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Neide Miele
O percurso de um símbolo
Neide Miele¹
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(Exemplos de lingam encontrados na Índia)
2
debate acerca de seu papel ou função, então eles foram simplesmente guardados e
esquecidos em um porãodo Museu Britânico5.
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Na língua fenícia a palavra nun significa “peixe”. Em egípcio a palavra
nun é usada indistintamente para “peixe e água”. A divindade Nun terá, portanto,
o significado de águas primordiais, bem como o de peixe, que nada nestas águas.
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jovem bonito e alado (como um cupido), que tem um estandarte em forma de
peixe. Segundo Heinrich Zimmer8, Kama, além de denotar o nome da divindade,
teria um significado no sânscrito enquanto substantivo - que denota toda a gama
de experiências possíveis no âmbito do amor, sexo, gozo e prazer sensual. A este
respeito, temos o célebre texto do Kama sutra, de Vãtsyayana - obra que apresenta
o tema erótico de uma perspectiva técnica e secularizada (como um manual), mas
que passou a ser interpretado no ocidente como exemplo de “sensualidade
despudorada” da tradição hindu.
Mas, para quem não pode tirar a prova dos nove lá em Nápoles, o poema
de Giuseppe Gioachino Belli (Roma, século XIX) nos dá uma lista de apelidos
para o membro viril masculino, entre os quais, inguilla, versão napolitana para
enguia, tido como “consolo de mulher”¹².
Er padre de li santi
Er cazzo se po di´ radica, ucello,
(e a lista continua...)¹³
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O símbolo do peixe não é apenas fálico, pois ele guarda o mesmo
simbolismo do lingam, ou seja, ele traz yoni dentro de si, como o demonstram as
imagens da deusa celta Sheela-na-Gig, encontrada em inúmeras igrejas e castelos
irlandeses. Embora sua tradição seja milenar, a primeira menção escrita que se
tem do nome desta deusa provém de uma obra publicada em 1840 pela Royal Irish
Academy, ao analisar esculturas encontradas nas igrejas de Rochestown e
Kiltinane, ambas na Irlanda. Porém a escultura mais famosa encontra-se no
castelo de Kilpeck (a primeira) no oeste da Inglaterra14.
Com suas mãos segurando a vagina, a deusa dá luz a todo ser que vem ao
mundo. Neste sentido, a vagina é um portal para sair à luz. As palavras “peixe” e
“luz” são intercambiáveis em inúmeras tradições. Em francês arcaico a palavra
luce significa “peixe”, assim como a palavra latina locus.15 Estes significados
cruzados entre “luz e peixe” nos remetem a diversos mitos, entre eles o da
divindade suméria Oannes.
Segundo Berósis, sacerdote caldeu do século III A.C., Oannes foi um ser
fantástico, metade peixe e metade homem, que emergiu do oceano há mais de
5.000 anos atrás e transmitiu aos sumerianos as letras, as artes e as ciências. Este
deus, ou herói civilizador, foi fundamental para a constituição do sacerdócio na
mesopotâmia, cujos representantes maiores usavam o manto em forma de peixe,
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que foi sendo modificado ao longo dos milênios, mas que se conserva na mitra
usada pelo clero da Igreja Católica Romana até hoje.
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Existem diversas explicações sobre o motivo para Vishnu ter vindo ao
mundo na forma de peixe. Nos Vedas, coube a Matsya resgatar o legislador Manu
do dilúvio, entregando-lhe os Vedas, o conhecimento sagrado. Em textos
posteriores aos vedas, como o Bhagavata-Purana21 conta-se que o dia de Brahma
estava chegando ao fim, e aproximava-se o momento do universo ser destruído
para ser novamente reconstruído.Mas, enquanto Brahma dormia, o Demônio
Hayagriva roubou os Vedas e os levou para o fundo do oceano. Os vedas, no
entanto, eram absolutamente necessários para a tarefa de recriação do universo, e
caberia a um deus-peixe resgatar este conhecimento nas profundezas do oceano.
Assim, Vishnu teria encarnado na forma de Matsya, lutado e derrotado Hayagriva.
Os Vedas foram devolvidos à Brahma através do deus-peixe que traz o
conhecimento sagrado à superfície. Nas duas versões do mito, temos o peixe
como salvador e portador do conhecimento necessário a continuidade da vida.
Vale lembrar que na tríade hindu, cabe a Vishnu o papel da preservação do
universo e de sua ordem, dando continuidade ao trabalho da criação de Brahma.
Segundo esta mitologia, o Yoga teria sido revelado por Shiva à sua
consorte Parvati, na beira de um rio. A mulher, desatenta da importância do
presente que estava recebendo, adormeceu profundamente. Neste momento, um
peixe, embevecido com as palavras do Maha-yogi Shiva, ergue-se acima da
superfície do rio e passa a escutar as palavras do mestre. Ao observar que a
criatura aquática havia se tornado seu discípulo, Shiva resolve transformá-lo em
homem.
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Estabelece-se assim, uma ligação estreita de Shiva com o peixe – que se
torna portador do conhecimento transcendental do Yoga. O peixe aparece como
um terceiro elemento neste mito, posicionando-se entre os princípios masculino e
feminino (Shiva e Parvati). Cabe ao peixe a função de receptáculo e ao mesmo
tempo de disseminador daluz do Yoga, papel que cumpre após sua transmutação
em ser humano.
Nos dois exemplos que seguem temos os portais das catedrais de Santo
Domingo, na Espanha, e Chartres, na França.
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O vésica piscis está na origem do arco gótico, maravilha talhada em pedra
nas catedrais medievais. Este conhecimento hermético foi passado pelos gnósticos
alexandrinos aos integrantes das primeiras cruzadas que se dirigiram à Jerusalém
paralibertar a Terra Santa do jugo muçulmano. De volta à Europa os participantes
dascruzadas deram início a um ciclo de mudanças das quais fazem parte, o
trovadorismo, o amor cortês, o mito do graal, o catarismo e a construção das
catedrais góticas.
Na Idade Média seria impossível revelar para os não iniciados que o portal
de uma catedral continha em si os símbolos do falo e de Yoni em união sexual.
Nos dias atuais esta revelação talvez ainda choque muita gente.
Mircea Eliade viveu alguns anos na Índia, o que lhe valeu um grande
aprendizado. Em suas palavras, na tradição shivaísta a união sexual deixa de ser
um ato erótico ou simplesmente carnal. Sem negar o prazer, ela é uma espécie de
sacramento, assim como beber vinho num ritual não é ingerir uma bebida
alcoolizada, mas partilhar de um ato sagrado através de um ato simbólico. Diz
Eliade, “na Índia vi mulheres tocando e decorando um lingam de pedra,
anatomicamente bastante exato. As casadas, pelo menos, não podiam ignorar sua
função fisiológica, então compreendi a possibilidade de ver o símbolo para além
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de sua representação. O linga simboliza o mistério da criação que se manifesta
em todos os níveis cósmicos. A epifania da vida era Shiva, não o membro físico. O
símbolo revelou-me o mundo dos valores espirituais. O lingam é o símbolo da
sagrada união entre feminino e masculino. Enquanto a palavra informa, o
símbolo revela. O símbolo é um modo não-verbal para transmitir verdades
eternas”27.
Este ritual transmite a idéia de geração e nutrição da vida, mas não deixa
de ter para nós, ocidentais, uma forte conotação sexual e provavelmente para os
hindus também. A diferença é que os shivaístas entendem que é ritualizando o
sexo, e não o reprimindo, que se adquire a força física e mental para controlá-lo e
descobrir o que nele há de divino. O puritanismo cristão reprimiu o sexo como
forma de controle social e econômico sobre os adeptos, o que não significa
possuir controle sobre os próprios instintos, embora isto jamais tenha sido
assumido pela Igreja. A proibição do casamento entre os padres católicos romanos
tem mais a ver com a disputa na transmissão dos bens materiais acumulados,
herança, do que com a evolução espiritual.
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Ungir o lingam é um ritual cuja tradição se perde na noite dos tempos, não
sendo possível identificar sua origem, mas o fato é que ele pode ser encontrado do
Oriente ao Ocidente e vice-versa. E este é realmente o problema. Sabemos que
nossa cultura tem origem nas migrações indo-arianas, entretanto, como identificar
a direção migratória? Ela ocorreu das estepes do norte da Europa para a Índia ou o
inverso?
Seria digressão entrar nessa discussão, porém ela não poderia deixar de ser
mencionada, pois que é essencial na discussão da migração do símbolo
fálico/yônico do Oriente para o Ocidente, ou vice-versa. Para além desta discussão
entre os arqueólogos, o fato é que o sítio neolítico de Urartu32, no sudeste da
Turquia, revelou a existência de um povo cujo território se estendia desde os
atuais Irã, Irak, Armênia e Síria até a Índia. Tais achados revelaram a proximidade
cultural entre assírios e hindus, esquentando o debate teórico sobre a direção das
grandes migrações indo-arianas.
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Alain Daniélou, um francês de família tradicional que trabalhou por mais
de vinte anos na Índia, lecionando em universidades e dirigindo o setor de
manuscritos de grandes bibliotecas da Índia e da França, sustenta a teoria que o
culto ao deus Shiva transferiu-se da Índia para a Europa sob a forma de Dionísio.
Nesta migração o culto foi perdendo seu caráter sagrado, expandindo o lado
profano, culminando nas bacanais romanas.
A palavra Dio-nísio tem sua origem na tradição shivaísta. Nisa é tido como
o lugar de infância de Dionísio. Nisah é um epíteto de Shiva, que significa
“supremo”. Nisam é a beatitude, nisâ a alegria, nisai as ninfas. Nisa é também a
Montanha Feliz, o equivalente ao Paraíso terrestre. O significado do nome
Dionísio é, provavelmente, Deus de Nisa, onde nisa é a forma feminina da palavra
nysos, que entra na composição do nome do deus, inexplicável na língua grega, a
não ser pelo nome da Montanha sagrada. Os gregos acreditavam na existência da
Montanha de Nisa e estas foram enumeradas em aproximadamente dez,
distribuídas desde o Cáucaso à Arábia, da Índia à Líbia. “Há uma Nisa, alta
montanha, onde florescem as florestas muito além da Fenícia.” (Hinos
homéricos)34.
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A anatomia do membro viril masculino esculpido em pedra no sítio de
Filitosa não deixa dúvida quanto ao simbolismo dos gigantescos menires ali
plantados. Teriam eles o mesmo significado que o lingam hinduísta, a sagrada
união do falo com yoni? Teriam estas pedras sido usadas para um culto
exclusivamente priápico (falocrático), um culto ao pênis pura e simplesmente, ou
estariam simbolizando algo da ordem do sagrado como no Egito antigo ou na
Índia?
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Shiva monta o touro Nandi, que dará origem a inúmeros rituais que foram
se processando ao longo do tempo chegando até nossos dias na forma de festas
populares, danças e touradas. Shiva é habitualmente representado pelo lingam.
Sendo deus da criação ele se mostra em sua eterna relação com Shakti, a perfeita
união do feminino e do masculino.
Conta o Linga Purana que quando o universo foi invadido pelas águas,
Vishnou e Brahma começaram uma disputa, cada um afirmando que era o maior
dos deuses. De repente surge uma imensa coluna de fogo saindo das águas. Ela
era tão alta que parecia não ter fim. Os dois deuses decidem medir a altura da
coluna. Vishnu se transforma em javali e mergulha nas águas enquanto Brahma
toma a forma de um ganso para voar o mais alto possível. Mas nem um nem outro
puderam atingir as extremidades da coluna incandescente. Então Shiva aparece e
explica que se trata de um lingam, símbolo dele mesmo e do seu poder. Brahma e
Vishnu reconhecem a supremacia de Shiva.
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As imagens de Shiva revelam ainda outros de aspectos da personalidade
multifacetada desta divindade. O Deus criador do Yoga é freqüentemente
representado como grande asceta, que vive nas altas montanhas do Himalaia,
sempre sentado em estado meditativo. Mas Shiva é também o andarilho que
costuma a caminhar à noite pelas aldeias da Índia com o pênis ereto,
escandalizando e ao mesmo tempo despertando o desejo nas esposas dos
Brâmanes celibatários que vivem nas florestas36. Embora estas representações -
como asceta meditativo e como andarilho de pênis ereto – possam parecer
contraditórias aos nossos olhos ocidentais, na Índia elas convivem perfeitamente
dentro deste imaginário mítico de Shiva.
Tal convivência parece ter sido posta em prática pela tradição Pâshupata,
uma importante fase da comunidade religiosa do shivaismo, que foi reconhecida
no texto do Mahabarata como uma das cinco tradições religiosas mais importantes
de sua época, as outras seriam as religiões dos Vedas, o Yoga, o Sânkia, a
Pâncarâtra37. Acredita-se que a ordem religiosa Pâshupata foi fundada por um
asceta chamado Lakulisha, que teria vivido entre os séculos I e II d.C. Mas já no
período pré-budista há registro de ascetas adoradores de Shiva dos quais o
movimento poderia ter se originado.
Assim, na tradição shivaista, o falo ereto pode ser visto como sinal de uma
prática de transmutação. E os seguidores da seita dos Pâshupatas teriam levado a
diante tal prática. Mas, além de simbolizar a transcendência, a demonstração
fálica pode ser entendida como uma forma de causar escândalo na sociedade: ao
agir de forma não-convencional, o praticante tende a desvencilhar-se
definitivamente de todas as castas e todos os carmas da vida cotidiana,
transcendendo os paradigmas do bem e do mal.Torna-se assim, ainda mais livre
para se dedicar a auto-transcendência.
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Dionísio repassou os conhecimentos adquiridos e o povo passou a cultuá-
lo como deus do vinho. Ensinando sua arte, Dionísio vagou pela Ásia, foi até a
Índia e chegou à Frígia, onde a deusa Réia, mãe dos deuses, o purificou e lhe
ensinou os ritos de iniciação. Na sua volta à Grécia, Dionísio puniu quem se
interpôs em seu caminho e triunfou sobre seus inimigos além de se salvar dos
perigos que Hera sempre procurava colocar em seu caminho. Mais tarde ele
resgatou a mãe Sêmele e a levou ao Olimpo, onde Zeus a transformou em deusa.
Dionísio casou-se com a linda Ariadne, filha do rei Minos, de Creta. Conta
o mito que, apaixonada por Teseu, Ariadne o ajudou a derrotar o Minotauro e
encontrar a saída do terrível Labirinto. Vitorioso, Teseu partiu levando-a em sua
companhia, porém abandonou-a logo depois na ilha de Naxos. Vendo-se sozinha,
Ariadne entregou-se ao desespero. Afrodite apiedou-se dela e consolou-a com a
promessa de que lhe daria um amante imortal, em lugar do mortal Teseu.
18
(Afresco encontrado na Casa dei Vettii, Pompéia)
Para João Ângelo Oliva Neto, autor de Falo no Jardim39, Priapo veio do
Egito, passou pela Trácia e chegou à Grécia. O culto provavelmente surgiu no
século IV na Ásia Menor, às margens do Helesponto, estreito que fica na região
da Trácia, que corresponde ao atual estreito de Dardanelos, na Turquia. Da Trácia
o culto passou ao mundo grego por meio das relações comerciais e culturais,
espalhando-se por todo o Mediterrâneo.40
Priapo também podia ser denominado uccello, outro nome para o deus e
apelido para o sexo masculino, ainda de uso corrente entre os italianos. O nome se
dá devido à forma fálica do osso da escápula de certos pássaros.
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(Afresco Antioquia) (Afresco de Pompéia no Museu de Nápoles)
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Essa concepção prazerosa da sexualidade terá seu fim decretado com o
advento do cristianismo. Como diz Oliva Neto, contra o falo, a cruz.43 A
imposição da cruz vai escamotear a capacidade dos seres humanos de se
rejubilarem com o sexo, tornando-o ato pecaminoso. Ao ocultar o falo
desproporcional e abundante com que se celebra a vida é oferecido em troca uma
relação pudica, sem erotismo, regrada pelo puritanismo e voltada apenas para a
procriação. Esse movimento de reconfiguração do símbolo pelo cristianismo fez
com que a percepção do erótico se transformasse em algo proibido, vexatório,
nojento, pecaminoso, passível de ser feito apenas com outras mulheres, jamais
com a esposa, confinada aos rituais para a procriação. Seriam necessários alguns
séculos até que Freud reabrisse novas interpretações da sexualidade.
21
1 Docente do Departamento de Ciências das Religiões, do Programa de Pós-
Graduação em Ciências das Religiões, da UFPB.
7 Fonte: http://www.yogaencantada.com.br/artigos
8 Cf. ZIMMER, Heinrich Robert. Filosofias da Índia. Texto compilado por Joseph
Campbell. São Paulo: Palas Athena, 1986, p. 116
18 ELLIS, Ralph. Jesus: O último dos faraós. SP: Madras, 2008, págs. 195 e 216.
22
20 Cf. SINGH, Dharam Vir. Hinduísm – an introduction. Jaipur ( India): Surabhi
Prakash, 2005, p. 35.
23
30 GIMBUTAS, M. Os Baltas. Portugal: Ed. Rio Neris, 1992.
31 http://pt.wikipedia.org/wiki/Indo-Iranianos
38 Idem, p. 324
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