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CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA © 2019 Conselho Federal de Psicologia

CONSELHOS REGIONAIS DE PSICOLOGIA É permitida a reprodução desta publicação, desde que sem alterações e citada a
fonte. Disponível também em: www.cfp.org.br.
CENTRO DE REFERÊNCIA TÉCNICA EM PSICOLOGIA Projeto Gráfico: Agência Movimento
E POLÍTICAS PÚBLICAS – CREPOP Diagramação: Agência Movimento
Revisão e normalização: MC&G Design Editorial

Referências bibliográficas conforme ABNT NBR

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA A ATUAÇÃO Direitos para esta edição – Conselho Federal de Psicologia: SAF/SUL Quadra 2,
Bloco B, Edifício Via Office, térreo, sala 104, 70070-600, Brasília/DF
DE PSICÓLOGAS(OS) NA EDUCAÇÃO BÁSICA (61) 2109-0107 E-mail: ascom@cfp.org.br/www.cfp.org.br
Impresso no Brasil – agosto de 2019

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C755 Conselho Federal de Psicologia (Brasil).


Referências técnicas para atuação de psicólogas(os)
na educação básica / Conselho Federal de Psicologia. ——
Comissão de Revisão do Documento 2. ed. —— Brasília : CFP, 2019.
67 p. ; 12 cm.

Conselheira Federal Responsável Inclui bibliografia.


Norma Celiane Cosmo ISBN 978-85-89208-98-7

Especialistas: 1. Psicologia aplicada. 2. Psicologia educacional.


3. Psicólogos escolares - Prática. I. Título.
Carmem Silvia Rotondano Taverna
Iracema Neno Cecilio Tada CDD 158
Marilda Gonçalves Dias Facci
Marilene Proença Rebello de Souza
Raquel Souza Lobo Guzzo

Técnico Regional (2.ª edição)


Pablo Mateus S. Jacinto

Edição Revisada
Bibliotecária Priscila Pena Machado CRB-7/6971
Sistema de Bibliotecas da Universidade São Francisco - USF
Brasília, 2019 Ficha catalográfica elaborada por: Priscila Pena Machado CRB-7/6971
Informações da Edição Revisada Informações da 1ª Edição (2013)

Coordenação Geral/ CFP Coordenação Geral/ CFP


Miraci Mendes – Coordenação Geral Yvone Duarte
Cibele Tavares – Coordenação adjunta
Editoração
Gerência de Comunicação André Almeida
Luana Spinillo Poroca – Gerente
Equipe Técnica do CREPOP/CFP
Monalisa Barros e Márcia Mansur Saadallah – Conselheiras Responsáveis
Coordenação Nacional do CREPOP/CFP Natasha Ramos Reis da Fonseca – Coordenadora Técnica
Clarissa Paranhos Guedes – Conselheira CFP Cibele Cristina Tavares de Oliveira – Assessora de Metodologia
Mateus de Castro Castelluccio – Supervisor Klebiston Tchavo dos Reis Ferreira – Assistente administrativo
Larissa Correia Nunes Dantas – Assessora Técnica
Joyce Juliana Dias de Avelar – Estagiária
Comissão de Elaboração da 1.ª Edição
Integrantes das Unidades Locais do Crepop nos CRPs
Conselheiras(os) Carmem Silvia Rotondano Taverna
Leovane Gregório (CRP01); Vinícius Suares de Oliveira (CRP02); Gloria Maria Macha- Iracema Neno Cecilio Tada
do Pimentel, Mailson Santos Pereira e Monaliza Cirino de Oliveira (CRP03); Cláudia Marilene Proença Rebello de Souza
Natividade e Flávia Gotelip Correa Veloso (CRP04); Mônica Sampaio (CRP05); Beatriz Marilda Gonçalves Dias Facci
Borges Brambilla (CRP06); Manuele Monttanari Araldi (CRP07); Maria Sezineide Ca- Marisa Lopes Rocha
valcante de Melo (CRP08); Mayk Diego Gomes da Glória Machado (CRP09); Valber Raquel Souza Lobo Guzzo
Luiz Farias Sampaio (CRP10); Emilie Fonteles Boesmans (CRP11); Marivete Jesser
(CRP12); Carla de Sant’Ana Brandão Costa (colaboradora CRP13); Beatriz Flandoli Técnica Regional (1ª edição 2013)
(CRP14); Laeuza da Silva Farias (CRP15); Juliana Brunoro de Freitas (CRP16); Ada- Ana Gonzatto
la Nayana de Sousa Mata (CRP17); Karina Franco Moshage (CRP18); Bruna Oliveira
Santana e Claudson Rodrigues de Oliveira (CRP19); Clorijava de Oliveira Santiago Jú-
nior e Gibson Alves dos Santos (CRP20); José Augusto Santos Ribeiro (CRP21); Raissa
Bezerra Palhano (CRP22); Ricardo Furtado de Oliveira (CRP23).

Técnicas(os)
Cristina Trarbach (CRP01); Maria de Fátima dos Santos Neves (CRP02); Natani
Evlin Lima Dias (CRP03); Pablo Mateus dos Santos Jacinto (CRP03); Leiliana Sousa
(CRP04); Roberta Brasilino Barbosa (CRP05) Edson Ferreira Dias Júnior (CRP06); Ra-
faela Demétrio Hilgert (CRP07) Regina Magna Fonseca (CRP09); Letícia Maria Soares
Palheta (CRP10); Mayrá Lobato Pequeno (CRP11); Iramaia Ranai Gallerani (CRP12);
Katiuska Araújo Duarte (CRP13); Mônica Rodrigues (CRP14); Liércio Pinheiro de Araú-
jo (CRP15); Mariana Moulin Brunow Freitas (CRP16); Zilanda Pereira Lima (CRP17);
Érika Aparecida de Oliveira (CRP18); Lidiane de Melo Drapala (CRP19); John Wedson
dos Santos Silva (CRP21); Lívia Maria Guedes de Lima Andrade (CRP22); Stéfhane
Santana Da Silva (CRP23).
PLENÁRIO RESPONSÁVEL PELA REVISÃO PLENÁRIO RESPONSÁVEL PELA 1ª EDIÇÃO

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA


XVII Plenário XV Plenário
Gestão 2017-2019 Gestão 2011-2013

Diretoria Diretoria
Rogério Giannini – Presidente Humberto Cota Verona – Presidente
Ana Sandra Fernandes Arcoverde Nóbrega – Vice-presidente Clara Goldman Ribemboim – Vice-presidente
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho – Secretário Monalisa Nascimento dos Santos Barros – Tesoureira
Norma Celiane Cosmo – Tesoureira Deise Maria do Nascimento – Secretária

Conselheiras(os) Efetivas(os)
Iolete Ribeiro da Silva – Secretária Região Norte
Conselheiras(os) efetivas(os)
Flávia Cristina Silveira Lemos – Secretária Região Norte
Clarissa Paranhos Guedes – Secretária Região Nordeste
Aluízio Lopes de Brito – Secretário Região Nordeste
Marisa Helena Alves – Secretária Região Centro Oeste
Heloiza Helena Mendonça A. Massanaro – Secretária Região Centro-Oeste
Júnia Maria Campos Lara – Secretária Região Sudeste
Marilene Proença Rebello de Souza – Secretária Região Sudeste
Rosane Lorena Granzotto – Secretária Região Sul
Ana Luiza de Souza Castro – Secretária Região Sul
Fabián Javier Marín Rueda – Conselheiro 1
Célia Zenaide da Silva – Conselheira 2
Conselheiras(os) suplentes
Conselheiras(os) Suplentes Adriana Eiko Matsumoto
Maria Márcia Badaró Bandeira – Suplente Celso Francisco Tondin
Daniela Sacramento Zanini – Suplente Cynthia Rejane Corrêa Araújo Ciarallo
Paulo Roberto Martins Maldos – Suplente Henrique José Leal Ferreira Rodrigues
Fabiana Itaci Corrêa de Araujo – Suplente Márcia Mansur Saadallah
Jureuda Duarte Guerra – Suplente Região Norte Maria Ermínia Ciliberti
Andréa Esmeraldo Câmara – Suplente Região Nordeste Mariana Cunha Mendes Torres
Regina Lúcia Sucupira Pedroza – Suplente Região Centro Oeste Marilda Castelar
Sandra Elena Sposito – Suplente Região Sudeste Roseli Goffman
Cleia Oliveira Cunha – Suplente Região Sul (in memoriam) Sandra Maria Francisco de Amorim
Elizabeth de Lacerda Barbosa – Conselheira Suplente 1 Tânia Suely Azevedo Brasileiro
Paulo José Barroso de Aguiar Pessoa – Conselheiro Suplente 2
Psicólogas convidadas
Angela Maria Pires Caniato
Ana Paula Porto Noronha
Sumário APRESENTAÇÃO DA 2.ª EDIÇÃO

APRESENTAÇÃO DA 2ª EDIÇÃO .............................................................................08 O Conselho Federal de Psicologia (CFP) apresenta à catego-


ria e à sociedade o documento Referências Técnicas para Atuação
APRESENTAÇÃO DA 1ª EDIÇÃO ................................................................................ 11 de Psicólogas(os) na Educação Básica, edição revisada, elaborado no
âmbito do Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 13 Públicas (CREPOP). Este documento procura abordar a educação
básica como direito humano fundamental, em uma perspectiva crí-
EIXO 1 tica, pautada na diversidade humana e protagonista nos enfrenta-
DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA DA ATUAÇÃO DA(O) PSICÓLOGA(O) mentos a preconceitos, racismos, pobreza e distribuição de renda.
NA EDUCAÇÃO BÁSICA ................................................................................................ 23 Para a atuação da Psicologia na educação, é necessário que
as(os) psicólogas(os) trabalhem em consonância com a garantia des-
EIXO 2 se direito fundamental, como apontam a Declaração Universal dos
A PSICOLOGIA E A ESCOLA ........................................................................................... 31 Direitos Humanos e o Código de Ética do Psicólogo, respectivamente:

EIXO 3 Artigo 26:


POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO DA (O) 1. Todo ser humano tem direito à educação. A
PSICÓLOGA (O) NA EDUCAÇÃO BÁSICA ....................................................................42 educação será gratuita, pelo menos nos graus ele-
mentares e fundamentais. A educação elementar
será obrigatória. A educação técnico-profissional
EIXO 4
será acessível a todos, bem como a instrução su-
DESAFIOS PARA A PRÁTICA DA(O) PSICÓLOGA(O) ................................................. 53 perior, está baseada no mérito.
2. A educação será orientada no sentido do pleno
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................60 desenvolvimento da personalidade humana e do
fortalecimento do respeito pelos direitos huma-
nos e pelas liberdades fundamentais. A educação
promoverá a compreensão, a tolerância e a ami-
zade entre as nações e grupos raciais ou religio-
sos, e deve desenvolver as atividades da ONU em
prol da manutenção da paz (ONU, 1947).
I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respei-
to e na promoção da liberdade, da dignidade, da

8 Conselho Federal de Psicologia


igualdade e da integridade do ser humano, apoia- Para esta nova edição da Referência, a comissão responsável
do nos valores que embasam a Declaração Uni- pela elaboração do primeiro documento (2013) fez atualizações
versal dos Direitos Humanos (CFP, 2005). pontuais no texto, mas avaliou a atualidade do mesmo e por isso a
redação final passou por poucas modificações.
O XVII Plenário do CFP agradece a todas e a todos os envol-
A educação como direito fundamental foi, durante décadas,
vidos na elaboração deste documento, em especial aos membros
alvo de disputa na sociedade brasileira, prevalecendo a concepção
da comissão ad-hoc responsáveis pela redação. Desejamos que esta
de uma educação distinta a depender da classe social. Somente com
publicação seja um instrumento de orientação e qualificação da
a Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro define a educação
prática profissional e de reafirmação do compromisso ético-político
como direito básico e universal. Desde então, se reconhece avan-
da Psicologia e que possa auxiliar profissionais e estudantes na apro-
ços no acesso ao ensino, porém quanto a sua qualidade os avanços
ximação com o campo da Educação Básica, pensando essa área em
aconteceram de forma tímida, e ainda bastante marcados pelos de-
uma perspectiva ampliada e crítica.
terminantes econômicos, políticos e sociais. Mais recentemente, ins-
tala-se um intenso quadro de desinvestimento em políticas públicas
que, aliado aos ataques à legitimidade da produção do conhecimento XVII Plenário
científico e ao questionamento da própria ideia da educação como Conselho Federal de Psicologia
direito universal, nos coloca diante de uma situação de sucateamento
e desmonte qualitativamente diferente. Tal situação convoca as(os)
psicólogas(os) a reafirmarem o compromisso com os princípios de
uma educação democrática, defendendo a pluralidade e a diversida-
de humana. É urgente nos somarmos àquelas(es) que fazem a defesa
veemente e cotidiana da educação como um direito humano.
A Psicologia tem importantes contribuições na superação de
análises individualizantes e medicalizantes, pautando reflexões
acerca da complexidade das relações sociais que incidem nos pro-
cessos de aprendizagem. Ao lidar com os sujeitos e suas subjeti-
vidades, a(o) psicóloga(o), em trabalho conjunto com professores
e a comunidade escolar, pode possibilitar o reconhecimento das
dificuldades de aprendizado, evasão escolar, violência nas escolas,
dentre outros, que são permeados por vivências de extrema pobre-
za, racismo, discriminação de gênero e de orientação sexual.
Esta Referência Técnica se apresenta como um importante
instrumento para as (os) psicólogas(os) demarcarem seus compro-
missos ético-políticos com a garantia de direitos e enfrentamentos
às injustiças sociais, provocando-as(os) a desenvolverem práticas
que se aliem a esses compromissos, em consonâncias com as de-
mandas da sociedade.

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 9 10 Conselho Federal de Psicologia
Psicologia (Abep) que se propuseram a contribuir com a constru-
APRESENTAÇÃO DA 1.ª EDIÇÃO ção desta referência técnica para atuação das(os) Psicólogas(os)
na Educação Básica.

HUMBERTO VERONA
Presidente do Conselho Federal de Psicologia
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) apresenta à catego-
ria e à sociedade em geral o documento de Referências Técnicas
para a Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica, produzido a
partir da metodologia do Centro de Referência Técnica em Psicolo-
gia e Políticas Públicas (Crepop). Este documento busca construir
referência sólida para a atuação da Psicologia na área.
As referências construídas têm como base os princípios éti-
cos e políticos norteadores do trabalho das(os) psicólogas(os),
possibilitando a elaboração de parâmetros compartilhados e legi-
timados pela participação crítica e reflexiva da categoria no cam-
po da Educação.
Estas orientações refletem o processo de diálogo que os
conselhos vêm construindo com a categoria, no sentido de se le-
gitimar como instância reguladora do exercício profissional. Por
meios cada vez mais democráticos, esse diálogo tem se pautado
por uma política de reconhecimento mútuo entre os profissionais
e pela construção coletiva de uma plataforma profissional que seja
também ética e política.
Esta publicação marca mais um passo no movimento recente
de aproximação da Psicologia com o campo das Políticas Públicas.
Aborda o cenário delicado e multifacetado da Educação Básica no
contexto da defesa e dos direitos humanos na Escola.
A opção pela abordagem deste tema reflete o compromisso
dos conselhos federal e regionais de psicologia com a qualifica-
ção da atuação das(os) psicólogas(os) em todos os seus espaços
de atuação. Nesse sentido, aproveito para agradecer a instituições
como o Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira
(FENPB), a Associação Brasileira de Psicologia em Emergências e
Desastres (Abraped), a Associação Brasileira de Psicologia Escolar
e Educacional (Abrapee) e a Associação Brasileira de Ensino de

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 11 12 Conselho Federal de Psicologia
INTRODUÇÃO Metodologia
A proposta de investigar a atuação de psicólogas(os) em políti-
cas públicas específicas ou transversais visa a entender o núcleo da
prática profissional da(o) psicóloga(o), considerando a exclusivida-
de de cada área, Saúde, Educação, Assistência Social, e, assim, de
O Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Pú- cada Política Pública. Todas as áreas são eleitas a partir de critérios
blicas consiste em uma ação do Sistema Conselhos de Psicologia como: tradição na atuação da Psicologia; abrangência territorial;
que dá continuidade ao projeto Banco Social de Serviços em Psico- existência de marcos lógicos e legais e o caráter social ou emergen-
logia, acenando para uma nova etapa na construção da presença cial dos serviços prestados.
social da profissão de psicóloga(o) no Brasil. Constitui-se em uma
Dessa forma, a temática sobre atenção à educação básica
maneira de observar a presença da(o) psicóloga(o) e do movimen-
emergiu como tema de investigação do Crepop em 2008 com as
to da Psicologia em seu Protagonismo Social.
propostas encaminhadas durante o Ano Temático de Educação do
Nesse sentido, a ideia fundamental é produzir informação Sistema Conselhos de Psicologia.
qualificada para que o Sistema Conselhos possa implementar novas
propostas de articulação política, visando a a maior reflexão e ela-
boração de políticas públicas que valorizem o cidadão como sujeito
de direitos, além de orientar a categoria sobre os princípios éticos e A Pesquisa do Crepop/CFP
democráticos para cada política pública.
Dessa forma, o objetivo central do Crepop se constituiu de for- O processo investigativo da Rede Crepop implica a construção
ma a garantir que esse compromisso social seja ampliado no as- e atualização de um banco de dados para comportar informações
pecto da participação das(os) psicólogas(os) nas políticas públicas. referenciadas, inclusive geograficamente, sobre profissionais de Psi-
Dentre as metas do Crepop, estão, também, a ampliação da atuação cologia, legislações, documentos, programas e entidades que de-
da(o) psicóloga(o) na esfera pública a fim de contribuir para a ex- senvolvem ações no campo das Políticas Públicas.
pansão da Psicologia na sociedade e para a promoção dos Direitos Nesse sentido, uma pesquisa sobre a atuação de psicólogas(os)
Humanos, bem como a sistematização e disseminação do conheci- em Políticas de Educação Básica foi realizada no ano de 2009, en-
mento da Psicologia e suas práticas nas políticas públicas oferecen- tre os meses de março e abril. Realizou-se em duas etapas, uma na-
do referências para atuação profissional nesse campo. cional, do tipo descritiva, a partir de um instrumento on-line; e outra
Cabe também ao Crepop identificar oportunidades estraté- qualitativa, realizada pelas unidades locais do Crepop, localizadas nos
gicas de participação da Psicologia nas políticas públicas, além de conselhos regionais de psicologia. Ressalta-se que, à época, o Siste-
promover a interlocução da Psicologia com espaços de formulação, ma Conselhos contava com dezessete unidades do Crepop nos CRPs.
gestão e execução em políticas públicas. Assim, em 2009, o conjunto de psicólogas(os) respondentes
da primeira etapa da pesquisa totalizou 302 profissionais que atua-
vam em políticas da educação básica. Faz parte da metodologia a
participação voluntária de psicólogas(os) na pesquisa, tanto na pri-
meira etapa, descritiva, como na qualitativa.

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 13 14 Conselho Federal de Psicologia
Os dados descritivos permitiram que se pudesse construir o Os relatos dos respondentes ressaltaram, assim, a necessida-
perfil sociodemográfico dos profissionais participantes que são, em de de clarificar constantemente entre os coordenadores, educado-
sua maioria, de mulheres (81,3 %), de cor branca (74,4 %), com ida- res, professores, alunos e familiares a proposta de trabalho da(o)
de maior que 30 anos (70 %), pós–graduadas (68,4 %), com expe- psicóloga(o) nesse contexto.
riência na atuação como psicólogas(os), 64,9 % trabalhavam como Observou-se também a importância da demonstração de ou-
psicólogas(os) há menos de quatro anos. tras possibilidades de ampliação da atuação na Educação Básica
O perfil nos mostra também a inserção no trabalho em políticas que superem os limites da intervenção psicoterapêutica voltadas
de educação básica das respondentes. Entre as(os) psicólogas(os) que para o atendimento individual. Muitos profissionais de Psicologia
participaram da pesquisa, algumas eram recém-contratadas (18,1 %), afirmaram que tem sido possível desenvolver práticas que não fo-
pois trabalhavam a menos de seis meses na Educação Básica. Outra in- calizam os indivíduos e sim o contexto educacional como um todo.
formação que corrobora com leitura é a de que dentre as respondentes
a maioria trabalha com Educação há menos de quatro anos (44,6 %).
Para completar o perfil profissional, a pesquisa identificou que apresen-
tavam ganhos salariais de até R$ 2.000,00 (67,9 %) e poucas(os) psicó- O Processo de elaboração de Referência Técnica
logas(os) atuavam em organizações públicas (1,3 %).
Os Documentos de Referências Técnicas são recursos que o
Os resultados da pesquisa qualitativa identificaram que as profis- Conselho Federal de Psicologia oferece às(aos) psicólogas(os) que
sionais que participaram desse estudo estão inseridas na Educação Bási- atuam no âmbito das políticas públicas para qualificação e orienta-
ca de diferentes maneiras e realizam ações bastante diversificadas para ção de sua prática profissional.
atender às demandas específicas dos locais onde atuam: existem pro-
fissionais desenvolvendo ações direcionadas à Educação Básica, à Edu- Sua redação é elaborada por uma Comissão ad-hoc composta
cação Especial/Inclusiva e na interface entre educação e saúde. E ainda por um grupo de especialistas reconhecidos por suas qualificações
há psicólogas(os) que atuam como docentes, na gestão e na coordena- técnicas e científicas, por um conselheiro do CFP, um conselheiro
ção de equipes, serviços e programas, no atendimento de alunas(os), do Comitê Consultivo e um técnico do Crepop. O convite aos es-
na orientação de alunas(os), familiares e professores, na capacitação de pecialistas é feito pelo CFP e não implica remuneração, sobretudo,
professores e educadores e na supervisão de estagiárias(os). porque muitos são profissionais que trabalham na organização da-
quela política pública específica, e recebem o convite como uma
As informações das(os) psicólogas(os) apresentadas nos relatos oportunidade de intervirem na organização da sua área de atuação
de grupo apontam que cada um desses lugares e/ou papéis tem sido e pesquisa. Nessa perspectiva, espera-se que esse processo de ela-
desenvolvidos com intervenções de trabalho que buscam dar conta das boração de referências técnicas possa gerar reflexões de práticas
múltiplas demandas e das especificidades da população atendida (alu- profissionais, que possibilite visualizar o trabalho que vem sendo
nas(os), familiares, equipes, professores e por vezes a comunidade). desenvolvido por muitas psicólogas(os) e também possa ser com-
Os dados coletados nos grupos apontam como um dos princi- partilhado, criticado e aprimorado, para uma maior qualificação da
pais desafios vividos no cotidiano desses profissionais a desvincula- prática psicológica no âmbito das Políticas Públicas.1 (CFP, 2012)
ção do papel da(o) psicóloga(o) de expectativas sobre a realização
de um trabalho clínico na Educação Básica, o que claramente não
está definido. Consequentemente, essa expectativa pode dificultar 1 Para conhecer toda metodologia de elaboração dos documentos de referências
ou inviabilizar a ampliação das ações na Educação Básica. técnicas do Sistema Conselhos/Rede Crepop, cf. Documento de Metodologia do Cre-
pop 2011.

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 15 16 Conselho Federal de Psicologia
Para construir o Documento de Referências Técnicas para a Com relação ao Documento de Referências Técnicas para a
Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica, foi formada uma Atuação de Psicólogas(os) na Educação Básica (1.ª edição), a Con-
Comissão, em 2010, com um grupo de especialistas indicado pelos sulta Pública foi realizada no período de 5 de março a 25 de abril de
plenários dos Conselhos Regionais de Psicologia e pelo plenário do 2012, o documento contou com o acesso de 276 psicólogas(os) e o
Conselho Federal. texto em consulta recebeu, ao todo, contribuições.
Assim, essa Comissão foi composta por cinco especialistas
que voluntariamente contribuíram para qualificar a discussão sobre
a atuação das psicólogas(os) na Educação Básica.
O Processo de revisão das referências
técnicas do Crepop.
O Processo de Consulta Pública As primeiras Referências Técnicas do Crepop foram lançadas
em 2008, momento histórico em que o país vivenciava avanços con-
A metodologia de elaboração de referências técnicas do Sistema
sideráveis no campo da garantia de direitos e das políticas públicas
Conselhos de Psicologia/Rede Crepop se utiliza do processo de consul-
além de uma expressiva entrada de psicólogas(os) para atuar em di-
ta pública como uma etapa do processo de referenciação e qualifica-
versos equipamentos públicos em todo o país. Ao longo dos últimos
ção da prática profissional das(os) psicólogas(os) em políticas públicas.
anos observamos mudanças em legislações, resoluções, portarias
A Consulta Pública é um sistema criado e utilizado em várias que impactaram também na atuação das(os) psicólogas. Além dis-
instâncias, inclusive governamentais, com o objetivo de auxiliar na so, a própria presença da Psicologia produz conhecimento e contri-
elaboração e coleta de opiniões da sociedade sobre temas de im- bui para este processo de modificação do campo de atuação.
portância. Esse sistema permite intensificar a articulação entre a
Tais mudanças são previstas e fazem parte do processo contínuo
representatividade e a sociedade, permitindo que esta participe da
de implementação de políticas públicas e ampliação de direitos sociais.
formulação e definição de políticas públicas. O sistema de consulta
Assim, as Referências Técnicas do Crepop precisavam acompanhar tal
pública permite ampliar a discussão, coletando de forma fácil, ágil e
movimento, isto é, foi necessário iniciar um processo de atualizações.
com baixo custo as opiniões da sociedade.
Assim, em 2017 o Crepop/CFP iniciou um amplo processo de
Para o Conselho Federal de Psicologia, o mecanismo de Con-
atualização das referências técnicas já publicadas, treze no total.
sultas Públicas se mostra útil para colher contribuições, tanto de
Um formulário de verificação foi construído (chamado “crivo”) e os
setores especializados quanto da sociedade em geral e, sobretudo,
CRPs foram convidados a contribuir. Em média cada CRP colaborou
das(os) psicólogas(os) sobre as políticas e os documentos que irão
em duas referências técnicas, mobilizando suas comissões internas,
orientar as diversas práticas da Psicologia nas Políticas Públicas.
convidando referências locais, para apresentar pontos que precisa-
Para o Sistema Conselhos de Psicologia/Rede Crepop, a ferra- vam ser atualizados em cada referência.
menta de consulta pública abriu a possibilidade de uma ampla dis-
Em seguida, o CFP convidou as comissões de especialistas que fi-
cussão sobre a Prática de psicólogas(os) em Políticas de Educação
zeram parte da elaboração primeira edição para contribuir com a atuali-
Básica, permitindo a participação e contribuição de toda a catego-
zação. Em alguns casos de desistência foi necessário que o Plenário do
ria na construção sobre esse fazer da(o) psicóloga(o). Por meio da
CFP indicasse novas(os) especialistas. Cada comissão se reuniu ao menos
consulta pública o processo de elaboração do documento torna-se
uma vez presencialmente além de realizar trabalho de forma individual.
democrático e transparente para a categoria e toda a sociedade.

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 17 18 Conselho Federal de Psicologia
Uma vez finalizado o texto pela comissão a(o) Conselheira(o) cologia foram possíveis a partir da imersão histórica em dois grandes
Federal responsável por acompanhar a atualização informou ao movimentos: o da sociedade brasileira nos rumos do processo de
Plenário do CFP, que votou a aprovação do texto. Por fim, os textos democratização e da própria Psicologia em busca de referenciais éti-
passaram por revisão (Língua Portuguesa), normalização (conforme co-políticos, em defesa de uma Educação pública, gratuita, laica e de
ABNT), diagramação e ganharam novas capas. qualidade para todos e todas. Nessa trajetória, diversas concepções
Este processo, realizado em etapas diferentes visou a garantir teóricas foram apropriadas e elaboradas na área da Psicologia em sua
ampla participação (uma vez que mobiliou todo o Sistema Conse- relação com a Educação e estarão presentes neste documento.
lhos de Psicologia CFP e CRPs) além de agregar contribuições de Embora o texto apresente concepção filosófica e epistemo-
psicólogas(os) especialistas nos diversos temas. lógica com base em diversas teorias, o que esse pretende marcar
neste documento é a defesa de uma Psicologia comprometida com
o direito de todos e todas à educação, com um sistema educacional
que promova e possibilite o acesso crítico ao conhecimento científi-
As Referências Técnicas para a Atuação co e a permanência com qualidade na escola, possibilitando assim
de psicólogas(os) na Educação Básica a emancipação humana.
O tema da educação e sua interface com a psicologia nas Po-
As Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) na Edu- líticas Públicas, pela sua relevância social, se faz presente também
cação Básica, que ora apresentamos, são fruto de discussão da categoria em vários documentos editados pelo Crepop. Como exemplos, po-
indicada no VI Congresso Nacional de Psicologia (2007)2 e sistematizada demos citar o Documento de Referência Técnica para Prática de
no Seminário Nacional do Ano da Educação: Profissão na Construção da Psicólogas(os) no Centro de Referência Especializado da Assistên-
Educação para Todos (2009),3 na Pesquisa Nacional realizada pelo Cen- cia Social - CREAS (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013b)
tro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas do Sistema que debate a importância da relação entre escola e política de As-
Conselhos de Psicologia no ano de 2009,4 da qual participaram psicólo- sistência Social para abranger a complexidade da intersetorialidade
gas(os) que atuam na área da educação em todo o Brasil, e no docu- e abarcar as demandas da população que procura esses serviços; o
mento de Contribuições da Psicologia para a Conferência Nacional de Documento de Referência Técnica para Atuação de Psicólogas(os)
Educação (CONAE, 2010).5 em Programas de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto (CON-
As reflexões e proposições para uma prática profissional da Psi- SELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2012) e em unidades de interna-
ção (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2010), que apresentam
os desafios de aproximar o trabalho socioeducativo dos adolescen-
2 Caderno de Deliberações do VI CNP. tes, alvo da política do contexto formal de educação, apresentando
3 Seminário Nacional do Ano da Educação: Profissão na Construção da Educação para
novas possibilidades de trajetórias emancipatórias.
Todos. Posteriormente, produções como o Documento Relações Ra-
4 A pesquisa foi analisada por equipe de pesquisadores do Centro de Estudos de ciais: Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) (CON-
Administração Pública e Governo da Escola de Administração de Empresas de São SELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2017) e o Documento de Refe-
Paulo/ Fundação Getúlio Vargas (CEAPG-EAESP/FGV. Contou com a participação de rências Técnicas para Atuação das(os) Psicólogas(os) em Questões
299 psicólogos e utilizou três instrumentos para obtenção das informações: questio- Relativas à Terra (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2013a)
nário disponibilizado on-line, reuniões específicas e grupos focais.
também lançam luz à questão da educação em interface com a psi-
5 Contribuições da Psicologia para a Conferência Nacional de Educação – CONAE 2010

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 19 20 Conselho Federal de Psicologia
cologia nas políticas públicas. O primeiro ressalta os aspectos de No Eixo 1, Dimensão Ético-política da Atuação da(o) Psicólo-
racismo institucional presente em espaços educacionais; o segundo ga(o) na Educação Básica, visa a analisar o contexto das políticas
discute o papel da escola na vivência social de pessoas em diversos econômicas, políticas públicas e das políticas sociais que consti-
contextos, com atenção especial ao meio rural, identificando esses tuem o campo educacional brasileiro. Destaca as dificuldades a se-
espaços como propulsores da necessidade de se pensar uma nova rem enfrentadas bem como os princípios e compromissos em que
pedagogia que contemple tais vivências. a Psicologia como ciência e profissão se pauta para enfrentamento
Esses e outros temas demarcaram o território frutífero da re- aos desafios educacionais.
lação entre psicologia e educação no cenário das políticas públicas. No Eixo 2 – A Psicologia e a Escola, o documento ressalta as
Este documento, que ora apresentamos, concretiza esse ali- contradições, dificuldades e desafios da vida cotidiana escolar, en-
nhamento e fornece diretrizes relevantes para profissionais que raizando a discussão na escola como realidade social e destacando
atuam em interface com a educação, em especial, no campo da os aspectos sociais, institucionais, relacionais e políticos que a cons-
educação básica, promovendo novos olhares e possíveis práticas tituem como importante instrumento de socialização do conheci-
diante da realidade identificada nesse contexto de atuação. mento e de valores sociais.
As Referências Técnicas têm por objetivo subsidiar a atuação No Eixo 3 – Possibilidades de Atuação da(o) Psicóloga(o) na
de psicólogas(os) na Educação Básica pautando-se nas diretrizes Educação Básica, o Documento apresenta as principais áreas em
da Política Nacional de Educação e nos preceitos teóricos e éticos que os profissionais centram suas práticas, a saber: A(o) psicólo-
da Psicologia. Com este documento, pretende-se contribuir para a ga(o) e o projeto político-pedagógico; a intervenção da(o) psicólo-
melhoria da qualidade da Educação de maneira que as práticas psi- ga(o) no processo de ensino-aprendizagem; o trabalho na formação
cológicas favoreçam a reflexão e a abordagem crítica dos desafios de Educadores; na educação inclusiva e com grupos de alunos
que temos a enfrentar no contexto educacional brasileiro. Por fim, no Eixo 4, Desafios para a Atuação da Psicologia na
A comissão de especialistas ad-hoc, que elaborou o texto Re- Educação Básica, o Documento ressalta os princípios para uma
ferências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) na Educação atuação na Educação Básica e destaca os principais aspectos que
Básica, optou por elaborar um texto com uma linguagem que busca devem ser considerados em uma atuação em nível institucional nas
a aproximação com a categoria. Composta exclusivamente por psi- redes de ensino.
cólogas, a comissão se inclui no diálogo sobre a atuação na Educa-
ção ao apresentar um texto na primeira pessoa do plural, refletindo
também sobre o seu papel como psicólogas da área.
Este documento, vinculado à área da Psicologia Escolar e Edu-
cacional, circunscreve-se ao campo da Educação Básica, Educação
Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio — e está estruturado
em quatro eixos intitulados: Eixo 1 - Dimensão Ético-política da Atua-
ção da(o) Psicóloga(o) na Educação Básica; Eixo 2 – A Psicologia e
a Escola; Eixo 3 – Possibilidades de Atuação da(o) Psicóloga(o) na
Educação Básica; Eixo 4 – Desafios para a Atuação da Psicologia na
Educação Básica.

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 21 22 Conselho Federal de Psicologia
Contribuições da Psicologia para a Conferência Nacional de Educa-
EIXO 1: DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA ção – CONAE 2010 (CFP, 2010).8 A Educação é um direito garantido
pela Constituição Brasileira de 1988 em seu artigo 205. É um direito
DA ATUAÇÃO DA(O) PSICÓLOGA(O) humano, subjetivo, fundamental na constituição das relações so-

NA EDUCAÇÃO BÁSICA
ciais, políticas, culturais e econômicas.9
A análise da história da educação brasileira, do sentido da es-
cola e do sistema de valores presentes nos grupos populares do Bra-
sil urbano, realizada por Fonseca (1994), destaca a importância da
reflexão sobre a escola hoje, bem como sobre todos os elementos
presentes em seu cotidiano. A escola constitui-se espaço amplo de
A presença de psicólogas(os) nos espaços da Educação Bá- socialização que busca favorecer experiências e a produção de co-
sica tem protagonizado polêmicas de diversas naturezas quer na nhecimento para a vida, integrando crianças e jovens às principais
Psicologia, quer na Educação. Polêmicas cujas raízes são históricas redes sociais importantes para sua formação.
e fundam-se em práticas de ambas as áreas relacionadas ao proces- Contudo, a escola compreendida como instituição que produz
so de ensinar e aprender. A proposta deste eixo é trazer elementos e reproduz as contradições da sociedade na qual se insere, nem
para uma reflexão crítica sobre o contexto geral da Educação e o sempre vem assegurando o exercício de uma cidadania ativa. Além
projeto ético-político da Psicologia, base sobre a qual construímos disso, considerando os processos de vida que se constituem no con-
referências como propostas orientadoras ao exercício profissional vívio e nas relações, condição para o ensinar e o aprender, percebe-
na Educação Básica. mos a importância de trabalhar os conflitos e a violência que muitas
Propor Referências para a Atuação de Psicólogas(os) na Edu- vezes são produzidos nas práticas institucionais.
cação Básica, em diversos contextos do campo da Educação, é
constituir um conjunto de princípios e diretrizes cuja concepção de
Educação, de Psicologia e de Psicologia na Educação encontra-se Declaração de Hamburgo sobre Educação de Adultos (1997);
expressa na Carta de Brasília – Psicologia: Profissão na Construção Compromisso de Educação para Todos – Dacar (2000);
da Educação Para Todos (2009),6 nas Normativas Nacionais e Inter- Declaração de Cochabamba - Educação para Todos (2001);
nacionais para a Educação Básica (marcos lógicos e legais)7 e nas Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos -UNESCO (2006);
Plano Nacional de Educação (2014/2024);
Base Nacional Comum Curricular (2017);
6 Documento produzido ao final do Ano Temático da Educação, promovido pelo Relatórios da Conferência Nacional de Educação 2010, 2014 e 2018;
Conselho Federal de Psicologia. Marcos Legais: Constituição Federal/1988;
Marcos Legais: Constituição Federal/1988;
7 Cf.: MARCOS LÓGICOS: Lei 9394/96 (Diretrizes e Bases Educação Nacional, alterada em 2017 pela Reforma
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); do Ensino Médio);
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança - ONU 1989; Resolução CNE 02/15 (Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação
Convenção Internacional relativa à luta contra a Discriminação no Campo do Ensi- inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica
no (1960); para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a Formação continuada).
Recomendações relativas à Condição Docente (1966);
Declaração Mundial sobre Educação para Todos – Declaração de Jomtien (1990); 8 - Contribuições da Psicologia para a Conferência Nacional de Educação – CO-
Declaração de Nova Delhi sobre Educação para Todos (1993); NAE 2010 .
Plano de Ação da Declaração de Santiago (1998); 9 Sobre a natureza e a especificidade da Educação, cf. SAVIANI, 2015.

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 23 24 Conselho Federal de Psicologia
Não se pode compreender a Educação sem inseri-la no con- Conhecer as direções éticas e políticas que norteiam o coti-
texto das políticas econômicas, das políticas públicas e das políti- diano escolar passa a ser prioridade para a ação de psicólogas(os).
cas sociais, que lhe dão suporte, sendo fundamental um cuidado Questões como: escola para quem, escola para quê, e como se
especial para que essas terminologias não sejam incorporadas ao engendram as práticas atravessadas por essas implicações no co-
cotidiano de trabalho de profissionais, em diferentes campos, sem tidiano são fundamentais e devem ser debatidas por profissionais
serem bem compreendidas, analisadas e debatidas. que atuam no campo da Educação. A construção de um projeto
As políticas educacionais, que orientam as atuações, concep- político-pedagógico emancipador com a comunidade e todos os
ções e modelos de gestão pedagógica nas escolas brasileiras, estão profissionais da escola é um desafio do trabalho que se inicia pela
também articuladas com orientações e programas mais amplos re- construção de um campo de escolhas compartilhado. A prática par-
lativos ao modelo de produção capitalista vigente no mundo con- ticipativa deve ser gradativamente apropriada pelos profissionais da
temporâneo. E tem sido muito difícil a construção de um projeto escola, pela comunidade, pelas famílias e crianças (PENTEADO &
político-pedagógico que esteja focado no desafio de tomar a escola GUZZO, 2010).
como um espaço possível de uma inserção social emancipadora À Educação, almejamos a efetivação da prática democrática, o
(PENTEADO & GUZZO, 2010). Isso se dá exatamente porque a ideo- investimento de recursos orçamentários que garanta a qualidade da
logia da globalização, sustentada pela ordem econômica hegemôni- escola pública, a garantia dos direitos fundamentais de estudantes e
ca no contexto mundial, dissemina-se nas práticas pedagógicas tor- profissionais da educação, o respeito ao processo de aprendizagem
nando-as uma ferramenta importante no processo de subjetivação e desenvolvimento de todas as crianças, adolescentes e jovens, in-
que funciona na lógica da acumulação do capital, o que mantém o cluindo aquelas(es) que necessitam de atendimento educacional
injusto sistema de classe (MESZÁROS, 2005). especializado, estudantes indígenas e de comunidades tradicionais,
Apesar de haver amplas diretrizes objetivando uma Educação bem como aquelas(es) que cumprem medidas socioeducativas.
Básica para todos (EFA, 2000), o cotidiano da escola pública brasilei- À Psicologia, almejamos a construção de um conhecimento
ra, em sua complexidade, expressa as condições pragmáticas sobre científico crítico, cuja relação teoria e prática seja indissociável e
as quais se constituem as políticas educacionais. Nesse sentido, a que se comprometa e se responsabilize, social e politicamente, com
escola pública brasileira se configura como um espaço instituído no a democratização da sociedade, visando a responder às questões
modelo econômico que insere a Educação como uma importante que afetam diariamente a vida das pessoas: exclusão social, violên-
dimensão para a implantação de um projeto neoliberal de socieda- cia, discriminação, intolerância, desigualdade, dentre outras.
de, ditando muitas das políticas educacionais, principalmente a par- À Psicologia Escolar e Educacional almejamos um projeto
tir dos anos 1990. O texto de Kruppa (2001) ressalta a ampliação da educacional que vise a coletivizar práticas de formação e de quali-
interferência do Banco Mundial na Educação Brasileira para atender dade para todos; que lute pela valorização do trabalho do professor
aos projetos de educação para todos — um ordenamento sistêmico e constitua relações escolares democráticas, que enfrente os pro-
de todos os níveis de ensino com claros compromissos envolvendo cessos de medicalização, patologização e judicialização da vida de
o capital privado. A Educação, com o advento do capitalismo, torna- educadores e estudantes; que lute por políticas públicas que possi-
se uma mercadoria e não um direito de todos. Diferenças entre o bilitem o desenvolvimento de todos e todas, trabalhando na direção
sistema público e privado passam a se constituir como um verda- da superação dos processos de exclusão e estigmatização social.
deiro “apartheid” da educação com graves consequências para as
Na perspectiva ético-política deste documento, se faz neces-
camadas populares.
sário demarcar posicionamentos em defesa da não neutralidade da

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 25 26 Conselho Federal de Psicologia
educação, da valorização e autonomia docente, da escola como es- ções diretas em todos os níveis e cargos de representação política
paço privilegiado para reflexões sobre relações de gênero, sexuali- e rearticulação dos partidos políticos. Além disso, no plano políti-
dade e relações étnico-raciais, afirmando as contribuições do traba- co, lutava-se por uma nova Constituição que retirasse do cenário
lho da psicologia nestes assuntos e na desconstrução de violências, legislativo o que se denominava de “entulho autoritário”, oriundo de
tais como o machismo, a LGBTfobia, o racismo, sexismo. mais de vinte anos de Ditadura Militar no Brasil.
A discussão referente à temática das políticas públicas em A Constituição de 1988, denominada “Constituição Cidadã”,
educação é recente no campo da Psicologia Escolar e Educacional abre caminhos para a institucionalização dos espaços democráti-
e é de fundamental importância para a atuação do profissional da cos, a recuperação de direitos civis e sociais e centra- se em dois
área. Essa discussão só tem sido possível à medida que a Psicologia princípios básicos: a descentralização do poder do Estado e a parti-
e, mais especificamente, a Psicologia Escolar e Educacional passa- cipação social ampla da sociedade civil nas decisões políticas. A ela
ram a ser questionadas nas suas bases epistemológicas e nas suas seguem-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), a Decla-
finalidades. Para tanto, no âmbito das críticas à Psicologia Escolar e ração de Educação para Todos (1990), a Declaração de Salamanca
Educacional dos anos 1980, era importante: a) explicitar as princi- (1994) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996),
pais filiações teóricas das práticas psicológicas levadas a efeito na a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (2007)
escola; b) analisar os métodos que as(os) psicólogas(os) vinham e o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei n.° 13.005/2014) e
empregando e c) criticar as explicações sobre as dificuldades es- apenas para citar algumas das mais importantes iniciativas institu-
colares centradas nas crianças e em suas famílias, bem como a for- cionais de introdução de mudanças estruturais nas relações sociais
ma restrita como a Psicologia interpretava os fenômenos escolares e civis para o avanço dos direitos sociais e humanos. Portanto, é no
(PATTO, 1984). Essas críticas possibilitaram trazer para o interior da bojo da redemocratização do Estado, da descentralização do poder
prática psicológica questões, como a serviço de quê e de quem es- para os Municípios e Estados, que a Educação passa a ter autonomia
taria a Psicologia? Tais críticas consideravam que a maneira adapta- para planejar, implementar e gerir suas políticas educacionais (NE-
cionista dessa prática na Educação avançava pouco no sentido da NEVÉ & SOUZA, 2006; CHAUI & NOGUEIRA, 2007; SAVIANI, 2008).
melhoria da qualidade da escola e dos benefícios que esta escola A partir das discussões e críticas presentes na Psicologia em sua
deveria estar propiciando a todos, em especial, às crianças oriundas relação com a Educação, inaugura-se uma década de pesquisas que
das classes populares. Iniciava-se, portanto, na trajetória da Psicolo- se voltam para o novo objeto de estudo da Psicologia: o fracasso es-
gia, um conjunto de questionamentos a respeito: a) do papel social colar. Discussão iniciada ao final dos anos 1980, o tema do fracasso
da Psicologia como Ciência e Profissão e da Psicologia no campo escolar passa a centralizar questões que envolvem os estudos sobre a
educacional; b) dos pressupostos que norteavam a construção do escola, tanto no campo da Psicologia quanto no campo da Educação
conhecimento nesta área, bem como suas finalidades em relação à (PATTO, 1990; ANGELUCCI, KALMUS, PAPARELLI & PATTO, 2004).
escola e àqueles que dela participam.
Temas como: vida diária escolar, práticas educacionais, rela-
Esse processo de discussão no interior da Psicologia vai to- ções institucionais na escola, processos de estigmatização escolar
mando corpo em um momento político nacional propício para a dis- (COLLARES & MOYSÉS, 1998), diferenças de classe social e de gênero
cussão teórico-metodológica sob uma perspectiva emancipatória e na escola (NEVES & ATHAYDE, 1998), o papel das avaliações psicoló-
enraizada na realidade social. Pois, nesta mesma década, nos anos gicas para as crianças que apresentavam dificuldades de aprendiza-
1980, intensificaram-se os movimentos sociais pela redemocratiza- gem (MACHADO, 1996), instrumentos de diagnóstico e de avaliação
ção do Estado brasileiro, tais como movimentos de trabalhadores dos processos escolares, o papel da(o) psicóloga(o), a identidade
metalúrgicos, movimentos de professores, movimento pelas elei-

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 27 28 Conselho Federal de Psicologia
profissional (ANDALÓ, 1993) e o lugar da Psicologia como ciência em públicas em educação, tais como CAMPOS, FACCI & SOUZA, (2018);
uma sociedade de classes (BOCK, 2002) foram pesquisados e pro- BALL & MAINARDES (2011); LIBÂNEO (2016); LIBÂNEO & FREITAS
blematizados pelas(os) psicólogas(os) e estudiosos da área. Portanto, (2018); LIBÂNEO & OLIVEIRA (2012).
essa discussão insere um novo eixo de análise do processo de esco- Dessa forma, é necessário que as(os) profissionais da psico-
larização: o papel das políticas públicas educacionais na constituição logia se envolvam também no controle social das políticas públicas
do dia a dia escolar e as atividades de ensinar e aprender desenvolvi- de educação como, participando dos conselhos municipais e esta-
das nas relações entre educadores e educandos. duais, visando a a garantia dos recursos fundamentais para o direito
Assim, pesquisar a escola, as relações escolares e o processo à uma educação de qualidade.
de escolarização a partir dos anos 1980 significou pesquisar uma es- Após essa breve exposição sobre a dimensão ético-política
cola que foi e está sendo atravessada por um conjunto de reformas da(o) psicóloga(o) na educação básica, no próximo eixo nos dete-
educacionais, fruto de políticas públicas no campo da educação es- remos em discorrer sobre o cotidiano da escola.
colar. Colocar em análise as políticas públicas para a educação é
problematizar os princípios, os valores e as condições institucionais
presentes no cotidiano da escola em que participam todos os envol-
vidos na comunidade escolar.
Atualmente, trabalhos sobre o tema estão sendo publicados e
as pesquisas têm mostrado algumas dificuldades que precisam ser
enfrentadas principalmente no que tange à implantação de políticas
públicas em educação, tais como: a) manutenção de formas hie-
rarquizadas e pouco democráticas de implementação das políticas
educacionais; b) desconsideração da história profissional e política
daqueles que fazem o dia a dia da escola; c) implantação de polí-
ticas educacionais sem a necessária articulação com a devida in-
fraestrutura para sua real efetivação; d) manutenção de concepções
preconceituosas a respeito de estudantes e suas famílias, oriundos
das classes populares; e) dificuldade de serem criados espaços de
debates sobre as reais finalidades das políticas educacionais imple-
mentadas; f) implantação tecnicista da política leva à alienação do
trabalho pedagógico (SOUZA, 2011).
É importante ressaltar ainda que, embora denominadas de
políticas públicas, muitas das ações no âmbito dos estados e mu-
nicípios não passam de programas de governo e que, em muitos
casos, sofrem devido à falta de continuidade. Principalmente, a par-
tir dos anos 2000, trabalhos sobre o tema vem sendo publicados e
as pesquisas tem mostrado algumas dificuldades que precisam ser
enfrentadas principalmente no que tange a implantação de políticas

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 29 30 Conselho Federal de Psicologia
indisciplina pareciam não ser alvo de grandes preocupações. Com
EIXO 2: A PSICOLOGIA E A ESCOLA efeito, podemos abordar as principais questões da escola por meio
da articulação de vários aspectos, mas que trazem com eixo comum
a sua contextualização, ou seja, a escola não está isolada do mo-
mento histórico, político, social e cultural de uma sociedade.
O primeiro aspecto a destacar é o de moralização das insti-
O cotidiano da escola se apresenta à(ao) psicóloga(o) povoado tuições sociais até a década de 1960 e a militarização do cotidiano
de fatos a serem explicados e contradições que permeiam o ensinar nos anos subsequentes que deram suporte às práticas de disciplina-
e aprender, interferindo na forma como o profissional executa seu mento de forma generalizada, não produzindo muitas discussões no
trabalho. Quase sempre escutamos que as(os) psicólogas(os) vêm interior das escolas. Um segundo aspecto é que, nessa etapa de nos-
se deparando com muitos impedimentos para desenvolver ações sa sociedade, encontramos ainda uma pequena heterogeneidade
nas escolas, principalmente, quando se trata da rede pública de en- na população escolar, considerando que a expansão quantitativa do
sino por sua amplitude e complexidade. Frente à demanda de reso- ensino é bem recente entre nós, o que veio facultar a coexistência
lução imediata de questões, qualquer proposição de pensar o que de uma população bastante diferenciada em termos de experiên-
se passa nas salas de aula, nos conselhos de classe, nas reuniões cias socioculturais e o surgimento de modos mais sutis de exclusão.
com professores e familiares, nas atividades rotineiras implicadas Finalmente, a sociedade conta hoje com uma juventude menos te-
com a formação, pode gerar um olhar de descrédito, o que vem merosa de punições, sentimento por intermédio do qual a disciplina
fomentando nas(os) psicólogas(os) a percepção da escola como se impunha nos momentos precedentes e com instituições sociais
uma instituição fechada a mudanças. Como acessar a dimensão de mais fragilizadas frente às rápidas transformações que a educação
complexidade da escola, a qual não se constitui somente em um não consegue acompanhar, acrescendo-se, há certo descrédito nos
edifício, mas sim em um território existencial em que a diversidade meios formais, como no caso da escola, para a ascensão social.
de vínculos e de ações faz diferença facultando múltiplas possibi- A escola, hoje, como um sistema aberto, se constitui em um
lidades? Como analisar as contradições presentes em uma escola mercado de serviços, projetos e produtos para seus usuários. Na es-
que se propõe a ensinar ao mesmo tempo que, objetivamente, nem cola “mercado” se multiplicam as práticas de avaliação dos produtos
sempre tem condições para cumprir tal tarefa? para o controle de qualidade e otimização dos processos, incluindo
No período contemporâneo, as instituições sofrem mudanças as avaliações diagnósticas, consideradas práticas de “segurança” que
e entram em crise e a escola não está longe das tensões sociais que identificam os indivíduos e definem as ações do momento seguin-
apontam para um mundo de fluidez, instantaneidade e consumo. te. Frente a todas as incertezas produtoras de medos, indecisão e
Qual a importância da escola em meio a tantas tecnologias de infor- agitação, a medicalização tem sido um procedimento generalizado
mação e de comunicação? A criança quer estar na escola? Aposta- funcionando como mantenedor da ordem produtora de exclusões e
mos que sim, porém é importante criar indagações que nos remetam violação do direito à educação. Por medicalização, entende-se:
às polêmicas e conflitos de nossa sociedade presentes na escola.
Não é muito difícil encontrarmos certo saudosismo em rela- o processo por meio do qual as questões da vida
ção às escolas de meados do século passado, quer em relação à social — complexas, multifatoriais e marcadas
formação moral, quer à qualidade do ensino de conteúdos, pois ne- pela cultura e pelo tempo histórico — são reduzi-
las a inquietação com o aprendizado, as mudanças aceleradas e a das a um tipo de racionalidade que vincula artifi-

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 31 32 Conselho Federal de Psicologia
cialmente a dificuldade de adaptação às normas diano da sala de aula, da escola, favorecendo a experimentação de
sociais a determinismos orgânicos que se expres- outro tempo menos acelerado, mas talvez mais inventivo, para dar
sariam no adoecimento do indivíduo.10 conta do que não conhecemos, do que suscita problemas porque
foge às expectativas e à ordem vigente.
Se os rituais da escola são construídos a partir de modelos do bom
A escola é um modo de organizar a formação, de pensá-la e de
estudante, do ritmo adequado para a aprendizagem, do comportamen-
fazê-la, é uma organização possível entre outras ainda não pensadas
to disciplinado, quando nos deparamos com a diversidade de vidas, de
e não realizadas. Ela se apresenta como estrutura, previsibilidade,
modos de inserção das famílias e de seus arranjos para sobreviver, da
organograma que estabelece como deve ser o processo de ensino.
composição das turmas, dos diferentes estágios em que os estudantes
Porém, quando falamos de escola, falamos de padrões, de hábitos
chegam e de seus modos de compreensão das matérias, o que fazer?
e de papéis a desempenhar que não são neutros, são escolhas que,
mesmo não sendo discutidas e selecionadas com clareza reverbe- Quem é o especialista que vai fazer a mágica de transformar o
ram as tradições e os interesses políticos de controle, os quais se diverso em homogêneo? O múltiplo em um? De estabelecer as normas
naturalizaram em uma representação e em uma rotina institucional. disciplinares? Caminho contrário aos das práticas democráticas. Este
Uma organização é atravessada por instituições, por práticas e valo- é o lugar que nos aguarda quando chegamos ao mercado de traba-
res que servem de referência aos atos que a atualizam diariamente. lho, instituições que preservam tradições verticais, mesmo quando a
legislação é mais favorecedora de processos menos centralizados. O
Uma escola, quando organiza seu cotidiano de trabalho, afir-
desafio é produzir um deslocamento do encargo médico-assistencial
ma referenciais de normalidade, de certo e errado, de “quem sabe”
que circunscreve as práticas da(o) psicóloga(o), lugar que podemos
e de “quem não sabe e deve aprender”, de “como se deve se com-
considerar impossível de habitar, uma vez que, sem mover padrões ins-
portar”. Consolida valores, modos, tempos e marca lugares, classifi-
titucionais não há como mudar relações na formação. A perspectiva,
ca e impõe certa ordem ao mesmo tempo que cria o que escapa a
então, é a de deslocar as demandas existentes, ou seja, de trabalhar no
esse padrão, o que é avesso, o que é desordem, seguindo preceitos
sentido da produção de novas demandas, criar novos espaços de dis-
de uma ideologia proposta pelo capital. Quase nunca problemati-
cussão e compreensão da realidade que povoa o espaço intraescolar.
zamos isso na escola, dificilmente se dá visibilidade às instituições
Como favorecer a multiplicidade de narrativas do/no cotidiano para a
que estão em jogo nas relações escolares. As equipes da educação
produção de outras maneiras de entender, sentir e agir na formação
trabalham cada vez mais de forma acelerada, vivendo os efeitos das
escolar? “Não basta dar a palavra” diz Félix Guattari, sendo necessário
práticas coletivas que tecem as tramas, que sistematizam e naturali-
criar condições para que o exercício do pensar as práticas se instale
zam formas de agir, sem conseguir entender o que se passa e como
(LOURAU, 2004). A luta da(o) psicóloga(o) é a de sustentar um campo
criar alternativas às impotências cada vez maiores para muitos pro-
de indagações que dê tempo para que os educadores possam se deslo-
fessores, estudantes, familiares e psicólogas(os).
car também dos seus lugares marcados na dicotomia ensinar X apren-
Então, quando dizemos que a(o) psicóloga(o) quer trabalhar a der, na sensação de impotência frente às condições, na desistência de
favor da saúde mental, da formação e da melhoria de condições de transformações do cotidiano. Para isso é fundamental contribuir para
trabalho, isso diz respeito ao acolhimento das imprevisibilidades, às a produção de novas perguntas que problematizem as relações que
tentativas de colocar em análise coletiva o que é produzido no coti- focam as explicações no indivíduo, considerado causas “em si” das
questões geradoras de sofrimento, em que não há nada a fazer. Logo,
perguntar sobre as situações, as circunstâncias, os valores, as condi-
10 Fórum Sobre Medicalização da Educação e Saúde, 2015. ções histórico-sociais, as práticas que constroem o dia a dia é o que

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 33 34 Conselho Federal de Psicologia
movimenta o trabalho, potencializando uma rede partilhada de ações/ cada criança singular e das ações preventivas. Uma luta permanente
reflexões. Nesse movimento, profissionais de várias áreas, com diver- para escapar do lugar de saber hierarquizante em relação aos profes-
sos conhecimentos das ciências produzidas pelos homens são convi- sores e destes com os estudantes e familiares, que ao invés de pro-
dados a participar dessa reflexão e elaborar medidas que contribuam porcionar conhecimento, conduzem a um descompasso entre aque-
para o enfrentamento das questões postas no cotidiano da escola. le que quer ensinar e aquele que quer aprender. Não há respostas de
A chegada das(os) psicólogas(os) e demais especialistas na uma vez por todas, percurso pronto para o outro executar, a questão
escola se dá por uma estrutura institucional hierarquizada que dis- é o que convida a equipe a pensar o trabalho realizado no cotidiano.
tribui responsabilidades e confina cada um num determinado lugar. Entrar em interlocução com aqueles com quem vamos trabalhar
Especialistas e professores nem sempre têm conseguido produzir é um desafio a novos arranjos, sejam eles com especialistas e profes-
uma rede potente para pensar as práticas escolares, indagar sobre sores, sejam com as crianças e familiares, que possam movimentar a
a singularidade de um cotidiano nas suas ações para mudar a vida escola no sentido de promover o desenvolvimento de todos os envolvi-
no que ela os desafia. Professores sofrem e especialistas também, dos no trabalho pedagógico. Se nos aproximamos de uma escola para
ambos encurralados na estrutura rígida das formações bancárias, dar solução aos problemas, se aceitamos tal lugar, entramos na trama
como dizia Paulo Freire (1983) na década de 1960, e não é só na que amarra o cotidiano nas questões postas. Reduzimos a atenção, a
organização das escolas ou do sistema educacional que a cristaliza- sensibilidade e os ensaios para a criação de um campo argumentativo,
ção se dá, senão dentro de cada um, exigindo eficiência, performan- território de experimentação de outros possíveis e circulamos no esta-
ce e agilidade no desempenho das prescrições de seu papel. belecido que levou à constituição dos impasses.
Nessa tradição hegemônica, o que sobra a tais parâmetros en- Uma inserção para mudanças requer nos deslocarmos do lu-
rijecidos em nós e entre nós? Sobra o conhecimento dito informal e gar da eficiência das soluções para problematizar, potencializando
impróprio para um exercício profissional competente, sobra um “jeiti- outras perguntas e uma formação que deixa de ser da criança para
nho” que o professor dá para ir em frente, construindo arranjos entre ser de todos, inclusive da(o) psicóloga(o). O trabalho é coletivo e
programas oficiais e circunstâncias existenciais que não têm visibili- toda escola tem que ser envolvida nesta busca de alternativas, o pro-
dade e nem consistência frente à dita “incapacidade” em fazer cum- fessor tem que ser valorizado, os pais necessitam ser ouvidos porque
prir regras no tempo e no espaço especificados. São esses fatores tra- têm muito o que falar sobre a escola e a educação, e a equipe pe-
duzidos em faltas — falta de formação do professor, falta de interesse dagógica se constitui em um alicerce para uma prática pedagógica
da família, falta de atenção do estudante, falta de uma infraestrutura que prime pelo desenvolvimento das potencialidades. Certamente
que ofereça condições para o desenvolvimento de práticas que pro- não faremos isso se não ampliarmos nossa cultura educacional, se
movam a apropriação do conhecimento —, transformados em dados não procurarmos nos inteirar das polêmicas da formação e se não
e escores, que servem para contabilizar o fracasso escolar, ora cen- formos preparados para compreender e viver o cotidiano da escola.
trado na criança, ora na equipe educadora, incluindo os especialistas. As práticas coletivas de produção de subjetividade se apre-
No entanto, o que possibilita a(o) psicóloga(o) estar no cotidia- sentam para nós como estratégia de interferência no processo edu-
no de uma escola para trabalhar com os educadores não é a quan- cativo, levando em conta que os sujeitos, quando mobilizados, são
tidade de respostas bem sucedidas que ela(ele) tem para resolver capazes de transformar realidades, transformando-se a si próprios
problemas, mas sim o que pode contribuir para manter em exercício nesse mesmo processo.
redes de atenção à vida, redes que foquem as potencialidades dos Do mesmo modo, podemos dimensionar o conceito de demo-
indivíduos, nas ações de acompanhamento do desenvolvimento de cracia entendendo-o como política pública, ou seja, de interferên-

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na educação básica 35 36 Conselho Federal de Psicologia
cia coletiva, de ação de todos exercida nos movimentos sociais, nas desigualdade. Isso pode ser fácil de compreender;
organizações de representação de classes e também no cotidiano mas não é uma coisa simples de executar.
de vida e no trabalho, nas instituições sociais, possíveis campos de
fermentação das lutas, como é o caso das escolas. Rocha (2001)
evidencia que a demanda por psicólogas(os) para o atendimento ou Os discursos e as ações que tendem à homogeneização vincu-
encaminhamento massivo das crianças na escola só se dá quando ladas às políticas públicas caminham no sentido de equalização do
prepondera a luta por mecanismos de controle: diverso, ou seja, de dar instrumentos para que ele se aproxime do
padrão, da norma, deixando as práticas e circunstâncias escolares
fora das análises. Veiga-Neto ressalta que qualidade, nessa perspec-
O especialista só entra em cena quando a escola tiva, será entendida e avaliada como o esforço ou o interesse “do
se cristaliza em uma pluralidade de leis e abando- diferente” em atingir os escolares considerados “normais”, reafir-
na o enfrentamento do coletivo nas suas divergên- mando o modelo.
cias, enfraquecendo a capacidade de negociação Mas o que seria “o diferente”? A princípio podemos dizer que
e os vínculos que tecem a rede social. É importan- é “o esquisito”, “o aluno especial”, “o que foge muito ao padrão
te perceber que tensões e conflitos estão sempre estabelecido”. Nesse caso, denominar o estudante de “o diferente”,
presentes e representam o investimento dos sujei- dando essência a um corpo, significa que ele escapa às expectati-
tos na vida daquela coletividade, obrigando a lidar vas. Todavia, divergindo desse olhar instituído, podemos, ao invés
com as turbulências que se produzem a cada mo- de falar “do esquisito”, falar de esquisitices, e aí estaríamos falando
mento. É do difícil convívio com as inquietações e de cada um de nós, de todos nós. Quando a escola é um lugar para
com as diferenças que a solidariedade se engen- qualquer um? Quando a(o) psicóloga(o) pode contribuir para a in-
dra como sentido e ação comum que rompem tensificação da luta diária para acolher nossas esquisitices? Quando
com o isolamento (ROCHA, 2001,p. 213).
pode compreender a luta de classes presente na sociedade capita-
lista? Fazer diferença na rotina? Tais perguntas não podem sair de
Assim, evitando os riscos de reducionismos quando se trata cena, pois elas nos auxiliam a sustentar polêmicas e análises sobre
das discussões que atravessam as políticas públicas, consideramos a prática pedagógica e também sobre as condições sócio-histórico
que a formação e o exercício profissional da(o) psicóloga(o) escolar -institucionais que a circunscreve.
e educacional que trabalhe a favor de uma participação democráti- A sociedade contemporânea sofreu um encolhimento da orga-
ca junto à comunidade escolar, implicam a polêmica da questão da nização pública, passando a ser vivida na ampliação do mundo pri-
diferença. E, no que tange às dimensões de análise e de luta, Veiga- vado. Em muitas escolas, a sala de professores virou um corredor de
Neto (2005, p. 58) introduz importantes relações: passagem ou mais uma sala de aula, o tempo do recreio diminuiu, o
que significa que os locais e tempos de encontro “fora de controle”
estão sendo suprimidos em função da quantidade de estudantes e de
[...] diferença não é antônimo de igualdade. Nós aulas, e isso traz efeitos que não podem estar fora de foco.
queremos a igualdade, mas ao mesmo tempo nós
O trabalho nas instituições implica atenção e cuidados, não
queremos manter as diferenças. O contrário de di-
prioritariamente aos indivíduos, mas às redes interna e externa que
ferença é a mesmice, o contrário de igualdade é a
os tensionam. Isso, para as(os) psicólogas(os), implica conhecer
mais sobre educação, sobre os ciclos, sobre as histórias das lutas por

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na educação básica 37 38 Conselho Federal de Psicologia
mudanças e sobre os modos como essas mudanças ganham forma ca médica que nos atravessa vem delimitando papéis e funções na
de leis, as quais, muitas vezes, não são identificadas pelas(os) edu- efetivação de medidas para as velhas urgências e, que bloqueiam
cadoras(es) como resultado de seus movimentos e reivindicações. o pensamento, pois requer outro tempo de ação. O que vemos no
Compreender e atuar na complexidade do cotidiano escolar não campo de trabalho na atualidade é que, diante das urgências e da
tem sido tarefa fácil se a criança e o jovem são vistos isoladamente, falta de tempo para conversar, as cenas se repetem e a rotina tem
considerados na qualidade de portadores de diferentes carências e sido passar o problema adiante (encaminhamento), culpabilizar (a
patologias, o que se acentua, nos casos das classes populares, com si próprio, às crianças, aos familiares, ao sistema), lamentar-se (so-
as questões sobre violência e riscos. Tem-se clareza que nem todos frer, adoecer, licenciar-se). Quando a potência de interferir é fragi-
os indivíduos têm acesso aos bens materiais e culturais de forma lizada traz como efeito a perda do sentido das práticas e a pouca
igualitária em uma sociedade capitalista. implicação com o processo de trabalho.
Se vivemos mal o espaço público, as misturas, as diferenças, Os desafios apresentam-se como algo da ordem do inusitado,
como trabalhar com coletivos, acentuando o caráter público das constituído entre saberes e experiências que emergem no curso da
ações? Público não é ser espectador, mas refere-se à abertura de es- ação. A rotina dá lugar à imprevisibilidade, acolhendo o que não
paço polêmico para as práticas, o que implica outro tempo. É tornar está em nossas expectativas. Sem polêmica não temos como tensio-
público o que se faz, são as trocas que fazem circular ideias e poten- nar as instituições em jogo. Somos diversos e vivemos situações de
cializam outras práticas. Isso é uma questão para todos os implica- forma singular. E o desafio de outro uso do tempo e do espaço que
dos com a formação. Diferenças não são características, mas efeitos não o da competência entendida como performance, aceleração,
de diferenciação, envolvendo, portanto, outro modo de pensar e de produtividade é um arejamento, porque esgarça os limites dos de-
fazer formação, que fale de movimento, do que vai se modificando terminismos nos situando em um campo de experimentação entre
no percurso em nós e nas relações a partir de nós (ROCHA, 2008). ensinar e aprender, território fértil para a invenção de novas ideias,
Se uma primeira questão aponta para a desconstrução dos de outros mundos.
dualismos que aprisionam, a segunda está na criação permanente Os fundamentos teóricos elaborados na Psicologia, ferramen-
de dispositivos para um campo de experimentação, algo que afete, ta de trabalho do profissional, juntamente com o conhecimento da
que nos afete, que implique a formação de um comum que se dá rotina da escola, da prática exercida, entre outros fatores, servirão
por contágio. (PELBART, 2008) Como seria um conselho de classe de base para pensar formas de superar determinismos sociais que
vivido como uma oficina-dispositivo, um laboratório que avalia os impedem o entendimento da complexidade que envolve as relações
encontros das turmas no bimestre anterior dando as condições para estabelecidas na escola na busca de sua função, a de levar os alunos
o próximo bimestre? Que circunstâncias locais são necessárias para a se apropriarem dos conhecimentos produzidos pela humanidade.
que isso aconteça? Essa é uma boa pergunta que nos dá o que pen- Formar não é moldar o informe, é criar um território favorável
sar (ROCHA, 2006). à cooperação, à curiosidade, à indagação, à provisoriedade e à per-
O cotidiano de trabalho envolve certo uso do tempo, o currícu- manente produção de sentidos e apropriação de significados sociais.
lo, as relações e histórias que aproximam e distanciam escola e co- O que é permanente é a luta pela produção de sentidos que nos faz
munidade. A construção de narrativas abre espaço para a produção coletivo e que nos ampara para suportar o provisório, as mudanças
de conhecimento, aprofundamento teórico- metodológico sobre o necessárias para acolher nossas esquisitices. Desse modo, pensar
que se vive a partir do que se faz. As narrativas podem tomar força, em mudar a formação não é só trazer mais um recurso tecnológico,
deslocando dos casos problemas às histórias de vida. Porém, a lógi- é possibilitar a produção de políticas públicas que ponham atenção
sobre os efeitos de diferenciação.

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na educação básica 39 40 Conselho Federal de Psicologia
A participação da Psicologia na discussão das contradições,
conflitos e paradoxos do sistema escolar hoje vigente é, portanto,
vital no momento em que se encontra a escola brasileira, sob o ris-
EIXO 3: POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO DA
co de continuarmos formando gerações de excluídos, de crianças (O) PSICÓLOGA (O) NA EDUCAÇÃO BÁSICA
e jovens que, por não se apropriarem ativamente do conhecimento
socialmente produzido, estarão a mercê do processo de produção
capitalista. (NENEVE & SOUZA, 2006).
Esses são somente alguns pontos para refletirmos sobre o co-
tidiano da escola e no próximo item proporemos algumas possibili-
dades de intervenção. Art. 205 - A educação, direito de todos, dever do
Estado e da família será promovida e incentivada
com a colaboração da sociedade, visando a ao ple-
no desenvolvimento da pessoa, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho. (BRASIL, Constituição Federal, 1988).

Na direção de contribuir para a melhoria da qualidade da edu-


cação em todos os níveis, nossas ações devem pautar- se em tornar
disponível um saber específico da Psicologia para questões da Edu-
cação que envolvam prioritariamente o fortalecimento de uma ges-
tão educacional democrática que considere todos os agentes que
participam da comunidade escolar, e de formas efetivas de acom-
panhamento do processo de escolarização.
Esse saber fundamenta-se no entendimento da dimensão
subjetiva do processo ensino-aprendizagem. Temáticas como: de-
senvolvimento, relações afetivas, prazeres e sofrimentos, comporta-
mentos, ideias e sentimentos, motivação e interesse, aprendizagem,
socialização, significados, sentidos e identificações contribuem para
valorizar os sujeitos envolvidos nas relações escolares.
Para uma intervenção na área, uma das primeiras questões
que se põe ao profissional é: qual a função social da escola? Enten-
demos que o ser humano é constituído pela realidade histórico-so-
cial que vem sendo produzida de geração em geração. O homem
não nasce sabendo ser homem e para aprender a pensar, para ter
sentimentos, agir, avaliar, é preciso aprender, o que compete ao tra-

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na educação básica 41 42 Conselho Federal de Psicologia
balho educativo (SAVIANI, 2003). Nesses termos, é fundamental que no conjunto das ações desenvolvidas pelos profissionais da escola e
a educação atue no processo de humanização, contribuindo para a reafirma seu compromisso com o trabalho interdisciplinar.
apropriação dos conhecimentos produzidos na sociedade. Ao se deparar com o contexto escolar para elaborar planos de
A educação, por si só, não transforma diretamente a estrutura intervenção, levando em conta o projeto político pedagógico, é ne-
social. Para que isso aconteça é imprescindível a transformação das cessário compreender e conhecer dados objetivos relativos à orga-
consciências dos que passam pela escola. Para transformar essas nização escolar. Entre eles destacamos: o número de estudantes, de
consciências é necessário buscar uma metodologia e uma lógica turmas, de professores, serviços prestados à comunidade, reuniões
que deem conta de apreender o movimento do real com todas as que estão planejadas; índice de aprovação, reprovação e evasão;
contradições presentes. membros das equipes pedagógicas, administrativas e de prestação
A escola tem como objetivo socializar os conteúdos e também de serviços gerais; o perfil socioeconômico da comunidade escolar;
os instrumentos necessários para o acesso ao saber. Sua função é informações sobre características do território em que a escola está
socializar conhecimentos e experiências produzidos pela humani- localizada, bem como sua história. É importante ainda conhecer o
dade, problematizando as dimensões de classe, cultura, religião, as corpo docente e equipe pedagógica, considerando sua formação aca-
relações de gênero e étnico-raciais constituintes da sociedade em dêmico-profissional, salários e condições de trabalho, carga horária;
que vivemos, bem como dos conhecimentos historicamente produ- informações sobre o trabalho pedagógico, enfocando como ocorre
zidos. Dessa forma, a(o) psicóloga(o) entende que sua ação pode se a prática pedagógica incluindo a metodologia, recursos, conteúdos.
encaminhar para a transformação ou para a manutenção da socie- Entendemos que a(o) psicóloga(o), ao participar do cotidiano
dade, tal como está organizada. do processo educativo, estará junto às equipes colaborando para
A(O) psicóloga(o), no contexto educativo, ao conhecer as que conhecimentos e práticas possam resultar em experiências en-
múltiplas determinações da atividade educacional, pode focar mais riquecedoras para a formação do coletivo, no qual ele está incluído.
adequadamente determinadas áreas de intervenção e desenvolver Esse processo permitirá o planejamento, desenvolvimento e avalia-
um trabalho envolvendo toda a comunidade escolar - professores, ção de diferentes possibilidades de intervenção.
pais, funcionários, estudantes. Qualquer trabalho realizado com um
desses segmentos deve ter como princípio a coletividade, visando a
o bem de todos e todas.
A seguir, elencamos algumas possibilidades de intervenção.
A intervenção da(o) psicóloga(o) no
processo de ensino-aprendizagem
O conhecimento da psicologia na compreensão dos proces-
A(O) psicóloga(o) e o projeto político-pedagógico sos de ensino e aprendizagem se constitui, historicamente, desde
concepções higienistas até àquelas que analisam esse processo
As escolas desenvolvem sua prática a partir de um projeto po- como síntese de múltiplas determinações: pedagógicas, institucio-
lítico-pedagógico. A dimensão política do projeto pedagógico refere- nais, relacionais, políticas, culturais e econômicas. As práticas de
se a valores e metas que permeiam o conjunto de práticas na esco- intervenção, portanto, decorrem dessas concepções.
la. É função da(o) psicóloga(o) participar do trabalho de elaboração,
O resultado do processo ensino e aprendizagem, em uma
avaliação e reformulação do projeto, destacando a dimensão psico-
perspectiva crítica, é entendido como decorrente das práticas so-
lógica ou subjetiva da realidade escolar. Isso permite sua inserção

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na educação básica 43 44 Conselho Federal de Psicologia
ciais e escolares que o produzem. Nessa perspectiva, a(o) psicólo- No diálogo com os educadores, as(os) psicólogas(os) podem
ga(o) avança na compreensão desse processo quando o analisa a desenvolver ações que contribuam para uma compreensão dos ele-
partir de condições histórico-sociais determinadas. Sua superação mentos constituintes dos processos de ensino e aprendizagem em
depende de ação que envolva os diferentes aspectos do processo suas dimensões subjetivas e objetivas, coletivas e singulares. As(os)
de escolarização: relações familiares, grupos de amigos, práticas psicólogas(os) podem desenvolver ações que busquem o enfrenta-
institucionais e contexto social. A complexidade do processo de es- mento de situações naturalizadas no contexto escolar, superando
colarização, numa sociedade marcada pela desigualdade, é refleti- explicações que culpabilizam ora estudantes, ora familiares, ora pro-
da nas condições de acesso e permanência nas escolas. Portanto, fessores. Poderá contribuir, portanto, como mediador fortalecendo
essa desigualdade precisa ser considerada, não como elemento o papel do professor como agente principal do processo de ensino e
acessório da subjetividade humana, mas sim como a base social aprendizagem (FACCI, 2004). O importante é estabelecer parcerias
de sua constituição (SOUZA, 2002). Dessa forma, a análise das prá- com os professores, valorizando o trabalho docente.
ticas escolares centra-se nas relações institucionais, considerando o
contexto social e histórico em que é produzido o processo de esco-
larização.
No trabalho com estudantes, é fundamental resgatar a fun- O trabalho na formação de Educadores
ção do conhecimento científico como instrumento que possibilita Nem sempre educadores e psicólogas(os) têm clareza da vi-
a compreensão e transformação da realidade (VYGOTSKY, 2000).11 são de homem e educação que permeia a sua prática profissional.
À(ao) psicóloga(o) cabe uma prática que conduza a criança e o jo- A forma como a escola se organiza, nos dias de hoje, está atrelada
vem a descobrir o seu potencial de aprendizagem,16 auxiliando na a circunstâncias históricas que produziram tendências pedagógicas
utilização de mediadores culturais (música, teatro, desenho, dança, que ora privilegiavam o professor e o conteúdo, como era o caso da
literatura, cinema, grafite, e tantas outras formas de expressão ar- Pedagogia Tradicional; ora privilegiavam o estudante, como é o caso
tísticas) que possibilitam expressões da subjetividade. No caso da da Escola Nova e do Construtivismo, por exemplo, ou ora privilegia-
avaliação das dificuldades no processo de escolarização, é funda- vam a técnica, como é o caso da Pedagogia Tecnicista.12 Cada ten-
mental avaliar o aluno prospectivamente, naquilo que ele pode se dência pedagógica carrega uma visão acerca da atuação dos educa-
desenvolver, e não se restringir àquilo que o aluno não consegue dores que permeará todo o trabalho pedagógico e que influenciará
realizar, ou mesmo centrar-se somente no aluno, sem refletir sobre a prática desenvolvida pela(o) psicóloga(o) na escola (FACCI, 2004).
a produção social do fracasso escolar.
De acordo com os pressupostos de uma teoria crítica da edu-
Com pais, familiares ou responsáveis, a(o) psicóloga(o) pode cação, cada profissional — educadora(or) e psicóloga(o) — as-
refletir sobre o papel social da escola e da família, assim como sobre sumirá o compromisso de contribuir, com seus conhecimentos e
as problemáticas que atravessam a vida de pais e filhos. Frente a práticas, para a compreensão das questões que envolvem a política
possíveis dificuldades escolares, a discussão coletiva pode facultar educacional e suas implicações no trabalho docente. Esse propósi-
novas ideias e ações favorecedoras de uma prática compartilhada to se constitui no que entendemos seja um processo de formação
que contribua para a qualidade do processo ensino e aprendizagem. continuada. Assim, os profissionais buscarão formas que, efetiva-
mente, propiciem o processo de apropriação do conhecimento e as
11 Avaliar o que está no nível do desenvolvimento próximo, ou seja, aquilo que
o indivíduo consegue realizar com a ajuda de mediadores culturais conforme apre-
senta Vygotsky (2000). 12 SAVIANI, D., 2007.

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na educação básica 45 46 Conselho Federal de Psicologia
transformações nas relações sociais. Soma-se a isso, a possibilidade de 1990, era excluído do ensino regular e encaminhado para classes e
da(o) psicóloga(o) trabalhar conteúdos sobre o desenvolvimento e escolas especiais. Diante dessa situação questionamos: como analisar
aprendizagem, assim como questões sobre relações interpessoais o processo de escolarização das pessoas com deficiência que, historica-
que permeiam o processo educativo. A(o) psicóloga(o) em con- mente, eram atendidas em instituições especiais com a(o) psicóloga(o)
textos educativos tem muito a contribuir em busca de uma prática inserida na equipe clínica, responsável pela triagem e diagnóstico da de-
pedagógica voltada à humanização. Para tanto, é necessário que ficiência? Como a(o) psicóloga(o) pode auxiliar no processo de inclusão
enfatize a dimensão subjetiva das experiências educacionais. Dar escolar rompendo com as práticas excludentes? Como a(o) psicóloga(o)
visibilidade à presença do sujeito como uma totalidade, destacando pode orientar os professores para desenvolverem ações planejadas que
a subjetividade que acompanha e caracteriza o processo educativo promovam a apropriação do saber escolar e o desenvolvimento cogniti-
é tarefa específica das(os) psicólogas(os). Com essas noções e co- vo dos estudantes? Como enfrentar o preconceito com relação àqueles
nhecimentos as(os) psicólogas(os) podem contribuir significativa- com deficiência? (responder as perguntas).
mente na formação de professores. Um dos maiores entraves para uma atuação crítica da(o) psi-
O professor, no processo ensino-aprendizagem, tem o papel cóloga(o) em contextos educacionais inclusivos ocorre em virtude
de fazer a mediação entre os conteúdos produzidos pela humani- de sua formação inicial que aborda superficialmente a temática da
dade e o aluno. Essa mediação é realizada a partir de ações inten- deficiência e da inclusão escolar, além da ênfase clínica nas discipli-
cionais, conscientes, dirigidas para um fim específico que permita, nas da Psicologia Escolar. A pouca informação sobre esses assuntos
ao estudante conhecer, de forma crítica, a realidade social, como faz com que a(o) psicóloga(o) encontre dificuldades para intervir
destaca Facci (2004). no processo de inclusão escolar de estudantes com deficiências
A(o) psicóloga(o) pode atuar junto aos professores por meio (TADA, 2009).
de formação continuada (FACCI, 2009), trabalhando conteúdos rela- Dessa forma, a prática psicológica continua a mesma de quan-
cionados ao desenvolvimento e aprendizagem nas dimensões que do crianças e jovens com deficiência eram encaminhados para as
constituem os sujeitos, tais como: relações de classe, relações de escolas especiais, consistindo na realização de anamnese com os
gênero, sexualidades, relações étnico-raciais, mídias e tecnologias, responsáveis e a avaliação do nível intelectual e emocional. A par-
entre outros, tendo como norte fornecer subsídios que contribuam tir dessas avaliações, laudos psicológicos são elaborados dizendo
para o entendimento de como o(a) estudante aprende. O objetivo apenas aquilo que as crianças e jovens não possuem em função de
é contribuir para o aprofundamento teórico a fim de compreender suas deficiências, não constando informações que possam auxiliar
as relações existentes entre a subjetividade humana, a formação do os professores em sua prática pedagógica. Dessa forma, ajudam o
psiquismo e o processo educacional, formados nas relações sociais. preconceito a se perpetuar nas relações estabelecidas entre profes-
sores, estudantes, equipe técnica, endossando práticas de exclusão.
Relações fundamentadas no preconceito fazem com que a pessoa
com deficiência sinta-se desvalorizada socialmente, considerando
O trabalho da(o) psicóloga(o) e que “A deficiência em si não decide o destino da personalidade e,
a educação inclusiva sim, as consequências sociais e sua realização sociopsicológica.”
(VYGOTSKI,1997, p. 30). Nesse sentido, é importante que a(o) psi-
O trabalho da(o) psicóloga(o) em contextos educativos, geralmen- cóloga(o) inserida em contextos educativos desenvolva grupos de
te, abrange a atenção ao estudante com deficiência, que, até a década trabalhos com professores, estudantes, familiares, equipe técnica,
gestores e funcionários possibilitando que a temática do preconcei-

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na educação básica 47 48 Conselho Federal de Psicologia
to seja abordada, promovendo a reflexão coletiva sobre barreiras do significado da deficiência, do preconceito, das práticas excluden-
atitudinais e arquitetônicas presentes no cotidiano escolar e suas tes, superando intervenções focadas na atuação clínica, individual.
formas de enfrentamento. A intervenção focada no grupo, na instituição, certamente colabora-
É importante considerar que na intervenção na escola é pre- rá para a inclusão daqueles que estão alijados do processo de esco-
ciso que a(o) psicóloga(o) identifique, primeiramente, concepções larização, estudantes com ou sem deficiências.
“de sociedade, de educação, de grupo, de indivíduo, de coletivida- Além do exposto, é importante destacar que o profissional
de” dos professores, estudantes e familiares, assim como as suas pode desenvolver ações como: acompanhamento de estudantes vi-
próprias concepções. É preciso compreender a constituição históri- sando a a inclusão e permanência com qualidade de todos e todas
ca do psiquismo humano e resgatar propostas de ações societárias no contexto escolar; participação na articulação de serviços para o
e coletivas para uma atuação crítica da(o) psicóloga(o) em contex- atendimento do estudante com deficiência, na busca da garantia de
tos educativos buscando romper com práticas excludentes na esco- seu direito a educação, a saúde e a assistência social; mobilização
la (BARROCO, 2007, p. 179). de encontros e participação em reuniões com docentes e outros
Destaca-se, assim, o papel primordial das relações sociais para profissionais, visando a auxiliar a equipe de docentes da escola na
o desenvolvimento do psiquismo que, segundo Vygotski (1995), construção do planejamento educacional para a(o) estudante com
ocorre a princípio em um nível interpsicológico para depois se tor- deficiência; reflexão e adequação do processo de avaliação psico-
nar interno – intrapsicológico, em que as normas de comportamen- pedagógica; inserção de discussão e possibilidades de atuação nos
to, a ética, os ideais, as convicções e os interesses são apropriados Projetos Políticos Pedagógicos, contribuindo com a construção do
pelo indivíduo por meio do processo de mediação com o outro. Por plano da escola e desenvolvendo programas e outras situações para
isso, a necessidade da psicóloga(o) compreender como se consti- promover a apropriação do conhecimento por todos alunos.
tuem as relações sociais no contexto educativo e identificar qual o
lugar que ocupa a deficiência do estudante nessa relação.
O trabalho da(o) psicóloga(o) com a temática do preconcei-
to e a promoção de discussões coletivas a respeito do processo de
O trabalho da(o) psicóloga(o) com grupos de alunos
inclusão escolar, em que seja garantido o direito de pertencimento Uma outra possibilidade de atuação refere-se ao acompanha-
do estudante com deficiência à escola regular, pode promover con- mento dos alunos em conselhos de classe, no cotidiano da escola,
dições para que a relação social entre o estudante com deficiência nas dificuldades que surgem no processo de escolarização. Um tra-
e o ambiente escolar promovam situações desafiadoras que “em- balho que geralmente obtém bons resultados é aquele que envolve
purram a criança para a via da compensação” no sentido de desen- as turmas de alunos trabalhando no sentido de promover orientação
volver potencialidades que auxiliem na superação da deficiência, em relação a temáticas que circunscrevem o espaço escolar. Nes-
conforme anuncia Vygotski (1997, p. 106). Dessa forma, em seu tra- se sentido, o trabalho com orientação profissional, constitui-se em
balho, a(o) psicóloga(o) focalizará a força que esse estudante pos- um espaço muito rico de intervenção. Bock (2003) ressalta a neces-
sui para criar condições para o enfrentamento de sua deficiência e sidade da compreensão da relação entre educação e trabalho em
expansão de seus limites, que tem como objetivo buscar uma posi- um contexto neoliberal. Dessa forma, a discussão travada acerca da
ção social mais valorizada pela sua comunidade. orientação profissional pode trazer informações sobre o mundo do
Promovendo uma discussão sobre a inclusão e o respeito à trabalho, o processo de alienação, informações sobre as várias pro-
diversidade humana, pode-se ter uma compreensão histórico-social fissões existentes, sobre instituições que oferecem cursos em nível

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 49 50 Conselho Federal de Psicologia
de graduação ou mesmo cursos técnicos e outros aspectos relativos apenas aplicar determinados procedimentos; sua intervenção vai
a essa temática. Mais uma vez, ressalta-se a necessidade de consi- além e relaciona-se com encaminhamentos de questões implica-
derar que as escolhas são estabelecidas socioculturalmente. das com a Psicologia e a Educação, pautando-se em uma análise
Propostas de trabalho abordando questões sociais que envol- crítica dessa relação e dos conhecimentos produzidos nesses âm-
vem as experiências das infâncias, adolescências e juventudes, tais bitos. Entendemos que o caminho em busca da construção de uma
como: o Estatuto da Criança e do Adolescente; a relação entre es- Psicologia crítica, em contextos educativos, embora iniciado, ainda
cola e trabalho; a transição vivida no processo de escolarização dos é bastante extenso, pois, na escola, são várias as situações que exi-
anos iniciais do ensino fundamental para os anos finais e, ainda, a gem conhecimentos, tanto da educação em relação à sociedade,
passagem para o ensino médio; questões de gênero e sexualidades, como conhecimentos que nos levam a compreender o desenvolvi-
relações étnico-raciais, desigualdade social e direitos humanos, pre- mento das subjetividades produzidas na escola entre professores,
conceitos e violências, dentre outras temáticas a serem desenvolvi- pais, estudantes e funcionários (FACCI, 1998),
das a partir das necessidades da escola, do coletivo de estudantes e Professoras(es) e psicólogas(os) possuem histórias de vida,
dos conhecimentos produzidos pela Psicologia. singularizações produzidas nas relações com os demais e circuns-
O fundamental é realizar ações que caminhem em colaboração critas nas instituições político-histórica, e estão socialmente em luta
com a finalidade da escola, ou seja, a socialização do conhecimento. pela sobrevivência frente às adversidades cotidianas, dessa forma,
cabe a nós, psicólogas(os):
Grupos de apoio psicopedagógicos com alunas(os) que apre-
sentam dificuldades no processo de escolarização também pode
ser uma outra atividade desenvolvida. A(o) psicóloga(o), nesse sen- [...] compreendermos como se constitui a sub-
tido, poderá trabalhar, em parceria com pais, professores e equipe jetividade e trabalhar em prol do desenvolvi-
pedagógicas, com atividades que colaborem para o desenvolvimen- mento da humanidade de cada indivíduo. Esta
to das funções psicológicas superiores, enfocando a relação entre compreensão também demanda muito esforço,
cognição e afeto. muito aprofundamento teórico e muita sensibili-
Apresentamos aqui algumas possibilidades de intervenção dade, assim como solidariedade para se colocar
da(o) psicóloga(o) na escola, mas gostaríamos de enfatizar a ne- no lugar do outro, e contribuir para que ele consi-
cessidade deste profissional tomar consciência da visão de socieda- ga enxergar outras facetas da sua vida, de forma
de, educação, homem e processo ensino- aprendizagem que está que possa tomar consciência do seu lugar, nesta
guiando sua prática. O enriquecimento com fundamentos teóricos sociedade dividida em classes, e possa ter o de-
consistentes de sua prática deve alimentar a elaboração de novas sejo e condições de transformar essa sociedade.
formas de atuação. As ferramentas são os conhecimentos de Psico- (FACCI, 1998, p. 235).
logia e de Educação que podem ser socializados nas escolas, além
de uma grande disposição de mudança com a perspectiva de cria-
ção de espaços comuns de reflexões, que conduzam à apropriação Como podemos ver, as possibilidades constituem um desafio
coletiva do conhecimento. para a atuação, aspecto que discutiremos no Eixo 4 - Desafios para
a prática da(o) psicóloga(o).
Podemos afirmar que é prioritária uma vinculação entre a Psi-
cologia e a Educação, pois a(o) psicóloga(o) quando desenvolve
sua prática na escola ultrapassa o nível da técnica, no sentido de

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 51 52 Conselho Federal de Psicologia
• Buscar conhecimentos técnico-científicos da Psicologia e da Educação,
EIXO 4: DESAFIOS PARA A PRÁTICA em sua dimensão ética para sustentar uma atuação potencializadora;

DA(O) PSICÓLOGA(O)
• Produzir deslocamento do lugar tradicional da(o) psicóloga(o)no sen-
tido de desenvolver práticas coletivas que possam acolher as tensões,
buscando novas saídas para os desafios da formação entre educadores
e educandos;
• Romper com a patologização, medicalização e judicialização das prá-
ticas educacionais nas situações em que as demandas por diagnósti-
Finalizando essas Referências, consideramos que as(os) pro- cos fortalecem a produção do distúrbio/transtorno, da criminalização
fissionais da área Escolar e Educacional, embora tenham, cada vez e da exclusão.
mais, avançado no conhecimento dos processos de escolarização • Formar profissionais da Psicologia para se dedicarem a este campo de
assim como das problemáticas históricas e contemporâneas da atuação e poderem acompanhar os estudantes em contextos sociais de
educação, ainda têm muitos desafios nesse âmbito de atuação. O desenvolvimento.
compromisso do CFP e CRPs com a Educação Básica tem estado
cada vez mais explícito, mas ainda há muito o que ser conquistado, Defendemos, a partir desses princípios, uma Psicologia Es-
principalmente na formação profissional para atuação nesse campo colar crítica e contextualizada. Esta é possível de ser desenvolvida
( GUZZO & MEZZALIRA, 2011) E, nesse cenário de muitas e múl- também por psicólogas(os) que trabalham em áreas que interagem
tiplas demandas, apoiados nos princípios que defendemos para a com a Educação, como por exemplo, as áreas da Saúde, Assistência
atuação de psicólogas(os) na Educação Básica (CFP & CRPs, 2010), Social e o Sistema de Garantia de Direitos da criança e da(o) ado-
propomos: lescente. Para isso, é importante que também esses profissionais,
além das(os) psicólogas(os) escolares/educacionais, tenham co-
• Compor com a equipe escolar, a elaboração, implementação e avalia- nhecimento das políticas públicas nacionais de Educação, da rede
ção do Projeto Político Pedagógico da Escola e, a partir dele, cons- de atendimento e que encontrem espaços de interlocução para in-
truir seu projeto de atuação, como um profissional inserido e implica- tegrar seus conhecimentos e ações.
do no campo educacional;
Novas formas de intervenção, certamente serão produzidas,
• Problematizar o cotidiano escolar, colaborando na construção cole- desta vez, coletivas e integradas na construção, gestão e execução
tiva do projeto de formação em serviço, no qual professores possam das políticas públicas para a promoção e garantia dos direitos da
planejar e compor ações continuadas; criança e dos jovens na direção da educação para todos.
• Construir, com a equipe da escola, estratégias de ensino- aprendiza- Conforme pudemos observar no decorrer desse documento,
gem, considerando os desafios da contemporaneidade e as necessida- atualmente, na área de Psicologia Escolar e Educacional, identifica-
des da comunidade onde a escola está inserida; se um conjunto significativo de pesquisas e trabalhos que marcam
• Considerar a dimensão de produção da subjetividade, sem reduzi-la diferentes estilos de atuação, articulando dimensões sociais, polí-
a uma perspectiva individualizante, afastando-se do modelo clínico ticas e institucionais em uma perspectiva que luta por transforma-
-assistencial; ções das práticas e da realidade educacional.
• Valorizar e potencializar a construção de saberes, nos diferentes espa- E, a título de síntese, apresentamos alguns aspectos impor-
ços educacionais, considerando a diversidade cultural das instituições tantes às intervenções: a) compreensão das práticas cotidianas que
e seu entorno para subsidiar a prática profissional;

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 53 54 Conselho Federal de Psicologia
constroem a rotina escolar; b) consideração da escola como um lu- exercidas por professores e especialistas em educação no desem-
gar privilegiado de convivência e inserção social; c) atenção à com- penho de atividades educativas”. Portanto, o desafios centra-se na
plexidade social, pedagógica e institucional em que são produzidas ampliação da inserção dos serviços de Psicologia nas redes públicas
as problemáticas; d) valorização dos professores como agentes prin- de Educação Básica, em equipes multiprofissionais, desenvolvendo
cipais no processo educacional; h) ênfase da produção inventiva dos ações para a melhoria da qualidade do processo de ensino-aprendi-
estudantes e dos professores; i)participação nas análises e constru- zagem, com participação da comunidade escolar, atuando na me-
ção das estratégias ético-político-pedagógicas que são utilizadas nas diação das relações sociais e institucionais e considerando os pro-
escolas. jetos político-pedagógicos das redes públicas de educação básica e
Com base nesses aspectos, algumas ações são propostas pelos de seus estabelecimento de ensino13.
autores da área de Psicologia Escolar e Educacional, a saber: resga- Outro desafio está em articularmos os saberes produzidos nos
tar a complexidade do processo de escolarização protagonizado pela campos da Educação e da Psicologia Escolar. É frequente observar-
criança considerada problema; conhecer o ponto de vista de todas mos que a circulação do conhecimento produzido em áreas afins
as pessoas envolvidas no processo de escolarização; construir uma ou de fronteira se faça pouco presente no plano da constituição
parceria efetiva com a instituição escolar para análises permanentes do saber sobre a escola e seu funcionamento. A Psicologia Escolar
do cotidiano considerando a troca de informações e experiências. O teceu e ainda tece várias críticas a determinados fazeres e conhe-
profissional deve estar atento à criação de estratégias que favoreçam cimentos que se distanciam de uma visão crítica sobre a ação da
a coletivização das práticas cotidianas; são muitas as estratégias pos- Psicologia no campo da Educação. Mas podemos afirmar que hoje
síveis que se configurarão de acordo com a realidade institucional, temos um conjunto de pesquisas e de práticas, a partir da Psicologia
dentre elas: realização de grupo com professores, pais e estudantes; Escolar e Educacional, e de conhecimentos que poderão contribuir
análise dos documentos e dos registros escolares; articulação com na melhoria da qualidade da escola brasileira.
outras instituições que constituem a rede de cuidados da comunida- Assim, esse ainda é um desafio a ser vencido em relação à par-
de. Tais ações provocam a necessidade de vencer desafios que per- ticipação da Psicologia Escolar no plano das políticas públicas em
meiam a realidade escolar e a intervenção da(o) psicóloga(o). Educação. A(o) psicóloga(o) não faz parte das equipes que cons-
Um destes desafios na área remete aos concursos realizados tituem, discutem e implantam tais políticas, tampouco o conheci-
para a contratação de psicólogas(os) para atuar na educação. Em mento produzido pela área da Psicologia Escolar e Educacional.
pesquisa realizada por Souza (2014), um dos aspectos que a autora No plano da formação de professores é necessário retomar
destaca relaciona-se aos editais de concurso público para psicólo- a finalidade dos conteúdos da Psicologia que contribuam para a
gas(os), cujos referenciais teóricos estão vinculados ao campo da compreensão do processo de escolarização, da relação entre subje-
clínica, privilegiando conteúdos de diagnóstico e tratamentos psi- tividade e educação, abordando temas tais como fracasso escolar,
cológicos. Uma vez contratados, muitos desses profissionais, nos queixa escolar, medicalização da educação, relações intersubjetivas
últimos dez anos, ocupam seus cargos no campo da educação e que constituem a vida diária escolar, dentre outros temas, que bus-
privilegiam uma prática fundamentada nesses conteúdos.
No que tange à contratação específica de psicólogas(os) na
13 Trata-se do Substitutivo do Senado ao Projeto de Lei da Câmara, PL 60, de 2007
área da Educação, um entrave ainda presente está na Lei de Dire- (PL 3688/2000 da Câmara dos Deputados), que “Dispõe sobre a prestação de servi-
trizes e Bases da Educação Nacional de 1996, que afirma, em seu ços de Psicologia e de Serviço Social nas redes públicas de educação básica”. Este
artigo 67, parágrafo 2.º: “são consideradas funções de magistério as projeto encontra-se aprovado nas duas Casas Legislativas e aguarda votação em
Plenário. As dificuldades para sua aprovação referem-se à dotação orçamentária.

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 55 56 Conselho Federal de Psicologia
quem superar o reducionismo de questões sociais ao âmbito indi- da educação. Temáticas tão populares nos anos 1950-1960 voltam
vidual, considerando o processo de escolarização como expressão com roupagem nova. Não se fala mais em eletroencefalograma para
das dimensões sociais, culturais, pedagógicas, políticas, afetivas e diagnosticar distúrbios ou problemas neurológicos, mas sim em res-
institucionais. (CHECCHIA, 2015 ) sonâncias magnéticas e sofisticações genéticas, mapeamentos ce-
Sabemos que uma variedade de teorias permeia a compreen- rebrais e reações químicas sofisticadas tecnologicamente.
são do processo ensino-aprendizagem e entendemos que é necessá- Embora esses recursos da área da saúde e da biologia sejam
rio que todos os profissionais vinculados à Educação tenham clareza fundamentais como avanços na compreensão de determinados
acerca de seus posicionamentos teóricos. O rigor teórico contribui processos humanos, quando aplicados ao campo da educação, re-
para uma prática consistente, efetiva, conforme anuncia Saviani tomam a lógica já denunciada e analisada durante décadas, de que
(2005). Há de se estabelecer uma relação dialética entre teoria e prá- o fenômeno educativo e o processo de escolarização não podem
tica. ser avaliados como algo individual, do aprendiz. Afinal, as relações
Ainda em relação à(ao) professora(or) como trabalhado- de aprendizagem constituem-se em dimensões do campo histórico,
ras(es) da educação, a(o) psicóloga(o) escolar tem como desafio social e político que transcendem, em muito, o universo da biologia
compreender o processo de precarização da escola pública e das e da neurologia. O avanço das explicações organicistas para a com-
condições de trabalho, que pode ocasionar o adoecimento da(o) preensão do não aprender de crianças e jovens retoma os velhos
professora(or). No contexto atual, em que impera o processo de verbetes tão questionados por setores da Psicologia, Educação e
alienação do trabalho, instabilidade em relação aos direitos traba- Medicina, a saber, dislexia, disortografia, disgrafia, dislalia, hipera-
lhistas, ao produtivismo, à ausência de espaços coletivos de discus- tividade e transtornos de déficit de atenção, com hiperatividade ou
são, ao desmonte dos sindicatos e órgãos representativos, é urgente sem hiperatividade.14
analisar o sofrimento a partir de suas bases materiais, de maneira a É importante chamar a atenção para a gravidade do atual mo-
encontrar alternativas coletivas de enfrentamento e de superação mento histórico, em que ocorre uma maior incidência de avaliações
do processo de culpabilização vivido pela(o) professora(or). da qualidade da escola pública e privada oferecida às crianças e
Consideramos, outrossim, que estamos em um momento pri- jovens brasileiros. Não obtivemos bons resultados em nenhum dos
vilegiado, pois temos a possibilidade de construir, a partir das novas índices educacionais, quer sejam municipais ou estaduais, quer se-
Diretrizes Curriculares Nacionais em Psicologia (ABEP, 2018), um jam nacionais. Os índices internacionais, então, refletem as piores
currículo que inclua as discussões recentes da Psicologia Escolar e avaliações. Esse diagnóstico revela a necessidade de uma escola
Educacional, bem como implementar ações, por meio de ênfases e com qualidade social, que cumpra com suas finalidades de apro-
estágios supervisionados que permitam compreender a complexi- priação do conhecimento socialmente acumulado, difusão de valo-
dade do fenômeno educativo nas suas dimensões cognitivas, afeti- res sociais e democráticos e de desenvolvimento e aprendizagem.
vas, sócio-históricas e político-institucionais. A Psicologia tem se defrontado mais recentemente com os de-
Outro desafio que consideramos importante ressaltar refe- safios das novas configurações familiares e afetivas, os movimentos
re-se, no âmbito das políticas públicas, ao retorno da visão medi- de jovens buscando novas identidades sexuais, as questões raciais,
calizante/patologizante que atribui a deficiências do organismo da indígenas, quilombolas, os movimentos dos segmentos excluídos
criança as causas da não aprendizagem. De fato, é possível consi-
derar que assistimos, a partir do ano 2000, o retorno das explica-
ções organicistas centradas em distúrbios e transtornos no campo 14 Cf.: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SÃO PAULO, 2010.
FACCI; MEIRA; TULESKI, 2011.

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 57 58 Conselho Federal de Psicologia
dos direitos sociais e humanos. As diversas formas de violência e de
preconceito social presentes na escola, nas relações educacionais e
entre pares como forma de questionamento à violência social e es-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
trutural presente nas relações sociais. A atuação de psicólogas(os)
nas escolas se defronta diariamente com tais desafios. Construir co-
nhecimentos e práticas que venham acolher a diversidade, as ex-
pressões do humano, dos jovens, crianças e adultos é uma tarefa ABEPSI, CFP & FENAPSI. Ano da formação em psicologia: revisão
fundamental.15 das diretrizes curriculares nacionais para os cursos de graduação
Portanto, a finalidade da atuação da(o) psicóloga(o) na Edu- em psicologia. Conselho Federal de Psicologia, Associação Brasi-
cação deve se pautar no compromisso com a luta por uma escola leira de Ensino de Psicologia e Federação Nacional dos Psicólogos.
democrática, de qualidade, que garanta os direitos de cidadania a São Paulo: Conselho Federal de Psicologia/Associação Brasileira
crianças, jovens e profissionais da Educação. Esse compromisso é de Ensino de Psicologia/Federação Nacional dos Psicólogos, 2018.
político e envolve a construção de uma escola participativa que pos- Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/07/
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15
Cf.: Sobre a questão da Violência e Preconceitos na Escola, pesquisa nacio-
nal realizada pelo CFP, ABEP, ABRAPEE, FENAPSI, coordenada pela UFMT e CAMPOS, HR, FACCI, MGD, SOUZA, MPR (Orgs.). Psicologia e Polí-
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Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


na educação básica 67
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA
CONSELHOS REGIONAIS DE PSICOLOGIA
É permitida a reprodução desta publicação, desde que sem alterações e
CENTRO DE REFERÊNCIA TÉCNICA EM PSICOLOGIA citada a fonte. Disponível também em: www.cfp.org.br e em crepop.pol.org.br
E POLÍTICAS PÚBLICAS 1ª edição – 2013
Projeto Gráfico – IDEORAMA
Diagramação – IDEORAMA
Revisão – Conselho Federal de Psicologia (CFP)
Ilustração – Jeferson Ribeiro (Gravura apresentada na 3ª Mostra de Arte
Comissão de Elaboração do Documento Insensata 2011 – Centro de Convivência – Cezar Campos)

Organizadora
Heloiza Helena Mendonça Almeida Massanaro Coordenação Geral/ CFP
Yvone Duarte
Especialistas Coordenação de Comunicação Social
Elisa Zaneratto Rosa Denise de Quadros
André Almeida (Editoração)
Marta Elizabeth de Souza
Equipe Técnica do Crepop/CFP
Rosimeire Aparecida Silva
Monalisa Barros e Márcia Mansur Saadallah /Conselheiras responsáveis
Colaboração: Sandra Fischete
Natasha Ramos Reis da Fonseca/Coordenadora Técnica
Técnica Regional: Djanira Sousa Cibele Cristina Tavares de Oliveira /Assessora de Metodologia
Klebiston Tchavo dos Reis Ferreira /Assistente Administrativo

Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas(os) no Equipe Técnica/CRPs


CAPS - Centro de Atenção Psicossocial Renata Leporace Farret (CRP 01 – DF), Thelma Torres (CRP 02 – PE), Gisele
Vieira Dourado O. Lopes e Glória Pimentel (CRP 03 – BA), Luciana Franco de
Assis e Leiliana Sousa (CRP04 – MG), Beatriz Adura e Fernanda Haikal(CRP
05 – RJ), Ana Gonzatto, Marcelo Bittar e Edson Ferreira e Eliane Costa (CRP
06 – SP),Silvia Giugliani e Carolina dos Reis (CRP 07 – RS),Carmem Miranda
Brasília, julho/2013 e Ana Inês Souza (CRP 08 – PR), Marlene Barbaresco (CRP09 – GO/TO),
1ª Edição Letícia Maria S. Palheta (CRP 10 – PA/AP), Renata Alves e Djanira Luiza
Martins de Sousa (CRP11 – CE/PI/MA), Juliana Ried (CRP 12 – SC), Katiúska
Araújo Duarte (CRP 13 – PB), Mario Rosa e Keila de Oliveira (CRP14 – MS),
Eduardo Augusto de Almeida (CRP15 – AL), Mariana Passos e Patrícia
Mattos Caldeira Brant Littig (CRP16 – ES), Ilana Lemos e Zilanda Pereira
de Lima (CRP17 – RN), Fabiana Tozi Vieira (CRP18 – MT), Lidiane de Melo
Drapala (CRP19 – SE), Vanessa Miranda (CRP20 – AM/RR/RO/AC)
XV Plenário
Gestão 2011-2013

Diretoria
Humberto Cota Verona – Presidente
Referências bibliográficas conforme ABNT NBR 6022, de 2003; 6023,de Clara Goldman Ribemboim – Vice-presidente
2002; 6029, de 2006 e 10520, de 2002. Monalisa Nascimento dos Santos Barros – Tesoureira
Deise Maria do Nascimento – Secretária
Direitos para esta edição – Conselho Federal de Psicologia: SAF/SUL Quadra
2,Bloco B, Edifício Via Office, térreo, sala 104, 70070-600, Brasília-DF Conselheiros efetivos
(61) 2109-0107 /E-mail: ascom@cfp.org.br /www.cfp.org.br Flávia Cristina Silveira Lemos
Impresso no Brasil – Julho de 2013 Secretária Região Norte
Aluízio Lopes de Brito
Catalogação na publicação
Secretário Região Nordeste
Fundação Biblioteca Nacional
Biblioteca Miguel Cervantes
Heloiza Helena Mendonça A. Massanaro
Fundação Biblioteca Nacional Secretária Região Centro-Oeste
Marilene Proença Rebello de Souza
Secretária Região Sudeste
Ana Luiza de Souza Castro
Secretária Região Sul

Conselheiros suplentes
Adriana Eiko Matsumoto
Celso Francisco Tondin
Conselho Federal de Psicologia Cynthia Rejane Corrêa Araújo Ciarallo
Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os) no CAPS -
Henrique José Leal Ferreira Rodrigues
Centro de Atenção Psicossocial / Conselho Federal de Psicologia. -
Brasília: CFP, 2013.
Márcia Mansur Saadallah
100 p. Maria Ermínia Ciliberti
ISBN: 978-85-89208-55-0 Mariana Cunha Mendes Torres
1. Psicólogos 2. Políticas Públicas 3. Saúde Mental 4. CAPS Marilda Castelar
Roseli Goffman
Sandra Maria Francisco de Amorim
Tânia Suely Azevedo Brasileiro

Psicólogas convidadas
Angela Maria Pires Caniato
Ana Paula Porto Noronha
Conselheiras responsáveis:
Conselho Federal de Psicologia:
Márcia Mansur Saadallah e Monalisa Nascimento dos Santos Barros

CRPs
Carla Maria Manzi Pereira Baracat (CRP 01 – DF), Alessandra de Lima
e Silva (CRP 02 – PE), Alessandra Santos Almeida (CRP 03 – BA),
Paula Ângela de F. e Paula (CRP04 – MG), Analícia Martins de Sousa
(CRP 05 – RJ), Carla Biancha Angelucci (CRP 06 – SP), Vera Lúcia
Pasini (CRP 07 – RS), Maria Sezineide C. de Melo (CRP 08 – PR),
Wadson Arantes Gama (CRP 09 – GO/TO), Jureuda Duarte Guerra
(CRP 10 – PA/AP), Adriana de Alencar Gomes Pinheiro (CRP 11 – CE/
PI/MA), Marilene Wittitz (CRP 12 – SC), Carla de Sant’ana Brandão
Costa (CRP 13 – PB), Elisângela Ficagna (CRP14 – MS), Izolda de
Araújo Dias (CRP15 – AL), Danielli Merlo de Melo (CRP16 – ES),
Alysson Zenildo Costa Alves (CRP17 – RN), Luiz Guilherme Araujo
Gomes (CRP18 – MT) André Luiz Mandarino Borges (CRP19 – SE),
Selma de Jesus Cobra (CRP20 – AM/RR/RO/AC)
APRESENTAÇÃO

12
Apresentação

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) apresenta à categoria


e à sociedade em geral o documento de Referências Técnicas para
Atuação de Psicólogas(os) nos Centros de Atenção Psicossocial–
CAPS, produzido a partir da metodologia do Centro de Referência
Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop). Este documento
busca construir referência sólida para a atuação da Psicologia na área.
As referências construídas possibilitam a elaboração de parâmetros
compartilhados e legitimados pela participação crítica e reflexiva da
categoria. Elas refletem o processo de diálogo que os Conselhos vêm
construindo com a categoria, no sentido de se legitimar como instância
reguladora do exercício profissional.
Por meios cada vez mais democráticos, esse diálogo tem se
pautado por uma política de reconhecimento mútuo entre as(os)
profissionais da Psicologia, assim como, pela construção coletiva de
uma plataforma profissional que seja também ética e política.
Esta publicação marca mais um passo no movimento recente de
aproximação da Psicologia com o campo das Políticas Públicas. Aborda
cenário delicado do sofrimento psíquico, da Reforma Psiquiátrica,
assim como o da evolução das políticas de saúde e saúde mental no
Brasil. Evolução esta que encarrega a Psicologia como a profissão
que estimula produção de sentidos novos, substituindo as relações
tutelares pelas relações contratuais para a integração social e familiar
dos Usuários do sistema de saúde mental.
A opção pela abordagem deste tema reflete o compromisso dos
Conselhos Federal e Regionais de Psicologia com a qualificação da
atuação das(os) psicólogas(os) em todos os seus espaços de atuação.

HUMBERTO VERONA
Presidente do Conselho Federal de Psicologia

13 14
Sumário
Considerações sobre a Gestão dos Serviços e Pro-
APRESENTAÇÃO 13 cessos de Trabalho nos CAPS 107
PREFÁCIO 19 Os Desafios da Gestão Cotidiana do Trabalho nos
CREPOP – Centro de Referência Técnica em Psico- CAPS 109
logia e Políticas Públicas 19 Formação Profissional 115
Objetivo e Campo de Atuação 19 Considerações Finais 117
A Pesquisa do CREPOP/CFP 20 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 119
Processo de elaboração de Referência Técnica 22 ANEXO I 123
O Processo de Consulta Pública 25
INTRODUÇÃO 27
EIXO I: DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA DAS POLÍTI-
CAS DE SAÚDE MENTAL 45
Considerações Sobre as Políticas de Saúde No Brasil 45
EIXO II – PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS DE
SAÚDE MENTAL: A NECESSÁRIA MUDANÇA DE
PERSPECTIVA 73
História da Psicologia e sua Relação com as Políticas
Públicas de Saúde / Saúde Mental 73
A Inserção da Psicologia na Saúde Pública e na
Reforma Psiquiátrica 78
Teorias em Psicologia e Atenção à Saúde Mental 83
As Práticas das (os) Psicólogas(os) nos CAPS 85
EIXO III: A ATUAÇÃO DA(O) PSICÓLOGA(O) NA
POLÍTICA DO CAPS 91
O Modo de Fazer: desinstitucionalização da prática e
intervenção na cultura 91
A Clínica no Território e o Confronto com as Verdades
do Manicômio 97
Trabalho em Rede: uma resposta sempre complexa e
necessária à desconstrução do manicômio 101
EIXO IV – GESTÃO DO TRABALHO 107

16
Prefácio

17 18
PREFÁCIO Políticas Públicas, que consiste em pesquisar nacionalmente
o fazer das(os) psicólogas(os), diante das especificidades
CREPOP – Centro de Referência Técnica em Psicologia e regionais.
Políticas Públicas A proposta de investigar a atuação de psicólogas(os) em
O Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas políticas públicas específicas visa apreender o núcleo da prática
Públicas consiste em uma ação do Sistema Conselhos de profissional da(o) psicóloga(o), considerando áreas distintas
Psicologia que dá continuidade ao projeto Banco Social de nas Políticas Públicas. Todas as áreas são eleitas a partir de
Serviços em Psicologia, referindo-se a uma nova etapa na critérios como: tradição na Psicologia; abrangência territorial;
construção da presença social da profissão de psicóloga(o) no existência de marcos lógicos e legais e o caráter social ou
Brasil. Constituiu-se em uma maneira de observar a presença emergencial dos serviços prestados.
social da (o) psicóloga (o) e do movimento da Psicologia no seu A eleição do CAPS como área de investigação da atuação
Protagonismo Social. profissional de Psicólogas(os) surgiu a partir de uma demanda
Nesse sentido, a ideia fundamental é produzir informação da categoria, observada no V Congresso Nacional de
qualificada para que o Sistema Conselhos possa implementar Psicologia-CNP, realizado em 2004. Esse tema emergiu junto
novas propostas de articulação política visando maior reflexão a tantos outros que apontavam para o Sistema Conselhos a
e elaboração de políticas públicas que valorizem o cidadão necessidade de uma maior qualificação e orientação para a
enquanto sujeito de direitos, além de orientar a categoria sobre prática nos serviços públicos.
os princípios éticos e democráticos para cada política pública. Para tratar de tema tão caro para a Psicologia, a comissão de
Dessa forma, o objetivo central do Crepop se constituiu para elaboração dessa referência e com intuito orientar o texto desta
garantir que esse compromisso social seja ampliado no aspecto referência, decifiu por apresentar a seguir a definição do Serviço
da participação das(os) psicólogas(os) nas políticas públicas. no Centro de Atenção Psicossocial-CAPS, suas estruturas, a
Dentre as metas do Crepop estão, também, a ampliação da rede de atendimento para introduzir conceitos e contexto sobre
atuação da(o) psicóloga(o) na esfera pública, contribuindo para os quais esta referência tratará, fomentanto assim o imaginário
a expansão da Psicologia na sociedade e para a promoção dos e o interesse do leitor.
Direitos Humanos, bem como a sistematização e disseminação
do conhecimento da Psicologia e suas práticas nas políticas A Pesquisa do Crepop
públicas, oferecendo referências para atuação profissional
nesse campo. A metodologia de pesquisa do Crepop se divide em três
Cabe também ao Crepop identificar oportunidades circuitos: o primeiro é o Levantamento de Campo com o objetivo
estratégicas de participação da Psicologia nas políticas públicas, de delimitar o campo de investigação; o segundo trata da
além de promover a interlocução da Psicologia com espaços Investigação da Prática com objetivo de aplicar, em todos os
de formulação, gestão e execução em políticas públicas. Regionais, os instrumentos definidos como necessários para a
investigação nacional; e o terceiro a Produção de Referência
Objetivo e Campo de Atuação consiste no processo de elaboração de referências técnicas,
O conjunto de ações em pesquisa desenvolvidas pelo Sistema específicas para cada área investigada.
Conselhos de Psicologia, por meio do Crepop, está organizado O processo investigativo da Rede Crepop implica na
a partir da diretriz Investigação Permanente em Psicologia e construção e atualização de um banco de dados para comportar

19 20
informações referenciadas, inclusive geograficamente, sobre diferentes modalidades dos CAPS, fazer uma delimitação na
profissionais de Psicologia, legislações, documentos, programas abordagem da referencia técnica. A Comissão de especialistas
e entidades que desenvolvem ações no campo das Políticas do Documento de Referência sobre CAPS reconheceu as
Públicas. Faz parte da metodologia a participação voluntária, diferentes modalidades de CAPS, suas especificidades e, ao
tanto na etapa dos questionários quanto na etapa dos grupos. mesmo tempo, sua organização e funcionamento a partir de
Processo de elaboração de Referência Técnica princípios comuns.
Diante disso, este documento não pretende abordar aspectos
Os Documentos de Referência, ou Referências Técnicas, específicos a atuação em cada modalidade de CAPS. A escolha
são recursos que o Conselho Federal de Psicologia oferece feita durante o processo de elaboração do documento foi tomar
às (aos) psicólogas (os) que atuam no âmbito das políticas como referência a atuação nos CAPS I, II e III. A comissão
públicas, como instrumento para qualificação e orientação de entende que essa referência também contribuirá com o trabalho
sua prática profissional. em outros tipos de CAPS. Ao mesmo tempo, reconhece que a
Sua redação é elaborada por uma Comissão Ad-hoc atuação da (o) psicóloga (o) no CAPSi e no CAPS ad requer
composta por um grupo de especialistas reconhecidos por suas referências que respondam aos desafios específicos das
qualificações técnicas e científicas, por um conselheiro do CFP demandas neles atendidas.
mais um conselheiro do Comitê Consultivo e um Técnico do Vale destacar que o Sistema Conselhos de Psicologia, por
Crepop. O convite aos especialistas é feito pelo CFP e não meio do Crepop, possui o compromisso de também referenciar
implica em remuneração, sobretudo, porque muitos desses a prática profissional de psicólogas (os) nas políticas públicas
são profissionais que já vinham trabalhando na organização sobre Álcool e outras Drogas.
daquela política pública específica, e recebem o convite como
uma oportunidade de intervirem na organização da sua área de O Processo de Consulta Pública
atuação e pesquisa.
Nesta perspectiva, espera-se que esse processo de A Consulta Pública é um sistema criado e utilizado em várias
elaboração de referências técnicas reflita a realidade da prática instâncias, inclusive governamentais, com o objetivo de auxiliar
profissional e permita também que o trabalho que vem sendo na elaboração e coleta de opiniões da sociedade sobre temas
desenvolvido de modo pioneiro por muitas (os) psicólogas (os) de importância. Esse sistema permite intensificar a articulação
possa ser compartilhado, criticado e aprimorado, para uma entre a representatividade e a sociedade, permitindo que esta
maior qualificação da prática psicológica no âmbito das Políticas participe da formulação e definição de politicas públicas. O
Públicas. (CFP, 2012) sistema de consulta pública permite ampliar a discussão da
Para construir as Referências Técnicas para atuação no coisa pública, coletando de forma fácil, ágil e com baixo custo
CAPS, foi formada uma Comissão em 2009, composta por as opiniões da sociedade.
quatro especialistas que voluntariamente buscaram qualificar a Para o Sistema Conselhos de Psicologia/ Rede Crepop, a
discussão sobre atuação das (os) psicólogas (os) no campo da ferramenta de consulta pública abriu a possibilidade de uma
saúde mental. ampla discussão sobre a atuação da (o) psicóloga (o) no
Para elaborar o documento esse grupo precisou, a partir CAPS, permitindo a participação e contribuição de setores
das análises dos dados e resultados da pesquisa, que especializados, da sociedade em geral e, sobretudo, de toda
apresentavam a participação de psicólogas (os) atuando nas a categoria na construção sobre esse fazer da (o) psicóloga

21 22
(o). Assim, o processo de elaboração do documento torna-se
democrático e transparente.
Com relação ao documento de referências técnicas para
atuação de psicóloga (o) no CAPS, a consulta pública foi
realizada no período de 30 de abril a 26 de junho de 2012 e
contou com a participação de 338 psicólogas (os) e gestores
que tiveram acesso ao documento, tendo o texto em consulta
recebido, ao todo, 17 contribuições. Junto a esse processo foi
realizado um debate on-line, no dia 23/05/12, sobre o mesmo
tema com a participação de 2005 profissionais, gestores,
professores e alunos de Psicologia.

23
INTRODUÇÃO

26
INTRODUÇÃO um conjunto de equipamentos e serviços de atendimento
integral e humanizado, conforme descrito a seguir:
Para apresentar este tema tão caro para a Psicologia, a
comissão de elaboração dessa referência, com intuito de Centro de Atenção Psicossocial – CAPS: São instituições
orientar o texto, optou por construir uma introdução com a destinadas a acolher pessoas com sofrimento psíquico grave
definição do Serviço no Centro de Atenção Psicossocial-CAPS, e persistente, estimulando sua integração social e familiar,
sua estrutura e a rede de atendimento, para depois introduzir apoiando-os em suas iniciativas de busca da autonomia.
conceitos importantes, alem do contexto sobre os quais esta Apresenta como característica principal a busca da integração
referência tratará. dos usuários a um ambiente social e cultural concreto, designado
Os Centros/Núcleos de Atenção Psicossocial (CAPS/NAPS) como seu território, o espaço da cidade onde se desenvolve a vida
são serviços da rede pública de saúde que visam, como parte de cotidiana de usuários e familiares, promovendo sua reabilitação
uma rede comunitária, à substituição dos hospitais psiquiátricos psicossocial. Tem como preceito fundamental ajudar o usuário a
- antigos hospícios ou manicômios - e de seus métodos para recuperar os espaços não protegidos, mas socialmente passíveis
cuidar de transtornos mentais. Foram instituídos por meio da à produção de sentidos novos, substituindo as relações tutelares
Portaria/SNAS Nº 224 - 29 de Janeiro de 1992 (BRASIL, 2001). pelas relações contratuais, especialmente em aspectos relativos
A respeito da constituição do primeiro CAPS no Brasil, afirma à moradia, ao trabalho, à família e à criatividade.
Goldberg: “A expectativa dos profissionais dessa instituição A atual política prevê a implantação de diferentes tipos de
era oferecer um cuidado personalizado aos pacientes, com a CAPS:
complexidade que cada caso requer, por períodos tão longos
quanto o tipo da evolução de sua doença exigisse e sem afastá- • CAPS I – Serviço de atenção à saúde mental em municípios com
los da família e da comunidade” (GOLDBERG, 1998, p.12). população de 20 mil até 70 mil habitantes. Oferece atendimento
Assim, o CAPS é serviço estratégico na concretização da atual diário de 2ª a 6ª feira em pelo menos um período/dia.
política de Saúde Mental do Brasil, que pretende oferecer uma • CAPS II – Serviço de atenção à saúde mental em municípios com
rede de serviços substitutiva aos hospitais psiquiátricos, capaz população de 70 mil a 200 mil habitantes. Oferece atendimento
de responder às necessidades das pessoas com sofrimento diário de 2ª a 6ª feira em dois períodos/dia.
psíquico respeitando sua cidadania e o cuidado em liberdade. • CAPS III – Serviço de atenção à saúde mental em municípios com
No contexto da Reforma Psiquiátrica, os serviços substitutivos população acima de 200 mil habitantes. Oferece atendimento
devem ter a missão de superar o paradigma manicomial, em período integral/24h.
direcionados por novas bases e valores éticos que venham a • CAPS ad – Serviço especializado para usuários de álcool e
produzir uma nova forma de convivência solidária e inclusiva. outras drogas em municípios de 70 mil a 200 mil habitantes.
Os CAPS têm se constituído como dispositivos que buscam • CAPS ad III – Serviço especializado para usuários de álcool e
tornarem-se substitutivos às internações psiquiátricas, outras drogas em municípios com população acima de 200 mil
oferecendo, além da atenção à crise, um espaço de convivência
e a criação de redes de relações que se alarguem para além dos
locais das instituições, atingindo o território da vida cotidiana 1 - Para conhecer toda metodologia de elaboração dos documentos de
referências técnicas do Sistema Conselhos/Rede Crepop, ver Documento de
dos usuários. Metodologia do Crepop 2011, in http://crepop.cfp.org.br
Atualmente, a Rede de Saúde Mental é composta por 2 - Ver http://crepop.cfp.org.br

27 28
habitantes, por período integral/24h. drogas: São leitos de retaguarda em hospital geral com
• CAPS i - Serviço especializado para crianças, adolescentes e metas de implantação por todo o Brasil. (BRASIL, 2012).
jovens (até 25 anos) em municípios com população acima de
200 mil habitantes. Centros de convivência: Os Centros de Convivência são
estratégicos para a inclusão social das pessoas com transtornos
Segundo dados atualizados do Ministério da Saúde, existem mentais e pessoas que fazem uso de crack, álcool e outras
hoje no Brasil 822 CAPS I; 431 CAPS II; 63 CAPS III; 272 drogas, por meio da construção de espaços de convívio e
CAPS ad e 149 CAPSi e 5 CAPS ad III perfazendo um total de sustentação das diferenças na comunidade e em variados
1742 serviços. (Saúde Mental em dados 10 - BRASIL, 2012) espaços da cidade. (BRASIL, 2011). Estes dispositivos
ainda não recebem financiamento do Ministério da Saúde.
Serviços Residenciais Terapêuticos – SRT: São casas
localizadas no espaço urbano, constituídas para responder às Unidade Básica de Saúde: A Unidade Básica de Saúde
necessidades de moradia de pessoas com sofrimento psíquico como ponto de atenção da Rede de Atenção Psicossocial tem
graves, egressas de hospitais psiquiátricos ou hospitais de a responsabilidade de desenvolver ações de promoção de
custódia e tratamento psiquiátrico, que perderam os vínculos saúde mental, prevenção e cuidado dos transtornos mentais,
familiares e sociais; moradores de rua com transtornos ações de redução de danos e cuidado para pessoas com
mentais severos, quando inseridos em projetos terapêuticos necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras
acompanhados nos CAPS. São 625 casas implantadas drogas, compartilhadas, sempre que necessário, com os demais
no Brasil, com 3.470 moradores em 2011. (BRASIL, 2012) pontos da rede. As ações da Estratégia de Saúde da Família
(ESF) e Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) estão
Programa de Volta para Casa – PVC: Este programa foi referenciadas nas Unidades Básicas de Saúde. (BRASIL, 2011)
instituído pela Lei Federal 10708 de 31 de julho de 2003, e
tem por objetivo garantir a assistência, o acompanhamento e a Consultório na Rua: Equipe constituída por profissionais
integração social, fora da unidade hospitalar, de pessoas com que atuam de forma itinerante, ofertando ações e cuidados de
sofrimento psíquico, com história de longa internação psiquiátrica saúde para a população em situação de rua, considerando suas
e também nos hospitais de custódia e tratamento (02 anos ou diferentes necessidades de saúde. No âmbito da Rede de Atenção
mais de internação ininterruptos). É parte integrante deste Psicossocial é responsabilidade da Equipe do Consultório na
Programa o auxílio-reabilitação, pago ao próprio beneficiário Rua ofertar cuidados em saúde mental para (i) pessoas em
durante um ano, podendo ser renovado, caso necessário. São situação de rua em geral; (ii) pessoas com transtornos mentais
3.961 beneficiários do PVC no país em 2011. (BRASIL, 2012) e (iii) usuários de crack, álcool e outras drogas, incluindo
ações de redução de danos, em parceria com equipes de
Serviço Hospitalar de Referência para atenção a pessoas outros pontos de atenção da rede de saúde. (BRASIL, 2011)
com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades
de saúde decorrentes do uso de álcool, crack e outras Escola de Redutores de Danos (ERD): As Escolas de Redutores
de Danos do SUS tem como objetivo a qualificação da rede de
serviços, por meio da capacitação teórica e prática de segmentos
profissionais e populacionais da comunidade, que atuarão na

29 30
rede de atenção substitutiva em saúde mental, com a oferta de pesquisa e produção de referência pelo Crepop.
ações de promoção, prevenção e cuidados primários, intra ou Em Dezembro de 2011, o governo brasileiro estabelece entre
extramuros, que superem a abordagem única de abstinência. suas prioridades na saúde, a Rede de Atenção Psicossocial
(BRASIL, 2010). (RAPS) pela Portaria GM/MS nº 3.088/2011 –, preconiza o
Em 2005, o Ministério da Saúde apresentou como referência atendimento a pessoas com sofrimento ou transtorno mental e
para constituição de rede de saúde mental o seguinte desenho: com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras
drogas. Essa portaria impacta diretamente a estrutura da Rede
de atendimento da Saúde Mental.
A RAPS passam a serem formadas por sete componentes
da Rede de Saúde, desde a Atenção Básica , passando
pela Atenção Psicossocial Especializada, a Urgência e
Emergêncian e a Atenção Residencial de Caráter Transitório.
As RAPS também são compostas pelos componentes da
Atenção Hospitalar, Estratégias de Desinstitucionalização e a
Reabilitação Psicossocial.

Resultados da Pesquisa CREPOP/CFP

A pesquisa sobre atuação de psicólogas(os) no CAPS


foi realizada no ano de 2007, entre os meses de setembro
a novembro, tendo sido realizada em duas etapas, uma
etapa nacional, do tipo descritiva, a partir de um instrumento
online; e uma etapa qualitativa, realizada pelas unidades
Fonte: Extraído do Relatório 15 anos após Caracas - Ministério da Saúde, 2005, p. 26. locais do Crepop, localizadas nos Conselhos Regionais.
Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf.
Ressalta-se que, à época, o Sistema Conselhos contava
com apenas 16 Crepop’s Regionais. Serão apresentados a
Nesta perspectiva a implementação da rede substitutiva seguir alguns dados relativos à pesquisa realizada com as(os)
priorizou de forma estratégica a implantação e ampliação dos psicólogas(os) que atuavam nos CAPS no ano de 2007.
CAPS, tornando acessível outro modo de cuidado, a redução
de leitos em instituições psiquiátricas e consequentemente a Etapa Descritiva – Questionário online:
construção de uma nova cultura assistencial, dando visibilidade
à questão da saúde mental. É importante salientar que no Os resultados da pesquisa descritiva revelaram um conjunto
processo de implantação da reforma psiquiátrica até o ano de 382 psicólogas(os) respondentes. Sobre os aspectos
de 2010 haviam sido fechados 32.735 leitos em Hospitais sociodemográfico a pesquisa apresentou o seguinte perfil,
Psiquiátricos no Brasil. (BRASIL, 2011) 82,7% de mulheres; 39,1% com até 30 anos de idade; 37,2%
É pelo papel estratégico dos CAPS na rede substitutiva encontram-se na região Sudeste. Sobre a formação, a pesquisa
de cuidado em saúde mental que se justifica sua eleição para identificou que 71,1% têm pós-graduação, sendo 81,3%

31 32
especialização Latu-sensu e 59% é da área da Psicologia atendendo usuárias/os nos CAPS, em hospitais ou indo às
Clínica; 16,1% exercem atividade docente; 30,8% realizaram suas casas. Alguns profissionais também atuam produzindo
pesquisa científica sobre o tema. reflexões e conhecimento sobre o trabalho em Psicologia
Sobre a atuação profissional foi identificado que as/ através da publicação de artigos ou pesquisas, da divulgação
os respondentes atuavam em diferentes modalidades de do trabalho desenvolvido por variados meios de comunicação
atendimento nos CAPS. Destes, 43,2% trabalhavam em CAPS (jornais locais, rádios comunitárias, entre outros).
I, 32,5% em CAPS II; 13,4% em CAPS ad; 7,9% em CAPSi A análise dos desafios, segunda questão, foi realizada
e 3,1% em CAPS III. Quanto ao tempo de atuação, 38,1% identificando os principais temas presentes nas respostas.
atuavam no CAPS há menos de dois (2) anos; 85,3% trabalham Quase totalidade dos registros feitos pelas/os participantes
em Organizações Públicas; 39,4% têm vínculo de trabalho da pesquisa, os desafios estão intimamente associados às
regido por Estatuto de Servidores Públicos. Destaca-se como dificuldades vividas no cotidiano. Foram apontadas questões
dado importante para a citada pesquisa, a identificação de políticas e administrativas, que se fizeram presentes quando
que apenas 33,1% do total, embasam seu trabalho na Política falaram sobre: implementação das políticas públicas;
Nacional de Saúde Mental. Ainda sobre desenvolvimento especificidades locais; burocracia; a inexistência e implantação
do trabalho no CAPS, 35,5% desenvolvem atividades de de rede de assistência integrada a esses serviços específicos
assistência/ tratamento Psicológico; 88% trabalham em de atenção em saúde mental e modos de lidar com os desafios
conjunto com equipe multiprofissional reduzida; 52,7% utilizam políticos/administrativos. Houve relatos que se remeteram
frequentemente entrevistas como recurso de trabalho; mais diretamente à instituição/local de trabalho em que as(os)
Ainda na pesquisa descritiva havia quatro questões abertas psicólogas(os) atuavam, como espaço físico e recursos
acerca das questões do dia-a-dia das(os) psicólogas(os). A materiais; demanda e recursos humanos; as condições de
primeira questão pedia “descreva em detalhes o que você faz trabalho; e modos de lidar com os desafios relativos à instituição/
em uma semana típica de trabalho, com ênfase nas atividades local de trabalho.
relacionadas ao campo do CAPS”. A segunda, “Quais são os Os relatos sobre a formação e a prática profissional
desafios específicos que você enfrenta no cotidiano de seu foram sobre: capacitação: formação e atualização; exercício
trabalho e como você lida com estes?”. A terceira, “Quais profissional; saúde do trabalhador; e reconhecimento da
novas práticas você e/ou seus colegas têm desenvolvido ou profissão e/ou da(o) profissional. Sobre os modos de lidar com
conhecem que estão produzindo bons resultados que podem os desafios relativos à formação e a prática profissional, uma
ser consideradas uma inovação neste campo. Descreva cada das principais estratégias adotadas para lidar com os déficits
uma dessas novas práticas e indique onde podemos encontrá- da formação profissional em Psicologia e com a ausência de
la (e-mail ou outra forma de contato)”. Por fim, “Sugestões e capacitações nos locais de trabalho é a busca de cursos de
comentários adicionais”. especialização, de pós-graduação, a organização de grupos de
Ao descreverem o que fazem no dia-a-dia, primeira questão, estudos para que a equipe toda estude e discuta os princípios do
as(os) psicólogas(os) caracterizaram a população atendida movimento antimanicomial e a luta para conseguir a supervisão
e as ações específicas que realizam sozinhos e em equipe
multidisciplinar. Dentre as tarefas cotidianas destas(es) 3 - Informação verbal, são falas de psicólogas (os) e gestores atuante nos Centros
profissionais, são realizados atendimentos individual ou grupal. de Atenção Psicossocial, coletadas nos grupos realizados pelos Conselhos
Atuam ainda em situações de crise, em caráter de urgência, Regionais, pesquisa qualitativa Crepop, de psicólogas (os) e gestores atuante
nos Centros de Atenção Psicossocial.

33 34
institucional. Já os relatos sobre a relação com os usuários são Diferentemente, os grupos fechados são compostos apenas
indicados vários desafios relativos ao trabalho desenvolvido por profissionais da psicologia que estão trabalhando em
com os usuários e seus familiares e aos modos como estes CAPS e têm por objetivo promover a discussão de temas mais
se relacionam com as atividades propostas. Outro desafio específicos à realização do trabalho psicológico neste campo.
muito presente nesta relação com o usuário é o de lidar com as As Reuniões Específicas foram propostas pelo Crepop
dificuldades socioeconômicas dos usuários, e com sua adesão Nacional e organizadas localmente pelos CRPs. As reuniões
às atividades oferecidas. Por fim, nesta segunda questão, foram foram orientadas a partir de roteiros previamente elaborados. É
relatados os desafios do trabalho com outros profissionais. No importante ressaltar que alguns CRPs se mostraram cientes da
CAPS o trabalho da(o) psicóloga(o) é realizado muitas vezes diferença entre o que foi solicitado/orientado e o que foi possível
em conjunto com profissionais da equipe multiprofissional que realizar. Um dos aspectos apontado, por técnicas/os dos CRPs,
compõe o CAPS e algumas vezes envolve o trabalho com foi a dificuldade de contatar os profissionais dos CAPS:
profissionais de outros serviços e de outras áreas.
As respostas à questão três da pesquisa apresentavam três Inicialmente, tentamos entrar em contato com a
eixos argumentativos principais: “conheço novas práticas”; “não Coordenação de Saúde Mental – COSAM, através
conheço novas práticas”; e “não há inovação”. Destaca-se que da Secretaria de Saúde, mas numa ida ao prédio da
as respostas quanto a conhecer novas práticas na maioria das Secretaria onde antes funcionava, soubemos que a
COSAM não funcionava mais lá. Depois de um tempo,
vezes, refere-se às experiências da/o própria/o profissional que
soubemos que foi transferida para o local onde funciona
participou, praticamente não havendo referências a outras/os. o Instituto de Saúde Mental. (...) Quinze dias após,
Por fim, a questão quatro era um espaço aberto para recebemos uma resposta com os contatos dos CAPS e
comentários e sugestões, os registros feitos pelas/os solicitando que nos dirigíssemos diretamente à gerência
participantes foi possível identificar que a maioria das do CAPS pedindo as informações sobre os psicólogos.
respostas era relativa a sugestões dirigidas a diferentes Neste meio tempo, a técnica já havia entrado em
interlocutores. Entre eles endereçadas principalmente a contato com o Adolescentro, por já conhecer o pessoal
esfera governamental/ gestores públicos; universidades/ que lá trabalha, e com o COMPP, por ser perto de sua
faculdades; e a outras/os profissionais da Psicologia que residência. (CREPOP/CFP, 2007)3
atuam em CAPS, que fogem ao alcance desta pesquisa. As
sugestões ao Sistema Conselhos de Psicologia/Crepop foram Os resultados da pesquisa qualitativa identificaram que a
de novas pesquisas que serão consideradas posteriormente. implantação dos CAPS ocorria de maneira distinta nas diferentes
regiões do Brasil, apontando que os principais problemas
Etapa Qualitativa – Reuniões Específicas (RE) e Grupos eram relativos à ausência de políticas locais (estaduais e
Fechados (GF): municipais) e, consequentemente, de investimentos nos CAPS
e nos equipamentos da rede de saúde mental, visto que, foram
As reuniões específicas e os grupos fechados têm objetivos registrados relatos de que, em muitos locais, não existia uma
diferentes. As reuniões específicas são abertas à participação rede de atenção à saúde mental ou, quando esta existia, não
de profissionais que atuam nos CAPS, gestores, estudantes/ estava articulada adequadamente.A análise qualitativa dos dados
estagiários, além das (os) psicólogas (os), e buscam discutir apontou também para questões de inconsistência técnica diante
a situação do campo pesquisado em determinada região. das propostas da Política Nacional de Saúde Mental, como a
permanência de um modelo de atenção centrado na figura do

35 36
médico; uma tensão entre uma abordagem psicossocial e uma de encaminhamento de algum usuário para outro tipo de serviço
abordagem estritamente clínica; e que em alguns lugares, as na área, uma estratégia utilizada para que isso ocorra se dá pelo
ações de saúde mental ainda estão restritas ao espaço do CAPS, conhecimento entre os profissionais das diferentes instituições:
assim, a forma como a política está estruturada acaba contribuindo
para o “aprisionamento” das ações no interior da unidade. Não há rede de referência articulada; os trabalhos em
rede geralmente têm mais a ver com relações mais
“CAPS de interior é CAPS tudo(..) eu acho que é a próximas (pessoais) entre o profissional do CAPS com
grande barreira que vamos tentar ultrapassar, porque a outros, o que garante uma funcionalidade mínima da
história do psicólogo que tá fazendo só os grupos, isso tá rede. A própria Coordenação de Saúde Mental do Estado
relacionado à história das APACS. E no interior é muito não estimula nem oferece direção para esse tipo de
complicado. A sobrevivência de CAPS é muito complexa” trabalho, nem há relatos dessa atividade das secretarias
(...) “E outra coisa também é que os psicólogos e municipais de saúde. (CREPOP/CFP, 2007)
profissionais precisam fazer o trabalho extra muro. E
esse trabalho significa não estar ali fazendo as oficinas Apareceram diversos problemas em relação ao espaço físico e
e não estar necessariamente gerando uma APAC na à falta de infraestrutura:
verdade fazemos entender que esse é o trabalho mais
importante do CAPS.” (CREPOP/CFP, 2007) As unidades representadas não possuem uma estrutura
física adequada, há uma grande dificuldade em atender
Sobre a prática profissional da(o) psicóloga(o), a análise aos usuários devido ao espaço (não apropriado), o que
dos dados demonstrou que, em geral, aparecem dificuldades muitas vezes impede de ser realizado um bom trabalho,
de diversas ordens, desde a falta de profissionais, ausência de inclusive nos trabalhos das oficinas. (CREPOP/CFP,
supervisão, falta de formação continuada, além da dificuldade 2007)
de articular uma rede de referência na região para ampliar as
possibilidades de cuidado com os usuários, para transformar o Em outra unidade o espaço físico do CAPS é compatível
com a demanda, mas o que complica é que o ambulatório
modelo de atenção às pessoas com sofrimento psíquico e garantir
psiquiátrico funciona no mesmo lugar e em dias de
os princípios do SUS. atendimento complica um pouco. (CREPOP/CFP, 2007)
Nos relatos das reuniões foi evidenciado que em muitos locais
não existe uma rede de atenção à saúde mental ou esta não está Muitas foram as queixas referentes à falta de recursos materiais.
articulada: Esses englobam desde material de escritório, alimentação para os
usuários, transporte para visitas domiciliares, até medicamentos:
Na maioria das cidades/comunidades não existem serviços
de reabilitação psicossocial, com os quais as equipes dos
Transporte para os usuários – entre as dificuldades
CAPS possam construir uma ação complementar; (...) O
materiais trazidas pelo grupo destacou-se a falta de
que existe em alguns locais são reuniões entre serviços
transporte para os usuários. Faltam carros para realização
da rede pública. Em geral setoriais, em poucos casos
das visitas e transportes coletivos para atividades extra-
observa-se ações intersetoriais, mas que não chegam a
muros realizadas pelo Caps. (CREPOP/CFP, 2007)
funcionar como rede; (CREPOP/CFP, 2007)

Na ausência de uma rede articulada, quando há necessidade Os Grupos Fechados foram propostos buscando analisar as

37 38
especificidades do trabalho dos profissionais da Psicologia nos A atuação multiprofissional é freqüente e valorizada, mas
CAPS, nos modos de atuação e nos principais conflitos e dilemas há alguma insegurança quanto a ações intersetoriais,
vividos no cotidiano da prática profissional. principalmente relacionadas a diagnose. É comum, ainda
Os relatos indicam que de um modo geral as (os) psicólogas iniciativas de planejamento conjunto das ações e de
supervisão técnica, além de estudos de caso. (CREPOP/
(os) desenvolvem uma multiplicidade de tarefas no contexto do
CFP, 2007)
CAPS e que há demandas tanto para atividades clínicas quanto
Estamos aprendendo a fazer Psicologia dentro dos
psicossociais, como indica o relato: serviços, estamos aprendendo a trabalhar em equipe,
porque até então a nossa prática profissional era muito
Foi relatado, também, que, nos CAP’s os/as profissionais mais aquela tradicional, em consultório, com hora
de Psicologia desenvolvem as seguintes atividades: marcada, com o seting terapêutico estabelecido. Para o
triagem, coordenação de grupo operativo, atendimento CAPS nós vamos fazer as adequações de acordo com a
e acompanhamento individual (como técnico de realidade de cada oficina, levando-se em consideração
referencia), encaminhamento para profissionais a criatividade das pessoas, levando-se em consideração
específicos, inclusive psicoterapeuta, atendimento à também o que está sendo trabalhado naquele momento.
família, palestra para os usuários e família, tanto na (CREPOP/CFP, 2007)
própria instituição, CAPS, como nas comunidades de
origem dos usuários. (atividade de caráter preventivo). O trabalho em grupo no contexto do CAPS também foi muito
Realizam também, reuniões técnicas (com a equipe de
valorizado nos relatos e para alguns este trabalho é um facilitador
trabalho para discussão de admissões, altas e situações
diversas), reuniões clínicas (com todas as equipes, com
da ressocialização:
De acordo com os profissionais as potencialidades e
estudo, discussão de casos, informes e pontos de pauta),
possibilidades da Psicologia nos CAPS tratam-se da
reuniões administrativas (abrange todos os funcionários
realização de atendimentos que priorizem o trabalho
a fim de tratar assuntos gerais), evolução de prontuários,
em grupo, buscando através destes atendimentos a
visitas institucionais para estabelecer parceria e rede
ressocialização dos usuários e por meio das oficinas de
de apoio psicossocial, visitas a residência dos usuários,
geração de renda e reinserção no trabalho. (CREPOP/
elaboração de laudos, organização e elaboração de
CFP, 2007)
eventos comemorativos com a participação dos técnicos,
usuários e familiares, atendimento em situação de crise
e supervisão de estagiários. Essas atividades são Organização do Documento
desenvolvidas tanto individualmente quanto em dupla
ou em grupos com outros profissionais. (CREPOP/CFP, O documento de referencias técnicas para a prática de
2007) psicólogas(os) no centro de atenção psicossocial - CAPS, está
dividido da seguinte forma:
Um aspecto que aparece em vários relatos é relativo à Eixo I – Dimensão Ético-Política das Políticas de Saúde
centralidade do trabalho em equipe e à importância da articulação Mental A proposta deste eixo é discutir aspectos da evolução
dos diversos profissionais que compõem as equipes: das políticas de saúde e saúde mental no Brasil, como subsídio
para uma melhor compreensão dos aspectos históricos que
Lá a gente não tem esse negócio de ‘é meu, é seu’, lá influenciaram a constituição do Sistema Único de Saúde e o
a gente tenta trabalhar como equipe. (CREPOP/CFP, processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil. O eixo aborda
2007)

39 40
a temática Reforma Psiquiátrica como um marco histórico e
conceitual de transformação na saúde mental, destacando a
importância deste movimento para essa reestruração das práticas
de saúde no país.
Eixo II – Psicologia e Políticas Públicas de Saúde Mental:
a necessária mudança de perspectiva
O objetivo deste eixo é buscar compreender a relação histórica
da Psicologia com as Políticas Públicas de Saúde, especialmente
no âmbito da Saúde Mental. Destaca-seDestacando a inserção
da Psicologia na Saúde Pública pelo mote do movimento da
Reforma Psiquiátrica, valorizando este como balizador para a
relação da Psicologia e a Saúde Metal. O eixo aborda ainda quais
as teorias em Psicologia e Atenção à Saúde Mental se relacionam
com as práticas das (os) Psicólogas(os) nos CAPS.
Eixo III – A Atuação da (o) Psicológica (o) na Política do
CAPS
Pretende-se neste eixo trazer à reflexão a atuação de
psicólogas(os) nos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS,
abordando o modo de fazer, a desinstitucionalização da prática
e intervenção na cultura, a criação de lugares de tratamento e
convívio entre diferentes, de realização de trocas simbólicas e
culturais. O eixo também propõe a reflexão sobre os desafios da
clínica no território e o confronto com as prática da internação,
abordando os lugares e as práticas que desconstroem, em seu
fazer cotidiano.
Eixo IV – Gestão do Trabalho
O objetivo deste eixo é analisar as relações da Gestão
dos Serviços e Processos de Trabalho nos CAPS a partir da
implementação e consolidação do Sistema Único de Saúde. O
eixo retrata das ações de promoção, prevenção e recuperação
na rede de serviços, nos diferentes níveis de gestão, refletindo
sobre a necessidade de se garantir a perspectiva de uma gestão
participativa.
No final, o documento apresenta uma lista de referências que
clarificam e complementam questões abordadas no texto. Essas
referências são importantes para embasar práticas e estudos
além deste documento.

41 42
EIXO I: DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA
DAS POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL

43 44
EIXO I: DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA DAS POLÍTICAS de inserção escolar; a segunda, refere-se a um processo
DE SAÚDE MENTAL político de transformação da assistência pública ofertada aos
portadores de sofrimento mental. Um processo crítico que propõe
a superação do manicômio ou do hospital psiquiátrico como
Considerações Sobre as Políticas de Saúde No Brasil
resposta às questões postas pela loucura, por meio da criação de
novos lugares de tratamento – os serviços substitutivos, que se
Esse eixo tem por objetivo discutir alguns aspectos da
constituem como espaços de convívio, sociabilidade e cuidado e
evolução das políticas de saúde e saúde mental no Brasil, como
ferramentas de mudança da percepção social sobre a experiência
subsídio para uma melhor compreensão dos aspectos históricos
da loucura e o cidadão em sofrimento mental.
que influenciaram a constituição do Sistema Único de Saúde e
Tanto a saúde mental quanto a reforma psiquiátrica, na resposta
o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil. Esse sistema se
que dão à demanda social, correm sempre o risco de servir à
sustenta numa concepção de política pública na qual o Estado,
normalização dos sujeitos, quando descuidam de questionar os
entendido como Estado Democrático de Direito, se organiza
discursos que em nome da boa saúde, propõe a anulação das
para oferecer respostas aos problemas sociais, considerando
diferenças, a produção da igualdade, não dos direitos, mas dos
os direitos sociais historicamente conquistados pela sociedade,
comportamentos, como saída exitosa de um tipo de tratamento.
dentre eles, aqueles relacionados à saúde.
De todo modo, é preciso reconhecer que o Ministério da
No nosso país, a situação crítica no enfrentamento dos
Saúde fez uma priorização, por meio da política e do processo
problemas de saúde da população impôs a necessidade de
da Reforma Psiquiátrica, de atender a população com sofrimento
mudanças e desencadeou, a partir do final da década de 70, o
mental com quadros clínicos mais graves, levando em conta
processo da Reforma Sanitária, que culminou com a construção
os princípios da equidade do SUS. Considera-se que a saúde
do Sistema Único de Saúde, garantido pela Constituição Federal
mental é um conceito muito mais abrangente e abarca uma serie
de 1988, no seu capitulo II que trata da Seguridade Social,
de outras pessoas com sofrimento mental que também merecem
especificamente na seção II que trata do direito à saúde - art. 196
cuidados, bem como intervenções em diversos projetos da saúde
a 200 (Brasil, 1988). A estruturação e a implementação desde
pública e outros projetos de políticas sociais. A construção das
então é um processo dinâmico e permanente. Concomitante a este
políticas de saúde no Brasil tem antecedentes históricos que
processo, impulsionada pelo Movimento de Luta Antimanicomial,
merecem destaque. Apresentaremos a seguir alguns deles. Vale
foi implementada uma nova política de Saúde Mental, com o foco
salientar que a sistematização que passa a ser apresentada está
prioritário na construção de uma rede substitutiva aos Hospitais
baseada na obra de alguns autores, aqui citados. A partir da leitura
Psiquiátricos.
desses autores, fizemos uma divisão por períodos, resumindo
Vale destacar uma diferença: no campo da saúde pública, a
o funcionamento da política de cada período. Enfatizamos que
saúde mental é o locus da Reforma Psiquiátrica, entretanto, há
este trabalho não pretende ser uma extensa revisão bibliográfica
entre saúde mental e reforma psiquiátrica, diferenças significativas.
sobre histórias de saúde pública no Brasil, mas situa alguns
Enquanto a primeira pode ser compreendida como inscrição de
marcos importantes para uma contextualização básica acerca dos
diferentes estratégias que visam a produção de algum modo de
inclusão de questões subjetivas na produção de bem-estar e de
4 - Sobre esses acontecimentos, ver filme “Políticas de Saúde no Brasil: um
saúde, alcançando a diferentes sujeitos e situações, por exemplo: século de luta pelo direito à saúde” - Documentário do cineasta Renato Tapajós,
atividades voltadas para o empoderamento de mulheres vítimas lançado pelo Ministério da Saúde em 2006. Na verdade é uma versão atualizada
de processos de exclusão ou violência, crianças com dificuldades de um filme de 1982.

45 46
serviços cujas referências para atuação são aqui apresentadas. o país nesse momento. Nesse contexto e em plena política de
No Brasil Colonial, o arcabouço político-administrativo era higienização, em meados do século XIX, mais precisamente em
marcado por estratégias de dominação entre os colonizadores 1852, ainda no Brasil imperial, foi criado pelo Estado o primeiro
e a população local, transformando as relações sociais, de hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro, o Hospital Dom Pedro II.
trabalho e produção local até então existentes, numa relação de Assim, é nesse contexto que o Brasil vai reeditar, num primeiro
submissão da população da colônia às normas e gerenciamento momento, em certa medida aquilo que representou nos países
do país colonizador. Segundo Somarriba (1984), nos séculos XVI europeus ao longo do século XVII a grande internação, como
e XVII, as ações de saúde eram quase inexistentes como ações prática de recolhimento daqueles que representam a desordem,
estatais e existia um número irrisório de médicos. Práticas dos a partir de um projeto de controle social. Gradativamente e com
curandeiros, parteiras e afins eram predominantes em nossa o desenvolvimento e o fortalecimento da presença do saber
sociedade. As primeiras ações de caráter mais coletivo foram psiquiátrico e de outras ciências afins na organização da instituição
feitas pelos senhores de engenho e tais ações eram dirigidas médica recém inaugurada, essas práticas se especializam e
à mão-de-obra escrava. O aumento da demanda externa por ganham cada vez mais cientificidade, aprimorando-se diagnósticos
produtos agrícolas, de um lado e, ao mesmo tempo a escassez de e práticas médicas voltadas à cura da doença mental.
mão de obra, reduzida ao trabalho dos escravos nesse período, Analisando historicamente as políticas de saúde mental no
tornou interessante e necessário, para os senhores de engenho, Brasil, devemos considerar que, do ponto de vista das ações do
curar e estender a vida de seus escravos. Algumas medidas Estado, a política de assistência para o chamado louco, durante
foram tomadas de maneira mais homogêneas, como: proteção muitos anos, se pautou pelo oferecimento à população de
à mãe escrava e aos recém-nascidos, instalação de enfermarias tratamento em Hospitais Psiquiátricos, manicômios ou hospícios.
e cuidados com a alimentação, vestuário e higiene nas grandes Sabe-se que essa oferta não se deu por acaso, mas estava, e
fazendas. Em relação à saúde mental, existiam algumas ainda está, sustentada no chamado saber cientifico da psiquiatria,
instituições, do tipo abrigos, que eram gerenciados pela Igreja disciplina da Medicina que se constituiu de forma efetiva no final
Católica e que abrigavam os chamados loucos, muito embora, do século XIX e que ganhou através de Philipe Pinel, médico
em grande parte, essas pessoas eram assimiladas e toleradas francês, o estatuto de ciência. A partir de então, a loucura passou
nas relações sociais cotidianas. Essa situação se estende até a ser do domínio da medicina e a ser reconhecida como doença
o período imperial, quando se instalam no Brasil as primeiras mental. Enquanto tal passou a ser tratada em instituições próprias
instituições hospitalares e o desenvolvimento de práticas e especificas, destinadas a esse fim. Dessa forma surgiu o
científicas de saúde. A vinda da família real ao Brasil inaugura manicômio ou hospital psiquiátrico, designado templo da loucura,
processos de desenvolvimento social, científico e econômico, mas, sobretudo, da ciência e graças a ele a psiquiatria criou corpo,
de emergência de formação intelectual e de institucionalização enquanto especialidade. Essa história se repete, então, no Brasil.
antes não assistidos no país. Nesse momento, o Brasil é cenário Foi no espaço dos hospícios que se criaram as primeiras gerações
de fortalecimento e incentivo ao pensamento científico e a todo de psiquiatras brasileiros, quando ainda nem havia uma cátedra
aparato institucional de sua sustentação. A metrópole é aqui. de psiquiatria nas faculdades de medicina. O manicômio, local
Por isso, o Brasil é também cenário onde se instalam práticas onde a loucura deve-se desvelar para o conhecimento médico,
higienistas nos centros urbanos em expansão e onde o pensamento representa a própria possibilidade de existência da psiquiatria.
eugênico ganha força a serviço da institucionalização de formas Segundo Filho (1996), com a proclamação da República em
de pensar e de agir que respondam ao projeto emergente para 1889, surge a necessidade da criação de um estado-nação.

47 48
Isso, contudo, não destruiu as Oligarquias Regionais e nem os composta de grupos de oligarquias e da burguesia emergente. A
resquícios monarquistas centralizadores. Na Primeira Fase da marca do governo foi de uma postura autoritária, instalando uma
República (1889-1930), a saúde teve como característica principal estrutura administrativa corporativa, sob o arcabouço político
o caráter filantrópico e emergencial. A saúde pública é tratada populista. Dois pontos merecem destaque no que tange à saúde
como área específica e seus recursos destinados à assistência (FILHO, 1996). O primeiro deles diz respeito ao fato da Constituição
médico-hospitalar e ações coletivas de controle de epidemias .4 de 1934 ter definido as responsabilidades específicas do Estado
Do ponto de vista da saúde mental, o advento da República no que se refere à legislação sobre normas de assistência
vai concretizar e intensificar a perspectiva citada acima de social, às estatísticas de interesse coletivo, ao exercício das
transformação da loucura em doença mental e, portanto, objeto profissões liberais e técnico-científicas, aos cuidados com a
de saber médico especializado. O Hospício Pedro II passa a se saúde e assistência públicas, à fiscalização das leis sociais,
chamar Hospital Nacional de Alienados e é transformado em às garantias na legislação trabalhista de assistência médica e
instituição pública em 1890. Sua natureza assistencial e seu sanitária aos trabalhadores e à gestante. Em relação ao segundo
caráter religioso perdem espaço para o caráter científico e para ponto que merece destaque, afirmamos a responsabilidade da
o projeto médico curativo orientado pela perspectiva da ciência União, Estados e Municípios no estímulo à educação eugênica,
positivista. Também em 1890 é criada a “Assistência Médica e no amparo à maternidade e à infância, na adoção de medidas
Legal dos Alienados” para organização da assistência psiquiátrica legislativas e administrativas, no compromisso com a restrição
no Brasil. Em 1903 temos a primeira Lei Federal de Assistência da mortalidade e morbidade infantis e na determinação de
aos Alienados. Percebe-se a clara institucionalização e ações de higiene social, para impedir a propagação de doenças
cientificização do tratamento à loucura no Brasil. Assistiu-se nesse transmissíveis. Nesse contexto, foi proposto o cuidado da higiene
período a participação da psiquiatria nas ações de saneamento mental e houve incentivo à luta contra os venenos sociais.
e reorganização da vida urbana. Não à toa, vê-se crescer na Do ponto de vista da assistência psiquiátrica, é promulgada
população psiquiátrica em 31% o conjunto de estrangeiros. em 1934 a segunda Lei Federal de Assistência aos Doentes
Além disso, destaca-se a implementação das colônias agrícolas Mentais que “dispõe sobre a profilaxia mental, a assistência e a
como aperfeiçoamento dos hospícios e a expansão do projeto proteção à pessoa dos psicopatas e a fiscalização dos serviços
medicalizante. Ganham força as ideias de prevenção, profilaxia e psiquiátricos”. A internação psiquiátrica é reforçada como principal
higiene mental, apoiadas nas teorias das degenerescências, que meio de tratamento, assim como o poder do psiquiatra na direção
preveem predisposições individuais hereditárias para as doenças dos serviços. A Lei também é responsável por afirmar, parcial
mentais. É assim que a análise e o crivo moral adquirem caráter ou totalmente, a suspensão da cidadania do doente mental.
médico-científico de diagnóstico e que o projeto eugenista ganha Ainda como marca da nova perspectiva em relação ao papel do
legitimidade no país. Nessa perspectiva, é criada em 1923 a Liga Estado na gestão da saúde, a criação do Serviço Nacional de
Brasileira de Higiene Mental. Assim, problemas sociais diversos Doenças Mentais é responsável pela federalização da assistência
e uma série de processos que representavam degradação psiquiátrica no Brasil nos anos de 1940. (ROSA, 2003)
moral são naturalizados e tem sua responsabilidade atribuída Na Terceira Fase da República (1946-1964) destaca-se a
às suas vítimas, por meio das perspectivas e leituras biológicas, Constituição de 1946. A partir dela, a União faz a organização
hereditárias e organicistas (Rosa, 2003). Na Segunda Fase da da defesa permanente contra as grandes endemias, começa a
República (1930-1945), temos um Estado com características legislar sobre seguros e previdência social, promove a defesa
modernizadoras, sustentadas por uma coalizão não hegemônica, e proteção da saúde, legisla sobre o exercício das profissões,

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assegura a autonomia dos municípios quanto à organização de o setor de saúde obtidos no período anterior sofrem um recuo
alguns serviços públicos locais (sem especificar os serviços de significativo. As políticas refletidas nas legislações sobre a saúde
saúde) e determina a assistência obrigatória à maternidade, à pública têm caráter discriminatório, de natureza vaga e evolução
infância e à adolescência. Essa Constituição também estipulou lenta. A Constituição de 1967 não imprimiu na Carta Magna o
vencimentos integrais na aposentadoria de trabalhadores direito à saúde como inerente à cidadania e o dever do Estado na
vitimados por acidentes ou moléstias profissionais contagiosas garantia do seu gozo. Ao contrário, a assistência médica apenas
ou incuráveis. foi garantida aos trabalhadores e dependentes vinculados ao
Em relação à assistência psiquiátrica, é preciso afirmar a sistema previdenciário, criando uma situação de pré-cidadania
existência, nesse momento, de experiências de contestação em para os demais brasileiros quanto ao direito à saúde. Destaque-
relação ao modelo hegemônico até então existente. O trabalho se que na Constituição de 1967 foi feita a organização da polícia
de Nise da Silveira (1905-1999) que, no hospital de Engenho federal para o combate ao tráfico de entorpecentes; essa mesma
de Dentro no Rio de Janeiro, produz uma importante tensão Constituição determinou a competência da União para estabelecer
e contestação claramente marcada na criação da Seção de planos nacionais de saúde e celebrar tratados e convênios com
Terapêutica Ocupacional (que deu origem ao Museu de Imagens os Estados estrangeiros e organizações internacionais, além de
do Inconsciente) tem como mérito a crítica permanente à redução permitir a colaboração entre entidades religiosas e o Estado.
do sujeito à doença e a possibilidade de dar voz, expressão, Assegurou, ainda, a autonomia municipal quanto à organização
circulação e estabelecer relação a partir dos sentidos e significados dos serviços públicos locais. (FILHO, 1996).
escondidos e sufocados pelo tratamento psiquiátrico. Destaca-se Como decorrência, do ponto de vista da assistência psiquiátrica
também a experiência anterior de Ulysses Pernambuco (1892- a grande herança desse período é a privatização dos serviços
1943) que atuando em Recife ampliou a organização assistencial com características clientelistas e a constituição da chamada
para serviços abertos e ambulatoriais, opondo-se à visão indústria da loucura. A criação do Instituto Nacional de Previdência
organicista e enfatizando fatores psicológicos e sociais como Social estende aos trabalhadores segurados do sistema e seus
determinantes dos processos psíquicos. Apesar disso, as críticas dependentes a assistência psiquiátrica. Esses são remetidos aos
então formuladas em relação aos modelos de assistência não hospitais da rede privada por meio da contratação de seus leitos
foram suficientes para sua reversão. A partir de 1950, Institutos psiquiátricos. Os leitos privados passam a crescer dez vezes mais
de Aposentadoria e Pensões incorporam internação psiquiátrica que os leitos públicos. O perfil social da população psiquiátrica
em sua cobertura assistencial, utilizando-se principalmente da cresce em trabalhadores previdenciários urbanos acometidos
rede hospitalar privada. A partir da metade da década de 1950, por sofrimentos decorrentes das condições de trabalho impostas
a disponibilidade das drogas psicotrópicas no mercado e a pelo desenvolvimento econômico, o que altera também o perfil
necessidade de reparação de mão de obra para o desenvolvimento nosológico dessa população, que passa a ser constituída por
capitalista vão tensionar a alteração das estruturas asilares. diagnósticos como neuroses e alcoolismos, numa reedição da
(ROSA, 2003). psiquiatrização de problemas sociais. A perspectiva preventista
Na Quarta Fase Republicana (1964-1985), o país esteve sob se instala com força, exigindo uma reformulação da assistência
o regime de Ditadura Militar e as possibilidades de avanços para psiquiátrica que vai apontar para ambulatorização da assistência
e redução de custos com hospitais psiquiátricos, sem, contudo,
5 - Produtos expressivos deste período, como a reportagem: “Nos porões da uma diminuição efetiva no financiamento das internações
loucura” (Nas décadas de 1970/1980), de Hiram Firmino e o filme “Em nome da psiquiátricas. Assim, chegamos a um quadro de polarização entre
razão” (1979), de Helvécio Ratton, chocaram a opinião pública.

51 52
a rede hospitalar psiquiátrica e os serviços ambulatoriais pontuais, da população sem direito a assistência.
sem um efetivo questionamento da concepção que orientava os Assim, na Quinta Fase da República (1986-período atual),
modelos de tratamento. (ROSA, 2003) com o fim da ditadura, passamos à construção do Estado
Desta forma, em síntese, em relação à assistência psiquiátrica, Democrático de Direito. É nessa fase que temos o fortalecimento
desde o final dos anos 1950, o Brasil acumulava uma grave e visibilidade social do Movimento da Reforma Sanitária e o
situação nos hospitais psiquiátricos: superlotação; deficiência Movimento de Reforma Psiquiátrica no Brasil. Vale destacar que
de pessoal; maus-tratos grosseiros; falta de vestuário e de o Movimento de Reforma Sanitária inicia-se no final dos anos
alimentação; péssimas condições físicas; cuidados técnicos 1960 e início dos anos 1970, com recuo no período da ditadura,
escassos. Como vimos, a partir do golpe militar de 1964, até ganhando força novamente no final dos anos 1970. A partir desse
os anos 1970, proliferaram amplamente clínicas psiquiátricas Movimento, a abordagem dos problemas de saúde se constitui
privadas conveniadas com o poder público, obtendo lucro fácil por como a base teórica e ideológica de um pensamento médico-
meio da “psiquiatrização” dos problemas sociais de uma ampla social que, ao olhar para o processo saúde-doença, aponta para
camada da população brasileira. Criou-se assim a chamada os problemas estruturais no Brasil. Esse movimento ocorreu no
“indústria da loucura”. No final dos anos 1980, o Brasil chegou a interior dos Departamentos de Medicina Preventiva e Social das
ter cerca de 100.000 leitos em 313 hospitais psiquiátricos, sendo Universidades Federais do Brasil - DMPS. Os DMPS:
20% públicos e 80% privados, conveniados ao SUS, concentrados
principalmente no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Minas Gerais. [...] foram a base na qual se desenvolveram a produção
Os gastos públicos com internações psiquiátricas ocupavam o 2º de conhecimentos sobre o estado de saúde da população
lugar entre todos os gastos com internações pagas pelo Ministério e sobre a organização das práticas sanitárias, produção
da Saúde. Eram raras outras alternativas de assistência – mesmo essa, frequentemente articulada com os modelos
experimentais de organização da prática médica, quer
as mais simples, como o atendimento ambulatorial.
para efeito de demonstração, quer para finalidade
Também é preciso citar que se estabeleceu a divisão entre didáticas (DONNAGELO 1993, p. 26)
uma assistência destinada aos indigentes – recebidos pela
rede pública – e outra aos previdenciários e seus dependentes Paralelo a esse movimento, nos interiores das periferias
– encaminhados aos hospitais privados conveniados. De metropolitanas, principalmente na cidade de São Paulo, as donas
qualquer forma, as condições dos hospitais, privados ou públicos, de casa, juntamente com a igreja, estavam se reunindo para
continuava extremamente precária. Além disso, o poder público discutir as condições e agravos de saúde da comunidade, nas
não exercia qualquer controle efetivo da justificativa, da qualidade chamadas “comunidades eclesiais de base”.
e da duração das internações. Diversos vídeos, documentários, Portanto, os anos de 1970 são anos de denúncias e críticas.
livros, publicações denunciam essa situação em relação à violação Diversos segmentos sociais se organizaram nessa época, ao
de direitos e à situação degradante dos hospitais psiquiátricos .5 longo do processo de redemocratização do país. Nesse contexto,
O Brasil ingressa na Quinta Fase Republicana com uma enorme segundo Cézar Campos (2006) (MINAS GERAIS, 2006), “o
efervescência de movimentos sociais, questionando a ausência Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental começou a tomar
do Estado na formulação e na garantia de políticas de saúde a sua corpo: trabalhadores da área se organizaram, apontando os
população. No que tange à saúde pública, a sociedade se dividia graves problemas do sistema de assistência psiquiátrica do país
entre aqueles trabalhadores formais com carteira assinada que e propondo formas de trabalho que pudessem romper com esse
tinham garantia de assistência médica e um grande contingente

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modelo.” uma maior clareza do real significado dessas instituições e de
A verdadeira força de sustentação exercida pelo manicômio não seu papel normalizador. O templo da loucura, bem como sua
estava em produzir resultados terapêuticos, mas sim de exclusão existência, permanecia inquestionável.
social, de exclusão física, bem como de exclusão em relação ao Em dezembro de 1987 aconteceu a realização do II Congresso
universo da cidadania. Não sendo o louco um cidadão, sustentava- Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental, em Bauru, São
se todo tipo de violência contra o mesmo. Com a abertura política Paulo. Na ocasião, foi proposta uma radicalização do movimento
que começa a dar visibilidade à luta dos movimentos sociais, de trabalhadores, a partir da constatação de que a humanização
buscou-se a implementação do regime democrático, possibilitando dos hospitais, com a criação de programas ambulatoriais
que, no setor da saúde mental, os trabalhadores se manifestassem (constituição de equipes de saúde mental em unidades básicas),
junto à sociedade sobre a assistência psiquiátrica brasileira. não havia sido suficiente para dar conta de produzir uma relação
Começa então a se desencadear no Brasil, principalmente na diferente da sociedade com o fenômeno da loucura. Os loucos
Região Sudeste, uma série de congressos, seminários e debates continuavam a ser internados e segregados do convívio social.
sobre o tema. O mesmo aconteceu de forma geral em relação Esse movimento se ampliou e passou a ser denominado de
à assistência à saúde como um todo através do movimento de Movimento da Luta Antimanicomial. Desde então, o Movimento
Reforma Sanitária. Assim, o final dessa década foi marcado por se instituiu como um ator e um interlocutor de fundamental
uma série de denúncias públicas feitas pelos trabalhadores de importância para o Estado implementar políticas públicas que
saúde mental em relação às péssimas condições a que estavam atendam realmente às necessidades das pessoas com sofrimento
submetidos os portadores de sofrimento mental internados nos mental, criando condições para a sua inclusão social. Assim, em
manicômios. síntese, os marcos fundamentais desse período são:
Em Minas Gerais, aconteceu também nesse período, o III
Congresso Mineiro de Psiquiatria - 1979, que contou com a • Realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde (junho/1986)
participação de dois atores importantíssimos que iriam influenciar
de maneira decisiva os corações e mentes de centenas de Marco político decisivo para os rumos da saúde pública do Brasil
profissionais que atuavam neste setor: a presença do psiquiatra que apontou claramente para a construção do SUS – Sistema
italiano Franco Basaglia e do sociólogo francês Robert Castel. Único de Saúde, quando discutiu o conceito de saúde como direito
Ambos estavam atuando na Europa juntamente com outros fundamental da pessoa humana, a necessidade da construção de
profissionais no sentido de mudar os rumos da assistência um sistema único de saúde e as bases de financiamento para o
psiquiátrica, produzindo textos, estimulando discussões teóricas setor. Ressaltamos a importância da participação popular nessa
sobre a psiquiatria, seu papel, função e seus fundamentos conferência, representada pelos seus 5000 delegados.
filosóficos.
Instaurou-se a partir de então, uma série de debates e • Constituição Federal (1988)
seminários sobre a realidade das instituições manicomiais. Era
preciso modificar, reformular e, principalmente, humanizar os
hospitais psiquiátricos. Gastou-se quase 10 anos em discussões, 6 - A Declaração foi proclamada no dia 14 de Novembro de 1990 pela Conferência
implementando programas que visavam a melhoria dessas Regional para a reestruturação da Atenção Psiquiátrica na América Latina
instituições. Essas discussões foram extremamente necessárias no contexto dos Sistemas Locais de Saúde. Essa Conferência foi convocada
a esse processo, mas faltava aos profissionais de saúde mental pela Organização Panamericana de Saúde e da Justiça, os Parlamentos e a
Previdência Social, entre outros prestadores de serviços.

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Conhecida como a “Constituição Cidadã”, garantiu o direito à possibilidades de convívio com as diferenças, fazendo com que
saúde no Capítulo II – Seguridade Social. Nos seus artigos 196 a sociedade entendesse que a diferença é algo que faz parte da
a 200 são expressos os princípios que definem a saúde como sociedade.
direito de todos e dever do Estado. É necessário considerar que a implantação de uma nova política
de saúde mental no país sofreu a influência de acontecimentos
• O Movimento de Luta Antimanicomial importantes no campo da saúde como um todo. Já nos referimos
às conquistas do movimento da Reforma Sanitária, que levou à
Desde o final dos anos 70, vários trabalhadores estavam reformulação da política de saúde expressa na VIII Conferência
insatisfeitos e indignados com a “assistência” oferecida às Nacional de Saúde, a qual estabeleceu os princípios e as
pessoas com sofrimento mental do país. Para publicizar tal diretrizes do Sistema de Saúde Brasileiro. O conceito de saúde foi
situação inúmeras denúncias na mídia, debates e seminários redefinido como sendo um direito inalienável das pessoas e que
foram realizados no meio profissional, mas foi somente no final diz respeito à sua qualidade de vida, transcendendo, portanto,
dos anos 1980, precisamente durante a realização do II Congresso às doenças, estando muito mais relacionado com as condições
Nacional dos Trabalhadores de Saúde Mental, realizado em gerais de existência, como moradia, saneamento básico,
Bauru-SP, que foi realizada uma profunda avaliação da situação alimentação, condições de trabalho, educação e lazer. Sendo a
da assistência psiquiátrica brasileira. Esta avaliação levou os saúde um direito do cidadão e um dever do Estado, compete a
profissionais a promoverem uma ruptura decisiva em relação à este último a construção de um Sistema Único de Saúde (SUS)
situação vigente, propondo mudanças aos princípios teóricos predominantemente público, descentralizando, hierarquizado,
e éticos da assistência, e defenderem a radicalidade de uma equânime, com a participação e controle da população na
utopia ativa “Por uma sociedade sem manicômios”, como norte implantação das políticas de saúde e com a destinação adequada
para aqueles que decidiram fazer uma mudança na sociedade de recursos para o setor. As políticas de Saúde Mental estão
na sua relação com os chamados loucos. Fica colocado para submetidas a esses princípios e diretrizes, bem como sofrem
aqueles que fizeram essa opção lutar contra todas as formas de pressões e influências de organismos internacionais. Assim, em
opressão social na busca da sua superação. Esse congresso 1990, a Declaração de Caracas6 estabeleceu a reestruturação da
despertou sonhos e desejos de transformação efetiva das assistência psiquiátrica na América Latina, de forma a assegurar
relações da sociedade com a loucura. Uma das invenções mais o seu desenvolvimento em benefício das populações da região.
significativas deste movimento foi a criação do “18 de Maio” – Dia Em 17 de Dezembro de 1991, a Organização das Nações Unidas
Nacional da Luta Antimanicomial. A proposta era de que nesse propôs em assembleia a proteção das pessoas portadoras de
dia acontecesse em todo país a mobilização de núcleos, ONGs, enfermidade mental e a melhoria da assistência.
associações e serviços públicos de saúde mental identificados Vemos, assim, que a experiência de Reforma Psiquiátrica
com os princípios do movimento, fazendo circular no âmbito local, brasileira não está isolada. Há, do ponto de vista mundial,
na mídia, na cultura, nas relações sociais as discussões sobre as uma revisão das formas de relação e tratamento dispensado à
políticas de saúde mental. Os profissionais, usuários, familiares e loucura, então concebida como doença mental, que influenciou
simpatizantes ao movimento vão as ruas manifestar, por meio de o processo brasileiro e com o qual ele, então, passou a compor,
eventos culturais expressivos, a questão da loucura e sua relação guardando suas especificidades. Nesse sentido, cabe uma rápida
com a sociedade. O rompimento com a cultura manicomial seria revisão e destaque a pontos fundamentais de alguns processos
uma ação constante do Movimento, buscando e construindo de reformas psiquiátricas realizados na Europa e Estados Unidos

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em torno da segunda metade do século XX. mesma equipe deve se encarregar do paciente nos diferentes
Principalmente no final da Segunda Guerra Mundial, com serviços e momentos do tratamento, desde a prevenção até
o projeto de Reconstrução Nacional da Europa sob princípios a cura e a pós cura, tendo como base e referência para o
democráticos, era necessário rever o funcionamento dos hospitais acompanhamento o território a que pertence. O objetivo desse
Psiquiátricos. Importante considerar o enorme contingente modelo é de se evitar que o hospital psiquiátrico seja o centro da
de pessoas jovens que estavam traumatizadas pelos efeitos atenção a saúde mental, devendo o usuário ser prioritariamente
da guerra e a necessidade de recuperá-las a fim de utilizar a tratado nos serviços extra-hospitalares.
força do seu trabalho no projeto de reconstrução dos países.
A necessidade de implantar sistemas de saúde e a existência • As comunidades terapêuticas no sistema de saúde da Grã-
de uma vontade coletiva de rever valores, de reconstruir as Bretanha
sociedades sob bases e princípios de liberdade e de solidariedade
levaram a implantação de sistemas sanitários e a necessidade O funcionamento dos hospitais psiquiátricos como
de revisão do funcionamento dos hospícios. Assim, há um comunidades terapêuticas foi uma experiência predominante
conjunto de movimentos, experiências e processos de Reforma nos países anglo-saxões. Nas comunidades terapêuticas, a
Psiquiátrica vivenciados principalmente em países europeus, que responsabilidade pelo tratamento não é apenas do corpo técnico,
produzirão uma revisão das formas de tratamento da loucura e mas também de outros integrantes da comunidade, inclusive e
da organização da assistência psiquiátrica. Citemos alguns deles: principalmente dos usuários. Nestas instituições pressupõe-se
a criação de um ambiente de co-responsabilidade entre todos
• Psicoterapia Institucional e a Psiquiatria de Setor (França) que estejam na comunidade. O modelo de saúde anglo-saxão
também previu a implantação de serviços de saúde mental diário
Segundo Desviat (1999), a diretriz do modelo assistencial com a criação de unidades psiquiátricas em hospitais gerais. Um
da Psicoterapia Institucional é a manutenção da instituição ponto fundamental desse modelo é a garantia de continuidade
psiquiátrica, a partir da sua radical transformação. A sua do tratamento pelo médico de saúde da família. Também nesse
existência não está em questão, pois o que faz a instituição modelo a mesma equipe de saúde mental atendia às demandas
ser um manicômio são as relações, práticas e lógicas que se ambulatoriais e hospitalares nos diferentes recursos da área,
estabelecem na assistência prestada aos internos. Nesta lógica, fossem de pacientes crônicos ou agudos. O sistema de saúde
todos estão doentes e a instituição deve ser tratada em seu inglês é dividido em regiões e cada região se divide em áreas.
conjunto, alterando-se radicalmente as relações estabelecidas, (COOPER, 1992; DESVIAT pag.37).
de modo a horinzotalizá-las e transformar a instituição de cuidado
num espaço de produção de liberdade, de participação, de • Psiquiatria comunitária ou preventiva (EUA)
acolhimento das diferenças, de valorização de cada sujeito.
Do ponto de vista sanitário, a França adotou a territorialização e É de conhecimento de todos que o sistema de saúde americano
a setorização da assistência, permitindo um melhor conhecimento não é universal e tão pouco se constitui como um direito de todos
da população, o que propicia a elaboração de programas de e dever do estado. Os americanos têm o seu sistema de saúde
saúde num processo de maior aproximação entre os profissionais ainda hoje dominado pelas seguradoras. No entanto, a saúde
e os usuários. É a chamada Psiquiatria de Setor. Outro principio pública se ocupa de dois programas naquele país. O primeiro
do modelo é a ideia de continuidade de tratamento ou seja, uma

59 60
direcionado para os pobres e ao tratamento das tuberculoses, de da instituição psiquiátrica no centro da discussão do processo
portadores de doenças venéreas, de usuários de álcool e outras de reforma por entendê-la como uma instituição de violência e
drogas e ao atendimento à saúde mental; o segundo é o programa violadora permanente dos direitos humanos e de cidadania. O
de proteção pública contra os riscos ambientais (DESVIAT, 1999). modelo italiano de assistência também pressupõe o modelo
Nos anos 1960, o governo Kennedy, criou os centros de saúde territorializado, com a superação gradativa dos hospitais
mental, que tinham dentre os seus objetivos a garantia de acesso psiquiátricos e sua substituição por uma rede de serviços de
e de informações adequadas à população alvo sobre a existência saúde mental cujo funcionamento é integrado dentro do território,
e as características dos diferentes programas, a gratuidade, prevendo que uma mesma equipe de saúde mental deve fazer
a ênfase na prevenção de doenças e a responsabilização do desde as visitas domiciliares e demais acompanhamento do
governo pelo doente e sua família. Esses centros deveriam paciente em todos os seus momentos. O projeto essencial é
proporcionar atendimentos de emergência e a hospitalização devolver aos sujeitos sua condição de cidadania e participação
dos usuários 24 horas por dia, todos os dias da semana, as social.
consultas externas e a educação da comunidade. Também foram
implantados programas de atenção infantil, casas de transição, Todos esses modelos apresentam alguns pontos em comum
programas para os usuários de álcool e outras drogas e o sistema que merecem destaque, tais como:
de avaliação. No entanto, esta política governamental não teve
êxito, pois os centros estavam sem o suporte de um sistema - Os modelos se desenvolveram de maneira desigual dentro de
nacional de saúde pública e foram implantados em número cada país conforme cada região.
insuficiente para a demanda existente (DESVIAT, 1999).
Do ponto de vista conceitual, a psiquiatria americana foi marcada - Regiões onde se tem uma gama diferenciada de serviços de
pelas ideias de prevenção de Gerald Kaplan, que consistia num saúde mental e projetos efetivos de reinserção social demonstram
conceito de prevenção em saúde mental articulado em três níveis. que é possível prescindir dos hospitais psiquiátricos.
O nível primário consistia em se intervir nas condições individuais
e ambientais de formação da doença mental; o segundo nível - Evidenciam necessidade de investimentos de recursos
ocupava-se do diagnóstico precoce das doenças mentais; e o financeiros e a firme decisão dos grupos condutores da política
terceiro nível referia-se à readaptação do usuário à vida social em se fazer a reforma com clareza dos princípios conceituais e
após o seu momento de crise e consequente melhora. O recurso éticos que possibilitem efetivamente que os usuários de saúde
à internação psiquiátrica apenas ocorria quando esgotada outras mental possam se tratar em liberdade e ter uma existência
possibilidades de tratamento e apenas por curtos períodos de digna, com seus direitos humanos respeitados.
tempo (DESVIAT, 1999, pag. 60 a 61).
- Guardada as devidas diferenças entre os modelos, fica claro
• A Psiquiatria democrática italiana que todos buscam diminuir ou prescindir do hospital psiquiátrico
como centro do tratamento.
A implantação do modelo italiano tem na figura do psiquiatra
Franco Basaglia e de outros psiquiatras que integraram o - As reformas psiquiátricas evoluem melhor quando realizadas
seu grupo, como Franco Rotelli, a construção de uma nova juntamente com as reformas sanitárias de cada país.
realidade para a psiquiatria, colocando em questão a existência

61 62
- Os processos de reforma psiquiátrica estão inseridos nos nesse Sistema que ela se realiza. Considerando o processo
contextos sociais e políticos de cada país e sofrem os no qual esse se tornou possível, a produção de uma série
reflexos das políticas mais amplas dos governos em relação à de marcos legais influíram decisivamente na implantação
constituição de seus sistemas de saúde. da reforma psiquiátrica brasileira. Assim, passamos a citar
marcos essenciais para a consolidação e institucionalização
O processo de reforma psiquiátrica no Brasil da Reforma Psiquiátrica como política de saúde mental no
Brasil: a I Conferencia Nacional de Saúde Mental (1987). A
• O processo de mudança no campo da assistência em realização desta conferência, como desdobramento da VIII
saúde mental que temos assistido no Brasil nos últimos Conferência Nacional de Saúde, já citada anteriormente,
anos, conhecido como Reforma Psiquiátrica, apresenta uma foi um momento importante de discussão da construção
enorme complexidade, seja no campo político, assistencial de novas políticas assistenciais, de uma nova legislação
ou cultural a que está referida. A Reforma Psiquiátrica psiquiátrica e da cidadania enquanto um eixo orientador
Brasileira tem antecedentes históricos distantes e múltiplos, destas discussões. Nesta conferência aconteceu uma
que estão ao mesmo tempo vinculados a movimentos reunião “paralela”, que deu origem ao Encontro de Bauru.
sociais, experiências de assistência e transformação de
marcos teóricos e conceituais relativos ao campo. No geral • Encontro de Bauru (1987). Criação do movimento
e considerando a pluralidade que constitui essa trajetória, da Luta Antimanicomial com uma utopia ativa “Por
temos como marca comum um processo no qual, em vários Uma Sociedade Sem Manicômios”. Criação do dia 18
países do mundo, e inclusive no Brasil, trabalhadores da de Maio como Dia Nacional de Luta Antimanicomial.
saúde mental se posicionaram contra as condições de vida
e a forma excludente e desumana de atenção a que estavam • Lei 8080. Dispõe sobre as condições para a promoção,
submetidas as pessoas portadoras de sofrimento mental. A proteção e recuperação da saúde, a organização e o
reforma psiquiátrica brasileira sofreu e sofre a influência de funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras
todos os processos de reforma acima citados e apresenta providências. Esta lei entrou em vigor em 19 de Setembro
também suas particularidades de acordo com a diversidade de 1990. A partir dela foi definida a responsabilização da
política cultural brasileira. Nossa reforma é influenciada pelos União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com as
princípios conceituais de importantes autores da Europa atribuições de elaborar as normas para regular as ações e
e Estados Unidos, mas também sofremos a influência da serviços de Saúde executados isoladamente ou em conjunto
produção recente de inúmeros profissionais de saúde mental por pessoas naturais ou jurídicas, de direito público ou
de diferentes pontos do país que constroem no cotidiano de privado. Começou-se a estruturar o Sistema Único de Saúde.
seu trabalho referências importantes que compõem a nossa
extensa rede nacional de saúde mental, conforme buscamos • Lei 8142, 28 de Dezembro de 1990. Esta lei surgiu
elencar ao final desse trabalho. De todo modo, é importante devido aos vetos que a Lei 8080/90 recebeu em relação
considerar que em cada país esse processo se deu a partir à participação da comunidade (Artigo 11-vetado) e ao
das condições objetivas e concretas configuradas. No Brasil, repasse direto de recursos (§§2º e 3º, do Art.33e § 5º Art.35-
como vimos, a instituição do SUS é referência fundamental vetados). Com esta lei foi possível garantir a participação da
para organização da Política de Saúde Mental, posto que é

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comunidade no controle e fiscalização do SUS, mediante grande participação dos usuários e ampliou o debate sobre
a criação dos Conselhos de Saúde e das Conferências de modelo assistencial, recursos humanos e financiamento. A
Saúde, visto que estes dispositivos são de fundamental IV Conferência Nacional Intersetorial de Saúde Mental foi
importância para o crescimento do SUS. Também foi conquistada pela Marcha dos Usuários a Brasília, em 2010.
disciplinada a transferência dos recursos arrecadados
pela União para os Estados, Distrito Federal e Municípios. • Encontro Nacional dos usuários. I Encontro Nacional em
São Paulo (1991), II Encontro Nacional no Rio de Janeiro
• Projeto de Lei Paulo Delgado (1989). Mecanismo (1992), III Encontro Nacional em Santos (1993), IV Encontro
importante para garantir a discussão por todo o território Nacional em Goiânia (2000). Marcos da participação crescente
nacional da proposta de criação de uma lei com o objetivo de usuários e familiares no movimento da Luta Antimanicomial.
de proteger, promover e melhorar a vida das pessoas com Um dos resultados desses encontros foi a aprovação da carta
transtornos mentais, por serem particularmente pessoas de direitos e deveres dos usuários, no encontro de Santos.
vulneráveis e vítimas de abusos e violação dos seus direitos.
O projeto refletiria uma sociedade que respeita e cuida de • I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial em Salvador
seu povo. A ideia de se fazer uma lei surgiu dos militantes (1993) - Marco de consolidação de um movimento social de
da luta antimanicomial, com o apoio total de um parlamentar abrangência nacional com a participação de profissionais,
comprometido com um projeto de transformação nacional, usuários e familiares. No encontro houve a definição do
o ex-deputado federal Paulo Delgado. A lei deveria ser um processo organizativo do movimento e o importante espaço
marco referencial para o desenvolvimento de políticas de de troca de experiências antimanicomiais de todo país. O
saúde mental, para garantir atenção, tratamentos adequados e movimento realiza ainda, o II Encontro Nacional em Betim/
apropriados à proteção dos direitos de pessoas com transtornos MG (1995), III Encontro Nacional em Porto Alegre/RS (1997),
mentais e a promoção de saúde mental das populações. IV Encontro Nacional em Paripueira/AL (1999), V Encontro
Nacional em Miguel Pereira/RJ (2001). Que deram origem a
• Intervenção no Hospital Psiquiátrico “Anchieta” em Santos dois movimentos: MLA – Movimento da Luta Antimanicomial e a
(1989). Marco decisivo para viabilização e a demonstração de RENILA – Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial.
que era possível prescindir do hospital psiquiátrico e realizar
sua substituição efetiva por uma rede de serviços abertos de • A Lei 10216 de 06/04/2001. Esta Lei foi fruto de um longo
atenção contínua, orientados pelo respeito à cidadania dos trabalho no Congresso Nacional a partir do projeto de lei de
usuários. A construção de uma rede substitutiva ao hospital autoria do deputado Paulo Delgado, acima citado. Em todo
psiquiátrico no município de Santos em São Paulo inspirou a período de sua tramitação houve inúmeras discussões,
criação em vários municípios do país de redes de saúde mental. debates, seminários, no Congresso Nacional e por todo país,
tendo finalmente sido aprovada uma legislação que, embora
• II Conferencia Nacional de Saúde Mental (1992). não se expresse com a determinação do projeto original em
Marco de consolidação da participação dos usuários na relação à efetiva extinção dos hospitais psiquiátricos, aponta
conferência e aprofundamento das discussões a respeito para a reorientação do modelo assistencial e garante direitos
das legislações, assistência e cidadania dos usuários. A III humanos mínimos aos portadores de sofrimento mental.
Conferência Nacional de Saúde Mental (2001) contou com

65 66
Apesar de termos, com a nova Constituição, uma legislação se reapresentam a cada momento sob novos desenhos. As
inovadora e progressista, com diretrizes para a criação de políticas atuais tendências e o fortalecimento efetivo da perspectiva da
fortes, ainda não alteramos significativamente as desigualdades privatização, na medida em que se realiza em gestões concretas,
sociais para a efetiva criação de uma sociedade mais justa e explicitam dificuldades de avançar o SUS, de realizar a qualidade
igualitária no que tange principalmente ao acesso e garantia da assistência, de constituir redes, de fazer concretizar os
de qualidade das políticas públicas. Os direitos sociais ainda princípios da atenção integral e do controle social. Embora
estão sendo tratados por áreas ou setores segmentados. Apesar afirmada como direito, na construção das políticas locais de saúde,
dos avanços de uma Constituição que instituiu a seguridade estaduais e municipais, assistiu-se uma enorme diversidade, com
social, afirmando saúde, previdência e assistência como áreas a existência de gestões que resistem à implementação de uma
integradas de proteção social e exigindo a garantia de proteção rede pública de saúde e de políticas sociais intersetoriais, o que
a riscos que podem atingir indistintamente todos os cidadãos, se desdobra em inúmeras dificuldades na assistência prestada
o que se vê atualmente são setores que funcionam ainda de pelos trabalhadores nos serviços existentes. No campo da saúde
maneira fragmentada. Embora cada área tenha por diretriz a mental, embora exista um redirecionamento e ampliação dos
descentralização de suas ações, ainda funcionam de maneira recursos para o setor, existe um constante tensionamento em
vertical em todos os níveis de governo. torno da inversão da lógica do modelo assistencial hospitalar para
Os reflexos dessas formas de estruturação de políticas públicas a implantação de um modelo assistencial aberto e comunitário.
aparecem cotidianamente nos serviços ofertados às populações, A construção da rede de serviços substitutivos (Centros de
especialmente aos grupos que necessitam de formas e estratégias Atenção Psicossociais - CAPS, Centros de Convivência, Serviços
de proteção que requerem ações transversais e integradas, Residenciais Terapêuticos, Núcleos de Trabalhos Cooperados,
especialmente os portadores de sofrimento mental, usuários de leitos em hospitais gerais, consultórios de rua, atenção à saúde
álcool e outras drogas, idosos, crianças e adolescentes e outros mental na atenção básica) tem sido implementada por inúmeros
grupos vulneráveis de nossa sociedade. municípios como novos espaços assistenciais, que objetivam
Como foi visto anteriormente, o processo de construção das pôr fim ao silenciamento e à exclusão que milhares de pessoas
políticas de saúde no Brasil vem de um longo período, marcado trazem do chamado “tratamento nos hospitais psiquiátricos”.
por um permanente tensionamento entre os anseios da sociedade Contudo, há municípios e estados que ainda encontram fortes
na conquista e garantia de seus direitos e a própria organização resistências e gestões que insistem em retomar e fortalecer
e direção política do Estado Brasileiro. antigos modelos e perspectivas, fazendo, por exemplo, coexistir
O direito à saúde é um dos pilares na constituição de uma o hospital psiquiátrico, sucateando a rede substitutiva, ou (re)
sociedade mais justa e democrática. Efetivá-lo significa ir além investindo em modelos ambulatoriais.
dos serviços assistenciais sanitários. Saúde é um conceito que O objetivo maior desses novos serviços e da rede substitutiva é
expressa um processo complexo e a garantia de seu direito acolher e resgatar a subjetividade de cada um e, ao mesmo tempo,
revela essa complexidade também na medida em que se torna possibilitar a construção de redes relacionais e de convivência
necessária a construção de políticas específicas no interior da social. A implantação de um modelo psicossocial implica numa
política pública de saúde, como é o caso da política de saúde mudança de concepção acerca das pessoas com sofrimento
mental. mental e na busca de saídas e construção de estratégias em
A conquista da saúde como direito de todos e política pública diversos campos que fazem conexão direta ou indiretamente com
estatal é, ao mesmo tempo, ainda uma luta. Inúmeras resistências o campo da saúde mental, para fazer caber entre nós aquilo que

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muitos consideram não ter cabimento: a loucura.
Esse desafio é especialmente complexo nos dias atuais, dado
o momento delicado pelo qual passa o Sistema Único de Saúde
– SUS: as forças contrárias ao sistema se unem buscando a sua
privatização, aliados aos tecnocratas do próprio sistema que
cedem a essas pressões. Isso coloca em risco uma conquista
histórica do povo brasileiro: ter a saúde como um direito inalienável
e inequívoco.

69 70
EIXO II – PSICOLOGIA E POLÍTICAS
PÚBLICAS DE SAÚDE MENTAL:
A NECESSÁRIA MUDANÇA DE
PERSPECTIVA

71 72
EIXO II – PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS DE Sem dúvida, essa direção não representava a totalidade de
SAÚDE MENTAL: A NECESSÁRIA MUDANÇA DE práticas psicológicas destinadas aos chamados loucos, alienados,
ou doentes mentais. Perspectivas contra-hegemônicas, num
PERSPECTIVA
primeiro momento claramente orientadas pelas contribuições
da Psicanálise, apresentavam-se na direção de resgatar as
História da Psicologia e sua Relação com as Políticas Públi-
singularidades, os sentidos e as trajetórias expressas nas
cas de Saúde / Saúde Mental
experiências tomadas e reduzidas pelo saber médico-psicológico
como doença.
As mudanças que se desenvolveram no Brasil a partir do
No século seguinte o desenvolvimento da Psicologia como
final do século XIX, relativas principalmente às transformações
ciência, a expansão do seu ensino em diferentes cursos e seus
econômicas, de organização social e seus desdobramentos
desdobramentos em práticas de intervenção como resposta a
no campo cultural, foram de fundamental importância para a
demandas da sociedade brasileira naquele momento levaram
expansão do saber psicológico nas áreas da saúde, da educação
à regulamentação da profissão, que se deu em 1962. A
e do trabalho. O crescimento do processo de urbanização e
profissionalização da Psicologia e a perspectiva da formação
industrialização do país e o agravamento de problemas sociais
superior como possibilidade de ascensão para as camadas
enfrentados demandaram respostas que viriam a se concretizar
médias da população levaram ao aumento do número de cursos
com a presença da Psicologia e de outras disciplinas subsidiando
e da procura de estudantes para os mesmos. “Em 1975, vamos
os processos de administração científica do trabalho, da saúde e
assistir a um verdadeiro boom de psicólogas(os) e de escolas de
da educação. (ANTUNES, 2001)
Psicologia” (BOCK, 1999, p. 75). Além disso, é preciso considerar
Coincidente com esse processo, vemos surgir nesse momento
que a institucionalização da profissão, por meio da criação legal
os primeiros hospícios brasileiros, como resposta às demandas
dos Conselhos de Psicologia em 1971, e ainda sua organização
de organização social impulsionadas pelo progresso e as novas
em associações e sociedades extra-universitárias tem um papel
configurações do cenário brasileiro. Nesse contexto, “(...) a
importante na consolidação da profissão. Ao lado dos Conselhos
medicina higiênica – como a medicina mental – vai constituir um
profissionais, outras entidades e associações organizativas
discurso sobre todas as instâncias da vida, invadindo as esferas
da Psicologia vão se constituindo, representando processo
das relações pessoais para moldá-las segundo os propósitos da
importante para o crescimento e o reconhecimento da profissão.
ordem e da disciplina urbana” (CUNHA, 1986, p.35).
O resultado desse processo pode ser claramente observado hoje,
Os hospícios representarão, então, uma forma de manejo
numa Psicologia que conta com cerca de 220 mil profissionais
da população considerada resíduos improdutivos e de uma
inscritos ativos no Sistema Conselhos de Psicologia e com um
enorme massa de sujeitos que não respondiam às exigências de
conjunto de entidades relativas ao campo sindical, ao campo da
contratualidade das novas formas de organização da vida social.
formação e ainda outras tantas relativas a áreas específicas de
No interior dos hospícios e de instituições médicas correlatas, o
atuação e produção de conhecimento em Psicologia.
desenvolvimento e a expansão dos conhecimentos psicológicos
O crescimento da profissão e sua frágil incorporação no mercado
representavam a contribuição da Psicologia como ciência afim
formal de trabalho, assim como a tradição de formação presente
à Psiquiatria. A Psicologia subsidiava não apenas as finalidades
nos cursos, caracterizará a Psicologia da década de 1970, cujas
de higienização social, como apontava para um conjunto de
marcas ainda estão fortemente presentes na profissão. Segundo
práticas clínicas, de origem profilática e direcionadas aos sujeitos
Bock (1999), as(os) psicólogas(os) brasileiras(os) concentram
considerados normais (ANTUNES, 2001).

73 74
sua atuação no campo da clínica privada, desenvolvendo uma desenvolvimento de aprendizagem para todos os que
prática elitista e descolada do movimento histórico do país. É nele se envolvem: usuários, técnicos e familiares. Afinal
apenas a partir da década de 1980 que, por meio de movimentos de contas, é nesse microcosmo social que se exercita
encabeçados inicialmente pelas entidades organizativas da até as últimas consequências (ou pelo menos deveria ser
assim) o experimento que propomos a toda a sociedade
categoria, a profissão começa a pautar pontos relativos às
e que consiste em admitir e garantir a convivência plural
possibilidades de respostas da Psicologia às urgências das lutas de loucos e de supostos normais (DE OLIVEIRA SILVA,
sociais travadas na direção da democratização da sociedade e 2003, p.97)
da promoção da justiça social. É assim que as(os) psicólogas(os),
talvez mais claramente algumas de suas entidades organizativas, Em função de todo esse processo de envolvimento da
passam a se implicar em processos como a luta por melhores Psicologia com a garantia de direitos e com as ações necessárias
condições de trabalho, as necessidades de políticas de proteção diante do acirramento das desigualdades na sociedade brasileira,
integral às crianças e adolescentes, a luta por uma política com especial destaque ao seu compromisso com a garantia da
pública de saúde universal e integral, dentre outros. A Psicologia promoção e da atenção integral à saúde como política pública,
passa a ter em sua pauta as graves desigualdades da sociedade assistiu-se ao longo das décadas que se sucedem a um
brasileira e a promoção de políticas de proteção e garantia de significativo crescimento da presença das (os) psicólogas (os) nas
direitos sociais. políticas públicas, em especial nas políticas públicas de saúde.
É nesse momento histórico que as(os) profissionais Uma pesquisa realizada pelo Conselho Regional de Psicologia
psicólogas(os) participam ativamente dos movimentos pela do Estado de São Paulo em 1981 apontava que nesse Estado,
Reforma Sanitária no país, citados no capítulo anterior, essenciais dos 20.000 psicólogos inscritos, 66% atuavam na profissão, dos
para a futura instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), ao quais 45% trabalhavam como autônomos e 57% concentravam-
mesmo tempo em que também nesse momento há uma importante se na área clínica. As demais áreas de atuação indicadas pela
participação da categoria no Movimento dos Trabalhadores da categoria eram a Psicologia Organizacional e a Psicologia
Saúde Mental, que em 1987 se transforma em Movimento da Luta Escolar, que respectivamente concentravam a atuação de 21%
Antimanicomial, com a participação de usuários, familiares e da e 12% da categoria. Apenas 4% dos psicólogos desenvolviam
sociedade civil organizada, como vimos anteriormente. suas atividades no serviço público. (Bock, 1999). No ano de
Segundo De Oliveira Silva (2003), o Movimento dos 1988, a pesquisa “Quem é o Psicólogo Brasileiro” indicava que
Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) forjado nas jornadas no Brasil cerca de 40% da categoria concentrava sua atividade
antiditatoriais dos fins dos anos de 1970 foi uma das fontes que na área Clínica, aparecendo ainda como áreas de atuação o
ofereceu bases e referências políticas iniciais para que, anos campo Organizacional e Escolar, concentrando 17% e 7% das
depois, pudesse se reaglutinar o polo crítico da saúde mental no atividades profissionais, respectivamente. Há uma frágil presença
Brasil, a partir do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. em atividades de docência e pesquisa (5%), mas a incipiente
participação dos psicólogos em um novo campo de trabalho,
A existência de um movimento social, plural e democrático indicado como área comunitária e concentrando a atuação de
nas bases instituídas desde 1993 pelo Movimento
cerca de 2% da categoria. A atualização da mesma pesquisa no
Antimanicomial, com seus espaços plenários nacionais,
ano de 2009 indica que, apesar da permanência de pouco mais
com suas campanhas, com suas potencialidades
enquanto espaços de expressão pessoal, coloca-se, de 50% da categoria na atividade clínica, na sua imensa maioria
evidentemente, como uma importante referência de desenvolvida de forma privada e autônoma, há uma expansão

75 76
de áreas de atuação da categoria e uma maior presença da A Inserção da Psicologia na Saúde Pública e na Reforma
Psicologia nas políticas públicas, especialmente no campo Psiquiátrica
da saúde. Segundo dados da pesquisa, 17% da categoria tem
como sua principal área de atuação o campo organizacional/ O campo de fenômenos para o qual se orientam as políticas
institucional e 11% desenvolve suas atividades principalmente públicas de saúde e de saúde mental desde a instituição do SUS
na área educacional, refletindo ainda a história de inserção e apresenta-se como processo social complexo. O objeto deixa
institucionalização da Psicologia na sociedade brasileira. As de ser a doença ou a doença mental como processo natural ou
atividades de docência, pesquisa, psicologia jurídica e outras não abstrato e converte-se no conjunto de condições concretas de
especificadas aparecem como principais para 7% da categoria. existência da população, seus determinantes nos processos
11% da categoria indica como principal área de atuação na saúde-doença, suas expressões em experiências de sofrimento de
Psicologia políticas públicas de saúde, segurança e educação. sujeitos singulares. Assim, os profissionais que desde a instituição
Indica a pesquisa que, excetuando-se cerca da metade da do SUS passam a compor as equipes dos diversos serviços da
categoria que desenvolve suas atividades profissionais como rede de atenção à saúde estão orientados para intervenções que
autônomos, o setor público caracteriza-se hoje como o maior representem transformações sob o território, compreendido não
empregador (dos psicólogos empregados, 40,3% estão no setor apenas como espaço físico, com suas características e condições
público, 24,4% em empresas e organizações privadas e 35,3% em próprias, mas como campo de relações, de vínculos e de modos
organizações sem fins lucrativos), sendo a maior concentração e formas de organização da vida produzidas pelos homens que
na saúde pública. nele habitam. Como resultado, do ponto de vista da construção
Recente levantamento realizado pelo Conselho Federal de histórica dos conhecimentos e práticas no campo das ciências e
Psicologia indica que temos hoje: 29.212 psicólogos atuando profissões da saúde, fomos forçados a um redirecionamento, que
no SUS; 20.463 psicólogos atuando no SUAS (CENSO SUAS, se coloca no sentido da exigência da produção de estratégias que
2011); 1.103 psicólogas(os) atuando no Judiciário. respondam às diretrizes do Sistema Único de Saúde e, no caso
Assim, há nas últimas duas décadas e desde a instituição do da saúde mental, à política de Reforma Psiquiátrica desenvolvida
Sistema Único de Saúde uma importante ampliação da presença no âmbito do SUS.
de psicólogos nas políticas públicas de saúde e uma importante Portanto, a significativa inserção dos psicólogos no Sistema
implicação da categoria com a garantia do direito à atenção integral Único de Saúde e nos serviços de saúde mental do SUS,
à saúde, por meio de sua participação nas lutas e no trabalho impulsionados pelo projeto antimanicomial forjado desde um
cotidiano do SUS. Do mesmo modo, é significativa a participação movimento social, produziu um redirecionamento da Psicologia,
dos trabalhadores psicólogos na reorientação do modelo de ao lado de outras profissões da saúde, em relação à sua tradição
assistência em saúde mental na saúde pública, levando a uma histórica relativa às orientações éticas, teóricas e metodológicas.
reconstrução dos compromissos e das práticas tradicionalmente O transtorno mental, tomado como situação limite de um
acumuladas e desenvolvidas pela profissão. processo social complexo e problemático, que se expressa e se
constitui como sofrimento na experiência de sujeitos singulares,
força a definição de uma nova forma de atuação para a Clínica,
exigindo transformações metodológicas e tecnológicas para o
atendimento em saúde mental. Os transtornos mentais graves

77 78
com que lidam essa clínica são, antes de serem tomados como seios enormes, pés chatos - Prontuário, Maria José, 22
uma patologia, portanto, doença mental, tomados como processos anos, negra, internada em 12-3-1920. (CUNHA, 1986, p.
complexos, que implicam a trajetória de vida de sujeitos singulares 124)
em condições objetivas e concretas de existência.
É bem verdade que a análise histórica da constituição dos O campo da Reforma Psiquiátrica ancora-se no reconhecimento
dispositivos do saber e das práticas psiquiátricas nos mostra de que o fato psíquico se inscreve, necessariamente, como
que o ponto de corte para a construção do comportamento fato social. No caso da loucura ou da psicose, como queiramos
bizarro ou desviante como alvo das intervenções psiquiátricas, chamar, trata-se de um fato social significativo, a partir do qual
sobretudo na geração das demandas de internações, situou-se emanam formas de gerenciamento historicamente produzidas no
antes em marcadores sociais do que em marcadores clínicos campo médico-sanitário como formas de agenciamento que são
ou da sintomatologia estritamente psíquica. (DE OLIVEIRA também sociais.
SILVA, 2009, p.41). A esse respeito, a obra de Cunha (1986) é
Somente quando os sintomas interferem na ordem social
de especial valia, na medida em que, ao analisar os prontuários
de forma relevante, o sujeito será inscrito no quadro
das pessoas internadas no hospício do Juquery, um dos primeiros do desvio psiquiátrico, sobretudo quando afetadas as
hospitais psiquiátricos brasileiros, na primeira metade do século suas qualidades de autoregulação, autonomia pessoal
XX, evidencia como os crivos para a construção dos diagnósticos e/ou econômica ou de perturbação da ordem. Não que
e para a determinação das medidas de internação e tratamento os elementos de alteração do funcionamento psíquico
estão, antes de tudo, no desvio social do comportamento, quando deixem de ser relevantes na definição da gravidade
não nas expressões culturais ou físicas próprias de uma raça. dos casos psiquiátricos, mas apenas quando essas
Vale citar alguns exemplos: alterações ultrapassam um certo patamar da crítica
social, os encaminhamentos dos casos os direcionam na
(...) Freqüentou o colégio, onde aprendeu a ler e escrever. busca de ajuda e, mais especificamente, na demanda de
Não consta que houvesse padecido de moléstias graves. internações. Portanto pode-se considerar que, nos casos
Foi sempre um pouco débil de constituição, como de denominados como “urgências psiquiátricas” e que
regra sucede com os mestiços entre nós. Por morte demandam internações, ao lado dos seus componentes
de seu progenitor é que começa a sua história mental psíquicos, encontram-se envolvidos vultosos elementos
propriamente dita. Usufruindo pequeno rendimento de de administração de situações sociais complexas que
herança, entregue a si mesma, começou a revelar-se não são compatíveis com as simplificações analíticas
incapaz de gerir seus bens, que dissipava sem conta (...). e institucionais mormente encontradas na estruturação
Um pouco mais tarde, sua conduta entrou a manifestar dos dispositivos clínicos tradicionalmente disponíveis.
singularidades. Certa vez, comprou trajes masculinos e (DE OLIVEIRA SILVA, 2009, p.41).
saiu a viajar nesse estado. Foi reconhecida como mulher
e presa pela polícia (...). Achamos, pelo exposto, que se Disso decorre uma nova direção de intervenção no campo
trata de uma degenerada fraca de espírito em que se da saúde mental, caracterizada pela perspectiva da atenção
vai instalando pouco a pouco a demência - Prontuário, psicossocial, que se colocou como orientadora do desenvolvimento
Antonia P. de A., 22 anos, parda, solteira, procedente da do projeto institucional dos CAPS, como dispositivos estratégicos
capital, internada em 22-6-1918. (CUNHA, 1986, p. 143) da rede substitutiva de saúde mental. A atenção psicossocial
Os estigmas de degeneração física que apresenta são os aponta para a necessidade de produzir intervenções tendo em vista
comuns de sua raça: lábios grossos, nariz esborrachado,

79 80
as condições de existência de sujeitos concretos, intervenções saúde e doença, conseguindo protagonizar novas formas de lidar
complexas e individualizadas, que respondam à necessidade de com seu adoecimento e construir novas possibilidades de vida
cada caso e se orientem para as redes de relação e circulação dos comunitária, familiar, novas formas de construção de relações
indivíduos. Segundo autora, a perspectiva da atenção psicossocial afetivas, novos trânsitos em campos e espaços de trabalho.
aponta para o campo das práticas e intervenções profissionais em As posturas profissionais devem estar orientadas para essa
saúde mental, para o campo teórico-técnico relativo à definição do finalidade. Desse modo, os psicólogos precisam construir novas
objeto dessa área e para uma perspectiva ético-política. Do ponto leituras, que respondam a essas exigências. Leituras que tomem
de vista do primeiro aspecto, a atenção psicossocial aponta para a psicopatologia compreendendo as questões sociais e culturais
a necessidade de construir dispositivos e redes que representem que a atravessam. O psicólogo necessita perceber as dificuldades
a superação do modelo asilar, assim como intervenções que relativas a cada território de convivência e os desafios postos
direcionem a assistência para as transformações necessárias na busca por direitos de cidadania das pessoas com as quais
nas configurações subjetivas e nos processos de produção trabalha.
social. Do ponto de vista teórico-conceitual, essa perspectiva De certo modo, podemos dizer que os psicólogos tem como
exige a substituição da referência à doença mental e sua cura desafio a possibilidade de construir a crítica ao discurso médico
para uma leitura sobre a existência concreta dos sujeitos e seus e à perspectiva reducionista acerca da experiência da loucura.
sofrimentos. Finalmente, a orientação ético-política aponta para a O desafio está posto como necessidade para o reconhecimento
construção permanente, dentro e fora dos serviços, da condição da dimensão cultural que atravessa a existência desses sujeitos
de cidadania daqueles historicamente invalidados nas relações e conforma suas subjetividades. Tal reconhecimento é essencial
sociais. Nas palavras de Oliveira Silva (2009, p.41): para resgatar a dimensão humana do fenômeno da loucura e a
dimensão do sofrimento que atravessa essa experiência humana.
Portanto o paradigma da clínica psicossocial das psicoses Desde uma perspectiva antropológica sobre o fenômeno da
pretende devolver à clinica a condição de operar com a loucura, o trabalho do psicólogo incide menos sobre a cura de uma
complexidade do seu objeto, manejando um conjunto doença ou um sintoma e mais sobre a produção de subjetividades
heterodoxo de recursos e possibilidades que extrapolam que, podemos dizer, devem se produzir como subjetividades
os limites disciplinares, acadêmicos e/ou corporativos
inconformadas. Inconformadas no sentido da recusa à reprodução
que, tradicionalmente, moldaram de forma reducionista
os fenômenos sobre os quais pretende intervir, de apática, homogênea e pasteurizada imposta pela sociedade
modo a submetê-los às conveniências protocolares das moderna, por suas formas de controle, pela organização de suas
instituições. ( DE OLIVEIRA SILVA; 2009) relações de trabalho e pelos processos de sustentação do modo
de produção vigente. Subjetividade é processo vivido e tecido
Essa perspectiva de linha de cuidados para as pessoas com a longo da trajetória do sujeito. Para ser insurgente, primeiro é
transtornos mentais (que é também hoje uma perspectiva de preciso acolher no próprio corpo a sua inquietação e o seu traço
orientação para o cuidado de outras doenças crônicas) pauta uma de diferença. Os psicólogos, como outros trabalhadores dessa
transformação importante às profissões no campo da assistência, clínica, não produzem apenas intervenções técnicas, mas antes
marcadas tradicionalmente por uma forte vocação ambulatorial. disso disponibilizam acolhimento para dar suporte à travessia que
Ela exigiu e exige do sistema de saúde e das profissões nele o outro deve construir em sua experiência como sujeito humano.
inseridas um processo longo e complexo de cuidados, orientados Nessa travessia, cada um deve encontrar as condições e os
pela possibilidade da pessoa se apropriar do seu processo de lugares possíveis para a afirmação da sua diferença como valor

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positivo. Isso representa a construção de coletivos responsáveis, trabalha, a loucura, requer, como já anunciado, uma leitura para
que assumem posições na sociedade em nome de uma direção além dos referenciais médico-sanitários e, portanto, é bem-vindo
ético-política. A ética que queremos afirmar está pautada nos o diálogo com o campo da Sociologia, do Direito, da Filosofia, da
valores da igualdade de direitos e do respeito às diversidades Antropologia.
e cabe aos profissionais, parceiros nesse empreendimento Não obstante essa pluralidade de leituras que podem construir
de tecer novas biografias e produzir novas subjetividades, o nosso olhar, sem dúvida a construção do trabalho intensivo e
questionamento permanente acerca da direção da transformação cotidiano de cuidados busca ferramentas oriundas do campo
que estão construindo na realidade por meio de sua atuação. teórico relativo à constituição da subjetividade, do psiquismo,
do comportamento humano. A respeito disso, é preciso que os
Teorias em Psicologia e Atenção à Saúde Mental psicólogos tenham clareza do lugar da teoria na construção de
seu trabalho profissional da rede substitutiva de saúde mental. É
Nessa discussão, cabe a pergunta acerca de quais os referenciais preciso reconhecermos que o campo de intervenção produzidos
teóricos no campo da Psicologia que, como orientadores desse desde a Reforma Psiquiátrica Antimanicomial não se fundou
trabalho, podem subsidiar os psicólogos na leitura e na prática de a partir de uma teoria ou de um conjunto teórico. Ao contrário
atenção psicossocial que estejam orientadas por esses princípios. disso, a busca ou a produção de conhecimentos teóricos que
A construção dessa nova perspectiva de intervenção e desse expressassem e subsidiassem esse trabalho se deu a reboque
novo direcionamento na construção das políticas de saúde exige da construção cotidiana de práticas, a princípio orientada pelas
a sustentação de uma posição teórica frente ao fenômeno da diretrizes preconizadas pelo SUS, pela Reforma Psiquiátrica e
loucura. Em relação ao debate relativo aos referenciais teóricos pelo ideário Antimanicomial. Desse modo, os psicólogos devem
dos psicólogos no campo da atenção psicossocial, algumas reconhecer que o conhecimento teórico da Psicologia deve se
reflexões preliminares de tornam necessárias. colocar, diante de sua prática nos CAPS, como secundário,
A primeira delas diz respeito ao reconhecimento de que a no sentido de que esse conhecimento deve estar a serviço e
produção do saber científico não é neutra e que, portanto, os submetido ao referencial e às diretrizes orientadoras do processo
conjuntos teóricos disponíveis expressam diferentes projetos da Reforma. Ou seja, é necessário perguntar se os referenciais
de ciência, que apontam para distintos projetos de sociedade adotados respondem à direção de uma ética inclusiva, libertária e
e, portanto, referenciam intervenções na direção desses que aponte para o respeito e a construção da cidadania da pessoa
projetos. Isso deve nos lançar, no campo da Psicologia, a um com transtorno mental. Assim, é um campo ético que delimita os
diálogo interrogante em relação aos compromissos e diretrizes limites dos recursos teóricos e técnicos que podem ser tomados
que se desdobram dos diversos campos teóricos. Portanto, os e disponibilizados para o trabalho nos CAPS.
referenciais que os psicólogos assumem e nos quais buscam Por isso, é necessário recusar referências que reduzem o
referências para a orientação teórico-prática de seu trabalho, sujeito à condição de objeto da investigação científica, assim
expressam que concepção de homem e sociedade e de que como é preciso recusar perspectivas a partir das quais o saber
forma se comprometem com a transformação da realidade? científico tenha primazia sobre a garantia de direitos dos usuários.
Outra reflexão importante diz respeito ao reconhecimento Também é preciso recusar teorias que apontem no sentido da
de que o fenômeno com o qual trabalhamos nos CAPS impõe normalização e da mera adaptação dos sujeitos. É necessário, no
embasamentos oriundos de diferentes campos do saber. Assim, lugar disso, buscar referenciais que subsidiem a perspectiva de
a apreensão da complexidade do fenômeno com o qual se atuar para produzir saúde, transformar subjetividades e emancipar

83 84
os sujeitos. O referencial teórico deve ser capaz de responder para aproximação do serviço aos usuários em regiões rurais,
a um projeto ético. Esse projeto ético está orientado para a experiências de atividades em contato direto com a comunidade,
possibilidade da convivência, da diversidade, da sustentação de oficinas com utilização de diferentes recursos (música, leitura e
diferentes existentes, garantida a condição de uma cidadania. A escrita, cuidados com corpo e beleza, informática), programas de
cidadania não é fazer do louco não louco, não é fazer do louco geração de trabalho e economia solidária, dentre outros.
um sujeito de razão, mas é compreender um campo da cidadania Novamente, não cabe a essas referências listar as práticas
constituído como espaço da pluralidade. A universalidade do que devem ser desenvolvidas pelos psicólogos nos CAPS,
acesso aos direitos deve comportar as singularidades. nem tampouco um conjunto de intervenções que possam se
A pesquisa realizada com os psicólogos que trabalham nos caracterizar como práticas inovadoras. Salientamos, no lugar
CAPS aponta para a utilização de uma pluraridade de referenciais disso, que as práticas serão tanto mais exitosas quanto mais
teórico, técnicos e conceituais, com destaque às abordagens de responderem às exigências e desafios de cada contexto, na
base psicanalítica, abordagens a partir do referencial da Psicologia direção da atenção psicossocial referenciada. Do mesmo modo,
Social e abordagens de base comportamental. Não cabe apontar a inovação das práticas deve ter como critério a produção de
os campos epistemológicos, teóricos e conceituais que melhor respostas diante da necessidade de intervenções dos projetos
respondem ou dialogam com os parâmetros éticos e as diretrizes terapêuticos individualizados e as condições de cada território.
do campo da Reforma Psiquiátrica, indicando ou limitando a Sem dúvida, do ponto de vista das intervenções tradicionalmente
princípio a utilização de determinados conjuntos teóricos. Mas consolidadas no campo da Psicologia, isso deverá representar
é preciso afirmar o compromisso do profissional psicólogo uma reinvenção de práticas e de tecnologias de intervenção.
se perguntar, na busca de referenciais teóricos no campo da Pela relevância do seu lugar na orientação das práticas
Psicologia (considerando, sobretudo, sua construção histórica), psicológicas e também na orientação das medidas de assistência
que respostas esses referenciais lhe oferecem no encontro em saúde mental, cabe uma reflexão final sobre a questão do
com a loucura, sua coerência com os princípios orientadores da diagnóstico e seu papel na construção das ações de atenção
Reforma e sua possibilidade de subsidiar as práticas da atenção psicossocial e, portanto, na construção das intervenções nos
psicossocial conforme afirmadas acima. CAPS. A prevalência do diagnóstico psicopatológico representa
um reducionismo e, em última instância, a prevalência do discurso
As Práticas das(os) Psicólogas(os) nos CAPS técnico, médico, científico e racional sobre a loucura. É a captura
da lógica científica da normalidade que reduz a experiência da
Do mesmo modo que as teorias, os referenciais relativos às loucura à doença. Nessa perspectiva, o diagnóstico se apresenta
práticas e às técnicas desenvolvidas no serviço devem estar como conclusão e descrição imutável da condição do sujeito, que
submetidos às diretrizes do SUS e da Reforma Psiquiátrica e aponta para a previsão de um destino.
a ética do projeto antimanicomial. A pesquisa realizada com os Na clínica da saúde mental, os psicólogos devem construir
psicólogos apresenta um conjunto significativo de atividades diagnósticos que se apresentem como ponto de orientação
como acolhimento, discussão de casos em equipe, psicoterapias, num percurso a ser construído na história do sujeito. Ele deve
atendimento às crises, elaboração de planos individuais de significar a possibilidade, muito menos de responder sobre uma
cuidado, grupos e oficinas, atividades dirigidas diretamente à doença e muito mais de indicar as possibilidades de projetos
reinserção social, dentre outras. No que tange ao destaque de a partir do que se identifica como um modo do sujeito atuar na
práticas ou experiências inovadoras, apresentam-se estratégias vida, estabelecer relações e constituir sua experiência subjetiva.

85 86
Assim, a construção do diagnóstico deve apontar um dado da
biografia do sujeito que ajude a pensar transformações possíveis
nessa biografia. O diagnóstico não deve, por isso, ser buscado
para responder ao psicólogo ou à equipe quem é o sujeito ou
qual a sua doença, mas para apresentar dificuldades desse
sujeito que apontem as possibilidades de assistência da equipe e
do profissional na construção parceira de uma nova trajetória de
vida.
Portanto, do ponto de vista do diagnóstico, das teorias e das
referências de projetos de intervenção para a prática dos psicólogos
nos CAPS, devemos nos orientar sempre pela indagação acerca
de que a servem os recursos utilizados e se eles estão a serviço
da atenção psicossocial orientada pelos princípios da reforma
psiquiátrica antimanicomial. Sem dúvida, essa reflexão levará
os psicólogos à produção permanente de saberes e de práticas
profissionais. Nesse sentido, podemos afirmar que o campo da
atenção à saúde mental orientado por tais princípios pauta uma
transformação necessária à própria Psicologia, considerada a
tradição a partir da qual esta se produziu.

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EIXO III: A ATUAÇÃO DA(O)
PSICÓLOGA(O) NA POLÍTICA
DO CAPS

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EIXO III: A ATUAÇÃO DA (O) PSICÓLOGA (O) NA cabe aos CAPS, suas equipes e recursos clínicos, não recuar
POLÍTICA DO CAPS frente à loucura ou ao sofrimento psíquico, tomando posição e
se contrapondo à exclusão como método de tratamento, mas
também oferecendo ao estrangeiro da razão (LIMA, 2002)
O modo de fazer: desinstitucionalização da prática e
hospitalidade, manejos criativos e singulares para fazer contorno
intervenção na cultura.
à dor intensa e assegurar ao sujeito os direitos de um cidadão.
Cabe ainda ao CAPS, a invenção, pretensão que contrariaria a
A Reforma Psiquiátrica, política pública do Estado brasileiro
lógica que o instituiu, contudo, é importante salientar que a clínica
de cuidado com as pessoas de sofrimento mental, é, em
antimanicomial não é um fazer eclético, nem tampouco destituído
sua concepção e proposta, muito mais que uma reforma da
de sentido. Ao contrário, a criação, a invenção desta nova prática
assistência pública em saúde mental. É, antes, e, sobretudo, um
de trato e relação com a loucura sustenta-se em princípios éticos
complexo processo de transformação assistencial e cultural que,
claros e definidos. O direito à liberdade, o consentimento com
ao deslocar o tratamento do espaço restrito e especializado de
o tratamento, o respeito à cidadania e aos direitos humanos, a
cuidado da loucura: o hospital psiquiátrico, para a cidade, que
participação do usuário no serviço; articulam-se aos conceitos de
provoca mudanças no modo como a sociedade se relaciona com
território, desinstitucionalização, porta aberta, vínculo, trabalho em
esta experiência. O que coloca, de saída, para todos os outros
equipe e em rede. Este conjunto formam os pontos de orientação
dispositivos inventados por esta política, a saber, os chamados
que organizam e dão sentido ao cuidado nestes lugares.
serviços substitutivos, e os CAPS são um destes serviços, uma
A pergunta: o que se faz num lugar como este, como é
dupla missão: a de serem lugares de cuidado, sociabilidade e
o tratamento dentro de um CAPS, quais são os recursos
convívio da cidade com a loucura que a habita.
terapêuticos adotados por esta prática de cuidado, questões
Lugares de tratamento e convívio entre diferentes, de realização
sempre endereçadas à Reforma Psiquiátrica, é antecedida,
de trocas simbólicas e culturais, enfim, lugares e práticas que
portanto, por uma orientação ética que diz por que se faz assim e
desconstroem, em seu fazer cotidiano, uma arraigada cultura
não de outro modo.
de exclusão, invalidação e silenciamento dos ditos loucos, ao
Tornou-se lugar comum a afirmação de que nos serviços
promover intervenções no território que revelam possibilidades
substitutivos ocorre uma prática inventiva, desinstitucionalizadora.
de encontro, geram conexões, questionam os preconceitos e
E isto é absolutamente verdadeiro. Nos novos serviços, nos
fazem aparecer a novidade: a presença cidadã dos portadores de
CAPS, muito do que é feito, grande parte da experiência
sofrimento mental.
cotidiana de técnicos, usuários e familiares não encontra
Os CAPS – Centros de Atenção Psicossocial - são uma das
referência em nenhuma teoria ou disciplina. Não está previsto
invenções deste processo que se articulam e ganham potência
em nenhum manual de Psicologia ou qualquer outra disciplina
no pulsar da rede na qual se inserem, e cumprem, dentro da
e nem sempre se formaliza como saber teórico. “Práticas que
arquitetura aberta, livre e territorializada da reforma, um importante
– é importante assinalar– ocorrem ao lado de, e convivem com
papel.
intervenções absolutamente legitimadas e aceitas pelo saber
Cabe a este estratégico serviço a resposta pela atenção
técnico-científico”. (Desinstitucionalização da prática e práticas
diária e intensiva às pessoas com sofrimento mental, oferecendo
da desinstitucionalização. Texto apresentado no Encontro
acolhimento, cuidado e suporte desde o momento mais grave
Nacional “20 anos de Bauru” mimeo. Bauru, 2007. CFP). Ou seja,
_ a crise, senha de ingresso no manicômio, até a reconstrução
a invenção convive com a tradição, sempre balizada, contudo, por
dos laços com a vida. Materializando uma máxima psicanalítica,

91 92
uma ética: a da liberdade e do respeito às diferenças. Segue-se reside a novidade, a subversão: se o ato se faz contra a vontade
a tradição quando a mesma, suas prescrições e normas “não se de um sujeito, é porque há aí o reconhecimento da expressão de
constituem em obstáculos à vida e ao direito humano”. um querer, da capacidade de manifestar e decidir sobre sua vida
Pode-se afirmar, portanto, que em essência a prática nos e seus atos, mesmo que em crise ou surto. E visando minimizar
CAPS é um embate entre a tradição e a invenção, a construção os riscos de possíveis abusos da razão no uso do poder sobre
do novo na negação do velho; ou ainda, a construção diária de a loucura, o responsável por este ato fica obrigado a prestar
outro paradigma para o cuidado com a loucura que insere entre contas do mesmo, informando-o ao Ministério Público, instância
seus recursos e como condição preliminar para o tratamento, convocada pela lei, a avaliar e decidir quanto a pertinência da
a cidadania de quem é cuidado e de quem cuida. Uma relação decisão e os efeitos que provocou no exercício da cidadania do
de cuidado, onde nos dois polos – terapeuta/paciente, devemos sujeito à mesma submetido. Este é o sentido dado pela Lei da
sempre encontrar um cidadão. Reforma Psiquiátrica a internação involuntária.
A liberdade é um dos direitos de todo cidadão. E, para a Completamente distinta é a internação compulsória. Nesta não
Reforma Psiquiátrica, é o ponto de partida da clínica. O que é feito há manifestação de vontade, mas imposição de pena. Aqui temos
tem na liberdade sua causa e consequência. Cuidar em liberdade um ato jurídico, uma prescrição legal determinada por um juiz e
é, mais que uma máxima, uma diretriz. É posição que se traduz decidida no curso de um processo e nunca fora dele.
na prática e em sentidos variados. Inicia-se na supressão das O projeto antimanicomial é comumente compreendido como
grades, na eliminação dos espaços de isolamento e segregação, uma ética que apenas beneficia as pessoas com sofrimento
ou seja, na substituição da arquitetura da exclusão, para alcançar mental.
um ponto subjetivo e cidadão: o consentimento com o tratamento. Uma “leitura simplista e equivocada, que confunde direito
Para tratar, rigorosamente, é necessário ser livre para decidir com privilégio, dimensão que a luta antimanicomial jamais
quando e porque tratar-se, sendo igualmente importante, para reivindicou para os ditos loucos. A defesa do direito à
esta clínica, tratar sem trancar, tratar dentro da cidade, buscando liberdade e a cidade para os portadores de sofrimento
mental, reconhece a exclusão de que eles foram e ainda
os laços sociais, o fortalecimento ou a reconstrução das redes
são vítimas e reclama o seu direito por cidadania por
que sustentam a vida de cada usuário. compreender que esta é uma condição preliminar para a
Liberdade e responsabilidade são, portanto, conceitos clínica”. (SILVA, 2010, pg. 147)
orientadores da prática clínica dos serviços substitutivos e dos
CAPS, em particular. A responsabilidade foi problematizada pela Tratar em liberdade é não pressupor a reclusão como modo de
reforma psiquiátrica e a grande novidade foi a introdução do tratar, subvertendo tanto a lógica quanto o pensamento clínicos.
reconhecimento da vontade e da responsabilidade na experiência Abertas as portas, suprimidas as grades _ primeira tomada de
da loucura. Ao modular a internação – artigo 4º da lei 10216 de decisão, outra mudança deve se operar. Faz-se necessário
2001, dá a esta o estatuto de um recurso entre outros e não mais abandonar a posição de tutores dos loucos e da loucura,
o recurso, a ser usado quando os demais houverem se esgotado. recusando, ainda, a condição de agentes da ordem, inventando ou
Deste modo, produziu um corte em relação às práticas de descobrindo o novo lugar e função a ser exercida: o de parceiros
sequestro da loucura. Além disso, distinguiu a aplicação jurídica da loucura.
da terapêutica. No campo do tratamento, a internação pode se Uma das máximas basaglianas ensina que é “preciso colocar
dar em acordo com a vontade do sujeito, voluntariamente, e em entre parênteses a doença para encontrar o homem”. Deslocar
desacordo com seu querer, involuntariamente. E neste ponto o olhar da doença para o cidadão que sofre e para o sujeito que

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se manifesta e assim se expressa é um giro na posição de quem referência. Mais que qualquer outro recurso, o que a prática nos
cuida que possibilita desvelar, na manifestação do sofrimento, os CAPS revela de mais potente é que é o vínculo o recurso que
sentidos ou significados que o mesmo revela ou expressa, mas melhor trata o sofrimento. É esta ferramenta, se quisermos assim
também, as conexões e rupturas que põem em jogo. nomear, que reveste todos os recursos disponíveis e possíveis de
O sofrimento psíquico ou a crise - sua expressão mais serem utilizados de sentido terapêutico e os tornam potentes na
intensa - podem assim ser percebidos para além da dimensão resposta. Assim, um remédio tem tanto valor de alívio quanto um
psicopatológica. Entra em jogo aqui, a necessária escuta e o simples passeio, ou uma festa, ou ainda, a conquista de condições
reconhecimento do sujeito e do laço social. Assim, temos a dignas de vida, a elaboração ou a subjetivação da experiência do
psicopatologia articulada à dimensão subjetiva e ao laço social. sofrimento e a construção de um saber sobre a mesma.
A crise do sujeito, ou o conflito que não encontrou lugar na E aqui é preciso considerar as dimensões singular e coletiva
subjetividade e por isso tornou-se insuportável e transbordou, dos vínculos. No plano micro, a importância do vínculo com um
precisa ser escutada naquilo que esta produz de tensionamento, técnico específico e no coletivo ou macro, o vínculo com um serviço.
ruptura ou conexão com os laços sociais. Mudando a abordagem, A desconstrução do manicômio é também e de modo sensível,
muda-se, também, a resposta. Não mais traduzida como senha um processo de substituição de referências, de reendereçamento
para a perda da cidadania, a crise pode ser inscrita e tratada do pedido de resposta à dor, antes dirigido à instituição total,
buscando a responsabilização possível, naquele momento a lugares e sujeitos que assumem a responsabilidade ética de
e o consentimento do sujeito/cidadão com o tratamento. As cuidar e funcionar como suporte para a vida de sujeitos/cidadãos
intervenções, não mais exteriores e traduzidas pela razão, vulneráveis e sempre em vias de exclusão social.
orientam-se pela palavra do sujeito. Não mais assentada sobre o princípio único da totalização e
Tomar a fala do louco como orientador da intervenção sobre seu homogeneização, buscando respostas singulares e complexas, a
sofrimento é uma novidade, uma ruptura com a institucionalização prática nos CAPS assume o desafio de construir seu conhecimento
que culminou na consagração da loucura como sinônimo de na partilha dos saberes. Um trabalho, portanto, coletivo, feito a
doença mental e esvaziou esta experiência de sua verdade, muitas mãos e fruto de diferentes perspectivas que se orienta
tornando inócuo e destituído de sentido o seu dizer. pelo saber do louco e neste se baseia para desenhar o projeto de
tratamento a ser ofertado. Sempre singular e distinto, na medida
No meio do mundo sereno da doença mental, o homem mesma da singularidade de cada experiência de sofrimento e do
moderno não se comunica mais com o louco; há de um momento de vida de cada usuário, esta metodologia introduz na
lado, o homem de razão que delega para a loucura o prática clínica um operador – o projeto terapêutico singular, que
médico, não autorizando, assim, relacionamento senão articula o sentido dos recursos colocados à disposição de cada
através da universalidade abstrata da doença... a
um.
linguagem da psiquiatria, que é monólogo da razão sobre
a loucura, só pôde estabelecer-se sobre um tal silêncio. Bússola que orienta usuários e equipes no percurso pelo serviço
(FOUCAULT, pg. 153, 2002. Prefácio (folie et déraison) e pela rede, o projeto terapêutico singular, articula os recursos
in Ditos e Escritos nº I. Problematização do sujeito: colocados à disposição pela política, mas também aqueles que
psicologia, psiquiatria e psicanálise. nos trazem cada usuário, seus familiares e suas referências.
Instrumento mutável que busca responder às necessidades,
Neste ponto é preciso destacar outro importante conceito: o naquele momento e para cada usuário, sendo ainda a expressão
vínculo ou a transferência e um desdobramento ou efeito deste, a e o espaço de inscrição das soluções e estratégias criadas por

95 96
cada um na reconstrução de sua história e vida. suspensa e o sujeito necessita, sempre, de tutela.
Para um, a permanência diária e hospitalidade noturna farão A necessidade do manicômio como resposta para alguns
o contorno ao sofrimento; para outro, a oferta de uma ida ao casos é hoje um dos argumentos que desafiam a capacidade
cinema e ao teatro, a participação na assembleia e na festa; o criativa, criadora ética de um CAPS. Quase sempre os casos
medicamento e a terapia, a negociação e a acolhida dos familiares supostos como impossíveis para um CAPS apresentam maior
ou, a conquista de uma moradia, o acesso ao trabalho; e para fragilidade dos laços, ou uma situação de abandono e ausência
todos a porta aberta que permite o acesso direto e no momento de referências. Para estes, a prévia receita da exclusão.
que uma questão fizer urgência e desorganizar o ritmo do viver, A adequação do sujeito à norma, lembramos, não responde
sem mediações e burocracias. O acesso ao serviço, à proteção e à sua necessidade singular. O manicômio, resposta da razão
à palavra para fazer valer os direitos e a subjetividade. à loucura, apenas agudiza e torna mais miserável e indigna
Mas, a clínica dos CAPS distancia-se, e muito, da ideia corrente qualquer vida. Ou seja, não é solução, mas resposta simplista
que referencia a percepção social acerca do fazer clínico. Ou seja, da racionalidade. Desconstruí-lo, em tais situações, requer e
a clínica de um CAPS não se faz só de colóquios íntimos. Conjuga introduz no cuidado em saúde mental situações que extrapolam,
elaboração subjetiva e reabilitação no processo de construção da transcendem o arsenal terapêutico, ou melhor, que enriquecem
autonomia e da capacidade de cada usuário. Por isso, agrega à a clínica ao nesta introduzir as questões relativas à vida e não à
psicoterapia e ao medicamento, a potência de outros recursos e doença.
intervenções. No texto “Da instituição negada a instituição inventada”,
Oficinas, assembleias, permanência, hospitalidade, mediação Franco Roteli nos diz que a instituição em questão era o conjunto
das relações entre os sujeitos e seus familiares, suas referências de aparatos científicos, legislativos, administrativos, de códigos
e redes têm tanto valor quanto os recursos da ciência e da técnica. de referência cultural e de relações de poder estruturados em
Tratar - para esta clínica, é construir as condições de liberdade e torno de um objeto bem preciso: “a doença”, à qual se sobrepõe
capacidade de se inserir na cidade, de fazer caber a diferença - no manicômio o objeto “periculosidade”. Por que queremos
sempre singular, no universal da cidadania, com cada usuário. esta desinstitucionalização? Porque, a nosso ver, o objeto da
Psiquiatria não pode nem deve ser a periculosidade ou a doença
A clínica no território e o confronto com as verdades do man- (entendida como algo que está no corpo ou no psiquismo de uma
icômio. pessoa). Para nós, o objeto sempre foi a “existência-sofrimento
dos pacientes e sua relação com o corpo social”. O mal obscuro
As crônicas do cotidiano de um CAPS são repletas de cenas da Psiquiatria está em haver constituído instituições sobre a
que demonstram, em ato, os sentidos da desinstitucionalização. separação de um objeto fictício - a doença - da existência global,
O inusitado presente nas mesmas é efeito de uma aposta que complexa e concreta do paciente e do corpo da sociedade.
desconstrói pontos de “verdade” da tradição. Por exemplo: Deste modo, percebe-se que as ações/intervenções
a convocação à responsabilidade do sujeito não se dá pela prioritárias na prática clínica dos CAPS não provêm da química
imposição da autoridade, nem, apenas, no momento da nem da elaboração, importantes e necessárias, mas parte do
recuperação da saúde. Passa, pela descoberta da lucidez e da conjunto de estratégias típicas da reabilitação psicossocial, que
capacidade de decisão, mesmo no momento da crise, o que joga evidenciam a ausência de direitos, a desabilitação promovida
por terra e desconstrói a crença de que a crise é momento onde pela institucionalização de um modo de vida doente e promovem,
a capacidade de decidir e responder por seus atos encontra-se como forma de superar tais limites, o acesso ao campo dos

97 98
direitos e o exercício do protagonismo dos sujeitos, tecendo junto A adesão ao tratamento ou sua ausência deve ser sempre
com este, redes de suporte e sustentação para seu modo próprio problematizada no movimento e curso de uma história de
de experimentar o sofrimento e conduzir a vida. tratamento, implicando a quem conduzo tratamento na tarefa
Na perspectiva da desinstitucionazação as terapias – seja e responsabilidade de buscar contornos que impliquem os
químicas ou psicoterápicas, são meros recursos de mediação envolvidos - usuários, familiares, equipes, gestores e a cidade,
num processo amplo de reconstrução dos modos de viver de no compromisso com a vida, o cuidado e os direitos.
cada sujeito. Uma clínica com tal nível de complexidade pede formação
Contudo, é preciso lembrar que como processo em curso, à altura. Formação acadêmica, mas, sobretudo, formação
a prática dos CAPS e a ética libertária da reforma psiquiátrica eticamente orientada para a liberdade, capaz, portanto, de refletir
convivem e se defrontam, cotidianamente, com os mitos da criticamente sobre o seu fazer, cujo desafio é
incapacidade, periculosidade, com os mandatos de tutela e
exclusão, ou seja, com a lógica manicomial que interpela a [...] fazer da teoria uma elaboração permanente, que
Reforma Psiquiátrica e os CAPS na validade de sua resposta, sustente, sem conformar, uma prática clínica que, por
mesmo frente à sensível inovação de sua prática e seus efeitos sua vez, não perca de vista o compromisso terapêutico
transformadores. que a legitima. A indagação sobre a loucura a serviço do
interesse pelos loucos. A busca da verdade a serviço da
Um tema frequente e que angustia as equipes dos CAPS e
liberdade e da solidariedade. (BEZERRA,1992. pag.37. )
demais serviços da rede substitutiva, a adesão ao tratamento
revela, um dos limites da aposta da clínica antimanicomial: o Franco Rotelli aponta que
consentimento com o tratamento. Operar de forma avessa à
tradição exige criatividade, disposição e aposta nos efeitos [...] de alguma forma somente eles (os usuários) nos
subjetivos da implicação responsável de cada um com o obrigam, se não fecharmos nossos olhos, a esta busca
sofrimento e o modo de tratá-lo. Tradicionalmente, a resposta contínua por novas estratégias. São eles os nossos
seria dada, sem questionamentos, pelo polo da razão, ou seja, formadores. No momento em que aceitamos este papel
pela tradução dada pelo técnico à expressão do sofrimento. de ser formados por eles, então finalmente começamos
Na desinstitucionalização um giro se produzirá e aí, o que era a entender alguma coisa do que fazemos e, neste
simples, ou melhor, simplificado, torna-se complexo. Entra em momento, muda-se a relação, e até mesmo o nosso
cena o sujeito louco e sua responsabilidade. paciente percebe que algo mudou. (ROTELLI,2008 pag.
44)
Deste modo enquanto o sujeito que sofre não reconhece
quem o cuida como recurso de alívio para sua dor, ainda que
Desinstitucionalizar a prática implica em abandonar o
frequente ao serviço, mesmo que se mostre obediente à
manicômio como causa, como sentido lógico que prescreve
proposta de organização do tratamento, a eficácia deste percurso
modos de vida limitados, anônimos e sem voz. E para isso não
permanecerá reduzida. E o desenlace ou o abandono de um
há manual ou código de conduta, mas há uma ética. A ética da
projeto de tratamento pode significar, entre outras coisas, um
liberdade. E há saber. Saber que quase nada se sabe e que o
desencontro entre oferta e demanda, uma recusa ativa de quem
outro, o louco, pode e deve nos orientar quanto às possibilidades
é tratado à oferta que lhe é feita, ou ainda, a adoção de outra
de saída para sua dor.
solução - às vezes construída no silêncio e na solidão subjetiva,
que não coloca o usuário em conexão com o serviço.

99 100
Trabalho em rede: uma resposta sempre complexa e Lugar da contradição, mas também das possibilidades de
necessária à desconstrução do manicômio. encontros e saídas, da tessitura de redes afetivas e materiais,
entre outras, a cidade é a escolha ética da reforma psiquiátrica
A escolha da ideia de rede como modo de organizar os par inscrição e exercício da clínica cidadã do sofrimento psíquico.
serviços toma como ponto de partida a negação da arquitetura Como na Raíssa de Calvino pelo traçado das cidades correm
rígida e hierárquica do manicômio, ou melhor, do sempre vertical fios invisíveis que ligam, por instantes, um sujeito a outro e no
e fechado hospital psiquiátrico, mesmo quando moderno e movimento de conexão e desconexão traçam formas mutantes.
asséptico, propondo em seu lugar a instituição de estações de A cidade feliz contém seu avesso e assim sucessivamente, no
cuidado, de pontos de referência horizontais e abertos. Este é um movimento próprio do viver. Dialético, por isso, vivo; contraditório
dos sentidos. e real, eis o modo ético da prática clínica da reforma psiquiátrica
Estar em rede também é estar em movimento. Nenhum revelado no espelho da cidade.
dos dispositivos ou pontos de cuidado funciona fechado em si
mesmo, e aumentam sua potência quando se articulam em rede.
Guimarães Rosa definiu rede como “uma porção de buracos
atados por pedaços de barbante”. Ou seja, malha aberta, com
furos ou espaços para a criação de possibilidades. Mas ainda,
malha na qual os usuários podem descansar sua loucura. Uma,
entre as múltiplas redes que compõem a cidade, uma rede de
saúde mental é ponto de ancoragem. É lugar de hospitalidade e
fio que ajuda a construir laços com o outro.
Escolher a cidade como lócus da experiência clínica com
psicóticos pede um trabalho em rede como condição para superar
a totalização e a exclusão. Mais que um conjunto de serviços,
a rede é, de modo muito sutil e sensível, aquilo que a anima, a
pulsação do desejo de cada um dos sujeitos, protagonistas das
cenas da desinstitucionalização.

É uma cidade igual a um sonho: tudo o que pode ser


imaginado pode ser sonhado, mas mesmo o mais
inesperado dos sonhos é um quebra-cabeças que
esconde um desejo, ou então o seu oposto, um medo.
As cidades, como os sonhos, são construídas por
desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu
discurso seja secreto, que suas regras sejam absurdas,
as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas
escondam uma outra coisa. (CALVINO, 2002, p. 44)

101 102
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA
CONSELHOS REGIONAIS DE PSICOLOGIA

CENTRO DE REFERÊNCIA TÉCNICA EM PSICOLOGIA É permitida a reprodução desta publicação, desde que sem alterações e
E POLÍTICAS PÚBLICAS citada a fonte. Disponível também em: www.cfp.org.br e em crepop.pol.org.br
1ª edição – 2013
Projeto Gráfico – IDEORAMA
Diagramação – IDEORAMA
Revisão – Positive Idiomas

Comissão de Elaboração do Documento


Coordenação Geral/ CFP
Márcia Mansur Saadallah
Yvone Duarte
Deborah Akerman Coordenação de Comunicação Social/CFP
Rita de Cássia Oliveira Cristina Bravo
Vânia Baptista Nery André Almeida/Editoração
Verônica Morais Ximenes Equipe Técnica do Crepop/CFP
Colaboradora: Solange Leite Monalisa Barros e Márcia Mansur Saadallah /Conselheiras responsáveis
Técnica Regional: Silvia Giugliani Natasha Ramos Reis da Fonseca/Coordenadora Técnica
Cibele Cristina Tavares de Oliveira /Assessora de Metodologia
Klebiston Tchavo dos Reis Ferreira /Assistente administrativo

Equipe Técnica/CRPs
Renata Leporace Farret (CRP 01 – DF), Thelma Torres (CRP 02 – PE), Gisele
Vieira Dourado O. Lopes (CRP 03 – BA), Luciana Franco de Assis e Leiliana
Sousa (CRP04 – MG), Tiago Regis (CRP 05 – RJ), Ana Gonzatto, Edson
Ferreira e Eliane Costa (CRP 06 – SP), Carolina dos Reis (CRP 07 – RS),
Referências Técnicas para a Prática de Psicólogas (os) no Centro Ana Inês Souza (CRP 08 – PR), Marlene Barbaresco (CRP09 – GO/TO),
de Referência Especializado da Assistência Social - CREAS Letícia Maria S. Palheta (CRP 10 – PA/AP), Djanira Luiza Martins de Sousa
(CRP11 – CE/PI/MA), Juliana Ried (CRP 12 – SC), Katiúska Araújo Duarte
(CRP 13 – PB), Keila de Oliveira (CRP14 – MS), Eduardo Augusto de Almeida
(CRP15 – AL), Patrícia Mattos Caldeira Brant Littig (CRP16 – ES), Zilanda
Pereira de Lima (CRP17 – RN), Fabiana Tozi Vieira (CRP18 – MT), Lidiane de
Melo Drapala (CRP19 – SE), Vanessa Miranda (CRP20 – AM/RR/RO/AC)

Brasília, fevereiro/2013
1ª Edição
XV Plenário
Gestão 2011-2013

Diretoria
Humberto Cota Verona – Presidente
Clara Goldman Ribemboim – Vice-presidente
Deise Maria do Nascimento – Secretária
Referências bibliográficas conforme ABNT NBR 6022, de 2003, 6023, de Monalisa Nascimento dos Santos Barros – Tesoureira
2002, 6029, de 2006 e10520, de 2002.
Conselheiros efetivos
Direitos para esta edição – Conselho Federal de Psicologia: SAF/SUL Quadra Flávia Cristina Silveira Lemos
2,Bloco B, Edifício Via Office, térreo, sala 104, 70070-600, Brasília-DF Secretária Região Norte
(61) 2109-0107 /E-mail: ascom@cfp.org.br /www.cfp.org.br Aluízio Lopes de Brito
Impresso no Brasil – Dezembro de 2011 Secretário Região Nordeste
Heloiza Helena Mendonça A. Massanaro
Catalogação na publicação
Fundação Biblioteca Nacional
Secretária Região Centro-Oeste
Biblioteca Miguel Cervantes Marilene Proença Rebello de Souza
Secretária Região Sudeste
Ana Luiza de Souza Castro
Secretária Região Sul

Conselheiros suplentes
Adriana Eiko Matsumoto
Celso Francisco Tondin
Conselho Federal de Psicologia Cynthia Rejane Corrêa Araújo Ciarallo
Referências técnicas para Prática de Psicólogas(os) no Centro de
Henrique José Leal Ferreira Rodrigues
Referência Especializado da Assistência Social - CREAS / Conselho
Federal
Márcia Mansur Saadallah
de Psicologia. - Brasília: CFP, 2012. Maria Ermínia Ciliberti
58 p. Mariana Cunha Mendes Torres
ISBN: 978-85-89208-56-7 Marilda Castelar
1. Psicólogos 2. Políticas Públicas 3. Proteção especial Sandra Maria Francisco de Amorim
I. Título. Tânia Suely Azevedo Brasileiro
Roseli Goffman

Psicólogas convidadas
Angela Maria Pires Caniato
Ana Paula Porto Noronha
Conselheiros responsáveis:
Conselho Federal de Psicologia:
Márcia Mansur Saadalah e Monalisa Nascimento dos Santos Barrros

CRPs
Carla Maria Manzi Pereira Baracat (CRP 01 – DF), Alessandra de Lima
e Silva (CRP 02 –PE), Alessandra Santos Almeida (CRP 03 – BA),
Paula Ângela de F. e Paula (CRP04 – MG), Analícia Martins de Sousa
(CRP 05 – RJ), Carla Biancha Angelucci (CRP 06 – SP), Vera Lúcia
Pasini (CRP 07 – RS), Maria Sezineide C. de Melo (CRP 08 – PR),
Wadson Arantes Gama (CRP 09 – GO/TO), Jureuda Duarte Guerra
(CRP 10 – PA/AP), Adriana de Alencar Gomes Pinheiro (CRP 11 – CE/
PI/MA), Marilene Wittitz (CRP 12 – SC), Carla de Sant’ana Brandão
Costa (CRP 13 – PB), Elisângela Ficagna (CRP14 – MS), Izolda de
Araújo Dias (CRP15 – AL), Danielli Merlo de Melo (CRP16 – ES),
Alysson Zenildo Costa Alves (CRP17 – RN), Luiz Guilherme Araujo
Gomes (CRP18 – MT) André Luiz Mandarino Borges (CRP19 – SE),
Selma de Jesus Cobra (CRP20 – AM/RR/RO/AC)
APRESENTAÇÃO

12
Apresentação

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) apresenta à categoria


e à sociedade em geral o documento de Referências Técnicas
para a Prática de Psicólogas(os) no Centro de Referência
Especializado da Assistência Social – CREAS, produzido a partir
da metodologia do Centro de Referência Técnica em Psicologia
e Políticas Públicas (Crepop), este documento busca construir
referência sólida para a atuação da Psicologia na área.
As referências construídas têm como base os princípios
éticos e políticos norteadores do trabalho das(os) psicólogas(os),
possibilitando a elaboração de parâmetros compartilhados e
legitimados pela participação crítica e reflexiva da categoria.
As referências refletem o processo de diálogo que os
Conselhos vêm construindo com a categoria, no sentido de se
legitimar como instância reguladora do exercício profissional. Por
meios cada vez mais democráticos, esse diálogo tem se pautado
por uma política de reconhecimento mútuo entre os profissionais
e pela construção coletiva de uma plataforma profissional que
seja também ética e política.
Esta publicação marca mais um passo no movimento recente
de aproximação da Psicologia com o campo das Políticas Públicas.
Aborda cenário delicado e multifacetado de nossa sociedade, no
contexto da violação de direitos e violências diversas na qual
intervém a Política Nacional de Assistência Social.
A opção pela abordagem deste tema reflete o compromisso dos
Conselhos Federal e Regionais de Psicologia com a qualificação
da atuação das(os) psicólogas(os) em todos os seus espaços de
atuação.
Nesse sentido, aproveito para agradecer a parceria do
Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que a
partir da experiência de implementação do CREAS, se propôs a
contribuir com a construção desta referência técnica para atuação
das(os) Psicólogas(os) na Política Nacional de assistência social.

HUMBERTO VERONA
Presidente do Conselho Federal de Psicologia

13 14
Sumário

Introdução 17
EIXO 1 - Dimensão Ético-Política para a Prática das(os)
Psicólogas(os) no Centro de Referência Especializado
da Assistência Social - CREAS 27
O Centro de Referencia Especializado de Assistência
Social – CREAS 31
A Psicologia e o paradigma da cidadania 33
Desafios e potencialidades no trabalho do CREAS 37
EIXO 2: Psicologia e a Política de Assistência Social 43
Psicologia, SUAS e Políticas Públicas 45
Psicologias – o trabalho com famílias e pessoas em
situação de vulnerabilidade e risco social e pessoal por
violação de direitos 48
EIXO 3: Atuação da(o) Psicóloga(o) no CREAS 57
Construindo Práticas 62
EIXO 4: Gestão do Trabalho na Política de Assistência
Social 81
O trabalho na Assistência Social 83
Os cotidianos profissionais na Proteção Social Especial 92
Desafios a serem enfrentados 99
Considerações Finais 101
Referências 105

16
INTRODUÇÃO

17 18
Introdução de vulnerabilidades e riscos pessoais e sociais, a partir do
desenvolvimento de potencialidades e fortalecimento de vínculos
O Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas familiares e comunitários.
Públicas consiste em uma etapa na construção da presença A PSE destina-se a famílias e indivíduos em situação de
social da Psicologia como profissão no Brasil que dá continuidade risco pessoal ou social, cujos direitos tenham sido violados ou
ao projeto Banco Social de Serviços em Psicologia do Sistema ameaçados por ocorrência de violência física ou psicológica, abuso
Conselhos de Psicologia. Constituiu-se em uma maneira ou exploração sexual; abandono, rompimento ou fragilização de
de observar a presença social da(o) psicóloga(o) e do seu vínculos ou afastamento do convívio familiar devido à aplicação
Protagonismo Social. de medidas.
Nesse sentido, a ideia fundamental do Crepop é produzir As atividades da Proteção Especial são diferenciadas de
informação qualificada para que o Sistema Conselhos possa acordo com níveis de complexidade (média ou alta) e conforme a
implementar novas propostas de articulação política visando situação vivenciada pelo indivíduo ou família. Os serviços de PSE
maior reflexão e elaboração de políticas públicas que valorizem o atuam diretamente ligados com o Sistema de Garantia de Direito -
cidadão enquanto sujeito de direitos, além de orientar a categoria SGD, exigindo uma gestão mais complexa e compartilhada com o
sobre os princípios éticos e democráticos para cada política Poder Judiciário, o Ministério Público e com outros órgãos e ações
pública. do Executivo. Cabe ao Ministério do Desenvolvimento Social e
Dessa forma, o objetivo central do Crepop se constituiu em Combate à Fome - MDS, em parceria com governos estaduais e
garantir que esse compromisso social seja ampliado no aspecto da municipais, a promoção do atendimento às famílias ou indivíduos
participação das(os) psicólogas(os) nas políticas públicas. Dentre que enfrentam adversidades.
as suas metas estão a ampliação da atuação da(o) psicóloga(o) O CREAS é a unidade pública estatal de abrangência
na esfera pública, contribuindo para a expansão da Psicologia municipal ou regional que tem como papel constituir-se em
na sociedade, a promoção dos Direitos Humanos, bem como a lócus de referência, nos territórios, da oferta de trabalho social
sistematização e disseminação do conhecimento e da prática da especializado no SUAS a famílias e indivíduos em situação de
Psicologia no âmbito das políticas públicas, a partir da construção risco pessoal ou social, por violação de direitos.
de referências para essa atuação profissional. O papel do CREAS no SUAS define suas competências que,
Cabe também ao Crepop identificar oportunidades, estratégias de modo geral, compreendem:
e a participação ativa da Psicologia nas políticas públicas, com • ofertar e referenciar serviços especializados de caráter
intuito de promover a interlocução da Psicologia com as esferas continuado para famílias e indivíduos em situação
de formulação, gestão e execução em políticas públicas. de risco pessoal e social, por violação de direitos,
conforme dispõe a Tipificação Nacional de Serviços
SUAS e CREAS Socioassistenciais;
• a gestão dos processos de trabalho na Unidade,
incluindo a coordenação técnica e administrativa da
O Sistema Único de Assistência Social, criado a partir da Política
equipe, o planejamento, monitoramento e avaliação
de Assistência Social, se organiza em dois níveis de proteção: a das ações, a organização e execução direta do
Proteção Social Básica - PSB e Proteção Social Especial - PSE. trabalho social no âmbito dos serviços ofertados, o
A PSB oferta um conjunto de serviços, programas, projetos e relacionamento cotidiano com a rede e o registro de
benefícios da Assistência Social que visa prevenir situações informações, sem prejuízo das competências do órgão

19 20
profissional da Psicologia na área da Proteção Social Especial.
gestor de assistência social nessa direção, a oferta de
serviços especializados pelo CREAS deve orientar-
se pela garantia das seguranças socioassistenciais,
A Pesquisa do CREPOP/CFP
conforme previsto na PNAS e na Tipificação Nacional
de Serviços Socioassistenciais QUE inclui os seguintes O processo investigativo da Rede CREPOP implica na construção
serviços, nominados a seguir: e atualização de um banco de dados para comportar informações
• Serviço de Proteção e Atendimento referenciadas, inclusive geograficamente, sobre profissionais de
Especializado a Famílias e Indivíduos Psicologia, legislações, documentos, programas e entidades que
(PAEFI); desenvolvem ações no campo das Políticas Públicas.
• Serviço Especializado em Abordagem
Sendo assim, a pesquisa sobre atuação de psicólogas(os) no
Social;
• Serviço de Proteção Social a
CREAS foi realizada no ano de 2009, entre os meses de setembro a
Adolescentes em Cumprimento de novembro, tendo sido realizada em duas etapas, uma etapa nacional,
Medida Socioeducativa de Liberdade do tipo descritiva, a partir de um instrumento on-line; e uma etapa
Assistida (LA), e de Prestação de qualitativa, realizada pelas unidades locais do Crepop, localizadas
Serviços à Comunidade (PSC); nos Conselhos Regionais de Psicologia. Ressalta-se que, à época,
• Serviço de Proteção Social Especial o Sistema Conselhos contava com apenas 17 CREPOP’s Regionais.
para Pessoas com Deficiência, Idosas O Sistema Conselhos de Psicologia, por meio do Crepop ao
e suas Famílias; longo dos últimos anos implementou uma série de pesquisas
• Serviço Especializado para Pessoas na área da Assistência Social, como pesquisa sobre atuação de
em Situação de Rua.(BRASIL/MDS,
Psicólogos na proteção especial de crianças e adolescentes (o
2011b)
antigo Programa Sentinela, a Pesquisa sobre Psicólogas(os) em
Metodologia
Medidas Socioeducativas em Unidades de Internação, Pesquisas
sobre Programas de Atenção a Mulher em Situação de Violências,
A proposta de investigar a atuação de psicólogas(os) em
pesquisas essas que antecederam aa Pesquisa sobre o CREAS e
políticas públicas específicas ou transversais visa entender o
contribuíram para construção e escolha dessa área de investigação
núcleo da prática profissional da(o) psicóloga(o), considerando a
de atuação do Psicólogo).
exclusividade de cada área, saúde, educação, Assistência Social,
Assim, em 2009, o conjunto de psicólogas(os) respondentes
e assim de cada Política Pública. Todas as áreas são eleitas a partir
da primeira etapa da pesquisa totalizaram 522 profissionais que
de critérios como: tradição na atuação da Psicologia; abrangência
já atuavam no CREAS. Faz parte da metodologia a participação
territorial; existência de marcos lógicos e legais e o caráter social
voluntária de psicólogas(os) na pesquisa, tanto na primeira etapa,
ou emergencial dos serviços prestados.
descritiva como na qualitativa.
Dessa forma o Centro de Referência Especializado de Assistência
Os dados descritivos permitiu que se pudesse construir o perfil
Social – CREAS emergiu como tema de investigação do Crepop logo
sóciodemográfico destes profissionais que são em sua maioria de
após a sua implementação pelo Sistema Único de Assistência Social
mulheres 88,1%, de cor branca 66,4%, com idade entre 23 e 31 anos
- SUAS e da publicação das Referencias Técnicas para Atuação de
(54%), pós –graduadas 54,4%, com pouco tempo de atuação como
Psicólogos no CRAS (CFP, 2007), pois a experiência de construir
psicóloga(o) 31% trabalhavam como psicólogas(os) há menos de 2
referencias para o CRAS apontou para o Sistema Conselhos a
anos.
necessidade de uma maior qualificação e orientação para a prática
O perfil nos mostra também a sua inserção no trabalho do

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CREAS dos respondentes destes 40% era recém contratados, Nesta perspectiva, espera-se que esse processo de
pois trabalhavam no CREAS a menos de 1 ano, 92% eram elaboração de referências técnicas possa gerar reflexões de
contratadas(os) como Psicólogas(os), atuavam em organizações práticas profissionais, que possibilite visualizar o trabalho que
públicas 88,1%, com contratos temporários 32% e 52,2% vem sendo desenvolvido por muitas psicólogas(os) e também
ganhavam até R$ 2.000,00. possa ser compartilhado, criticado e aprimorado, para uma
Os resultados da pesquisa qualitativa identificaram que a maior qualificação da prática psicológica no âmbito das Políticas
implantação dos CREAS ocorria de maneira distinta nas diferentes Públicas.1 (CFP, 2012)
regiões do Brasil, apontando que os principais problemas eram Para construir o Documento de Referências Técnicas para a
relativos à ausência de políticas locais (estaduais e municipais). Prática de Psicólogas(os) no Centro de Referência Especializado
Sobre a prática profissional do psicólogo, a análise dos dados da Assistência Social - CREAS, foi formada uma Comissão em
demonstrou que, em geral, aparecem dificuldades de diversas 2009, com um grupo de especialistas indicado pelos plenários
ordens, desde a falta de profissionais, ausência de supervisão, dos Conselhos Regionais de Psicologia e pelo plenário do
falta de formação continuada, além da dificuldade de articular Conselho Federal. Assim, esta Comissão foi composta por
uma rede de referência na região para ampliar as possibilidades quatro especialistas que voluntariamente buscaram qualificar
de atendimento das famílias de forma integral, para transformar a discussão sobre Prática de Psicólogas(os) no Centro de
e fortalecer os vínculos e convívio familiar e comunitário no Referência Especializado da Assistência Social - CREAS
enfrentamento do risco social. Outras dificuldades apontam para
Rede de atenção a ação do Estado, que deveria ser de oferecer O Processo de Consulta Pública
políticas e garantia de sustentabilidade às famílias, para fortalecê-
las e proporcioná-las outras formas de inclusão, não observa às A metodologia de elaboração de referências técnicas do
necessidades e o contexto em que vivem o público atendido. Sistema Conselhos de Psicologia/Rede CREPOP se utiliza
do processo de consulta pública como uma etapa do processo
O Processo de elaboração de Referência Técnica de referenciação e qualificação da prática profissional das (os)
psicólogas em políticas públicas.
Os Documentos de Referências Técnicas são recursos que A Consulta Pública é um sistema criado e utilizado em várias
o Conselho Federal de Psicologia oferece às psicólogas(os) instâncias, inclusive governamentais, com o objetivo de auxiliar
que atuam no âmbito das políticas públicas, como recurso para na elaboração e coleta de opiniões da sociedade sobre temas de
qualificação e orientação de sua prática profissional. importância. Esse sistema permite intensificar a articulação entre
Sua redação é elaborada por uma Comissão Ad-hoc composta a representatividade e a sociedade, permitindo que esta participe
por um grupo de especialistas reconhecidos por suas qualificações da formulação e definição de politicas públicas. O sistema de
técnicas e científicas, por um Conselheiro do CFP mais um consulta pública permite ampliar a discussão da coisa pública,
Conselheiro do Comitê Consultivo e um Técnico do CREPOP. coletando de forma fácil, ágil e com baixo custo as opiniões da
O convite aos especialistas é feito pelo CFP e não implica em sociedade.
remuneração, sobretudo, porque muitos desses são profissionais
que já vinham trabalhando na organização daquela política
pública específica, e recebem o convite como uma oportunidade 1. Para conhecer toda metodologia de elaboração dos documentos de referências
de intervirem na organização da sua área de atuação e pesquisa. técnicas do Sistema Conselhos/Rede Crepop, ver Documento de Metodologia
do Crepop 2011, in http://crepop.cfp.org.br

23 24
Para o Conselho Federal de Psicologia o mecanismo de Organização do Documento
Consultas Públicas se mostra útil para colher contribuições,
tanto de setores especializados quanto da sociedade em geral O documento de referencias técnicas para a prática de
e, sobretudo, das(os) psicólogas(os), sobre as políticas e os psicólogas(os) no centro de referência especializado da
documentos que irão orientar as diversas práticas da Psicologia assistência social - CREAS, está divido da seguinte forma:
nas Políticas Públicas.
Para o Sistema Conselhos de Psicologia/ Rede Crepop, Eixo I – A proposta deste eixo é analisar o significado da
a ferramenta de consulta pública abriu a possibilidade de uma Política de Assistência Social, a partir de seu marco legal e
ampla discussão sobre a Prática de Psicólogas(os) no Centro seu compromisso ético-político enquanto política pública. Visa
de Referência Especializado da Assistência Social - CREAS, apresentar e refletir sobre as questões éticas que permeiam a
permitindo a participação e contribuição de toda a categoria na atuação da(o) psicóloga(o) em seu trabalho no CREAS - Centro
construção sobre esse fazer da(o) Psicóloga(o). Por meio da de Referência Especializado da Assistência Social, uma unidade
consulta pública o processo de elaboração do documento torna-se pública estatal da Proteção Social Especial, estabelecida na
democrático e transparente para a categoria e toda a sociedade. Política Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2004).
Com relação ao Documento de Referências Técnicas para a Eixo II – O objetivo deste eixo é buscar compreender a relação
Prática de Psicólogas(os) no Centro de Referência Especializado entre a Psicologia e a Política de Assistência Social, a partir da
da Assistência Social - CREAS, a Consulta Pública foi realizada análise do significado das políticas públicas e de uma psicologia
no período de 04 de junho a 15 de julho de 2012 e contou com comprometida com a garantia de direitos da população brasileira.
a participação de 503 psicólogas(os) que tiveram acesso ao Os resultados da pesquisa (CFP/CREPOP/2009) apontam
documento, tendo o texto em consulta recebido, ao todo, 28 questões importantes sobre essa relação e que serão discutidas
contribuições. Junto a esse processo foi realizado um debate on no decorrer deste eixo.
line, no dia 29 de junho de 2012, sobre o mesmo tema com a Eixo III – Pretende-se neste eixo trazer à reflexão a atuação
participação de profissionais, gestores, professores e alunos de de psicólogas(os) nos Centros de Referência Especializado de
Psicologia. Assistência Social – CREAS, abordando os desafios a serem
O sistema conselhos acolheu todas as contribuições enfrentados pelos profissionais de psicologia no campo em
encaminhadas no processo de consulta pública, o que levou a questão, a fim de apontar diretrizes para a atuação das(os)
Comissão ad-hoc de especialistas a aprimorar o texto que vai psicólogas(os) neste serviço.
referenciar a Prática de Psicólogas(os) no Centro de Referência Eixo IV – O objetivo deste eixo é analisar as relações e os
Especializado da Assistência Social - CREAS. Após a consulta processos de trabalho no âmbito da Política de Assistência Social
pública e o debate on line, esta Comissão contou também com e os desafios para sua efetivação, retratando as atuais reflexões
a colaboração na discussão sobre o texto de uma psicóloga, por desenvolvidas pela Psicologia, particularmente por psicólogas(os)
sua inserção na política do CREAS, exercendo seu trabalho no que atuam nos Centros de Referência Especializado de
CREAS. Assistência Social – CREAS. Neste contexto, é fundamental
reconhecer que o debate sobre a gestão do trabalho no SUAS
afeta o conjunto amplo das categorias profissionais envolvidas
com a implementação do Sistema Único de Assistência Social.

25 26
EIXO 1 - Dimensão Ético-Política para
a Prática das(os) Psicólogas(os) no
Centro de Referência Especializado da
Assistência Social - CREAS

27 28
EIXO 1 - Dimensão Ético-Política para a Prática
sem preocupação com a qualidade do atendimento, mas com o
das(os) Psicólogas(os) no Centro de Referência
controle das comunidades (ROSEMBERG, 1997, p.142).
Especializado da Assistência Social - CREAS As concepções de assistência social, brevemente apresentadas
acima, caracterizaram o que se convencionou chamar de
A proposta deste eixo é analisar o significado da Política de assistencialismo, “o uso distorcido e perverso da assistência –
Assistência Social, a partir de seu marco legal e seu compromisso ou a desassistência”, nas palavras de Pereira (2007, p.64). Seu
ético-político enquanto política pública. Visa apresentar e objetivo não era atender as necessidades ou muito menos os
refletir sobre as questões éticas que permeiam a atuação da(o) direitos da população, mas perpetuar posições sociais. A partir de
psicóloga(o) em seu trabalho no CREAS - Centro de Referência 1986, após a abertura política no país, há uma forte mobilização
Especializado da Assistência Social, unidade pública estatal da popular pela ampliação do Estado, por meio da oferta de políticas
Proteção Social Especial, estabelecida na Política Nacional de públicas que viessem garantir direitos sociais já prescritos em
Assistência Social (BRASIL, 2004). Convenções Internacionais. Com a promulgação em 1988 da
Até 1988, a assistência social2 no Brasil não era considerada Constituição Federal vigente, a Assistência Social passa a figurar
política pública de garantia de direitos do cidadão e dever do como política pública não contributiva, ao lado da Saúde e da
Estado. Apesar de existir desde o Brasil Colônia, por meio de Previdência, configurando um paradigma centrado na noção de
ações de amparo e da filantropia aos abandonados, a sua ação cidadania: direito de todos os cidadãos que dela necessitarem.
era pautada por “valores e interesses que se confundiam com No início da década de 90, apesar da retração do Estado,
dever moral, vocação religiosa ou sentimento de comiseração” proposto pelo projeto neoliberal que se instalava no país, um
(PEREIRA, 2007). No início da república, a assistência social amplo movimento nacional em prol da implementação da política
era compreendida a partir da higiene pública e foi criado um de Assistência Social impulsiona a aprovação da Lei Orgânica
complexo tripé médico-jurídico-assistencial de intervenção na de Assistência Social (LOAS), em 1993. Esta nova lei vem
vida familiar, que propunha controle e segregação daquelas regulamentar os artigos 203 e 204 da Constituição Federal e criar
famílias que não se adaptavam ao projeto civilizatório moralista as condições para a institucionalidade da Assistência Social como
que se desenhava no país (RIZZINI,1997). Nos períodos política de garantia de direitos no país. A prescrição na LOAS de
seguintes, assistiu-se na área a hegemonia de ações e políticas implantação de Conselhos e Conferências de Assistência Social
compensatórias que pudessem apenas minimizar as carências nas três esferas de governo, articulado com um forte movimento da
da população, a partir de concepções populistas e clientelistas sociedade civil, consegue promover um processo de construção
que visavam ganhos eleitorais. Na década de 70, com a ditadura da gestão pública e participativa da Assistência Social. Mas foi
militar, o modelo de atendimento na assistência social seguia a em 2004, com a organização da política em forma de Sistema
ideologia da Doutrina de Segurança Nacional, uma estratégia de Único de Assistência Social (SUAS)3, que o novo modelo de
aproximação de lideranças comunitárias e políticas a partir de
sua “obra social’, incentivando em larga escala, ações ofertadas
através de convênios com organizações não governamentais, 3. O SUAS teve suas bases para implantação na Política Nacional de Assistência
Social – PNAS em 2004, por meio da Resolução CNAS nº 145/2004 e sua
operacionalização sendo materializada pela Resolução CNAS nº 130/2005, que
trata da Norma Operacional Básica do SUAS. Este acúmulo de construção da
2. Usa-se a letra minúscula para tratar de ações fragmentadas de assistência política pública de Assistência Social foi referendado pela Lei nº 12.435, DE 6 DE
social que não eram organizadas enquanto uma Política de Assistência Social, JULHO DE 2011 que alterou assim a LOAS- Lei nº 8.742/1993. O CNAS aprovou
regulamentada somente em 1993, através da Lei Orgânica de Assistência Social. em dezembro de 2012 a nova NOBSUAS 2012 através da resolução 33/2012.

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gestão organiza os serviços, programas, projetos e benefícios, [...]a unidade pública de abrangência e gestão municipal,
tendo como base o território e a centralidade na família, para sua estadual ou regional, destinada à prestação de serviços a
concepção e implementação. indivíduos e famílias que se encontram em situação de risco
É fundamental que a (o) psicóloga (o) que trabalhe no CREAS pessoal ou social, por violação de direitos ou contingência
e que demandam intervenções especializadas da proteção
conheça bem os marcos legais da Política de Assistencial Social,
social especial (BRASIL, 2011, artigo 6º).
em especial aqueles que tenham relação direta com a proteção
especial. Recomenda-se a leitura e discussão em equipe de
Os fenômenos sociais que perpassam os sujeitos que chegam
todos os documentos legais e suas atualizações4, pois as
ao CREAS não são prerrogativas de populações pobres. A violação
referências aqui colocadas pelo Conselho Federal de Psicologia,
de direitos, o agravamento de situações de risco pessoal e social,
não substituem a regulamentação já produzida.
o afastamento do convívio familiar, a fragilização ou rompimento
de vínculos e a violência intrafamiliar ou doméstica acontecem em
O Centro de Referencia Especializado de Assistência Social
todas as classes sociais. A exclusão social e/ou a vulnerabilidade
– CREAS
social está presente nas muitas histórias que se ouve nos CREAS.
“Entre a exclusão e a integração social existe uma vasta zona de
O CREAS se materializa dentro do SUAS como uma
vulnerabilidade social” (FILGUEIRAS, 2004, p.28). São situações
unidade pública estatal da Proteção Social Especial de média
que representam a não participação do sujeito no usufruto dos
complexidade, capaz de promover a superação das situações
bens sociais, a solidão e/ou a estigmatização social. Outras
de violação de direitos tais como violência intrafamiliar, abuso
situações também podem estar relacionadas aos eventos que
e exploração sexual, situação de rua, cumprimento de medidas
causam a violação de direitos, como o abuso de álcool e drogas,
socioeducativas em meio aberto, trabalho infantil, contingências
transtorno ou sofrimento mental, ou a repetição de padrões de
de idosos e pessoas com deficiência em situação de dependência
comportamentos familiares, às vezes intergeracionais, como a
com afastamento do convívio familiar e comunitário, discriminação
violência doméstica e o trabalho infantil. Portanto, são dimensões
em decorrência da orientação sexual e/ou raça/etnia, dentre
do vínculo social e de acesso aos bens sociais que se expõem
outros. (BRASIL, 2011).
para configurar uma situação de violação de direito.
No SUAS o CREAS é definido como:
O público chega ao CREAS encaminhado por juízes,
promotores ou conselheiros tutelares, a partir de denúncias,
eventos de violência intrafamiliar, ato infracional ou por busca
ativa. O CREAS compõe assim o Sistema de Garantia de Direitos
4. Os principais marcos legais são a Lei Orgânica de Assistência Social (com as - SGD. Esse Sistema foi caracterizado na Resolução 113/2006
novas redações dadas pelas Lei nº. 12.435 e Lei nº. 12.470); a Política Nacional de
do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
Assistência Social- PNAS de 2004, as Normas Operacionais Básicas - NOB/SUAS
2012 e NOB/ RH de 2006; a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (CONANDA) para a efetivação dos direitos voltados para a infância
de 2009; as Orientações sobre a Gestão do Centro de Referência Especializado e adolescência. Entretanto essa forma de organização da política,
de Assistência Social - CREAS - 1ª Versão de 2011, as Orientações técnicas do através de um conjunto articulado de ações governamentais e
Centro de Referência Especializado de Assistência Social de 2011, além das não governamentais da União, Estados e Municípios nos eixos de
leis e normativas que tratam dos segmentos atendidos nos CREAS : Estatuto da
Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, Política Nacional para a Inclusão da promoção, defesa e controle de direitos, também está presente
Pessoa com Deficiência, Lei Maria da Penha, Sistema Nacional de Atendimento na Política Nacional do Idoso, da Pessoa com Deficiência e em
Sócioeducativo , entre outros outras políticas de defesa de direitos de segmentos específicos.

31 32
O SGD é composto pelos órgãos judiciais, defensorias públicas, determinações prescritas nos marcos legais. A concepção da
polícias, conselhos tutelares, ouvidorias, conselhos de direitos, política de Assistência Social com vistas à garantia dos direitos e
conselhos setoriais e de maneira transversal e intersetorial, ao desenvolvimento humano se expressa na noção de cidadania,
articula todas as políticas públicas. Um Sistema como esse tomada aqui como “um direito a ter direitos”. Conforme nos
deve funcionar em rede, mas articular órgãos tão distintos em ensina Bobbio (1992) a cidadania é um valor ético que exige
competências e vinculação institucional, sem hierarquia de um posicionamento constante para almejar consonância entre o
gestão entre si, não é tarefa simples e muitas vezes as ações são reconhecimento do direito e sua efetiva proteção. Dessa forma,
fragmentadas, superpostas ou contraditórias (AKERMAN, 2012). consideramos a política de Assistência Social em processo de
A superação da situação de direito violado no CREAS exige, consolidação. Concordando com Silvia Telles, (1999, p.175) “os
portanto, intervenções complexas e singulares, com articulação direitos são uma herança da modernidade, uma promessa de
de toda a rede do SGD. Sendo o trabalho no CREAS de natureza igualdade e justiça”.
interdisciplinar, intersetorial e interinstitucional, consideramos que Em consonância com esta perspectiva, a atuação da(o)
é um compromisso ético do psicólogo no CREAS contribuir para psicóloga(o), pautada na concepção dos direitos fundamentais
melhorar os fluxos e a articulação das instituições que compõem está explicitada no nosso Código de Ética:
o SGD, evitando que as famílias e indivíduos referenciados nos
CREAS sofram o que Santos (2010) nomeia como dupla opressão, O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na
“pois além de já terem experienciado uma trajetória de violação promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e
de direitos, são submetidos a uma violência provocada por um da integridade do ser humano, apoiado nos valores que
itinerário dentro do SGD com muitos obstáculos” (AKERMAN, embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
(CFP, 2005).
2012, p .6).
A rigor, não existe uma prática profissional sem um
A Psicologia e o paradigma da cidadania
posicionamento político. Não existe imparcialidade, não existe
neutralidade. Podem-se encontrar trabalhos alienados, mas,
Apesar dos avanços da legislação e da implementação do
mesmo eles, estão objetivando e subjetivando uma posição em
SUAS, ainda permanece o peso da herança histórica da relação
relação à concepção de direitos humanos. O posicionamento ético
do Estado brasileiro com famílias pobres, vulneráveis e/ou
aqui proposto se coaduna com a institucionalidade da psicologia
excluídas. Essa promessa toma contornos complexos, devido à
como profissão que considera “a relevância dos direitos humanos
enorme desigualdade social existente no país. O discurso dos
para a consolidação e o exercício da cidadania (...) e para o
direitos se contrapõe a outras representações que naturalizam
exercício de toda e qualquer atividade profissional, notadamente
a vulnerabilidade social, causadas por “vontade própria da
para a Psicologia e os psicólogos”. (Resolução do CFP N.º 011
população”.
de 1998).
Como vimos anteriormente, essa herança ainda traz para
Na Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do
a política de Assistência Social, práticas assistencialistas,
Sistema Único de Assistência Social - NOB/RH/SUAS (BRASIL,
clientelistas e preconceituosas, que reforçam uma cultura
2006), a noção de cidadania é apresentada como um princípio
política que precariza a gestão da política. Essa concepção
ético do/a trabalhador/a do SUAS, definida como “defesa
que ainda persiste em vários municípios do país, se materializa
intransigente dos direitos socioassistenciais”. A Psicologia em
no CREAS através da baixa institucionalidade em relação às
sua história da profissão atuou mais de uma vez em processos

33 34
de ajustamento do sujeito ou de conformidade com a realidade, Referendado por nosso código de ética, a reflexão sobre a prática
que hegemonicamente buscava colocar no indivíduo a da(o) psicóloga(o) no CREAS deve permitir a constante revisão de
responsabilidade por sua condição social. Esse passado, que seus posicionamentos diante das situações e dilemas com as quais
precisa ser compreendido criticamente dentro de um processo vai se defrontar no exercício de seu trabalho cotidiano.
histórico geralmente descontínuo, vem sendo reconstruído em Um Código de Ética profissional, ao estabelecer padrões
consonância com a construção de uma sociedade de direitos. esperados quanto às práticas referendadas pela respectiva
A psicologia, por meio de seus profissionais, pela academia e categoria profissional e pela sociedade, procura fomentar a auto-
entidades, vem se constituindo como uma força crítica bastante reflexão exigida de cada indivíduo acerca da sua práxis, de modo
presente na desconstrução de práticas e paradigmas anacrônicos a responsabilizá-lo, pessoal e coletivamente, por ações e suas
existentes no campo socioassistencial. Não é novidade a atuação conseqüências no exercício profissional. A missão primordial de
da psicologia em defesa de direitos de crianças e adolescentes; um código de ética profissional não é de normatizar a natureza
no repúdio a toda forma de discriminação; na crítica às instituições técnica do trabalho, e, sim, a de assegurar, dentro de valores
totais, à judicialização da vida, à medicalização da sociedade e à relevantes para a sociedade e para as práticas desenvolvidas, um
criminalização da pobreza e a várias outras situações de violação padrão de conduta que fortaleça o reconhecimento social daquela
de direitos. Essas questões atravessam todas as políticas categoria. (CFP, 2005, p.1).
públicas, mas tem especial relevância na construção da política de Posto isso, cabe a(o) psicóloga(o) avaliar continuamente suas
Assistência Social entendida como proteção social para garantia concepções a respeito das histórias de exclusão que muitas
e/ou reparação de direitos. vezes se ouve e vivencia nos CREAS. A citação abaixo retirada
A política de Assistência Social foi definida a partir das suas da pesquisa CREPOP/CFP/2009 explicita o quanto o público
três funções: a proteção social, a vigilância socioassistencial e da Assistência Social traz uma complexidade que precisa ser
a defesa social e institucional. A prática da psicologia discutida refletida, sob o risco de reforçar a exclusão a que ele já está
acima, nos remete à função de defesa social e institucional exposto:
definida pela PNAS/2004 é reafirmado na NOB/SUAS/2005, a
partir, dentre outras, da seguinte concepção: [...] público que a escola não dá conta, que a unidade de
saúde não dá conta [...] que a própria assistência não
O direito à cidadania não é só declaratório, isto é, não dá conta” . Alguns casos, (...) “extrapola os níveis de
depende só de palavras ou texto de lei. Ele precisa ter complexidade (...) conhecidos. (CFP/CREPOP/2009).
processualidade, precisa procedimentalizar o acesso aos
direitos na gestão da política. Esses direitos precisam Em contrapartida, esse bordão a respeito do público que
estar presentes na dinâmica dos benefícios, serviços, é atendido no CREAS deve ser o incentivo a uma posição
programas e projetos socioassistenciais. O paradigma permanente e firme de tolerância, resiliência. Portanto, requer
da universalização do direito à proteção social supõe a profissionais qualificados para um atendimento às situações
ruptura com idéias tutelares e de subalternidade, que complexas que demandam um trabalho articulado, integrado,
identificam os cidadãos como carentes, necessitados, democrático e participativo.
pobres, mendigos, discriminando-os e apartando-os do
A seguir apontaremos algumas referencias de como a
reconhecimento como sujeitos de direito. NOB/SUAS
(BRASIL, 2005, p.21). psicologia pode contribuir no trabalho social interdisciplinar com a
defesa da cidadania e construção de novos projetos de vida para
as famílias e indivíduos em seu trabalho no CREAS.

35 36
Desafios e potencialidades no trabalho do CREAS nessa resolução diz respeito à equipe multiprofissional do mesmo
serviço, pois nesse caso, quando o atendimento for conjunto, o
A pesquisa sobre atuação da(o) psicóloga(o) nos CREAS, registro deve ser realizado em um único prontuário.
realizada pelo CREPOP (CFP/CREPOP/2009), revelou alguns Como já foi discutido neste texto, o CREAS se organiza a partir
desafios na dimensão ético-política da atuação da(o) psicóloga(o) de um trabalho em rede com outras instituições e requer, portanto,
que serão analisados a seguir com apontamentos de referências ações integradas. Assim, nos estudos de caso realizados em
para o enfrentamento desses desafios. rede, deve ser observado o princípio do sigilo e também o do
Um primeiro grupo de desafios se refere a questões relacionadas compartilhamento de informações de forma ética, conforme
ao princípio ético do sigilo. Nota-se que as (os) psicólogas (os) descrito na cartilha elaborada conjuntamente pelos Conselhos
se preocupam com essa questão e buscam garanti-lo, de uma Federais de Psicologia e de Serviço Social:
forma ou de outra, demonstrando ser esse um princípio que foi
assumido pela categoria. Entretanto, manifestam preocupação O Código de Ética Profissional de assistentes sociais e
com a garantia do sigilo devido à precariedade dos locais onde psicólogos(as) estabelece direitos e deveres que, no
ficam guardados os prontuários de atendimento e a organização âmbito do trabalho em equipe, resguardam-lhes o sigilo
das salas de atendimento, que muitas vezes não isolam o som profissional, de modo que estes(as) não podem e não
devem encaminhar, a outrem, informações, atribuições e
e permitem a quem está de fora ouvir o que se fala do lado de
tarefas que não estejam em seu campo de atuação. Por
dentro. Outra preocupação apontada, diz respeito à divulgação de outro lado, só devem compartilhar informações relevantes
informações em reuniões de estudos de caso com profissionais para qualificar o serviço prestado, resguardando o seu
da rede ou em relatórios enviados ao Judiciário ou Conselhos caráter confidencial, assinalando a responsabilidade, de
Tutelares. Assim, cabe esclarecer aqui algumas dúvidas a esse quem as receber, de preservar o sigilo. Na elaboração
respeito, bem como discutir estratégias de garantia do sigilo conjunta dos documentos que embasam as atividades em
prescrito no nosso Código de Ética. equipe interdisciplinar, psicólogos/as e assistentes sociais
Cabe lembrar que os Conselhos Profissionais têm a atribuição devem registrar apenas as informações necessárias para
de orientar e fiscalizar os profissionais e as instituições quanto ao o cumprimento dos objetivos do trabalho.
exercício da profissão5. Na resolução do CFP nº 01 de 2009, fica (CFESS, CFP, 2007. p.38).
explicitado que o registro documental em papel ou informatizado
sobre a prestação de serviços das(os) psicólogas(os) têm caráter Outro grupo de desafios apontados na pesquisa se configura
sigiloso. A guarda do registro documental é de responsabilidade na realização de atividades que não são de competência
compartilhada entre a(o) psicóloga(o) e a Instituição. O prontuário do CREAS, ou mesmo da Política de Assistência Social que
deve conter informações sucintas sobre “o trabalho prestado, a demonstram que a identidade do CREAS ainda tem muito a
descrição e a evolução da atividade e os procedimentos técnico- avançar. Na concepção da assistência social como caridade e
científicos adotados” (CFP, 2009). É importante lembrar que, assistencialismo, onde o sujeito e sua família, abandonados
conforme essa resolução citada, o usuário ou seu representante pelo Estado, e responsabilizados assim, pela sua condição, a
legal tem a garantia de acesso integral às informações registradas assistência visa apenas minimizar a situação. Com o rompimento
pela (o) psicóloga (o) no seu prontuário. Outro aspecto tratado dessa concepção, a partir do paradigma da cidadania, o Estado
reconhece uma situação de violação de direitos e convoca este
cidadão e sua família para promover junto com ele a superação
5. Esse tema será aprofundado no Eixo IV. da situação em que se encontra. Neste chamado está implícito

37 38
um acolhimento, através de vínculo com o profissional que o que irá acolher o público encaminhado.
recebe no CREAS. Assim, muitas psicólogas (os) acreditam que Em relação às atividades realizadas pelas (os) psicólogas (os)
esse vínculo que estabelecem com o público deve ser trabalhado nos CREAS, que são determinadas por gestores ou juízes , tais
através da psicoterapia. Na pesquisa realizada pelo CREPOP, a como a obrigação de realização de laudos psicológicos para o
psicoterapia aparece como atividade no CREAS, por um lado, Judiciário, averiguação de denúncias, trabalho concomitante
porque alguns psicólogos crêem que essa é a sua função, e por em outras políticas7, e outras práticas fora dos critérios
outro, por que não conseguem vagas ou encaminhamentos para regulamentados, parecem caracterizar uma situação de abuso de
a política de saúde e, percebendo a importância deste tratamento, autoridade ou posicionamentos assistencialista ou clientelista. O
se propõem elas mesmas a realizá-los. Destaca-se que esta que recomendamos, em relação a todas as situações apontadas
não deve ser uma atividade desenvolvida no SUAS . Ela deve acima, é o desenvolvimento de ações políticas que possibilitem o
ser ofertada pela política de saúde, e por outros serviços, como exercício do controle social sobre a execução da política, a partir
clinicas-escolas ligadas às Universidades, clinicas sociais, etc. dos preceitos do SUAS. Portanto, os espaços dos Conselhos de
Torna-se importante afirmar que o atendimento psicossocial Assistência Social, bem como fóruns de trabalhadores, dentre
realizado no CREAS também tem um efeito terapêutico na outros são lugares legítimos para o debate sobre os limites e
medida em que busca a compreensão do sofrimento de sujeitos possibilidades de atuação.
e suas famílias nas situações de violação de direito, e visa a Como vimos na história da Assistência Social, muitas
promoção de mudança, autonomia, superação. Entretanto, na concepções clientelistas, tutelares e assistencialistas ainda
política de assistência social, o vinculo estabelecido entre o disputam posições. Portanto é necessário romper com essas
profissional e o público do CREAS deve ser construído a partir do práticas nos serviços e ocupar os espaços institucionais já
reconhecimento de uma história de vida, imersa em um contexto previstos na política como conselhos, conferências, mesas de
social, sem uma perspectiva individualizante. Para isto, várias negociações, capacitações, entre outras. Essas atividades, como
atividades combinadas são importantes para provocar reflexões já apontadas anteriormente fazem parte da função de defesa
e novos pertencimentos sociais, que podem produzir esse efeito social e institucional prevista nas normativas do SUAS. Promover
terapêutico que apontamos acima, tais como a realização de a defesa de direitos representa confrontar posições políticas.
grupos psicossociais, a inclusão em novas sociabilidades, o Ressaltamos que a iniciativa da(o) psicóloga(o) deve ter a direção
retorno à escola, o apoio financeiro ou material, o acolhimento, do coletivo, de um movimento político que busque a mudança
entre outros.6 social, a quebra de paradigmas e o rompimento com práticas
A pesquisa do CREPOP (CFP/CREPOP/2009) aponta conservadoras e dominantes. Essas atividades não podem ser
ainda desafios em relação à articulação com a rede de Saúde vistas como uma perda de tempo em detrimento das atividades
e também com outras políticas e instituições que estabelecem prescritas na função de proteção social ao público.
interfaces com o trabalho nos CREAS, tais como: a burocracia Na pesquisa (CFP/CREPOP/2009) verificou-se também que
dos encaminhamentos, a desarticulação da rede, a morosidade além dos desafios, as(os) psicólogas(os) têm encontrado também
do judiciário, a precariedade dos Conselhos Tutelares, entre
outros. Um posicionamento ético político da(o) psicóloga(o) no 7. Este contexto foi explicitado na pesquisa CREPOP/CFP/2009, cujos relatos
CREAS passa pelo incentivo, fortalecimento e articulação da rede configuravam diversas situações de precarização da atuação de psicólogas (os) :
municípios nos quais os profissionais dividem-se entre as diferentes políticas, ou até
mesmo, na Política de Assistência Social, divididos nos serviços da proteção social
6. Estas atividades serão apresentados no Eixo III básica e da proteção social especial dentre outros.

39 40
muitas potencialidades no trabalho nos CREAS, evidenciadas em nos lembra Oliveira (CFP/MDS, 2010), inovar é criar e não
muitas inovações implementadas e consideradas exitosas pelas improvisar. A criação é realizada a partir das condições dadas, mas
mesmas. As práticas descritas em relação ao público, à equipe, deve representar um avanço verdadeiro, autêntico, genuíno, vivo.
aos gestores, à rede, à mídia e sociedade em geral8, envolvem Os desafios que se apresentam para o exercício da psicologia
trabalhos com grupos variados de famílias, jovens e pessoas no campo da Assistência Social trazem tanto a oportunidade de
atendidas, formação da equipe, supervisão de casos, parcerias criação, quanto o risco de manter a precariedade das situações
com universidades, modalidades inovadoras de visita familiar problemas, através da resolução individual e paliativa desses.
e de busca ativa, construção de fluxos de encaminhamentos, Citando o Músico Geraldo Vandré: “quem sabe faz a hora, não
entre outras; enfim, uma diversidade quase tão grande, quanto espera acontecer”, consideramos que as inovações são muito
o número de psicólogas(os) que trabalha no CREAS. Essa bem vindas, e devem ser gestadas, compartilhadas, monitoradas,
constatação indica o quanto a psicologia já avançou em sua avaliadas e divulgadas coletivamente, contribuindo assim para o
compreensão no campo da política pública de Assistência Social. desenvolvimento da psicologia enquanto profissão no campo da
O caderno da coleção Capacita SUAS I, volume 3, publicada pelo Assistência Social.
Ministério de Desenvolvimento Social e Combate a Fome - MDS,
com o objetivo de assessorar os gestores de Assistência Social
do país na elaboração de planos municipais, reafirma essa idéia,
ao acolher experiências inovadoras:

Ideias originais nem sempre podem ser colocadas em


cronogramas rígidos. Elas têm que estar livres para
surgir a qualquer hora e em qualquer lugar e fluir no
agir e nas situações de dificuldade e conflito. Essas
inovações, geralmente fruto do aprendizado informal,
não são contraditórias ao caráter de ordenamento do
Plano. Pelo contrário, a criatividade, a ousadia, a abertura
à sensibilidade são básicas à renovação da prática de
planejar. (...) A criatividade é fundamental para a gestão
do social. É preciso construir um enfoque próprio de
planejamento e gerenciamento social, caracterizado por
marcos conceituais específicos e instrumentos técnicos
de execução, monitoramento e avaliação adequados.
(BRASIL, MDS, 2010).

Em um campo tão aberto a inovações, a perspectiva da


avaliação de seus impactos deve estar sempre presente. Como

8. As praticas referidas encontram-se no Relatório de Pesquisa “Atuação dos


Psicólogos no CREAS e outros serviços especiais de acolhida e atendimento
domiciliar do SUAS”, disponível no sítio do CREPOP: http://crepop.pol.org.br/novo/.

41 42
EIXO 2: Psicologia e a Política
de Assistência Social

43 44
EIXO 2: Psicologia e a Política de Assistência Social ditadura militar e de pouca participação popular enfraqueceram a
força e a conscientização (FREIRE, 1980) do cidadão brasileiro
O objetivo deste eixo é buscar compreender a relação entre frente aos seus direitos e deveres. Atualmente, faz-se necessário
a Psicologia e a Política de Assistência Social, a partir da ressignificar o termo público e incorporá-lo como algo da nossa
análise do significado das políticas públicas e de uma psicologia vida, da nossa realidade e do nosso país. Assim, torna-se
comprometida com a garantia de direitos da população brasileira. importante a construção de um sentimento de pertença e de
Os resultados da pesquisa (CFP/CREPOP/2009) apontam apropriação das políticas e unidades públicas que são nossas,
questões importantes sobre essa relação e que serão discutidas enquanto cidadãos e cidadãs.
no decorrer deste eixo.
O termo público, associado à política, não é uma
Psicologia, SUAS e Políticas Públicas referência exclusiva ao Estado, como muitos pensam,
mas sim à coisa pública, ou seja, de todos, sob a égide
de uma lei e apoio de uma comunidade de interesses.
Segundo relatam os dados da pesquisa (CFP/CREPOP/2009),
Portanto, embora as políticas públicas sejam reguladas
83,9% das(os) psicólogas(os) consideram a sua atuação
e frequentemente providas pelo Estado, elas também
profissional inserida no campo das políticas públicas. Este é englobam preferências, escolhas e decisões privadas
um dado relevante, que aponta o compromisso da categoria podendo (e devendo) ser controladas pelos cidadãos. A
com questões mais coletivas, com a defesa de direitos e o política pública expressa, assim, a conversão de decisões
reconhecimento do âmbito público como espaço de atuação. privadas em decisões e ações públicas, que afetam a todos.
Esse fato aponta para um novo perfil profissional, já que a (PEREIRA, 1994 apud CUNHA e CUNHA, 2003, p. 12).
profissão foi historicamente caracterizada como elitista, sem
atuação no espaço público e com uma visão descontextualizada Como já apontado no eixo anterior uma nova realidade política
dos fenômenos sociais. teve início com a mobilização de trabalhadores, estudantes,
Para se compreender a presença da Psicologia na Política comunidades e outros movimentos sociais populares da década
de Assistência Social é necessário um debate mais amplo de 1970 que defendiam o retorno da democracia e a melhoria
sobre as políticas públicas. Essas surgem como um dever do das condições de vida. Nesse processo de redemocratização no
Estado e direito do Cidadão, tendo como base os princípios da Brasil, a Constituição Brasileira de 1988 definiu os direitos sociais
universalidade e da equidade na consolidação da justiça social. da população brasileira que foram traduzidos em deveres do
Segundo Silveira et al. (2007, p. 21), “por meio delas, os bens e Estado por meio das políticas públicas.
os serviços sociais são distribuídos, redistribuídos, de maneira a As construções e efetivação das políticas públicas são então
garantir o direito coletivo e atender às demandas da sociedade”. legitimadas a partir da promulgação da Constituição Brasileira de
Quando se fala em política pública, precisa-se esclarecer o 1988, trazendo consigo a consolidação e institucionalização dos
termo “público”. Na cultura brasileira, muitas vezes ele é utilizado direitos sociais e a participação popular, articulando democracia
como algo que não tem dono, que não precisa de cuidado, que representativa com a democracia participativa. Segundo Amman
pertence ao poder executivo, legislativo ou judiciário. Mas não (1978, p.61), “a participação popular é o processo mediante o qual
se pode esquecer que essa falta de sentimento de pertença e as diversas camadas da sociedade tomam parte na produção, na
de identidade de lugar (GÓIS, 2005) é um fato que não é algo gestão e no usufruto dos bens de uma sociedade historicamente
natural e sim construído por uma história. No Brasil, os anos de determinada”. Esta acontece nas instâncias de controle social,

45 46
como nos Conselhos, espaço que aglutina o Estado e a sociedade (2007), a participação da psicologia nas políticas públicas deve
civil para deliberar, fiscalizar e avaliar a execução das políticas ser pautada na garantia dos direitos humanos, na emancipação
públicas; nas Conferências específicas, em que o governo e a humana, na cidadania e a serviço das lutas contra as injustiças,
sociedade civil, em suas representações por segmentos, discutem pobreza e violência. Não deve reforçar a tutela do Estado, a visão
na esfera municipal, estadual e federal, os rumos das políticas da caridade e a submissão dos sujeitos às políticas públicas.
públicas; nos Fóruns que contribuem com reflexões e propostas Nas próximas seções, discutiremos um pouco mais sobre as
para formulação de políticas sociais e públicas. Além destes, possibilidades e potencialidades da psicologia no CREAS.
existem outras formas de participação, tais como: manifestações
de rua, documentos de abaixo-assinado, referendos, plebiscitos, Psicologias – o trabalho com famílias e pessoas em situação
eleições, audiências públicas, entre outras. Ressaltamos que de vulnerabilidade e risco social e pessoal por violação de
todas as categorias profissionais, cidadãos, cidadãs, movimentos direitos
sociais, Organizações Não-Governamentais (ONGs) e demais
grupos que atuam nas políticas públicas precisam apropriar- As discussões da pesquisa realizada pelo Crepop (CFP/
se destes espaços de participação, contribuindo para que as CREPOP/2009) apontam dificuldades que as(os) psicólogas(os)
políticas públicas realmente cumpram o seu papel na melhoria da afirmam enfrentar na pratica cotidiana. As discussões indicaram que
qualidade de vida da população ou mesmo que sejam inovadas, para muitas(os) psicólogas(os) que atuam no campo da Assistência
alteradas e melhoradas. A partir da consolidação da atuação da Social ainda não está bem delimitado o seu papel. Alguns/mas
psicologia na esfera pública, é fundamental a participação da apontaram, também, que a atuação dos profissionais da Psicologia
categoria nos espaços de regulamentação das políticas públicas. se confunde com a atuação dos/as assistentes sociais e os papéis
Segundo Saadallah (2007), a participação da psicologia nestes profissionais não estão bem definidos no CREAS.
espaços passa por duas vias importantes: a primeira através da De fato as orientações técnicas sobre o trabalho no CREAS não
representação institucional da Psicologia, por meio das instancias distingue as funções dos profissionais que compõem a equipe de
representativas da categoria, como os conselhos regionais e referência, mas consideramos que, apesar desses profissionais
federal de psicologia, as entidades sindicais, as associações de exercerem a mesma função, cada categoria profissional no CREAS
ensino e pesquisa em psicologia, dentre outras. Já a segunda, se trabalha a partir de teorias e metodologias relacionadas com a
dá através da participação direta da(o) profissional psicóloga(o), sua área de conhecimento. No caso da Psicologia, consideramos
envolvida nestes espaços de participação. que esta tem muito a contribuir com a proteção social especial
Podemos afirmar que a atuação da Psicologia na Política de de famílias e/ou indivíduos tendo como foco a subjetividade e os
Assistência Social está sendo construída, a partir de uma reflexão processos psicossociais.
crítica sobre seu potencial e papel. Segundo Sawaia (2009), a A partir da história da psicologia, podemos perceber que a
inserção da Psicologia nas políticas públicas acontece de forma a regulamentação da profissão de psicóloga(o) no Brasil em 1962
tensionar alguns paradigmas vigentes reforçadores da concepção teve como objetivo principal o atendimento das demandas oriundas
de que “as políticas públicas, por seu caráter abrangente, se fazem das classes dominantes. Os reflexos da ditadura militar no meio
antagônicas à subjetividade e à singularidade” (SAWAIA, 2009, p. acadêmico repercutiram de forma preponderante na consolidação
365). Nessa perspectiva, a Psicologia tem o desafio de contribuir de teorias e metodologias psicológicas que assegurassem
para os processos subjetivos de emancipação e autonomia dos um perfil de profissional liberal e elitista que não trabalhava o
sujeitos em situação de violação de direitos. Para Saadallah sujeito no seu contexto social. Essas características da profissão

47 48
contribuíram para a formação de um profissional que focava suas desenvolveu na sua visão clínica tradicional e as segundas
ações em espaços privados e quase não tinha inserção no âmbito como aquelas que possibilitam uma atuação em consonância
das políticas públicas, dos movimentos sociais e do terceiro setor. com os propósitos das políticas públicas. Assim, classifica a
Segundo Bock (2003), três aspectos marcaram a construção prática convencional como centrada no plano individual, onde o
deste perfil profissional: naturalização e universalização dos individuo é visto como a-histórico, isolado de seu contexto social.
fenômenos psicológicos sem contextualizá-los com o social, A perspectiva teórica que embasa sua prática é unidisciplinar e
falta de participação política da categoria e a responsabilização a natureza da intervenção é: ‘intra-psi’, com caráter ‘curativo’,
unicamente das pessoas por seu desenvolvimento. remediativo, sendo que as abordagens teóricas e metodológicas
Neste contexto histórico, a atuação da(o) psicóloga(o) esteve são originárias basicamente no “âmbito da própria psicologia. Em
marcada pela clínica tradicional e privada, tendo um único modelo contraponto, a perspectiva emergente, prioriza práticas centradas
de intervenção: a psicoterapia. Importava à(o) psicóloga(o) olhar em contextos e grupos, com ações de caráter mais preventivo,
para o sujeito a partir de suas questões privadas, intra psíquicas, onde encontra-se uma pluralidade de abordagens, oriundas
individuais, na sua busca pelo crescimento e conhecimento. Este também de áreas afins com a psicologia.
modelo de intervenção tornou-se uma referencia para a atuação Complementarmente ainda, considera-se que a psicologia
das(os) psicólogas(os) em geral. A reprodução deste modelo deve atuar a partir da visão interdisciplinar, tendo em vista que
clínico tradicional em muitos casos, pode se transformar em uma uma profissão complementa a outra ou constituem novos saberes
prática normativa e reguladora de comportamentos sociais. conjuntos. A atuação não deve ter como foco o atendimento
Nesses 50 anos da profissão no Brasil, muitas mudanças e psicoterápico, e sim psicossocial. A demanda de tratamentos
transformações aconteceram na inserção das(os) psicólogas(os) psicoterápicos, como já citada, identificada pelo profissional de
na direção de uma atuação comprometida e contextualizada psicologia na Assistência Social, em casos que necessitem de
com a realidade social. “No final da década de 80, começaram atendimento, será encaminhada para outros equipamentos da
novos movimentos de mudança na atuação profissional e adotou- rede local ou regional, vinculados à política pública de saúde,
se o lema do compromisso social como norteador da atuação como recomendado pelo CFP (2007).
psicológica” (CFESS/CPF, 2007, p. 20). Em consonância com Também é tarefa da(o) psicóloga(o) aprender a reconhecer o
esta visão, a intervenção do Profissional da Psicologia apontou sofrimento psíquico não somente como demanda de psicoterapia,
para práticas voltadas para a promoção dos sujeitos, a partir de mas o exercício e o desafio que se coloca para a psicologia na
sua própria participação e envolvimento nas ações realizadas, Assistência Social é justamente o de construir outras respostas
de acordo com o seu contexto, história e vivências, buscando que considerem as características do território de origem do
alternativas para sua inserção social na direção da garantia de usuário e que possam incidir na melhoria das condições de vida
direitos. Segundo Vasconcelos (2011, p.4), as(os) psicólogas(os) desse sujeito.
se permitiram a “ousadia de experimentar novas práticas que De acordo com os apontamentos acima, alguns autores tem se
julgavam mais adequadas ao novo contexto, e foram flexibilizando debruçado em pensar as contribuições da psicologia no SUAS em
a identidade profissional aprendida no passado” . uma perspectiva não tradicional. Senra e Guzzo (2012) discutem
Vasconcelos (2011) analisou as tendências detectadas na a atuação das/os psicólogas(os) e apontam reflexões sobre o
prática profissional da(o) Psicóloga(o) e as caracterizou como compromisso social da profissão, propondo um posicionamento
práticas convencionais ou práticas emergentes, considerando crítico dos profissionais diante das contradições existentes
as primeiras como aquelas que historicamente a psicologia na sociedade e na profissão. Para aprofundar a formação

49 50
profissional da Psicologia e a implantação do SUAS, Romagnoli Segundo a PNAS :
(2012) apresenta a inserção micropolítica da(o) psicóloga(o) e a
importância de trabalhos transdisciplinares, como um elemento [...] a vulnerabilidade social materializa-se nas situações
importante no SUAS. As políticas sociais e a Psicologia são que desencadeiam ou podem desencadear processos de
discutidas por Yamamoto e Oliveira (2010) no Brasil pós-1985 exclusão social de famílias e indivíduos que vivenciem
com a inserção da(o) psicóloga(o) no campo do bem-estar contexto de pobreza, privação (ausência de renda, precário
ou nulo acesso a serviços públicos) e/ou fragilização
social. Os autores apresentam um histórico dessa relação e
de vínculos afetivos, relacionais e de pertencimento
problematizam a formação profissional que não está preparada social, discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por
para trabalhar com pessoas em situação de pobreza, o que exige deficiência, dentre outras.(BRASIL, PNAS, 2004)
novos conhecimentos e mudanças de postura profissional. As
discussões de Ximenes, Paula e Barros (2009) direcionam-se Na prática, as (os) psicólogas (os) têm lançado mão de várias
para as contribuições e tensões entre a Psicologia Comunitária e teorias produzidas no campo da psicologia. Os participantes
Assistência Social, apontando para eixos norteadores da prática dos Grupos de Psicólogos da pesquisa (CFP/CREPOP/2009)
profissional a partir de metodologias participativas. relataram a diversidade teórica e metodológica que utilizam
Essas temáticas pontuam questões desafiadoras para para a sua prática profissional. Dentre as mais utilizadas estão:
a Psicologia e precisam estar presentes no dia-a-dia como Psicologia Social, Psicanálise, Psicoterapia Breve, Teoria
impulsionadoras de uma prática profissional comprometida Sistêmica, Psicologia Social Comunitária, Psicodrama, Gestalt,
ética e politicamente com a transformação social. Conceitos Psicologia Humanista, Teoria Cognitivo-Comportamental e
como vulnerabilidade social, desigualdade social, pobreza, Psicologia Analítica, dentre outras. O que se pretende não é
violação de direitos precisam ser trabalhados a fim de que definir uma única teoria para a atuação profissional, mas sim,
possamos compreender como as pessoas que se encontram apontar para princípios que devem nortear a sua prática, tais
nessas situações fortalecem suas potencialidades para o como: respeito aos direitos humanos, democracia, emancipação
enfrentamento desses problemas. Os desafios de enfrentar os e autonomia dos sujeitos. Pensamos que estes princípios estão
processos de fortalecimento, de participação, de emancipação, em consonância com as tendências não convencionais da prática
de autonomia e de libertação contribuem para a construção de da psicologia discutidas acima, buscando a contextualização
práticas e saberes psicológicos que visem à garantia dos direitos das teorias e metodologias à realidade própria na qual são
e ao desenvolvimento humano dos indivíduos e das famílias que desenvolvidas as políticas públicas. Segundo Barros (2007), a
procuram o CREAS. atuação do profissional de Psicologia deve levar em conta três
Para compreender esse sujeito que chega ao CREAS, dimensões: Teórica – em que deve utilizar conceitos e categorias
a(o) profissional de Psicologia precisa ter elementos para da teoria que funcionem como uma lente para poder aprofundar o
apreender tanto as relações complexas presentes no contexto conhecimento da realidade; Ético-política que considera aspectos
de vulnerabilidade social associado a violação de direitos, quanto éticos, princípios, visão de homem e de mundo que ajudam o
a maneira como esse sujeito percebe e vivencia esse contexto. profissional a determinar sua forma de atuação; e Metodológica
Para Sawaia (2002), o sofrimento humano é ético e político e não - que possui um conjunto de técnicas, de instrumentos, de
tem origem somente no indivíduo, mas também nas relações estratégias que favoreceram questões tais como:
construídas socialmente. Está relacionado com aspectos histórico,
político, social e econômico de exclusão social presente no Brasil.

51 52
[...] inserção no modo de vida comunitário, acesso, a formação no país e uma capacitação básica para lidar com os
sensibilização e mobilização das pessoas e dos grupos conteúdos da Psicologia, no sentido de campo de conhecimento
ali existentes, formas de abordar determinados temas, e de atuação” (Art. 7º) e por ênfases curriculares, “entendidas
disponibilidade de recursos materiais e organização das como um conjunto delimitado e articulado de competências e
pessoas para realizar determinada ação (BARROS, 2007,
habilidades que configuram oportunidades de concentração de
p. 22).
estudos e estágios em algum domínio da Psicologia” (Art. 10º)
A partir dessas dimensões proposta por Barros (2007), é Essas mudanças na formação da psicologia incorporaram a
possível contextualizar a atuação dos profissionais do CREAS a visão generalista da/o psicóloga/o e redefiniram que as áreas
fim de que possam desempenhar suas funções tendo como foco da Psicologia presentes nos cursos de graduação passam pelas
os objetivos preconizados no Guia de Orientações Técnicas do ênfases curriculares, que agregam várias áreas. Tem como
CREAS : princípios e compromissos indicados no Art. 3º das Diretrizes
Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em
• O fortalecimento da função protetiva da família; Psicologia, dotando o profissional dos conhecimentos requeridos
• A construção de possibilidades de mudança e para o exercício das competências e habilidades gerais que estão
transformação em padrões de relacionamento especificadas abaixo:
familiares e comunitários com violação de direitos; I. Construção e desenvolvimento do conhecimento
• A potencialização dos recursos para a superação científico em psicologia;
da situação vivenciada e a reconstrução de II. Compreensão dos múltiplos referenciais que buscam
relacionamentos familiares, comunitários e com o apreender a amplitude do fenômeno psicológico
contexto social, ou construção de novas referências, em suas interfaces com os fenômenos biológicos e
quando for o caso; sociais;
• O empoderamento e a autonomia; III. Reconhecimento da diversidade de perspectivas
• O exercício do protagonismo e da participação social; necessárias para a compreensão do ser humano e
• O acesso das famílias e indivíduos a direitos incentivo à interlocução com campos do conhecimento
socioassistenciais e à rede de proteção social; e que permitam a apreensão da complexidade e
• A prevenção de agravamentos e da institucionalização. multideterminação do fenômeno psicológico;
(BRASIL, 2011, p. 51) IV. Compreensão crítica dos fenômenos sociais,
econômicos, culturais e políticos do país, fundamentais
Os diálogos entre a Psicologia e o SUAS são importantes ao exercício da cidadania e da profissão;
V. Atuação em diferentes contextos considerando as
no desenvolvimento de marcos teórico-metodológicos
necessidades sociais, os direitos humanos, tendo em
contextualizados na realidade social de exclusão, vulnerabilidade
vista a promoção da qualidade de vida dos indivíduos,
e violação de direitos. grupos, organizações e comunidades;
O novo cenário da formação em Psicologia com a aprovação VI. Respeito à ética nas relações com clientes e usuários,
das Diretrizes Curriculares para o Curso de Graduação em com colegas, com o público e na produção e
Psicologia (CNE/CES 62/2004), amplia o olhar para essa nova divulgação de pesquisas, trabalhos e informações da
forma de atuação, exigida nesse contexto social. As Diretrizes área da Psicologia;
afirmam que a Formação em Psicologia deverá ser composta por VII. Aprimoramento e capacitação contínuos. (CNE/CES
um núcleo comum que “estabelece uma base homogênea para 5/2011).

53 54
Como vimos, a psicologia tem muito a contribuir como
profissão, que juntamente com outras, desenvolve práticas que
potencializem a mudança social preconizada pelo SUAS. Os
desafios de construir uma atuação profissional da psicologia
alicerçada na teoria, prática e no compromisso social, impulsionam
a busca incessante por novos caminhos que auxiliem no exercício
da cidadania na Política Nacional de Assistência Social.

55 56
EIXO 3: Atuação da (o)
Psicóloga (o) no CREAS

57 58
EIXO 3: Atuação da (o) Psicóloga (o) no CREAS das intervenções públicas. O conceito de família incorporou as
transformações que ocorreram e estão ocorrendo em seu interior
Pretende-se neste eixo trazer à reflexão a atuação de psicólogas ao longo do tempo. Essa família precisa ser compreendida
(os) nos Centros de Referência Especializado de Assistência em suas singularidades e potencialidades, demandando dos
Social – CREAS, abordando os desafios a serem enfrentados profissionais uma revisão do seu trabalho e construção de formas
pelos profissionais de psicologia no campo em questão, a fim de de abordar e compreender esse espaço de relações.
apontar diretrizes para a atuação das(os) psicólogas(os) neste Deter-se nestes aspectos amplia para o profissional de
serviço. Psicologia as possibilidades de identificação e trabalho com as
Produzir referências implica em deparar-se com os desafios potencialidades individuais, familiares e comunitárias das/os
apontados para a psicologia na atualidade. Estes desafios não destinatárias/s da ação. É importante que a(o) psicóloga(o) saia
têm sido poucos, afinal falamos de uma prática que vem sendo do lugar de identificação de “problemas”, de culpabilização ou
construída no fazer, e muito tem sido exigido dos profissionais. busca de responsáveis, para o lugar de viabilizadores de espaços
Portanto, a base dessa construção deve ser a análise e o diálogo criativos e geradores de alternativas individuais e coletivas na
constantes. A reflexão do fazer traz para os profissionais da perspectiva da superação das situações de violação.
psicologia inúmeras indagações, mas também aponta para Dessa forma, a Política de Assistência Social neste momento
práticas que se diferenciam no sentido de romper processos de de consolidação e implementação traz o desafio da mudança de
fragilização instalados na sociedade nas mais diferentes formas paradigma na constituição do fazer. Agrega ao desenvolvimento
de relações. das metodologias de trabalho, a necessidade da construção
Para discutir a atuação de psicólogas (os) junto ao CREAS, participativa, trazendo aqueles que eram objeto da ação do
faz-se necessário retomar, ainda que sucintamente, algumas outro, para o lugar de sujeitos. Neste sentido, exige análises
bases conceituais importantes da Política de Assistência Social: a mais aprofundadas dos contextos singulares das famílias e dos
centralidade na família enquanto espaço privilegiado de proteção coletivos em que estão inseridos. A intervenção da psicologia
e cuidado, e os territórios, como base de organização dos serviços, deve contribuir para a ressignificação, pelos sujeitos, de suas
com suas especificidades, particularidades, singularidades, histórias, ampliando sua compreensão de mundo, de sociedade
complexidades e dinâmicas. A perspectiva territorial vem e de suas relações, possibilitando o enfrentamento de situações
reconhecer que nestes espaços se originam tensões, mas cotidianas.
também as possibilidades de superação. Essa dimensão deve Na lida cotidiana compreende-se que as situações com as quais
trazer a compreensão do território enquanto espaço de interação, nos deparamos podem ser decorrentes de condições e estruturas
mas exige cuidado para não criar estigmas para a população, sociais violadoras de direitos. Essa compreensão faz com que
produzindo segregação. O território deve ser incorporado os profissionais envolvidos lancem mão de novas estratégias
enquanto espaço de articulação, considerando seu potencial para de intervenção, sem perder suas referências técnico-cientificas,
alternativas de enfrentamento das situações de violação e melhor assim como a especificidade de cada área de formação. Como
compreensão do publico atendido, na perspectiva de aproximar já discutido no Eixo anterior, o cenário requer dos profissionais
os serviços da população. Já o reconhecimento da importância da Psicologia a necessidade de considerar os processos de
da família na construção das políticas públicas se apresenta sofrimento instalados nas comunidades e territórios, lugar onde as
como central nas discussões. A matricialidade sociofamiliar famílias estabelecem seus laços mais significativos (CFESS/CFP,
aponta para a família enquanto espaço de proteção e eixo central 2007). Desse modo, a Psicologia comprometida com a promoção

59 60
de direitos sociais deve romper com práticas culpabilizadoras, e/ou coletivas.
considerando a experiência de sujeitos, enquanto seres capazes Ao profissional de psicologia cabe revisitar seu fazer, traduzir
de implicar-se e contribuir para respostas às situações de violações e transmitir seu compromisso, apontar para um posicionamento
de direitos que vivenciam, construindo novos significados para ético-politico. Cabe ainda romper com pressupostos teóricos
sua vida, da família e da comunidade. que servem à manutenção da desigualdade posta, partindo
Assim, ao definir a intervenção a ser adotada na política, é para novas concepções no campo dos conceitos, metodologias
preciso considerar tanto a dimensão subjetiva como a objetiva e intervenções, abrindo espaço para ação contextualizada
dos fenômenos sociais. Sawaia (2001) apresenta a subjetividade na vivência de pessoas e grupos. Faz-se importante também
enquanto questão política, processo de conversão do social e agregar um olhar crítico e de posicionamento frente à realidade
político ao psicológico e vice versa, tendo como eixo a humanidade social. Isso implica em romper com intervenções superficiais e
na sua historicidade. É preciso considerar o sujeito em sua relação fragmentadas, que sem aprofundar nos contextos em que se
com a sociedade e pensar sobre as influências que esta tem em aplicam atribuem aos sujeitos a responsabilidade pelo que lhe
cada individuo e/ou grupos, considerando assim sua constituição ocorre e pela solução dos problemas. Algumas práticas, que por
histórica. É fundamental construir uma prática que venha romper vezes são apresentadas como inovadoras, podem ser na verdade
com diagnósticos onde se pretende identificar o funcionamento perpetuadoras de uma realidade social de segregação e violação
psíquico, sem compreendê-lo enquanto parte de um sujeito que de direitos, e nada contribuírem para transformação social e
interfere e vivencia interferências do contexto social, sujeitos inserção dos sujeitos.
de capacidades e fragilidades, que são construídas a partir das
relações, das condições e valores sociais. Construindo Práticas

[...]falar do fenômeno psicológico é obrigatoriamente falar A intervenção da psicologia no campo social requer a
da sociedade. Falar da subjetividade humana é falar da construção de estratégias que exige da (o) psicóloga (o) ir além
objetividade em que vivem os homens. A compreensão do dos modelos teóricos, assumindo a função política e social da
‘mundo interno’ exige a compreensão de ‘mundo externo’, ação, ou seja, perceber-se enquanto sujeito desta prática.
pois são dois aspectos de um mesmo movimento, de um
Ao considerar a prática das (os) psicólogas (os) no CREAS e as
processo no qual o homem atua e constrói/modifica o
mundo e este, por sua vez, propicia os elementos para a contribuições da Psicologia nesse espaço é importante observar
constituição psicológica do homem (BOCK, 2007, p.22). alguns dados trazidos pelo Relatório Descritivo da Pesquisa Crepop
(CFP/CREPOP/2009). Inicialmente, as(os) participantes são em sua
A psicologia, ao compor as equipes de referencia dos CREAS, maioria mulheres (88,1%), sendo a maior concentração na faixa
contribui para um olhar na perspectiva do sujeito em sua relação etária de 24 a 31 anos (54,9%), ou seja, trata-se de profissionais
na família e na sociedade. Ao refletir sobre a dimensão subjetiva jovens. Com relação ao tempo e atuação como psicóloga(o) 28,3%
dos fenômenos sociais tenta superar a dicotomia existente possuem entre 5 a 10 anos de experiência, seguido de 24,2% com
em que historicamente apenas aspectos individuais eram 2 a 4 anos de experiência. Podemos então considerar que há um
considerados. Mudanças na qualidade de vida, superação de numero expressivo de psicólogas(os) com inserção recente na
fragilidades e situações de violência e outras violações de direitos prática, construindo fazeres numa política que também é recente e
e são possíveis ao se considerar o enfrentamento cotidiano da vem sendo constituída. Com relação à formação temos um grande
realidade vivida, construindo soluções que podem ser individuais número de profissionais com especialização (86,5%), podendo ser

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um aspecto importante para a construção de práticas diferenciadas. a subjetividade presente nos fenômenos sociais, incluindo os
Outro dado relevante apontado em diversos relatos foi a ausência de reflexos de conteúdos sociais, culturais e históricos na constituição
definição do papel das(os) psicólogas(os), sendo este identificado desse sujeito e de suas relações. É preciso aprofundar o
como um importante desafio do trabalho no CREAS. Os dados conhecimento e compreensão de pessoas, famílias e/ou grupos
nos mostraram ainda uma política que vem se constituindo nos inserindo os diferentes aspectos de constituição individual e grupal
municípios nas mais diferentes condições e com profissionais que e seus reflexos na sociedade. Esta contribuição da Psicologia
por sua vez tem buscado contribuir com seu fazer e formação. coaduna com os objetivos da atenção ofertada no CREAS, que
Outro dado importante identificado foi sobre a reflexão do trabalho: deve orientar-se pela garantia das seguranças socioassistenciais,
74,3% dos entrevistados apontam não trabalhar com indicadores de viabilizando intervenções especializadas no âmbito do SUAS,
acompanhamento/avaliação de sua intervenção. É preciso refletir na busca de romper com situações de violação e promover o
sobre esse dado, uma vez que os resultados das intervenções fortalecimento da função protetiva da família, a partir das ações
constituídas contribuem para a construção da Vigilância Social9, desenvolvidas no seu acompanhamento.
função fundamental para subsidiar a definição da política de atenção
para a Proteção Social Básica e Especial a ser desenvolvida, Metodologias de trabalho e a prática da psicologia no CREAS
respectivamente nos CRAS e CREAS nos municípios.
A compreensão é de que a ação dos profissionais envolvidos Na busca de metodologias e estratégias, a atuação dos
na Política de Assistência Social passa por um processo profissionais deve respeitar as singularidades de cada caso,
de transformação, onde a ação técnica deve romper com o priorizando a decisão conjunta com famílias e indivíduos. Os
assistencialismo e a benemerência, sair da escuta apenas do resultados da pesquisa do Crepop (CFP/CREPOP/2009), no que
explícito, da demanda manifesta. Significa ir para além, buscar a diz respeito à atuação profissional de psicólogas (os) no CREAS,
escuta comprometida com uma reflexão provocativa, revelando permitiram identificar ações que se diferem muito entre si, sendo
contextos e suas tensões. Neste sentido, é imprescindível rever que o público atendido com maior frequência é composto por
a prática, criando novos arranjos e avaliando com o que de fato crianças, adolescentes, mulheres e idosos que tiveram os direitos
estamos comprometidos. violados.
Lembramos novamente que a Psicologia pode contribuir de Cabe apontar que a Tipificação Nacional de Serviços
maneira diferenciada em sua intervenção, trazendo para análise Socioassistenciais descreve os serviços a serem ofertados
nos CREAS, a saber: Serviço de Proteção e Atendimento
Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), Serviço
9. Vigilância Social: refere-se à produção, sistematização de informações, Especializado de Abordagem Social assegurado também em
indicadores e índices territorializados das situações de vulnerabilidade e risco
pessoal e social que incidem sobre famílias/pessoas nos diferentes ciclos da
unidade referenciada da rede socioassistencial, Serviço de
vida (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos); pessoas com redução de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida
capacidade pessoal, deficiência ou abandono; crianças e adultos vitimas de formas Socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de
de exploração, de violência e de ameaças; vitimas de preconceito por etnia, gênero Serviços a Comunidade (PSC) e Serviço de Proteção Social
e opção pessoal; vitimas de apartação social que lhes impossibilite sua autonomia e Especial para Pessoas com Deficiência, Idosas e suas Famílias
integridade, fragilizando sua existência; vigilância sobre os padrões de serviços de
assistência social em especial aqueles que operam na forma de albergues, abrigos, que pode ser ofertado no Domicilio do Usuário do serviço, em
residências, semi-residências, moradias provisórias para os diversos segmentos Centro-Dia, no CREAS ou Unidade Referenciada. (BRASIL, 2011,
etários. Os indicadores a serem construídos devem mensurar no território as p.19 a 26(b))
situações de riscos sociais e violação de direitos. (PNAS, 2004, p.39).

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As principais ações descritas para o trabalho social essencial a e objetivos do SUAS, especialmente do CREAS.
ser desenvolvido junto aos Serviços de Proteção Social Especial Conforme já descrito anteriormente a atenção ofertada
– Média Complexidade são: acolhida; escuta; estudo social, pelos serviços do CREAS tem como objetivos propiciar:
diagnostico socioeconômico, monitoramento e avaliação do acolhida e escuta qualificada visando o fortalecimento da
serviço; orientação e encaminhamentos para a rede de serviços função protetiva da família; a interrupção de padrões de
locais; construção do plano individual e/ou familiar de atendimento; relacionamento familiares e comunitários com violação de
orientação sócio-familiar; atendimento psicossocial; orientação direitos; a potencialização dos recursos para superação
jurídico-social; referência e contra-referência; informação, da situação vivenciada e reconstrução de relacionamentos
comunicação e defesa de direitos; apoio à família na sua familiares, comunitários e com o contexto social ou construção
função protetiva; acesso a documentação pessoal; mobilização, de novas referências; o acesso aos direitos socioassistenciais
identificação da a família extensa ou ampliada; articulação da e à rede de proteção; o protagonismo e participação social; a
rede de serviços socioassistenciais; articulação com serviços prevenção do agravamento da violação e da institucionalização
de outras políticas setoriais; articulação interinstitucional com (BRASIL, 2011, p. 51(b)).
demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos; elaboração de Ainda com relação à atuação profissional, o relatório
relatórios e/ou prontuários; estimulo ao convívio familiar, grupal e descritivo da pesquisa(CFP/CREPOP/2009) nos apresenta
social; mobilização e fortalecimento do convívio e de redes sociais dados referentes ao conhecimento dos marcos teóricos e
de apoio (BRASIL, 2009, p. 20). legais da Política de Assistência Social. Estes devem ser
Nos dados da pesquisa do Crepop (CFP/CREPOP/2009) referência para a estruturação do trabalho técnico no CREAS,
as ações realizadas por psicólogas(os) com maior frequência trazendo subsídios para o processo de discussão e definição
foram: Acolhimento, Entrevista Inicial e Triagem; Atendimentos das ações técnicas a serem incorporadas, de maneira a
Individuais, Plantões; Grupos; Elaboração de Plano de atender os objetivos do serviço e as demandas de indivíduos
Acompanhamento Individual e/ou Familiar; Visitas Domiciliares, e famílias. Os cinco principais documentos consultados pelas/
Acompanhamento dos usuários nos diversos serviços do sistema os psicólogas/os foram: Estatuto da Criança e do Adolescente
judiciário; Relatórios Técnicos, Laudos e Avaliações; Ações (50,8%), Lei Orgânica da Assistência Social (38,2%), CREAS-
integradas com a rede; Atuação em equipes multidisciplinares; Guia de Orientação n. 1 (38%), Política Nacional de Assistência
Atividades educativas e de esclarecimentos para a população em Social (37,3%), Declaração Universal dos Direitos Humanos
geral e Coordenação dos serviços. (28,9%) e Constituição Federal do Brasil (28,7%). Além disso,
Cabe então uma reflexão acerca dos apontamentos 50% afirmam conhecer parcialmente o Guia de Orientações do
levantados na pesquisa. Observamos que não só há diversidade CREAS/MDS 1ª versão (BRASIL, 2005). Ao considerarmos o
nos fazeres, mas também a realização de atividades que não período em que se deu a pesquisa do CREPOP e a publicação
se encontram descritas nos documentos de referência, tais das normativas pelo MDS, isso pode apontar para profissionais
como: plantão; triagem; laudos; atendimento às demandas que vem buscando apropriar-se do conhecimento sobre os
do sistema judiciário, dentre outras. Acreditamos que esta processos de trabalho. Entretanto, ainda há o que se avançar
questão precisa ser problematizada e discutida internamente no que tange à capacitação e apropriação de conhecimento
pela equipe técnica e também com o órgão gestor e outras com relação à área de atuação. Tem-se aqui uma tarefa
instâncias políticas. Discutir os processos de trabalho é que não cabe apenas aos profissionais, mas também aos
fundamental para a definição de ações alinhadas às normativas gestores, que devem investir na capacitação de suas equipes

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e na viabilização de espaços de debate e reflexão sobre a de preconceitos e conclusões prévias, tornando o ambiente
Política de Assistência Socia. Os desafios postos à pratica dos receptivo. Afinal trata-se de famílias e/ou indivíduos que trazem
profissionais envolvidos devem ser partilhados e trabalhados complexidades decorrentes de situações de violência e/ou violação
coletivamente, assim como a reflexão sobre a contribuição que de direitos que podem ter sido ocasionadas por fatos isolados
diferentes áreas podem trazer para a constituição do trabalho ou se vir manifestando ao longo de anos. Neste momento de
em equipe. É de fundamental importância que os documentos acolhida é fundamental o olhar atento para as especificidades de
sejam discutidos tanto nos serviços e nos espaços diretos de cada caso, reconhecendo a dimensão subjetiva presente, criando
formação e estudo dos profissionais no campo, como também condições para o vínculo.
pelos cursos de graduação preparando o profissional em A escuta sensível aponta para a atuação profissional livre
formação para sua pratica futura. de preconceitos ou conclusões no decorrer do atendimento/
Apresentamos a seguir algumas atividades que são acompanhamento. Esta acolhida demanda ao profissional
fundamentais para o desenvolvimento do trabalho técnico. disponibilidade para de fato entrar em contato com realidades
Pretende-se apresentar alguns aspectos da prática, tentando complexas e diferenciadas, tentando compreender as diferentes
apontar as atividades fins, ou seja, aquelas voltadas diretamente maneiras que cada família tem de lidar com as situações
para o atendimento à população, e também as atividades vivenciadas É importante entender que a privação em suas
meio, que fazem parte do processo de trabalho, mas não estão diversas formas impõe diferentes reações e limites aos indivíduos
relacionadas ao atendimento direto. e grupos na interação com a realidade.
Destaca-se ainda, que a Tipificação Nacional de Serviços
Socioassistenciais (BRASIL, 2009) e o documento de Acompanhamento Psicossocial – Diz respeito à atuação
Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado conjunta de profissionais cujo objetivo é direcionar a ação de
de Assistência Social (BRASIL, 2011) apontam atribuições maneira mais abrangente com conhecimentos e habilidades
para o trabalho dos técnicos de nível superior nos serviços especificas de diferentes áreas, “sem que com isso aconteça uma
a serem ofertados pelo CREAS sem fazer distinção por justaposição das práticas profissionais e com isso possa existir
áreas de formação. Entretanto é possível identificar algumas a construção de alternativas junto com a família” (Simionato et
contribuições e especificidades que o olhar da psicologia pode al. 2002). Exige frequência e sistematização dos atendimentos,
trazer a estas atividades utilizando-se de diferentes metodologias e instrumentais.
As principais atividades relacionadas ao atendimento direto, Nessa intervenção o foco está em conhecer o individuo e/ou
atividades fins, da população no CREAS são: família identificando demandas explicitas e implícitas, levando
em conta seu contexto social, cultural, a rede que acessa e/ou
Acolhida - É o contato inicial com a pessoa e/ou família que conta, as dificuldades vivenciadas, expectativas dentre outros
será atendida e inserida no acompanhamento. Momento de aspectos. É também o espaço onde será possível estabelecer
estabelecimento de vínculos, exige do profissional escuta sensível vinculo favorecendo uma relação de discussão e reflexão
das demandas. É o momento também de apresentar o serviço sobre as dificuldades encontradas no cotidiano, promovendo o
e fornecer informações sobre o que é ofertado, esclarecendo fortalecimento de potenciais e autonomia, mantendo um olhar
possíveis dúvidas. Deve possibilitar a aproximação do usuário para os aspectos que constituem fenômenos sociais e interferem
com o serviço. na vida de indivíduos, famílias e grupos.
É fundamental a postura acolhedora dos profissionais, livre No decorrer do acompanhamento se dará a elaboração do

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Plano de Acompanhamento Individual e/ou Familiar10, com a profissionais no campo social.
definição das estratégias de intervenção a serem utilizadas, As estratégias aplicadas para o acompanhamento psicossocial
propiciando, a partir das ações, as seguranças de acolhida, podem ser diversas, partindo do atendimento individual, para a
de convívio ou vivência familiar, comunitária e social, de utilização de técnicas grupais, visitas domiciliares, dentre outras,
desenvolvimento de autonomia individual, familiar e social. Essa constituindo espaços coletivos de socialização, trocas, informação
construção deve ser feita em conjunto com indivíduos e/ou e fortalecimento de indivíduos, famílias e comunidades. No
famílias, de forma democrática e participativa, e a rede envolvida trabalho psicossocial a intervenção profissional aponta para a
no acompanhamento, contemplando reflexões e avaliações construção de um novo fazer, bem como pressupõe a constituição
periódicas de forma a permitir redefinições quando necessário. de um campo do conhecimento que, a partir do saber específico
Cabe apontar que no atual contexto se impõe uma nova de cada formação, deve permitir uma leitura ampliada do contexto
prática, em que a intervenção se propõe em novas dimensões a que se aplica e das relações sociais ali estabelecidas. Neste
do conhecimento, ainda não definitivamente construído, mas que sentido, a psicologia agrega aspectos do campo subjetivo, ou
vem se constituindo num processo contínuo. A palavra e a escuta seja, as relações que se estabelecem entre pessoas e espaços e
se constituem em ferramentas fundamentais que permitem um a repercussão na família e sociedade, considerando a intervenção
aprofundamento no conhecimento da família e no estabelecimento em realidades dinâmicas que se alteram a partir destas relações,
de vínculos entre o profissional, a família e seus membros. É gerando transformação.
preciso superar a abordagem tecnicista nas quais diferentes áreas
têm ações específicas de maneira independente, e desenvolver Entrevista – Procedimento de coleta de dados e orientação,
percepções que se integram e se complementam, potencializando mas também de continuidade da acolhida para aquele que
a ação. O objetivo é, a partir de um processo objetivo, trazer a chega e busca inserção no serviço. Este procedimento integra
compreensão de indivíduos e grupos através de seus processos o acompanhamento psicossocial. Este é um momento de
subjetivos, num contexto que se constitui histórica e socialmente, estabelecer um contato individualizado e atento às demandas
em que a luta de forças antagônicas está presente. É da troca e potencialidades da família e seus membros, priorizando o
cotidiana que surge a ação psicossocial, com o compromisso registro das informações coletadas, assegurando a privacidade
de levantar competências e estabelecer responsabilidades, num e a apropriação das singularidades da família e seus membros,
processo de compartilhamento, viabilizando a soma de saberes assim como da dinâmica das relações em seu interior. Também é
e o estabelecimento de estratégias de intervenção, sem perder o momento de levantar informações para construção do prontuário
as especificidades das formações, mas criando competências no serviço e/ou registro do cadastro informatizado. A entrevista
contribui também para o aprofundamento de aspectos relevantes
10. Plano de Acompanhamento Individual e/ou Familiar – Conforme documento de na compreensão de indivíduos e famílias, dinâmicas de relações
Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social – estabelecidas, percepção de mundo, motivações para a busca
CREAS (BRASIL, 2011), compreende o atendimento ofertado de forma continuada do serviço ou nos casos de encaminhamento e também sobre o
atendendo as demandas apresentadas, que envolve atendimentos individuais, motivo gerador do referenciamento ao CREAS.
familiares e em grupo; orientação jurídico-social; visitas domiciliares dentre outras
estratégias de intervenção. Deve ser construído em conjunto com cada família/
A entrevista não se esgota num único momento, sendo
indivíduo, apontando as estratégias a serem adotadas; encaminhamento e também uma oportunidade de interação com o serviço e suas
periodicidade dos atendimentos, proporcionando escuta qualificada e reflexão e ações/atividades, bem como de estabelecer vínculos favorecendo
construção de novas possibilidades de interação a familiares e com contexto social confiança e segurança. Visa ampliar conhecimento sobre o sujeito
e o enfrentamento das situações de violação.

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e/ou sua família, trazendo a luz sua historia e relações sociais, individuais e para a família, a prevenção de agravamento na
rede informal com que conta e demandas apresentadas. situação de violação, promovendo a transformação nos padrões
de relacionamento familiares e comunitários de violação de
Visita Domiciliar – A visita domiciliar se constitui em uma das direitos. Os grupos podem constituir-se em espaço de vínculos e
estratégias de aprofundamento do acompanhamento psicossocial. identificação de condições e situações similares, estimulando um
É uma forma de atenção com o objetivo de favorecer maior conjunto de pessoas na busca de soluções a partir de potenciais
compreensão a respeito da família, de sua dinâmica, valores, individuais e coletivos.
potencialidades e demandas, orientações, encaminhamentos, Esta estratégia de intervenção pode ser utilizada no processo de
assim como de estabelecimento de vínculos fortalecedores do acompanhamento de diferentes formas, considerando situações
processo de acompanhamento. e demandas que se pretende focar: grupo composto por membros
Este é um momento mais concreto que pode estimular a família de diferentes famílias, grupos de famílias, grupos intergeracionais,
para a busca e construção conjunta de meios para romper com grupos específicos para adolescentes, mulheres, dentre outros.
o quadro de violação. Deve pautar-se no respeito à privacidade Trabalhar a família como grupo ou trabalhar com grupos de famílias
da família, tendo seu foco previamente definido, sendo utilizada significa considerar as relações, a convivência entre pessoas que
sempre que houver a compreensão de sua necessidade. Por trazem histórias e experiências diversas. O trabalho com grupos
ser um momento de atenção individualizada, permite visualizar propicia a construção e troca de conhecimento, oportunidade de
a família e sua dinâmica em seu espaço de convivência e construir enfrentamento de situações vivenciadas, fortalecimento
socialização, além de aproximar-se de sua realidade. e identificação de potencias, fortalecimento de autonomia e
vínculos. Podem ser de reflexão, de convivência, temáticos, focais
Intervenções grupais - Dentro das estratégias de intervenção e pontuais ou períodos prolongados, potencializando o direito à
utilizadas, diferentes denominações de grupos são descritas. convivência familiar e comunitária.
Segundo Pichon-Rivière, grupo se caracteriza como um conjunto
de pessoas movidas por necessidades semelhantes, que se Articulação em Rede - Importante para a completude dos
reúnem em torno de uma tarefa, um objetivo mútuo, onde cada objetivos estabelecidos no atendimento e no acompanhamento.
um exercita a fala, expressa opiniões, preservando as diferenças. Viabiliza o acesso do destinatário aos direitos e inserção em
Neste espaço o indivíduo constrói sua identidade, na relação diferentes serviços e programas, incluindo outras políticas,
com o outro (PICHON-RIVIÈRE, 1980). A partir do grupo novas não apenas os serviços socioassistenciais. Favorece a visão
aquisições são possíveis. É através desse espaço de expressão integrada, articulada, intersetorial e a construção de respostas
que resignificações se dão, a experiência de cada um pode ser conjuntas no enfrentamento das situações de violência, assim
recriada, repensada, ou seja, as relações que se estabelecem a como viabiliza o acesso a direitos socioassistenciais, integrando
partir da troca e da comunicação podem trazer a superação de as políticas sociais, buscando romper com a fragmentação no
situações vivenciadas. acompanhamento e atenção às famílias.
Também é no grupo que se dá a convivência de indivíduos Cabe destacar a relevância do estabelecimento e definição
e/ou famílias, apoio e reflexão, a aquisição de novos dos fluxos no processo de trabalho e atendimento do CREAS,
conhecimentos, a comunicação, a troca, o desenvolvimento de apontando a rede de serviços e suas conexões. Assim é que
habilidades e potencialidades, fortalecendo e resignificando se define o processo de referência e contra-referência, evitando
os vínculos familiares e comunitários, a construção de projetos ações de mero encaminhamento. É preciso haver definição das

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responsabilidades no processo de intervenção junto aos indivíduos e complementariedade de diferentes políticas, a saber: saúde,
e/ou famílias, garantindo a complementaridade e articulação, educação, assistência social, habitação, esporte, lazer e cultura.
permitindo a reflexão conjunta e a co-responsabilização dos Somente a partir dessa compreensão os resultados podem ser
envolvidos. Na articulação da Rede destacam-se os órgãos de alcançados.
defesa de direitos: Conselho Tutelar, Poder Judiciário, Ministério Para a articulação de diferentes políticas a Assistência Social
Público, Defensoria Pública, Delegacias Especializadas e tem papel preponderante.
Organizações da Sociedade Civil (Centros de Defesa, Fóruns de
Defesa de Direitos), dentre outros. O órgão gestor de assistência social tem papel preponderante
Segundo Akerman (2012) o SUAS traz para o Sistema de na interlocução com outras políticas e órgãos de defesa de
Garantia de Direitos muitos questionamentos sobre quais são direitos e na institucionalização da articulação do CREAS
as atribuições e competências de cada uma das instituições com a rede, inclusive, por meio da construção e pactuação
de fluxos de articulação e protocolos intersetoriais de
que o compõem. Os vários órgãos buscam trabalhar de forma
atendimento. (BRASIL, 2011(b)).
integrada, mas articular uma rede como essa, com características
tão diversas, não é tarefa simples e muitas vezes as ações são
Na Norma Operacional Básica do SUAS (2005) está explicitado
fragmentadas, superpostas ou contraditórias. Dessa forma,
como um dos princípios organizativos do SUAS, as ações de
as famílias e pessoas atendidas convivem com vários atores
gestão de interface que a Assistência Social deve promover
sociais que muitas vezes expedem orientações divergentes.
para a garantia do cumprimento de seus preceitos. A noção de
Como vimos, o público já chega ao CREAS com uma história de
articulação aparece detalhadamente descrita na referida Norma,
exclusão social, e submetê-los aos fluxos burocráticos da rede
como uma importante estratégia para a efetivação do direito ao
representa uma dupla opressão. Praticar a articulação da rede
acesso às outras políticas públicas e sociais e a integração com
pressupõe agendas em comum, para construção, de consensos,
órgãos que compõem o Sistema de Garantia dos Direitos:
sobre os desafios e as propostas de enfrentamento destes, tanto
no nível da organização, acompanhamento e avaliação de fluxos,
• Articulação interinstitucional entre competências e
quanto no estudo de casos particulares. Esses encontros serão ações com os demais sistemas de defesa de direitos,
frutíferos se o clima for de compartilhamento de dificuldades e em específico com aqueles de defesa de direitos
potencialidades de cada uma das instituições da rede, sem se de crianças, adolescentes, idosos, pessoas com
transformar em espaços de disputas de posições. deficiência, mulheres, negros e outras minorias; de
A articulação de rede tem como princípios a flexibilidade proteção às vítimas de exploração e violência; e a de
e a horizontalidade e quanto mais dinâmica for, mais atrai adolescentes ameaçados de morte; de promoção do
novas conexões. Assim, os pactos e acordos, que deverão direito de convivência familiar;
ser formalizados pelos gestores, já estarão costurados pelos • Articulação intersetorial de competências e ações
profissionais da rede e desta forma, têm mais chance de serem entre o SUAS e o Sistema Único de Saúde – SUS por
intermédio da rede de serviços complementares para
compreendidos e instituídos.
desenvolver ações de acolhida, cuidados e proteções
Novas temáticas e demandas apontam para reorganização como parte da política de proteção às vítimas de danos,
no processo de desenvolvimento das políticas publicas e sociais, drogadição, violência familiar e sexual, deficiência,
trazendo a compreensão de que nenhuma política se encerra fragilidades pessoais e problemas de saúde mental,
em si. As respostas às demandas sociais exigem a articulação abandono em qualquer momento do ciclo de vida,

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associados a vulnerabilidades pessoais, familiares e acompanhamento da família e/ou indivíduo no serviço, onde
por ausência temporal ou permanente de autonomia será necessário avaliar quais informações são importantes
principalmente nas situações de drogadição e, em e pertinentes para compreensão do caso em tela, revelando
particular, os drogaditos nas ruas; acompanhamento, resultados, intercorrências e considerações
• Articulação intersetorial de competências e ações
técnicas, além contribuir para organização e sistematização do
entre o SUAS e o Sistema Nacional de Previdência
Social gerando vínculos entre sistemas contributivos
trabalho. Para tanto, é necessário a definição de instrumentais para
e não-contributivos; esse registro. Serão essas informações que instrumentalizarão o
• Articulação interinstitucional de competências e monitoramento, avaliação e a gestão para a individualização do
ações complementares com o Sistema Nacional e acompanhamento às famílias e/ou indivíduos. Destacamos dois
Estadual de Justiça para garantir proteção especial a instrumentais de registro: os prontuários e os relatórios técnicos.
crianças e adolescentes nas ruas, em abandono ou
com deficiência; sob decisão judicial de abrigamento 1. Prontuários – Nos prontuários estarão registradas as
pela necessidade de apartação provisória de pais e informações de cada indivíduo/família contendo especificidades
parentes, por ausência de condições familiares de de cada caso. Devem ser registrados todos os procedimentos
guarda; aplicação de medidas socioeducativas em
adotados, estratégias e dados referentes a cada família/
meio aberto para adolescentes;
• Articulação intersetorial de competências e ações
indivíduos. É importante constar informações referentes à
entre o SUAS e o Sistema Educacional por intermédio evolução e progressos do caso, bem como demandas e desafios
de serviços complementares e ações integradas para identificados, discussões de caso e planejamentos. Também
o desenvolvimento da autonomia do sujeito, por meio deverá conter o Plano de Acompanhamento Individual e/ou
de garantia e ampliação de escolaridade e formação Familiar. É no prontuário que será apontada a análise de cada
para o trabalho. (BRASIL, MDS, 2005) caso, que considerará as especificidades e singularidades de
cada indivíduo e/ou família, apontando demandas, objetivos,
Portanto, é no encontro, nas potencialidades de interfaces, estratégias e evolução. Deve considerar as intervenções e
nas trocas de experiências, na consolidação dos entendimentos metodologias adotadas, os resultados alcançados e a maneira de
acerca das competências e atribuições de cada uma das lidar com as experiências de cada individuo e/ou família.
instituições que a identidade do CREAS e da equipe de referência
vão sendo construídas. 2. Relatório Técnico – A elaboração de relatórios é uma das
Temos ainda dentre as atividades e responsabilidades atividades desenvolvidas pelas/os psicólogas/os, apontadas na
técnicas aquelas voltadas para o trabalho interno decorrente da pesquisa realizada pelo Crepop (CFP/CREPOP/2009). Estes
intervenção técnica junto à população atendida no CREAS, ou devem conter informações sobre as ações desenvolvidas
seja, atividades meio, mas que também são importantes para no atendimento aos indivíduos e/ou famílias acompanhadas
efetivação do pretendido com a ação técnica. pela equipe no CREAS. Através do relatório deve ser possível
Registro de Informação - Procedimento presente em todo observar o processo do atendimento e acompanhamento da
processo de funcionamento do CREAS e do acompanhamento família ao longo do tempo, trazendo informações relevantes
às famílias e/ou indivíduos, imprescindível para a construção de para compreensão do caso em tela. No caso dos psicólogas(os)
informações e para subsidiar a definição e construção das ações. é preciso observar o disposto na Resolução do CFP nº 07 de
O registro das informações refere-se especificamente ao 2003, que dispõem sobre a produção de documentos. Segundo a

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referida Resolução, os relatórios devem conter uma redação bem leitura de textos, dividindo o espaço de reunião em aprimoramento
estruturada e apropriada ao que se destina. Nele as afirmações teórico, discussão, construção e avaliação objetiva do trabalho
devem apresentar sustentação em seu corpo, com análise do que é planejado, possibilitando, ainda, supervisão técnica com
apresentado e uma conclusão decorrente do que foi desenvolvido presença, inclusive, de profissionais externas ao equipamento,
no atendimento e acompanhamento. O relatório deve ter como como por exemplo integrantes de Instituições de Ensino Superior
referência o Plano de Acompanhamento individual e/o familiar, e ou especialistas que possam contribuir no desenvolvimento e
deve considerar e analisar os condicionantes históricos e sociais qualificação da equipe.
e seus efeitos na constituição dos sujeitos, trazendo para reflexão
os aspectos subjetivos que se implicam na relação indivíduo e Reunião para Estudo de Caso – Espaço para estudo e
seu contexto social e que por vezes constituem dinâmica de análise dos casos em acompanhamento no serviço. O objetivo é
violações. Na elaboração de documentos a(o) psicóloga(o) deve ampliar a compreensão de indivíduos e famílias em suas relações,
também observar os princípios e dispositivos do Código de Ética particularidades e especificidades, na busca de estratégias
Profissional do Psicólogo. e metodologias de intervenção para alcance dos resultados
Observa-se ainda, que “Os relatórios do CREAS não devem identificados e apontados no Plano de Acompanhamento individual
se confundir com a elaboração de “laudos periciais”, relatórios ou e/ou familiar, avaliando resultados alcançados e demandas, assim
outros documentos com finalidade investigativa que constituem como necessidade de readequações.
atribuição das equipes interprofissionais dos órgãos do sistema Deve manter periodicidade e contar com todos os envolvidos
de defesa e responsabilização” (BRASIL, 2011, p.43 e 70(b)). no caso atendido, contemplando não apenas a equipe do CREAS,
mas também profissionais da rede conforme pertinência. A troca
Reunião de Equipe – Tem como objetivo debater e entre profissionais de diferentes áreas é privilegiada neste espaço
problematizar o trabalho articulado e integrado, avaliar e definir contribuindo para o trabalho multi ou interdisciplinar.
caminhos possíveis para seu desenvolvimento. Traz para reflexão Nesse processo de registro da prática e construção de
questões operacionais e referentes às relações e articulações referências, indagações se destacam e apontam para as
da equipe. Momento em que o trabalho desenvolvido deve ser urgências no processo de implementação da política, bem
debatido e avaliado, possibilitando rever o planejamento e metas como na construção de referências para o fazer técnico. Afinal
estabelecidas. Deve manter uma periodicidade, com pauta trabalhamos com realidades dinâmicas, que falam e traduzem
estabelecida e presença de toda equipe. A partir do monitoramento estruturas, relações de poder, saberes, trocas, vivências e
das ações a equipe poderá avaliar as estratégias utilizadas, as realizações. Mas se tem o desafio de construir o novo sem
responsabilidades estabelecidas no processo, encaminhamentos abandonar ou desqualificar o que vem sendo realizado e sim
efetivados no período, referência e contra-referência, articulações avaliar o que melhor atende as demandas contemporâneas da
e parcerias com a rede. De forma objetiva, avaliar o trabalho do sociedade. As indagações do cotidiano trazem maior clareza à
serviço, da equipe (interno-externa) e demandas para atingir percepção de que o objeto do trabalho na Política de Assistência
objetivos propostos no serviço. Este espaço deve contemplar o Social são as relações individuais, coletivas e institucionais.
debate de questões operacionais e conceituais, conjunturas e Não se trata apenas de atender a questões materiais, mas as
dilemas, contradições vivenciadas viabilizando a articulação e implicações da falta de condições na vida dessas famílias e da
integração da equipe. comunidade em geral.
Na reunião de equipe é possível criar um momento de estudo e Constata-se aqui, a provocação que o cotidiano nos

77 78
impõe: construir práticas que agreguem diferentes campos de
conhecimento para a intervenção psicossocial, intersetorial,
em rede e em equipe, mantendo exaustivo debate sobre o
fazer, resultados e potenciais futuro. É preciso construir uma
prática profissional pautada na análise de contextos culturais,
sociais, econômicos e políticos que estabelecem relações de
poder e conflito que interferem profundamente em indivíduos
e famílias e sua maneira de relacionar-se com o externo,
uma vez que reagem ao que lhe afeta, como em situações
de desemprego, violência, falta de acesso a bens e direitos,
discriminação, dentre outros. Isso exige dos profissionais a
construção de um fazer técnico diferenciado, que, sem perder
as especificidades de cada área do conhecimento, somem
entre si para reconhecer os sujeitos das políticas de atenção
em sua integralidade e especificidade.
Tem-se como mais um dos desafios problematizar a
formação que deve estar embasada na realidade de atuação do
profissional de Psicologia, apontando a complementariedade e
singularidade em relação ao trabalho em equipe nas políticas
públicas. A atuação traz o questionamento de como constituir
um fazer apropriado da trajetória histórica das políticas no
país, incorporando os princípios e diretrizes das legislações da
Assistência Social.

79
Referências Técnicas para atuação
do(a) psicólogo(a) no CRAS/SUAS
Ficha catalográfica
Catalogação na publicação Serviço de
Biblioteca e Documentação
Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo

Centro de Referência Técnica em Psicologia e Nota de re-impressão:


Políticas Públicas (CREPOP)
Referência técnica para atuação do(a) Esta 2ª edição das Referências Técnicas
psicólogo(a) no CRAS/SUAS / Conselho para atuação do(a) psicólogo(a) no
Federal de Psicologia (CFP). -- Brasília, CFP, CRAS/SUAS foi produzida em função da
2007. (re-impressão 2008) alta procura do documento por parte da
60p. categoria e dos gestores dessa política
ISBN: pública. Não se mostrou necessária
1. Atuação do psicólogo 2. Assistência qualquer alteração no texto original
Social 3. SUAS 4. Psicologia I. Título publicado em 2007. Houve apenas
algumas modificações no layout do
documento e atualizações de algumas
informações na ficha técnica do CFP.
Documento disponível on-line nos sites do
CFP, CREPOP e MDS. Desta vez foram impressos mais 5000
exemplares para distribuição gratuita.
Além disso, este documento também
É permitida a reprodução parcial ou total encontra-se disponível na Internet,
deste documento por todos os meios, desde podendo ser baixado nos sites do
CREPOP: http://crepop.pol.org.br e do
Brasília, junho de 2008. que citada a fonte e que não seja para venda
ou qualquer fim comercial. CFP: http://www.pol.org.br.

3 4
Conselho Federal de Psicologia Centro de Referência Técnica em
XIII Plenário (gestão 2005-2007) Psicologia e Políticas Públicas
(CREPOP)
Diretoria
Marcus Vinícius de Oliveira Silva
Ana Mercês Bahia Bock
Conselheiro Responsável
Presidente
Grisel Crispi
Marcus Vinícius de Oliveira Silva
Coordenadora
Vice-presidente
Monalisa Nascimento dos Santos Barros Equipe Técnica
Secretária Ariana Barbosa Silva
Odair Furtado Cláudio Henrique Pedrosa
Tesoureiro
Márcio Nunes de Paula
Conselheiros Efetivos
Apoio
Acácia Aparecida Angeli dos Santos
Yvone Magalhães Duarte
Adriana Alencar Gomes Pinheiro Coordenadora Geral do CFP
Alexandra Ayach Anache Redação
Ana Maria Pereira Lopes Iolete Ribeiro da Silva
Iolete Ribeiro da Silva Rita de Cássia Oliveira Assunção
Nanci Soares de Carvalho Silvia Giugliani
Psicólogos Convidados Sueli Ferreira Schiavo
Regina Helena de Freitas Campos Revisão
Vera Lúcia Giraldez Canabrava Adpeople Comunicação
Conselheiros Suplentes
Andréa dos Santos Nascimento
André Isnard Leonardi
Giovani Cantarelli Conselho Federal de Psicologia
Maria Christina Barbosa Veras SRTVN Qd 702 – Ed. Brasília Rádio Center sala 4024-A
Maria de Fátima Lobo Boschi CEP: 70.719-900 Brasília/DF
Fone: (61) 2109-0100
Rejane Maria Oliveira Cavalcanti
Fax: (61) 2109-0150
Rodolfo Valentim Carvalho Nascimento
www.pol.org.br
Psicólogos Convidados Suplentes e-mail: contato@pol.org.br
Deusdet do Carmo Martins http://crepop.pol.org.br
Maria Luiza Moura Oliveira e-mail: crepop@pol.org.br e crepop.contatos@pol.org.br

5 6
Sumário

Apresentação........................................................................... 09
Nota introdutória...................................................................... 11
I – Dimensão ético-política da Assistência Social..................... 13
II – Psicologia e Assistência Social........................................... 21
III – Atuação do psicólogo no CRAS........................................ 27
IV – Gestão do trabalho no SUAS............................................ 37
Considerações finais................................................................ 41
Referências.............................................................................. 43
Sugestões de leitura................................................................. 47
Anexos..................................................................................... 51
O processo de consulta pública pelo CREPOP......................... 52
Relação dos psicólogos que contribuíram para a construção
deste documento...................................................................... 58

7 8
Apresentação tem como objetivo trazer para a reflexão, com os profissionais
da Psicologia, aspectos da dimensão ético-política da Assistência
Social, a relação da Psicologia com a Assistência Social, a
O compromisso social da Psicologia foi construído com a atuação da(o) psicóloga(o) no CRAS e a gestão do trabalho no
participação de psicólogos e psicólogas de todo o país em SUAS. Apresentam-se algumas referências para a atuação da/o
diferentes projetos. Essa Psicologia valoriza a construção de psicóloga/o no CRAS sem a pretensão de apresentar um modelo
práticas comprometidas com a transformação social em direção a único, fechado, mas apontar possibilidades e convocar a categoria
uma ética voltada para a emancipação humana. Na última década, à reflexão e contribuição.
diferentes experiências possibilitaram a divulgação de um conjunto
de práticas direcionadas aos problemas sociais brasileiros, práticas Ana Mercês Bahia Bock
que apontavam alternativas para o fortalecimento de populações Presidente do Conselho Federal de Psicologia
em situação de vulnerabilidade social, assim como para o no XIII Plenário 2004–2007
fortalecimento dos recursos subjetivos para o enfrentamento das
situações de vulnerabilidade. Como resultado dessas experiências
houve uma ampliação da concepção social e governamental acerca
das contribuições da Psicologia para as políticas públicas, além
da geração de novas referências para o exercício da profissão de
Psicologia no interior da sociedade (CFP, 2005).
Nesse sentido, o Sistema Conselhos criou o Centro de
Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP)
com a finalidade de identificar a existência de práticas relevantes,
sistematizar e documentar essas práticas e disponibilizá-las para
toda a sociedade. O CREPOP tem, como conceito principal, a
produção de informação qualificada que visa ampliar a capacitação
dos psicólogos na compreensão das políticas públicas de modo
geral e a compreensão teórico - técnica do processo de elaboração,
planejamento, execução das políticas públicas nas diversas áreas
específicas: saúde, educação, Assistência Social, criança e
adolescente e outras.
Com base nessa delimitação, apresentam-se, nesse documento
referências técnicas para a atuação da(o) psicóloga(o) no Centro
de Referência em Assistência Social (CRAS). Este documento

9 10
Nota introdutória Portanto, a construção de Referências para atuação do(a)
psicólogo(a) no CRAS/SUAS traduz o esforço de desenvolvimento
de um método coletivo de produção de conhecimento sobre a
Processo de construção de referências técnicas pelo CREPOP intervenção profissional em políticas públicas. Nesse sentido,
a opção pela modalidade de consulta pública procurou garantir
O Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas e fortalecer a participação da categoria e o protagonismo da
Públicas – CREPOP surgiu para oferecer à Psicologia um novo profissão.
olhar sobre os compromissos com as Políticas Públicas e com
os Direitos Humanos. O CREPOP traz, como principal propósito, Marcus Vinícius de Oliveira Silva
ampliar a atuação dos psicólogos e das psicólogas na esfera Vice-Presidente do Conselho Federal de Psicologia
pública, expandindo a contribuição profissional da Psicologia para Conselheiro responsável pelo CREPOP
a sociedade brasileira e, conseqüentemente, colaborando para a no XIII Plenário 2004–2007
promoção dos Direitos Humanos no país.
Todas as ações do CREPOP caminham no sentido de oferecer
referências para a prática profissional, elaborando diretrizes
para os(as) psicólogos(as) do Brasil. O conjunto de ações
desenvolvidas, considerando suas finalidades e a posição que ele
ocupa no Sistema Conselhos, está organizado em três diretrizes
concebidas nacionalmente, mas abertas a variações em função
das especificidades regionais, que são definidas por cada unidade
local.
A primeira diretriz constitui-se no subprojeto “o CREPOP
como Recurso de Gestão” – que opera como catalisador das
ações políticas dos Conselhos. A segunda define o subprojeto
de “Pesquisa Permanente em Políticas Públicas”, que visa à
localização e manutenção de um processamento constante dos
dados e informações relativos aos(às) psicólogos/as e às políticas
públicas brasileiras. A terceira diretriz define o subprojeto de
“Investigação da Prática Profissional” – que busca apreender o
núcleo e o campo da prática profissional dos(as) psicólogos(as)
nas áreas específicas das políticas públicas.

11 12
I – Dimensão ético-política da
Assistência Social

Reconhecer a trajetória percorrida pela Assistência Social,


nas últimas duas décadas, instrumentaliza-nos para enfrentar os
desafios próprios de processos de mudanças e transformações
sociais, que, queremos nós, não sejam superficiais nem “de
fachada”. Os processos gerados a partir da Constituição Federal
de 1988, no que dizem respeito à Assistência Social, tiveram
implicações fundamentais, uma vez que colocaram suas ações
articuladas com a Saúde e a Previdência Social. Constituiu-se,
assim, o Sistema Brasileiro de Seguridade Social, a partir do
qual, desde 1993, com a vigência da Lei Orgânica de Assistência
I - Dimensão ético-política da Social (LOAS), esta passa a ser reconhecida enquanto política
pública, devendo garantir direitos e promover a cidadania de
Assistência Social amplos os segmentos da população, que amargam, pela produção
e acirramento das desigualdades sociais, o lugar de excluídos.
No entanto, após a primeira metade da década de 1990,
significativas alterações institucionais foram operadas em torno
das políticas públicas da Assistência Social, com uma abordagem
que conciliava iniciativas do Estado e do terceiro setor. Assim,
destacou-se o papel da filantropia e da solidariedade social e a
participação do setor privado, lucrativo ou não lucrativo, na oferta
de serviços e bens (IPEA, 2007).
A partir das deliberações da IV Conferência Nacional de
Assistência Social (2003) e das diretrizes estabelecidas pela LOAS
(1993) aprovou-se a construção e implementação do Sistema
Único de Assistência Social (SUAS). Estabeleceu-se, assim, com a
Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004), um caminho
sem volta, pautado pela ruptura de uma história (e prática)

13 14
atravessada por ações que tinham em sua intenção a lógica das de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero
benesses, dos clientelismos e, principalmente, a manutenção da ou por deficiências, dentre outras) (PNAS, 2004, p.27).
condição de subalternidade aos que a ela recorriam. A proteção social básica ocupa-se das ações de vigilância social,
A Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004), prevenção de situações de risco por meio do desenvolvimento
operacionalizada através do SUAS (2005), traz como projeto de potencialidades e aquisições e do fortalecimento de vínculos
político, a radicalização dos modos de gestão e financiamento familiares e comunitários. Casos notadamente complexos,
da política de Assistência Social. Essas marcas, se garantidas e que implicam violação de direitos (violência e abuso sexual,
legitimadas por meio dos movimentos populares, da participação exploração do trabalho infantil, pessoas em situação de rua etc.)
plena de seus usuários e do fortalecimento dos espaços e são encaminhados aos serviços e programas, correspondentes à
instâncias de controle social, deverão fazer com que as ações Proteção Social Especial.
propostas estejam conectadas com seus territórios, seus sujeitos, Segundo a PNAS (2004), a proteção social especial é
suas prioridades. Estamos, então, falando da sua efetividade
(...) uma modalidade de atendimento assistencial destinada a
enquanto política para a promoção da vida.
famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco
Insistimos nesta articulação entre a Assistência Social e a pessoal e social, por ocorrência de abandono, maus tratos físicos
afirmação da vida – não por acaso ou por retórica - mas porque é e/ou psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas,
disso que se trata. Esta é a questão a ser aprofundada, o desafio a cumprimento de medidas socioeducativas, situação de rua,
ser enfrentado por nós, profissionais da Psicologia, intervindo por situação de trabalho infantil, entre outras (PNAS, 2004, p.28).
meio da política da Assistência Social. É preciso estar atento às
Quando estamos dentro dos territórios de pertencimento das
potencialidades e às vulnerabilidades instaladas nas comunidades,
camadas mais apartadas do acesso a bens e serviços, no Centro
nos territórios, onde as famílias estabelecem seus laços mais
de Referência de Assistência Social – CRAS, motivo da elaboração
significativos. É preciso “ir onde o povo está”, já disseram antes.
deste primeiro documento, o que temos como propósito é nos
O SUAS propõe a sua intervenção a partir de duas grandes
ocuparmos das situações que demandam atenção, cuidado,
estruturas articuladas entre si: a Proteção Social Básica, que dá
aproximação. O CRAS tem como objetivo o desenvolvimento
conta da atenção básica, e a Proteção Social Especial, considerando
local, buscando potencializar o território de modo geral. O foco
a necessidade de ações de média e alta complexidades. De acordo
da atuação do CRAS é a prevenção e promoção da vida, por isso
com a PNAS (2004), a proteção social básica tem como objetivos:
o trabalho do psicólogo deve priorizar as potencialidades. Nossa
prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de atuação deve se voltar para a valorização dos aspectos saudáveis
potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos presentes nos sujeitos, nas famílias e na comunidade. A atuação
familiares e comunitários. Destina-se à população que vive em do psicólogo no CRAS tem foco na prevenção e “promoção de
situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, privação
vida”, mas isto não significa desconsiderar outros aspectos
(ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos,
dentre outros) e ou fragilização de vínculos afetivos – relacionais e relacionados às vulnerabilidades.

15 16
Temos muito que ver fora dos consultórios, dos settings da realidade local, na sua complexidade, nas suas brechas, nas
convencionais. Temos a oportunidade de estabelecer muitos suas possibilidades de alterar o que está posto.
olhares, muitas conexões, muitas redes. Temos a oportunidade Todos esses passos serão de enfrentamento, de
de trabalhar com a vida, não com o pobre, o pouco, o menos. desnaturalização da violação dos direitos, de superação das
Temos o dever de devolver para a sociedade a contradição, contradições sociais, se, cada vez mais, e mais profundamente,
quando muitos não usufruem de um lugar de cidadania, que nós estivermos implicados na sua execução. Diretamente, na
deveria ser garantido a todos, como direito. Para isto devemos medida em que é necessário propor ações de monitoramento,
nos ocupar de todos os casos, pois eles estão ali, pedindo algo, definição de indicadores de funcionamento e de resultado que
e, às vezes, porque demoramos demais, nem pedindo estão mais. orientem nossas atividades. Indiretamente, pois o sujeito, atendido
Mais motivos temos para nos aproximar e retomar o que deve ter plenamente por um profissional implicado com o seu processo de
ficado perdido nos fragmentos dos atendimentos segmentados, cidadania, desenvolve, pela própria experiência, a autonomia e o
dos encaminhamentos assinalados nos papéis, mas ainda não empoderamento, para fazer valer os seus direitos.
inscritos na vida. É importante articularmos nossas ações às já existentes
Para tanto, e para chegar perto de quem realmente mais nas comunidades e realizadas pelos moradores das regiões e
precisa, será importante não inventar a roda, e, sim, fazer territórios atendidos pelo CRAS. Um dos grandes desafios refere-
a roda andar. É preciso articular com ações existentes nas se à articulação com a rede socioassistencial e intersetorial,
regiões, nas comunidades. Devemos, pela condição de sujeito além do desenvolvimento de ações de forma integrada e
integral, entender o desafio da incompletude institucional e da complementar, que perceba o sujeito e a comunidade de forma
intersetorialidade. Potencializar parcerias, articular as ações integral e não fragmentada. Esse diálogo permanente fortalece
que complementam nossa intervenção, e por esta integração laços e parcerias e potencializa ações de forma continuada.
preencher de significado cada passo proposto, para nós (técnicos) Desta forma, pensar estratégias que considerem esses aspectos
e para os destinatários da nossa intervenção, pois esta estratégia fortalece nossa atuação e aproxima-nos da comunidade e de suas
nos fará ganhar em efetividade e resultado. Certamente fará demandas.
ganhar a todos em cidadania. Uma atuação comprometida com a promoção de direitos, de
Existem experiências que podem ser pontos de potência. É cidadania, da saúde, com a promoção da vida e que leve em conta
o caso de se reconhecer o processo altamente territorializado e o contexto no qual vive a população referenciada pelos CRAS tem
capilarizado, no qual vêm se constituindo as ações do Programa o suporte teórico e prático de Sílvia Lane, Martín Baró, Sawaia
Saúde da Família (PSF). Nesta mesma ótica propõe-se o trabalho e de vários outros estudiosos da Psicologia Social, da Psicologia
do CRAS, tendo como proposta constituir-se enquanto espaço Comunitária, da Psicologia do Desenvolvimento, da Psicologia
de referência e porta de entrada para os serviços da Assistência Institucional, dentre outras.
Social. Essas atuações ocorrem dentro da lógica de trabalho em A Psicologia tem produzido conhecimentos que embasam
rede, articulado, permanente e não ocasional, no reconhecimento a atuação profissional no campo da Assistência Social e que

17 18
subsidiam o desenvolvimento de atividades em diferentes espaços potencial dos usuários dos serviços, enquanto sujeitos capazes
institucionais e comunitários. Esses conhecimentos possibilitam de autonomia e independência e que não necessitavam continuar
que o psicólogo realize ações que envolvam proposições de nesse processo de exclusão e de tutela.
políticas e ações relacionadas à comunidade em geral e aos Este é o nosso compromisso ético-político, cada vez mais
movimentos sociais de grupos étnico-raciais, religiosos, de implicado com a produção de bem-estar bio-psicossocial, cada
gênero, geracionais, de orientação sexual, de classes sociais e vez mais comprometido com a promoção da vida. Propor, a partir
de outros segmentos socioculturais, com vistas à realização de das nossas intervenções, atravessar o cotidiano de desigualdades
projetos da área social e/ou definição de políticas públicas. e violências a estas populações, visando o enfrentamento e
Com base nesses conhecimentos, intervenções psicológicas superação das vulnerabilidades, investindo na apropriação, por
com a finalidade da promoção da autonomia têm envolvido a todos nós, do lugar de protagonista na conquista e afirmação de
participação efetiva da comunidade, parcerias com instituições direitos.
como igrejas e movimentos sociais, ações comprometidas com o Temos compromisso com a autonomia dos sujeitos, com a
bem-estar, com a diversidade e as subjetividades de todos. Como crença no potencial dos moradores e das famílias das populações
afirma Lane (2001), a Psicologia deve recuperar o indivíduo na referenciadas pelos CRAS, para que rompam com o processo
interseção de sua história com a história de sua sociedade, pois é de exclusão/marginalização, assistencialismo e tutela. É
somente este conhecimento que permite compreender o homem fundamental a apropriação do lugar de protagonista na conquista
como produtor de sua história. Assim, a participação social é e afirmação de direitos, para que possamos trabalhar com essa
condição básica à cidadania. perspectiva. Para uma atuação ética e política, compreendemos
A Psicologia pode contribuir para resgatar o vínculo do usuário ser imprescindível a identificação e apropriação da atuação,
com a Assistência Social. A dignidade do público-participante é enquanto profissional, e crença no que se faz, mesmo diante de
favorecida a partir de uma relação qualificada com a Assistência adversidades e desafios inerentes a ela. Isso contribui para um
Social. Isto impõe a necessidade de se pensarem possibilidades protagonismo de fato, capaz de fomentar, em outros, a construção
de enfrentamento das dificuldades de realização do controle de autonomias e a geração de outros protagonistas.
social. Existe, de fato, espaço para os usuários, na elaboração
das ações e políticas destinadas a sua comunidade? A partir de
uma análise crítica da Assistência Social, os psicólogos devem
contribuir para a superação dessas barreiras.
Nós, psicólogos, temos muito a contribuir neste processo.
Trazemos, como acúmulo, as aprendizagens e convicções
forjadas na luta pela afirmação da Reforma Psiquiátrica, pela
desinstitucionalização, em todas as suas formas, explícitas
ou maquiadas. Nesse movimento, a crença norteadora foi no

19 20
II – Psicologia e Assistência Social

A atuação do psicólogo, como trabalhador da Assistência


Social, tem como finalidade básica o fortalecimento dos usuários
como sujeitos de direitos e o fortalecimento das políticas públicas.
As políticas públicas são um conjunto de ações coletivas geridas
e implementadas pelo Estado, que devem estar voltadas para
a garantia dos direitos sociais, norteando-se pelos princípios
da impessoalidade, universalidade, economia e racionalidade e
tendendo a dialogar com o sujeito cidadão.
Uma Psicologia comprometida com a transformação social
toma como foco as necessidades, potencialidades, objetivos e
experiências dos oprimidos. Nesse sentido, a Psicologia pode
oferecer, para a elaboração e execução de políticas públicas de
II - Psicologia e Assistência Assistência Social – preocupadas em promover a emancipação
social das famílias e fortalecer a cidadania junto a cada um
Social de seus membros – contribuições no sentido de considerar e
atuar sobre a dimensão subjetiva dos indivíduos, favorecendo
o desenvolvimento da autonomia e cidadania. Dessa maneira,
as práticas psicológicas não devem categorizar, patologizar e
objetificar as pessoas atendidas, mas buscar compreender e
intervir sobre os processos e recursos psicossociais, estudando as
particularidades e circunstâncias em que ocorrem. Tais processos
e recursos devem ser compreendidos de forma indissociada aos
aspectos histórico-culturais da sociedade em que se verificam,
posto que se constituem mutuamente.
O indivíduo, em interação constante com seu contexto social
(familiar, comunitário), é o eixo da produção e utilização do
conhecimento psicológico numa prática comprometida com o
desenvolvimento, a justiça e a eqüidade social (MARTINEZ, 2003).
A capacidade de enfrentamento das situações da vida é afetada

21 22
pelas experiências, condições de vida e significados construídos ao Assim, a oferta de apoio psicológico básico é uma possibilidade
longo do processo de desenvolvimento. Alterar o lugar do sujeito nas importante, de forma a facilitar o movimento dos sujeitos
políticas de Assistência Social, potencializando a sua capacidade para o desenvolvimento de sua capacidade de intervenção e
de transformação, envolve a construção de novos significados. transformação do meio social onde vive (CFP, 2005), uma vez
Para romper com os processos de exclusão, é importante que o que visa à potencialização de recursos psicossociais individuais e
sujeito veja-se num lugar de poder, de construtor do seu próprio coletivos frente às situações de risco e vulnerabilidade social.
direito e da satisfação de suas necessidades. No entanto, essa As atividades desenvolvidas no CRAS estão voltadas para o
mudança de significados envolve também o contexto social que alívio imediato da pobreza, para a ruptura com o ciclo intergeracional
deve re-significar a compreensão sobre como a vulnerabilidade da pobreza e o desenvolvimento das famílias. Os psicólogos no
social é produzida. CRAS devem promover e fortalecer vínculos sócio-afetivos, de
É preciso, portanto, olhar o sujeito no contexto social e político forma que as atividades de atendimento gerem progressivamente
no qual está inserido e humanizar as políticas públicas. Os cidadãos independência dos benefícios oferecidos e promovam a
devem ser pensados como sujeitos que têm sentimentos, ideologias, autonomia na perspectiva da cidadania. Atuar numa perspectiva
valores e modos próprios de interagir com o mundo, constituindo uma emancipatória, em um país marcado por desigualdades sociais,
subjetividade que se constrói na interação contínua dos indivíduos e construir uma rede de proteção social é um grande desafio.
com os aspectos histórico-culturais e afetivo-relacionais que os Temos o compromisso de oferecer serviços de qualidade, diminuir
cercam. Essa dimensão subjetiva deve ser levada em consideração sofrimentos, evitar a cronificação dos quadros de vulnerabilidade,
quando se organizam e executam as políticas públicas. defender o processo democrático e favorecer a emancipação social.
Compreender o papel ativo do indivíduo e a influência das relações Para isso, é importante compreender a demanda e suas condições
sociais, valores e conhecimentos culturais sobre o desenvolvimento históricas, culturais, sociais e políticas de produção, a partir do
humano pode favorecer a construção de uma atuação profissional conhecimento das peculiaridades das comunidades e do território
que seja transformadora das desigualdades sociais. Ao levar em (inserção comunitária) e do seu impacto na vida dos sujeitos. Qual
consideração essa dimensão do desenvolvimento dos sujeitos, é a demanda apresentada pelos usuários da Assistência Social?
contribui-se para a promoção de novos significados ao lugar do Num modelo assistencialista, os profissionais são os
sujeito cidadão, autônomo e que deve ter vez e voz no processo ‘salvadores’ que fazem de tudo para aliviar a miséria. O problema
de tomada de decisão e de resolução das dificuldades e problemas é que, quando se colocam nesse lugar, invertem a demanda e
vivenciados. acham que sabem o que é melhor para o usuário. O importante,
Valorizar a experiência subjetiva do indivíduo contribui para no entanto, é compreender a demanda dos usuários, em seus
fazê-lo reconhecer sua identidade e seu poder pessoal. Operando aspectos históricos, sociais, pessoais e contextuais, para se
no campo simbólico e afetivo-emocional da expressividade e da realizar uma intervenção psicológica mais efetiva e resolutiva, com
interpretação dialógica, com vistas ao fortalecimento pessoal, base na demanda planejada (construída pelo diálogo entre o saber
pode-se desenvolver condições subjetivas de inserção social.

23 24
do técnico e do população referenciada), e não só na demanda buscando a interação de saberes e a complementação de ações,
espontânea. com vistas à maior resolutividade dos serviços oferecidos;
Na relação com as famílias é importante também estar atento 3. Atuar de forma integrada com o contexto local, com a
ao processo de culpabilização da família. A extrema valorização realidade municipal e territorial, fundamentada em seus
da família e a idealização do núcleo familiar contribuíram para se aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais;
pensar que “ (...) se tudo se remete à família, tudo é culpa da família” 4. Atuar baseado na leitura e inserção no tecido comunitário,
(MELMAN, 2002, p. 38). Respeito mútuo, respeito a si próprio e para melhor compreendê-lo, e intervir junto aos seus
reconhecimento do outro são importantes para a construção de moradores;
relações de confiança entre profissionais e população atendida e 5. Atuar para identificar e potencializar os recursos psicossociais,
para se possibilitar uma postura autônoma, contribuindo para a tanto individuais como coletivos, realizando intervenções nos
re-significação do lugar do indivíduo, empoderando-o enquanto âmbitos individual, familiar, grupal e comunitário;
sujeito cidadão de direitos. 6. Atuar a partir do diálogo entre o saber popular e o
Quando os profissionais têm disponibilidade para revisitar e saber científico da Psicologia, valorizando as expectativas,
aprimorar suas ações, com base no conhecimento compartilhado experiências e conhecimentos na proposição de ações;
com diferentes profissionais e usuários, realizam troca de saberes 7. Atuar para favorecer processos e espaços de participação
e constroem práticas interdisciplinares mais colaborativas, ricas e social, mobilização social e organização comunitária,
flexíveis. A prática interdisciplinar é uma prática política, um diálogo contribuindo para o exercício da cidadania ativa, autonomia
entre pontos de vista para se construírem leituras, compreensões e controle social, evitando a cronificação da situação de
e atuações consideradas adequadas, e visa à abordagem de vulnerabilidade;
questões relativas ao cotidiano, pautadas sobre a realidade dos 8. Manter-se em permanente processo de formação
indivíduos em seu território. profissional, buscando a construção de práticas
Para o enfrentamento dessas situações, é relevante também contextualizadas e coletivas;
a identificação e consideração das expectativas, necessidades e 9. Atuar com prioridade de atendimento aos casos e situações
potencialidades dos usuários e a análise da adequação das ações de maior vulnerabilidade e risco psicossocial;
propostas ao campo da Assistência Social. 10. Atuar para além dos settings convencionais, em espaços
Princípios que devem orientar a prática do psicólogo no CRAS: adequados e viáveis ao desenvolvimento das ações, nas
1. Atuar em consonância com as diretrizes e objetivos da instalações do CRAS, da rede socioassistencial e da
PNAS e da Proteção Social Básica (PSB), cooperando para a comunidade em geral.
efetivação das políticas públicas de desenvolvimento social e Desde o ponto de vista conceitual, a ação do psicólogo
para a construção de sujeitos cidadãos; e do assistente social e as diretrizes do Ministério de
2. Atuar de modo integrado à perspectiva interdisciplinar, em Desenvolvimento Social unem-se na reabilitação psicossocial
especial nas interfaces entre a Psicologia e o Serviço Social, de um lado e de outro, na promoção da cidadania e do
protagonismo político.

25 26
III – Atuação do psicólogo no CRAS

O CRAS é responsável pela oferta de serviços continuados de


proteção social básica e de Assistência Social às famílias, grupos
e indivíduos em situação de vulnerabilidade social. Nessa unidade
básica da Assistência Social são realizados os seguintes serviços,
benefícios, programas e projetos (BRASIL, 2006a):
1. Serviços: socioeducativo-geracionais, intergeracionais e
com famílias; sócio-comunitário; reabilitação na comunidade;
outros;
2. Benefícios: transferência de renda (bolsa-família e outra);
Benefícios de Prestação Continuada – BPC; benefícios
eventuais – assistência em espécie ou material; outros;
III - Atuação do psicólogo no 3. Programas e Projetos: capacitação e promoção da inserção
produtiva; promoção da inclusão produtiva para beneficiários
CRAS do programa Bolsa Família – PBF e do Benefício de Prestação
Continuada; projetos e programas de enfrentamento à
pobreza; projetos e programas de enfrentamento à fome;
grupos de produção e economia solidária; geração de trabalho
e renda.
O psicólogo pode participar de todas essas ações, articulando
a sua atuação a um plano de trabalho elaborado em conjunto com
a equipe interdisciplinar. As ações devem ter caráter contínuo e
levar em conta que o público-participante do CRAS é a população
em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza,
privação e/ou fragilização de vínculos efetivos relacionais e de
pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero
ou por deficiências, dentre outras). Dado isso, a atuação do
psicólogo deve se apoiar em investigações sobre essas situações
no território de abrangência do CRAS (BRASIL, 2007).

27 28
Segundo as orientações técnicas do Ministério do do CRAS com os serviços oferecidos por outras políticas públicas,
Desenvolvimento Social (MDS), as ações dos profissionais que por meio da intersetorialidade.
atuam no CRAS devem Em se tratando do trabalho do psicólogo, que, conforme
(...) provocar impactos na dimensão da subjetividade política dos sugerido alhures, deve enfatizar as relações da pessoa com os
usuários, tendo como diretriz central a construção do protagonismo seus contextos, atentar para a prevenção de situações de risco e
e da autonomia, na garantia dos direitos com superação das contribuir para o desenvolvimento de potencialidades pessoais e
condições de vulnerabilidade social e potencialidades de riscos coletivas, este profissional deve pautar seu atuação pelos marcos
(BRASIL, 2006a, p. 13). normativos da Assistência Social, como o Guia de Orientação
As atividades do psicólogo no CRAS devem estar voltadas Técnica – SUAS Nº 1 (BRASIL, 2005), que versa sobre as
para a atenção e prevenção a situações de risco, objetivando atuar diretrizes metodológicas para o trabalho com famílias e indivíduos,
nas situações de vulnerabilidade por meio do fortalecimento dos bem como sobre os serviços e ações do PAIF ofertados pela equipe
vínculos familiares e comunitários e por meio do desenvolvimento de profissionais do CRAS. Portanto, em casos de identificação de
de potencialidades e aquisições pessoais e coletivas. demandas que requeiram ações e serviços não previstos nestes
Intervir em situações de vulnerabilidades, dentro da aparatos normativos, como, por exemplo, o acompanhamento
Assistência Social, implica diretamente em promover e favorecer clínico de natureza psicoterapêutica, o profissional de Psicologia
o desenvolvimento da autonomia dos indivíduos, oportunizando deve acessar outros pontos da rede de serviços públicos existentes
o empoderamento da pessoa, dos grupos e das comunidades. no seu território de abrangência ou no plano municipal, com vistas
Temos, aqui, a necessidade de mudanças nos referenciais teórico- à efetivação dos direitos dos usuários a serviços de qualidade e à
metodológicos, na fundamentação dos programas, projetos, devida organização das ações promovidas pelas políticas públicas
serviços e benefícios que devem se dar em nova ótica, investindo-se de Seguridade Social.
no potencial humano. Esse investimento pode produzir superação Conforme estabelece a Norma Operacional Básica de Recursos
e desenvolvimento, mas, para tanto, também são fundamentais Humanos do SUAS (NOB–RH/SUAS), atuam, no CRAS,
mudanças na forma de compreendermos a pobreza e a maneira de assistentes sociais, psicólogos e, em alguns casos, também outros
atuarmos sobre ela, gerando, por meio dos vínculos estabelecidos profissionais (BRASIL, 2006b). Portanto, o psicólogo passou a
no atendimento, e de um conjunto de ações potencializadores, o integrar as equipes de trabalhadores do SUAS e vem contribuindo
rompimento do ciclo de pobreza, a independência dos benefícios para que o CRAS cumpra seus objetivos dentro da política de
oferecidos e a promoção da autonomia, na perspectiva da Assistência Social. Esse local de atuação traz para o psicólogo
cidadania, tendo o indivíduo como integrante e participante ativo alguns desafios, dentre eles:
dessa construção. » apropriar-se dos marcos legais e normativos operacionais
Para produzir esses resultados devem ser identificados/criados da política pública em geral e, em especial, das políticas de
serviços que dêem retaguarda às ações do CRAS. Nesse sentido, Assistência Social, dentre outras: Constituição Federal – 1988;
deve-se identificar redes de apoio e deve-se articular os serviços Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS/1993; Estatuto

29 30
da Criança e Adolescente – ECA/1990; Plano Nacional de 5. compromisso em garantir atenção profissional
Assistência Social – PNAS/2004; Política Nacional do Idoso direcionada para a construção de projetos pessoais e
– PNI/1994; Política Nacional de Integração da Pessoa com sociais para a autonomia e sustentabilidade;
Deficiência – NOB-SUAS/2005; Novo Código Civil; leis, 6. reconhecimento do direito dos usuários a terem acesso
decretos e portarias do Ministério do Desenvolvimento a benefícios e renda e a programas de oportunidades para
Social, que possam ser pertinentes à ação dos profissionais; inserção profissional e social;
» apropriar-se dos fundamentos ético legais, teóricos e 7. incentivo aos usuários para que exerçam seu direito
metodológicos para o trabalho com e para as famílias, de participar de fóruns, conselhos, movimentos sociais e
seus membros e indivíduos, considerando, sobretudo, cooperativas populares de produção;
as necessidades e possibilidades objetivas e subjetivas 8. garantia do acesso da população a política de
existentes no território onde estes atores vivem; Assistência Social, sem discriminação de qualquer natureza
» apropriar-se de conhecimentos sobre: indicadores de (gênero,raça/etnia, credo, orientação sexual, classe social
vulnerabilidade e risco sócio-psicológico; especificidades ou outras), resguardados os critérios de elegibilidade dos
étnicas e culturais da população brasileira; trabalho social diferentes programas, projetos, serviços e benefícios;
com famílias, seus membros e indivíduos; trabalho com 9. devolução das informações colhidas nos estudos e
grupos e redes sociais; dialética exclusão/inclusão social; pesquisas aos usuários, no sentido de que estes possam
leitura sócio-psicológica da realidade, como pesquisa-ação- usá-las para o fortalecimento dos seus interesses;
participante; políticas públicas, dentre outros; 10. contribuição para a criação de mecanismos que venham
» orientar-se pelos princípios éticos que devem nortear a a desburocratizar a relação com os usuários, no sentido de
intervenção dos profissionais da Assistência Social, conforme agilizar e melhorar os serviços prestados.
proposto na NOB–RH/SUAS: A prática profissional do psicólogo junto a políticas públicas de
1. defesa Intransigente dos direitos socioassistenciais; Assistência Social é a de um profissional da área social produzindo
2. compromisso em ofertas, serviços, programas, projetos suas intervenções em serviços, programas e projetos afiançados
e benefícios de qualidade que garantam a oportunidade na proteção social básica, a partir de um compromisso ético e
de convívio para o fortalecimento de laços familiares e político de garantia dos direitos dos cidadãos ao acesso à atenção
sociais; e proteção da Assistência Social. A partir da interface entre
3. promoção, aos usuários, do acesso a informação, várias áreas da Psicologia, estas ações estão sendo construídas
garantindo conhecer o nome e a credencial de quem os numa perspectiva interdisciplinar, uma vez que vão constituindo
atende; várias funções e ocupações que devem priorizar a qualificação da
4. proteção à privacidade dos usuários, observando o intervenção social dos trabalhadores da Assistência Social.
sigilo profissional, preservando sua privacidade e opção e A concepção da Assistência Social como um direito e, portanto,
resgatando a sua história de vida; estabelecida como uma política pública, aponta a necessidade de

31 32
superação da atuação na vertente de viabilizadores de programas movimentem na condição de co-construtoras de si e dos seus
para viabilizadores de direitos, exigindo o conhecimento da contextos social, comunitário e familiar;
legislação, dos direitos e da compreensão do cidadão enquanto » compreender e acompanhar os movimentos de construção
autônomo e com potencialidades. subjetiva de pessoas, grupos comunitários e famílias,
O psicólogo deve integrar as equipes de trabalho em igualdade atentando para a articulação desses processos com as
de condições e com liberdade de ação, num papel de contribuição vivências e as práticas sociais existentes na tessitura sócio-
nesse processo de construção de uma nova ótica da promoção, que comunitária e familiar;
abandona o assistencialismo, as benesses, que não está centrada » colaborar com a construção de processos de mediação,
na caridade e nem favor, rompendo com o paradigma da tutela, das organização, mobilização social e participação dialógica que
ações dispersas e pontuais. impliquem na efetivação de direitos sociais e na melhoria das
A relação com a equipe e o usuário deve pautar-se pela parceria, condições de vida presentes no território de abrangência do
pela socialização e pela construção do conhecimento, respeitando CRAS;
o caráter ético conforme determina o Código de Ética Profissional » no atendimento, desenvolver as ações de acolhida,
do psicólogo. entrevistas, orientações, referenciamento e contra-
Apontam-se, a seguir, algumas diretrizes para a atuação do referenciamento, visitas e entrevistas domiciliares,
psicólogo nos serviços, benefícios e programas do CRAS: articulações institucionais dentro e fora do território de
» desenvolver modalidades interventivas coerentes com abrangência do CRAS, proteção pró-ativa, atividades
os objetivos do trabalho social desenvolvido pela Proteção socioeducativas e de convívio, facilitação de grupos,
Social Básica e Proteção Social Especial (média e alta), estimulando processos contextualizados, auto-gestionados,
considerando que o objetivo da intervenção em cada uma práxicos e valorizadores das alteridades;
difere, assim como o momento em que ele ocorre na família, » por meio das ações, promover o desenvolvimento de
em seus membros ou indivíduos; habilidades, potencialidades e aquisições, articulação e
» facilitar processos de identificação, construção e fortalecimento das redes de proteção social, mediante
atualização de potenciais pessoais, grupais e comunitários, assessoria a instituições e grupos comunitários;
de modo a fortalecer atividades e positividades já existentes » desenvolver o trabalho social articulado aos demais
nas interações dos moradores, nos arranjos familiares e na trabalhos da rede de proteção social, tendo em vista os
atuação dos grupos, propiciando formas de convivência direitos a serem assegurados ou resgatados e a completude
familiar e comunitária que favoreçam a criação de laços da atenção em rede;
afetivos e colaborativos entre os atores envolvidos; » participar da implementação, elaboração e execução dos
» fomentar espaços de interação dialógica que integrem projetos de trabalho;
vivências, leitura crítica da realidade e ação criativa e
transformadora, a fim de que as pessoas reconheçam-se e se

33 34
» contribuir na elaboração, socialização, execução, no
acompanhamento e na avaliação do plano de trabalho de seu
setor de atuação, garantindo a integralidade das ações;
» contribuir na educação permanente dos profissionais da
Assistência Social;
» fomentar a existência de espaços de formação permanente,
buscando a construção de práticas contextualizadas e
coletivas;
» no exercício profissional, o psicólogo deve pautar-se
em referenciais teóricos, técnicos e éticos. Para tanto, é
fundamental manter-se informado e atualizado em nível
teórico/técnico, acompanhando as resoluções que norteiam
o exercício;
» na ação profissional, é fundamental a atenção acerca do
significado social da profissão e da direção da intervenção da
Psicologia na sociedade, apontando para novos dispositivos
que rompam com o privativo da clínica mas não com a formação
da Psicologia, que traz, em sua essência, referenciais teórico-
técnicos de valorização do outro, aspectos de intervenção e
escuta comprometida com o processo de superação e de
promoção da pessoa;
» os serviços de Psicologia podem ser realizados em
organizações de caráter público ou privado, em diferentes
áreas da atividade profissional, sem prejuízo da qualidade
teórica, técnica e ética, mantendo-se atenção à qualidade e
ao caráter do serviço prestado, as condições para o exercício
profissional e posicionando-se, o psicólogo, enquanto
profissional, de forma ética e crítica, em consonância com o
Código de Ética Profissional do psicólogo.

35 36
IV – Gestão do trabalho no SUAS

A NOB–RH/SUAS consolida os principais eixos a serem


considerados para a gestão do trabalho na área da Assistência
Social, tais como: equipes de referência; diretrizes nacionais
para os planos de carreira, cargos e salários; diretrizes para o
co-financiamento da gestão do trabalho; responsabilidades e
atribuições do gestor federal, dos gestores estaduais, do gestor
do Distrito Federal e dos gestores municipais para a gestão do
trabalho no âmbito do SUAS; entre outros eixos. Além disso, a
gestão do trabalho do âmbito do SUAS deve também (NOB–RH/
SUAS, 2006):
» garantir a “desprecarização” dos vínculos dos trabalhadores
do SUAS e o fim da terceirização;
IV - Gestão do trabalho no » garantir a educação permanente dos trabalhadores, levando
em consideração a diversidade de temas oriundos da prática de
SUAS intervenção no SUAS, de acordo com as categorias profissionais
que hoje contribuem para o desenvolvimento da PNAS;
» realizar planejamento estratégico e plano de ação
coletivos, para a consolidação do trabalho interdisciplinar no
atendimento integral às famílias;
» garantir a gestão participativa com controle social;
» integrar e alimentar o sistema de informação.
Pode-se dizer que é irregular todo vínculo de trabalho em que
o trabalhador foi admitido à instituição pública sem concurso
ou seleção de natureza pública, sendo exceção o trabalhador
terceirizado admitido nas áreas não-finalísticas (como serviços
gerais, segurança etc.), por pertencer a uma empresa empregadora
contratada mediante as normas legais de licitação.
Nos anos de 1990, os papéis e funções dos entes federados
foram reformulados. Como conseqüência dessa transformação,

37 38
os estados e municípios, muitas vezes, tiveram de buscar capacidade de comunicação o compromisso social entre as equipes
alternativas de contratação dos novos trabalhadores, em função de trabalho, os gestores do sistema, instituições formadoras e o
do constrangimento legal da lei de Responsabilidade Fiscal e sem controle social. Estimula também a produção de saberes, a partir
orientações corretas e claras de como proceder a essas novas da valorização da experiência e da cultura do sujeito das práticas
exigências, sobretudo pelas características dos programas e pela de trabalho, numa dada situação e com postura e escuta ativas,
sua instabilidade administrativa e orçamentária. Assim sendo, os críticas e reflexivas.
municípios tornaram-se os principais responsáveis pela contratação Um dos principais desafios aos processos de educação
de trabalhadores e pelo gerenciamento dos serviços, utilizando, permanente consiste em articular a visão global do sistema
inclusive, parcerias com Organizações Não Governamentais com a análise dos problemas efetivos da prática em contextos
(ONGs) ou Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público específicos. Para isso, a NOB/RH–SUAS prevê que a educação
(OSCIPs) e contratos com cooperativas. permanente dos trabalhadores da área da Assistência Social deva
Com isso, surgiram problemas associados à precarização dos ser promovida com a finalidade de se produzirem e difundirem
vínculos de trabalho. O trabalho precário é um obstáculo para o conhecimentos que devem ser direcionados ao desenvolvimento
desenvolvimento das políticas públicas, compromete a relação de habilidades e capacidades técnicas e gerenciais, ao efetivo
dos trabalhadores com o sistema e prejudica a qualidade e a exercício do controle social e ao empoderamento dos usuários para
continuidade de serviços essenciais. Diante dessa situação, é o aprimoramento da política pública.
importante implantar e concretizar uma política de valorização Os trabalhadores sociais, organizados em equipes, devem,
do trabalhador. Frente ao desafio do trabalho para a Assistência sistematicamente, desenvolver atividades de reflexão sobre
Social, é importante identificar quem é o trabalhador que atua na as práticas em grupos e fortalecer os laços sociais. A troca de
Assistência Social e onde ele se encontra. experiências e a interlocução entre pares possibilitam promover
As unidades dos CRAS sistematizam o trabalho da Assistência o entendimento, buscar alternativas e soluções, acompanhar
Social e constituem a porta de entrada e de controle da rede o trabalho desenvolvido pelos colegas e discutir obstáculos
socioassistencial. Outras entidades governamentais e não enfrentados, uma vez que não se encontram respostas fechadas
governamentais também fazem parte na execução dos serviços, sobre a condução da prática. É na discussão e reflexão sobre o papel
programas e projetos envolvendo outros trabalhadores da Assistência profissional acumulado no cotidiano que passa a ser observado um
Social. É necessário garantia mínima dos direitos desses trabalhadores rico espaço de aprendizado para se compreenderem os motivos,
e isto está relacionado ao financiamento da política do SUAS. fundamentarem as intervenções, investigarem as informações. É
A proposta de educação permanente, que vem sendo de fundamental importância realizar o registro e intercâmbio das
implantada no Brasil desde 2003, na área da saúde, e que agora experiências, para o fortalecimento da inserção profissional por
está sendo implantada na área da Assistência Social, destaca a meio da qualidade dos serviços oferecidos.
importância do potencial educativo no processo de trabalho para
a sua transformação. Busca a melhoria da qualidade do cuidado, a

39 40
Considerações finais

Sabemos que as mudanças necessitam de ferramentas. Neste


nosso debate e reflexão coletiva, sugerimos pensar através da
lente do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, proposto
para a sociedade em 2004, e, por meio do desafio de implantá-lo,
(re)visitar nossas práticas profissionais, investir no aprofundamento
das muitas questões implicadas com esta prática, na perspectiva
do estabelecimento e/ou afirmação do necessário compromisso
social que, enquanto profissionais, temos que estabelecer, para que
as leis saiam do papel, para que ações de cuidado constituam-se,
para que, definitivamente, também nós, psicólogos e psicólogas,
superemos a distância estabelecida pela profissão para com a
responsabilidade de agir propositivamente na constituição de uma
Considerações finais sociedade mais solidária.

41 42
Referências

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à


Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Orientações
técnicas para o Centro de Referência de Assistência
Social. Versão Preliminar. Brasília: MDS/SNAS, 2006a.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Norma
Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS.
Brasília: MDS/SNAS, 2006b.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Centro de
Referência de Assistência Social. Disponível em <http:
Referências //www.mds.gov.br/programas/rede-suas/protecao-social-
basica/paif>.
Acesso em 04/03/2007.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Banco Social de
Serviços. Relatório Final. Brasília: CFP, 2005.
LANE, S. T. M.; CODO, W. Psicologia social: o homem em
movimento. São Paulo: Brasiliense, 2001.
LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL (LOAS), Lei nº
8.742, de 7 de dezembro de 1993, publicada no Diário Oficial
da União (DOU) de 8 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a
organização da Assistência Social e dá outras providências.
MARTINEZ, A. M. Psicologia e compromisso social: desafios para
a formação do psicólogo. In: BOCK, A. M. B. (org.). Psicologia
e compromisso social. São Paulo: Cortez, 2003.

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MELMAN, J. Família e Doença Mental: repensando a relação
entre profissionais de saúde e familiares. São Paulo:
Escrituras, 2002.
BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Sistema
Único de Assistência Social – SUAS. Norma Operacional
Básica (NOB/SUAS). Construindo as bases para a
implantação do Sistema Único de Assistência Social. Brasília,
jul. de 2005.
POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (PNAS),
aprovada pelo Conselho Nacional de Assistência Social por
intermédio da Resolução nº 145, de 15 de outubro de 2004,
e publicada no Diário Oficial da União – DOU do dia 28 de
outubro de 2004.

45 46
Sugestões de leitura

AFONSO, Lúcia. Exclusão Social e Fragilização da Identidade


em Famílias Pobres. Trabalho apresentado no Seminário
Família e Comunidade: Justiça Social, promovido pelo curso
de Psicologia, Unicentro Newton Paiva e AMITEF, Belo
Horizonte, 2000.
AFONSO, Lúcia. Observação sobre a orientação metodológica
para visitas domiciliares, entrevistas, trabalho com
famílias, grupos e comunidade. Relatório preliminar de
Consultoria a SMAS/PBH, 2004.
ALMEIDA, A. M. O.; SANTOS, M. F. S.; DINIZ, G. R. S.; TRINDADE,
Z. A. (orgs.). Violência, exclusão social e desenvolvimento
Sugestões de leitura humano. Estudos em representações sociais. Brasília: EdUnB,
2006.
BOCK, Ana Mercês Bahia. A Psicologia a caminho do novo
século: identidade profissional e compromisso social. Estudos
de Psicologia, 1999, 4(2), 315-319.
CAMPOS, Regina Helena de Freitas [et. al.] (org.). Psicologia
social comunitária: da solidariedade à autonomia. Petrópolis:
Vozes, 2003.
CECCONELLO, Alessandra Marques; KOLLER, Sílvia Helena.
Competência social e empatia: um estudo sobre resiliência
com crianças em situação de pobreza. Estud. psicol. (Natal),
Natal, v. 5, n. 1, 2000.
FRANCO, Rotelli et al. Desinstitucionalização. São Paulo:
Hucitec, 1990.

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FREIRE, P. Educação e Mudança. São Paulo: Paz e Terra, 2002. NOVARA, Enrico. Promover os talentos para reduzir a probreza.
Estud. av., maio/ago. 2003, vol.17, n.48, p.101-123.
FURTADO, Odair. Psicologia e compromisso social – base
epistemológica de uma Psicologia crítica. PSI – Rev. Psicol. OSZALAK, Oscar; O’DONNELL, Guillermo. Estado y políticas
Soc. Instit., Londrina, v. 2, n. 2, p. 217-229, dez. 2000. estatales en América Latina: hacia una estrategia de
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GOMES, Mônica Araújo PEREIRA, Maria Lúcia Duarte. Família em
situação de vulnerabilidade social: uma questão de políticas RIBEIRO, Marlene. Exclusão e educação social: conceitos em
públicas. Ciênc. saúde coletiva, abr./jun. 2005, vol.10, n.2, superfície e fundo. Educ. Soc., jan./abr. 2006, vol.27, n.94,
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GUARESCHI, Neuza; COMUNELLO, Luciele Nardi; NARDINI, SAWAIA, B. (org.). As Artimanhas da Exclusão: análise
Milena; HOENISCH, Júlio César. Problematizando as práticas psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis: Vozes,
psicológicas no modo de entender a violência. In: Strey, 2002.
Marlene N.; Azambuja, Mariana P. Ruwer; Jaeger, Fernanda
Pires (orgs.). Violência, gênero e políticas públicas. Porto SAWAIA, B.; NAMURA, M. R. (org.). Dialética exclusão/
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perspectiva da Psicologia Social crítica. São Paulo: Cabral
LANCETTI, A. Assistência Social e Cidadania: invenções, Editora Universitária, 2002.
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Hucitec, 1996. SILVA, Ionara Ferreira da. O processo decisório nas instâncias
colegiadas do SUS no estado do Rio de Janeiro.
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LAVINAS, Lena; NICOLL, Marcelo. Atividade e vulnerabilidade: ses.cict.fiocruz.br/transf.php?script=thes_chap&id=000087
quais os arranjos familiares em risco? Dados, 2006, vol.49, 05&lng=pt&nr m=iso.
n.1, p.67-97.
IPEA. (2007). Políticas Sociais - acompanhamento e análise.
LOPES, Andréia de Araripe. O compromisso social dos Edição Especial 13. Brasília. Disponível em
psicólogos brasileiros evidenciado nas publicações da <www.ipea.gov.br>.
revista Psicologia Ciência e Profissão UNIVERSIDADE
FEDERAL DE SANTA CATARINA. Centro de Filosofia
e Ciências Humanas. Programa de Pós-graduação em
Psicologia, 2005.

49 50
ANEXOS

Processo de Consulta Pública pelo CREPOP

A elaboração desse documento teve início com um Grupo de


Trabalho do CFP que, posteriormente, recebeu contribuições
dos psicólogos e psicólogas que atuam na área da Assistência
Social.

O processo para participação ocorreu por meio de consulta


pública, lançada no Diário Oficial da União nº 96, Edital CFP nº
01 de 18 de maio de 2007, disponibilizado no site do CREPOP
<http://crepop.pol.org.br> no período de 23 de maio de
2007 a 01 de julho de 2007. A divulgação foi realizada pelo
ANEXOS Conselho Federal de Psicologia, pelos Conselhos Regionais e
pela Secretaria Nacional de Assistência Social do Ministério de
Desenvolvimento Social/MDS.

No período de 28/05/2007 a 01/07/2007, 296 psicólogos


cadastraram-se para a Consulta Pública, e, destes, 280
visualizaram o documento preliminar. Psicólogos das diversas
regiões do Brasil participaram desta etapa como pode ser visto
no quadro a seguir:

51 52
Acesso ao documento de diretrizes CRP A maioria dos psicólogos que enviou contribuições para o
28/05 3 1,1% CRP 6 62 20,9% documento trabalha em organizações públicas (89%). ONGs e
29/05 5 1,8% CRP 4 41 13,9% organizações privadas somam 10% e, aproximadamente, 1% atuam
30/05 12 4,3% CRP 11 39 13,2%
em outros tipos de organização. Mais da metade (68%) trabalha
31/05 13 4,6% CRP 3 25 8,4%
no atendimento psicológico; 27%, em assessoria técnica; 5%, com
01/06 15 5,4% CRP 5 21 7,1%
02/06 9 3,2% CRP 16 18 6,1%
ensino e pesquisa.
03/06 6 2,1% CRP 8 16 5,4%
04/06 9 3,2% CRP 12 14 4,7% Tipo de organização
05/06 5 1,8% CRP 1 13 4,4%
Organização pública 262 88,5% 4,1% 1,4%
6,1%
06/06 8 2,9% CRP 13 12 4,1%
07/06 2 0,7% CRP 7 12 4,1% ONG, filantrópico 18 6,1%

08/06 11 3,9% CRP 2 7 2,4% Organização privada 12 4,1%


09/06 8 2,9% CRP 9 6 2,0%
Outra 4 1,4%
10/06 4 1,4% CRP 15 5 1,7% 88,5%
11/06 6 2,1% CRP 14 3 1,0% Total 296 100,0%

12/06 8 2,9% CRP 10 2 0,7%


13/06 4 1,4% Total 296 100,0%
14/06 14 5,0%
15/06 10 3,6% Caracterização do trabalho
16/06 2 0,7%
Atendimento psicológico 200 67,6% 5,1%
17/06 2 0,7%
27,4%
18/06 12 4,3% Assessoria técnica 81 27,4%

19/06 9 3,2% Ensino e pesquisa 15 5,1%


20/06 5 1,8%
Total 296 100,0% 67,6%
21/06 7 2,5%
22/06 10 3,6%
23/06 7 2,5%
24/06 6 2,1%
Dos 296 psicólogos, 11% (34 cadastrados) enviaram
25/06 7 2,5% contribuições para o documento de diretrizes.
26/06 11 3,9% Os quadros a seguir apresentam a participação dos psicólogos
27/06 4 1,4% no acesso ao documento e as datas da entrega de suas
28/06 6 2,1%
contribuições (upload). A leitura foi realizada em todo o período da
29/06 16 5,7%
Consulta Pública, ao contrário da entrega das contribuições, que
30/06 5 1,8%
01/07 19 6,8%
se concentraram nos três últimos dias, representando 85%.
Total 280 100,0%

53 54
Acesso ao documento de Diretrizes Upload A maioria dos psicólogos que enviaram contribuições para o
01/06 2 5,9% 04/06 1 2,9% documento trabalham em organizações públicas (85%). Não houve
02/06 1 2,9% 17/06 1 2,9% contribuição de psicólogos que atuam em organizações privadas ou
04/06 1 2,9% 24/06 1 2,9%
de quem a natureza de sua atuação seja ensino e pesquisa.
09/06 1 2,9% 26/06 1 2,9%

14/06 4 11,8% 27/06 1 2,9%


Tipo de organização
15/06 1 2,9% 29/06 3 8,8%

16/06 1 2,9% 30/06 7 20,6% Organização pública 29 85,3% 14,7%


17/06 1 2,9% 01/07 19 55,9%
ONG, filantrópico 5 14,7%
21/06 3 8,8% Total 34 100,0%
23/06 2 5,9% Organização privada 0 0,0%

24/06 2 5,9% Outra 0 0,0%


25/06 2 5,9% 85,3%
Total 34 100,0%
26/06 1 2,9%
28/06 1 2,9%
29/06 2 5,9%
30/06 2 5,9%
Caracterização do trabalho
01/07 7 20,6%
Total 34 100,0% Atendimento psicológico 19 55,9%
44,1%
Assessoria técnica 15 44,1%

Os CRPs que tiveram maior participação foram, respectivamente, Ensino e pesquisa 0 0,0%
55,9%
CRP 11, CRP 06 e CRP 12. Não houve participação dos psicólogos Total 34 100,0%
registrados nos CRP 02, CRP 07, CRP 08, CRP 09, CRP 10, CRP
14, CRP 15 e CRP 16. O local de trabalho mais citado foi o CRAS (43%) seguido
de prefeituras (31%) e ONGs (11%). CAPS e Ministério do
CRP
Desenvolvimento Social foram citados uma vez.
CRP 11 15 44,1%
CRP 6 8 23,5%

CRP 12 3 8,8%
CRP 4 2 5,9%

CRP 3 2 5,9%

CRP 1 2 5,9%

CRP 5 1 2,9%
CRP 13 1 2,9%

Total 34 100,0%

55 56
Onde trabalha Lista dos psicólogos que contribuíram para a construção
CRAS 15 42,9% deste documento:
Prefeitura 11 31,4%

ONG 4 11,4%
Fundação 3 8,6%
Ada Cristina Guimarães de Sousa Gustavo Henrique Carretero
CAPS 1 2,9%
Adna Fabíola Guimarães Teixeira Jackline Modesto Cunha
Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome 1 2,9% Alessandra Ávila Medeiros João Paulo Pereira Barros
Total 35 100,0% Alexandre José de Souza Peres Joice Pacheco
Aline Rosa Pontes Milet Freitas Larissa de Brito Feitosa
Bárbara Barbosa Nepomuceno Leandro Estevam Sobreira
Como visto anteriormente, 34 psicólogos enviaram documentos.
Carlos Eduardo Esmeraldo Filho Luana Rêgo Colares de Paula
Mas, no CRP 11, a maioria dos psicólogos formou um grupo (13
Chryscea Oliveira Lucila Moraes Cardoso
pessoas) criando um documento único. Somando a contribuição do
Cláudia Garcia Parente Lucilene Ortiz Petin Medeiros
grupo com as outras individuais, totalizaram 22 contribuições. Com
Darlane Silva Maria da Graça Zanuzzo
relação às contribuições, os psicólogos do CRP 06 somaram 36%;
Emanuel Meireles Vieira Milene da Silva Mocheuti
seguidos pelos CRP 11 e CRP 12, ambos com 14%; e, em terceiro
Emilio Brkanitch Filho Ralden de Souza
os CRP 04, CRP 03 e CRP 01, com 9%. Houve uma contribuição
Érica Laís Tanaka Rogério Alves Leoni
(4,5%) dos CRP 05 e CRP 13.
Fabiano Chagas Rabêlo Rosimeire Melo dos Santos
Fábio Porto de Oliveira Rozane de Freitas Alencar
CRP
CRP 6 8 36,4%
Flora Lima Chaves Vívian Ulisses Barbosa
CRP 11 3 13,6%
Geny Beckert Wilma de Fátima César Bezerra
CRP 12 3 13,6%

CRP 4 2 9,1%

CRP 3 2 9,1%

CRP 1 2 9,1%

CRP 5 1 4,5%

CRP 13 1 4,5%

Total 22 100,0%

57 58
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA

CONSELHOS REGIONAIS DE PSICOLOGIA

CENTRO DE REFERÊNCIA TÉCNICA EM


PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS – CREPOP

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE


PSICÓLOGAS(OS) NA ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE

COMISSÃO DE ELABORAÇÃO DO DOCUMENTO

Conselheira Federal Responsável


Paulo José Barroso de Aguiar Pessoa

Especialistas
Ana Maria Pereira Lopes
Cristal Oliveira Moniz de Aragão
João Leite Ferreira Neto
Luis Vagner Dias Caldeira

1ª Edição
Brasília, 2019
© 2019 Conselho Federal de Psicologia Informações da 1ª Edição
É permitida a reprodução desta publicação, desde que sem alterações e citada a
fonte. Disponível também em: www.cfp.org.br.
Coordenação Geral/ CFP
Miraci Mendes — Coordenadora Geral
Projeto Gráfico: Agência Movimento
Diagramação: Agência Movimento
Gerência de Comunicação
Revisão e normalização: MC&G Design Editorial
Luana Spinillo Poroca — Gerente

Coordenação Nacional do CREPOP/CFP


Clarissa Paranhos Guedes — Conselheira CFP
Mateus de Castro Castelluccio — Supervisor
Larissa Correia Nunes Dantas — Assessora
Referências bibliográficas conforme ABNT NBR João Vinícius Marques — Assessor
Direitos para esta edição — Conselho Federal de Psicologia: SAF/SUL Quadra 2, Joyce Juliana Dias de Avelar — Estagiária
Bloco B, Edifício Via Office, térreo, sala 104, 70070-600, Brasília/DF
(61) 2109-0107 E-mail: ascom@cfp.org.br/www.cfp.org.br
Impresso no Brasil — Novembro de 2019 Integrantes das Unidades Locais do Crepop nos CRPs
Conselheiras(os)
Leovane Gregório (CRP01); Vinícius Suares de Oliveira (CRP02); Gloria Maria Macha-
do Pimentel, Mailson Santos Pereira e Monaliza Cirino de Oliveira (CRP03); Cláudia
Natividade e Flávia Gotelip Correa Veloso (CRP04); Mônica Sampaio (CRP05); Beatriz
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Borges Brambilla (CRP06); Manuele Monttanari Araldi (CRP07); Maria Sezineide Ca-
valcante de Melo (CRP08); Mayk Diego Gomes da Glória Machado (CRP09); Valber
Luiz Farias Sampaio (CRP10); Emilie Fonteles Boesmans (CRP11); Marivete Jesser
C755 Conselho Federal de Psicologia (Brasil). (CRP12); Carla de Sant’Ana Brandão Costa (colaboradora CRP13); Beatriz Flandoli
Referências técnicas para atuação de psicólogas(os)
(CRP14); Laeuza da Silva Farias (CRP15); Juliana Brunoro de Freitas (CRP16); Ada-
na atenção básica à saúde / Conselho Federal de
Psicologia, Conselhos Regionais de Psicologia e Centro la Nayana de Sousa Mata (CRP17); Karina Franco Moshage (CRP18); Bruna Oliveira
de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Santana e Claudson Rodrigues de Oliveira (CRP19); Clorijava de Oliveira Santiago Jú-
Públicas. —— 2. ed. —— Brasília : CFP, 2019. nior e Gibson Alves dos Santos (CRP20); José Augusto Santos Ribeiro (CRP21); Raissa
87 p. ; 21 cm. Bezerra Palhano (CRP22); Ricardo Furtado de Oliveira (CRP23).
Inclui bibliografia. Técnicas(os)
ISBN 978-65-5069-004-5
Cristina Trarbach (CRP01); Maria de Fátima dos Santos Neves (CRP02); Natani
1. Psicologia - Manuais, guias, etc. 2. Psicologia Evlin Lima Dias (CRP03); Pablo Mateus dos Santos Jacinto (CRP03); Leiliana Sousa
aplicada. 3. Saúde pública - Brasil. 4. Pessoal da área (CRP04); Roberta Brasilino Barbosa (CRP05) Edson Ferreira Dias Júnior (CRP06); Ra-
de saúde pública. I. Conselhos Regionais de Psicologia. faela Demétrio Hilgert (CRP07) Regina Magna Fonseca (CRP09); Letícia Maria Soares
II. Centro de Referência Técnica em Psicologia e Palheta (CRP10); Mayrá Lobato Pequeno (CRP11); Iramaia Ranai Gallerani (CRP12);
Políticas Públicas (CREPOP). III. Título. Katiuska Araújo Duarte (CRP13); Mônica Rodrigues (CRP14); Liércio Pinheiro de Araú-
CDD 158 jo (CRP15); Mariana Moulin Brunow Freitas (CRP16); Zilanda Pereira Lima (CRP17);
Érika Aparecida de Oliveira (CRP18); Lidiane de Melo Drapala (CRP19); John Wedson
dos Santos Silva (CRP21); Lívia Maria Guedes de Lima Andrade (CRP22); Stéfhane
Bibliotecária Priscila Pena Machado CRB-7/6971 Santana Da Silva (CRP23).
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA
XVII Plenário SUMÁRIO
Gestão 2017-2019

Diretoria
Rogério Giannini — Presidente
Ana Sandra Fernandes Arcoverde Nóbrega — Vice-presidente
APRESENTAÇÃO ...................................................................................06
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho — Secretário
Norma Celiane Cosmo — Tesoureira
INTRODUÇÃO .......................................................................................08
Conselheiras(os) Efetivas(os)
Iolete Ribeiro da Silva — Secretária Região Norte EIXO 1
Clarissa Paranhos Guedes — Secretária Região Nordeste
Marisa Helena Alves — Secretária Região Centro Oeste DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA DA RELAÇÃO ENTRE PSICOLOGIA E ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE .........16
Júnia Maria Campos Lara — Secretária Região Sudeste
Rosane Lorena Granzotto — Secretária Região Sul EIXO 2
Fabian Javier Marin Rueda — Conselheiro 1 A PSICOLOGIA E A ATENÇÃO BÁSICA NO BRASIL ..........................................................................................33
Célia Zenaide da Silva — Conselheira 2

Conselheiras(os) Suplentes EIXO 3


Maria Márcia Badaró Bandeira — Suplente ATUAÇÃO DA(O) PSICÓLOGA(O) NA ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE ....... ......................................................53
Daniela Sacramento Zanini — Suplente
Paulo Roberto Martins Maldos — Suplente EIXO 4
Fabiana Itaci Corrêa de Araujo — Suplente
Jureuda Duarte Guerra — Suplente Região Norte GESTÃO DO TRABALHO DAS(OS) PSICÓLOGAS(OS) NO SUS .................................................................... 63
Andréa Esmeraldo Câmara — Suplente Região Nordeste
Regina Lúcia Sucupira Pedroza — Suplente Região Centro Oeste CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................74
Sandra Elena Sposito — Suplente Região Sudeste
Cleia Oliveira Cunha — Suplente Região Sul (in memoriam)
REFERÊNCIAS ....................................................................................... 77
Elizabeth de Lacerda Barbosa — Conselheira Suplente 1
Paulo José Barroso de Aguiar Pessoa — Conselheiro Suplente 2
diálogo tem se pautado por uma política de reconhecimento mútuo
APRESENTAÇÃO entre os profissionais e pela construção coletiva de uma plataforma
profissional que seja também ética e política.
O XVII Plenário do CFP agradece a todas e a todos os envolvi-
dos na elaboração deste documento, em especial aos membros da
comissão ad hoc responsáveis pela redação. Desejamos que esse
O Conselho Federal de Psicologia (CFP) apresenta à catego- documento seja um importante instrumento de orientação e qua-
ria e à sociedade o documento “Referências Técnicas para atua- lificação da prática profissional e de reafirmação do compromisso
ção de psicólogas(os) na Atenção Básica à Saúde”, produzido no ético-político da Psicologia. Que possa auxiliar profissionais e estu-
âmbito do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas dantes na aproximação com o campo de atuação na Atenção Bá-
Públicas (CREPOP). sica à Saúde, pensando esta atuação em uma perspectiva crítica,
Considerando a Atenção Básica como o conjunto de ações demarcando, assim, a atuação da Psicologia em prol da sociedade,
em saúde, tanto no âmbito individual como no coletivo, que visa a na perspectiva da Saúde como Direitos Humano fundamental.
desenvolver uma atenção integral que impacte positivamente nas
necessidades de saúde das coletividades e que busca, assim, mini- XVII Plenário
mizar as condições de vulnerabilidade da população, delineia, por-
Conselho Federal de Psicologia
tanto, o papel imprescindível da(o) psicóloga(o) nesses espaços de
atuação, como afirma um dos princípios fundamentais do Código
de Ética do Psicólogo: II. O psicólogo trabalhará visando a promover
a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e
contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Nessa perspectiva esta referência se apresenta como um im-
portante instrumento técnico e político para a demarcação do espa-
ço de atuação da Psicologia, demonstrando a relevância das con-
tribuições das práticas psicológicas nos serviços específicos. Além
disso, ancora o fazer profissional com os princípios do SUS, ressal-
tando que atuar nestes espaços exige uma postura em defesa das
políticas públicas como instrumentos de garantia de direitos. Assim,
atuar na Atenção Básica à Saúde convoca o profissional a reafirmar
na sua prática a máxima garantida na Constituição Federal de 1988
de que “A saúde é direito de todos e dever do Estado”.
As Referências Técnicas refletem o fortalecimento do diálo-
go que o Sistema Conselhos de Psicologia vem construindo com a
categoria, no sentido de se legitimar como instância reguladora do
exercício profissional. Por meios cada vez mais democráticos, esse

Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os)


6 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 7
o fazer psicológico. Essa dimensão política implica que é preciso
INTRODUÇÃO pensar não somente que todas as nossas ações são políticas, como
também que estas possuem diferentes alcances. A capacidade de
capilarização de nossas ações depende do grau com que possamos
trabalhar, a partir da realidade brasileira, em colaboração com ou-
tras pessoas e com usuários do sistema de Saúde, abandonando
ações baseadas em assistencialismo e filantropia, que ampliam os
abismos entre profissionais e atendidos, e ignoram saberes impor-
Brasil chegou a vez
tantes que circulam nesses espaços. Essa capacidade de infiltração
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês1
também depende do lugar onde a ação se desenvolve: falamos para
os nossos, ou buscamos construir com a diferença?
A construção da Psicologia brasileira tem se deparado com A Psicologia foi e continua sendo afinada com a prática do pro-
duas questões estruturantes: que Psicologia fazemos? Para quem fissional liberal, de clínica privada como traz a discussão de Yama-
fazemos? Colocar em perspectiva o saber de um ponto de vista po- moto (2007). Isso se expressa também numa pesquisa encomen-
lítico significa entender que as nossas escolhas têm consequências dada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) ao Departamento
para o exercício não apenas da prática psicológica cotidiana indi- Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE),
vidualmente, mas um impacto sobre como o conjunto de psicólo- realizada a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de
gas(os) está contribuindo para promover processos de transforma- Domicílios (PNAD) do IBGE que demonstra que 42 % das(os) psicó-
ção que apontem para menos sofrimento e menos desigualdade em logas(os) trabalham de forma autônoma (DIEESE, 2016). Sabemos
nosso país. Compreender nosso papel em diminuir desigualdades que as(os) psicólogas(os) brasileiras têm trabalhado para mudar
e compor na construção da dignidade e cidadania é uma reflexão esse quadro, trazendo à baila a discussão do campo da Psicologia
importante na América Latina, como apresenta o trabalho de Mar- na sua relação com outros espaços de conhecimento. A dificuldade
tín-Baró (1997). em compor equipes multiprofissionais e a construção de respostas
Esses questionamentos nos colocam no panorama da cons- individualizantes para problemas que possuem grandes raízes so-
trução da Psicologia no Brasil, que durante muito tempo copiou e ciais são alguns dos sintomas que comprovam isso. Vamos discutir
aplicou teorias produzidas a partir de outros contextos, salientando neste documento de Referência Técnica tentativas de promover ra-
o lugar de colonizados que temos diante de outros países. A dis- chaduras nesse esquema.
cussão sobre o compromisso social da Psicologia é uma questão Nesse sentido, a relação entre a Psicologia e a saúde no âm-
importante para a maneira como a América Latina tem pensado bito da Atenção Básica (AB) é profundamente nova; é uma área em
formação, seja por cronologia — a portaria que define a atuação do
Núcleo de Saúde da Família (NASF) foi publicada em 20082 — seja por
1 Trecho do samba enredo da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira assentar um modo efetivamente diferente de entender o lugar da(o)
do Rio de Janeiro de 2019. A escola teve como meta discutir as histórias apaga- psicóloga(o) e sua relação com o trabalho. Sobre esse assunto, Böing
das da memória oficial e hegemônica ao retratar o passado e o presente no Brasil,
tendo sido vastamente aceita pelo público, ultrapassando o nicho dos amantes de
sambas enredos, e se mostrando um hino importante na luta contratempos nefas- 2 Atualmente, a última versão da Política Nacional de Atenção Básica, publicada
tos e de retrocessos vividos nesse tempo. Com o enredo “História para ninar gente em 2017, muda o nome do NASF, que passa a se chamar Núcleo Ampliado de Saú-
grande”, a escola de samba também foi vencedora do carnaval carioca nesse ano. de da Família e Atenção Básica — NASF AB.

Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os)


8 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 9
e Crepaldi (2010) apresentam uma análise dos documentos de legis- existe também como resultado da luta de usuárias(os) e trabalha-
lação federal sobre a AB e observam que a(o) psicóloga(o) é citada doras(es) de diversas categorias, assim como da Psicologia, embora
em 14 dos 964 documentos. As autoras concluem sobre a importância em cada uma das políticas o desenho com outras profissões tenha
dessa(e) profissional para o sistema, apontando para a necessidade sido múltiplo. O NASF AB3 e a proposta do matriciamento — que
de uma presença mais consolidada nos níveis primário, secundário e não é exclusivo da AB — foi um deles. Assim, podemos afirmar que
terciário. Dimenstein e Macedo (2012) mostram dados significativos se trata de um campo novo de atuação e construção da Psicologia,
da escalada de presença das(os) psicólogas(os) no Sistema Único de mas que possui raízes em práticas mais antigas e se associou a dis-
Saúde (SUS), que eram 723 em equipes de saúde em 1976; passaram cussões mais amplas a fim de definir um escopo de trabalho.
para 3.671 em 1984 e em 2012 chegou a mais de 40.000. Agora, a per- É importante ressaltar que essas mudanças operadas na Psi-
gunta que não cala é: o que estamos fazendo? Como estamos traba- cologia respondiam às necessidades de profissionais da saúde e
lhando nesse sistema? Vamos buscar responder essa pergunta e bus- de usuários, esses primeiros majoritariamente brancas e de classe
car construir diretrizes para modos de trabalho ao longo deste texto. média que estavam engajados na luta pela construção de um sis-
A relação que o campo da Psicologia estabelece com a saúde tema único de saúde, mas também em busca de novos postos de
coletiva empurra nosso saber a construir um cuidado integral em trabalho, devido ao inchaço já presente desde os anos 1980 de pro-
saúde. A organização das ações desde a Promoção de Saúde até as fissionais dedicados à prática clínica privada (YAMAMOTO, 2007).
intervenções a nível terciário em espaços muito especializados nos A partir da aplicação de ações afirmativas como resultado também
leva a refletir sobre que formas de fazer Psicologia estão afinadas a das lutas do movimento negro, esse cenário começou a sofrer trans-
essas práticas. A reflexão feita por Dimenstein (1998) sobre o traba- formações que puderam levar a construção de uma nova forma de
lho da Psicologia no campo da saúde aponta como sua construção construir saberes da Psicologia. A aproximação das(os) profissionais
reflete a necessidade de reserva de espaços de trabalho e enfrenta que se formam hoje com as pessoas atendidas no SUS no que tange
uma transferência de práticas clínicas individuais sem se importar a espaços de circulação e de vida é muito maior, e traz potencial-
com os processos de trabalho e a função dos serviços e políticas mente a possibilidade de construção de práticas de cuidado mais
de saúde. Ela ressalta, ainda, como a formação está voltada para sintonizadas à essas necessidades. Sobre essa questão, é possível
as necessidades e problemas vividos por alunos e professores nas consultar o documento de referência técnica produzido também
universidades, pessoas em geral brancas e de classe média que não pelo CREPOP/CFP sobre Relações raciais (CFP, 2017).
consideram que a grande massa dos grupos atendidos no sistema Ainda na esteira da Reforma Psiquiátrica, a questão do sofri-
público de saúde escapa a esse perfil. mento mental grave e persistente dirigia os encaminhamentos. A cria-
Nesse sentido, é através da Reforma Psiquiátrica, que ganhou ção da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) e de seus equipamen-
corpo no Brasil a partir dos anos 1970, que ocorrem as grandes trans- tos, como o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) e SRT (Serviços
formações das práticas em Psicologia, pois colocou uma nova agen- Residenciais Terapêuticos) são uma expressão disso. Alguns autores
da de cuidado em saúde mental, buscando construir saídas para as
pessoas institucionalizadas nos manicômios e com isso apostar em
serviços substitutivos que propunham uma lógica mais integrada e 3 Importante observar que a denominação do núcleo onde as(os) psicólogas(os)
interprofissional de cuidado (DIMENSTEIN; MACEDO, 2012). Essa ganham lugar na APS tem mudado. Na PNAB de 2017, que traz a possibilidade de
alteração do NASF, antes Núcleo de Apoio à Saúde da Familia e muda o nome para
relação com o campo da saúde coletiva e as políticas públicas co- NASF AB (Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica). Uma nova mu-
locaram questões para os lugares que psicólogas(os) poderiam ocu- dança nas formas de financiamento já está sendo discutida em 2019, trazendo o
par na rede de saúde. A formulação das diversas políticas de saúde grave risco de acabar com a existência desse núcleo na AB.

Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os)


10 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 11
tentam fazer distinções de tratamento de transtornos mentais leves Importa afirmar ainda que muitas(os) psicólogas(os) inse-
e moderados pela AB e graves e persistentes pelo CAPS, mas essa ridas(os) na AB no Brasil estão em postos de trabalho sem o for-
divisão não encontra um respaldo evidente nas atividades práticas, mato da Estratégia de Saúde da Família (ESF). As regras e fluxos
pois a AB e o CAPS podem funcionar como porta de entrada para o de trabalho são diferentes e outras questões podem surgir nesse
sistema de saúde, embora a coordenação do cuidado deva ser da processo, mas consideramos que a lógica de funcionamento do
AB, como estabelecem seus princípios. As práticas mostram que o matriciamento segue como um parâmetro importante para consi-
cuidado centrado nas necessidades e possibilidades das pessoas e derar as estratégias de atuação. Assim, a princípio, todo NASF AB
dos serviços prevalecem nesse processo. Portanto, experiências que faz matriciamento, mas nem todo matriciamento é feito pelo NASF.
envolvem matriciamento em saúde mental, ou seja, um trabalho de Uma articulação importante nesse campo pode ser via CAPS com
apoio que visa a integrar a atuação da(o) profissional psi de acordo as unidades básicas de saúde, por exemplo, já que ambos podem
com demandas das necessidades de saúde emergentes na AB, — funcionar como porta de entrada, como já dito anteriormente. Na
que não é somente função do NASF — possuem raízes mais antigas, AB, o conceito de complexidade se transforma, na medida em que
que contribuíram para chegar a essa maneira de funcionamento. Este muitas vulnerabilidades estão em jogo, e o processo de construção
assunto será mais amplamente discutido mais adiante, no eixo 3. de uma atividade, seja terapêutica ou não, precisa sempre ser ne-
Trabalhos que discutem a questão da integração da saúde men- gociado. Neste nível de cuidado, as necessidades de saúde utilizam
tal com a AB datam desde a década de 1990, mas é a partir da virada tecnologias leves para o cuidado, lançando mão de tratamentos que
do século que estes trabalhos se intensificam, como o de Lancetti envolvem questões mais prevalentes e comuns (MERHY, 2002). Mes-
(2000), que discute o programa experimental QUALIS de cuidado em mo sendo menos graves na perspectiva do uso de equipamentos
saúde mental com a participação de Agentes Comunitários de Saúde tecnológicos, são profundamente complexas, na medida em que
(ACS) em Santos. Botti e Andrade (2008) apresentam experiências si- envolvem pessoas, instituições, problemas sociais de ordem varia-
milares no interior de Minas Gerais; Pinto et al. (2012), Casé (2000), e da e interconectados a problemas de saúde que exigem atenção de
Moraes e Tanaka (2012) trazem outras iniciativas desenvolvidas em uma rede maior do que a saúde. Isso demanda das(os) profissionais
Pernambuco e no Ceará, apresentando dificuldades e pontos positi- uma formação e preparo para lidar de forma criativa com essas si-
vos da integração dos serviços de saúde mental na AB. tuações que são muito mobilizadoras e desafiantes (KLEIN, 2015).
Os estudos citados acima trazem tanto a dificuldade de cons- Essa criatividade exigida para as(os) profissionais inseridos na
trução do trabalho em equipe, quanto questões relacionadas às pro- AB foge ao escopo do que tradicionalmente se aprende no curso
fissões, se debruçando em entender seu lugar nesse sistema. No de graduação. Possuímos poucas referências para lidar com essa
que tange à Psicologia, sublinha-se a importância de considerar que dificuldade. Esse documento de Referência Técnica tem como um
o trabalho no SUS não pode ser uma mera adaptação de práticas de seus objetivos chamar a compor a rede, entendendo a teoria e as
clínicas individuais à rotina desse sistema, mas exige uma grande práticas da Psicologia envolvidas nesse processo. Assim, visa a res-
rotação da maneira como se constrói esse processo de trabalho, o ponder a críticas expressivas sobre a forma como temos nos coloca-
modelo de atendimento aos sujeitos e a postura da Psicologia diante do nos serviços de saúde, marcada por análises que apontam que
de si — inserida numa equipe NASF AB — e das Equipes de Saúde o trabalho da Psicologia é voltado para concepções biologizantes e
da Família (EqSF) que matricia. Nesse sentido, buscamos lançar luz mecanizadas da vida, pautadas por diagnóstico e prescrições enges-
aos formatos de exercício da Psicologia, que na AB — e em outros sadas dos modos de existência, construídas a partir de uma atuação
espaços de práticas — são mais amplos do que as práticas psicote- individualizada e verticalizada. Isso tem resultado no oferecimento
rápicas ligadas a teorias e sistemas psicológicos. de práticas pouco variadas, relacionadas às queixas e preocupa-

Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os)


12 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 13
das somente com a remissão de sintomas (DIMENSTEIN; MACEDO, Psicologia (CRPs), responsáveis pela condução da coleta de dados
2012). É possível fazer muito mais do que isso e objetivamos com em todo o país. Os parâmetros da pesquisa, bem como o número
esse texto ser um convite à uma presença mais engajada às pessoas de participantes serão trazidos ao longo deste texto. Todavia, estes
e à proposta de cuidado do SUS, primando pela qualidade diagnós- dados denotam um determinado momento histórico do campo da
tica e o manejo clínico adequado, buscando assim organizar nossa Atenção Básica onde a Psicologia desenvolvia suas práticas. Esta co-
presença nesse sistema, olhando para as necessidades específicas missão fez um esforço de dialogar com esses dados e produções
dos sujeitos que, por vezes, demandam acertos que singularizam o mais atuais do referido campo, em uma tentativa de esboçar os pos-
olhar. Nesse sentido, a proposta da clínica ampliada será debatida síveis avanços e/ou retrocessos dessa política pública e suas impli-
como uma estratégia importante de atuação que busca contemplar cações na atuação da Psicologia.
tanto o macro como o micro nas equipes de saúde, considerando as Por fim, é importante ressaltar que a equipe que construiu
especificidades do território. esse trabalho começou a desenvolver suas atividades a partir de
Diante do exposto, este documento de Referência Técnica tem janeiro de 2019, tendo cerca de seis meses entre a construção do
como objetivo demarcar e defender o espaço da Atenção Básica à Saú- texto, consulta pública e reformulação para entregar a versão final.
de como lugar privilegiado e importante para a inserção de psicólo- O desafio de escrita a tantas mãos nos deixou um texto heterogê-
gas(os), que com suas práticas tem muito a oferecer para melhoria das neo, mostrando diferentes formas de construção da política e das
condições de saúde da população. Nesse sentido, para cumprir essa práticas, que traz também a marca da inserção acadêmica desses
ideia, trabalhamos com atendimentos e fazendo promoção de saúde membros. A consulta pública, em que se disponibilizou uma versão
mental e compondo na busca pelo reforço aos laços comunitários, do texto para receber contribuições, aconteceu em meados de 2019
compreendendo que isso também é cuidado em saúde mental. Desse e recebemos dezoito contribuições entre individuais e coletivas (re-
modo, o texto se desdobra em quatro eixos: 1. Dimensão ético-política da sultados de reuniões de avaliações feitas no âmbito dos CRPs), que
relação entre Psicologia e Atenção Básica à Saúde, onde é oferecido uma foram em sua maioria incorporadas à redação final.
reflexão ética e política dessa interface, analisando criticamente o lugar Este documento de Referência Técnica não se propõe a trazer
da Psicologia nesses espaços, delineando assim os compromissos as- normativas para a atuação, mas de fazer um documento que reflita
sumidos pela profissão; 2. Psicologia e a área em foco, que busca trazer sobre as principais questões enfrentadas no cotidiano, se alinhan-
as contribuições que a Psicologia como ciência e profissão oferecem do também às normativas. Afirmamos, ainda, que este é um dentre
para o fortalecimento da referida política pública e que subsidiam o outros documentos que precisam ser produzidos para discutir esse
fazer da Psicologia nesse espaço; 3. Atuação da Psicologia na Atenção tema fundamental num momento de tentativas de desmonte do sis-
Básica à Saúde, momento em que discute as práticas desenvolvidas pe- tema, como temos vivido nos últimos tempos. Esse cenário acaba
las(os) psicólogas(os) nos serviços específicos, sua atuação em Rede e sendo mais enfatizado também pela presença maciça das Organi-
em equipe multiprofissional; e por fim 4. Gestão do trabalho das(os) psi- zações Sociais de Saúde (OSS) que cunham pacotes de serviços a
cólogas(os) no SUS, com discussões acerca das condições de trabalho, serem oferecidos às prefeituras que dificilmente conseguem con-
organização dos processos de trabalho e limites e dificuldades encon- siderar adequadamente a qualidade do trabalho de psicólogas(os)
tradas pelas(os) profissionais na sua atuação. deixando de lado a construção coletiva de um sistema que respon-
Destacamos aqui que este documento de Referência Técnica da efetivamente às questões objetivas e subjetivas daqueles que nos
é também produto de uma pesquisa realizada em 2008 (CFP, 2008) procuram. Esses temas serão melhor abordados ao longo do texto.
pelo Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Pú- Esperamos que ele possa contribuir para a construção permanente
blicas (CREPOP) no âmbito de todos os Conselhos Regionais de da Psicologia como ciência e profissão.

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14 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 15
saúde, que se pode ter reflexão sobre as fissuras colocadas para
EIXO 1: DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA este campo e, de modo especial, colocadas para a AB. Desse modo,
a reflexão ética sobre a prática da(o) psicóloga(o) na AB, mais do
DA RELAÇÃO ENTRE PSICOLOGIA que envolver a ética profissional propriamente dita, precisa ser pre-

E ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE


cedida pelos problemas relativos ao processo de construção das
práticas de cuidado, os princípios que foram colocados para o Siste-
ma de Saúde e a consideração dos direitos do usuário.
Em passos largos na história, e sem intencionar localizações, há
para saúde diversas conceituações: a de bênção divina, quando saú-
de era destino conferido por Deus, sobretudo na Idade Média; capaci-
dade de trabalhar nas fábricas, quando saúde se referia à potência de
trabalho no ritmo da indústria emergente em etapas pré e pós modelo
Por uma ética das práticas de saúde, industrial de produção; e ausência de doenças, quando um acúmulo
de conhecimentos sobre as afecções passou a ser central nas práticas
historicidade como possibilidade de reflexão com os desdobramentos da microbiologia (BOTH, 2013).
É na esteira dessas diferentes considerações sobre saúde em
O trabalho na AB em saúde requer das(os) profissionais que diferentes momentos da história que no século XX ocorreu uma trans-
dela participam, dentre as(os) quais se inclui de modo muito espe- nacionalização do setor e uma estatização das práticas em saúde, o
cial a(o) psicóloga(o), conhecer sobre os acontecimentos que mar- que acrescentou elementos novos à história das práticas sociais em
cam a história de sua constituição. É a partir de elementos históri- saúde e sua consideração. Naquele século com grandes transforma-
cos que se pode ter visibilidade de uma dinâmica impressa tanto no ções, sobretudo no pós-Segunda Guerra, constituiu-se a ideia de que
estabelecimento do marco legal de funcionamento desses espaços caberia aos Estados instalar instituições responsáveis pela saúde da
de atenção, como na própria instalação de serviços. Ainda que seja população, como um tipo de “para-choque” entre os conflitos advin-
bem corrente a ideia de que a saúde seja considerada como um dos da dimensão capital produtiva e os efeitos do trabalho produzido
direito no país em consonância com a Declaração Universal de Di- na vida das pessoas. A estatização do setor tem seu marco na desig-
reitos Humanos, de 1948, é partir da história que se pode alcançar nação pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1947, de saú-
sensibilidade para avaliar as barreiras colocadas nos discursos, prá- de como o “mais completo bem-estar, físico, mental e social”, texto
ticas e também nas legislações para que esse direito seja alcançado muito conhecido, mas que nem sempre informa a finalização desse
pela maior parte da população do país. trecho: saúde “a ser perseguida pelos Estados” (LOPES, 2016).
Entende-se que a historicidade do campo da saúde permite Uma problematização sobre essa presentificação do Estado
conhecer a teia de morais e regramentos apregoados, ao longo da perante a população deixa saltar à vista que tal responsabilização
história, sobretudo como se estabelecera esse campo na Sociedade não se dá sem paradoxos com efeitos para a constituição do ethos
Ocidental. A Atenção Primária se coloca como uma lógica (ou mo- da AB, aqui foco de interesse. Nos anos de 1950 e 1960, a estatização
ral) que tenta mudar a história de lógicas anteriores, mas não sem da saúde encaminhada por organismos da Organização das Nações
se enfrentar interesses presentes no campo da saúde. Na linha do Unidas (ONU) coexistiu com o modelo preventivista. Tal modelo,
que indica Vázquez (1978), para o estudo da ética, é conhecendo-se como designou Sergio Arouca, tratava-se de um grande dilema, pois
aspectos da historicidade de moralidades presentes no campo da

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16 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 17
a saúde que fora indicada como responsabilidade de nações, se vê Com a tomada do país por forças militares, ocorreu uma mi-
em relações apertadas atendendo a exigências do que se pode dizer nimização da responsabilização do Estado na execução de políticas
um financeirismo ou indústria da saúde. Arouca (1975)4 indicou que públicas em geral e de saúde, em particular. Exemplo disso é que
o preventivismo, que aparentemente pregava o desvio de doenças, a responsabilidade do Estado com relação à saúde nesse período,
em verdade, afirmava o caráter individual da doença das pessoas, de acordo com a Constituição de 1967, diz respeito a tão somente
desviando-se da amplitude dos fenômenos, que envolveria as con- estabelecer planos nacionais e normas, mas não execução de po-
dições concretas de vida em um adoecimento. Tal miopia episte- líticas públicas. Setores da saúde foram entregues à exploração de
mológica, em maior escala, colocou o Estado a dar guarida a uma interesses privados, sobretudo setores hospitalares, com financia-
concepção liberal de sustentação a uma centralidade da prática da mento público a fundo perdido. No tocante ao ensino sobre saúde,
medicina, com fazeres advindos de insumos da indústria farmacêu- foi retomado o modelo apregoado por Abraham Flexner, com foco
tica, equipamentos e tecnologias em saúde. na doença em sua forma individual do início do século XX. Muitas
Ao longo do século XX, o Brasil se viu diante da condição de epidemias, que já haviam alcançado controle, retornavam — resul-
se estabelecer como nação, por meio da agricultura, na primeira tado do abandono da saúde pública, com uma estratégia sem pre-
metade do século, quando foram necessárias as primeiras e cen- cedentes de medicalização social (DA ROS, 2006).
trais medidas de Estado no campo da saúde pública, por meio do Observe-se aqui que o modelo de saúde pública brasileiro,
sanitarismo campanhista (LUZ, 2000). Já nos anos de 1950, impul- que se encontrava em início de construção de modo mais abran-
sionado por uma incipiente indústria, o país teve acrescentado ao gente, teve suas bases destruídas e abandonadas ao longo do pe-
sanitarismo campanhista a lógica hospitalar da indústria da saúde. ríodo ditatorial. E mais do que isto, fora interrompida tal construção
Digno de nota é que já existiam nesse período mobilizações para e teve-se a retomada do modelo campanhista do início daquele sé-
um setor saúde regionalizado e de responsabilidade do Estado, por culo com articulação a um complexo médico hospitalar, e tudo isso
meio da III Conferência Nacional de Saúde, antes da ditadura, que sob os auspícios do regime ditatorial.
em 1963 indicara regionalização, responsabilização dos municípios
e uma noção de saúde ampliada, sem centralidade em medica-
mentos. Contudo, com a Ditadura Militar, que se instalou em um
alinhamento com os Estados Unidos, em 1964 e anos seguintes, em Sobre a Atenção Básica no Sistema Único de Saúde
face do conflito mundial de polarização estadunidense com a União
Soviética, a Guerra Fria, ocorreu um solapamento das tentativas pro- Foi num cenário de um gradual afrouxamento da ação do regi-
gressistas que vinham ocorrendo no país em crescimento e desen- me militar sobre as relações sociais e as manifestações da população,
volvimento no pós-Guerra. que foi organizado o Movimento da Reforma Sanitária (MRS) no Bra-
sil. Tal movimento fora inspirado em outros semelhantes ocorridos
na Europa (DA ROS, 2006) e ocorria em um contexto de defesa trans-
nacional da retomada da democracia em países latino americanos,
inclusive por parte dos Estados Unidos que já se viam mais distante da
4 O autor, um dos responsáveis pela organização da 8.ª Conferência de Saúde
no Brasil, a partir de sua tese de 1975, desenvolveu uma problematização sobre o polarização contra a então União Soviética (MACEDO, 1997).
preventivismo, dando origem a um livro de mesmo nome: O Dilema Preventivista. O MRS retomou, de certa forma, o ideário da Medicina Social
Contudo, ainda que tal problematização seja na consideração do que seja o pre- do século XVII, que já considerava a saúde como responsabilidade
ventivismo, as críticas ao preventivismo colocadas não alcançou transformações na
do Estado e com profundas relações com as condições econômi-
presença e força que esse discurso tem no setor saúde.

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18 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 19
co-sociais. Além disso, num cenário em que ainda se colocava a gralidade, passou a ser possível a consideração das significações
ditadura militar no país, mas com alguma possibilidade de manifes- sociais que influenciam o uso que cada indivíduo faz do seu corpo,
tação popular, somaram-se a OMS, as forças da Organização Pan-a- bem como foi possível ultrapassar modelo biológico como central, o
mericana de Saúde (OPAS) para compor ações voltadas para o setor desvio da individualização e patologia, a ampliação de práticas para
saúde, vislumbrando-se o desenvolvimento econômico do país. Ou além da “presença de doença” e até mesmo a problematização da
seja, havia uma nova convocação, em esferas mais amplas para que medicalização da vida cotidiana e horizontalização do que sejam
países como o Brasil revisassem seu setor saúde, como uma função práticas saudáveis.
de Estado (DA ROS, 2006). Os avanços, no plano da lei, para o setor saúde, e que de
Resultado da movimentação política do MRS foi sua partici- modo mais amplo instalou o que veio a ser a AB, foram condições
pação na Conferência de Alma Ata, em 1978, na cidade de mesmo de possibilidade, como diria Michel Foucault (1979-2007), para uma
nome, na então União das Repúblicas Socialistas e Soviéticas, tra- ruptura nos processos discursivos e de práticas no tocante à saúde
zendo para os próximos períodos do país a ideia da Atenção Pri- da população. No caso específico da AB, a ruptura pode ser consi-
mária como alternativa ao modelo biomédico. Tal movimentação derada ainda mais ampla, pois inscreve um campo de práticas na
influenciou decisivamente a formatação e deliberações da VIII Con- contramão da lógica hospitalocêntrica, empreendida a partir da mi-
ferência Nacional de Saúde, ocorrida em 1986, com participação da crobiologia de Louis Pasteur (1822-1895) e fortalecida no período de
sociedade (LUZ, 2000). grande desenvolvimento econômico brasileiro do final da primeira
É com os resultados da VIII Conferência Nacional da Saúde metade do século XX. A ruptura promovida pela ideia de AB aqui
que foi possível a formação do Sistema Único de Saúde (SUS), dois indicada também pode ser vista na instalação de práticas na contra-
anos depois, por meio da Constituição de 1988, que ganhou orga- mão de lógicas excludentes advindas das premissas higienistas de
nização legal em 1990. Isso colocou o Brasil como um país a consi- Phillipe Pinel (1745-1826) e com a classificação e ou identificação
derar saúde como um direito de todos e dever do Estado, devendo de suspeitos de “doenças mentais”. Contudo, o que se viu como
ocorrer sob os princípios da integralidade, participação da comuni- seguimento, nos primeiros anos de SUS, foi uma parca mudança na
dade, regionalização e hierarquização dos serviços. E, ainda, com institucionalidade de serviços que alcançassem essa ruptura, sobre-
responsabilidade pelos níveis de gestão municipal, estadual e fede- tudo na Atenção Básica, apesar dos avanços na lei.
ral (BOTH, 2013).
A regulamentação dos princípios do SUS, por meio da Lei n.º
8080/90, permitiram deslocamentos decisivos para o acesso e para
a concepção do que seja saúde. Especificamente sobre o alvo de
Sobre o início da instalação da Atenção Básica
interesse aqui, a Atenção Básica, a integralidade e, por seu turno, a Anteriormente à Constituição Federal, a ideia de AB, desig-
Psicologia, vale destacar que apenas com os princípios do SUS foi nada mundialmente de Atenção Primária, já tinha circulado como
possível de se ter estabelecido o campo da Atenção Primária em possibilidade entre atores do setor saúde brasileiro, a partir da De-
Saúde e, ao mesmo tempo, a possibilidade de consideração, na for- claração de Alma Ata, em Conferência Mundial de Saúde, em 1978,
ma da lei, dos fenômenos psicológicos no SUS como um todo. ocorrida em Alma Ata. Naquele momento, a atenção primária já era
A ideia de saúde ampliada, que levou a consecução do prin- considerada mudança radical a ser instalada em países que quises-
cípio da integralidade, foram novidades que trouxeram uma nova sem alcançar níveis bons de manutenção e potencialização da vida,
condição normativa para o setor saúde e seus ethos. Com a inte- tal qual indicou seu texto final:

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20 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 21
Primeiro nível de contato dos indivíduos, da família chamados de postos de saúde, localizados em regiões com grandes
e da comunidade com o sistema nacional de saú- problemas servindo de espaços de abastecimento de vacinas, leite
de, pelo qual os cuidados de saúde são levados o e alguns medicamentes, mas sem equipes de trabalho. Contudo, a
mais proximamente possível aos lugares onde pes- AB com seus primeiros anos de instalação ocorreu a partir de 1994
soas vivem e trabalham, e constituem o primeiro como um programa pontual, Programa de Saúde da Família (PSF),
elemento de um continuado processo de assistên- com financiamento do Banco Interamericano Regional de Desen-
cia à saúde (DECLARAÇÃO DE ALMA ATA, 1978). volvimento, que colocava como condição a sua seletividade em
termos de rol de serviços oferecidos e população coberta. A para-
metrização da política econômica interferiu diretamente nas bases
Ainda sob o eco de Alma Ata e de outras importantes Con- da instalação da AB naqueles primeiros anos, quando esse nível de
ferências Mundiais de Saúde, e também dos Princípios do SUS, a atenção proposto se manteve sob a sombra do modelo biomédico
AB passou cada vez mais a ser considerada o espaço no setor saú- centrado em grandes hospitais (LOPES, 2016). Até aqui pode ser vis-
de que mais poderia açambarcar fenômenos que se pudessem ser ta a instalação de uma perspectiva de atenção primária como aque-
abordados integralmente. A AB seria o espaço de aprendizagens de la que previa uma medicina simplificada para os pobres de áreas
toda ordem sobre como um adoecimento pode ser multifacetado urbanas e rurais.
fenomenologicamente e o que seja biopsicossocial poderia deixar
A AB foi oficializada como nível de atenção em saúde, organi-
de ser apenas retórico. Todavia, paralelamente a isso, a AB teve
zada de maneira territorial, apenas em 1997, por meio do documen-
grandes obstáculos em transpor os interesses econômicos já bem
to “Saúde da família: uma estratégia para a reorientação do modelo
alinhavados e o imaginário social constituído ao longo daquele sé-
assistencial”. Com ele é marcada a passagem à designação de “pro-
culo sobre saúde.
grama” de saúde da família para “estratégia”, buscando-se a revisão
Ressalte-se, ainda, que o setor saúde no Brasil, previsto na de concepções de países que indicavam um tipo de “cesta básica”
Carta Magna, e que tem no seu texto como condicionante a econo- em saúde (DA ROS, 2006), visando a um resgate das proposições de
mia, deixou possível a complementaridade do setor privado dentre Alma Ata. Buscava-se com isso a reorientação do sistema de servi-
seus princípios organizativos, o que levou a serem muito tímidas as ços de saúde, que suas ações não fossem verticais nem paralelas às
mudanças no setor de saúde como um todo. Ao longo dos anos de demais ações dos serviços de saúde, mas integradas ao sistema a
1990, estas mudanças se fizeram de modo muito tímido. No caso da promover a “organização das atividades em um território definido,
AB, em face da composição transnacional preventivista, sua instala- com o propósito de propiciar o enfrentamento e resolução dos pro-
ção e financiamento se deram de maneira primária pífia; e quase do blemas identificados” (BRASIL, 1997 p. 8). Aqui, a AB ganhava alta
mesmo modo, a atenção médico hospitalar, que também seria de densidade relacional, como diz Merhy (2002), pois tinha tarefas de
acesso universal, mas também seletiva, ficou dividida para públicos acompanhar, longitudinalidade, a complexidade da dimensão biop-
pagantes ou com planos de saúde. Ou seja, uma atenção à saúde sicossocial do fenômeno saúde-doença e de modo bem próximo à
seletiva de modo mais geral, que no caso da AB ficou direcionada vida das pessoas como, mais uma vez, foi previsto em Alma Ata.
como uma saúde para pobres (LOPES, 2016).
Mesmo com ganho em sua institucionalidade, a AB se man-
Algo próximo da AB já vinha ocorrendo desde a década de teve com uma lógica seletiva. O financiamento era parco, convivia
1980, em condições precárias e em situações localizadas, como no com o sistema hospitalar e ambulatorial como centro e continuou
semiárido do Ceará, por meio do estímulo a programas como os nesse período a “distribuir” uma Atenção Básica, reduzida, para
de Agentes Comunitários de Saúde. Ou, ainda, por meio dos então uma parte da população. Ocorria ainda nesse período a abertura

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na Atenção Básica à Saúde 23
para que ações privadas no setor saúde, por meio dos planos de Com esses alcances, a AB passa cada vez mais requerer a
saúde, ambulatórios especializados e hospitais crescessem de acor- atuação da Psicologia, àquilo que é colocado na Política Nacional
do com a lógica de mercado. Desse modo, a AB, nos seus primeiros de Atenção Básica como noção de território. A ideia de território
anos, ainda que oficializada como política de Estado, com a seleti- requer amplo conhecimento de necessidades de projetos e servi-
vidade, combinou epidemiologia a uma vaga ideia de mudança dos ços de saúde relativos às condições concretas de vida da população
processos de trabalho e de produção do cuidado, com efeito para adstrita. O território pode ser visto em conexão direta com atuais
a ética nesse campo em sua dimensão mais ampla (MERHY, 2002). perspectivas da Psicologia em relação direta da sociedade com a
subjetividade, pois a AB:

Sobre os avanços possíveis com uma Considera a pessoa em sua singularidade e inser-
ção sociocultural, buscando produzir a atenção
Política Nacional de Atenção Básica integral, incorporar as ações de vigilância em
saúde — a qual constitui um processo contínuo
Apenas mais recentemente, na década de 2000, foi possível à e sistemático de coleta, consolidação, análise e
Atenção Básica, no plano da institucionalidade, mostrar alguma po- disseminação de dados sobre eventos relaciona-
tência de ação na saúde das pessoas. Isto ocorreu com a instalação dos à saúde — além disso, visa a o planejamento
da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), nos anos de 2006, e a implementação de ações públicas para a pro-
depois em 2011, e mais recentemente em 2017, por meio de por- teção da saúde da população, a prevenção e o
tarias ministeriais, que atenderam princípios constitucionais para o controle de riscos, agravos e doenças, bem como
setor saúde do país. para a promoção da saúde (POLÍTICA NACIONAL
Com as portarias da PNAB foi alcançada, no plano político, algu- DE ATENÇÃO BÁSICA, 2017).
ma regulação sobre a ação econômica em face de grandes inimigos
do SUS, a saúde privada. Foram previstos recursos que consideram
aspectos sócio-demográficos e epidemiológicos, implantação de es- No território, ainda, metodologicamente, pode ser destacado
tratégias e programas da AB, abrangência da oferta de ações e ser- que a Política Nacional de Atenção Básica deve “superar compreen-
viços, desempenho dos serviços de AB e recursos de investimentos. sões simplistas, nas quais, entre outras, há dicotomia e oposição en-
tre a assistência e a promoção da saúde”, quando a ação, em face
Com uma retomada de sua origem, a AB, nesse começo de
dos seus fenômenos, deve levar em consideração “múltiplos deter-
século XXI, passou a ser considerada o “ponto” mais estratégico
minantes e condicionantes” (BRASIL, 2017).
para um sistema de saúde biopsicossocial, para além da retórica.
Tal importância delegada à AB pode ser estendida para a Psicologia A fim de exemplificar as possibilidades e alcance da Atenção
que passa a ter nesse espaço lugar aonde pode dar sua contribuição Básica, sob a égide da riqueza fenomênica que envolve sua presen-
técnica e política, de militância pelo seu estabelecimento. A ideia de ça no território, vejamos algumas dessas extensões:
ponto de atenção aqui colocada é decorrente da colocação da AB • A AB pode açambarcar, a um só tempo, toda a popula-
em rede, melhor dizendo, no centro dessa rede, que já não é mais ção de um território, realizando ações que sejam funda-
considerada hierarquizada, mas poliárquica, tal como desenhada mentais para o “caminhar pela vida”, como controle de
na perspectiva técnica de redes por Mendes (2011) e na perspectiva doenças, por meio de vacinas; prevenção de afecções
rizomática de Gilles Deleuze e Félix Guatarri (2010).

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na Atenção Básica à Saúde 25
comumente presentes na vida das pessoas, contabiliza- • A AB, pela sua organização territorial, tem a potência de
ção e análise de dados de vigilância em saúde; indicar políticas voltadas às populações e situações es-
• A AB pode fazer o acompanhamento de etapas e condi- pecíficas. E tem sido estabelecido a partir dela políticas
ções específicas da vida, não necessariamente relativas direcionadas à saúde de pessoas que vivem em situa-
a adoecimento, mas visando a potencialidades nessas ções de rua, os Consultórios na Rua, ou ainda o trabalho
situações, acompanhamento de gestação, puerpério e de atenção primária a populações ribeirinhas. Outras po-
até as vicissitudes do envelhecimento; líticas podem ser articuladas ao espaço da AB, na pers-
pectiva de se ter ampliado o ethos nesses espaços.
• A AB tem potencial técnico e metodológico para acompa-
nhar situações complexas como situações de recupera- Pode-se ter com os exemplos inventariados anteriormente a
ção após hospitalizações, inclusive para dar seguimento ideia de que, a partir da constituição da PNAB, foi possível maior
após tratamentos de alta complexidade, como o câncer; aproximação com os fenômenos que se apresentam nos territórios.
Neles, e a partir de suas realidades e características, a presença da
• A AB tem no seu escopo a possibilidade de desenvolver
Psicologia da Saúde na AB pode se colocar com objetivos de am-
práticas de promoção da saúde, que envolvem o desen-
pliação da esfera da ética do cuidado de si na vida das pessoas. A
volvimento de hábitos de vida que potencializam e rela-
ética pessoal é aqui resgatada também na linha de invenção de prá-
ção com o corpo em sua plenitude máxima, como práti-
ticas de resistência à medicalização, à impessoalidade e burocra-
ca de exercícios, e convivências em processos de rede;
cia, aquelas mesmas com longo processo de constituição histórica
mas na perspectiva da integralidade envolve prevenção
aqui indicada como referência para a reflexão da(o) psicóloga(o).
de doenças e agravos, tratamento, reabilitação e redu-
Ou seja, parte-se da premissa de que a ética se faz no ethos, ou no
ção de danos ou de sofrimentos das pessoas adstritas ao
território das pessoas.
seu território;
Também é digno de nota que a partir da PNAB foi possível a
• A AB tem como premissa se relacionar intersetorialmente
incorporação, para dentro da AB, dos Núcleos de Apoio à Saúde da
com outras políticas públicas de saúde localizadas no ter-
Família (NASF), previstos em 2008, por meio da já revogada Porta-
ritório; ou com instituições de outra natureza, ou mesmo
ria n.º 154. Vale destacar que a(o) psicóloga(o), anteriormente aos
com a organização comunitária de maneira mais geral, de
NASFs, poderia ser visto na AB, contudo, tal serviço ocorria a de-
modo a fazer a gestão de práticas que alcancem objetivos
pender de projetos muito pontuais, quase sempre tentando abarcar
relativos ao zelo pela vida e a potencialização das pessoas;
projetos voltados a saúde mental no território. Mas, com os NASFs é
• A AB é locus potencial de cuidado em saúde mental, tendo que se encontra assumida a busca metodológica de apoio ao traba-
em vista estar embrenhada na vida das relações da comu- lho com fenômenos que não poderiam ser açambarcados apenas
nidade e poder funcionar como potencializadora de de- com a lógica médica constituída até então.
senvolvimento e ou resgate de vínculos entre pessoas com
Os NASFs, no plano legal, tornaram possível a profissão de
história de sofrimentos psíquicos severos e persistentes;
psicóloga(o) na Atenção Básica. Tais dispositivos, que gravitam em
• A AB pode fazer seu projeto de trabalho, para além de torno da AB, convivem sob a autocrítica por terem que realizar co-
levar em conta as diretrizes pactuadas nacionalmente. berturas a grande quantidade populacional, a extensivos territórios
Ela tem como premissa realizar atividades participativas e ainda com demandas de trabalho densas e metodologias de traba-
junto ao território que pode colaborar no rol de ativida- lho complexas (porque realizada em grupo e com diferentes proje-
des projetadas.

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26 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 27
tos e territórios). Na organização atual dos NASFs pode caber a uma e de suas práticas, com ampliação das esferas das normatividades
equipe constituída de cinco profissionais da área da saúde, cobrir biológico-centradas. E nelas a(o) psicóloga(o) pode ter grande ca-
uma população de vinte mil pessoas, o que desde já se coloca como pacidade contributiva.
desafio para a prática da(o) psicóloga(o) na AB, que será abordado Ressalte-se que a PNAB indica que o acolhimento pressupõe:
posteriormente nesse documento. A partir do surgimento da PNAB
fez-se possível também a instalação de tecnologias assistenciais à
saúde com incorporação de metodologias de educação permanen- que as equipes que atuam na Atenção Básica
te, matriciamento, clínica ampliada, projetos terapêuticos singulares nas UBS (Unidades Básicas de Saúde) devem
e de territórios, acolhimento entre outras. E mais, a colocação da AB receber e ouvir todas as pessoas que procuram
como central e em meio à rede de saúde. A possibilidade de incor- seus serviços, de modo universal, de fácil acesso
porações de tecnologias nesse período com a assunção da política e sem diferenciações excludentes, e a partir daí
conseguia aqui, pelo menos no nível discursivo, revisão da equivo- construir respostas para suas demandas e neces-
cada designação da Atenção Básica como “rede básica”, tentada sidades (BRASIL, 2017).
já em 1997, ou seja, a AB ficou estabelecida na rede e não era uma
rede à parte do que mais constituísse o sistema de saúde.
Tal acolhimento, sob os auspícios do acesso, deve ser reali-
Evidente está que, com a PNAB, o espaço da AB foi incorpo- zado em todo o período de funcionamento do serviço e sem dife-
rando uma ampliação da visibilidade dos fenômenos que a ela eram renciações excludentes às necessidades de saúde da população,
apresentadas. Contribuiu para isso compreensões como as de tec- inclusive a itinerante.
nologias de trabalho em saúde feita por Merhy (2002), que o autor
O acolhimento se coloca na porta de entrada do serviço como
denominou de trabalho vivo. O trabalho vivo envolve tecnologias
uma prática que, para além de considerar in totum o sujeito que pro-
leves, leve-duras e duras, sendo a dura relativa a diagnósticos, por
cura o serviço, com suas condições de vida, requer também a pos-
exemplo, uma prescrição; a tecnologia leve-dura quando são reali-
tura inclusiva, com relação a outros tipos de sofrimento que possam
zadas indicações de procedimentos de cuidado; e a tecnologia leve
ser relativos a processos de marginalização, exclusão ou violências.
é quando se escuta a pessoa, dimensionando-se suas possibilidades
Relacionado a isto está que não poderá ser marginalizado como fe-
de compreensão como sujeito em face de suas dificuldades, arti-
nômeno isolado condições inscritas em práticas divisórias no âmbi-
culando esse conhecimento à prática como um todo. Quando uma
to de direitos, como relações sociais e que levam a sofrimento como
prática não incorpora as diferentes tecnologias, ela não se relaciona
violência doméstica, racismo e diversidade sexual.
com a pessoa atendida, in totum, não alcançando transformações,
sendo considerado resultado dessa prática um trabalho morto. Do mesmo modo, na linha de resolutibilidade, a clínica am-
pliada é considerada uma tecnologia de cuidado individual e coleti-
O trabalho vivo é pautado na relação, produção de vínculo,
vo, ao mesmo tempo. De acordo com a PNAB, ela visa a “construir
acolhimento e envolve todas as tecnologias, podendo ser fácil pen-
vínculos positivos e intervenções clínica e sanitariamente efetivas,
sar nos efeitos do trabalho procedimento-centrado para o alcance
centrada na pessoa, na perspectiva de ampliação dos graus de au-
dos fenômenos que se apresentam na AB. Nesse sentido, as práticas
tonomia dos indivíduos e grupos sociais”. Também fica posto com a
de acolhimento e de clínica ampliada são emblemáticas. Tais práti-
clínica ampliada o reconhecimento de que as variáveis que consti-
cas, que serão apresentadas com mais aprofundamento nos textos
tuem o fenômeno que ali se apresentam são múltiplas, requerendo,
que seguirão a esse eixo, são destacadas aqui desde já, por reque-
em primeiro plano, um tipo de encontro com o sujeito e suas de-
rem constituição de um ethos, no espaço da concepção do serviço

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28 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 29
mandas. Tais demandas, ainda que possam estar articuladas a fenô- um conjunto de estratégias e formas de produzir
menos que se relacionam ao corpo biológico, terá como condição saúde, no âmbito individual e coletivo, caracte-
sine qua non o vínculo com o sujeito e as condições que se fizeram rizando-se pela articulação e cooperação intra e
presentes para tal condição no território, seja ele as condições con- intersetorial, pela formação da Rede de Atenção à
cretas dos espaços de vida, vínculos, relações e até projetos de vida. Saúde (RAS), buscando articular suas ações com as
Relacionado à constituição de outra clínica está também pre- demais redes de proteção social, com ampla parti-
visto na PNAB o trabalho interdisciplinar. A interdisciplinaridade re- cipação e controle social (BRASIL, 2014, p. 24).
quer integração que envolve:
A AB em meio a práticas sociais, foi sendo ampliada na me-
Áreas técnicas, profissionais de diferentes forma- dida em que foi revisada com relação a espaço de normatividades
ções e até mesmo outros níveis de atenção, bus- biomédico-centradas. Nesse percurso tem sido fundamental uma
cando incorporar práticas de vigilância, clínica am- política que tornou mais próximo do exequível o financiamento
pliada e matriciamento ao processo de trabalho com o estabelecimento de tecnologias biopsicossociais para além
cotidiano para essa integração (realização de con- da retórica, sua articulação com outras políticas com vieses demo-
sulta compartilhada reservada aos profissionais de cráticas no âmbito das políticas públicas sejam elas as de saúde ou
nível superior, construção de Projeto Terapêutico intersetoriais como o Sistema Único de Assistência Social (SUAS),
Singular, trabalho com grupos, entre outras estra- Educação, Justiça e as outras políticas públicas. Em meio a esse pro-
tégias, em consonância com as necessidades e cesso pode ser destacada uma última busca de reorganização do
demandas da população) (BRASIL, 2017). sistema, agora vislumbrando a direção para a gestão dos serviços: o
Decreto n.º 7508/11.
Este Decreto teve a virtude de ter estabelecido a consecução
Com afirmação de discursos e práticas como a clínica ampliada da territorialidade e a assunção de território por gestores. Determi-
e acolhimento, na PNAB pode-se ter revisada a centralidade na epi- nou a organização do setor saúde por meio de Regiões de saúde, es-
demiologia, ampliando sua combinação a processos de trabalho em tabelecendo pontos de atenção de saúde estratégicos, dentre eles o
saúde que alcancem mudança no processo de produção do cuidado. da AB dentro da região de saúde e sua articulação em redes. Um pri-
Evidenciado está que, pelo menos no nível dos discursos postos para meiro destaque colocado a partir desse Decreto é ser condição para
a AB, a ampliação dos fenômenos encontra-se bem colocada. o estabelecimento de uma região de Saúde, e a Rede de Atenção
Ainda, com a PNAB fez-se possível compreender melhor sua Psicossocial, especializada e em entremeio à uma região de saúde
articulação com outras políticas. Exemplo disso é que as Portarias como um todo. Outro destaque é para o estabelecimento de Contra-
sobre Humanização no SUS, de 2003, constituídas para efetivar os to de Gestão em Saúde, passando a ser responsabilidade civil de um
princípios do SUS articulando gestores, trabalhadores e usuários na gestor a manutenção de serviços pactuados com sua Região de Saú-
busca por mudanças na gestão do trabalho articulada a formas de de (aonde se inclui a AB), podendo este responder civilmente por
cuidar, passam a fazer sentido, sobretudo para os protagonistas dos descumprimento de Planos de Saúde pactuados para a sua região.
espaços da AB. Há também a Política Nacional de Promoção da Saú-
de (PNPS), de 2006, e também revista em 2014. Esta última também
é conduzida pelo conceito ampliado de saúde, formulada como:

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30 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 31
Ainda sobre a ética da(o) psicóloga(o) EIXO 2: A PSICOLOGIA E A
no campo da Atenção Básica ATENÇÃO BÁSICA NO BRASIL
Sobre a dimensão ética que perfaz o espaço da AB, eviden-
ciado está que a ética abordada até aqui não foi relativa ao Código
de Ética Profissional, mas relacionada aos princípios da relação da
profissão com a política, e aos posicionamentos possíveis em face
dos dilemas que envolvem a profissão na AB, em face de sua histó-
ria de constituição. A compreensão dessa ética ultrapassa a deon-
tologia, ou aquilo que é classificado como sendo permitido ou não
permitido às categorias profissionais. Assim, a ética da Psicologia
O trabalho da Psicologia na promoção
deve ser construída no contexto da AB no cotidiano, que envolve e prevenção em saúde
sim os princípios universais da profissão e do SUS e na ação inter-
subjetiva, quando se abre mão de um projeto individual para um Já foi abordado anteriormente como a construção do NASF
projeto coletivo. se relaciona com a saúde mental e a Reforma Psiquiátrica e vamos
entender aqui a que anseios essa construção responde, no sentido
O SUS, ainda que com todas as barreiras enfrentadas, dentre
de dar forma à Atenção Integral à Saúde proposta pela AB. No cam-
as quais algumas inventariadas até aqui, ao longo dos últimos anos,
po da Saúde, e em especial na AB, existe uma discussão importante
é uma das políticas públicas com maior investimento conceitual e
sobre o conceito de saúde afirmado em sua positividade, significado
político no país. Nesse sentindo, a AB não emerge como uma área
para além da doença, compondo não apenas o tratamento, mas a
qualquer de atuação da(o) psicóloga(o), mas como uma área em
prevenção e a promoção em saúde também.
que se estão construindo as principais expectativas do campo da
saúde, voltadas a mudança de uma racionalidade em saúde. O tra- O lugar da Psicologia nesse sistema é o de retaguarda, como
balho da(o) psicóloga(o) na AB envolve o sofrimento ético-político, discutiremos mais a frente, mas supõe também um contato mais
tal qual desenvolveu Sawaia (2003), relativo às relações de exclu- ativo e permanente com toda a população adscrita num território
são de toda ordem, de gênero, de trabalho, de projeto etc. E nesse — ainda que de forma indireta — e não apenas quando procurada
sentido, o trabalho da(o) psicóloga(o) na Atenção Básica parte do por alguém que a requisite.5 Em espaços de atuação estabelecidos,
pressuposto de que aquelas pessoas que frequentam a unidade de como a escola, as organizações e a clínica, o papel da Psicologia foi,
saúde, tem uma situação sócio histórica que determina o seu pro- na grande maioria das vezes, esperar que nossa porta fosse procu-
cesso de adoecer e de ter saúde, um ethos a ser transformado. rada, que a demanda fosse esboçada, para que o trabalho pudesse

5 Uma questão que se discute sobre o modelo do matriciamento trata do lugar


em que nos localizamos no esquema do NASF AB: o acesso sem o filtro das equipes
é comum no cotidiano de práticas da Psicologia na AB, embora na política isso seja
restrito. Uma grande parte do trabalho de muitos profissionais acaba sendo o de
explicar o fluxo e buscar estratégias para fazer o acolhimento e trabalhar de forma
coletiva junto à equipe de saúde.

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32 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 33
ganhar forma. Nesse sentido, aprendemos na universidade sobre a Já a promoção possui um sentido mais abrangente, pois guar-
construção e reconstrução da demanda como um capítulo funda- da relação com o aumento mais global da sensação de bem-estar,
mental do nosso fazer, considerando o esboço de enunciação da não estando diretamente ligada a alguma doença. São formas de
demanda pedra angular para pensar estratégias a serem traçadas atuação que apontam para um modo de vida mais saudável, abran-
no plano de cuidado. gendo mais evidentemente os determinantes sociais da saúde. O
Na lógica da AB, temos territórios adscritos e equipes dentro agente promotor de saúde não se restringe aos profissionais de saú-
e fora da ESF com as quais estamos em permanente comunicação de, pois a promoção envolve atores diversos e ações intersetoriais
a fim de apoiar a construção de planos de cuidado e projetos te- (CZERESNIA, op. cit.).
rapêuticos singulares nos casos, de oferecer educação continuada No que tange à Psicologia, essas estratégias são importan-
de forma a instruir outros profissionais com o olhar da Psicologia; é tes de serem fomentadas num cenário em que questões de saúde
possível apoiar as equipes de Saúde Prisional, Consultórios na Rua, mental são recorrentes e possuem caráter multifacetado, lidas na
as Equipes Ribeirinhas e Fluviais. Assim, o escopo de atuação se am- chave psicossocial, ressaltando o quanto a dimensão humana, que
plia e nosso trabalho ganha contornos que nos empurram a pensar envolve fisiologia, Psicologia, sociedade e História está implicada. A
a promoção e prevenção em saúde. A postura da(o) psicóloga(o) proposta de trabalho sobre a prevenção e a promoção é que equi-
passa a ser de quem se interessa e busca ativamente levar seu saber pes de saúde não atuem apenas quando a doença ou sofrimento já
a fim de qualificar a construção dos casos, fazendo o olhar psicoló- está estabelecido, mas busquem estratégias que além de diminuir
gico presente, ainda que não tenhamos encontrado com a família custos do sistema de saúde, promovam maior cuidado para a po-
ou pessoa que está sendo pensada em suas necessidades de saúde. pulação. Esse modelo coloca a Psicologia pensando a intervenção
A prevenção e a promoção estão diretamente relacionadas antes da construção de demanda, ativa na promoção da saúde. Na
com o grande tema dos determinantes sociais da saúde (CZERES- ideia de saúde ampliada podemos pensar que não há saúde sem
NIA, 1999; BUSS; PELEGRINI, 2007). Ter boa saúde e qualidade de saúde mental; não há saúde mental sem um trabalho que organi-
vida, como define a conferência realizada sobre o tema em Otawa ze o cuidado em rede; cabe então à(ao) psicóloga(o), e a outros
(1986), está ligado a condições que envolvem moradia, saneamento profissionais de saúde, colaborar no processo de construção dessas
básico, educação, emprego e ambiente de trabalho, alimentação, redes para que possam produzir cuidado para além da presença de
situação familiar e rede de apoio, mobilidade e segurança, enfim, profissionais de saúde.
uma série de fatores. Nesse sentido, se destaca a dimensão da relação com o terri-
Nesse sentido, precisamos nos debruçar sobre a prevenção, tório no trabalho da Psicologia: conhecer e acompanhar os códigos
que trata da reunião de ações para evitar o surgimento de doenças. e símbolos circulantes nesses espaços é uma chave importante para
Geralmente essas ações estão centradas em estudos epidemioló- estabelecer um bom diagnóstico e estratégias de intervenção possí-
gicos que apresentam fatores de risco e hábitos que podem levar a veis e conectadas às vidas dos usuários.
eclosão de doenças, como é o caso da dengue, e doenças degene- As decisões e sentidos de atuação da promoção e prevenção
rativas, como diabetes. A educação sobre esses sintomas costuma trabalham lado a lado com análises epidemiológicas, que ajudam
ser o escopo do trabalho realizado nas Unidades Básicas. A propo- a traçar condições de saúde num território que precisa de mais
sição é assentada no profissional de saúde, que produz o conheci- atenção e cuidado, personalizando as estratégias, que devem es-
mento e que vai interferir numa região e/ou na conduta das pessoas tar lastreadas nos equipamentos existentes e nas características das
(CZERESNIA, op. cit.). pessoas atendidas. O trabalho de Czeresnia (1999) traz questiona-

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34 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 35
mentos sobre os limites das formas de atuação quando se considera são, procurando a UBS como um espaço de acolhimento para seus
também os indivíduos na riqueza de sua singularidade, questionan- problemas, ou uma mulher que chega à unidade à procura de cui-
do a medida em que essa estratégia pode ser efetiva. As singulari- dados para enxaqueca que surge sempre quando seu companheiro
dades e outros fatores que compõem determinantes de saúde às a agride. Os sintomas e os cuidados possíveis para a construção de
vezes não enunciados, ou traçam relações que podem resultar em uma efetiva promoção de saúde precisam encontrar nessas pessoas
abordagens preconceituosas. Ora, se grupos minoritários possuem parceiras para saber o que é possível desenhar num cenário de cres-
maior vulnerabilidade no acesso à saúde, e a construção de políti- cente solidão e corrosão dos laços sociais; onde verdades de areia
cas de acesso e cuidado em saúde para elas são um exemplo disso, são construídas nas redes sociais online, num cenário de precari-
como abordar essas questões sem também produzir um estereótipo zação do trabalho e das garantias trabalhistas, violências diversas,
ligado ao comportamento dessa população? quando todos os dias temos um novo urgente e absurdo chegando.
Isso não significa dizer que a promoção e prevenção em seu Sempre que possível, as ações devem estar lastreadas nas muitas
viés epidemiológico não devam ser parte desse processo, mas trata políticas construídas para populações especialmente vulneráveis,
de compreender que a produção científica tem um papel importan- como idosos, de adolescentes e jovens, da mulher, da população
te, mas sempre será limitado para discutir as necessidades específi- LGBTQI+ e das pessoas negras.
cas do sujeito.6 Como a autora propõe, se estar saudável depende de Ao discutir esse tema, já é possível ver a importância do papel
múltiplos fatores que, em alguma medida, jamais serão esgotados da atitude de parceria que a(o) profissional de saúde deve assumir
pelo escrutínio científico, pois emergem do vínculo e da experiência no trabalho com a população atendida. Cabe aqui uma reflexão so-
vivida de forma singular pelo sujeito, sempre será limitada quando bre o enorme tempo em que brasileiros e povos originários viveram
observada do ponto de vista epidemiológico. no território que hoje delimitamos como Brasil construindo saberes
Como resposta, é preciso que profissionais de saúde, e princi- e modos de lidar com dificuldades múltiplas, que incluem questões
palmente psicólogas(os), estejam abertas a ampliar suas práticas a da Psicologia. Sobre esse tema difícil e necessário é importante que
fim de construir efetivamente saberes a partir de diferentes raciona- o saber psicológico não atue como mais um espaço de colonização
lidades na luta por uma promoção integral da saúde. Isso significa de corpos e sentidos, mas que caminhe produzindo campos em co-
que na construção de estratégias de prevenção e promoção sejam mum na conexão entre esses saberes. Essas conexões são a inclu-
consideradas aquelas já utilizadas por uma população, numa postu- são de perspectivas que visibilizem o sofrimento de grupos minori-
ra de troca de saberes e de abordagens de acolhimento que ainda tários, inserindo perspectivas raciais e étnicas, relativas às mulheres,
não foram enunciadas pela ciência, em uma parceria. A perspectiva pessoas gordas, idosas e outras. O samba da G.R.E.S. Mangueira, de
de construção coletiva da abordagem da Psicologia e em sintonia 2019, nos lembra que chegou a vez, de ouvir as Marias, Mahins, Ma-
com as pessoas atendidas é fundamental para que possamos ser rielles, Malês, de ouvir a história que a História não conta.7
mais efetivos na prevenção e promoção à saúde. Isso significa en- Importa dizer ainda que desenhamos nessa sessão uma ênfase
tender as estratégias que podem ser usadas para uma trabalhadora especial ao trabalho da Psicologia da prevenção e promoção da saú-
que sofre assédio moral cotidianamente e tem picos de hiperten- de pois muitas vezes, por conta da história da nossa profissão tam-
bém, estivemos colados na ideia de trabalhar no sistema do profis-
6 Podemos inferir dessa forma que a aproximação das práticas da Psicologia
junto aos problemas mais prevalentes em saúde mental na AB (questões ansiosas,
depressivas, somatizações e na relação com álcool e outras drogas) pode contribuir 7 Veja a primeira nota de rodapé desse texto para contextualização da letra do
para ampliar a legitimidade do Nasf AB e da Psicologia, junto às ESF. samba da G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira aqui mencionada.

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36 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 37
sional liberal, que atua sobre problemas já instalados, geralmente. A como o SUS e a AB. Vamos discutir o que fundamenta a portaria do
resposta assistencial é parte fundamental do nosso trabalho, que por Ministério da Saúde n.º 154/2008, que trata da criação no NASF e seu
vezes toma a maior parte do exercício profissional no cotidiano e por funcionamento a partir de uma lógica matricial. No escopo da ESF,
isso é tão importante observar a relação com prevenção e promoção. as(os) psicólogas(os) estão no NASF AB, mas outros arranjos são
possíveis, uma vez que se trata de uma política nova e a presença de
profissionais psicólogas(os) pode estar organizada de outras formas.
Muitas(os) psicólogas(os) trabalham em unidades que não estão no
O apoio matricial modelo da ESF, e podem estar em conexão com a atenção promovi-
da pelos CAPSs, em Centros de Convivência na Atenção Básica, ou
O tema do apoio matricial é alvo de muitos questionamen- outros arranjos ainda. A lógica do matriciamento também não está
tos e dúvidas sobre a forma e o escopo de atuação psicológica. Es- restrita ao funcionamento da AB; está presente na RAPS, como os
sas ideias podem ser entendias como uma força de transformação CAPS são exemplo, ao atuar matriciando EqSF e em outros níveis
da profissão para pensar as muitas maneiras de conduzir a prática da rede, como hospitais. Como discutido anteriormente, a criação
psicológica. Veremos que na AB a(o) psicóloga(o) pode conduzir do NASF é fruto de um processo mais amplo de experiências im-
atendimentos compartilhados e fazer intervenções no campo; pode plantadas em várias partes do país e possui um largo histórico de
instrumentalizar a Psicologia como saber e cooperar com outros experiência nessa modalidade de cuidado.8
profissionais na construção de um olhar psicológico na abordagem
dos casos; e ainda oferecer algum tipo de cuidado do próprio pro- Como explicita Campos (1999), o termo matriz carrega vários
cesso de trabalho vivido nas UBSs pelas equipes de saúde. A princí- sentidos: se relaciona com o espaço de criação, de geração de algo
pio, a agenda de uma psicóloga(o) deve abarcar todas essas ativi- inovador; e também serve para indicar um conjunto de números
dades. Sabemos, pela experiência dos profissionais no campo, que que, observados a partir de diferentes perspectivas, possuem re-
as pressões pela quantidade de pessoas pedindo por assistência lação seja na vertical, na horizontal, em linhas transversais e com
individual e a importância que as gerências e secretarias de saúde números fora da matriz, como na discussão matemática feita du-
dão para as respostas a essas demandas dificulta a realização desse rante o Ensino Médio. Trata-se de um modelo de trabalho por tarefa,
plano de trabalho, empurrando a equipe como um todo para ativi- que existe na Administração, visando a otimizar recursos e pessoas.
dades assistenciais individuais. Este é um problema principalmente A equipe matriciadora (NASF AB) é externa às equipes mínimas
político, dado também pelos cortes que muitas cidades têm sofrido (EqSF) e funciona trabalhando para várias delas, divididas em tipos
no orçamento da saúde como um todo e faltam profissionais para
responder adequadamente a tantas demandas e também reflete um
8 O histórico de experimentação da lógica de matriciamento, como discute Cam-
modelo biomédico e medico centrado, baseado no atendimento e pos (1999), data da década de 1990, anterior à portaria publicação em 2008, com
encaminhamento, que vigora em alguns lugares ainda no país. experiências existentes em cidades no interior de São Paulo e Minas Gerais, e no
A maneira como a Psicologia se estrutura na AB atualmente Ceará, como nos artigos citados anteriormente. O tema do apoio matricial também
ganhou forma a partir do trabalho de Campos (1999), embora seja esteve em publicações do Ministério da Saúde desde 2003, ligadas ao Humaniza
SUS, política de saúde mental e à Atenção Básica. Outra portaria, n.º 1065, de 4 de
possível considerar um passado mais amplo de experimentação julho de 2005 (e, portanto, anterior à 154), cria o Núcleo de Atenção Integral à Saú-
discutido acima. O apoio matricial aparece como uma maneira de de da Família (NAISF), que tinha objetivos semelhantes ao disposto na publicação
qualificar e promover uma forma inovadora de pensar a clínica da de 2008, reforçando o papel na ampliação da resolubilidade e da integralidade da
Psicologia — em parceria com outras profissões — num sistema Atenção Primária à Saúde (BRASIL, 2005). Essa portaria foi revogada e suas propos-
tas compuseram o NASF, perdendo o “I” inicialmente proposto.

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38 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 39
de equipes NASF AB, número de EqSF atendidas e carga horária no atendimento e funcionamento das equipes. Visa ainda promover
de profissionais.9 A proposta foi testada no âmbito da saúde mental maior integração entre profissionais, contornando a especialização
e acabou se ampliando para outros campos, como a reabilitação, — e falta de comunicação — crescente em quase todas as áreas do
alimentação, assistência farmacêutica, assistência social, práticas conhecimento. O trabalho nesse esquema deve ser composto pela
corporais e ações integrativas em saúde (BRASIL, 2009).10 possibilidade de o apoio matricial oferecer tanto retaguarda assis-
A ideia do apoio matricial “é um novo modo de produzir saúde tencial quanto suporte técnico-pedagógico às equipes de referência
em que duas ou mais equipes, num processo de construção com- (CAMPOS, 1999; CHIAVERINI, 2011, p. 13). Isso significa dizer que a
partilhada, criam uma proposta de intervenção pedagógico-terapêu- equipe se forma e se desfaz a partir das necessidades do caso: se
tica” (CHIAVERINI, 2011, p. 13). Nela, se estabeleceu que existam num caso que está em jogo questões ligadas a sintomas ansiosos
equipes de referência que trabalhem com algum objeto ou questão num usuário, psicóloga(o), assistente social que tenha maior vín-
específica — no caso da AB, a população e suas necessidades de culo com o usuário e uma terapeuta ocupacional podem ser acio-
saúde subscrita a um território — e uma equipe na retaguarda — de nadas para cuidar do caso; da mesma forma, dependendo do caso,
apoio matricial — formada por especialistas, que se organiza a partir outros profissionais podem ser acionados. A capacidade volante da
da demanda de EqSF e participa regularmente de suas atividades equipe diz sobre seus deslocamentos e montagens possíveis. É cer-
como uma maneira de contribuir para seu melhor funcionamento. to que essa forma não hierarquizada é de difícil aplicação no cam-
O uso do termo matricial também remete a construção de uma rela- po de trabalho real, uma vez que o ambiente histórico em que as
ção horizontal entre profissionais de referência e especialistas e não profissões da saúde cresceram produziu muitas disparidades entre
apenas vertical como tem sido a tradição dos sistemas de saúde. A elas. Na prática, as equipes mínimas precisam muitos daquelas(es)
Equipe NASF, formada por especialistas, funciona de forma volante que trabalham com saúde mental no NASF AB e as(os) acionam
e atendendo a necessidades específicas com o objetivo de atenuar a bastante, muitas vezes tentando “passar o caso”. A insistência na
rigidez dos sistemas de saúde e diminuir a fragmentação e a demora construção coletiva e no deslocamento de olhares estereotipados
sobre usuários é uma parte importante do trabalho.
Essas múltiplas funções trazem questões para a maneira como
9 O número de equipes de APS que o NASF pode apoiar também está definido
em diversos documentos, como na Portaria n.º 154 de 24 de janeiro de 2008 (BRA-
a equipe NASF se organiza: se deve investir e priorizar o atendimen-
SIL, 2008). Na portaria n.º 2488 de 21 de outubro de 2011 foi reduzido o número de to à população ou às ações de educação. Esse dilema é uma das
equipes em que o NASF 1 poderia atuar para entre 8-15 equipes, e na Portaria n.º questões do trabalho das(os) psicólogas(os) na AB, pois o esquema
3.124, de 28 de dezembro de 2012 (BRASIL, 2012), para de 5-9 equipes. Essa é uma aqui proposto depende de uma rede bem organizada e do bom se-
questão que não se observa em muitas UBSs espalhadas pelo país, com equipes guimento do fluxo. Na prática, visa a estender, dinamizar e multi-
NASF apoiando EqSF muito além do preconizado. A mudança da política aponta
para uma adequação gradual do trabalho da equipe NASF. plicar a forma de atuação dos especialistas. Vamos supor que uma
mulher aposentada de setenta anos, branca e moradora de uma
10 Segue a lista dos profissionais que podem compor o NASF: Médico Acupun-
favela na zona sul de São Paulo, que ainda trabalha como empre-
turista; Assistente Social; Profissional/Professor de Educação Física; Farmacêutico;
Fisioterapeuta; Fonoaudiólogo; Médico Ginecologista/Obstetra; Médico Homeopa- gada doméstica, está sendo atendida na UBS com queixa de dores
ta; Nutricionista; Médico Pediatra; Psicólogo; Médico Psiquiatra; Terapeuta Ocupa- nas articulações devidas também a seu trabalho, tem estado desa-
cional; Médico Geriatra; Médico Internista (clínica médica), Médico do Trabalho, nimada e triste com a perspectiva de ver sua renda diminuída com
Médico Veterinário, profissional com formação em arte e educação (arte educador) a possibilidade de ter que parar de trabalhar por conta das dores,
e profissional de saúde sanitarista, ou seja, profissional graduado na área de saúde
com pós-graduação em saúde pública ou coletiva ou graduado diretamente em
também da necessidade de estar mais próxima de seu marido, que
uma dessas áreas. se encontra em um estado inicial de doença crônica, e que conta

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40 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 41
ainda com três de seus filhos, adultos, morando na mesma casa. De O apoio matricial também encontra limites para suas práticas,
que formas a equipe NASF AB poderia estar presente nesse caso? 1) uma vez que ele não prioriza o atendimento individual como prática
Atendendo essa pessoa na UBS em sua consulta com a médica/en- da Psicologia no NASF AB. Para o bom funcionamento do sistema, é
fermeira, caso a equipe considere necessário; 2) Encaminhando-a importante que exista uma rede de psicólogas(os) que possa aten-
para um grupo de mulheres organizado pelo NASF AB para discutir der na estrutura da clínica individual periódica e regular casos em
as questões que envolvem as dificuldade sofridas por mulheres pa- que esse cuidado seja necessário. De outra forma, essas demandas
recidas com ela, se for possível; 3) Fazendo uma visita à sua casa acabam não sendo bem conduzidas na AB, pois as(os) profissionais
a fim de conhecer e traçar uma estratégia em conjunto para ofere- estão ocupando outras funções. A carência de ambulatórios de Psico-
cer cuidado para quem precisa nessa família, compreendendo uma logia (nível secundário) pressiona o NASF AB a atuar de forma ambu-
rede de apoio ampliada; 4) Encaminhar questões relativas à possi- latorial e individualizada, uma vez que está responsável pelo cuidado
bilidade dela ter benefícios sociais dada sua condição atual de vida; e não consegue o encaminhamento, como discute Klein (2015).
5) Trabalho em conjunto entre EqSF e NASF AB para reabilitação A publicação dos Cadernos de Atenção Básica n.º 27 e n.º 39
fisioterápica e de dor crônica na abordagem da Psicologia; 6) Se as traz alguma luz sobre a forma como se organizam as ações do NASF
equipes não considerarem necessário o envolvimento do NASF AB, a fim de viabilizar isso que parece ainda pouco delimitado (BRASIL,
oferecer formas e técnicas de abordagem da questão para que a 2009). Em um desses documentos, as diretrizes de trabalho do NASF
EqSF possa ser mais sensível ao sofrimento vivido por essa pessoa, listadas são: Apoio Matricial, Clínica Ampliada, Projeto Terapêutico
compreendendo o sofrimento mental e determinantes sociais que Singular (PTS), Projeto de Saúde no Território (PST) e a Pactuação do
poderiam estar presentes na condição de saúde dessa família. Apoio. Essas diretrizes devem atuar nas seguintes áreas estratégicas:
Outras opções seriam possíveis ainda na atuação da(o) psi- saúde da criança/do adolescente e do jovem; saúde mental; reabili-
cóloga(o) e de outras profissionais do NASF AB neste caso, com- tação/saúde integral da pessoa idosa; alimentação e nutrição; serviço
portando modalidades de atendimento que fazem o olhar psicoló- social; saúde da mulher; assistência farmacêutica; atividade física/
gico presente, ainda que não encontremos a pessoa atendida e ela práticas corporais; práticas integrativas e complementares. Esses do-
nem sequer saiba da nossa atuação. Esse breve exemplo apresenta cumentos oferecem exemplos e sugestões de atuação, bem como
como o conhecimento sobre o território e as possibilidades que ele instrumentos que podem ajudar na construção da rede de apoio ne-
pode engajar no tratamento é fundamental. Como psicólogas(os), cessária para o cuidado dos casos. Além disso, do alinhamento a es-
precisamos refletir a quem o modelo da clínica individual e sema- sas políticas, destaca-se ainda o cuidado com usuários de álcool e
nal se aplica, no manejo das ansiedades e inquietações produzidas outras drogas e ainda as práticas de redução de danos que tem como
por essa prática, afirmando que as múltiplas modalidades de aten- objetivo minimizar os riscos e danos associados ao uso de drogas.
dimento também servem para construir diferentes abordagens para A Clínica Ampliada se refere a uma prática que engloba e não
as necessidades específicas. Esse esforço é também uma forma de se limita à Psicologia ou à ESF, envolvendo a integralidade como
incluir outras classes sociais no acesso à Psicologia e promover uma atributo da AB, que compreenda a construção compartilhada de
deselitização da profissão — que toca também na subjetividade —, diagnósticos e terapêuticas como plano de cuidado, não somente
como discute Dimenstein (1998). Na lógica do apoio matricial, por- centrado na doença. O PTS é dedicado a casos de manejo difícil, em
tanto, o NASF AB não constitui porta de entrada do serviço e não que a equipe traça coletivamente um plano de cuidado para uma
tem agenda aberta para marcação de consultas como é possível fa- pessoa ou uma família, que envolve diagnóstico, construção de me-
zer nas equipes mínimas. tas, divisão de responsabilidades e reavaliação. O Projeto de Saúde
do Território (PST) é uma ação de promoção de saúde, intersetorial,

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42 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 43
que envolve a participação social a partir da identificação de uma cuidado é importante de ser observada, mas não pode ser um im-
questão pela EqSF e NASF AB no território. Esta ferramenta é mais peditivo para um trabalho colaborativo efetivo com outros profissio-
ampla do que o PTS e se propõe a ser uma ação intersetorial. A Pac- nais. Como acontece com outras questões, a AB exige a construção
tuação do Apoio, por fim, acontece em duas fases: uma primeira, de uma nova rotina, e não mera adaptação de práticas costumeiras.
entre gestores, EqSF e o Conselho de Saúde a fim de avaliar que pro- Todas as questões trabalhadas até agora apontam um sem-
fissionais serão necessários na implantação do NASF, considerando -número de possibilidades e uma grande lista de afazeres que não
as proposições da portaria; a segunda, diz respeito à pactuação do pode ser vislumbrada sem um trabalho em equipe efetivo, uma rede
desenvolvimento do processo de trabalho e das metas, entre os ges- com um secundário fortalecido, um sistema de saúde mental bem
tores, a equipe do NASF e a EqSF (BRASIL, 2009). organizado que conte com esses profissionais como parceiros para
Toda essa discussão oferece uma linha importante de direcio- matriciamentos na AB. Soma-se a esse quadro a boa relação com
namento das práticas, mas a materialização do cotidiano deixa o ter- o SUAS e os equipamentos de educação do território, em especial
reno do NASF AB numa enorme expectativa, uma vez que o cumpri- as escolas de educação básica, para atuação no Programa Saúde
mento dessas propostas qualifica a AB e a ESF como um todo, como na Escola (PSE). Na AB, o trabalho como psicóloga(o) no NASF AB
o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Aten- pode ser um empuxo à nossa profissão, propondo um caminho que
ção Básica (PMAQ)11 (BRASIL, 2015) nos faz discutir e ajuda a pensar. a desloca de seus lugares costumeiros, produzindo uma força que
Uma grande questão que dificulta o trabalho da EqNASF AB no nos mobiliza a fazer experimentações. A chave do trabalho no apoio
cotidiano se refere à formação dos profissionais da AB: o trabalho matricial é a rede, que costuma se colocar para nós como uma força
em equipe e as práticas interprofissionais e colaborativas pouco fa- e uma dificuldade. Nos programas de residência multiprofissional
zem parte da formação em Psicologia e de outros cursos em saúde, que desenvolvem trabalhos na AB, geralmente psicólogas(os) re-
bem como em níveis de formação, como técnicos e de ensino mé- cém-formadas(os) experienciam uma grande angústia ao se depa-
dio. Inseguranças e visões cristalizadas podem dificultar a constru- rar com o trabalho em rede em que tem dificuldade de entender o
ção conjunta. Esses processos não lineares são repletos de tensões lugar da Psicologia: “Para que serve o que eu faço, qual a minha fun-
que geram articulação e desarticulação, que produzem consensos ção?”. Essa angústia vai dando lugar a um sentido na construção do
que são tensionados. Peduzzi et al. (2007) explicita a importância da olhar psicológico no contato com a equipe, promovendo processos
educação e das práticas interprofissionais a fim de construir uma de desnaturalização e contribuição na direção da Psicologia, com a
nova lógica de trabalho, apostando na integralidade como um orien- definição no fazer do trabalho.
tador desse processo. A proposta da ESF, do NASF, da Reforma Psi-
quiátrica e do próprio SUS estão em permanente construção e con-
solidação e são políticas que visam, ainda hoje, ao deslocamento da
lógica biomédica e a transformação do cuidado centrado na doen- A clínica na AB
ça. A questão da confidencialidade e discrição dos profissionais no O sentido da existência do modelo do apoio matricial está li-
gado à qualificação do serviço da AB visando a aumentar a reso-
11 O PMAQ é um programa pactuado entre a União, Estados e Municípios a fim lutividade e a abrangência das atuações a partir da desconstrução
de construir estratégias que visam a ampliação do acesso e a melhoria da qualida- da lógica do encaminhamento, tão recorrente no campo da saúde
de da AB, tentando garantir um padrão de qualidade comparável nacional, regio- privada. É muito comum entre usuários de planos de saúde ficar em
nal e localmente com o objetivo de permitir maior transparência e efetividade das dúvida sobre que profissional de saúde procurar quando tem um
ações governamentais na Atenção Básica em Saúde.

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44 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 45
ou outro sintoma; e se o escolhido não resolver, pedir um encami- de pensar as restrições desse modelo e construir novas respostas, a
nhamento para alguém ainda mais especializado. Mesmo na AB, os partir de um diagnóstico mais amplo construído por toda a equipe.
formatos de funcionamento podem estar organizados a partir dessa Ressalta-se, ainda, que a clínica ampliada e o apoio matricial não
lógica do encaminhamento, embora seja importante investir no tra- são práticas exclusivas dos NASFs AB ou mesmo da ESF, mas práti-
balho coletivo. Compreende-se que esta maneira de funcionamento cas possíveis não só na atenção básica à saúde como em todas as
está ligada a ações desarticuladas em diferentes serviços que levam estratégias de cuidado.
à multiplicação de tarefas e dificuldade de diálogo entre os serviços A primeira questão que a Clínica Ampliada traz é que ela não é
em prol do cuidado em saúde de indivíduos e suas famílias. O apoio específica da prática da Psicologia. Ela trata de uma forma de com-
colaborativo tem importantes referências em práticas em sistemas preensão do sujeito e de suas necessidades de saúde que pode ser
de saúde de outros países como a educação interprofissional, colla- exercida por qualquer profissional e que psicólogas(os) podem coo-
borative care e shared care. A Psicologia, nesse trabalho em equipe, perar para a construção de uma sensibilidade nesse sentido. Mais
é convidada a pensar outras maneiras de intervenção que não se do que isso, a clínica ampliada pode ser fruto do trabalho de uma
restringem ao atendimento direto e individual. equipe bem integrada que ouça as experiências dos atendidos a
Quando pensamos nas maneiras como o trabalho da Psico- partir de diferentes lugares. Pense que temos como parceiras(os)
logia pode acontecer, vem a ideia da formulação da demanda e Agentes Comunitárias(os) (ACs), que são pessoas que trabalham
do trabalho individual e em grupos, face a face com os atendidos. e vivem no território atendido pela clínica e o saber que possuem
Anchanjo e Schraiber (2012), em pesquisa realizada com psicólo- pode ser fundamental para entender o que se passa, da mesma for-
gas(os) em UBSs, apontam que existe expectativa de voltar o tra- ma em relação a outros profissionais de saúde. Assim, saber que
balho para fora do serviço e para a promoção de saúde, mas a ten- existem muitas pessoas desempregadas, ou fazendo uso de álcool e
dência é de centrar-se nas práticas “de consultório” — entendidas outras drogas num território, ou ter múltiplas visões sobre uma quei-
como aquelas relacionadas ao psicodiagnóstico e psicoterapia. So- xa de um usuário pode ser decisivo para a construção do plano de
mado a isso, as atividades em equipe, envolvendo visita domiciliar, cuidado. Sobre isso, o trabalho de Lancetti (2000) apresenta como
atividades comunitárias, matriciamento, reunião de equipe e grupos uma equipe de saúde mental ajudou a construir essa estratégia no
educativos não foram entendidas na pesquisa como da alçada espe- trabalho de ACSs em Santos, São Paulo, numa experiência exitosa
cífica da Psicologia. porque foi construída a muitas mãos.
Esse tipo de compreensão restrita sobre o trabalho da Psicolo- A construção da demanda na Clínica Ampliada pode se dar de
gia coloca em questão a formação e as práticas e nos move a pensar formas muito distintas, vindas em momentos inusitados e por ini-
de que maneiras a clínica pode surgir e para quem. Dimenstein e ciativa da própria equipe ou da(o) psicóloga(o), percebendo a im-
Macedo (2012) reforçam essa percepção ao mostrar que as críticas portância da atuação. A escuta do sujeito sem interrupções, quan-
às práticas da Psicologia no SUS se referem à pouca variedade de do coloca sua queixa de saúde, pode ser um diferencial da nossa
estratégias de tratamento, com atuação numa clínica individual e profissão. Essa habilidade pode ser útil para compor, com outras
privatista, voltada para a ideia de cura. O tratamento pode se basear maneiras de ouvir, a busca por outras informações importantes para
no cessar dos sintomas com oposição entre normal e patológico, o diagnóstico. Isso acaba criando a necessidade sistemática de co-
direcionado a uma adesão prescritiva. No que tange ao trabalho em municar o que percebemos para compor um tratamento a muitas
equipe, temos justificado a esquiva em trabalhar em conjunto com mãos. Esse exercício costuma apontar como as linguagens da Psico-
uma leitura pobre do sigilo profissional, com trabalho técnico divor- logia são herméticas e de difícil compreensão por outras profissio-
ciado da gestão. A discussão sobre a Clínica Ampliada é uma forma nais. Essas práticas interprofissionais ajudam a descontruir formas

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na Atenção Básica à Saúde 47
estereotipadas com que outras profissões podem ser desenhadas ja. Na segunda e terceiras visitas, J. diz que desistiu de estudar pois
nos cursos de graduação. A reflexão sobre o uso do linguajar técnico sofria bullying: sempre foi chamada de feia na escola e também em
da Psicologia precisa separar o que são os usos dos conceitos fun- casa. Se sentia frequentemente mal por dizerem que seu cabelo era
damentais para a prática e formas de expressar sentidos que afas- ruim, que ela não prestava, que nunca alguém gostaria dela. Muito
tam não iniciados. Na clínica ampliada o compartilhamento deve emocionada, ela conta que alisava o cabelo, tentava vestir as roupas
ser feito também com o próprio usuário. É certo que a proposta não certas, mas ainda assim, era muito maltratada, tendo escolhido viver
é sempre tudo informar, sendo sensível quanto à necessidade de em casa ajudando a família. Teve um namorado uma vez, mas ele a
sigilo quando necessário, sem justificar com essa estratégia a não deixou. O psicólogo, a estagiária e a ACS, também mulheres negras,
comunicação com a equipe. puderam fazer intervenções na casa de J. e levar o diagnóstico para
Trata-se de uma clínica que pode acontecer também em mui- discussão junto à EqSF, NASF e ao CAPS, chamando-a a compor uma
tos espaços, o setting é múltiplo. Essa forma de atuação pode trazer outra maneira de entender sua vida. A racialização do debate e do
desconfortos para a(o) psicóloga(o) e se mostrar muito desafiadora, diagnóstico de J. e a discussão em rede foram fundamentais para o
ao apresentar as incertezas que regem o campo da saúde e uma seguimento, que viu J. passar gradativamente a frequentar a clínica,
prática ligada a um território. Nesse sentido, a longitudinalidade e a perceber que seu diagnóstico estava equivocado e a construir outros
integralidade da AB são grandes aliadas, ao aumentar o tempo e as planos para sua vida, como cogitar voltar a estudar ou trabalhar. O
estratégias com o as quais possamos em conjunto adotar condutas caso mostra a potência de um trabalho construído em rede, com uma
terapêuticas. Vamos discutir um caso para debater a proposta da abordagem territorial, entendendo a clínica ampliada a partir da visita
Clínica Ampliada. domiciliar, trabalho em grupos e discussão de caso como ferramen-
tas importantes para tratar de um caso que envolve o racismo que J.
O caso de J., dezesseis anos, negra, é de uma adolescente aten-
sofria cotidianamente e foi tratado como transtorno mental.
dida na zona norte do Rio de Janeiro, num território de favela nas pro-
ximidades de uma UBS. A equipe NASF AB sabia que existiam muitas Isso remete à importância de pensarmos que lugar ocupamos
pessoas vivendo em uma casa: mãe, três adolescentes (uma filha e diante da população que é atendida por nós. Desde a regulamenta-
dois filhos) com idades entre quinze e dezoito anos, e padrasto. So- ção da profissão, que data de mais de cinquenta anos atrás, vimos
mente a mãe frequentava a UBS para cuidar de problemas ligados à uma grande mudança no campo da Psicologia ser operada, seja na
hipertensão e dizia da resistência de outros membros da família em maneira como os contextos de produção são entendidos, seja na
frequentar a Clínica da Família. Em um grupo de mulheres, uma ado- ampliação da ciência e profissão com a criação de novos e diferen-
lescente falou que estava preocupada com sua amiga J., que estava tes postos de trabalho. Essas mudanças se afinam com uma trans-
triste e não saía de casa há muito tempo, tendo deixado de frequentar formação do perfil dos egressos dos cursos de graduação, que têm
a escola. O psicólogo do NASF conversou com a ACS e a amiga, e pouco a pouco ganhado mais diversidade étnica, racial, de origens
junto à EqSF procurou fazer uma visita domiciliar com a ACS a fim de geográficas e de classes sociais. Isso coloca a questão que psicólo-
saber um pouco mais da história. Encontrou J. em casa, bem arruma- gas(os) discutiam em décadas passadas sobre a distância que exis-
da, mas ela não foi receptiva ao psicólogo, mas sinalizou para uma es- tia entre o lugar social dessas profissionais e a população por elas
tagiária de Psicologia um espaço para construir vínculo; a mãe conta atendida. Assim, essa aproximação sucessiva traz também o reflexo
que ela toma remédios para os nervos há muito tempo, frequentando de um diálogo cada vez mais próximo tanto do ponto de vista da di-
um psiquiatra que a atende de graça e fez um diagnóstico de fobia so- minuição dos abismos entre esses universos, como também da am-
cial quando ela estava com doze anos. Conta que ela está bem, mas pliação da presença das(os) psicólogas(os) em postos de trabalho
não sai de casa ou trabalha e tem pouca vida social no grupo da igre- que nos coloquem em interação direta com esse público, como é o

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na Atenção Básica à Saúde 49
trabalho na AB. Além da proposta da Clínica Ampliada, a ferramenta enorme expansão da AB e a chegada das OSS, que terceirizaram o
criada pelo PMAQ pode ser um bom guia para a construção de es- serviço e colocaram questões para essa atuação. Vimos a inversão
tratégias de atuação potentes e em sintonia com a AB. do “parque sanitário brasileiro” passar de 18.489 estabelecimentos
Um espaço importante onde a lógica da clínica ampliada se de saúde nos anos oitentas, composto por serviços prioritariamente
faz presente em íntima relação com o território é a modalidade de hospitalares e ambulatoriais, para, em 2009, alcançar 96.450, com
equipe de AB que faz atendimentos a pessoas em situação de rua. número expressivo de equipes de Atenção Básica. Continuamos
Essa população, geralmente profundamente heterogênea, pode funcionando com muito menos dinheiro do que o SUS precisa, o
se encontrar numa situação de extrema vulnerabilidade social por que se agravou com a aprovação da PEC 241, que trata do estabele-
estarem expostos a toda sorte de violências e possivelmente com cimento de um teto dos gastos público por vinte anos, o que pode
vínculos sociais fragilizados ou inexistentes. O consultório na rua é inviabilizar o investimento necessário no SUS, como discutem Vieira
uma iniciativa prevista na PNAB de 2011 que visa a aplicar a lógica e Benevides (2016).
do cuidado da clínica ampliada e construída coletivamente ofere- Daquela publicação (CFP, 2009) para esta, conseguimos cons-
cendo a presença da política pública de saúde no cuidado de quem truir um texto mais integrado, mas que mantém dúvidas semelhan-
geralmente foi excluído de todas as proteções que a educação, a tes sobre estratégias de atuação, embora tenhamos caminhado na
moradia digna, a segurança pública e outras políticas ainda, foram compreensão da importância da articulação junto à rede. Os gran-
negadas. A presença de psicólogas(os) é possível nas duas modali- des orientadores para essas práticas são os documentos produzidos
dades desse consultório, em que se discutem nas itinerâncias pela que estabelecem diretrizes para a atuação. As portarias citadas ao
cidade o potencial transformador dos vínculos e da oferta de cuida- longo do texto estão entre as principais, mas uma organização des-
do não compulsória. ses documentos seria importante a fim de poder orientar a prática
(BRASIL, 2005; BRASIL, 2008; BRASIL, 2009; BRASIL, 2011; BRASIL,
2012). A Política Nacional de Humanização12 (BRASIL, 2004) foi um
grande marco, bem como a publicação da portaria do NASF (BRA-
Contribuições da Psicologia ao tema SIL, 2008). Uma análise dos documentos em que a Psicologia apa-
rece na AB está disponível no artigo de Boing e Crepaldi (2010). Os
O Conselho Federal de Psicologia publicou, em 2009 (CFP, trabalhos que orientaram a construção da política também foram
2009), um ano após a publicação da portaria n.º 154/MS (BRASIL, muito importantes, como o trabalho de Campos (1999) e Campos e
2008), um documento com um apanhado de experiências vividas Domiti (2007) que discutem a teoria e metodologia do apoio matri-
por diferentes psicólogas(os) a partir de seus trabalhos. É possível cial, bem como as experiências anteriores, no trabalho de Lancetti
consultar experiências de matriciamento do CAPS em interface com (2000) e Dimenstein (1998), que fazem proposições e críticas impor-
a AB, da experiência dos NASFs AB e a busca por implantar uma tantes que são referência até hoje.
Psicologia afinada às necessidades da população e às possibilida-
des que um sistema subfinanciado como o SUS enfrenta. O texto, Em âmbito mais amplo, os debates no campo da saúde coletiva
dividido em relatos de profissionais sobre seus campos de atuação e a construção da ESF, como discutido no eixo anterior, a discussão
a partir de diferentes cidades e regiões e organizações de fluxo (pro- dos atributos da Atenção Básica, como discute Bárbara Starfield é
fissionais na rede no NASF, no CAPS, professores de graduação e
com práticas na pós-graduação, como em residências). Nesses dez 12 A Política de Humanização do SUS (PNH) é bastante inspirada nas produções
anos avançamos em número de NASFs AB implantados no país, na de conhecimento da Psicologia Institucional e resultado de uma reflexão importan-
te para o campo da saúde

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50 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 51
fundamental. A questão dos determinantes sociais da saúde é fun-
damental para entender o campo e o trabalho da saúde coletiva para EIXO 3: ATUAÇÃO DA(O) PSICÓLOGA(O)
pensar a organização e funcionamento do sistema, em território.
O artigo de Dimenstein e Macedo (2012) apresenta o tamanho NA ATENÇÃO BÁSICA À SAÚDE
do caminho a ser percorrido para (re)situar o papel da Psicologia no
SUS como um todo e, principalmente, na AB. A direção da reflexão
sobre as práticas é fundamental com o indicativo do fortalecimen-
to dos programas de residência multiprofissional como forma de
conferir uma resposta mais adequada e ética às necessidades da Se hoje, ao nos referirmos à atuação de psicólogas(os) no âm-
população e às possibilidades que a Psicologia pode oferecer como bito da AB do SUS, quase que automaticamente estamos nos refe-
estratégia potente de cuidado. A triangulação Serviço-Comunidade- rindo à inserção desses profissionais no NASF, apesar desta inserção
-Academia visa a abrir as universidades à essas demandas e quali- não ser homogênea no território nacional, é porque desde o ano
ficar o trabalho nas unidades, construindo uma formação atenta à de 2008, ano de publicação da portaria n.º 154 de 24 de janeiro, o
interprofissionalidade e aos elos com a comunidade. Os Programas número de profissionais da Psicologia ofertando apoio às Estratégias
de Educação pelo Trabalho na Saúde e Saúde Mental (PET-Saúde) de Saúde da Família (ESF) vem crescendo substancialmente e se
são estratégias importantes nesse processo, bem como a Educação consolidando como uma das principais portas de entrada das(os)
Permanente em Saúde (EPS). O PET-Saúde têm sido uma experiên- psicólogas(os) no SUS.
cia importante de construção desses saberes integrando alunos de Segundo dados do DataSUS, em dezembro de 2018, quando o
muitas graduações a pensar sobre temas relevantes para as Secreta- NASF comemorava seus dez anos de existência no país, o número
rias de Saúde de muitos municípios a partir de metodologias ativas de psicólogas(os) atuando na AB, entre NASFs e UBSs, era de 10.721.
e centradas em tarefas. No entanto, no ano de publicação da portaria que criou os NASFs
A tarefa da Psicologia na Atenção Básica é de movimentar já havia um número considerável de psicólogas(os) atuando neste
suas práticas e construir perguntas aonde elas não existem, conside- campo. Segundo o DataSUS, em dezembro de 2007 havia 4.704 pro-
rando nesse processo nossa própria implicação (COIMBRA e NAS- fissionais da Psicologia atuando na AB do SUS. Esse contingente sig-
CIMENTO, 2008), ao promover desnaturalizações na construção do nificativo de psicólogas(os) adentraram este campo atendendo aos
cuidado. chamados de duas frentes, já discutidas nos eixos anteriores dessa
Referência: primeiro, a grande expansão da ESF que, guiadas pelos
princípios da Reforma Sanitária, convocavam a Psicologia para jun-
tar-se às demais disciplinas no caminhar em direção à integralidade
do cuidado; e a segunda frente é a da Reforma Psiquiátrica cujos
princípios de extinção dos manicômios e substituição destes por
serviços de base comunitária fez sobretudo os CAPS se espalharem
pelo território nacional. Há de se ressaltar também, como locus do
trabalho da(o) psicóloga(o) na AB, os Consultório de Rua — mais
tarde transformados em Consultório na rua — criados em 1999, na
Bahia, que foram posteriormente assumidos pelo Ministério da Saú-
de como uma estratégia de Atenção Básica em Saúde.

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52 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 53
Assim, cabe a AB a função de prevenir os agravos de saúde mentos clínicos. Assim, realizo por volta de trinta
mental, garantir a integralidade do cuidado dos usuários assistidos atendimentos clínicos individuais por semana.
pelo CAPS e responsabilizar-se pelo cuidado longitudinal dos usuá- Primeiramente, realizo triagens para avaliação
rios que não estiverem mais dentro dos quadros mais graves de so- das pessoas que desejam receber atendimento
frimento mental. Sendo assim, o profissional da Psicologia torna-se psicológico; se o caso realmente necessitar de
um ator estratégico na operacionalização de uma política antimani- terapia, a pessoa precisa ficar em fila de espera,
comial dentro da atenção básica. pois há apenas dois cargos de psicólogo da saúde
Na pesquisa realizada pelo CREPOP sobre a atuação de psi- no município e a demanda é enorme. (P40-13)
cólogas(os) na AB do SUS, os 240 respondentes apontaram como [...] atendimento individual, houve uma tentativa
principal contexto de atuação a UBS, mas também ambulatórios de de grupo, mas não deu certo ainda (P40-322)
hospitais, serviços públicos ligados a outras políticas, como Assis- [...] Algumas vezes aparecem usuários da rede
tência Social e órgãos ligados ao poder judiciário (CFP, 2008). Na- privada procurando atendimento em Psicologia
quele ano, o NASF ainda não é apontado como um dos principais pelo SUS, como por exemplo, solicitando avalia-
locus de atuação pois, sendo ano de publicação da portaria de sua ção psicológica para procedimento de laqueadu-
criação, havia poucos profissionais. Segundo o DataSUS, apenas 78 ra tubária, entre outros casos. (P40-03)
profissionais da Psicologia atuavam em NASF13 ao final daquele ano [...] acompanhamento psicológico de pessoas
em todo o país. A população atendida também apresentou uma di- encaminhadas por demais profissionais [...],
versidade marcante, variando entre crianças, jovens, adultos, fami- além daquelas pessoas que procuram esponta-
liares, idosos e comunidade. neamente pelo serviço de Psicologia. (P40-326)
Com relação a atuação, objeto deste eixo, os respondentes da [...] mensalmente, realizo um grupo de apoio aos
pesquisa de 2008 listaram modos de fazer que iam desde o atendi- familiares e cuidadores de portadores de trans-
mento individual até a formulação de políticas públicas, passando torno mental. ( P40-448)
por: atendimento grupal, visitas domiciliares, atuação em equipe
Realizo grupos de orientação psicológica a saú-
multiprofissional no contexto da ESF, na área docente, na gestão do
de mental: tabagismo; alcoolismo; e substâncias
serviço, elaboração de pareceres, laudos e prontuários. Vale aqui o
psicoativas; TOC; - visando a ao reconhecimento
recorte de alguns relatos de entrevistadas(os) da pesquisa do CRE-
quanto aos seus danos e na cessação quanto ao
POP (CFP, 2008) que traduzem o fazer de psicólogas(os) no contexto
seu uso e tratamentos (P40-160)
da AB naquele ano para, após, podermos dialogar com pesquisas
realizadas ao longo desses dez anos de NASF:
A lógica curativo-individualista ainda deixa psicólogas(os)
Infelizmente no local onde trabalho ainda nos é impotentes frente às expectativas de gestores, equipes multipro-
cobrado que o foco principal sejam os atendi- fissionais e usuários de receberem uma escuta feita dentro de um
consultório protegido não só dos ruídos externos como também do
contexto que o cerca, como atesta Perrela (2015), Leite, Andrade e
13 Vale ressaltar que o site DataSUS refere-se a “Centro de Apoio à Saúde da Bosi (2013), Alexandre e Romagnoli (2017).
Família (CASF)” e não Núcleo de Apoio/Ampliado à/da Saúde da Família, como é
comumente conhecido.

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na Atenção Básica à Saúde 55
Os currículos das graduações de Psicologia também não têm profissionais da Psicologia já encaravam a construção da interdis-
contribuído para a superação dessas dificuldades. Na pesquisa do ciplinaridade como um dos grandes desafios a serem enfrentados
CREPOP, os respondentes já identificavam os vazios curriculares dentro da política de saúde pública:
quanto à inserção do profissional da Psicologia nas políticas públicas
e em especial na saúde coletiva como uma fonte permanente dos
O principal desafio é desenvolver projetos efeti-
desafios a serem enfrentados no contexto da atenção básica do SUS:
vamente em equipe. Nem sempre os demais pro-
fissionais se envolvem ou se comprometem efeti-
Temos que nos despir de muitas concepções vamente com as propostas. [...] Outro importante
apreendidas nos bancos da universidade, [...] das desafio é a escassez de reuniões formais para
várias categorias profissionais com as quais tra- discussão de casos e grupo de estudos. (P41-110)
balhamos, da comunidade que no primeiro mo- Não temos equipes multidisciplinares e em muitos
mento anseia pelo modelo já conhecido, [...] da momentos faltam discussões sobre os casos, os pro-
falta da proteção e conforto das quatro paredes fissionais trabalham isoladamente [...]. (P41-306)
[...] (P41-400)

A fragmentação do cuidado já vem sendo abordada pelas re-


Chamada de clínica hegemônica ou individual, a prática, formas sanitária e psiquiátrica desde os anos setentas (AMARANTE,
aprendida na maioria dos bancos das universidades, sofreu forte in- 2007). O conceito de apoio matricial, trazido pelo NASF, veio fazer
fluência da clínica médica e é moldada para atender às classes mé- novos questionamentos, mas também inventar novas formas de se
dias e alta da sociedade. Comumente é transportada para a prática superar o modelo de produzir saúde como uma linha de monta-
na saúde pública, muitas vezes de forma acrítica e atendendo aos gem. Para Campos e Dominitti (2007, p. 402) citados por Furtado
anseios já aqui expostos. Para Alexandre e Romagnoli (2017) a in- e Carvalho (2015, p. 12) o apoio matricial e a equipe de referência
serção das psicólogas(os) nas políticas públicas de saúde convocou são essenciais para o trabalho em equipe, pois “buscam diminuir a
a(o) profissional da Psicologia a deixar o consultório e ampliar o seu fragmentação imposta ao processo de trabalho decorrente da espe-
setting para conhecer o território em seus riscos e potências. Essa cialização crescente em quase todas as áreas do conhecimento”.
clínica que se propõe a estar nas praças, ruas e casas não abre mão
A função de apoiador matricial se opera em dois eixos: o clíni-
de condições objetivas de trabalho, o “conforto das quatro paredes”,
co-assistencial e o técnico-pedagógico (CAMPOS; DOMINITTI, 2007).
ou seja, ainda legitima a análise dos participantes da pesquisa do
Basicamente, apoio matricial significa desenvolver “ações interdisci-
CREPOP com relação à falta de salas adequadas, telefone, ventila-
plinares e intersetoriais com vistas à promoção, prevenção e reabili-
dores, materiais para oficinas, porém, recusa-se ao reducionismo da
tação da saúde, com ações voltadas para a educação permanente e
clínica individualizada e descontextualizada.
a promoção da integralidade e da organização territorial dos serviços
Nas errâncias pelo território de vida dos usuários, a Psicologia, de saúde” (ALEXANDRE; ROMAGNOLI, 2017). No cotidiano dos servi-
inserida nas EqSF e guiada pelo Apoio Matricial e Equipe de Referên- ços, essas diretrizes operacionalizam-se em visitas domiciliares com-
cia como principais ferramentas do NASF, se vê diante da necessi- partilhadas, interconsultas e consultas compartilhadas, discussões de
dade de diálogo e compartilhamento de saberes e fazeres com ou- caso, construção de projetos terapêuticos singulares, dentre outras
tras disciplinas. A pesquisa do CREPOP apontou que em 2008 as(os) possibilidades de ampliação do ferramental do apoio matricial.

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56 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 57
Olhar para o território e suas várias formas de produção de vida gestores de saúde, afeta os processos de trabalho tor-
através do filtro do apoio matricial pode ajudar o profissional da Psico- nando-os endurecidos, burocráticos e impedindo os pro-
logia a vislumbrar novas formas de enfrentamento de obstáculos colo- fissionais de transitarem por espaços de diálogo e pac-
cados tanto em 2008 quanto em 2018. Podemos citar como exemplos: tuação e isolando cada vez mais psicólogas(os);
1. O número elevado de EqSF/AB para serem apoiadas 5. A composição da equipe multiprofissional, baseada ape-
(CREPOP, 2008; NEPUMUCENO, 2009, apud FURTADO; nas em critérios como a economia de recursos, pressões
CARVALHO, 2015; LEITE; ANDRADE; BOSI, 2013) impe- políticas e disponibilidade de profissionais, mostra-se
de que a(o) profissional da Psicologia crie vínculos com também um agente dificultador das ações do NASF num
as equipes de ESF/AB e com o território fazendo com território que solicita outra gama de saberes que, muito
que as equipes apoiadas não compreendam o trabalho frequentemente, não coincide com aqueles presentes
da(o) psicóloga(o); no NASF. A(o) profissional da Psicologia, destarte, não
2. O foco do trabalho da(o) psicóloga(o) nas demandas de se vê impelida(o) ao compartilhamento de saberes com
saúde mental, reforçado pela portaria 154/2008, segun- disciplinas que, resguardadas suas importâncias, de fato
do Nepumuceno (2009, apud FURTADO E CARVALHO, não dialogam com a necessidades cruciais ou estratégi-
2015), por uma interpretação equivocada do termo “saú- cas dos sujeitos em seus contextos de vida;
de mental”, fortalece a lógica do atendimento individua- 6. Os impasses éticos relacionados ao registro em prontuá-
lizado, curativista, descontextualizado e desvinculado de rios multiprofissionais e ao compartilhamento de infor-
outros saberes. Ademais, mantém a não implicação dos mações em discussões de caso (CREPOP, 2008) deixam
demais profissionais da ESF/AB com o cuidado da pes- as(os) psicólogas(os) inseguras(os) sobretudo em cida-
soa em sofrimento mental, fazendo com que o profissio- des pequenas onde as relações comunitárias são mais
nal da Psicologia amiúde cumpra, dentro das equipes, o estreitas. Este aspecto mostrou-se também um fator de
mesmo papel que o CAPS cumpre dentro da rede, qual afastamento do profissional da Psicologia dos momen-
seja, o de responsável exclusivo pelo cuidado da pessoa tos de compartilhamento de informações e colaboração
em sofrimento mental; efetiva com as equipes.
3. O alto número de encaminhamentos/acionamentos Alexandre e Romagnoli (2017) discutem como a prática da Psi-
equivocados para a(o) profissional da Psicologia (CRE- cologia nas políticas de saúde só faz sentido num espaço de limiar
POP, 2008; PERRELLA, 2015; BATISTA et al., 2017), fruto e interconexão com outros saberes. É nesse espaço fronteiriço das
de vínculo precário deste com as equipes e a da baixa disciplinas que as práticas inovadoras nascem e as possibilidades
compreensão quanto às possibilidades do trabalho da(o) da contribuição da Psicologia são descobertas. A leitura do conceito
psicóloga(o), faz com que a demanda para a Psicologia de apoio matricial e de todas as suas potencialidades pode ajudar
cresça desnecessariamente e aponta para um repensar a(o) profissional da Psicologia a trabalhar sua ansiedade por modelos
das modos de fazer da(o) psicóloga(o), das formas de prontos de atuação no NASF e superar algumas concepções equivo-
acolher e para agenciamentos dentro do eixo técnico- cadas de Apoio Matricial, como aponta Melo et al. (2018) em análise
-pedagógico do Apoio Matricial; muito oportuna dos dez anos de NASF. Segundo os autores, algumas
4. A lógica produtivista (CREPOP, 2008; Oliveira, 2010 apud equipes, com receio de que o NASF se transforme numa espécie de
Perrella, 2015; Batista et al., 2017), assumida por muitos ambulatório em um espaço entre as atenções primária e secundária,

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58 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 59
buscam uma homogeneidade, fazendo com que a equipe como um 2. Criar, juntamente com as EqSF e demais categorias per-
todo esteja sempre envolvida nas mesmas ações. Além disso, acre- tencentes ao NASF, critérios nítidos de acionamento do
ditam que as EqSF e NASF fazem apenas prevenção e promoção. Apoio Matricial, levando-se em consideração a melhoria
Acrescentamos, ainda, a crença que no NASF só cabem atendimen- das práticas de acolhimento dentro e fora da unidade;
tos grupais, ou a dimensão técnico-pedagógica do Apoio Matricial 3. É necessário ainda que a(o) profissional da Psicologia,
Essas dicotomias entre atendimento individual/atendimento nessa construção, leve em consideração que o Apoio Ma-
grupal, clínico-assistencial/técnico-pedagógica, autonomia/colabora- tricial contém em si a noção de Apoio Institucional (MELO
ção se fazem presentes no trabalho real das equipes com profissio- et al., 2018), o que faz com o que o profissional assuma
nais que fazem apenas atendimento grupais e se recusam aos aten- um papel de problematização dos processos de trabalho
dimentos individuais, ou entendem que seu trabalho só se dá num da organização e mesmo das missões e objetivos do ser-
espaço interdisciplinar (MELO et al., 2018). Na opinião dos autores, a viço. Isto pode levar a estratégias de desestabilização das
priorização das ações deve se dar de acordo com o que o contexto do fronteiras do saber e dos territórios de poder na gestão e
território pede em suas necessidades mais urgentes e/ou estratégicas. no cuidado em saúde. Ao assumir esse posicionamento
Nesse sentido, o monitoramento da efetividade do trabalho do distanciado e ao mesmo tempo inserido nas equipes de
NASF-AB, em particular do trabalho da(o) psicóloga(o), deve levar AB, a(o) profissional da Psicologia pode contribuir para re-
em consideração alguns indicadores importantes como: redução lações menos verticalizadas e mais democráticas;
das filas de espera na AB para serviços especializados em Saúde 4. Contribuir e provocar as equipes de AB para a construção
Mental; redução dos encaminhamentos da AB para serviços espe- de PTSs de casos que resgatem a complexidade da pro-
cializados de Saúde Mental; redução do número de pessoas que dução de saúde e que contribuam para a horizontaliza-
utilizam medicação psicotrópica; diminuição de internações e rein- ção das relações, a ampliação da clínica e produção de
ternações psiquiátricas no território coberto pela AB; ampliação das novas formas de subjetivação. Nunca é demais lembrar
ofertas de laço social no território coberto pela AB; diminuição de que a construção dos PTS deve reconhecer também, e
tabagistas no território; maior adesão às ofertas das EqSF para as principalmente, o protagonismo dos usuários e sua rede
questões ligadas a obesidade, entre outros; redução dos casos de de apoio na produção do cuidado. Este aspecto crucial
suicídios consumados e acompanhamento mais adequado das ten- da clínica ampliada visa a a redução das dependências
tativas de suicídio dentro do território. do usuário em relação aos profissionais e aos serviços e
Como forma de contribuição para a superação das dicotomias incentiva o autocuidado;
e enfrentamento das dificuldades listadas acima, deixamos aqui al- 5. Reconhecer que seu fazer é permanentemente afetado
gumas sugestões práticas que podem ser experimentadas no coti- pelos atravessamentos sociais, culturais, econômicos e
diano do trabalho de psicólogas(os) no NASF e na UBS. comunitários em sua clínica individual ou grupal, abrin-
1. Construir agendas compartilhadas periodicamente com do espaço para os enfrentamentos coletivos de questões
a EqSF e equipes de AB de forma participativa visando a como a violência, o desemprego, pobreza, gênero, rela-
maior inserção nas ações dentro do território e do coti- ções raciais, diversidade sexual, religiosidade e processos
diano da ESF/UBS, buscando ampliar a compreensão do de adoecimento. Além disso, diante das pressões do con-
fazer da Psicologia para além do transtorno mental e dos texto local, a(o) psicóloga(o) pode inserir em sua clínica
atendimentos individualizados; outras categorias e coletivos que, inclusive, possam pro-

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60 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 61
por um remodelamento do cuidado através, por exemplo,
de um grupo de mulheres para o enfrentamento à vio- EIXO 4: GESTÃO DO TRABALHO
lência, conduzido pela(o) psicóloga(o) e pela assistente
social, ou uma formação sobre medicalização da infância DAS(OS) PSICÓLOGAS(OS) NO SUS
com farmacêutico, médico e psicóloga(o);
6. Propor e apoiar tecnicamente ações de Apoio Matricial,
realizadas pelos níveis secundários e terciários, no territó-
rio de abrangência do NASF e baseado em suas deman-
das, como forma de reduzir a pressão vinda da atenção Neste eixo analisaremos as relações de trabalho no âmbito da
básica aos serviços como policlínicas e hospitais; política pública de saúde e os desafios para sua efetivação, discutin-
7. Incentivar, apoiar e envolver-se na criação de grupos na do as condições de trabalho, a organização dos processos de traba-
AB, cuidando do planejamento, escopo, objetivos e du- lho e os limites e dificuldades encontradas pelas(os) profissionais
ração. Lembrar que os grupos não podem ter uma fun- na sua atuação. O pressuposto do eixo gestão do trabalho é de que
ção de prescrição (de condutas e formas de adaptação), “todos os atores na saúde disputam a gestão e a produção do cuida-
mas sim de criação de vínculos afetivos e comunitários do” (MERHY, 2002). Desse modo, as(os) psicólogas(os) são convo-
e apoio às situações de vulnerabilidade; cadas(os) a participarem da gestão de seus processos de trabalho.
Essa perspectiva corrobora com a Política Nacional de Humaniza-
8. Inserir-se nas visitas domiciliares compartilhadas em ção (PNH), que preconiza como um de seus princípios a indissocia-
que a singularidade do caso demandem a escuta da sub- bilidade entre atenção e gestão (BRASIL, 2004).
jetividade do sujeito, de sua família ou comunidade;
Desde o início da entrada das(os) psicólogas(os) na AB, seu
9. Suscitar a leitura compartilhada com as demais ca- trabalho vem sofrendo muitas mudanças e se tornando mais amplo
tegorias do Código de Ética do Psicólogo para a com- e complexo. Como já visto nos eixos anteriores, com a expansão da
preensão e a busca de saídas de compartilhamento de ESF e a criação dos NASFs, novos aspectos da atuação passaram a
informações em prontuário e discussões de caso que ser demandados dessas(es) profissionais (FERREIRA NETO, 2017),
contribuam para a construção de PTSs e não extrapolem como a necessária integração com as EqSF mediante as práticas de
os limites do sigilo, com especial atenção à construção Apoio Matricial. A ESF reorientou o trabalho em saúde na AB levan-
de estratégias possíveis em comunidades pequenas; do todos a compartilharem tanto a produção do cuidado, quanto a
10. Promover espaços de divulgação do fazer da(o) psicólo- gestão dos processos de trabalho (MERHY, 2002).
ga(o) nos diversos âmbitos do SUS evidenciando poten- Mesmo enaltecendo essa nova configuração do trabalho na AB,
cialidades e limitações; vale lembrar que há um número excessivo de população adscrita no
Para finalizar, mas ainda no âmbito das sugestões para a efe- Brasil, em relação a outros países (TESSER; NORMAN, 2015). Enquan-
tivação do trabalho da Psicologia nas políticas de saúde, as dificul- to temos um limite de 3.450 usuários por EqSF, países com população
dades de inserção encontradas pela profissão na Atenção Básica menos vulnerável tem limites bem menores, como a Espanha com
apontam para mudanças nos currículos das Instituições de Ensino 2.500, o Reino Unido com 2.000 e Portugal com 1.500 (GIOVANELLA,
Superior no sentido da inclusão da Saúde Coletiva e do Apoio Ma- et al., 2008). Isso traz como consequência uma sobrecarga de traba-
tricial não só nos cursos de Psicologia, como também nos demais lho tanto para as EqSF quanto para seus apoiadores.
cursos identificados com o trabalho no SUS.

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62 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 63
Neste Eixo, além dos dados da pesquisa do CREPOP (CFP, saúde dos países europeus (BEVIR, 2012; TRIANTAFILLOU, 2012),
2008), trabalhamos também com os dados do Relatório Preliminar ainda carecemos de estudos que avaliem as consequências desse
de Análise Qualitativa dos Dados do Campo Atenção Básica à Saúde processo na AB no Brasil, ainda que existam vários estudos reali-
(BRIGAGÃO, et al., 2009) e com o relatório de uma pesquisa mais zados sobre essa experiência no setor hospitalar (ABRUCIO; SANO,
recente, realizada pelo Conselho Regional de Psicologia de Minas 2008). Nesse aspecto, é importante fomentar pesquisas que avaliem
Gerais em 2016 sobre atuação de psicólogas(os) na atenção básica possíveis ganhos e/ou prejuízos que esse modelo de gestão na saú-
à saúde em Minas Gerais (CRP-MG; UFTM, 2018), além de outras de tem trazido em sua implementação na AB.
pesquisas para o diálogo entre os diferentes momentos históricos da Se compararmos os dados da pesquisa do CREPOP com os da
política de Atenção Básica. As falas transcritas de profissionais que pesquisa mais recente realizada no estado de Minas Gerais (CRP-MG;
aparecerão a seguir neste eixo referem-se a extratos retirados das UFTM, 2018), dos 321 psicólogas(os) respondentes ao questionário
três pesquisas acima citadas. on-line, encontramos mais correspondências que diferenças. Os vín-
Iniciamos essa discussão com a questão da variação salarial culos prevalentes dos profissionais eram o estatutário (49,3 %) ou o
encontrada nos vários municípios onde ainda prevalecem os baixos feito por contrato temporário (40,7 %). Ou seja, em Minas Gerais o
salários. Em levantamento quantitativo da pesquisa do CREPOP 42,7 número de estatutários se mantinha inferior à metade tal como a pes-
% recebiam até R$ 1.500,00. Se levarmos em consideração que as(os) quisa nacional de 2008 apresentou. As principais dificuldades enfren-
profissionais são, na sua maioria, qualificadas(os), 64,6 % possuem tadas no trabalho foram a baixa remuneração (38 %), a falta de inves-
pós-graduação e 50,4 % delas(es) são especialistas, trata-se de uma timento na capacitação profissional (34,9 %), condições inadequadas
remuneração distante do investimento que fizeram na própria for- de trabalho (34,6 %), a falta de investimento governamental (34 %), a
mação. Em municípios maiores a remuneração costuma ser maior. atuação na rede (33,6 %), combate a lógica da medicalização (29,9 %)
Associado a isso, várias(os) profissionais se queixaram da carga ho- e o despreparo dos(os) gestores(as) (27,1 %).
rária de quarenta horas, entendendo que o desejável para esse tipo Ainda em relação à pesquisa de MG, quanto à carga horária,
de trabalho seria de vinte horas. O contrato mais frequente é de trinta a carga de trabalho mais frequente relatada foi a de 31 a 40 horas/
horas em 43,8 % das(os) respondentes da pesquisa. Chama a atenção semana para 36,9 % das(os) respondentes. Uma parcela significati-
o dado de que 86,7 % das(os) respondentes trabalham em organiza- va das(os) profissionais (38,6 %) recebia entre R$ 1001,00 e 2000,00
ções públicas, mas apenas 47,5 % são estatutários(as), indicando que reais, com a carga horária de trabalho mais frequente de vinte horas
boa parte dos municípios pequenos faz contratações via CLT e não semanais. Outro ponto de concentração de valores ficou na renda
no regime estatutário (CFP, 2008). Tal condição faz aumentar a rota- entre R$ 2001,00 e 3000,00 reais (31,10 %), que concentrava a maior
tividade dos(as) profissionais na saúde pública, por ficarem à deriva parte das(os) profissionais com carga de trabalho entre 31 e 40 ho-
do resultado das eleições municipais e a renovação dos cargos entre ras semanais. A carga horária e a remuneração encontrada em 2018
apoiadores, facilitado pela falta de estabilidade do vínculo. não diferem de modo significativo do levantamento de 2008. A pes-
É importante ressaltar que outra modalidade de contratação quisa mais recente traz como avanço a associação entre os salários
tem crescido, a via Organizações Sociais de Saúde (OSS), também e as cargas horárias de trabalho, na medida em que na saúde as va-
com regime celetista. Por exemplo, o município do Rio de Janei- riações de carga horárias são frequentes e, portanto, a remuneração
ro fez recentemente uma grande expansão na sua Atenção Básica, deve ser ponderada pela carga horária exercida.
privilegiando as OSS (SAFFER, 2017). No estado de São Paulo essa Um elemento relevante a ser frisado são as condições de tra-
prática é mais desenvolvida no setor hospitalar. Mesmo sabendo balho distantes do que seria desejável. Os elementos mais aventa-
que a terceirização se tornou uma prática corrente nos sistemas de

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64 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 65
dos na pesquisa realizada em Minas Gerais (CRP-MG; UFTM, 2018) de. Em geral, municípios maiores e os que possuem maior produção,
foram a falta de espaço físico para atuação, escassez de recursos possuem orçamentos maiores e tendem a oferecer maiores salários.
materiais e humanos; alta demanda por atendimentos (aspecto que Em contrapartida, municípios menores e mais pobres operam com
será mais explorado posteriormente), quantidade insatisfatória de parâmetros distintos de remuneração e investimento em infraestru-
profissionais para responder a esta demanda. Também foram indi- tura. Uma alternativa a essa situação seria o Ministério da Saúde criar
cadas dificuldades relativas à carreira profissional. um piso salarial para os profissionais do SUS, oferecendo uma com-
No Relatório Preliminar de Análise Qualitativa dos Dados do plementação de recursos federais aos municípios que não conseguis-
Campo Atenção Básica à Saúde (BRIGAGÃO et al., 2009) há tam- sem atingir esse valor com seu próprio orçamento.
bém a descrição de várias dificuldades ligadas às condições de tra- Outro desafio a ser destacado para o trabalho da(o) psicólo-
balho das(os) psicólogas(os) na AB. A demanda por sala própria é ga(o) na AB é o trabalho em equipe. Este campo de atuação lan-
frequente. Uma segunda preocupação nesse quesito é com a priva- çou as(os) psicólogas(os) ao encontro de outros saberes/fazeres
cidade da conversa, mais antigos na saúde pública, cujo trabalho estabelece uma inter-
dependência. Vale a pena lembrar de que as(os) psicólogas(os),
juntamente com outros(as) profissionais, ainda que estejam inseri-
[…] sala inadequada para atendimento (paredes
das(os) numa relação de suposta igualdade nas equipes multiprofis-
de divisórias de madeira): como fica explicita a
sionais, vivem “na condição de subalternidade na hierarquia interna
condição para o paciente, algumas vezes é preci-
do campo, dominada pela categoria médica” (DIMENSTEIN, 2001, p.
so diminuir o tom da voz. (P41-14)
61). O trabalho em saúde no Brasil e no exterior é médico-centrado.
Isso se revela tanto na perspectiva teórico metodológica principal, a
A escassez de recursos materiais é um elemento com uma epidemiologia, quanto na valorização dos profissionais da área. Isto
grande variedade entre os municípios, mas em alguns, falta o básico. pode ser comprovado tanto na organização do processo de trabalho
quanto na diferença de remuneração das categorias.
Este tema surgiu com vigor nos dados qualitativos da pesquisa
O segundo desafio é a falta de estrutura ideal de
realizada em 2008 (BRIGADÃO, et al., 2009). Mesmo que o trabalho
trabalho, como por exemplo não termos telefone
em equipe seja oficialmente constitutivo na AB, seu processamento
nem computador disponível. (P41-71).
não se dá de modo automático.

A falta de transporte é outro problema constante, que se agra- Equipes de trabalho muito numerosas, com pou-
va quando a população atendida está na zona rural. Isso dificulta ca integração entre os profissionais de diferentes
tanto o acesso da população aos serviços quanto a ida das(os) pro- áreas, dificultando abordagens transdisciplinares
fissionais ao território, gerando em vários casos uma redução das e mais efetivas. (P41-178).
reuniões de matriciamento (SOUSA FILHO, 2019). Em certos locais o trabalho em equipe simples-
A grande variabilidade das condições de trabalho na AB decor- mente não se concretiza. Não temos equipes
re da municipalização desse âmbito do trabalho em saúde. Em um multidisciplinares e em muitos momentos faltam
país com tantas diferenças e desigualdades é difícil estabelecer uma discussões sobre os casos, os profissionais traba-
norma geral que possa ser cumprida por todas as secretarias de saú- lham isoladamente [...]. (P41-306).

Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os)


66 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 67
Mesmo apontando as dificuldades as psicólogas, tiginoso da prevalência da área clínica, psicanalítica, nos cursos de
em geral, reconhecem a importância dos esfor- graduação no Brasil. Era o que se convencionou chamar de clínica
ços para fomentar o trabalho em equipe. O prin- clássica, centrada no atendimento individual e voltada para as classes
cipal desafio é desenvolver projetos efetivamente média e alta (LO BIANCO, A. C.; BASTOS, A. V.; NUNES, M. L.; SILVA,
em equipe. Nem sempre os demais profissionais R. C., 1994). Uma clínica que teria, supostamente, a especificidade de
se envolvem ou se comprometem efetivamente realizar-se num tempo e espaço estranhos à realidade social (FER-
com as propostas. [...] Outro importante desafio REIRA NETO, 2017). A maior parte da geração que iniciou o trabalho
é a escassez de reuniões formais para discussão na AB portava esse tipo de formação e buscava oferecer a escuta psi-
de casos e grupo de estudos. (P41-110) canalítica a todos. Além disso, não havia nos currículos disciplinas
que contemplassem o tema das políticas públicas e da saúde pública.
Essa mudança começou a se realizar nas décadas seguintes.
Foram enunciadas muitas críticas em relação à categoria mé-
Na medida em que o SUS foi se tornando o maior empregador
dica. As(Os) entrevistadas(os) apontaram a dificuldade de conse-
de psicólogas(os) no país, as Instituições de Ensino Superior tiveram
guirem envolvê-los no trabalho em equipe bem como da dificulda-
que se adequar a essa realidade. Em 2006, o Cadastro Nacional de Es-
de de permanência dos mesmos no trabalho. A categoria médica se
tabelecimentos de Saúde (CNES) contabilizava 14.407 psicólogas(os)
fixa por pouco tempo no trabalho no SUS, principalmente em mu-
atuando no SUS, o que correspondia a 10 % das(os) psicólogas(os)
nicípios pequenos e com poucos recursos (NEI, RODRIGUES, 2012).
registradas(os) no Sistema Conselho de Psicologia. Em 2015, o nú-
Além disso, queixaram-se da diferença de remuneração entre os
mero subiu para 49.412, com 19,53 % das(os) psicólogas(os) registra-
médicos e os demais profissionais. Finalmente, apontaram a defi-
das(os). Isso correspondeu a um crescimento de 243 % em menos de
ciência da formação médica para o trabalho na saúde da família.
dez anos (DALTRO; PONDÉ 2017). Outro levantamento realizado pelo
CRP-MG (2010) com 29 dos 53 cursos de Psicologia existentes à época
Os médicos e outros profissionais sem perfil e for- no estado, indicou que a maioria possuía disciplinas e/ou estágios na
mação para trabalhar na ESF (P41-454). área de políticas públicas e, com bastante frequência, uma disciplina
específica que tinha a saúde como tema. Ou seja, um cenário for-
mativo bastante distinto das décadas anteriores, havendo um cresci-
Este é um problema com solução em curso. Desde 2001 do- mento significativo de temáticas associadas ao trabalho em políticas
cumentos governamentais discutem ações para reorientação dos públicas, em geral, e o trabalho na saúde, em particular.
currículos dos cursos de medicina, deslocando-o da formação vol-
O tema da formação foi abordado pelas(os) psicólogas(os)
tada para as especialidades, para manter uma forte base na Atenção
participantes da pesquisa do CREPOP (CFP, 2008) também em ou-
Básica (BRASIL, 2001). Com o tempo, várias ações foram realizadas
tras perspectivas, como os esboçam os fragmentos de falas a seguir.
nessa direção, inclusive o pré-requisito de base na AB como con-
Falou-se muito na formação inadequada dos profissionais médicos
dição para abertura de cursos de medicina, públicos ou privados.
para o trabalho na saúde pública:
Já temos formados uma geração, ainda pequena, de médicos com
essa formação mais próxima à AB.
O tema da formação em Psicologia foi fortemente pautado nas [...] equipes de PSF muitas vezes por sua falta de
entrevistas, apresentando características diferentes da formação mé- formação ou paciência ou para tentar se livrar
dica. Vimos no decorrer dos anos 1970 e 1980 um crescimento ver- tentam empurrar caso sem gravidade alguma
para atendimento na saúde mental. (P41-225)

Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os)


68 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 69
Ou ainda em avaliações mais generalizadas das de- Vemos o destaque da importância da ação gerencial na formação
ficiências da formação médica. A formação profis- permanente. Nessa perspectiva, vale enfatizar a tradição de democra-
sional pautada na medicina tradicional [...] (P41-77) cia institucional presente no SUS e a necessidade de seu fortalecimento
e capilarização, especialmente nos municípios menores como aponta
Campos (2008). Este autor tem defendido a importância da cogestão
Segundo a avaliação de várias entrevistadas ainda existe em mui- como eixo central da organização do SUS, contra a racionalidade hege-
tos municípios um desconhecimento sobre o trabalho em saúde mental: mônica de caráter taylorista e piramidal. Vários instrumentos têm sido
produzidos na direção da democratização das práticas em saúde, tais
A rede de atenção primária ainda não conhece e como o acolhimento, a gestão participativa, a clínica ampliada e com-
não compreende a rede de saúde mental. Falta partilhada. A Política Nacional de Humanização (2004) explora com de-
de entendimento de muitos profissionais da rede talhes essas estratégias, mas podemos agregar a esses instrumentos o
básica e da saúde mental dos princípios do SUS, próprio apoio matricial, como prática dialógica e colaborativa. Contu-
da clínica ampliada e da clínica antimanicomial. do, observamos que a universalização dessas práticas ainda não ocorre
(P41-68) em todos os serviços, ainda que tenha certa prevalência nas capitais.
Tanto na pesquisa de 2008 quanto na de 2018, se reconhece
que, para o desenvolvimento do trabalho em equipe e em rede, as
O tema do apoio matricial em saúde mental, que visa a lidar reuniões periódicas são uma atividade importante tanto para a bus-
diretamente com esse problema, mas nem sempre trazendo os re- ca de soluções específicas quanto para a educação permanente dos
sultados desejados: profissionais. É uma proposta que difere da educação continuada
que opera por uma divisão entre a geração e o manuseio do conhe-
Carência de apoio matricial do CAPS (são realiza- cimento, desvalorizando o conhecimento de quem o produz coti-
dos contatos superficiais, raramente são enviadas dianamente em sua prática diária em prol de um agente externo
contra-referências quando encaminhamos pa- que passaria o seu saber. Na educação permanente a proposta é
cientes para avaliação e/ou tratamento) (P41-81) que os processos de educação dos trabalhadores da saúde se façam
a partir da problematização do próprio processo de trabalho (CAR-
DOSO; FERREIRA, 2014). Para que isso ocorra, as reuniões de matri-
Outras estratégias de formação permanente foram citadas ciamento e outras são espaços fundamentais para garantir avanços
tais como: na formação dos profissionais de saúde na AB.
Como tanto os dados do Relatório Preliminar (BRIGAGÃO et al.,
Reuniões técnicas com a coordenação de Saú- 2009) como os da pesquisa do CREPOP são de 2008, eles não captu-
de Mental, com a Equipe Matricial em SM, com raram a instalação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF)
a supervisora, com os CAPS (quando necessário) no território nacional. Atualmente, boa parte da contratação de psi-
Reuniões Gerenciais: com todas as coordena- cólogas(os) pelos municípios se dá na forma do NASF, em função ao
ções da AB; com a supervisora da Regional es- apoio financeiro dado pelo governo federal para implementação e
pecífica. Reuniões técnico-pedagógicas: com as manutenção dessas equipes. Segundo dados do Ministério da Saúde,
Equipes dos PSFs [...] (P40-60) em 2008 atuavam 329 profissionais e em 2018 este quantitativo pas-
sou a ser de 5.523, o que representa um crescimento exponencial.

Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os)


70 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 71
Temos hoje uma configuração de parte das(os) psicólogas(os) Aqui vemos que não há protocolos de fluxo geral. Em alguns
lotadas(os) em UBS e parte crescente lotadas(os) nos NASF, com municípios, os pacientes devem sempre ser encaminhados pelas
características de trabalho diversas. Enquanto que o trabalho lotado EqSF, enquanto em outros se aceita a demanda espontânea. O NASF
nas UBS mantém o foco no atendimento do paciente com transtor- atuando como porta de entrada de demandas, contraria as diretrizes
no severo e contínuo e no apoio matricial das EqSF, as(os) psicólo- de trabalho preconizadas pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2011).
gas(os) dos NASF relatam um amplo conjunto de atividades a serem Isso pode ocasionar tanto o excesso de demandas, ao receber direta-
desenvolvidas: alguns atendimentos individuais, ambulatoriais, visi- mente solicitações que não foram avaliadas pela EqSF, quanto impos-
tas domiciliares, trabalho de orientação e sensibilização de famílias, sibilitar o planejamento da gestão do trabalho na AB. Vale acentuar
dependendo da demanda, e, principalmente, atividades grupais que os profissionais do NASF têm, na referida Portaria, instrumento
(CRP-MG; UFTM, 2018). para negociar a mudança nos processos de trabalho na AB.
Há uma tendência em curso no país de as secretarias munici- Cabe ressaltar aqui a importância dos usuários para o trabalho
pais de saúde fazerem as contratações de psicólogas(os) através do no SUS. Uma pesquisa quantitativa realizada pelo Instituto de Pes-
NASF. Em Poços de Caldas, por exemplo, esse é o padrão (SOUSA quisa Econômica Aplicada (IPEA), quanto à percepção social sobre
FILHO, 2019). Isso implica que esses profissionais façam tanto a as- os serviços públicos de saúde no país, demonstrou que “os serviços
sistência aos(às) usuários(as) da Saúde Mental, ou seja, portadores públicos de saúde prestados pelo SUS são mais bem avaliados pelos
de transtornos mentais severos e persistentes, quanto aos(as) usuá- entrevistados que tiveram experiência com esses serviços.” (IPEA,
rios(as) das EqSF encaminhados aos NASF, com um perfil mais di- 2011, p. 8). Outras pesquisas também apontam que, sendo a saúde
versificado. Se por um lado é bom que usuários(as) egressos(as) de um projeto coletivo de produção de sujeitos, os usuários, na medida
CAPS ou internações sejam acompanhados pela AB como um todo em que conhecem os serviços os quais acessam para atendimento,
(logo, pelo NASF, usufruindo como qualquer outro usuário obeso, se engajam politicamente para sua melhoria. Ou seja, a participação
hipertenso etc.), por outro, a saúde mental na AB é um ponto estra- e parceria com os usuários se mostram relevantes para a promoção
tégico para o sucesso da desinstitucionalização psiquiátrica, quando de avanços no SUS (FERREIRA NETO; KIND, 2017).
o trabalho psicossocial é bem conduzido. Lembrando que a con- Neste capítulo abordamos o eixo da gestão do trabalho
tratação de psicólogas(os) via NASF traz recursos federais para os das(os) psicólogas(os) no SUS, discutindo alguns de seus aspectos
municípios, podemos supor que esse movimento tenderá a se acen- problemáticos; as condições de trabalho, as vicissitudes do trabalho
tuar, o que exigirá discussões específicas sobre o trabalho das(os) em equipe, a formação na graduação em Psicologia e a educação
psicólogas(os) nessa dupla função. permanente no SUS, o excesso de demanda presente no trabalho
O tema do excesso de demanda apareceu repetidamente nos e algumas de suas determinações e as dificuldades adicionais do
grupos focais conduzidos pelo CREPOP em 2008: trabalho nos municípios, tanto nos aspectos salariais, quanto na am-
plitude de responsabilidades.
A demanda para a Psicologia na atenção básica é
muito grande. Tanto a demanda espontânea (dos
próprios usuários), como os encaminhamentos
dos colegas […] (P41-151).

Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os)


72 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 73
biologizante, medicamentosa e com foco nas patologias, para uma
CONSIDERAÇÕES FINAIS lógica multiprofissional, com práticas interdisciplinares, compreen-
dendo os determinantes sociais da saúde, com foco no sujeito e
suas relações com os diversos contextos em que está inserido, apre-
sentando outros recursos terapêuticos para além da medicação.
Assim, o SUS vai se configurando, adentrando nos mais diver-
O saber-fazer da Psicologia no Brasil vem passando por trans- sos espaços do nosso vasto território, construindo tecnologias de
formações ao longo do tempo. Iniciamos nossa prática atrelada à intervenção condizentes com cada realidade e aproximando a po-
Medicina, com foco nas questões individuais e numa perspectiva pulação de uma experiência real de garantia de direitos. Com ações
curativa e trabalhamos muito tempo com a ideia de saúde como nos três níveis de complexidade da saúde, o SUS propõe-se um sis-
ausência de qualquer enfermidade. tema integrado e hierarquizado com o objetivo de alcançar o maior
A necessidade de transformação da nossa prática surge a par- nível de resolutividade para quem o acessa.
tir da configuração da nossa sociedade, onde a desigualdade marca A Psicologia brasileira, que tem sua prática inicial voltada para
profundamente a constituição do nosso enlaçamento social. Desi- o atendimento individual, no consultório privado, disponível apenas
gualdade originada por múltiplos fatores, desde o racismo estrutu- para uma pequena parcela da população e com o objetivo de “curar”
ral e institucional presente no cotidiano, até um modelo econômico os sujeitos, se vê diante de um grande desafio: como ingressar nessa
que privilegia uma pequena parcela da sociedade, produzindo ver- nova lógica de cuidado à saúde proposta pela política pública? As-
dadeiras “castas” sociais. sim, a partir do movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, que
O acesso à saúde, numa sociedade como a nossa, apresenta se desenvolve paralelamente à Reforma Sanitária, a Psicologia inicia
um quadro onde as classes sociais mais abastadas sempre tiveram o processo de transformação do seu saber-fazer, que passa neces-
seus médicos de família e seus planos de saúde e as populações sariamente pela transformação das grades curriculares nos cursos
menos favorecidas apelavam para os “curandeiros” e outras formas de formação, pelo entendimento de que a prática clínica está mais
de cuidado. A luta por um acesso a saúde universal e a construção próxima do cuidado do que da cura, e que esta prática não se defi-
de uma política pública que tornasse este acesso um direito não foi ne pelo lugar, ou seja, podemos fazer clínica fora dos consultórios
simples nem tampouco aconteceu rápido. privados. Além disso, a utilização de ferramentas importantes como
o trabalho em grupo facilita a intervenção e aproxima cada vez mais
A idealização e construção de uma política pública de saú-
o fazer da Psicologia da população.
de se dá através de um processo que se retroalimenta a partir das
necessidades da sociedade e da capacidade dos saberes se colo- O SUS vai se consolidando e a Psicologia vai adentrado cada
carem dentro deste processo, assumindo responsabilidades e revi- vez mais neste universo, ocupando os três níveis de atenção, sendo
sando seus fazeres. fundamental para a consolidação de práticas de cuidado acessíveis
à população e, com isso, popularizando o entendimento sobre a im-
No Brasil a construção da política pública de saúde tem na
portância da Psicologia no dia a dia das pessoas. Deixando de ser
criação e implantação do SUS a revelação de um processo demo-
uma intervenção apenas no nível da assistência e passando a estru-
crático e participativo, visando a justamente transformar o acesso a
turar práticas nos campos da prevenção e promoção da saúde.
saúde e possibilitar um cuidado integral a toda população brasileira.
Para isso, torna-se imperiosa a mudança de posição dos saberes en- A prática da Psicologia na Atenção Básica, nível primário do
volvidos no cuidado a saúde, de uma lógica exclusivamente médica, cuidado em saúde preconizado pelo SUS, é uma grande conquista,

Referências Técnicas para Atuação de Psicólogas(os)


74 Conselho Federal de Psicologia
na Atenção Básica à Saúde 75
tanto da Psicologia, como da população, que pode agora acessar
este saber-fazer. Para tanto, foi preciso garantir, a partir de legislação REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
específica e de muita luta, este espaço de atuação, consolidado pela
criação do NASF. Além disso, anteriormente, toda uma legislação
sobre a Atenção Básica (PNAB) foi constituída para atender as de-
mandas das populações.
Todas estas conquistas nunca aconteceram de forma pacífica ABRUCIO, F.; SANO, H. Promessas e Resultados da Nova Gestão Pú-
devido a um conjunto de fatores, principalmente pelo processo de blica no Brasil: o caso das organizações sociais de saúde em São
subfinanciamento do SUS, marca registrada de todos os governos, Paulo. RAE, v. 48, n. 3, pp. 64-80, 2008.
e pelos interesses em fazer que esta política pública não funcione
ALEXANDRE, Marta de Lima; ROMAGNOLI, Roberta Carvalho. Práti-
para assim beneficiar os setores privados da saúde.
ca do Psicólogo na Atenção Básica – SUS: conexões com a clínica no
O momento que esta Referência é apresentada para o con- território. Contextos Clínic, São Leopoldo, v. 10, n. 2, pp. 284-299,
junto da categoria representa um aprofundamento destes fatores. A dez. 2017.
Emenda Constitucional n. 95, de 2016, que congela os investimentos
na saúde vai gerar um sucateamento sem proporções no SUS e afe- AMARANTE, Paulo. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de
tará diretamente a nossa prática profissional. Além disso, a privati- Janeiro: Fiocruz, 2007.
zação dos serviços, que já vem ocorrendo paulatinamente ao longo
AROUCA, Sérgio A. S. O dilema preventivista: contribuição para a
do tempo, agora poderá se consolidar diante deste cenário de crise.
compreensão e crítica da medicina preventiva. 1975. Tese. (Dou-
Acreditamos que com este documento possamos apresentar torado em Ciências Médicas) Universidade Estadual de Campinas,
a importância da prática da Psicologia na Atenção Básica, além de Campinas, 1975.
revelar todo um cenário de práticas possíveis e fundamentais para
o cuidado da população. Além disso, frisar a importância do SUS BATISTA, Cassia Beatriz; MACHADO, Rodrigo Martins da Costa; PAU-
como campo de atuação da(o) profissional de Psicologia e convidar LA, Patrícia Pinto de. Gerais, Rev. Interinst. Psicol., Belo Horizonte,
a todas e a todos para defender este espaço de atuação, que vem v. 10, n. 2, pp. 264-274, dez. 2017.
sendo paulatinamente ameaçado, e agora mais do que nunca, ur-
gindo, assim, a necessidade de uma organização para defendermos BEVIR, M. Governance: a very short introduction. Oxford (UK): Ox-
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CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA
CONSELHOS REGIONAIS DE PSICOLOGIA

CENTRO DE REFERÊNCIA TÉCNICA EM PSICOLOGIA E


POLÍTICAS PÚBLICAS - CREPOP

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE


PSICÓLOGAS(OS) EM POLÍTICAS PÚBLICAS DE ESPORTE

Conselheira Federal Responsável


Elizabeth de Lacerda Barbosa

Especialistas
Adriana Bernardes Pereira
Kátia Rubio
Rodrigo Acioli Moura

Brasília, 2019
1ª edição
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em políticas públicas de esporte / Conselho Federal de (CRP14); Laeuza da Silva Farias (CRP15); Juliana Brunoro de Freitas (CRP16); Ada-
Psicologia, Conselhos Regionais de Psicologia e Centro
de Referência Técnica em Psicologia e Políticas la Nayana de Sousa Mata (CRP17); Karina Franco Moshage (CRP18); Bruna Oliveira
Públicas. —— 1. ed. —— Brasília : CFP, 2019. Santana e Claudson Rodrigues de Oliveira (CRP19); Clorijava de Oliveira Santiago Jú-
123 p. ; 21 cm. nior e Gibson Alves dos Santos (CRP20); José Augusto Santos Ribeiro (CRP21); Raissa
Bezerra Palhano (CRP22); Ricardo Furtado de Oliveira (CRP23).
Inclui bibliografia.
ISBN 978-65-5069-001-4
Técnicas(os)
1. Psicologia aplicada. 2. Esportes - Política Cristina Trarbach (CRP01); Maria de Fátima dos Santos Neves (CRP02); Natani
governamental - Brasil. 3. Psicologia social - Prática. Evlin Lima Dias (CRP03); Pablo Mateus dos Santos Jacinto (CRP03); Leiliana Sousa
I. Conselhos Regionais de Psicologia. II. Centro de (CRP04); Roberta Brasilino Barbosa (CRP05) Edson Ferreira Dias Júnior (CRP06); Ra-
Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas faela Demétrio Hilgert (CRP07) Regina Magna Fonseca (CRP09); Letícia Maria Soares
(CREPOP). III. Título.
Palheta (CRP10); Mayrá Lobato Pequeno (CRP11); Iramaia Ranai Gallerani (CRP12);
CDD 158 Katiuska Araújo Duarte (CRP13); Mônica Rodrigues (CRP14); Liércio Pinheiro de Araú-
jo (CRP15); Mariana Moulin Brunow Freitas (CRP16); Zilanda Pereira Lima (CRP17);
Érika Aparecida de Oliveira (CRP18); Lidiane de Melo Drapala (CRP19); John Wedson
Bibliotecária Priscila Pena Machado CRB-7/6971 dos Santos Silva (CRP21); Lívia Maria Guedes de Lima Andrade (CRP22); Stéfhane
Santana Da Silva (CRP23)
Sistema de Bibliotecas da Universidade São Francisco - USF
Ficha catalográfica elaborada por: Priscila Pena Machado CRB-7/6971
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA
XVII PLENÁRIO Sumário
Gestão 2017-2019

Diretoria
Rogério Giannini – Presidente APRESENTAÇÃO ............................................................................................................... 06
Ana Sandra Fernandes Arcoverde Nóbrega – Vice-presidente
Pedro Paulo Gastalho de Bicalho – Secretário INTRODUÇÃO .......................................................................................................................07
Norma Celiane Cosmo – Tesoureira
EIXO 1
Conselheiras(os) efetivas(os)
Iolete Ribeiro da Silva – Secretária Região Norte Dimensão ético-política da Psicologia Social do Esporte............................................ 38
Clarissa Paranhos Guedes – Secretária Região Nordeste
Marisa Helena Alves – Secretária Região Centro-Oeste EIXO 2
Júnia Maria Campos Lara – Secretária Região Sudeste
Rosane Lorena Granzotto – Secretária Região Sul A constituição da Psicologia do Esporte no caminho das Políticas Públicas ......... 50
Fabian Javier Marin Rueda – Conselheiro 1
Célia Zenaide da Silva – Conselheira 2 EIXO 3
Conselheiras(os) suplentes Atuação da(o) Psicóloga(o) nas Políticas Públicas para o Esporte ............................57
Maria Márcia Badaró Bandeira – Suplente
Daniela Sacramento Zanini – Suplente
Paulo Roberto Martins Maldos – Suplente
EIXO 4
Fabiana Itaci Corrêa de Araujo – Suplente Diretrizes para o trabalho na Psicologia Social do Esporte ........................................ 88
Jureuda Duarte Guerra – Suplente Região Norte
Andréa Esmeraldo Câmara – Suplente Região Nordeste
Regina Lúcia Sucupira Pedroza – Suplente Região Centro-Oeste CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................104
Sandra Elena Sposito – Suplente Região Sudeste
Cleia Oliveira Cunha – Suplente Região Sul (In memoriam) BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................108
Elizabeth de Lacerda Barbosa – Conselheira Suplente 1
Paulo José Barroso de Aguiar Pessoa – Conselheiro Suplente 2
APRESENTAÇÃO INTRODUÇÃO

O Conselho Federal de Psicologia (CFP) apresenta à categoria


e à sociedade o documento Referências Técnicas para Atuação de Psi-
cólogas(os) em Políticas Públicas de Esporte, elaborado no âmbito do
Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas Esporte – Como e por quê
(CREPOP). O documento apresenta as possibilidades de atuação da O esporte e a atividade física chegam ao século XIX acompa-
categoria no âmbito da Psicologia Social do Esporte. nhando as transformações políticas e sociais que começaram nos
Este documento enfatiza a dimensão social do esporte, ao pro- séculos anteriores — Iluminismo, Revolução Industrial e Revolução
vocar a categoria a refletir sobre práticas desportivas para além do alto Francesa — demonstrando, desde então, uma tendência a servir
rendimento e grandes eventos esportivos. Busca, então, potencializar como uma tela de projeção da dinâmica social.
os jogos e atividades recreativas como instrumentos importantes de Merece especial atenção o processo ocorrido na Inglaterra
trabalho da Psicologia, o que possibilita a construção de vínculos, tra- dos séculos XVIII e XIX, país no qual surgiram e se difundiram vários
balhos em grupo, apropriação do território… dentre outros sentidos. elementos de prática corporal de movimento competitivo. Principal
A profissão, cada vez mais, é convocada a atuar no campo es- potência mundial, a Inglaterra dominava comercialmente a Europa
portivo, o que demanda do Sistema Conselhos de Psicologia orien- e parte dos continentes americano, africano e asiático, com um mo-
tações para a atuação. Essa Referência Técnica surge como uma delo diferente do ibérico que havia predominado nos séculos ante-
resposta efetiva à categoria e que pretende demarcar ainda mais o riores. No século XVIII já não bastava descobrir, explorar e/ou coloni-
campo da Psicologia do Esporte no Brasil. No entanto, o texto reflete zar. Era preciso expandir mercados para o escoamento da produção
que a política pública de esporte não é vista como prioridade, o que industrial que crescia com a invenção de máquinas e novas tecno-
dificulta a presença da profissão neste campo de atuação. logias. As escolas ganhavam destaque nesse cenário preparando os
O XVII Plenário do CFP agradece a todas e a todos os envolvi- representantes do império, responsáveis por levar a cultura e a ideo-
dos na elaboração deste documento, em especial aos membros da logia britânicas às colônias e ao novo mundo.
comissão ad-hoc, responsáveis pela redação. Desejamos que esta Mandell (1986) reforça essa premissa ao afirmar que o esporte
publicação seja um instrumento de orientação e qualificação da surgiu em um momento histórico marcado por condições sociais
prática profissional e de reafirmação do compromisso ético-político particulares, sendo modelado conforme cânones de prazer e ócio
da Psicologia e que possa auxiliar profissionais e estudantes na apro- de determinadas classes sociais.
ximação com o campo da Psicologia Social do Esporte, pensando As práticas esportivas destacaram-se nesse processo, fenôme-
essa área em uma perspectiva ampliada e crítica. no que ocorre entre o final do século XIX e início do século XX.
Hobsbawn e Ranger (1997) entendem que o esporte é uma tradição
XVII Plenário inventada que ocupou um lugar privilegiado na sociedade europeia
Conselho Federal de Psicologia e norte-americana por colaborar para a construção de identidades

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


6 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 7
nacionais. Cultura e tradição tornaram-se valores preciosos na con- novos, além de práticas sexuais inconvenientes e pela mais comple-
quista de novos mercados, responsáveis pela criação de necessi- ta autonomia dos alunos no uso de seu tempo livre. A necessidade
dades desconhecidas e pela implementação de comportamentos e de regulação das atividades de ócio levou a uma reformulação das
atitudes inéditos. Os autores entendem por tradição inventada todo: instituições educacionais ao longo do século XIX. Esse momento
é marcado pela utilização do esporte como parte da estratégia de
controle das atividades dos adolescentes das classes dominantes e,
um conjunto de práticas, normalmente reguladas
em um período muito curto de tempo, transformou-se em um dos
por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práti-
conteúdos curriculares mais importantes dessas instituições.
cas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar
certos valores e normas de comportamento através Até então, conforme Barbero (1993), tradicionalmente os estu-
da repetição, o que implica, automaticamente, uma dantes tinham garantido o direito de desfrutar e disponibilizar de seu
continuidade em relação ao passado (p. 09). tempo livre de acordo com seu desejo, porque se supunha que tal
liberdade era de fundamental importância para a formação do espí-
rito independente dos futuros líderes sociais. Diante disso, era de se
De acordo com Mandell (1986) muito mais do que no con- esperar que após tediosas sessões de língua e cultura clássicas, que
tinente os novos ricos e os políticos habilidosos podiam obter fa- constituíam o currículo acadêmico das public schools, os estudantes
vores reais convertidos em forma de terras e títulos nobiliárquicos buscassem refúgio em lugares distantes e distintos como as tabernas,
que equivaliam oficialmente a uma ascensão à aristocracia. Embora realizassem atos de vandalismo e atividades proibidas (como a invasão
houvesse a possibilidade de acumulação de fortunas, a primogeni- de propriedades, caça e pesca) ou se ocupassem com práticas popu-
tura e a competência fizeram com que a aristocracia inglesa fosse lares (formas tradicionais de futebol e outros jogos com bola, persegui-
menos numerosa que suas homólogas na França e na Alemanha. ções etc.) que assumiam também o caráter iniciático dos mais jovens
Diferentemente do que ocorria do outro lado do Canal da Mancha, que eram obrigados a desempenhar o papel de sofredores.
o status aristocrático inglês dependia muito mais da riqueza, da in- Essas condições acabaram por gerar também uma preocupa-
fluência na corte e dos lucros acumulados por antepassados aristo- ção com a normatização de conduta e de regras. Elias e Dunning
cráticos. Diante disso, muito ingleses experimentaram novos meios (1992, p. 224) apontam que o “quadro de regras, incluindo aquelas
de controle de recursos e de criação de riqueza. Alguns tiveram no- que eram orientadas pelas ideias de ‘justiça’, de igualdade de oportu-
tável êxito e é nesse contexto que o esporte moderno e a Revolução nidades de êxito para todos os participantes tornou-se mais rígido”. A
Industrial têm sua origem comum no dinamismo da cultura inglesa. crueldade, a vulgaridade e a rudeza das práticas de tempo livre reali-
Contribuiu para o fortalecimento desse modelo o sistema edu- zadas pelos estudantes ingleses levaram as autoridades educacionais
cacional inglês. Distante do que seu nome sugere as public schools a reconsiderar o princípio da liberdade e independência. Alguns pas-
eram centros educativos seletos, os quais eram frequentados pelos satempos tradicionais foram prontamente proibidos. Aqueles consi-
filhos, do sexo masculino, da aristocracia e da alta burguesia (RU- derados suscetíveis a regulação e de fácil ajuste a um marco espacial
BIO, 2002a). definido ou capaz de fomentar espírito de equipe, foram adotados.
Barbero (1993) afirma que essas escolas se assemelham às Não se pode dizer que esse processo tenha sido pacífico e
instituições totais, definidas por Foucault, e caracterizavam-se por aceito prontamente, pelo contrário. Depois de muita resistência os
uma grande disciplina interna, que levavam ao abuso, à tirania e estudantes conseguiram manter sua tradicional autonomia em rela-
a crueldade física dos alunos mais velhos e maiores sobre os mais ção ao uso do tempo livre. Os processos de regulação a que foram

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


8 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 9
submetidos os passatempos tradicionais pré-esportivos até serem mais apropriados para o imperialismo: a coragem, o autocontrole e
transformados em esportes foram produto de inúmeras negocia- o companheirismo.
ções entre estudantes e dirigentes escolares, cuja formação era ba- Enquanto as public schools se voltavam para a formação dos
sicamente clerical. Foram sistematizados os códigos, os gestos apro- filhos da aristocracia e da alta burguesia, as crianças filhas da clas-
priados e homologadas as similitudes e as variedades das diversas se trabalhadora frequentavam outro tipo de instituição educacional,
modalidades. Em pouco tempo uma nova ordem se estabelecia nas após a transferência para o Estado das escolas de ensino fundamen-
public schools. Investido de caráter educativo, o esporte se transfor- tal associadas à Igreja e a entidades particulares de caráter benefi-
mou em componente central dos currículos escolares. Quadras, cente. O Ato de Educação de 1870 estabeleceu um acordo entre o
campos, piscinas e pistas converteram-se em um celeiro de líderes Departamento de Educação e o Gabinete Militar para que sargentos
que iriam atuar na indústria, na política, no exército, nas empresas e ministrassem educação física nessas escolas (BETTI, 1991).
na administração do império colonial e a influência socializante dos
Os recintos escolares foram alvo de um tipo de intervenção
jogos era enfatizada para promover liderança, lealdade, coopera-
que pretendia estender uma certa prática de exercício ginástico —
ção, autodisciplina, iniciativa e tenacidade, qualidades necessárias
repetitivo, estático, em espaço limitado — que buscava proporcio-
à administração do Império britânico (RUBIO, 2006).
nar benefícios para a saúde, além de impor a docilidade dos corpos.
Em algumas décadas os alunos originários dessas instituições, O esporte, em oposição à ginástica, continuou a ser desenvolvido
a chamada cristandade muscular1 (TJEDER, 2011), conquistou postos em espaços abertos e formava líderes empreendedores e bons ofi-
de direção no governo, no parlamento, na igreja, em empresas priva- ciais. A distinção social favorecia a exclusão esportiva.
das e na educação e difundiram com muito êxito a nova mensagem
De acordo com Guttmann (1992) o esporte da elite tinha como
esportiva, pois subscreviam o imperativo ético imperial. Executores
finalidade a socialização e o desenvolvimento de papéis cujo prin-
autocratas, exerciam o papel moral pela autoridade: ocupavam os
cipal traço seria a liderança necessária para o comando dentro e
púlpitos das igrejas, participavam das competições esportivas, da
fora do território. Os esportes do proletariado, por outro lado, cami-
caçada na selva, realizavam palestras em escolas ou escreviam os
nhavam na direção das modalidades coletivas onde predominava
editoriais dos periódicos oferecendo à sociedade sua versão da rea-
a aprendizagem e a prática da subordinação e a aceitação da auto-
lidade. E assim, a Inglaterra passou a exportar as práticas esportivas
ridade, autoridade essa simbolizada mais imediatamente na figura
juntamente com suas mercadorias e poder bélico para a Índia, para
do técnico. Cedo os atletas-operários eram iniciados na rotina do
a África, para a América e onde mais se descortinasse um merca-
sistema industrial.
do consumidor. De acordo com Mangan (1986) algumas modalida-
des esportivas como o críquete definiam claramente o conceito de Desde a primeira metade do século XIX os jogos populares tor-
cavalheirismo, embora o rúgbi e o futebol propusessem os valores naram-se alvo da atenção e intervenção por parte dos setores mais
puritanos e moralistas das classes dominantes. A heterogeneidade
dos diversos grupos sociais levou à criação de várias e distintas as-
1 Cristandade muscular foi a denominação dada aos alunos (homens, diga-se de pas- sociações que acabaram por complementar-se, culminando em um
sagem) formados nas public schools inglesas. Era uma geração de garotos originários
efeito regular amplo e efetivo. As igrejas, de acordo com Barbero
da aristocracia capaz de pagar pelo ensino em instituições consagradas onde quadras,
campos, piscinas e pistas eram usados para desenvolver não apenas habilidades es- (1993) foram uma das principais agências na difusão da mensagem
portivas, mas também sociais. Entendia-se que a influência socializante do esporte era esportiva. Como meio de intervenção, tinham fácil acesso às comu-
enfatizada para promover liderança, lealdade, cooperação, autodisciplina, iniciativa e nidades e bairros de trabalhadores e dispunham de espaço que po-
tenacidade, qualidades necessárias à indústria, à política, ao exército, às empresas co- diam ser transformados em campos de jogo exatamente ao lado das
merciais e na administração do império colonial inglês. (BROHM, 1993).

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10 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 11
igrejas. Com isso facilitavam as atividades esportivas e ampliavam tradições que entre outras ações refletia-se no uso do tempo ocioso,
o rebanho de fiéis. Além disso, os religiosos jovens acreditavam no e na hierarquia que demandava a compreensão e aceitação de uma
esporte e perceberam que essa atividade seria um bom meio para ‘ordem natural’ imposta pelos veteranos, perpetuando uma cultura
atrair fiéis para a igreja. Young (1968) afirma que milhares de clubes que deveria ser reproduzida pelos mais novos.
e equipes esportivas foram constituídos sob o amparo de institui- A preocupação de Coubertin era desenvolver um modelo de
ções religiosas. reforma social, no qual a educação e o esporte teriam uma perspec-
Mas não foram apenas as igrejas que descobriram o poder tiva internacionalista. Depois de conhecer as escolas inglesas, partiu
da atividade esportiva. As fábricas foram outro importante foco de para os Estados Unidos para conhecer de perto o modelo americano
criação de clubes esportivos. As equipes de futebol constituíram-se emergente e distinto do inglês. Nessa oportunidade Coubertin mos-
como uma das principais atividades recreativas dos trabalhadores trou-se surpreso com a estrutura social estadunidense que separava
das cidades industriais durante o inverno. a igreja do Estado e tolerava a liberdade de culto. Isso porque os
Um dos principais desdobramentos da organização do esporte países de cultura puritana resistiam aos Jogos Olímpicos, relacio-
no século XIX foi a organização do Movimento Olímpico, que culmi- nando-os com uma festa pagã (RUBIO, 2001a). Vale lembrar que a
nou na criação e realização dos Jogos Olímpicos, evento sociocultu- extinção dos Jogos Olímpicos foi determinada pelo imperador Teo-
ral e esportivo que atravessou um século repleto de transformações dósio, um católico fervoroso, a pedido do bispo de Milão, San Am-
e se estabeleceu como um dos negócios mais atrativos da atuali- brósio, no ano de 394.
dade. Essa competição realizada de quatro em quatro anos alterou O projeto de restauração dos Jogos Olímpicos como na Grécia
e ainda altera os rumos que as modalidades esportivas traçam em Helênica foi apresentado à União das Sociedades Francesas de Es-
caráter regional, nacional e internacional. portes Atléticos, em 25 de novembro de 1892. A tarefa de promover
uma competição esportiva de âmbito internacional, espelhada nos
Jogos Olímpicos gregos, demandou a criação do Comitê Olímpico
Internacional (COI), em 1884, instituição que daria o suporte huma-
O Movimento Olímpico no e material para a realização de tal empreitada. Constituído por
representantes de várias nacionalidades indicados pelos participan-
O Movimento Olímpico contemporâneo tem como principal tes do encontro que o criou, o COI tinha como missão e intenção a
ideólogo Pierre de Freddy, conhecido como Barão de Coubertin. organização dos Jogos Olímpicos bem como a normatização das
Educador, pensador e historiador, quando se empenhou na reorga- modalidades disputadas, muitas delas recém-criadas e sem um cor-
nização dos Jogos Olímpicos almejava revalorizar os aspectos pe- po de regras universalizadas. A competição foi planejada para ser de
dagógicos do esporte mais do que assistir à conquista de marcas e caráter internacional, com realização quadrienal, cujos participan-
quebra de recordes. tes estariam vinculados a representações nacionais. A proposta de
As obras Notes sur l’Anglaterre de Hippolyte Taine e Tom Brown’s criação da instituição nessas bases guardava preocupações com a
Schooldays de Thomas Hughes, sobre o sistema educacional e espor- isenção, autonomia e independência de um movimento que se pro-
tivo ingleses, provocaram profunda inspiração em Coubertin. Essas punha internacional, apolítico e apartidário. Como decorrência des-
obras relatam de forma romanesca e apaixonada o cotidiano e as sa perspectiva Coubertin idealizou o Movimento Olímpico sustenta-
preocupações de uma pedagogia pelo esporte nas escolas inglesas. do na força dos comitês olímpicos nacionais, mas principalmente
A fundamentação dessa pedagogia se assentava na responsabilida- na cooptação e atuação dos membros do Comitê. A prática de indi-
de, associada ao uso da liberdade e do cumprimento de normas e cação pelo próprio Comitê persiste até os dias atuais e seus mem-

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12 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 13
bros são considerados embaixadores dos ideais olímpicos em seus ano de 1904, em Paris, cujos países signatários foram Bélgica, Dina-
respectivos países e não delegados de suas nações junto ao Comitê, marca, França, Holanda, Espanha, Suécia e Suíça, dez anos depois
numa tentativa de separar o esporte da política (RUBIO, 2006). O re- da criação do Comitê Olímpico Internacional (COI), que naquele
ceio de lidar com conflitos internos e o ceticismo com a democracia momento buscava congregar todas as modalidades esportivas num
levou Coubertin a estruturar e organizar o COI como uma instituição grande festival quadrienal chamado Jogos Olímpicos. Embora a fa-
unipartidária, em um modelo próximo ao oligárquico, tendo como mília olímpica desejasse parecer aos olhos do público uma unidade
documento norteador de sua prática a Carta Olímpica, elaborada homogênea, ela carregava em seu interior as intrigas e diferenças
pelo fundador do movimento olímpico em aproximadamente 1898. que marcam uma sociedade estratificada e classista. O futebol era
As modernas olimpíadas, ou seja, o período em que ocorrem visto como uma modalidade popular praticada por operários das
as edições dos Jogos Olímpicos, dividem-se em Jogos de Verão e de inúmeras fábricas na Grã-Bretanha, nas poucas horas livres que res-
Inverno, alternadamente. Diferentemente da dificuldade para defi- tavam das exaustivas jornadas de trabalho semanais. Apesar disso
nição da sede ocorrida nas edições iniciais, na atualidade, a realiza- algumas escolas aristocráticas permitiam o futebol entre os estudan-
ção das competições é disputada por grandes metrópoles dos cinco tes, que tinham no rúgbi, no críquete ou no tênis modalidades consi-
continentes, em um processo que demanda alguns anos. deradas mais apropriadas a quem estudava nessas instituições. Au-
sente do programa olímpico em 1896, por não demonstrar interesse
Para os gregos, os Jogos representavam um momento de trégua
entre aqueles que poderiam competir, o futebol foi incluído como
nas guerras e conflitos de qualquer ordem para que competidores e
modalidade de exibição nos Jogos de 1900 e 1904, sendo que dessa
espectadores pudessem chegar a Olímpia. Ao longo de mais de um
última participaram apenas estudantes universitários.
século os Jogos Olímpicos da Era Moderna já sofreram interrupção
por causa das duas Grandes Guerras e boicotes promovidos por Es- Ainda que nada recebessem para jogar, os operários/jogadores
tados Unidos e União Soviética na década de 1980, indicando que o eram considerados profissionais, adjetivo empregado para contrastar
Movimento Olímpico não está alheio às questões sociais e políticas com os atletas amadores, ou seja, aqueles que praticavam o esporte
do mundo contemporâneo como desejava Pierre de Coubertin. por amor, e que defendiam a prática hedonista e descompromissada
possível apenas aos que podiam se dedicar ao esporte sem qualquer
outra intenção senão o prazer pelo esforço. Era considerado amador
todo atleta que jamais tivesse recebido prêmio em dinheiro por um
O esporte como profissão resultado alcançado em competição ou competido com profissionais,
e que não tivesse recebido algum ganho em dinheiro para exercer
A intenção de limitar o esporte a nobres e aristocratas intenta- a função de professor ou monitor de atividades físicas, fossem elas
va sobreviver dentro de uma concepção anacrônica de amadorismo competitivas ou não. Ou seja, a afirmação do amadorismo buscava
que foi derivada, em parte, de conceitos medievais de hierarquia distanciar do cenário olímpico a corrupção gerada pelas tentações
social, em parte do ideal renascentista de habilidades plurais sem do capitalismo de promover o lucro com a habilidade do atleta. E
práticas específicas. Defendido arduamente por nobres e aristocra- assim, desde a primeira edição olímpica realizada em 1896, foi colo-
tas, o amadorismo foi enfrentado ainda no século XIX, justamente cada à prova a capacidade de diálogo e entendimento entre atletas e
na modalidade que sintetiza a organização do esporte moderno. instituições. Enquanto os atletas desejavam competir, as instituições,
De acordo com Rubio (2018a) o futebol foi institucionalizado por meio de seus dirigentes, pretendiam defender não apenas sua
na Inglaterra por meio da Associação de Futebol, em 1863, e teve sua compreensão sobre o esporte, mas manter o poder das organizações
organização internacional estruturada com a fundação da FIFA, no que já dominavam as competições. Nessa mesma época o futebol

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14 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 15
alcançou popularidade e se multiplicou rapidamente, também no esporte. Essa decisão afetava diretamente muitos jogadores/trabalha-
continente europeu, desvinculando-se da identidade operária origi- dores de diferentes seleções nacionais. Diante da postura da FIFA em
nal, estimulando a criação de muitos clubes, vários deles ainda ativos. defender seus jogadores, a Associação Olímpica Britânica formalizou
Naquele momento da história essa popularização parecia ameaçar a um protesto pelo descumprimento de uma regra estrutural do mo-
posição aristocrática alcançada pelo esporte, colocando em risco a vimento olímpico, exigindo assim que o futebol fosse excluído dos
imagem de exclusividade consolidada. Jogos de Amsterdam, em 1928. A exclusão não ocorreu nessa edição,
Rubio (2018a) aponta ainda que ao longo das décadas de 1910 porém, concretizou-se em 1932. Ciente do poder de mobilização que
e 1920, mesmo com uma Grande Guerra a devastar a Europa, um o futebol já desenvolvera ao longo das últimas décadas, o então presi-
poderoso embate envolvendo o entendimento do que era amadoris- dente da FIFA, Jules Rimet, resolveu organizar um campeonato mun-
mo e profissionalismo dominou as assembleias e reuniões do COI. A dial de futebol. Para ele era evidente que o futebol já não dependia
aristocracia dominante não admitia que membros das classes traba- do COI, nem dos Jogos Olímpicos, para promover a competição que
lhadoras pudessem se misturar ao seleto grupo olímpico e para tanto os atletas — amadores ou não no entendimento do COI — desejavam
criou regras rígidas que levou o futebol a um impasse. Quando incluí- ter, dando ao público o espetáculo que ele queria receber. A partir
do no programa olímpico nos Jogos de Londres, em 1908, o futebol desse momento teve início o espetáculo esportivo capaz de rivalizar
já era organizado pela FIFA, que estabeleceu as condições para que com os Jogos Olímpicos. A primeira Copa do Mundo, realizada no
essa competição ocorresse, controlando não apenas as regras, mas Uruguai, em 1930, deslocou a atenção do mundo esportivo da Europa
também toda a gestão dos jogos, como a indicação de árbitros e auxi- e da América do Norte, e inaugurou uma nova lógica para o esporte,
liares. Nesse momento, cada federação definia seu conceito de atleta que se concretizaria na década de 1980.
amador. Ali tinha início à maior demonstração de força do universo Os Jogos Olímpicos da Era Moderna atravessaram o século XX
do esporte, muito embora ninguém tivesse ideia o que resultaria des- e sobreviveram a duas Grandes Guerras, dois boicotes declarados
te impasse. A competição destinava-se apenas e tão somente a ama- e alguns disfarçados, mas não suportou a força do poder financei-
dores, que não recebiam qualquer remuneração, que não fossem re- ro que prevaleceu sobre o espírito do amadorismo após os Jogos
gistrados como profissionais, muito embora pudessem ter reembolso de Los Angeles,1984. Entre os vários motivos que favoreceram essa
de despesas para o pagamento de viagens e hospedagens. Também abertura está a falta de entendimento generalizado do que seja a
se considerava remuneração despesas de treinamento pagas pelas condição amadora.
entidades representadas pelos atletas. A permanência do futebol no Rubio (2006) aponta que a disparidade provocada em algu-
programa olímpico foi cercada de tensão até o final da década de mas modalidades pela utilização de atletas do bloco socialista em
1920. Os jogos lotavam estádios, como poucas outras competições, disputas olímpicas levou à alteração da regra do futebol nos Jogos
dando à FIFA a tranquilidade para negociar com o COI quem seriam de Los Angeles-1984 quando poucos meses antes da competição
seus atletas em campo. Considerado popular e inclusivo permitia que a FIFA proibiu a participação nos Jogos Olímpicos de atletas que já
seleções nacionais fossem formadas por extratos sociais distintos da haviam disputado alguma Copa de Mundo independentemente da
aristocracia predominante até então nas outras modalidades olímpi- idade. A questão não era complexa. As seleções que disputavam a
cas. O ponto culminante da tensão ocorreu quando, no congresso competição olímpica dispunham de atletas jovens, talentosos, mas
de Praga de 1925, diante de uma nova discussão para definir quem com pouca experiência. Quando em disputa com as seleções dos
seria os atletas amadores, ficou determinado que o reembolso de sa- países do bloco socialista a disparidade física ficava evidente, bem
lários perdidos por causa das competições seria considerado ganho como os vários anos a mais de vida e de carreira. O argumento da
indireto, e, portanto, caracterizaria ganho financeiro para a prática do falta de paridade prevaleceu.

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16 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 17
Outro elemento que não pode ser desprezado na transforma- Montreal, capital da província de Quebec, apresentava a particula-
ção dos valores do amadorismo foi a possibilidade de transmissão ridade de ser uma cidade representativa da porção francófona ca-
televisiva a partir dos Jogos de Roma. Uma cadeia transnacional de nadense e, portanto, minoritária dentro da República canadense. As
televisão transmitiu os jogos ao vivo para duzentos milhões de es- diferenças entre as comunidades e as rivalidades políticas levaram o
pectadores em dezenove países da Europa Ocidental. Estados Uni- governo a advertir os organizadores dos Jogos que nenhum centavo
dos e Japão também puderam assistir às imagens das competições seria destinado a obras para essa finalidade. Embora recebesse 34,5
por videoteipe, o que rendeu ao COI na época a quantia de cin- milhões de dólares pelos direitos de transmissão pela televisão, o
quenta mil dólares. Nos Jogos de Tóquio, 1964, a transmissão seria governo local amargou um prejuízo de aproximadamente 1,7 bilhão
via satélite, ao vivo e em cores e abrangeria os Estados Unidos, a de dólares, transformado em impostos que a comunidade quebecoi-
Europa e o Japão e o valor pago ao COI foi de sessenta e cinco mil se pagou até o ano de 2000 (LÓPEZ, 1992; CARDOSO, 2000)
dólares. Nas edições subsequentes dos Jogos Olímpicos os valores Depois dessa experiência era certa a necessidade de buscar
não pararam de crescer, superando a marca do bilhão nos Jogos de novas estratégias para o futuro dos Jogos Olímpicos, que começava
Sydney-2000. A televisão passaria a incorporar o espetáculo olímpi- a ganhar novos contornos com os boicotes promovidos pelos Esta-
co tanto quanto os próprios atletas (CARDOSO, 2000). dos Unidos e seus aliados em 1980 e, posteriormente, pela União
Uma nova ordem comercial se estabeleceu com a entrada da Soviética e países do bloco socialista em 1984 e com a eleição de
televisão no mundo olímpico. A visibilidade que os atletas ganharam Juan Antonio Samaranch para a presidência do COI em 1980.
estimularam empresas comerciais a terem suas marcas associadas A entrada de grandes empresas no financiamento dos Jogos
àqueles seres sobre-humanos capazes de realizações incomuns. parecia inevitável diante das necessidades impostas à cidade-sede.
Diante do risco que a celebração de contratos podia representar para Los Angeles-1984 serviu como um laboratório para essa experiência.
a carreira dos atletas, o caminho era burlar as normas por meio de Naquela ocasião, apesar do boicote, o governo norte-americano não
atitudes inusitadas. Foi o que fez o nadador Mark Spitz nos Jogos de retirou um único centavo dos cofres públicos para a realização de
Munique-1972 que, tendo se destacado como ganhador de sete me- obras. Por sua vez o marketing desportivo mostrava sua razão de existir
dalhas de ouro com sete recordes, um feito nunca antes realizado por promovendo a captação de recursos suficientes para cobrir todas as
ninguém, subiu ao pódio com um par de tênis Adidas... no pescoço. despesas e ainda render lucro a seus organizadores. Abrira-se o cami-
Jennings (1996) demonstra como o poder econômico minava nho para novos rumos olímpicos que não haveria de ter volta.
os ideais olímpicos tão duramente defendidos por Coubertin ao lon- Nos Jogos de Seul-1998, atletas e equipes experimentaram ou-
go de sua vida. A questão central dessa investigação era a relação sar sua capacidade de fazer brilhar a marca de seus patrocinadores,
próxima e discutível entre o COI, a FIFA e a Adidas e os benefícios mas foram os Jogos Olímpicos de Barcelona-1992 que apresentaram
pessoais que essa “amizade” estava proporcionando. o símbolo da profissionalização do esporte: o time de basquete nor-
Outro fato que levou à busca da profissionalização não apenas te-americano, chamado de dream team. Originários de um país com
entre os atletas, mas à estrutura do COI, foi o crescente gigantismo uma instituição chamada NBA (National Basketball Association) que
dos Jogos Olímpicos. A necessidade de uma ampla infraestrutura promovia um campeonato com vinte e sete times e pagava os mais
para realização das competições, bem como a acomodação de mi- altos salários do planeta para atletas, Michael Jordan, Magic John-
lhares de atletas, turistas e técnicos de apoio atrelaram a realização son e Larry Bird, entre outros, participaram dos Jogos Olímpicos não
dos Jogos à boa vontade governamental dos países no qual eles ocor- para ganhar uma medalha de ouro, que ninguém duvidava que fos-
ressem. Essa dinâmica foi mantida até o Jogos de Montreal-1976. se deles, mas para divulgar a todo o planeta um grande campeão

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em políticas públicas de esporte 19
de vendas, o campeonato norte-americano de basquetebol. Embora sobre o agigantamento dos Jogos Olímpicos, a igualdade entre gê-
tido como o símbolo da profissionalização dos Jogos Olímpicos, ou- neros, o controle do doping e o apoderamento do atleta.
tras modalidades associadas ao mundo do esporte profissional tam- Rubio (2016) destaca ainda que a busca pelo debate sobre es-
bém foram admitidas pela primeira vez em Barcelona. Foi o caso sas questões sugere um redirecionamento não apenas político do
de ciclistas envolvidos em provas como a volta da França, dona do Movimento Olímpico, conduzido ao longo do século anterior com a
maior prêmio em dinheiro da modalidade, e dos tenistas melhores arrogância de uma entidade isolada e independente das questões
colocados no ranking mundial, que deixaram de se hospedar em maiores da sociedade internacional. Abrir-se para temas negligen-
hotéis luxuosos para se hospedar na vila olímpica. ciados no passado aponta para uma preocupação verdadeira sobre
Na lógica interna do esporte contemporâneo, especialização e as repercussões de fatos que denotaram discriminação, preconcei-
profissionalização são inevitáveis. Desde que a capacidade atlética to e desrespeito à sociedade e levam no presente a um crescente
em uma variedade de esportes tornou-se incompatível com a alta desinteresse pelo maior espetáculo esportivo do planeta. A imple-
performance, a especialização tornou-se inevitável. mentação das recomendações da Agenda 20+20 do COI aponta não
Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro representam o final de apenas para uma mudança de rumos para o Movimento Olímpico
um ciclo para o Movimento Olímpico. Rubio (2016) entende que como aponta para uma transformação no papel social do atleta que
nem cidades, nem atletas podem mais se submeter a uma relação deixa de ser um executor de gestos habilidosos valiosos para o es-
verticalizada e desigual, onde sobram obrigações e faltam direitos. petáculo esportivo e passa a ser uma figura central dentro do Mo-
Mesmo diante da dificuldade de se adaptar às transformações so- vimento Olímpico. Essa alteração de postura do COI aponta para
ciais é preciso atentar que esse modelo autocrático e soberbo tem uma tentativa de resgate dos valores olímpicos, virtudes desejadas,
cada vez menos espaço de diálogo e manobra no contemporâneo. mas perdidas ao longo do processo de transformação do Movimen-
Ou seja, ou o Movimento Olímpico se revê ou ele está fadado ao es- to Olímpico, irreconhecíveis para a sociedade na atualidade.
gotamento que vivem outras instituições seculares ao redor do pla- Diante do que se observa, há indicações de que haverá um
neta. Porém, diferentemente de instituições pautadas em dogmas, o cuidado maior com as questões relacionadas com a transparência
COI está organizado e assessorado por profissionais que estão sen- do processo de postulação, com o cuidado com o meio ambiente,
síveis às demandas da sociedade em diferentes pontos do planeta, com a promoção da igualdade de gênero — lembrando da dívida
seja por idealismo ou por necessidade comerciais. Essa talvez seja a histórica que o Movimento Olímpico tem com as mulheres, impedi-
razão para que o novo presidente, Thomaz Bach, convocasse a co- das de participar da competição no início da história olímpica con-
munidade olímpica a fim de encontrar saídas para o impasse criado temporânea, e um maior investimento no apoio a atletas dentro e
pelas crescentes denúncias de corrupção e desmandos. Imediata- fora do campo de jogo. Esse respeito parece evidente também na
mente à sua posse encabeçou uma consulta que durou um ano e honra concedida aos atletas limpos que herdaram justamente as
somou mais de quarenta mil sugestões, que sistematizadas resulta- posições perdidas pelos dopados nas competições olímpicas. Até
ram em 1.200 propostas que foram levadas pelos presidentes dos o presente, constatado o doping, a medalha era concedida ao atleta
quatorze grupos de trabalho à 127.ª Sessão do COI que ocorreu em imediatamente colocado no ranking, porém sem a mesma pompa
dezembro de 2014. Dessa reunião resultaram quarenta recomenda- e circunstância da cerimonia dos Jogos Olímpicos. As recomenda-
ções denominadas Agenda 20+20, recomendações essas conside- ções da Agenda 2020 é que cerimônias formais sejam organizadas
radas estratégicas para o futuro do Movimento Olímpico e dos Jogos para medalhistas que recebem sua medalha Olímpica após a des-
Olímpicos. Dentre os temas centrais dessa discussão encontram-se qualificação de um competidor e que ela seja devidamente comu-
o combate à corrupção dentro do ambiente olímpico, o controle nicada a todas as partes envolvidas.

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atleta é consigo mesmo, depois com os demais e por último, com o
A busca de recursos para a vitória regulamento, inviabilizando qualquer aplicação do princípio de fair
play2 (CALDERON, 1999).
Dentre os aspectos mais perversos que a busca de resultados
Com o fim do amadorismo, o esporte converteu-se em um
tem proporcionado para o movimento olímpico, o doping tem des-
meio de vida, uma atividade profissional: homens de excepcionais
pontado como a questão principal a ser superada no momento con-
dotes para a luta ou para a corrida passam a receber altas somas
temporâneo.
financeiras comprometendo-se a realizar determinadas atuações.
A origem da utilização do termo doping no esporte é contada Buscando responder a essas exigências, nos últimos anos os cam-
por Cagigal (1996) como estando relacionado às corridas de cavalos, peões do esporte passaram a ser transformados em rendosas mer-
primeiro esporte em que se utilizou fármaco clandestinamente para cadorias que são vendidas e negociadas em diversos pontos do pla-
conseguir que um determinado cavalo corresse mais lento e perdes- neta (THOMAS; HAUMONT; LEVET, 1988; SILVA; RUBIO, 2003).
se. Hoje este termo designa a ingestão de medicamentos usados por
Os atletas de alto nível, igual aos demais profissionais destaca-
certos atletas para conseguir justamente o contrário: tentar ganhar.
dos em suas profissões, permanecem em uma luta constante por sua
Espera-se que uma competição seja pautada pela igualdade posição; o que os difere de demais categorias é a interdependência
de oportunidades, baseada no desinteresse para além da compe- entre seu rendimento, o qual têm de maximizar em curtos períodos
tição em si mesma, onde vence o melhor, aquele que reúne mais de tempo, e a capacidade de seu corpo, considerando a brevidade de
competências e quem mais trabalhou para alcançar o resultado. Na suas carreiras (GONZÁLEZ; FERRANDO; RODRÍGUEZ, 1998).
atualidade essas expectativas nem sempre são verdadeiras: a uti-
Na transformação da prática da condição amadora para a pro-
lização de substâncias dopantes e o seu refinamento, que leva à
fissional, não foram apenas os valores nobres e aristocráticos que
inviabilização de sua detecção, desvirtuam o sentido de igualdade
se perderam. A criação de uma nova ordem olímpica indicava que
que norteia a competição.
o mundo do século XX havia passado por grandes e profundas mu-
Existem diferentes motivos competindo pelo comportamento danças de ordem prática e moral.
do indivíduo, e aquele ao qual for atribuído maior significado pas-
O atleta profissional não é apenas aquele que tem ganhos fi-
sará a influenciar sua atitude. Uma visão que tem prevalecido no
nanceiros pelo seu trabalho. Ele é também a representação vitoriosa
esporte é a de que as metas dos atletas se concentram na compe-
de marcas e produtos que querem estar vinculados à vitória, à con-
tição e na conquista de marcas sempre superiores. O corpo deste
quista de resultados.
indivíduo é considerado somente um instrumento para conseguir
estes fins (GONZÁLEZ; FERRANDO; RODRÍGUEZ, 1998). Isso vem ao
encontro da proposta do esporte atual que privilegia a competição. 2 Conforme Rubio (2007) a gênese do fair play está fincada no cavalheirismo,
Quando um atleta tem determinação por vencer a qualquer preço espécie de comportamento social que contemplava a nobreza de caráter, os valores
cristãos e humanistas relacionados ao Renascimento. Esse ethos cavalheiresco era a
e a instituição e equipe que o cercam compartilham desse espírito, base do comportamento que definia um gentleman, o ideal de homem na sociedade
alguns excessos podem ser cometidos, fazendo com que valores éti- inglesa do século XIX. A transposição para o âmbito esportivo dessa atitude social foi
cos sejam desprezados. Assim, a auto manipulação hormonal mos- idealizada e empregada desde o surgimento do Movimento Olímpico contemporâ-
tra-se como um meio eficaz para a superação dos obstáculos que neo, afirmando a relação de projeção que há entre sociedade-cultura e movimento
se apresentam (MIAH, 2003). Há uma ideia no esporte de alto rendi- olímpico-esporte. Entretanto, embora a Inglaterra representasse a principal potência
no cenário geopolítico de então, exercendo uma forte influência sobre países euro-
mento a respeito do perfil do atleta que busca substâncias proibidas: peus e americanos, seus padrões culturais nunca foram universais. Sendo assim, era
envolvido com o objetivo, o primeiro compromisso desse tipo de de se esperar que o fair play também não representasse uma unanimidade.

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Para Guttmann (1992) o profissional deve ser definido como utiliza estimulação artificial opta por esta conduta porque sente-se
aquele que recebe uma compensação pecuniária pelo que faz por inseguro, acreditando não ser capaz de corresponder às suas expec-
ter sua vida direcionada para a prática do esporte. Por muito tempo a tativas e de muitas outras pessoas, ainda mais quando a sociedade
especialização (codinome da profissionalização) foi o resultado das atual tem como parâmetro produtivo a realização de resultados — e
tensões geradas pela necessidade de disfarçar a condição amadora no esporte essa lógica é imediata e evidente. Além disso, quando
sob forma de ganhos secundários como bolsas de estudos, apoio um atleta faz uso de substâncias dopantes ele busca não somente a
governamental e generosidade patronal ao invés de salário. vitória e o prazer que esta lhe proporciona, mas o pareamento com
O declínio do amadorismo e a emergência do profissionalismo retribuição financeira e prestígio social.
apontam para um desejo e uma necessidade de busca da vitória, e De Rose (2008) aponta que no princípio dos Jogos Olímpicos
somente isso, o que torna o esporte uma atividade de caráter alta- Modernos, quando ainda prevalecia o pensamento de Pierre de
mente quantitativo e competitivo. Estudos apontam que atletas de Coubertin, competir era mais importante que vencer e, como conse-
alta performance têm como perfil procurar tarefas desafiantes (MAR- quência, a incidência de doping era quase nula. Entretanto, médicos
TIN, 2001), além de possuírem, entre outras características, elevada e agentes de saúde preocupavam-se com o estado de atletas, o que
resistência psíquica, autodomínio e controle emocional (OGILVIE & levou a criação da Federação Internacional de Medicina do Esporte
TUTKO, 1971). Entretanto, afirmações como estas podem ser ques- (FIMS), em 1928, durante os II Jogos de Inverno de San Moritz, que
tionadas, na medida que cada indivíduo tem reações particulares passou a ser o braço médico do COI. Nesse mesmo ano a Federação
conforme o que percebe de si mesmo, de suas capacidades e da im- Internacional de Atletismo (IAAF) tornou-se a primeira Federação
portância pessoal dada à situação a enfrentar. Questões como essas Internacional a proibir o uso de doping no esporte. Embora outras
e afirmações como as de Meynaud (1972) de que “não está provado Federações Internacionais tenham-na seguido, a falta de métodos
que a confrontação esportiva discorra sempre em uma atmosfera de de detecção não impedia o uso das substâncias proibidas.
lealdade” (p. 227), levam as discussões sobre doping a ocupar um Durante a II Guerra Mundial a anfetamina foi uma substância
espaço privilegiado no âmbito do esporte contemporâneo. largamente usada por pilotos e comandados para suportarem as de-
Espera-se que uma competição seja pautada pela igualdade mandas dos combates e os anabólicos foram usados para recuperar
de oportunidades, baseada no desinteresse para além da compe- os presos dos campos de concentração. Observa-se logo depois da
tição em si mesma, onde vence o melhor, quem reúne mais com- guerra que essas substâncias passam a ser utilizadas nas competi-
petências e quem mais trabalhou para alcançar o resultado. Nem ções esportivas.
sempre essa expectativa se faz verdadeira no esporte: a utilização Ainda de acordo com De Rose (2008) em 1954 os soviéticos
de substâncias dopantes e o seu refinamento, que leva à inviabili- começaram a usar os anabólicos esteroides para aumentar a massa
zação de sua detecção, desvirtuam o sentido de igualdade que nor- muscular de atletas, principalmente no levantamento de peso, se-
teia a competição. Rubio (2018b) afirmam existir diferentes motivos guido por atletas de outros países em eventos esportivos de campo
competindo pelo comportamento do indivíduo, e terá superioridade e pista, como o atletismo, chegando também aos outros esportes.
aquele ao qual for atribuído maior significado que passará a influen- Nos Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, um ciclista escandinavo
ciar sua atitude. A razão física para o uso de drogas e mais recen- morreu após uma overdose de anfetamina e isopropilamina toma-
temente, pela remodelação genética, é melhorar o desempenho, das com café. Em função disto, o Comitê Olímpico Internacional
dando-lhe um maior poder competitivo (BROHM et al., 1993). A ra- indicou Lorde Porrit para criar uma Comissão Médica e já nos Jogos
zão psicológica de dopar-se reflete em sua raiz um alto grau de exi- Olímpicos de Tóquio, em 1964, foram realizados alguns testes no
gência (intrínseca e extrínseca) e de responsabilidade. O atleta que

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ciclismo, mas em função de algumas dificuldades o controle não pertensão para permitir o uso de Beta-2 agonistas no tiro esportivo.
pôde ser completamente implementado. Em 1966 a União Inter- Em pouco tempo, outros procedimentos como as transfusões de
nacional e Ciclismo (UCI) e a Federação Internacional de Futebol sangue no ciclismo e a manipulação de urina no levantamento de
(FIFA) iniciaram os seus programas contra o doping. Embora o COI peso, métodos não proibidos, passaram a ser observados com mais
tenha legislado sobre o doping em 1962 e indicado de Lorde Porrit rigor por evidenciar procedimentos suspeitos. Em 1987 a Comissão
para presidir a comissão, foi apenas em 1967, quando da nomea- Médica do COI modificou a lista de substâncias proibidas, incluindo
ção do Príncipe Alexandre de Merode, da Bélgica, que a Comissão betabloqueadores e diuréticos, bem como a transfusão de sangue e
Médica do COI foi nomeada com base na Diretoria da FIMS, e ime- a manipulação física da urina, com controle da densidade maior do
diatamente organizou a lista de substâncias proibidas para os Jogos que 1.010 e da acidez (pH entre 5.0 e 7.0).
Olímpicos do México que ocorreriam no ano seguinte, dando início Nos Jogos Olímpicos de Seul e nos Jogos de Inverno de Cal-
ao combate sistemático ao doping. gary, em 1988, houve claramente uma evidência do uso de eritro-
Ao longo de duas décadas observou-se a crescente adesão poietina (EPO) e de Hormônio do Crescimento (hGH), razão pela
ao projeto de controle de dopagem, sendo a Áustria, em 1962, o qual os hormônios peptídicos passaram a ser considerados na lista
primeiro país a contar com uma legislação antidoping. O mesmo de substâncias proibidas. Diante das evidências do uso indiscrimi-
caminho foi adotado pela Itália e pelo Uruguai, cuja legislação so- nado de drogas favorecedoras de rendimento foram adotados os
bre o tema data de 1971. controles fora de competição, uma vez que a técnica usada à época
A década de 1970 foi marcada pelo uso e controle de anabóli- permitia escapar da detecção evitando-se o uso de anabólicos nos
cos esteroides cuja indexação como substância proibida ocorreu um quinze dias anteriores à competição. Após os Jogos Olímpicos de
ano antes dos Jogos de Montreal, muito embora fossem utilizados Barcelona (1992), a Comissão Médica do COI incluiu na lista de proi-
desde a década de 1950. De acordo com De Rose (2008) foi também bições apenas o termo “substâncias afins” para considerar também
nesse momento que dois Beta-2 agonistas foram permitidos para a ação farmacológica das substâncias, além da estrutura química.
tratamento de asma: salbutamol e terbutalina, desde que atestados Os betabloqueadores foram removidos da lista e incluídos apenas
previamente, fato que marcou o início da filosofia da Isenção de Uso em alguns esportes de precisão, como o Tiro com Arco e o Tiro Es-
Terapêutico (IUT). Neste período, foram registrados casos de doping portivo. A decisão mais importante depois dos Jogos de Barcelona
em todas as edições olímpicas, com exceção de Moscou, em 1980. foi a possibilidade de se fazer a coleta de sangue para evidenciar o
uso de hormônios, juntamente com a amostra de urina.
Em 1984, o Conselho da Europa adotou o Código Antidoping
no Esporte e nesse mesmo ano, durante os Jogos Olímpicos de Los A novidade encontrada durante os Jogos de Atlanta (1996) foi
Angeles foram registrados onze casos positivos, que confirmando o a droga estimulante bromantan, que possui propriedades de psicoa-
uso de doping já evidenciado no ano anterior nos Jogos Pan-Ameri- tivação e adaptação a condições que envolvem excesso de fadiga
canos de Caracas, quando ocorreram dezenove positivos, levando física, estresse emocional, usada pelo exército russo, levando à sus-
a uma preocupação internacional sobre o tema. Dentre os vários pensão de dez atletas, posteriormente inocentados pelo Tribunal Ar-
casos registrados destacam-se a Efedrina encontrada em um chá de bitral do Esporte (TAS). Porém, esta substância foi considerada proi-
Ginseng e a Nandrolona detectada em um atleta que negou o seu bida a partir do ano seguinte. Os Jogos Olímpicos de Sidney (2000)
uso, mais tarde explicado por uma transfusão de sangue meses an- marcaram o início da coleta de sangue, feita apenas nos esportes
tes. Desta forma, o uso de suplementos e o aumento de eritrócitos aeróbicos, os controles fora de competição na Vila Olímpica e, pela
passou a ser um tópico discutido entre os especialistas e observou- última vez, a lista de substâncias e métodos proibidos foi feita pela
se também o surgimento de falsos atestados médicos provando hi- Comissão Médica do COI.

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A partir dos Jogos Olímpicos de Atenas essa tarefa passou Agency (WADA)3. A definição de dopagem usada pelas Federações
a ser realizada pela recém-criada Agência Mundial Antidoping, Internacionais pode eventualmente variar, bem como a lista de
muito embora a Comissão Médica do COI tenha estabelecido o substâncias e métodos proibidos. O Código Mundial Antidoping da
chamado Período Olímpico, que vai da abertura da Vila até o seu WADA foi aprovado tanto pelo Comitê Olímpico Internacional, como
fechamento, onde todos os controles devem ser considerados em pelas Autoridades Públicas dos cinco continentes, e entrou em vigor
competição. O pH da urina deixou de ser utilizado a partir destes 2004, o que permitiu a universalização de regras e procedimentos.
Jogos e passou-se a adotar punição após três recusas de realizar Dos hipódromos, onde as substâncias para alteração de ren-
controle de doping por parte de atletas de Atletismo, evitando as- dimento foram usadas no princípio para os estádios onde diversas
sim a detecção de “aparelhos” que proporcionavam uma urina modalidades esportivas são praticadas por humanos, doping tornou-
“limpa” no controle. O hormônio do crescimento foi pesquisado se um termo para definir qualquer substância ou método utilizado
pela primeira vez no sangue dos atletas, embora o método ainda para aumentar o desempenho físico.
apresentasse uma janela de detecção muito pequena. Os casos
de resultados analíticos adversos passaram a ser julgados por uma
Comissão Disciplinar, formada por membros do Comitê Executivo
do COI, sem passar previamente pela Comissão Médica, que ficou O esporte no Brasil
responsável apenas pela supervisão da toma de amostras e pela
atenção médica dada aos atletas nos Jogos. Como visto anteriormente a cristande muscular formada nas
Desde os Jogos Olímpicos de Atenas, em 2004, com o Estatuto public schools inglesas levou as empresas e a cultura inglesa, inclusi-
de Limitação das Amostras foi permitida a reavaliação de material ve o esporte, para vários pontos do mundo onde o império pudesse
coletado anteriormente a partir da utilização de novas técnicas de se instalar fosse na América, na África ou na Ásia.
detecção o que levou a um aumento considerável de casos positi- Um episódio no continente europeu facilitou a chegada ingle-
vos anos depois. Nos Jogos Olímpicos do Rio (2016) o Dr. Richard sa em território brasileiro. Diante do descumprimento do bloqueio
Budget assumiu a direção do Departamento Médico do COI no lugar continental (exigência de não-comercialização de produtos ingleses
do Dr. Patrick Schamasch e o TAS passou a ocupar as funções do com as nações europeias) imposto por Napoleão Bonaparte, o reino
Comitê Disciplinar, passando a realizar a tarefa de julgar os resulta- de Portugal se viu ameaçado de ser invadido. E assim, sob a prote-
dos analíticos adversos. Nestes Jogos foi recuperado o conceito de ção de uma esquadra inglesa, toda a corte portuguesa, incluindo
controles em competição e fora de competição mesmo durante o nobres, ministros e funcionários embarcou rumo ao Brasil trazendo
chamado Período Olímpico. A Comissão Médica assumiu pela pri- importantes documentos, bibliotecas, coleções de arte, as riquezas
meira vez o controle direto dos exames, sem ouvir as Federações de particulares e da coroa.
Internacionais, o que motivou um grande número de reclamações. A chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808 levou D.
Conforme De Rose et al. (2003) considera-se dopagem a uti- João a executar várias medidas econômicas e políticas. A primeira de-
lização de substâncias ou métodos que seja potencialmente preju- las foi a permissão para o livre comércio com os países amigos, situa-
dicial à saúde do atleta, ou capaz de aumentar artificialmente sua ção que não ocorria anteriormente. Esse ato ficou conhecido como
performance, o que se caracteriza pela presença no corpo do atleta Abertura dos Portos e permitiu que o capital e os produtos da Inglater-
ou por evidência de uso de substâncias proibidas, ou ainda por evi-
dência de uso de métodos proibidos, conforme relação divulgada
pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) e pela World Anti-Doping 3 Agência Mundial Antidoping.

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ra, então única nação amiga de Portugal, chegassem em terras brasi- uma prova de 1.500 m, no Rio de Janeiro. O basquetebol, por sua
leiras de forma legal. Nessa esteira vieram os bancos, as empresas do vez, chegou ao Brasil em 1898, trazido dos Estados Unidos por Au-
setor têxtil, as companhias de mineração e elétricas, de cabotagem e gust Shaw para o Colégio Mackenzie de São Paulo e para a ACM do
ferroviária responsáveis por um grande contingente de empregados, Rio de Janeiro. O primeiro torneio realizado da modalidade aconte-
mas não em número suficiente para a operacionalização de todas as ceu em 1915. Mas, nenhuma modalidade manteve tanto sua origem
tarefas. Foi assim que os brasileiros, contratados como empregados, e tradição aristocráticas como o tênis. Sua implantação no Brasil
se aproximaram da cultura inglesa e tomaram contato com vários ele- está associada ao Tennis Clube Walhafa de Porto Alegre, em 1898 e
mentos da cultura britânica, inclusive o esporte. o primeiro torneio realizado, sob os auspícios da Liga Metropolitana
Rufino dos Santos (1981) afirma que em função dessa dinâ- de Esportes Terrestre, aconteceu em 1915.
mica começou a despontar nas cidades brasileiras com presença Dentre todas as modalidades de origem inglesa, nenhuma ou-
inglesa clubes de criket ou de squash a partir de 1850, geralmente tra se adequou tanto à cultura brasileira como o futebol.
ao lado de uma grande fábrica ou no interior das chácaras, espaços Rufino dos Santos (1981) afirma que um brasileiro de ascen-
dedicados ao encontro da comunidade britânica no estrangeiro. dência inglesa de nome Charles Miller, que não gostava de críquete,
Mas, não foi apenas a comunidade britânica que trouxe para o organizou o primeiro team football do Brasil, o São Paulo Athletic
Brasil as práticas esportivas. A substituição da mão de obra escrava pela Club, em 1895. Em 1902 surgiu, no Rio de Janeiro o Fluminense, em
dos imigrantes europeus e asiáticos favoreceu o contato com ativida- 1903, o Fuss-Ball-Club e o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, no Rio
des desconhecidas da população brasileira, possibilitando a criação de Grande do Sul, em 1904, o Sport Club de Belo Horizonte, quase que
clubes e times de diversas modalidades esportivas, em diversas regiões como uma reação em cadeia.
brasileiras, principalmente no sul e sudeste (RUBIO, 2006). Tubino (1996) aponta dois fatos merecedores de registro que
A República foi o período no qual se iniciaram as diversas mo- marcaram o início do esporte brasileiro. O primeiro deles foi a ou-
dalidades esportivas no Brasil, que já vinham sendo disputadas e torga do diploma olímpico de mérito do Comitê Olímpico Interna-
praticadas em outros países. Exerceu papel fundamental nesse pro- cional a Santos Dumont, uma das mais célebres condecorações do
cesso a chegada ao país da Associação Cristã de Moços, instituição COI, tendo sido conferida anteriormente apenas ao presidente nor-
de caráter internacional que tinha o esporte como um elemento de te-americano Theodore Roosevelt e ao explorador norueguês Fritjof
grande importância nos processos sociais e pedagógicos da juven- Nansen. Essa honraria tinha como intenção premiar aqueles que
tude (SANTOS, 2000; TUBINO, 1996). tivessem servido à causa do esporte ou concorrido para a propaga-
No final do século XIX já se praticava de maneira regular o ção do ideal olímpico. A segunda foi a primeira participação brasi-
remo, a natação, o basquetebol, o tênis, o futebol e a esgrima. Conta leira em Jogos Olímpicos na cidade de Antuérpia, em 1920. Naquela
Marinho (s.d.) que o remo era praticado desde o Império, principal- ocasião, apesar das poucas condições materiais da delegação bra-
mente no Rio de Janeiro, onde foram fundados, em 1892, o “Union sileira, foi possível conquistar uma medalha de ouro, com Guilher-
des Conotiers”, o Club de Regatas Fluminense e o Clube de Regatas me Paraense no Tiro (pistola tiro rápido), uma de prata com Afrânio
Botafogo, e no Rio Grande do Sul, o “Rude Werein Germania” e o Costa também no tiro (Pistola livre) e uma de bronze na pistola livre
Grupo de Regatas Rio-grandense. Com a criação de vários clubes por equipe com os atletas Afrânio Antonio da Costa, Guilherme Pa-
em outros estados foi possível em 1895 ser criada a Federação Bra- raense, Sebastião Wolf, Dario Barbosa e Fernando Soledade.
sileira de Sociedades de Remo. A natação, embora praticada nas es- A participação efetiva do Brasil no Movimento Olímpico, con-
colas militares, veio a ter caráter competitivo apenas em 1898, com forme Rubio (2006), ocorreu em maio de 1913 quando o então mi-

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nistro do Brasil na Suíça, Raul do Rio Branco, filho do Barão de Rio em muitos casos passou a ser terceirizada. Aqueles que demonstra-
Branco, foi convidado pessoalmente por Pierre de Coubertin a par- vam alguma habilidade acima da média eram incentivados a buscar
ticipar do Congresso Olímpico Internacional em Lausanne e poste- clubes para sonhar com a carreira de atleta. Os menos habilidosos,
riormente a fazer parte do Comitê Olímpico Internacional na con- pouco incentivados a buscar a atividade física por lazer e prazer, pre-
dição de representante brasileiro. Seu pouco conhecimento sobre cocemente se distanciaram daquilo que pode ser uma maneira sau-
a realidade esportiva brasileira e as muitas tarefas como diplomata dável de lidar com a existência e passaram a engrossar as fileiras de
não foram argumentos suficientes para convencer o Barão de Cou- sedentários e avessos às práticas de movimento.
bertin da impossibilidade de aceitar o convite. O argumento derra- Segundo a autora, o resultado do Diagnóstico Nacional do Espor-
deiro utilizado pelo Barão foi a inclusão do Brasil em um cenário te apresenta dados que refletem o menosprezo pela educação física.
internacional já compartilhado pelas grandes nações. 26,8 % abandonam a prática esportiva antes dos quinze anos, ou seja,
Embora na Suíça, Raul do Rio Branco entrou em contato com no momento em que estaria ocorrendo a especialização para o espor-
diversos dirigentes esportivos no Brasil informando sobre sua nova te considerado de alto rendimento há uma quebra no processo, e as
condição. É também nessa carta que sugere a criação de um Comitê razões para isso são a necessidade de trabalhar, de estudar ou por pro-
Olímpico Nacional (CON), solicita informações sobre a condição do blemas familiares. Esse número não seria assim tão preocupante se
esporte brasileiro e pede sugestões de nomes de outras pessoas que o abandono entre dezesseis e vinte e quatro anos não chegasse a 45
pudessem vir a compor o quadro de dirigentes do Comitê Olímpico %. Ou seja, a base da pirâmide está em ruínas. Quando nos referimos
Internacional. O diplomata tomou uma atitude de cautela quanto à então ao sedentarismo, considerado a razão de danos irreparáveis à
organização do Movimento Olímpico Brasileiro, chegando a sugerir saúde de todo e qualquer cidadão, os números são ainda mais assusta-
que fosse feito inicialmente a divulgação dos ideais olímpicos para dores: 32,7 % dos jovens entre quinze a dezenove anos, 38,1 % de vinte
somente então discutir a participação brasileira nos Jogos Olímpicos. a vinte e quatro anos e 40,7 % de vinte e cinco a trinta e quatro anos, ou
O esporte no Brasil não é recente. Tampouco a Educação Física. seja, a população adulta jovem não foi educada a se exercitar.
Rubio (2018c) aponta que a educação física começou a ser lecionada Por outro lado, ao longo de décadas o esporte de nível olímpico
nas escolas pública e privadas, a partir do Decreto n.º 6.440, de 1934, foi cuidado por entidades como a Confederação Brasileira de Des-
tendo como pano de fundo os movimentos higienistas e eugenistas portos (CBD) e o Comitê Olímpico Brasileiro (COB). Pelos relatos ou-
daquele momento. Os corpos dos cidadãos precisavam ser cuidados vidos de atletas olímpicos de diferentes gerações é possível observar
e desenvolvidos para atenderem aos interesses de uma pátria que a precariedade com que o esporte conviveu ao longo dos tempos do
se propunha a estar mais identificada com a Europa do que com a amadorismo até o princípio dos anos 2000. A maioria deles tinha sua
África. Embora componente escolar curricular a educação física foi carreira mantida por conta e risco pessoal, sem contar nos tempos
confundida com o esporte como um fenômeno único por quase um em que os próprios atletas custeavam equipamentos e viagens para
século. Na escola ela já gozou de consideração e prestígio. Disciplina realizar o sonho de ser olímpico. Muitos desses atletas subiram ao pó-
obrigatória foi a porta de entrada de muitas crianças para o universo dio, ostentaram a bandeira nacional e fizeram o mundo ouvir o hino
do movimento elaborado fosse em forma de esporte, dança ou gi- brasileiro sabendo exatamente o quanto isso custou para si e para os
nástica. Acompanhou proximamente os interesses do poder público próximos que facilitaram a realização dessa aventura.
sobre o controle dos corpos, até começar a perder espaço para dis- Conforme entende Angelo (2014) a década de 1990 e o início
ciplinas consideradas fundamentais para outras intenções, principal- do novo século foi um período de intensa mobilização na área jurí-
mente o vestibular. E assim, como peça decorativa do currículo do dica que estabeleceu regras e leis para a formatação do que hoje se
ensino básico, fundamental e médio a EF deixou de ser obrigatória e, chama de Sistema Nacional do Esporte.

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


32 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 33
Em 1993, a Lei Zico, n.º 8.672/93, pôs fim à tutela do Estado A estimativa de repasse em 2013 considerava que a lei destina-
ao esporte. As alterações pautavam-se na autonomia das entidades ria às confederações aproximadamente R$ 90 milhões, trinta vezes
esportivas fortalecendo a possibilidade de clubes esportivos se tor- mais do que a quantia média anual que vinha sendo direcionada ao
narem empresas e na livre iniciativa. A lógica do mercado continuou setor antes da lei (C.O.B., 2013; BRASIL, 2004).
a predominar, só que agora regrado pela lei. A Lei Zico não avançou As considerações a serem feitas em relação a esta lei estão
e nem propiciou a participação popular e a descentralização do pro- relacionadas à perspectiva da prioridade do destino de recursos pú-
cesso de tomada de decisão, pois não concretizou meios para a sua blicos voltados em sua maior parte ao esporte de alto rendimento
efetivação. em detrimento do educacional. Esta observação é possível ao aces-
A conhecida Lei Pelé, n.º 9.615/98, corroborou com o destaque sar a demonstração de uso dos recursos da Lei Agnelo-Piva pelo
para o futebol e suas prerrogativas deixando a discussão sobre a COB, deixando evidente que os recursos ao desporto educacional
estrutura esportiva relegada a um segundo plano. Segundo a Cole- são usados para a realização de eventos esportivos, despesas ad-
tânea do Caderno III Conferência Nacional do Esporte (2009, p. 18): ministrativas e subvenção da Confederação Brasileira de Desporto
A Lei Pelé, que regula o presente Sistema Brasileiro do Despor- Universitário (CBDU). Outro ponto a ser analisado é o repasse quase
to, foi sancionada com a finalidade de aperfeiçoar a Lei Zico. Apesar que imediato da verba para o COB e CPB, sem ter outro tipo de fis-
de tratar o esporte de forma geral, suas principais consequências fo- calização a não ser o do Tribunal de Contas da União.
ram mudanças no futebol, principalmente o fim do ‘passe livre’. No Vale a pena lembrar que outros recursos provindos de contra-
entanto, a liberação do passe ocorreu sem regulamentar ou assegurar tos profissionais (1 %), valores de clausulas penais de transferências
os direitos dos jogadores. A estrutura permaneceu quase a mesma. de atletas (1 %), arrecadação de competições (1 %) e penalidades
Em 16 de julho de 2001, foi aprovada a Lei n.º 10.264, chamada disciplinares pecuniárias são recolhidos pela Federação das Asso-
de Lei Agnelo-Piva. A lei modificou parte do artigo 56 da Lei Pelé, ciações de Atletas Profissionais (FAAP) e destinados à assistência
que trata dos recursos para o esporte. Especificamente aponta que social e educacional aos atletas profissionais, ex-atletas e aos em
2 % da arrecadação bruta dos concursos de prognósticos e loterias formação (BUENO, 2008).
federais e similares são destinados aos Comitês Olímpico e Para- A Constituição Brasileira considera autônomas as entidades
límpico Brasileiros. Destes recursos, oitenta e cinco por cento são privadas como a CBF e os clubes de futebol. Desta forma, a mo-
destinados ao COB e quinze por cento ao CPB. Contudo, deste total dalidade futebol é a única que não se beneficia da Lei Agnelo/Piva
repassado para as duas entidades, estas deverão investir 10 % no (LAGUNA, 2012) pois sendo seus dirigentes remunerados, o repasse
desporto escolar e 5 % no desporto universitário. de recurso público fica inviabilizado (WINCKLER, 2012).
O uso dos recursos ficou condicionado ao estabelecimento de Rubio (2016) entende que os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro
convênios com a União e devem ser utilizados em projetos de: fo- representaram o final de um ciclo para o Movimento Olímpico. Claro
mento, desenvolvimento e manutenção do desporto, formação de está que nem cidades, nem atletas podem mais se submeter a uma
recursos humanos, preparação técnica, manutenção e locomoção relação verticalizada e desigual, onde sobram obrigações e faltam di-
de atletas e suas participações em eventos desportivos (BRASIL, reitos. Mesmo diante da dificuldade de se adaptar às transformações
2001; C.O.B., 2004). sociais é preciso atentar que esse modelo autocrático e soberbo tem
A lei foi muito comemorada pela comunidade esportiva por cada vez menos espaço de diálogo e manobra no contemporâneo.
ser fonte segura e constante, embora COB e CPB repassem com Ou seja, ou o Movimento Olímpico se revê ou ele está fadado ao esgo-
parcimônia os recursos às 27 confederações filiadas. tamento que vivem outras instituições seculares ao redor do planeta.

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34 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 35
Porém, diferentemente de instituições pautadas em dogmas, o COI publicações que referenciam a Psicologia do Esporte no país, bem
está organizado e assessorado por profissionais que estão sensíveis como a perspectiva do social da psicologia do esporte e seu caráter
às demandas da sociedade em diferentes pontos do planeta, seja por inventivo e criativo nas Políticas Públicas e a necessária afirmação
idealismo ou por necessidade comerciais. Essa talvez seja a razão da identidade profissional da(o) psicóloga(o) do Esporte.
para que o novo presidente, Thomas Bach convocasse a comunidade A ausência de práticas de psicólogas(os) em políticas públicas
olímpica a fim de encontrar saídas para o impasse criado pelas cres- de esporte está relacionada diretamente à desorganização do campo
centes denúncias de corrupção e desmandos. do esporte como política de Estado, e não de governo. Diante dis-
Esta referência busca apresentar a Psicologia do Esporte a par- so, há que se dedicar a desenvolver ações nas políticas públicas que,
tir de duas grandes referências que são o esporte como fenômeno necessariamente passarão pela atuação interdisciplinar, diluindo as
e instituição e a psicologia cuja abrangência permite uma especia- fronteiras entre os especialistas dedicados ao atendimento dos usuá-
lidade que dialoga e atua sobre algo tão específico. Para tanto o do- rios, sejam eles atletas profissionais ou praticantes de atividades físi-
cumento é dividido em quatro grandes eixos: Eixo 1 – A dimensão cas. As ainda insipientes ações em políticas públicas em psicologia
ético-política da Psicologia do Esporte, do qual contam o esporte do esporte anunciam um campo promissor a ser ocupado. É inegá-
como direito constitucional, o esporte como direitos humanos, a vel que o conhecimento acumulado dentro da Psicologia do Esporte
psicologia social do esporte, seus significados e suas dimensões, subsidia a prática do profissional de Psicologia que se destaca nessa
bem como o lugar da psicologia do esporte, aliada as demandas e esfera, tomando como prerrogativa a atuação interdisciplinar.
necessidades do povo brasileiro, caracterizada por nosso contexto
social específico; Eixo 2 - A Psicologia e as Políticas Públicas para o
Esporte. Nesse tópico é apresentado um histórico da Psicologia do
Esporte, bem como a questão pública e privada do esporte brasileiro
e as diferenças de inserção da Psicologia e a inserção da psicologia
em Políticas Públicas para o esporte. Por fim destaca a atuação da
Psicologia Social do Esporte junto às políticas públicas para o espor-
te e a ausência da formação específica em nível de graduação para
o exercício profissional. No Eixo 3 - Atuação da Psicóloga nas Polí-
ticas Públicas para o Esporte são destacadas as bases teóricas que
fundamentam a Psicologia do Esporte e a delimitação dos campos
de atuação, a Psicologia do esporte como subárea das ciências do
esporte e como especialidade da Psicologia, a dimensão pública e
privada da atuação da psicóloga, com especial destaque para a dis-
cussão do Código de Ética do Profissional e os limites do sigilo pro-
fissional. Atenta ainda para a precarização do trabalho da psicóloga
do esporte e as relações com os meios de comunicação. Por fim,
o Eixo 4 - Diretrizes para o trabalho na Psicologia Social do Esporte
são apontados temas como a apropriação do Código de Ética e das
Resoluções do CFP como norteadores de atuação, a importância
e os riscos da avaliação psicológica. Apresentam-se instituições e

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36 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 37
tante referencial de identidade para muitos jovens. Reside na possibi-
EIXO 1: Dimensão ético-política lidade de realizações semelhantes e, na consequente permanência, a
esperança de um futuro que inscreva seu nome na posteridade.
da Psicologia Social do Esporte Parlebas (1988) afirma que o esporte não é bom, nem ruim.
O esporte é aquilo que fazemos dele. Essa afirmação aponta que o
esporte pode levar a dois polos diametralmente opostos: a inclusão
e a exclusão.

Esporte como Direito constitucional A juventude no Brasil


De acordo com a Constituição Federal e com o Estatuto da Crian-
Sendo o esporte um dos principais fenômenos culturais da ça e do Adolescente (ECA)4 as crianças brasileiras têm o direito à edu-
atualidade ele pode ocupar um lugar de destaque na formação da cação, à cultura, ao esporte e ao lazer garantidos. Essas atividades são
juventude no sentido de promover a aproximação entre o biológico consideradas necessidades humanas básicas e direito de toda popu-
e o cultural. Rubio (2008) entende que se por um lado, como ati- lação infanto-juvenil, sem privilégio de grupos ou classes sociais. No
vidade física não competitiva, ele é capaz de resgatar sua função caso do esporte, entendido dentro de um contexto amplo de atividade
pedagógica integradora, por outro lado, a sua porção competitiva o corporal de movimento competitiva ou não, significa uma prática de-
coloca como um ícone do contemporâneo naquilo que se refere ao mocratizada, ao alcance de todos e não somente daqueles que apre-
desenvolvimento de habilidades específicas e especializadas. sentam alguma aptidão ou talento especial (SILVA, 2007).
Existem vários aspectos que compõem o universo do esporte, O ECA, capítulo IV, artigo 59, estabelece que os Municípios,
responsáveis por caracterizar tanto o fenômeno como o protagonista com apoio dos Estados e da União, deverão estimular e facilitar a
do espetáculo esportivo. As expectativas geradas em torno da práti- destinação de recursos e espaços para programações culturais, es-
ca esportiva levam a determinados padrões de comportamento que portivas e de lazer voltadas para a infância e juventude. Nas áreas
irão, de certa forma, influenciar e por vezes determinar a conduta da- de esporte e lazer, os órgãos específicos responsáveis pelas políticas
queles que escolheram o esporte como profissão e opção de vida. desses campos são os responsáveis por desenvolverem programas
Afirmaríamos que essa é a razão porque, em torno de uma coordenados com o órgão gestor das medidas socioeducativas, bus-
modalidade específica e do esporte como um todo, desenvolve-se cando assegurar a efetivação dos direitos (CONANDA, 2002). Cada
um conjunto de práticas coletivas e comportamentos individuais indivíduo, assim como cada geração, tem direito a oportunidades
chamados pelo senso comum de cultura esportiva. Esses compor- que lhes permitam fazer o melhor uso de suas capacidades poten-
tamentos e procedimentos levam à criação e multiplicação daquilo ciais. A forma como essas oportunidades são de fato aproveitadas
que denominamos imaginário esportivo. tem relação com as escolhas pessoais, mas é fundamental que in-
A vivência do arquétipo do herói é experimentada pelo atleta divíduos e populações tenham a possibilidade de escolhas agora e
em toda a sua abrangência, seja pela demonstração de força e co- no futuro.
ragem ou pela capacidade de realizar virtudes destinadas a poucos
(RUBIO, 2001a), e por isso essa figura exemplar representa um impor- 4 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm>. Acesso em:

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38 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 39
Adolescência, do latim adolescere (crescer) é uma fase da vida bém para a possibilidade do uso do esporte como um instrumento
que pode ser definida em sua dimensão psicobiológica e em sua socioeducativo, como uma prática utilizada em inúmeros projetos
dimensão histórica, política, econômica, social e cultural. A defini- sociais direcionados a crianças e adolescentes em situação de vul-
ção da Organização Mundial de Saúde (OMS) entende a adolescên- nerabilidade, ou como intervenção nas medidas socioeducativas
cia como um período da vida que vai dos dez aos dezenove anos com adolescentes inseridos em medidas em meio aberto.
e caracteriza-se por mudanças físicas aceleradas e características Tornaram-se triviais as críticas relacionadas ao esporte de alto
da puberdade, diferentes do crescimento e desenvolvimento que rendimento por ser ele promotor de exclusão, na medida que privi-
ocorrem em ritmo constante na infância. Essas alterações surgem legia o mais habilidoso e exclui a grande maioria, menos habilidosa.
influenciadas por fatores hereditários, ambientais, nutricionais e psi- Entretanto, é preciso cautela com esse argumento e com um tipo
cológicos (WHO, 1992). de prática fundamentada nele, facilitador de um tipo de exclusão às
Vygotsky (1998) por sua vez entende que a adolescência é uma avessas. É preciso fomentar a prática da atividade física e esportiva
fase de transição que vai adquirindo diferentes qualidades segundo a toda a população, porém é fundamental que se ofereçam as opor-
os períodos históricos e sociais. Neste caso, abre-se uma discussão tunidades de especialização para aqueles que possuem habilidades
crítica com as teorias psicológicas que naturalizam as qualidades motoras específicas acima da média. Não se está a defender aqui a
dessa fase de transição com se fossem fenômenos universais. especialização precoce ou a prática alienada do esporte. Defende-
A definição cronológica da OMS, que estabelece a adolescên- se o direito de manifestação e exploração de potencialidades no
cia de 10 e vai até 19 anos, difere da definição no Estatuto da Criança esporte da mesma maneira que acontece nas artes, na música ou
e do Adolescente (ECA), que estabelece que a adolescência se co- na ciência.
loca entre os doze e os dezoito anos, momento em que acontecem, Há de se promover a massificação da prática da atividade fí-
como nas diferentes idades, diversas mudanças físicas, psicológicas sica e esportiva, porque esse tipo de prática proporcionará a todos
e comportamentais. o acesso e o direito de se desenvolver na cultura corporal de movi-
Silva (2002) aponta em seu trabalho, referenciado no ECA, que mento e também porque a partir dessa experiência essas crianças
não existe uma adolescência brasileira, mas, múltiplas adolescên- e jovens terão condições de chegar à idade adulta capaz de realizar
cias brasileiras, contemplando uma população que apresenta di- gestos que garantam sua autonomia. Vale considerar, entretanto,
versidades. Desta forma, não se pode tratá-las como uma realidade que não é apenas as aulas de educação física e a prática esportiva
homogênea. Demonstra que no Brasil há aproximadamente cento e que proporcionam essas experiências. Há também a disposição do
setenta e cinco milhões de pessoas, sendo que cerca de trinta e cin- indivíduo para que isso ocorra. Aqui falamos da maioria.
co milhões se encontram adolescentes o que leva a 21,84 % da po- Rubio (2008) aponta ainda que quanto àqueles que nos mo-
pulação total do país, sendo que 10 % se encontram na faixa etária mentos que se destacaram e demandaram uma atenção por causa
dos dez aos dezenove anos; e 15 % da população quando utilizamos de sua vontade e necessidade de se desenvolver em habilidades
as referências do ECA (IBGE, 2000). Esta situação se reflete sobre as específicas merecem tanta atenção e cuidados como aqueles que
condições de vida dessa parcela da população, apresentando imen- demandaram cuidados especiais pela falta. O apoio recebido no iní-
sas disparidades de indicadores sociais. Aponta ainda que dentre os cio de uma trajetória esportiva, seja ele material ou emocional, pode
grupos mais vulneráveis e expostos a situações de violência estão representar a diferença entre o ser e o desejar. Muitos são os jovens
os adolescentes (doze a dezoito anos) e jovens (quinze a dezenove talentosos e desejosos de desenvolver uma carreira esportiva que
anos) autores de ato infracional. O trabalho desse autor aponta tam- tiveram seu sonho não realizado por falta de recursos. Há ainda os

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40 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 41
atletas já profissionais, que mesmo tendo alcançado a profissiona- duos, desde muito cedo, o princípio do rendimento e produtividade,
lização, continuam a lutar por condições dignas de trabalho. Nesse fazendo funcionar o corpo de acordo com os princípios tayloristas,
momento me refiro a uma categoria intermediária que vive entre a implantando uma moral do esforço e do trabalho, contribuindo para
realidade da falta de incentivo e o sonho da condição de ser atleta. a manutenção da exploração de classes. Apesar disso, o esporte se
Mais do que censurar esse desejo ou obrigá-lo a se adequar a uma apresenta como politicamente neutro, favorecendo a colaboração
prática da maioria é preciso ouvir com ouvidos de escutar uma so- de classes uma vez que expressa a possibilidade do diálogo leal en-
licitação que pode implicar a orientação de uma vida. Não se fala tre os interlocutores (sociais) sob a supervisão de um árbitro impar-
aqui apenas sobre a revelação de talentos. É preciso atentar para o cial (o Estado).
fato de que o esporte preenche uma lacuna social, independente do Guttmann (1978) entende o esporte como uma forma genuína
poder econômico do praticante. de adaptação a vida moderna e pode ser entendido como um tipo
Se o esporte é de fato um direito de todo cidadão, há que se de trabalho disfarçado e desmoralizante. Apresenta ainda caracte-
exercitá-lo como princípio de bem-estar e como atitude cidadã. E a rísticas como disciplina, autoridade, iniciativa, perfeição, destreza,
Psicologia está diretamente associada a isso. racionalidade, organização e burocracia, provas do mimetismo e da
O desenvolvimento de um campo de saber, ou de uma área dependência existentes entre o esporte e o capitalismo industrial.
de trabalho, envolve o esforço e o envolvimento de muitos espertos, Conforme Bourdieu (1993) algumas chaves constitutivas do
amantes e curiosos, que ao seu tempo, e com os recursos disponí- dispositivo esportivo, esboçadas no século XIX, não se transforma-
veis no momento em que vivem o processo, deixam marcas e mar- ram plenamente até meados do presente século. Uma das mudan-
cos possíveis em uma linha tortuosa que não seria ousadia chamar ças mais significativas teve relação com a crescente intervenção do
de história. Da construção de teorias e métodos que expliquem um Estado, isso porque a esportivização da sociedade constitui uma
fenômeno ou objeto, à prática do exercício profissional que envolve parte importante da intervenção e do desdobramento de distintas
o ser que realiza uma ação, são necessários esforços coletivos. O agências que, durante sua atuação, se auto definiam e recriavam.
conhecimento longe de ser uma ação individual inspirada é antes Outra leitura possível considera que desde suas origens, a ativida-
de tudo fruto de trabalho conjunto, de troca incessante de perspec- de esportiva de alguma envergadura supõe sempre uma atividade
tivas teóricas e, acima de tudo respeito e atenção à informação e ao industrial e comercial próxima, que indica que o espaço esportivo
conhecimento partilhado pelo e com o outro. foi transformado em um setor da vida econômica e em uma área de
A produção de conhecimento é em si uma fonte geradora de consumo muito importante e dinâmica.
inquietação e desestabilização por questionar tudo aquilo que se Essa condição foi alcançada graças à construção espetacular
considera estabelecido. da narrativa esportiva em que a competição é uma metáfora das ba-
A função do esporte no mundo moderno tem uma ligação ín- talhas de então, em que adversários reais ou simbólicos serão sempre
tima com dois aspectos fundamentais da vida burguesa: a discipli- alvo de superação. Isso quer dizer que a espetacularização do esporte
na — porque ensina e reafirma nas massas os limites sociais como foi construída relacionada ao desenvolvimento da própria prática es-
regras e deveres — e o fair play — pois o esporte trivializa a vitória portiva e com as intervenções e alterações propostas pelos distintos
e o fracasso, socializa o insucesso e o êxito e banaliza a derrota. atores envolvidos. Essa narrativa, preocupada em reforçar os aspec-
Complementando essa ideia, Brohm (1993) entende que o espor- tos competitivos como igualdade e equilíbrio entre os oponentes, tem
te se apresenta como uma preparação da força de trabalho para o reforçado o imaginário da “batalha justa”, emocionante, de resulta-
trabalho industrial capitalista, uma vez que difunde para os indiví- do imprevisível, facilitando a emergência de consciências coletivas,

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


42 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 43
identidades nacionais e protagonistas carismáticos, transformando o ta e durante o envelhecimento, dificultando a adesão a programas
campo da competição em cenário de representação de atitudes he- que visam o bem-estar e a qualidade de vida.
roicas de atletas que defendem uma equipe, cidade ou país (RUBIO, Zago (2011) aponta que apesar da divulgação sobre a importân-
2001, 2004a). Ou seja, o fazer da Psicologia do Esporte passa neces- cia da prática regular de exercícios físicos e do conhecimento sobre
sariamente pelo conhecimento do esporte como fenômeno sociocul- os benefícios que essa prática gera para a saúde, os níveis de sedenta-
tural e toda a complexidade macroestrutural que envolve o atleta e rismo ainda permanecem elevados na população brasileira. Por isso
as instituições esportivas nos quais ele está inserido e é atravessado. torna-se fundamental a produção de campanhas que priorizem as
Na outra ponta do ciclo vital está a velhice. O envelhecimento mudanças no estilo de vida por meio do exercício físico. E aqui, uma
ativo é entendido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como vez mais observa-se a demanda pela psicologia do esporte.
a otimização das oportunidades de saúde, participação e seguran-
ça, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que
as pessoas ficam mais velhas. A atividade física é entendida como
qualquer movimento corporal produzido pelos músculos esqueléti- Uma Psicologia do Esporte pautada
cos que requer gasto de energia com a finalidade de manter a saúde
física, mental e espiritual (OMS, 2001). na realidade brasileira
A Política Nacional da Saúde do Idoso (2003, pp. 37-48)5 se re- Embora haja evidências de que as questões psicológicas es-
fere ao envelhecimento saudável como a melhoria da capacidade tivessem no raio de atenção da educação física e esporte no Brasil
funcional dos idosos, sendo perfeitamente adaptável a todos os sis- desde o princípio do século XX), a atuação e estudos de João Car-
temas e órgãos, como prevenção e promoção da saúde. Criado com valhaes, um profissional com grande experiência em psicometria,
a finalidade de regular os direitos assegurados às pessoas com ida- junto ao São Paulo Futebol Clube e à comissão técnica da seleção
de igual ou superior a 60 (sessenta) anos o Estatuto do Idoso aponta brasileira que foi à Copa do Mundo de Futebol de 1958 e conquistou
que essa pessoa goza de todos os direitos fundamentais inerentes à o primeiro título mundial para o país na Suécia (RUBIO, 2000a) são
pessoa humana, assegurando por lei ou por outros meios, todas as um marco fundamental para o campo da Psicologia do Esporte no
oportunidades e facilidades para a preservação de sua saúde física e país. Curioso ressaltar que esse trabalho se deu antes mesmo da re-
mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, gulamentação da profissão de psicóloga(o) em 1962. Sua interven-
em condições de liberdade e dignidade. Entre os direitos fundamen- ção junto à seleção brasileira de futebol foi amplamente reconhe-
tais da pessoa idosa encontra-se a prática esportiva e a diversão. cida no exterior durante os anos 1960, ganhando destaque no meio
Diferentes estudos demonstram a importância da atividade acadêmico com a divulgação de seu trabalho em distintos locais.
física no processo de envelhecimento e o ganho de qualidade de As regras que marcavam o esporte chamado olímpico na dé-
vida (GOBBI, 1997; SALIN et al., 2011; FRANCHI E MONTENEGRO J.r, cada de 1950, tanto em âmbito nacional como internacional, cami-
2005) e também a dificuldade de adesão às práticas corporais. Pes- nhavam na direção do amadorismo, ditado pela Carta Olímpica. O
soas que não tiveram uma relação prazerosa com a educação física futebol constituía-se uma exceção nesse universo visto que já se
e o esporte ao longo da vida tendem à sedentarização na idade adul- profissionalizara no Brasil e em outros países desde a década de
1920. Talvez por isso ele tenha se tornado um fenômeno distinto das
demais modalidades esportivas tanto naquilo que se refere à consti-
5 Disponível em: <https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/98301/estatuto-do-i- tuição dos times e clubes – com atletas recebendo vultosas remune-
doso-lei-10741-03>. Acesso em:

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


44 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 45
rações para os padrões da época e comissões técnicas compostas A diversidade sugerida pelo amplo espectro de settings, de
por profissionais de várias áreas – , como pela organização de seus populações e de expectativas sugere um suporte teórico também
eventos – campeonatos nacionais e mundiais – em que as Fede- variado que explique os diversos fenômenos estudados (RUBIO,
rações da modalidade têm a autonomia para organizá-los e geren- 2005a). Daí uma ligação estreita com a Psicologia Clínica e a Psico-
ciá-los conforme elas assim o desejarem (CARRANO, 2000; COSTA, logia Social. Se no esporte de alto rendimento o esforço dos vários
1999). profissionais que compõem a equipe técnica está voltado para a
Essas eram as expectativas e a realidade do futebol com que produção da vitória, nos demais contextos esportivos a vitória pode
se deparava João Carvalhaes em 1958. Essas eram as condições da estar identificada com a formação de um grupo para a atividade,
Psicologia e do Esporte no Brasil de então. E assim, estava marca- com a permanência na prática ou com a compreensão do signifi-
do o início da Psicologia do Esporte brasileira. Nos anos que se se- cado do processo que desencadeou ou culminou uma necessidade
guiram acumulou-se muita informação sobre indivíduos (atletas) e física. Essa ação específica faz com que a Psicologia do Esporte se
grupos (times) que praticavam esporte ou atividade física, sem que diferencie da Psicologia no esporte.
isso ainda representasse a constituição de um arcabouço teórico O esporte chamado de alto rendimento é um tipo de prática
consistente (Rodrigues, 2006). que pode se relacionar ao esporte espetáculo, protagonizado pelo
A criação da Comissão de Esporte do Conselho Regional de atleta profissional, ou ainda, a um tipo de atividade esportiva que
Psicologia de São Paulo, em 1998, trouxe para dentro do sistema não é necessariamente remunerada, mas que exige do praticante
conselhos a discussão sobre esse campo de saber e a especificida- dedicação e rendimento que superam uma atividade de tempo livre
de de uma atuação profissional. Desde então passou-se a construir ou amadora. É no primeiro caso que a Psicologia do Esporte tem
conhecimento teórico e o entendimento dos limites profissionais até se apresentado com maior visibilidade, levando-a a ser confundida
então pouco problematizados. Essa organização levou não apenas à tão somente com essa perspectiva. Isso porque, em busca do ren-
criação da especialidade como também contribuiu para a definição dimento máximo de um atleta individualmente ou de uma equipe
das áreas de atuação. esportiva são procuradas as variáveis que podem interferir na per-
formance, permitindo que o objetivo maior dessa atividade, ou seja,
Vale ressaltar que o termo esporte apesar de se referir a uma
a vitória, seja alcançada.
prática competitiva de alto rendimento e profissionalizada ou ao es-
petáculo esportivo, ele também contempla a atividade física de uma Rubio (2005a) entende que é na busca desse objetivo que es-
forma mais ampla e abrangente como as práticas de tempo livre e tão implicados valores próprios da sociedade atual como o trabalho
as atividades não regulamentadas e institucionalizadas. alienante onde o corpo é usado e manipulado pelo próprio atleta
e pela comissão técnica para alcançar o rendimento máximo, em
Isso significa um deslocamento tanto da produção do conhe-
um curto espaço de tempo, atendendo aos interesses que gravitam
cimento como da atuação profissional da(o) psicóloga(o) do espor-
ao redor do espetáculo como a venda de produtos ou a imagem do
te. Se na perspectiva do esporte competitivo a intervenção visa o
patrocinador. Na concretização desse intuito está implicada a rea-
melhor resultado, nas práticas de tempo livre, na iniciação esporti-
lização integral do potencial físico e emocional do protagonista do
va, no esporte social e na reabilitação o que norteia o trabalho da(o)
espetáculo esportivo, tendo aqui a(o) psicóloga(o) um papel deter-
psicóloga(o) é a motivação e a adesão, o bem-estar psicológico e o
minante, uma vez que o rendimento máximo pode estar associado
manejo de pensamentos e sentimentos que levam a busca da ativi-
às habilidades e características inerentes do atleta, ou em outra dire-
dade física e esportiva em diversos contextos sociais em cada uma
ção na busca desse maximizador em componentes externos como
dessas populações.
o apoio social ou o uso de substâncias proibidas. E diante dessas

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46 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 47
questões a(o) psicóloga(o) se depara com questões relacionadas supressão dos pontos frágeis ou negativos e maximização daqueles
não apenas a ética profissional, mas também com a moralidade que considerados positivos e desejáveis. Nessa situação não existe qual-
circunda o ambiente esportivo. quer referência à função pedagógica da derrota (RUBIO, 2006).
Nem todo atleta contemporâneo, entretanto, busca apenas a vi- Para tanto são estudadas condutas dos praticantes em suas
tória a qualquer custo. Há praticantes da atividade esportiva que fazem modalidades específicas, buscando-se investigar as relações entre
outra opção, originalmente associada ao esporte, que é a superação do as situações antecedentes e a conduta resultante no âmbito dessa
próprio limite. Ao conceito que pautava essa prática era dado o nome atividade (BALANGUER, 1994; LLAVE, PÉREZ-LLANTADA; BUCETA,
de areté equivalente ao latino virtus que representava hombridade, va- 1999). E para conseguir essa finalidade a Psicologia busca investi-
lor (RUBIO & CARVALHO, 2005). No sentido cavalheiresco da palavra, gar, com a ajuda de procedimentos objetivos, o funcionamento do
estava expresso o conjunto de qualidades que fazem do homem um comportamento individual e social, a fim de superar as condutas
herói, e a vitória seria a confirmação desse valor. A areté seria, portan- inconscientes, substituindo-as pela observação e a experimentação
to, a afirmação da condição pessoal daquele que pratica e vence um (GONZÁLEZ, RODRÍGUEZ & GARCÍA, 2001).
desafio, sua realização é a luta contra tudo que tente impedi-la. Essa Por outro lado, no entender de Feijó (1992) a preparação psico-
busca não representa um individualismo egoísta que cifra ideais de lógica pode ir em uma outra direção. Afirma o autor que os objetivos
amor a si mesmo, senão na busca incessante pelo absoluto da beleza e do preparo psicológico devem coincidir com os objetivos pessoais
do valor. Daí a atitude de agradecimento do atleta vencedor de provas do atleta. Isso porque existem os objetivos políticos e financeiros do
atléticas aos seus oponentes. Mais do que tê-los como inimigos, o atleta clube que está investindo no atleta, os objetivos competitivos de ga-
que praticava a areté via no adversário o parâmetro para a realização do rantir vitórias, do treinador e outras tantas preocupações dos vários
seu próprio limite e não alguém a ser superado, vencido e humilhado. profissionais que compõem a comissão técnica. Sugere o autor que
O outro era o referencial para a superação de si mesmo. o preparo psicológico do atleta que vive a situação esportiva com-
Ainda que esses valores tenham sido a referência para a ree- petitiva deve estar voltado para o equacionamento entre os seus
dição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna e para a institucionali- próprios interesses, e, os interesses do complexo esportivo com o
zação do esporte contemporâneo, parte deles foi perdido ao longo qual ele precisa lidar. Muitas vezes esses interesses convergem para
do século XX, ou substituído por apêndices incorporados às novas pontos em comum como o desejo de vitória e de aperfeiçoamento.
necessidades desse universo, levando a Psicologia a ser uma ferra- Entretanto, certas metas são discordantes como o limite do desgaste
menta valiosa nesse contexto. do atleta, prêmios ou a relação treinamento/lazer. E nesse universo
Cagigal (1996) entendia que a Psicologia do Esporte deveria tão repleto de intenções, a(o) psicóloga(o) acaba por desempenhar
estudar o esporte como um feito humano. Ou seja, mais do que se o papel de mediador da comunicação dos distintos desejos.
preocupar com rendimento esportivo ela deveria promover o desen-
volvimento do ser humano por meio do esporte. E aqui o esporte se-
ria um instrumento, um meio para a descoberta e desenvolvimento
de suas potencialidades e habilidades.
Que finalidade teria então a preparação e o treinamento psico-
lógicos?
Quando o lema é rendimento os esforços são direcionados para
a exploração máxima das capacidades individuais e coletivas, para a

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48 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 49
po de intervenção na atualidade (RUBIO, 1998; 1999), é imprescin-
EIXO 2: A constituição da Psicologia do dível se conhecer sua história e as relações com as ciências afins,
justificando uma área de conhecimento (RUBIO, 2000.a; 2000b.).
Esporte no caminho das Políticas Públicas Considerada pelos neófitos como um produto dos anos oitentas,
a Psicologia do Esporte conta com uma história de mais de 100 anos
(McCULLAGH, 1995) e uma produção que abarca uma ampla gama
de assuntos relacionados a comportamentos e estados emocionais em
atividade física e esporte, em várias correntes teóricas e paradigmas.
Durante muito tempo a Psicologia do Esporte foi definida como Um exame da literatura (BRUSTAD & RITTER-TAYLOR, 1997;
o estudo do comportamento humano no contexto do esporte. Ainda GILL, 1986; WEINBERG & GOULD, 2007; WILLIANS & STRAUB, 1991)
que concisa essa definição traz em si conceitos que fundamentam aponta que as(os) psicólogas(os) do esporte estiveram particular-
tanto a Psicologia como o Esporte. Se por um lado entende a Psico- mente interessados na variação das dinâmicas individuais e grupais
logia como o estudo do comportamento humano, identificando-a que ocorre nos contextos esportivos como um todo, bem como nas
com o behaviorismo, uma das correntes da Psicologia, inscreve o decorrências advindas de situações de práticas regulares e sazonais
esporte como o universo de várias práticas, apesar de não o definir. de atividades físicas. Para falar sobre tais variações, esses profissio-
A Federação Europeia de Psicologia do Esporte (1996, p. 221) nais têm identificado e examinado um grande número de fatores
apresentou a Psicologia do Esporte como sendo: que podem ser categorizados tanto como diferenças individuais
como influência social.
os fundamentos psicológicos, processos e con- As diferenças individuais referem-se tanto a traços estáveis,
sequências da regulação psicológica de ativida- disposições ou características do indivíduo como idade, personali-
des relacionadas com o esporte de uma ou vá- dade, ansiedade, motivação e nível de habilidade, residindo na va-
rias pessoas atuando como sujeito da atividade. riação dessas diferenças a explicação e predição de comportamen-
O foco pode ser o comportamento ou diferentes tos de praticantes de esporte e atividade física. O que os estudos
dimensões psicológicas do comportamento hu- têm buscado questionar é se os fatores relacionados com o esporte
mano (isto é, as dimensões afetivas, cognitivas, ou o ambiente social podem afetar o comportamento da prática do
motivacionais ou sensório motoras. esporte e da atividade física, e também a adesão dos participantes.
No caso de atividades coletivas, as características do grupo
(tamanho, nível de coesão, composição) e o comportamento do lí-
A ampliação do conceito de Psicologia do Esporte reflete a di- der do grupo (professor, técnico ou capitão) têm sido vistos como
nâmica das questões relacionadas tanto com a construção da teoria fatores que interferem no comportamento de seus componentes.
específica da área — que não pode ser vista descolada do movimen- Além disso, as origens sócio culturais de seus membros (etnia, clas-
to por que passam a Psicologia e o Esporte como um todo — quan- se social) e a natureza da estrutura do esporte em si (modalidade
to com a aplicação prática desse conhecimento, uma das razões esportiva, organização de objetivos, apresentação da estrutura do
de grandes discussões acadêmicas e distensões institucionais. Isso programa) desempenham grande influência na dinâmica da equipe.
quer dizer que para se poder compreender a demanda criada em
Durante várias décadas, reflexo de uma conduta metodológi-
torno da Psicologia do Esporte como área de conhecimento e cam-
ca, as pesquisas em Psicologia do Esporte analisavam a influência

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50 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 51
de diferenças individuais e relações sociais separadamente, resul- ro 47) no ano de 1986. Deve-se dizer que esse reconhecimento ocor-
tando numa série de estudos históricos, porém parciais. Acompa- reu após cem anos do primeiro trabalho publicado como sendo da
nhando o movimento da ciência e a necessidade de se estudar os área, passados vinte e um anos da criação da Sociedade Internacio-
fenômenos humanos de forma relacional, Feltz (1992) apontou que nal de Psicologia do Esporte, depois de um número considerável de
evidências consideráveis têm sido acumuladas para mostrar que as trabalhos produzidos e de profissionais que se especializaram pelas
características da performance individual interagem com fatores no mais diversas vias, criando massa crítica suficiente para colocar a
meio social para determinar o comportamento individual em con- Associação Americana a reboque de uma afirmação da categoria
textos específicos do esporte e da atividade física. profissional. A partir disso, um fato novo foi criado, ou seja, reco-
Considerada uma ciência e uma disciplina de aplicação rela- nhecida como especialidade, a Psicologia do Esporte tornou-se área
tivamente jovem, a Psicologia do Esporte tem buscado desenvolver de abrangência profissional da(o) psicóloga(o), que exige formação
métodos e paradigmas para avançar na aproximação entre teoria e específica para utilização e exercício do título. Se oportunidade ou
prática, grande preocupação da área nos últimos trinta anos (COHEN, oportunismo veremos a relação desse episódio com o movimento
1994; HORN, 1992; POCZWARDOWSKI, SHERMAN & HENSCHEN, de produção científica da área.
1998; TENENBAUM & HACKFORT, 1997). Ou seja, durante longo pe- Tida como uma especialidade da Psicologia, a Psicologia do
ríodo observamos, de um lado, pesquisadores encerrados em seus Esporte tem sua produção dirigida para o esporte e à atividade física
laboratórios produzindo pesquisa básica e, de outro, os clínicos próxi- como “settings” (no sentido do espaço onde ocorre a ação) na com-
mos de atletas e técnicos no contexto de treinamento e competição preensão da teoria psicológica e na aplicação de seus princípios.
explorando a aplicação. O resultado desse distanciamento foi que Se Cratty (1989) e Shilling (1992) alocaram a Psicologia do Es-
cada qual produziu a seu modo conhecimentos específicos que, con- porte junto à Psicologia, Gill (1986) defende-a compondo as Ciên-
duzidos de maneira diferenciada, poderiam estar mais próximos. O cias do Esporte. Haag (1994) considera as Ciências do Esporte como
paralelismo venceu a cooperação. Sabe-se que esse procedimento uma teoria composta por sete campos de conhecimento — medici-
foi resultado de um movimento histórico que se iniciou há décadas na esportiva, biomecânica do esporte, psicologia do esporte, peda-
e teve como consequência a criação de várias entidades que busca- gogia do esporte, sociologia do esporte, história do esporte, filosofia
vam ser representativas da área, a diferenciação de formas de pensar do esporte — tendo como condutor da discussão teórica a pesquisa
e aplicar conhecimentos desenvolvidos por pesquisas básicas na prá- comparativa. As Ciências do Esporte representam um sistema de
tica interventiva e a distinção do que e como estudar a Psicologia do pesquisa científica, ensino e prática, cujo conhecimento é formado
Esporte, situações que se desdobram até o presente. a partir de outras disciplinas, que têm como trabalho científico e
Considerada como uma subárea das Ciências do Esporte objetivo compreender um sistema complexo denominado esporte.
(SCHILLING, 1992), que se ocupa de aspectos psicológicos da ativi- Este fenômeno, por sua vez, é diversificado, multifacetado e deve
dade física e do esporte, e uma especialidade da Psicologia (CRAT- ser visto numa linha multidimensional.
TY, 1989), incorporando seus modelos teóricos e linhas de atuação, Se no Brasil há um reconhecimento do conceito Ciências do
não é de surpreender que a Psicologia do Esporte tenha se ocupado Esporte (BRACHT, 1993; 1995; TANI, 1996) isso não significa, con-
apenas com elementos parciais da ciência mãe, apesar da ampla tudo, um consenso relacionado a seu objeto de estudo ou episte-
gama de possibilidades que a Psicologia tem a oferecer. mologia. Em outros países sua denominação pode variar em Ciên-
Para a APA (American Psychological Association) (1999) a Psi- cias do Esporte (WEINBERG E GOULD, 2007; WILLIAMS E STRAUB,
cologia do Esporte foi reconhecida como especialidade (a de núme- 1991) e Ciências do Esporte e da Atividade Física ou do Exercício

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52 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 53
(DISHMAN, 1982; FELTZ, 1992; GILL, 1986), sendo importante reco- Passadas quase duas décadas é possível se observar que essa
nhecer que mais que uma diferença semântica, a implicação dessa construção avançou e se multiplicou. A busca pela alteridade provo-
nomenclatura reside na delimitação da Educação Física como área cou diversidade de formas de atuação das(os) profissionais psicó-
de conhecimento (BETTI, 1996; LOVISOLO, 1996). logas(os) brasileiras(os), mas principalmente, ampliou a produção
Feltz (1992) e Morgan (1989) sugerem que, para se compreen- acadêmica com a formação de mestres e doutores, que se dedica-
der o fenômeno esportivo na sua complexidade, conhecimentos de ram a criar métodos, protocolos e modelos de pesquisa e interven-
outras subdisciplinas das Ciências do Esporte precisariam estar in- ção para o esporte e a atividade física no país.
cluído na Psicologia do Esporte. Sob esse aspecto, Gill (1986) sugere Ressalte-se ainda que a Psicologia do Esporte brasileira segue
que sendo as Ciências do Esporte multidisciplinar, far-se-ia necessá- hoje, muito proximamente, os passos, avanços e recuos tanto da
ria a aproximação com as demais disciplinas, no sentido de compor Psicologia como do Esporte. Isso representa por um lado o compro-
teorias, constructos e instrumentos de investigação que caminhem misso com a construção rigorosa da teoria que fundamenta uma
numa mesma direção. prática em desenvolvimento, e por outro, a instabilidade das insti-
A década de 1990 marcou o início um grande movimento na tuições esportivas que dizem desejar o rigor da profissionalização,
Psicologia brasileira movido pela busca da especificidade dentro de mas que ainda convivem com o amadorismo no gerenciamento dos
uma grande área que contempla saberes próximos às humanida- clubes e grande parte das Federações e Confederações esportivas.
des e às ciências biológicas, que favoreceu a criação das especia- Resistir à inércia de multiplicar aquilo que já está constituído
lidades, e dentre elas a Psicologia do Esporte. Diferentemente de e sacramentado em outros países e continentes é mais do que uma
outras especialidades cujo referencial teórico nacional estava bem ação revolucionária, é antes de tudo vital para a superação de um co-
estruturado, a Psicologia do Esporte iniciava a sua consolidação de lonialismo acadêmico que se impõe sobre áreas de saber tidas como
prática profissional, com algumas(uns) psicólogas(os) atuando em insipientes ou emergentes, como foi o caso da Psicologia do Esporte.
clubes e seleções nacionais pontualmente, nos incipientes projetos
sociais e uma parca produção acadêmica específica para o univer-
so da universidade brasileira. Essa ausência de referencial teórico
foi a razão para a organização de um livro, produzido pelo grupo Por uma Psicologia Social do Esporte
denominado Comissão de Esporte do Conselho Regional de Psico-
logia de São Paulo (RUBIO, 2000a), que no final da década de 1990 É possível afirmar que toda manifestação esportiva é social-
se mostrava preocupado com o demasiado apego a modelos teó- mente estruturada, na medida em que o esporte revela em sua or-
ricos desenvolvidos em outros países. Nessa obra buscava-se fazer ganização, no processo de ensino-aprendizagem e na sua prática, os
não apenas uma crítica à dependência epistemológica externa, mas valores subjacentes da sociedade na qual ele se manifesta. Questões
principalmente apontava para a diversidade criativa das(os) psicó- como o desenvolvimento da identidade do atleta, formas de mane-
logas(os) do esporte brasileiras(os), que afirmavam a unidade da jo e controle de concentração e ansiedade, aspectos de liderança
ação, na diversidade teórica possível para pensar e fazer a Psicolo- em equipe, estudadas e tratadas de maneira pontual e pragmática
gia do Esporte, a partir do necessário entendimento da especificida- dentro da Psicologia do Esporte voltada para o rendimento, foram
de do esporte, e do atleta, brasileiro. Isso porque durante décadas deslocadas de um contexto social maior que é o lugar e o momento
tentou-se adaptar teorias e técnicas estrangeiras sem considerar a que o atleta está vivendo.
especificidade das instituições esportivas bem como a cultura dos Recentemente alguns estudiosos começaram a repensar a Psi-
atletas brasileiros. cologia do Esporte deslocando-a de um modelo de habilidades indivi-

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duais e passaram a observar a necessidade de uma aproximação com
a Psicologia Social para a compreensão e explicação desse fenômeno EIXO 3: Atuação da(o) Psicóloga(o) nas
complexo e abrangente que é a atividade física e esportiva (BRAWLEY
& MARTIN, 1995; BRUSTAD & RITTER-TAYLOR, 1997; RUBIO, 2005b). Políticas Públicas para o Esporte
Ainda que o referencial de Psicologia Social utilizado pelos
autores norte-americanos esteja baseado em formas psicológicas
que reduzem as explicações do coletivo e do social a leis individuais
(BERNARDES, 1998), é possível avançar essa discussão em direção
a uma Psicologia Social do Esporte, em que se busca situar o atleta
e as equipes esportivas coladas a realidade social e cultural vividas
(BOCK, 2001; GUARESCHI, MEDEIROS & BRUSCHI, 2003).
Nesse sentido é possível afirmar que a Psicologia do Esporte,
O diálogo possível entre as diferentes linhas teóricas
que trata do fenômeno esportivo em toda a sua complexidade, visan- A psicologia do esporte no Brasil surgiu há várias décadas
do à compreensão da dinâmica das relações envolvidas entre atle- como uma especialidade da psicologia geral e se desenvolveu con-
tas, técnicos, dirigentes, mídia e patrocinadores, não é apenas uma juntamente com outros saberes disciplinares como especificidade
Psicologia de rendimento de atletas e equipes, mas uma Psicologia de uma área maior, constituindo as chamadas ciências do esporte
Social do Esporte. O debate sobre a função e o papel da Psicologia do (RUBIO, 2011). Esses saberes, com seus diferentes graus de especia-
Esporte passa necessariamente pela discussão do que é o fenômeno lização, vão se definindo pelas demandas do contexto esportivo de
esportivo e como tem sido construído e explorado o imaginário es- competição. As necessidades, nem sempre visíveis, de troca entre
portivo na atualidade. Isso porque o esporte contemporâneo, em seu eles tem como base o que cada um tem a oferecer de conheci-
processo de construção, sofreu influência das transformações socio- mento acumulado somado ao posicionamento sócio-político de sua
culturais dos diversos momentos históricos pelo qual passou, absor- categoria de trabalhadores. Entretanto, ocorre que tornar comum
vendo, ao longo do século XX, uma série de características da socie- um objetivo, focado na figura do atleta, se torna uma missão um
dade contemporânea. O que tem sido observado nesse período é que tanto quanto difícil quando variados saberes apresentam diferenças
dentre os vários fenômenos que a sociedade atual vem produzindo, o da ordem da episteme e da ontologia. Acrescendo ainda o fato de
esporte tem ocupado um dos lugares mais destacados, valorizando a quem nem toda aplicabilidade dos conhecimentos dessas respecti-
emergência de atitudes heroicas (RUBIO, 2004b). vas áreas se dá no modelo de esporte de alto rendimento.
Em função disso, características como secularização, igualdade
de chances, especialização, racionalização, burocratização, quantifi-
cação e busca de recorde, princípios que regem a sociedade capita-
lista pós-industrial, marcam indelevelmente a prática esportiva, ten- A temporalidade da constituição Psicologia do Esporte
do o rendimento como o princípio norteador. Mas, apontar apenas Diante da polêmica criada sobre quem é e o que faz a(o) psi-
o rendimento como elemento marcante do esporte contemporâneo, cóloga(o) do esporte, a Psicologia do Esporte foi dividida em três
apresentado como um dos espetáculos da pós-modernidade seria áreas básicas de atividades: a pesquisa, o ensino e a clínica. Mesmo
desconsiderar outros valores que foram sendo transformados, prin- muito mais próxima das Ciências do Esporte, a Psicologia do Espor-
cipalmente a partir da década de 1970, ou mais precisamente com a te tem uma relação com a Psicologia que não pode ser descartada
queda em desgraça do conceito de amadorismo.

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56 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 57
ou desprezada. Isso significa que as transformações ocorridas no fato, existia a diferença se utilizado uma outra forma de análise dos
processo histórico da Psicologia geral refletiram diretamente nos ru- dados, — multivariada (LANDERS, 1995).
mos da Psicologia do Esporte, processo semelhante que ocorre com As críticas às pesquisas sobre personalidade provocaram,
outras áreas de conhecimento. temporariamente, um desencantamento com esse tema, hoje con-
Landers (1983) observou que, na década de cinquenta até sideradas exageradas, pois esses estudos serviram como ponto de
meados dos anos sessentas as pesquisas em Psicologia do Esporte partida para uma série de investigações que vieram a acontecer de
caracterizaram-se pelo empirismo, e grande parte dos estudos vol- forma bem-sucedida posteriormente. Um dos principais críticos dos
tavam-se para a investigação da personalidade. trabalhos dessa época, Martens (1970; 1979) começou a desenvol-
Vale ressaltar que a Psicologia nesse período vivia um momen- ver o uso da análise social que combinava métodos empíricos com
to de afirmação como ciência, buscando formas de demonstrar teoria, iniciando a testagem de teorias psicológicas no contexto da
quantitativamente hipóteses analíticas, contribuindo para o desen- performance motora, sendo seguido por vários outros pesquisado-
volvimento de técnicas psicométricas que registrassem e quanti- res. Muitos desses estudiosos conduziram suas pesquisas em labo-
ficassem dados sobre o cliente que, até então, eram obtidos pela ratórios e esse período representou o segundo grande estágio na
observação e acompanhamento clínico fosse num enfoque psica- história da pesquisa em Psicologia do Esporte.
nalítico, fenomenológico ou comportamental. O furor métrico vivi- Um número considerável de pesquisas foi conduzido durante
do nessa época teve reflexos importantes na Psicologia do Esporte, os anos 1965-1980 e o paradigma típico, desenvolvido em laboratório,
representando as pesquisas mais populares produzidas até então. envolvia as teorias da psicologia do comportamento humano, a facilita-
São desse período (FELTZ, 1992; LANDERS, 1995) muitos es- ção social e seu teste aplicado na performance de habilidades motoras
tudos relacionados a tipos psicológicos e traço, onde pesquisadores (LANDERS, SNYDER-BAUER & FELTZ, 1978; MARTENS, 1970; ROBERTS,
recorreram a atletas de níveis que variavam de equipes olímpicas a 1974; SMITH, SMOLL & CURTIS, 1979). Esse procedimento relacionava-
times escolares, fazendo uso de uma variada gama de testes de per- se diretamente à formação de pesquisadores da Psicologia do Esporte,
sonalidade. Apesar do grande volume de estudos realizados durante oriundos de faculdades de Educação Física, mais especificamente dos
os anos cinquentas e sessentas, a produção dessa época é marca- programas de doutoramento em desenvolvimento motor. Os assuntos
da pela crítica à falta de sistematização, de um modelo teórico que mais comumente estudados nesse período foram a testagem de um
desse suporte à seleção e análise dos testes realizados e a aceitação ponto da teoria da facilitação social relacionada com a manipulação
quase que incondicional do modelo de personalidade traço, deno- de variáveis independentes em contextos de laboratório, usando novas
minando esse período como “empírico”. Landers (1995) sustenta tarefas motoras para minimizar os efeitos de uma prática prévia.
que a área de estudo sobre personalidade em Psicologia do Esporte Ainda que o conceito de facilitação social tenha sido desen-
está repleta de estudos inconsistentes, apontando vários deles em volvido por Allport na década de vinte para definir a relação estí-
que resultados são perigosamente generalizados a partir de amos- mulo-resposta, considerando o estímulo como o sinal ou o som de
tras reduzidas ou pouco significativas. alguém realizando uma mesma tarefa, é na produção de Zajonc
Apesar da inconsistência dos modelos teóricos e metodoló- (apud BRAWLEY & MARTIN, 1995; FELTZ, 1992) que os pesquisado-
gicos, o principal alvo de crítica dos estudos realizados então era a res da Psicologia do Esporte vão se basear para referenciar a produ-
utilização de um modelo estatístico uni variado, que tornava os estu- ção sobre facilitação social.
dos suscetíveis de falsas conclusões como, por exemplo, não haver Chamada de drive theory, a facilitação social para Zajonc dizia
diferença significativa numa determinada comparação quando, de que o fenômeno da facilitação social associado à essa teoria oferecia

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a possibilidade de compreensão das hipóteses relacionadas com a com a presença de audiência, mas a informação não era processada.
aquisição ou performance de vários comportamentos que ocorrem na Revisores como Bond & Titus (1983), Carron (1980) e Landers et al.
presença de audiência. Condições de mínima presença social foram (1978) acreditaram que o principal problema dos estudos sobre ativa-
examinadas para considerar seu impacto sobre a produção de ativação ção residia na sua natureza específica e individual, e que a dificulda-
fisiológica que reforçavam uma resposta dominante. A resposta domi- de em mensurar os experimentos, a inconsistência dos resultados e
nante da tarefa complexa é, de início, resposta incorreta para torna-se a pequena variação dos efeitos da audiência levaram muitos pesqui-
correta quando a habilidade estiver plenamente desenvolvida. sadores a abandonarem os estudos sobre facilitação social em detri-
No âmbito da Psicologia Geral esse período é marcado pelo mento de outras linhas de pesquisa da psicologia aplicada ao esporte.
auge do behaviorismo radical, nos Estados Unidos, que influenciou Como alternativa a essas dificuldades apontadas, Carron
grande parte dos estudos nas várias áreas da psicologia, levando-a (1980) apresentou a hipótese do U-invertido onde o aumento pro-
inclusive a ser definida como a ciência do comportamento humano, gressivo da performance — como nível de ativação individual —
e não mais como o estudo do inconsciente. chega a um estado ótimo, além do qual acontece uma diminuição
O behaviorismo radical (KELLER, 1973; 1974; SKINNER, 1976) progressiva da performance eficiente, influenciando grande parte
já havia explicado nas décadas de trinta e quarenta que a drive dos estudos realizados na década de setenta sobre ativação, enfren-
theory estava associada a uma operação que estabelecia um com- tando, porém, o mesmo problema que outros estudos nas pesquisas
portamento, ou seja, um indivíduo apresenta um comportamento sobre facilitação social que era a incapacidade de abarcar questões
assertivo porque recebeu algum tipo de reforçamento no passado, estudadas a partir de sua natureza multidimensional.
levando-o a valorizar sua reprodução; ou em outra circunstância, As pesquisas realizadas nesse período foram caracterizadas
desenvolveu — ou criou — um comportamento para superar uma pela testagem das teorias psicológicas nos contextos do domínio mo-
situação desconhecida ou adversa. tor e de laboratório (FELTZ, 1992). No entanto, percebeu-se que os re-
Porém, foi Martens (1979) quem iniciou uma série de estudos sultados alcançados por esses experimentos não eram significativos
experimentais sobre facilitação social usando tarefas com habilida- e sua generalização era questionável no ambiente esportivo e com o
de motora, abrindo caminho para que vários outros pesquisadores atleta individualmente. Esse estado de coisas levou a uma insatisfa-
se ativessem aos estudos com tarefas motoras, variando a tarefa, a ção de pesquisadores em relação aos estudos realizados em labora-
audiência e as características subjetivas dos indivíduos. Suas desco- tório com orientação em psicologia do comportamento, dando início
bertas eram tantas quantas as variáveis estudadas. Revisores dessas a uma fase de estudos voltados para uma perspectiva cognitivista.
pesquisas (BOND & TITUS, 1983; CARRON, 1980; COTRELL, 1972; Entre os anos setentas e oitentas uma grande variedade de
LANDERS, SNYDER-BAUER & FELTZ, 1978) concluíram que as evi- modelos teóricos sobre personalidade e esporte, facilitação social,
dências da drive theory a respeito dos efeitos da facilitação social ativação e performance, e motivação foram propostos como res-
não são conclusivos, além do que a extensão dos efeitos da facilita- posta à insatisfação geral com aquilo que era considerado simplista
ção social na performance motora é consideravelmente pequena. e mecânico na perspectiva da drive theory para explicar comporta-
Um outro aspecto da pesquisa em facilitação social considera- mentos humano complexos. Ao mesmo tempo havia uma insatisfa-
do problemático pelos pesquisadores é a questão da ativação. Ainda ção com a orientação dada a pesquisas realizadas em laboratórios
que se possa perceber a presença e medir a ativação automática em- de Psicologia do Esporte que tinham caracterizado a década ante-
pregada em um movimento, não se tem clareza que padrão de resul- rior. Isso levou muitos investigadores a defender o uso de um novo
tados foi obtido. Vários estudos apresentaram aumento de ativação campo metodológico de pesquisa.

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60 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 61
Martens (1979), particularmente, apontou as limitações dos Para que se desvende uma teoria é necessário conhecer mais
estudos de laboratório e sugeriu uma aproximação entre o laborató- que as publicações científicas. É preciso a compreensão de seu
rio e as situações práticas para observar comportamentos de forma contexto histórico e desdobramentos do que num momento foi “li-
mais pontual e entender o verdadeiro mundo do esporte. A publica- nha” e depois se tornou “crítica”. Ao longo de um século de vida
ção desse artigo estimulou muitos pesquisadores a buscarem for- a Psicologia do Esporte já conta com um volume considerável de
mas de pesquisa que aproximassem os estudos de laboratório com conhecimento produzido e com uma dúvida que paira sobre psicó-
a realidade da prática cotidiana. Sua dúvida de que apenas a mani- logas(os) e estudiosos da área: afinal a Psicologia do Esporte é uma
pulação de variáveis em contextos experimentais pudesse cartogra- subárea das Ciências do Esporte ou especialidade da Psicologia? Ao
far o comportamento humano levaram-no a um compromisso de que tudo indica a resposta a essa pergunta ainda está longe de ser
pesquisa em que contextos naturais passaram a ser considerados dada. Os estudiosos envolvidos com o ensino e a pesquisa tenderão
nas transformações de comportamentos e vice-versa. a responder que pertence à primeira enquanto que psicólogas(os)
Contudo, conforme apontou Landers (1983) muitos pesquisa- afirmarão que pertence à segunda. Reserva de mercado, embates
dores interpretaram erroneamente a proposta de Martens e abando- ideológicos e escolhas acadêmicas influenciarão diretamente essa
naram os testes da teoria, e os laboratórios, para se transformarem resposta, que pouco contribuirá para seu desenvolvimento.
em aplicadores ou práticos de intervenção. Alguns pesquisadores Ao observarmos atentamente o movimento ocorrido nas últi-
conduziram estudos descritivos em situações de campo, sem, po- mas décadas se pode perceber que a Psicologia do Esporte acom-
rém, testá-los como sugeria Martens, perdendo-se os referenciais panhou de perto a dinâmica ocorrida na Psicologia Geral, ou seja,
teóricos. Outros pesquisadores passaram a enfatizar estudos de in- o objeto de estudo foi o ser humano, seu comportamento e subje-
tervenção aplicada a temas como prática mental, imaginação, técni- tividade, no contexto esportivo ou de atividade física. No entanto, a
cas de controle de estresse e biofeedback, apresentando o inconve- forma de se analisar esse fenômeno seguiu de perto os caminhos
niente de que essa metodologia clínica aplicada em circunstâncias e influências ditados pela Psicologia Geral, independente do país
esportivas carecia de um referencial teórico consistente dentro da onde essa produção ocorreu.
Psicologia Geral. Em situações onde a teoria pôde ser testada de De acordo com Rubio (1998; 1999) não se deseja, com isso,
forma criteriosa, a abordagem cognitiva alcançou progressos signifi- afirmar que a área ande no encalço de uma “ciência mãe” e que
cativos e um grande número de simpatizantes. isso signifique a reprodução de um modelo pronto e consagrado.
Em cada uma das fases descritas, pesquisadores partiram de Arriscaríamos, isso sim, afirmar que a Psicologia do Esporte vem
objetos de estudo da Psicologia para produzir um conhecimento confirmar a necessidade de ampliação de fronteiras para a com-
próprio da Psicologia do Esporte (personalidade, motivação, traço, preensão da complexidade humana, no contexto esportivo. Tanto
facilitação social, assertividade). O resultado desses esforços culmi- isso ocorre que ao nos depararmos com alguns artigos referentes a
nou em teorias e métodos inacabados por não abarcarem de ma- modalidades esportivas coletivas ou grupos onde se pratica ativida-
neira integral o sujeito ou o fenômeno estudado, levando esses pes- de física perguntamos se aquela análise é psicológica ou sociológi-
quisadores a abandonarem a área de investigação ou a metodologia ca, se as reflexões sobre a gênese do movimento intencional são da
adotada em busca de novos objetos e objetivos de pesquisa. Esse antropologia ou da filosofia ou se o estudo de uma disfunção orgâni-
padrão histórico tem contribuído para que vários programas de pes- ca é do âmbito da medicina ou da fisiologia do esporte.
quisa apresentem dificuldade em se manter produtivos, dificultando Em um momento onde os esforços se concentram na busca
a criação de um referencial teórico amplo para a área, atrasando o daquilo que nos unifica — as nações, os interesses econômicos, as
avanço e o crescimento da Psicologia do Esporte.

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


62 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 63
proximidades culturais — definir as fronteiras em uma área estati- se aproximaram na tentativa de trocar experiências e apresentar as
camente seria caminhar na contramão da história. É fato que o cor- diversas formas de pensar e fazer esse campo.
porativismo é uma forte motivação (quase arriscaríamos dizer que é Na resolução CFP n.º 013/2007 (CRPSP, 2018) que institui a
motivação intrínseca) para a demarcação dessas fronteiras e também Consolidação das Resoluções relativas ao Título Profissional de Es-
um grande impedimento para o avanço das discussões. Grande parte pecialista em Psicologia e dispõe sobre normas e procedimentos
da literatura aponta que o futuro reside na interface, interface essa para seu registro. Define o campo e as atribuições da(o) psicólo-
que permite à Psicologia do Esporte estudar o indivíduo no contexto ga(o) do esporte como:
esportivo e da atividade física tanto nos aspectos que remetem ao
fenômeno da subjetividade como das relações sociais, respeitando as
diferenças teóricas, porém exigindo rigor metodológico. A atuação da(o) psicóloga(o) do esporte está
voltada tanto para o esporte de alto rendimento,
É inegável a proximidade da Psicologia do Esporte com a Psi-
ajudando atletas, técnicos e comissões técnicas
cologia no Esporte.
a fazerem uso de princípios psicológicos para al-
Durante quase três décadas grande parte da produção aca- cançar um nível ótimo de saúde mental, maximi-
dêmica da área era produto da Psicologia no Esporte. Esse quadro zar rendimento e otimizar a performance, quanto
apresentou uma grande transformação no final da década de 1980, para a identificação de princípios e padrões de
com a busca dos interessados pela formação específica em outros comportamentos de adultos e crianças partici-
países e a posterior organização de grupos de estudo e instrução pantes de atividades físicas. Estuda, identifica e
de psicólogas(os) brasileiras(os). Como reflexo dessa “formação compreende teorias e técnicas psicológicas que
estrangeira” o que se viu no princípio foi a utilização de instrumen- podem ser aplicadas ao contexto do esporte e
tos de avaliação e técnicas de intervenção à semelhança do que se do exercício físico, tanto em nível individual — o
fazia nos países onde foram desenvolvidos. Mas, diante da especi- atleta ou indivíduo praticante — como grupal —
ficidade do esporte e da realidade brasileiros, esses instrumentos e equipes esportivas ou de praticantes de atividade
técnicas foram sendo adequados e adaptados tanto às condições física. Sua atuação é tanto diagnóstica, desenvol-
das instituições esportivas como às variações culturais presentes na vendo e aplicando instrumentos para determi-
vida dos atletas e cidadãos brasileiros. nação de perfil individual e coletivo, capacidade
O resultado dessa busca pela alteridade pode ser observado motora e cognitiva voltada para a prática espor-
na diversidade de formas de atuação. Partindo da psicanálise, do tiva, quanto interventiva atuando diretamente na
cognitivismo, do behaviorismo radical, do psicodrama, da psico- transformação de padrões de comportamento
logia social, da psicologia analítica ou da gestalt como referencial que interferem na prática da atividade física regu-
teórico, um grupo crescente de psicólogas(os) tem se dedicado a lar e/ou competitiva. Realiza estudos e pesquisas
desenvolver a Psicologia do Esporte brasileira, considerando as par- individualmente ou em equipe multidisciplinar,
ticularidades das modalidades no país e dos atletas que convivem observando o contexto da atividade esportiva
com uma realidade específica. competitiva e não competitiva, a fim de conhecer
A reflexão sobre essas muitas Psicologias do Esporte sofreu elementos do comportamento do atleta, comis-
uma aceleração desde a criação do registro de especialista em Psi- são técnica, dirigentes e torcidas; realiza atendi-
cologia do Esporte a partir de 2000, quando os profissionais da área mentos individuais ou em grupo, empregando

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64 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 65
técnicas psicoterápicas adequadas à situação, Apesar do crescimento incontestável vivido pela área princi-
com o intuito de preparar o desempenho da ati- palmente nas últimas décadas, muito ainda está para ser feito tanto
vidade do ponto de vista psicológico; elabora e no que se refere à formação específica da(o) psicóloga(o) do es-
participa de programas e estudos de atividades porte, como em relação ao reconhecimento da importância e ne-
esportivas educacionais, de lazer e de reabili- cessidade desse profissional nas diversas frentes em que ele pode
tação, orientando a efetivação do esporte não atuar. Prova disso é ainda a pouca oferta de disciplinas obrigatórias
competitivo de caráter profilático e recreacional, na grade curricular dos cursos de graduação e a ausência de áreas
para conseguir o bem-estar e qualidade de vida específicas da especialidade em programas de pós-graduação.
dos indivíduos; desenvolve ações para a melho- Entretanto, caminhando pari passu com a Psicologia Geral, po-
ria planejada e sistemática das capacidades psí- de-se observar o desenvolvimento não de uma, mas de várias Psico-
quicas individuais voltadas para otimizar o rendi- logias do Esporte, distintas umas das outras por causa do referencial
mento de atletas de alto rendimento bem como teórico que sustenta essa produção acadêmica e a diversidade do
de comissões técnicas e dirigentes; participa, em exercício dessa prática profissional (RUBIO, 2007a). Isso nos leva a
equipe multidisciplinar, da preparação de estraté- necessidade de esclarecer que nem toda psicologia aplicada ao es-
gias de trabalho objetivando o aperfeiçoamento e porte é psicologia do esporte.
ajustamento do praticante aos objetivos propos-
tos, procedendo ao exame de suas características
psicológicas; participa, juntamente com a equipe
multidisciplinar, da observação e acompanha- Delimitação dos campos de atuação
mento de atletas e equipes esportivas, visando
ao estudo das variáveis psicológicas que interfe- É comum associar a Psicologia do Esporte a um tipo de prática
rem no desempenho de suas atividades especí- esportiva que tem a vitória como objetivo e a televisão como veícu-
ficas como treinos e competições. Orienta pais lo de divulgação de resultados. Nessa dinâmica a(o) psicóloga(o) é
ou responsáveis nas questões que se referem a visto como aquele profissional que tem como obrigação fazer com
escolha da modalidade esportiva e a consequen- que o protagonista do espetáculo, no caso o atleta, renda o máximo.
te participação em treinos e competições, bem Essa perspectiva tem sido alvo de críticas visto que, nem o esporte
como o desenvolvimento de uma carreira profis- de alto rendimento é o único nicho da(o) psicóloga(o) do esporte,
sional, e as implicações dessa escolha no ciclo nem a busca do primeiro lugar é seu único objetivo (COMISSÃO DE
de desenvolvimento da criança. Colabora para a ESPORTE DO CRP-SP, 2000; LUCCAS, 2000).
compreensão e transformação das relações de O espetáculo esportivo mescla sonho, política e grandes in-
educadores e técnicos com os alunos e atletas vestimentos, na medida em que desde as competições regionais
no processo de ensino e aprendizagem, e nas até as internacionais revelam no balanço do quadro de medalhas as
relações inter e intrapessoais que ocorrem nos discrepâncias que diferenciam as nações, tanto em nível econômi-
ambientes esportivos. Colabora para a adesão e co, político-ideológico quanto sociocultural. Os feitos realizados por
participação aos programas de atividades físicas atletas, considerados quase sobre-humanos para grande parcela da
da população em geral ou portadora de necessi- população, somados ao tipo de vida regrada a que são submetidos
dades especiais. contribuem para que sua imagem heróica se sedimente (GONZÁLEZ,
FERRANDO, RODRÍGUEZ, 1998; BROHM, 1993; RUBIO, 2001; 2002b).

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em políticas públicas de esporte 67
O chamado esporte de alto rendimento busca a otimização para defender equipes colegiais sem ter vínculo acadêmico com a
da performance numa estrutura formal e institucionalizada. Nessa escola, gerando graves distorções entre os alunos. Por outro lado,
estrutura a(o) psicóloga(o) atua analisando e transformando os de- as equipes formadas por alunos regulares padecem com o desnível
terminantes psíquicos que interferem no rendimento do atleta e/ou gerado pela condição privilegiada dos ‘contratados’. Ou seja, há os
grupo esportivo (BARRETO, 2003; MARTIN, 2001, VALLE, 2003). alunos-atletas e os atletas-quase-alunos. No ambiente universitário a
Mas, a Psicologia do Esporte não se limita a atuar apenas junto dinâmica é um pouco diferente. Existem disputas entre faculdades
a esse restrito grupo. Se a atividade esportiva for considerada para que se tornaram tradicionais e carregam anos de rivalidade cons-
além da prática competitiva é possível dizer que o público alvo da Psi- truída por times e torcida. Há ainda os torneios nacionais de diver-
cologia do Esporte é também constituído por pessoas ou grupos que sas faculdades do mesmo curso, como é o caso do Interpsi. Outro
praticam exercício regular ou que treinam regularmente para compe- exemplo são os Jogos Universitários Brasileiros (JUB’s), que têm
tições, mas com o objetivo de chegar ao final da prova ou superar a demonstrado excelente nível técnico, com atletas que tentam equa-
própria marca, e não necessariamente um adversário. As chamadas cionar prática esportiva, atividade acadêmica e falta de apoio. Nes-
práticas de tempo livre e de lazer têm como desafio maior sobrepor ses casos a intervenção da(o) psicóloga(o) se dará considerando a
as questões cotidianas para a manutenção da prática da atividade faixa etária do atleta, o tipo de competição e de instituição à qual a
(RUBIO, 2005a). Esse grupo é constituído, por exemplo, por corredo- equipe está associada, sugerindo uma diversidade de atuação e a
res de longas distâncias que desejam participar de uma maratona ou ausência de um padrão ou modelo pré-determinado.
de uma prova tradicional, são equipes de corrida de aventura que A iniciação esportiva configura-se ainda como um campo pri-
desejam aperfeiçoar as relações interpessoais na superação das di- vilegiado da intervenção da(o) psicóloga(o). É crescente o número
ficuldades inerentes à convivência intensa desse tipo de prova, são de crianças envolvidas em atividades esportivas pedagógicas e com-
equipes de veteranos que descobriram o prazer de formar um grupo petitivas. A prática esportiva tem sido apontada como um importan-
e participar de torneios ampliando o círculo de amizades. Encontram- te elemento na educação e socialização de crianças e jovens. Den-
se também nessa categoria as pessoas e grupos que frequentam os tre as muitas razões alegadas para o desenvolvimento esportivo de
equipamentos públicos — parques e centros esportivos — para reali- crianças e jovens encontram-se o divertimento, o aperfeiçoamento
zar atividade física, por escolha ou indicação, e têm como maior de- de habilidades e a convivência com amigos. Entretanto a aprendi-
safio encontrar motivação para aderir à atividade.6 zagem de habilidades motoras que pode levar ao desenvolvimento
Além dessa população, a(o) psicóloga(o) do esporte também do gesto esportivo tem despertado profundo interesse nas(os) psi-
atua junto ao chamado esporte escolar que pressupõe a relação do cólogas(os) do esporte. Isso porque a iniciação esportiva apresenta
praticante do esporte com o ambiente da escola, nos mais variados grandes desafios relacionados diretamente ao desenvolvimento de
graus (RUBIO, 2004b). Apesar de pouco explorada no Brasil essa habilidades físicas específicas que permitirão a prática especiali-
vertente da Psicologia do Esporte é muito desenvolvida nos Estados zada de modalidades esportivas ou a adesão ao hábito do exercí-
Unidos que tem nos colégios e universidades o locus privilegiado cio físico. Como e em que momento realizar esse trabalho são as
para a formação dos futuros profissionais. Nossos campeonatos es- controvérsias encontradas na literatura especializada (BELLÓ, 1999;
colares têm sido um espectro do modelo americano, uma vez que SCALON, 2004; RUBIO, KURODA, MARQUES, MONTORO, QUEIROZ,
parte dos atletas que compete nessa categoria é contratada apenas 2000). Isso porque há autores que defendem a especialização em
idade precoce, enquanto outros apresentam o argumento da neces-
sidade de conhecimento de um amplo espectro de habilidades mo-
6 Disponível em: <www.pol.org.br/colunistas>. Acesso em: toras antes da escolha e fixação em modalidades específicas. Além

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68 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 69
das questões relacionadas com a criança e a atividade esportiva em diferenciando-se da intervenção em psicologia hospitalar. Pode-se
si há outras questões que gravitam nesse universo como a influência entender também como atividade de reabilitação em psicologia do
exercida pelos pais, tanto na escolha da modalidade como na op- esporte o atendimento a portadores de necessidades especiais que
ção pela competição, e a relação criança-professor. Diante de tantas têm na prática esportiva regular uma forma de busca de bem-estar
possibilidades é possível dizer que a escolha de uma modalidade e também de socialização.
esportiva e o sucesso no seu desempenho pode ser motivado por Entretanto, se essa prática se torna competitiva, normalmente,
mais de uma das razões apontadas e que a adesão à prática e o os procedimentos adotados são os do alto rendimento, uma vez que
bom desenvolvimento nela, que pode resultar em profissionaliza- o objetivo a ser alcançado é o resultado, a vitória.
ção, é um processo que envolve muitos fatores. A figura do técnico/
Uma outra área que tem se apresentado à(ao) psicóloga(o)
professor é mais um elemento que pode determinar a adesão ou o
do esporte como muito promissora são os chamados projetos so-
abandono da prática esportiva.
ciais (Di PIERRO & SILVESTRE DA SILVA, 2003; SILVA, 2007). Em
Mas os campos de atuação contemplam ainda a reabilitação sua grande maioria, a proposta desses projetos é de uso do espor-
e os projetos sociais. No contexto do esporte é possível entender te como meio de socialização de crianças e jovens e, no caso dos
como reabilitação o período de recuperação de um atleta de uma mais talentosos e habilidosos, de encaminhamento para instituições
situação cirúrgica ou de uma lesão (CAMPOS, ROMANO, NEGRÃO, esportivas para desenvolvimento desse potencial. Nesse contexto a
2000; RUBIO & GOODY MOREIRA, 2007; SILVA, RABELO e RUBIO, intervenção da(o) psicóloga(o) está voltada para o desenvolvimento
2009). Isso implica o acompanhamento, juntamente com a equipe de habilidades sociais, de cidadania e de formação de uma outra
médica e fisioterápica, de todo o processo clínico, pré e pós-cirúr- identidade. Diante disso, a apropriação de conhecimentos de edu-
gico, e na preparação emocional para o retorno a treinos e com- cação e da educação física são fundamentais no desenvolvimento
petições. Isso porque não é raro acontecer de o atleta estar pron- de atividades tanto com os usuários do projeto como com a equi-
to, do ponto de vista físico, para voltar à ativa, mas não conseguir pe de profissionais que trabalha e atende esse público. Ainda que
desempenhar a contento suas habilidades. Essa dificuldade pode sob a denominação projeto social as propostas de atuação podem
estar associada ao medo de reviver o momento da lesão e todo seu ser bastante distintas, umas tendendo mais à filantropia e à ‘ajuda’
processo de recuperação. Nesses casos, um retorno precipitado ao usuário, restringindo a intervenção a um acompanhamento dos
pode levar à recorrência da lesão, dificultando ainda mais a conti- problemas emergentes, ou mais pedagógica em que o tempo e o es-
nuidade de uma carreira profissional esportiva. Entende-se também paço disponíveis para a intervenção objetivem uma proposta trans-
por reabilitação os cuidados com pessoas que sofrem algum tipo de formadora. Em ambas as situações a que se ter muito nítido que
acidente ou trauma e que passam a necessitar de atividade física o vínculo da(o) psicóloga(o) com a instituição e seus usuários é a
regular para o transcorrer de sua vida. Encontram-se nesse grupo atividade esportiva.
pessoas hipertensas, com problemas coronarianos ou que passa-
Durante quase três décadas o trabalho prático e a produção
ram por acidente vascular cerebral, obesos que estão sob os cuida-
acadêmica da Psicologia do Esporte pautavam-se em modelos teó-
dos médicos e precisam cumprir um programa de atividade física.
ricos desenvolvidos nos Estados Unidos e na Europa (CRUZ, 1997;
Muitas vezes essas pessoas tiveram no passado uma relação pouco
WEINBERG & GOULD, 2007). Mas, diante da especificidade do espor-
prazerosa com a prática de exercícios físicos, e no presente, dian-
te brasileiro, tentou-se adaptar esses instrumentos e técnicas tanto às
te da obrigatoriedade da atividade, precisam de uma assessoria no
condições das instituições esportivas como às variações culturais pre-
sentido de compreender o porquê dessa condição. É comum que o
sentes na vida dos atletas brasileiros sem, contudo, se chegar a um
setting desse tipo de atendimento seja o local da própria atividade,

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


70 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 71
modelo próprio de avaliação e intervenção. Esse quadro apresentou Por outro lado, as modalidades coletivas têm como foco da
uma grande transformação no final da década de 1980, com a busca intervenção as relações grupais, a formação de vínculo e organiza-
dos interessados pela formação específica e a posterior organização ção de liderança, e aqui também a diversidade de procedimentos
de grupos de estudo e instrução de psicólogas(os) brasileiras(os). é grande. São amplamente utilizados os jogos dramáticos advindos
O resultado dessa busca pela alteridade pode ser observado do psicodrama, o desenvolvimento de autoconhecimento por meio
na diversidade de formas de atuação específicas do Brasil. Partin- das técnicas de sensopercepção, bem como procedimentos verbais
do da Psicanálise, do cognitivismo, do behaviorismo radical, do psi- originários da Psicanálise de grupos (ANGELO, 2002; DOBRANSZKY,
codrama, da Psicologia Social, da Psicologia Analítica ou da Gestalt 2006; RUBIO, 2003b).
como referencial teórico, um grupo crescente de psicólogas(os) tem Mas, a Psicologia do Esporte não é feita apenas dos aspectos
se dedicado a desenvolver a Psicologia do Esporte brasileira. A con- relacionados com a prática esportiva. Ela também é feita do estudo
sequência desse esforço pode ser observada no desenvolvimento do fenômeno esportivo a partir do referencial da Psicologia Social
de métodos específicos de psicodiagnóstico e intervenção, conside- (BRAWLEY & MARTIN, 1995; BRUSTAD & RITTER-TAYLOR, 1997; RU-
rando as particularidades das modalidades no país e dos atletas que BIO, 2004A, 2007A; RUSSEL, 1993), e nisso os estudos recentes reali-
convivem com uma realidade específica (ANGELO, 2000; FRANCO, zados no Brasil têm se destacado no cenário internacional.
2000; MATARAZZO, 2000; PEREIRA, 2003; SILVA, 2007). Permanece Entende-se como avaliação psicológica no esporte o proces-
atual a afirmação de que “nem toda Psicologia aplicada ao Esporte so de psicodiagnóstico esportivo, cuja finalidade maior é o levanta-
é Psicologia do Esporte” (RUBIO, 2011). mento de aspectos particulares do atleta, ou da equipe esportiva, na
A Psicologia do Esporte tem como meio e fim o estudo do ser relação com a modalidade escolhida ou praticada. Isso significa um
humano envolvido com a prática do exercício, da atividade física e conjunto de procedimentos que envolvem entrevistas, testes objeti-
esportiva competitiva e não competitiva, muito embora nem sem- vos e projetivos, cuja meta é determinar o nível de desenvolvimento
pre tenha prevalecido essa perspectiva entre estudiosos e práticos de funções e capacidades para a prática esportiva ou atividades físi-
da área (RUBIO; 2000a; 2003a). Esses estudos podem abarcar os cas e de lazer (RUBIO, 2007b).
processos de avaliação, as práticas de intervenção ou a análise do A avaliação psicológica de atletas e a construção de perfis é um
comportamento social que se apresenta na situação esportiva a par- dos procedimentos que maior visibilidade dá à(ao) psicóloga(o) do
tir da perspectiva de quem pratica ou assiste ao espetáculo (MAR- esporte e maior expectativa cria em comissões técnicas e dirigentes.
QUES & KURODA, 2000; MARKUNAS, 2000; MARTINI, 2000). É também uma das grandes preocupações dos profissionais da área
No caso das modalidades individuais, em que o foco da inter- por envolver procedimentos éticos ditados pelo Conselho Federal de
venção é o próprio atleta e sua atuação, atividades voltadas para a Psicologia. O processo de avaliação psicológica no esporte é conhe-
concentração, o controle da ansiedade e o manejo das variáveis am- cido como psicodiagnóstico esportivo e está relacionado diretamente
bientais costumam ser os principais objetivos da intervenção psico- com o levantamento de aspectos particulares do atleta ou da rela-
lógica. No entanto, a forma e o tempo que esse trabalho levará para ção com a modalidade escolhida. As investigações de caráter diag-
ser desenvolvido irão variar conforme o referencial teórico da(o) nóstico têm como objetivo determinar o nível de desenvolvimento
psicóloga(o) que o aplica. As práticas podem envolver visualização, de funções e capacidades no atleta com a finalidade de prognosticar
relaxamento, modelagem de comportamento, análise verbal, inver- os resultados esportivos. No esporte de alto rendimento, o psicodiag-
são de papéis, técnicas expressivas ou corporais (EBERSPÄCHER, nóstico está orientado para a avaliação de características de perso-
1995; VALDES CASAL, 1996). nalidade do atleta, para o nível de processos psíquicos, os estados

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72 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 73
emocionais em situação de treinamento e competição e as relações considerando as características específicas da população e do lo-
interpessoais. Com o resultado do diagnóstico pode-se chegar a con- cal onde a prática ocorria. Isso levou a criação de novos métodos e
clusões referentes a algumas particularidades pessoais ou grupais a apresentação de resultados, o que passou a despertar a atenção
que oferecem subsídios para se fazer uma seleção de novos atletas e curiosidade de colegas de outros países. Resta ainda superar a
para uma equipe, para mudar o processo de treinamento, individua- barreira da língua para que esses trabalhos ganhem a visibilidade e
lizar a preparação técnico-tática, escolher a estratégia e a tática de projeção que já conquistaram no terreno aplicado.
conduta em uma competição e otimizar os estados psíquicos. O compromisso social da Psicologia do Esporte vem sendo
Os métodos utilizados para esse fim podem ser tanto da cate- construído com a participação de psicóloga(o)s de todo o país em
goria de análise de particularidades de processos psíquicos nos quais diferentes projetos, áreas e campos de atuação, com representantes
se enquadram os processos sensórios, sensórios-motores, de pensa- de diferentes abordagens que constitui a Psicologia. Com partícipes
mento, mnemônicos e volitivos como os de ordem psicossociais nos presentes no ensino, na pesquisa e na intervenção, suas práticas se
quais são estudadas as particularidades psicológicas de um grupo consolidaram nos últimos setenta anos. No princípio o que caracte-
esportivo, buscando revelar e explicar sua dinâmica (CONSELHO RE- rizou a área foram os registros das intervenções em equipes espor-
GIONAL DE PSICOLOGIA DE SÃO PAULO, 2000; LUCCAS, 2000). tivas e estudos de caso, o que demandou formação autodidata no
Diferentemente de outras áreas da Psicologia nas quais já fo- contexto esportivo. Somente na última década é que alguns profes-
ram desenvolvidos e validados um grande número de instrumentos sores de Pós-Graduação em Psicologia começaram a se sensibilizar
de avaliação, a Psicologia do Esporte ainda busca desenvolver conhe- por projetos relativos ao tema. Isso levou a formação de grupos de
cimento específico e isso tem acarretado alguns problemas bastante estudo e pesquisa, a criação de cursos de especialização, promo-
sérios (ANGELO; RUBIO, 2007). Um deles é a utilização de instrumen- vendo a visibilidade de ações que contribuíram para o desenvolvi-
tos advindos da avaliação em Psicologia Clínica ou da área educa- mento do esporte brasileiro.
cional com finalidades específicas, como detecção de distúrbios A última década foi considerada a era dourada do esporte brasi-
emocionais, perfis psicopatológicos ou quantidade de inteligência, leiro com a realização dos Jogos Pan-americanos, Jogos Mundiais Mi-
próprios e necessários para os fins que foram desenvolvidos. O outro litares, Copa do Mundo de futebol e Jogos Olímpicos. Em todas essas
é a importação de instrumentos de psicodiagnóstico esportivo desen- ocasiões houve a inclusão de psicólogas(os) do esporte em equipes
volvidos em outros países e aplicados sem adaptação à população ou no acompanhamento individual de atletas. É inegável o avanço
brasileira, que apresenta condições físicas e culturais distintas de ou- obtido por essa experiência tanto em nível teórico como prático. O
tras populações. Diante disso, questões de ordem ética têm emergido conhecimento das especificidades de nossos atletas, bem como de
para reflexão sobre o uso e abuso de resultados obtidos por meio de suas trajetórias de vida são o maior legado desse período, contribuin-
instrumentos de avaliação psicológica no esporte. do para a reserva de conhecimento do esporte brasileiro. Os desdo-
Se naquilo que se refere ao psicodiagnóstico esportivo a Psi- bramentos dessa experiência multiplicam-se na esfera das práticas
cologia do Esporte brasileira ainda busca sua maturidade, é na de tempo livre, na iniciação esportiva, bem como nos projetos sociais.
prática da intervenção psicológica junto a atletas e equipes que se Cabe à(ao) psicóloga(o) estar atento à posição de vulnerabili-
pode observar a multiplicidade de perspectivas e o seu vigor. Isso dade a qual o sistema esportivo coloca o atleta, bem como os jovens
porque após observar que a aplicação simples de experiências in- e as crianças em seu processo formativo. Atuar como Psicóloga(o)
ternacionais não alcançava os mesmos resultados, psicólogas(os) do Esporte significa considerar as necessidades individuais para o
brasileiras(os) passaram a desenvolver estratégias de intervenção desempenho de uma tarefa dentro de um contexto de alta comple-

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74 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 75
xidade, na qual é preciso proteger o atleta diante da exposição a nais, entre atletas e profissionais, bem como entre os diferentes níveis
riscos a sua integridade física e psicológica. hierárquicos da mesma instituição, provando assim a sua importância.
O compromisso da(o) psicóloga(o) deve superar o resultado Há ainda uma questão específica da Psicologia do Esporte
de uma partida ou campeonato, porque sua prática está vinculada que se relaciona à especificidade e complexidade do setting no qual
a uma concepção de ser humano não-utilitarista, não-mecanicista a(o) psicóloga(o) atua. A questão que se faz com certa frequência é
e também não-imediatista. A orientação do trabalho da(o) psicó- quando e como é realizado um trabalho clínico com equipes espor-
loga(o) está dada no Código de Ética Profissional do Psicólogo e tivas ou atletas individualmente e se é possível fazer isso. Foi neces-
quando se trata de trabalho em equipes multidisciplinares garante o sário algum tempo para que se entendesse no que consiste o aten-
Código de Ética do Psicólogo, em seu artigo 14: dimento clínico no contexto do esporte e qual a questão de fundo
dessa dúvida (RUBIO, 2007b).
o Psicólogo, atuando em equipe multiprofissional, Não é raro surgir demandas de atletas que não estejam ligadas
resguardará o caráter confidencial de suas co- diretamente ao contexto de treinos e competições, mas que inter-
municações, assinalando a responsabilidade de ferem direta ou indiretamente em seu rendimento. Essas questões
quem as recebe de preservar o sigilo (p. 102); e no podem ser de ordem pessoal, familiar, existencial ou social e nesse
artigo 29: na remessa de laudos ou informes a ou- momento a(o) psicóloga(o) do esporte se põe a pensar se ao tra-
tros profissionais, o psicólogo assinalará o caráter balhar essas demandas ele não estará saindo de seu papel de “do
confidencial do documento e a responsabilidade esporte” e adentrando a seara do “clínico”.
de quem o recebe de preservar o sigilo (p. 104). Seria difícil discorrer sobre uma Psicologia do Esporte recor-
tando-a e distanciando-a de sua condição: ela é antes de tudo Psico-
logia. Se sua especificidade é ser do esporte ela não deixa de estar
Isso quer dizer que é preciso compartilhar o conhecimento fincada em bases amplas que envolvem o conhecimento, e no caso
e procedimentos psicológicos com os demais membros da equipe de sua aplicação, a construção de uma prática. Nesse sentido ser
multiprofissional, porém dentro dos limites que resguardem a priva- psicóloga(o) do esporte pressupõe a aquisição de conhecimentos
cidade de atletas e comissão técnica e a conduta da(o) psicóloga(o). de várias áreas da Psicologia, como já descrito anteriormente. É a
O atleta/praticante de atividade física é o foco de atenção de partir desse momento que se chega à clínica.
um grupo de profissionais nos quais confia seu futuro. A(O) psicólo- É possível entender o procedimento clínico como a constru-
ga(o) do esporte tem a responsabilidade de ajudá-lo na compreen- ção de uma forma de ouvir e olhar para o fenômeno psicológico
são do processo no qual está inserido, para que ele mantenha sua humano, seja esse fenômeno no contexto da escola, do trabalho,
autonomia e integridade. Casos de risco pessoal e social, cooptação, do hospital, da psicoterapia ou do esporte. Sendo assim, quando se
abandono, maus tratos físicos e psicológicos, abusos sexuais, uso de inicia uma intervenção no esporte e se faz um diagnóstico da insti-
drogas lícitas e ilícitas, exploração do trabalho infantil são alguns dos tuição, do grupo esportivo e depois do atleta, não necessariamente
temas relatados nas histórias de atletas. Onde houver psicóloga(o), seguindo essa ordem, são utilizados os recursos da perspectiva clíni-
essas são situações que não devem ocorrer, uma vez que o Código ca na busca dos elementos fornecerão os recursos para que se orga-
de Ética profissional garante o respeito à pessoa. nize uma proposta de intervenção, seja ela pontual ou em formato
A(O) psicóloga(o) dentro de uma equipe multidisciplinar tem de periodização (MARKUNAS, 2003).
ainda a função de mediar a comunicação entre os diferentes profissio-

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


76 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 77
O atendimento clínico no esporte não se refere a um procedi- uma especialidade recente da Psicologia, a Psicologia do Esporte
mento psicoterápico convencional, pautado em um setting que tem carece ainda de ser incorporada à grade curricular de grande parte
o atendimento dual do consultório como referência. O foco da inter- dos cursos de graduação. Isso tem feito com que a(o) psicóloga(o)
venção clínica na Psicologia do Esporte visa a resolução dos confli- do esporte busque sua especialização após a graduação, prorrogan-
tos do sujeito-atleta para a busca do desenvolvimento e rendimento do a resposta a dúvidas cotidianamente presentes em sua prática.
de seu potencial esportivo. Apesar disso, dois elementos básicos da constituição da iden-
Há situações em que, de fato, o atleta poderá precisar de um tidade profissional da(o) psicóloga(o) sustentam sua ação: uma for-
atendimento com esse modelo, uma vez que sua vida não se res- mação generalista e a incorporação de uma conduta ética em sua
tringe apenas a treinos e competições (RUBIO, 2006), mas, nesse maneira de proceder.
caso, o procedimento mais adequado seria então o encaminhamen- A formação generalista tem resistido bravamente às investidas
to para um profissional competente, que desempenhe essa função. de políticas educacionais que apostam na especialização precoce
Vale ressaltar que o código de ética da Psicologia prevê esse tipo de como forma de satisfazer às “necessidades do mercado”. Por traz
situação e indica que não é recomendado que a(o) profissional psi- dessa concepção de curso se esconde uma prática estreita e alie-
cóloga(o) desvie para atendimento particular, clientes com os quais nante, que especializa sem antes permitir o conhecimento da exten-
tenha contato em atividade institucional. Enfim, é possível dizer que são da área, levando a uma concepção estreita e restritiva de uma
há também clínica na Psicologia do Esporte. ciência que se caracteriza pela diversidade. Foi justamente a abran-
gência da graduação que permitiu à Psicologia fugir do modelo clí-
nico dual para ganhar novos horizontes rumo à escola, ao hospital,

Limites do sigilo profissional e violação de direitos às empresas, aos projetos sociais e também ao esporte. Diante do
não reconhecido, a(o) psicóloga(o) tinha elementos de outros locus
Ainda que utilizada indiscriminadamente para caracterizar di- para criar e desenvolver um modelo que se adequasse a uma nova
ferentes atitudes, a ética é um preceito que fundamenta vários con- realidade. E assim se fez a Psicologia do Esporte no Brasil, desde
ceitos. Portanto, não seria viável afirmar uma ética do Esporte, uma que o psicólogo João Carvalhaes trouxe do universo da psicologia
ética da Psicologia ou quaisquer subéticas para contextos criados organizacional elementos para avaliar e intervir no futebol, ainda na
conforme a necessidade social ou momento histórico, isso porque década de 1950.
a ética busca refletir a respeito das noções e princípios que funda- A atuação da(o) psicóloga(o) está pautada em um código de
mentam a vida moral. O esporte, como valor cultural, passível da ética que é mais que um código de conduta “porque nos fala de um
intervenção da Psicologia, também uma criação humana, reflete e espírito político envolvido na atuação profissional e da responsabi-
recria essa condição. Por isso é necessário refletir sobre a prática lidade que a(o) psicóloga(o) tem com o desenvolvimento da cida-
da(o) psicóloga(o) no esporte e qual a sua relação com valores bá- dania dos sujeitos e com a promoção da saúde.” (LUCCAS, 2000, p.
sicos fundamentais da Psicologia. 70). Já o esporte é hoje um fenômeno influenciado por inúmeros in-
É cada vez maior o número de psicólogas(os) envolvidos com teresses, regidos por regras próprias conforme o momento e o lugar
práticas profissionais no ambiente esportivo. Essas práticas abran- onde ele se dá. Isso tem levado, por exemplo, a inúmeras interpre-
gem desde o psicodiagnóstico de atletas individualmente até acom- tações do conceito de fair play, um tipo de código de ética esportivo
panhamento e intervenção em equipes, constituindo-se um dos não formalizado, e a uma indefinição da melhor conduta esportiva
grandes desafios profissionais da atualidade, visto que apesar de ser do atleta tanto em situações de treinos como de competições.

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


78 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 79
Embora haja flexibilidade naquilo que se refere às normas Essas indicações apontam para a necessidade de uma prática
do esporte contemporâneo há, por outro lado, uma quase absoluta consciente e crítica da atividade profissional, independentemente
rigidez nas instituições esportivas que regulamentam e organizam do local de sua atuação. A(O) psicóloga(o) vem, gradativamente,
o esporte tanto em âmbito nacional como mundial. Esse jogo indi- ocupando espaço no esporte em um território dominado historica-
víduo/instituição tem gerado inúmeras interpretações do necessá- mente por técnicos, preparadores físicos, médicos, fisioterapeutas,
rio, do possível e do desejável no ambiente esportivo, demandan- nutricionistas, fisiologistas, constituindo-se em uma atividade mul-
do por parte de todos os envolvidos com a área reflexões sobre tiprofissional por excelência, regulamentada pelos vários códigos
ética, tanto em sua dimensão crítica e propositiva, quanto em sua profissionais das diversas áreas que compõem a equipe. Ter clareza
dimensão da relação (GUARESCHI, 2003). A dimensão crítica e do que fazer e até onde ir nessas circunstâncias é fundamental para
propositiva da ética presume a sua incompletude e sua constante o bom andamento do trabalho do grupo e por uma conduta apro-
atualização, uma permanente busca de crescimento e transforma- priada (COMISSÃO DE ESPORTE, CRP-SP, 2000).
ção. A dimensão da relação envolve a discussão do indivíduo na Isso quer dizer que é preciso compartilhar o conhecimento e
sua interação com o outro. procedimentos psicológicos, com os demais membros da equipe
Essa discussão se torna fundamental diante da dimensão que multiprofissional, porém dentro dos limites que resguardem a priva-
o esporte adquiriu como fenômeno sociocultural contemporâneo. A cidade de atletas e comissão técnica e a conduta da(o) psicóloga(o).
necessidade da vitória a qualquer custo, da adequação às mudan- Conforme afirma Luccas (2000) a diferença entre o ethos do es-
ças de regras e calendários e os interesses comerciais de clubes e porte e da psicologia é muito grande, e compete ao trabalho da(o)
patrocinadores chega à(ao) psicóloga(o) do Esporte como um im- psicóloga(o) aproximar esses ethos e não coadunar com eles. A aten-
perativo de sua função no clube ou time, levando-o a uma necessá- ção que a(o) psicóloga(o) atrai sobre seu trabalho possui dois lados
ria e constante reflexão sobre seu papel social e profissional. Daí a distintos e incongruentes: se por um lado renova a possibilidade da
importância do entendimento sobre a concepção de ser humano e Psicologia se aproximar e caminhar junto com o esporte, por outro o
de Psicologia com que se atua. profissional faz uso daquilo que é mais técnico na ciência e profissão
Nesse sentido a orientação do trabalho da(o) psicóloga(o) psicológica para praticar uma política do mais insustentável indivi-
está dada no Código de Ética Profissional do Psicólogo em seu Prin- dualismo. Constrói uma prática sem a crítica a si mesma. E afirma:
cípio Fundamental I que afirma:
uma prática profissional que não proporcione uma
O Psicólogo baseará o seu trabalho no respeito crítica sobre si mesma e não considere o contexto
à dignidade e à integridade do ser humano; e no político, social e econômico que envolve o seu ob-
Princípio Fundamental VII: O Psicólogo, no exer- jeto de atuação não é uma prática ética. Pode ser
cício de sua profissão, completará a definição de tecnicamente correta, mas definitivamente está
suas responsabilidades, direitos e deveres, de distante de nossa ética. (LUCCAS, 2000, p. 74)
acordo com os princípios estabelecidos na Decla-
ração Universal dos Direitos Humanos, aprovada
em 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Ge- O sigilo profissional faz parte do trabalho da(o) Psicóloga(o)
ral das Nações Unidas (CRP-SP, 2001, p. 97). do Esporte e coloca à categoria profissional uma série de questões
importantes que visam cuidar dos aspectos íntimos dos atletas/pra-

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


80 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 81
ticantes de atividades físicas e todos os envolvidos no sistema com Vários são os aspectos que colocam este contexto de trabalho
o atendido, protegendo-os contra violações e indiscrições de todo e sob a influência de um tempo regido sob a batuta do neoliberalismo e
qualquer tipo. O sigilo é pautado na confiança depositada pelo clien- da massificação advinda da nova forma de circulação da informação
te na pessoa do profissional a quem ele recorre. Faz parte de seu e comunicação. O mercado esportivo solicita um trabalho de respos-
aparato humano subjetivo, vem por meio de seus relatos visando ta emergencial, porém, tanto o conhecimento acumulado quanto as
a expressar o que fazem, pensam e sentem e como atribuem cau- práticas profissionais requerem um espectro de conhecimentos que
salidade as coisas que lhes acontecem, assim como suas relações não seguem a mesma velocidade e precisam de tempo e muita fun-
como o outros. damentação para sua construção, desenvolvimento e aplicação.
Vale destacar que é obrigatório o registro documental decor- A Psicologia do Esporte conquistou espaço se mostrando fun-
rente da prestação de serviços psicológicos, descrita em itens e damental no processo de formação de profissionalização do espor-
prevista pela Resolução CFP n.º 001/2009. Uma vez guardadas as te. Para tanto, muito profissionais se disponibilizaram a atuar e mos-
informações advindas de qualquer procedimento psicológico forne- trar seu saber mesmo sem a devida remuneração. É inegável que
cido a um atleta/praticante de atividade física, em qualquer forma essa conduta atrasou o processo de profissionalização da área, que
de registro, mesmo que para facilitar acesso e compilação de dados por muito tempos, pareceu a muitos, ser um trabalho voluntário.
em outro momento do processo de atendimento, devem ser consi- O trabalho da(o) Psicóloga(o) do Esporte nesse aspecto se
deradas que as anotações são propriedade do atendido e a(o) psi- torna extremamente delicado e requer que todo o cuidado ético e
cóloga(o) é a(o) responsável única(o) por seu sigilo e guarda de to- reflexivo em sua ação cotidiana para com todos os envolvidos no
dos material utilizado como fonte e finalização de suas conclusões. sistema que ele atua. A condição de viver em um mundo esportivo
Os instrumentos de avaliação psicológica devem ficar em local de que prima pelo espetáculo e tira dele seu sustento não cobra barato
acesso exclusivo da(o) psicóloga(o). Somente os resultados dessa aos envolvidos. Todo espetáculo é planejado e calculado com base
avaliação e interpretação são de propriedade do atendido, poden- em cifras astronômicas, no qual nossos clientes são o ponto central
do ele solicitar cópias e acesso em qualquer momento. Os demais da existência do mesmo. A blindagem do atleta por parte dos inte-
materiais usados nos diferentes procedimentos de avaliação psico- ressados nas cifras conta com sua anuência dele e, sobretudo, com
lógica são da(o) psicóloga(o), que deve mantê-los guardados de seu desejo de fazer parte do espetáculo como protagonista e tirar
maneira acessível para o caso de passar por averiguação dos órgãos dele todas as recompensar financeiras de imaginárias contidas no
de fiscalização e orientação da categoria (CRP/CFP). mito do herói.
Conforme Camilo e Rabelo (2019) a carreira no esporte envol-
ve riscos e impactos biopsicossociais e rapidamente se observa as
Precarização do trabalho da(o) marcações dos efeitos nocivos da ausência de regulações laborais.
A invisibilidade e desproteção legal resulta em diferentes impactos,
Psicóloga(o) do Esporte sejam eles de cunho econômico, social ou de saúde, contribuindo
ainda para a relação de dependência e exploração com os clubes,
O contexto esportivo brasileiro ainda não propicia ao profissio- patrocinadores, donos de academias e empresários em geral. Isso
nal de Psicologia do esporte a valorização e a visibilidade que permi- também afeta a(o) psicóloga(o) do esporte.
ta demonstrar seus efeitos e suas potencialidades, fazendo com que O desenvolvimento da carreira e as tarefas nela envolvidas
este espaço profissional seja precário. tem seu início ainda no período de formação. Quando no exercício

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


82 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 83
profissional o vínculo empregatício, seja ele público, privado ou au- • Estipulará o valor de acordo com as características
tônomo, representa o reconhecimento social e profissional da fun- da atividade e o comunicará ao usuário ou bene-
ção. A condição salarial, formalizada no contrato, ainda se constitui ficiário antes do início do trabalho a ser rea-
a mais ilustrativa forma de estabelecimento da relação de trabalho, lizado;
dando à(ao) psicóloga(o) do esporte a experiência de inserção so- • Assegurará a qualidade dos serviços oferecidos in-
cial, dignidade e cidadania frente ao seu saber e profissionalização. dependentemente do valor acordado.
Não é sem motivo que formas alternativas de controle do pensar, Art. 20 - O psicólogo, ao promover publicamente seus ser-
fazer e sentir, sem respaldo de uma categoria profissional, e com viços, por quaisquer meios, individual ou coletivamente:
nomes que envolvem “o mental”, “treinamento” etc. em variadas
• Informará o seu nome completo, o CRP e seu
línguas, despontam como práticas de atuação ‘psicológica’ no con-
número de registro;
texto esportivo.
• Fará referência apenas a títulos ou qualifica-
Sabemos que os lugares, a segurança e a manutenção dos
ções profissionais que possua;
profissionais de Psicologia do Esporte estão ainda por ser efetiva-
mente entendidos e demarcados em sua importância e funcionali- • Divulgará somente qualificações, atividades e re-
dade dentro das equipes de trabalho. Existe enorme preocupação cursos relativos a técnicas e práticas que estejam
com a empregabilidade e a partir dela uma busca maior ainda pela reconhecidas ou regulamentadas pela profissão;
qualificação e capacitação profissional. Buscar essas condições in- • Não utilizará o preço do serviço como forma
dividuais de melhoria nas competências e habilidades significa ver- de propaganda;
ticalizar os conteúdos da formação generalista na especialista. • Não fará previsão taxativa de resultados;
Os pontos que corroboram as colocações supracitadas estão • Não fará autopromoção em detrimento de outros
presentes no Código de Ética Profissional do Psicólogo: profissionais;
• Não proporá atividades que sejam atribuições
Art. 3.º - O psicólogo, para ingressar, associar-se privativas de outras categorias profissionais;
ou permanecer em uma organização, considera- • Não fará divulgação sensacionalista das ativi-
rá a missão, a filosofia, as políticas, as normas e dades profissionais.
as práticas nela vigentes e sua compatibilidade
com os princípios e regras deste Código de Ética
profissional.
Parágrafo único: Existindo incompatibilidade, cabe
ao psicólogo recusar-se a prestar serviços e, se per-
tinente, apresentar denúncia ao órgão competente.
As relações da(o) psicóloga(o) do esporte com a mídia
Art. 4.º - Ao fixar a remuneração pelo seu traba- A mídia em todos os seus formatos reais e virtuais atua de for-
lho, o psicólogo: ma determinante na construção, reprodução e ampliação de mui-
• Levará em conta a justa retribuição aos servi- tas das questões associadas ao esporte no mundo contemporâneo,
ços prestados e as condições do usuário ou tanto em sua forma espetacular como nas práticas de lazer. Esporte/
beneficiário; atividade física e mídia mantém uma relação mútua e de depen-

Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os)


84 Conselho Federal de Psicologia
em políticas públicas de esporte 85
dência, na qual as trocas e participações públicas reafirmam e esta-
belecem diferentes tipos de valores na sociedade. Obviamente que
aqui não se pode esquecer o papel da publicidade e de seus efeitos
mediadores e fomentador dessa relação.
Pensar a relação da psicologia do esporte com a mídia requer
a internalização por parte da(o) psicóloga(o) dos limites éticos de
sua função e dominar as habilidades de comunicação com os meios
de informação, oferecendo conhecimento balizado e preservando
a privacidade que seu trabalho exige. O saber qualificado da(o) psi-
cóloga(o) é usado para justificar ações e condutas de atletas e pra-
ticantes de atividade, portanto, é preciso cuidado na forma como
esse saber é comunicado.
Mídia, mais do que informar, comunicar e esclarecer aconte-
cimentos é um negócio e está ligado a outros tantos negócios, com
interesses individuais, corporativos, políticos e econômicos. O es-
porte e tudo que nele está envolvido faz parte de uma lógica que
envolve emoção e interesses comerciais, e sustenta o imaginário
que mobiliza o espectador e mobiliza as novas gerações no sentido
da protagonização do espetáculo (PEREIRA, 2015).
A mídia pode e deve ser parceira do profissional de psicolo-
gia na medida em que instrui a população do lugar, da importância
e das práticas que formam o nosso ofício. Para que isso ocorra é
necessário que a(o) psicóloga(o) transmita informação qualificada,
respeitando os limites do sigilo. Apresentar o próprio trabalho e dos
pares qualificados nas diferentes frentes amplia a consolidação da
área como um todo.
A relação entre a mídia e a psicologia do esporte é uma re-
lação simbiótica, uma vez que há questões emocionais e compor-
tamentais envolvidos na prática esportiva. Historicamente, a(o)
psicóloga(o) é chamado a esclarecer vitórias e derrotas como se
houvesse uma resposta objetiva para essas questões, legitimando
assim os culpados de um sistema que não pode falhar. A(O) psicó-
loga(o) precisa estar atento para responder a esse tipo de demanda
de forma objetiva, primando pelo sigilo quanto a suas interpretações
sobre a pessoa do atleta sem fornecer respostas definitivas, como é
esperado de um laudo ou parecer.

86 Conselho Federal de Psicologia


Ilustração: Nazareno Stanislau Affonso
EIXO 2
Marcos regulatórios e dimensão
histórica: consolidação
da Psicologia na área e os
limites que processa
O trânsito é, antes de mais nada, um campo de
relacionamento social,
as pessoas que atuam de forma respeitosa,
solidária e consciente em sua vida, levam esta
forma de se comportar para o trânsito,
dirigindo de forma educada, respeitando as
normas, ciente dos riscos e valorizando a pró-
pria vida e a dos outros.
(Maria Solange Félix Pereira, Dirigir não é para
qualquer um)

No início do século XX, o transporte de pessoas e de mer-


cadorias no Brasil era realizado por meio de animais, de car-
roças, de bondes com tração animal e de ferrovias. A primei-
ra ferrovia em solo brasileiro foi inaugurada em 30 de abril de
1854, num trecho de 14,5 km que ligava o Porto de Mauá (SP)
a Fragoso (RJ) (FENABRAVE, 2018). Quase 50 anos depois, o
primeiro veículo motorizado chegou ao Brasil, em 1898, impor-
tado da Europa, configurando-se como uma das primeiras raízes
que mudaria, posteriormente, nossa matriz de transporte.
REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 57
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
O Brasil, nessa época, vivia o recém-implantado sistema vendo diminuir a marcha ou mesmo parar o movimento, todas as
político republicano, com diversos impactos socioeconômicos. vezes que o automóvel possa ser causa de acidentes” (BRASIL,
São Paulo, por exemplo, organizava sua economia com base no 1910). Essa legislação e a anterior, de São Paulo, serão retomadas
cultivo do café, produzindo fluxos migratórios e concentração mais à frente, na seção em que tratamos de “Marcos regulatórios
populacional em área rural. A capital que produzia e concentrava para avaliação psicológica de motoristas”, por suas implicações
a maior riqueza no país também produziu, em 1903, o primeiro no trabalho da(o) psicóloga(o).
texto normativo sobre trânsito de veículos automotores, promul- Em que pese o referido decreto-lei ser uma legislação nacional,
gado pelo primeiro prefeito da cidade, que ainda não possuía até 1941 as normativas sobre trânsito foram reguladas pelos municí-
sequer uma fábrica de automóveis. A finalidade era disciplinar o pios (DENATRAN, 2010). A circulação de veículos nas vias neces-
trânsito cujo crescimento se iniciara e criar critérios para emitir sitava de legislação mais rigorosa, que não deixasse a decisão quanto
carteiras de motorista, conforme os registros históricos da época: aos limites de velocidade segura para o bom senso do condutor, e
assim foram editadas outras leis, sendo que a primeira delas determi-
Em 1903 São Paulo tinha seis carros, mas no ano nava uma velocidade de 30 a 80 km/h a depender do veículo e da via
seguinte assistiria ao primeiro boom do setor: a
frota paulistana cresceria quase catorze vezes e
(BRASIL, 1941).
explodiria em impressionantes 83 veículos. Uma
Em 1925, foi criada a primeira montadora de veículos au-
verdadeira coqueluche, como se dizia na São
Paulo da época, endinheirada pela exportação do tomotores do Brasil. No entanto, o primeiro marco histórico do
café. Igualmente em 1904 foi expedida em São
setor se deu 31 anos depois, com o Decreto-Lei nº 39.412/1956,
Paulo a primeira carta de motorista, conceden-
do a Menotti Falchi, proprietário da Fábrica de que contribuiu para grandes saltos na produção automobilística
Chocolates Falchi, um dos ícones de consumo
do país, de 30.542 unidades em 1957 para 145.584 em 1961
da época, o título de primeiro habilitado a dirigir
automóveis no Brasil. (ANFAVEA, p. 96) (ANFAVEA, 2018). Essa expansão do transporte motorizado
produziu sérios problemas de segurança e saúde pública, decor-
rentes dos acidentes de tráfego que, na década de 1940, come-
No âmbito nacional, a primeira legislação foi o Decreto-
çaram a se transformar em preocupação nacional (ANTIPOFF,
-Lei nº 8.324/1910, que “Approva o regulamento para o servi-
1956). Em busca de solução, as autoridades desenvolveram e
ço subvencionado de transportes por automóveis”. Nessa época,
implementaram medidas para tentar barrar ou diminuir tal revés,
havia poucos automóveis, e seus condutores foram chamados de
que não tinha precedentes; afinal, esse era um problema novo
“motorneiros”. Conforme o artigo 21 da lei, “O motorneiro deve
para a época. As primeiras políticas públicas de segurança no
estar constantemente senhor da velocidade de seu vehiculo, de-
trânsito começaram então a ser articuladas. Além disso, as várias

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 58 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 59
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
áreas do saber começaram a ser convocadas a colaborar com a tas demandas sociais para diversas áreas do saber. As referidas
árdua tarefa de evitar os acidentes, com: (1) a concepção, adoção mudanças, consequências e preocupações sociais vão caracte-
ou implementação de normas e códigos de conduta no trânsi- rizar um cenário propício à criação de um sistema com a fina-
to e sua fiscalização por meio de convênios com a polícia; (2) lidade de organizar o trânsito brasileiro e formar profissionais
planejamento e intervenção junto às vias a partir da engenha- de diversas áreas capacitados para prestar a devida colaboração
ria (e.g., instalação de sinalização vertical e horizontal); e (3) – dentre eles as psicólogas e psicólogos do trânsito a partir de
seleção e formação de motoristas e cidadãos para conviver no sua perspectiva com foco em processos mentais e de seus ins-
trânsito, com os assistentes sociais, médicos e, posteriormente, trumentos técnicos para quantificá-los. À(Ao) profissional da
os psicólogos. área, é importante não só conhecer, como também compreender
Foi dessa maneira que os primeiros automóveis e cami- definições de trânsito, de Psicologia do trânsito e o itinerário
nhões começaram a transitar em nossas cidades no início do sécu- histórico dessa área, pois tal compreensão determina em parte
lo passado, esboçando um novo modelo de deslocamento que se a atuação profissional. Esses tópicos serão abordados a seguir.
tornaria hegemônico, baseado no transporte rodoviário (SILVA;
GÜNTHER, 2009a). Segundo os autores, o surgimento desse pa-
Contextualizando a história da Psicologia do Trânsito
radigma, isto é, de pensar os deslocamentos na cidade, não acon-
teceu sem razão: foi fruto de uma série de fatores econômicos, po-
líticos e sociais atuantes. A mudança ocorreu também por opções Existem várias definições de trânsito. Por exemplo, Arrudão
de políticas urbanas na esfera federal e estadual, assim como por (1966) define trânsito como o deslocamento de pessoas ou coisas
pressão das elites da época, que apoiavam a indústria automobi- pelas vias de circulação. Vasconcelos (1985) o define como um con-
lística do país (LAGONEGRO, 2008). Com isso, as cidades se junto de todos os deslocamentos diários feitos pela via e que aparece
expandiram e foram sendo “moldadas” por vias calçadas ou asfal- na rua como forma de movimentação geral, tanto do pedestre como
tadas; as pessoas foram morar cada vez mais longe do trabalho; os do veículo. Para o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), trânsito é a
órgãos de trânsito, por sua vez, se (re)organizaram para dar conta utilização das vias por pessoas, veículos e animais, isolados ou em
de gerenciar o crescente volume de veículos e de habilitações; as grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação, parada, estaciona-
sinalizações viárias começaram a fazer parte das paisagens e das mento e operação de carga ou descarga, em condições seguras (BRA-
rotinas dos usuários do trânsito (SILVA; GÜNTHER, 2009a). SIL, 1998). Esse mesmo documento acrescenta ainda que o trânsito
Essa breve caracterização da evolução do trânsito e dos em condições seguras é um direito de todos e dever dos órgãos do
transportes no Brasil nos oferece elementos para identificar mui- Sistema Nacional de Trânsito. Rozestraten (1988), por sua vez, defi-

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 60 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 61
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
ne trânsito como o conjunto de deslocamento de pessoas e veículos externos, inconscientes e conscientes, que podem provocar ou
nas vias públicas que tem como objetivo assegurar a integridade de alterar, apontando como objeto da Psicologia do Trânsito, lato
seus participantes, requerendo, para tanto, um sistema convencional sensu, os diversos usuários das vias, os comportamentos que
de normas preestabelecidas e de conhecimentos de todos. corroboraram a construção de vias e veículos e aqueles indispen-
Essas definições deixam claro que o trânsito é uma cons- sáveis à criação de leis e sua fiscalização. Stricto sensu, o objeto
trução social que atende às necessidades humanas de movimen- é o estudo do comportamento específico dos usuários das vias –
tar-se de um lugar para o outro. Sendo assim, a psicóloga e o psi- pedestres, ciclistas, motociclistas e motoristas (CFP, 2000). Essa
cólogo do trânsito não pode perder de vista os aspectos sociais, definição ajuda no sentido de tornar compreensível à psicóloga
culturais e históricos interatuantes (veja Eixo 1 desta referência). e ao psicólogo, e aos profissionais de outras áreas, um caminho
Mesmo quando se considera, tradicionalmente, que o sistema de que permita um possível olhar sobre o fenômeno a partir da Psi-
trânsito é composto por três elementos, isto é, homem, veículo cologia, buscando contribuir para responder perguntas como: o
e via, é preciso reconhecer que esses elementos precisam estar que estuda a Psicologia do Trânsito e em que aspecto do trânsi-
interligados e em pleno funcionamento para garantir o direito de to intervém? Essas definições ampliam, por exemplo, a ação da
ir e vir das pessoas (ROZESTRATEN, 1988). A psicóloga e o psicóloga e do psicólogo para outros participantes do trânsito,
psicólogo do trânsito, portanto, jamais devem perder de vista a além do motorista, tradicionalmente foco das intervenções pro-
complexidade das relações, a fim de não se deter exclusivamente fissionais (veja as primeiras legislações que mencionamos), e
em um desses elementos (o homem), sob o risco de isolá-lo num sugere o estudo tanto do comportamento quanto dos processos
vácuo social, num psicologismo infrutífero. A compreensão do mentais sob várias perspectivas da Psicologia.
que é trânsito, por sua vez, está refletida nas definições da área, Na segunda definição, a Psicologia do Trânsito é vista
do que é Psicologia do Trânsito. como um campo multidisciplinar que envolve um intercâmbio
O Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2000) define Psi- de saberes de diversas áreas da Psicologia e de ciências afins
cologia do Trânsito como um campo disciplinar que se comuni- que, direta ou indiretamente, estudam o fenômeno do trânsito e
ca com outras subáreas da Psicologia, assim como com outros dos transportes em sua complexidade e interface com os fenô-
campos do saber, reconhecendo, portanto, sua referida com- menos biológicos e sociais (CFP, 2000). Nesse sentido, a Psico-
plexidade. São apresentadas duas definições de Psicologia do logia do Trânsito é vista como uma área de aplicação da Psicolo-
Trânsito. Na primeira, o CFP toma os conceitos de Rozestraten gia Ambiental e da Psicologia Social, que estudam, por meio de
(1988) e a define como uma área da Psicologia que investiga os métodos científicos, o comportamento humano no ambiente do
comportamentos humanos e os fatores e processos internos e trânsito em todas as suas dimensões e suas correlações com os

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 62 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 63
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
fatores sociais, políticos, econômicos, culturais e estruturais que tendimento dos elementos que o compõe, conforme dissemos,
influenciam o sistema de funcionamento, gestão, organização e especialmente a partir do foco nos processos mentais e de instru-
fiscalização do trânsito (CFP, 2000). mentos técnicos para quantificá-los; porém, tem avançado para a
A Psicologia do Trânsito aborda as questões de maneira a ampliação dos seus horizontes, conforme pudemos caracterizar
respeitar o exercício pleno da cidadania, considerando os princí- nas definições do CFP (2000) descritas acima.
pios de compromisso social da Psicologia, atuando em diversos O fazer psicológico no contexto do trânsito tem sido asso-
contextos nos quais sejam contempladas as necessidades sociais ciado quase que exclusivamente à demanda por segurança viá-
de todos os atores que compõem o trânsito. Essa definição, por ria. Inicialmente, o motorista foi, e ainda é, o principal foco de
sua vez, contribui no sentido de colocar o participante do trân- intervenção por meio da aplicação de instrumentos e técnicas
sito em um contexto e em um conjunto de relações e determi- psicológicas. Os comportamentos de risco do motorista, a sua
nantes além da dinâmica dos indivíduos, isto é, o trânsito não é propensão ou não a se envolver em acidentes, também foram
um produto apenas de nossas ações, mas também da interação alvos de estudos e intervenções (CAMPOS, 1978a, 1978b).
com outras forças que estão em outros níveis de análise, isto é, Para uma atuação qualificada, foi necessário, na década de
sociais, políticas, econômicas etc., que a psicóloga e o psicólogo 1950, que a Psicologia desenvolvesse pesquisas (e.g., VIEIRA,
têm de considerar (ver Eixo 1 desta referência). Além disso, su- 1953) para fundamentar a sua prática e responder à demanda
gere ampliação do raio de atuação da psicóloga e do psicólogo por segurança viária. Naquela época, as indagações eram: o que
do trânsito quando indica que aspectos caros à Psicologia in- avaliar? Como medir? Quais os parâmetros? É o que sabíamos
fluenciam na gestão, organização e fiscalização do trânsito, esti- ou podíamos fazer à época com os conhecimentos de que dispú-
mulando os profissionais a ir além de sua atividade pericial com nhamos.
foco no (futuro) motorista.
No Brasil, a Psicologia do Trânsito iniciou-se em São Pau-
A Psicologia do Trânsito surgiu em 1910, em um labora- lo, em 1913, com o trabalho do engenheiro Roberto Mange na
tório da Universidade de Harvard, a partir do trabalho de Hugo seleção e orientação de funcionários da Estrada de Ferro Soroca-
Münsterberg, primeiro psicólogo a submeter os motoristas de bana (HOFFMAN; CRUZ, 2003). Todavia, com o incentivo ao
bonde de Nova York a uma bateria de testes de habilidade e inte- automóvel como matriz de transporte cada vez mais utilizada, e
ligência. Esse método de avaliação foi aperfeiçoado e utilizado em detrimento das demais, a Psicologia logo direcionou suas ati-
por outros países como Alemanha, França e Espanha (ROZES- vidades aos motoristas, em razão das demandas sociais. Assim,
TRATEN, 1998). A Psicologia do Trânsito, portanto, nasce da na década de 1950, no Rio de Janeiro, iniciou-se a contratação
necessidade de compreensão do fenômeno do trânsito e do en-

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 64 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 65
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
de psicólogos pelo Departamento Estadual de Trânsito (Detran), considerando que esses marcos legais são os principais para toda
cuja finalidade era estudar o comportamento dos condutores e as e qualquer psicóloga e psicólogo que trabalhe na avaliação de
causas humanas envolvidas nas ocorrências de acidentes, sendo motoristas. Ademais, quase 30% dos entrevistados, ainda que
utilizadas provas de aptidão, personalidade e entrevista psicoló- trabalhassem no campo, disseram não ter nenhum conhecimento
gica (HOFFMAN; CRUZ, 2003). a respeito dessas duas últimas normas, isto é, 27,7% e 21,2%,
Nesse período, a Psicologia do Trânsito centrava a sua respectivamente.
atuação no “fator humano” por meio de seleção, orientação e
instrução profissional na área de transportes, e as primeiras pes-
Marcos regulatórios para avaliação psicológica de
quisas e publicações focavam esse tema. Em 1962, com o ad-
vento da profissão de psicólogo (Lei nº 4.119/1962), o Contran, motoristas
ratificou a avaliação psicológica como uma etapa obrigatória
para a obtenção da CNH.
Nesta seção, referenciamos parte importante desses mar-
Isto posto, descreve-se a seguir, de forma cronológica, os cos para a psicóloga e o psicólogo do trânsito. Partimos de uma
avanços das legislações nacionais e, após o advento da profis- narrativa histórica que será dividida, didaticamente, em três pe-
são de psicólogo no Brasil, notadamente sobre a avaliação em ríodos, percorrendo datas de documentos normativos e de eventos
(futuros) motoristas, uma vez que foi essa a principal “porta de com repercussões importantes: (1) a partir dos anos 1900 até a
entrada” dos psicólogos na área, como ainda hoje é. No cam- década de 1950; (2) da década de 1960 até a década de 1990; e (3)
po da Psicologia do Trânsito, serão abordadas as possibilidades dos anos 2000 até os tempos atuais. Ressaltamos que muitos ato-
de atuação, ações e desafios. Abordar os marcos regulatórios é res sociais (sejam instituições, grupos ou indivíduos) participaram
fundamental, notadamente porque a pesquisa do Crepop (2009) e contribuíram, em maior ou menor grau, para os acontecimentos
evidencia que menos da metade das psicólogas e dos psicólogos aqui narrados e para outros. Embora tenham sido a meta, esses
respondentes (48,2%) disseram ter pleno conhecimento do CTB; acontecimentos não esgotam toda a dinâmica dos fatos históricos,
65% afirmaram ter pleno conhecimento da Resolução Contran devendo ser encarados mais como exemplos representativos, que
nº 267/2008, que estava em vigor à época, e 67% tinham ple- servem para referenciar um entendimento pela psicóloga e pelo
no conhecimento do Manual de Avaliação Psicológica de Can- psicólogo, especialmente com a participação do CFP.
didatos à Carteira Nacional de Habilitação e Condutores de
À psicóloga e ao psicólogo interessado em pesquisar
Veículos Automotores (Resolução CFP nº 12/2000, vigente na
sobre as resoluções do CFP mencionadas neste texto, assim
ocasião da pesquisa). Ressaltamos que essa situação preocupa,

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 66 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 67
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
como todas as outras já publicadas, recomendamos que acesse contemplados futuramente em legislações de âmbito nacional –
o portal de serviços do CFP pela internet, lançado em 2018, no por exemplo, no primeiro marco regulatório do trânsito instituí-
endereço <https://atosoficiais.com.br/cfp>. No site estão dispo- do nacionalmente, que estabeleceu as bases para a futura prática
nibilizadas as atualizações de cada norma com um link para as do profissional da Psicologia, o Decreto-Lei nº 2.994/1941, que
normas correlatas, o que proporciona melhor entendimento dos instituiu o nosso primeiro Código Nacional de Trânsito. A par-
parâmetros éticos e contribui para uma atuação cada vez mais tir daí, vieram outros códigos e foram instituídos decretos-lei,
qualificada. leis, resoluções e eventos que, de alguma forma, impactaram a
sociedade e a Psicologia (SILVA, 2012). À continuidade, neste
Eixo 2, abordaremos esses documentos, destacando-se entre eles
A partir dos anos 1900 até a década de 1950 aquelas que incidiram diretamente no fazer psicológico nesse
contexto (veja as Tabelas 4 e 6).

A menção mais antiga ao comportamento humano no trân- De acordo com o referido Decreto-Lei, o futuro motoris-
sito na legislação brasileira, conforme mencionamos anterior- ta deveria se submeter ao exame fisiológico/médico e psicológi-
mente, está no Ato nº 146 da Prefeitura de São Paulo, publi- co para “estabelecimento do perfil psicofisiológico profissional
cado em 1903. Ele estabelece, no artigo 6º, a necessidade de mínimo, compatível com o exercício da atividade” (§ 1º, artigo
uma “carta de conductor de automovel”, que seria concedida 100). Os índices do perfil psicofisiológico profissional seriam
mediante prova de que o peticionário conhece o funcionamento revistos anualmente por uma comissão designada pelo Contran,
do veículo automotor, sabendo manobrá-lo e “possua os requi- e tais índices variavam nas modalidades de exercício de ativida-
sitos necessários de prudência, sangue frio e visualidade” (grifo de entre “amador”, “profissional” e “transporte coletivo”, sendo
nosso). Nesse período, o documento de habilitação do condutor necessária realização de novo exame quando da transferência
era fornecido pelas prefeituras e, somente após a edição do Có- de uma categoria para outra (bastante semelhante ao que temos
digo Nacional de Trânsito, em 1966, é que a emissão da CNH atualmente). O exame feito para obtenção de “licença para prati-
passou a ser responsabilidade do estado. É oportuno notar na cagem” serviria também para a prova de habilitação, desde que
citação anterior os três requisitos relacionados a aspectos psi- o prazo entre o exame psicofisiológico e a realização da prova
cológicos e físicos, isto é, prudência, sangue frio e visualidade, não fosse superior a 12 meses.
que são estabelecidos, mesmo que de maneira bastante simples, O candidato poderia ser “recusado” por não ter o mínimo
como pré-requisitos ou como condições básicas importantes “perfil psicofisiológico” exigido ou por se apresentar sob efeito
para dirigir. Os aspectos psicológicos e físicos também seriam de “álcool ou inebriantes”. Essas duas questões, colocadas desde

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 68 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 69
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
o primeiro Código de Trânsito, parecem permanecer em aberto Tabela 4 – Histórico dos códigos de trânsito instituídos no Bra-
até os dias atuais: a primeira pela inexistência desse chamado sil e algumas de suas alterações relacionadas ao trabalho da
perfil psicofisiológico mínimo (veja a resolução atualmente em psicóloga e do psicólogo
vigor, Contran nº 425/2012), e a segunda pelas controvérsias em Decreto-Lei nº 2.994, de 28 de janeiro de 1941:
torno da validade/precisão e da possível violação de direitos do Institui o Código Nacional de Trânsito.
exame toxicológico de larga janela de detecção – como é chama- Código
Decreto-Lei nº 3.651, de 25 de setembro de 1941:
Nacional de
do atualmente esse exame para verificar, somente em motoristas Dá nova redação ao Código Nacional de Trânsito.
Trânsito
profissionais, o que era chamado anteriormente de uso de “ine- (1941) Decreto-Lei nº 9.545, de 5 de agosto de 1946:
Dispõe sobre a habilitação e exercício da ativida-
briantes”, a partir de amostras, por exemplo, de fio de cabelo,
de de condutor de veículos automotores.
de pelo ou de unha, que identifica o consumo de drogas ilícitas
Lei nº 5.108, de 21 de setembro de 1966: Institui
em um período mínimo de 90 dias (veja Lei nº 13.103/2015, que
o Código Nacional de Trânsito.
alterou o atual Código de Trânsito). Em relação ao uso de álcool Decreto nº 62.127, de 16 de janeiro de 1968:
e direção, após longos anos de discussões e embates (desde os Aprova o Regulamento do Código Nacional de
anos 1940, pelo menos), foi somente a partir dos anos 2000, Código Trânsito.
com a chamada “Lei Seca” – como foi rotulada a Lei Federal Nacional Decreto nº 84.513, de 27 de fevereiro de 1980:
de Trânsito Altera disposições do Regulamento do Código
nº 11.705/2008 (BRASIL, 2008) e a Lei Federal nº 12.760/2012
(1966) Nacional de Trânsito.
(BRASIL, 2012) – que se estabeleceu a impossibilidade de con-
Decreto nº 86.714, de 10 de dezembro de 1981:
sumir bebida alcoólica enquanto dirige veículo. Isso demonstra Promulga a Convenção sobre Trânsito Viário. O
a dificuldade de concretizar e operacionalizar os requisitos que a Brasil aderiu à Convenção sobre trânsito viário de
lei estabelece, seja cientificamente, por um lado, seja pela acei- Viena.
tação social e política, de outro. Mais uma vez, um cenário que Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997: Institui
inclui tensões, interesses e disputas que envolvem a sociedade o Código de Trânsito Brasileiro.
Lei nº 9.602, de 21 de janeiro de 1998: Dispõe so-
de maneira geral, incluindo segmentos com interesses econômi- Código de
bre legislação de trânsito e dá outras providências.
cos, e que a psicóloga e o psicólogo não devem ignorar (confor- Trânsito
Brasileiro Lei nº 10.350, de 21 de dezembro de 2001: Altera
me exposto no Eixo 1). a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 – Có-
(1997)
digo de Trânsito Brasileiro, de forma a obrigar a
realização de exame psicológico periódico para os
motoristas profissionais.
Fonte: Elaborada pela comissão ad hoc de especialistas do CFP.
REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 70 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 71
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
A nova redação do primeiro Código de Trânsito (em se- veículos (BRASIL, 1946). Esse documento informava explicita-
tembro de 1941, oito meses depois da promulgação do Decre- mente que deveria ser organizado um conjunto de testes para o
to-Lei), passou a considerar que o exame psicofisiológico seria exame psíquico, a critério da junta médica, sem caráter elimina-
realizado apenas quando fosse apurada a culpa do condutor nos tório, até que fossem estabelecidas as “médias normais” do perfil
casos de acidente grave e desde que decorridos mais de dois psicofisiológico do condutor do veículo. Ficava mantida ainda a
anos do último exame a que ele tivesse sido submetido (veja recusa, por exemplo, de candidatos a motoristas que se entregas-
a Tabela 4 para o histórico de algumas alterações dos códigos sem “a vício de entorpecentes”, que fizessem “uso imoderado de
de trânsito). O exame psicológico estava, portanto, suspenso do bebidas alcoólicas” ou que apresentassem “perturbação mental”
processo de obtenção da carteira de habilitação ou da mudança que impossibilitasse a condução segura (BRASIL, 1946).
de categoria, conforme era previsto anteriormente. Tal medida Entre os anos de 1946 (época da alteração do Código de
fez perder o caráter preventivo do exame psicológico, conforme Trânsito) e 1966 (ano de promulgação do segundo Código de
proposto inicialmente, para o candidato adquirir a habilitação Trânsito), o Brasil registra uma série de avanços para o reco-
(SILVA, 2012). De acordo com o autor, esse pode ser considera- nhecimento da Psicologia como ciência e profissão, notadamen-
do o primeiro veto à avaliação psicológica no processo de habili- te mediante contribuições de Emilio Mira y López, por meio
tação, ou um prenúncio do veto presidencial que ocorreu muitos de trabalhos no Instituto de Seleção e Orientação Profissional
anos depois, na década de 1990, conforme será discutido adian- (Isop), que desde 1947 era presidido por ele, e na Associação
te. Seriam “eliminados” os candidatos que, após exame das con- Brasileira de Psicotécnica, que foram decisivos para o reconhe-
dições de sanidade física e mental, apresentassem “existência cimento da Psicologia como profissão em 1962. Os trabalhos
de moléstias extenuantes, nervosas, medulares ou contagiantes, desse psicólogo no contexto do trânsito repercutiram em parte
bem como os alcoólatras, os toxicômanos, os fisicamente debili- na Resolução do Contran nº 262/1953, tornando obrigatório o
tados, os emotivos acentuados e os portadores de lesão orgânica exame psicotécnico aos candidatos a motoristas. Conforme Da-
capaz de comprometer sua atividade como condutor de veículos, gostin (2006, p. 22), nos anos de 1950, eram desenvolvidos no
ou que não admita correção” (BRASIL, 1941). Isop vários estudos para amparar o trabalho do psicólogo:
Ainda na década de 1940, foi promulgado outro Decreto-
-Lei, nº 9.545, que causou impacto na futura profissão de psi- A entrevista tinha como função coletar informa-
cólogo, que abordava a habilitação e o exercício da atividade ções sobre as condições familiares, ambientes de
trabalho, entre outros. Já as provas de habilida-
de condutor de veículos automotores, indicando as normas para des específicas visavam identificar qualidades
o exame médico (físico e mental) de candidatos a condutor de psicológicas consideradas indispensáveis aos

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 72 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 73
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
condutores. Por último, na avaliação da perso- ria dispor dos serviços médicos e psicotécnicos. Esses “exames
nalidade, fazia-se uso de técnicas expressivas
gráficas como Psicodiagnóstico Miocinético – psicotécnicos” deveriam ser uniformes em todo o país e com
PMK. normas indicadas pelo Contran, sendo aplicados nos seguintes
casos:

O ano de 1953 inaugura, portanto, uma nova fase na legis- (1) Para certificar diretores e instrutores de escolas de for-
lação sobre a avaliação psicológica de motoristas. Sob a denomi- mação de condutor de veículo automotor. Esses exames
nação de “exame psicotécnico”, a avaliação de funções psicoló- seriam uma das condições para que cumprissem essas fun-
gicas passa a ser estudada por especialistas e, aos poucos, com o ções, conforme expedido pelos Departamentos de Trânsito
movimento para reconhecimento da Psicologia como profissão, (Art. 139): “II – obter aprovação em exame psicotécnico
passa a ser realizada por profissionais com formação específica. para fins pedagógicos, feito em entidade oficial ou creden-
Daí em diante, as normativas que disciplinam a matéria passam ciada”.
a considerar a figura da psicóloga e do psicólogo no atendimen- (2) E também para os candidatos à condução de transporte
to de (candidatos a) motoristas no processo de formação como coletivos e cargas perigosas. No caso de serem reprova-
condutores de veículos. A história registra também que começa- dos, os candidatos seriam submetidos a novo exame psi-
mos a enfrentar as primeiras críticas nessa tarefa, relacionadas, cotécnico, na presença de médico do Instituto Nacional de
por exemplo, ao seu elevado custo e ao prejuízo causado com Previdência Social. Adicionalmente, esse decreto previa
o afastamento do motorista do seu meio de vida, sem direito o seguinte: “Art. 156. O Conselho Nacional de Trânsito
ao recebimento de aposentadoria, quando considerados inaptos poderá estender a exigência do exame psicotécnico aos
(VIEIRA, PEREIRA, CARVALHO, 1953). candidatos à habilitação a tôdas as categorias de veículos
automotores”. Nesse caso, “somente poderá fazer-se onde
a repartição de trânsito estiver aparelhada para realizá-lo”
Da década de 1960 até a década de 1990 (art. 254). Essas são algumas das raízes legais do trabalho
de avaliação psicológica implementado atualmente.

Em 1968, o Decreto nº 62.127 aprovou o Regulamento do No âmbito da categoria profissional da Psicologia, é im-
Código Nacional de Trânsito (veja a Tabela 4) e passou a pre- portante destacar que o Decreto nº 5.766/1971 criou o Conselho
ver que o Departamento Estadual de Trânsito (Detran), instância Federal e os CRPs (e foi efetivamente regulamentado pelo De-
responsável pelo processo de habilitação de motoristas, deve- creto nº 79.822 de 1977), sendo essa condição fundamental para

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 74 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 75
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
que a recém-criada profissão pudesse ser disciplinada por órgão Tabela 5 – Outros documentos/eventos importantes sobre o eixo
competente. Assim, a criação do Sistema Conselhos de Psicolo- ético-político para a área da Psicologia do Trânsito e mobilidade
gia oportunizou avanços para que o exercício profissional tam- Conselho Federal de Psicologia
bém no contexto do trânsito fosse realizado em atendimento aos Formação da Comissão Ad Hoc de Psicologia do Trânsito do
padrões normatizados do conselho de categoria. CFP (1981)
I Fórum Nacional de Psicologia do Trânsito (1999)
Em 1980, o Decreto nº 84.513, de 27 de fevereiro, alterou
Cadernos de Psicologia no Trânsito e Compromisso Social
o Regulamento do Código Nacional de Trânsito e passou a exi-
(2000)
gir que, além dos diretores e instrutores das escolas de formação
Seminário Circulação Humana e Compromisso Social (2001)
de condutor de veículo automotor (atualmente, Centros de For- VI Congresso Brasileiro de Psicologia do Trânsito (2004)
mação de Condutores), também fossem submetidos a “exame Pesquisa Exploratória sobre o Processo de Avaliação Psicológica
psicotécnico para fins pedagógicos” os examinadores de Depar- para a Obtenção da
tamento de Trânsito. Carteira Nacional de Habilitação (CFP, 2006)
Em 1981, o CFP formou uma comissão para estudar e ofe- Fundação do Movimento Nacional pela Democratização do
recer propostas ao Contran sobre os trabalhos das psicólogas e Trânsito (2007)
Seminário Psicologia e Mobilidade: Espaço Público como um
psicólogos. Participaram, por exemplo, o professor Reinier Ro-
Direito de Todos (2009)
zestraten e Efraim Rojas Boccalandro, dentre outros colegas da
Caderno Psicologia e Mobilidade: Espaço Público como um Di-
área da Psicologia. Essa comissão iniciou diálogos entre o CFP
reito de Todos (2010)
e o Contran, visando buscar a construção de legislação e orien-
Avaliação Psicológica: Diretrizes na Regulamentação da Profis-
tação para os profissionais que atuavam na área (veja a Tabela 5
são (2010)
para uma visão geral dos eventos que produziram documentos Ano da Avaliação Psicológica: Textos Geradores (2011).
na área). Logo após, foi publicado o artigo “O que é a Psicologia Seminário Psicologia do Trânsito em Trânsito pelo Brasil (2012)
do Trânsito” na primeira edição da revista Psicologia: Ciência e Relatório do Seminário Psicologia do Trânsito em Trânsito pelo
Profissão de 1981, do CFP. Brasil (2012)
Seminário Psicologia e Comportamento no Trânsito (2015)
Caderno de Psicologia do Tráfego: Características e Desafios no
Contexto do Mercosul (2016)
Fonte: Elaborada pela comissão ad hoc de especialistas do CFP.

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 76 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 77
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
Ainda nesse ano, o Brasil passou a ser signatário, através cólogos discutiram não só a necessidade de avanços na legisla-
do Decreto nº 86.714/1981, da Convenção Internacional de Vie- ção e nas referências da atuação na área, mas também o modo
na, celebrada na Áustria, em novembro de 1968, para aumentar como a avaliação de motoristas era percebida naquele momento.
a segurança viária através da padronização, por exemplo, de si- Com o Código de Trânsito de 1997 mantendo a avaliação
nalização viária/veicular e de circulação/uso da via pública. psicológica, o Contran passou a estabelecer procedimentos para
A década de 1980 também foi enriquecida por diversos a avaliação de candidatos à CNH (veja a Tabela 6 para um his-
debates na área da Psicologia do Trânsito. Podem ser destacados tórico das resoluções do Contran que incidem no trabalho do
os congressos da área: psicólogo perito examinador de trânsito). Com isso, em 1998, a
• I Congresso de Psicologia do Trânsito (Conpsitran), em Resolução Contran 51 foi a primeira a dispor sobre os exames de
Porto Alegre (RS), em 1981 aptidão física e mental e de avaliação psicológica, estabelecendo
percentis mínimos para a área cognitiva, prática e de equilíbrio
• II Conpsitran, em Uberlândia (MG), em 1983
psíquico, indicando ainda a necessidade de comprovar a realiza-
• III Conpsitran, em São Paulo (SP), em 1985 ção de curso de capacitação de 120 horas para o credenciamento
• IV Conpsitran, no Rio de Janeiro (RJ), em 1987 como psicólogo perito examinador de trânsito pelos Detrans. No
mesmo ano, o Contran promulgou a Resolução nº 80, revogando
• V Conpsitran, em Goiânia (GO) em 1989
a anterior e estabelecendo novos parâmetros técnicos para a ava-
No final dos anos 1990, apesar de os marcos regulatórios liação psicológica em grau de revisão de inapto, constituída por
da política descritos anteriormente considerarem a relevância da três psicólogos em uma junta especial de saúde.
Psicologia para a segurança no trânsito, a avaliação psicológica
para obtenção da CNH foi vetada, inicialmente no atual CTB
(Lei nº 9.503/1997). À época, foi um momento de grande mo- Tabela 6 – Histórico das resoluções que incidem no trabalho do
bilização nacional. O CFP e os CRPs se mobilizaram e seus re- psicólogo perito examinador de trânsito
presentantes compareceram ao Congresso Nacional, juntamente Dispõe sobre os exames de aptidão física e men-
Res. nº 51,
com outras instituições e profissionais para argumentar em prol tal e os exames de avaliação psicológica a que
de 21 de
da manutenção da avaliação psicológica. Foi esclarecido ao le- se refere o inciso I, do art. 147 do Código de
maio de
Trânsito Brasileiro e os §§ 3º e 4º do art. 2º da
gislativo, naquele momento, o papel da Psicologia e da avalia- 1998
Lei 9.602/98.
ção de motoristas, sensibilizando os deputados e conseguindo
derrubar o referido veto. Nesse período, as psicólogas e os psi-

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 78 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 79
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
Res. nº 80, Res. nº Dispõe sobre o exame de aptidão física e men-
Altera os Anexos I e II da Res. nº 51/98-Contran,
de 19 de 425, de tal, a avaliação psicológica e o credenciamento
que dispõe sobre os exames de aptidão física e
novembro 27 de no- das entidades públicas e privadas de que tratam
mental e os exames de avaliação psicológica.
de 1998 vembro de o art. 147, I e §§ 1º a 4º e o art. 148 do Código
Estabelece Normas e Procedimentos para a for- 2012 de Trânsito Brasileiro.
Res. nº
mação de condutores de veículos automotores e Altera a Resolução nº 425, de 27 de novembro
168, de
elétricos, a realização dos exames, a expedição de 2012, do Contran, que dispõe sobre o exame
14 de de- Res. nº
de documentos de habilitação, os cursos de for- de aptidão física e mental, a avaliação psicoló-
zembro de 500, de 28
mação, especializados, de reciclagem e dá ou- gica e o credenciamento das entidades públicas
2004 de agosto
tras providências. e privadas de que tratam o art. 147, I e §§ 1º a
de 2014
Dispõe sobre o exame de aptidão física e men- 4º e o art. 148 do Código de Trânsito Brasileiro
Res. nº – CTB.
tal, a avaliação psicológica e o credenciamento
267, de 15
das entidades públicas e privadas de que tratam Fonte: Elaborada pela comissão ad hoc de especialistas do
de feverei-
o art. 147, I e §§ 1º a 4º e o art. 148 do Código CFP.
ro de 2008
de Trânsito Brasileiro.
Altera a Res. nº 267, de 15 de fevereiro de 2008,
Res. nº do Contran, que dispõe sobre o exame de apti- A referida intensa mobilização da categoria profissional
283, de 01 dão física e mental, a avaliação psicológica e o
para manter a avaliação psicológica de motoristas culminou,
de julho de credenciamento das entidades públicas e priva-
2008 das de que tratam o art. 147, I e §§ 1º e 4º e o art. dois anos depois, em 1999, no I Fórum Nacional de Psicologia
148 do Código de Trânsito Brasileiro – CTB. do Trânsito, que ensejou, posteriormente, vários desdobramen-
Estabelece procedimento administrativo para tos importantes, incluindo várias ações institucionais e eventos
Res. nº
submissão do condutor a novos exames para para mobilizar e discutir a área e temas relacionados na década
300, de
que possa voltar a dirigir quando condenado seguinte, como a edição do manual para avaliação psicológica
04 de de-
por crime de trânsito, ou quando envolvido em
zembro de de candidatos à carteira nacional de habilitação e condutores de
acidente grave, regulamentando o art. nº 160 do
2008 veículos automotores (Resolução CFP nº 12/2000). Além dis-
Código de Trânsito Brasileiro.
Altera a Resolução nº 267/2008-Contran, que so, a mobilização produziu importante debate acerca dos rumos
Res. nº dispõe sobre o exame de aptidão física e mental, na área de trânsito, cujo objetivo era elaborar diretrizes para as
327, de 14 a avaliação psicológica e o credenciamento das políticas e normativas internas ao Sistema Conselhos de Psi-
de agosto entidades públicas e privadas de que tratam o
cologia. A articulação entre Psicologia e políticas públicas de
de 2009 art. 147, I e §§ 1º a 4º e o art. 148 do Código de
Trânsito Brasileiro. trânsito e transporte começou a ser institucionalizada no âmbito

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 80 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 81
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
do Sistema Conselhos, ampliando a perspectiva de atuação da Tabela 7 – Atribuições do especialista em Psicologia do Trân-
Psicologia no contexto do trânsito, especialmente quanto ao seu sito
potencial nas áreas de planejamento urbano, saúde e educação Procede ao estudo no campo dos processos psicológicos, psi-
(CFP, 2000). cossociais e psicofísicos relacionados aos problemas de trân-
sito.
Realiza diagnóstico da estrutura dinâmica dos indivíduos e
Dos anos 2000 até os tempos atuais
grupos nos aspectos afetivos, cognitivos e comportamentais.
Colabora na elaboração e implantação de ações de engenharia
O referido manual para avaliação psicológica de candi- e operação de tráfego.
datos à CNH e condutores de veículos automotores (Resolução Desenvolve ações socioeducativas com pedestres, ciclistas,
CFP nº 12/2000) introduziu uma exigência mínima específica condutores infratores e outros usuários da via.
de qualidade referente à atuação na área do trânsito, buscando Desenvolve ações educativas com: diretores e instrutores dos
solução para problemas antigos já apontados historicamente em Centros de Formação de Condutores, examinadores de trânsi-
outras ocasiões, como na 10ª Reunião Anual de Psicologia de to e professores dos diferentes níveis de ensino.
Ribeirão Preto (PEREIRA, 1980). As competências atribuídas Realiza pesquisas científicas no campo dos processos psico-
às psicólogas e psicólogos do trânsito, elencadas no Caderno lógicos, psicossociais e psicofísicos, para elaboração e im-
de Psicologia do Trânsito e Compromisso Social, fizeram que a plantação de programas de saúde, educação e segurança do
Psicologia do Trânsito figurasse como especialidade em Psicolo- trânsito.
gia, conforme Resolução CFP nº 14/2000. As atribuições desses
Realiza avaliação psicológica em condutores e candidatos à
especialistas estão na Tabela 7 e são consideradas um avanço,
carteira de habilitação.
uma vez que, até então, todas as ações do CFP foram no sentido
Participa de equipes multiprofissionais no planejamento e
de regulamentar a prática de avaliação psicológica no processo
realização das políticas de segurança para o trânsito.
de habilitação.
Analisa os acidentes de trânsito, considerando os diferentes
fatores envolvidos para sugerir formas de evitar e/ou atenuar
as suas incidências.

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 82 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 83
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
buições explicitadas não fazem parte efetivamente das práticas
Elabora laudos, pareceres psicológicos, relatórios técnicos e
da maior parte das psicólogas e dos psicólogos, embora tenham
científicos; desenvolve estudos sobre o fator humano para fa-
um valor pedagógico importante para indicar aos estudantes e
vorecer a elaboração e aplicação de medidas de segurança.
profissionais o que se pode fazer (SILVA, 2012; CFP, 2009).
Elabora e aplica técnicas de mensuração das aptidões, habili-
Cabe sinalizar que, no Eixo 3 desta referência técnica, seguimos
dades e capacidades psicológicas dos condutores e candida-
também na perspectiva de referenciar a dimensão técnica do tra-
tos à habilitação, atuando em equipes multiprofissionais para
balho da psicóloga e do psicólogo, que se relaciona com essas
aplicar os métodos psicológicos de diagnóstico.
atribuições. Destacam-se a avaliação psicológica, a educação
Dialoga com os profissionais da área médica e da educação
para o trânsito e a atividade docente na relação com a mobilida-
(instrutores /professores/examinadores) por meio de estudos
de humana e o trânsito.
de caso de candidatos à Carteira Nacional de Habilitação.
Desenvolve estudos de campo e em laboratório, do comporta- Voltando para nossa cronologia, no ano de 2001, ainda
mento individual e coletivo em diferentes situações no trânsi- pela mobilização da categoria profissional, o Código de Trânsi-
to para sugerir medidas preventivas. to teve nova alteração com a Lei nº 10.350/2001, estendendo a
avaliação psicológica para as renovações da carteira de habili-
Estuda os efeitos psicológicos do uso de drogas e outras subs-
tação para os motoristas que exercem atividade remunerada ao
tâncias químicas na situação de trânsito; presta assessoria e
veículo. Outras importantes resoluções do CFP disciplinaram o
consultoria a órgãos públicos e privados nas questões relacio-
exercício profissional em perícia psicológica de motoristas para
nadas ao trânsito e transporte.
proibir qualquer tipo de vínculo com centros de formação de
Atua como perito em exames de habilitação, reabilitação ou
condutores (Resolução CFP nº 016/2002), permitir realização de
readaptação profissional.
outras atividades desde que fora do horário destinado àquele fim
Fonte: CFP (2000).
(Resolução CFP nº 006/2010) e deixar de limitar a quantidade de
Essas atribuições cumpriram – e ainda cumprem – o papel atendimentos por dia (Resolução CFP nº 008/2013).
de sugerir novas práticas à psicóloga e ao psicólogo do trânsito,
Em 2001, ocorreu em São Paulo o Seminário Psicolo-
estimulando a inserção em novos espaços de atuação (SILVA,
gia, Circulação Humana e Subjetividade, que discutiu, dentro
2012). Segundo o autor, algumas dessas atribuições são inova-
do Sistema Conselhos, temas ligados ao espaço público, como
doras para a época, com enfoque na atuação ampla e interdisci-
as garantias fundamentais do cidadão, educação para o trânsi-
plinar, sugerindo, a partir disso, outras atividades profissionais.
to, questões relacionadas à Psicologia, trânsito e saúde e sobre
Decorridos 18 anos desde a publicação do CFP, muitas das atri-
o compromisso social da formação e atuação em Psicologia.

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 84 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 85
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
Esse evento também foi um desdobramento do já mencionado I ploratória sobre o Processo de Avaliação Psicológica para a Ob-
Fórum Nacional de Psicologia do Trânsito. tenção da Carteira Nacional de Habilitação (CFP, 2006). Os re-
Ainda em 2001, houve a criação do Sistema de Avaliação sultados desse estudo evidenciaram um avanço no trabalho das
de Testes Psicológicos (Satepsi) pelo CFP. Uma de suas motiva- clínicas credenciadas nos Departamentos Estaduais de Trânsito,
ções advinha das amplas discussões sobre a avaliação psicológi- identificando, por exemplo, um baixo índice de uso de cópias
ca e a qualidade dos instrumentos disponíveis no país. A má qua- dos testes psicológicos e aprimoramento profissional na área da
lidade dos instrumentos afetava a credibilidade das psicólogas avaliação psicológica de motoristas.
e dos psicólogos em diversas áreas, incluindo as avaliações em Em 2007, aconteceu a 7ª edição do Congresso Brasileiro
motoristas. Com a criação do Satepsi, as psicólogas e psicólogos de Psicologia do Trânsito, em Curitiba (PR), focado nas pesqui-
peritos em trânsito tiveram seu trabalho novamente afetado, des- sas e avanços da área. Em 2010, na mesma cidade, ocorreu o
sa vez pelo fato de vários instrumentos amplamente usados não Congresso Interamericano de Trânsito e Transporte, que contri-
terem sido aprovados pelo Sistema naquele momento. buiu na divulgação, expansão e aprofundamento teórico e práti-
Outro desdobramento importante aconteceu posteriormen- co da área de trânsito e transporte no âmbito dos países america-
te, no VI Congresso Brasileiro de Psicologia do Trânsito: Com- nos. Importantes nomes internacionais da Psicologia do trânsito
promisso Social com a Mobilidade Humana, em Campo Grande e transporte estiveram presentes: Heikki Summala (Finlândia),
(MS), realizado pelo CFP em parceria com o CRP 14 MS/MT. Linda Steg (Holanda) e Bryan Porter (Estados Unidos).
O evento significou uma retomada da realização dos congressos Em 2007, o Conselho Federal de Psicologia agregou di-
nacionais da área, que na década de 1980, conforme citamos, versos atores para discutir o trânsito e fundou com eles o Movi-
foram importantes espaços de discussão e de articulação da ca- mento Nacional pela Democratização do Trânsito (MNDT). Fa-
tegoria. Esse evento foi marcadamente importante, pois houve ziam parte do movimento, além do CFP, a Universidade Católica
uma aproximação efetiva da Psicologia com outras áreas que Dom Bosco (MS), a ONG Rua Viva, a ONG Criança Segura, a
atuam no trânsito, como a Medicina, a Engenharia, a Arquitetura Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) e o Insti-
e Urbanismo e o Direito, dentre outras, promovendo discussões tuto de Certificação e Estudos de Trânsito e Transporte (Icetran),
para além da avaliação psicológica no contexto do trânsito. que capitanearam as discussões. Porém, mais de 30 entidades
Em 2006, o CFP realizou uma ação geral em conjunto com chegaram a fazer parte desse movimento que está, atualmente,
os conselhos regionais, nas clínicas de trânsito, que gerou um inativo. As discussões ocorriam de forma horizontal, sobretudo
relatório de fiscalização, cuja ação foi denominada Pesquisa Ex- a respeito das discrepâncias entre as políticas públicas de trân-
sito, assim como sobre as estratégias para o enfrentamento, por

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 86 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 87
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
exemplo, dos acidentes de trânsito, do contingenciamento de cunho administrativo para as clínicas credenciadas (vigilância sani-
recursos e da educação para o trânsito. O grupo produziu um tária) e, em 2012, a Resolução nº 425 passou a disciplinar sobre “o
manifesto cobrando das autoridades do SNT o cumprimento das exame de aptidão física e mental, a avaliação psicológica e o cre-
legislações em vigor e a garantia de um trânsito seguro para a denciamento das entidades públicas e privadas”, com alteração pela
população brasileira, realizando também uma audiência públi- Resolução nº 500/2014, que passou a exigir apenas que psicólogos
ca no Congresso Nacional, que chamou a atenção dos políticos e médicos estivessem inscritos nos respectivos conselhos regionais
para essas questões. (suspendendo a exigência de tempo mínimo de dois anos de forma-
Em 2008, o Contran, por meio da Resolução nº 267, dis- do). Atento às mudanças do processo de avaliação psicológica de
pôs a sobre a avaliação psicológica e passou a exigir a realiza- (candidatos a) motoristas, o CFP editou a Resolução nº 007/2009
ção de curso com 180 horas de capacitação (e não mais de 120 – instituindo normas e procedimentos para a avaliação psicológica no
horas), para credenciamento de psicólogo perito examinador de trânsito, atualmente em vigor.
trânsito. Nessa normativa, ficou ainda definido o prazo para que Ainda em 2009, a partir das discussões do MNDT e de
os interessados em se credenciar apresentassem a especialidade diversos encontros com a categoria, ocorreu o Seminário Nacio-
em Psicologia do Trânsito registrada na carteira de identidade nal de Trânsito e Mobilidade: O Espaço Público como Direito
profissional. O prazo foi prorrogado, no mesmo ano, pela Reso- de Todos, em São Paulo, na sede do CRP 6. Esse evento gerou
lução Contran nº 283/2008. a publicação Trânsito e mobilidade humana: o espaço público
A Resolução Contran nº 300/ 2008 estabeleceu procedi- como direito de todos. Tratou-se de um evento com caráter inter-
mento administrativo para submissão do condutor a novos exa- disciplinar, com a presença de engenheiros, arquitetos, médicos,
mes para voltar a dirigir quando condenado por crime de trânsito sanitaristas, enfermeiros, psicólogas e psicólogos e um conjunto
ou quando envolvido em acidente grave. Essa resolução, que muito grande de profissionais que estavam interessados em dis-
tem por objetivo regulamentar o artigo 160 do Código de Trân- cutir, dentro do eixo mobilidade e trânsito, a tríade segurança
sito brasileiro, parece instituir a avaliação psicológica como uma pública, saúde e educação para o trânsito.
medida de punição, quando na verdade ela é realizada porque No mesmo ano, o CFP promoveu o debate online “Desa-
o candidato à obtenção da CNH, em razão do crime de trânsito fios da Psicologia na Interface com o Trânsito e com a Mobilida-
cometido ou do acidente grave em que se envolveu, deve se sub- de”, com a participação da professora Edinilsa Ramos (Fiocruz),
meter a novo processo de formação como motorista. da professora Amélia Damiani (geógrafa da USP) e de Marcos
Em 2009, a Resolução Contran nº 327 inseriu a exigência de Bicalho (urbanista e membro da ANTP). Nesse debate, os auto-
res atentaram para o fato de os contextos de mobilidade e trân-

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 88 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 89
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
sito estarem ligados à economia do mercado e à subjetividade textos de uso. Foi observado pelo referido GT que mais de 50%
humana, desenvolvendo uma cultura do uso do carro ao invés do das proposições estavam relacionadas à avaliação psicológica no
uso do transporte público. contexto do trânsito. A partir dessa constatação, foi desenvolvida
Em dezembro de 2010, durante a Assembleia de Políti- a proposta de realização do seminário Psicologia do Trânsito em
cas, da Administração e das Finanças (APAF) do Sistema Con- Trânsito pelo Brasil, no mesmo ano. Esse evento envolveu cer-
selhos de Psicologia, foi aprovado um Grupo de Trabalho (GT), ca de 1.500 participantes em 17 estados e promoveu discussões
cujo objetivo era qualificar a avaliação psicológica sob diversos com psicólogos da categoria sobre diversos temas relacionados ao
contextos, além de desenvolver uma visão mais ampla sobre a trânsito. Para tanto, o seminário foi dividido em três eixos: (1) Psi-
avaliação psicológica, que precisava ser contemplada a partir cologia do Trânsito no Brasil e no Mundo; (2) Mobilidade Urbana
de uma prática contextualizada, com determinações históricas, e Políticas Públicas para o Trânsito e 3) Avaliação Psicológica no
sociais, políticas e econômicas. O GT que organizou esse tra- Contexto do Trânsito. Foram objetos de discussão:
balho foi composto pelo CFP e pelos conselhos de Psicologia
da Bahia, São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e • a atuação da psicóloga e do psicólogo na avaliação
Amazonas. psicológica para obtenção da CNH;
Em 2011, o CFP emitiu nota técnica (Resolução CFP nº • o título de especialista em Psicologia do Trânsito;
1/2011) ressaltando a importância do uso de instrumentos psi-
• a autonomia da psicóloga e do psicólogo na esco-
cológicos com validade de critério para esse fim, e resolução
lha da bateria de instrumentos e técnicas para ava-
(Resolução CFP nº 9/2011) destacando que, na avaliação psi-
liação psicológica;
cológica no contexto do trânsito, devem ser aferidos no mínimo
três tipos de atenção. A Tabela 8 sumariza as resoluções do CFP • as relações com o Detran;
sobre avaliação de motoristas e avaliação de maneira geral, que • as condições de trabalho e muitas outras interven-
são importantes para todos os psicólogos. ções possíveis, com vistas a um avanço na atuação,
O Ano da Avaliação Psicológica foi então iniciado em maio incluindo a discussão sobre mobilidade urbana.
de 2011 e concluído com um seminário nacional sobre o tema, em
março de 2012. Um dos objetivos desse processo foi mapear as
Ainda em 2012, logo após a realização de todos os semi-
necessidades para qualificação da avaliação psicológica e adequar
nários em âmbito nacional, foi proposto um novo debate online
essas ferramentas aos parâmetros éticos da profissão e aos con-
na sede do CFP, com a presença dos psicólogos Fabián Rueda

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 90 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 91
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
(USF); Fábio de Cristo (UFRN) e Andrea dos Santos Nascimen- de Medicina de Tráfego e do I Congresso Brasileiro de Psicolo-
to (Ufes). Esse debate discutiu os desafios e conquistas para a gia de Tráfego.
Psicologia do Trânsito. Além disso, um relatório final foi pro-
duzido pelo CFP com o produto dos seminários regionais (refe-
Tabela 8 – Histórico de resoluções do CFP referentes à avalia-
rente ao tema Psicologia do Trânsito em Trânsito pelo Brasil) e
ção psicológica em motoristas e avaliação psicológica de modo
entregue às autoridades responsáveis pelo Sistema Nacional de
geral
Trânsito, dentre elas: Contran, Departamento Nacional de Trân-
sito (Denatran), Ministério das Cidades, Ministério da Saúde e Conselho Federal de Psicologia
Ministério da Justiça. Avaliação psicológica em Avaliação psicológica de
motoristas modo geral
Em 2015, o CFP realizou o Seminário Psicologia e Com-
Define teste psi-
portamento do Trânsito, uma atividade preliminar à 2ª Confe- Institui o Manual
cológico como
rência de Alto Nível sobre Segurança no Trânsito, promovida para Avaliação
método de avalia-
Psicológica de
pela Organização das Nações Unidas (ONU) em Brasília. Como Res. nº Res. nº ção privativo do
candidatos à CNH
fruto de ações conjuntas realizadas pelo CFP e com as comissões 012/2000 025/2001 psicólogo e regu-
e condutores de
lamenta sua ela-
de Trânsito e Consultiva em Avaliação Psicológica (CCAP), foi veículos automo-
boração, comer-
lançada a publicação Psicologia do tráfego: características e tores.
cialização e uso.
desafios no contexto do Mercosul (CFP, 2016). Dispõe acerca do
No mesmo ano, foi fundada a Associação Brasileira de trabalho do psi-
Altera a Res. CFP
cólogo na avalia-
Psicologia de Tráfego (Abrapsit), que visa a promover o desen- n.º 002/2003, que
ção psicológica
volvimento técnico-científico do exercício profissional na área define e regula-
de candidatos à
Res. nº Res. nº menta o uso, a
de tráfego e circulação humana em todos os modais: terrestre, Carteira Nacional
016/2002 005/2012 elaboração e a
aéreo e aquaviário, o que é uma novidade, considerando o per- de Habilitação e
comercialização
condutores de veí-
curso histórico que narramos neste Eixo 2. A Abrapsit tem pro- de testes psicoló-
culos automotores
movido eventos, publicado livros e participado das reuniões da gicos.
(veda vínculo com
Câmara Temática de Saúde e Meio Ambiente no Trânsito, além CFCs).
de articular parcerias com outras entidades como a Associação
Brasileira de Medicina do Tráfego. Essa parceria resultou, dois
anos depois, na realização conjunta do XII Congresso Brasileiro

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 92 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 93
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
Revoga a Res. Estabelece diretri-
CFP nº 012/2000, zes para a realiza-
publicada no Define e regu- ção de Avaliação
DOU do dia 22 lamenta o uso, Psicológica no
de dezembro de a elaboração e a exercício profis-
Res. nº 2000, Seção I, e Res. nº comercialização sional da psicólo-
007/2009 institui normas 002/2003 de testes psico- ga e do psicólogo,
e procedimentos lógicos e revoga regulamenta o Sis-
Nota téc-
para a avaliação a Res. CFP Nº. Nota técnica so- Res. Nº tema de Avaliação
nica nº
psicológica no 025/01. bre atenção. 009/2018 de Testes Psicoló-
001/2011
contexto do Trân- gicos – SATEPSI e
sito. revoga as Resolu-
Altera a Res. CFP ções nº 002/2003,
Nº 016/2002. nº 006/2004 e
Dispõe acerca do nº 005/2012 e
trabalho do psi- Notas Técni-
cólogo na avalia- cas nº 01/2017 e
ção psicológica Altera a Res. CFP 02/2017.
de candidatos à n.º 002/2003; es- Altera o anexo II
Carteira Nacional tabelece revisão da Res. CFP nº
Res. nº Res. nº
de Habilitação e periódica de da- 007/2009, para
006/2010 006/2004 Res. nº
condutores de veí- dos empíricos das destacar o cará-
009/2011
culos automotores propriedades de ter processual da
(permite reali- um teste. avaliação psicoló-
zação de outras gica.
atividades, desde
que fora do ho-
rário destinado
àquele fim).

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 94 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 95
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
sinalizam a urgente necessidade da Psicologia
Revoga o artigo 86 responder à problemática gerada pelo fenôme-
da Resolução CFP no trânsito. Enquanto fenômeno que se dá nas
nº 18/2000, subs- vias públicas e envolve o ir e vir de pessoas, não
tituído pelo artigo pode ser entendido apenas como um campo dis-
85 da Resolução ciplinar voltado para o indivíduo em suas ações
008/2013 no trânsito. O tempo presente exige considerar o
CFP nº 03/2007 objeto da Psicologia inserido historicamente na
(que limitava a interface entre o espaço público e o privado para
realização de 10 a construção do bem-estar e da qualidade de vida
avaliações psico- para todos. (CFP, 2000, p. 9)
lógicas por dia).
Fonte: Elaborada pela comissão ad hoc de especialistas do CFP. Diante disso, nesta seção, serão abordados três tópicos im-
portantes para a psicóloga e o psicólogo do trânsito se preparar
e, mais do que isso, se inserir de maneira mais efetiva e sistemá-
Em 2018, por meio da Resolução CFP nº 09/18, o Sistema
tica tanto nos debates quanto nas ações de planejamento e mobi-
de Avaliação de Testes Psicológicos (Satepsi) foi atualizado, re-
lidade urbana, educação e cidadania e violência. Trata-se de uma
forçando o seu papel de agente catalisador de evolução dos instru-
breve introdução a essas temáticas, que não são tão comuns na
mentos de avaliação psicológica no país, desde a sua criação no
formação na área. Por exemplo, conforme o Crepop (2009), ape-
início dos anos 2000.
nas 5,3% dos psicólogos entrevistados desenvolvem atividades
voltadas à gestão, formulação e avaliação de políticas públicas
Políticas sobre a construção do espaço público, o seu de mobilidade urbana, transporte e trânsito; 82,5% das respos-
tas informam que os psicólogos não trabalham com indicadores
uso e os deslocamentos
de acompanhamento/avaliação de sua intervenção. Além disso,
essa pesquisa evidenciou, por exemplo, que mais da metade dos
Nos tópicos anteriores deste Eixo 2, foram abordados psicólogos respondentes (64,2%) não tinham nenhum conheci-
aspectos do trabalho da psicóloga e do psicólogo no tema trân- mento sobre o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), e que
sito. Contudo, para além do CTB, é necessário compreender e 53,3% não tinham nenhum conhecimento da Política Nacional
discutir como outras políticas se articulam para construir o es- de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência (à
paço público em que se dão os deslocamentos, sendo que essas época, a Portaria nº 737/2001-MS), sendo este último documento
discussões: considerado pelos participantes um dos cinco mais importantes

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 96 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 97
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
para seu trabalho. Os dados também não foram alentadores em ciclistas que, enquanto usuários do espaço público, estão em
relação a outros marcos lógicos e legais investigados no período. condições vulneráveis ao dividir espaços com máquinas em mo-
Assim, como um passo importante para o psicólogo am- vimento. Será necessário, então, que a Psicologia possa discutir
pliar sua inserção nessas relevantes atividades, é preciso pelo aspectos relevantes do planejamento urbano que orienta polí-
menos identificar e reconhecer os diversos espaços de discus- ticas públicas no setor – por exemplo, a utilização do desenho
são e as diversas demandas sociais, dentre as quais serão aqui universal no planejamento urbano (isto é, a ampliação do uso
destacadas: planejamento e mobilidade urbana, educação e ci- dos espaços públicos pelo maior número de pessoas sem a ne-
dadania e violência. Além disso, é fundamental construir e usar cessidade de adaptações posteriores) e a participação popular na
indicadores para acompanhar e avaliar tanto sua atividade e seu formulação do Plano Diretor Participativo, que é a participação
impacto quanto as ações ou políticas em que estão envolvidos. popular na construção do instrumento que orienta a política de
Nesse sentido, o Eixo 1 oferece os fundamentos para entender as desenvolvimento e de ordenamento da expansão urbana do mu-
razões pelas quais as psicólogas e os psicólogos devem se inserir nicípio. A seguir, nesta seção, serão sumariamente referenciados
nessas questões, isto é, um posicionamento ético e político da os seguintes documentos: o Estatuto da Cidade, a Política Na-
Psicologia. As políticas públicas são fruto de ações de gover- cional de Mobilidade Urbana e a Política Nacional de Trânsito
no que influenciam a vida dos cidadãos, devendo ser pensadas (PNT). Esses documentos trazem novos modos de construção de
também por meio de concepções de cidade. Então, a Psicologia políticas públicas na perspectiva do direito à cidade e acesso ao
do trânsito também importa, uma vez que, conforme aborda- transporte público.
mos naquela seção, os espaços são nossos reflexos e também O Estatuto da Cidade, criado pela Lei nº 10.257 em 2001,
nos constituem e instituem uma forma de estar no mundo e dele apresenta a oportunidade para que a política urbana cumpra seu
fazer parte. objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções so-
ciais da cidade. Essa lei prevê a existência de órgãos colegiados
de política urbana nos três níveis de governo e ainda destaca a
Planejamento e mobilidade urbana necessidade de estudos de impactos (ambientais e de vizinhan-
ça), devendo a operação urbana consorciada contar com a parti-
cipação de moradores e usuários permanentes para avaliação das
São discussões importantes sobre esse tema: a acessibi-
melhorias sociais alcançadas com as transformações urbanísti-
lidade de pessoas idosas (considerando, por exemplo, o rápido
cas. As psicólogas e os psicólogos, seja de maneira autônoma,
envelhecimento populacional no Brasil) e das pessoas com de-
como representantes de entidades ou como membros de equipe
ficiência e a qualidade de vida de pedestres, ciclistas e moto-
REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 98 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 99
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
de planejamento, podem passar a dialogar com o poder público perspectiva da cidadania e da qualidade de vida, sumarizando
para a consecução da referida política. vários documentos sobre a temática. O acidente de trânsito é
A PNT, promulgada em setembro de 2004, foi resultado compreendido como uma ocorrência evitável e, para tal, é neces-
de uma ampla discussão que envolveu os três níveis de governo sário mostrar à sociedade que as variáveis que o envolvem são
(Federal, Estadual e Municipal) e diversos órgãos e entidades, controláveis, e está sob a responsabilidade de todos contribuir
assim como a população em geral. A PNT aponta caminhos e para aprimorar o convívio nas cidades, nas estradas e nas rodo-
condições para uma abordagem mais integrada do trânsito, des- vias. Nesse documento constam, também, projetos de educação
de o uso do solo até a educação e o meio ambiente, passando de trânsito desde o ensino fundamental até o superior, em curso
pelo desenvolvimento urbano e regional, a mobilidade urbana no governo à época, tratando o trânsito a partir do uso e da ocu-
e o sistema viário (BRASIL, 2004). Trata, também, o trânsito pação do solo, como também do transporte de pessoas e de car-
como uma questão multidisciplinar que envolve problemas so- gas. Em geral, os programas sobre o tema possuem a finalidade
ciais, econômicos, laborais e de saúde que devem ser enfrenta- de modificar atitudes e comportamentos, seja de um grupo, uma
dos pelo poder público e pela sociedade. A PNT é atualmente escola, uma comunidade, até mesmo de um estado e país para
disciplinada pela Resolução Contran nº 514/2014. uma convivência harmoniosa. Nesse ponto, os psicólogos pos-
suem larga expertise no estudo das atitudes, crenças e valores,
A Política Nacional de Mobilidade Urbana, criada em
por exemplo no campo da Psicologia Social e Psicologia Am-
2014 pela Lei nº 12.587 para ser instrumento da política de de-
biental – expertise que também pode ser aplicada no contexto
senvolvimento urbano, prevê a criação de órgãos colegiados,
do trânsito.
apresentando especial preocupação com a política tarifária do
transporte público urbano e com a infraestrutura necessária, por O exercício da cidadania é feito a partir do conhecimen-
exemplo, para a mobilidade a pé e de bicicleta. to dos direitos e deveres, além da prática e da vigilância para
que sejam efetivados. Para auxiliar nesse processo, por meio de
ações e de investigações, as psicólogas e os psicólogos devem
Educação e cidadania conhecer ainda outros documentos que se relacionam a esse
tema. Por exemplo, o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003),
a Acessibilidade Universal (Decreto nº 5.294/2004), a Lei de
No caderno Trânsito, questão de cidadania (BRASIL, Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) e o
2004), o Ministério das Cidades aborda a segurança no trânsi- Estatuto da Metrópole (Lei nº 13.089/2015). Não se pode falar
to, assim como o sistema, a política e as normatizações sob a em mobilidade humana sem que se incluam todas as pessoas, a

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 100 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 101
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fim de que possam acessar os equipamentos e bens públicos da
Violência
cidade.
Recomendamos, ainda, acessar o site do Denatran5, no link
“Educação”, onde estão disponíveis vários materiais, como cam- A violência no trânsito é um problema global, razão pela qual
panhas, cursos, publicações, projetos e vídeos. Indicamos que se a Organização Mundial da Saúde criou, em 2011, a Década Mun-
conheça especificamente: o Prêmio Denatran de Educação no dial pela Segurança no Trânsito7. O Brasil está entre os dez países
Trânsito, que ocorre nos meses de setembro com a finalidade de com maiores índices de mortes no trânsito, sendo por isso incluído no
incentivar a produção de trabalhos voltados ao tema trânsito; e o Projeto Segurança no Trânsito em Dez Cidades (Road Safety in Ten
Programa Educa, lançado em 2018, que reúne materiais direcio- Countries – RS10), financiado pela Fundação Bloomberg. No Brasil,
nados ao Ensino Fundamental I e II para incluir na organização essa ação está em curso por meio do Programa Vida no Trânsito, exe-
curricular das escolas o trânsito, como tema transversal à saúde, cutado pelo Ministério da Saúde e pela OPAS, como ação nacional
meio ambiente, ética e cidadania, de acordo com as disciplinas e em correspondência à Década da OMS (SILVA et al., 2013). É im-
áreas de conhecimento. Os livros podem ser baixados gratuita- portante a psicóloga e o psicólogo individualmente não só conhecer,
mente no referido site do Denatran6. mas influenciar os órgãos que os representam para participar ativa-
mente das ações da Década.
Existem também eventos internacionais/nacionais que en-
volvem a temática, como o Dia Mundial sem Carro, celebrado O Mapa da Violência tem sido reconhecido como uma
em 22 de setembro com a finalidade de estimular a reflexão so- referência importante na publicação dos dados também sobre
bre o uso em massa e a dependência que criamos do automóvel; acidentes de trânsito. O mapa publicado em 2013, por exemplo,
e a Semana Nacional de Trânsito, que é comemorada anualmen- apresentou um panorama da evolução da violência no trânsito,
te no período compreendido entre 18 e 25 de setembro (art. 326 com foco na mortalidade de motociclistas, no período com-
do CTB). O Contran é responsável por estabelecer os temas e os preendido entre 1980 e 2011, analisando os dados dos estados,
cronogramas das campanhas de âmbito nacional, que deverão capitais e municípios, podendo ser utilizado para análise de al-
ser promovidos por todos os órgãos ou entidades do Sistema guns fatores estreitamente relacionados à produção dos traumas
Nacional de Trânsito. de trânsito, que têm produzido prejuízos financeiros, sofrimen-
tos e sequelas físicas e psicológicas. Os acidentes com moto-
cicleta são um desafio atual para as políticas de trânsito que as
5 Disponível em: <www.denatran.gov.br>.
6 O link direto para o material é: <https://www.denatran.gov.br/educa- psicólogas e os psicólogos devem atentar. As contribuições da
cao/109-educacao/publicacoes/633-educacao-para-o-transito-ensino-fundamen- 7 Veja o site oficial da Década: <https://nacoesunidas.org/campanha/se-
tal>. guranca-transito/>.

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 102 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 103
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Psicologia no enfrentamento da violência de trânsito, seja no de- de Desenvolvimento Sustentável (Decreto nº 8.892/2016). As
senvolvimento de estratégias de engenharia, de fiscalização ou ações da Psicologia do Trânsito, sejam individuais ou coletivas,
de educação, precisam considerar a complexidade do fenômeno devem também alinhar-se a essas importantes metas. Além dis-
trânsito, que inclui questões sociais e econômicas na manuten- so, existe possibilidade de aumentar a adesão a eventos como o
ção de um status que demanda segurança viária. A violência no Maio Amarelo, um movimento cuja finalidade é chamar a aten-
trânsito tem alcançado tão grande destaque que, em janeiro de ção da sociedade para os elevados índices de mortalidade no
2018, a Lei nº 13.624 alterou o Código de Trânsito em vigor para trânsito no mundo10, e o Dia Mundial em Memória das Vítimas
criar o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trân- de Trânsito, lembrado em todo o mundo no terceiro domingo de
sito, que definiu para 2028 o prazo para redução em 50% das novembro, conforme adotado pela ONU.
mortes no trânsito. Dessa maneira, o Brasil parece já reconhecer
que será difícil atingir essa meta, anteriormente acordada com a
ONU para ser atingida até 2020, por ocasião da Década Mundial De onde viemos e para onde (possivelmente) vamos?
de Segurança no Trânsito.
Outros documentos internacionais/nacionais importantes Neste Eixo 2, contextualizamos a história da Psicologia do
sobre o tema são os relatórios globais sobre segurança no trânsi- Trânsito e abordamos de forma cronológica os marcos regulató-
to (Global Status Report on Road Safety), publicados pela OMS, rios para avaliação psicológica de motoristas, a partir dos anos
sendo o mais recente de 20158, e a Agenda 2030 para o Desen- 1900 até os tempos atuais. Esse resgate histórico do contexto
volvimento Sustentável, articulada pela Organização das Nações de produção dos textos normativos para a formulação das polí-
Unidas, que estabelece um plano de ação para as pessoas, para o ticas públicas de trânsito, com o recorte do processo de forma-
planeta e para a prosperidade, buscando fortalecer a paz univer- ção de motoristas, ajuda-nos a compreender que a demanda por
sal com mais liberdade. São 17 objetivos que se desdobraram em conhecimentos psicológicos inicialmente estava relacionada a
169 metas que orientam os planos de desenvolvimento nacionais uma perspectiva de segurança pública. Dessa forma, ainda hoje
dos países por meio de acordos internacionais. Esses objetivos e as instituições impõem e asseguram a legalidade do exercício
metas incluem também os temas trânsito, transporte e mobilida- profissional da psicóloga e do psicólogo para esse fim específi-
de9. O Brasil possui uma Comissão Nacional para os Objetivos co. Após o advento da profissão, várias psicólogas e psicólogos,
8 Link para os relatórios da Organização Mundial da Saúde sobre segu- pesquisadores e o Conselho Federal de Psicologia esforçam-se
rança no trânsito (em inglês): <http://www.who.int/violence_injury_prevention/
road_traffic/en/>. para ampliar a visão dos profissionais em relação a sua práxis na
9 Conheça o site da Agenda: <https://nacoesunidas.org/pos2015/agen-
da2030/>. 10 Conheça o site desse movimento: <https://www.maioamarelo.com/>.

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 104 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 105
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área. Reforçamos que uma possibilidade real para isso é a inser-
ção nas políticas sobre a construção do espaço público, seu uso EIXO 3
e os deslocamentos (por exemplo, de planejamento e mobilidade
urbana, de educação e cidadania e de violência). Mas temos o
desafio de pelo menos identificar e reconhecer os diversos es-
Psicologia, mobilidade humana
paços de discussão e as diversas demandas sociais, dentre elas
aquelas operacionalizadas nos documentos oficiais que destrin-
e trânsito: dimensão técnica
cham as políticas que são, em geral, desconhecidas da psicóloga
e do psicólogo do trânsito. Os curiosos atrapalham o trânsito
Gentileza é fundamental
A constatação de que existem diversos setores da socieda- Não adianta esquentar a cabeça
Não precisa avançar no sinal
de que disputam entendimentos exercendo campos de influên- Dando seta pra mudar de pista
cias para a formulação de políticas públicas indica a necessidade Ou pra entrar na transversal
Pisca alerta pra encostar na guia
de a categoria profissional organizar-se e valer-se do Sistema Para-brisa para o temporal
Conselhos de Psicologia e de outras instâncias, como as asso- Já buzinou, espere, não insista,
Desencoste o seu do meu metal
ciações profissionais, para garantir que as políticas promovam Devagar pra contemplar a vista
saúde e qualidade de vida dos usuários e trabalhadores. Histori- Menos peso do pé no pedal
Não se deve atropelar um cachorro
camente, o CFP e outras instituições têm realizado ações junto Nem qualquer outro animal
ao tema, cuidando do que existe e também ampliando as possi- Todo mundo tem direito à vida
Todo mundo tem direito igual
bilidades de atuação. Todas as ações realizadas colocaram uma Motoqueiro, caminhão, pedestre
perspectiva de autonomia em relação ao trabalho, dialogando Carro importado, carro nacional
Mas tem que dirigir direito
com o referencial ético-político que dá sustentação à atuação da Para não congestionar o local
psicóloga e do psicólogo no campo em questão. A presente pu- Tanto faz você chegar primeiro
O primeiro foi seu ancestral
blicação da referência técnica do Crepop na área demonstra esse É melhor você chegar inteiro
cuidado e preocupação, sinalizando a importância de atuação na Com seu venoso e seu arterial
A cidade é tanto do mendigo
prevenção e promoção da saúde, assim como na educação para Quanto do policial
o trânsito, equilibrando o tripé “Saúde, Educação e Segurança Todo mundo tem direito à vida
Todo mundo tem direito igual
Pública” para uma compreensão mais orgânica do trânsito e da Travesti, trabalhador, turista
mobilidade humana. Solitário, família, casal
Todo mundo tem direito à vida

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 106 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 107
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
Todo mundo tem direito igual foi que 87,8% das respostas informaram não ter sido possível rea-
Sem ter medo de andar na rua
Porque a rua é o seu quintal lizar pesquisa científica a partir dos conhecimentos e experiências
Todo mundo tem direito à vida adquiridas no campo de mobilidade urbana, transporte e trânsito.
Todo mundo tem direito igual
Boa noite, tudo bem, bom dia, Convém retomar a ideia de que, conforme foi concebido,
Gentileza é fundamental
Pisca alerta pra encostar na guia o papel destas Referências (e consequentemente desta seção,
Com licença, obrigado, até logo, tchau. cujo foco é a dimensão técnica) não é ser um manual que ensina
(Arnaldo Antunes e Lenine, Rua da Passagem)
como fazer. Para isso existem outros documentos e bibliografia
apropriados, além de formação específica. O papel desta Refe-
Neste eixo abordaremos a dimensão técnica do trabalho do rência é descrever um panorama geral da área e das atividades
psicólogo do trânsito, notadamente em três conjuntos de atividades, da psicóloga e do psicólogo (por exemplo, aos que estão se inse-
incluindo: a avaliação psicológica, a educação para o trânsito e a rindo na área), referenciando documentos importantes e, adicio-
atividade docente na relação com mobilidade humana e trânsito, nalmente, sinalizando alguns pontos críticos que a psicóloga e o
assim como serão discutidos os desafios relacionados (alguns de- psicólogo (como os mais experientes na área) devem considerar
les relacionados à música de Arnaldo Antunes e Lenine). A missão naquilo que já fazem (e.g., avaliação psicológica), a fim de que
deste eixo é bastante árdua por se relacionar a uma série de compe- nosso exercício profissional seja (continue sendo) feito com ri-
tências profissionais (isto é, conhecimentos, habilidade e atitudes), gor e qualidade. E, naquilo que se quer expandir para outras ati-
muitas delas discutidas ao longo dos eixos anteriores e, adicional- vidades (como a educação), espera-se servir de ponto de partida.
mente, outras que fundamentam a construção e o uso de indicadores
para acompanhar e avaliar tanto a(s) atividade(s) de psicólogas e
psicólogos, com seu(s) impacto(s), quanto as ações ou políticas em 3.1 - Avaliação Psicológica no processo de
que tais profissionais se envolvem. A base para isso, por sua vez, é habilitação de condutores
justamente a pesquisa científica (ou, dito de uma maneira mais acei-
ta “na prática”, um diagnóstico do problema e os impactos das in-
tervenções). E sobre esses tópicos é oportuno destacar que, segun- O Crepop (CFP, 2010) evidenciou que as atividades mais
do a pesquisa do Crepop (CFP, 2010), conforme já mencionamos, desenvolvidas pelas psicólogas e pelos psicólogos do trânsito são
82,5% das respostas informam que as psicólogas e os psicólogos voltadas ao exame de avaliação psicológica para CNH (76,7% das
não trabalham com indicadores de acompanhamento e avaliação de respostas). Devido a sua relevância para muitas psicólogas e psi-
sua intervenção. Outro dado preocupante revelado nessa pesquisa cólogos atualmente, abordaremos nesta seção a psicogênese do

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 108 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 109
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comportamento humano no trânsito, a avaliação psicológica como Com esse trecho literal, reforçamos que qualquer inver-
processo, as habilidades (mínimas) avaliadas dos (futuros) moto- são ou mudança na ordem desse fluxo fere a normativa. As psi-
ristas, além dos métodos, técnicas e instrumentos psicológicos co- cólogas e os psicólogos devem conhecer as leis e normativas da
mumente utilizados para tal. Dessa forma, no Eixo 2 esperamos ter área de trânsito, especialmente aquelas que se relacionam dire-
deixado claro como essa atividade foi historicamente constituída, tamente ao seu trabalho. Destacamos aqui duas delas, referentes
os documentos que a regem e como chegamos até o modelo de ava- à avaliação no processo de habilitação: a Resolução Contran nº
liação atual para, então, avançarmos em outros pontos neste Eixo 3. 425/2012 e a Resolução CFP nº 007/2009 (ambas já descritas no
No contexto da habilitação de motoristas, a avaliação psi- Eixo 2, nas Tabelas 6 e 8). A avaliação psicológica no contexto
cológica é atualmente compulsória nas seguintes situações: ob- de habilitação de motoristas, portanto, precisa ser realizada em
tenção da CNH, adição ou mudança de categoria e renovação da todos os estados brasileiros seguindo as normativas do Contran
CNH. Neste último caso, a exigência não é para todos os mo- e do CFP. Incorrem em falta ética, portanto, os profissionais que
toristas, apenas para aqueles condutores que exercem atividade não atendem essas determinações dos órgãos responsáveis.
remunerada com o veículo. Atualmente, por ocasião da discus- No processo de avaliação psicológica avaliam-se habi-
são do Projeto de Lei nº 8.085/2014, que visa alterar o Código lidades mínimas do (futuro) motorista. Mas como se definiram
de Trânsito Brasileiro, existe um movimento da Psicologia para as habilidades mínimas e os indicadores que devem ser avalia-
que a avaliação psicológica seja estendida também para todos os dos? Uma resposta reside na compreensão das principais fases
casos de renovação da CNH (CFP, 2018b). da psicogênese do comportamento, fundamentais no paradigma
Cabe ressaltar, ainda, que a avaliação psicológica constitui cognitivista e na teoria da informação (ROZESTRATEN, 2004).
a primeira etapa avaliativa do processo de habilitação, conforme Será possível perceber, em seguida, como esse paradigma está
regulamentação do Contran nº 168/2004 (p. 1, grifos nossos): contido nas normatizações atuais do processo.

§1º O processo de habilitação do condutor de que


trata o caput deste artigo, após o devido cadas- Psicogênese do comportamento humano no trânsito
tramento dos dados informativos do candidato
no Registro Nacional de Condutores Habilitados
– RENACH, deverá realizar Avaliação Psicoló-
gica, Exame de Aptidão Física e Mental, Curso No processo de habilitação, a psicóloga e o psicólogo
Teórico-técnico, Exame Teórico-técnico, Curso buscam, por meio de sua avaliação, caracterizar os processos
de Prática de Direção Veicular e Exame de Prati-
ca [sic] de Direção Veicular, nesta ordem. psicológicos (habilidades mínimas no nível do indivíduo, isto
é, o círculo central na Figura 1). Esses processos são importan-
REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 110 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 111
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tes para a gênese do comportamento no trânsito, considerando o subsidia o aprofundamento do entendimento de um dos subsis-
contexto do trânsito e da sociedade na qual o indivíduo está in- temas do trânsito, o indivíduo, considerado importante fator de
serido (os ambientes físico, social e normativo, que são os círcu- acidentes. Ao mesmo tempo, isso ajuda a compreender as limita-
los em volta do indivíduo na Figura 1) como relevantes para tal ções do seu trabalho enquanto perito, uma vez que sua avaliação
caracterização e compreensão (ROZESTRATEN, 2004). Para ocorre em condições controladas na clínica (e.g., luminosidade),
isso, a psicóloga e o psicólogo lançam mão de métodos e técni- bem diferente do que ocorre quando o indivíduo está no trânsito
cas comumente usados para aferir os indicadores (e.g., atenção, no mundo real, bastante influenciado por uma série de variáveis.
memória e personalidade) dos processos mais amplos (e.g., to- Considerando esses aspectos, a psicóloga e o psicólogo conclui-
mada de informação) ou que os influenciam. Esses ambientes rão sobre a aptidão ou inaptidão do examinando para dirigir. Nas
influenciam e são também influenciados pelo indivíduo numa seções posteriores serão abordados especificamente os proces-
relação recíproca. sos e indicadores comportamentais (círculo central da Figura 1).
Antes disso, é importante reforçar o entendimento da avaliação
Sociedade psicológica como um processo, conforme discutido a seguir.

Trânsito
Avaliação Psicológica como processo

Indivíduo
O CFP (2007) define avaliação psicológica como uma fun-
ção privativa do profissional de Psicologia e, de acordo com a
Resolução CFP 07/2009 (p. 3), esta é
Figura 1. Inter-relações entre indivíduo-trânsito-sociedade
Fonte: Elaborada pela comissão ad-hoc de especialistas do CFP. entendida como o processo técnico-científico de
coleta de dados, estudos e interpretação de infor-
mações a respeito dos fenômenos psicológicos,
que são resultantes da relação do indivíduo com
O entendimento dessa inter-relação possibilita à psicóloga a sociedade, utilizando-se, para tanto, de estra-
e ao psicólogo que realiza a avaliação psicológica no processo tégias psicológicas – métodos, técnicas e ins-
trumentos. Os resultados das avaliações devem
de habilitação contextualizar e deixar mais nítido o seu trabalho, considerar e analisar os condicionantes históri-
porque justifica a avaliação psicológica do (futuro) motorista e cos e sociais e seus efeitos no psiquismo, com a
finalidade de servirem como instrumentos para

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 112 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 113
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
atuar não somente sobre o indivíduo, mas na 2. coleta de informações;
modificação desses condicionantes que operam
desde a formulação da demanda até a conclusão 3. integração das informações e desenvolvimento das hi-
do processo de avaliação psicológica.
póteses iniciais;
4. indicação das respostas e comunicação dos resultados
É fundamental reforçarmos o entendimento de que a (apto, inapto temporário e inapto).
avaliação psicológica é o processo por meio do qual obtemos
Assim, com um olhar mais amplo para o candidato/motoris-
informações sobre condições psicológicas dos (futuros) moto-
ta, para além das métricas dos testes psicológicos, os “dados ad-
ristas. Encarar a avaliação como processo implica, portanto, na
vindos dos testes psicológicos devem ser reunidos às informações
compreensão de que não se pode considerar testagem como si-
fornecidas por outros recursos avaliativos, com o objetivo de que
nônimo de avaliação. A testagem pode (ou não) fazer parte do
sua compreensão final inclua as informações contextuais” (CFP,
processo avaliativo, e no contexto da habilitação de motoristas
2011a). Todos esses dados, devidamente analisados, interpretados
tem sido uma prática atual, considerada por vezes indispensável
e integrados, devem ser expressos junto com a conclusão do pro-
para amparar as conclusões da psicóloga e do psicólogo. To-
cesso, por meio de um documento psicológico: o laudo, que é
davia, não se pode tolerar a descaracterização do processo de
decorrente de avaliação psicológica (CFP, 2009). Não é incomum,
avaliação psicológica, sob qualquer justificativa (por exemplo,
todavia, que uma parcela de psicólogas e psicólogos atribua ou-
de dar maior celeridade à atividade), reduzindo-a à testagem, o
tro nome a esse documento (parecer ou síntese). A Resolução nº
que infelizmente ainda é muito comum na prática. As psicólogas
007/2003 trata, portanto, de laudo, e não de outro documento psi-
e os psicólogos envolvidos nessa incompreensão estão cometen-
cológico. Não pode ser denominado como parecer, uma vez que,
do, além de um erro conceitual, em falta ética de acordo com o
de acordo com o entendimento atual, este não é um documento
exposto na resolução que embasa essa prática.
decorrente de avaliação psicológica. Ademais, conforme a referi-
Existem pelo menos quatro passos essenciais para alcançar da Resolução, não existe um documento denominado síntese.
os resultados esperados da avaliação psicológica (CFP, 2013):
A literatura especializada também evidencia problemas na
1. objetivos da avaliação (no caso do processo de habili- elaboração dos laudos e consequências éticas para psicólogas e
tação: obtenção e renovação da CNH, adição ou mu- psicólogos que é preciso evitar/conter. Por exemplo, Silva e Al-
dança de categoria da CNH e exercício de atividade chieri (2011) avaliaram a qualidade do preenchimento dos laudos
remunerada com o veículo) e escolha de instrumentos psicológicos e sua guarda por psicólogas e psicólogos peritos em
e estratégias adequadas; trânsito. Os autores identificaram: ausência de informações de

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 114 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 115
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identificação dos usuários e dos instrumentos; uso de terminolo-
Habilidades (mínimas) avaliadas dos (futuros)
gias não técnicas expressando resultados; laudos pouco elucidati-
vos, objetivando apenas preencher os campos disponíveis, porém motoristas
sem integração entre os dados coletados por meio de instrumentos,
observações e entrevistas; ausência de identificação e do carimbo
Inicialmente vale ressaltar que existem dois tipos de con-
com o número do CRP do profissional; laudos não encontrados,
dutores, os que utilizam seus veículos para se movimentarem
mesmo dentro do período de validade (cinco anos). Em outro es-
rumo às suas atividades profissionais, sociais, de lazer e afins e
tudo, Zaia, Oliveira e Nakano (2018) analisaram os processos éti-
outros que, além disso, utilizam o veículo como atividade pro-
cos publicados no jornal do CFP e evidenciaram que grande parte
fissional, isto é, exercem por meio dele atividade remunerada.
se refere à avaliação psicológica e, dentro desse processo, chamou
As habilidades mínimas aferidas para qualquer condutor são:
atenção a existência frequente de laudos mal elaborados, parciais
(A) tomada de informação; (B) processamento de informação e
e tendenciosos, sem fundamentação técnica e científica, incluindo
tomada de decisão; (C) comportamento; e (D) traços de perso-
aqueles elaborados no contexto do trânsito.
nalidade (CFP, 2009). Conforme argumentamos ao apresentar a
Nesse sentido, cabe apontar às psicólogas e aos psicólogos Figura 1, é possível identificar nesta normatização a influência
da área a necessidade de zelar não só pela elaboração dos seus do paradigma cognitivista, a partir da teoria da informação. Veja
documentos como também pela guarda organizada desses mate- a Tabela 9 para uma visão geral das habilidades mínimas para
riais, que compõem seu registro documental (veja a Resolução dirigir, seus indicadores e métodos/técnicas comumente usados.
CFP nº 001/2009). Sem isso, a imagem e a credibilidade não
(a) Tomada de informação
só da psicóloga e do psicólogo como da própria área pode ser
abalada, tanto pelos questionamentos dos examinandos quanto O CFP (2011b), a partir da exigência do Contran, define
da sociedade. Isto posto, são descritas a seguir as habilidades essas habilidades, conceituando tomada de informação:
mínimas exigidas no processo de avaliação psicológica (veja
Tabela 9). como o fenômeno pelo qual o ser humano pro-
cessa uma quantidade limitada de informações
das várias informações disponíveis. Em outros
termos, a atenção refere-se à capacidade e esfor-
ço exercido para focalizar e selecionar um estí-
mulo para ser processado, levando o indivíduo a
responder a determinados aspectos do ambiente,
em lugar de fazê-lo a outros, permitindo que o
indivíduo utilize seus recursos cognitivos para

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 116 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 117
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
emitir respostas rápidas e adequadas mediante Para a aferir a inteligência e a memória de curto prazo
estímulos que julgue importantes (CFP, 2011b).
existem testes psicológicos aprovados e que foram construídos
utilizando em suas amostras normativas candidatos à CNH e
O CFP ainda define o construto atenção e determina, em condutores.
nota técnica, que é necessário aferir três tipos de atenção. De
A avaliação de orientação espacial, identificação signifi-
acordo com o CFP (2011b, p. 1), “Ressalta-se a necessidade de
cativa, julgamento ou juízo crítico e tomada de decisão tem o
que, ao realizar avaliação psicológica no contexto do trânsito,
objetivo de obter informações a respeito da capacidade do in-
sejam aferidos, no mínimo, três tipos de atenção”. Sendo as-
divíduo se situar no tempo e espaço; de sua escala de valores
sim, considera os diferentes tipos de atenção – difusa/vigilância/
para perceber e avaliar a realidade para, dessa forma, identificar
atenção sustentada; atenção concentrada; atenção distribuída/di-
os julgamentos que levam a atitudes seguras no trânsito (CFP,
vidida; atenção alternada –, conforme definidos pela literatura e
2009).
pelos manuais de instrumentos padronizados.
(C) comPorTamenTo
(b) ProcessamenTo de informação e Tomada de decisão
Conjunto de reações (tempo de reação, coordenação viso
Afere-se como indicador desses processos a inteligên-
e áudio-motora) do indivíduo em face das interações propicia-
cia, definida como a capacidade de resolver problemas novos,
das pelo meio altamente dinâmico (Figura 1). E considerando o
relacionar ideias, induzir conceitos e compreender implicações,
ambiente do trânsito, o comportamento poderá será investigado
assim como a habilidade adquirida de determinada cultura por
também por meio de entrevista e de situações hipotéticas, bus-
meio da experiência e aprendizagem.
cando verificar sua adequação às situações no trânsito, sejam
A memória é considerada outro indicador, conceituada elas individuais ou coletivas.
como a capacidade de registrar, reter e evocar estímulos em um
(D) Traços de Personalidade
curto período de tempo (memória em curto prazo) e capacida-
de de recuperar uma quantidade de informação armazenada na A justificativa para a aferição deste indicador é a ne-
forma de estruturas permanentes de conhecimento (memória de cessidade de que haja equilíbrio entre os diversos aspectos de
longo prazo). Na prática, a avaliação da memória de curta du- personalidade: controle emocional, ansiedade, impulsividade
ração é feita por poucos profissionais e, para alguns, isso é feito e agressividade. As técnicas, os métodos e testes psicológicos
no momento de reavaliação, quando o candidato é considerado que podem ser usados para avaliar a personalidade e os demais
inapto temporário. processos e construtos descritos anteriormente serão abordados
brevemente no próximo tópico.

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 118 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 119
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
Tabela 9 – Habilidades mínimas para dirigir, seus indicadores e
Métodos, técnicas e instrumentos psicológicos utilizados
métodos/técnicas comumente usados
Habilidades Indicadores Métodos e técnicas
no contexto do trânsito
mínimas comumente usados
A. Tomada • Atenção difusa/vigilância/ • Instrumento pa-
de informa- atenção sustentada; atenção dronizado O profissional tem autonomia em sua escolha do instru-
ção concentrada; atenção dis- • Entrevista mento. Ao fazer essa escolha é necessário verificar os instru-
tribuída/dividida; atenção mentos mais adequados, ou seja, aqueles que devem ser con-
alternada siderados apenas para os contextos e propósitos para os quais
• Deverão ser aferidos no mí- os estudos empíricos indicaram resultados favoráveis. A razão
nimo três tipos de atenção
de destacar isso, inicialmente, reside no fato de alguns Detrans
B. Proces- • Orientação espacial • Instrumento pa-
samento de dronizado tentarem, equivocadamente, obrigar a psicóloga e o psicólogo a
• Identificação significativa
informação • Entrevista aplicar testes específicos (isto é, indicando os nomes dos testes).
• Inteligência
e tomada de Tal escolha é uma competência da psicóloga e do psicólogo, que
• Memória
decisão devem selecionar o instrumento ou técnica que avalia o indica-
• Julgamento ou juízo crítico
C. Compor- • Tempo de reação • Observação dor do processo psicológico estabelecido na legislação:
tamento • Coordenação viso e áudio- • Entrevista
-motora • Instrumento pa- §2 – A psicóloga e o psicólogo têm a prerrogativa
• Capacidade para perceber dronizado de decidir quais são os métodos, técnicas e instru-
quando as ações no trânsi- mentos empregados na Avaliação Psicológica, des-
de que devidamente fundamentados na literatura
to correspondem ou não a
científica psicológica e nas normativas vigentes do
comportamentos adequados, Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2018, p. 2).
sejam eles individuais ou
coletivos
D. Traços de • Equilíbrio entre os diversos • Instrumento pa- A Resolução Contran nº 425/2012, no seu artigo 6º, des-
personali- aspectos de personalidade, dronizado taca as técnicas e os instrumentos utilizados na avaliação psi-
dade especialmente os relaciona- • Questionário cológica: entrevistas diretas e individuais; testes psicológicos,
dos ao controle emocional,
• Entrevista dinâmicas de grupo e escuta e intervenções verbais. Tais instru-
ansiedade, impulsividade e
agressividade mentos foram reiterados pelo CFP, que orienta os profissionais
Fonte: Elaborada pela comissão ad-hoc de especialistas do CFP. em sua práxis, e são descritos brevemente a seguir.

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 120 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 121
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
A entrevista psicológica é uma conversação dirigida a um Não se deve, portanto, dispensar a entrevista inicial para
propósito definido de avaliação (CFP, 2009). Sua função básica ir direto à etapa de testagem, devido às dificuldades e falhas que
é prover o avaliador de subsídios técnicos acerca da conduta, isso pode produzir no processo de avaliação.
dos comportamentos, conceitos, valores e das opiniões do can- A entrevista devolutiva também faz parte do processo avalia-
didato, completando os dados obtidos pelos demais instrumen- tivo e é obrigatória. O que se observa na prática é que essa entrevis-
tos que serão utilizados. A normativa estabelece uma entrevista ta é realizada para candidatos considerados inaptos (temporários),
individual que aborde: identificação pessoal; motivo da avalia- e que geralmente os candidatos aptos não retornam à clínica para
ção psicológica; histórico escolar e profissional; histórico fami- ter um feedback do resultado. Mas cabe ao profissional informar ao
liar; indicadores de saúde-doença; e aspectos da conduta social cidadão, desde o início do processo, sobre o seu direito legítimo de
(CONTRAN, 2012). Para isso, o CFP (2009) sugere um roteiro tirar dúvidas quanto ao resultado da avaliação psicológica.
de entrevista psicológica, que deve ser conhecido pela psicóloga
Dinâmicas de grupo (e escutas verbais) podem ser utili-
e pelo psicólogo e constam perguntas sobre esses tópicos.
zadas para informar, treinar, resolver um problema, tomar uma
A entrevista deve ser utilizada em caráter inicial do pro- decisão e integrar um grupo (SILVA, 2016). Nesse caso, de acor-
cesso de avaliação psicológica, pois é durante esse procedimen- do com a autora, deve-se buscar informação sobre o candidato,
to que a psicóloga e o psicólogo têm condições de identificar suas condições de saúde e bem-estar, assim como informá-lo
situações que possam interferir negativamente na avaliação psi- sobre o processo de avaliação psicológica e, a partir disso, tomar
cológica, podendo o avaliador optar por não proceder à testagem a decisão da continuidade do candidato no processo avaliativo.
naquele momento, para não prejudicar o candidato (CFP, 2009). Além disso, a dinâmica de grupo permite melhorar a comuni-
De acordo com a normativa 425: cação entre os participantes da avaliação, desmistificar o pro-
cesso de avaliação psicológica e identificar possíveis problemas
Nesse caso, o candidato deverá retornar em mo- para tomadas de decisão. Se no início da avaliação psicológica
mento posterior. O psicólogo deve, portanto,
planejar e sistematizar a entrevista a partir de
o profissional utilizar primeiro a dinâmica de grupo com uma
indicadores objetivos de avaliação correspon- entrevista psicológica em seguida, a análise sobre o indivíduo
dentes ao que pretende examinar. O psicólogo
deve, durante a entrevista, verificar as condições
poderá ser aprofundada e, assim, será melhor verificado o pro-
físicas e psíquicas do candidato ou examinando blema situacional e comportamental que foi observado durante
(CONTRAN, 2012, p. 5).
as etapas anteriores (SILVA, 2016). Será possível fazer desse
processo avaliativo um processo educativo, de aprendizagem de
múltiplos olhares? Fica a reflexão.

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 122 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 123
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
Teste psicológico pode ser conceituado como uma medi- examinandos no trânsito a partir dos testes aplicados no processo
da objetiva e padronizada de uma amostra do comportamento de habilitação. Por exemplo, após extensa análise da literatura,
do sujeito, tendo a função fundamental de mensurar diferenças Cristo e Alchieri (2015) evidenciaram que, no que diz respeito
ou mesmo semelhanças entre indivíduos, ou entre as reações às comparações entre grupos de acidentados e não acidentados
do mesmo indivíduo em diferentes momentos. O teste precisa ou de infratores e não infratores, apenas:
ter evidências empíricas de validade e precisão e também deve
ser normatizado. Cabe ao profissional seguir todas as recomen- estudos isolados demonstram diferença entre os
dações contidas nos manuais dos testes, bem como nas atuali- grupos (que podem ser ao acaso) ou não esta-
belecem evidências de validade preditiva, ou
zações divulgadas, para garantir a qualidade técnica e ética do seja, não indicam a probabilidade de predizer o
trabalho. Para a interpretação dos resultados dos testes psico- comportamento a partir dos resultados dos testes
psicológicos. Em suma, os resultados não são re-
lógicos, recomenda-se a utilização das normas específicas e/ou plicados em outros estudos, e variam em função
gerais dos instrumentos, conforme orientações constantes nos da medida psicológica utilizada, do critério de
segurança estudado e da forma de apreendê-lo
respectivos manuais (CFP, 2011b). (relato verbal ou registro no Detran).
O Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (Satepsi)11
oferece vários testes psicológicos favoráveis para aferir diferentes
Dessa maneira, continuam sendo necessárias pesquisas
construtos psicológicos. O Satepsi está com nova interface e infor-
sobre a validade preditiva dos instrumentos para examinar me-
mações atualizadas. A psicóloga e o psicólogo do trânsito poderão
lhor a relação entre os aspectos psicológicos e o comportamen-
facilmente obter uma lista de testes psicológicos (tanto favorá-
to do motorista, de fato, no trânsito (SILVA; ALCHIERI, 2007,
veis quanto desfavoráveis) para avaliar os construtos requeridos
2008, 2010). Isso contribuirá para que a psicóloga e o psicólogo
no processo de habilitação. Uma maneira de buscar esses testes
concluam com maior confiança sobre a aptidão ou inaptidão do
é por palavra-chave (por exemplo, “personalidade”), seguindo os
(futuro) motorista, uma vez que haverá evidências de que seus
passos: ao entrar no site do Satepsi, clique em “lista do Satepsi”
instrumentos são sensíveis para estabelecer relações probabilís-
> “Psicólogo pode usar” > “Testes Psicológicos Favoráveis” >
ticas de que o candidato poderá se envolver ou não em acidentes
selecionar o construto de interesse dentre as opções listadas, neste
ou infrações. Apesar disso, estudos sugerem que os candidatos
exemplo, “Personalidade”.
à obtenção/renovação da CNH percebem a importância da ava-
É preciso reconhecer algumas limitações no uso de tes- liação psicológica no processo de habilitação (AMBIEL; MOG-
tes psicológicos, dentre elas, a predição de comportamentos dos NON; ISHIZAWA, 2015).
11 Disponível em: <http://satepsi.cfp.org.br/>. Acesso em: 30 out. 2018.

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 124 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 125
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
Nesta seção buscamos enfatizar que o profissional de Psi-
cologia precisa assimilar que um processo técnico-científico re-
3.2 - Educação para o trânsito
quer conhecimento e habilidade para o manuseio das estratégias
de avaliação e entender o contexto em que está inserido o candi- Na pesquisa do Crepop (CFP, 2010), psicólogas e psicó-
dato. O nosso país tem uma dimensão continental e diversidade logos respondentes destacaram a educação para o trânsito como
cultural, social e econômica por região e até mesmo por locali- campo de interesse. Conforme esse estudo, 21% das respostas
dade. As avaliações, portanto, precisam ser analisadas a partir indicam a área de educação para o trânsito como estratégica para
desses condicionantes, com rigor científico. operacionalização do serviço, demonstrando que as:
Ademais, nosso fazer psicológico deve ser pautado na éti-
ca e na cidadania, compreendendo a relação das pessoas com Ações relativas à educação para o trânsito apare-
o espaço público (rua de passagem), com subjetividade e sin- ceram em diversos relatos e de diferentes modos
dependendo da inserção do/a profissional. Na
gularidade e ainda, com a complexidade do fenômeno trânsito. maioria das vezes estava associada a ações de-
Nesse sentido, ao profissional de Psicologia cabe também olhar senvolvidas em escolas com crianças e adoles-
centes, mas também foram citadas práticas em
para a mobilidade humana e fazer de sua atuação uma ação de campanhas educativas, que envolviam outros
reflexão e mudança de paradigmas do uso da cidade, espaço de profissionais ligados ao trânsito e em palestras
dirigidas a empresas que buscam sensibilizar
convivência de carros e pessoas, com seus desejos, objetivos e os/as funcionários para as questões relativas ao
a liberdade de se locomover com segurança no seu cotidiano. trânsito. (FGV, 2007 p. 25)
A partir disso, poderemos lançar um olhar para a importância
do nosso trabalho e, ao mesmo tempo, estar conscientes das li- Para psicólogas e psicólogos que atuam ou têm intenção
mitações que se impõem no que concerne à perícia psicológica de atuar em educação para o trânsito, ressaltamos que ela pre-
no processo de habilitação. Na próxima seção abordaremos as cisa estar pautada nos princípios e diretrizes do Contran sobre
possibilidades de atuação da psicóloga e do psicólogo no campo o tema. Nesse sentido, ao abordar a educação para o trânsito
da educação para o trânsito. nestas Referências Técnicas procuramos cumprir dupla função:
apresentar os marcos lógicos e legais que disciplinam a educação
para o trânsito e, a um só tempo, refletir acerca dos princípios e
valores em que se fundamenta a legislação.
Para ampliar a inserção do fazer psicológico nas ações de
educação para o trânsito de órgãos e entidades componentes do
REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 126 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 127
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
SNT, é importante considerar inicialmente o histórico da educa- Após quase três décadas de vigência do Código Nacional de
ção para o trânsito na legislação sobre a matéria. Em seguida, Trânsito de 1966, o Projeto de Lei nº 3.710 foi publicado no Diá-
abordaremos o modo de atuar em educação para o trânsito no rio do Congresso Nacional, em 6 de julho de 1993, para atualizar
SNT, em diversos contextos. a legislação sobre trânsito. O texto final desse PL foi apresentado
em 23 de setembro de 1997 e instituiu, finalmente, a educação
para o trânsito como direito de todos e dever prioritário de órgãos
A Educação para o Trânsito na legislação e entidades componentes do SNT (capítulo VI do CTB). Compos-
to originalmente por seis artigos, o capítulo da educação foi alte-
rado em 2009 pela Lei nº 12.006, que inclui outros cinco artigos
Em mais de cem anos de legislação de trânsito, o atual
sobre a veiculação de publicidade em canais de comunicação.
CTB, instituído em 1997, foi o primeiro código a dedicar um
capítulo à educação. Os anteriores, publicados em 1941 e 1966, O artigo 76 do capítulo VI do CTB avançou na regulamen-
trataram o trânsito exclusivamente como questão de uso da via tação da matéria com a seguinte redação:
pública, a ser disciplinado pela ação fiscalizadora do Estado.
A educação para o trânsito será promovida na
A primeira legislação a dispor sobre a habilitação e o exer- pré-escola e nas escolas de 1º, 2º e 3º graus, por
cício da atividade de condutor de veículos automotores data de meio de planejamento e ações coordenadas entre
os órgãos e entidades do Sistema Nacional de
1946, estabelecendo como critério para concessão da carteira de Trânsito e de Educação, da União, dos Estados,
motorista a aprovação nos exames médicos (de capacidade físi- do Distrito Federal e dos Municípios, nas res-
pectivas áreas de atuação. (BRASIL, 1997).
ca e de sanidade mental) e técnicos (de conhecimentos de regras
de circulação e dos comandos do veículo).
A formação de motoristas passou a ser regulamentada so- Mesmo tendo sido publicado após a Lei de Diretrizes e
mente em 1968, pela Resolução do Contran nº 390, em razão Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), lei que redefi-
de o Código de Trânsito de 1966 ter previsto o funcionamento niu a denominação dos níveis escolares, o CTB manteve a de-
das escolas de aprendizagem para motoristas. Nesse Código de nominação apresentada pela LDB de 1971 (isto é, pré-escola e
Trânsito estava prevista a divulgação de noções de trânsito nas 1º, 2º e 3º graus). Depois de quase vinte anos de vigência, o
escolas primárias e médias do país, promovida pelo Ministério CTB foi alterado por mais de trinta leis e teve diversos de seus
da Educação e Cultura (art. 125), com a realização de campa- dispositivos regulamentados por mais de setecentas resoluções
nhas educativas ao menos uma vez por ano (art. 124). publicadas pelo Contran, órgão máximo e coordenador do SNT,

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 128 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 129
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
com competências de caráter consultivo e normativo. Apesar de
Como atuar em educação para o trânsito no Sistema
tantas normativas, a denominação equivocada dos níveis escola-
res sequer foi alterada, explicitando o descompasso entre as leis Nacional de Trânsito?
que balizam a educação para o trânsito. Um conjunto dessas re-
soluções visou disciplinar a educação para o trânsito, tanto para
As Resoluções do Contran e as Portarias do Denatran que
a formação de motoristas quanto para a capacitação de profis-
tratam da educação são destinadas a orientar atividades na capa-
sionais de centros de formação de condutores, capacitação de
citação de profissionais de Centros de Formação de Condutores
agentes de trânsito, campanhas publicitárias e formação escolar
no processo de habilitação de motoristas, no contexto escolar,
de crianças e adolescentes.
nas campanhas publicitárias e na formação de agentes de trânsito
Para que as ações de governo na gestão do trânsito se- (Figura 2). Essas atividades são abordadas nesta seção e são fre-
jam efetivas, o CTB cuidou em destinar os recursos arrecadados quentemente realizadas por instituições credenciadas nos Detrans,
com a cobrança das multas de trânsito para as áreas de educa- como Centros de Formação de Condutores, órgãos e entidades
ção de trânsito, sinalização, engenharia de tráfego, de campo, componentes do SNT, escolas públicas e privadas, em alguns ca-
policiamento e fiscalização, considerando-as estratégicas para a sos com assessoria de profissionais autônomos. Dessa maneira, a
segurança e qualidade de vida. A destinação da receita arrecada- psicóloga e o psicólogo poderão se beneficiar dos conhecimentos
da com cobrança de multas está disciplinada pelo artigo 320 do expostos nesta seção, seja como gestores/as ou consultores/as.
CTB, pela Resolução nº 736/2018 do Contran e pela Portaria nº
149/2018 do Denatran.
Educação para o trânsito no processo de habilitação
À psicóloga e ao psicólogo interessados em ir além para
pesquisar sobre essas e outras legislações de trânsito, recomen- de motoristas
damos acessar o site do Denatran <www.denatran.gov.br> e cli-
car nos links que são atualizados constantemente: Deliberações,
A Resolução Contran nº 168/2004 estabelece a estrutura
Portarias e Resoluções.
curricular básica para o curso teórico no processo de formação
de motoristas, reciclagem de motoristas infratores, transporte
coletivo de passageiros e transporte escolar, sendo os operadores
dessa atividade os Centros de Formação de Condutores creden-
ciados pelos Detrans.

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 130 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 131
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
trutor de trânsito, por sua vez, é necessário realizar curso de capa-
citação cujo currículo abarque a disciplina Noções de Psicologia da
Educação, com carga horária equivalente a aproximadamente 10%
do total do curso. Veja, também na Tabela 10, um sumário dos con-
teúdos sobre bases psicológicas da aprendizagem na capacitação de
instrutores de trânsito e suas cargas horárias (da disciplina e total
do curso).

Educação para o trânsito no contexto escolar

A Portaria Denatran nº 147/2009 inaugurou o balizamento


da educação para o trânsito no contexto escolar e criou as Di-
retrizes Nacionais da Educação para o Trânsito na Pré-Escola
Figura 2 – Atividades de educação para o trânsito normatizadas
e no Ensino Fundamental. Nesse documento são articuladas as
por resoluções e portarias do Contran e do Denatran
normativas sobre trânsito e educação, em especial os Parâme-
Fonte: Elaborada pela comissão ad-hoc de especialistas do CFP tros Curriculares Nacionais, a Base Nacional Comum Curri-
Merece especial destaque no currículo dos cursos o conteú- cular e as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Em dois
do sobre relacionamento interpessoal, que deve ser ministrado por anexos, apresenta de modo detalhado sugestões de abordagens
instrutores de trânsito capacitados em curso regulamentado pelo pedagógicas para o trabalho em sala de aula, utilizando questões
Contran. A disciplina em questão deve tratar de princípios e valores relativas ao trânsito como tema transversal.
para o relacionamento interpessoal entre usuários da via pública, Para o ensino médio, a Resolução Contran nº 265/2007
com carga horária que varia entre 20% e 30% do curso, devendo estabeleceu a possibilidade de o estudante realizar a prova teó-
ser ministrada por profissional capacitado em curso atualmente re- rica do Detran no processo de formação como motorista, sem
gulamentado pela Resolução Contran nº 358/2010. Na Tabela 10 precisar frequentar o Centro de Formação de Condutores teóri-
apresentamos os conteúdos sobre relacionamento interpessoal, por co, caso tenha participado de atividade extracurricular oferecida
curso de educação para o trânsito na formação de motoristas, e suas pela escola onde estuda como curso de formação teórico-técnica.
cargas horárias (da disciplina e total do curso). Para atuar como ins- Essa Resolução apresenta conteúdo programático semelhante ao
REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 132 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 133
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
curso de formação de condutores apresentado pela Resolução nº
Educação para o trânsito na capacitação de
168/2004. Porém, a carga horária é superior, a fim de aprofundar
as questões relativas ao trânsito que nos levam a compreendê-lo profissionais de centros de formação de condutores
em seus aspectos econômicos, políticos, sociais, para além de
um fenômeno mecânico e operado por normas gerais de circu-
Atualmente um centro de formação de condutores precisa
lação e conduta.
se credenciar no Detran para desempenhar a função no processo
de habilitação de condutores. A Resolução Contran nº 358/2010
trata dos critérios para credenciamento das instituições para
Educação para o trânsito promovida por órgãos,
atuarem na formação do motorista e apresenta o conteúdo pro-
entidades, instituições e profissionais autônomos gramático da capacitação de diretor geral, diretor de ensino, ins-
trutor de trânsito e examinador de prática de direção veicular.
O conteúdo dos cursos de capacitação compreende Psicologia
As ações que tenham por objetivo “informar, mobilizar,
aplicada à segurança no trânsito (relações interpessoais, obe-
prevenir ou alertar a população ou segmento da população para
diência às leis e à sinalização, o controle das emoções, atenção
adotar comportamentos que lhe tragam segurança e qualidade
e cuidados indispensáveis à segurança do trânsito), Psicologia
de vida no trânsito” (p. 1) são consideradas campanhas educa-
da aprendizagem e Aspectos psicológicos no processo de ava-
tivas pela Resolução Contran nº 314/2009. Essa é a normativa
liação.
mais curta no que se refere à educação para o trânsito e, além
de definir o que são campanhas educativas de trânsito, discipli-
na órgãos e entidades componentes do SNT, estabelecendo que
Educação para o Trânsito em Escolas Públicas de
“devem assegurar recursos financeiros e nível de profissiona-
lismo adequado para o planejamento, a execução e a avaliação Trânsito
das campanhas” (p. 1). Quanto ao planejamento das campanhas,
a referida normativa apresenta os princípios e valores da PNT,
Diferente do que a denominação pode sugerir, as Esco-
atualmente disciplinada pela Resolução Contran nº 514/2014.
las Públicas de Trânsito não atuam no processo de formação de
Para a eficiência das campanhas educativas, são apresentadas
condutores, tampouco se destinam à educação para o trânsito no
estratégias de pesquisa, com pré e pós-teste.
contexto escolar. O objetivo da Resolução Contran nº 515/2014
é estabelecer critérios de padronização de procedimentos para a

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 134 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 135
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
promoção da PNT no que se refere à execução de ações e cursos Tabela 10 – Conteúdos sobre relacionamento interpessoal e
voltados ao exercício da cidadania, à mobilidade e à segurança sobre as bases psicológicas da aprendizagem por curso e suas
no trânsito. Dentre as competências da Escola Pública de Trân- cargas horárias
sito destaca-se a possibilidade de parcerias com outros órgãos, Cursos Conteúdo sobre relacio- Carga Carga
entidades, instituições e segmentos organizados da sociedade previstos namento interpessoal horária da horária
pela disciplina total do
para a execução dos cursos, garantindo recursos financeiros para Resolução curso
realização das atividades. Contran nº
168/2004
– Comportamento solidá-
rio no trânsito;
Educação para o trânsito na capacitação de agentes
– O indivíduo, o grupo e a
de trânsito sociedade;

– Responsabilidade do
Reciclagem condutor em relação aos
Somente em 2017, através da Portaria nº 94, o Denatran 6 horas/ 30 horas/
para conduto- demais atores do processo
aula aula
instituiu o curso de agente de trânsito, destinado a profissionais res infratores de circulação;
que executam atividades de fiscalização, operação, policiamento – Respeito às normas es-
ostensivo de trânsito ou patrulhamento nos órgãos integrantes tabelecidas para segurança
do Sistema Nacional de Trânsito. O curso pode ser oferecido no trânsito;

por instituições privadas, com carga horária mínima de duzentas – Papel dos agentes de fis-
horas-aula, com destaque para os módulos Ética e cidadania (8 calização de trânsito.
h/a), Psicologia aplicada (12 h/a) e O papel educador do agente
(8 h/a).

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 136 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 137
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
– Aspectos do comporta- – Aspectos do comporta-
mento e de segurança no mento e de segurança no
transporte de passageiros; transporte de escolares;

– Comportamento solidá- – Comportamento solidá-


rio no trânsito; rio no trânsito;

– Responsabilidade do – Responsabilidade do
condutor em relação aos condutor em relação aos
demais atores do processo demais atores do processo
de circulação; de circulação;

– Respeito às normas es- – Respeito às normas es-


Transporte tabelecidas para segurança tabelecidas para segurança
coletivo de no trânsito; 15 horas/ 50 horas/ no trânsito;
passageiros Veículo de
aula aula
– Papel dos agentes de fis- transporte – Papel dos agentes de fis- 15 horas/ 50 horas/
calização de trânsito; escolar calização de trânsito; aula aula
– Atendimento às diferen- – Atendimento às diferen-
ças e especificidades dos ças e especificidades dos
usuários (pessoas portado- usuários (pessoa portadora
ras de necessidades espe- deficiências física, faixas
ciais, faixas etárias diver- etárias, outras condições);
sas, outras condições);
– Características das fai-
– Características das faixas xas etárias dos usuários de
etárias dos usuários mais transporte de escolares;
comuns de transporte cole-
tivo de passageiros. – Cuidados especiais e
atenção que devem ser dis-
pensados aos escolares e
seus responsáveis, quando
for o caso.

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 138 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 139
POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
– Aspectos do comporta- – Atualização dos conheci-
mento e de segurança na mentos desenvolvidos no
condução de veículos de Atualização curso;
emergência;
Transporte – Retomada de conceitos;
– Comportamento solidá- 5 horas/ 16 horas/
coletivo de – Relacionamento da teoria
rio no trânsito; aula aula
passageiros e da prática;
– Responsabilidade do
condutor em relação aos – Principais dificuldades
demais atores do processo vivenciadas e alternativas
de circulação; de solução.
– Atualização dos conheci-
– Respeito às normas es- mentos desenvolvidos no
tabelecidas para segurança curso;
no trânsito;
Atualização – Retomada de conceitos;
– Papel dos agentes de fis- 5 horas/ 16 horas/
Veículo de 15 horas/ 50 horas/ Transporte – Relação da teoria e da
calização de trânsito; aula aula
emergência aula aula escolar prática;
– Atendimento às diferen-
ças e especificidades dos – Principais dificuldades
usuários (pessoas portado- vivenciadas e alternativas
ras de necessidades espe- de solução.
ciais, faixas etárias /outras – Atualização dos conheci-
condições); mentos desenvolvidos no
curso;
– Características dos usuá- Atualização
rios de veículos de emer- – Retomada de conceitos;
veículo de 5 horas/ 16 horas/
gência; emergência – Relacionamento da teoria aula aula
– Cuidados especiais e e da prática;
atenção que devem ser dis-
– Principais dificuldades
pensados aos passageiros e
vivenciadas e alternativas
aos outros atores do trânsi-
de solução.
to, na condução de veícu-
los de emergência

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POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO POLÍTICAS PÚBLICAS DE MOBILIDADE HUMANA E TRÂNSITO
Cursos pre-
vistos pela
Conteúdo sobre bases Carga Carga ho-
psicológicas da aprendi- horária da rária total
Como são financiadas as ações em educação para o
Resolução zagem disciplina do curso trânsito?
Contran
nº 358/2010
Conceitos básicos
Toda receita arrecadada com a cobrança das multas de
– principais teorias e suas
trânsito deve ser destinada a atender exclusivamente as despe-
contribuições;
sas públicas com sinalização, engenharia de tráfego e de campo,
– processo de aprendiza- policiamento, fiscalização e educação de trânsito. A Resolução
gem do jovem e do adulto;
Contran nº 638/2016 disciplina a matéria e compreende, no ar-
– relações da Psicologia e a tigo 11, que:
prática pedagógica.

A educação de trânsito é a atividade direcionada


Relação instrutor/candida- à formação do cidadão como usuário das vias e
to rodovias, por meio do aprendizado de normas e
Capacitação condutas de respeito à vida e ao meio ambiente,
16 horas/ 180 horas/
para instrutor – atribuições do instrutor: visando sempre o trânsito seguro, a saber:
aula aula
de trânsito instrutor como educador; I – publicidade institucional;
II – campanhas educativas;
– princípios éticos da rela- III – realização e participação em palestras, cur-
ção instrutor/candidato ou sos, seminários e eventos relacionados ao trân-
condutor; sito;
IV – atividades escolares;
– direitos, deveres e res- V – elaboração de material didático-pedagógico;
ponsabilidade civil durante VI – formação e qualificação de profissionais do
Sistema Nacional de Transito – SNT;
as aulas de direção veicu-
VII – formação de agentes multiplicadores.
lar; interdependência entre
ação profissional e princí-
pios éticos.
Nesta seção referenciamos tópicos de educação para o
– Relacionamentos no
Trânsito. trânsito, a fim de disseminar a legislação relacionada, os parâ-
Fonte: Elaborada pela comissão ad-hoc de especialistas do metros éticos e técnicos a serem seguidos, informando inclusive
CFP. as formas de subsídio financeiro para que se efetivem. Psicólo-
gas e psicólogos do trânsito têm um campo vasto de trabalho e

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uma trajetória ainda para ser percorrida nesse importante pilar A formação sistemática em Psicologia do Trânsito na gra-
do trânsito em que a Psicologia importa, conforme identificamos duação precisa ser impulsionada. Apenas em algumas poucas
nos conteúdos dos cursos (Tabela 10). Na próxima seção abor- instituições oferecem a disciplina Psicologia do trânsito ou dis-
daremos as possibilidades de atividades docentes. ciplinas que contemplam discussões sobre mobilidade humana,
trânsito e transporte. Nesse sentido, mister se faz destacar algu-
mas iniciativas conduzidas por docentes e alunos de graduação
3.3 - Atividades docentes e de pós-graduação no território brasileiro. Podem ser listadas,
como exemplos, a Universidade de Brasília (UnB), a Univer-
sidade Federal do Paraná (UFPR), a Universidade Federal do
A docência se apresenta como um importante fazer da Maranhão (UFMA), a Universidade Federal de Santa Catarina
psicóloga e do psicólogo do trânsito, mais especificamente no (UFSC) e Universidade de São Paulo (USP). Essas instituições
ensino superior, na pós-graduação ou nas capacitações. É nesses possuem projetos de pesquisa permanentes, seja na interface
espaços que ocorrem a formação e a qualificação do (futuro) com a Psicologia Ambiental, com Psicologia Social, com a Edu-
profissional na seara da mobilidade humana. A pesquisa do Cre- cação, com a Psicologia Geral, com a Psicofísica, com a Psico-
pop (CFP, 2010) evidenciou que apenas 13,7% dos respondentes logia do trabalho e ergonomia. Existem outras que aprofundam
realizavam atividades docentes, dentre elas, por meio de: pales- seu campo de pesquisa na padronização de testes psicológicos
tras e seminários (36,8%), aula e/ou supervisão de estagiários para a realidade brasileira – é o caso da Universidade São Fran-
(18,4%), aula/curso de pós-graduação lato sensu (especializa- cisco (USF) – e na avaliação psicológica e Psicologia Ambiental,
ção, 15,8%), aula no ensino médio (10,5%), aula para estagiá- como a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
rios de outras disciplinas (10,5%) e aula/curso de pós-graduação
Geralmente, para uma parcela dos graduandos o contato
stricto sensu (mestrado e/ou doutorado, 7,9%). Parece haver,
inicial com a área é feito a partir de disciplinas como Introdução
portanto, um campo a ser explorado, porém que exige elevado
à Psicologia ou Psicologia, ciência e profissão, para que conhe-
grau de formação que requer, dentre outras coisas, interesse e/
çam as várias áreas da nossa profissão por meio de entrevistas de
ou vocação. Nesta seção abordaremos a docência na graduação,
campo, nas quais perguntam, por exemplo, o que é a área e qual
na pós-graduação (especialização, mestrado e doutorado), assim
o papel do psicólogo. Isso é muito bom, mas é preciso fazer mais
como alguns temas de ensino/pesquisa e desafios na pesquisa
para cativar os alunos. Quanto aos estágios supervisionados em
acadêmica. Finalizaremos com uma amostra de livros e mate-
Psicologia do trânsito, nossa percepção é que a quantidade de es-
riais em português que podem ser usados com a finalidade de
tagiários é muito baixa, se comparada a outras áreas tradicionais
montar disciplinas e cursos.

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da Psicologia, mesmo que nossa área possua longas raízes (veja tornam o profissional mais preparado para construir suas respos-
Eixo 2). Muitos futuros psicólogos e psicólogas não escolhem tas (políticas, teorias específicas da área, métodos de pesquisa),
essa área para trabalhar ou pesquisar, afinal, não se pode querer concentrando disciplinas no processo de avaliação psicológica,
o que não se conhece. Contudo, há muito que fazer e criar para especialmente na testagem (aprendendo vários testes, não raro
incentivar as/os alunas/os; poderemos nos surpreender com o sem a compreensão do porquê de avaliar determinado processo
quanto isso pode ajudar a oferecer bases para que um conjun- psicológico; veja a psicogênese do comportamento no trânsito
to maior de profissionais se interesse verdadeiramente pela área neste Eixo 3). Não se pode perder de vista a formação gene-
de mobilidade humana e trânsito. Veja, por exemplo, Alchieri, ralista do especialista; afinal, a psicóloga e o psicólogo serão
Silva e Gomes (2006), que compartilharam uma experiência de especialistas em Psicologia do trânsito, e não em avaliação psi-
estágio em um Detran, incluindo o planejamento, as ações e os cológica, embora estes conhecimentos sejam muito importantes.
resultados obtidos. As especializações têm um grande papel, que não pode ser res-
No caso da pós-graduação lato sensu (especialização), as trito; portanto, devem focar em dar ferramentas a psicólogas e
oportunidades de formação ampliaram-se a partir de 2008, mas psicólogos para construir suas respostas, de modo a ajudá-los a
não por uma necessidade reconhecida pelos profissionais, e sim ampliar o campo profissional, que ainda está muito fechado ao
por uma obrigatoriedade do Contran, conforme já abordamos. mercado das clínicas.
A Resolução nº 267/2008 estabelecia que, a partir de 2013, só Quanto à pós-graduação stricto sensu (mestrado e dou-
poderiam realizar avaliação psicológica de motoristas os profis- torado), a quantidade de psicólogas e psicólogos interessados
sionais com o título de especialista na área. Isso repercutiu na é muito baixa, infelizmente – embora o Brasil tenha boas ins-
ampliação do mercado profissional para os docentes de Psicolo- tituições e pesquisadores capazes de oferecer uma formação de
gia do trânsito. Contudo, na falta de profissionais com elevada qualidade aos interessados, desde a perspectiva da Psicologia
formação e com esse perfil para ensinar, psicólogas e psicólogos Ambiental, passando pela Psicologia Social, Experimental até a
de áreas afins encontraram à época um vasto campo de trabalho. avaliação psicológica. De fato, é durante esta formação que as
Atualmente esse mercado de especializações diminuiu a oferta, pesquisas atuais têm sido produzidas. A psicóloga e o psicólogo
mas ainda existe, agora mais ajustado às demandas de novos do trânsito interessados na docência devem seguir esse percurso
interessados, em vez da demanda reprimida de outrora por conta a fim de formar outros futuros bons colegas.
da referida obrigatoriedade. Quanto a pesquisas, estágios e projetos de extensão, é pos-
Algumas especializações em Psicologia do trânsito não sível encontrar trabalhos de graduação (projetos de extensão e
contemplam discussões importantes da área ou atividades que iniciação científica, além de trabalhos de conclusão de curso),

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de mestrado e doutorado relacionados aos seguintes temas: ins- quanto de fora dela. Isso é importante porque, como temos dis-
trumental da avaliação psicológica; inclusão de educação no cutido, a mobilidade humana e o trânsito são tópicos interdisci-
trânsito nas escolas; álcool e direção automobilística; saúde do plinares. A este respeito, reforçamos que o extenso material re-
motorista de transporte coletivo; representações sociais sobre o ferenciado ao longo dos Eixos deste documento é um rico ponto
automóvel e estereótipos de gênero na direção; desengajamento de partida. Uma vez que foram aqui compilados em função dos
moral; hábito de dirigir; escolha do modo de transporte; tecno- nossos objetivos, eles podem ser objetos de leitura sistemática
logias e educação para o trânsito; acessibilidade; mobilidade de posteriormente em cursos, disciplinas, grupo de estudo, assim
pedestres e ciclistas; epidemiologia dos acidentes de trânsito e como em projetos de pesquisa e de extensão na comunidade.
relatos de intervenções. Além do clássico livro do professor Reinier Rozestranten,
Um desafio que se coloca para a academia no que tange às Psicologia do Trânsito: conceitos e processos básicos (1988), desta-
teorias da Psicologia e à própria Psicologia do trânsito, de for- camos obras brasileiras organizadas por acadêmicos e que discutem
ma abrangente e interseccional, é pensar possíveis articulações no o comportamento de pedestres, motoristas, testes psicológicos, edu-
debate acerca da mobilidade humana com os direitos humanos, cação infantil etc.: Psicopedagogia do Trânsito (ROZESTRATEN,
políticas públicas, educação para o trânsito e com o sistema de 2004), livro que aborda princípios psicopedagógicos da educação
transporte, pensando ainda na segurança pública articulada com a transversal e é voltado para professores do ensino fundamental; Com-
saúde mental. Outro desafio é melhorar não só a quantidade, mas portamento humano de trânsito (HOFFMANN; CRUZ; ALCHIE-
a qualidade das pesquisas, especialmente seus delineamentos. No RI, 2003). Mais quatro livros foram lançados depois de 2010; em
que se refere às psicólogas e aos psicólogos que já trabalham na 2012 foi organizado pelo professor Fábio de Cristo o livro Psicologia
área, por sua vez, especificamente na avaliação de motoristas, e trânsito: reflexões para pais, educadores e (futuros) condutores; em
muitos não se sentem qualificados para fazer pesquisa. Assim, em 2015, Pesquisas sobre comportamento no trânsito foi organizado por
geral, as psicólogas e os psicólogos do trânsito têm se dedicado Harmut Günther, Fábio de Cristo, Ingrid Neto e Zuleide Feitosa, tra-
muito mais à profissão do que à ciência que fundamenta sua práti- zendo uma série de capítulos com resultados de diversas teorias do
ca. Aquele interessado na docência deve associar e esse trabalho a campo da Psicologia relacionadas ao trânsito e ao transporte. A obra
pesquisas e/ou extensão, que são os motores do desenvolvimento Projetos de educação para o trânsito, financiada pela Coordenação
da ciência e motivadores para os alunos aprenderem fazendo. de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e publi-
A literatura nacional e internacional de livros e de ma- cada em 2016, foi organizada pela professora Alessandra Bianchi
teriais didáticos tem crescido, sendo fundamental conhecê-los (UFPR) e possui uma série de relatos de intervenção da Psicologia
para mostrar, por exemplo, a riqueza da área, tanto da Psicologia na área da Educação, abrangendo crianças e adolescentes e os níveis

REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 148 REFERÊNCIAS TÉCNICAS PARA ATUAÇÃO DE PSICÓLOGAS(OS) EM 149
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de ensino fundamental, médio e superior. Nessa obra, observa-se um Portal de Periódicos da Capes/MEC <http://www.periodicos.
esforço de profissionais de diversos campos do saber acadêmico na capes.gov.br/>. Existe também o Portal de Psicologia do Trân-
construção de alternativas de intervenção na área da Educação em sito <http://www.portalpsitran.com.br/>, que concentra diversas
conjunto com a Psicologia, tais como Letras, História, Direito, Peda- informações, eventos e referências (artigos, relatórios técnicos,
gogia, Química, entre outros. dissertações de mestrado, teses de doutorado) específicos sobre
No ano de 2017, o Manual de Psicologia do Trânsito, orga- mobilidade humana, trânsito e transporte. O Portal Psitran pos-
nizado por Roberto Cruz, Paulus Wit, Caroline de Souza, introdu- sui um grupo de discussão por e-mail, a Rede Latino-Americana
ziu uma série de discussões e projetos implementados por psicólo- de Psicologia do Trânsito – Relapsitran, do qual é possível fazer
gas e psicólogos do trânsito. Outro livro publicado no mesmo ano parte gratuitamente. O grupo tem o objetivo de trocar informa-
foi o primeiro volume de Psicologia no tráfego: questões e atua- ções diversas sobre a área na América Latina. Para finalizar,
lidade, uma produção da Associação Brasileira de Psicologia do acreditamos que, com todo o material apresentado nesta seção
Tráfego (Abrapsit). Deve ser lançado em breve o livro Psicologia e ao longo desta Referência, é possível o docente inspirar e des-
do trânsito e transporte: manual do especialista, sob organização pertar a vocação em muitos futuros psicólogos para trabalhar no
de Fábio de Cristo, colaborando com a prática da psicóloga e do trânsito, tão necessária para desenvolver a área, realimentando o
psicólogo em clínicas psicológicas, empresas dos setores público seu processo de expansão.
e privado, consultoria e academia. Em suma, esperamos que essas
leituras tragam à psicóloga e ao psicólogo do trânsito questões e
problematizações acerca dos desafios e oportunidades de inter-
venção que ainda temos pela frente.
O interessado ou atuante na docência poderá beneficiar-se,
ainda, de vasto e rico material didático e relatórios (em português
e em outros idiomas) no site da Organização Pan-Americana de
Saúde <https://www.paho.org/bra/>12. Destacamos ainda que
outros materiais, como artigos científicos, podem ser acessados
gratuitamente pelo SciELO <http://www.scielo.br/>, PePSIC,
site específico de Psicologia <http://pepsic.bvsalud.org/>, e pelo
12 O link direto para as publicações é: <https://www.paho.org/bra/index.
php?option=com_docman&view=list&layout=default&slug=acidentes-e-vio-
lencias-086&Itemid=965>.

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