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O PAU-DE-SELFIE E A AUTOFICÇÃO

(parte 1)

Como todo mundo com mais de dez anos de idade, conheci as agora arqueológicas
câmeras fotográficas, analógicas e digitais. Toda vez que desejasse me incluir em
minhas próprias fotos precisava pedir a terceiros ou programar um timer. O acaso
imperava, de um jeito ou de outro, e me restava torcer para não piscar na hora errada,
não escolher uma angulação desfavorável em relação à luz e não ter o cenário invadido
por estranhos. Ou seja: era torcer para que o mundo não se manifestasse do jeito que ele
costuma ser, imprevisível e imperfeito, mas sim do jeito que eu gostaria que ele fosse.
Já sabemos que esse problema acabou há anos com o advento dos smartphones, mas
agora o passado recebeu o golpe fatal: a sensação do verão brasileiro é o pau-de-selfie,
um bastão retrátil que se conecta aos telefones celulares e permite que as selfies sejam
disparadas a distâncias superiores ao comprimento de um braço. Afinal, a um metro da
lente, e com um cenário mais amplo e interessante logo atrás, todo mundo fica mais
bonito, certo?

Da mesma forma, como todo mundo com mais de dez anos, conheci o universo dos
livros de ficção. Alguém lembra? Eram histórias inventadas, ao que parece, do nada.
Surgiam da imaginação do escritor, ou eram adaptadas da experiência de terceiros,
geralmente pessoas distantes, colhidas na imprensa ou de relatos orais. Nesse tempo,
Amos Oz já era judeu, mas seus personagens judeus não eram versões tortas do próprio
autor ou de seus amigos e familiares. Clarice Lispector já era, obviamente, uma mulher,
mas as mulheres que povoavam sua obra não eram Clarices que se disfarçavam para
conversar com baratas ou galinhas.

Ainda não temos nada parecido com uma caneta-de-selfie para facilitar a tarefa de
escrever sobre nosso próprio umbigo, mas não resta dúvida que, hoje, oito em cada dez
livros podem ser encaixados, com pouco esforço, na categoria de autoficção. E é esta a
incrível polêmica da qual temos nos ocupado ultimamente. O livro do Chico Buarque é
ou não um romance autobiográfico? O Karl Ove de dentro do livro é o mesmo
Knausgård que está do lado de fora? O que há de criação e o que há de fatalmente
vivido nas histórias de Sérgio Sant’Anna, Alejandro Zambra ou Chimamanda Ngozi
Adichie?

Meu primeiro livro, O frio aqui fora, baseou-se num pontapé autobiográfico, a mudança
radical do mundo corporativo para a literatura. Ao longo de um ano respondi
incontáveis vezes a perguntas sobre o que havia de biográfico na história. Aquele
passeio pela cidade realmente aconteceu? Aquela menina que aparece no meio da trama
é exatamente quem estou pensando que é? E sua mãe, ficou muito brava com aquela
descrição?
Você já entendeu o ponto: impossível dissociar as discussões sobre ficção e realidade do
advento dos paus-de-selfie que invadiram, literalmente, nossas praias. São partes do
mesmo fenômeno: a era do individualismo e do narcisismo, turbinada pelas novas
tecnologias, com destaque para a internet. A linha pontilhada entre o público e o
privado, fronteira paulatinamente ignorada ao longo do século passado, rompida
definitivamente pelo avanço pantagruélico do eu sobre o nós, foi irremediavelmente
estraçalhada pelo advento das redes sociais, nossas vitrines de ego-personagens. Quer
falar sobre autoficção? Assista a um reality show ou leia uma timeline no Facebook. O
que há de natural naqueles personagens com RG? O que há de intencional nas paixões e
alegrias roteirizadas, editadas e reeditadas que postamos diariamente? É tudo real mas,
já sabemos: é tudo ficção. Ou, se preferir: é tudo ficção, mas...

Duas obras publicadas em 2014 me ajudaram a colocar a discussão sobre autoficção


definitivamente na pasta de assuntos não-recicláveis: O que amar quer dizer, de
Mathieu Lindon, e O brilho do bronze, de Boris Fausto.

A continuação do artigo continua na próxima semana, aqui no blog da Cosac Naify.

O PAU-DE-SELFIE E A AUTOFICÇÃO

(parte 2)

Como dizia, durante as férias foi impossível ignorar o vaivém de banhistas com aquele
objeto estapafúrdio debaixo do braço, posando pateticamente para varas apontadas para
o alto. E, associando isso ao tema da autoficção, pensei em dois livros publicados pela
Cosac Naify. Na primeira obra, O que amar quer dizer, o francês Mathieu Lindon joga
luz sobre a amizade que desenvolveu com Michel Foucault nos últimos anos da vida do
filósofo. Na segunda obra, O brilho do bronze, o brasileiro Boris Fausto percorre os
anos que se sucederam à morte de Cynira, sua esposa. Nos dois livros o tema central é o
luto, e o fato de estabelecê-lo como guia da narrativa dá, a ambos, recortes típicos das
obras de ficção (ok, vamos imaginar que isso ainda exista...).

Lindon, ao longo da narrativa, poda boa parte de sua vida, limitando o foco aos poucos
anos de convivência intensa; as viagens da memória para antes ou depois deste período
são apresentados à luz da amizade, e até mesmo o relacionamento com o pai é
redimensionado em função da experiência com o amigo. Fausto, ainda que recorra a
flashes de memória menos recentes, utiliza a ausência de Cynira como um filtro que
modifica a leitura do mundo e das pessoas ao redor; tudo parece sobreviver a Cynira,
tudo é devir, e o sentido das coisas se relativiza. Sem doses excessivas de
sentimentalismo, os dois autores lançam mão de técnicas de escrita e de estilo com
qualidades suficientes para que, caso desejemos trocar Foucault por, digamos, Galant ou
Cynira por outro nome qualquer, nos sintamos como leitores de dois belos romances, e
que nada ficam a dever, em termos técnicos, à literatura de Patrick Modiano, ganhador
do Nobel de 2014.

Na verdade, Lindon e Fausto, ou pelo menos o Mathieu e o Boris que conheci a partir
dos livros, renderiam ótimos personagens para a típica ficção de Modiano: passeiam por
Paris ou São Paulo à sombra de suas perdas, negociando com a memória, buscando e
rebuscando o passado à caça de preenchimentos e sentidos, e tentando aplicar, no dia-a-
dia, a herança do outro que se foi. Para quem não conheceu pessoalmente Michel
Foucault ou Cynira, e para quem não desfruta do convívio dos autores, o que permanece
é a sensação de ter lido ótimos livros, com boas histórias sobre grandes personagens, e
com ressonância similar às provocadas pelas melhores experiências artísticas. Sim, são
livros de memórias colocados na prateleira da não-ficção. Mas, se por acaso fossem
esquecidos na prateleira de literatura, um leitor menos informado poderia lê-los como
ficção. E daí? Do ponto de vista da qualidade da escrita e do domínio da narrativa, qual
a diferença entre o personagem que existiu em carne e osso e o que (pretensamente)
nasceu da imaginação? As escolhas são similares: a dosagem das informações jogadas
aqui e ali, as opções de caracterização dos personagens e do ambiente, os níveis de
detalhamento dos acontecimentos. E, acima de tudo: o resultado é capaz de levar o leitor
até mundos insuspeitos e inesperados, como algumas de nossas obras literárias
preferidas.

O telejornalismo virou autoajuda (ou publicidade, vendendo lasanha congelada...), a


presidente Dilma e o Comendador (o personagem da novela das nove, não confunda
com algum envolvido na Operação Lava-Jato...) agora aparecem lado a lado na página
do UOL, como se votassem na mesma seção eleitoral, e nós estamos preocupados com
os limites da ficção? Logo da ficção? Muito bem: quanto da história da família Flaubert
se misturou ao drama da família Bovary? Quanto de Carolina, mulher de Machado de
Assis, foi parar nos olhos de Capitu? Não existia o Facebook, o Google, ou as mesas
literárias, e não confundíamos a vida com a ficção de um jeito tão automático, mas a
mistura sempre existiu. Seguramente em menor grau, mas, se todo bom artista respira
em compasso com o próprio tempo, o que poderíamos esperar?

É quando voltamos às selfies: o mundo hoje é um lugar com bilhões de centros, as


verdades absolutas se despedaçaram, o reflexo na literatura é tão forte quanto em outras
áreas das relações humanas. Falar de si mesmo agora é possível, tirar as máscaras e
colocar outras, espiar as culpas e pecados que no passado nos condenavam. Há um
processo de radicalização, sem dúvida, tanto do lado da criação quanto da percepção,
mas não creio que seja algo tão novo assim, e nem tão relevante, e muito menos
desconectado do que acontece em todo canto. Talvez a leitura se modifique em algum
aspecto quando tomamos conhecimento de que a história que estamos lendo nasceu de
uma história real, ok, positivo: mas não do ponto de vista da fruição estética.
O que amar quer dizer e O brilho do bronze são dois bons exemplos de como esse tipo
de discussão já pode ser superada, ou pelo menos retirada da bolsa de polêmicas.
Vamos dar um tempo na sessão Caras? Vamos voltar a falar de ficção? Foucault e
Mathieu, Cynira e Fausto. Capitu e Machado, Quixote e Cervantes. E daí, companheiro?
O importante mesmo é onde terminamos a leitura: em outro lugar, assustadoramente
familiar. Agora vá, dê um pulo lá fora, assuma o pau-de-selfie que você encomendou na
internet, tire uma foto daquelas de postar no instagram, ajuste a distância, treine o
sorriso, escolha seu filtro: sorria, você está vivendo sua vida. Esta é sua autoficção! E
você pensando que era coisa de escritor.

FLAVIO CAFIERO

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