pessoa jurídica praticava um ato ilícito contra a
Administração, em conluio com um agente público, é que seria cabível o ajuizamento
de ação de improbidade para sua responsabilização, pois, se não existissem provas
do envolvimento de um agente no ato ímprobo, a empresa ficava impune a qualquer
ação estatal punitiva.

O acordo de leniência foi previsto na referida norma, entre outros motivos, para
garantir o resultado útil do processo administrativo de responsabilização – PAR.
Este instrumento foi disciplinado no Capítulo V da Lei federal nº 12.856/13 em dois
momentos: no art. 16, que trata do acordo celebrado em face da prática de atos lesivos
previstos pela referida Lei Anticorrupção; e no art. 17, que dispõe sobre o ajuste que
pode ser firmado em face da prática de falta administrativa prevista na Lei federal nº
8.666/93.

Para melhor compreensão, estes dois dispositivos serão tratados separadamente.

1.2.1. Acordo de leniência em face da prática de atos lesivos


previstos no art. 5º da Lei federal nº 12.846/13
O art. 168 da Lei federal nº 12.846/13 previu a possibilidade de celebração de
acordo de leniência pela pessoa jurídica acusada de perpetração de atos lesivos contra
a Administração Pública descritos no art. 5º da aludida Lei Anticorrupção.

8 Art. 16.  A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com
as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente
com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte:
I - a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e
II - a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.
§ 1o  O acordo de que trata o caput somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os
seguintes requisitos:
I - a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do
ato ilícito;
II - a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de
propositura do acordo;
III - a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as
investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a
todos os atos processuais, até seu encerramento.
§ 2o  A celebração do acordo de leniência isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do
art. 6o e no inciso IV do art. 19 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o valor da multa aplicável.
§ 3o  O acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano
causado.
§ 4o  O acordo de leniência estipulará as condições necessárias para assegurar a efetividade da

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 67


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
Consoante disposição contida nos parágrafos 6º e 7º do art. 16, a celebração do
acordo de leniência pressupõe a apresentação de uma proposta pela pessoa jurídica
interessada, proposição que, a princípio, será sigilosa até que o acordo seja firmado.
Esta regra do sigilo se coaduna com a previsão de que, uma rejeitada pela autoridade
competente a proposta, isto não importará em reconhecimento da prática do ato lesivo
investigado, ou seja, não poderá ser utilizada como prova – confissão do ilícito.

O caput do art. 16 preceitua que o acordo de leniência pode ser celebrado quando
houver uma colaboração efetiva nas investigações e no processo administrativo. Isso
quer dizer que este instrumento jurídico será firmado antes da instauração do processo
administrativo de responsabilização – PAR (leniência prévia) ou no curso do referido
procedimento (leniência concomitante), pois deverá importar em benefício para as
investigações ou para o andamento do referido PAR. Os incisos deste dispositivo
estabelecem que será considerado colaboração efetiva “a identificação dos demais
envolvidos, quando couber e também a obtenção célere de informações e documentos
que comprovem o ilícito sob apuração”. O §4º do art. 16 reforça a necessidade de
estipulação de cláusulas no acordo que garantam a efetividade da colaboração e o
resultado útil do processo.

Para Thyago Marrara, existiria requisitos temporais e finalísticos não previstos


expressamente na lei. Como requisito temporal implícito, explica o autor que “...é
preciso que o acordo seja proposto em momento oportuno, de sorte a garantir a efeti-
vidade na identificação dos demais envolvidos e para a obtenção de informações e
documentos que comprovem o ilícito.”. Afinal, não se justifica firmar tal ajuste quando

colaboração e o resultado útil do processo.


§ 5o  Os efeitos do acordo de leniência serão estendidos às pessoas jurídicas que integram o mesmo
grupo econômico, de fato e de direito, desde que firmem o acordo em conjunto, respeitadas as condições
nele estabelecidas.
§ 6o A proposta de acordo de leniência somente se tornará pública após a efetivação do respectivo
acordo, salvo no interesse das investigações e do processo administrativo.
§ 7o  Não importará em reconhecimento da prática do ato ilícito investigado a proposta de acordo de
leniência rejeitada.
§ 8o  Em caso de descumprimento do acordo de leniência, a pessoa jurídica ficará impedida de celebrar
novo acordo pelo prazo de 3 (três) anos contados do conhecimento pela administração pública do
referido descumprimento.
§ 9o  A celebração do acordo de leniência interrompe o prazo prescricional dos atos ilícitos previstos
nesta Lei.
§ 10.  A Controladoria-Geral da União - CGU é o órgão competente para celebrar os acordos de leniência no
âmbito do Poder Executivo federal, bem como no caso de atos lesivos praticados contra a administração
pública estrangeira.

68 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


a Administração já dispõe de provas suficientes para a responsabilização da infratora
e demais coatoras através do PAR. Além disso, este defende que existiria um requisito
finalístico que resulta da “...necessidade de se garantir efetividade da leniência...”,
de modo que a autoridade competente não poderia estar atenuando ou isentando a
pessoa jurídica das sanções cabíveis, através do aludido acordo, se a proponente está
apresentando provas repetidas, impertinentes ou elementos probatórios que o Estado
possa facilmente obter pelos meios de investigação9.

Da leitura do §4º do art. 16 em comento, depreende-se que outras condições


podem ser estipuladas no acordo de leniência para garantir o resultado útil do processo
administrativo. Uma interpretação deste dispositivo em conjunto com a regra constante
no §3º do art. 16, que estabelece que “o acordo de leniência não exime a pessoa jurídica
da obrigação de reparar integralmente o dano causado”, indica que é admissível estipular
neste acordo, como condição a ser cumprida pela pessoa jurídica, a realização do
ressarcimento integral dos prejuízos advindos da prática do ato ilícito. Note-se que
o aludido dispositivo não condicionou a celebração do acordo à realização prévia da
reparação integral dos danos, mas apenas reforçou que o pacto de leniência jamais
poderá afastar o ressarcimento de todos os prejuízos causados.

O art. 16, §1º, através de três incisos, estabeleceu requisitos cumulativos a serem
observados pela pessoa jurídica que irá celebrar este ajuste. Estes requisitos, em
suma, fazem as seguintes exigências: i) manifestação de interesse em cooperação
pela pessoa jurídica; ii) encerramento da prática ilícita a partir da apresentação da
proposta de acordo pela interessada; iii) admissão da sua participação no ato lesivo,
somada a sua cooperação com a investigação e o andamento da instrução processual.

O primeiro requisito acima mencionado é explicitado no inciso I do §1º do art.


16, dispositivo que possui redação bastante restritiva ao exigir que a “pessoa jurídica
seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato
ilícito”. Da sua análise, é possível extrair duas conclusões. Em primeiro lugar, a proposta
de celebração do acordo deve partir de iniciativa da pessoa jurídica investigada ou
processada (ato voluntário), jamais podendo ser imposto pela Administração. Outra
conclusão que pode ser obtida da interpretação deste dispositivo é a de que, se o ato
lesivo foi praticado por mais de uma pessoa jurídica, somente a primeira infratora
a manifestar interesse é que terá direito de firmar tal ajuste, não sendo admitida tal

9 MARRARA, Thiago. Comentários ao art. 16. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago. Lei
Anticorrupção comentada. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 222

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 69


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
hipótese em relação as demais infratoras (salvo se frustrado o acordo). O segundo
requisito – que trata da cessação do comportamento ilícito – é algo que não pode deixar
de ser aferido pela autoridade competente, como forma de verificar se a proponente
do acordo está agindo de boa-fé e encerrando a prática corrupta, um dos objetivos
perseguidos pela norma. É possível defender que este requisito possa ser dispensado
nos casos em que existe mais de um partícipe no ato lesivo, pois a cessação poderia
despertar a atenção das demais infratoras sobre as negociações que teriam sendo
realizadas em sigilo e atrapalhar o êxito do acordo. Embora se questione a constitu-
cionalidade do terceiro requisito, por exigir do infrator admissão de culpa, o fato é que
outros institutos na legislação pátria que fazem exigência semelhante, a exemplo do
acordo de leniência na Lei Concorrencial (art. 86) e a Colaboração Premiada (art. 4º
da Lei federal nº 12.850/2013).

Como benefícios da celebração do acordo, a celebrante ficará isenta da pena


de publicação extraordinária de decisão condenatória (art. 6º, II), que é uma penali-
dade administrativa, e também da sanção judicial de proibição de receber incentivos,
subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e
de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público (art. 19, IV).
Além disso, a autoridade competente poderá atenuar em até 2/3 da multa que seria em
tese cabível ao final do PAR. Esta penalidade, após a realização da dosimetria (pelos
critérios fixados pelo legislador), poderá ser calculada no percentual de 0,1% a 20%
incidente sobre o faturamento bruto da pessoa jurídica, podendo esta pena pecuniária
ser estipulada no valor que varia de R$6.000,00 (seis mil) até R$60.000,00 (sessenta
mil reais), caso não seja possível utilizar o critério do faturamento bruto.

Uma das consequências da celebração do acordo é a suspensão do prazo pres-


cricional para início do processo administrativo de responsabilização – PAR, visto que,
se o acordo não for cumprido, a autoridade competente poderá exercer o seu poder
sancionador em relação ao ato administrativo. O ajuste não honrado pela pessoa
jurídica também impede que esta seja beneficiada novamente com este negócio jurídico
pelo prazo de 3(três) anos, a contar da ciência do inadimplemento.

Sobre a competência para a celebração do acordo, convém fazer as seguintes


considerações. O caput do art. 16 dispõe que a autoridade máxima de cada órgão ou
entidade pública será competente para deflagração do PAR (e aplicação das respec-
tivas sanções), enquanto que o §10 deste dispositivo estabelece que competirá à
Controladoria Geral da União celebrar acordo de leniência no âmbito do Poder Executivo

70 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


federal e também dos casos em que o sujeito passivo do ato lesivo foi a administração
pública estrangeira (definida no art. 5º, §1º10). Da leitura destas duas regras é possível
extrair as seguintes conclusões:

Em primeiro lugar, ao utilizar a expressão “âmbito do Poder Executivo federal”,


o Ministro da CGU (órgão atualmente chamado de Ministério da Transparência e
Controladoria-Geral da União) será competente para firmar o ajuste em comento quando
o ato lesivo for praticado contra quaisquer órgãos e entidades (incluindo as descentra-
lizadas com personalidade jurídica de direito privado) que integram a Administração
Pública federal, bem como contra a Administração Pública estrangeira. Gilson Dipp e
Manoel L. Volkmer de Castilho defendem que seria de competência exclusiva da CGU,
representada pelo seu titular, celebrar acordo de leniência quando o sujeito for passivo
for a Administração Pública direta ou indireta, abrangendo, inclusive, as concessioná-
rias/permissionárias de serviço público. Os referidos autores também lembram que esta
competência é indelegável, visto que a LAC somente admite delegação para instauração
e julgamento do PAR, consoante regra preceituada no art. 8º, §1º11.

Outra conclusão que pode ser extraída sobre as autoridades autorizadas a celebrar
o acordo é que, em respeito à autonomia e independência entre os Poderes, bem como
em atenção às regras de competência do art. 8º da LAC, quando o ato lesivo fosse
praticado no âmbito de outro Poder (Legislativo ou Judiciário) ou contra um órgão
autônomo não integrante do Poder Executivo (como Ministério Público e Defensoria
Pública), seria competente para pactuar este ajuste a autoridade máxima de cada um
destes órgãos, por ser o agente público competente para iniciar e aplicar as sanções
do PAR.

Imperioso notar que não há menção de participação do Ministério Público e/


ou do Tribunal de Contas da União na realização deste ajuste quando o ato lesivo foi
praticado contra a administração pública direta ou indireta, lacuna será oportunamente
explicitada em outro tópico.

10 Art. 5º: (...)


§ 1   Considera-se administração pública estrangeira os órgãos e entidades estatais ou representações
o

diplomáticas de país estrangeiro, de qualquer nível ou esfera de governo, bem como as pessoas jurídicas
controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público de país estrangeiro.

11 DIPP, Gilson; CASTILHO, Manoel L. Volkmer de. Comentários sobre a Lei Anticorrupção. São Paulo:
Saraiva, 2016, pág. 89

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 71


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
1.2.2. Acordo de leniência em face de ilícitos previstos na Lei
federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993
O art. 1712 da LAC trouxe uma previsão quanto à possibilidade de celebração de
acordo de leniência em relação a ilícitos previstos na Lei Geral de Licitações e Contratos
para atenuação das sanções previstas em seus artigos 86 a 88 (advertência, multa,
suspensão temporária e pena de declaração de inidoneidade do direito de licitar e
contratar).

A previsão de acordo de leniência em dispositivo autônomo (art. 17) em relação


ao art. 16 e a utilização do advérbio “também” sugerem a interpretação de que se trata
de uma outra espécie de acordo, que somente abarcaria os atos ilícitos previstos na Lei
Geral de Licitações e Contratos e não necessariamente os atos lesivos disciplinados no
art. 5º da norma objeto de estudo. Sob este viés, seria cabível de celebração de acordo
de leniência, de forma autônoma, no curso do processo sancionador instaurado para
apurar infrações preceituadas na Lei federal nº 8.666/93, para atenuação ou isenção
de sanções administrativas previstas neste diploma, mesmo que o ato ilícito praticado
em contratação administrativa não seja enquadrado também como ato lesivo pela Lei
federal nº 12.846/13, a exemplo de uma inexecução parcial de contrato por negligência
da contratada.

Todavia, a interpretação acima não parece ser a mais adequada, pois se a intenção
do legislador era estabelecer uma nova espécie de acordo de leniência diversa daquela
prevista no art. 16, o qual seria cabível de forma autônoma no processo administrativo
sancionador instaurado com fundamento na Lei federal nº 8.666/93, pela boa técnica
legislativa, deveria ter realizado tal previsão nas Disposições Finais da LAC. Assim,
seria inserido novo dispositivo na Lei Geral de Licitações e Contratos, estabelecendo
expressamente a possibilidade de firmar ajustes para isenção e atenuação das sanções
administrativas ao celebrante que praticar quaisquer ilícitos previstos no art. 86 a 88
da referida norma, mesmo que estes não encontrem correspondência com alguma
figura “típica” prevista no art. 5º da Lei Anticorrupção, não suscitando as dúvidas ora
levantadas.

12 Art. 17.  A administração pública poderá também celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica
responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, com vistas à
isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas em seus arts. 86 a 88.

72 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


Nesse diapasão, registre-se que Cristiana Fortini entende que os ilícitos admi-
nistrativos preceituados nos artigos 87 e 88 da Lei federal nº 8.666/93, que guardam
correspondência com as infrações previstas no art. 5º da LAC, poderiam ser objeto de
um único acordo, dando uma interpretação razoável ao art. 17 em comento:
“Assim, as infrações ligadas ao inciso IV art. 5º, imporiam punições no ambiente
da Lei Anticorrupção e também da Lei de Licitações, seriam abordadas e
enfrentadas em um só ajuste, com maior proveito para a entidade signatária.
Na hipótese, todavia, de o art. 16 vir a ser alterado novamente, como fora durante
a vigência da MP, a única finalidade do art. 17 seria de “compensar” a entidade
colaboradora, cujo ato ilícito antecedeu à Lei Anticorrupção, com eliminação ou
mitigação das penas a que estaria sujeita, em face das regras sobre licitações
e contratos (...) ” 13

Nesse mesmo sentido, Benjamin Zymler e Laureano Canabarro Dios entendem


que o acordo de leniência não abrange atos ilícitos previstos nas normas de licitações
que não estejam também tipificados na Lei Anticorrupção14.

Corroborando tal posicionamento, será demonstrado mais adiante que o Decreto


federal nº 8.420/15, que regulamentou a Lei Anticorrupção, trouxe dispositivos que
indicam que o acordo estabelecido no art. 17 não seria uma espécie de acordo que
pode ser celebrado de autônoma, pois este só poderia ser firmado quando a infração
prevista na Lei federal nº 8.666/93 e outras normas de licitações puder ser enquadrado
como ato lesivo.

O fato é que, seja realizado como único ajuste no PAR ou não, o acordo de leniência
poderá ter reflexos no processo administrativo sancionador porventura instaurado
para apurar a prática de ilícitos previstos na Lei Geral de Licitações e Contratos, o
que é um benefício bastante significativo para pessoas jurídicas que contratam com
a Administração Pública, por ser nítido o interesse destas em não ficar impedida
de participar das contratações públicas, o que decorreria da aplicação da pena de
suspensão temporária ou declaração de inidoneidade do direito de licitar e contratar.

13 FORTINI, Cristiana. Comentários ao art. 17. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; MARRARA, Thiago. Lei
Anticorrupção comentada. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 239

14 ZYMLER, Benjamin; DIOS, Laureano Canabarro. Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013): uma visão do
controle externo. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 150

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 73


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
1.3. Alteração pela Medida Provisória nº 703, de 18 de
dezembro de 2015
A Medida Provisória nº 70315, publicada no DOU de 21 de dezembro de 2015,
teve a sua vigência até 20 de abril de 2016, pois não foi aprovada pela Câmara dos
Deputados e Senado Federal no prazo de 120 (cento e vinte) dias da sua publicação.
Esta espécie normativa trouxe significativas alterações no acordo de leniência, valendo
registrar as seguintes:

Em primeiro lugar, alterou o caput do art. 16, prevendo que todos entes federativos
poderão, por meio de seus órgãos internos, “de forma isolada ou em conjunto com
o Ministério Público ou com a Advocacia Pública”, celebrar acordo de leniência. Os
parágrafos 11 e 12 deste dispositivo também foram modificados para dispor sobre
esta participação da Advocacia Pública e do Ministério na pactuação deste ajuste. É
possível inferir que tais previsões visavam propiciar o êxito na celebração do acordo
de leniência, visto que a pessoa jurídica interessada precisa de uma garantia de que
o acordo não somente repercute sobre a conclusão do processo administrativo de
responsabilização – PAR, mas também impede o ajuizamento de ação judicial pela
Advocacia e órgão parquet para imposição de sanções de natureza cível previstas
no art. 1916 da Lei federal nº 12.846/13. Tal conclusão é corroborada com a nova
redação dada ao art. 18 pela Medida Provisória, quando estabeleceu que “na esfera
administrativa, a responsabilidade da pessoa jurídica não afasta a possibilidade de
sua responsabilização na esfera judicial, exceto quando expressamente previsto na
celebração do acordo de leniência.”

15 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Mpv/mpv703.htm#art1,
acesso em 20.12.17.

16 Art. 19.  Em razão da prática de atos previstos no art. 5o desta Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios, por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, ou
equivalentes, e o Ministério Público, poderão ajuizar ação com vistas à aplicação das seguintes sanções
às pessoas jurídicas infratoras:
I - perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente
obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;
II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades;
III - dissolução compulsória da pessoa jurídica;
IV - proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou
entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo
mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.

74 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


Embora a Medida Provisória não tenha estipulado a participação do Tribunal de
Contas durante a realização do ajuste com a infratora, tal como fez expressamente
em relação ao Ministério Público e Advocacia Pública, este ato normativo inseriu um
novo parágrafo para estabelecer o encaminhamento do acordo de leniência assinado
à referida Corte (art. 16, §14 da MP). Esta previsão está em consonância com as
funções institucionais do TCU estabelecidas na Constituição Federal, tendo em vista a
possibilidade de deflagração de processo administrativo de tomada de contas especial
pela referida Corte de Contas para apurar o prejuízo ao erário, pois é possível que o
acordo firmado não tenha propiciado o ressarcimento integral do dano efetivamente
causado. Ou seja, foi previsto para o Tribunal de Contas apenas uma atuação de controle
posterior à celebração do ajuste, para garantir que haja reparação integral dos prejuízos,
se durante o PAR foi equivocadamente arbitrado um quantum inferior a ser indenizado
em relação ao dano efetivamente sofrido pelos cofres públicos.

A Medida Provisória trouxe dois novos incisos ao caput do art. 16 da LAC para
estabelecer novos critérios para aferição da colaboração efetiva exigida para realização
deste pacto, tais como “a cooperação da pessoa jurídica com as investigações, em
face de sua responsabilidade objetiva” e “o comprometimento da pessoa jurídica na
implementação ou na melhoria de mecanismos internos de integridade”. Pela nova
redação do art. 16, §1º dada pela MP, este comprometimento da pessoa jurídica em
implementar ou melhorar os mecanismos internos de integridade, auditoria, incentivo
às denúncias de irregularidades e à aplicação efetiva de código de ética e de conduta
da empresa passou a ser um novo requisito cumulativo a ser cumprido para ter direito
ao acordo em questão. Ademais, o objetivo da Lei Anticorrupção é prevenir a repetição
de atos de corrupção semelhantes aos que foram detectados.

Outra modificação relevante foi no tocante às consequências da pactuação deste


ajuste, ao dispor consequências distintas para a primeira infratora a firmar ajuste em
relação às demais partícipes do ato ilícito, dissipando a dúvida trazida pela redação
original do caput art. 16, que deixa a entender que apenas a primeira pessoa jurídica
que manifestar interesse poderia firmar o acordo. Assim, o §2º do art. 1617 inserido

17 § 2º  O acordo de leniência celebrado pela autoridade administrativa:


I - isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do caput do art. 6º e das sanções restritivas ao
direito de licitar e contratar previstas na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e em outras normas que
tratam de licitações e contratos;
II - poderá reduzir a multa prevista no inciso I do caput do art. 6º em até dois terços, não sendo aplicável à
pessoa jurídica qualquer outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 75


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
pela MP ampliou os benefícios para a primeira pessoa jurídica que firmar o acordo de
leniência, a qual poderia ter até isenção da pena de multa prevista no art. 6º, inciso I,
enquanto que as demais pessoas jurídicas denunciadas que também celebrassem este
negócio jurídico poderiam ter sua pena pecuniária reduzida até 2/3.

A possibilidade de estipular no acordo de leniência cláusula relativa à obrigato-


riedade de reparação do dano pela infratora foi explicitada com a alteração do §4º do
art. 16 pela Medida Provisória em apreço, tendo o legislador estabelecido que esta
cláusula observará a condição econômica da pessoa jurídica celebrante.

Merece destaque uma regra trazida pela aludida Medida Provisória, que revogou
o §1º do art. 17 da Lei federal nº 8.429/92, dispositivo que veda a celebração de
transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade. A revogação do referido
dispositivo durante o tempo de vigência da Medida Provisória afastou eventual ques-
tionamento quanto à legalidade da atuação do Ministério Público em transacionar
com uma pessoa jurídica quando o ato lesivo também pudesse ser enquadrado como
improbidade administrativa.

1.4. Decreto Regulamentar nº 8.420, de 18 de março de 2015.


O Decreto Regulamentar nº 8.420, de 18 de março de 201518, trouxe disposi-
ções que delimitaram melhor a competência da CGU na condução dos processos
administrativos de responsabilização (art. 13), regras de dosimetria para cálculo da
multa cabível (artigos 17 a 22) e de avaliação do programa de integridade (art. 41),
bem como disciplinou sobre o rito do PAR, que pode ser precedido de investigação
preliminar (artigos 4º a 10). Além disso, o referido regulamento tentou equacionar
alguns questionamentos que surgiram sobre o acordo de leniência com a edição da
Lei federal nº 12.846/13.

no acordo; e
III - no caso de a pessoa jurídica ser a primeira a firmar o acordo de leniência sobre os atos e fatos investigados,
a redução poderá chegar até a sua completa remissão, não sendo aplicável à pessoa jurídica qualquer
outra sanção de natureza pecuniária decorrente das infrações especificadas no acordo.

18 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Decreto/D8420.htm, acesso


em 20.12.17

76 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


A primeira questão esclarecida diz respeito quanto à possibilidade de o acordo de
leniência somente poder ser celebrado por uma única infratora, como deixa a entender
a redação do art. 16, §1º da LAC, visto que o art. 30 do supracitado decreto estipulou
que a pessoa jurídica que pretende firmar esse ajuste deve ser a primeira pessoa a
manifestar interesse em cooperar para apuração do fato, quando tal circunstância for
relevante. É possível interpretar que o decreto permitiu a CGU avaliar, de acordo com
critérios de conveniência e oportunidade, se a essa circunstância de ser a primeira a
manifestar interesse em colaboração seria relevante, decidindo, por conseguinte, se
estende a possibilidade de firmar acordo por outras pessoas jurídicas envolvidas nos
fatos denunciados.

Critica-se essa previsão sob dois aspectos. Em primeiro lugar, houve uma nítida
criação de nova regra não prevista na norma legal através de decreto regulamentar, o
que nosso Ordenamento Jurídico não permite. Em segundo, conforme bem salientado
por Benjamin Zymler e Laureano Canabarro Dios, se é possível firmar acordo de leniência
por mais de uma pessoa pelo mesmo fato, isto enfraqueceria o instituto, “...visto que
nenhum dos coatores do ilícito sente-se pressionado a fazer, o que acaba por induzir
que nenhum o faça”19. Isso porque, quando a lei exigiu que a pessoa jurídica fosse a
primeira a manifestar interesse para ser beneficiada, nos casos em que houver mais de
uma pessoa envolvida, indiretamente criou-se uma “corrida” para ver quem irá romper
primeiro o pacto de silêncio existente entre as infratoras que agiam em conluio, para
ter direito aos benefícios.

A falha do legislador ordinário ao prever a regra constante no art. 16, §1º, inciso I da
LAC foi não dispor, em outro dispositivo, sobre algum benefício de menor repercussão
para as demais infratoras que também desejam colaborar com as investigações do PAR,
tal como existe nos ilícitos apurados pelo CADE, que previu o Termo de Compromisso
de Cessação. A Medida Provisória 703, como indicado acima, por um breve período
criou expressamente regras para a primeira pessoa jurídica que apresenta proposta
de acordo (o qual poderá até isentar total das sanções administrativas do art. 6º,
inclusive a pena pecuniária) e para as demais partícipes do ato lesivo (o quantum da
multa somente poderia ser reduzido no máximo 2/3), fazendo com que se mantivesse
o estímulo para que exista uma infratora a ser a primeira a ser manifestar e admitir o
esquema criminoso, denunciando as demais envolvidas.

19 Op. cit. p.161

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 77


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
O decreto também veio aclarar uma dúvida na interpretação do art. 17 da LAC,
isto é, se o acordo de leniência mencionado neste dispositivo poderia ser celebrado de
forma autônoma, mesmo que o ilícito previsto na Lei Geral de Licitações e Contratos não
pudesse ser enquadrado como ato lesivo da Lei federal nº 12.846/13. Os artigos 12 e 16
do decreto estabelecem que, se os atos lesivos envolverem também infrações previstas
na Lei federal nº 8.666/94, caberá apuração e julgamento conjunto destes ilícitos nos
mesmos autos, podendo ser impostas no PAR sanções restritivas ao direito de licitar
e contratar. O art. 40, por seu turno, é mais explícito, ao dispor em seu inciso IV como
um dos efeitos do cumprimento do acordo de leniência pela celebrante a “isenção ou
atenuação das sanções administrativas previstas nos art. 86 a art. 88 da Lei no 8.666,
de 1993, ou de outras normas de licitações e contratos”. Assim, é possível concluir que
o abrandamento das penalidades previstas na norma geral de contratações ocorre
quando celebrado acordo de leniência pela perpetração de ato lesivo que também ser
considerado infração pela Lei federal nº 8.666/93.

2. NATUREZA JURÍDICA DO ACORDO DE LENIÊNCIA E DIFERENÇA


COM OUTROS INSTRUMENTOS JURÍDICOS
Para análise do papel da Advocacia Pública e demais órgãos de controle na
celebração do acordo de leniência, é salutar verificar a natureza jurídica deste ajuste
e estabelecer a diferença com os demais instrumentos jurídicos existentes no nosso
Ordenamento Jurídico.

2.1. Natureza jurídica


Não existe uma posição pacífica na doutrina, pois alguns preferem defender a sua
natureza jurídica do acordo de leniência a partir de alguns objetivos deste ajuste (iden-
tificação dos demais envolvidos, obtenção célere de documentação que comprovem
o ilícito), enquanto que outros analisam a estruturação deste pacto para definir sua
natureza.

Valdir Moises Simão e Marcelo Pontes Vianna comungam da tese de que seriam
mecanismos de investigação e não um simples negócio jurídico de transação20. De

20 SIMÃO, Valdir Moysés; VIANNA, Marcelo Pontes. O acordo de leniência na Lei Anticorrupção: histórico,
desafios e perspectivas. São Paulo: Trevisan Editora, 2017, p. 200.

78 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


forma semelhante, Benjamin Zyler e Laureano Canabarro Dios entendem que se trata
de instrumento de investigação21.

Para Vitor Alexandre El Khoury M Pereira, o acordo de leniência é um instrumento


de prova, isto é, de instrução processual penal-administrativa. Registre-se que o autor
não nega a existência de um viés contratual, por entender que existe pacto firmado
entre o Estado e a pessoa jurídica que os obrigam a cumprirem o que foi pactuado
de boa-fé.22.

Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Rafael Veras de Freitas, por seu turno,
defendem que se trata de ato administrativo consensual, assim dispondo:
“Trata-se de acordo substitutivo: atos administrativos complexos, por meio
dos quais a Administração Pública, pautada pelo princípio da consensualidade,
flexibiliza sua conduta imperativa e celebra com o administrado um acordo, que
tem por objeto substituir, em determinada relação administrativa, uma conduta,
primariamente exigível, por outra secundariamente negociável”23

Sem negar a finalidade do instrumento objeto de estudo como meio de obtenção


de elementos probatórios (o que não se confunde com as provas colhidas), é possível
deduzir que o acordo de leniência é uma espécie de negócio jurídico, por envolver
a assunção de obrigações das partes celebrantes, pois a autoridade administrativa
assume o compromisso de atenuar ou isentar sanções, dentro dos estritos limites
estabelecidos pela LAC, enquanto a pessoa jurídica interessada, sem prejuízo do
seu dever de reparação integral do dano, assume a obrigação de colaborar com as
investigações e instrução processual, além de adotar programas de integridade. A
atuação unilateral da autoridade administrativa celebrante seria apenas de verificar se
a proponente atendeu aos requisitos cumulativos estabelecidos no art. 16, para que
esta tenha reconhecido o direito de formalizar este ajuste.

21 Op. cit. p. 147

22 PEREIRA, Victor Alexandre El Khoury M. Acordo de leniência na Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013).
Revista Brasileira de Infraestrutura – RBINF, Belo Horizonte, ano 5, n. 9, p. 79-113, jan./jun, 2016, pag.
88-89

23 MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo; FREITAS, Rafael Véras. A juridicidade da Lei Anticorrupção: reflexões
e interpretações prospectivas. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 1, fevereiro 2014.
Disponível em http://www.editoraforum.com.br/wp-content/uploads/2014/01/ART_Diogo-Figueiredo-
Moreira-Neto-et-al_Lei-Anticorrupcao.pdf, Acesso em 18.12.2017

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 79


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
2.2. Diferença do acordo de leniência com outros institutos
jurídicos
Traçadas considerações sobre a natureza jurídica do acordo de leniência, é
importante fazer distinção deste com outros institutos existentes na legislação que
envolvem acordo de vontades formalizado para afastar ou atenuar a responsabilização
de infratores.

Primeiramente, há que se distinguir o acordo de leniência com a colaboração


premiada. Este instituto está previsto em diversas leis esparsas, como o Estatuto da
Criança e do Adolescente, mas passou a ter maior utilização com o advento da Lei
federal nº 12.850/13, que definiu os crimes contra as organizações criminosas, estabe-
lecendo no art. 4º24 a possibilidade de o juiz isentar, atenuar ou mitigar penas. Da leitura
deste dispositivo, depreende-se que o investigado fornece informações ao Ministério
Público para que seja possível colher provas da prática de crimes, na expectativa que
sua cooperação seja premiada pelo juiz em caso de sentença condenatória. Assim,
é firmado pacto entre as partes, no qual são estabelecidas as condições que devem
ser cumpridas pelo colaborador para obtenção dos benefícios acordados. O Supremo
Tribunal Federal, ao julgar o HC 127483 (DJE 04.02.2016)25, discutiu a natureza deste
instituto, merecendo destaque o posicionamento defendido pelo Ministro Dias Tofolli,
que definiu a colaboração premiada como negócio jurídico processual em matéria
penal, sujeito à controle jurisdicional, qualificando-o como mero veículo de obtenção
de provas.

24 Art. 4o  O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois
terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado
efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração
advenha um ou mais dos seguintes resultados:
I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles
praticadas;
II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização
criminosa;
V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

25 Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10199666, acesso


em 18.12.17

80 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


Mas as diferenças com o acordo de leniência residem na necessidade de homo-
logação judicial da delação, com a participação do Ministério Público, e no fato de que
a colaboração premiada somente poder envolver pessoas físicas como signatárias.
Esta homologação pelo Poder Judiciário não é exigida para a validade do acordo de
leniência, ajuste que somente poderá beneficiar pessoas jurídicas. Não podendo gerar
benefícios para pessoas físicas, por ausência de previsão na LAC, o acordo de leniência
não poderá repercutir, por conseguinte, na aplicação de sanções cíveis e penais para
o indivíduo envolvido na prática do ato lesivo. A ausência da repercussão ora referida
é justamente um dos pontos apontados pela doutrina como desestímulo à celebração
do acordo de leniência, como exposto por Fernando Gentil Gizzi de Almeida Pedroso26.

Após a análise das regras constantes no art. 16 da LAC, observa-se que igualmente
não é possível confundir com Termo de Ajustamento de Conduta previsto na Lei federal
nº 7.347/85. Por meio do TAC, o órgão público que, possui legitimidade para propor
ação civil pública, toma do potencial causador do dano aos interesses transindividuais
previstos no art. 1º da norma, o compromisso de que irá adequar sua conduta aos
ditames da lei, além de prevenir ou reparar eventuais danos, sob pena das cominações
legais.

Todavia, não obstante prevalecer a ideia de que o TAC é uma espécie de negócio
jurídico27, e ainda que se admita que os atos lesivos previstos na LAC violam direitos
transindividuais, é possível apontar diferenças em relação ao acordo de leniência: i) o
ajuste firmado com fulcro na Lei nº 7347/85 pode ser realizado para prevenir o dano
potencial; ii) a conduta do particular pode ser omissiva (o que não ocorre na prática
de atos lesivos) iii) não existe acusação formal de prática de ilícito e nem admissão
de culpa pela pessoa signatária do termo; iv) o TAC não se confunde com transação,

26 PEDROSO, Fernando Gentil Gizzi de Almeida. O acordo de leniência, da Lei Anticorrupção, como instrumento
efetivo para a responsabilização administrativa e civil das pessoas místicas, disponível em http://www.
editoramagister.com/doutrina_27473125_O_ACORDO_DE_LENIENCIA_DA_LEI_ANTICORRUPCAO_
COMO_INSTRUMENTO_EFETIVO_PARA_A_RESPONSABILIZACAO_ADMINISTRATIVA_E_CIVIL_DAS_
PESSOAS_MISTICAS.aspx , acesso em 20.12.17

27 Thays Rodrigues afastou a existência natureza contratual do TAC, pela ausência de patrimonialidade
como caráter essencial, bem como de que este seria uma espécie de transação, por não envolver apenas
diretos/interesses patrimoniais e privados, definindo-o como negócio jurídico bilateral detentor de um
requisito de validade peculiar que é a indisponibilidade do direito metaindividual violado ou ameaçado
de agressão. (RODRIGUES, Thays. A natureza do termo de ajustamento de conduta. Disponível em
https://jus.com.br./artigos/18488/a-natureza-juridica-do-termo-de-ajustamento-de-conduta-/2, acesso
em 20.12.17)

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 81


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
por não implicar em concessões mútuas pelas partes celebrantes, tal como ocorre
em relação ao acordo de leniência, em que a autoridade administrativa assume o
compromisso de isenção ou atenuação de sanções, se houver em troca colaboração
efetiva pela pessoa jurídica celebrante.

3. PRINCIPAIS LACUNAS EXISTENTES NA LEI FEDERAL Nº


12.846/13
Como explicado anteriormente, a Medida Provisória nº 703/2015 teve sua vigência
encerrada, o que trouxe sérios problemas de insegurança jurídica, eis que é possível
observar lacunas existentes na Lei federal nº 12.846/13 que podem trazer problemas
para a efetividade do acordo de leniência, destacando-se as seguintes: i) inexistência de
regra disciplinando a participação de órgãos de controle externo diante da celebração
do acordo de leniência; ii) ausência de previsão de repercussão da pactuação deste
ajuste para afastar sanções judiciais; iii) ausência de previsão expressa da atuação
da Advocacia-Geral da União como órgão distinto da Controladoria-Geral da União
(Ministério da Transparência) na formalização deste negócio jurídico.

3.1. Participação de órgãos de controle externo no acordo de


leniência
Da leitura integral do texto da norma sob estudo, observa-se uma omissão na
participação dos órgãos de controle externo na celebração do acordo de leniência ao
lado do Ministro da Transparência - Controladoria Geral da União. A Medida Provisória
703 havia trazido regras mínimas de como o Ministério Público e o Tribunal de Contas
poderiam atuar na pactuação deste ajuste, mas tais disposições não se encontram
mais vigentes quando o referido ato normativo caducou.

A ausência de regras na redação original da Lei federal nº 12.846/2013 dispondo


como será a atuação dos órgãos de controle externo supracitados, em face das
propostas de acordos de leniência apresentadas, implica em insegurança jurídica para
as partes do PAR, pois o órgão parquet vem celebrando estes ajustes isoladamente
com empresas envolvidas na operação “Lava Jato”, enquanto que o Tribunal de Contas
da União elaborou Instrução Normativa determinado o exame prévio destes acordos

82 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


antes da sua celebração pela CGU, atuações que podem ser questionadas, o que será
analisado a seguir:

3.1.1. Ministério Público Federal


A participação do órgão parquet na celebração do acordo ao lado da CGU somente
foi admitida expressamente durante a vigência da Medida Provisória 703/2015, quando
foi alterada a redação do art. 16 para dispor sobre a celebração do acordo através
dos órgãos de controle interno dos entes federativos, em conjunto ou isoladamente
pelo Ministério Público. Imperioso registrar que este dispositivo, enquanto vigente,
jamais admitiu que o órgão ministerial pudesse celebrar, de forma isolada, o ajuste em
comento, como vem sendo noticiado em relação a empresas objeto de investigação
da operação policial intitulada “Lava Jato”.

Valdir Moysés Simão e Marcelo Pontes Viana analisaram quatro destes acordos,
informando que o fundamento jurídico citado pelo órgão parquet para a celebração
desses ajustes estariam lastreados nos seguintes dispositivos: art. 129, inciso I, CF;
artigos 13 a 15 da Lei nº 9807/99; art. 1º da Lei nº 9613/98; art. 6º da Lei nº 7347/85;
art. 26 da Convenção de Palermo; art. 37 da Convenção de Mérida; art. 4º a 8º da Lei
nº 12.850/2013; art. 655 e 674 CPC/39, art. 267 e 269 CPC; art. 840 e 932 do Código
Civil e art. 16 a 21 da Lei Anticorrupção28. Os supracitados autores admitem ser válida a
celebração de acordos de leniência com base na lei da Ação Civil Pública, defendendo
o seguinte:
“ Dada a amplitude do espectro da lei da ação civil pública, admite-se seu uso
para buscar condenação da pessoa jurídica que, por meio de determinado ato,
inclusive aquelas passíveis de serem inseridos na categoria de corruptos, atente
contra um ou mais bens jurídicos tutelados, entre eles o patrimônio público”29

Não me parece que essa interpretação seja correta pelos seguintes motivos.
Em primeiro lugar, conforme exposto no tópico anterior, não é possível confundir TAC
com acordo de leniência, eis que não se admite transação (concessões mútuas) em
matéria de direito difuso, como bem explica Rogério Pacheco Alves30. Além disso, se

28 Op. cit. p. 160-161

29 Op. cit. p. 45

30 GARCIA, Emerson; ALVES Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa, 6 ed. rev. e ampl. e autlizada;
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 733

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 83


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
os ilícitos previstos neste dispositivo pudessem ser passíveis de acordo de leniência,
sob o argumento de seria uma espécie de termo de ajustamento de conduta, o MP
já poderia ter participado de acordos de leniência firmados no âmbito do CADE, eis
que a lei 7347/85 foi alterada para incluir a infração por ordem econômica no rol dos
interesses transinviduais. Registre-se ainda que não somente o órgão parquet, como
também os demais legitimados para propositura de Ação Civil Pública, entre os quais
se inclui os entes federativos, já poderiam ter firmado termo de ajustamento de conduta
com o infrator por atos lesivos ao patrimônio público decorrentes de condutas corruptas
se isto fosse realmente possível. Esta situação, se admitida, tornaria desnecessária
a previsão no Ordenamento Jurídico de outro instrumento de negociação (acordo de
leniência) com a finalidade de reparação dos danos.

Ora, não é possível negar que os atos lesivos que implicam em prejuízos aos
cofres públicos, notadamente aqueles descritos no art. 5º, inciso IV (que envolvem
licitações e contratos), não possam também ser enquadrados como atos de improbi-
dade administrativa previsto no art. 9º ou 11 da Lei federal nº 8.429/92. Ocorre que a
referida norma, em seu art. 17, §1º, proíbe expressamente qualquer forma de transação,
acordo ou conciliação envolvendo ato de improbidade administrativa. Logo, se por
acaso existiu alguma legitimidade do órgão parquet, foi pelo curto período em que tal
dispositivo foi revogado pela Medida Provisória nº 703.

Imperioso registrar que Thiago Marrara entende que haveria competência subsi-
diária do Ministério Público, mediante interpretação teleológica do art. 20, parte final:
“O fato de se deslocar a responsabilização administrativa para o processo judicial
movido pelo Ministério Público também deve descolar para esta entidade a
competência de negociar e eventualmente celebrar o acordo de leniência, que,
nesse contexto excepcional, será acoplado ao processo civil e não ao processo
administrativo. Assim, a lacuna do art. 16 em relação ao acordo por excepcional
responsabilização administrativa em processo civil não significa que o acordo
tenha deixado de existir. Ele continua possível, nas mesmas condições do art.
16, mas há que ser solicitado, negociado e celebrado perante o Ministério Público
Estadual ou Federal. Reitere-se: a transferência da competência para imposição
de sanções administrativas ao Judiciário nos casos de omissão administrativa
do ente lesado ocasiona de maneira automática a transferência de competência
para a celebração da leniência ao MP.” 31

31 Op. cit. p. 209

84 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


Adotar o entendimento acima sustentado significa que, como condição para
atuação subsidiária, deve o parquet demonstrar que a omissão, no sentido de que
houve ciência inequívoca pela autoridade administrativa da prática de ato lesivo, sem
realização de investigação preliminar ou instauração de processo administrativo de
responsabilização em prazo razoável – considerando o prazo prescricional de cinco
anos – ou de que houve PAR deflagrado sem imposição das penalidades cabíveis. Não
seria adequado considerar que a não conclusão do PAR no prazo legal de 180 dias
(art. 9º do Regulamento) legitimaria a atuação subsidiária do Ministério Público, por se
tratar de prazo impróprio. Do contrário, permitir que o órgão ministerial possa atuar na
celebração do acordo na instância administrativa, sem comprovar tal omissão, significa
permitir uma competência concorrente que a lei não previu. Por isso, o mínimo que
se pode exigir para que haja legitimação subsidiária do Ministério Público é exigir que
exista ação judicial proposta por este órgão, sem que tenha sido deflagrada investi-
gação preliminar ou processo administrativo de responsabilização em prazo razoável,
e que no curso desta ação seja apresentada proposta pela pessoa jurídica processada.

Não se tem notícia se nos acordos de leniência noticiados pela imprensa (citados
na introdução deste trabalho) tenham sido observados os requisitos supracitados pelo
órgão ministerial (comprovação de omissão da autoridade administrativa e ação judicial
em curso). Por outro lado, o sitio eletrônico da CGU noticia que este vem atuando na
responsabilização administrativa de empresas, inclusive aquelas investigadas pela
Lava Jato.32

Invocando outros motivos, Victor Alexandre El Khoury M. Pereira defende que a


prévia oitiva do parquet seria essencial na celebração dos pactos de leniência, pois a
atuação solitária da CGU poderia resultar na aceitação de suporte fático-probatório
já averiguado, na medida em que o referido órgão de controle interno não teria como
avaliar a novidade das informações oferecidas pelas pessoas jurídicas pactuantes,
em face dos sigilos das investigações promovidas pelo MPF. Este argumento não se
evidencia ser forte suficiente para criar uma regra de obrigatoriedade de manifestação
prévia do Ministério Público não prevista em lei. Sem descurar da importância de

32 No sítio eletrônico http://www.cgu.gov.br/noticias/2017/03/ministerio-da-transparencia-esclarece-


procedimentos-do-acordo-de-leniencia existe a informação de que a CGU (i) já declarou seis empresas
inidôneas no âmbito da Operação “Lava Jato”; (ii) já encerrou as negociações com duas outras empresas,
remetendo os respectivos casos para apuração em PAR, o que pode gerar, em tese, a declaração de
inidoneidade da empresa; (iii) mantém dez PARs em fase de instrução; e  (iv) mantém onze PARs em
aberto aguardando o encerramento da negociação de eventual acordo de leniência. (números de 1º de
março de 2017), acesso em 18.12.10.

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 85


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
se observar o cumprimento dos requisitos temporais e finalísticos implícitos para
aceitação da proposta de acordo (tratados no capítulo I deste trabalho), o legislador
não exigiu que houvesse novidade nos elementos probatórios trazidos pela parte
interessada, mas sim que estas informações garantissem o resultado útil do processo,
isto é, a Administração, ao iniciar a investigação preliminar ou PAR, não tinha conhe-
cimento de tais elementos e nem teria outros meios de obter tais informações se não
fosse através da colaboração. O resultado útil foi exigido em relação ao exercício da
pretensão punitiva no PAR e não em relação outros procedimentos investigatórios (na
instância criminal, por exemplo) que porventura estejam em andamento em sigilo e não
tenham sido concluídos. Além disso, em face do disposto no art. 1833 da LAC, é possível
concluir que o acordo de leniência não possui nenhuma repercussão na esfera penal.

Contudo, outras razões ainda podem ser levantadas para afastar a legitimidade do
Ministério Público na pactuação destes negócios jurídicos. Isso porque, não é possível
admitir, sem previsão legal, que parte estranha ao processo administrativo possa
interferir no exercício do poder sancionador pela Administração. Ou seja, seria um
contrassenso admitir que o MPF possa celebrar acordo para atenuar/isentar sanções
de natureza administrativa (multa e publicação extraordinária de sentença, além das
penalidades do art. 86 a 88 da Lei federal nº 8.666/93) se este órgão externo não é o
legitimado para iniciar ou julgar o processo administrativo de responsabilização – PAR,
e muito menos pode atuar no processo administrativo instaurado para imposição
de penas restritivas ao direito de licitar e contratar com a Administração. Não custa
lembrar que, de certo modo, o Ministério Público valeu-se de tese semelhante a esta ora
suscitada na ADI 5508, quando defendeu que a Polícia Federal não teria competência
para firmar acordos de colaboração premiada justamente por não possuir legitimidade
propor a ação penal pública, conforme noticiado no sítio eletrônico do STF34.

Equiparar o acordo de leniência à colaboração premiada, assim como foi explicado


em relação ao termo de ajustamento de conduta, igualmente é um equívoco, como
explicado alhures na diferenciação destes institutos.

33 “Art. 18.  Na esfera administrativa, a responsabilidade da pessoa jurídica não afasta a possibilidade de
sua responsabilização na esfera judicial”.

34 Disponível em http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=364763, acesso em


18.12.17

86 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


Dilson Dipp, ao prefaciar o livro “O acordo de leniência na Lei Anticorrupção:
histórico, desafios e perspectivas”, da autoria de Valdir Moysés Simão e Marcelo Pontes
Vianna, afastou a competência do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União:
“Com efeito, o legislador não só foi inteligente como arguto ao atribuir a
competência dessa proposição de acordo apenas ao administrador, isto é
ao interessado imediato na composição, pois, pela lógica dos fatos, é quem
tem a melhor e mais apropriada visão dos relacionamentos a considerar e as
vantagens e virtudes a alcançar, de tal sorte que a intervenção de quem tem
provocação fiscalizar o controlar se mostra obviamente incompatível com a
lógica do acordo.”35

Por outro lado, é inegável que a participação do Ministério Público é muito impor-
tante para a efetividade da pactuação firmada, na medida em que o compartilhamento
as informações trazidas pela pessoa jurídica interessada na proposta do acordo de
leniência podem não estar trazendo nenhum elemento probatório novo que possa ser
facilmente obtida pela autoridade administrativa, caso a investigação criminal não
esteja correndo em sigilo.

Nesse sentido, registre-se que, o Tribunal de Contas da União ao proferir o Acórdão


no Processo TC nº 003.166/2015-536, manifestou que a CGU tem competência exclusiva
para celebração do acordo, mas defendeu que o acordo de leniência celebrado pelo
aludido órgão de controle interno deveria se harmonizar com as ações desenvolvidas
em outras instâncias, para alavancar seus resultados de comum interesse, com vistas
a garantir que as informações trazidas pelo celebrante contribuam efetivamente com
as investigações no âmbito do PAR.

3.1.2. Tribunal de Contas da União


Como exposto previamente, o Tribunal de Contas da União não nega que
a autoridade competente para celebrar o acordo seja o Ministro da Transparência
e Controladoria-Geral da União, afastando a legitimidade do Ministério Público,
por ausência de previsão legal. Contudo, a aludida Corte passou a demandar sua

35 Op. cit. p. 10.

36 Acórdão 825/2015-TCU-Plenário, Disponível em https://contas.tcu.gov.br/etcu/


ObterDocumentoSisdoc?seAbrirDocNoBrowser=true&codArqCatalogado=8806374, acesso em 20.12.17

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 87


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
participação na celebração do ajuste sub examine, sem igualmente existir autorização
na Lei federal nº 12.846/13 nesse sentido.

Isso porque, o TCU, invocando o poder regulamentar estabelecido no art. 3º da


Lei federal nº 8.443/92, editou a Instrução Normativa TCU Nº 7437, de 11de fevereiro de
2015. Esta Instrução, em suma, exigiu que os acordos de leniência fossem previamente
submetidos pela CGU ao exame do referido Tribunal antes de serem celebrados, sob
o entendimento de que tal ajuste é sujeito à jurisdição da Corte de Contas quanto à
sua legalidade, legitimidade e economicidade, nos termos do art. 70 da Constituição
Federal.

Da leitura do art. 1º ao 3º da referida Instrução Normativa, observa-se que foi esta-


belecido um rito com cinco etapas, algumas delas antes de ser formalizado o acordo.
Não se trata de um mero acompanhamento da celebração do ajuste, em exercício de
atividade fiscalizadora, visto que foi imposto à CGU o dever de encaminhar documenta-
ções (a exemplo da proposta de acordo apresentada pelo particular, bem como a minuta
do acordo já negociada), em determinados prazos, sob pena de imposição de multa
ao gestor, com fulcro no art. 58 da Lei nº 8.443/92, sendo que cada etapa dependeria
de manifestação do Tribunal, em Sessão Plenária, como condição necessária para a
eficácia de atos subsequentes. Isto é, como requisito de validade do ajuste negociado,
este deveria ser examinado pelo órgão plenário do TCU.

Contudo, ainda sob a vigência da Medida Provisória 703/2016, foi noticiado


que o Supremo Tribunal Federal concedeu liminar para que a CGU não fosse obrigada
a observar a Instrução Normativa em questão, em face da previsão contida no art.
16, §14, da Lei federal nº 12.846/13 (redação dada pela MP 703/2015)38. Ora, se a
supramencionada Medida Provisória previa que a CGU somente deveria enviar as
informações sobre acordo de leniência ao TCU depois de assinado, com muito mais
propriedade é possível argumentar pela ilegalidade da obrigatoriedade de remessa do
acordo de leniência para apreciação prévia pela Corte de Contas como condição de
validade para formalização do ajuste.

A supracitada decisão se mostra acertada, não apenas em face da impossibilidade


de, por ato infra legal (IN 74/2015), criar novas condições para celebração do acordo que

37 Disponível em www.tcu.gov.br/Consultas/Juris/Docs/judoc/IN/20150213/INT2015-074.doc, acesso em


20.12.17

38 Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=310678, acesso em


18.12.17.

88 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


não estão exigidas na LAC, pois outros problemas foram apontados por Valdir Moysés
Simão e Marcelo Pontes Vianna, tais como, a não preservação da imparcialidade dos
Ministros, caso tivessem conhecimento de uma proposta de acordo e esta viesse a
fracassar, bem como questões de ordem operacional, que afetariam a celeridade das
negociações.39

Logo, embora na atual legislação vigente não seja adequado defender a legiti-
midade para atuação prévia do TCU, pelas razões acima expostas, não deixa de ser
producente para que haja participação deste órgão, fiscalizando as negociações e
auxiliando no arbitramento dos prejuízos a serem ressarcidos.

3.2. Benefícios do acordo de leniência nas ações judiciais de


natureza civil ou penal
Outro problema detectado é omissão de benefícios para o leniente que alcançam
outras instâncias, sejam nas ações de natureza civil como as de natureza penal.

Pela redação do art. 18 da LAC, “na esfera administrativa, a responsabilidade da


pessoa jurídica não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial”.
Durante a vigência da Medida Provisória 703/2015, que conferiu nova redação ao
supracitado art. 18, previu-se a possibilidade de afastar a responsabilização quando
isto fosse pactuado no acordo de leniência, observando-se as regras constantes nos
parágrafos 11, 12 e 13 do art. 16 da Lei Anticorrupção em estudo.

Observa-se que a Lei federal nº 12.846/13 não traz nenhuma regra no sentido de
que a realização de acordo de leniência impede o ajuizamento de ação de improbidade
administrativa pelos órgãos legitimados e a imposição das sanções previstas na Lei
federal nº 8.429/92 para o particular (incluindo aqui pessoa jurídica) que concorreu
para a prática de ato ímprobo em conluio com o agente público.

Era possível afirmar que as penalidades da Lei de Improbidade Administrativa


poderiam ser afastadas a partir da celebração do acordo de leniência durante a vigência
da Medida Provisória nº 703/2015, pois o referido ato normativo previu em seu art.
2º a revogação do art. 17, §1º da Lei federal nº 8.429/92, dispositivo que veda a reali-
zação de acordos em ações de improbidade administrativa. Contudo, como caducou
a referida Medida Provisória, mesmo que haja participação a Advocacia Pública na

39 Op. cit. p. 248-249

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 89


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
celebração do acordo sub examine, o Ministério Público continua possuindo legitimi-
dade para propositura de ação civil pública para punir a pessoa jurídica beneficiada por
comportamento ímprobo. Esta situação pode afastar o interesse da na apresentação
de proposta de acordo de leniência e colaboração na investigação, com identificação
de outros infratores.

Da mesma forma, ao contrário do disposto no art. 87 da Lei federal nº 12.529/11,


na qual o cumprimento do acordo de leniência concorrencial extingue a punibilidade da
pessoa jurídica que praticou infração à ordem econômica, mesmo que haja cumprimento
do acordo realizado com fundamento na Lei Anticorrupção, indivíduos que integram os
quadros da pessoa jurídica leniente ainda poderão ser processada criminalmente pelo
Ministério Público por fatos ilícitos que a pessoa jurídica admitiu durante a negociação
do pacto em questão.

3.3. Atuação da Advocacia Geral da União como órgão distinto


da Controladoria Geral da União - Ministério da Transparência
Foi demonstrado anteriormente que, no âmbito do Poder Executivo federal,
de acordo com art. 16, §10, é a Controladoria Geral da União que detém a compe-
tência exclusiva para firmar o pacto de leniência em se tratando de ato lesivo com a
Administração Pública estrangeira ou contra a Administração Pública direta e indireta.

Observa-se que o art. 16 do Capítulo V da Lei federal nº 12.846/13 não faz nenhuma
referência expressa à atuação da Advocacia Pública ao lado da Controladoria Geral da
União – Ministério da Transparência. O Decreto Regulamentador também padece do
mesmo problema, pois somente se refere à Advocacia Pública no art. 9º, §5º, inciso II,
quando trata da remessa do relatório da Comissão Processante para apurar eventuais
ilícitos em outras instâncias.

A participação da AGU apenas foi disciplinada através de portaria interministerial


nº 2.27840, de 15 de dezembro de 2016, o que não parece ser uma boa técnica legislativa,
por se tratar de um ato infra legal. Esta portaria revogou os dispositivos específicos da
portaria nº 910/2015 e previu diversas regras que disciplinaram a atuação da Advocacia
Pública na negociação deste acordo, as quais serão expostas a seguir.

40 Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/portaria-interministerial-acordo.pdf, acesso em 10.10.12.

90 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


Em primeiro lugar, de acordo com a referida portaria, a proposta de acordo
de leniência recebida pelo Secretário-Executivo do Ministério da Transparência,
Fiscalização e Controladoria Geral da União necessariamente deverá ser comunicada
à AGU, a fim de que este órgão jurídico indique um ou mais advogado público para
compor a comissão de negociação (art. 3º, §2º). Uma das atribuições dos advogados
públicos nesta comissão a avaliação da vantagem e procedência da proposta da
empresa em face da possibilidade de propositura de eventuais ações judiciais (art.
3º §4º). Além disso, o relatório a ser elaborado por esta comissão, com informações
sobre a admissão do ilícito, a colaboração efetiva da pessoa jurídica, o compromisso de
compliance, deverá ser encaminhado concomitantemente para apreciação do Ministro
da Transparência, Fiscalização e Controladoria Geral da União e ao Advogado-Geral
da União, pois competem a estas duas autoridades, em conjunto, decidirem sobre a
celebração do acordo ou não (art. 7º).

Nota-se que esta portaria interministerial veio corrigir o grave equívoco da LAC
em não prever expressamente a participação da Advocacia Pública, na medida em que
este ato normativo previu que a AGU poderá assinar termo de adesão aos Memorandos
de Entendimento celebrados com as pessoas jurídicas antes da entrada em vigor da
aludida portaria (art. 14). Esta atuação conjunta entre CGU e AGU resultou na celebração
de acordo de leniência, no valor de R$574 milhões, com a UTC Engenharia, uma das
empresas acusadas de envolvimento nos ilícitos apurados pela operação “Lava Jato”41.

Contudo, a despeito de inexistir disposição expressa na Lei federal nº 12.846/13, é


possível defender que a AGU tem legitimidade para participar da celebração do acordo
de leniência, mesmo quando não existia a portaria interministerial supracitada, pois
a atuação do advogado público nestes ajustes, além de encontrar suporte normativo,
é essencial para garantir a produção dos efeitos almejados pela Administração na
realização deste pacto, como se evidenciará no tópico seguinte.

4. PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA NOS ACORDOS DE LENIÊNCIA


Partindo da premissa da natureza negocial do acordo de leniência, como o próprio
nome do instituto sugere, mesmo que sua finalidade seja obtenção de provas e a

41 Notícia extraída no sítio eletrônico http://www.cgu.gov.br/noticias/2017/07/cgu-e-agu-assinam-acordo-


de-leniencia-com-o-utc-engenharia , acesso em 20.12.17

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 91


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
cessação da conduta ilícita, é possível defender que a atuação da Advocacia Geral
da União na celebração do acordo encontra suporte normativo na Carta Magna e na
Lei Orgânica.

Com efeito, o art. 131 da Constituição Federal atribui à AGU a competência para
consultoria e assessoria jurídica do Poder Executivo, o que se inclui seus órgãos,
como a CGU, razão pela qual existe uma representação da AGU inserida na estrutura
daquele órgão de controle. Ora, se este negócio jurídico envolve uma transação, que
necessariamente demanda análise de questões jurídicas, não é possível que outra
carreira da Administração Pública direta venha atuar no lugar do advogado público na
realização esta tarefa de consultoria e assessoramento.

Além disso, a Lei Complementar nº 73/2003 estabelece no art. 3º, inciso VI, a
competência exclusiva do Advogado-Geral da União para celebrar acordos que envolvam
ações de interesse da União, estando, por conseguinte, incluído o acordo de leniência.
Importa ainda destacar que, consoante o disposto no art. 20 da LCA, compete à AGU,
em legitimação concorrente com o Ministério Público, promover a responsabilização
judicial da pessoa jurídica que praticou o ato lesivo, para aplicação de sanções cíveis.
Portanto, seria temerário excluir a participação da Advocacia Pública nas negociações
feitas pela CGU, na medida que a responsabilização judicial ainda seria em tese cabível.
Afinal, a União, como pessoa jurídica lesada, estaria atuando, através de seus órgãos,
de forma esquizofrênica.

Convém ainda lembrar que também compete à AGU a propositura de ação de


improbidade administrativa quando figura como sujeito passivo do ato ímprobo o
referido ente federativo, com vistas à responsabilização judicial do agente público e da
pessoa jurídica que concorreu para a prática do referido ato, notadamente através da
imposição de pena de multa (que será revertida em favor do ente federativo lesado) e
da determinação do ressarcimento ao erário, algumas das consequências decorrentes
da sentença que julga procedente a referida ação.

É possível também ressaltar a importância da participação da AGU na formalização


destes acordos, mormente porque este órgão auxiliará na avaliação da colaboração
efetiva da celebrante no fornecimento dos elementos probatórios, tarefa já descrita
na portaria interministerial. Como exposto anteriormente, o acordo de leniência,
consoante o disposto no art. 16, inciso I, pressupõe que haja colaboração no sentido
de identificação “dos demais envolvidos na infração”. A despeito de a norma se dirigir
à responsabilização de pessoa jurídica, não parece que o legislador exigiu que esses

92 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


envolvidos sejam necessariamente sociedades civis ou empresariais, sendo possível
defender a possibilidade de que a signatária indique pessoas jurídicas e também que
atuaram na prática de ato de corrupção.

Logo, sendo possível averiguar que existem pessoas físicas envolvidas na prática
do ato lesivo e que estas são servidores públicos federais, a AGU, como órgão de
representação judicial da União, terá interesse que ocorra adequadamente a responsabi-
lização disciplinar, através do devido processo legal. Ademais, eventual ajuizamento de
ações judiciais pelo servidor punido disciplinarmente será defendida por um Advogado
Público. Competirá também à AGU adotar as medidas judiciais para que haja ressar-
cimento de eventuais danos decorrentes do ato ilícito praticado pelo agente público.

Por estes mesmos motivos, a Advocacia Pública também tem interesse na respon-
sabilização de pessoas jurídicas licitantes e contratadas que praticaram infrações
previstas na Lei federal nº 8.666/93, com vistas à imposição de sanções restritivas
do direito de licitar e contratar com a Administração. Afinal, compete à AGU zelar pela
lisura das contratações administrativas, a fim de que a União não venha a celebrar
contratos com pessoas jurídicas que adotaram condutas inidôneas. O órgão jurídico
também poderá avaliar como deve ser atenuada as sanções acima, com fulcro no art.
17 da LAC, na hipótese de verificar que atenderá melhor ao interesse público não impor
penas impeditivas de contratação com a Administração, em face de grandes obras já
iniciadas, por exemplo.

Há quem reconheça a importância sobre a participação da AGU nestes ajustes,


mas que não se faz necessária a participação do titular do referido órgão na assinatura
do acordo, bastando a presença de um advogado público na condução do ajuste42.
De outra banda, destacando o papel institucional da Advocacia Pública na proteção
do interesse público e do patrimônio público, também é possível encontrar posições
defendendo ser fundamental oportunizar o advogado público atuar na celebração do
acordo objeto de estudo.43

Assim, a atuação de advogados públicos no momento da celebração do ajuste,


em parceria com os servidores públicos da CGU, propiciará a formatação de um ajuste
que atenderá a todos os interesses da União acima explicitados, prevenindo, também,

42 Nesse sentido é a opinião de Valdir Moysés Simão e Marcelo Pontes Vianna (Op. cit. p. 193)

43 Nesse sentido é posicionamento defendido por Nilton C. A. Coutinho. (COUTINHO, Nilton C. A. Probidade
e ética na gestão pública: a Lei nº 12.846/2013 e a importância do advogado público no combate à
corrupção. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 15, n. 171, p. 65-10, maio de 2015).

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 93


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
eventuais questionamentos judiciais de atos punitivos aplicados com fundamento nos
elementos trazidos com a celebração do acordo.

5. NECESSIDADE DE ATUAÇÃO COLABORATIVA ENTRE OS


ÓRGÃOS INTERESSADOS NOS RESULTADOS DO ACORDO DE
LENIÊNCIA
Conforme exposto em tópicos anteriores, não existe previsão na LAC que autorize
a participação do Ministério Público e Tribunal de Contas a atuarem na realização do
acordo de leniência na fase administrativa (investigação preliminar ou processo admi-
nistrativo de responsabilização) como condição de validade do ajuste. Por outro lado,
não é possível negar a importância de que estes órgãos atuem de forma colaborativa,
dentro do exercício de suas funções institucionais, com vistas a propiciar efetividade do
ajuste firmado com a pessoa jurídica acusada de ato lesivo, em primazia da segurança
jurídica, como exposto por Benjamir Zymler e Laureano Canabarro Dios:
“Seria salutar, assim, que os diversos órgãos responsáveis pela apuração do
ilícito – Ministério Público, Controladorias, Tribunais de Contas – tivessem
competências legais para celebrarem acordos de leniência em conjunto, de
forma a fornecer a necessária segurança jurídica aos signatários do acordo, e,
por conseguinte, ao estimular a sua celebração, propiciar que sejam desvendadas
práticas de corrupção contra a administração pública”44

No que concerne à atuação do TCU, mesmo não sendo exigível sua prévia
atuação como condição de eficácia deste negócio jurídico, a celebração do acordo de
leniência obviamente não afasta o exercício da sua competência prevista no art. 71 da
Constituição Federal e nem a imposição das sanções previstas na sua Lei Orgânica.
Assim, nada obsta que esta Corte seja informada da instauração da investigação
preliminar ou do PAR, tendo acesso aos documentos da negociação e atue de forma a
colaborar com o êxito do acordo, auxiliando no arbitramento dos prejuízos que deverão
ser ressarcidos pela celebrante, como dito alhures.

Da mesma forma, é importante que exista a faculdade de a autoridade admi-


nistrativa solicitar o acompanhamento das negociações do acordo de leniência por
um representante do Ministério Público, como forma de criar condições para que o

44 Op. cit. p. 159

94 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


ajuste firmado possa gerar efeitos positivos na esfera judicial, considerando que o
órgão ministerial é competente para propor a ação prevista no art. 19 da LAC. Este
acompanhamento também possibilitaria o início de tratativas pelo órgão parquet na
esfera criminal, com as pessoas físicas suspeitas de envolvimento nos atos ilícitos,
porventura interessadas em serem colaboradores na instância penal. O compartilha-
mento de informações não sigilosas colhidas na investigação criminal entre o MP e a
autoridades administrativas seria salutar, para verificar se realmente estaria ocorrendo
uma colaboração efetiva pela pessoa jurídica signatária do ajuste.

Registre-se que já existe um exemplo de intenção de atuação colaborativa entre


a Administração e o Ministério Público, eis que o Conselho Administrativo de Defesa
Econômica e o Grupo de Combate a Cartéis da Procuradoria da República em São
Paulo (PR/MPF/SP) firmaram o Memorando Entendimentos nº 1/201645, relativo à
coordenação institucional, envolvendo termos de compromisso de cessação e acordos
de colaboração em investigações de infrações contra a Ordem Econômica. Com funda-
mento neste memorando, o CADE poderá auxiliar o compromissário na interface com
o Ministério Público, a fim de facilitar a negociação de um acordo de colaboração
premiada.

Não menos importante é a presença de um Advogado Público em todo proce-


dimento de formalização do acordo, atuação que, embora não preceituada de forma
explícita na LAC, decorre das competências institucionais previstas para o aludido
órgão jurídico – realização de transações de interesse da União – bem como da sua
atribuição exclusiva de assessoramento jurídico deste ente federativo e os órgãos do
Poder Executivo, entre os quais inclui a CGU. Ademais, o acordo envolve necessaria-
mente análise de questões jurídicas e repercussões em outras áreas, como ressaltado
anteriormente.

Por isso, mesmo diante da ausência de regras expressas na Lei Anticorrupção


dispondo sobre estas parcerias, nada impede que seja celebrado um convênio ou
termo de cooperação entre os órgãos de controle interno - Ministério da Transparência
e Controladoria-Geral da União, bem como a Advocacia Geral da União – e os de
controle externo – Ministério Público e Tribunais de Contas, para que, cada um destes,
no exercício de suas atribuições institucionais e dentro dos ditames estabelecidos na

45 Disponível em http://www.cade.gov.br/assuntos/programa-de-leniencia/memorando-de-entendimentos-
sg-e-mpfsp_tcc-e-acordos-de-colaboracao_15-03-2016.pdf, acesso em 15.12.17

ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 95


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
LAC, atuem de forma conjunta para o êxito do acordo de leniência, especialmente no
que se refere à repressão de atos lesivos, reparação ao erário e adoção de programas
de integridade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, analisando a Lei federal nº 12.647/13, que estabeleceu a
possibilidade de pessoas jurídicas firmar acordo de leniência, para isenção e atenuação
das sanções cabíveis diante da prática de atos de corrupção, observa-se que esta norma
possui algumas lacunas que podem atrapalhar a realização deste ajuste, implicando
em insegurança jurídica e desestímulo à sua celebração.

Isso porque, no âmbito da Administração Pública federal, foi prevista a compe-


tência exclusiva da CGU para firmar o acordo de leniência para atos lesivos praticados
contra a Administração direta ou indireta, não permitindo, a princípio, que outros órgãos
de controle sejam partes negociadoras deste ajuste, eis que este pacto não se confunde
com termo de ajustamento de conduta e nem com o instituto da colaboração premiada.

Não obstante a omissão da Lei Anticorrupção em relação à atuação da Advocacia


Geral da União, após a apreciação dos dispositivos vigentes (eis que a Medida Provisória
703/2015 caducou) e análise dos requisitos e objetivos do acordo de leniência, foi
demonstrado que o papel da Advocacia Pública na celebração destes ajustes é de
suma importância, sendo o Advogado-Geral da União parte necessária para a sua
formalização.

Entretanto, embora somente o Ministério da Transparência, Fiscalização e


Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União sejam os órgãos legitimados
a celebrar o acordo de leniência, é producente que haja participação do Tribunal de
Contas da União e Ministério Público. O ideal é que a competência destes órgãos de
controle interno (CGU E AGU) e externos (TCU e MPF), como exposto previamente,
estivessem bem delineadas na Lei federal nº 12.846/13, de modo que estes possam
atuar conjuntamente para implementação dos objetivos da LAC, afastando a insegu-
rança jurídica que atualmente existe.

Como registrado no capítulo anterior, nada obsta que seja firmado convênio ou
termo de cooperação entre esses diversos órgãos de controle, com finalidade de
fomentar uma atuação colaborativa dos mesmos na celebração de acordos de leniência,
a fim de que este ajuste alcance seus objetivos, que são a elucidação de práticas

96 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


corruptas contra a Administração (que não seriam facilmente descobertas sem a
colaboração efetiva), a punição de todos os envolvidos (pessoas físicas e jurídicas)
nas instâncias cabíveis, o ressarcimento integral dos danos causados ao erário e a
criação de ambiente que favoreça a prevenção destes atos lesivos, mediante programas
de integridade.

ReferênciaS
COUTINHO, Nilton C. A. Probidade e ética na gestão pública: a Lei nº 12.846/2013 e
a importância do advogado público no combate à corrupção. Fórum Administrativo
– FA, Belo Horizonte, ano 15, n. 171, p. 65-10, maio de 2015
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ACORDO DE LENIÊNCIA: ANÁLISE DAS PRINCIPAIS LACUNAS DA LEI FEDERAL Nº 12.846/13 E DO 97


PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA E DEMAIS ÓRGÃOS DE CONTROLE NESTE ACORDO
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98 Fabiana Maria Farias Santos Barretto


COMPREENDENDO O ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO
ASSÉDIO MORAL: ELEMENTOS BÁSICOS
PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES
PÚBLICAS FEDERAIS
Giovanilza Pessôa1

Resumo
O artigo aborda os elementos básicos, para que os gestores das
organizações públicas federais possam compreender como o tema do
assédio moral é abordado no ordenamento jurídico brasileiro. Para este fim,
apresentamos inicialmente os principais conceitos e os danos provocados
às vítimas. Em seguida, adentramos na legislação vigente e Projetos de Lei.
Conclusivamente, constatamos que a legislação vigente é suficiente para
que tanto o agressor, quanto o gestor que vier a se omitir, poderão vir a ser
enquadrados no atentado aos fundamentos do Estado Democrático de Direito
e à dignidade da pessoa humana; incorrendo em crime de tortura.

INTRODUÇÃO
O assédio moral tem-se configurado como uma ameaça crescente aos trabalha-
dores, tanto na esfera privada, quanto na esfera pública; caracterizando-se mesmo
como um problema de saúde, que leva a danos na vida profissional e pessoal daqueles
que são vítimas deste tipo de ação.

1 Doutora em Integração e Desenvolvimento Econômico pela Universidade Autônoma de Madri, Mestra em


Engenharia da Produção pela UFPE, Administradora, atua como Analista de Gestão na Fiocruz e como
Professora em cursos de Administração de Empresas. E-mail: gil.pessoa@protonmail.com.
PESSÔA, Giovanilza. Compreendendo o ordenamento jurídico brasileiro em relação ao assédio moral: elementos básicos para gestores
das organizações públicas federais. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; SACCHETTO,Thiago Coelho (Orgs.). Advocacia pública em foco.
Volume II. Belo Horizonte: IDDE, 2019. p. 99-138. Disponível em: https://doi.org/10.32445/97885671341094
Mesmo não havendo ainda uma legislação específica sobre o tema, isto na esfera
federal, alguns elementos já se destacam na Constituição Brasileira, no Novo Código
Civil, e na Lei 8.112/ 1990, que estabelece o “Regime jurídico dos servidores públicos
civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais”. O ordenamento
jurídico hoje existente é suficiente para que tanto o agressor, quanto o gestor que vier
a se omitir diante do assédio moral, poderão vir a ser enquadrados no atentado aos
fundamentos do Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana; incor-
rendo em crime de tortura; além de ferir o Regime Jurídico Único do servidor público.

1. CONCEITO E CONFIGURAÇÃO DO ASSÉDIO MORAL


O conceito e a configuração do assédio moral envolvem uma ampla gama de
conhecimentos multidisciplinares, que perpassam pelas áreas jurídica, psicológica,
antropológica, médica, e administração, por exemplo. Além de envolver uma riqueza
de nuances, por fazer referência a questões de difícil dimensionamento, que dependem
tanto da sutileza de quem agride, quanto da sensibilidade de quem é agredido, assim
como da capacidade do gestor ser capaz de realizar uma leitura uniforme, da rede
invisível que estrutura a ação do assediador. Também há diferenças na denominação
utilizada em diferentes países, como podemos conferir a seguir: na França é chamado
de harcèlement moral; na Inglaterra de Bullying, nos Estados Unidos e na Suécia de
Mobbing e na Espanha de Psicoterror laboral ou Acoso moral.

1.1 Principais conceitos e elementos configuradores do


Assédio Moral
O médico alemão, radicado na Suécia, e pesquisador na área de psicologia no
trabalho Heinz Leymann tem sido apontado como o precursor dos estudos sobre o
assédio moral, já no começo dos anos 1980. Leymann2 desenvolveu sua pesquisa
na Suécia, nos países de língua alemã e na Escandinávia, de onde concluiu que pelo
menos 3,5% dos trabalhadores sofreram o que denominou de mobbing, que advém do
verbo inglês to mob, traduzido como tumulto, turba, confusão.
Psychological terror or mobbing in working life involves hostile and unethical

2 LEYMANN, H. The content and development of Mobbing at work. European Journal of Work and
Organizational Psychology, v. 5, n. 2, pp. 165-184, 1996, p. 168.

100 Giovanilza Pessôa


communication which is directed in a systematic manner by one or few
individuals, mainly toward one individual, who, due to mobbing, is pushed into
a helpless and defenceless position, being held there by means of continuing
mobbing activities. These actions occurs on a very frequente basis (statistical
definition: at least once a week) and over a long period of time (statistical at
least six months of duration). Because the high frequency and long duration
of hostile behaviour, this maltreatment results in considerable psychological,
psychosomatic, and social misery).

Já a denominação de assédio moral foi introduzida pela pesquisadora e psiquiatra


francesa Marie-France Hirigoyen3, em 1998, e desde então vem sendo atualizado.
(...) o assédio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva
(gesto, palavra, comportamento, atitude...) que atente, por sua repetição ou
sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma
pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho.

Margarida Barreto e Roberto Heloani4 defendem que o assédio moral


(...) resulta de uma jornada de humilhações, sendo, deste modo, uma forma de
tortura psicológica, que ocorre tanto na exposição direta como indireta aos atos
negativos. Seu pressuposto é a repetição sistemática dos atos que humilham,
constrangem e desqualificam (...) que se transforma em perseguição, isolamento,
negação de comunicação, sobrecarga ou esvaziamento de responsabilidades e
grande dose de sofrimento.

A professora Sônia Mascaro Nascimento5 identifica que o


Assédio moral se caracteriza por ser uma conduta abusiva, de natureza psicológica,
que atenta contra a dignidade psíquica, de forma repetitiva e prolongada, e que
expõe o trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de
causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade psíquica, e que tenha
por efeito excluir a posição do empregado no emprego ou deteriorar o ambiente
de trabalho, durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções.

3 HIRIGOYEN, Marie-France. Mal-estar no trabalho: redefinindo o assédio moral. Tradução Rejane


Janowitzer. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 17.

4 BARRETO, Margarida. HELOANI, Roberto. Violência, saúde e trabalho: a intolerância e o assédio moral
nas relações laborais. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 123, p. 544-561, 2015, p. 12

5 NASCIMENTO, Sônia A. C. Mascaro. Assédio moral no ambiente do trabalho. Revista LTR, São Paulo, v.
68, n. 08, p. 922-930, ago. 2004. p. 922

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 101


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
Para a psicóloga Lis Soboll6 o assédio moral pode ser descrito como “Ataques
repetitivos e intencionais de uma pessoa ou grupo a uma ou mais pessoas, para ator-
mentar, prejudicar e provocar, com efeitos nocivos à saúde”.

Observe-se que todos os autores mencionados destacam a repetição e o tempo


de exposição à agressão, como elemento que caracteriza a situação de assédio moral.
Leymann7 chega mesmo a se utilizar do determinismo estatístico, ao fazer referência
de que a repetição das agressões deve ocorrer por pelo menos seis meses, e ao menos
uma vez na semana. É preciso ainda se destacar as diferentes terminologias, utilizadas
ao redor do mundo, para se referir ao assédio moral, como apresentado na Tabela 1.

Lis Soboll destaca que ainda que disponível um número significativo de pesquisas
sobre assédio moral no mundo, “a comparação dos estudos torna-se difícil, uma vez que
não há padronização conceitual e metodológica”. No Brasil, o maior consenso é pela
denominação de “assédio moral”; o que em realidade pode levar a uma certa confusão
de entendimento, uma vez que outras ações, que não o assédio moral, também podem
levar ao dano moral. Daí a necessidade de se identificar a sistematização ou repetição
das condutas abusivas.

Tabela 1 – Diferentes terminologias utilizadas ao redor do mundo, para denominar


o assédio moral
Terminologia Países onde mais comumente é
utilizado
Mobbing – Vem do verbo inglês to mob, cuja Suécia, Dinamarca, Finlândia, Suíça,
tradução é maltratar, atacar, perseguir, sitiar. Alemanha
Bullying – Geralmente envolve chacotas Inglaterra e outros países de língua inglesa
e isolamento; ou mesmo condutas
abusivas com conotações sexuais ou
agressões físicas; referindo-se mais a
ofensas individuais do que à violência
organizacional.

6 SOBOLL, Lis Andréa Pereira. Assédio moral – organizacional: uma análise da organização do Trabalho.
São Paulo: Casa do Psicólogo®, 2008, p. 29.

7 LEYMANN, H. The content and development of Mobbing at work. European Journal of Work and
Organizational Psychology, v. 5, n. 2, pp. 165-184, 1996.

102 Giovanilza Pessôa


Assédio Moral – Qualquer conduta Brasil
abusiva (gesto, palavra, comportamento,
atitude...) que atente, por sua repetição
ou sistematização, contra a dignidade
ou integridade psíquica ou física de uma
pessoa, ameaçando seu emprego ou
degradando o clima de trabalho (HIRIGOYEN,
2009, p. 17, apud MPF, 2016, p. 7)
Harassment – Tormento ou assédio Estados Unido
Psicoterror; acoso moral Espanha
Harcèlement moral França
Terrorismo psíquico; Assédio moral Portugal
Fonte: Elaboração própria

Na tentativa de facilitar esta identificação, a OMS faz um paralelo entre situações


de conflito, que ela classifica como “saudáveis” e as situações de assédio moral, que
apresentamos na Tabela 2. Outro destaque dado pela OMS8 é que em uma relação
saudável, os conflitos podem ser solucionados, o que já não ocorre nas situações de
assédio moral, que não segue a mesma lógica.

Tabela 2 – Diferenças entre conflitos “saudáveis” e situações de assédio moral


Conflictos “saludables” Situaciones de mobbing
Roles y tareas clara Roles ambiguo
Relaciones colaborativa Comportamiento no colaborador/boicoteo
Objetivos comunes y compartido Falta de previsión
Relaciones interpersonales explícita Relaciones interpersonales ambigua
Organización saludable Organización desordenada
Conflictos y confrontaciones ocasionale Acciones no éticas y de larga duración
Estrategias abiertas y franca Estrategias equivocada
Conflictos y discusiones abierta Acciones encubiertas y negación del
conflicto
Comunicación sincera, honesta Comunicación indirecta y evasiva
Fonte: OMS, 2004.

Além da diferenciação entre conflito e assédio moral é preciso deixar clara a

8 OMS – Organización Mundial de la Salud. Sensibilización sobre el acoso psicológico en el trabajo. Serie
Protección de la salud de los trabajadores. N.04, Geneva, 2004.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 103


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
distinção entre “dano moral” e “assédio moral”. Para o doutrinador Carlos Roberto
Gonçalves9
Dano moral é o que atinge o ofendido como pessoa, não lesando seu patrimônio.
É lesão de bem que integra os direitos da personalidade, como a honra, a
dignidade, a intimidade, a imagem, o bom nome, etc., como se infere dos arts. 1º,
III, e 5º, V e X, da Constituição Federal, e que acarreta ao lesado dor, sofrimento,
tristeza, vexame e humilhação.

Heinz Leymann criou uma ferramenta para calcular a incidência de assédio moral,
através de um questionário, denominado LIPT- Leymann Inventory of Psychological
Terrorization, que descrevia de maneira objetiva 45 atividades que seriam consideradas
como atos de assédio moral. Os autores sobre o assédio moral, onde podemos destacar
SOBOLL e GOSDAL (2009)10, SOBOL (2008)11, apontam entre os critérios de identificação
do assédio moral, a existência de uma interação assimétrica, na qual é estabelecida
uma relação de poder ou força, durante ou pelo processo de assédio, entre agressor
(es) e vítima (s); o caráter processual, no qual se destacam a sistematização e repetição
das atitudes hostis; e a orientação a alvos específicos. É ampla a literatura sobre o
tema. Carisa Bradaschia12 apresenta uma ampla referência de autores, em relação às
táticas empregadas na prática do assédio moral, que pode ser conferida na Tabela 3.

9 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. volume IV: Responsabilidade Civil – 5. ed. – São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 379.

10 SOBOLL, Lis Andrea P. GOSDAL, Thereza Cristina (orgs.). Assédio moral interpessoal e organizacional:
um enfoque interdisciplinar. São Paulo: LTr, 2009.

11 SOBOLL, Lis Andréa Pereira. Assédio moral – organizacional: uma análise da organização do Trabalho.
São Paulo: Casa do Psicólogo®, 2008.

12 BRADASCHIA, Carisa Almeida. Assédio moral no trabalho: a sistematização dos estudos sobre um
campo em construção. Dissertação de Mestrado. Fundação Getúlio Vargas - Escola de Administração de
Empresas de São Paulo. São Paulo, 2007, p. 74.

104 Giovanilza Pessôa


Tabela 3 – Táticas de assédio moral e referência

Fonte: BRADASCHIA, 2007, pág. 74.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 105


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
O assédio moral pode ser identificado de acordo com sua origem como assédio
moral vertical descendente, horizontal ou vertical descendente. O assédio vertical
descendente é aquele praticado por alguém que seja hierarquicamente superior ao
assediado, ou seja, parte de onde se estabelece uma maior relação de poder; ainda que
possa também ocorrer o assédio moral vertical ascendente, em uma menor proporção.
Já o assédio moral horizontal ocorre entre pares de mesmo nível hierárquico, ou seja,
entre colegas de trabalho.

1.2 Assédio moral interpessoal e organizacional


O assédio moral sempre será interpessoal, entretanto este também pode receber
uma caracterização organizacional, ou seja, quando as políticas de gestão contribuem
para iniciar ou alimentar as rotinas de assédio moral praticadas dentro da instituição,
através do abuso diretivo do gestor.

O assédio moral organizacional pode ser identificado a partir de duas óticas:

Quando a organização negligencia os aspectos desencadeadores desse fenômeno,


ou seja, os dirigentes se omitem13;

Quando as estratégias e métodos de gestão reiteram as práticas de assédio moral,


“por meio de pressões, humilhações e constrangimentos, para que sejam alcançados
determinados objetivos empresariais ou institucionais, relativos ao controle do traba-
lhador (aqui incluído o corpo, o comportamento e o tempo de trabalho), ou ao custo
do trabalho, ou ao aumento de produtividade e resultados, ou à exclusão ou prejuízo
de indivíduos ou grupos com fundamentos discriminatórios”14.

Araújo15 resume as duas situações, ao dizer que a empresa permite o assédio,


porque direta ou indiretamente dele se beneficia, ou porque escolhe chefias e líderes
assediadores.

13 FREITAS, Maria Ester de; HELOANI, José Roberto; BARRETO, Margarida. Assédio Moral no Trabalho.
Cengage Learning, São Paulo, 2008, p. 38.

14 GOSDAL, Thereza Cristina et al. Assédio Moral Organizacional: esclarecimentos conceituais e


repercussões. In: GOSDAL, Thereza Cristina; SOBOLL, Lis Andrea Pereira (Orgs.). Assédio Moral
Interpessoal e Organizacional: Um enfoque interdisciplinar. São Paulo: LTr, 2009. Cap. 2, p. 33-41, p. 37.

15 ARAÚJO, Adriane Reis de. Assédio moral organizacional. Revista TRT, Porto Alegre, RS, v. 73, n. 2, p. 203-
214, abr./jun. 2007.

106 Giovanilza Pessôa


Para a professora Terezinha Souza16, o assédio moral é de fato
uma forma de gestão do trabalho, um modo de implementar a lógica neoliberal,
desejada na reestruturação produtiva. (...) como o assédio moral no trabalho
é uma forma de gestão de trabalho, não há um tipo psíquico mais facilmente
identificável como assediador, mas sim, o sistema se utiliza de determinadas
características pessoais, para implementar sua lógica de gestão.

2. DANOS MORAIS E ADOECIMENTOS DECORRENTES DO ASSÉDIO


MORAL
Inicialmente, três pontos necessitam ser esclarecidos: a definição de dano moral;
o fato de que o dano moral pode ser presumido a partir da situação ocorrida; e o fato
de que o dano moral precisa ser aferido, ou seja, a vítima do ônus necessita provar a
ofensa moral. Após estes esclarecimentos, buscaremos identificar neste capítulo os
efeitos na saúde das vítimas de assédio moral.

2.1 Definindo o dano moral


O dano moral é definido, pelo doutrinador Carlos Roberto Gonçalves17, como
sendo aquele que:
atinge o ofendido como pessoa, não lesando seu patrimônio. É lesão de bem
que integra os direitos da personalidade, como a honra, a dignidade, intimidade,
a imagem, o bom nome, etc., como se infere dos art. 1º, III, e 5º, V e X, da
Constituição Federal, e que acarreta ao lesado dor, sofrimento, tristeza, vexame
e humilhação.

É preciso, porém, como destaca o desembargador Sergio Cavalieri Filho18, é preciso


se distinguir o dano moral de um
mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada (...)

16 SOUZA, Terezinha Martins dos Santos; DUCATTI, I. A gênese do assédio: uma análise histórico-social.
Revista Em Pauta, v. 11, p. 151-172, 2013, p. 164.

17 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro - volume IV: Responsabilidade Civil. 5. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010, p. 359.

18 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2010,
p. 78.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 107


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando
ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos (...)
só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação
que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico
do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar.

2.2 Dano moral presumido e não presumido


A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem definido situações nas quais
o dano moral pode ser presumido, ou seja, o prejuízo moral é provado in re ipsa, por
literalmente surgir de um fato ocorrido e inexoravelmente independe de comprovação;
entre as situações tratadas pelo STF podemos citar:

• Inclusão indevida de nome em cadastro de inadimplentes (REsp 1.087.487);


• Atraso de voo por prática de overbooking (REsp 299.532);
• Equívoco em atos administrativos (REsp 608.918);
• Diploma sem reconhecimento (REsp 608.918).
Entretanto, usualmente, para a configuração do dano moral é necessário provar
que a conduta ocorra de forma reiterada ou sistemática, o dano, geralmente a partir
do abalo psicológico ou dano psíquico sofrido pela vítima, e o nexo causal. Não há,
porém, um consenso na doutrina; tanto em relação à necessidade de se comprovar
o dano psíquico, para se concluir que houve o dano moral, como em havendo o dano
psíquico, daí se chegar ao nexo causal.

A corrente defendida por Sônia Mascaro Nascimento19 destaca que a configuração


do assédio moral está relacionada ao dano psíquico emocional; enquanto que a corrente
defendida por Alice Barros20, defende o que define assédio moral é a conduta do
assediante e não o resultado danoso à saúde da vítima. Alice Barros, ao diferenciar o
dano psíquico e o dano moral, defende que:
O primeiro se expressa por meio de uma alteração psicopatológica comprovada,
e o segundo lesa os direitos da personalidade e gera conseqüências

19 NASCIMENTO, Sônia A. C. Mascaro. Assédio moral no ambiente do trabalho. Revista LTR, São Paulo, v.
68, n. 08, p. 922-930, ago. 2004. p. 922

20 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 10ª edição – atualizada por Jessé Cláudio
Franco de Alencar São Paulo, LTr 80, 2016.

108 Giovanilza Pessôa


extrapatrimoniais independentes de prova, pois se presume. O dano moral
independe do dano psíquico.

2.3 Adoecimentos decorrentes do assédio moral


Os efeitos na saúde das vítimas de assédio moral, segundo a OMS21, podem incluir
distúrbios psicopatológicos, psicossomáticos e comportamentais, como apresentado
na Tabela 4.

Tabela 4 – Efeitos na saúde


Psicopatológico Psicosomático Comportamentale
Reacciones de ansiedad Hipertensión arterial Reacciones auto y
hetero-agresiva
Apatía Ataques de asma Trastornos alimenticio
Reacciones de evasión Palpitaciones cardíaca Incremento en el consumo
de drogas y alcohol
Problemas de concentración Enfermedad coronaria Incremento en el consumo
de cigarrillo
Humor depresivo Dermatiti Disfunción sexual
Reacciones de miedo Pérdida de cabello Aislamiento social
Relatos retrospectivo Dolor de cabeza
Hiperreactividad Dolores articulares y
musculare
Inseguridad Pérdida de balance
Insomnio Migraña
Pensamiento introvertido Dolor estomacal
Irritabilidad Úlceras estomacale
Falta de iniciativa Taquicardia
Melancolía
Cambios de humor
Pesadillas recurrente
Fonte: OMS, 2004, p. 16

21 OMS – Organización Mundial de la Salud. Sensibilización sobre el acoso psicológico en el trabajo. Serie
Protección de la salud de los trabajadores. N.04, Geneva, 2004, p.16.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 109


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
A professora Luciany Santos22 destaca que as “conseqüências às vítimas de
assédio moral estão diretamente ligadas com fatores que se relacionam com a inten-
sidade e a duração da agressão”.

Por ocorrer de forma velada, Schiavi23 destaca que muitas vezes “o depoimento
pessoal é o único meio ou principal meio de prova de que dispõe a parte no Processo
do trabalho. Nas hipóteses em que os fatos se passam em locais reservados ou fora
do alcance das testemunhas, como nas de assédio moral e assédio sexual, a palavra
da parte tem grande relevância e é forte elemento de convicção do juiz”.

3. ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO


ASSÉDIO MORAL
Não há no Brasil, uma legislação específica de âmbito federal acerca do assédio
moral. Entretanto, o tema pode ser amplamente identificado no atual ordenamento
jurídico brasileiro, como por exemplo, na Constituição Federal Brasileira, no Código
Civil, no Código Penal, na CLT, além de diversos projetos de Lei, ainda em andamento.

3.1. Constituição Federal Brasileira


O instituto do dano moral ganhou força, no Brasil, com a Constituição Federal de
1998 que consagrou como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, a
24

dignidade da pessoa humana, como consta em seu Art. 1º, inciso III, abaixo transcrito:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana.

22 SANTOS, Luciany Michelli Pereira dos. O dano à integridade psíquica e moral decorrente de assédio moral
e violência perversa nas relações cotidianas. Revista de Ciências Jurídicas/Universidade Estadual de
Maringá, Curso de Mestrado em Direito.vol. 1, nº 1, Maringá, Pr: Sthampa, 2003, p. 143.

23 SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito de Processo do Trabalho. Da Ação Civil Pública na Esfera Trabalhista.
5ª edição, São Paulo: LTR, fevereiro de 2012, p. 632.

24 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.

110 Giovanilza Pessôa


Para melhor se compreender as nuances do conceito de dignidade da pessoa
humana, apresentamos a seguir a argumentação do professor Ingo Sarlet25:
(...) temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva
reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e
consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido,
um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a
lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além
de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos
da própria existência e respeito aos demais seres que integram a rede da vida.

Para o empregador, o assédio moral ocorrido no ambiente de trabalho, poderá


ainda caracterizar a quebra dos direitos e das garantias fundamentais do trabalhador
inseridas na CF/ 198826, levando à violação do direito à dignidade, da intimidade, da
vida privada, e da honra, além da obrigação de indenização à vítima, como pode ser
conferido no Art. 5º da CF/ 1988.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: (EC45/ 2004) (...) V – é assegurado o direito
de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material,
moral ou à imagem; (...) X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra
e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material
ou moral decorrente de sua violação.

Também na CF 198827 encontram-se os seguintes princípios, que irão nortear os


processos relacionados com o assédio moral:

Art. 5º Inciso LIV – Do Devido Processo Legal

Na condução do processo administrativo disciplinar, a comissão processante


deverá conferir especial atenção às formalidades legais na prática dos atos em respeito
ao princípio do devido processo legal, registrando nos autos todas as suas atividades.

25 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 8ª ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2010, p. 70.

26 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.

27 Ibidem.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 111


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
O atendimento das formalidades e o consequente registro dos atos processuais são
imprescindíveis para que se garanta ao acusado o direito de se defender dos fatos a
ele imputados.

Art. 5º Inciso LV – Da Ampla Defesa e do Contraditório

A comissão processante deverá observar o direito à ampla defesa e ao contradi-


tório do acusado, os quais, em linhas gerais, se desdobram nos seguintes direitos: a)
direito de ser informado; b) direito de vista e de acesso à cópia de todas as peças dos
autos; c) direito de manifestação; d) direito de apresentação de provas; e e) direito de
ter seus argumentos analisados.

A Advocacia Geral da União28 destaca que caso não sejam observados o princípio
do devido processo legal e do direito à ampla defesa e contraditório do acusado, o
processo administrativo disciplinar é passível de anulação, total ou parcial.

Art. 37º – Das disposições gerais da Administração Pública

A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos


Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...) (EC no 18/98, EC no 19/98,
EC no 20/98, EC no 34/2001, EC no 41/2003, EC no 42/2003 e EC no 47/2005).

Art. 114º – Dos Tribunais e Juízes do Trabalho

Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: (EC no 20/98 e EC no 45/2004)


(...) VI – as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação
de trabalho.

3.2. Novo Código Civil


O Novo Código Civil29 trouxe a inclusão expressa da figura do dano moral, em seu
Art. 186: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar
direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

A referida lei infraconstitucional prevê ainda sobre o dano moral:

28 BRASIL. Advocacia-Geral da União. Manual Prático de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância


- Corregedoria-Geral da Advocacia da União. 1.ed. Brasília: Advocacia-Geral da União, 2015, p. 13.

29 _______. Código civil e normas correlatas. – 7. ed. – Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições
Técnicas, 2016. 372 p.

112 Giovanilza Pessôa


TÍTULO IX –– Da Responsabilidade Civil – CAPÍTULO I – Da Obrigação de Indenizar

Art. 927

Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado
a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa,


nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Neste sentido, Mazucatto30 destaca que


o empregador será o responsável (direto) por reparar os danos ocasionados
à vítima, enquadrando-se na regra da responsabilidade civil subjetiva, pois
presentes os elementos dano (falha na execução do contrato de trabalho), ato
ilícito e nexo causal com respaldo no disposto nos artigos 186, 187 e 927 do
Código Civil.

Art. 932

São também responsáveis pela reparação civil:

I – Os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua
companhia;

II – O tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas


condições; III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos,
no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;

IV – Os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se


albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores
e educandos;

V – Os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a


concorrente quantia.

CAPÍTULO II – Da Indenização

Art. 944

A indenização mede-se pela extensão do dano.

30 MAZUCATTO, Isadora Gomes. Raízes Jurídicas. Universidade Positivo. Núcleo de Ciências Humanas e
Sociais Aplicadas. Curso de Direito. – v. 9, n. 2 (jul./dez. 2017). Curitiba, 2017, p. 182.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 113


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e
o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização.

3.3. Código Penal Brasileiro


O Código Penal Brasileiro, instituído em 1940, pode vir a sofrer alteração, através
do Projeto de Lei nº 4.742/200131, que tem a pretensão de tipificar a conduta do assédio
moral como crime e a este determinar uma pena compatível; dezesseis anos após a
sua proposição, após receber algumas alterações, a redação final do PL 4742/2001
aguarda há pelo menos um ano, para ser votado na Câmara dos Deputados. A partir
do PL será incluído no Capítulo III, que trata da “Periclitação da vida e da saúde”, no
item de “Maus-tratos” no Art. 136-A, com a atual redação:
Depreciar, de qualquer forma e reiteradamente a imagem ou o desempenho de
servidor público ou empregado, em razão de subordinação hierárquica funcional
ou laboral, sem justa causa, ou tratá-lo com rigor excessivo, colocando em risco
ou afetando sua saúde física ou psíquica.
Pena - detenção de um a dois anos.

Há que se destacar, porém, algumas inconsistências no texto proposto para o


Art. 136-A, como alertam Souza e Quirino32, tanto em relação por considerar apenas a
relação de subordinação hierárquica, entre a vítima e o agressor; como pela manutenção
do termo “sem justa causa”, como se houve uma justa causa, para a prática.

O Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região33 julgou o primeiro caso, no Brasil,


em que se reconhece que o assédio moral nomeado como tortura psicológica, e por
violar a dignidade da pessoa humana leva ao direito à indenização como reparação do
dano moral; a ementa do julgamento pode ser conferida a seguir:
ASSÉDIO MORAL - CONTRATO DE INAÇÃO - INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL - A
tortura psicológica, destinada a golpear a auto-estima do empregado, visando

31 BRASIL. Projeto de Lei Ordinária nº 4.742, de 23 de maio de 2001. Introduz art. 146-A no Código Penal
Brasileiro, Decreto-Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, dispondo sobre o crime de assédio moral no
trabalho.

32 SOUZA, Flávia Lays de; QUIRINO, Israel. Criminalização do assédio moral no ambiente de trabalho. Uma
leitura crítica do Projeto de Lei 4.742/2001. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n.
4501, 28 out. 2015.

33 TRT - 17ª Região - RO 1315.2000.00.17.00.1 - Ac. 2276/2001 - Rel. Juíza Sônia das Dores Dionízio -
20/08/02, na Revista LTr 66-10/1237).

114 Giovanilza Pessôa


forçar sua demissão ou apressar sua dispensa através de métodos que resultem
em sobrecarregar o empregado de tarefas inúteis, sonegar-lhe informações
e fingir que não o vê, resultam em assédio moral, cujo efeito é o direito à
indenização por dano moral, porque ultrapassa o âmbito profissional, eis que
minam a saúde física e mental da vítima e corrói a sua auto-estima. No caso
dos autos, o assédio foi além, porque a empresa transformou o contrato de
atividade em contrato de inação, quebrando o caráter sinalagmático do contrato
de trabalho, e por conseqüência, descumprindo a sua principal obrigação que é
a de fornecer trabalho, fonte de dignidade do empregado.

3.4. Lei de combate a tortura


Na seara penal, o assédio moral pode ainda ser tipificado como crime de tortura;
que se encontra definido na Lei 9.455/ 199734:
(...) II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de
violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma
de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Pena - reclusão, de dois a oito anos.
§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida
de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato
não previsto em lei ou não resultante de medida legal.
§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de
evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.
§ 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de
reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis
anos.
§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:
I - se o crime é cometido por agente público;
II - se o crime é cometido contra criança, gestante, deficiente e adolescente;
II – se o crime é cometido contra criança, gestante, portador de deficiência,
adolescente ou maior de 60 (sessenta) anos.

34 BRASIL. Lei Nº 9.455, de 7 de abril de 1997. Define os crimes de tortura e dá outras providências.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 115


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
3.5. Lei de Improbidade Administrativa
A Lei 8429/199235, mais conhecida como a Lei de Improbidade Administrativa,
dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriqueci-
mento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração
pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Em sua Seção III, a
Lei 8429/2012 trata dos atos de improbidade administrativa que atentam contra os
princípios da administração pública.
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os
princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os
deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições,
e notadamente:
I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele
previsto, na regra de competência;
II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;
III - revelar fato ou circunstância de que tem ciência em razão das atribuições e
que deva permanecer em segredo;
IV - negar publicidade aos atos oficiais;
V - frustrar a licitude de concurso público;
VI - deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo;
VII - revelar ou permitir que chegue ao conhecimento de terceiro, antes da
respectiva divulgação oficial, teor de medida política ou econômica capaz de
afetar o preço de mercadoria, bem ou serviço;
VIII - descumprir as normas relativas à celebração, fiscalização e aprovação de
contas de parcerias firmadas pela administração pública com entidades privadas;
IX - deixar de cumprir a exigência de requisitos de acessibilidade previstos na
legislação;
X - transferir recurso a entidade privada, em razão da prestação de serviços na
área de saúde sem a prévia celebração de contrato, convênio ou instrumento
congênere, nos termos do parágrafo único do art. 24 da Lei nº 8.080, de 19 de
setembro de 1990.

Quanto à aplicabilidade da Lei de Improbidade Administrativa, o Superior Tribunal

35 BRASIL. Lei Nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos
nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração
pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências.

116 Giovanilza Pessôa


de Justiça36 assentou que o art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa também
abrange atos que configurem a prática do assédio moral, por se enquadrarem em
“atos atentatórios aos princípios da administração pública”, pois “violam os
deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”,
em razão do evidente abuso de poder, desvio de finalidade e malferimento à
impessoalidade, ao agir deliberadamente em prejuízo de alguém.

O Superior Tribunal de Justiça37 destaca que a Lei de Improbidade Administrativa


protege contra o prejuízo público, não tratando de reparação ao dano moral causado
à vítima alvo do assédio moral; este será reparado em outra esfera. Ainda assim, a
relatora deixa clara a gravidade do dano causado à vítima:
O assédio moral, mais do que apenas provocações no local de trabalho –
sarcasmo, crítica, zombaria e trote –, é uma campanha de terror psicológico,
com o objetivo de fazer da vítima uma pessoa rejeitada. O indivíduo-alvo é
submetido a difamação, abuso verbal, comportamento agressivo e tratamento
frio e impessoal.

3.6. Regime Jurídico Único - RJU


A Lei 8.11238 dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da
União, das autarquias e das fundações públicas federais ou Regime Jurídico Único
(RJ), e foi promulgada em 11 de dezembro de 1990; tendo sofrido diversas alterações
entre 2012 e 2015.

As determinações relativas ao regime disciplinar ao qual estão submetidos os


servidores públicos vinculados ao RJU, e que estão apresentadas no Título IV, e deste
destacaremos principalmente as proibições e sanções administrativas, que possam
ser relacionadas à averiguação da prática do assédio moral.

Em relação aos deveres do servidor, o Art. 116 estabelece:


(...) II - ser leal às instituições a que servir; III - observar as normas legais
e regulamentares; (...) IX - manter conduta compatível com a moralidade

36 STJ. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1286466 RS 2011/0058560-5- Inteiro Teor, 2011.

37 Ibidem.

38 BRASIL. Lei Nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos
civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 117


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
administrativa; (...) XI - tratar com urbanidade as pessoas; - XII - representar
contra ilegalidade, omissão ou abuso de poder.

Parágrafo único.  A representação de que trata o inciso XII será encaminhada


pela via hierárquica e apreciada pela autoridade superior àquela contra a qual é
formulada, assegurando-se ao representando ampla defesa.

Já em relação às proibições aplicáveis aos servidores públicos federais, que estão


apresentadas no Art. 117 da Lei 8.112, contempla: (...) V - promover manifestação de
apreço ou desapreço no recinto da repartição.

O Art. 127 apresenta as penalidades disciplinares apontadas pela Lei 8.112:

I - Advertência;

II - Suspensão;

III - demissão;

IV - Cassação de aposentadoria ou disponibilidade;

V - Destituição de cargo em comissão;

VI - Destituição de função comissionada.

O Art. 132 determina que a demissão do servidor público federal nos seguintes
casos: (...) IV - improbidade administrativa; (...) XIII - transgressão dos incisos IX a
XVI do art. 117.

O servidor público federal, ao qual for imputada qualquer irregularidade, terá pleno
direito ao contraditório e à ampla defesa, princípios esculpidos no inciso LV do Art. 5º
da CF/88, e reforçados nos artigos 143 e 156 da Lei 8.112.
Art. 143. A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é
obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante sindicância ou processo
administrativo disciplinar, assegurada ao acusado ampla defesa.
Art. 156. É assegurado ao servidor o direito de acompanhar o processo
pessoalmente ou por intermédio de procurador, arrolar e reinquirir testemunhas,
produzir provas e contraprovas e formular quesitos, quando se tratar de prova
pericial.
§ 1º O presidente da comissão poderá denegar pedidos considerados

118 Giovanilza Pessôa


impertinentes, meramente protelatórios, ou de nenhum interesse para o
esclarecimento dos fatos.
§ 2º Será indeferido o pedido de prova pericial, quando a comprovação do fato
independer de conhecimento especial de perito.

É preciso chamar atenção para o § 2º do Art. 156, naqueles casos em que se


defende que o assédio moral necessita ser comprovado e não presumido, em relação
ao dano psíquico emocional, onde se faz necessário o conhecimento especial de perito,
no caso, de um médico psiquiatra.

O Projeto de Lei Federal nº 4.591/ 200139, que se encontra atualmente arquivado,


tem como finalidade acrescentar às proibições aplicáveis aos servidores públicos
federais o Art. 117-A:
Art. 117-A. É proibido aos servidores públicos praticarem assédio moral
contra seus subordinados, estando estes sujeitos às seguintes penalidades
disciplinares:
I. Advertência;
II. Suspensão;
III. Destituição de cargo em comissão;
IV. Destituição de função comissionada;
V. Demissão.
§ 1º. Para fins do disposto neste artigo considera-se assédio moral todo tipo de
ação, gesto ou palavra que atinja, pela repetição, a autoestima e a segurança
de um indivíduo, fazendo-o duvidar de si e de sua competência, implicando
em dano ao ambiente de trabalho, à evolução profissional ou à estabilidade
física, emocional e funcional do servidor incluindo, dentre outras: marcar tarefas
com prazos impossíveis; passar alguém de uma área de responsabilidade para
funções triviais; tomar crédito de ideias de outros; ignorar ou excluir um servidor
só se dirigindo a ele através de terceiros; sonegar informações necessárias
à elaboração de trabalhos de forma insistente; espalhar rumores maliciosos;
criticar com persistência; segregar fisicamente o servidor, confinando-o em local
inadequado, isolado ou insalubre; subestimar esforços.
§ 2º. Os procedimentos administrativos para apuração do disposto neste artigo

39 BRASIL. Projeto de Lei Ordinária nº 4.591, de 2001. Dispõe sobre a aplicação de penalidades à prática
de “assédio moral” por parte de servidores públicos da União, das autarquias e das fundações públicas
federais a seus subordinados, alterando a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 119


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
se iniciarão por provocação da parte ofendida ou pela autoridade que tiver
conhecimento da infração.
§ 3º. Fica assegurado ao servidor denunciado por cometer assédio moral o direito
de ampla defesa das acusações que lhe forem imputadas, sob pena de nulidade.
§ 4º. A penalidade a ser aplicada será decidida em processo administrativo, de
forma progressiva, considerada a reincidência e a gravidade da ação.
§ 5º. O servidor que praticar assédio moral deverá ser notificado por escrito da
penalidade a qual será submetido.

O PL 4.591/ 2001 prevê ainda, a alteração do inciso XIII do Art. 132 para: XIII -
transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117 e reincidência de prática de assédio moral
contra subordinado referida no art. 117-A.

Bem como a alteração do Art. 137 para: Art. 137-A demissão ou a destituição de
cargo em comissão, por infringência do art. 117, incisos IX e XI e art. 117-A, incom-
patibiliza o ex-servidor para nova investidura em cargo público federal pelo prazo de
5 (cinco) anos.

Como o PL nº 4.591/ 2001 foi arquivado em janeiro de 2007, pelo atual Regimento
Interno da Câmara dos Deputados40, não cabe mais desarquivamento. Sendo necessária
assim a proposição de um novo Projeto de Lei.

3.7. Código de Ética Profissional do Serviço Público


O Decreto Nº 1.17141, de 22 de junho de 1994 aprova o Código de Ética Profissional
do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal. Sendo vedado ao servidor público
(...) f) permitir que perseguições, simpatias, antipatias, caprichos, paixões
ou interesses de ordem pessoal interfiram no trato com o público, com os
jurisdicionados administrativos ou com colegas hierarquicamente superiores
ou inferiores.

40 BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Regimento interno da Câmara dos Deputados
[recurso eletrônico]: aprovado pela Resolução nº 17, de 1989, e alterado até a Resolução nº 20, de 2016.
– 18. ed. – Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2017.

41 ______. Decreto Nº 1.171, de 22 de junho de 1994. Aprova o Código de Ética Profissional do Servidor
Público Civil do Poder Executivo Federal. Seção III – XV.

120 Giovanilza Pessôa


3.8. Consolidação das Leis Trabalhista
Integram as equipes sob o comando do gestor público, pessoas com distintos
vínculos trabalhistas, e não somente aqueles que respondem ao Regime Jurídico Único.
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello42, agentes públicos são
Quem quer que desempenhe funções estatais, enquanto as exercita, é um agente
público. Por isto, a noção abarca tanto o Chefe do poder Executivo (em quaisquer
das esferas) como os senadores, deputados e vereadores, os ocupantes de
cargos ou empregos públicos da Administração direta dos três Poderes, os
servidores das autarquias, das fundações governamentais, das empresas
públicas e sociedades de economia mista nas distintas órbitas de governo, os
concessionários e permissionários do serviço público, os delegados de função
ou ofício público, os requisitados, os contratados sob locação civil de serviços
e os gestores de negócios públicos.

Neste contexto é preciso visitar também a Consolidação das Leis Trabalhistas


(CLT), sancionada pelo Decreto-Lei nº 5.452/ 194343. Para o empregado, o assédio moral
ocorrido no ambiente de trabalho constitui justa causa para rescisão do contrato de
trabalho pelo empregador, como estabelecido no Art. 482:
a) ato de improbidade;
b) incontinência de conduta ou mau procedimento;
(...)
j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer
pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima
defesa, própria ou de outrem;
k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o
empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria
ou de outrem.

42 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003,
p. 227.

43 BRASIL. Decreto-Lei N.º 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 121


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
Enquanto que para o empregador, o assédio moral ocorrido no ambiente de trabalho
poderá caracterizar o inadimplemento contratual, como estabelecido no Art. 483:
Art. 483. O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a
devida indenização quando:
a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários
aos bons costumes, ou alheios ao contrato;
b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor
excessivo;
c) correr perigo manifesto de mal considerável;
d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato;
e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família,
ato lesivo da honra e boa fama;
f) o empregador ou seus prepostos ofenderem-no fisicamente, salvo em caso
de legítima defesa, própria ou de outrem;
g) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma
a afetar sensivelmente a importância dos salários.
§ 1º. O empregado poderá suspender a prestação dos serviços ou rescindir o
contrato, quando tiver de desempenhar obrigações legais, incompatíveis com
a continuação do serviço.
§ 2º. No caso de morte do empregador constituído em empresa individual, é
facultado ao empregado rescindir o contrato de trabalho.
§ 3º. Nas hipóteses das letras d e g, poderá o empregado pleitear a rescisão
de seu contrato de trabalho e o pagamento das respectivas indenizações,
permanecendo ou não no serviço até final decisão do processo.

A Lei Nº 13.46744, de 13 de julho de 2017, altera a CLT, “a fim de adequar a legis-


lação às novas relações de trabalho” (BRASIL, 2017); entre as alterações destacamos
que em relação à reparação por danos morais, a nova lei impõe limitações ao valor a ser
pleiteado pelo trabalhador, estabelecendo um teto para alguns pedidos de indenização
(Art. 223- G). Importante também se faz destacar que em relação às possíveis ações
na justiça, o trabalhador será obrigado a comparecer às audiências e, caso perca a

44 BRASIL. Lei Nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974,
8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas
relações de trabalho.

122 Giovanilza Pessôa


ação, arcar com as custas do processo. A CLT estabelece ainda em seu Título II-A,
as questões relacionadas com o dano extrapatrimonial, ou seja, o dano moral, e que
podem ser conferidas no Art, 223-A ao Art. 223- G (Quadro 1).

Mazucatto45 destaca que


tratando-se o agressor de um empregado hierarquicamente superior ao agredido,
a conduta ilícita do primeiro resultará na rescisão do seu contrato de trabalho,
fundada em justa causa, conforme conteúdo do artigo 482, alíneas ‘b’ e ‘j’ da CLT.

Por fim, faz-se necessário identificar a possibilidade da aplicação da CLT aos


servidores estatutários, nos casos em que haja lacuna jurídica, uma vez que a EC nº
45/04 ao art. 114, I da CF/8846, declara expressamente que:
A Justiça do Trabalho é a competente para processar e julgar as ações oriundas
da relação de trabalho, onde se figura os entes de direito público externo e da
administração pública direta e indireta dos entes federativos (União, Estados,
Municípios e Distrito Federal).

Entretanto, no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de


Inconstitucionalidade (ADI) 3.395-6/DF47, o Ministro Nelson Jobim suspendeu
(...) ad referendum, toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do art. 114
da CF, na redação dada pela EC 45/2004, que inclua, na competência da Justiça
do Trabalho, a “... apreciação ... de causas que ... sejam instauradas entre o
Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem
estatutária ou de caráter jurídico-administrativo.

Quadro 1 – Determinações da CLT para o dano extrapatrimonial


Art. 223-A. Aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial
decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título.
Art. 223-B. Causa dano de natureza extrapatrimonial a ação ou omissão que
ofenda a esfera moral ou existencial da pessoa física ou jurídica, as quais são as
titulares exclusivas do direito à reparação.

45 MAZUCATTO, Isadora Gomes. Raízes Jurídicas. Universidade Positivo. Núcleo de Ciências Humanas e
Sociais Aplicadas. Curso de Direito. – v. 9, n. 2 (jul./dez. 2017). Curitiba, 2017, p. 182.

46 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.

47 STF. Supremo Tribunal Federal. ADI 3395 MC. Rel. Min. Cezar Peluso. Decisão proferida pelo Min. Nelson
Jobim. 27 jan. 2005, un DJ 4 fev. 2005.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 123


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
Art. 223-C. A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima,
a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente
tutelados inerentes à pessoa física.
Art. 223-D. A imagem, a marca, o nome, o segredo empresarial e o sigilo da
correspondência são bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa jurídica.
Art. 223-E. São responsáveis pelo dano extrapatrimonial todos os que tenham
colaborado para a ofensa ao bem jurídico tutelado, na proporção da ação ou da
omissão.
Art. 223-F. A reparação por danos extrapatrimoniais pode ser pedida cumulati-
vamente com a indenização por danos materiais decorrentes do mesmo ato lesivo.
§ 1o Se houver cumulação de pedidos, o juízo, ao proferir a decisão, discriminará
os valores das indenizações a título de danos patrimoniais e das reparações por
danos de natureza extrapatrimonial.
§ 2o A composição das perdas e danos, assim compreendidos os lucros cessantes
e os danos emergentes, não interfere na avaliação dos danos extrapatrimoniais.
Art. 223-G. Ao apreciar o pedido, o juízo considerará:
I - a natureza do bem jurídico tutelado;
II - a intensidade do sofrimento ou da humilhação;
III - a possibilidade de superação física ou psicológica;
IV - os reflexos pessoais e sociais da ação ou da omissão;
V - a extensão e a duração dos efeitos da ofensa;
VI - as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo moral;
VII - o grau de dolo ou culpa;
VIII - a ocorrência de retratação espontânea;
IX - o esforço efetivo para minimizar a ofensa;
X - o perdão, tácito ou expresso;
XI - a situação social e econômica das partes envolvidas;
XII - o grau de publicidade da ofensa.
§ 1o Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a
cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação:
I - ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido;
II - ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do
ofendido;

124 Giovanilza Pessôa


III - ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do
ofendido;
IV - ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contra-
tual do ofendido.
§ 2º Se o ofendido for pessoa jurídica, a indenização será fixada com obser-
vância dos mesmos parâmetros estabelecidos no § 1o deste artigo, mas em relação
ao salário contratual do ofensor.
§ 3o Na reincidência entre partes idênticas, o juízo poderá elevar ao dobro o
valor da indenização.
Fonte: Elaboração própria, a partir da CLT.

Tendo sido a decisão referendada pelo STF, que ainda completa


No mesmo sentido, diversos precedentes da Excelsa Suprema Corte, que têm
enfatizado a incompetência desta Justiça Especializada mesmo com respeito
a contratações irregulares, sem concurso público, ou com alegado suporte no
art. 37, IX, da CF. Todavia, diversa é a hipótese de vínculo de natureza jurídica
contratual trabalhista, em que a Administração Pública municipal submete
servidores públicos concursados às normas da CLT, inserindo-se na competência
material da Justiça do Trabalho, nos termos do art. 114, I da CF. Agravo de
instrumento desprovido.

Por outro lado, já quando se trata do direito à greve, previsto no Art. 37, inciso
VII da CF/88, que estabelece que o mesmo “será exercido nos termos e nos limites
definidos em lei específica”; o Supremo Tribunal Federal determinou que, enquanto não
for editada a lei específica regulamentando a greve no serviço público, deve ser aplicada
a Lei nº 7.783/89, que dispõe sobre o exercício do direito de greve na iniciativa privada

. Se a mesma lógica houvesse sido utilizada em relação aos danos extrapatrimo-


niais, o servidor público estatutário poderia se beneficiar da CLT.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 125


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
3.9. Lei que veda empréstimos do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES a empresas que
tenham prática de assédio moral
Na esfera federal, destaca-se a Lei nº 11.948, de 16 de junho de 2009, que veda
empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a
empresas que tenham prática de assédio moral, conforme abaixo:
Art. 4º Fica vedada a concessão ou renovação de quaisquer empréstimos ou
financiamentos pelo BNDES a empresas da iniciativa privada cujos dirigentes
sejam condenados por assédio moral ou sexual, racismo, trabalho infantil,
trabalho escravo ou crime contra o meio ambiente.

3.10. Segurança do Trabalho


Considera-se acidente do trabalho aquele decorrente do exercício do trabalho a
serviço da empresa ou decorrente do trabalho prestado pelos segurados especiais,
provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou
redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho.

Em seu Art. 20, a Lei n. 8.213/1991 admite como formas de acidente do trabalho
a doença do trabalho, sendo esta adquirida ou desencadeada em função de condições
especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente”. Para
que seja reconhecido como acidente do trabalho, a perícia médica deverá constatar
ocorrência de nexo técnico epidemiológico entre o trabalho e o agravo elencado na
Classificação Internacional de Doenças (CID); devendo o acidente do trabalho ser
comunicado à Previdência Social até o primeiro dia útil seguinte ao da ocorrência e,
em caso de morte, de imediato, à autoridade competente, sob pena de multa variável
entre o limite mínimo e o limite máximo do salário de contribuição, sucessivamente
aumentada nas reincidências, aplicada e cobrada pela Previdência Social.

Caso necessário, a vítima de assédio moral deverá procurar apoio psicológico ou


psiquiátrico na área de saúde ocupacional da instituição; onde poderá ser realizada
perícia médica para emissão de Comunicação de Acidente do Trabalho no Serviço
Público (CAT-SP): “Comunicação de Acidente do Trabalho. É uma comunicação um
pouco diferente, em que vai se falar das humilhações sofridas, das opressões do
ambiente de trabalho”.

126 Giovanilza Pessôa


Em relação ao servidor público, a Lei 8.112/ 1990 dispõe em sua Seção VI, sobre
a licença por acidente em serviço, como pode ser conferido no Quadro 2.

Quadro 2 – Acidente em serviço

Art. 212. Configura acidente em serviço o dano físico ou mental sofrido


pelo servidor, que se relacione, mediata ou imediatamente, com as atribuições
do cargo exercido.

Art. 213. O servidor acidentado em serviço que necessite de tratamento


especializado poderá ser tratado em instituição privada, à conta de recursos
públicos.

Art. 214. A prova do acidente será feita no prazo de 10 (dez) dias, prorro-
gável quando as circunstâncias o exigirem.

Fonte: Lei 8.112/ 199048

A “Comunicação de Acidente em Serviço do Servidor Público – CAT/SP” é um


documento padronizado utilizado pelos órgãos da Administração Pública Federal, para
informar o acidente em serviço ocorrido com o servidor regido pela Lei nº 8.112, de
1990. O Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão apresenta no Manual
de Perícia Oficial em Saúde do Servidor Público Federal49 determina que
O nexo causal entre quadro clínico e a atividade é parte indissociável do
diagnóstico pericial de acidentes em serviço ou de trabalho e se fundamenta em
uma anamnese ocupacional completa, em dados epidemiológicos, em relatórios
das condições de trabalho e em visitas aos ambientes de trabalho e, ainda,
uma avaliação técnica das circunstâncias em que ocorreu o infortúnio, que
pode contar com equipes de vigilância de ambiente e processos de trabalho,
permitindo a correlação do quadro clínico com a atividade.

48 Ibidem.

49 BRASIL. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Manual de perícia oficial em saúde do


servidor público federal. 3.ed. / Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, Secretaria de
Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho no Serviço Público. Brasília: MP, 2017, p. 22.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 127


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
A Resolução nº 1.488, de 1988, do Conselho Federal de Medicina50, que Dispõe
de normas específicas para médicos que atendam ao trabalhador, traz em seu Art. 2º,
importantes delineamentos para o estabelecimento do nexo causal e o exercício do
trabalho, no que diz respeito aos aspectos relacionados com a saúde do trabalhador,
medicina e segurança do trabalho.
Art. 2º - Para o estabelecimento do nexo causal entre os transtornos de saúde e
as atividades do trabalhador, além do exame clínico (físico e mental) e os exames
complementares, quando necessários, deve o médico considerar:

I - a história clínica e ocupacional, decisiva em qualquer diagnóstico e/ou inves-


tigação de nexo causal;

II - o estudo do local de trabalho;

III - o estudo da organização do trabalho;

IV - os dados epidemiológicos;

V - a literatura atualizada;

VI - a ocorrência de quadro clínico ou subclínico em trabalhador exposto a condi-


ções agressivas;

VII - a identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos, estres-


santes e outros;

VIII - o depoimento e a experiência dos trabalhadores;

IX - os conhecimentos e as práticas de outras disciplinas e de seus profissionais,


sejam ou não da área da saúde.

3.11. Projetos de Lei e outras proposições sobre o Assédio


Moral que tramitam na Câmara dos Deputado
Diversos Projetos de Lei, assim como outras proposições, que abordam o Assédio
Moral estão em andamento na Câmara dos Deputados; no total são cinquenta e dois

50 CFM. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM n. 1.488/98. Dispõe de normas específicas
para médicos que atendam o trabalhador.

128 Giovanilza Pessôa


Projetos de Lei, entre 2001 e 2018, sendo que destes 33% estão arquivados51; conside-
rando as demais proposições, que incluem substitutivos, pareceres, emendas, inclusão
de proposição, entre outros, duzentos e dezenove proposições tramitam na Câmara
dos Deputados, como pode ser conferido na Tabela 5. No Anexo A pode ser conferido
o total das proposições, com suas respectivas ementas.

Tabela 5 – Projetos de Lei e outras proposições sobre o Assédio Moral que


tramitam na Câmara dos Deputados (2001 a 2018)
Tipo de proposição %
Requerimentos diversos (RQ) 28,31%
Projeto de Lei (PL) 23,74%
Parecer do Relator sobre o PL (PRL) 15,98%
Requerimento de informações (RIC) 4,57%
Emenda Constitucional (EMC) 4,57%
Inclusão de proposição (INC) 4,57%
Emenda de Relator (EMR) 3,65%
Substitutivo (SBT) 3,20%
Voto em separado ao PL (VTS) 2,28%
Relatório (REL) 2,28%
Proposta de Fiscalização e Controle (PFC) 1,83%
Emenda ao substitutivo (ESB) 1,37%
Emenda ao PL (EMP) 1,37%
Sugestão (SUG) 0,91%
Relatório prévio (RLP) 0,91%
Complementação de voto (CVO) 0,46%
Fonte: Elaboração própria a partir da Câmara dos Deputados, 2018.

51 Os arquivamentos ocorrem no âmbito do Art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e que
estabelece: “Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as proposições que no seu decurso tenham sido
submetidas à deliberação da Câmara e ainda se encontrem em tramitação, bem como as que abram crédito
suplementar, com pareceres ou sem eles, salvo as: I – com pareceres favoráveis de todas as Comissões;
II – já aprovadas em turno único, em primeiro ou segundo turno; III – que tenham tramitado pelo Senado,
ou dele originárias; IV – de iniciativa popular; V – de iniciativa de outro Poder ou do Procurador-Geral da
República. Parágrafo único. A proposição poderá ser desarquivada mediante requerimento do Autor, ou
Autores, dentro dos primeiros cento e oitenta dias da primeira sessão legislativa ordinária da legislatura
subsequente, retomando a tramitação desde o estágio em que se encontrava”.

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 129


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
4. INSTÂNCIAS DE CONTROLE INTERNAS E EXTERNAS NA
PREVENÇÃO E COMBATE AO ASSÉDIO MORAL NA ESFERA
PÚBLICA FEDERAL
As instâncias internas e a efetiva governança organizacional, que permita o
combate ao assédio moral, varia de instituição para instituição; e depende na prática
da cultura organizacional; já externamente, em relação ao setor público, as instâncias
de controle encontram-se melhor definidas, embora culturalmente não haja o estímulo
para que sejam acionadas pelas vítimas do assédio.

4.1 Instâncias de Controle interna


O trabalhador vítima de assédio moral no trabalho pode procurar as seguintes
instâncias institucionais, dependendo da estrutura de cada organização:

Ouvidoria

Recursos Humano

Núcleos de Saúde do Trabalhador

Sindicato

Comissões de ética

Corregedoria

Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA)

O empregador deve buscar uma avaliação dos riscos profissionais existentes na


empresa e traçar uma política de precaução a atos contrários à dignidade do trabalhador.

4.2 Instâncias de Controle externa


Entre as instâncias de controle externas que podem atuar na prevenção e no
combate ao assédio moral na esfera pública federal, podemos destacar o Ministério
da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União, e o Ministério Público
da União.

Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União

130 Giovanilza Pessôa


O Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU) está estru-
turado em quatro unidades finalísticas, que atuam de forma articulada, em ações
organizadas entre si: Secretaria de Transparência e Prevenção da Corrupção, Secretaria
Federal de Controle Interno (SFC), Corregedoria-Geral da União e Ouvidoria-Geral da
União.

A Corregedoria-Geral da União (CRG) atua no combate à impunidade na


Administração Pública Federal, promovendo, coordenando e acompanhando a execução
de ações disciplinares que visem à apuração de responsabilidade administrativa de
servidores públicos. Atua também capacitando servidores para composição de comis-
sões disciplinares; realizando seminários com o objetivo de discutir e disseminar
as melhores práticas relativas do exercício do Direito Disciplinar; e fortalecendo as
unidades componentes do Sistema de Correição do Poder Executivo Federal.

A Ouvidoria-Geral da União (OGU) exerce a supervisão técnica das unidades de


ouvidoria do Poder Executivo Federal. Com esse propósito orienta a atuação das
unidades de ouvidoria dos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal; examina
manifestações referentes à prestação de serviços públicos; propõe a adoção de
medidas para a correção e a prevenção de falhas e omissões dos responsáveis pela
inadequada prestação do serviço público; e contribui com a disseminação das formas
de participação popular no acompanhamento e fiscalização da prestação dos serviços
públicos.

Contato CGU – Ouvidoria


https://sistema.ouvidorias.gov.br/publico/Manifestacao/RegistrarManifestacao.aspx
Ministério Público

O Ministério Público abrange: o Ministério Público da União (MPU) – que


compreende a) O Ministério Público Federal (MPF); b) O Ministério Público do Trabalho
(MPT); c) O Ministério Público Militar (MPM); d) O Ministério Público do Distrito Federal
e Territórios (MPDFT); e os Ministérios Públicos dos Estados (MPE).

São atribuições do Ministério Público da União:

a) defesa da ordem jurídica, ou seja, o Ministério Público deve zelar pela obser-
vância e pelo cumprimento da lei;

b) defesa do patrimônio nacional, do patrimônio público e social, do patrimônio


cultural, do meio ambiente, dos direitos e interesses da coletividade, especialmente
das comunidades indígenas, da família, da criança, do adolescente e do idoso;

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 131


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
c) defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis;

d) controle externo da atividade policial.

Ministério Público
Ministério Público Federal: http://www.mpf.mp.br/
Ministério Público do Trabalho: http://www.pgt.mpt.mpbr/ouvidoria/

O Ministério Público do Trabalho atua tanto na esfera judicial quanto na extraju-


dicial. A atuação extrajudicial do Ministério Público do Trabalho vem crescendo mais
a cada dia, por sua celeridade. Ao identificar situações de assédio moral institucio-
nalizado em empresas e organizações pode impor um Termo de Ajuste de Conduta
(TAC), que consiste em uma relação extrajudicial para alteração de práticas nocivas
no ambiente de trabalho. Fernanda Barbosa52 destaca, porém, que
Cumpre ressaltar que na solução de litígios por meios extrajudiciais não há
obrigatoriedade de ajuste de conduta, a adesão é espontânea. (...) o que significa
que em caso de resistência, será acionado o Judiciário para a resolução da
questão e imposição da observância da legislação.

O Ministério Público tendo identificado um indício de irregularidade, ou mesmo


recebido uma denúncia, em relação aos direitos ou interesses difusos, coletivos, sociais
ou individuais homogêneos dos trabalhadores poderá instaurar um Inquérito Civil
trabalhista. Observe-se que o Ministério Público não trata da defesa de interesse
situado apenas na esfera individual.

No caso do assédio moral, Raimundo Melo53 aponta que o Inquérito Civil nada
mais é do que
(...) um procedimento administrativo e inquisitorial, informal, a cargo do
Ministério Público do trabalho, destinado a investigar sobre ilegalidade do ato
denunciado, a colher elementos de convicção para ajuizamento da Ação Civil
Pública ou de qualquer outra medida judicial e, convencido o órgão condutor,
da irregularidade denunciada, a tomar do inquirido termo de ajustamento de
conduta às disposições legais.

52 BARBOSA, Fernanda Pereira. A legitimidade do Ministério Público do Trabalho para atuar na defesa de
direitos individuais homogêneos por meio da ação civil pública. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVII, n. 121,
fev 2014.

53 MELO, Raimundo Simão de. Ação Civil Pública na Justiça do Trabalho, 5 ª edição, São Paulo: LTR, 2014,
p. 60.

132 Giovanilza Pessôa


Os Inquéritos Civis acerca do Assédio Moral podem ser aprovados, arquivados
ou seguir com a coleta de provas necessárias para se instaurar o Termo de Ajuste de
Conduta ou Ação Civil Pública.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sem dúvida, todo assédio moral causa dano moral à vítima, mas nem todo dano
moral é causado por situações de assédio moral. Da mesma maneira, ainda que as
situações de assédio moral estejam recheadas de conflitos, não há que se considerar
que a toda situação de conflito, corresponda um caso de assédio moral. Logo, não
há que se confundir eventuais ocorrências, ainda que desagradáveis e que venham a
causar dano moral, com a nefasta prática do assédio moral, que pode mesmo vir a ser
considerada como prática de tortura psicológica.

Pela manutenção da dignidade da pessoa humana, não há que se tolerar no


espaço público o assédio moral, independente do vínculo que tenha o indivíduo com a
instituição, seja servidor ou celetista. Faz-se necessário que a instituição se posicione
em defesa do banimento de todo tipo de assédio no serviço público. Entendendo que
para combater é preciso conhecer e desestigmatizar, o tema necessita possuir espaço
cativo na agenda institucional, formal e informal, estabelecendo-se como um dos seus
valores declarados e praticados.

Entendendo-se que a maior defesa do assediado é a denúncia, a Ouvidoria é


instância a ser fortalecida, como canal de acolhimento e tratamento deste tipo de
denúncia, dada a sua característica iminentemente imaterial, onde em meio a um
turbilhão de emoções, em um momento extremamente frágil, o enfrentamento exige da
vítima, a caracterização das ações do assediador e o evidenciamento dos danos. Os
efeitos do assédio devem, para além das questões disciplinares, ser tratado como uma
questão de saúde mental, e suas consequências psicossomáticas, e como tal requer
técnica específica para na sua identificação e um acolhimento humanizado às vítimas.

Institucionalmente, além de políticas efetivas de combate e enfrentamento ao


assédio moral, faz-se necessário desenvolver mecanismos institucionais com a capa-
cidade de verificar situações de risco. Afinal, a instituição, através dos seus gestores,
é responsável pelas práticas indevidas dos seus colaboradores, inclusive em relação
à reparação pelo dano moral sofrido pela vítima do assédio.

Dezenas de Projetos de Lei, relacionados ao Assédio Moral, estão em tramitação

COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 133


ELEMENTOS BÁSICOS PARA GESTORES DAS ORGANIZAÇÕES PÚBLICAS FEDERAIS
na Câmara dos Deputados, alguns já arquivados, por não entrarem na pauta, o que
só denota a falta de interesse político com o tema. De toda maneira, ainda que não
tenhamos no ordenamento jurídico brasileiro uma Lei específica em relação ao assédio
moral, não nos faltam referências, seja na Constituição Federal, no Código Penal, no
Código Civil, assim como na legislação trabalhista e naquelas específicas ao Regime
Jurídico Único dos servidores públicos.

A Legislação vigente e a jurisprudência demonstram entendimento suficiente


para que o Assédio Moral possa ser classificado como: atentado aos fundamentos do
Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana (CF/ 1988); improbidade
administrativa (Lei 8429/1992); crime de tortura (Lei 9.455/ 1997 e TRT - 17ª Região
– Recurso Ordinário 1315.2000.00.17.00.1/ 2001); fere o Código de Ética Profissional
do Serviço Público, e o Regime Jurídico Único do servidor público, principalmente em
seu Art. 116, em relação a conduta incompatível com a moralidade administrativa e
abuso de poder; bem como fere a CLT, em relação aos funcionários Celetistas que
venham a ser vítimas do assédio moral, no serviço público, colocando a empresa
responsável pela terceirização também como corresponsável, uma vez que esta deve
ter um preposto atuante na empresa na entidade pública.

Além de recorrer às instâncias internas, a exemplo da Ouvidoria, do Núcleo de


Saúde e da Corregedoria, assim que identificar indícios de que está sendo vítima de
assédio moral, par ao caso daquelas instituições públicas que ainda não têm maturidade
no tema, convém que o colaborador recorra ao Ministério Público Federal, para que
este possa acompanhar o andamento da Sindicância, e na sequência, do Processo
Administrativo Disciplinar , e a depender do quadro encontrado, estabelecer um Termo
de Ajustamento de Conduta.

ReferênciaS
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para atuar na defesa de direitos individuais homogêneos por meio da ação civil
pública. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVII, n. 121, fev 2014. Disponível em: <http://
ambito-juridico.com.br/site/index.php/%3C?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_
id=14270&revista_caderno=25>. Acesso em 03/08/18. 

134 Giovanilza Pessôa


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COMPREENDENDO O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO EM RELAÇÃO AO ASSÉDIO MORAL: 135


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138 Giovanilza Pessôa


OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS
NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O
CASO DA OUC “NOVA BH”
Luísa Miranda Scalzo1

Resumo
Atualmente o orçamento dos entes federados encontra-se em uma
situação de verdadeiro engessamento. Boa parte dos gastos públicos são
gastos obrigatórios ou vinculados, restando aos municípios pouca margem
de investimento. Analisa-se o Estatuto das Cidades e, em especial, as
Operações Urbanas Consorciadas como um mecanismo de arrecadação
e investimento em infraestrutura urbana em um ambiente de restrições
financeiras e orçamentárias, suas limitações espaciais e prescrições legais
no âmbito do Município de Belo Horizonte.

INTRODUÇÃO
A Administração Pública Municipal deve ter como premissa a indução ao desenvol-
vimento urbano, de modo a maximizar a utilização de espaços urbanos e minimizar as
mazelas urbanas, mirando sempre na melhoria da qualidade de vida do cidadão. Desse
modo, ação do Estado sobre as cidades e seu espaço deve ocorrer, primordialmente,
mediante as transformações geopolíticas e econômicas pautadas no planejamento
urbano.

1 Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) no Governo do Estado de Minas


Gerais e advogada. Possui graduação em Administração Pública pela escola Professor Paulo Neves de
Carvalho (2011) e em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2013), pós-graduada
em Gestão Estratégica do Setor Público pela Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho
(2013).
SCALZO, Luísa Miranda. Operações urbanas consorciadas no município de Belo Horizonte: o caso da OUC “NOVA BH”. In: PEREIRA,
Rodolfo Viana; SACCHETTO,Thiago Coelho (Orgs.). Advocacia pública em foco. Volume II. Belo Horizonte: IDDE, 2019. p. 139-166.
Disponível em: https://doi.org/10.32445/97885671341095
O planejamento não diz respeito a decisões futuras, mas às implicações futuras de
decisões presentes. O planejamento é programar o curso de uma ação com os meios
que se têm para atingir um objetivo.2

Contudo, o processo de urbanização dos grandes centros urbanos nem sempre


foram pautados por diretrizes de planejamento, provocando inúmeros problemas
latentes. Muitas vezes a atuação estatal ainda agravou tais problemas, agravando as
diferenças regionais e privilegiando apenas parte da sociedade.

Tal constatação tem se agravado desde a crise fiscal que atingiu os Estados desde
o início da década de 80, que, após terem suas funções expandidas pelo intervencio-
nismo típico do Welfare State, não conseguiam financiar seus déficits nem ampliar sua
capacidade de arrecadação, sob ameaça de uma revolta dos contribuintes, colocando
em dúvida o consenso social que sustentava o Welfare State. Tal situação reforçou a
“ingovernabilidade”, expressão que sintetiza a ideia de que o modelo estatal até então
em vigência, ancorado nas premissas burocráticas weberianas, não respondia mais
aos anseios sociais, sendo percebido como lento e excessivamente apegado a normas,
ou seja, como ineficiente.3 Os governos passaram a ter de conviver com a escassez
de recursos e déficits crescentes e repensar seu papel, reduzindo quantitativamente
a sua intervenção.

Nesse contexto foi promulgado o Estatuto das Cidades, Lei Federal N. 10.257/2001,
que representa uma das mais importantes legislações sobre política de desenvolvimento
urbanos. Inova ao introduzir no ordenamento jurídico vários instrumentos de políticas
urbanas para combater os impactos negativos provocadas pela urbanização. Dentre
eles, destacam-se as operações urbanas consorciadas, as quais além de possibilitarem
a requalificação urbana regulada pelo Estado e, ao mesmo tempo, não oneram o Poder
Público.

Tal instrumento surge como alternativa à falta de planejamento urbano, além de


fortalecer o papel do de modo que ao limitar o papel do município enquanto regulador
da Operação Urbana Consorciada, até por que, sem a regulação Estatal, as falhas,
típicas do mercado, tendem a ser mais evidentes.

2 DRUCKER, Peter. A Introdução a Administração. São Paulo. Editora Pioneira. 1984.

3 ABRUCIO, Fernando Luiz. O impacto do modelo gerencial na Administração pública: um breve estudo
sobre a experiência internacional. Brasília: ENAP, 1997 (Cadernos ENAP, nº 10).

140
Nesta linha Karlin Olbertz4 nota que, diante da ausência de controle e planejamento
públicos, ou ainda, do déficit de regulação pública da organização espacial, o mercado
vem agindo livremente nesse espaço. Assim, a operação urbana consorciada pode
traduzir-se em alternativa regulatória e de urbanificação.

Assim, as Operações Urbanas Consorciadas possibilitam aos municípios investir


em infraestrutura urbana mesmo diante de situações de verdadeiro engessamento, já
que grande parte dos gastos públicos são obrigatórios ou vinculados, restando aos
municípios pouca margem de investimento. A falta de capacidade de investimento
privilegia a formação desordenada da cidade, ditada pelas falhas e imperfeições do
mercado.

No presente estudo pretende-se analisar as Operação Urbana Consorciada Nova


BH, ocorrida no município de Belo Horizonte enquanto um potencial mecanismo de
arrecadação, investimento em infraestrutura urbana, redesenho da malha urbana e de
redução de desigualdades em um ambiente de restrições financeiras, bem como suas
limitações e prescrições legais.

Os estudos para realização do presente trabalho foram baseados em ampla


pesquisa e análise documental, fundamentadas nos documentos arquivados pela
Prefeitura de Belo Horizonte e que estão disponíveis ao acesso público. A análise
envolveu também pesquisa em jornais, livros nos campos do Direito, da Arquitetura e
do Urbanismo, reportagens, teses e dissertações.

1. URBANISMO E DIREITO URBANISTICO


A compreensão de um instituto jurídico demanda, invariavelmente o contexto no
qual ele se insere. Por tal razão passaremos brevemente pelos conceitos de urbanismo
e direito urbanístico.

4 OLBERTZ, Karlin. Operação urbana consorciada. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) -
Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. p.1.

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA 141
BH”
1.1. Urbanismo
O urbanismo é um ramo do conhecimento que se minifesta como técnica, política
e ciência, tendo surgido como uma resposta aos problemas urbanos surgidos com a
urbanização5.

Juridicamente, no Brasil, um centro urbano somente adquire o status de cidade


quando seu território se transforma em município. Cidade, portanto, é um núcleo
urbano qualificado por um conjunto de sistema político-administrativo, econômico,
não-agrícola, familiar e simbólico como sede de governo municipal, qualquer que seja
sua população.

Segundo Karlin Olbertz6 “No Brasil, a doutrina reconhece a importância do urba-


nismo como fenômeno próprio do final da década de 1920, período em que se iniciam
os debates a respeito do tema(...)”, já que “Até aquele momento o destino ou o modelo
das cidades ou dos espaços habitáveis não era foco de significativa preocupação
estatal, e as intervenções públicas eram limitadas a pequenas localizações.

A preocupação tardia do poder público pode ser explicada pelo fato de que até
então a população brasileira era predominantemente rural. Apenas com o agravamento
do fenômeno do êxodo rural é que o urbanismo foi inserido no centro das discussões,
assumindo caráter de função pública.

Karlin Olbertz7 nota que a participação de particulares na função urbanística é


possível, desde que norteados por diretrizes do poder público, sendo a competência
pública decorrente da “insuficiência da atuação da livre iniciativa provada para dar
conta de organizar satisfatoriamente as localizações nos espaços habitáveis, de modo
a tornar-lhes aptos a cumprir suas funções de moradia, segurança, abastecimento,
higiene, saneamento, lazer, circulação e trabalho”.

Isso porquê os bens públicos ficam à disposição de uma coletividade sem que
sua produção seja financiada por todo integrante beneficiado, A produção de tais bens
não recebe incentivos econômicos à iniciativa privada e o mercado autorregulado não

5 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 6. ed. rev. e atual. São Paulo. Malheiros, 2010. p.27.

6 OLBERTZ, Karlin. Operação urbana consorciada. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) -
Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. p.5

7 OLBERTZ, Karlin. Operação urbana consorciada. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) -
Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. p.6.

142 Luísa Miranda Scalzo


produziria esses bens em quantidade e qualidade suficientes para o atendimento da
demanda.

1.2. Direito Urbanístico


Segundo José Afonso da Silva8, o direito urbanístico no Brasil forma-se de um
conjunto de normas que compreende normas gerais, de competência legislativa da
União, hoje consubstanciadas no Estatuto da Cidade; normas suplementares de cada
Estado de pouca expressão; normas municipais, de caráter suplementar – agora, por
força do Estatuto da Cidade, com mais unidade substancial.

Karlin Ollbetz9 conceitua o direito urbanístico como o ramo do direito público que
impõe a disciplina físico social dos espaços habitáveis.

2. OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS

2.1 Operações Urbana


Operação urbana é toda atuação urbanística que envolve alteração da realidade
urbana com vistas a obter nova configuração da área constituída10.

Assim, operações urbanas são todas e quaisquer espécies de intervenções orga-


nizadas em maior ou menor grau dependendo do tipo de operação urbana, que visem
a alteração do espaço urbano obtendo uma nova configuração da área afetada.

2.2. Conceito legal de Operação Urbana Consorciada


A Operação Urbana Consorciada é um instrumento de política urbana previsto no
art. 32 do Estatuto das Cidades, Lei Federal 10.275/2001, que assim dispõe:

8 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 6. ed. rev. e atual. São Paulo. Malheiros, 2010.

9 OLBERTZ, Karlin. Operação urbana consorciada. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) -
Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.p.10.

10 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 6. ed. rev. e atual. São Paulo. Malheiros, 2010.
p.361.

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA 143
BH”
Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área
para aplicação de operações consorciadas.

§ 1o Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e


medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprie-
tários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de
alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a
valorização ambiental.

§ 2o Poderão ser previstas nas operações urbanas consorciadas, entre outras


medidas:

I – a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação


do solo e subsolo, bem como alterações das normas edilícias, considerado o impacto
ambiental delas decorrente;

II – a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em


desacordo com a legislação vigente.

III - a concessão de incentivos a operações urbanas que utilizam tecnologias


visando a redução de impactos ambientais, e que comprovem a utilização, nas constru-
ções e uso de edificações urbanas, de tecnologias que reduzam os impactos ambientais
e economizem recursos naturais, especificadas as modalidades de design e de obras
a serem contempladas. (Incluído pela Lei nº 12.836, de 2013)

Citado instrumento já foi utilizado em inúmeras cidades no Brasil e no Mundo,


com destaque para os projetos mais conhecidos do público em geral: 22@ Barcelona,
Puerto Madero (Buenos Aires) e, mais recentemente, o Porto Maravilha (Rio de Janeiro).

É possível avultar deste conceito três aspectos centrais que devem envolver uma
operação urbana consorciada: a intervenção urbanística; o planejamento realizado pelo
Poder Público, e a ordenação e a parceria público-privada.

2.3. Do Planejamento de uma OUC


Antes de qualquer análise, necessário se faz representar graficamente as etapas
previas à implantação de uma Operação Urbana Consorciada.

A OUC Nova BH, em verdade, sequer saiu da etapa de planejamento de uma política
pública, devido à decisões e interferências dos mais diversos atores.

144 Luísa Miranda Scalzo


Vejamos abaixo:

1. ESTATUTO DAS CIDADES

Incluiu na legislação brasileira o instrumento de planejamento urbano


“Operação Urbana Consorciada”

2. LEI MUNICIPAL 9.959/2010

Incluiu na legislação do município de Belo Horizonte a possibilidade de utili-


zação de “Operação Urbana Consorciada” em qualquer de Belo Horizonte (art. 69),
bem como demarcou algumas áreas pré-identificadas como passiveis de sofrerem
tal forma de reordenação de planejamento urbanístico.

3. PODER EXECUTIVO MUNICIPAL DE BH

Delimitar a área de OUC, conhecê-la, realizar estudos, audiências públicas,


apresentações ao COMPUR, dentre outros, a fim de verificar a existência ou não de
viabilidade de uma OUC

Elaborar e enviar ao Legislativo, o Projeto de Lei Específica da OUC contendo,


no mínimo, exigências legais:

I - a definição da área a ser atingida;

II - o programa básico de ocupação da área;

III - o programa de atendimento econômico e social para a população direta-


mente afetada pela Operação;

IV - as finalidades da Operação;

V - o estudo prévio de impacto de vizinhança;

VI - a contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes


e investidores privados, nos termos do disposto no inciso VI do art. 33 da Lei nº
10.257/01;

VII - a forma de controle da Operação, obrigatoriamente compartilhado com


representação da sociedade civil.

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA 145
BH”
4. PODER LEGISLATIVO MUNICIPAL

Analisar, alterar e aprovar a Lei Específica

5. PODER EXECUTIVO MUNICIPAL

Iniciar a implementação da OUC na área delimitada pela Lei Específica, por


meio de vendas de CEPAC, realização de obras de requalificação, dentre outras.

Como se sabe as políticas públicas são uma resposta do Estado às necessidades


do coletivo que, por meio do desenvolvimento de ações e programas, objetivam o
bem-comum.

Basicamente, o ciclo de uma política pública é composto por quatro fases:


(1) percepção de problemas que culminam na formação da agenda decisória; (2)
formulação de programas e projetos; (3) implementação das políticas delineadas; (4)
monitoramento e avaliação das ações planejadas.

A formação da agenda decisória ocorre com o diagnóstico de um conjunto de


problemas encarados como relevantes pelos atores envolvidos com a política. Esta
agenda pode ser concretizada, dentre outros, por meio de um programa de governo,
um plano estratégico, ou instrumento similar. No Caso das Operações Urbanas
Consorciadas, tal fase está representada nas etapas 1 e 2.

Definidos os problemas que serão contemplados com soluções por meio de


ações públicas, procede-se à formulação dos programas e projetos que orientarão a
execução das atividades. Dependendo do grau de complexidade do problema, tal fase
será marcada em menor ou maior grau por situações inesperadas ou não previstas,
que demandam atuação dos atores a fim de que a etapa posterior, de implementação,
seja bem-sucedida.

Nesse sentido, José Antônio Puppim de Oliveira11 enfatiza que temos que reco-
nhecer as limitações do planejamento como ferramenta capaz de prever e controlar o
futuro, da ideia do “visionário” do líder iluminado. Temos que aceitar o papel do plane-
jamento como construtor e articulador de relações na sociedade ou na organização
que busca seu bem comum de maneira ética, justa e responsável. Infelizmente, não
temos o poder de controlar e prever o futuro; nem nós nem ninguém.

11 OLIVEIRA, José Antônio Puppim de. Desafios do planejamento em políticas públicas: diferentes visões
e práticas. Rio de Janeiro. 2005. p.284.

146 Luísa Miranda Scalzo


Leonardo Secchi12 separa a fase de formulação de programas em dois estágios:
(a) o da formulação de alternativas e (b) o da tomada de decisão. Importante ressaltar
que nem todas as externalidades de uma política são claramente previstas no momento
em que as alternativas são definidas e explicitadas.

Nessa fase, conforme se verificará, o Poder Executivo, em parceria com demais


atores, pode (e deve) realizar estudos a fim de identificar as melhores técnicas, estra-
tégias, impactos, identificar áreas que serão afetadas pela política, dentre outros.
Contudo, é possível que se depare com situações não previstas ou não esperadas.

“Estudo” é um esforço para se compreender algo que se desconhece, ou que se tem


pouco conhecimento. Basicamente, um estudo compreende as etapas de diagnóstico,
análise e conclusão. A conclusão de um estudo pode indicar, por exemplo, que a ideia
inicial a respeito do que seria a solução inicial para um projeto é absolutamente diversa
da melhor solução, ou que tal projeto é inviável.

Ora, uma intervenção da monta de uma Operação Urbana Consorciada não nasce
de um dia para o outro, demanda inúmeros estudos, que indicarão inúmeros fatores,
inclusive até que ponto o poder regulador do Estado deve atuar e permitir ao mercado
influenciar, a fim de que se atinja um estado de equilíbrio. Assim entende Karlin Olbertz13:

Ainda que o mercado necessite de regulação estatal é preciso reconhecer os


defeitos de excesso de regulação, que em geral e para os espaços habitáveis e se
reduzem por exigências demasiadas e o consequente encarecimento e elitização dos
espaços.

A OUC “Nova BH” nunca saiu dessa etapa de formulação dos programas e projetos,
desse modo, nunca deixou de ser apenas uma intenção do formulador de políticas
públicas deixando o campo das ideias e passando a ser implementada

A implementação da política é a concretização da solução dos problemas que


foram definidos na agenda decisória, problemas que deverão ser tratados a partir dos
critérios definidos na etapa anterior, de planejamento.

12 SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: Conceitos, Esquemas de Análise, Casos Práticos. São Paulo:
Cengage Learning, 2011.

13 OLBERTZ, Karlin. Operação urbana consorciada. 2011. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) -
Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. p.6.

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA 147
BH”
Cumpre ressaltar que as etapas que compõem o ciclo de uma política pública não
dependem exclusivamente da burocracia técnica do ente público, envolve inúmeros
atores que possuem pontos de conflito (issues) e demais poderes estatais, com inte-
resses diversos e que muitas vezes podem demandar mais do que esperado para que
todos os atores entendam que nenhum deles saiu completamente prejudicado.

Os problemas urbanísticos, por envolverem questões das mais diversas ordens,


são eminentemente complexos. Diante disso, a etapa de planejamento de políticas
urbanísticas é naturalmente mais suscetível ao surgimento de situações inesperadas
ou não previstas pelo corpo técnico da burocracia municipal. Nesta etapa, os problemas
identificados devem ser solucionados com a formulação de alternativas, seguidas pela
tomada de decisão. A adequação de tal etapa aos problemas não previstos é crucial
para que a etapa posterior, de implementação, seja bem-sucedida.

Na etapa de planejamento de uma Operação Urbana Consorciada, após a conclusão


dos estudos técnicos, com a exata delimitação do que será a política, o Executivo deve
apresentar ao Legislativo o Projeto de Lei Específica da OUC (art. 69 §1º do PD), que
conterá, no mínimo:
Art. 69. (...)
§ 1º - Cada Operação Urbana Consorciada será instituída por lei específica, de
acordo com o disposto nos arts. 32 a 34 da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho
de 2001, - Estatuto da Cidade. (...)
§ 4º - A lei específica que aprovar ou regulamentar a Operação Urbana
Consorciada deverá conter, no mínimo:
I - a definição da área a ser atingida;
II - o programa básico de ocupação da área;
III - o programa de atendimento econômico e social para a população diretamente
afetada pela Operação;
IV - as finalidades da Operação;
V - o estudo prévio de impacto de vizinhança;
VI - a contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e
investidores privados, nos termos do disposto no inciso VI do art. 33 da Lei nº
10.257/01;
VII - a forma de controle da Operação, obrigatoriamente compartilhado com
representação da sociedade civil.
§ 5º - Os recursos obtidos pelo Poder Público Municipal na forma do inciso

148 Luísa Miranda Scalzo


VI do § 4º deste artigo serão aplicados, exclusivamente, na própria Operação
Urbana Consorciada.
§ 6º - A partir da aprovação da lei específica de que trata o § 1º do art. 69 desta
Lei, são nulas as licenças e as autorizações a cargo do Poder Público Municipal
expedidas em desacordo com o plano de Operação Urbana Consorciada,
conforme previsto na Lei nº 10.257/01.
§ 7º - O Executivo poderá utilizar, na área objeto da Operação Urbana Consorciada,
mediante previsão na respectiva lei específica, os instrumentos previstos nos
arts. 32 a 34 da Lei nº 10.257/01, bem como a Outorga Onerosa do Direito
de Construir, de acordo com as características de cada Operação Urbana
Consorciada.

Somente após a aprovação do Projeto de Lei Específica pelo Legislativo é que o


Executivo pode iniciar a implementação da política.

A OUC “Nova BH” não teve Projeto de Lei Específica aprovado, logo a Administração
Pública não iniciou as fases relativas à implementação, monitoramento e avaliação da
política. Ou seja, sequer chegou a ser uma Operação Urbana Consorciada implementável.

Tal afirmação, contudo, não significa que os estudos da OUC foram feitos na
carência de autorização legislativa. Tal autorização foi incluída no Plano Diretor do
Município de Belo Horizonte em 2010, portanto antes do início dos estudos.

2.3.1. Da regulamentação das OUC no Município de Belo


Horizonte
A Operação Urbana Consorciada é tratada no Plano Diretor de Belo Horizonte14
por seu art. 69, por meio de definição análoga ao conceito determinado no parágrafo
1° do artigo 32 do Estatuto da Cidade para o instrumento:
Art. 69 - Operação Urbana Consorciada é o conjunto de intervenções e
medidas coordenadas pelo Poder Executivo Municipal, com a participação dos
proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o
objetivo de alcançar transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais
e valorização ambiental, podendo ocorrer em qualquer área do Município.
§ 1º - Cada Operação Urbana Consorciada será instituída por lei específica, de

14 O atual Plano Diretor de Belo Horizonte já era aquele vigente à época do início dos estudos da OUC, não
sofrendo quaisquer alterações no que tange a regulamentação das OUC até a presente data.

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA 149
BH”
acordo com o disposto nos arts. 32 a 34 da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho
de 2001, - Estatuto da Cidade (...)

O Plano Diretor de Belo Horizonte, seguindo orientação do Estatuto das Cidades,


determinou que as Operações Urbanas Consorciadas podem ocorrer em qualquer área
do Município.

Segundo Lívia Monteiro15: “O Plano Diretor do Município de Belo Horizonte,


conforme deliberação da III Conferência Municipal de Política Urbana, passou a conter
(...) as operações urbanas consorciadas.”, que visam “intervenções mais estruturantes,
de maior amplitude e que abarcam maior gama de participantes e tipos de parcerias”.

O Plano Diretor, Lei Municipal 7.165/1996, alterado pela Lei Municipal 9.959/2010,
ainda vigente, delimitou algumas áreas a fim de estabelecer regras transitórias, limi-
tando a valorização da terra nos principais setores de crescimento da cidade para onde
está prevista a aplicação do instrumento:
Art. 69-A - Sem prejuízo de outras que venham a ser instituídas por lei específica,
ficam delimitadas as seguintes áreas para operações urbanas consorciadas, nas
quais, até a aprovação da lei de que trata o § 1º do art. 69 desta Lei, prevalecerão
os parâmetros e as condições estabelecidos nesta Lei:
I - as Áreas em Reestruturação no Vetor Norte de Belo Horizonte;
II - o entorno de Corredores Viários Prioritários;
III - o entorno de Corredores de Transporte Coletivo Prioritários;
IV - as Áreas Centrais, indicadas como preferenciais para Operação Urbana nos
termos do Plano de Reabilitação do Hipercentro;
V - as áreas localizadas em um raio de 600 m (seiscentos metros) das estações
de transporte coletivo existentes ou das que vierem a ser implantadas.
§ 1º - A delimitação das áreas de que trata o caput deste artigo é a estabelecida
nos anexos IV e IV-A desta Lei.

Lívia Monteiro16 nota que as demarcações das áreas passíveis de serem abran-
gidas em operações urbanas consorciadas, contidas nos anexos IV e IV-A do plano

15 MONTEIRO, Lívia de Oliveira. Espacialidades e especificidades: as Operações Urbanas Consorciadas


como ferramenta de planejamento e de gestão do espaço. Dissertação de Mestrado. Universidade
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2014.p.383.

16 MONTEIRO, Lívia de Oliveira. Espacialidades e especificidades: as Operações Urbanas Consorciadas


como ferramenta de planejamento e de gestão do espaço. Dissertação de Mestrado. Universidade
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2014.p.385.

150 Luísa Miranda Scalzo


diretor municipal, são preliminares. São perímetros que receberam regras transitórias,
que visam controlar a valorização da terra nos principais setores de crescimento da
cidade para onde está prevista a aplicação do instrumento de atuação concertada por
meio, principalmente, de controle ao potencial construtivo atribuído aos terrenos pelo
macrozoneamento. Ressalta-se que não apenas dentro dos perímetros demarcados
na lei aplicam-se as regras transitórias, mas também nos terrenos lindeiros aos limites
das operações. As diretrizes transitórias definidas para as áreas de OUCs e para os
terrenos limítrofes sobrepõem-se a qualquer diretriz legal menos restritiva estabelecida
pelo macrozoneamento e são válidas até que a lei específica para a operação urbana
seja aprovada.

Desse modo, cada uma dessas áreas foi regulamentada de forma diferenciada,
sofrendo limitações urbanísticas das mais variadas ordens e com a única finalidade
de evitar que a especulação imobiliária inviabilizasse a implementação de OUCs em
momentos futuros. Tais detalhamentos encontram-se expressos nos artigos 69 – B a
69- O do Plano Diretor.

Muitas das áreas delimitadas nos incisos dos art. 69-A possuem finalidades
semelhantes no contexto urbanístico de Belo Horizonte, como é o caso das Operações
Urbanas Consorciadas dos Corredores Viários Prioritários, artigo 69-K do plano diretor,
e Corredores de Transporte Coletivo Prioritários, artigo 69-L.

Tal situação foi observada por Lívia Monteiro17: As operações urbanas consor-
ciadas Corredores Viários Prioritários, artigo 69-K do plano diretor, e Corredores de
Transporte Coletivo Prioritários, artigo 69-L, têm finalidades semelhantes (...) visam,
fundamentalmente, organizar áreas lindeiras a esses eixos de alta capacidade, com
maior aproveitamento dos espaços considerados subutilizados. Tais áreas possuem,
atualmente, trechos extensos que funcionam apenas como local de passagem e se
configuram como barreiras físicas ao sistema urbano. As intervenções das opera-
ções urbanas a se efetivarem nesses setores devem buscar transformar as “barreiras
urbanas” em eixos de crescimento. Buscam transformar o entorno dos grandes corre-
dores de circulação em locais com equipamentos estratégicos para o desenvolvimento
urbano. Apresentam o potencial de promover expansões qualificadas do centro principal
da cidade, dissipando a qualidade de centro regional, economicamente atraente, a

17 MONTEIRO, Lívia de Oliveira. Espacialidades e especificidades: as Operações Urbanas Consorciadas


como ferramenta de planejamento e de gestão do espaço. Dissertação de Mestrado. Universidade
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2014.p.389-390.

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA 151
BH”
investimentos do setor imobiliário e de atividades econômicas, que possam ampliar
a abrangência de atendimento e a qualificação da metrópole em oferecer comércio e
serviços.

Conforme se verifica no anexo IV da Lei Municipal 7.165/96, algumas áreas de OUC


delimitadas intercedem-se entre si. Assim, a elaboração de um Plano Urbanístico de
uma determinada OUC poderia (e deveria) levar em consideração as áreas de interseção.

Tal composição é considerada pelo Plano Diretor em diversos momentos. Um dos


momentos em que se evidencia tal incentivo está inscrito no anexo IV da Lei 7.165/96,
já que, ao delimitar áreas, o legislador, notadamente, as considerou como uma mancha
a ser analisada em conjunto, razão pela qual está em um único mapa. Desse modo, as
OUC de cada uma das áreas pode ser executada pelo poder público de forma conjunta,
considerando-se como uma única área (em apenas uma OUC) ou separada, para ser
executada em momentos diversos (em várias OUC).

Tais determinações dispostas no Plano Diretor demonstram que o legislador


esperava que o Poder Executivo, ao elaborar estudos e planos de ação próprios para
OUC, considerasse a malha urbana como um todo, de modo a eliminar problemas
comuns a todas as áreas, tornando o uso do território mais inteligente, bem como
promovendo o desenvolvimento regional de toda a municipalidade.

Ademais, a apresentação das áreas em incisos separados e detalhamento em


artigos separados não significa que se tratam de áreas estanques e que devem ser
objeto de OUC separadas. Significa, apenas, que o legislador estabeleceu regras de
transição e diferenciadas para cada uma das áreas em relação aos demais zoneamentos
urbanos do município, a fim de limitar o uso do solo e evitar que a especulação imobi-
liária decorrente da elaboração dos estudos não inviabilize a implementação de OUC.

Conforme verificado no art. 69, e bem analisado em citações da comunidade


acadêmica de arquitetura e urbanismo, o rol disposto no Plano Diretor de áreas espe-
cificadas no art. 69-A sujeitas a OUC não é taxativo. Nada impede que o poder público,
por exemplo, identifique outras áreas passíveis de implementação e venha estudá-las.
É o que preceitua o art. 69 c/c o caput do art. 69- A do Plano Diretor do Município de
Belo Horizonte, vejamos:
Art. 69 - Operação Urbana Consorciada é o conjunto de intervenções e
medidas coordenadas pelo Poder Executivo Municipal, com a participação dos
proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o
objetivo de alcançar transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais

152 Luísa Miranda Scalzo


e valorização ambiental, podendo ocorrer em qualquer área do município.
Art. 69-A - Sem prejuízo de outras que venham a ser instituídas por lei específica,
ficam delimitadas as seguintes áreas para Operações Urbanas Consorciadas, nas
quais, até a aprovação da lei de que trata o § 1º do art. 69 desta Lei, prevalecerão
os parâmetros e as condições estabelecidos nesta Lei.

Como já exarado anteriormente, trata-se apenas de demarcação de áreas


previamente identificadas pelo Poder Público para a realização de estudos técnicos
necessários à implementação de OUC. Tais áreas, a partir da vigência desta Lei (Plano
Diretor), estariam sujeitas a parâmetros urbanísticos transitórios e restritivos, de forma
a desestimular novas construções e valorização imobiliária até que as leis específicas
das OUC fossem aprovadas.

O Plano Diretor não proíbe que o Poder Público realize estudos técnicos de áreas
não demarcadas no Anexo IV e IV-A do Plano Diretor, bem como não fixou a forma como
se daria a realização dos estudos técnicos.

O Plano Diretor apenas implementa diretrizes para que o poder público elabore
os estudos prévios imprescindíveis à implementação de uma OUC em qualquer área
do Município e estabelece requisitos mínimos para o Projeto de Lei Específica de
OUC, que será elaborado pelo Executivo. Ou seja, a etapa de realização de estudos e
elaboração do Projeto de Lei refere-se apenas ao planejamento no ciclo de uma política
pública de OUC.

A lei específica a que se refere o art. 69-A não é uma lei para alteração do plano
diretor. Trata-se da Lei Específica da OUC, que deve ser encaminhada ao Legislativo,
contendo o Plano Urbanístico da OUC, que após a etapa de planejamento e estudos
preliminares, elaborará Projeto de Lei contendo os requisitos elencados no Plano Diretor.
Ou seja, os estudos realizados pelo Município de Belo Horizonte no Projeto da OUC
“Nova BH” não precisavam da lei especifica da OUC, até porquê o poder público precisa
estudar a área, suas potencialidades e limitações antes de detalhar a OUC para apenas
após a apresentação do Projeto de Lei Específica, iniciar a implementação da OUC.

Vejamos o que dispõe o art. 69 §§ 1º e 4º:


Art. 69 - Operação Urbana Consorciada é o conjunto de intervenções e
medidas coordenadas pelo Poder Executivo Municipal, com a participação dos
proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o
objetivo de alcançar transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA 153
BH”
e valorização ambiental, podendo ocorrer em qualquer área do município (...)
§ 1º - Cada Operação Urbana Consorciada será instituída por lei específica, de
acordo com o disposto nos arts. 32 a 34 da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho
de 2001, - Estatuto da Cidade. (...)
§ 4º - A lei específica que aprovar ou regulamentar a Operação Urbana
Consorciada deverá conter, no mínimo:
I - a definição da área a ser atingida;
II - o programa básico de ocupação da área;
III - o programa de atendimento econômico e social para a população diretamente
afetada pela Operação;
IV - as finalidades da Operação;
V - o estudo prévio de impacto de vizinhança;
VI - a contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e
investidores privados, nos termos do disposto no inciso VI do art. 33 da Lei nº
10.257/01;
VII - a forma de controle da Operação, obrigatoriamente compartilhado com
representação da sociedade civil.
§ 5º - Os recursos obtidos pelo Poder Público Municipal na forma do inciso
VI do § 4º deste artigo serão aplicados, exclusivamente, na própria Operação
Urbana Consorciada.
§ 6º - A partir da aprovação da lei específica de que trata o § 1º do art. 69 desta
Lei, são nulas as licenças e as autorizações a cargo do Poder Público Municipal
expedidas em desacordo com o plano de Operação Urbana Consorciada,
conforme previsto na Lei nº 10.257/01.
§ 7º - O Executivo poderá utilizar, na área objeto da Operação Urbana Consorciada,
mediante previsão na respectiva lei específica, os instrumentos previstos nos
arts. 32 a 34 da Lei nº 10.257/01, bem como a Outorga Onerosa do Direito
de Construir, de acordo com as características de cada Operação Urbana
Consorciada.

Tal plano urbanístico18, por ser lei específica, após aprovado, irá se sobrepor à Lei
de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (especificamente para a área delimitada

18 Plano Urbanístico não se confunde com Plano Diretor. O Plano Urbanístico é um projeto para a
implementação de alterações de parâmetros urbanísticos, intervenções e planos de ação relativos a
uma Operação Urbana. Isto é, trata-se de um plano específico e detalhado. Já o Plano Diretor é uma

154 Luísa Miranda Scalzo


no plano urbanístico), com os parâmetros urbanísticos previstos para a OUC. Apenas
com a aprovação de tal lei é que a etapa de implementação da OUC pode ser iniciada.

Inicialmente, o Projeto da OUC “Nova BH” se dividia em duas OUC, que, por sua
vez, eram uma composição de áreas já elencadas no Plano Diretor, a saber:

- OUC Av. Antônio Carlos / Av. Pedro I: composta da Área de Corredores de


Transporte Coletivo Prioritários (Lei Municipal 7.165/1996, art. 69-A, inciso III) e da
Área dos Entornos das Estações de Transporte Coletivo a serem implantadas (Lei
Municipal 7.165/1996, art. 69-A, inciso V);

- OUC Av. Andradas / Tereza Cristina / Via Expressa (ou Leste/Oeste): composta
da Área de corredores viários prioritários (Lei Municipal 7.165/1996, art. 69-A, inciso
II), das Áreas Centrais (Lei Municipal 7.165/1996, art. 69-A, inciso IV) e da Área dos
Entornos das Estações de Transporte Coletivo Existentes (Lei Municipal 7.165/1996,
art. 69-A, inciso V).

A junção das OUC Av. Antônio Carlos / Av. Pedro I e OUC Av. Andradas / Tereza
Cristina / Via Expressa se deu por uma opção técnica, baseada no Diagnóstico do
Mercado Imobiliário constante do Estudos de Viabilidade Econômico-Financeira - EVEF,
realizado por consultoria especializada, fato que será detalhado adiante.
Em verdade o plano da operação deve ter sido resultado de um trabalho anterior
à edição da respectiva lei, que apenas terá a função de introduzi-lo no mundo
jurídico. Assim, o plano estará pronto (ainda que não acabado) antes mesmo
de iniciado o processo legislativo. Inclusive, de tal etapa preliminar, que resulta
na produção do plano e na apresentação de um projeto de lei (de iniciativa
privativa do Poder Executivo), e durante todo o processo de tomada de decisão
é necessária a participação da sociedade civil, de forma a legitimar a atuação
urbanística democrática do poder público“.

lei que institui o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana dentro da
municipalidade de forma genérica.

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA 155
BH”
2.3.2. Dos Estudos de Viabilidade Econômico-Financeira – EVEF
e Estudo de Impacto de Vizinhança – EIV
Conforme art. 33 da Lei Federal 10.257/2001 (Estatuto das Cidades), a imple-
mentação de uma OUC deve ser precedida de Estudo de Impacto de Vizinhança - EIV,
porém não se limitando a este documento.
Art. 33. Da lei específica que aprovar a operação urbana consorciada constará
o plano de operação urbana consorciada, contendo, no mínimo:
(...)
V – estudo prévio de impacto de vizinhança;

A arrecadação de recursos financeiros para a efetivação das intervenções


previstas no Plano Urbanístico de uma Operação Urbana Consorciada ocorre pela
outorga Onerosa de Direito de Construção – ODC. No caso específico deste tipo de
projeto, esta outorga onerosa pode se realizar por meio da comercialização de títulos
denominados Certificado de Potencial Adicional de Construção - CEPAC. Assim dispõe
o Estatuto das Cidades:
Art. 34. A lei específica que aprovar a operação urbana consorciada poderá
prever a emissão pelo Município de quantidade determinada de certificados de
potencial adicional de construção, que serão alienados em leilão ou utilizados
diretamente no pagamento das obras necessárias à própria operação.
§ 1o Os certificados de potencial adicional de construção serão livremente
negociados, mas conversíveis em direito de construir unicamente na área objeto
da operação.
§ 2o Apresentado pedido de licença para construir, o certificado de potencial
adicional será utilizado no pagamento da área de construção que supere os
padrões estabelecidos pela legislação de uso e ocupação do solo, até o limite
fixado pela lei específica que aprovar a operação urbana consorciada.

Para que haja o adequado equilíbrio entre oferta e demanda de CEPAC, de modo a
garantir o sucesso de uma OUC, é imprescindível a elaboração de Estudo de Viabilidade
Econômico-Financeira – EVEF, que, dentre outros, indicará a quantidade total de CEPAC
que serão comercializados, bem como seu valor unitário.

156 Luísa Miranda Scalzo


O CEPAC nada mais é do que a contrapartida a ser exigida dos investidores
privados, que deve estar contida na lei específica da OUC, conforme dispõe o Plano
Diretor:
Art. 69. (...)
§ 4º - A lei específica que aprovar ou regulamentar a Operação Urbana
Consorciada deverá conter, no mínimo: (...)
VI - a contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e
investidores privados, nos termos do disposto no inciso VI do art. 33 da Lei nº
10.257/01; (...)
§ 5º - Os recursos obtidos pelo Poder Público Municipal na forma do inciso
VI do § 4º deste artigo serão aplicados, exclusivamente, na própria Operação
Urbana Consorciada.

Além de fazer cumprir a legislação, com a quantificação dos CEPAC é possível


estimar os recursos financeiros que estarão disponíveis para a realização das interven-
ções previstas no Plano Urbanístico da OUC, o que permite maior controle e priorização
das obras que serão realizadas.

Ainda, vale dizer que o EVEF fornece grandes subsídios para o EIV, uma vez que
o potencial construtivo é diretamente relacionado com o incremento de densidade
populacional, que consiste em um dos principais eventos geradores impacto. Isto é,
quanto maior o potencial construtivo disponibilizado por meio dos CEPAC, maior será
a oferta de imóveis e, consequentemente, maior será o número de novos habitantes e
transeuntes na área da OUC.

Diante do exposto e em observância aos preceitos legais, foram realizadas, por


meio de procedimentos licitatórios, as contratações de consultorias especializadas para
elaboração dos referidos estudos técnicos, quais sejam: EVEF e EIV, imprescindíveis
para a etapa de planejamento da política pública.

Importante destacar que a contratação desses estudos se deu anteriormente à


junção das OUC, sendo um deles, inclusive, determinante na análise realizada pelo
gestor competente quanto à oportunidade e conveniência da unificação.

As discussões relativas à junção das OUC eram embasadas no DIAGNÓSTICO


DO MERCADO IMOBILIÁRIO, documento elaborado pela consultoria contratada para a
elaboração do Estudo de Viabilidade Econômico-Financeira – EVEF.

O EVEF é composto pelos seguintes produtos:

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA 157
BH”
Produto 1a: Diagnóstico do Mercado Imobiliário;

Produto 1b: Valoração do Estoque de Potencial Construtivo Adicional e Definição


do Modelo de Cobrança de Contrapartidas; e

Produto 1c: Viabilidade Econômico-Financeira e Estratégia de Implementação da


Operação Urbana Consorciada.

Tais produtos devem ser elaborados de forma sucessiva por serem um pré-requi-
sito do outro. Ou seja, só é possível elaborar o Produto 1b após a conclusão do Produto
1a e o Produto 1c, após a conclusão do Produto 1b.

Inicialmente, os Diagnósticos de Mercado Imobiliário foram elaborados de forma


sucessiva, isto é, no primeiro momento, foi elaborado o diagnóstico de mercado imobi-
liário para a área da OUC Antônio Carlos / Pedro I e, na sequência, foi elaborado o
diagnóstico de mercado imobiliário para a área da OUC Av. Andradas / Tereza Cristina /
Via Expressa. (Nota: com a unificação das OUC, estes diagnósticos foram consolidados
num único produto.)

Possivelmente, após a conclusão do Diagnóstico do Mercado Imobiliário da área


de influência da OUC Av. Andradas / Tereza Cristina / Via Expressa restou evidente
que a dinâmica imobiliária e os preços dos imóveis nesta região eram muito mais
significativos do que aqueles constatados, anteriormente, quando da elaboração do
Diagnóstico do Mercado Imobiliário da área de influência da OUC Antônio Carlos /
Pedro I, conforme se observa na tabela a seguir, consolidada de dados extraídos do
Anexo 1 do Diagnóstico do Mercado Imobiliário constante no EVEF .

158 Luísa Miranda Scalzo


DIAGNÓSTICO DO MERCADO IMOBILIÁRIO
2006 a 1º TRIM. 2013
N° de Valor Global de Venda
EIXO SETOR Área de pesquisa
Lançamento (R$)
Área da OUC 0 -
1 Bairros Lindeiros 0 -
Entorno Imediato 4 37.882.1 83,66
Subtotal 1 4 37.882.183,66
Área da OUC 0 -
2 Bairros Lindeiros 4 24.860.952,94
Entorno Imediato 14 401 .665.432,22
ANTÔNIO CARLOS / PEDRO I

Subtotal 2 18 426.526.385,16
Área da OUC 1 1 4.985.651 ,00
3 Bairros Lindeiros 0 -
Entorno Imediato 9 1 54.1 89.1 65,24
Subtotal 3 10 169.174.816,24
Área da OUC 13 286.21 3.009,75
4 Bairros Lindeiros 14 302.325.796,39
Entorno Imediato 8 1 89.452.278,56
Subtotal 4 35 777.991.084,70
Área da OUC 27 426.861 .778,77
5 Bairros Lindeiros 8 1 83.079.402,44
Entorno Imediato 9 1 47.330.1 09,52
Subtotal 5 44 757.271.290,73
Área da OUC 3 37.701 .760,72
6 Bairros Lindeiros 3 1 61 .422.1 20,88
Entorno Imediato 7 222.01 7.807,1 7
Subtotal 6 13 421.141.688,77
TOTAL AC/PI 124 2.589.987.449,26
Área da OUC 11 1 22.236.850,75
Bairros Lindeiros 17 282.686.928,99
ANDRADAS / T. CRISTINA / VIA EXP.

7
Entorno Imediato 10 21 2.851 .682,33
Subtotal 7 38 617.775.462,07
Área da OUC 4 200.882.499,70
8 Bairros Lindeiros 16 1 82.01 7.1 56,33
Entorno Imediato 13 309.782.1 1 9,98
Subtotal 8 33 692.681.776,01
Área da OUC 18 901 .51 3.1 1 4,09
9 Bairros Lindeiros 61 1 .901 .222.986,97
Entorno Imediato 48 2.293.730.066,82
Subtotal 9 127 5.096.466.167,88
Área da OUC 8 84.921 .1 47,25
10 Bairros Lindeiros 38 880.478.71 4,50
Entorno Imediato 34 827.1 22.376,87
Subtotal 10 80 1.792.522.238,62
TOTAL Andradas/TC/VE 278 8.199.445.644,58
Tabela 1: Dados extraídos do Anexo I do Produto 1a do EVEF da OUC Nova BH

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA 159
BH”
Como se observa, entre os anos de 2006 e 2013, o mercado de imóveis novos
(lançamentos) no eixo Andradas / Tereza Cristina / Via Expressa (Leste/Oeste) movi-
mentou valores mais do que três vezes superiores àqueles do eixo Antônio Carlos /
Pedro I e, ainda, com mais do que o dobro de empreendimentos lançados.

Esta discrepância entre os dois mercados imobiliários, poderia frustrar a imple-


mentação da OUC Antônio Carlos / Pedro I, colocando o gestor público diante de uma
situação que poderia inviabilizar a implementação de uma política pública em uma
área carente de melhorias urbanas. Ou seja, tratava-se de situação superveniente não
prevista que demandou a análise de alternativas pela Administração.

A suposta discrepância do potencial de comercialização de CEPAC entre as duas


áreas restou comprovada pelo “Produto 1b - Valoração de Estoque de PCA e Modelo
de Cobrança de Contrapartidas Financeiras”, conforme se observa na tabela a seguir,
consolidada de dados extraídos do Anexo 4 do referido produto constante no EVEF:

EXPECTATIVA DE UTILIZAÇÃO DE CEPAC


CEPAC Valor unitário CEPAC Valor Arrecado com a venda
EIXO SETOR
(unidades) (R$) dos CEPAC (R$)

1 280.637,50 1 37.51 2.375,00


ANTÔNIO CARLOS / PEDRO I

2 59.956,75 29.378.807,50

3 88.872,82 43.547.681 ,80

4 677.849,24 490,00 332.1 46.1 27,60

5 582.770,1 6 285.557.378,40

6 1 28.639,86 63.033.531 ,40

SUBTOTAL 1 1.818.726,33 R$ 891.175.901,70

7 71 4.540,01 350.1 24.604,90


CRISTINA / VIA EXP.
ANDRADAS / T.

8 1 .1 23.474,47
550.502.490,30
9 3.324.990,67 490,00
1 .629.245.428,30
10 1 .1 07.388,73
542.620.477,70
SUBTOTAL 2 6.270.393,88 R$ 3.072.493.001,20
TOTAL 8.089.120,21 R$ 3.963.668.902,90

Ou seja, a expectativa de arrecadação da OUC das Avenidas dos Andradas/Tereza


Cristina/Via Expressa era de aproximadamente 3,5 vezes a expectativa de arrecadação
da OUC das Avenidas Antônio Carlos/Pedro I.

160 Luísa Miranda Scalzo


No Plano Urbanístico do Projeto da OUC “Nova BH” estavam previstas importantes
e necessárias intervenções no eixo Antônio Carlos / Pedro I, cujo montante total de
recursos financeiros possivelmente superariam o valor arrecadado esperado em função
da expectativa de utilização de CEPAC para aquela área, isto é, seria superior a R$891
milhões.

Neste sentido, parte dos recursos oriundos da utilização de CEPAC no eixo


Andradas / Tereza Cristina/ Via Expressa poderiam ser revertidos para complementar
os recursos para execução das intervenções previstas para o eixo Antônio Carlos /
Pedro I. Tal política redistributiva só poderia ser adotada na hipótese de junção das
OUC, por expressa vedação do Plano Diretor:
Art. 69. (...)
§ 1º - Cada Operação Urbana Consorciada será instituída por lei específica, de
acordo com o disposto nos arts. 32 a 34 da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho
de 2001, - Estatuto da Cidade.
(...)
§ 4º - A lei específica que aprovar ou regulamentar a Operação Urbana
Consorciada deverá conter, no mínimo:
(...)
VI - a contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e
investidores privados, nos termos do disposto no inciso VI do art. 33 da Lei nº
10.257/01;
(...)
§ 5º - Os recursos obtidos pelo Poder Público Municipal na forma do inciso
VI do § 4º deste artigo serão aplicados, exclusivamente, na própria Operação
Urbana Consorciada.

2.4. Da parceria público-privada


Uma Operação Urbana Consorciada não se viabiliza em hipótese alguma sem a
participação dos seguintes atores: mercado financeiro e mercado imobiliário.

Por tal razão o Estatuto das Cidades instituiu a seguinte previsão:


Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área
para aplicação de operações consorciadas.
§ 1o Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA 161
BH”
medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos
proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com
o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais,
melhorias sociais e a valorização ambiental.

Como já exposto anteriormente, as obras de uma OUC são financiadas com


recursos oriundos da venda de potencial adicional de construção, convertidos em
títulos mobiliários denominados CEPAC, comercializados em bolsa de valores para
investidores do mercado financeiro.

Ora, parece óbvio que investidores do mercado financeiro só terão interesse


em adquirir este (e qualquer outro) título se entenderem que o mesmo tem um bom
potencial de valorização.

O que determina o potencial de valorização do CEPAC são dois fatores: (1) a


baixa oferta de títulos; (2) a alta demanda do mercado imobiliário (incorporadores e
construtores) na aquisição destes títulos. É a regra básica e mais antiga de mercado,
que surgiu muito antes da invenção do dinheiro como conhecemos hoje: a “lei” da
oferta e da demanda.

A quantidade de títulos a serem emitidos é determinada pelo EVEF – Estudo de


Viabilidade Econômico-Financeira, conforme já explicitado anteriormente. O número
de títulos, isto é, a quantidade de potencial construtivo adicional a ser comercializado,
deve ser significativamente inferior ao potencial construtivo total da área da OUC. Isso
torna o título escasso, ou seja, com oferta reduzida.

A demanda das construtoras por certificados de potencial adicional de construção


– CEPAC – somente irá ocorrer caso sejam atendidas duas premissas, cumulativamente:
(1) realização de investimentos em infraestrutura urbana na região, que, por sua vez,
despertarão o interesse das pessoas em viver naquela região; (2) altos coeficientes de
aproveitamento, isto é, grande potencial construtivo para os terrenos da região da OUC.

Os investimentos em infraestrutura urbana (obras) são previstos no Plano


Urbanístico da OUC, portanto são de conhecimento público e, assim, geram expectativas
na sociedade como um todo. Basta imaginar o Porto Maravilha antes e depois: de área
altamente degradada para um dos principais pontos turísticos da capital fluminense.

Esta expectativa é transmitida para os operadores do mercado financeiro, que


vêm naquele empreendimento uma oportunidade de realizar investimentos e, assim,
adquirirem os CEPAC.

162 Luísa Miranda Scalzo


Com os recursos da venda do CEPAC, a Administração Pública realiza as obras
previstas no Plano Urbanístico, promovendo profundas transformações positivas na
paisagem urbana, despertando o interesse das pessoas em viver, trabalhar e frequentar
essa região. Naturalmente, isso provoca uma reação em incorporadores e construtores,
que passam a ter interesse em construir naquela região, tendo em vista o interesse e
a demanda das pessoas.

A partir deste momento os CEPAC se valorizam em função das obras realizadas e


da demanda por novos empreendimentos imobiliários. Assim, o investidor comercializa
seus CEPAC com os incorporadores/construtores e obtém seus ganhos financeiros.

Diante do exposto, evidencia-se claramente que não existe OUC sem o mercado
imobiliário. Neste sentido, qualquer projeto de OUC deve, invariavelmente, considerar
este ator fundamental para a consecução daquela política pública. Este também é o
entendimento de Elias Roberto Leão da Silva 19:
É forçoso concluir que o investimento do mercado imobiliário será determinante
no sucesso ou fracasso de uma operação consorciada. Isto porque, se o Estado
optar por uma operação urbana autofinanciável, ou seja, aquela em que os
recursos obtidos para a implementação de melhorias urbanísticas sejam
oriundos das vendas dos CEPACs, sendo, portanto, advindo de investidores
privados, moradores e proprietários, o lugar que for escolhido terá de ser, na
pior das hipóteses, atrativo para o segmento imobiliário. Se esse lugar não atrair
este mercado, uma operação urbana consorciada estará fadada ao fracasso.

Caso se opte por ignorar o mercado imobiliário, a probabilidade de fracasso da


OUC é altíssima. É o que Elias Roberto Leão da Silva 20 afirma:
É forçoso concluir que sem a valorização da área focalizada pela operação
urbana consorciada, não haverá interesse do mercado imobiliário. Um local
desinteressante aos investidores privados acabará, inevitavelmente, por
desvalorizar os CEPACs e trazer prejuízos ao Poder Público municipal.

19 SILVA, Elias Roberto Leão da. Operações urbanas consorciadas: uma análise técnica e crítica.
Universidade de Brasília, Brasília, 2015. P.48.

20 SILVA, Elias Roberto Leão da. Operações urbanas consorciadas: uma análise técnica e crítica.
Universidade de Brasília, Brasília, 2015. p.50.

OPERAÇÕES URBANAS CONSORCIADAS NO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE: O CASO DA OUC “NOVA 163
BH”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme demonstrado, dentre os inúmeros benefícios que as operações urbanas
consorciadas proporcionam, o maior deles é a sua sustentabilidade financeira, ou
seja, não é necessário o despendimento de recursos públicos para a realização das
intervenções urbanísticas, vez que a arrecadação via CEPAC é vinculada à OUC. Desse
modo, no atual quadro de crise fiscal dos entes federados, a OUC pode surgir como
uma alternativa para o endividamento municipal e a revitalização urbanística.

Para a implementação de uma OUC é necessária Lei Especifica que defina, dentre
outros, a área objeto da operação. Contudo, em momento anterior à implantação cabe
ao poder público a elaboração de estudos, que podem indicar pela viabilidade ou não
da implementação e uma OUC e subsidiam a elaboração do Projeto de Lei Específica
pelo Executivo.

No Município de Belo Horizonte, a viabilidade de tal instrumento pode ser estudada


em qualquer área do município, por expressa autorização do Plano Diretor. A delimitação
de algumas áreas tem como objetivo apenas a limitação da valorização imobiliária de
modo, que esta não venha inviabilizar a implementação de OUC futura.

ReferênciaS
ABRUCIO, Fernando Luiz. O impacto do modelo gerencial na Administração pública:
um breve estudo sobre a experiência internacional. Brasília: ENAP, 1997 (Cadernos
ENAP, nº 10).
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Concorrência n° 2011/010: prestação de
serviços de consultoria para elaboração de estudos de viabilidade da “Operação
Urbana Consorciada da Avenida Antônio Carlos / Pedro I” no Município de Belo
Horizonte. Belo Horizonte: Diário Oficial do Município, 2011a. Disponível em:
<portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/files.do?...concorrencia_2011_010.pdf>. Acesso
em: 15 de dezembro de 2017.
BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Diagnóstico do Mercado Imobiliário
constante no EVEF da “Operação Urbana Consorciada da Avenida Antônio Carlos
/ Pedro I e Leste /Oeste” no Município de Belo Horizonte. Belo Horizonte. 2014.
Disponível em: Disponível em:<< https://ecp.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.
do?evento=portlet&amp;pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&amp;app=ouc&amp;ta-
x=44685&amp;lang=pt_BR&amp;pg=10666>> acesso em 01 de maio de 2018

164 Luísa Miranda Scalzo


BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Lei n° 10.378, de 09 de janeiro de 2012.
Altera as leis nº 5.492/88, n° 9.010/04, nº 9.814/10, nº 9.959/10 e dá outras
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BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Plano Diretor de Belo Horizonte: Lei de Uso
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de1996, parcelamento, ocupação e uso do solo urbano, Lei n° 7.166 de 27 de agosto
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BRASIL. Instituto Pólis/Laboratório de Desenvolvimento Local. Estatuto da cidade:
guia para implementação pelos municípios e cidadãos: Lei n° 10.257, de 10 de julho
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DESENVOLVIMENTO URBANO: UM DIÁLOGO BRASIL – JAPÃO – COLÔMBIA, 2009,
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Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais
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Malheiros, 2010.
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e crítica. Universidade de Brasília, Brasília, 2015.

166 Luísa Miranda Scalzo


O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE)
841526 E A RESPONSABILIDADE
CIVIL DO ESTADO POR SUICÍDIO DE
CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI
ERIGIDO À CONDIÇÃO DE SEGURADOR
UNIVERSAL?
Marina Regazzoni de Morais1

Resumo
Este estudo tem por objetivo verificar se a decisão do Supremo Tribunal
Federal, no Recurso Extraordinário 841526, resultou em novo marco, no
Direito brasileiro, sobre a abrangência da responsabilidade civil do Estado
em demandas envolvendo custodiados, especialmente em caso de suicídio,
ou se somente repetiu os cânones firmados anteriormente na doutrina e
jurisprudência do tribunal. Se entendido que lançou um novo marco, busca-
remos assentar se este se aproxima da imputação ao Poder Público de
obrigação como segurador universal. Para tanto, traçaremos, inicialmente,
um breve panorama sobre o tema, perpassando os conceitos e divergências
doutrinárias acerca do risco administrativo, do risco integral, da conduta
omissiva e da subjetividade e objetividade da responsabilidade. A seguir,
analisaremos o julgado em destaque, sob a ótica de Celso Antônio Bandeira
de Mello. Por fim, após apresentarmos nossas conclusões, indicaremos
algumas implicações da tese firmada e das discussões levantadas pelos
Ministros durante a sessão de julgamento, em uma abordagem crítica de
questões conexas ao tema objeto deste.

1 Procuradora do Estado de Goiás, Especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal de Goiás.
MORAIS, Marina Regazzoni de. O recurso extraordinário (RE) 841526 e a responsabilidade civil do estado por suicídio de custodiado: o
ente público foi erigido à condição de segurador universal? In: PEREIRA, Rodolfo Viana; SACCHETTO,Thiago Coelho (Orgs.). Advocacia
pública em foco. Volume II. Belo Horizonte: IDDE, 2019. p. 169-192. Disponível em: https://doi.org/10.32445/97885671341096
INTRODUÇÃO
No julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 841526, com repercussão geral reco-
nhecida, o Supremo Tribunal Federal (STF) buscou pacificar o tema da responsabilidade
extracontratual do Poder Público em razão de atos omissivos, mais especificamente,
em decorrência de morte de custodiado dentro de estabelecimento prisional.

Analisaremos o julgado, visando a entender a extensão da tese nele fixada, se esta


reafirmou a jurisprudência do tribunal e a doutrina majoritária sobre o assunto, ou se
inovou, imputando ao Estado responsabilidade própria de um segurador universal, em
que não são acatadas hipóteses excludentes do dever de indenizar.

Buscaremos compreender, ainda, o teor dos debates durante a sessão de julga-


mento, para verificarmos a coerência do resultado do julgamento com a posição
externada pelos relator e demais ministros que a compuseram.

Ao fim, nosso objetivo será correlacionar as conclusões alcançadas no julgado


a outras posturas semelhantes verificadas no Poder Judiciário e suas possíveis
implicações.

Para tanto, primeiramente, contextualizaremos a matéria da responsabilidade civil


do Estado, e abordaremos as divergências doutrinárias acerca da responsabilidade por
omissão e apontaremos seu regramento mais coerente, a nosso sentir.

1. RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO


POR ATOS OMISSIVOS

1.1. Panorama da responsabilidade civil do Estado


Antes de nos aproximarmos do tema sobre o dever de reparação civil dos danos
pelo Estado, é mister uma mínima ambientação no tratamento indistintamente dado à
temática de responsabilidade civil.

Diferentemente da responsabilidade civil contratual, que surge da desobediência


a preceito estabelecido em contrato ou ajuste análogo, a extracontratual – ou aquiliana

170 Marina Regazzoni de Morais


–, nasce da inobservância, por parte de determinada pessoa, de preceito normativo
que regula a vida2.

Porém, em suma, temos que, apesar desta cisão pretendida pela doutrina civilista
entre responsabilidade civil contratual e extracontratual, ambas são justificadas pela
violação a um dever jurídico preexistente.

Pois bem. A disciplina legal genérica da responsabilidade civil extracontratual,


no Direito nacional, assenta-se no Título IX “Da responsabilidade Civil”, da Lei n.
10.406/2002 – Código Civil, fundando-se no ato ilícito (artigo 186) e no abuso de
direito (artigo 187), o que denota a estruturação de um modelo dual ou binário de
responsabilidade.

Para a doutrina clássica, são elementos do dever de indenizar: a ação ou omissão


(conduta humana); o nexo causal; o dano ou prejuízo; e a culpa genérica em sentido
lato, esta que caracteriza a subjetividade da responsabilidade. Há autores, todavia,
que consideram a culpa elemento acidental da responsabilidade civil, ou seja, não
essencial3.

Com efeito, o próprio Código Civil prevê, expressamente, dentre outros, no pará-
grafo único do seu artigo 927, a responsabilização civil independentemente de culpa
do agente, em razão do risco da atividade por ele desenvolvida.

Contextualizando a evolução do tema, Lucas Rocha Furtado afirma que “A teoria


objetiva da responsabilidade civil deixa de se fundamentar na culpa e o fundamento
principal para impor o dever de indenizar passa a ser o risco”4.

Para conceituar atividade de risco, interessante lançarmos mão do teor do enun-


ciado 448, aprovado durante a V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal,
segundo o qual:

A regra do art. 927, parágrafo único, segunda parte, do CC aplica-se sempre que
a atividade normalmente desenvolvida, mesmo sem defeito e não essencialmente
perigosa, induza, por sua natureza, risco especial e diferenciado aos direitos de outrem.

2 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método,
2012, p. 415.

3 V. g. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 41.

4 FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 820.

O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) 841526 E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR SUICÍDIO 171
DE CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI ERIGIDO À CONDIÇÃO DE SEGURADOR UNIVERSAL?
São critérios de avaliação desse risco, entre outros, a estatística, a prova técnica e as
máximas de experiência5.

Nesse contexto, enquadra-se a teoria do risco administrativo, estruturada no


artigo 37, §6º, da Constituição Federal, o qual prevê que “As pessoas jurídicas de
direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão
pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o
direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Esse dispositivo
consagra, sob a ótica publicista, a cláusula geral de responsabilidade civil estatal
objetiva e harmoniza-se, como visto, com a disciplina da teoria do risco civilista.

Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello:

[…] entende-se por responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado a


obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera
juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de
comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais
ou jurídicos6.

O mesmo autor explica o tratamento diferenciado conferido pela Constituição


Federal à responsabilidade civil do Estado em razão, por sua missão junto aos admi-
nistrados, de (i) estar obrigado a prestações multifacetárias e (ii) dispor do uso normal
da força7.

Um bom exemplo, que interessa aos limites deste trabalho, é o exercício, pelo
Estado, do ius puniendi – ou direito de punir. Trata-se de competência a ele unicamente
destinada de sancionar outrem em prol do interesse público na manutenção da paz
social.

Ou seja, o poder/dever de intervir sobremaneira na vida das pessoas fundamenta,


em resumo, a adoção de um regramento sobre responsabilidade civil mais gravoso
ao Estado.

5 Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/377>. Acesso em: 29 jul. 2018.

6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros,
2015, p. 1021.

7 BANDEIRA DE MELLO. op. cit., p. 1025.

172 Marina Regazzoni de Morais


Sob outro viés, explica-se o tratamento ímpar destinado ao Estado, nessa órbita,
com fulcro nos princípios da isonomia e da justiça distributiva, justificados, em última
análise, pela desejada solidariedade social:

A responsabilidade civil do estado, nas condições preconizadas pela lei maior,


proporciona uma justa repartição dos encargos econômicos necessários para reparar o
dano ao lesado. Atende ao conceito de isonomia material e equidade, tendo em vista que
por meio das contribuições tributárias arrecadadas pelo Estado, este indenizará quem
foi lesado por uma intervenção estatal que traz consigo a presunção de obediência
ao interesse público8.

Celso Antônio Bandeira de Mello ainda diferencia o fundamento da responsabili-


dade civil em se tratando de atos ilícitos ou lícitos:

No caso de comportamentos ilícitos comissivos ou omissivos, jurídicos ou mate-


riais, o dever de reparar o dano é a contrapartida do princípio da legalidade. Porém,
no caso de comportamentos ilícitos comissivos, o dever de reparar já é, além disso,
imposto também pelo princípio da igualdade.

No caso de comportamentos lícitos, assim como na hipótese de danos ligados a


situação criada pelo Poder Público – mesmo que não seja o Estado o próprio autor do
ato danoso –, entendemos que o fundamento da responsabilidade estatal é garantir
uma equânime repartição dos ônus provenientes de atos ou efeitos lesivos, evitando
que alguns suportem prejuízos ocorridos por ocasião ou por causa de atividades
desempenhadas no interesse de todos. De conseguinte, seu fundamento é o princípio
da igualdade, noção básica do Estado de Direito9.

Em suma, seriam esses os fundamentos da teoria do risco administrativo ou


social, consagrada no citado artigo 37, §6º, da CF. Nessa disciplina, admitem-se os
seguintes excludentes de responsabilidade civil: culpa exclusiva do particular ou de
terceiro e caso fortuito – se inevitável – ou força maior.

Todavia, o direito brasileiro, alberga, ainda, em situações excepcionais, a teoria do


risco integral, em que tais excludentes não são considerados. Com efeito, no caso de
dano a particular em decorrência da exploração, pela União, de energia nuclear, o texto

8 BEZERRA DE MELO, Marco Aurélio. Considerações sobre a Responsabilidade Civil do Estado. Gen
Jurídico, 2015. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2015/12/23/consideracoes-sobre-a-sobre-a-
responsabilidade-civil-do-estado/>. Acesso em: 01 ago. 2018.

9 BANDEIRA DE MELLO. op. cit., p. 1035.

O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) 841526 E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR SUICÍDIO 173
DE CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI ERIGIDO À CONDIÇÃO DE SEGURADOR UNIVERSAL?
constitucional prevê que “a responsabilidade civil por danos nucleares independe da
existência de culpa” (art. 21, XXIII, “d”). A doutrina entende, nesse caso, que, mesmo
se comprovada a culpa exclusiva do particular pelo dano por ele experimentado, tal
não elidiria a responsabilidade do ente público.

Outro ponto digno de nota é a perfilhação da teoria do órgão pelo transcrito


dispositivo constitucional, donde se extrai a regra de que os agentes públicos atuantes
nos órgãos estatais, “ao praticarem atos ou manifestarem vontade, não o fazem em
nome próprio, devendo suas ações ser imputadas ao próprio Estado”10.

Traçado esse panorama da doutrina e da legislação sobre o tema, calha ressaltar,


contudo, que nem sempre se entendeu pela responsabilização do Estado pelos seus
atos, mormente quando isento de culpa.

Vemos que essa teorização somente encontrou campo fértil a partir da estrutu-
ração dos Estados de Direito, quando se assentou a sujeição de todos ao império da
lei, sem, em tese, redutos de privilégios odiosos.

Como bem afirmado pelo Relator do Recurso Extraordinário (RE) 841526 – sobre
o qual trataremos adiante –, em seu voto, “a concepção de que o Estado, apesar de
detentor de poderes dotados de imperatividade sobre a esfera de direitos do indivíduo,
resta submetido ao império da lei, configura o núcleo essencial do Estado Democrático
de Direito”.

Assim, sob essa ótica, a responsabilidade civil do Estado seria mero corolário da
submissão do Poder Público ao Direito11.

1.2. Divergências doutrinárias e a jurisprudência atual do STF


Apresentado o tema da responsabilidade civil do Estado e seu fundamento cons-
titucional, impende restringirmos o olhar sobre os casos em que o dano indenizável
se relaciona com alguma hipótese de omissão estatal.

A grande dúvida, ainda persistente na doutrina e na jurisprudência, consiste em


saber se, nesses casos, a responsabilidade é objetiva ou subjetiva.

10 RE 841526, 2016, voto do Relator, p. 11.

11 BANDEIRA DE MELLO. op. cit., p. 1027.

174 Marina Regazzoni de Morais


Para os defensores da segunda teoria, dentre eles incluído Celso Antônio Bandeira
de Mello – sobre cujo posicionamento trataremos melhor no próximo tópico –, é
essencial que a omissão estatal esteja eivada de dolo ou culpa (negligência, imperícia
ou imprudência) para ser indenizável.

Não seria necessário, contudo, para a configuração da responsabilidade, a indivi-


dualização da culpa, atribuindo-a a algum agente em específico, mas ao próprio serviço
público, por sua falha.

Diz o autor:

Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço


não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da respon-
sabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele
o autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado
a impedir o dano, isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que
lhe impunha obstar ao evento lesivo12.

Pressupõe-se, portanto, a ilicitude do não-agir estatal.

De outro giro, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, a teoria do risco administra-
tivo teria substituído a teoria da culpa anônima, preconizando que, independentemente
da culpa do agente público ou mesmo do serviço, deve o Estado responder pelos
danos que causar ao particular, o qual não arcará sozinho com esse ônus, que será
democraticamente, solidariamente e igualitariamente repartido por toda a sociedade13.

Contudo, os autores que defendem a responsabilização objetiva do Estado pela


omissão parecem não se afastar das mesmas premissas daqueles que advogam pelo
pressuposto da culpa. Confira-se:

Não nos parece razoável, desse modo, imputar às mencionadas pessoas jurídicas
de Direito Público ou de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responsabili-
dade objetiva pela ação de seus agentes, negando-lhes essa responsabilidade quando
o agente deixar de atuar, quando se omitir. A existência de dificuldades – ou mesmo
a impossibilidade – de se identificar o agente omisso é absolutamente irrelevante
para caracterizar a omissão estatal. Exatamente em razão das dificuldades para a
identificação do agente se desenvolveu a teoria da falta anônima. Assim, o Estado

12 BANDEIRA DE MELLO. op. cit., p. 1041.

13 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 701.

O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) 841526 E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR SUICÍDIO 175
DE CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI ERIGIDO À CONDIÇÃO DE SEGURADOR UNIVERSAL?
pode ser responsabilizado pela omissão, ainda que não seja possível identificar o
agente que deixou de praticar o ato ou de desenvolver a atividade que lhe competia14.

Veja-se que os primeiro e último autores até então citados neste tópico, adeptos,
a priori, de correntes doutrinárias opostas, admitem que a responsabilização do ente
público por sua omissão depende da existência, em concreto, da falha do serviço
público.

Percebendo essa aproximação de ambas as teorias, na medida em que, para se


demonstrar a omissão, acabamos por tangenciar a questão da culpa do poder público,
Lucas Rocha Furtado anseia por estabelecer um signo individualizador de cada uma
das teses:

Os que defendem a teoria da responsabilidade subjetiva às omissões do Estado


afirmam que a culpa do poder público reside exatamente em sua inação. Ou seja,
basta que o Estado não tenha cumprido o dever de agir que a lei lhe impõe para que
se caracterize a culpa. Nesse sentido, as duas teorias muito se aproximam e, na
prática, utilizar uma pela outra não resulta em grande distinção. A divergência reside
tão somente na circunstância de que, na teoria subjetiva, a omissão do Estado é
identificada como uma conduta necessariamente culposa; ao passo que os defensores
da responsabilidade objetiva identificam a omissão como o eventus damni, sendo a
partir dele estabelecido o nexo de causalidade com o dano, independentemente da
razão que tenha levado à inação do Estado15.

O autor entenderia, portando, que o dever do Estado de agir e o dano dele decor-
rente explicar-se-iam no campo do nexo de causalidade, sendo despicienda a invocação
da culpa para tanto.

Contudo, mesmo no terreno da responsabilidade civil por atos comissivos do


Estado, onde a doutrina e a jurisprudência aceitam com tranquilidade a incidência da
teoria objetiva, a discussão da culpa ainda permeia sua caracterização. Veja-se:

A existência da primeira excludente de responsabilidade, a culpa exclusiva da


vítima ou de terceiro, leva-nos à conclusão de que a culpa não é totalmente irrelevante
na teoria objetiva do risco administrativo. Ela não precisa ser demonstrada por aquele
que pede indenização. Todavia, se aquele contra quem se demanda demonstra que

14 FURTADO. op. cit., p. 839.

15 FURTADO. op. cit., p. 841.

176 Marina Regazzoni de Morais


houve culpa (em sentido amplo) por parte do particular que pleiteia indenização ou
por parte de terceiro, ele se exime de responsabilidade. Verifica-se, na teoria do risco
administrativo, efetiva inversão do ônus da prova da culpa: o particular que pede
indenização contra o poder público não precisa demonstrá-la, mas se o poder público
provar a culpa do particular, se exime de responsabilidade16.

Do pouco quanto foi escrito, já é possível constatarmos a fragilidade dessa


suposta diferença entre as teorias objetiva e subjetiva, de modo que a imprecisão se
faz igualmente presente na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Confiramos trecho do voto do Relator do RE 841526, em que se afirma e se


comprova o avançar da jurisprudência do STF no sentido da responsabilização objetiva
do ente público em caso de omissão, conquanto se anote necessária a constatação
da violação de um dever específico de agir, o que aproxima a tese daquela da falha
do serviço:

Diante de tal indefinição, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem se


orientando no sentido de que a responsabilidade civil do Estado por omissão também
está fundamentada no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, ou seja, configurado
o nexo de causalidade entre o dano sofrido pelo particular e a omissão do Poder
Público em impedir a sua ocorrência - quando tinha a obrigação legal específica de
fazê-lo - surge a obrigação de indenizar, independentemente de prova da culpa na
conduta administrativa, consoante os seguintes precedentes: (RE 677.283 AgR, Rel.
Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe de 08/05/2012); (ARE 754.778 AgR, Rel.
Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, DJe de 19/12/2013); (RE 607.771 AgR, Rel. Min. Eros
Grau, Segunda Turma, DJe de 14/05/2010); (AI 852.237 AgR, Rel. Min. Celso de Mello,
Segunda Turma, DJe de 25/06/2013).

Em outro momento do referido voto, o Relator busca explicitar essa tendência


jurisprudencial do Tribunal, oportunidade na qual estreita ainda mais os pressupostos
da responsabilização objetiva daqueles intrínsecos à teoria subjetiva:

Deveras, é fundamental ressaltar que, não obstante o Estado responda de forma


objetiva também pelas suas omissões, o nexo de causalidade entre essas omissões e
os danos sofridos pelos particulares só restará caracterizado quando o Poder Público
ostentar o dever legal específico de agir para impedir o evento danoso, não se desincum-
bindo dessa obrigação legal. Entendimento em sentido contrário significaria a adoção

16 Ibidem, p. 821.

O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) 841526 E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR SUICÍDIO 177
DE CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI ERIGIDO À CONDIÇÃO DE SEGURADOR UNIVERSAL?
da teoria do risco integral, repudiada pela Constituição Federal, como já mencionado
acima.

Com isso, o que se pretende demonstrar, em suma, é que, conquanto a doutrina e


a jurisprudência do Supremo aparentemente estejam adotando a teoria objetiva para
fundar a responsabilidade patrimonial estatal também por omissão, como não se
consegue diferenciá-la suficiente e convincentemente da teoria subjetiva, adotaremos
doravante o posicionamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, por sua solidez
argumentativa, como norte à análise do julgamento proferido no bojo do RE 841526,
foco deste trabalho.

1.3. A responsabilidade estatal por omissão na doutrina de


Celso Antônio Bandeira de Mello
Para Celso Antônio Bandeira de Mello, como já adiantado, não deve ser dado
o mesmo enquadramento jurídico às hipóteses de responsabilidade civil objetiva e
subjetiva do Estado.

Principiemos com a diferenciação estabelecida pelo autor:

Há responsabilidade objetiva quando basta para caracterizá-la a simples relação


causal entre um acontecimento e o efeito que produz. Há responsabilidade subjetiva
quando para caracterizá-la é necessário que a conduta geradora do dano revele deli-
beração na prática do comportamento proibido ou desatendimento indesejado dos
padrões de empenho, atenção ou habilidade normais (culpa) legalmente exigíveis, de
tal sorte que o direito em uma ou outra hipótese resulta transgredido17.

Ou seja, nesse último caso – de responsabilidade subjetiva – pressupõe-se


comportamento ilícito do ente público. É dizer: somente se cogita a responsabilidade
estatal se descumprido dever legal de ação para obstar o dano:

Casos em que não é uma atuação do Estado que produz o dano, mas, por omissão
sua, evento alheio ao Estado causa um dano que o Poder Público tinha o dever de evitar.
É a hipótese da ‘falta de serviço’, nas modalidades em que o ‘serviço não funcionou’
ou ‘funcionou tardiamente’ ou, ainda, funcionou de modo incapaz de obstar à lesão18.

17 BANDEIRA DE MELLO. op. cit., p. 1033.

18 Ibidem, p. 1038.

178 Marina Regazzoni de Morais


[...]

Com efeito: inexistindo obrigação legal de impedir um certo evento danoso (obri-
gação, de resto, só cogitável quando haja possibilidade de impedi-lo mediante atuação
diligente), seria um verdadeiro absurdo imputar ao Estado responsabilidade por um
dano que não causou, pois isto equivaleria a extraí-la do nada; significaria pretender
instaurá-la prescindindo de qualquer fundamento racional ou jurídico19.

Nas hipóteses de comportamentos omissivos, para que haja dever de reparação


pelo Estado, é mister, ainda, atentarmos para a imprescindibilidade de que o dano seja
decorrência direta da omissão; porquanto, não sendo causa do dano (fator positivo),
a omissão do Estado deve ser condição para ocorrência do dano, sob pena de afasta-
mento da responsabilidade. José dos Santos Carvalho Filho bem resume essa premissa:

Assinale-se, por oportuno, que, tratando-se de responsabilidade civil, urge que, nas
condutas omissivas, além do elemento culposo, se revele a presença de nexo direto de
causalidade entre o fato e o dano sofrido pela vítima. Significa dizer que não pode o
intérprete buscar a relação de causalidade quando há uma ou várias intercausas entre
a omissão e o resultado danoso20.

A preocupação dos autores justifica-se, porque, como visto alhures, o Estado, por
sua missão intrínseca, intervém em quase todos os contextos da vida do administrado,
o qual se vale cotidianamente de serviços, bens públicos, atos normativos emanados
de autoridades públicas etc. De sorte que, se não adotado um freio ao ímpeto de
responsabilizar o ente público, este se obrigaria por praticamente todo infortúnio
vivenciado pelo particular fora de experiências exclusivamente privadas:

É razoável e impositivo que o Estado responda objetivamente pelos danos que


causou. Mas só é razoável e impositivo que responda pelos danos que não causou
quando estiver de direito obrigado a impedi-los.

Ademais, solução diversa conduziria a absurdos. É que, em princípio, cumpre


ao Estado prover a todos os interesses da coletividade. Ante qualquer evento lesivo
causado por terceiro, como um assalto em via pública, uma enchente qualquer, uma
agressão sofrida em local público, o lesado poderia sempre arguir que o ‘serviço não

19 Ibidem, p. 1041.

20 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21. ed. Rio de Janeiro, Lumen
Juris, 2009, p. 540.

O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) 841526 E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR SUICÍDIO 179
DE CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI ERIGIDO À CONDIÇÃO DE SEGURADOR UNIVERSAL?
funcionou’. A admitir-se responsabilidade objetiva nessas hipóteses, o Estado estaria
erigido em segurador universal21.

Como se verificar, contudo, com clareza, as hipóteses de falha do serviço público


passíveis de gerar reparação civil por danos?

Não há resposta a priori quanto ao que seria o padrão normal tipificador da obri-
gação a que estaria legalmente adstrito. Cabe indicar, no entanto, que a normalidade da
eficiência há de ser apurada em função do meio social, do estádio de desenvolvimento
tecnológico, cultural, econômico e da conjuntura da época, isto é, das possibilidades
reais médias dentro do ambiente em que se produziu o fato danoso22.

Uma baliza eficiente, segundo o autor, é o teor das leis e normas internas que
instituem e regulam o respectivo serviço público, as quais indicam um padrão mínimo
de funcionamento adequado.

Finalmente, Bandeira de Mello nos ensina que a caracterização da responsabili-


dade do ente público prescinde da demonstração de culpa pelo particular. Longe de a
afirmação soar incongruente frente ao quanto já declarado sobre atos omissivos, tal
significa, tão somente, que a prática reclama uma inversão do ônus da prova, tendo
estabelecido o texto constitucional, implicitamente, uma presunção juris tantum de
culpa do Poder Público, como forma de viabilizar sua responsabilização:

Com efeito, nos casos de “falta de serviço”, é de admitir-se uma presunção de


culpa do Poder Público, sem o quê o administrado ficaria em posição extremamente
frágil ou até mesmo desprotegido ante a dificuldade ou até mesmo impossibilidade
de demonstrar que o serviço não se desempenhou como deveria23.

Cuida o autor de explicitar que a “culpa presumida” não seria um fator de trans-
mudação da responsabilidade para objetiva, “pois, se o Poder Público provar que não
houve omissão culposa ou dolosa, descaberá responsabilizá-lo; diversamente do que
ocorre na responsabilidade objetiva, em que nada importa se teve, ou não, culpa:
responderá do mesmo modo”24.

21 BANDEIRA DE MELLO. op. cit., p. 1043.

22 BANDEIRA DE MELLO. op. cit., p. 1042.

23 BANDEIRA DE MELLO. op. cit., pp. 1043-4.

24 Ibidem, p. 1043.

180 Marina Regazzoni de Morais


Noutra ponta, a despeito de afirmar que a regra, nos casos em que o ente público
não provocou o dano – por ato comissivo – seja a responsabilidade subjetiva, Bandeira
de Mello admite a objetivação da responsabilidade quando é o “Poder Público, quem
constitui, por ato comissivo seu, os fatores que propiciarão decisivamente a emergência
de dano”25.

As hipóteses mais comuns, segundo o autor, seriam decorrentes de guarda, pelo


Poder Público, de coisas ou pessoas perigosas, quando, invariavelmente, se expõe
terceiros a riscos. Segue sua teorização:

[…] não é uma atuação do Estado que produz o dano, contudo é por atividade dele
que se cria a situação propiciatória do dano, porque expôs alguém a risco. […] Nestas
hipóteses, pode-se dizer que não há causação direta e imediata do dano por parte do
Estado, mas seu comportamento ativo entra, de modo mediato, porém decisivo, na
linha de causação26.

Trazendo a explicação do autor para o contexto o qual pretendemos analisar,


de danos provocados a/por custodiados em estabelecimentos prisionais, podemos
traçar a tese de que, no caso de homicídio provocado por detento, em regra, teremos
responsabilidade objetiva se decorrente o dano do risco criado pelo Estado ao aprisionar
pessoas perigosas.

No caso, deve-se perquirir, pois, se o risco inerente à situação concorreu para o


dano. No caso de assassinato de um detento por outro, há fortes indícios de que sim.
Porém, no caso de óbito de detento em razão de doença preexistente, não haveria
liame lógico, a princípio, entre o risco de guarda de pessoas perigosas e o óbito. Nesse
último caso, a análise da responsabilidade estatal perpassaria a teoria subjetiva da
falha do serviço público, podendo o ente público comprovar, por exemplo, que proveu
o detento de assistência médico-hospitalar adequada, o que afastaria sua culpa e, por
conseguinte, o dever de reparação.

No caso de suicídio de custodiado, objeto direto do nosso trabalho, poderíamos


aduzir que o Estado criou o risco em razão da guarda de pessoas perigosas?

25 Ibidem, p. 1046.

26 Ibidem, pp. 1038-9.

O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) 841526 E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR SUICÍDIO 181
DE CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI ERIGIDO À CONDIÇÃO DE SEGURADOR UNIVERSAL?
A partir da diferenciação empreendida por Bandeira de Mello e explicitada acima,
parece-nos que não, porquanto não há relação necessária entre o ímpeto e/ou a conse-
cução do suicídio e, de outro lado, a convivência com infratores da lei penal.

Com efeito, a não ser que a situação concreta sugira o contrário, não se pode
afirmar per si que o risco criado pelo Estado com a guarda de criminosos tenha gerado
no detento o desejo e a ação de ceifar a própria vida.

No caso de suicídio, entendemos, portanto, pela ótica da responsabilidade subje-


tiva, sendo, então, facultado ao ente público a prova de que, podendo ter agido para
evitar o infortúnio, o fez satisfatoriamente, conquanto não tenha sido possível evitar
o resultado morte. Caberia ainda ao Poder Público comprovar a inexistência de real
possibilidade de ação, na circunstância específica, para evitar o dano.

Em suma: por tudo quanto exposto, na hipótese de suicídio, entendemos mais


razoável a invocação da tese da responsabilidade subjetiva, porque a condição adequada
ao evento danoso adviria, em tese, não do risco criado pelo Estado com o encarcera-
mento em meio a pessoas perigosas, mas da deficiência do serviço médico-psicológico
direcionado à vítima. Ou seja, deve-se provar a ilicitude do comportamento estatal.

É dizer: não é possível atribuir ao Estado o dever absoluto de guarda da integridade


física dos presos, especialmente quando não há nenhum histórico anterior de distúrbios
comportamentais.

Vejamos adiante como a questão foi abordada durante o julgamento do Recurso


Extraordinário (RE) 841526, e qual foi a tese firmada.

2. JULGAMENTO PELO STF DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE)


841526

2.1. Tese firmada


No julgamento pelo STF do Recurso Extraordinário (RE) 841526, em 30 de março
de 2016, com repercussão geral da matéria reconhecida, o Estado do Rio grande do
Sul foi condenado ao pagamento de indenização à família de um detento pela morte
deste ocorrida na Penitenciária Estadual de Jacuí. Segundo a necrópsia, a morte fora

182 Marina Regazzoni de Morais


causada por asfixia mecânica (enforcamento), entretanto, o laudo não foi conclusivo
se em decorrência de homicídio ou suicídio.

Por oportuno ao entendimento da abrangência do julgado, segue a ementa do


acórdão:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. RESPONSABILIDADE


CIVIL DO ESTADO POR MORTE DE DETENTO. ARTIGOS 5º, XLIX, E 37, § 6º, DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. A responsabilidade civil estatal, segundo a Constituição
Federal de 1988, em seu artigo 37, § 6º, subsume-se à teoria do risco administrativo,
tanto para as condutas estatais comissivas quanto paras as omissivas, posto rejeitada
a teoria do risco integral. 2. A omissão do Estado reclama nexo de causalidade em
relação ao dano sofrido pela vítima nos casos em que o Poder Público ostenta o dever
legal e a efetiva possibilidade de agir para impedir o resultado danoso. 3. É dever do
Estado e direito subjetivo do preso que a execução da pena se dê de forma humani-
zada, garantindo-se os direitos fundamentais do detento, e o de ter preservada a sua
incolumidade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal). 4. O dever
constitucional de proteção ao detento somente se considera violado quando possível
a atuação estatal no sentido de garantir os seus direitos fundamentais, pressuposto
inafastável para a configuração da responsabilidade civil objetiva estatal, na forma do
artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. 5. Ad impossibilia nemo tenetur, por isso que
nos casos em que não é possível ao Estado agir para evitar a morte do detento (que
ocorreria mesmo que o preso estivesse em liberdade), rompe-se o nexo de causalidade,
afastando-se a responsabilidade do Poder Público, sob pena de adotar-se contra legem
e a opinio doctorum a teoria do risco integral, ao arrepio do texto constitucional. 6.
A morte do detento pode ocorrer por várias causas, como, v. g., homicídio, suicídio,
acidente ou morte natural, sendo que nem sempre será possível ao Estado evitá-la,
por mais que adote as precauções exigíveis. 7. A responsabilidade civil estatal resta
conjurada nas hipóteses em que o Poder Público comprova causa impeditiva da sua
atuação protetiva do detento, rompendo o nexo de causalidade da sua omissão com
o resultado danoso. 8. Repercussão geral constitucional que assenta a tese de que:
em caso de inobservância do seu dever específico de proteção previsto no artigo 5º,
inciso XLIX, da Constituição Federal, o Estado é responsável pela morte do detento. 9.
In casu, o tribunal a quo assentou que inocorreu a comprovação do suicídio do detento,
nem outra causa capaz de romper o nexo de causalidade da sua omissão com o óbito
ocorrido, restando escorreita a decisão impositiva de responsabilidade civil estatal.
10. Recurso extraordinário DESPROVIDO.

O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) 841526 E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR SUICÍDIO 183
DE CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI ERIGIDO À CONDIÇÃO DE SEGURADOR UNIVERSAL?
No final do julgamento, firmou-se a seguinte tese de repercussão geral: “Em caso
de inobservância de seu dever específico de proteção previsto no artigo 5º, inciso XLIX,
da Constituição Federal, o Estado é responsável pela morte de detento”.

Pois bem. Segundo o referido artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, “é
assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.

Tendo o STF empregado a essa norma constitucional efetividade máxima27, dela


extrair-se-ia, pois, o dever legal de agir para proteger a incolumidade física e moral do
detento. Contudo, e como ressalvado na própria ementa do julgado, a violação ao dever
específico de proteção somente restaria configurado caso possível a atuação estatal
no sentido de garantir os direitos fundamentais do preso.

É dizer: se o ente estatal não tivesse meios de agir para impedir o dano – a ele
atribuído o ônus dessa prova –, não seria responsabilizado.

O fato é que, caso o Estado não garanta a integridade física e moral do preso,
eventual dano daí advindo será, em regra, indenizável, tendo em conta a dificuldade
de se produzir prova em contrário.

Em outras palavras, reconheceu o Supremo que o ato de aprisionamento agrava


o dever do Estado de proteger aquele sob sua custódia. A contrario sensu, entende-se
que o dano ocorrido a não-aprisionado não é valorado da mesma forma e não acarreta
as mesmas consequências ao ente estatal.

Veja-se: o homicídio e o suicídio ocorridos fora da cadeia não ocasionariam ao


Estado, em princípio, o mesmo peso da responsabilidade, conquanto ele também tenha
se obrigado constitucionalmente a garantir a segurança28 e a saúde29 da população
como um todo.

27 “[…] também conhecido como princípio da interpretação efetiva ou da eficiência – [o princípio da máxima
efetividade] é invocado no âmbito dos direitos fundamentais, impondo lhes seja atribuído o sentido que
confira a maior efetividade possível, visando à realização concreta de sua função social” (NOVELINO,
Marcelo. Direito Constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012, p. 190).

28 Art. 144, CF. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para
a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes
órgãos: […].

29 Art. 196, CF. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais
e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

184 Marina Regazzoni de Morais


Exemplificando: em caso de vítima de homicídio ocorrido em via pública e em caso
de suicídio de vítima que se joga contra carro em movimento, também em via pública,
dificilmente se poderia advogar pelo nexo causal entre os danos experimentados e
eventual omissão do ente público, construindo uma tese de responsabilidade estatal.

Noutro giro, quando as mesmas espécies de danos acima narradas se consumam


nas dependências de um presídio, é tarefa árdua desconstruir a tese da responsabili-
dade do Poder Público, a partir desse entendimento do STF.

Sobre essa diferenciação, explicou o relator do RE em debate que o poder estatal


de punir traz por consequência sua responsabilização por danos causados ao preso
no desempenho desse munus público.

Novamente, portanto, estamos a volta da teoria do risco administrativo.

O Supremo reputou, assim, que o encarceramento agravou a responsabilidade


do ente público pelo dano causado ao custodiado no caso em debate, em razão do
seu dever específico de garantir a inviolabilidade da vítima. Contudo, a excludente de
responsabilidade explicitada na ementa do acórdão “nos casos em que não é possível
ao Estado agir para evitar a morte do detento (que ocorreria mesmo que o preso
estivesse em liberdade)” aproxima a tese do Supremo da defendida por Celso Antônio
Bandeira de Mello, de que o dever de reparação civil pelo ente público, em caso de
omissão, nasce, em regra, de um comportamento ilícito da sua parte.

E, para analisarmos se havia meios de o Estado atuar, in concreto, na proteção do


detento, perpassamos a inexorável investigação da culpa do ente público.

Vejamos trechos elucidativos do voto do Ministro Luiz Fux, Relator do RE 841526:

De fato, haverá hipóteses em que o suicídio de um detento será um evento


previsível à luz do seu histórico carcerário, o qual poderá revelar sintomas e indícios
perceptíveis pela ciência psiquiátrica de um estado mental instável e tendente à prática
de um ato autodestrutivo. Por outro lado, haverá igualmente casos em que o suicídio
será um ato repentino e isolado, praticado num momento fugaz de angústia exacerbada
e absolutamente imprevisível ao mais atento carcereiro, médico ou até mesmo aos
mais próximos entes queridos do falecido (2016, p. 36).

Diante de tais considerações, é possível extrair um denominador comum a todas as


situações específicas retratadas acima: há casos em que a morte do detento simples-
mente não pode ser evitada pelo Estado. Nesses casos, como já se ressaltou acima,
rompe-se o nexo de causalidade entre o resultado morte e a omissão estatal no seu

O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) 841526 E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR SUICÍDIO 185
DE CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI ERIGIDO À CONDIÇÃO DE SEGURADOR UNIVERSAL?
dever de manter a incolumidade física dos presos, o que afasta a responsabilização civil
do ente público. Adota-se aqui, portanto, a teoria do risco administrativo, que permite a
oposição de causas excludentes do nexo causal - as quais devem ser comprovadas pela
Administração -, rejeitando-se, por consequência, a incidência da teoria do risco integral,
não recepcionada pela ordem constitucional brasileira, que implicaria a imposição de
responsabilidade civil ao Estado por toda e qualquer morte de detento.

Vemos, portanto, a prevalência da tese de que o Estado é, em regra, responsável


pelos danos causados a custodiados mesmo que por ação da própria vítima ou de
terceiro, cabendo a ele, entretanto, a prova de que não poderia ter agido para impedir o
dano. Ou seja, a ele é conferido o poder de provar que sua omissão foi lícita, afastando
sua responsabilidade.

2.2. Discussões levantadas pelos Ministros sobre


responsabilidade civil do Estado por danos envolvendo
detentos
Para melhor compreensão do que a doutrina compreende como responsabilidade
por risco integral, em contraposição à teoria do risco administrativo, a qual admite
limites à configuração do dever de indenizar, confiramos lição do professor José dos
Santos Carvalho Filho: “[...] no risco integral a responsabilidade sequer depende do
nexo causal e ocorre até mesmo quando a culpa é da própria vítima”30.

Pois bem. Como visto no tópico anterior, o Relator do RE 841526 sob análise,
Ministro Luiz Fux, defendeu e consignou na ementa do acórdão que:

[...] nos casos em que não é possível ao Estado agir para evitar a morte do detento
(que ocorreria mesmo que o preso estivesse em liberdade), rompe-se o nexo de causa-
lidade, afastando-se a responsabilidade do Poder Público, sob pena de adotar-se contra
legem e a opinio doctorum a teoria do risco integral, ao arrepio do texto constitucional.

Nada obstante, durante as discussões em torno do voto do relator, restou eviden-


ciado que alguns dos Ministros participantes da sessão de julgamento entenderam
que, enquanto mantido o estado de coisas inconstitucional31 no tocante às condições

30 CARVALHO FILHO. op. cit., p. 524.

31 Durante o julgamento da medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.


347, do Distrito Federal, o STF reconheceu a figura do “estado de coisas inconstitucional” relativamente

186 Marina Regazzoni de Morais


precárias das penitenciárias, o Estado responderia integralmente pelos danos aos
detentos.

Vejamos alguns trechos elucidativos do diálogo entre os ministros durante a


aludida sessão:

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - E não acho que seja justo.
Quer dizer, vamos imaginar que o preso esteja engendrando um artefato para matar o
adversário, aí explode na mão dele. O Estado é responsável?

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Sob o ângulo da vigilância, sim. Há


inspeções rotineiras.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Como é que esse


artefato ingressou na penitenciária?

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - É, mas aí nós vamos ter que
responsabilizar o poder público por todos os homicídios, porque não fiscaliza o contra-
bando de armas.

O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX (RELATOR) - Não, a tese tem que se submeter,
necessariamente, a essa ampla colegialidade.

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - O que eu acho inte-


ressante é que o Ministro Marco Aurélio, salvo melhor juízo, até de forma consentânea
com aquilo que afirmou na cautelar sob sua relatoria, o sistema prisional brasileiro está
num estado inconstitucional de coisas. Enquanto isto assim permanecer, me parece
que a responsabilidade é integral.

ao sistema penitenciário brasileiro, em acórdão assim ementado: “CUSTODIADO – INTEGRIDADE


FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental
considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL
– SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA
DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL
– CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais,
decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas
abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional
ser caraterizado como ‘estado de coisas inconstitucional’. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS
– CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona
à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA
OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis
e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias,
audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo
máximo de 24 horas, contado do momento da prisão”. (STF, 2015)

O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) 841526 E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR SUICÍDIO 187
DE CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI ERIGIDO À CONDIÇÃO DE SEGURADOR UNIVERSAL?
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – E pelo nexo de causalidade que sempre
existirá.

Ou seja, é possível identificarmos uma inclinação de alguns membros da Corte


à adoção da teoria do risco integral como recurso político para pressionar o Poder
Executivo à melhoria do tratamento destinado aos detentos do país.

2.3. O STF, no julgamento do RE 841526, considerou o Estado


um segurador universal em demandas envolvendo danos a
custodiados?
Dizer que, no bojo do indigitado RE, o Estado foi erigido à condição de segurador
universal implica em afirmar que prevaleceu a adoção da teoria da responsabilidade
por risco integral, segundo a qual, ocorrido dano a custodiado, independentemente das
circunstâncias que envolveram o incidente, responderia o ente público.

Do quanto exposto até este ponto, não nos parece, contudo, ter sido essa a solução
encampada pela nossa Corte Suprema.

Com efeito, malgrado a tese firmada - “Em caso de inobservância de seu dever
específico de proteção previsto no artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, o
Estado é responsável pela morte de detento” - não tenha deixado expressa a possibi-
lidade de elisão da responsabilidade por comprovação de excludentes de nexo causal
– ou de culpa –, seu texto também não exclui essa leitura.

Ademais, como tratado em tópico anterior, verificamos em diversos trechos do


voto do Relator, inclusive na ementa do julgado, a assertiva de que responde o Estado,
no contexto prisional, tão somente se lhe fora possível agir para impedir o resultado
danoso, cabendo a ele, entrementes, a prova da excludente da responsabilidade.

Nada obstante não tenha sido viável estabelecermos se, no julgado em estudo,
o STF tenha verdadeiramente adotado a teoria subjetiva ou a objetiva por risco admi-
nistrativo, diante da confusão doutrinária e jurisprudencial na diferenciação de ambas,
como observado nos tópicos anteriores, não se pode ignorar que foi reconhecida a
possibilidade de prova da Administração acerca de sua irresponsabilidade.

E isso afasta, ao menos por hora, a conclusão de que o STF tenha, no julgado em
destaque, reputado ao Estado condição de segurador universal.

188 Marina Regazzoni de Morais


Contudo, como já salientamos, o julgamento demonstrou uma tendência de alguns
Ministros da Corte em alargar as hipóteses de responsabilização do ente público no
contexto em testilha, como uma reação ao quadro recorrente de precariedade das
penitenciárias.

Amoldam-se a essa realidade os apontamentos de José dos Santos Carvalho Filho:

Em tempos atuais, tem-se desenvolvido a teoria do risco social, segundo a qual


o foco da responsabilidade civil é a vítima, e não o autor do dano, de modo que a
reparação estaria a cargo de toda a coletividade, dano ensejo ao que se denomina de
socialização dos riscos – sempre com o intuito de que o lesado não deixe de merecer
a justa reparação pelo dano sofrido. A referida teoria, no fundo, constitui mero aspecto
específico da teoria do risco integral, sendo que para alguns autores é para onde se
encaminha a responsabilidade civil do Estado: seria este responsável mesmo se os
danos não lhe forem imputáveis. Em nosso entender, porém, tal caráter genérico da
responsabilidade poderia provocar grande insegurança jurídica e graves agressões ao
erário, prejudicando em última análise os próprios contribuintes32.

Ponderou o autor, a nosso ver, se, mesmo ante uma justificativa louvável – proteção
da vítima –, podem os tribunais construir uma jurisprudência defensiva, aparentemente
destituída de respaldo legal e, ainda, em detrimento do erário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Respondido o questionamento central deste trabalho no tópico anterior, enten-
demos que saber se o STF tendeu para valorar o Estado como segurador universal em
demandas envolvendo danos a detentos não é a única chave de interpretação do RE
841526.

Referido julgamento nos proporciona uma série de outras potenciais questões a


serem discutidas e solvidas pelos estudiosos e operadores do Direito.

Não pretendemos neste espaço aprofundá-las, mesmo porque, não foi o objeto do
nosso estudo; mas, pela sua conexão com o tema deste, dedicaremos este tópico final
a apresentá-las, na medida em que elas nos auxiliarão no vislumbre da complexidade
dos fatores que circundam a responsabilidade civil do Estado.

32 CARVALHO FILHO. op. cit., pp. 524-5.

O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) 841526 E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR SUICÍDIO 189
DE CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI ERIGIDO À CONDIÇÃO DE SEGURADOR UNIVERSAL?
Pois bem. Como afirmamos ao longo deste artigo, conquanto o STF não tenha
optado pela responsabilidade integral no julgado em debate, sedimentou um agrava-
mento da análise dos pressupostos da responsabilização do ente público em razão do
seu dever constitucional de garantir a integridade física e psicológica dos detentos.

Dessa conclusão podemos questionar se o mero fato de o Estado estar indire-


tamente envolvido no dano – tão só por exercer a custódia coercitiva da vítima ou do
autor do dano – seria o bastante para gerar o dever de indenizar civilmente.

É dizer: o aprisionamento seria causa suficiente e/ou adequada para erigir uma
presunção relativa de “culpa” do poder público por todo e qualquer dano ocorrido em
dependências prisionais?

Onde residiria o risco administrativo a justificar a pretensa adoção da responsabi-


lidade objetiva no caso de suicídio? No sofrimento inerente à condição de aprisionado?

E mais, na linha de raciocínio seguida por alguns dos Ministros durante a sessão
de julgamento, é forçoso concluir que o reconhecimento do “estado de coisas incons-
titucional” nos presídios redundaria em espécie de salvaguarda à irresponsabilidade
absoluta dos detentos pelos atos por eles cometidos?

Em outra chave de interpretação, poderíamos afirmar, na esteira da ratio decidendi


formada no julgamento paradigma, que há o dever legal específico do Estado de agir
para impedir o suicídio de alguém?

Se entendido que referido dever somente se verifica em favor daqueles sob


custódia estatal, é defensável a afirmação de que essa obrigação está contida no
mencionado artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal ou, mesmo, na Lei de
Execução Penal?

Em última análise, ante uma resposta afirmativa à indagação anterior, estaremos,


logicamente, concluindo que apenas os custodiados não teriam o direito oponível ao
Estado de decidir pela sua morte?

Explica-se: é realmente legítimo extrairmos da normativa citada que o dever de


respeitar a integridade física e moral do preso compreende, também, o dever específico
de agir para evitar seu suicídio? Para os não custodiados, entretanto, haveria o direito
potestativo de morrer?

E essa reflexão deságua na derradeira: a ingerência do Estado-juiz nessa decisão


mais íntima do cidadão, representada no julgado em estudo, retrataria um agigantamento

190 Marina Regazzoni de Morais


do Poder Judiciário em nosso país, como possível reflexo do acanhamento dos demais
Poderes da República.

Em suma, a decisão do STF não teria resultado em novo marco, no Direito brasi-
leiro, sobre a abrangência da responsabilidade civil do Estado, como verificado no
tópico anterior. Nada obstante, nos trouxe à baila um sem número de questões que nos
possibilitam analisar o amadurecimento, no país, dos temas sobre responsabilidade
civil estatal e sobre o papel deste mesmo Estado, encarnado em cada um dos três
Poderes, na vida das pessoas.

ReferênciaS
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São
Paulo: Malheiros, 2015.
BEZERRA DE MELO, Marco Aurélio. Considerações sobre a Responsabilidade Civil do
Estado. Gen Jurídico, 2015. Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2015/12/23/
consideracoes-sobre-a-sobre-a-responsabilidade-civil-do-estado/>. Acesso em: 01
ago. 2018.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil. Atos do Poder Legislativo, Brasília, DF, 05 out. 1988.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao-
compilado.htm>. Acesso em: 29 jul. 2018.
BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil. Atos do Poder Legislativo, Brasília, DF,
11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/
L10406compilada.htm>. Acesso em: 29 jul. 2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Medida Cautelar em Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental. ADPF n. 347-DF. Requerente: Partido
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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21. ed. Rio de
Janeiro, Lumen Juris, 2009.

O RECURSO EXTRAORDINÁRIO (RE) 841526 E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR SUICÍDIO 191
DE CUSTODIADO: O ENTE PÚBLICO FOI ERIGIDO À CONDIÇÃO DE SEGURADOR UNIVERSAL?
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciado n. 448 do CJF, da V Jornada de Direito
Civil. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/377>. Acesso
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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas,
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FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. 4. ed. Belo Horizonte:
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GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil.
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NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense; São
Paulo: Método, 2012
TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: Método, 2012.

192 Marina Regazzoni de Morais


O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS
APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO
SEGUNDO A PERSPECTIVA DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA
DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE
RONALD DWORKIN
Matheus Silva Campos Ferreira1

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a existência de mera
expectativa ou direito subjetivo à nomeação para os aprovados em concurso
público. Neste sentido, destaca-se que importância dos concursos públicos,
principalmente diante do novo prisma constitucional, bem como sua utili-
zação como meio de defesa da moralidade e impessoalidade dos atos da
administração e a constante tensão entre direitos subjetivos do cidadão e
interesse da administração. São analisados também julgados proferidos
pelo Supremo Tribunal Federal sobre a questão e questiona com base nos
pressupostos da Teoria do Direito e Hermenêutica Jurídica a conclusão
alcançada pela mais alta corte judicial brasileira.

1 Pós-graduando em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático – IDDE, Belo
Horizonte - MG. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas,
Campus Serro, Advogado, Sócio do Escritório Breguêz & Ferreira Advogados Associados.
FERREIRA, Matheus Silva Campos. O direito à nomeação para os aprovados em concurso público segundo a perspectiva do
Supremo Tribunal Federal e da teoria do direito como integridade de Ronald Dworkin. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; SACCHETTO,-
Thiago Coelho (Orgs.). Advocacia pública em foco. Volume II. Belo Horizonte: IDDE, 2019. p. 193-220. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671341097
INTRODUÇÃO
O advento da Constituição Federal de 1.988 e a efetivação do concurso público
como regra para o acesso do cidadão a cargos efetivos e empregos públicos fez com
a jurisprudência e a doutrina rediscutissem, agora amparados no prisma da liberdade
e garantia de direitos fundamentais, diversos institutos relacionados a matéria.

Destaca-se, desde já, que a análise sobre os concursos públicos, independen-


temente do aspecto abordado, sempre representará uma constante tensão entre o
interesse da administração em escolher aqueles melhores qualificados para o exercício
da referida função pública e o interesse daqueles que buscam, e muita vezes tem como
projeto de vida, servir ao estado integrando a máquina pública.

Neste sentido, sempre amparado neste eterno paradoxo entre direitos individuais
e os interesse da Administração Pública, muito já se discutiu sobre que tipo de relação
passaria existir quando determinado cidadão é aprovado em um concurso público.
Existiria dever da administração pública promover a imediata nomeação deste cidadão
aprovado no certame ou em favor deste existiria mera expectativa de direito a ser
respeitada pelo poder público?

Salienta-se que depois de divergências históricas sobre a questão, inclusive


com turmas do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça defendendo
entendimentos completamente divergentes sobre matéria, o Pretório Excelso, com a
relatoria dos eminentes ministros Gilmar Mendes e Luiz Fux, pós fim a tais disparidade
de entendimentos.

A Corte Maior do judiciário brasileiro reconheceu com repercussão geral a exis-


tência de direito subjetivo a nomeação para os candidatos aprovados dentro do número
de vagas estabelecidos pelo edital convocatório do certame (RE 598.099/MS), bem
como a existência de mera expectativa de direitos para os demais cidadãos classifi-
cados fora do número de vagas previamente estabelecido, mesmo se durante a vigência
do referido concurso surgissem perante os quadros de servidores da administração
pública novas vagas para o cargo em disputa (RE 837.311/PI).

Destaca-se, no entanto, que a regra fixada pelos dois julgados, segundo inter-
pretação dada pelo próprio STF, contemplam exceções que permitem a mitigação do
direito nomeação ao aprovados dentro do número de vagas, bem como a convalidação
da expectativa em direito à nomeação para aqueles que aprovados inicialmente não

194 Matheus Silva Campos Ferreira


estavam classificados dentro do limite de vagas fixado no instrumento convocatório
do certame.

Tal flexibilização permite que o provimento jurisdicional tende a pender ora em


favor da administração, ora em favor do cidadão aprovado em concurso, que quando
conjugado com o princípio da inafastabilidade da jurisdição2, obrigará que o judiciário
– apesar da ressalva do Supremo Tribunal Federal, atue como “administrador positivo”
interferindo no grau de discricionariedade do administrador público3.

Desta forma, buscar-se-á realizar uma análise da questão com base nos pres-
supostos da teoria geral do direito e hermenêutica jurídica, em especial da teoria do
direito como integridade de Ronald Dworkin, e à possibilidade de se chegar a uma
única resposta correta sobre a controvérsia diante de uma proposta construtiva diante
do fato concreto.

1. DIREITO SUBJETIVO OU MERA EXPECTATIVA DE DIREITO


À NOMEAÇÃO DOS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO:
ANÁLISE DO ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
(RE 598.099/MS E RE 837.311/PI) SOBRE O MATÉRIA
ENVOLVENDO OS CONCURSOS PÚBLICOS
A Constituição Federal de 1.988 traz expresso em seu artigo 37, incisos II e IV4,
a obrigatoriedade do concurso público como regra a possibilitar o acesso do cidadão

2 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito;

3 Supremo Tribunal Federal – Recurso Extraordinário de nº 837.311/PI – Relator Ministro Luiz Fux

4 Artigo 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…) II - a investidura em cargo ou emprego público
depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a
natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações
para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração (…) IV - durante o prazo
improrrogável previsto no edital de convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou
de provas e títulos será convocado com prioridade sobre novos concursados para assumir cargo ou
emprego, na carreira;

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 195


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
à cargos efetivos ou emprego públicos em qualquer nível ou esfera da administração
pública brasileira, seja ela direta ou indireta.

Trata-se de norma aclamada como forma de possibilitar a efetivação de vários


princípios constitucionais que se tornaram cada vez mais basilares à condução da
atuação da Administração Pública. Entre os princípios em questão, destacam-se os
princípio da impessoalidade e moralidade dos atos da administração, princípios estes
que expressam o cerne do Estado Democrático de Direito ao possibilitar acesso de
qualquer cidadão a um cargo pública mediante processo de seleção pública.

Nota-se que a nova ordem constitucional acabou por criar uma expectativa positiva
em favor do cidadão comum, que historicamente não pertencia as elites políticas e/ou
econômicas, de também poder servir ao Estado. Tal expectativa fomentou o aumento
do interesse da população em geral neste tipo de certame e, consequentemente, gerou
maior atenção da doutrina e jurisprudência sobre o seu funcionamento.

Neste sentido, Carvalho Filho5 define concurso público como “procedimento


administrativo que tem por fim aferir as aptidões pessoais e selecionar os melhores
candidatos ao provimento de cargos e funções públicas”.

Incontestavelmente o procedimento em questão tem como objetivo garantir que


os melhores qualificados segundo as regras do certamente serão aqueles que de fato
terão acesso aos cargos disponíveis nos quadros de servidores da administração
pública, sendo o melhor instrumento capaz de representar o “sistema de mérito”6 típico
de um estado democrático.

No entanto, ser declarado como o mais qualificado para ocupar um determinado


cargo público muitas vezes não era garantia de efetivo acesso a vaga em disputa.
Cabe destacar que durante muito tempo o entendimento dominante na jurisprudência
nacional era de que o cidadão aprovado no certame não possuía direito de ser nomeado,
mas detinha apenas mera expectativa do exercício de tal prerrogativa.

5 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas. 27ª Edição,
2014, páginas 21/22

6 Sobre o sistema de mérito ver: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo.
São Paulo: Atlas. 27ª Edição, 2014, página 634

196 Matheus Silva Campos Ferreira


No mesmo giro, por muito tempo vigorou o entendimento de que a Administração
Pública não tinha o dever de realizar a nomeação de qualquer aprovado em concurso
público, uma vez que esta poderia, discricionariamente, decidir se a realização de tal
ato era conveniente e oportuno aos seus interesses.

Este inclusive era o entendimento dominante no Supremo Tribunal Federal até


mesmo sobre a égide da Constituição Federal de 1.988.

Entretanto, já nesta década de 2010, o julgamento de dois recursos extraordinários


pelo Pretório Excelso (RE 598.099/MS e RE 837.311/PI) deram novos contornos a matéria
reconhecendo-se mais direitos ao cidadão e um limite a atuação da administração.

1.1. Recurso Extraordinário 598.099/MS e a garantia do


direito a nomeação dos aprovados dentro do número de vagas
estabelecidos no certame
Cabe destacar que o caso que representou a consolidação da mudança de
entendimento do judiciário brasileiro em prol da efetivação do direito a nomeação dos
aprovados em concurso público – RE 598.099/MS, foi julgado em agosto de 2011, teve
a relatoria do Eminente Ministro Gilmar Mendes e foi assim emendado:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. CONCURSO PÚBLICO.
PREVISÃO DE VAGAS EM EDITAL. DIREITO À NOMEAÇÃO DOS CANDIDATOS
APROVADOS. I. DIREITO À NOMEAÇÃO. CANDIDATO APROVADO DENTRO DO
NÚMERO DE VAGAS PREVISTAS NO EDITAL. Dentro do prazo de validade do
concurso, a Administração poderá escolher o momento no qual se realizará a
nomeação, mas não poderá dispor sobre a própria nomeação, a qual, de acordo
com o edital, passa a constituir um direito do concursando aprovado e, dessa
forma, um dever imposto ao poder público. Uma vez publicado o edital do
concurso com número específico de vagas, o ato da Administração que declara
os candidatos aprovados no certame cria um dever de nomeação para a própria
Administração e, portanto, um direito à nomeação titularizado pelo candidato
aprovado dentro desse número de vagas. II. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. BOA-FÉ. PROTEÇÃO À CONFIANÇA. O
dever de boa-fé da Administração Pública exige o respeito incondicional às
regras do edital, inclusive quanto à previsão das vagas do concurso público.
Isso igualmente decorre de um necessário e incondicional respeito à segurança
jurídica como princípio do Estado de Direito. Tem-se, aqui, o princípio da segurança

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 197


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
jurídica como princípio de proteção à confiança. Quando a Administração torna
público um edital de concurso, convocando todos os cidadãos a participarem
de seleção para o preenchimento de determinadas vagas no serviço público,
ela impreterivelmente gera uma expectativa quanto ao seu comportamento
segundo as regras previstas nesse edital. Aqueles cidadãos que decidem se
inscrever e participar do certame público depositam sua confiança no Estado
administrador, que deve atuar de forma responsável quanto às normas do edital
e observar o princípio da segurança jurídica como guia de comportamento. Isso
quer dizer, em outros termos, que o comportamento da Administração Pública no
decorrer do concurso público deve se pautar pela boa-fé, tanto no sentido objetivo
quanto no aspecto subjetivo de respeito à confiança nela depositada por todos
os cidadãos. III. SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS. NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO.
CONTROLE PELO PODER JUDICIÁRIO. Quando se afirma que a Administração
Pública tem a obrigação de nomear os aprovados dentro do número de vagas
previsto no edital, deve-se levar em consideração a possibilidade de situações
excepcionalíssimas que justifiquem soluções diferenciadas, devidamente
motivadas de acordo com o interesse público. Não se pode ignorar que
determinadas situações excepcionais podem exigir a recusa da Administração
Pública de nomear novos servidores. Para justificar o excepcionalíssimo não
cumprimento do dever de nomeação por parte da Administração Pública, é
necessário que a situação justificadora seja dotada das seguintes características:
a) Superveniência: os eventuais fatos ensejadores de uma situação excepcional
devem ser necessariamente posteriores à publicação do edital do certame
público; b) Imprevisibilidade: a situação deve ser determinada por circunstâncias
extraordinárias, imprevisíveis à época da publicação do edital; c) Gravidade: os
acontecimentos extraordinários e imprevisíveis devem ser extremamente graves,
implicando onerosidade excessiva, dificuldade ou mesmo impossibilidade de
cumprimento efetivo das regras do edital; d) Necessidade: a solução drástica e
excepcional de não cumprimento do dever de nomeação deve ser extremamente
necessária, de forma que a Administração somente pode adotar tal medida
quando absolutamente não existirem outros meios menos gravosos para lidar
com a situação excepcional e imprevisível. De toda forma, a recusa de nomear
candidato aprovado dentro do número de vagas deve ser devidamente motivada
e, dessa forma, passível de controle pelo Poder Judiciário. IV. FORÇA NORMATIVA
DO PRINCÍPIO DO CONCURSO PÚBLICO. Esse entendimento, na medida em que
atesta a existência de um direito subjetivo à nomeação, reconhece e preserva
da melhor forma a força normativa do princípio do concurso público, que
vincula diretamente a Administração. É preciso reconhecer que a efetividade

198 Matheus Silva Campos Ferreira


da exigência constitucional do concurso público, como uma incomensurável
conquista da cidadania no Brasil, permanece condicionada à observância, pelo
Poder Público, de normas de organização e procedimento e, principalmente, de
garantias fundamentais que possibilitem o seu pleno exercício pelos cidadãos. O
reconhecimento de um direito subjetivo à nomeação deve passar a impor limites
à atuação da Administração Pública e dela exigir o estrito cumprimento das
normas que regem os certames, com especial observância dos deveres de boa-fé
e incondicional respeito à confiança dos cidadãos. O princípio constitucional do
concurso público é fortalecido quando o Poder Público assegura e observa as
garantias fundamentais que viabilizam a efetividade desse princípio. Ao lado
das garantias de publicidade, isonomia, transparência, impessoalidade, entre
outras, o direito à nomeação representa também uma garantia fundamental da
plena efetividade do princípio do concurso público. V. NEGADO PROVIMENTO
AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. (RE 598099, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES,
Tribunal Pleno, julgado em 10/08/2011, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-189
DIVULG 30-09-2011 PUBLIC 03-10-2011 EMENT VOL-02599-03 PP-00314 RTJ
VOL-00222-01 PP-00521).

Conforme se observa, o Pretório Excelso reconheceu como direito do cidadão e


dever da administração pública (Estado) promover a nomeação dos aprovados dentro
do número de vagas estabelecidos no edital convocatório do certame.

Nota-se que a partir de tal precedente reconhece-se que o Poder Público poderia
escolher, dentro do prazo de validade do concurso, o momento em que realizaria a
nomeação daqueles declarados como aprovados no certame, mas não mais poderia
escolher se iria ou não realizar tal ato.

Para consubstanciar tal entendimento os ministros do Supremo Tribunal Federal


defenderam o dever da Administração Pública pautar suas atividades sempre de acordo
com o princípio da boa-fé, bem como defenderam a força normativa do concurso
público.

Desta forma toda vez que a administração pública promove concurso público
para o preenchimento de vagas do seu quadro de servidores, ele acaba criando uma
expectativa em favor da população, em especial aos cidadãos que resolvem participar
do certamente, e se vincula diretamente aos termos da concorrência lançada, fato
pelo qual o desrespeito a tais preceitos poderiam criar um sentimento de descredito
frente as instituições que compõe o próprio Estado e colocando em risco o modelo
democrático alcançado.

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 199


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
Trata-se de verdadeira defesa do princípio da segurança jurídica, do qual Celso
Antônio Bandeira de Mello destaca:
Ora, bem é sabido e ressabido que a ordem judicial corresponde a um quadro
normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar,
sabendo, pois, de antemão o que devem ou o que podem fazer, tendo em vista
as ulteriores consequências imputáveis a seus atos. O direito propõe-se a ensejar
umacerta estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Dai o
chamado princípio da “segurança jurídica”, o qual, bem por isso, se não é o mais
importante dentre todos os princípios gerais do direito, é, indisputavelmente, um
dos mais importantes entre eles. (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso
de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros. 32ª Edição, 2015, página 117)

Desta forma, o Supremo Tribunal Federal busca garantir um mínimo de previsibi-


lidade em favor dos aprovados em concurso público, onde aquele classificado dentro
do número de vagas previstas para o certame terão garantidos – dentro do prazo de
validade fixado no edital convocatório – acesso a vaga cuja concorrência foi promovida
pela Administração Pública.

1.2. Recurso Extraordinário 837.311/PI e a mera expectativa


de direito para os classificados fora das vagas inicialmente
previstas no certame e independentemente do surgimento de
novas vagas para o cargo em disputa
Outro marco jurisprudencial importante relacionado à efetivação do direito subje-
tivo à nomeação dos aprovados em concurso público diz respeito ao julgamento do
Recurso Extraordinário 837.311/PI e assim emendado:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO.
REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. TEMA 784 DO PLENÁRIO VIRTUAL.
CONTROVÉRSIA SOBRE O DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO DE CANDIDATOS
APROVADOS ALÉM DO NÚMERO DE VAGAS PREVISTAS NO EDITAL DE
CONCURSO PÚBLICO NO CASO DE SURGIMENTO DE NOVAS VAGAS DURANTE
O PRAZO DE VALIDADE DO CERTAME. MERA EXPECTATIVA DE DIREITO À
NOMEAÇÃO. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS. IN
CASU, A ABERTURA DE NOVO CONCURSO PÚBLICO FOI ACOMPANHADA DA
DEMONSTRAÇÃO INEQUÍVOCA DA NECESSIDADE PREMENTE E INADIÁVEL DE
PROVIMENTO DOS CARGOS. INTERPRETAÇÃO DO ART. 37, IV, DA CONSTITUIÇÃO

200 Matheus Silva Campos Ferreira


DA REPÚBLICA DE 1988. ARBÍTRIO. PRETERIÇÃO. CONVOLAÇÃO EXCEPCIONAL
DA MERA EXPECTATIVA EM DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO. PRINCÍPIOS
DA EFICIÊNCIA, BOA-FÉ, MORALIDADE, IMPESSOALIDADE E DA PROTEÇÃO
DA CONFIANÇA. FORÇA NORMATIVA DO CONCURSO PÚBLICO. INTERESSE
DA SOCIEDADE. RESPEITO À ORDEM DE APROVAÇÃO. ACÓRDÃO RECORRIDO
EM SINTONIA COM A TESE ORA DELIMITADA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO A
QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O postulado do concurso público traduz-se na
necessidade essencial de o Estado conferir efetividade a diversos princípios
constitucionais, corolários do merit system, dentre eles o de que todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (CRFB/88, art. 5º, caput). 2.
O edital do concurso com número específico de vagas, uma vez publicado, faz
exsurgir um dever de nomeação para a própria Administração e um direito à
nomeação titularizado pelo candidato aprovado dentro desse número de vagas.
Precedente do Plenário: RE 598.099 - RG, Relator Min. Gilmar Mendes, Tribunal
Pleno, DJe 03-10-2011. 3. O Estado Democrático de Direito republicano impõe
à Administração Pública que exerça sua discricionariedade entrincheirada não,
apenas, pela sua avaliação unilateral a respeito da conveniência e oportunidade
de um ato, mas, sobretudo, pelos direitos fundamentais e demais normas
constitucionais em um ambiente de perene diálogo com a sociedade. 4. O
Poder Judiciário não deve atuar como “Administrador Positivo”, de modo a
aniquilar o espaço decisório de titularidade do administrador para decidir sobre
o que é melhor para a Administração: se a convocação dos últimos colocados
de concurso público na validade ou a dos primeiros aprovados em um novo
concurso. Essa escolha é legítima e, ressalvadas as hipóteses de abuso, não
encontra obstáculo em qualquer preceito constitucional. 5. Consectariamente, é
cediço que a Administração Pública possui discricionariedade para, observadas
as normas constitucionais, prover as vagas da maneira que melhor convier para o
interesse da coletividade, como verbi gratia, ocorre quando, em função de razões
orçamentárias, os cargos vagos só possam ser providos em um futuro distante,
ou, até mesmo, que sejam extintos, na hipótese de restar caracterizado que não
mais serão necessários. 6. A publicação de novo edital de concurso público
ou o surgimento de novas vagas durante a validade de outro anteriormente
realizado não caracteriza, por si só, a necessidade de provimento imediato
dos cargos. É que, a despeito da vacância dos cargos e da publicação do novo
edital durante a validade do concurso, podem surgir circunstâncias e legítimas
razões de interesse público que justifiquem a inocorrência da nomeação no
curto prazo, de modo a obstaculizar eventual pretensão de reconhecimento do
direito subjetivo à nomeação dos aprovados em colocação além do número de

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 201


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
vagas. Nesse contexto, a Administração Pública detém a prerrogativa de realizar
a escolha entre a prorrogação de um concurso público que esteja na validade
ou a realização de novo certame. 7. A tese objetiva assentada em sede desta
repercussão geral é a de que o surgimento de novas vagas ou a abertura de
novo concurso para o mesmo cargo, durante o prazo de validade do certame
anterior, não gera automaticamente o direito à nomeação dos candidatos
aprovados fora das vagas previstas no edital, ressalvadas as hipóteses de
preterição arbitrária e imotivada por parte da administração, caracterizadas
por comportamento tácito ou expresso do Poder Público capaz de revelar a
inequívoca necessidade de nomeação do aprovado durante o período de
validade do certame, a ser demonstrada de forma cabal pelo candidato. Assim,
a discricionariedade da Administração quanto à convocação de aprovados
em concurso público fica reduzida ao patamar zero (Ermessensreduzierung
auf Null), fazendo exsurgir o direito subjetivo à nomeação, verbi gratia, nas
seguintes hipóteses excepcionais: i) Quando a aprovação ocorrer dentro do
número de vagas dentro do edital (RE 598.099); ii) Quando houver preterição
na nomeação por não observância da ordem de classificação (Súmula 15 do
STF); iii) Quando surgirem novas vagas, ou for aberto novo concurso durante a
validade do certame anterior, e ocorrer a preterição de candidatos aprovados
fora das vagas de forma arbitrária e imotivada por parte da administração nos
termos acima. 8. In casu, reconhece-se, excepcionalmente, o direito subjetivo
à nomeação aos candidatos devidamente aprovados no concurso público, pois
houve, dentro da validade do processo seletivo e, também, logo após expirado
o referido prazo, manifestações inequívocas da Administração piauiense acerca
da existência de vagas e, sobretudo, da necessidade de chamamento de novos
Defensores Públicos para o Estado. 9. Recurso Extraordinário a que se nega
provimento. (RE 837311, Relator (a):  Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em
09/12/2015, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-072
DIVULG 15-04-2016 PUBLIC 18-04-2016)

Conforme se observa, o julgado proferido em dezembro 2015 pelo Tribunal Pleno


do Supremo Tribunal Federal, e que teve a relatoria do eminente ministro Luiz Fux,
confirmou, na esteira do precedente estabelecido pelo RE 0598.099/MS, que para os
aprovados em concurso público, dentro do número de vagas estabelecidas em edital,
resta configurado o direito do cidadão e o dever da administração pública prover a
referida nomeação dentro do prazo de vigência do certame.

No entanto, ficou assentado no julgamento em questão que os aprovados em


concurso público, mas que foram classificados fora do número de vagas fixadas em

202 Matheus Silva Campos Ferreira


edital, mesmo se na vigência do certame sobrevier por parte da Administração a criação
de novas vagas para o cargo em disputa, não detém direito à nomeação, mas mera
expectativa de exercício de tal direito.

Nota-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal, apesar do aparente limitação


ao direito do cidadão, uma vez que somente os aprovados dentro do número de vagas
previamente fixados no edital teriam direito a nomeação, na verdade busca, mais uma
vez, proporcionar segurança jurídica aos envolvidos no certame, reconhecendo que
para ter direito a nomeação o cidadão deve ser aprovado especificamente dentro do
número de vagas ofertadas pelo poder público.

Desta forma, reconhece-se que o grau de liberdade que dispõe a Administração


durante a realização dos atos em questão, muito mais do que balizada pelos critérios
de conveniência e oportunidade do administrador, deve ser cada vez mais direcionada
pela defesa dos direitos fundamentais envolvidos.

Entretanto, conforme se observará no capítulo a seguir, as regras reconhecidas


nos julgados citado comportam, segundo interpretação do próprio Pretório Excelso,
considerável relativização. Destaca-se que tal flexibilidade merece maior atenção dos
operadores de direito e uma busca da melhor técnica para se alcançar a melhor, ou
única, resposta diante do caso concreto posto a análise jurisdicional.

1.3 A possibilidade de relativização do entendimento


jurisprudencial consolidado diante da existência de fatos
excepcionais
Conforme se observa das ementas colacionados, o Excelso Supremo Tribunal
Federal acabou por reconhecer que as regras consolidadas no julgamento dos recursos
extraordinários de nº 598/099/MS e 837.311/PI podem ser relativizadas diante de
circunstâncias concretas e extraordinárias presentes em cada caso submetido a análise
jurisdicional.

Isso equivale dizer que, para o Supremo Tribunal Federal, diante de determinadas
circunstâncias, o cidadão aprovado dentro do número de vagas estabelecidas no edital
convocatório do certame poderá não ter confirmado o seu direito subjetivo à nomeação,
bem como poderá certo cidadão ter convalidado sua expectativa em direito à acessar
determinado cargo público, mesmo se inicialmente este não estava classificado dentro

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 203


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
do número de vagas estabelecidos pelo instrumento convocatório concurso a que se
submeteu.

Frisa-se que para que haja a caracterização de tal exceção devem estar presentes
circunstâncias concretas capazes de desequilibrar a constante tensão entre o direito do
cidadão aprovado em concurso, e que por óbvio quer ter acesso ao cargo em disputa,
e a vontade/autonomia da administração, que falando em nome da coletividade, teria
que decidir se promove ou não tal ato.

Desta forma poderão estar em rota de colisão princípios e regras que deveriam
sempre estar harmonizadas para possibilitar o equilíbrio do sistema jurídico e a segu-
rança jurídica dos envolvidos.

Assim, o Poder Judiciário, quando provocado, deverá intervir no caso concreto


muitas vezes defendendo os direitos do cidadão consubstanciado nos princípios da
boa-fé, eficiência, moralidade e preservação da confiança, bem como outra vezes
reconhecendo como legítima a discricionariedade do administrador público como
alicerce da separação dos poderes e de um modelo democrático de estado.

Destaca-se que em seu voto no recurso extraordinário de nº 837/311/PI o eminente


Ministro Luiz Fux reconhece a necessidade de agir com cautela em casos desta natu-
reza, sob pena do poder judiciário atuar como uma espécie de administrador positivo
extrapolando sua função institucional:
Neste contexto, o mandamento constitucional do concurso público relevante
instrumento voltado para a construção da cidadania na democracia brasileira, não
pode ser dilargado, de modo a aniquilar a discricionariedade do Administrador
Público quanto o qual aprovado deve ser escolhido: se o último colocado do
concurso em vigor ou se o primeiro do certame seguinte. O Poder Judiciário não
pode atuar como “Administrador Positivo” impondo sua escolha à Administração
Pública acerca do qual de ser convocado, mormente se considerarmos que todos
os envolvidos foram aprovados em árduos processos seletívos (RE 837311,
Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 09/12/2015, PROCESSO
ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-072 DIVULG 15-04-2016
PUBLIC 18-04-2016)

Pode-se ainda observar que nos dois julgados em análise os Ministros do STF
tentaram identificar quais situações concretas poderia justificar a aplicação da exceção

204 Matheus Silva Campos Ferreira


à regra defendia. Neste sentido, destaca-se importante trecho do voto do Ministro
Gilmar Mendes durante o julgamento do Recurso Extraordinário de nº 598/099/MS:
Não obstante, quando se diz que a Administração Pública tem como obrigação
de nomear os aprovados dentro do número de vagas previstas no edital, deve-se
levar em consideração a possibilidade de situações excepcionalíssimas que
justifiquem situações diferenciadas devidamente motivas de acordo com o
interesse público. Não se pode ignorar que determinada situações excepcionais
podem exigir a recusa da Administração Pública de nomear novos servidores.

Desta forma, conclui Gilmar Mendes, que para motivar a aplicação da exceção em
questão, e no caso concreto, consubstanciar a não nomeação de aprovados dentro do
número de vagas previamente estabelecidas no edital do certame, é necessários que:
a) fique configurado a existência de situações supervenientes ao concurso em questão
que justifiquem a não nomeação do aprovado; b) que tal situação seja imprevisível
pela Administração Pública quando do planejamento e realização do certame; c) que
tal situação imprevisível e superveniente seja também extremamente grave; e d) que
a não realização do ato de nomeação seja extremamente necessária a manutenção
do equilíbrio do Poder Público.

Nota-se, no entanto, que tais parâmetros se mostram insuficientes para balizar


todas as possibilidades que poderão ser enfrentadas pelo poder judiciário, e opera-
dores do direito de uma forma geral, diante da análise do fato concreto. Desta forma,
utilizando de recursos apresentados pela teoria do direito e hermenêutica jurídica,
propõe-se como método satisfatório para a análise de situações como esta à aplicação
da teoria do direito como integridade encabeçada por Ronald Dworkin para se chegar
a uma única resposta possível para a controvérsia em questão.

2. BREVE COMENTÁRIOS SOBRE A TEORIA DO DIREITO COMO


INTEGRIDADE DE RONALDO DWORKIN E A POSSIBILIDADE
DE CONSTRUÇÃO DE UMA ÚNICA RESPOSTA CORRETA PARA
A CONTROVÉRSIA SOBRE O DIREITO À NOMEAÇÃO DOS
APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO
Ciente de todas as limitações em que incorre a abordagem positivista do Direito,
principalmente aquela defendida por H. L. A. Hart, Ronald Dworkin desenvolve sua

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 205


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
contribuição à ciência jurídica, defendendo que o direito é um fenômeno social muito
mais complexo que um simples conjunto de regras jurídicas postas e acabadas, mas
sim uma questão de princípios7.

Estabelece o referido autor estadunidense, que o direito não é formado apenas


por um único padrão de normas jurídicas, que descrevem objetivamente a conduta
tutelada pelo direito, mas ao contrário, o direito também seria formado por um outro
padrão normativo denominado princípios. Neste sentido, o autor esclarece8:
Denomino “princípio” um padrão que deve ser observado, não porque vá promover
ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável,
mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão
da moralidade.

Com esta afirmação, Dworkin coloca em xeque a postura positivista de centrali-


zação das atividades jurídicas em padrões normativos que descrevem objetivamente
uma pretensão jurídica e possibilita a percepção que a sociedade moderna possui
objetivos e intenções que não estão expressamente colocados no texto normativo
e sim de um comportamento universalmente exigível ao intérprete do direito. Estas
intenções justificam a realização de decisões por órgãos administrativos e jurisdicio-
nais, objetivando concretizar e efetivar o que, construtivamente, a sociedade define
como bom ou justo.

Neste sentido, esclarece:


A diferença entre princípios e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois
conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação
jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza
da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis de maneira do tudo ou
nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste
caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso
em nada contribui para a decisão. 9

Cabe salientar, que para o autor outro comportamento é de obrigatória observância


para a análise do direito, a saber: as diretrizes políticas, que na verdade representam

7 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

8 Ibidem, p. 36.

9 Ibidem, p. 39.

206 Matheus Silva Campos Ferreira


uma série de metas coletivas assumidas pela comunidade para a realização de seus
empreendimentos futuros.

Como se percebe pela afirmação apresentada, a distinção entre normas e princí-


pios se caracteriza durante a aplicação do direito, bem como pelas repostas que estes
padrões normativos oferecem à solução do caso concreto. Neste sentido, a aplicação
das regras atuaria de forma absoluta, ou seja, se no tocante de aplicação de uma regra
ela se enquadra aos fatores fáticos condicionantes esta regra será aplicada e seus
efeitos produzidos. Em sentido oposto, caso as regras, durante o processo de aplicação
não se enquadrem nos pressuposto fáticos a ele submetidos ela não produzirá efeito
algum ao caso.

Cabe salientar que todas as vezes que duas regras em sentido de aplicação
opostos apresentam-se como solução para a resolução de um caso concreto, pela ótica
do tudo ou nada, uma delas deve ser excluída do ordenamento jurídico e não poderá
ser aplicada em casos que seja necessário a sua aplicação.

Neste sentido, esclarece Pedron:


As regras também não possuem a dimensão de peso ou importância, de modo
que, se duas regras entram em conflito, apenas uma delas fará a subsunção
ao caso concreto. A decisão de saber qual delas será aplicada e qual delas
será abandonada deve ser feita recorrendo-se às considerações que estão
além das próprias regras. Essas considerações versam, por exemplo, sobre os
critérios clássicos de solução de antinomias do positivismo (ou de cânones de
interpretação): (1) o critério cronológico, em que a norma posterior prevalece
sobre a norma anterior; (2) o critério hierárquico, em que a norma de grau superior
prevalece sobre a norma de grau inferior; e (3) o critério da especialidade, em
que a norma especial prevalece sobre a norma geral.10

Em se tratando dos princípios jurídicos, a sua aplicação ocorre de maneira dife-


rente, uma vez que não descrevem uma conduta objetiva, mas “enuncia uma razão
que conduz o argumento em certa direção”11, ou seja, o intérprete/aplicador do direito
é influenciado por um padrão de comportamento universalizável de observância

10 PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. Esclarecimento sobre a tese da única “resposta correta” de Ronald
Dworkin. Revista CEJ, Ano XIII, n. 45, 2009, p. 103.

11 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.
41 Ibidem, p. 42.

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 207


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
obrigatória ao caso e que seus fundamentos representam a vontade moral construída
de forma direta pela sociedade.

Sobre a forma de aplicação dos princípios, esclarece:


Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão
do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a
política de proteção aos compradores de automóveis se opões aos princípios de
liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta
a força relativa de cada um.

Como se percebe, a dimensão de aplicação dos princípios se dá de forma a


encontrar a direção para se resolver a questão apresentada da melhor forma possível.
Neste ato, todos os princípios que compõem o sistema jurídico, influenciam a escolha
do que maior peso deve ser apresentado para a solução da questão. Desta forma, o
princípio que não se apresenta como o melhor para o caso concreto é afastado da
aplicação da situação, mas continua válido para o direito

Neste sentido, esclarecendo a distinção realizada pelo autor norte-americano,


Ommati, esclarece:
A diferença entre eles não é de importância, mas sim de qualidade. Assim,
quando há o conflito de regras, uma delas deve desaparecer do ordenamento
jurídico: as regras funcionam no esquema do tudo ou nada. Já os princípios,
quando entram em colisão, não há a revogação de um deles, mas a forma de
resolver um conflito está na esfera da aplicação: em outras palavras, a aplicação
de um princípio e o afastamento do outro não gera a revogação do princípio
afastado.12

Mais uma vez fica claro que a diferença entre as regras e princípios jurídicos se
destaca e fica clara no tocante da aplicação do direito ao fato concreto, onde um atua
pela ótica do tudo ou nada e o outro pela adequação. No entanto, nunca é demais
frisar, que princípios e normas são espécies de normas jurídicas e que não existe entre
elas qualquer questão que possibilite uma maior aplicabilidade ou, até mesmo, uma
hierarquia diferenciada entre elas.

12 OMMATI, José Emílio Medauar. A teoria jurídica de Ronald Dworkin: o direito como integridade. In:
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado
Democrático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 155

208 Matheus Silva Campos Ferreira


Cabe salientar, que a obra de Dworkin, por apresentar uma enorme diversidade de
figuras de linguagem o que deverá ser visto com cuidado, de forma a sempre possibilitar
a aplicação de suas próprias figuras de linguagem na interpretação de seus ensinamen-
tos.13 Neste sentido, muitas são as críticas desenvolvidas por autores estrangeiros,
como Habermas e Maus, e brasileiros que não interpretaram as contribuições jurídi-
co-filosóficas de Dworkin e acabaram por dar-lhe sentido diverso daquele elaborado.

Sobre esta crítica a teoria de Dworkin, Pedron esclarece que o autor norte-americano:
[...] lembra que seria muito difícil que alguém conseguisse estabelecer a priori
quais são as normas morais que irão reger sua vida. Trata-se, na realidade, de
uma questão argumentativa e, em função disso, dependente mais da aplicação
de uma linha de conduta do que de regras fixas. Ele ainda não nega que possa
haver conflito entre regras; contudo esse conflito se processa em um plano
distinto – no plano da validade, em vez de no plano da adequabilidade.14

O maior equívoco apresentado sobre a interpretação da obra de Dworkin diz


respeito à visão axiológica dos princípios jurídicos desenvolvida por Robert Alexy e
seus diversos seguidores e intérpretes15. Neste sentido, o autor alemão que muitas
vezes cita os postulados dworkianos como basilares para a sua teoria, afirmará que o
norte-americano se equivocou em sua colocação de que o direito deve ser condicionado
pela construção da melhor escolha para a solução do caso, mas por tudo aquilo que
pode ser considerado bom16.

Diante destes equívocos realizados, bem com as críticas apresentadas pela


doutrina mundial a sua obra, Dworkin vai reconstruir a distinção entre os dois citados

13 Neste sentido, conferir: OMMATI, José Emílio Medauar. A teoria jurídica de Ronald Dworkin: O Direito
como integridade. IN: CATTONI, Marcelo (Coordenação). Jurisdição e hermenêutica constitucional. Belo
Horizonte, Mandamentos, 2004, p. 151 a 168

14 PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. Esclarecimento sobre a tese da única “resposta correta” de Ronald
Dworkin. Revista CEJ, Ano XIII, n. 45, 2009, p. 103.

15 No Brasil, destacasse a importância do trabalho de Virgílio Afonso da Silva como interprete e difusor mais
fiel da obra do escritor alemão. Outros autores, como, por exemplo, Gilmar Mendes, por outro lado, realiza
um sincretismo metodológico em suas falas, subvertendo conforme a conveniência o pensamento de
Alexy.

16 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da
argumentação jurídica. Trad. Zilda Silva. São Paulo: Landy, 2001

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 209


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
padrões normativos e demonstrará que somente diante do fato concreto ao aplicar o
direito, que o intérprete poderá decifrar se estará diante de um princípio ou uma regra17.

Outro equívoco quanto à interpretação da obra de Dworkin diz respeito à figura


do Juiz Hércules e a possibilidade de se encontrar uma única resposta correta para as
questões difíceis submetidas ao direito. O autor em questão, diante da prática defendida
pelos positivistas de que um juiz tem poder para decidir de forma discricionária os
casos difíceis18 a ele apresentado, vai levar o autor em tela a criar a referida figura de
linguagem. A figura do Juiz Hércules possibilita uma resposta crítica a este problema.
Neste sentido, estabelece:
Podemos, portanto, examinas de que modo um juiz filósofo poderia desenvolver,
nos casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os
princípios jurídicos requerem. Descobriremos que ele formula essa teoria da
mesma forma que um arbitro filósofo construiria a regra de um jogo. Para este
fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade
sobre-humanas, a quem chamarei de Hércules.19

Cabe salientar, que a prática jurisdicional, em todos os pequenos detalhes, neces-


sários a correta aplicação do Direito, representa um exercício de muita reflexão e
pesquisa histórico-jurídica, que se não adequadamente realizada, proporcionará graves
prejuízos a todos aqueles que têm interesse na questão. Neste sentido o intérprete
do direito, quando ao se deparar com a obrigação de aplicá-lo, deverá possuir grande
conhecimento dos debates já construídos, mesmo que não exista nada específico sobre
a questão, e ter paciência para saber identificar a melhor forma de aplicar o direito.

Neste sentido, estabelece:


Considero que ele aceita as principais regras não controversas que constituem
e regem o direito como em sua jurisdição. Em outras palavras, ele aceita que
as leis têm o poder de criar e extinguir direitos jurídicos, e que os juízes têm o
dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais

17 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999

18 Destacasse que são casos difíceis, considera o autor, aqueles que não possuem regra expressa que
o regule ou os que os tribunais ainda não se manifestaram sobre a questão. Neste sentido, conferir:
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério, 1ª Edição, Martins Fontes, São Paulo.

19 Ibidem, p. 165.

210 Matheus Silva Campos Ferreira


superiores cujo fundamento racional (rationale), como dizem os juristas aplica-se
ao caso em juízo.20

Este ato de reconhecimento das normas de direito não controvertidas a aplicação


do caso, torna-se de grande importância para a construção do resultado do provimento
jurisdicional, uma vez que o Juiz Hercules nunca está sozinho durante a interpretação
e aplicação do direito.

Cabe salientar, que este juiz filósofo não pode desconsiderar o fato de que os
outros juízes que vierem antes deles desconsiderem este processo de construção
histórica e cometam alguns equívocos durante a interpretação do direito. Desta forma,
o autor norte-americano desenvolve a teoria dos erros judiciais.

Esta teoria dos erros é dividida em duas etapas. A primeira delas mostra as
consequências de reconhecer um ato institucional como um erro, e a outra limita a
possibilidade de exclusão dos erros. Sobre o funcionamento das etapas da referida
teoria, Pedron esclarece:
Essa primeira parte tem por base duas distinções: (1) de um lado, tem-se a
autoridade de qualquer evento institucional – capacidade de produzir as
conseqüências que se propõe – e, do outro, a força gravitacional do evento. A
classificação de um evento como um erro dá-se apenas questionando sua força
gravitacional e inutilizando-a – sem, com isso, comprometer sua autoridade
específica; e (2) a outra distinção é entre erros enraizados – os quais não
perdem sua autoridade específica, não obstante não detenham mais sua força
gravitacional – e erros passíveis de correção – cuja autoridade específica é
acessória à força gravitacional. Assim, sua classificação garantirá autoridade
às leis, mas não a sua força gravitacional.21

E continua esclarecendo:
A segunda parte da teoria de erros compõe-se de uma justificação mais
detalhada, na forma de um esquema de princípios, para o conjunto das leis
e das decisões, já que sua teoria dos precedentes é construída a partir da
equanimidade. Duas máximas podem ser extraídas dessa segunda parte: (1)
caso Hércules possa demonstrar que um princípio que, no passado, serviu de
justificação para decisões do Legislativo e do Judiciário hoje não dará origem a

20 Ibidem, p. 165.

21 PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. Esclarecimento sobre a tese da única “resposta correta” de Ronald
Dworkin. Revista CEJ, Ano XIII, n. 45, 2009, p. 104.

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 211


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
novas decisões por ele regidas, então, o argumento de equanimidade se mostra
enfraquecido; e (2) se ele mostrar, por um argumento de moralidade política, que
o princípio é injusto, o argumento de equanimidade que o sustenta é inválido.22

Neste sentido, fica claro que a atuação do juiz está direcionada a encontrar a
resposta mais adequada para o problema apresentado, uma vez realizado este trabalho
que envolve paciência e pesquisa histórica jurisprudencial, somente uma resposta
será possível de ser construída. Desta forma, fica claro a não postura solipsista do
pensamento dworkiano, que pelo contrário exige, além da participação das partes para a
construção do provimento jurisdicional, também exigirá a construção do processo histó-
rico interpretativo das contribuições jurídicas para o caso. Desta forma, demonstrando
como deverá ser a postura do juiz ao analisar os casos difíceis, esclarece Ommati:
Dessa forma, encarar o Direito como uma questão de princípios leva a que
façamos uma interpretação de toda a história institucional do Direito para que
ele possa ser interpretado à sua melhor luz. Assim, o juiz deve “escolher” o
princípio adequado para regular as diversas situações concretas, descobrindo
os direitos dos cidadãos. O juiz, portanto, não possui discricionariedade, já que
limitado pela argumentação das partes e pelo caso concreto reconstruído pelas
mesmas. Além disso, os juízes devem convencer de que a decisão tomada é a
única correta, no sentido de única adequada para regular a situação que lhe foi
colocada. Se existem regras, essas apenas surgem no momento da decisão, seja
do administrador, seja do juiz, mas sempre como densificação dos princípios
jurídicos existentes. E tais princípios se corporificam nos princípios da igualdade
e liberdade entendidos como tratar a todos com igual respeito e consideração.23

Assim não resta dúvida, de que o pensamento de Dworkin não tem caráter solip-
sista ou discricionário, mas pelo contrário, está totalmente vinculado à percepção dos
princípios que norteiam o direito e a construção histórica até então realizada. Neste
sentido, Pedron esclarece, que “a compreensão de que a atividade decisória dos juízes
não se produz no vácuo, mas sim em constante diálogo com a história”24

22 Ibidem, p. 104.

23 OMMATI, José Emílio Medauar. Existe diferença entre regras e princípios no Direito. Revista Unicena, Sd.
2008, p. 12.

24 PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. A proposta de Ronald Dworkin construtiva do Direito. Revista CEJ, Ano
XIII, n. 47, 2009. 156

212 Matheus Silva Campos Ferreira


Justamente realizando este diálogo com a história construída pela participação
de todos os envolvidos e interessada na construção do provimento, não apenas juris-
dicional, mas também social, e que Dworkin vai desenvolver a teoria do Romance em
Cadeia. Partindo da aproximação entre a construção jurisprudencial e a criação de
um texto literário coletivo, o autor vai defender que o exercício de aplicação do direito
é muito mais complexo do que era apresentado, uma vez que o jurista deverá ler as
construções jurisdicionais realizadas para poder conseguir identificar a melhor solução
para a construção do seu capítulo na história jurídica e encontrar a única resposta
correta para o caso apresentado.

Neste sentido, esclarece:


Cada juiz, então, é como um romancista na corrente. Ele deve ler tudo o que
outros juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram,
ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião
sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de
nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance escrito até então.
Qualquer juiz obrigado a decidir uma demanda descobrirá, se olhar nos livros
adequados, registro de muitos casos plausivelmente similares, decididos há
décadas ou mesmo séculos por muitos outros juízes, de estilos e filosofias
judiciais e políticas diferentes, em períodos nos quais o processo e as convenções
judiciais eram diferentes. Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se
como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas
inúmeras decisões, estruturadas, convenções e práticas são a história; é seu
trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora. Ele
deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar
adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção.25

Desta forma, é preciso que se esclareça que, ao construir o próximo capítulo da


cadeia interpretativa o juiz não é obrigado a seguir totalmente a decisão criada, mas
sim descobrir qual a melhor forma que a história construída até o momento pode melhor
se adequar às condições atuais. Neste sentido, ainda esclarece Pedron:
O que se espera nesse exercício literário é que o romance seja escrito como um
texto único, integrado, e não simplesmente como uma série de contos espaçados
e independentes, que somente têm em comum os nomes dos personagens. Para
tanto, deve partir do material que seu antecessor lhe deu, daquilo que ele próprio

25 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.
283.

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 213


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
acrescentou e – dentro do possível – observando aquilo que seus sucessores
vão querer ou ser capazes de acrescentar.26

O autor norte-americano ainda estabelece que a interpretação do direito é asse-


melhada à interpretação artística, na qual o intérprete deve considerá-lo de forma a
extrair de seus dispositivos a melhor leitura possível27.

Sobre a interpretação artística e sua semelhança com a interpretação construtiva,


Lages esclarece que estes tipos de interpretação têm por objetivo justificar o propósito
determinada obra jurisprudencial ou artística28. Este fato remete o autor a defender
uma interpretação construtiva dos sentidos jurídicos do texto, “onde cada geração
assume o que foi feito no passado para melhor o trabalho”29. Neste sentido, ainda,
esclarece Pedron:
A compreensão adequada do romance em cadeia parece lançar novas luzes na
discussão sobre o solipsismo de Hércules. A compreensão de que a atividade
decisória dos juízes não se produz no vácuo, mas sim em constante diálogo
com a história, revela as influências da hermenêutica gadameriana. Todavia,
Dworkin, como já foi explicado, é defensor de uma interpretação construtiva e, por
isso mesmo, de uma teoria hermenêutica crítica: a decisão de um caso produz
um “acréscimo” em uma determinada tradição. Isso é bem ilustrado quando
comparamos a dinâmica de aplicação judicial do Direito com um pitoresco
exercício literário.30

Percebe-se com esta afirmação que é a partir da compreensão e percepção destes


pequenos acréscimos realizados por cada intérprete do direito é que se conseguirá
identificar qual é a única interpretação a ser realizada.

26 PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. A proposta de Ronald Dworkin construtiva do Direito. Revista CEJ, Ano
XIII, n. 47, 2009. p 158.

27 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999

28 LAGES, Cíntia Garabini. A proposta de Ronald Dworkin em o império do Direito. Revista da Faculdade
Mineira de Direito. Belo Horizonte, v. 4, n.7/8, jan./jun., 2001

29 OMMATI, José Emílio Medauar. Existe diferença entre regras e princípios no Direito. Revista Unicena, Sd

30 PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. Uma proposta de compreensão procedimental do requisito de


transcendência/ repercussão geral no juízo de admissibilidade dos recursos destinados aos tribunais
superiores a partir da tese do Direito como integridade de Dworkin e da Teoria Discursiva do Direito e
da Democracia de Habermas. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Faculdade de Direito,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte p. 157).

214 Matheus Silva Campos Ferreira


No entanto, Pedron faz uma ressalva:
Nenhuma seqüência de decisões, contudo, é isenta de apresentar contra
exemplos; por isso mesmo é tão importante o desenvolvimento de uma teoria
do erro no julgamento dos casos anteriores, como a desenvolvida por Hércules.
Além do mais, Hércules não está sozinho. Seu trabalho dá-se continuamente
mediante um franco diálogo com a história institucional de sua sociedade, que
está às suas costas; além disso, por força da exigência de integridade, ele é
impulsionado a buscar sempre a melhor decisão – o que faz com que seus olhos
se voltem para o futuro, mas de modo que sempre permaneça a preocupação
em manter uma coerência de princípio na fundamentação de suas decisões.31

A ideia do Romance em Cadeia permite a idealização de uma investigação histórica


do melhor forma de se resolver uma questão social atribuída ao Direito, mas não obriga
o autor a estar plenamente vinculado ao que estava sendo escrito e construído até o
momento, uma vez que as condições atuais podem estar direcionadas à escolha de
outra decisão. O que defende a referida teoria é uma coerência no ato de se construir
esta decisão. Este ato implicaria em se respeitar o compromisso assumido no passado,
bem como o legado que será deixado para as próximas gerações.

Cabe salientar, que segundo Dworkin, a sociedade dever ser entendida como
uma comunidade de princípios, ou seja, uma sociedade de pessoas que reconhecem a
incidência de princípios comuns na condução de suas atividades cotidianas e que são
comumente discutidos para a configuração do melhor conteúdo e sentido a conduzir
as referidas atividades.

Desta forma, esclarece o autor norte-americano:


Insiste em que as pessoas são membros de uma comunidade política genuína
apenas quando aceitam que seus destinos estão fortemente ligados da seguinte
maneira: aceitam que são governados por princípios comuns, e não apenas por
regras criadas por um acordo político. Para tais pessoas, a política tem uma
natureza diferente. É uma arena de debates sobre quais princípios a comunidade
deve adotar como sistema, que concepção deve ter de justiça, e processo legal
e não a imagem diferente, apropriada a outros modelos, na qual cada pessoa
tenta fazer valer suas convicções no mais vasto território de poder ou de regras

31 PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. A proposta de Ronald Dworkin construtiva do Direito. Revista CEJ, Ano
XIII, n. 47, 2009, p. 105.

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 215


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
possíveis (DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo.
São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 254)

Neste sentido, desponta na teoria dworkiana a ideia do direito com integridade,


ou seja, o reconhecimento que a sociedade é formada por homens livres e iguais, que
possuem plenas condições de assumir suas responsabilidades pelas decisões tomadas
coletivamente através dos tempos e materializadas na atualidade através do objetivo
de conseguir a promoção da equidade e da igualdade.

Esclarece Pedron:
Logo, os direitos e deveres políticos dessa comunidade não estão ligados apenas
às decisões particulares tomadas no passado, mas sim são dependentes de
um sistema de princípios que essas decisões pressupõem ou endossam. A
integridade é, então, compreendida como um ideal aceito de maneira geral e,
por isso mesmo, mostra-se como um compromisso de pessoas.32

Este, também, é o entendimento de Binenbojm, que esclarece:


A integridade a que se refere Dworkin significa, sobretudo, uma atitude
interpretativa do direito que busca integrar cada decisão em um sistema coerente
que atente para a legislação e para os precedentes jurisdicionais sobre o tema,
procurando discernir um princípio que os haja norteado.33

Como se pode perceber, o direito com integridade representa o ideal de uma


sociedade democrática, ou seja, a defesa dos direitos individuais e consideração dos
interesses sociais historicamente construídos para a definição de uma sociedade mais
justa e participativa. Tal postura representa o desafio para a efetivação de direitos
fundamentais e possibilita que todos os afetos pelas ações judiciais, administrativas
ou legislativas possam se fazer ouvir e mudar o resultado daquilo que está relacionado
e assim possibilitar, que este coautor das decisões alcançadas se identifique com o
seu resultado.

Nota-se que o esforço interpretativo-construtivo concebido por Dworkin se apre-


sente como meio mais eficaz para aferição diante do caso concreto se existirá em
favor do cidadão a possibilidade de convalidação da expectativa em direito subjetivo

32 Ibidem, p. 103.

33 BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira: legitimidade democrática e


instrumentos de realização. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p 85.

216 Matheus Silva Campos Ferreira


a nomeação dos candidatos aprovados em concurso público – sejam eles aprovados
dentro ou fora do número de vagas previamente estabelecidos no certame.

Neste sentido, realizando a reconstrução histórico-jurisprudencial, bem como


analisando o cenário atual envolvendo a demanda – não ficando preso a requisitos
previamente estabelecidos – o operador do direito saberá identificar em quais situações
serão necessárias a promoção do acesso a vaga almejada, bem como em quais casos
a realização de tal ato se amolda melhor a realidade social.

Assim não existirá resposta pronta para qualquer situação jurídica, mas sim será
concebido a oportunidade para que todos sejam co-construtores de uma resposta
jurídica-social satisfatória e não limitada a requisitos pré-estabelecidos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho pretendeu avaliar a questão dos direitos dos aprovados em
concurso público diante do entendimento dominante dos tribunais brasileiros, bem
como propor uma nova forma de construção de uma resposta satisfatória entre a
constante tensão entre interesse individual ou primazia da vontade da administração.

Para tanto, foi utilizado com objeto de análise dois julgados proferidos pelo
Supremo Tribunal Federal tratando sobre a matéria (Recursos Extraordinários de nº
598.099/MS e 837.311/PI), onde conclui-se que somente existiria direito subjetivo à
nomeação para aqueles aprovados dentro do número de vagas previamente estabe-
lecidos no edital convocatório do certame. Aqueles classificados fora do número de
vagas anteriormente fixadas deteriam mera expectativa de direito, mesmo de durante
a vigência do referido concurso surgissem novas vagas para o cargo em disputa.

Assentou ainda o STF que a regra em questão não seria absoluta, podendo ser
desconsiderada diante da excepcionalidade dos fatos postos à análise jurisdicional.
Neste sentido, buscou a mais alta corte judicial brasileiro estabelecer requisitos para
se identificar quais seriam as excepcionalidades capazes de justificar a não aplicação
do entendimento fixado em sede de repercussão geral.

Seguindo o entendimento proposto pelo Ministro Gilmar Mendes, conclui-se no


bojo do RE de nº 598.099/MS, que para possibilitar a não aplicação do entendimento
em questão, e no caso concreto justificar a não nomeação de candidato aprovado
dentro do número de vagas do edital, seria necessário demonstrar que a situação

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 217


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
suscitada é superveniente, imprevisível, grave e necessária a manutenção do equilíbrio
ao sistema jurídico.

Desta forma, consubstanciado em postulado da teoria do direito, em especial


na tese do direito como integridade defendida por Ronald Dworkin e seus diversos
intérpretes/interlocutores brasileiro, buscou-se demonstrar que o conflito existente
em demandas da natureza do caso em tela, estavam sendo analisadas de forma de
veras simplista, o que poderia colocar em risco a credibilidade do sistema jurídico ao
reduzi-lo a catálogo fixo de normas e entendimento postos.

Assim, a teoria do direito como integridade ao incentivar o dialogo constantes


entre os diversos autores/fatores que compõe o sistema jurídico, se apresenta como
método para a construção de uma única resposta correta para a controvérsia diante do
caso concreto, sendo impossível definir previamente quais os requisitos necessários
para a aferição do direito em questão.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional
como teoria da argumentação jurídica. Trad. Zilda Silva. São Paulo: Landy, 2001.

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218 Matheus Silva Campos Ferreira


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PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. Uma proposta de compreensão procedimental


do requisito de transcendência/ repercussão geral no juízo de admissibilidade dos
recursos destinados aos tribunais superiores a partir da tese do Direito como inte-
gridade de Dworkin e da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas.
Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Faculdade de Direito, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

O DIREITO À NOMEAÇÃO PARA OS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO SEGUNDO A PERSPECTIVA DO 219


SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DA TEORIA DO DIREITO COMO INTEGRIDADE DE RONALD DWORKIN
PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. Esclarecimento sobre a tese da única “resposta
correta” de Ronald Dworkin. Revista CEJ, Ano XIII, n. 45, 2009.

PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. A proposta de Ronald Dworkin construtiva do


Direito. Revista CEJ, Ano XIII, n. 47, 2009.

220 Matheus Silva Campos Ferreira


CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO
PELO INSS NOS CASOS DE CRIMES DE
TRÂNSITO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA SOB
A ÉGIDE DA RESPONSABILIDADE CIVIL E
DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO
CIVIL
Natália Neves Marques1

RESUMO
O artigo aborda as ações regressivas previdenciárias ajuizadas pelo
Instituto Nacional da Seguridade Social – INSS com o escopo de obter a
restituição dos custos referentes à implementação precoce de benefícios
previdenciários originados de crimes de trânsito e violência doméstica. A
propositura das referidas demandas encontra esteio nos artigos 120 e 121
da Lei 8.213/91, lidos e interpretados sob a óptica da cláusula geral de
responsabilidade civil - artigos 186 e 927 do Código Civil Brasileiro, que por
sua vez é analisada sob a perspectiva da Constitucionalização do Direito Civil.
Conclui-se que tais ações são constitucionais e, servem a propósitos que
ultrapassam o mero dever de indenizar, revelando-se importante mecanismo
de controle social - contido na função social da responsabilidade civil.

1 Especialista em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático – IDDE, Minas
Gerais - BH e o Ius Gentium Conimbrigae (Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra – IGC, Coimbra-PT). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ipatinga
– FADIPA. Advogada.
MARQUES, Natália Neves. Cabimento das ações de regresso pelo INSS nos casos de crimes de trânsito e violência doméstica
sob a égide da responsabilidade civil e da constitucionalização do direito civil. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; SACCHETTO,Thiago
Coelho (Orgs.). Advocacia pública em foco. Volume II. Belo Horizonte: IDDE, 2019. p. 221-244. Disponível em: https://doi.
org/10.32445/97885671341098
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objeto de estudo a legitimidade da autarquia previden-
ciária para pleitear o ressarcimento de benefícios previdenciários de origem diversa
daquela expressa nos artigos 120 e 121, ambos da Lei nº 8.213/91, a saber, acidente de
trabalho. A análise em questão ocorrerá com respaldo nos ditames da Responsabilidade
Civil e em uma nítida releitura do Direito Civil com fulcro na Constituição Federal,
também denominado Direito Civil Constitucional.

O cerne do presente trabalho é a defesa do cabimento de ações regressivas a


serem promovidas pelo Instituto Nacional da Seguridade Social – INSS, nos casos
em que haja benefícios previdenciários originados de acidente de trânsito e violência
doméstica implantados de forma precoce em virtude de ato ilícito praticado por terceiro.

Objetiva-se demonstrar o cabimento das ações de regresso propostas pela


autarquia federal tomando-se por fundamento os preceitos da Responsabilidade Civil
em razão do ônus relativo à concessão de benefícios previdenciários resultantes do
cometimento de crimes de trânsito e atos ilícitos penais dolosos, conforme diretrizes
elencadas na Portaria Conjunta PGF/INSS nº 6/2013.

Enfim, conclui-se que, com supedâneo na lei, doutrina e jurisprudência dos tribunais
pátrios, especialmente dos Tribunais Superiores que as ações regressivas em estudo
são dotadas de validade consoante a aplicação da função social da Responsabilidade
Civil na Constitucionalização do Direito Civil, haja vista que, para além das funções
tradicionais daquela, representam importante instrumento de controle social.

1. APONTAMENTOS ACERCA DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO


DIREITO CIVIL

A Constitucionalização do Direito Civil


A relação entre o Direito Civil e o Direito Constitucional era de antagonismo,
verdadeiramente dicotômica em que este regia os interesses do Estados, os interesses
públicos enquanto que aquele orientava as relações entre os particulares.

Nada obstante tal disjunção, com o advento da Constituição Federal de 1988, os


intérpretes do direito privado notaram a imprescindibilidade da estrita observância às

222 Natália Neves Marques


normas constitucionais. Neste diapasão, o Direito Civil passou a ser interpretado em
consonância com as normas, princípios e valores insculpidos na Carta Magna.

Essa intersecção entre o Direito Civil e o Direito Constitucional faz com que muitos
considerem o Direito Civil Constitucional como uma nova disciplina ou mesmo um
caminho metodológico2.

Segundo Tartuce3, a utilização da expressão Direito Civil Constitucional teve origem


na doutrina italiana de Pietro Perlingieri que aduzia ser a Constituição a instituidora do
ordenamento jurídico porquanto
o conjunto de valores, de bens, de interesses que o ordenamento jurídico
considera e privilegia, e mesmo a sua hierarquia traduzem o tipo de ordenamento
com o qual se opera. Não existe, em abstrato, o ordenamento jurídico, mas
existem ordenamentos jurídicos, cada um dos quais caracterizado por uma
filosofia de vida, isto é, por valores e por princípios fundamentais que constituem
a sua estrutura qualificadora4.

A norma constitucional assumiu nesse novo cenário um papel “reunificador do


sistema, passando a demarcar os limites da autonomia privada, da propriedade, do
controle de bens, da proteção dos núcleos familiares etc”5. Enfim, “o papel unificador
do sistema jurídico, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos, quanto
noutros temas de relevância pública, é desempenhado pela norma constitucional”6.

A partir dessa nova forma de interpretar o Direito Civil, operou-se uma alteração no
cerne dos institutos e conceitos essenciais deste, revigorando-os com a necessidade
de redefinição dos seus limites segundo critérios valorativos estabelecidos pela Carta
Maior.

2 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 6. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: Método, 2016, p. 57.

3 Idem.

4 Apud TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 6. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: Método, 2016, p. 57.

5 FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB.
Volume 1. 16. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm. 2018. p.69.

6 PERLINGIERI, Pietro apud FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito
Civil: Parte Geral e LINDB. Volume 1. 16. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm. 2018. p.69.

CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO PELO INSS NOS CASOS DE CRIMES DE TRÂNSITO E VIOLÊNCIA 223
DOMÉSTICA SOB A ÉGIDE DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
Ressalta-se que, assim como o Direito Civil sofreu interferências do Direito
Constitucional, este também passou a ser compreendido sob um novo paradigma.
Isso porque a Constituição de 1988 deixou a isenção e a indiferença dos textos cons-
titucionais anteriores que tratavam tão somente de organização político-administrativa
do Estado para dedicar-se também ao tratamento da pessoa humana sob o viés da
cidadania e, especialmente, da dignidade.

1.2. Conceito
Consoante já exposto, o Direito Civil Constitucional está baseado numa visão
unitária do ordenamento jurídico.

Farias e Rosenvald7 ensinam que o Direito Civil Constitucional pode ser compreen-
dido como o “novo sistema de normas e princípios, reguladores da vida privada, relativos
à proteção da pessoa, nas suas mais diferentes dimensões fundamentais (desde os
valores existenciais até os interesses patrimoniais) integrados pela Constituição”.

Pode o Direito Civil Constitucional ser entendido também como uma leitura das
normas de Direito Civil à luz dos princípios e valores consagrados na Constituição, com
o escopo de concretizar o programa constitucional na esfera privada8.

Caio Mário9 destaca que se trata de um “Direito Civil interpretado e aplicado à


luz dos valores constitucionais, reconhecido nos meios acadêmicos e também nos
tribunais”. Prossegue afirmando que a interpretação hodierna do Código Civil deve-se
atentar aos princípios constitucionais, assim bem como aos direitos fundamentais,
os quais compelem as relações interprivadas e os interesses particulares. Opera-se
autêntica “constitucionalização do direito privado”.

7 FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB. Volume 1.
16. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm. 2018. p.70.

8 Direito Civil Constitucional [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI/UFS; Coordenadores:


Ilton Garcia Da Costa, Clara Angélica Gonçalves Dias, César Augusto de Castro Fiuza – Florianópolis:
CONPEDI, 2015. Direito Civil- Constitucional*. XXIV Encontro Nacional do CONPEDI – UFS. Disponível
em <https://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/84k8hu2h>. Acesso em: 26 jul. 2018.

9 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – v. I / Atual. Maria Celina Bodin de
Moraes. 30. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 38.

224 Natália Neves Marques


Barroso10 enuncia que a Constitucionalização do Direito Civil é marcada pela
centralidade da Constituição no ordenamento jurídico
de onde passa a atuar como o filtro axiológico pelo qual se deve ler o direito
civil. Há regras específicas na Constituição, impondo o fim da supremacia do
marido no casamento, a plena igualdade entre os filhos, a função social da
propriedade. E princípios que se difundem por todo o ordenamento, como a
igualdade, a solidariedade social, a razoabilidade.

Assim inferimos que, com a Constitucionalização do Direito Civil, o jurista deve


interpretar o Código Civil em conformidade com os ditames constitucionais. Deve-se
compreender o direito privado sob um novo enfoque tendo por alicerce o valor existen-
cial em detrimento do pensamento dantes que preconizava o patrimônio.

A Responsabilidade Civil, a Constitucionalização e o Código


Civil
Antes do advento da Constitucionalização do Direito Civil, já não mais se susten-
tava a centralidade do Código Civil, haja vista que foram erigidos vários regramentos
esparsos, verdadeiros microssistemas legislativos, sendo estes mais específicos na
regulamentação de determinadas matérias.

A partir da Constituição de 1988, com a valorização das normas constitucionais


e estas sobrelevadas ao mais alto nível de importância e observância no nosso orde-
namento jurídico, tem-se um “polissistema que encontra agora, na Constituição, sua
unidade sistemática e axiológica”11.

Tal mudança paradigmática alterou de forma profunda o Direito Civil e suas bases,
dentre elas a Responsabilidade Civil, integrante do ramo jurídico em comento. Abandona
o cenário jurídico o direito privado com caráter puramente patrimonialista, focado
precipuamente na garantia e proteção da propriedade para emergir um direito privado
dotado de função social.

10 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. 2005. Disponível


em <https://jus.com.br/artigos/7547/neoconstitucionalismo-e-constitucionalizacao-do-direito>. Acesso
em: 30 jul.2018.

11 MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do Direito Civil e seus efeitos sobre a
Responsabilidade Civil. Direito, Estado e Sociedade - v.9 - n.29 - p 233 a 258 - jul/dez 2006.

CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO PELO INSS NOS CASOS DE CRIMES DE TRÂNSITO E VIOLÊNCIA 225
DOMÉSTICA SOB A ÉGIDE DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
A Responsabilidade Civil vincula-se aos dogmas constitucionais, com obediência
aos princípios do fomento da dignidade da pessoa humana, assim bem como da
promoção do bem-estar social, tendo como sustentáculos os princípios da dignidade
da pessoa humana, solidariedade social e justiça distributiva.

Nesse sentido são as lições de Maria Celina Bodin de Moraes ao defender que a
responsabilidade civil em sua noção clássica consistia “na tutela do direito de proprie-
dade e dos demais direitos subjetivos patrimoniais”. Contemporaneamente, prossegue
a jurista, “a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social a e justiça distributiva
influenciam profundamente toda a sistemática do dever de ressarcir”12.

Pois bem. Superadas as considerações iniciais acerca da Constitucionalização


do Direito Civil, assim bem como seus reflexos dentro da Responsabilidade Civil, volve-
remos nossos esforços para o estudo deste este último instituto, em especial sobre
sua função social de modo a amparar o cabimento da ação de regresso manejada pelo
INSS com esteio na cláusula geral de Responsabilidade Civil (arts. 186 c/c 927 do
Código Civil). A ação em análise no presente trabalho possui a finalidade de ressarcir
as despesas previdenciárias oriundas da prática de ilícitos, quais sejam, acidentes de
trânsito e violência doméstica.

2. DA RESPONSABILIDADE CIVIL E SUA FUNÇÃO SOCIAL

2.1. Considerações gerais acerca da Responsabilidade Civil


Para o Direito, responsabilidade é
uma obrigação derivada – um dever jurídico sucessivo – de assumir as
consequências jurídicas de um fato, consequências estas que podem variar
(reparação do dano e/ou punição pessoal do agente lesionante) de acordo com
os interesses lesados13.

Especificamente quanto à Responsabilidade Civil, temos que resulta de uma


“agressão a um interesse eminentemente particular, sujeitando, assim, o infrator, ao

12 Idem.

13 GAGLIANO, Pablo Stolze. FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil:
Responsabilidade Civil. Volume 3. 14. ed. São Paulo: Saraiva. 2016. p.49.

226 Natália Neves Marques


pagamento de uma compensação pecuniária à vítima, caso não possa repor in natura
o estado anterior das coisas”14

Maria Helena Diniz15 preceitua que a Responsabilidade Civil pode ser definida como
a “aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial
causado a terceiros em razão do ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele
responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda ou, ainda, de simples imposição
legal”.

Nas precisas lições de Carlos Alberto Bittar16, sempre que ocorrer um dano na
esfera de outrem, sobrevém o dever de reparação, sendo certo que esta é uma conse-
quência inata da vida em sociedade essencial para a existência desta, assim bem como
para o desenvolvimento costumeiro das capacidades de cada ente personalizado.

Com efeito, os atos ilícitos ou antijurídicos contra os bens e valores protegidos pelo
ordenamento jurídico pátrio influem no curso normal das relações sociais e demandam
ações por parte do sistema normativo vigente como forma de restabelecer o equilíbrio
rompido.

Nesse diapasão, a teoria da Responsabilidade Civil


encontra suas raízes no princípio fundamental do neminem laedere, justificando-se
diante da liberdade e da racionalidade humanas, como imposição, portanto, da
própria natureza das coisas. Ao escolher as vias pelas quais atua na sociedade,
o homem assume os ônus correspondentes, apresentando-se a noção de
responsabilidade como corolário de sua condição de ser inteligente e livre.
Realmente, a construção de uma ordem jurídica justa – ideal perseguido,
eternamente, pelos grupos sociais – repousa em certas pilastras básicas, em
que avulta a máxima de que a ninguém se deve lesar. Mas, uma vez assumida
determinada atitude pelo agente, que vem a causar dano, injustamente a outrem,
cabe-lhe sofrer os ônus relativos a fim de que possa recompor a posição do

14 Ibidem, p.55.

15 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. Volume 7. 25.ed. São
Paulo: Saraiva, 2011. p.50.

16 BITTAR, Carlos Alberto, 1993 apud GAGLIANO, Pablo Stolze. FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo
Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. Volume 3. 14. ed. São Paulo: Saraiva. 2016. p.66.

CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO PELO INSS NOS CASOS DE CRIMES DE TRÂNSITO E VIOLÊNCIA 227
DOMÉSTICA SOB A ÉGIDE DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
lesado, ou mitigar –lhe os efeitos do dano, ao mesmo tempo em que se faça
sentir ao lesante o peso da resposta compatível prevista na ordem jurídica17.

Tecidos os conceitos mais relevantes à matéria em análise, adentraremos nos


tipos de responsabilidade, em apartada síntese.

A responsabilidade civil subjetiva é aquela que decorre de dano originado de


um ato doloso ou culposo. Lado outro, a responsabilidade civil objetiva desconsidera
o dolo ou a culpa na conduta do agente lesante, sendo necessária tão somente a
demonstração do nexo causal entre o dano e a conduta do agente para que exsurja o
dever de indenizar.

Ainda, tem-se a responsabilidade civil contratual decorre do descumprimento de


um contrato existente entre lesado e agente lesante. Por fim, a responsabilidade civil
extracontratual decorre da violação de um mandamento legal, em razão da ação ilícita
do agente infrator. Esta última responsabilidade é que embasará a ideia sustentada
no presente trabalho, as ações de regresso movidas pelo INSS fundadas na cláusula
geral de responsabilidade civil.

2.2. Das funções da Responsabilidade Civil


A Responsabilidade Civil exerce determinadas funções diante da ocorrência de
um ato ilícito que viole a esfera de direitos de outrem. Maria Helena Diniz18 preleciona
que é dupla a função da responsabilidade, qual seja: a) garantir o direito do lesado à
segurança; b) servir como sanção civil, com natureza compensatória, reparando-se o
dano causado à vítima, punindo o lesante e, desencorajando a prática de atos lesivos.

De outro turno, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho19 apontam três
funções da responsabilidade civil, a saber: a) compensatória do dano à vítima; b)
punitiva do ofensor; c) desmotivação social da conduta lesiva.

17 BITTAR, Carlos Alberto, 1993 apud GAGLIANO, Pablo Stolze. FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo
Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. Volume 3. 14. ed. São Paulo: Saraiva. 2016. p.66.

18 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. Volume 7. 25.ed.
São Paulo: Saraiva, 2011. p. 25.

19 GAGLIANO, Pablo Stolze. FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil:
Responsabilidade Civil. Volume 3. 14. ed. São Paulo: Saraiva. 2016. p.67.

228 Natália Neves Marques


Analisaremos de forma sucinta a tríplice função da responsabilidade civil, em
consonância com os ensinamentos de Gagliano e Filho.

2.2.1. Função Reparatória


Trata-se de um objetivo fundamental e propósito precípuo da responsabilidade
civil – restaurar o status quo ante dos bens ou valores lesados. Tal desiderato pode se
dar de forma direta, repondo-se o bem perdido, ou, na impossibilidade desta, estabelecer
uma indenização em importância equivalente ao valor do bem material, ou, ainda,
compensatória do direito insuscetível de valoração pecuniária.

2.2.2. Função Punitiva


Subsidiária relativamente à restituição das coisas ao estado em que se encon-
travam antes da ofensa, mas de igual importância, encontra-se a punição do agente
lesante. A obrigação imposta ao ofensor produz efeito punitivo devido à falta de cuidado
na prática de seus atos, configurando-se mecanismo de persuasão para que ele não
mais lesione. Ressalte-se que, quando for possível a restituição integral das coisas ao
status quo ante, tal função pode não incidir.

2.2.3. Função Social


A responsabilidade civil era concebida sob um viés patrimonialista, sendo certo
que esta concepção foi alterada com o novo paradigma introduzido pela Constituição
de 1988. Com o advento desta, a percepção da Responsabilidade Civil estendeu-se
para além do amparo patrimonial e passou a configurar “verdadeira cláusula geral de
proteção ampla aos direitos fundamentais”20.

20 PINTO, Helena Elias. Função Social e Responsabilidade Civil. 2012. Disponível em <https://www.
google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=2ahUKEwjFp4Xj6MzcAhUHkpAKHQI_
B S o Q F j A A e g Q I A B AC & u r l = h t t p % 3 A % 2 F % 2 F w w w. p u b l i c a d i re i to . c o m .
br%2Fartigos%2F%3Fcod%3D3323fe11e9595c09&usg=AOvVaw0cyYvvO3X_nEOvbzx_eopP>. Acesso em:
29 jun.2018.

CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO PELO INSS NOS CASOS DE CRIMES DE TRÂNSITO E VIOLÊNCIA 229
DOMÉSTICA SOB A ÉGIDE DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
Assim, dentro da Responsabilidade Civil, além das funções reparatória e punitiva,
surge com grande força a denominada função social. Acerca da função social, Paulo
Lôbo21 afirma que esta é
incompatível com a noção de direito absoluto, oponível a todos, em que se
admite apenas a limitação externa, negativa. A função social importa limitação
interna, positiva, condicionando o exercício e o próprio direito. Lícito é o interesse
individual quando realiza, igualmente, o interesse social.

Neste contexto, temos que a persuasão produzida pela punição do ofensor não
se limita a produzir efeitos somente na esfera deste. Ela torna público que as condutas
assemelhadas não serão toleradas no corpo social. Por via reflexa, atinge a própria
sociedade, recompondo a estabilidade e a segurança colimadas pelo Direito. Temos
então, que esta função possui caráter socioeducativo.

Destarte, a punição do agente ofensor com fulcro na cláusula geral da


Responsabilidade Civil atende a um propósito que extrapola o âmbito pessoal deste
e incide sobre a própria sociedade, na medida em que amplia as hipóteses de danos
passíveis de indenização em consonância com a constitucionalização do Direito.
Encontra-se presente, neste contexto, a função social da Responsabilidade Civil em
uma verdadeira releitura do instituto em comento em uma perspectiva axiomática
constitucional.

2.2.3.1. Dimensões da Função Social


Helena Elias Pinto22 aduz que a função social da Responsabilidade Civil pode ser
reconhecida projetando-se em três dimensões.

A uma, como desdobramento da função social do direito violado quando se referir


a um direito patrimonial. Em outras palavras, a análise da responsabilidade é concebida
a partir da magnitude do bem lesado.

21 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa.
Brasília. v. 36, n. 141, p. 99-109, jan./mar. 1999. Disponível em <http://www2.senado.leg.br/bdsf/
handle/id/453>. Acesso em: 26 jul.2018.

22 PINTO, Helena Elias. Função Social e Responsabilidade Civil. 2012. Disponível em <https://www.
google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=2ahUKEwjFp4Xj6MzcAhUHkpAKHQI_
B S o Q F j A A e g Q I A B AC & u r l = h t t p % 3 A % 2 F % 2 F w w w. p u b l i c a d i re i to . c o m .
br%2Fartigos%2F%3Fcod%3D3323fe11e9595c09&usg=AOvVaw0cyYvvO3X_nEOvbzx_eopP>. Acesso em:
29 jun. 2018.

230 Natália Neves Marques


A duas, tem-se a dimensão preventiva, revelando-se eficiente instrumento de
controle social na medida em que desencoraja condutas lesivas.

A três, revela-se na busca da estabilidade das relações jurídicas afetadas pelo ato
lesivo. Neste momento a função social é concebida sob o prisma da solidariedade social
com o escopo de estabelecer um equilíbrio entre a lesão perpetrada e uma indenização
que seja, concomitantemente, individual e socialmente justa.

Nessa perspectiva, extrai-se que a responsabilidade civil contém em seu âmago


nítida função social que, sob o viés da funcionalização social da obrigação de indenizar
fundamenta a propositura de demandas regressivas previdenciárias.

3. DA AÇÃO DE REGRESSO PREVIDENCIÁRIA

3.1. Conceito de Ação Regressiva


A ação regressiva é o mecanismo processual através do qual a Fazenda Pública
demanda a restituição de dispêndios originados de atos ilícitos. Tal instituto encontra
assento nas normas constitucionais. Vejamos:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios
de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também,
ao seguinte:
[...]
§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos
direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o
ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da
ação penal cabível.
§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por
qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas
as respectivas ações de ressarcimento23.

23 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.


br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 05 ago. 2018.

CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO PELO INSS NOS CASOS DE CRIMES DE TRÂNSITO E VIOLÊNCIA 231
DOMÉSTICA SOB A ÉGIDE DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
O Ministério Público Federal, em seu glossário jurídico24 dispõe que a ação
regressiva
é fundada no direito de uma pessoa (direito de regresso) de haver de outrem
importância por si despendida ou paga no cumprimento de obrigação, cuja
responsabilidade direta e principal a ele pertencia. A ação tem por objetivo
reaver a soma despendida nessa reparação da pessoa cujo dano foi por ela,
individualmente, causado.

Luís Ruivo Marques25 preceitua que “o direito de regresso pressupõe o pagamento


por quem devia pagar e paga, tendo, porém, o direito de se voltar contra o causador do
fato, para reclamar o que desembolsou”.

O Conselho Nacional do Ministério Público26 dispõe que a ação regressiva “é


fundada no direito de uma pessoa (direito de regresso) de haver de outrem importância
por si despendida ou paga no cumprimento de obrigação, cuja responsabilidade direta
e principal a ele pertencia”. Nestes termos tem por objetivo “reaver a soma despendida
nessa reparação da pessoa cujo dano foi por ela, individualmente, causado”.

3.2. Conceito de Ação Regressiva na Portaria Conjunta PGF/


INSS nº 6/2013
Estabelece o artigo 2º da Portaria Conjunta PGF/INSS nº 6/201327 que ação
regressiva é aquela “que tenha por objeto o ressarcimento ao INSS de despesas previ-
denciárias determinadas pela ocorrência de atos ilícitos”.

Nesse sentido, do ato ilícito exsurge a responsabilidade de indenizar ou ressarcir


o dano causado, sendo que aquele pode ser compreendido como uma violação ao

24 BRASIL. Glossário de Termos Jurídicos. Disponível em <http://www.mpf.mp.br/ba/sala-de-


imprensa/glossário>. Acesso em: 05 ago.2018.

25 Apud OLIVEIRA, Júlio César. Ação Regressiva Proposta Pelo Instituto Nacional do Seguro Social Face Às
Empresas: Instrumento De Prevenção De Acidentes De Trabalho. Revista de Direito. Vol. 13. Nº 18. Ano
2010. p. 57-72.

26 BRASIL. Glossário. Disponível em <http://www.cnmp.mp.br/portal/glossario/8254-acao-regressiva>.


Acesso em: 14 set. 2018.

27 BRASIL. Portaria Conjunta da Procuradoria Geral Federal/Procuradoria Federal Especializada


Junto ao INSS nº 6, de 18 de janeiro de 2013. Disponível em <http://www.normaslegais.com.br/legislacao/
portaria-conj-pgf-pfe-inss-6-2013.htm>. Acesso em: 29 jun. 2018.

232 Natália Neves Marques


dever de conduta mediante atitudes comissivas ou omissivas culposas do agente que
culminem em dano a outrem.

Comprovado o intento inequívoco de lesionar direito ou provocar prejuízo a outrem,


configurado está o dolo. Lado outro, existindo o prejuízo causado por ação imprudente
ou negligente, mas não a finalidade deliberada, caracterizada está a culpa strictu sensu.

Com efeito, a partir da edição da Portaria em comento, a Procuradoria Geral


Federal, representando os interesses do INSS passou a ajuizar ações de regresso
tendo por base a culpa strictu sensu dos agentes causadores do dano suportado pela
autarquia federal.

As ações visam ao ressarcimento de quantias despendidas com o pagamento


de aposentadoria por invalidez, auxílio doença, auxílio acidente ou pensão por morte,
abrangendo ainda os gastos com reabilitação profissional.

Ao propor ação ressarcitória, deve o INSS provar que o agente lesante – motorista
no caso de crime de trânsito e autor do ato ilícito no caso de violência doméstica – agiu
com culpa ou dolo e que a autarquia federal arcou com o ônus financeiro, requerendo
a restituição dessas quantias ao real causador do dano.

3.3. Hipóteses de cabimento de ações regressivas na Portaria


Conjunta PGF/INSS nº 6/2013
O artigo 4º da norma em análise estabelece que as ações serão ajuizadas em
virtude dos benefícios implantados em virtude dos seguintes atos ilícitos:

I - o descumprimento de normas de saúde e segurança do trabalho que resultar


em acidente de trabalho;

II - o cometimento de crimes de trânsito na forma do Código de Trânsito Brasileiro;

III - o cometimento de ilícitos penais dolosos que resultarem em lesão corporal,


morte ou perturbação funcional;

Consoante a norma em tela, três espécies de atos ilícitos ensejam o ajuizamento


de uma demanda regressiva, dentre eles aqueles ilícitos originados de crimes de
trânsito e casos relacionados à violência doméstica, dispostos nos incisos II e III,
respectivamente, os quais analisaremos de forma detida, visto que são objetos do
presente trabalho.

CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO PELO INSS NOS CASOS DE CRIMES DE TRÂNSITO E VIOLÊNCIA 233
DOMÉSTICA SOB A ÉGIDE DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
3.3.1. Ação Regressiva de Trânsito
No que concerne a este tipo de ação regressiva, possui por pressuposto fático
a ocorrência de acidente de trânsito e que este seja resultado de uma conduta ilícita
por parte do agente causador do acidente em descumprimento às normas dispostas
no Código de Trânsito Brasileiro. Restará então caracterizada a culpa por parte do
agente lesante.

Ademais disso, mister que a vítima do acidente seja segurada do INSS e que seja
gerado o pagamento de algum benefício ou despendidos valores com reabilitação
profissional em virtude do sinistro nos termos do art. 3º da Portaria em tela, in verbis:
Art. 3º Consideram-se despesas previdenciárias ressarcíveis as relativas ao
pagamento, pelo INSS, de pensão por morte e de benefícios por incapacidade,
bem como aquelas decorrentes do custeio do programa de reabilitação
profissional.

Ressalte-se que, conforme Cartilha elaborada Pela Advocacia Geral da União,


contendo orientações acerca das ações regressivas previdenciárias, alguns casos
não darão ensejo à ação em comento. É o caso da vítima do acidente que gozava do
benefício de aposentadoria à época do sinistro, ocorrendo tão somente a conversão
deste benefício em outro, qual seja, pensão por morte, não ocasionando ônus adicional
à autarquia federal.

3.3.2. Ação Regressiva Maria da Penha


Esta ação de regresso pode ser intentada quando existente um ato de violência
doméstica e/ou familiar que vitime uma segurada do INSS, amoldando-se a conduta
do agente agressor àquelas tipificadas na Lei nº 11.340/06, que criou mecanismos
para coibir a violência doméstica e/ou familiar contra a mulher.

O diploma legal supracitado, em seu artigo 5º, define violência doméstica e familiar
contra a mulher como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause
morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”
no âmbito da unidade doméstica, da família ou de qualquer relação íntima de afeto.

Compõe o ambiente doméstico o espaço de convívio permanente de pessoas,


com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas. No que tange à
família, esta pode ser compreendida como como a comunidade formada por indivíduos

234 Natália Neves Marques


que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por
vontade expressa. Por seu turno, relação íntima de afeto é aquela na qual o agressor
conviva ou tenha convivido com a ofendida e independe de coabitação.

No caso em apreço, fundamentalmente a violência que atinja a mulher segurada do


INSS há de ser física ou sexual culminando em seu afastamento do trabalho ou morte.
Demais disso, o ato de violência deve originar o pagamento de despesas previdenciárias,
conforme disposto no artigo 3º da Portaria Conjunta PGF/INSS nº 6/2013.

Para a propositura da ação regressiva pela Lei Maria da Penha faz-se necessário
comprovar tão somente o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado - lesão
ou morte – que originou o benefício previdenciário.

Ressalte-se que, consoante orientações emitidas pela AGU28, tal demanda somente
deve ser proposta quando inexista convivência da vítima com o agressor com o escopo
de não ensejar uma maior vitimização da mulher. Neste contexto, somente será ajuizada
ação regressiva nos casos em que a vítima já se encontre separada do agressor ou nos
casos de morte em que o agressor não detenha a guarda de filhos porventura existentes.

3.4. Fundamentos Normativos que Embasam a Ação de Regresso


Previdenciária
O direito de regresso do INSS possui previsão nos artigos 120 e 121 da Lei nº
8.213/91, in verbis:
Art. 120. Nos casos de negligência quanto às normas padrão de segurança e
higiene do trabalho indicados para a proteção individual e coletiva, a Previdência
Social proporá ação regressiva contra os responsáveis.
Art. 121. O pagamento, pela Previdência Social, das prestações por acidente do
trabalho não exclui a responsabilidade civil da empresa ou de outrem.

Deveras, as normas inseridas nos artigos supratranscritos não deixam dúvidas


quanto ao ajuizamento de ação de regresso em face de empresa causadora de dano à
autarquia previdenciária em virtude de condutas negligentes. Entretanto, o regramento

28 BRASIL. Cartilha de Atuação nas Ações Regressivas Previdenciárias. Disponível em: <http://www.agu.
gov.br/page/content/detail/id_conteudo/268218>. Acesso em: 05 ago. 2018.

CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO PELO INSS NOS CASOS DE CRIMES DE TRÂNSITO E VIOLÊNCIA 235
DOMÉSTICA SOB A ÉGIDE DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
contido nos mencionados dispositivos deve ser lido à luz dos artigos 186 e 927 do
Código Civil que configuram cláusula geral de Responsabilidade Civil, ipsis litteris:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete
ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica
obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de
culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos
de outrem.

Tomando por base a leitura dos dispositivos contidos nos diplomas normativos
acima transcritos, conclui-se que o INSS pode promover ações regressivas com base
nos artigos 120 e 121 da Lei 8.213/91 nos casos em que reste comprovada a ocorrência
de ato ilícito e a consequente necessidade de reparar o prejuízo sofrido, aplicando-se
os artigos 186 e 927 do Código Civil.

Neste contexto, conforme ensina o Ministro Humberto Martins29, embora seja espe-
cífica a previsão contida na Lei nº 8.213/91 no que diz respeito às ações regressivas
acidentárias, o que possibilita o direito de ressarcimento da autarquia previdenciária
é a prática de uma conduta ilegal.

Analisando o artigo 121 da Lei de Benefícios infere-se que este vai de encontro
ao entendimento acima esboçado, porquanto prevê que o pagamento das prestações
por acidente de trabalho pela Previdência Social não elide a responsabilidade civil da
empresa ou de outrem.

Destarte, é possível cumular um benefício previdenciário com a reparação civil


originada da prática de um ato ilícito com a consequente reparação dos valores desem-
bolsados pela autarquia previdenciária com o pagamento do benefício.

Demais do exposto, as ações de regresso possuem natureza indenizatória e


pertencem ao ramo do Direito Civil, haja vista que são intentadas com o intuito de

29 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.431.150/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ
02.02.2017. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/433556100/recurso-especial-
resp-1431150-rs-2013-0388171-8/inteiro-teor-433556111?ref=juris-tabs >. Acesso em: 29 jun. 2018.

236 Natália Neves Marques


reparar o dano causado. Ao encontro desta compreensão, estão Castro e Lazzari30
quando enunciam que “o caráter da ação é indenizatório, visando restabelecer a situação
existente antes do dano – restitutio in integrum – ou impor condenação equivalente”.

Nesse diapasão, as ações regressivas previdenciárias originadas da prática de


crime de trânsito e violência doméstica contra a mulher possuem por fundamentos os
artigos 120 e 121 da Lei 8.213/91 analisados e lidos sob o prisma da cláusula geral
de responsabilidade civil contida no Código Civil nos artigos 186 e 927.

3.5. Caráter Punitivo-Pedagógico


Deveras, o objetivo imediato das ações regressivas intentadas pela autarquia previ-
denciária é o ressarcimento ao erário público dos valores pagos a título de benefícios
previdenciários ou reabilitação profissional decorrentes de atos ilícitos.

Não obstante a importância do efeito imediato, verifica-se que tais ações possuem
um objetivo mediato tão ou mais importante que o ressarcimento. Trata-se da prevenção
de futuros acidentes de trânsito e ilícitos em geral. As ações em estudo possuem
importante caráter punitivo-pedagógico.

Assim, são as demandas regressivas um importante instrumento para concreti-


zação de políticas públicas e é justamente esse objetivo pedagógico que
evidencia o caráter constitucional da ação regressiva, pois está diretamente
amparado nos princípios da dignidade da pessoa humana, da solidariedade
social e da justiça distributiva, nos termos da nova visão que deve ser atribuída
a responsabilidade civil31.

Dessarte, a função social da Responsabilidade Civil deve ser observada sob


essa perspectiva, a saber, a prevenção e o desestímulo de comportamentos lesivos/
danosos posto que atingem o patrimônio das pessoas com o intento de obter uma
mudança de comportamento por parte destas, revelando-se um importante mecanismo
de controle social.

30 CASTRO, Carlos Alberto Pereira. LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 20. ed.
rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense. 2017. p. 426.

31 LÓCIO, Rodrigo Medeiros. As novas ações regressivas do INSS: uma análise sob a ótica do direito civil-
constitucional e da função social da responsabilidade civil. Revista da AGU, Brasília-DF, v.16, n.03, p.287-
302, jul./set. 2017.

CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO PELO INSS NOS CASOS DE CRIMES DE TRÂNSITO E VIOLÊNCIA 237
DOMÉSTICA SOB A ÉGIDE DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
Ademais, nota-se também a função social da Responsabilidade Civil sobre o
patrimônio violado que, nos casos postos sob análise revelam-se na compensação
pecuniária à fazenda pública em virtude dos ilícitos cometidos no trânsito e no âmbito
doméstico contra a mulher.

Ressalta-se que a coletividade não deveria suportar tais ilícitos, uma vez que
dentro do risco social não são computadas condutas ilícitas, tais como a do condutor
do veículo que dirige sob efeito de álcool ou do homicida, marido/companheiro que
agride a mulher, que ocasionam invalidez ou morte e culminam na implementação de
benefícios previdenciários em detrimento da previdência social.

3.6. Análise da jurisprudência nacional quanto ao tema


Acerca do tema, a jurisprudência tem se pronunciado e esta encontra-se em
consonância com o presente trabalho. Isso porque vem os Tribunais Pátrios assentindo
pela possibilidade de a autarquia previdenciária propor ações regressivas em caso de
implementação de benefícios previdenciários originados da prática de atos ilícitos.

O Superior Tribunal de Justiça, em julgado recente, REsp nº 1.431.150/RS32, decidiu


em um caso de assassinato de segurada do INSS pelo ex-marido que
o agente que praticou o ato ilícito do qual resultou a morte do segurado deve
ressarcir as despesas com o pagamento do benefício previdenciário, mesmo
que não se trate de acidente de trabalho, nos termos dos arts. 120 e 121 da Lei
nº 8.213/91, c/c os arts. 186 e 927 do Código Civil.

No mesmo sentido foi a conclusão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região no


recente julgamento da Apelação Cível nº 0800536742013405830033 em que o INSS
pleiteava o ressarcimento de valores pagos a título de pensão por morte originada de
homicídio cometido por companheiro contra segurada da autarquia previdenciária.

Asseverou o Tribunal que

32 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1.431.150/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, D J
02.02.2017. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/433556100/recurso-especial-
resp-1431150-rs-2013-0388171-8/inteiro-teor-433556111?ref=juris-tabs >. Acesso em: 29 jun. 2018.

33 Brasil. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação Cível – AC/PE nº 08005367420134058300, 4ª


Turma, Rel. Desembargador Federal Edílson Nobre, DJ 22.06.2017. Disponível em: <https://www4.trf5.
jus.br/Jurisprudencia/JurisServlet?op=exibir&tipo=1>. Acesso em: 29 jun. 2018.

238 Natália Neves Marques


apesar de a regra dos artigos 120 e 121 da Lei 8.213/91 fazer menção apenas
a acidente de trabalho, tem o escopo de ressarcir à autarquia previdenciária
pela conduta ilegal que advém da responsabilidade civil do causador do dano,
conforme dispõe os arts. 186 e 927 do Código Civil.

Deste modo, está configurada a obrigação de restituir ao INSS os valores pagos a


título de pensão por morte ao filho da segurada, em decorrência de ato ilícito praticado
pelo companheiro, qual seja, o assassinato da segurada.

De igual modo decidiu o Tribunal em julgamento anterior - Apelação Cível nº


567886/PE34, em que foram pleiteadas parcelas vencidas e vincendas pagas a título
de pensão por morte à filha da segurada do INSS originadas de homicídio cometido
pelo ex companheiro, réu confesso.

Neste mesmo viés encontra-se entendimento do Tribunal Regional Federal da 4ª


Região por ocasião do julgamento de Apelação em Reexame Necessário nº 5006374-
73.2012.4.04.7114/RS35 em que ficou decidido que
cabe ao agente que praticou o ato ilícito que ocasionou a morte do segurado
efetuar o ressarcimento das despesas com o pagamento do benefício
previdenciário, ainda que não se trate de acidente de trabalho. Hipótese em
que se responsabiliza o autor do homicídio pelo pagamento da pensão por morte
devida aos filhos, nos termos dos arts. 120 e 121 da Lei nº 8.213/91 c/c arts.
186 e 927 do Código Civil.

No caso em análise, realizou-se uma interpretação dos artigos 120 e 121 da


Lei 8.213/91 em conjunto com aqueles do Código Civil que contém a cláusula geral
de Responsabilidade Civil, artigos 186 e 927. Restou evidenciado no julgado em
questão, a legitimidade da demanda regressiva intentada pelo INSS com o fito de ser
restituído pelos valores despendidos com o pagamento de pensão por morte aos filhos
de segurada assassinada pelo ex-marido.

34 Brasil. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação Cível – AC/PE nº 00012298520134058302,


3ª Turma, Rel. Desembargadora Federal Polyana Falcão Brito, DJ 24.04.2014. Disponível em:
<https://www4.trf5.jus.br/Jurisprudencia/JurisServlet?op=exibir&tipo=1>. Acesso em: 29 jun. 2018.

35 Brasil. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. APELREEX nº 5006374-73.2012.4.04.7114, 3ª Turma,


Rel. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, juntado aos autos em 09/05/2013. Disponível em:
<https://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/inteiro_teor.php?orgao=1&documento=5807604>. Acesso
em: 29 jun. 2018.

CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO PELO INSS NOS CASOS DE CRIMES DE TRÂNSITO E VIOLÊNCIA 239
DOMÉSTICA SOB A ÉGIDE DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
Demais disto, esclareceu o julgador que o benefício resulta da condição de segu-
rada da falecida, razão pela qual seria instituído mesmo que não originasse da prática
de ato ilícito ou mesmo diante da impossibilidade de o agente lesante não possuir bens
para arcar com o pagamento das prestações.

Entretanto, ressalta que “a finalidade institucional do INSS não impede a busca


do ressarcimento quando o evento gerador do seu dever de pagar benefício decorrer
da prática de ato ilícito por terceiro”.

O Tribunal Regional da 1ª Região exarou decisão no mesmo sentido, nos autos da


apelação Cível-AC nº 95.00.18878-3/MG36, ao analisar uma ação regressiva ao analisar
uma ação regressiva promovida pelo INSS em virtude da implementação de um auxílio
acidente. O caso concreto tratava-se de acidente de trânsito em que o motorista de um
caminhão teria agido com imprudência e imperícia, invadindo a via contrária, vindo a
colidir com um ônibus e ocasionando mortes e lesões em diversos operários que se
encontravam no veículo.

Afirmou o Tribunal que

nos termos dos arts. 120 e 121, da Lei n. 8.213/91, o Instituto Nacional do Seguro
Social - INSS encontra-se legitimado a ajuizar ação regressiva contra os responsáveis
pelos danos causados a terceiros, que, eventualmente, tenham auferido benefícios
previdenciários dali decorrentes, desde que demonstrada a ocorrência do evento
danoso, o nexo de causalidade entre este e o pagamento de tais benefícios, bem
assim, a culpabilidade dos supostos responsáveis, como no caso.

Ante o exposto, verifica-se que a jurisprudência pátria tem assentado posiciona-


mentos pela possibilidade do INSS intentar ações de regresso pleiteando ressarcimento
pecuniário em virtude de valores gastos com o pagamento de benefícios originados da
prática de atos ilícitos perpetrados por terceiros, sendo que até o presente momento
tem-se manifestação de Corte Superior – Superior Tribunal de Justiça - nesse sentido.

36 Brasil. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Apelação Cível- AC 95.00.18878-3 / MG, 5ª Turma,
Rel. Desembargador Federal Souza Prudente, DJ 07.10.2013. Disponível em: <https://www2.cjf.jus.br/
jurisprudencia/trf1/index.xhtml;jsessionid=fNxTxqMfmAgDSNfaSSsclPS3GJ d V v 8 r I b c Q m 3 G g r .
taturana04-hc02:juris-trf1_node01>. Acesso em: 29 jun. 2018.

240 Natália Neves Marques


Considerações FinaiS
Com o fenômeno da releitura do Direito Civil sob a ótica das normas estabelecidas
na Constituição Federal de 1988 foi superado o aspecto puramente individual. Passou-se
a analisar os institutos contidos no Código Civil sob a perspectiva da dignidade da
pessoa humana em uma verdadeira quebra do paradigma essencialmente patrimonial e
individualista em que eram analisadas as relações privadas. Prevalecem os interesses
da coletividade em detrimento dos interesses meramente individuais.

Nesse contexto, a Responsabilidade Civil assume novos contornos, perpassando


a lógica meramente indenizatória e alcançando nos tempos hodiernos uma função
social que melhor atenda aos interesses da coletividade, em conformidade com os
princípios da dignidade da pessoa humana, solidariedade social e isonomia insculpidos
na Carta Magna.

À vista disso, é cabível o ajuizamento das ações de regresso pela autarquia


previdenciária com o fito de buscar a restituição dos valores desembolsados com o
pagamento de benefícios previdenciários decorrentes da prática de crimes de trânsito
e ilícitos penais dolosos, em uma nítida aplicação do instituto da Responsabilidade
Civil, em sua função social na qual funciona como importante instrumento de controle
social para desestimular condutas ilícitas.

Mister salientar que tais condutas ocasionam a implementação prematura de


benefícios previdenciários, cujos fatos geradores não foram originalmente pensados
e inseridos dentro do risco social calculado a ser suportado pela coletividade por meio
do sistema previdenciário.

À guisa de conclusão, tornam-se cada vez mais claros os posicionamentos dos


Tribunais brasileiros em confirmar a posição adotada pelo INSS ao propor demandas
regressivas, entendendo que o direito de regresso encontra fundamento na prática do
ato ilícito em si.

ReferênciaS
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2005. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/7547/neoconstitucionalismo-e-
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CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO PELO INSS NOS CASOS DE CRIMES DE TRÂNSITO E VIOLÊNCIA 241
DOMÉSTICA SOB A ÉGIDE DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
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promulgado em 05 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas
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Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo
Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário
Oficial da União – DOU, 08 mar. 2006. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/
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242 Natália Neves Marques


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CABIMENTO DAS AÇÕES DE REGRESSO PELO INSS NOS CASOS DE CRIMES DE TRÂNSITO E VIOLÊNCIA 243
DOMÉSTICA SOB A ÉGIDE DA RESPONSABILIDADE CIVIL E DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL
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244 Natália Neves Marques


NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO
DOS SERVIDORES PÚBLICOS:
POSSIBILIDADES, EXPERIÊNCIAS E O
PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
Thyago de Pieri Bertoldi1

Resumo
O artigo aborda a negociação coletiva no setor público e as razões que
impedem sua efetiva implementação como método de solução de conflitos
coletivos entre a Administração Pública e seus servidores. Examina as diver-
gências doutrinárias e jurisprudências sobre o tema, as experiências nacionais
de sucesso e o papel da advocacia pública no assessoramento jurídico dos
administradores durante os processos de negociação. Conclusivamente,
enuncia que a admissão da negociação coletiva para os servidores públicos
é um processo inevitável, decorrente da própria dinâmica social produzida
pelo desenvolvimento das relações de trabalho na Administração Pública, e
que, enquanto não há maior regulamentação do tema, é a Advocacia Pública,
enquanto órgão de assessoramento jurídico, uma das principais responsáveis
por garantir, nos processos de negociação, a observância dos princípios de
Direito Administrativo, mormente o da segurança jurídica e o da continuidade
dos serviços públicos.

1 Advogado da União. Chefe da Divisão de Informações Judiciais da Coordenadoria-Geral de Análise


de Licitações e Contratos e Coordenador-Geral de Análise de Licitações e Contratos Substituto da
Consultoria Jurídica do Ministério do Trabalho. Especialista em Direito Público pela ESMAFE-PR, em
parceria com o Centro Universitário UniBrasil, e em Advocacia Pública pelo Instituto de Desenvolvimento
Democrático (IDDE).
BERTOLDI, Thyago de Pieri. Negociação coletiva de trabalho dos servidores públicos: possibilidades, experiências e o papel da advo-
cacia pública. In: PEREIRA, Rodolfo Viana; SACCHETTO,Thiago Coelho (Orgs.). Advocacia pública em foco. Volume II. Belo Horizonte:
IDDE, 2019. p. 245-272. Disponível em: https://doi.org/10.32445/97885671341099
Introdução
A Constituição reconhece, em seu artigo 7º, inciso XXVI, a negociação coletiva de
trabalho como forma legítima de resolução de conflitos coletivos. A recente Reforma
Trabalhista (Lei nº 13.467/2017) acentuou ainda mais o papel dos acordos e das
convenções coletivas de trabalho na solução de conflitos, inclusive, instituindo a
prevalência do pactuado nesses instrumentos sobre a lei.  Porém, no setor público a
negociação coletiva é, ainda, subutilizada.

O presente trabalho tem como objeto justamente o estudo sobre a negociação


coletiva no setor público e as razões que impedem sua efetiva implementação.
Pretende-se expor as divergências doutrinárias e jurisprudências sobre o tema, as
experiências nacionais de sucesso e o papel da advocacia pública no assessoramento
jurídico dos administradores durante os processos de negociação. Especificamente,
objetiva-se demonstrar que a adoção da negociação coletiva para os servidores públicos
é um processo inevitável, decorrente da própria dinâmica social produzida pelo desen-
volvimento das relações de trabalho na Administração Pública.

Antes, contudo, de adentrar o cerne dos problemas expostos, buscar-se-á elucidar


conceitos relativos às relações de trabalho na Administração Pública, as características
do regime unilateral-estatutário e os contornos gerais dos institutos de Direito Coletivo
de Trabalho. Em seguida, apresentar-se-ão as peculiaridades do sistema sindical dos
servidores públicos, os argumentos contrários e favoráveis à negociação coletiva
no setor público, algumas experiências nacionais exitosas de sua implementação e
sugestões para superação dos problemas para sua definitiva aceitação como método
eficiente de resolução de conflitos coletivos no âmbito da Administração Pública.
Finalmente, considerando a ainda parca regulamentação do tema, destacar-se-á o
importante papel que deve ser exercido pelos advogados públicos a fim de garantir a
segurança jurídica e a consecução do interesse público no processo.

1. Relações de Trabalho na Administração Pública e o


Regime Unilateral-Estatutário
Segundo José Cairo Jr., “sempre que o trabalho for prestado por uma pessoa
em proveito de outra, seja como meio ou resultado, haverá uma espécie de relação

246 Thyago de Pieri Bertoldi


de trabalho”2. Utiliza-se a expressão “agentes públicos” para designar, genérica e
indistintamente, “os sujeitos que exercem funções públicas, que servem ao Poder
Público como instrumentos de sua vontade ou ação, independentemente do vínculo
jurídico”3. Logo, entre os agentes públicos e a Administração Pública há, inegavelmente,
uma relação de trabalho4.

A doutrina diverge quanto à classificação dos agentes públicos. Fernanda Marinela,


por exemplo, divide-os em agentes políticos, servidores estatais (podendo ser servidor
titular de cargo público ou servidor titular de emprego público) e particular em atuação
colaborada com o poder público5. Já Maria Sylvia Zanella Di Pietro6, Celso Antônio
Bandeira de Mello7 e Rogério Neiva8 classificam os agentes públicos em agentes
políticos, servidores públicos, militares e particulares em colaboração com o Poder
Público. Matheus Carvalho e João Paulo Oliveira, por seu turno, utilizam categorização
similar, preferindo, porém, a expressão “servidores estatais” a “servidores públicos”9.

Não é objeto do presente estudo o debate doutrinário-taxinômico a respeito dos


agentes públicos. O foco está, em verdade, nos “servidores estatais”, especificamente
nos “servidores públicos” e em seu regime jurídico.

São “servidores públicos” ou “servidores estatutários” aqueles trabalhadores que


mantém relação de trabalho com a Administração Pública mediante vínculo estatutário.

Prevalece na doutrina e na jurisprudência nacional que os servidores públicos


estatutários devem atuar nas pessoas jurídicas da Administração Pública de Direito

2 CAIRO JR., José. Curso de Direito do Trabalho. 14. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 182.

3 MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 613.

4 Nem sempre foi assim, porém. Na origem da “função pública” relutava-se em reconhecer a prestação
de serviços em favor da Administração Pública como uma forma de trabalho (ARAÚJO, Florivaldo Dutra.
Negociação Coletiva dos Servidores Públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 229).

5 MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 616.

6 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanela. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 596.

7 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.
135.

8 NEIVA, Rogerio. Direito e Processo do Trabalho aplicados à Administração Pública e Fazenda Pública. 2.
ed. São Paulo: Gen Método, 2016, p. 17.

9 CARVALHO, Matheus; OLIVEIRA, João Paulo. Agentes Públicos: Comentários à Lei 8.112/1990. Salvador:
Juspodivm, 2017, p. 13.

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS: POSSIBILIDADES, 247


EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
Público (União, Estados, Municípios e Distrito Federal, autarquias e fundações públicas).
Na União, o vínculo jurídico é regido pela Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990.

O vínculo estatutário difere-se do de natureza contratual. Naquele, o servidor


adere, após nomeação, posse e exercício, a estatuto jurídico pré-estabelecido em leis
ou regulamentos, e não em um contrato. Tal circunstância viabiliza a alteração unilateral
do regramento pela Administração, sem que se possa argumentar a existência de direito
adquirido a regime jurídico.

O regime estatutário, também, é refratário à possibilidade de participação do


servidor na definição das regras aplicáveis à sua relação de trabalho10.

A preferência pela teoria unilateral-estatutária para definição da natureza jurídica


do vínculo servidor-Administração decorre de construções doutrinárias e jurispruden-
ciais que argumentam ser o regime estatutário o mais compatível com o exercício da
função pública, por, supostamente, oferecer maiores garantias à prestação do serviço
público11:

A jurisprudência do STF também se inclina pela preferência ao regime unilateral-es-


tatutário para as pessoas jurídicas de direito públicos, advogando pela incompatibilidade
do regime celetista-contratual para atividades que exigem qualificação especial e sejam
consideradas como próprias do Poder Público12.

10 COUTINHO, Alessandro Dantas; RODOR, Ronald Krüger. Manual de Direito Administrativo. 2. ed. Salvador:
Juspodivm, 2018, p. 274.

11 MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 625.

12 O presente excerto torna claro o posicionamento do STF, quando da concessão de liminar na Ação
Cautelar 2310: “Os servidores das agências reguladoras hão de estar, necessariamente, submetidos ao
regime de cargo público, ou podem, como previsto na lei em exame, ser contratados para empregos
públicos? Ninguém coloca em dúvida o objetivo maior das agências reguladoras, no que ligado à
proteção do consumidor, sob os mais diversos aspectos negativos - ineficiência, domínio do mercado,
concentração econômica, concorrência desleal e aumento arbitrário dos lucros. Hão de estar as
decisões desses órgãos imunes a aspectos políticos, devendo fazer-se presente, sempre, o contorno
técnico. É isso o exigível não só dos respectivos dirigentes - detentores de mandato -, mas também
dos servidores - reguladores, analistas de suporte à regulação, procuradores, técnicos em regulação
e técnicos em suporte à regulação - Anexo I da Lei nº 9.986/2000 - que, juntamente com os primeiros,
hão de corporificar o próprio Estado nesse mister da mais alta importância, para a efetiva regulação
dos serviços. Prescindir, no caso, da ocupação de cargos públicos, com os direitos e garantias a eles
inerentes, é adotar flexibilidade incompatível com a natureza dos serviços a serem prestados, igualizando
os servidores das agências a prestadores de serviços subalternos, dos quais não se exige, até mesmo,
escolaridade maior, como são serventes, artífices, mecanógrafos, entre outros. Atente-se para a espécie.
Está-se diante de atividade na qual o poder de fiscalização, o poder de polícia fazem-se com envergadura
ímpar, exigindo, por isso mesmo, que aquele que a desempenhe sinta-se seguro, atue sem receios outros,
e isso pressupõe a ocupação de cargo público, a estabilidade prevista no artigo 41 da Constituição

248 Thyago de Pieri Bertoldi


Conforme Florivaldo Dutra de Araújo, a relutância em admitir-se eventual natureza
contratual ao vínculo servidor-Administração dá-se, em boa parte, à resistência ao
reconhecimento de novos perfis contratuais no Direito Administrativo, decorrentes da
superação do modelo liberal clássico, e na adoção da concepção organicista de poder
político, por possibilitarem uma visão social ao Estado, refutando o valor axiomático e
a função ideológica do contrato, típico das visões individualistas. Contribui para isso,
ainda, a presunção de incompatibilidade ontológica entre o regime jurídico do Direito do
Trabalho, alegadamente destinado à regulação de relações privadas, e a Administração
Pública, cujo objetivo último seria a busca pelo interesse público13.

Cada vez mais, porém, emergem na doutrina administrativista vozes dissonantes


que ressaltam o caráter autoritário da unilateralidade na tomada das decisões, imposta
pela tese do regime jurídico unilateral-estatutário, e sua incompatibilidade com o
Estado Democrático de Direito. Efetivamente, com a Constituição de 1988, a unilate-
ralidade deve ceder espaço à participação democrática na tomada de decisões nas
mais diversas áreas14:

Se (por ora) não suficiente para quebrar a hegemonia da mentalidade estatutária-


-unilateralista predominante na doutrina e jurisprudência, é certo que a nova corrente
doutrinária vai, gradativamente, abrindo portas à inserção, no Direito Administrativo,
de mecanismos consensuais de participação e resolução de conflitos, a exemplo
da negociação coletiva para os servidores públicos. Dão força ao processo marcos
normativos como a Constituição de 1988, que reconheceu aos servidores públicos os
direitos à sindicalização e à greve (CRFB, art. 37, incisos VI e VII), e, principalmente, a
Convenção nº 151 da OIT, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 206,
de 07 de abril de 2010, pois veicula a obrigatoriedade da adoção da consensualidade
e de mecanismos de participação na relação de trabalho entre servidores e Estado15.

Federal” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2310 MC. Rel: Ministro Marco Aurélio, Brasília,
19 de dezembro de 2000. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.
asp?s1=000047648&base=baseMonocraticas>. Acesso em 23, julho, 2018).

13 ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Negociação Coletiva dos Servidores Públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p.
127.

14 DANIEL, Felipe Alexandre Santa Anna Mucci. Natureza jurídica do vínculo Agente-Estado e a adoção de
instrumentos consensuais de participação no regime jurídico disciplinar dos servidores públicos. Revista
Brasileira de Direito Municipal – RBDM, Belo Horizonte, ano 10, n. 33, p. 51-75, jul./set. 2009.

15 CAMPOS, Sarah. A Negociação Coletiva e o Regime Jurídico-Administrativo: Espaços Legítimos de


Contratualização. In: SILVA, Clarissa Sampaio; GOMES, Ana Virginia Moreira Gomes (Org.). A Convenção

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS: POSSIBILIDADES, 249


EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
2. Aspectos Gerais do Conflito e da Negociação Coletiva
de Trabalho
É atribuída a Aristóteles a ideia de que o homem é um “animal político”, fadado, por
natureza, à vida em sociedade e à convivência coletiva16. O natural processo associativo
humano revela-se nas mais diversas facetas de nossa história e na conquista dos
direitos sociais não foi diferente.

O nascimento e o desenvolvimento dos direitos sociais trabalhistas dão-se


justamente em razão da reunião de trabalhadores em busca de melhores condições
de labor. Dito de outro modo, na gênese dos direitos sociais trabalhistas, encontra-se
o conflito coletivo de trabalho: de um lado, o grupo de trabalhadores realizava suas
reivindicações e resistia por meio das greves; de outro, o empregador via-se obrigado
a ceder às demandas dos trabalhadores, com o objetivo de viabilizar a continuidade
da produção e, com ela, o retorno do lucro. O conflito coletivo, assim, longe de ser algo
negativo, funcionou (e ainda funciona) como mola propulsora da conquista de novos
direitos sociais e melhorias nas condições de trabalho.

Nessa linha, Vólia Bonfim Cassar conceitua o conflito coletivo de trabalho como a
existência de “divergência de interesses trabalhistas entre um grupo de trabalhadores e
seus empregadores, para defesa de algum interesse coletivo do grupo ou dos membros
que o compõem” 17.

Os conflitos coletivos de trabalho devem, por força do artigo 8º, inciso VI, da
Constituição18, ser intermediados pelos sindicatos. Segundo o artigo 511 da CLT, os
sindicatos são associações para fins de estudo, defesa e coordenação dos interesses
econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados,
agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectiva-
mente, as mesmas atividades ou profissões similares ou conexas.

n. 151 da OIT sobre o Direito de Sindicalização e Negociação na Administração Pública: Desafios na


Realidade Brasileira. São Paulo: LTr, 2017, p. 44.

16 MORRISON, Wayne. Filosofia do Direito: Dos Gregos ao Pós-Modernismo. São Paulo: Martins Fontes,
2006, p. 49.

17 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 1246-1247.

18 CRFB, art. 8º, VI: “é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho”.

250 Thyago de Pieri Bertoldi


São inúmeras as formas de solução de conflitos coletivos de trabalho. Duas,
porém, apresentam especial relevância dentro do direito coletivo do trabalho: a greve
e a negociação coletiva. Consoante lição de Enoque Ribeiro dos Santos19:
Os direitos à sindicalização, à negociação coletiva e à greve são considerados os
pilares, ou o tripé, do direito coletivo, pois os dois últimos são desdobramentos
do direito à sindicalização. Ou seja, pensar em direito à sindicalização sem a
possibilidade de utilização de seus instrumentos, negociação coletiva e greve,
seria o mesmo que admitir o direito à sindicalização sem qualquer possibilidade
do sindicato atuar na defesa dos interesses de seus membros.

Conclui-se, assim, que os direitos à greve e à negociação coletiva constituem


desdobramentos do direito à sindicalização, sendo os três, portanto, institutos indis-
sociáveis. Em outros termos, o pleno exercício da garantia constitucional da liberdade
sindical passa necessariamente pela possibilidade jurídica de sindicalização, da reali-
zação de greves e da negociação coletiva.

A greve, na atual Constituição brasileira, foi erigida a direito fundamental social


por força do artigo 9º20 e constitui um dos pilares do Direito Coletivo de Trabalho.

Nos termos do artigo 2º da Lei nº 7.783, de 28 de junho de 1999, a greve consiste


na “suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de
serviços a empregador”. Na lição de Vólia Bomfim Cassar, “(...) é a cessação coletiva e
voluntária do trabalho, decidida por sindicatos de trabalhadores assalariados de modo
a obter ou manter benefícios ou para protestar contra algo”21.

Conforme leciona Maurício Godinho Delgado, o movimento paredista constitui


exceção legal à tendência restritiva da autotutela no ordenamento jurídico brasileiro,
em que os trabalhadores, demonstrando sua força e união em prol de determinada
causa, paralisam os serviços prestados ao empregador, forçando-o a ceder em alguma
medida e negociar melhores condições de trabalho22.

19 SANTOS, Enoque Ribeiro. Temas Contemporâneos de Direito Material e Processual do Trabalho.


Salvador: Juspodivm, 2015, p. 87.

20 CRFB, art. 9º: “É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade
de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”.

21 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 1295.

22 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 17. ed. São Paulo: LTr, 2018, p. 1694-1695.

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS: POSSIBILIDADES, 251


EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
Assim, embora nítido mecanismo de pressão, verifica-se que a greve busca, essen-
cialmente, conduzir o tomador de serviços, ainda que coercitivamente, à negociação
coletiva de trabalho.

Com efeito, a forma natural e mais efetiva de resolução de conflitos coletivos é


a negociação coletiva, na qual os próprios interessados “procuram, por meio de um
processo de concessões recíprocas, chegar a uma solução que agrade ambas as
partes”23-24.

O fundamento da negociação coletiva é a autonomia privada coletiva. Conforme


o escólio de Enoque Ribeiro dos Santos, a autonomia privada coletiva consiste na
faculdade reconhecida a determinados “(...) indivíduos e grupos sociais, de autorre-
gularem amplamente seus próprios interesses, ou seja, de agir com independência no
contexto do ordenamento jurídico, produzindo normas jurídicas próprias”25. Em nosso
ordenamento jurídico, a autonomia privada coletiva (princípio da autorregulamentação
ou da criatividade jurídica da negociação coletiva) encontra assento constitucional,
especificamente no artigo 7º, inciso XXVI26, constituindo direito fundamental social de
todos os trabalhadores urbanos e rurais.

É importante registrar, contudo, que a negociação coletiva não é ilimitada. Não


obstante o reconhecimento constitucional, a autonomia da vontade encontra barreira
nos direitos constitucionalmente assegurados aos trabalhadores e nas previsões
legais de ordem pública, devendo sempre buscar a melhoria nas condições sociais
dos trabalhadores27.

23 CAIRO JR., José. Curso de Direito do Trabalho. 14. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 1158.

24 É de longa data que a doutrina considera os métodos de autocomposição os mais eficientes e efetivos
para pacificação dos conflitos sociais. Daniel Amorim Assumpção Neves, por exemplo, defende que,
na autocomposição, “O que determina a solução do conflito não é o exercício da força, como ocorre
na autotutela, mas a vontade das partes, o que é muito mais condizente com o Estado democrático de
direito em que vivemos. Inclusive, é considerado atualmente um excelente meio de pacificação social,
porque inexiste no caso concreto uma decisão impositiva, como ocorre na jurisdição, valorizando-se a
autonomia da vontade das partes na solução do litígio (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de
Direito Processual Civil. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 5).

25 SANTOS, Enoque Ribeiro. Negociação Coletiva de Trabalho nos Setores Público e Privado. 2. ed. São
Paulo: LTr, 2016, p. 81.

26 CRFB, art. 7º, XXVI: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria
de sua condição social: (...) XXVI - reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho”.

27 GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Reforma Trabalhista: Análise crítica da Lei 13.467/2017. 3. ed. Salvador:
Juspodivm, 2018, p. 252.

252 Thyago de Pieri Bertoldi


Um ponto positivo da negociação coletiva destacado pela doutrina é seu caráter
flexível e a vigência temporária de suas normas28. Dessa forma, os instrumentos cole-
tivos de trabalho permitem a adaptabilidade das condições sociais do trabalho às
oscilações características da economia capitalista, à localidade em que desenvolvido
o trabalho, às peculiaridades da atividade desenvolvida, a condição econômica de
momento dos participantes, dentre outros fatores29.

Nessa toada, o já relevante papel exercido pelos acordos e convenções coletivas


de trabalho foi acentuado pelas recentes alterações legislativas na Consolidação das
Leis do Trabalho veiculadas pela Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017 (conhecida
popularmente como “Reforma Trabalhista” ou “Modernização Trabalhista”).

Com efeito, o legislador, ao estabelecer, no artigo 611-A da CLT, que a convenção


coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando dispuserem
sobre as matérias enumeradas no dispositivo, bem como ao positivar, no artigo 8º, §3º,
da CLT, o princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva, acaba por
indicar que o estabelecimento das condições de trabalho por meio dos instrumentos
coletivos negociados é a forma preferencial de criação de direitos trabalhistas e deve
preponderar sobre a própria regulamentação ou intervenção estatal.

Não obstante a evidente importância atribuída à negociação coletiva e aos instru-


mentos normativos negociados no setor privado, sua extensão aos servidores públicos
ainda encontra resistência na jurisprudência e em parte da doutrina nacionais.

3. A Negociação Coletiva dos Servidores Público


Antes da Constituição de 1988, não havia previsão de liberdade sindical para os
servidores públicos. A sindicalização, em verdade, era expressamente vedada a eles
pelo artigo 566 da CLT30.

28 CLT, art. 614, §3º: “Não será permitido estipular duração de convenção coletiva ou acordo coletivo de
trabalho superior a dois anos, sendo vedada a ultratividade”.

29 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 1256.

30 PAES, Arnaldo Boson. Negociação Coletiva, Convenção n. 151 da OIT e Eficácia dos Instrumentos
Negociados. In: SILVA, Clarissa Sampaio; GOMES, Ana Virginia Moreira Gomes (Org.). A Convenção
n. 151 da OIT sobre o Direito de Sindicalização e Negociação na Administração Pública: Desafios na
Realidade Brasileira. São Paulo: LTr, 2017, p. 59.

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS: POSSIBILIDADES, 253


EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
O asssociativismo característico dos sindicatos, marcado pela busca de melhores
condições de trabalho e pelo conflito empregado-empregador, era tida como incom-
patível com a concepção de que, enquanto órgãos do Estado, os servidores públicos
deveriam dedicar-se ao serviço da coletividade e, por isso, ter seus interesses alinhados
com a Administração na busca do interesse público. A sindicalização de servidores
também era tida como inconciliável com os deveres de obediência, hierarquia e lega-
lidade 31 .

O atual texto constitucional, no entanto, rompeu com esse paradigma e conferiu


expressamente aos servidores públicos a liberdade sindical (CRFB, art. 37, VI32) e o
direito de greve (CRFB, art. 37, VII33), salvo para os militares (CRFB, art. 142, §3º, IV34).

Em âmbito infraconstitucional, para os servidores civis da União, de suas autar-


quias e fundações públicas, o artigo 240 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990,
assegura o direito à livre associação sindical, bem como os de ser representado pelo
sindicato, inclusive como substituto processual; de inamovibilidade do dirigente sindical
até um ano após o final do mandato, exceto se a pedido; e do desconto em folha, sem
ônus para entidade sindical de filiação, do valor das mensalidades e contribuições
definidas em assembleia geral da categoria.

Há, também, instrumentos normativos internacionais que asseguram a liberdade


sindical aos servidores públicos.

Embora não ratificada pelo Brasil, a Convenção nº 87 da Organização Internacional


do Trabalho (OIT), relativa à liberdade sindical e à proteção do direito de sindicalização,
estabelece, em seu artigo 2, que os trabalhadores, sem nenhuma distinção e sem
autorização prévia, têm o direito de constituir os sindicatos que estimem convenientes,
bem como o de filiar-se a essas organizações35.

31 ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Negociação Coletiva dos Servidores Públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p.
141-142.

32 CRFB, art. 37, VI: “(...) é garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical”.

33 CRFB, art. 37, VII: “(...) o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei
específica”.

34 CRFB, art. 142, §3º, IV: “(...)ao militar são proibidas a sindicalização e a greve”.

35 Convenção n. 87 da OIT, art. 2: “Os trabalhadores e os empregadores, sem nenhuma distinção e sem
autorização prévia, têm o direito de constituir as organizações que estimem convenientes, assim como o
de filiar-se a estas organizações, com a única condição de observar os estatutos das mesmas”.

254 Thyago de Pieri Bertoldi


Na mesma linha, a Convenção nº 151 da OIT – que dispõem sobre as relações
de trabalho na Administração Pública –, ratificada e internalizada pelo Brasil por meio
do Decreto nº 7.944, de 6 de março de 2013, e do Decreto Legislativo nº 206, de 07
de abril de 2010, exige, em seu artigo 436, a concessão de proteção adequada aos
servidores públicos contra todos os atos de discriminação que acarretem violação de
sua liberdade sindical. Por seu turno, o artigo 7 da Convenção nº 151 da OIT assegura
aos funcionários públicos o direito à negociação das condições de trabalho entre
as autoridades públicas interessadas e os sindicatos de trabalhadores, devendo ser
adotadas medidas adequadas para encorajar e promover o desenvolvimento da utili-
zação desses mecanismos37.

O reconhecimento de um Direito Coletivo do Trabalho aos servidores públicos é


indicativo de que o ordenamento brasileiro abandona um ideal quase eclesiástico de
prestação de serviços em favor da Administração, em que a remuneração era tida como
espécie compensação pelo exercício da função pública, e não um direito social propria-
mente dito. Passa-se a admitir, como sustentado no início deste estudo, que o servidor
público é um trabalhador como qualquer outro, sendo possível (e compreensível) a ele
almejar que suas condições de labor sejam melhores ou, ao menos, as mais justas
possíveis. Na defesa de seus interesses, permite-se que se organize coletivamente
e reivindique direitos, inclusive por meio da utilização de mecanismos de pressão
contra a Administração Pública. Enfim, abandona-se a ideia de que o conflito coletivo
de interesses trabalhistas é possível somente na iniciativa privada e aceita-se sua
viabilidade, também, no setor público38.

36 Convenção n. 151 da OIT, art. 4: “1. Os trabalhadores da Administração Pública devem usufruir de uma
proteção adequada contra todos os atos de discriminação que acarretem violação da liberdade sindical
em matéria de trabalho. 2. Essa proteção deve aplicar-se, particularmente, em relação aos atos que
tenham por fim: a) Subordinar o emprego de um trabalhador da Administração Pública à condição de
este não se filiar a uma organização de trabalhadores da Administração Pública ou deixar de fazer parte
dessa organização; b) Demitir um trabalhador da Administração Pública ou prejudicá-lo por quaisquer
outros meios, devido à sua filiação a uma organização de trabalhadores da Administração Pública ou à
sua participação nas atividades normais dessa organização”.

37 Convenção n. 151 da OIT, art. 7: “Devem ser tomadas, quando necessário, medidas adequadas às
condições nacionais para encorajar e promover o desenvolvimento e utilização plenos de mecanismos
que permitam a negociação das condições de trabalho entre as autoridades públicas interessadas e
as organizações de trabalhadores da Administração Pública ou de qualquer outro meio que permita
aos representantes dos trabalhadores da Administração Pública participarem na fixação das referidas
condições”.

38 ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Negociação Coletiva dos Servidores Públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p.
229-230.

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS: POSSIBILIDADES, 255


EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
Não obstante o exposto acima, a sindicalização dos servidores públicos ainda
sofre com problemas de diversas ordens que impedem a essa espécie de trabalhadores
o pleno exercício da liberdade sindical.

Com efeito, Luísa Cristina Pinto e Netto e Ana Cláudia Nascimento Gomes39
destacam que dois dos principais obstáculos à liberdade sindical dos servidores
públicos são o arcaísmo e a inadaptação da CLT e a ausência de uma legislação
adequada que considere as peculiaridades do funcionalismo público, mormente diante
da incompatibilidade do sistema de organização sindical por categoria40 com as ativi-
dades tipicamente desenvolvidas pela Administração, o que conduz ao enfraquecimento
da representatividade dos sindicatos de servidores e, consequentemente, à dificuldade
de efetivação de negociações coletivas.

Outra dificuldade na integral fruição da liberdade sindical pelos servidores públicos


dá-se pela renitência no reconhecimento da possibilidade dessa espécie de trabalhador
valer-se da negociação coletiva de trabalho.

É que, conforme destacado anteriormente, prevalece, no Brasil, a corrente doutri-


nária e jurisprudencial que vê na teoria unilateral-estatutária a mais adequada para
definição da natureza do vínculo jurídico servidor-Administração, rejeitando a viabilidade
de utilização de instrumentos negociais para definição de condições de trabalho no
setor público.

O primeiro argumento da corrente contrária à possibilidade de adoção da nego-


ciação coletiva no setor público é a suposta ausência de previsão constitucional desse
direito aos servidores públicos. Sustenta-se que a Constituição, quando enumera os
direitos sociais assegurados aos servidores ocupantes de cargo público no artigo
39, §3º41, não faz expressa remissão ao inciso XXVI do artigo 7º, que prevê o direito

39 PINTO E NETTO, Luísa Cristina; GOMES, Ana Cláudia Nascimento. Sindicalização na Função Pública
Brasileira: desafios para a implementação da Convenção n. 151 da OIT. In: SILVA, Clarissa Sampaio;
GOMES, Ana Virginia Moreira Gomes (Org.). A Convenção n. 151 da OIT sobre o Direito de Sindicalização
e Negociação na Administração Pública: Desafios na Realidade Brasileira. São Paulo: LTr, 2017, p. 85
(destaques no original).

40 Rogerio Neiva compartilha do posicionamento das autoras a respeito da dificuldade de delimitação do


conceito de “categoria” no serviço público (NEIVA, Rogerio. Direito e Processo do Trabalho aplicados à
Administração Pública e Fazenda Pública. 2. ed. São Paulo: Gen Método, 2016, p. 103-104).

41 CRFB, art. 39, §3º: “§ 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII,
VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados
de admissão quando a natureza do cargo o exigir”.

256 Thyago de Pieri Bertoldi


fundamental ao reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho42.
O legislador constituinte, assim, não teria autorizado os sindicatos dos servidores
públicos a entabular acordos coletivos de trabalho com a Administração.

Além disso, para esta vertente de pensamento, a celebração de instrumentos


coletivos negociados seria incompatível com os fundamentos e os princípios cons-
titucionais da Administração Pública, sobretudo o princípio da legalidade43. A forma
contratual dos convênios coletivos conflitaria com uma série de dispositivos constitu-
cionais, como, por exemplo, o artigo 37, inciso X, que exige lei específica para a fixação
da remuneração e dos subsídios dos servidores públicos.

Ademais, defende-se que a negociação coletiva pelos servidores públicos


tampouco estaria em harmonia com os sistemas de controles de gastos públicos e
as regras constitucionais e legais de execução orçamentária. Na síntese de Enoque
Ribeiro dos Santos44-45:
Outro aspecto da argumentação contrária à negociação coletiva dos servidores
públicos dizia respeito ao sistema de controle de gastos públicos, que impunha
óbice à negociação de reajustamento de salários. Nesta esteira:
a) É de iniciativa exclusiva do Presidente da república a proposta de leis que
disponham sobre a criação de cargos, funções ou empregos públicos na
administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração (art. 61,
§1º, II, a, da CF/88), que deve ser submetida ao Congresso Nacional (art. 49,
X, da CF/88);
b) As despesas com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios não poderão exceder os limites estabelecidos em lei
complementar (art. 169, caput, da CF/88);
c) A concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, só poderão
ser feitas, se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender às
projeções de despesa de pessoal e aos acréscimos dela decorrentes e se houver

42 NEIVA, Rogerio. Direito e Processo do Trabalho aplicados à Administração Pública e Fazenda Pública. 2.
ed. São Paulo: Gen Método, 2016, p. 106.

43 SANTOS, Negociação Coletiva de Trabalho nos Setores Público e Privado. 2. ed. São Paulo: LTr, 2016, p.
186.

44 SANTOS, Negociação Coletiva de Trabalho nos Setores Público e Privado. 2. ed. São Paulo: LTr, 2016, p.
187.

45 Na mesma linha: NEIVA, Rogerio. Direito e Processo do Trabalho aplicados à Administração Pública e
Fazenda Pública. 2. ed. São Paulo: Gen Método, 2016, p. 107.

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS: POSSIBILIDADES, 257


EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias, ressalvada as empresas
públicas e as sociedades de economia mista (art. 169, §1º, I e II);
d) Por sua vez, a Lei Complementar n. 101/00 (Lei de Responsabilidade na
Gestão Fiscal), fixa as despesas com pessoal da União a 50% e para os Estados
e Municípios em 60% das respectivas receitas correntes líquidas (art. 18 e 19).

Se não bastasse, para esta corrente, a celebração de instrumentos coletivos


negociados seria incompatível com os fundamentos e os princípios constitucionais da
Administração Pública, sobretudo o princípio da legalidade46. A forma contratual dos
convênios coletivos conflitaria com uma série de dispositivos constitucionais, como, por
exemplo, o artigo 37, inciso X, que exige lei específica para a fixação da remuneração
e dos subsídios dos servidores públicos.

Nessa esteira de pensamento, o enunciado da Súmula 679 do STF estabelece que:


“A fixação de vencimentos dos servidores públicos não pode ser objeto de convenção
coletiva”47.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), aliás, há muito alinha-se à tese


contrária à adoção da negociação coletiva no setor público. Efetivamente, quando do
julgamento da ADI 492-1, o STF reconheceu a inconstitucionalidade das alíneas “d” e “e”
do artigo 240, que previam ao servidor público civil da União, respectivamente, o direito
à negociação coletiva de trabalho e a competência da Justiça do Trabalho para solução
das lides individuais e coletivas, argumentando a existência de incompatibilidade entre
o instituto da negociação coletiva e o regime unilateral-estatutário, pois não seria
possível à Administração transigir a respeito de matéria reservada à lei48.

46 SANTOS, Negociação Coletiva de Trabalho nos Setores Público e Privado. 2. ed. São Paulo: LTr, 2016, p.
186.

47 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 679. A fixação de vencimentos dos servidores públicos
não pode ser objeto de convenção coletiva. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/
menuSuma rioSumulas.asp?sumula=3632>. Acesso em: 17, julho, 2018.

48 Destaca-se a seguinte passagem do Min. Relator Carlos Veloso: “Não sendo possível, portanto, à
Administração Pública transigir no que diz respeito à matéria reservada à lei, segue-se a impossibilidade
de a lei assegurar ao servidor público o direito à negociação coletiva, que compreende acordo entre
sindicatos de empregadores e de empregados, ou entre sindicatos de empregados e empresas e,
malogrado o acordo, o direito de ajuizar o dissídio coletivo. E é justamente isto o que está assegurado no
art. 240, alíneas d (negociação coletiva) e (ajuizamento coletivo frente à Justiça do Trabalho) da citada
Lei 8.112, de 11.12.90. (...) Hoje, mais do que ontem, estou convencido da inconstitucionalidade da
alínea d do art. 240 da Lei 8.112/90, que assegura aos servidores públicos civis da União, das autarquias
e das fundações públicas federais, o direito “de negociação coletiva”, e das disposições que, na alínea e,
do mesmo artigo, asseguram aos referidos servidores públicos o direito à ação coletiva frente à Justiça
do Trabalho. Tais disposições legais violam o art. 37 da Constituição Federal” (BRASIL, Supremo Tribunal

258 Thyago de Pieri Bertoldi


Por seu turno, o Tribunal Superior do Trabalho, na redação original da Orientação
Jurisprudencial (OJ) nº 05 da Seção de Dissídios Coletivos (SDC), compartilhava do
entendimento de que os servidores públicos não possuíam direito ao reconhecimento
de acordos e convenções coletivos de trabalho e da via do dissídio coletivo.

No entanto, uma conjuntura de fatores vem alterando, aos poucos, a mentalidade


da doutrina e da jurisprudência brasileiras no sentido de admitir a negociação coletiva
para a função pública.

4. A Inevitabilidade da Negociação Coletiva dos


Servidores PúblicoS
Mesmo antes da ratificação da Convenção nº 151 da OIT, parte da doutrina, ainda
que de maneira tímida, defendia a extensão do direito fundamental ao reconhecimento
dos convênios coletivos aos servidores públicos.

Para esses autores, não seria óbice ao reconhecimento do direito à negociação


coletiva aos servidores públicos o simples fato de o artigo 39, §3º, da Constituição
não citar expressamente o inciso XXVI do artigo 7º em sua redação. Em verdade, a
remissão seria até mesmo desnecessária. Para os servidores públicos, a negociação
coletiva decorreria implicitamente da própria previsão constitucional do direito de
sindicalização e de greve, pois os três institutos são logicamente interdependentes
para solução de conflitos coletivos 49 .

Ora, sem a concessão aos sindicatos e às associações de servidores públicos da


prerrogativa de negociar e de garantir, mediante instrumento normativo, melhores condi-
ções de labor com a tomadora de serviços, ter-se-ia o total esvaziamento do sentido
da organização coletiva de trabalhadores em sindicatos e da finalidade do movimento
paredista. Nesse cenário, a atuação sindical ficaria limitada à propositura de ações
judiciais e a manifestações de protestos, o que é inadmissível, considerados os valores
democráticos da Constituição de 1988. A negociação coletiva, então, corresponderia

Federal, ADI 492-1. Rel: Ministro Carlos Veloso, Brasília, 12 de novembro de 1992. Disponível em: <http://
redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=2663 82>. Acesso em 17, julho, 2018.

49 PAES, Arnaldo Boson. Negociação Coletiva, Convenção n. 151 da OIT e Eficácia dos Instrumentos
Negociados. In: SILVA, Clarissa Sampaio; GOMES, Ana Virginia Moreira Gomes (Org.). A Convenção
n. 151 da OIT sobre o Direito de Sindicalização e Negociação na Administração Pública: Desafios na
Realidade Brasileira. São Paulo: LTr, 2017, p. 61.

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS: POSSIBILIDADES, 259


EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
à condição indispensável ao pleno exercício do direito de sindicalização e de greve
dos servidores 50.

De mais a mais, o artigo 39, §3º, da Constituição faz menção direta ao inciso
XIII do artigo 7º, o qual permite a flexibilização da jornada de trabalho por meio de
instrumentos coletivos, implicando o reconhecimento constitucional, ainda que en
passant, da possibilidade de adoção desses instrumentos pelos servidores públicos.

De toda forma, é imperioso reconhecer que, com a ratificação da Convenção


nº 151 da OIT pelo Brasil, cai por terra o argumento de que o direito de negociação
coletiva não é extensível aos servidores públicos em razão da inexistência de previsão
legal. A incorporação desse tratado ao ordenamento jurídico faz com que a legislação
brasileira passe a contemplar, expressa e inequivocamente, norma que não só admite,
como também estimula a negociação coletiva no setor público.

Tampouco resiste a um exame mais apurado o argumento de que a adoção de


instrumentos normativos no setor público é inconciliável com os sistemas de controles
de gastos públicos e com as regras constitucionais e legais de execução orçamentária.

Com efeito, as reivindicações feitas pelo corpo organizado de trabalhadores


buscam melhores condições de labor, o que não pode, em um raciocínio simplista, ser
interpretado apenas como aumento remuneratório51. São inúmeras as outras maté-
rias que podem ser objeto de negociação coletiva entre prestadores e tomadores de
serviços, a exemplo de jornada de trabalho, organização interna de tarefas, ambiente
de trabalho, etc. Nas palavras de Melissa Demari52- 53:
(...) a declaração de inconstitucionalidade da previsão legal para a realização de
negociação coletiva no setor público acabou por inviabilizar, também, o exercício

50 DEMARI, Melissa. A negociação coletiva entre servidores públicos e o Estado. Disponível em: <http://
www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7582>. Acesso em
21, julho, 2018.

51 Registra-se, inclusive, com o mais elevado respeito à posição do Tribunal, que essa equívoca interpretação
foi cometida pelo STF quando do julgamento da ADI 492-1/DF, ao partir do pressuposto de que, conforme
trecho anteriormente transcrito neste estudo, “a negociação coletiva tem por escopo, basicamente, a
alteração da remuneração”.

52 DEMARI, Melissa. A negociação coletiva entre servidores públicos e o Estado. Disponível em: <http://
www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7582>. Acesso em
21, julho, 2018.

53 No mesmo sentido: RESENDE, Renato de Sousa. Negociação Coletiva de Servidor Público. São Paulo: LTr,
2012, p. 213.

260 Thyago de Pieri Bertoldi


deste direito em esferas que não implicavam nos óbices suscitados pelo Supremo
Tribunal Federal. É o caso, por exemplo, das questões relativas às condições de
trabalho que não têm natureza econômica e, portanto, repercussão financeira
que encontrem obstáculos na lei de diretrizes orçamentárias, no princípio da
legalidade ou mesmo na Lei de Responsabilidade Fiscal, tão em voga nos dias
atuais. Pelo contrário, a negociação coletiva pode tratar sobre temas que se
restrinjam ao caráter social da relação de trabalho, como é o caso, por exemplo,
das especificações das condições do trabalho concernentes à distribuição da
carga horária, qualificação de pessoal e definição de planos de ingresso e
ascensão na carreira, dentre outros, assim como daquelas cuja determinação
ocorre mediante atos normativos infralegais (portarias, provimentos, ordens de
serviço, regulamentos), muito utilizados nos serviços públicos.

Vê-se, assim, que a negociação coletiva pode abarcar uma série de temas que,
embora afetem direta e positivamente as condições de trabalho dos servidores, não
possuem qualquer impacto orçamentário ou financeiro direto. Não se pode, por conse-
guinte, reconhecer uma relação de incompatibilidade necessária e absoluta entre o
direito à negociação coletiva e as exigências impostas pelos sistemas de controles
de gastos públicos e as regras constitucionais e legais de execução orçamentária.

Essa constatação, a propósito, fez com que o Tribunal Superior do Trabalho alte-
rasse a redação da OJ nº 05 da SDC, passando a permitir dissídio coletivo em face de
pessoa jurídica de direito público que mantenha empregados, desde que exclusivamente
para apreciação de cláusulas de natureza social54, assim entendidas aquelas que não
possuam reflexos diretos de natureza econômico, a exemplo da instituição de banco
de horas.

Em acréscimo, não se vislumbra obstáculos absolutos à negociação entre os


sindicatos de servidores e o Poder Público acerca de matérias submetidas à reserva
legal, inclusive sobre questões remuneratórias. Ora, como retratado anteriormente, na
iniciativa privada, também há restrição de objeto para a negociação coletiva e nem
por isso refuta-se sua importância como fonte normativa e método de resolução de
conflitos. Em realidade, a celeuma da legalidade é facilmente superada se, para os
instrumentos jurídicos provenientes do processo de negociação acerca de assuntos

54 BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. OJ nº 05 da SDC. Em face de pessoa jurídica de direito público
que mantenha empregados, cabe dissídio coletivo exclusivamente para apreciação de cláusulas de
natureza social. Inteligência da Convenção nº 151 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada
pelo Decreto Legislativo nº 206/2010. Disponível em: <http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/OJ_SDC/n_
bol_01.html#TEMA5>. Acesso em: 21, julho, 2018.

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS: POSSIBILIDADES, 261


EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
submetidos à reserva legal, for concedida eficácia meramente ético-política, compro-
metendo-se a Administração a encaminhar o respectivo projeto de lei ao Parlamento,
nos exatos termos acordados pelas partes. Deve-se superar o preconceito que, de uma
negociação coletiva, deve resultar necessariamente um acordo coletivo de trabalho
com efeitos imediatos 55-56.

É facilmente superável, também, o argumento de que a adoção de instrumentos


normativos negociados no setor público ofenderia o princípio da legalidade e da
reserva legal, pois a definição do regime jurídico dos servidores públicos dependeria
exclusivamente de lei. O entendimento é desprovido de razoabilidade, pois, possuindo
a negociação coletiva fundamento constitucional e convencional, a utilização desses
instrumentos bilaterais conta com embasamento jurídico adequado e suficiente. Ao
valer-se dos convênios coletivos, portanto, o administrador não estaria atuando à
margem da lei, mas sob o amparo dela 57 .

Tampouco se pode ignorar que o princípio administrativo da legalidade atualmente


é compreendido como submissão da Administração não só à lei, mas também a outras
formas de manifestações normativas (princípios, atos administrativos, jurisprudência,
etc). Nessa esteira, é cediço que, no cumprimento de seu dever constitucional de
promoção de direitos fundamentais, o Poder Público edita e submete-se a uma série
de atos normativos hierarquicamente inferiores à lei. Não há razões, pois, para excluir
a negociação coletiva − cuja bilateralidade consagra valores democráticos − como

55 SANTOS, Enoque Ribeiro. Negociação Coletiva de Trabalho nos Setores Público e Privado. 2. ed. São
Paulo: LTr, 2016, p. 188.

56 A questão da eficácia jurídica dos instrumentos coletivos negociados na Administração Pública, nos
moldes da tese exposta, é peculiar e distingue-se daquela verificada para iniciativa privada, sobretudo
quando se indaga a respeito das consequências jurídicas do descumprimento do pactuado. Se, em
âmbito privado, o caráter normativo e imperativo das normas coletivas, inquestionavelmente assegura
aos trabalhadores o direito de exigir, em Juízo, de seu empregador as prestações acordadas, no setor
público, há necessidade em separar as matérias sujeitas e não submetidas à reserva de lei. Conforme
defende Arnaldo Boson Paes, para os assuntos não submetidos à reserva de lei, os acordos coletivos
produziriam efeitos imediatos, imperativos e inderrogáveis, de modo que poderia o servidor prejudicado
ou o sindicato legitimado reclamar, pela via administrativa ou judicial, contra a Administração Pública, o
cumprimento do acordado. Por outro lado, em caso de recusa do Poder Público em encaminhar o projeto
de lei nos termos acordados, caberia apenas ação de responsabilização da Administração (PAES, Arnaldo
Boson. Negociação Coletiva, Convenção n. 151 da OIT e Eficácia dos Instrumentos Negociados. In: SILVA,
Clarissa Sampaio; GOMES, Ana Virginia Moreira Gomes (Org.). A Convenção n. 151 da OIT sobre o Direito
de Sindicalização e Negociação na Administração Pública: Desafios na Realidade Brasileira. São Paulo:
LTr, 2017, p. 68).

57 ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Negociação Coletiva dos Servidores Públicos. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p.
363.

262 Thyago de Pieri Bertoldi


opção à Administração sempre que, a despeito da inexistência de lei formal, necessitar
concretizar interesses sociais e solucionar conflitos coletivos58.

Alia-se a todos esses fatores o já comentado crescimento da vertente doutri-


nária que advoga pelo rompimento do modelo autoritário e unilateralista de Direito
Administrativo, pleiteando a introdução no regime jurídico público de instrumentos
consensuais e democráticos de edição de normas e de resolução de conflitos, mais
condizentes com os valores presentes na Constituição de 198859. Em relação à nego-
ciação coletiva, o marco normativo que sinaliza para prevalência dessa corrente é
justamente a multicitada Convenção nº 151 da OIT.

É evidente, assim, a compatibilidade entre a negociação coletiva no setor público


e o regime jurídico-administrativo, tanto que, a pesar da resistência doutrinária e juris-
prudencial acima exposta, o instituto já foi utilizado pela Administração em algumas
oportunidades para solução de seus conflitos, conforme se verá adiante.

Não foi, todavia, a compreensão de superação dos argumentos contrários usual-


mente apresentados pela doutrina juspublicista à negociação coletiva no setor público
ou mesmo a incorporação ao ordenamento jurídico brasileiro da Convenção nº 151 da
OIT que fizeram que o Poder Público se rendesse a seus benefícios e utilizasse esse
instrumento como forma de resolução de conflitos coletivos em que se viu envolvido.
Em verdade, a negociação coletiva no setor público, conforme esclarece Melissa Demari,
é algo recorrente (ainda que de modo informal) e uma imposição da própria dinâmica
social atual, pelo que se deveria rever os impeditivos tradicionalmente arguidos pela
doutrina e pela jurisprudência e normatizar o tema de forma adequada60.

Constata-se, pois, que a admissão da negociação coletiva no setor público


é processo inevitável e produto da própria dinâmica social da relação de trabalho
verificada entre a Administração e seus servidores. Há necessidade de revisão do

58 RESENDE, Renato de Sousa. Negociação Coletiva de Servidor Público. São Paulo: LTr, 2012, p. 228-229.

59 CAMPOS, Sarah. A Negociação Coletiva e o Regime Jurídico-Administrativo: Espaços Legítimos de


Contratualização. In: SILVA, Clarissa Sampaio; GOMES, Ana Virginia Moreira Gomes (Org.). A Convenção
n. 151 da OIT sobre o Direito de Sindicalização e Negociação na Administração Pública: Desafios na
Realidade Brasileira. São Paulo: LTr, 2017, p. 44-45.

60 DEMARI, Melissa. A negociação coletiva entre servidores públicos e o Estado. Disponível em: <http://
www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7582>. Acesso em
21, julho, 2018.

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS: POSSIBILIDADES, 263


EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
entendimento contrário à utilização do instituto, para que a Administração abra maior
espaço para uso desse instrumento democrático de resolução de conflitos.

5. Algumas Experiências Nacionais Exitosas de Negociação


Coletiva no Setor Público: Como Superar os Problemas para
sua Plena Efetivação?
O primeiro acordo coletivo de trabalho envolvendo servidores públicos que se tem
notícia ocorreu no âmbito do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público –
IAMSPE-SP, em 1989. O documento foi registrado na Delegacia Regional do Trabalho em
08 de fevereiro de 1990, junto com um documento intitulado “Sistema Permanente de
Negociação Coletiva de Trabalho” e resultou em diversas conquistas aos trabalhadores
do órgão, a exemplo da instituição de uma Comissão Processante para atuação em
casos de aplicação de punições disciplinares61.

Outro exemplo de negociação coletiva exitosa no setor público deu-se no Município


de São Paulo, mediante a aprovação da Lei nº 13.303, de 18 de janeiro de 2002, que
determina, em seu artigo 6º, a instituição de sistema participativos, de caráter perma-
nente, visando dar tratamento aos conflitos decorrentes dos vínculos funcionais e de
trabalho que interfiram na eficácia dos serviços públicos municipais. O parágrafo único
do dispositivo prevê que esses sistemas conterão princípios, regras de funcionamento
e procedimentos capazes de motivar o envolvimento e promover a participação efetiva
dos servidores municipais e de suas entidades de classe e sindicais, podendo ser
constituídos por meio de contratos, convênios ou outras formas 62 .

Em âmbito nacional, a primeira experiência de destaque foi a instituição da Mesa


Nacional de Negociação Permanente do Sistema Único de Saúde, em 1993, objetivando
a discussão da municipalização dos serviços e servidores da área de saúde63.

Também possui notoriedade o Sistema de Negociação Permanente da


Administração Pública Federal (SINP/FEDERAL) que, com fulcro no Decreto nº 4.638,
de 21 de março de 2003, e na Portaria MPOG nº 1132, de 21 de julho de 2003, instalou

61 RESENDE, Renato de Sousa. Negociação Coletiva de Servidor Público. São Paulo: LTr, 2012, p. 283.

62 RESENDE, Renato de Sousa. Negociação Coletiva de Servidor Público. São Paulo: LTr, 2012, p. 289.

63 SANTOS, Enoque Ribeiro. Negociação Coletiva de Trabalho nos Setores Público e Privado. 2. ed. São
Paulo: LTr, 2016, p. 197.

264 Thyago de Pieri Bertoldi


a Mesa Nacional de Negociação Permanente (MNNP). Formada por duas bancadas,
uma governamental (contando com representantes de diversos Ministérios, como
Planejamento, Fazenda e Trabalho) e outra sindical (originalmente composta por dezoito
entidades de classe do funcionalismo público federal), a Mesa Nacional de Negociação
Permanente conseguiu expressivos resultados na normatização e solução de conflitos
coletivos laborais por meio da negociação. Com efeito, somente entre 2003 e 2004,
foram apresentados mais de 26 (vinte e seis) atos normativos ao Congresso Nacional,
todos aprovados por consenso dos partidos políticos, 51 (cinquenta e uma) carreiras
foram estruturadas ou reestruturadas, 5 (cinco) planos especiais de cargos criados, 112
(cento e doze) tabelas remuneratórias reestruturadas, 47 (quarenta e sete) negociações
concluídas, resultando em 1.116.138 (um milhão, cento e dezesseis mil, cento e trinta
e oito) servidores, ativos ou aposentados, que tiveram seus cargos, carreiras e tabelas
remuneratórias reestruturadas64. O sucesso da experiência federal motivou alguns
Estados a adotarem medidas semelhantes. O Ceará, por exemplo, criou a Mesa Estadual
de Negociação Permanente (MENP), por meio da Lei nº 13.931, de 26 de julho de 2007.

Enoque Ribeiro dos Santos lembra, ainda, de negociações bem-sucedidas envol-


vendo aumentos salariais dos servidores do Poder Judiciário do Estado de São Paulo
e dos servidores do Ministério do Planejamento65. Renato de Sousa Resende, por seu
turno, relata experiências exitosas ocorridas em São José dos Campos/SP e Belém/
PA66.

Não faltam, portanto, exemplos em que a Administração Pública se valeu, de algum


modo, da negociação coletiva para solução de conflitos coletivos laborais. Embora em
alguma dessas hipóteses o Poder Público tenha permanecido com a última palavra
quanto aos efeitos das negociações, é inegável que o envolvimento democrático dos
servidores (e, por vezes, de entidades da sociedade civil) contribuíram para o desfecho
satisfatório das controvérsias.

64 MENDONÇA, Sérgio Eduardo A. A experiência recente da negociação coletiva na Administração Pública


no Brasil. In: Foro Iberoamericano: Revitalización de la Administración Pública. Estrategias para la
Implantación de la Carta Iberoamericana de la Función Pública, México DF, maio 2005. Disponível em:
< http://bdspublico.lim.ilo.org/Brasil/Experiencia%20de%20negociacion%20colectiva%20en%20la%20
Adm.%20Publica.pdf>. Acesso em 01, agosto, 2018.

65 SANTOS, Enoque Ribeiro. Negociação Coletiva de Trabalho nos Setores Público e Privado. 2. ed. São
Paulo: LTr, 2016, p. 197.

66 RESENDE, Renato de Sousa. Negociação Coletiva de Servidor Público. São Paulo: LTr, 2012, p. 286-288.

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS: POSSIBILIDADES, 265


EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
No entanto, é imperioso reconhecer que o uso da negociação coletiva, no Brasil,
encontra-se em fase embrionária. Com efeito, algumas situações recentes demonstram
que a negociação coletiva, ainda que informal, é subutilizada no setor público, o que
gera problemas que poderiam facilmente ser evitados caso houvesse consulta prévia e
auxílio das associações e dos sindicatos servidores públicos afetados na formulação
das normas. Cita-se, como exemplo, a recente Portaria do Ministério do Planejamento
(Portaria nº 143/2018) que determinava horários especiais para funcionamento das
repartições públicas federais durante os jogos da Seleção Brasileira de Futebol na
Copa do Mundo FIFA de 2018, impugnada, com sucesso, pela Associação dos Médicos
Peritos da Previdência Social, que obteve a suspensão da norma no STJ67. Ora, caso
o Ministério do Planejamento houvesse consultado as associações de servidores
previamente à edição da norma, muito provavelmente ter-se-ia evitado a propositura
de uma demanda judicial e a necessidade de reedição do ato.

Dessa maneira, fica claro que, conquanto crescente a tendência de admissão


de mecanismos de negociação coletiva dos servidores públicos, há ainda muito a se
evoluir.

Para Luísa Cristina Pinto e Netto e Ana Cláudia Nascimento Gomes, a efetiva
implementação da negociação coletiva no serviço público passa, necessariamente,
pela regulamentação infraconstitucional da matéria e por uma urgente reforma sindical
que compatibilize os institutos do Direito Coletivo do Trabalho com as peculiaridades
do setor público:

Para nós, portanto, uma efetiva implementação da Convenção n. 151 da OIT não
está na dependência apenas de um disciplinamento infraconstitucional que espelhe, por
um lado, a novidade da contratualização coletiva no âmbito da Função Pública (o que
necessariamente implicará na definição das matérias aptas a serem contratualizadas;
o valor jurídico dos instrumentos normativos; a necessidade ou não de aprovação do
Poder Legislativo, a depender do objeto negociado; o prazo de vigência; a qualificação
e a competência dos agentes negociadores em nome da Administração Pública, etc.),
conforme tem apontado a grande maioria da doutrina que se tem debruçado sobre

67 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, MS 24.401/DF. Rel: Napoleão Nunes Maia


Filho, Brasília, 18 de junho de 2018. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/
revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=84693610&num_
registro=201801440660&data=20180621&tipo=0&formato=PDF>. Acesso em 03, agosto, 2018.

266 Thyago de Pieri Bertoldi


essa matéria (ARAÚJO, 2011, p. 400). Está, antes, imprescindindo de um ex novo
sindicalismo no setor público68.

A verdade, no entanto, é que a possibilidade de consulta às associações e aos


sindicatos de servidores públicos é ignorada pela Administração Pública, dado o dogma,
ainda predominante no Brasil, da unilateralidade na definição de políticas públicas de
pessoal. Com certa urgência, essa mentalidade deve, em homenagem aos princípios
da democracia e da eficiência, ser superada para garantir a participação dos servidores
destinatários dessas normas em seu processo de criação, evitando a reiteração de
problemas, como o acima relatado, de questionamento judicial das regras editadas à
revelia da contribuição das associações e sindicatos de servidores públicos. Dificilmente
antes de superar-se o ideário da teoria unilateral-estatutária haverá edição de legislação
contemplando a negociação coletiva como método preferencial de solução de conflitos
e definição de políticas públicas de pessoal na Administração Pública.

De toda forma, enquanto não editada legislação sobre o tema, não se pode aban-
donar totalmente a utilização do instituto da negociação coletiva, pois a necessidade
de diálogo na resolução de conflitos coletivos é, como visto, um produto da própria
dinâmica social em que inseridas as relações de trabalho na Administração Pública.
Nesse cenário, a alternativa que surge aos administradores, para terem segurança
jurídica na utilização da negociação coletiva, é buscar auxílio de seus órgãos de
assessoramento e consultoria jurídica.

6. O Papel da Advocacia Pública na Negociação Coletiva no


Setor Público
A Constituição de 1988 erigiu a Advocacia Pública a uma das funções essenciais à
Justiça. No artigo 13169, a Carta Magna confere à Advocacia-Geral da União, diretamente
ou por meio de órgão vinculado, a representação judicial e extrajudicial, da União e as

68 PINTO E NETTO, Luísa Cristina; GOMES, Ana Cláudia Nascimento. Sindicalização na Função Pública
Brasileira: desafios para a implementação da Convenção n. 151 da OIT. In: SILVA, Clarissa Sampaio;
GOMES, Ana Virginia Moreira Gomes (Org.). A Convenção n. 151 da OIT sobre o Direito de Sindicalização
e Negociação na Administração Pública: Desafios na Realidade Brasileira. São Paulo: LTr, 2017, p. 89.

69 CRFB, art. 131: “A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão
vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar
que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento
jurídico do Poder Executivo”.

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS: POSSIBILIDADES, 267


EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo. Semelhantes
atribuições são conferidas aos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal pelo
artigo 13270.

Conquanto usualmente a ideia de Advocacia Pública seja associada à atuação


judicial, a simples leitura dos artigos 131 e 132 deixa claro que a Constituição reservou
(ou, ao menos, tentou fazê-lo) papel relevante também à atividade de consultoria e
assessoramento jurídico desempenhada pelos procuradores públicos.

É importante esclarecer que a atividade consultiva abrange a consultoria jurídica


stricto sensu, por meio de pronunciamentos e manifestações formais em processos
administrativos, e de assessoramento jurídico, características da função de advogado
público, como, por exemplo, por orientações jurídicas realizadas em reuniões, telefo-
nemas, correios eletrônicos, etc.

Conforme pontuado no decorrer deste estudo, diante da ausência de regula-


mentação clara da matéria, ambas formas de consultoria são imprescindíveis para
o bem conduzir dos processos de negociação coletiva no setor público. Cabe aos
advogados públicos, no exercício da atividade de consultoria e assessoramento jurídico,
acompanhar e auxiliar os administradores em reuniões, esclarecer – por intermédio
de consultas formais ou informais – os limites, objetos e matérias passíveis ou não
de negociação coletiva, revisar acordos entabulados e instrumentos normativos
resultantes das negociações e, enfim, garantir a conformidade de todo o processo
com a Constituição e com a Convenção nº 151 da OIT. Os advogados públicos são
responsáveis, em outros termos, pela primeira análise de legalidade das medidas a
serem adotadas pelas partes convenentes.

Nessa esteira, a atuação dos procuradores públicos garante segurança jurídica ao


processo e ao resultado da negociação, assegurando o efetivo fim do conflito e a conti-
nuidade na prestação dos serviços públicos. A orientação e revisão técnica efetuada
pelos advogados tem o condão de diminuir eventuais questionamentos administrativos
e judiciais das medidas. Dessa atividade exsurge a importante função da Advocacia
Pública na tutela dos princípios administrativos, principalmente os da legalidade, da
continuidade do serviço público e da segurança jurídica.

70 CRFB, art. 132: “Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual
o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos
Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica
das respectivas unidades federadas”.

268 Thyago de Pieri Bertoldi


Além disso, como o compromisso dos advogados públicos é com a advocacia de
Estado – não com a defesa de determinado Governo –, devem os procuradores públicos
garantir que os acordos eventualmente entabulados pela Administração alcancem o
interesse público e reflitam em efetiva melhora na prestação de serviços públicos,
não se limitando ao atendimento de interesses corporativistas ou particulares das
associações de servidores públicos.

Vislumbra-se, assim, o relevante papel que deve ser exercido pela Advocacia
Pública nos processos de negociação coletiva no setor público, considerando que,
como órgão técnico de consultoria e de assessoramento jurídico, deve zelar para que
o processo e as medidas dele resultantes estejam em conformidade e deem alento
aos princípios de Direito Administrativo, sobretudo ante a ausência de normatização
minuciosa acerca do tema.

Considerações FinaiS
O reconhecimento de que é possível o conflito de interesses entre servidores
e Administração, buscando melhorias nas condições de trabalho, culminou com a
extensão, na Constituição de 1988, aos trabalhadores públicos dos direitos de sindi-
calização e greve. O legislador constituinte, todavia, não conferiu explicitamente aos
servidores públicos a via da negociação coletiva para solução de conflitos, prejudicando,
em um primeiro momento, o pleno exercício dos direitos coletivos de trabalho a esta
categoria de trabalhadores.

Com efeito, a preferência pelo regime unilateral-estatutário e a ausência de


disposição constitucional expressa fizeram com que, durante muitos anos, fosse absolu-
tamente negada a possibilidade de solução de conflitos coletivos entre a Administração
Pública e seus servidores mediante negociação coletiva, limitando sobremaneira a
atuação de sindicatos e associações de servidores públicos.

No entanto, uma série de fatores, como a abertura de espaços de contratualização


no regime jurídico administrativo e a ratificação da Convenção nº 151 da OIT pelo Brasil,
vem alterando esses ideais e enaltecendo a inexistência de ilegalidade na adoção
da negociação coletiva para os servidores públicos. Grande parte dos argumentos
utilizados pela corrente refratária à solução negociada são facilmente superados
mediante uma melhor compreensão dos institutos envolvidos. Por exemplo, mesmo
que, em homenagem ao princípio da legalidade, se admita certa restrição às matérias

NEGOCIAÇÃO COLETIVA DE TRABALHO DOS SERVIDORES PÚBLICOS: POSSIBILIDADES, 269


EXPERIÊNCIAS E O PAPEL DA ADVOCACIA PÚBLICA
objeto de negociação coletiva, nada obsta que outras questões, não submetidas à
reserva legal, sejam objeto de pactuação ou, ainda, que do acordo resulte projeto de
lei para implementação das medidas de melhoria das condições de trabalho.

Sem dúvidas, porém, é a própria dinâmica das relações sociais de trabalho no


setor público que demonstra ser a admissão da negociação coletiva no setor público
um processo inevitável. Efetivamente, a negociação coletiva tende a evitar o ques-
tionamento administrativo ou judicial das políticas públicas de pessoal e dar maior
efetividade às normas e medidas produzidas, afinal há o envolvimento democrático
dos servidores afetados, circunstância que evidencia ser a negociação o método
preferencial para resolução de conflitos coletivos, inclusive para o setor público.

Embora existam experiências nacionais bem-sucedidas de negociação coletiva


entre servidores e Administração Pública, há, ainda, alguma resistência à sua adoção.
Acredita-se, assim, que a efetiva implementação da negociação coletiva no setor
público passa, necessariamente, pela superação definitiva da mentalidade do unilate-
ralismo na definição de políticas públicas de pessoal da Administração Pública, pela
regulamentação infraconstitucional da matéria e de uma reforma sindical que observe
as peculiaridades das carreiras de servidores públicos.

No entanto, no ínterim em que não implementadas essas medidas, não se pode


fechar as portas integralmente aos benefícios da negociação coletiva para o setor
público. Considerando a ausência de normatização da questão, compete à Advocacia
Pública, enquanto órgão de consultoria e assessoramento jurídico, zelar para que o
processo e as medidas resultantes das negociações estejam em conformidade e deem
alento aos princípios de Direito Administrativo, mormente da segurança jurídica e da
continuidade dos serviços públicos.

ReferênciaS
ARAÚJO, Florivaldo Dutra. Negociação Coletiva dos Servidores Públicos. Belo
Horizonte: Fórum, 2011.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 2310 MC. Rel: Ministro Marco Aurélio, Brasília,
19 de dezembro de 2000. Disponível em: <http://stf.jus.br/portal/jurisprudencia/
visualizarEmenta.asp?s1=000047648&base=baseMonocraticas>. Acesso em 23,
julho, 2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 679. A fixação de vencimentos dos
servidores públicos não pode ser objeto de convenção coletiva. Disponível em: <http://

270 Thyago de Pieri Bertoldi


www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=3632>.
Acesso em: 17, julho, 2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal, ADI 492-1. Rel: Ministro Carlos Veloso, Brasília,
12 de novembro de 1992. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=AC&docID=266382>. Acesso em 17, julho, 2018.
BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. OJ nº 05 da SDC. Em face de pessoa jurídica
de direito público que mantenha empregados, cabe dissídio coletivo exclusivamente
para apreciação de cláusulas de natureza social. Inteligência da Convenção nº 151
da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Decreto Legislativo nº
206/2010. Disponível em: <http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/OJ_SDC/n_bol_01.
html#TEMA5>. Acesso em: 21, julho, 2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, MS 24.401/DF. Rel: Napoleão Nunes Maia
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272 Thyago de Pieri Bertoldi


A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO
DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA
AMBIENTAL DAS UNIDADES DE
CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO JURÍDICO
DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE
PARTICULARES E O PODER PÚBLICO
COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES
Tibério Leal Menezes1

Resumo
Apesar da Lei do SNUC determinar que as áreas inclusas nos limites
de Estações Ecológicas, Reservas Biológicas e Parques Nacionais passem
para a posse e o domínio públicos, o Estado costuma não dispor ou destinar
recursos suficientes para indenizar todos os proprietários dessas extensas
e numerosas terras. Sem regularização fundiária, comumente as Unidades
de Conservação se tornam meros “parques de papel” – territórios legal-
mente protegidos, mas com pouca ou nenhuma efetividade na preservação
ambiental, onde as rígidas limitações ambientais acabam acarretando o
esvaziamento da função econômica das propriedades particulares. O
presente artigo destaca a importância do procedimento de desapropriação
na efetiva instituição das Unidades de Conservação e indica, como alternativa

1 Especialista em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático – IDDE, Belo
Horizonte/MG e o Ius Gentium Conimbrigae (Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra – IGC, Coimbra/Portugal). Bacharel em Direito pela Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia - UESB. Ex-Advogado do Município de Vitória da Conquista/BA, atuando na área
ambiental. Atualmente, servidor da Vara Federal Ambiental, Agrária e Residual de Porto Alegre/RS –
Seção Judiciária do Rio Grande do Sul. E-mail: tiberiomenezes@gmail.com
MENEZES, Tibério Leal. A importância do procedimento de desapropriação para a tutela ambiental das unidades de conservação e
o instituto jurídico da permuta de bens imóveis entre particulares e o poder público como alternativa às indenizações. In: PEREIRA,
Rodolfo Viana; SACCHETTO,Thiago Coelho (Orgs.). Advocacia pública em foco. Volume II. Belo Horizonte: IDDE, 2019. p. 273-295.
Disponível em: https://doi.org/10.32445/978856713410910
ao pagamento de indenizações milionárias, a efetuação de permutas entre
bens imóveis disponíveis da Administração e os referidos terrenos privados,
visando compatibilizar o direito difuso ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado e o direito ao livre exercício dos atributos da propriedade.

Introdução
As áreas que recebem o título de Unidade de Conservação possuem grande impor-
tância para a manutenção do equilíbrio ambiental, em especial para a preservação
da biodiversidade, já que se evita a destruição e a degradação do habitat da fauna
e da flora. Neste sentido, a criação de áreas territoriais especialmente protegidas é
considerada uma das medidas mais eficazes para a conservação de espaços naturais
singulares.

A Lei Nacional n.º 9.985/00, instituidora do Sistema Nacional de Unidades de


Conservação, dispõe que estes espaços ambientalmente protegidos são “legalmente
constituídos” pelo Poder Público, que assim o faz mediante ato normativo, após estudos
técnicos que atestem a singularidade e importância ambiental do local.

Entretanto, para a efetiva proteção almejada pela Lei do SNUC, não basta a criação
normativa das Unidades de Conservação, sendo necessário o planejamento de sua
concreta implantação, sob pena de se tornarem “parques de papel” - áreas apenas
formalmente protegidas, mas que, na prática, pouco ou nada contribuem para a para
a manutenção do equilíbrio ambiental.

Deste modo, a simples criação das Unidades de Conservação por lei ou por decreto
não implica a transferência automática da propriedade particular ao Poder Público e
acaba gerando potencial conflito de interesses: de um lado, o particular, que se vê
impedido de exercer os poderes inerentes ao domínio, como o de usar, gozar e dispor
do imóvel; do outro, o dever público de tutelar o meio ambiente ecologicamente equi-
librado em área de grande relevância ambiental para a preservação da biodiversidade,
a pesquisa e o turismo ecológico.

Sem a sua regularização fundiária mediante desapropriação, a proteção ambiental


poderá ensejar uma indesejada judicialização, em especial naqueles casos em que
ocorrer o esvaziamento econômico da propriedade, inevitável diante das restrições
típicas das Unidades de Conservação. Ainda que a função socioambiental seja exigência

274
mínima a qualquer propriedade particular, o dever da proteção à biodiversidade não
deve acarretar expropriação sem indenização.

Diante do atual cenário de crise econômica e contenção dos gastos públicos,


os entes federados, sobretudo os Municípios, não dispõem de recursos suficientes
para indenizar todos os proprietários de extensas terras situadas nos limites de suas
unidades de conservação.

Neste contexto, o presente trabalho objetiva analisar a importância de tornar


públicas todas as áreas atingidas pelas restrições necessárias à proteção das Unidades
de Conservação, estudando também o instrumento jurídico da permuta de bens imóveis
entre o particular e a Administração como alternativa às indenizações por desapro-
priação, visando compatibilizar a capacidade financeira do Poder Público e a proteção
ambiental.

1. Sistema Nacional das Unidades de Conservação:


espaços territoriais ambientalmente protegidos e os
objetivos da Lei Nacional n.º 9.985/2000
Dados do Ministério do Meio Ambiente2 atestam que o Brasil abriga a maior
biodiversidade do planeta. Com dimensões continentais e ocupando quase metade da
América do Sul (8,5 milhões de km²), nosso País abarca diversas zonas climáticas, que
vão do clima tropical úmido no Norte ao temperado do Sul, passando pelo semiárido
nordestino. Tais diferenças climáticas favorecem o leque de diversidade ecológica e
criam zonas biogeográficas distintas, dentre quais podemos citar a maior floresta do
mundo, a Floresta Amazônica; a maior planície inundável do planeta, o Pantanal; as
savanas e bosques do Cerrado; as florestas semiáridas da Caatinga; os Pampas e seus
campos e a Mata Atlântica.

A pluralidade desses biomas reflete a nossa exuberante riqueza de fauna e flora


alça o Brasil ao posto de país com maior biodiversidade do planeta, concentrando
mais de 20 % (vinte por cento) do número total de espécies catalogadas e estimadas.3

2 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Biodiversidade Brasileira. Disponível em: <http://www.mma.gov.


br/biodiversidade/biodiversidade-brasileira>. Acesso em: 30, outubro, 2017.

3 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Biodiversidade Brasileira. Disponível em: <http://www.mma.gov.


br/biodiversidade/biodiversidade-brasileira>. Acesso em: 30, outubro, 2017.

A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA AMBIENTAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO 275
JURÍDICO DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE PARTICULARES E O PODER PÚBLICO COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES
Inseridos nestes biomas, há certas áreas e ecossistemas que, por sua diversidade
genética e importância na manutenção do equilíbrio ecológico, demandam especial
proteção para a perpetuidade do nosso patrimônio ambiental.

A ideia da criação desses espaços não é recente. Historiadores indicam registros


de reservas, com destinação específica de exploração natural, mantidas pelos assírios,
em 700 a.C.; pelos indianos, no século III; pelos senhores feudais na Idade Média e
pelos colonizadores na África, nos séculos XIX e XX. Somente na metade do século
XIX, quando a redução das áreas naturais pela ação antrópica tornou-se evidente, é que
os primeiros espaços de conservação passaram a ser delimitados e tutelados pelos
Estados: EUA (1872), Canadá (1885), Nova Zelândia (1984); África do Sul e Austrália
(1898); México (1984); Argentina (1903) e Chile (1926).4

Todavia, apesar de a criação de espaços ambientalmente protegidos ter


ganhado status constitucional no Brasil apenas em 1988, esta tutela não é novidade
no ordenamento jurídico pátrio. Em 1911, foi criada pelo Presidente Hermes da Fonseca
a Reserva Florestal do Acre, que visava conter o desmatamento na região. Duas décadas
e meia depois, em 1937, Getúlio Vargas criou o primeiro Parque Nacional do Brasil,
entre os estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais – o Parque Nacional de Itatiaia.5

Algumas décadas depois, com o advento da Lei Nacional n.º 6.938/81, mais
precisamente no seu artigo 9°, inciso VI, estabeleceu-se como um dos principais
instrumentos da Política Nacional de Meio Ambiente a “a criação de espaços territoriais
especialmente protegidos pelo Poder Público federal, estadual e municipal, tais como
áreas de proteção ambiental, de relevante interesse ecológico e reservas extrativistas”.

Tal proteção ganhou ainda mais força com a promulgação da Constituição Federal
de 19886, que preceitua:
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se

4 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. De onde vem essa ideia? Disponível em: <https://uc.socioambiental.


org/o-snuc/de-onde-vem-essa-ideia>. Acesso em: 30, outubro, 2017.

5 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. De onde vem essa ideia? Disponível em: <https://uc.socioambiental.


org/o-snuc/de-onde-vem-essa-ideia>. Acesso em: 30, outubro, 2017.

6 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Vade Mecum Saraiva. Obra coletiva de
autoria de Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Lívia Céspedes e Fabiana Dias da
Rocha. 21. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva. 2016.

276 Tibério Leal Menezes


ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (...)
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus
componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão
permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa
a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;”

Após a instituição, pela Constituição de 1988, do direito ao meio ambiente ecolo-


gicamente equilibrado (artigo 225) e da competência legislativa concorrente a todos
os entes federativos em matéria ambiental (artigo 24, inciso VI), a União, os Estados
e os Municípios passaram a criar espaços ambientais com terminologias, conceitos,
regimes jurídicos e tratamento próprios.

Marcelo Abelha Rodrigues7 pondera que, ao constatar esse “embaralhamento


legislativo”, o legislador ordinário passou a estudar uma forma de estabelecer uma lei
geral e uniformizadora dos espaços ambientais especialmente protegidos, a fim de
que se permitisse que, a partir daí, a criação de tais áreas tivesse base em critérios
científicos. Depois de longos dez anos de intensos debates, foi publicada a Lei n.º
9.985/2000, diploma legal que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação,
regulamentando de sistematizando o artigo 225, § 1°, inciso III da Constituição Federal
e o artigo 9°, inciso IV da Lei 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente – PNMA).

Apesar do enorme avanço trazido pela criação desse sistema legal, Marcelo


Abelha Rodrigues8 considera que o legislador desperdiçou uma excelente oportunidade
de extinguir em definitivo o caos criado pela variedade de espaços existentes. Afinal,
unidade de conservação constitui apenas uma das modalidades de área ambiental
especialmente tutelada, e o uso do vocábulo sistema pressupõe que todos estes
espaços encontram-se abarcados pela Lei – o que não ocorre, tendo em vista que
outras modalidades, a exemplo das áreas de preservação permanente, da reserva legal,
das áreas de proteção integral e das reservas de biosfera foram disciplinadas em outros
diplomas.

7 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito ambiental esquematizado – 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 167.

8 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Direito ambiental esquematizado – 3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 168.

A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA AMBIENTAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO 277
JURÍDICO DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE PARTICULARES E O PODER PÚBLICO COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES
Frederico Amado9 observa que:
“antes da promulgação da Lei do SNUC, alguns desses espaços territoriais já
existiam em nosso ordenamento jurídico, mas de maneira esparsa na legislação
ambiental, a exemplo das áreas de proteção ambiental e das estações ecológicas,
já tratadas pela Lei 6.902/1981, bem como das florestas nacionais (artigo 5.0,
b, do antigo CFlo - Lei 4.771/1965).”

Sobre o tema, Romeu Thomé10 considera que a expressão constitucional espaço


territorial especialmente protegido é gênero, enquanto unidade de conservação é espécie,
de modo que toda unidade de conservação é espaço territorial especialmente protegido,
mas a recíproca nem sempre é verdadeira.

Observa-se que o artigo 2°, inciso I, da Lei do SNUC conceitua unidade de conser-


vação como o “espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas
jurisdicionais” que possua características naturais relevantes, com limitação espacial
definida e legalmente instituída pelo Poder Público, tendo a conservação ambiental
como objetivo e sob regime especial de administração.

Frederico Amado11 acerca da criação de Unidades de Conservação pontua que:


“Esses espaços ambientais protegidos colaboram decisivamente para a
manutenção da diversidade biológica brasileira, conservando e preservando
parcelas significativas da fauna, flora, recursos minerais, recursos hídricos e
de outros recursos ambientais. Desta forma, previne a extinção de milhares
de espécies da fauna e da flora nativa, além de assegurar em determinados
casos a exploração sustentável perpetrada por povos extrativistas tradicionais,
realizando, destarte, o desenvolvimento econômico sustentável.”

9 AMADO, Frederico Augusto di Trindade. Legislação comentada para concursos – Ambiental. São Paulo:
Método, 2015, p. 665.

10 THOMÉ, Romeu. Manual de Direito Ambiental. 6ª Ed. Salvador: Juspodivm. 2016, p. 385

11 AMADO, Frederico Augusto di Trindade. Legislação comentada para concursos – Ambiental. São Paulo:
Método. 2015, p. 672.

278 Tibério Leal Menezes


Para tanto, a Lei Nacional n.º 9.985/200012 traçou quais os objetivos do Sistema
Nacional de Unidades de Conservação:
“Art. 4º O SNUC tem os seguintes objetivos:
I - contribuir para a manutenção da diversidade biológica e dos recursos
genéticos no território nacional e nas águas jurisdicionais;
II - proteger as espécies ameaçadas de extinção no âmbito regional e nacional;
III - contribuir para a preservação e a restauração da diversidade de ecossistemas
naturais;
IV - promover o desenvolvimento sustentável a partir dos recursos naturais;
V - promover a utilização dos princípios e práticas de conservação da natureza
no processo de desenvolvimento;
VI - proteger paisagens naturais e pouco alteradas de notável beleza cênica;
VII - proteger as características relevantes de natureza geológica, geomorfológica,
espeleológica, arqueológica, paleontológica e cultural;
VIII - proteger e recuperar recursos hídricos e edáficos;
IX - recuperar ou restaurar ecossistemas degradados;
X - proporcionar meios e incentivos para atividades de pesquisa científica,
estudos e monitoramento ambiental;
XI - valorizar econômica e socialmente a diversidade biológica;
XII - favorecer condições e promover a educação e interpretação ambiental, a
recreação em contato com a natureza e o turismo ecológico;
XIII - proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações
tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e
promovendo-as social e economicamente.”

A Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação também define dois grupos


de unidades de conservação, de acordo com a intensidade da tutela: as unidades de
proteção integral e as unidades de uso sustentável.

Na primeira categoria, a proteção é mais intensa, visando a manutenção de


ecossistemas livres da intervenção humana, de modo que apenas o uso indireto de
seus recursos naturais (que não envolva consumo, coleta, dano ou destruição) é

12 BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da
Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm>. Acesso em: 13,
dezembro, 2017.

A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA AMBIENTAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO 279
JURÍDICO DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE PARTICULARES E O PODER PÚBLICO COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES
admitido, a exemplo das Estações Biológicas, Reservas Biológicas, Parques Nacionais,
Monumentos Naturais e Refúgios da Vida Silvestre.

No segundo grupo, por sua vez, a intensidade de proteção é menor, pois são
unidades de conservação que objetivam compatibilizar a conservação da natureza e
o seu uso sustentável, admitindo a exploração de parcela de seus recursos desde que
observados o zoneamento, as limitações legais e o plano de manejo, a exemplo das
Reservas a Extrativistas, Áreas de Proteção Ambiental e Reservas de Desenvolvimento
Sustentável.

Dentre as modalidades de Unidades de Proteção Integral, verifica-se que três delas


ganharam atenção especial da Lei do SNUC, tendo em vista a necessidade de altíssima
proteção e a expressa dicção legal de que tais espaços devem ser de posse e domínio
públicos: as Estações Ecológicas, as Reservas Biológicas e os Parques Nacionais (aqui
compreendidos também os Parques criados e tutelados pelos Estados e Municípios).

Os parágrafos primeiro dos artigos 9°, 10° e 11 da Lei do Sistema Nacional de


Unidades de Conservação determinam que as áreas incluídas dentro dos limites destes
espaços ambientais especialmente protegidos deverão ser desapropriadas.13

Acerca do tema, Frederico Amado14 aponta:


“As unidades de conservação poderão ser compostas por áreas públicas ou
particulares, a depender da modalidade. Caso o Poder Público institua uma UC
pública em área particular, salvo se o particular fizer a doação do espaço, será
necessária a sua desapropriação, na modalidade utilidade pública, nos termos
do Decreto-lei 3.365/1941 (artigo 5.0, alínea k), devendo ser indenizadas em
pecúnia a terra nua e a cobertura florística explorável, e não em títulos públicos,
pois essa intervenção estatal supressiva da propriedade é não sancionatória.”

A seguir, estudaremos as três modalidades de unidades de conservação de


proteção integral que, por determinação legislativa, devem ser de posse e domínio
público.

13 BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da
Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm>. Acesso em: 13,
dezembro, 2017.

14 AMADO, Frederico Augusto di Trindade. Legislação comentada para concursos – Ambiental. São Paulo:
Método, 2015, p. 666.

280 Tibério Leal Menezes


1.1 Estações Ecológicas 
De acordo com o artigo 9° da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação,
esta modalidade de área especialmente protegida “tem como objetivo a preservação
da natureza e a realização de pesquisas científicas”.15

Romeu Thomé16 preleciona que as Estações Ecológicas são espaços de altíssima


proteção ambiental e objetivam a preservação da natureza e as pesquisas científicas,
sendo vedadas até mesmo as visitações públicas, salvo para fins educação e sempre
nos limites traçados por seu Plano de Manejo. Assim como as demais Unidades de
conservação, as Estações Ecológicas dependem de Conselho Consultivo presidido pelo
órgão administrador e composto por representantes de órgãos públicos, da sociedade
civil, e, em certos casos, também das populações tradicionais residentes.

O mesmo autor também alerta que a criação de uma Estação Ecológica depende
da elaboração de estudos técnicos, mas a realização de consultas públicas é facul-
tativa, e que pesquisas científicas são permitidas, desde que autorizadas pelo órgão
administrador da unidade de conservação.

Quanto a alterações no ecossistema desses espaços, o citado ambientalista


elenca as quatro únicas situações: para aplicar medidas de restauração dos ecossis-
temas modificados; para o manejo de espécies com o fim de preservar a diversidade
biológica; para a coleta de componentes dos ecossistemas com finalidades cientificas;
e, por fim, para pesquisas com impacto superior à simples observação ou à coleta de
componentes, desde que em área não maior do que três por cento do espaço total ou
mil e quinhentos hectares.

15 BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da
Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm>. Acesso em: 13,
dezembro, 2017.

16 THOMÉ, Romeu. Manual de Direito Ambiental. 6ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 387-388.

A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA AMBIENTAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO 281
JURÍDICO DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE PARTICULARES E O PODER PÚBLICO COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES
1.2 Reservas Biológica
 A Lei do SNUC17 conceitua essa modalidade de Unidade de Conservação no artigo
10, transcrito a seguir:
“Art. 10. A Reserva Biológica tem como objetivo a preservação integral da biota e
demais atributos naturais existentes em seus limites, sem interferência humana
direta ou modificações ambientais, excetuando-se as medidas de recuperação de
seus ecossistemas alterados e as ações de manejo necessárias para recuperar e
preservar o equilíbrio natural, a diversidade biológica e os processos ecológicos
naturais.”

Acerca do tema, Romeu Thomé18 ensina que as Reservas Biológicas também


devem dispor de Conselho  Consultivo e são de posse e domínio públicos, de modo que
as áreas particulares do seu interior devem ser desapropriadas. Também é permitida
a visitação pública com objetivo educacional, e as pesquisas científicas dependem de
autorização do órgão administrador.

1.3 Parques Nacionai


O artigo 11 da Lei do SNUC apregoa que este tipo de unidade de conservação “tem
como objetivo básico a preservação de ecossistemas naturais de grande relevância
ecológica e beleza cênica” 19, com correspondência aos Parques Estaduais e Municipais
em cada âmbito da federação. Nestes espaços são permitidas, além da visitação e da
pesquisa científica, atividades de recreação em contato com a natureza, interpretação
ambiental e turismo ecológico.

17 BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da
Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm>. Acesso em: 13,
dezembro, 2017.

18 THOMÉ, Romeu. Manual de Direito Ambiental. 6ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 388.

19 BRASIL. Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da
Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm>. Acesso em: 13,
dezembro, 2017.

282 Tibério Leal Menezes


Romeu Thomé20 assevera que, assim como as demais unidades de altíssima
proteção, devem ser desapropriadas as terras particulares situadas dentro de sua
poligonal, pois tais áreas são de posse e domínio públicos. Observa também que estes
espaços devem dispor de Conselho Consultivo.

2. Do processo de criação das unidades de conservação:


instrumentos normativos e a necessidade de
desapropriação de terras para consolidação da
proteção ambiental
Tendo, pois, fundamento na supremacia do interesse público sobre o privado, o
ordenamento jurídico pátrio admite que o particular seja compulsoriamente despo-
jado de sua propriedade, que passa a ser pública, mediante o instrumento jurídico da
desapropriação.

Deste modo, em caso de incompatibilidade entre o direito difuso ao meio ambiente


equilibrado e o do particular no exercício de seus direitos inerentes à propriedade
privada, deverá prevalecer o interesse público, manifestado pela função social da
propriedade na proteção da biodiversidade. Nestas hipóteses, a desapropriação destas
terras se faz necessária para a efetiva instituição das unidades de conservação.

Tal instrumento jurídico consiste num procedimento por meio do qual o Poder
Público, fundamentado nas necessidades coletivas, determina a retirada de bem privado
do seu proprietário para que passe a fazer parte do patrimônio público, mediante o
pagamento de justa e prévia indenização.

Sobre o tema, Matheus Carvalho21 salienta que a desapropriação é forma originária


de aquisição de propriedade, uma vez que o bem expropriado chega ao patrimônio
público livre de qualquer ônus real, de modo que a expressão transferência de proprie-
dade é atécnica, pois no caso ocorre a retirada da propriedade original e o surgimento
de um novo direito de propriedade.

20 THOMÉ, Romeu. Manual de Direito Ambiental. 6ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 389.

21 CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 977.

A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA AMBIENTAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO 283
JURÍDICO DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE PARTICULARES E O PODER PÚBLICO COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES
O referido doutrinador22 também pondera que o procedimento expropriatório é
situação excepcional, admissível somente quando presentes os rígidos pressupostos
constitucionais, pois a regra é que o Poder Público não interfira no direito da propriedade.

Neste sentido, dispõe o art. 5°, XXIV, da Constituição Federal23 que:


“a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou
utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização
em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

A doutrina administrativista esclarece a dicotomia constitucional entre os casos


de utilidade e necessidade pública. Sobre o tema, Harada Kiyoshi, citado por Matheus
Costa Dias24, destaca:
“Necessidade pública surge quando o Poder Público defronta-se com uma
situação urgente e inadiável, somente removível mediante desapropriação. Na
lição de Pontes de Miranda a necessidade pública ‘supõe que algo não possa
continuar, ou iniciar-se sem a desapropriação, para se transferir ao Estado ou a
outrem, ou para se destruir ou extinguir o que é da pessoa a quem se desapropria.
A desapropriação por utilidade pública, propriamente dita, surge quando a
incorporação da propriedade privada do domínio estatal atende ao interesse
coletivo, que, encampado pelo poder público, converte-se em interesse público.
Nessa modalidade, na visão do poder público, a declaração é conveniente e
atende o interesse público, mesmo não sendo imprescindível”

Portanto, configura-se utilidade pública quando o Estado verifica a necessidade


de usar determinado bem diretamente, julgando-o conveniente ao atendimento do
interesse público. Esta modalidade de desapropriação encontra-se regulamentada no

22 CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 3ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 976-977.

23 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Vade Mecum Saraiva. Obra coletiva de
autoria de Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Lívia Céspedes e Fabiana Dias da
Rocha. 21. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2016.

24 DIAS, Matheus Costa. Breve análise sobre a desapropriação por utilidade pública. Jus.com.br. São Paulo,
2010. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/44040/breve-analise-sobre-a-desapropriacao-por-
utilidade-publica>. Acesso em: 10, outubro, 2017.

284 Tibério Leal Menezes


Direito brasileiro pelo Decreto-Lei n.º 3.365/4125, que em seu artigo 5º elenca quais
hipóteses se enquadram neste conceito, com destaque para a alínea k:
“Art. 5° Consideram-se casos de utilidade pública:
k) a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados
ou integrados em conjuntos urbanos ou rurais, bem como as medidas necessárias
a manter lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda,
a proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza;”

Por sua vez, a Lei Nacional n.º 4.132/196226 estabelece as hipóteses de ocorrência
de interesse social para fins de desapropriação, destacando-se as previsões das alíneas
VII (“a proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas
florestais”) e VIII (“a utilização de áreas, locais ou bens que, por suas características,
sejam apropriados ao desenvolvimento de atividades turísticas”). 

O objetivo, pois, da desapropriação para instalação de áreas ambientalmente


protegidas é, certamente, promover o máximo de proteção ambiental possível. Nestes
casos, o Poder Público retira certas áreas das mãos dos particulares, mediante justa e
prévia indenização em dinheiro (artigo 5°, inciso XXIV da Constituição Federal27), para
promover melhor sua preservação em razão de sua relevância ambiental. A desapro-
priação é fundamental para se garantir a boa gestão das unidades de conservação.

Para tanto, Bandeira de Mello28 esclarece que a desapropriação deve seguir um


procedimento composto por duas etapas distintas: a fase declaratória, consubstanciada
na declaração de utilidade pública, e a fase executória, correspondente às providências
concretas para tornar público o bem privado.

Expedido pelo Executivo ou Legislativo da União, Estados, Municípios ou Territórios,


“a declaração de utilidade pública é o ato através do qual o Poder Público manifesta

25 BRASIL. Decreto-Lei n.º 3.365, de 21 de junho de 1941. Dispõe sobre desapropriações por utilidade
pública. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3365.htm>. Acesso em: 13,
dezembro, 2017.

26 BRASIL. Lei n.º 4.132, de 10 de setembro de 1962. Define os casos de desapropriação por interesse
social e dispõe sobre sua aplicação. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4132.
htm>. Acesso em: 13, dezembro, 2017.

27 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Vade Mecum Saraiva. Obra coletiva de
autoria de Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Lívia Céspedes e Fabiana Dias da
Rocha. 21. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2016.

28 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2010,
p. 878.

A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA AMBIENTAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO 285
JURÍDICO DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE PARTICULARES E O PODER PÚBLICO COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES
sua intenção de adquirir compulsoriamente um bem determinado e o submete ao jugo
de sua força expropriatória”29.

Nesta declaração, segundo Bandeira de Mello30, devem constar a expressa mani-


festação de vontade de submeter o bem à expropriação, o fundamento legal em que se
baseia o expropriante, a destinação específica a ser dada ao objeto e a identificação
do bem a ser desapropriado. Em seguida, o citado doutrinador aponta como efeitos
do ato declaratório:
“a) submeter o bem à força expropriatória do Estado;
b) fixar o estado do bem, isto é, de suas condições, melhoramentos, benfeitorias
existentes;
c) conferir ao bem público o direito de penetrar no bem a fim e fazer verificações
e medições, desde que as autoridades administrativas atuem com moderação
e sem excesso de poder;
d) dar início ao prazo de caducidade da declaração.”

O ato declaratório, conforme apontado acima, encontra-se sujeito a um prazo de


validade, durante o qual o Poder Público deve promover atos concretos destinados a
efetivá-lo, devendo ser promovida a desapropriação no prazo de cinco anos, se com
base na necessidade ou utilidade pública (artigo 1º do Decreto-Lei 3.365/4131), ou de
dois anos, se fundada no interesse social (artigo 3° da Lei Nacional n.º 4.132/6232)
– findos os quais a validade da declaração caduca, muito embora não se extinga em
definitivo o poder de desapropriar, tendo em vista que o Estado pode emitir novo ato
declaratório.

29 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2010,
p. 878.

30 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2010,
p. 879.

31 BRASIL. Decreto-Lei n.º 3.365, de 21 de junho de 1941. Dispõe sobre desapropriações por utilidade
pública. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3365.htm>. Acesso em: 13,
dezembro, 2017.

32 BRASIL. Lei n.º 4.132, de 10 de setembro de 1962. Define os casos de desapropriação por interesse
social e dispõe sobre sua aplicação. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4132.
htm>. Acesso em 13, dezembro, 2017.

286 Tibério Leal Menezes


Entretanto, os estudiosos ponderam que, em matéria ambiental, estes prazos não
se aplicam aos atos declaratórios de criação de unidades de conservação, apenas
as desapropriações comuns, porque, de acordo com Ricardo Marques de Almeida33:
“o interesse em criar unidades de conservação é estratégico e decorre da
necessidade de preservar frações do território nacional com características
naturais relevantes, que justifiquem a especial proteção, que exorbita o direito
comum (art. 225, §1º, III c/c art. 2º, I da Lei nº 9.985/2000), levando em conta
que um dos objetivos do Sistema Nacional Conservação é assegurar que nas UCs,
no conjunto, estejam representadas amostras significativas e ecologicamente
viáveis das diferentes populações, habitats e ecossistemas do território nacional
(arts. 2º e 4º da Lei da Lei nº 9.985/2000)”

Portanto, não é qualquer área do território nacional que merece especial proteção
ambiental, pois nem todos os espaços apresentam características naturais relevantes
e singulares. Diante destas especificidades, não se pode defender a caducidade dos
decretos criadores de unidades de conservação à semelhança das desapropriações
ordinárias, “especialmente porque não se está em jogo apenas o direito de propriedade,
mas também o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado que
é pressuposto para a fruição, na sua plenitude, dos atributos de uma propriedade.”34

No Sistema Nacional de Unidades de Conservação, a lógica é a desapropriação de


imóveis de forma gradativa no tempo, respeitando o direito de propriedade e a preser-
vação de um ambiente natural sadio. Interpretando o SNUC como um todo, verifica-se
que, enquanto há determinação expressa de desapropriação dos imóveis localizados
nas Estações Ecológicas, nas Reservas Biológicas e os Parques Nacionais (aqui
compreendidos também os Parques criados e tutelados pelos Estados e Municípios),
nas demais modalidades de unidade de conservação podem existir propriedades
privadas. Neste diapasão, Ricardo Marques de Almeida35 leciona que:
“Se os imóveis privados situados nessas unidades não serão desapropriados,
os Decretos de criação dessas unidades, naturalmente, não se submeterão
a nenhum prazo de decadência. Essa mesma situação se repetira no que diz

33 ALMEIDA, Ricardo Marques de. A incaducabilidade dos decretos de criação de unidades de conservação
da natureza. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/28921>. Acesso em: 28, novembro, 2017.

34 ALMEIDA, Ricardo Marques de. A incaducabilidade dos decretos de criação de unidades de conservação
da natureza. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/28921>. Acesso em: 28, novembro, 2017.

35 ALMEIDA, Ricardo Marques de. A incaducabilidade dos decretos de criação de unidades de conservação
da natureza. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/28921>. Acesso em: 28, novembro, 2017.

A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA AMBIENTAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO 287
JURÍDICO DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE PARTICULARES E O PODER PÚBLICO COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES
respeito à unidades de conservação criadas mediante lei (art. 225, §1º, III da
CF), que só perdem vigência quando revogadas ou declaradas inconstitucionais.
Assim, admitir a procedência da tese da caducabilidade equivaleria a admitir um
Sistema Nacional de Unidades de Conservação pela metade, em que algumas
unidades caducariam e outras não, a depender da natureza do seu ato de criação.
Um nonsense.”

Ademais, forçar os decretos de criação de unidades de conservação a prazos de


caducidade seria condicionar a sua proteção à disponibilidade financeira do Estado,
que precisaria, em dois ou cinco anos, indenizar previamente o particular expropriado,
tornando “o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado em um ‘direito na
medida do orçamento disponível’”.36

A segunda fase do procedimento expropriatório, a seu turno, pode se dar de forma


extrajudicial ou judicial. Conforme leciona Bandeira de Mello37 na primeira, que ocorre
sem a intervenção do judiciário, “o poder expropriante e o expropriado acordam em
relação ao preço e pode, por isso, concretizar-se a aquisição compulsória mediante
acordo no que respeita à indenização”; a segunda modalidade, por sua vez, se dá
quando o Poder Público ingressa com a ação expropriatória. Neste último caso, se o
expropriado aceitar a proposta feita pelo expropriante, o magistrado apenas homologa
o acordo; se não há consenso quanto ao preço da indenização, o juiz, após arbitramento
do valor e seu consequente pagamento, determinará a imissão definitiva na posse.

Embora o ordenamento jurídico brasileiro não obrigue a desapropriação prévia


à criação da unidade de conservação, é aconselhável que o decreto expropriatório
seja ato separado e anterior à instituição, por lei ou decreto, da referida unidade de
conservação, e que a imissão na posse em favor do expropriante (seja aquela obtida
pela desapropriação amigável, seja a obtida, na desapropriação judicial, mediante
depósito do valor do imóvel em favor do proprietário particular) já tenha sido deferida.

Todavia, com certa frequência nos deparamos com Estações Ecológicas,


Reservas Biológicas e Parques Nacionais, Estaduais e Municipais criados sem a devida
consolidação dominial pelo Poder Público, que costuma não destinar orçamento sufi-
cientemente adequado para a execução das políticas públicas em matéria ambiental.

36 ALMEIDA, Ricardo Marques de. A incaducabilidade dos decretos de criação de unidades de conservação
da natureza. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/28921>. Acesso em: 28, novembro, 2017.

37 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2010,
p. 878.

288 Tibério Leal Menezes


Neste contexto de indisponibilidade financeira, se faz necessário, portanto, encon-
trar alternativas para compatibilizar o direito difuso ao meio ambiente equilibrado e o
direito individual de propriedade.

3. Da insuficiência financeira estatal para indenizar


proprietários de extensas áreas inseridas em unidades
de conservação: a alternativa das permutas entre bens
imóveis públicos disponíveis e os terrenos privados,
por meio de dispensa de licitação
Conforme vimos nos capítulos anteriores, não obstante a criação de unidades de
conservação configure um enorme avanço na proteção de espaços naturais singulares
e relevantes para o equilíbrio ambiental, o ato de sua instituição não tornam públicos,
por si, os imóveis situados no seu interior.

Em tais “unidades de conservação de papel”, embora haja tutela legal, a existência


de propriedades dentro de seus limites prejudica a efetiva proteção ambiental e viola o
direito de propriedade dos particulares, que ficam impedidos de dar qualquer destinação
ao imóvel que não seja a conservação da natureza.

Sabe-se, todavia, que dentro de um cenário de crise de arrecadação e das conse-


quentes limitações orçamentárias, o Estado pode não dispor de recursos financeiros
suficientes para indenizar todos os proprietários que detenham terras no interior das
poligonais das Unidades de Conservação, sobretudo porquanto tais imóveis, em geral,
ocupam áreas de grande extensão e possuem enorme valor econômico.

Deste modo, tendo em vista a necessidade de garantir o interesse público na


proteção ambiental sem olvidar as restrições financeiras do Estado, a opção mais viável
para que o Poder Público adquira tais imóveis é por meio de permutas.

Acerca do tema, Tauã Lima Verdan Rangel38 leciona que o contrato de permuta
é o negocio jurídico em que apartes se obrigam, reciprocamente, a entregar coisas,
guardando semelhanças com o instituto da compra e venda, mas não se confundido
com este uma vez que “a permuta constitui uma alienação de uma coisa por outra, ao

38 RANGEL, Tauã Lima Verdan. Contrato de permuta: abordagem conceitual do tema. Disponível em: <
https://bit.ly/2zlKqai>. Acesso em: 28, novembro, 2017.

A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA AMBIENTAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO 289
JURÍDICO DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE PARTICULARES E O PODER PÚBLICO COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES
passo que a compra e venda, como troca, traz como particularidade primordial o fato
de um ter uma coisa trocada por dinheiro.”

Observa-se, portanto, que se trata de uma relação jurídica comutativa, já que as


obrigações devem equivaler-se juridicamente e de modo que os pactuantes tenham
ciência prévia de suas prestações. Entretanto, Gagliano e Pamplona Filho, citados por
Tauã Lima Verdan Rangel39, destacam que esta equivalência não exatamente é de cunho
econômico, pois as partes, em condições iguais de negociação e com a autonomia da
vontade, podem acordar pela permuta a despeito da diferença de valor entre os bens.

O instituto da permuta de bens, originalmente típico do direito privado, pode ser


aplicado pela Administração com as devidas ressalvas impostas pelo Direito Público.

Neste ponto, frise-se que o regime jurídico do patrimônio público, delineado


genericamente pelos artigos 98 a 103 do Código Civil, elenca três categorias de bens,
de acordo com a modalidade de sua exploração: os bens de uso especial, os bens de
uso comum e os bens dominicais. Enquanto as duas primeiras remetem à satisfação
direta ou indireta do interesse público, a última categoria diz respeito ao conjunto de
bens que não possuem afetação – compondo, portanto, o patrimônio disponível da
Administração.

Sobre o tema, Amauri Feres Saad40 pontua que:


“(...) no tocante à disponibilidade dos bens públicos, tem-se que os bens
afetados (bens de uso comum, bens de uso especial e os “bens públicos em
sentido impróprio”) são inalienáveis somente enquanto perdurar a afetação. Os
bens dominicais são, a seu turno, alienáveis de acordo com a conveniência e
oportunidade da administração pública. Isto ocorre porque os bens dominicais
não servem diretamente a qualquer interesse público, são indiferentes ao
interesse público, e podem, por isto, ser objeto de disposição pela administração,
obedecidos os requisitos legais (...)”

Vê-se, portanto, que o Poder Público poderá dispor de imóveis não afetados ao
interesse público em troca dos terrenos situados nas Unidades de Conservação, desde
que haja observância aos procedimentos previstos em lei para a transação.

39 RANGEL, Tauã Lima Verdan. Contrato de permuta: abordagem conceitual do tema. Disponível em: <
https://bit.ly/2zlKqai>. Acesso em: 28, novembro, 2017.

40 SAAD, Amauri Feres. Permuta de bens públicos imóveis. RDA – Revista de Direito Administrativo, v. 265,
p. 117-118 Rio de Janeiro, jan./abr, 2014.

290 Tibério Leal Menezes


Acerca da matéria, a Lei de Licitações (Lei Nacional n.º 8.666/9341) dispõe sobre
alienações de bens na modalidade permuta:
“Art. 17. A alienação de bens da Administração Pública, subordinada à existência
de  interesse público devidamente justificado, será precedida de avaliação
e obedecerá às seguintes normas:
I -  quando imóveis,  dependerá de autorização legislativa  para órgãos da
administração direta e entidades autárquicas e fundacionais, e, para todos,
inclusive as entidades paraestatais, dependerá de avaliação prévia e de licitação
na modalidade de concorrência, dispensada esta nos seguintes casos: (...)
c) permuta, por outro imóvel que atenda aos requisitos constantes do inciso X
do art. 24 desta Lei; (...)
Art. 24. É dispensável a licitação: (...)
X - para a compra ou locação de imóvel destinado ao atendimento das finalidades
precípuas da administração, cujas necessidades de instalação e localização
condicionem a sua escolha, desde que o preço seja compatível com o valor de
mercado, segundo avaliação prévia;”

Desta forma, a Lei Geral de Licitações prevê os seguintes requisitos para alie-
nação de bens imóveis pelo Poder Público: interesse público devidamente justificado,
autorização legislativa prévia, avaliação prévia do bem a ser permutado e licitação na
modalidade concorrência, esta última dispensada no casos de permuta, tendo em vista
a especificidade dos bens a serem permutados.

Por sua vez, a Lei n.º 9.636/9842 dispõe de modo diverso quanto a competência
para a expedição do ato autorizativo, eis que:
Art. 23. A alienação de bens imóveis da União dependerá de autorização,
mediante ato do Presidente da República, e será sempre precedida de parecer
da SPU quanto à sua oportunidade e conveniência.
§ 1o A alienação ocorrerá quando não houver interesse público, econô- mico
ou social em manter o imóvel no domínio da União, nem inconveniência quanto

41 BRASIL. Lei n.º 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal,
institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm>. Acesso em: 13, dezembro, 2017.

42 BRASIL. Lei n.º 9.636, de 15 de maio de 1998. Dispõe sobre a regularização, administração, aforamento
e alienação de bens imóveis de domínio da União, altera dispositivos dos Decretos-Leis nos  9.760, de
5 de setembro de 1946, e 2.398, de 21 de dezembro de 1987, regulamenta o § 2odo art. 49 do Ato das

A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA AMBIENTAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO 291
JURÍDICO DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE PARTICULARES E O PODER PÚBLICO COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES
à preservação ambiental e à defesa nacional, no desaparecimento do vínculo
de propriedade.
§ 2o A competência para autorizar a alienação poderá ser delegada ao Ministro
de Estado da Fazenda, permitida a subdelegação.”

Sendo norma posterior e de igual hierarquia, prevalece a disposição constante


na Lei 9.626/98, de modo que a autorização para alienação destes bens, no âmbito
da União, é competência do Presidente da República, e não do Legislativo, sobretudo
porque a gestão de bens públicos é competência administrativa, pertencendo ao
Executivo o dever de exercer a direção superior da administração federal (artigo 84,
inciso II, da Constituição). Assevere-se, todavia, que o próprio Texto Magno excetua
tal regra ao indicar como competência do Congresso aprovar, previamente, a alienação
ou concessão de terras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares
(artigo 49, inciso XVII).

Ademais, por força da própria dicção do citado artigo 84, inciso II, da Carta de
1988, entende-se que a mesma competência para autorização de permutas de bens
públicos com particulares se estende aos chefes do Executivo dos demais entes
federativos, de modo que, conforme destaca Amauri Feres Saad43:
“serão inconstitucionais as constituições estaduais, as leis orgânicas e as leis
ordinárias (federais, estaduais e municipais) sempre que ignorarem que a gestão
dos bens públicos é tarefa eminentemente administrativa, o que implica dizer,
a fim de que não se faça tabula rasa do art. 84, III, da Constituição Federal, que
determina caber ao chefe do Executivo a direção superior da administração
pública, que o regime dos bens públicos nunca poderá ser de tal modo restrito,
que todas decisões relativas a tal matéria caibam exclusiva ou principalmente
ao Poder Legislativo.”

O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre o tema na ADI-3-7-DF, suspen-


dendo a eficácia dos dispositivos da Lei n.º 8.666/93 que instituem vedações ou
restrições às operações de doação e permutas de bens públicos (mais precisamente
os artigo 17, inciso I, alíneas “b” e “c” e seu parágrafo 1º), por considerar que a União
ultrapassou a competência para a edição de normais gerais de licitação e contratos

Disposições Constitucionais Transitórias, e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.


gov.br/ccivil_03/leis/L9636.htm>.Acesso em: 13, dezembro, 2017.

43 SAAD, Amauri Feres. Permuta de bens públicos imóveis. RDA – Revista de Direito Administrativo, v. 265,
p. 117-118 Rio de Janeiro, jan./abr, 2014.

292 Tibério Leal Menezes


administrativos (artigo 22 da Constituição), violando a legitimidade dos demais entes
para dispor sobre seus bens.

Conclui-se, portanto, que na hipótese de que a Administração Pública possui


imóveis desafetados e disponíveis, que a troca com o particular atenderá ao interesse
público presente no dever de proteção às Unidades de Conservação, que os bens a
serem permutados foram devidamente avaliados sob os parâmetros do mercado e
que há equivalência e vontade livre das partes, o instrumento negocial das permutas
configura-se como alternativa à desapropriação das propriedades situadas no interior
dos territórios ambientalmente protegidos e mostra-se claramente legal que o Executivo
autorize este negócio jurídico por dispensa de licitação.

Considerações finaiS
Conforme vimos no presente trabalho, o ato normativo de criação de uma unidade
de conservação, quando não acompanhado do procedimento de desapropriação, acaba
criando severas limitações administrativas aos proprietários atingidos, tendo em vista
que sua instituição não transfere a titularidade das terras inseridas dentro de seus
limites automaticamente para o Poder Público.

Reconhecendo a necessidade da proteção ambiental de tais espaços, a Lei do


Sistema Nacional de Unidades de Conservação estabelece que as terras particulares
inseridas nos limites das Estações Ecológicas, Reservas Biológicas e os Parques
Nacionais, Estaduais e Municipais devem passar para a posse e o domínio públicos.

Todavia, consoante explanado nos capítulos anteriores, o cenário de crise


orçamentária e financeira estatal dificulta o pagamento das indenizações devidas a
estes proprietários, sobretudo porque tais imóveis, em geral, ocupam áreas de grande
extensão e possuem enorme valor econômico.

Visando compatibilizar o dever de proteção ambiental às Unidades de Conservação


e os direitos inerentes à propriedade particular, sem olvidar as limitações orçamentárias
estatais, este trabalho conclui que o Poder Público pode, como alternativa ao pagamento
de milionárias indenizações decorrentes de desapropriação, efetuar permutas entre
seus bens imóveis disponíveis e os terrenos particulares em questão, com dispensa
de licitação, desde que preenchidos os requisitos legais.

A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA AMBIENTAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO 293
JURÍDICO DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE PARTICULARES E O PODER PÚBLICO COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES
ReferênciaS
ALMEIDA, Ricardo Marques de.  A incaducabilidade dos decretos de criação
de unidades de conservação da natureza.  Disponível em:  <https://jus.com.br/
artigos/28921>. Acesso em: 28 nov, 2017.
AMADO, Frederico Augusto di Trindade. Legislação comentada para concursos –
Ambiental. São Paulo: Método, 2015.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Vade Mecum
Saraiva. Obra coletiva de autoria de Editora Saraiva com a colaboração de Luiz
Roberto Curia, Lívia Céspedes e Fabiana Dias da Rocha. 21. ed. atual. e ampl. São
Paulo: Saraiva, 2016.
BRASIL. Decreto-Lei n.º 3.365, de 21 de junho de 1941. Dispõe sobre desapropriações
por utilidade pública. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
decreto-lei/Del3365.htm>. Acesso em: 13 dez, 2017.
BRASIL. Lei n.º 4.132, de 10 de setembro de 1962. Define os casos de desapropriação
por interesse social e dispõe sobre sua aplicação. Disponível em: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4132.htm>. Acesso em: 13 dez, 2017.
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Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração
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A IMPORTÂNCIA DO PROCEDIMENTO DE DESAPROPRIAÇÃO PARA A TUTELA AMBIENTAL DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO E O INSTITUTO 295
JURÍDICO DA PERMUTA DE BENS IMÓVEIS ENTRE PARTICULARES E O PODER PÚBLICO COMO ALTERNATIVA ÀS INDENIZAÇÕES

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