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R i U o t'c.
t'c. for L E O N A R D O COIM BRA
RÉGIS JOLI
JOLI V E T
DI’.tANO
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MISTMMLISmS Prefácio de DELFIM SANTOS
A S O R / G E N S DO E X I S T E N C I A L I S M O
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I. MARTINI
MARTINI 10 HEIDEGGER
I I. J0 Â 0-P A U L 0 SART
SARTRE
RE
III.
III. CARLOS
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IV. GABRIEL MARCEL
«FILOSOFIA E RELIGIÃO»
Biblioteca fundada jior L E O N A R D O C O IM B R A
"V ^
1 -4 «S/ÍO
«S/ÍO T O M A
M A Z D E A Q U I N O » — I n i c i a ç ã o a o E ê t u d o d a S u a
F i g u r a e d a S u a O b r a — por João A meal,
meal, da Academia Portu
guesa da História, 3.“ edição .........................
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2 « o M U N D O I N V I S Í V E L » — A
«o Teologia Católica Perante o >
E s p ir
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is m o C o n t e m p o r â n e o — pelo Cardeal Alexis Lépicier, *
o. s. m., traduzido do inglês pelo professor Eduardo Pinheiro.
3." edição, br....................................................................., ................................ 40
5 — « F R E U D » — E s t u d o C r í ti
t i c o d a P s i c a n á l i s e — por Rudolph
A V er s, professor de Psicologia na Universidade Cató<i«a de
Washington, traduzido do inglês pelo professor Eduardo Pinheiro,
2 .a edição, br.............................
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6 — « B E R G S O N » — A I n t u i ç ã o C om í s i c a — por
om o M é t o d o n,a M e t a f ís ,,
Diamantino Martins, S. da F ac ul da de de Fi lo so fia , b r..... r............................... 30
8 — « À S D O U T R I N A S E X I S T E N C I A L I S T A S » — D e K i e r k eg eg a a r d
a S a r t r e - p o r Régis )olivet, da Universidade Cató'ica de Lião,
traduzido por Antóáio Vasconcelos e Lencastre. Prefácio,do Prof.
D r. De lfim S a n t o s .......
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.... . . 60
E m prepar
preparaçação
ão • ' '
« D E U S . O H O M E M , O U N I V E R S O » , sob a direcção de Jacque
Jacquess
Bivort de la Saudée, com a colaboração de /. Huby, H. de Lübac,
Jacque
Jacquess L eclerc, A . A mou,
mou , G . V andebr
andebroe oekk , etc.
«FILOSOFIA E RELIGIÃO»
Biblioteca fundada jior L E O N A R D O C O IM B R A
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o. s. m., traduzido do inglês pelo professor Eduardo Pinheiro.
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5 — « F R E U D » — E s t u d o C r í ti
t i c o d a P s i c a n á l i s e — por Rudolph
A V er s, professor de Psicologia na Universidade Cató<i«a de
Washington, traduzido do inglês pelo professor Eduardo Pinheiro,
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6 — « B E R G S O N » — A I n t u i ç ã o C om í s i c a — por
om o M é t o d o n,a M e t a f ís ,,
Diamantino Martins, S. da F ac ul da de de Fi lo so fia , b r..... r............................... 30
8 — « À S D O U T R I N A S E X I S T E N C I A L I S T A S » — D e K i e r k eg eg a a r d
a S a r t r e - p o r Régis )olivet, da Universidade Cató'ica de Lião,
traduzido por Antóáio Vasconcelos e Lencastre. Prefácio,do Prof.
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« D E U S . O H O M E M , O U N I V E R S O » , sob a direcção de Jacque
Jacquess
Bivort de la Saudée, com a colaboração de /. Huby, H. de Lübac,
Jacque
Jacquess L eclerc, A . A mou,
mou , G . V andebr
andebroe oekk , etc.
«FILOSOFIA E RELIGIÃO»
NOVA SÉR IE 8.° VOL.
AS
A S DOUTRINAS
EXISTENCIALISTAS
DE KIERKEGAARD A SARTRE
DO MESMO AUTOR
LIVRARIA EMMANUEL VITTE
Essai sur le Bergsonisme, 1931.
Études sur le Problème de Dieu dans la Philosophie contemporaine, 1932.
LÉglise du Christ, par J. Lippert (tradução), 1933.
Cours de Philosophie, 4.* edição, 1947.
Traité de Philosophie
Tom os I — Logique et Cosmologie.
Tomos
II — Psychologie.
III — M étaphysi
taphys i que
que.
IV — M orale
or ale..
Vocabulaire de la Philosophie. 1946.
UVRARIA DESCLÉE DE BROUWER:
UVRARIA DENOËL :
Saint
Sai nt A ugusti
ugust i n et le N éo-platonisme
o-platoni sme chré
chr éti en, 1932. (Premiado pela Aca
démie Française).
EDIÇÕES DE FONTENNE
FONTENNELLE
LLE :
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Ä S BOUTRINAS
MS
MSTMCIALI
DE
ALISTAS
KIER KEGAARD A SARTRE
Prefácio de
P r o f . D r . D e l f i m S a n t o s
1 95 3
LIVRARIA TAVARES
TAVARE S M ARTINS— PORT
PO RTO
O
O original desta obra Intitula-se
LES DOCTRINES EXISTENTIALISTES
T r a d u ç ã o p o r t u g u t s a de
ANT
ANTÓN
ÓNIO
IO DE QUEIR
QUEIRÓS
ÓS VASC
VASCON
ONCE
CELO
LOSS li LENCASTRE
Direitos exclusivos da
LI V R A R I A T A V A R E S M A R T I N S
para Portugal e Brasil
PREFACIO
A po
p o s içã
iç ã o exist
ex isten
enci
cial
al na filo
fi loss o fia
fi a con
co n tem
te m porâ
po rânn ea é conco n se-
se -
quência das situações limites do idealismo e do realismo,
demarcantes, durante séculos, do pensamento filosófico oci
dental. Tanto uma como outra destas tendências extremas, e
suas posições intermédias, formularam metodologicamente
esquemas de abstracção e de generalização que deixavam o
mistério da existência humana «entre parênteses», isto é, como
algo que deveria ser tratado posteriormente em função dos
resultados gerais das concepções idealistas ou realistas acerca
do mundo e das coisas. O primado da objectividade c a pas
sagem por subrepção do metodológico a ontológico, com a
desvalorização do « real» no idealismo e a desvalorização do
«ideal» no realismo, levaram inevitàvelmente a «existência» a
ser considerada atributo entre atributos, e o homem, demitido
da sua unicidade, a identificar-se como coisa entre coisas e a
aplicar a si um método de conhecimento que só às coisas
dizia respeito.
Já
J á K a n t m ostr
os trar
araa q u e a exis
ex istê
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ci a n ã o é p r edic
ed icaa d o . ou
determinação de qualquer coisa , e que as relações de todos
VIII PREFÁCIO
*
* *
? '
PREFÁCIO XV
D e l f im S a n t o s,
INTRODUÇÃO
não coincide de forma alguma com o absurdo de Sartre. Para este último,
o Ser é fundamentalmente absurdo (não é agora a altura de saber se esta
questão tem sentido), enquanto que, para Camus, o absurdo, tal como ò
define o M ythe de Si syphe, resulta do conflito entre o homem e o mundo,
das exigências racionais do 'homem lutando constantemente (e espe
cialmente em presença da morte) contra a irracionalidade do mundo.
A ideia do absurdo tem, portanto, aqui, um carácter sobretudo ético — ao
passo que, em Sartre, reveste um sentido ontológico.
(2) Cf. J. B e a u f r e t , A ptopos de 1'existentialisme em Confluences,
n.° 2, Março de 1945, pág. 192. P. D e s c o q s , UAthèisme de J. P. Sartre,
em R evue de Philosophie, 1946, págs. 39-40.
(’) Cf. S i m o n e d e B e a u v o i r , Littérature et Métaphysique em
Temps Modernes, 1.° de Abril de 1946, págs. 1159-1160. Há duas manei»’
ras de compreender e explicar a realidade metafísica. A primeira é pro*
curar «esclarecer o seu sentido universal em linguagem abstracta». A teo
ria toma forma objectiva e intemporal; o sistema exclui a íiipôtese d*
6 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
uma outra forma poder ser igualmente real; não são tomadas em conta a
subjectividade e a historicidade. A verdade, censitàriamente, coincide com
a expressão que o sistema lhe fornece. «Mas pode-se também incorporar
na doutrina o aspecto dramático, concreto e singular, da experiência e,
por consequência, admitir uma espécie de verdade temporal, que não é a
verdade em si e abstracta, mas a minha verdade, tal como a tenho vivido.
É esta a via existencialista — e por ela se explica que o existencialismo
tenha, muitas vezes, preferido exprimir-se por meio da ficção, tanto no
romance como no teatro (G. Mareei, Sartre, Camus). Trata-se, por isso,
de apreender o sentido da existência em plena existência, no próprio acto
pelo qual ela se realiza».
(*) Cf. R. T r o i s f o n t a i n e s , Le Choix de /. P. Sartre, Aubier, 1945,
pág. 39 sg.. R. C a m pb e l l , /. P. Sartre ou une Littérature philosophique,
Ed. P. Ardent, 1945, pâgs. 207-222. M . M e r l e a u - P o n t y , Phénoméno-
bg i e de la Perception, págs. ix-xii, pág. 496 sg.. P . F o u l q u e , Lexisten-
tialisme. Presses líniversitaires, 1946, pág. 7 sg..
INTRODUÇÃO 7
o conhecimento do mundo e, mais rigorosamente, do mundo
das Ideias, que é o verdadeiro real, do qual o homem em
si apenas encontra sombra ou reflexo. É por isso que
Jaspers não admite que se possa ver nos diálogos platónicos
uma forma primitiva, ou mesmo um esboço, do método exis
tencial, porque esses diálogos encaminham o pensamento
para um além da existência e não correspondem a uma ver
dadeira «comunicação existencial»; são trocas de ideias ou
de pontos de vista abstractos que não referem experiências
vividas.
Quanto a Santo Agostinho e a Pascal, ambos partem
da mais concreta experiência humana; mas, foi, sobretudo, o
patético das «Confissões» e dos «Pensamentos» que levou
a incluí-los entre os iniciadores do existencialismo. Todavia,
o patético é um critério muito ambíguo e conduz-nos fàcil-
mente àqueles processos oratórios que, segundo Kierkegaard,
são precisamente a antítese do verdadeiro existencialismo. Se
o patético definisse o existencialismo, então, Itambém Bossueí
deveria ser tomado como existencialista. É certo que os escri
tos de Nietzsche, de Heidegger e de Jaspers revestem um
carácter dramático e envolvem-se numa atmosfera de angús
tia. Entretanto, o pensamento francês, mesmo existencialista,
já não mostra a mesma tendência e a atitude de um Voltaire
perante a obra pascaliana, bem como as reservas de um
Valéry, são iniludível indício de uma repulsa pelo patético
que, de certo modo, parecia congénito ao temperamento fran
cês (5). De facto, a náusea de Sartre está muito longe da
entranhas que estão a ser atingidas. Dá-me vontade de dizer: não me toquem
abaixo da cinta — isso não c do jogo; a ferir, que seja só da cinta para
cima». (Estas reflexões encontram-se também em C h . d u Bos, Journal,
22 de Outubro de 1923, Corrêa, 1946, pág. 342). No Dialogue avec
A ndré Gide, Ch. du Bos acrescenta; «Temos de concordar com Valéry que
tanto o patético de Pascal como o do Hamlet de Shakespeare ultrapassam
por vezes a meta, desde que os encaremos sob o ponto de vista, não menos
austero, da estética e do gosto francês». Esta opinião de Ch. du Bos é
muito significativa. Cremos, entretanto, que ela dificilmente se poderá
aplicar a Pascal: a que propósito, efectivamente, é aqui chamado o
aspecto da estética e do gosto, com que Pascal evidentemente nunca se
preocupou ao lançar, só para si, sobre o papel, as reflexões que, na obra
que preparava, teriam de revestir indubitavelmente uma forma completa
mente diferente?
(*) H u b e r t J u in , ]. P. Sartre ou La condition humaine, ed. La
Boétie, Bruxelas, 1946, pág. 36.
INTRODUÇÃO 9
aspecto vivo do seu «existir», «uma verdade que interprete
a nossa nostalgia fundamental» (7). Tudo isto, de facto, nos
aproxima muito da posição de Heidegger — mas não da de
Kierkegaard e de Jaspers e, menos ainda, da de Santo Agos
tinho e de Pascal.
Pascal e Santo Agostinho nunca admitiram que a aná
lise do homem ou da consciência, como realidade singular e
concreta, pudesse ser suficiente para nos revelar o enigma
do nosso destino e para esclarecer a obscuridade da nossa
condição. Ambos pensam e dizem precisamente o contrário:
a análise da condição humana não pode, de forgia alguma,
levar à imanência. «Peço perdão, escreve Pascal em Entre -
tien avec M. de Saci sur Epictète et Montaigne, de me trans
portar assim para a teologia, em vez de me manter, perante
vós, dentro do campo da filosofia, mas, ao tratar-se de qual
quer verdade, é difícil abstrair da teologia, porque ela é o
centro de todas as verdades». É certo que Santo Agostinho
e Pascal exigem que a filosofia do homem comece pela inves
tigação da realidade humana. Mas tantos outros sustentaram
a mesma ideia, sem que até hoje alguém sonhasse fazer deles
existencialistas: poder-se-iam citar aqui,.de um modo geral,
todos os pensadores cristãos — e todos os .escritores que se
propuseram interrogar a si próprios sobre eles mesmos, Epic-
teto e Séneca, Montaigne e La Rochefoucauld, Vauvenar-
gues e Rousseau, Jouber,t e Amiel, ■— ainda que «o estúpido
projecto de se pintar a si próprio», de Pascal (8), os venha
a abranger com todo o seu desdém!
O facto é que parece haver duas correntes existencia
listas que não seguem exactamente no mesmo sentido. Kier
kegaard e Jaspers, que representam a primeira, não admitem
que a análise existencial possa conduzir a uma verdade uni-
numa nota datada de 1934, que agora já não subscreveria, sem hesitação,
afirmação tão categórica. É possível, entretanto, que este comentário se
não refira directamente ao texto acabado de citar. Em todo o caso, afirma
mais adiante gue a sua hesitação em aceitar o princípio da «prioridade da
essência» provinha do esforço que então (12 de Junho de 1929) dispendia
«para romper com todo o idealismo, qualquer que ele fosse — e, por con
sequência, que ela se referia, sobretudo, ao sentido idealista dessa fórmula.
Em R. I., pág. 152, G. Mareei volta ao assunto a propósito da filosofia
da pessoa e marca a mesma hesitação: «Para mostrar, no fundo, o meu
pensamento, direi, por um lado, que a pessoa não é, nem pode ser, uma
e&sência, e, por outro lado, que uma metafísica, que se edificasse de fcerto
modo afastada ou ao abrigo das essências, se arriscaria a desfazer-se como
um castelo de carias. É isto unicamente o que posso dizer, embora, na
realidade, o assunto represente para mim uma espécie de escândalo e até
de decepção».
INTRODUÇÃO 13
existência». Sartre, em princípio pelo menos, coloca-se numa
posição mais radical. Para ele, a existência precede absoluta
mente a essência, não só porque o termo existência só tem
aplicação perfeita na realidade humana (o resto sendo pura
mente e simplesmente, mas não existindo), mas ainda porque a
existência, no homem, não é senão o nome dado ao nada que
é o «por-si» ou a consciência.
Há, entretanto, quem considere estas diferenças apenas
como acidentais e que elas não excluem uma maneira de ver
comum. De forma unânime, os existencialistas recusam-se,
de facto, a considerar a existência como coisa da qual se
possa abstrair, como coisa susceptível de ser conhecida de
fora, a título de dado objectivo. A subjectividade é o carácter
essencial da existência e, por isso, ela está para além do saber,
é irredutível a uma noção, refractária a qualquer tentativa
de conceitualização (ia). Ê sob este ultimo aspeoto que o
existencialismo de Kierkegaard e de Jaspers encara a exis
tência. Supomos, entretanto, que Heidegger e Sartre já não
perfilham, pelo menos de um modo absoluto, esse ponto de
vista, que, de resto, porque é tão pouco característico do exis
tencialismo, se vai encontrar também expendido, com outra
clareza e até, porventura, com outra evidência, em doutrinas
de inspiração muito diferente. -
Jaspers e Berdiaeff insurgem-se contra o método e as
ambições de Heidegger, invectivando a sua ideia de cons
truir uma filosofia sobre a existência, tornando, assim, a exis
tência objecto de pensamento. O próprio Heidegger não se
furta ià acusação e é o primeiro a declarar, còmó já vimos,
que a sua finalidade fé constituir uma ontologia, que, tendo
como fundamento a análise existencial, a ela não se poderá
limitar uma vez que a si se define como ciência do ser.
(“ ) République, 511b,
INTRODUÇÃO 17
como devir ou temporalidade, e que a existência só é inteli
gível em função dessa verdade intemporal que a funda
menta (16). O que determina esta maneira de filosofar é a
ambição de descobrir o meio de tornar a existência anal'tti~
camente inteligível, sob forma total, isto 'é, de modo que o
pensamento racional a penetre inteiramente sem que nela
permaneça qualquer resíduo opaco. Os nomes de Spinoza,
Leibnitz, Fichte, Hegel poderiam servir para demonstrar essa
desmedida ambição. E também para provar o fracasso dessa
mesma ambição, porque uns e outros acabam sempre por
esbarrar com o obstáculo que pretendiam eliminar. Para pode
rem ser integralmente racionais, estas doutrinas terão de
aceitar o facto e o dado, e admitir, ainda que de mã vontade,
uma contingência que renitentemente se mantém rebelde à
análise.
O termo essencialismo parece, portanto, designar, antes
de mais nada, uma tendência, e, tomado com este significado,
-o seu emprego não traria quaisquer inconvenientes e seria alté
plausível. Fora desta significação, porém, pode dar origem
a um equívoco e levar-nos a falsear o sentido das doutrinas
que, considerando a ciência do ser como necessariamente
abstracta e geral — podendo, sob este aspecto, passar por
«essencialistas» (17) —' sustentam também que o verdadeiro
* ★
KIERKEGAARD
(*)
Nas citações utilizaremos as siglas seguintes:
JH : K i e r k e g a a r d , Die Tagebücher (Diário), atrsgewählt und über
setzt von Th. H a e c k e r , 1923, T. n.
Jpg: K j e r k e g a a r d , Journal (Extractos), 1832-1846, tradução F e r -
l o v e G a t e a u , Gallimard, 1941.
A2: L'Alternative, 2.“ parte, trad. P.-H. T i s s e a u , Bazoges-en-Pareds,
Vendée, 1940.
CT: Crainte et Tremblement, trad. P.-H. T i s s e a u , ed. Montaigne,
Paris, 1935.
CA: Le Concert d'angoisse, trad, P.-H. T i s s e a u , Alcan, 1935.
P S : Post-scriptum aux Miettes philosophiques, trad. P . P e t it ,
Gallimard, 1941.
TD: Traité du désespoir, trad. F e r l o v e G a t e a u , Gallimard, 1932.
(P.-H. Tisseau publicou, em 1946, uma nova tradução deste
Tratado com o título de La Maladie à la mort, Bazoges-en-
Pareds, Vendée). Existe desta obra uma tradução portuguesa
de A. Casais Monteiro com o título O desespero humano,
Livraria Tavares Martins.
PV: Point de vue explicatif de mon oeuvre, trad. P.-H. T is s e a u ,
Bazoges-en-Pareds, Vendé^, 1940.
EC: L'Ecole du Christianisme, trad. P.-H. T i s s e a u , Bazogea-ea-
Pareds, Vendée, 1936.
3
34 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
KIERKEGAARD 37
proporções surpreendentes. Ele próprio chegou a declarar
que era «reflexão do princípio ao fim» e que a sua perma
nente ocupação era escutar o murmúrio dos seus pensamentos,
fazer-se coincidir com o ritmo da sua vida interior. Logo no
inicio da sua vida de pensador ("), em carta (talvez fictícia1)
a Peter Lind, chama a atenção para a vantagem de se sentir
um tanto abandonado por parte dos seus amigos. O silêncio
deles, diz, é-me nitidamente proveitoso porque me obriga a
fixar a vista no meu eu; porque rae estimula a apreender^
esse eu que é o meu; porque me obriga a manter-me fixo na
infinita instabilidade da vida e a voltar para mim o espelho
côncavo com que dantes procurava abarcar a vida fora de
mim mesmo. «Esse silêncio agrada-me porque me sinto capaz
desse esforço e com coragem para segurar o espelho, mos
tre-me ele o que mostrar, o meu ideal ou a minha caricatura».
Homem-problema para si mesmo, Kierkegaard nunca deixou
de se interrogar e de se analisar a si próprio. Para ele, a
filosofia resumia-se em tomar consciência, por forma cada
vez mais penetrante, através de um profundo conhecimento
da sua própria existência, das exigências absolutas de uma
existência autêntica, A subjectividade tornava-se, assim, para
empregar a sua própria expressão, o critério e a verdade da
objectividade. Portanto, o existencialismo, para Kierkegaard,
é, antes de mais nada, a forma de uma necessidade, a expres
são de uma tendência tão acentuada que poderia servir para
* definir a sua própria personalidade.
(“ ) PV , pág. 61.
(M) PS, pág. 401.
(" ) TD , págs. 231-233.
44 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
II
As condições da existência
A. O compromisso e o risco.
1. Para podermos compreender cabalmente o que é o
compromisso e o risco, teremos de partir da noção kierke-
gaardiana de verdade. Haecker (18) exagera-lhe a feição
subjectivista, como se Kierkegaard alguma vez tivesse afir
mado que qualquer asserção se pode ou não considerar
verdadeira consoante a paixão com que é enunciada. Kier
kegaard parece estar muito longe de dar foros de consagração
a esta lógica passional — ainda que certos aspectos da sua
doutrina corram, por vezes, o risco de nos levar a supor isso
mesmo. É certo que ele admite um «imperativo do conheci
mento», isto é, uma regra objectiva de pensamento, pelo
mesmo motivo que há um imperativo moral (19). Mas esse
imperativo, como também esclarece logo, deverá coincidir de
certo modo comigo próprio. Pela vida, eu devo transfor-
mar-me na regra do meu comportamento, graças à esponta
neidade da razão e do coração, que são conalturais da verdade
e do bem. Cinicamente pox isto é que a verdade se tornará &
minha verdade, porque não há verdade para o indivíduo senão
C. O desespero e a angústia.
6. O desespero e. a angústia caracterizam, finalmente e
por forma de certo modo infalível, o existente.
A filosofia de Hegel e o radonafcmo em geral esbarram
sempre com esta realidade existencial; a culpa, a angústia
e o desespero não encontram assimilação nessas doutrinas.
É certo que elas tentam explicar a sua realidade empírica,
mas ao racionalizá-los truncam-lhes a cada passo o sentido.
São as filosofias da felicidade, segundo as quais a infelici
dade da consciência encontra a sua própria consolação no
facto de descobrir o seu lugar necessário e a sua função
no todo.
Existir é sofrer necessàri&mente o desespero e a angústia,
ligados uma e outro à realidade e à possibilidade da cuipa.
De resto, pelo simples facto die o Indivíduo se sientii na
fr*
56 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
0
KIERKEGAARD 57
mento e o salto, graçais aios quais o homem ultrapassa, como
vimos, os seus .limites, enche-se da siua verdade e existe
verdadeiramente e plenamente. Desita forma, o desespero
cresce eim profundidade com a consciência', oomo também a
consciência' aumenta em intensidade com o desespero.
O desespero é portanto ambíguo e dialéctico, como todas
as coisas do homem. Gonduz a V i as divergentes. Tudo depende
da maneira como cada um desespera . Se o desespero se
malogna ao produzir um rompimento no íntiimo da alma,
levando ao endurecimento, estamos perdidos; é a morte, mas
uma morte em que não se acaba de morrer. Se, pelo contrário,
o desespero força & alma a concitar ois seus últimos recusrsos,
a «'desesperar em vardiade», isto é, absolutamente, então
desperta nela a consciência db seu vailotr eterno. Importa,
pois, desesperar em verdade: é Isto que caracteiriza aquele
existente que atingiu o ponto culminainte do pathos exis
tencial.
III
A Filosofia Existencial
N I E T Z S C H E
Pensamento e existência
II
Verdade e valor
III
A angústia existencial
IV
72 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
quer pretensões
pretensões cie
cie «objectividade»
«object ividade» ( 7). Isto
Ist o mesmo
mesmo se deveria
dizer, aliás, da metafísica em geral: também ela está exclusi
vamente destinada a entrar no domínio da história, como
forma ultrapassava da civilização.
Não deveremos supor, entretanto, que a atitude de
Nietzsche para com a religião é puramente negativa. Pelo
contrário, Nietzsche antevê o aparecimento de uma nova
religião, isto é, de uma concepção de salvação, sobre as ruínas
das religiões dogmáticas, especialmente do cristianismo, rela
cionando-a com o tema do eterno retorno que, como se viu,
é para o indivíduo, que se reconhece finito e transiente, fonte
de angústia e de terror, mas tamém principio de imensa
exaltação, desde que sabemos, pela nossa existência presente
que estamos já na eternidade. A angústia e a aflição, pro
vocadas pela visão implacável de um destino trágico indefi
nidamente repetido, dão à nossa presente existência individual
valor metafísico e religioso, porque nos revelam a nossa eter
nidade. Dionísio, do qual somos membros parcelares, cumpre
por
p or nós o seu desti
de stino
no eter
et ernn o . Deste sentimento procede o
lirismo de Zaratustra (8):
i
NIETZSCHE 73
Ó homem1
homem1 Atenção!
Atenção!
Que diz a profunda meia-noite?
Eu dormi, dormi,
De profundo sono eis-me acordado:
O mundo é profundo
Tão profundo como nunca supôs o dia.
Profundo é o seu mal,
A aleg
al egri
riaa — mais profunda ainda que a pena:
A d o r diz:
diz : Pass
Pa ssa!
a!
Ma
M a s toda
to da a aleg
al egri
riaa quer
qu er a eter
et ernn idad
id ade,
e,
Quer a profunda, bem profunda eternidade!
6. Deste
De ste modo, o home
homem,
m, ao proclamar a morte de
Deus e a agonia do cristianismo, deve fazer tábua rasa de
todos os valores à sombra dos quais tem vivido ou vege
tado. Importa, todavia, que essa desvalorização não venha
a converter-se num puro e simples niilismo. «Ainda que
radicalmente niilista, escrevia Nietzsche em 1887, eu não
desespero de encontrar a porta de saída, a passagem que levt
a qualquer coisa». O ateísmo não se fez para assegrumr ao
76 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
AS
A S D O U TR I N A S
EXISTENCIALISTAS
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ID E G G E R E S A R T R E
|\ I o existencialismo
existenci alismo contemporâneo, HeideggerHeid egger e Sar
S artr
tree
^ ocupam
ocupam uma uma posiçã
p osiçãoo especial e inteiramente distinta
dos outros existencialistas. Ambos recorrem à fenomenolo-
gia husserliana e, embora dela se distanciem muito, seguem-
~lhe, contudo, o método. Ambos se propõem, também, fundar
uma ontologia, isto é, uma ciência do ser , se bem que o ser
que eles encaram seja o ser da existência humana. Por esta
diferença específica se caracterizam as duas doutrinas, que,
nem por isso, podem deixar de ser consideradas como ver
dadeiras ontologiasi Revestem-se, assim, as doutrinas de
Heidegger e de Sartre de um cunho de originalidade própria
que as distingue nitidamente daquelas que se agrupam à volta
do nome de Jaspers.
Semelhantes sob este ponto de vista, as filosofias de
Heidegger e de Sartre esitão, entretanto, longe de ser idên
ticas entre si. Embora se sirvam do mesmo método e versem
temas comuns, cada uma tem o seu cunho ou espírito pró
prio. Para Heidegger a vida autêntica existe no desespero;
para Sartre é pa p a r a além
al ém do desespero que ela se realiza.
O conteúdo doutrinário de cada uma delas mostra-se assim
muito diferent
dife rente,
e, tornando
tornan do inconfundíveis
inconfun díveis as duas
duas filosofias. %
8
82 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS'
M A R T I N HO HEIDEGGER
(*)
(*) S Z , págs. 12-13.
12-13.
(') S Z, pág. 1.
(')
(' ) S Z , págs. 5-6. — Descartes, observa Heidegger, defi
defini
niu,
u, de
de
certo modo pelo menos, o Cogitare servindo-se do Ego; entretanto, deixo«
o swn
sw n inteiram
inteiramente
ente por explicar (SZ,
(S Z, pág. 4 6 ). , >
86 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
II
— W gr, págs. 67-68) que determina o existente (bruto) e faz dele um ser,
incorporando-o numa totalidade.
(” ) Importa frisar que Heidegger não diz que «a existência pre
cede a essência» (como se exprime J.-P. Sartre); afirma apenas que há
uma «preeminência» (Vorrang) da existência sobre a essência (SZ,
pág. 43). Para Sartre, pelo contrário, como teremos ocasião de ver, a
existência, como liberdade absoluta, não de existir mas de um determi-
nado-existir , precede inteiramente a essência. Isto é o que Sartre esta
belece pelo menos em teoria, porque, no fim de contas, ele acaba por
invocar uma essência («desejo de ser») que condiciona fundamentalmente
a existência e que, por consequência, a precede. —•Devemos dizer desde
já que a palavra existência não tem exactamente o mesmo significado em
ambos os filósofos. Para Heidegger designa apenas o modo de ser do
Dasein, ou seja, o homem quando se interroga a si próprio sobre o seu
ser. À existência, tomada no sentido genérico de qualquer presença no
inundo, a título de dado, designa-a Heidegger por Existentia. Sartre não
entra nesta distinção e para ele a palavra existência engloba os signifi
cados de Existenz e Existentia e designa pura e simplesmente «presença
efectiva no mundo».
A palavra ser, em Heidegger, reveste ainda outros sentidos, bem
delimitados nos termos alemães e que são:
1. Das Sein: o ser em geral,— ou o ser do existente.
2. Das Seiende: o existente em bruto (ou o sendo).
3. D as W esen: a essência — o que o existente tem de vir «a ser»
(Zusein). — A essência do Dasein reside, portanto, na sua exis-
HEIDEGGER E SARTRE 91
ontològicamente como um caso ou um exemplar de uma
,espécie de existente, nem como o aspecto fenomenológico de
um substrato que se mantém imóvel sob o fluxo da mudança.
É totalmente meu e a sua expressão só será correcta quando
adjunta do pronome pessoal: «Eu sou», «Tu és», de qualquer
maneira que eu seja ou que tu sejas. O existente que é a
minha pessoa está para o seu ser na mesma relação que para
a sua própria possibilidade: é preciso dizer que o Dasein é a
# sua possibilidade e não que ele tem ou possui a sua possi
bilidade, como se itratasse de coisa presente e actualizável.
Esta é a razão pela qual ele tem de se escolher e de se con
quistar, podendo também perder-se, ou ganhar-se apenas
em aparência. Está colocado entre a existência autêntica e
a existência inautêntica <— e esta última não é um ser «menor»
ou um grau «inferior» do ser: é ainda um ser plenamente
concreto, mas absolutamente diferente do ser da autentici
dade (14).
0'
92 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
HEIDEGGER E SARTRE 97
4. Resta-nos finalmente saber como é que o Dasein
aparece como estando-no-mundo. Isto equivale a formular o
problema do espaço. Este problema decompõe-se, de facto,
em três problemas distintos, relativos à espacialidade dos seres
intramundanos: — a espacialidade do es'tar-no-mundo, isto é,
dó mundo como tal; a espacialidade do próprio Dasein; e a
espacialidade do espaço (25).
A espacialidade é um dos caracteres dos seres intra
mundanos. Mas qual será a natureza desta espacialidade?
Para formarmos dela uma primfeira ideia, devemos observar
que a proximidade (Gegend) dos objectos em relação a nós
é menos proximidade «material» {porque os objectos próximos
de nós podem ser inexistlentes para nós) do que proximidade
determinada pela preocupação; um objecto muito longínquo
pode estar próximo de mim se ele me é de qualquer modo
útil (os meus óculos, uma vez colocados, estão, para mim,
mais longe do que o objecto que obstervo através delles).
Somos, assim, levados a pensar que a relação da distância
entre nós e os objectos (tomada em brulto) é sempre função
das significações de que precisamente nos servimos para os
constituir e, por consequência, que a proximidade resulta da
preocupação e designa o conjunto dos lugares ocupados pelos
objectos a que nós atribuímos utilidade. Não que ela seja
III
(26) SZ, pág. 111. A. de Waelhens (loc. cit., pág. 333) diz, e muito
bem, que Heidegger considera, assim, resolvido o problema do Dasein
como corpo, Este, segundo ele, estaria compreendido na implicação reve
ladora da espacialidade no Dasein. Trata-se, porém, de uma afirmação
gratuita, porque a «revelação» da espacialidade nada mais poderá explicar
que a formação do sentimento de espaço e nunca que existe um espaço
e especialmente um corpo. É certo que Heidegger poderia aqui replicar
dizendo que o existir como corpo está garantido pela equação: existência
humana = estar-no-mundo. Mas, «isso seria grave ilusão, contesta, por
sua vez, A. de Waelhens: o Dasein que é estar-no-mundo concebe-se como
pura subjectividade e não como um ser de carne, enquanto que, recipro
camente, esse mundo é uma forma de inteligibilidade e nunca um cosmos
resistente».
H SZ, págs. 114-130.
100 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
estar-no-mundo. Mesmo que esta estrutura fosse provada, nunca ela poderia
explicar o ser-com concreto (da minha amizade por João, por exemplo), uma
vez que «o outro» é originalmente indeterminado. Heidegger não pode esta
belecer a determinação, porque não é possível compreender como o ser-
-com, enquanto estrutura ontológica do Dasein, possa fazer surgir uma
outra realidade humana. Sem dúvida que eu sou, como «ser-com», o ser
pelo qual «há uma outra realidade humana». Estamos caídos na própria
fórmula do solipsismo. O meu «ser-com», tal como o apreendo, a partir do
«meu» ser, não é mais que uma exigência a priori do meu ser. Podemos
acrescentar ainda que, como relação a priori, a minha relação com
outrem é constitutiva da minha experiência e exclui qualquer facto que não
haja sido construído por ela, isto é, qualquer transcendência, e, por con
sequência, qualquer outrem concreto autêntico, que deverá sempre apre
sentar-se como encontro ou acidente contingente (pelo menos quanto à sua
realidade ontológica de «outrem»). Assim, portanto, conclui Sartre
(pág. 307), «mesmo nos seus êxtases, a realidade-humana permanece só».
A solidão do ser-em-comum é ainda uma solidão consigo, e o ser-com
não passa de outro aspecto de mim mesmo.
HEIDEGGER E SARTRE 103
"** "
104 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
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HEIDEGGER E SARTRE 105
desapercebido, a não ser naqueles casos em que, no meio da
mais banal quotidianidade, o sentimento da situação origi
nária se impõe bruscamente ao Dasein. A maior parte das
vezes, porém, tudo se dispõe em nós de forma a dissimular
mo-nos a nós próprios aquilo que somos fundamentalmente,
e o sentimento originário deixa de atendler ao facto de se
estar-lançado-aí, para exprimir a aversão ou o atractivo que
sentimos pela existência. A aversão tem quase sempre a pre
ferência: serve para iludir a existência; faz-me sentir estra
nho a mim mesmo, convencendio-me de que me devo deixar
perder por completo na banalidade do «se» (37).
O sentimento fundamental do esta r-aí corresponde, por
tanto, ao sentimento do estar-lançado-aí, ou seja, ao senti
mento do abandono ou da derrelicção (Geworfenheit) (38).
Este sentimento pertence à própria estrutura do ser e não
resulta simplesmente de uma contingência acidental na maneira
de chegar ao mundo mas sim da própria existência na sua
realidade ontológica. Eu sou, com efeito, projectado no mundo
sem que dá minha parte tenha havido qualquer escolha ; o sen
timento de abandono e de solidão acompanha, portanto, a
minha existência, impregnando-a de tal forma que imprime
profundo carácter à sua natureza (39). Por isso, eu sinto
IV
(M) Heidegger diz (SZ, pág. 220) que a verdade corresponde exclu
sivamente a essa acção des-cobridora do Dasein, para além da qual nada
mais há que a possa ex;plicar. Desta forma, Heidegger recusa-se formal
mente a correlacionar a verdade com Deus, como seu primeiro funda
mento e sua origem primeira. Para ele, não há «verdade ontológica», no
sentido escolástico de que a inteligibilidade é essencial ao ser (cf. o nosso
trabalho L'intuition intellectuelle et le problème de la métaphysique, Paris,
Beauchesne, págs. 69-80) : a verdade é constituída pura e simplesmente
pelo acto de des-cobrir, que arrebata o real existente (o existente em
bruto) à noite que o envolve e na qual se encontra mergulhado. 6 o
homem que, pela acção des-cobridora, cria a inteligibilidade que os exis
tentes em bruto não possuem de forma alguma em si mesmos.
(“ ) Heidegger afirma (SZ, pág. 227) que a questão das «verdades
eternas» só poderá ser resolvida mediante a prova de que existe e existirá
um Dasein por toda a eternidade. Enquanto essa prova não aparecer» as
122 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
Ser-para-a-morte
jectando a luz que é ele mesmo (es selbst die Lichíung ist, SZ, pág. 133),
cria a inteligibilidade e q ser das coisas (isto é, dos existentes em bruto
ou em-si), onde estará a prova ou o fundamento que possa justificar o
valor universal atribuído à verdade? Heidegger apela para a estrutura
universal do Dasein. Mas o círculo vicioso é notório: esta estrutura do
Dasein não é, em si mesma, senão uma descoberta do Dasein, isto é, foi
transformada por ele em verdade universal. Ora, é exactamente esta ver
dade que está em questão! — Por outro lado, admitir que o Dasein segrega
a «verdade» como o fígado segrega a bílis, é ir directamente ao encontro
do cepticismo, cuja asserção fundamental se pode traduzir na fórmula de
Protágoras: «o verdadeiro» é apenas o resultado de uma fatalidade psico
lógica e só traduz, de facto, exigências puramente subjectivas.
P ) SZ, págs. 231-235.
HEIDEGGER E SARTRE 125
na qual a totalidade do ser do Dasein se encontra em jogo.
Este acabamento, porém, é ao mesmo tempo a sua ruína e o
seu fim: o Dasein não pode ser de forma alguma, como
existente, objecto de experiência (89). «—Mas nós observamos
a morte dos outros... Esta observação, todavia,, só se pode
fazer de fora e nada nos elucida sobre o que a morte é para
o moribundo. Aliás, ainda mesmo que pudéssemos «experi
mentar» ou «padecer» a morte de outrem, nada adiantaríamos,
porque isso não seria penetrar o sentido ontológico da minha
própria morte. Não é possível, nesltc caso, apelar para a
comutabilidade dos Dasein, porque essa comutabilidade rea
liza-se sob o modo do «se» e da quotidianidade: na morte,
a comutabilidade cessa absolutamente, porque ninguém pode
assumir a morte de outrem. Na quotidianidade, eu sòu todos-
-os-outros; mas, na morte, eu já não sou senão eu. Morre-«se»
sozinho, dizia Pascal: a morte, na medida em que é morte, é
essencialmente e exclusivamente minha (70).
Deveremos, portanto, desistir de apreender a essência
do fenómeno da morte? ■— Retomemos a análise da noção
dg acabamento e de inacabamento, na sua relação com a
noção de totalidade. Que significa o acabamento do Dasein?
Poder-se-á definir como um «não ainda», uma dilação, uma
delonga: o Dasein «ainda não» é o que será, e esta estru
tura caracteriza-o durante todo o tempo em que ele é. Atingir
o seu fim é para o «não ainda» cessar de existir como Dasein.
Assim, o inacabamento do Dasein não pode de forma alguma
comparar-se à falta de acabamento de certas coisas ape
VI
*
HEIDEGGER E SARTRE 139
rir essa certeza por uma antecipação constantemente renovada
da sua morte. O pensamento da morte caracteriza o Dasein
que se tornou transparente a si próprio.
Há, portanto, uma ligação essencial entre a resolução
e o ser-para-diante. Ligação essencial há também entre a
resolução e o ser-sido (ser-passado), visto que a aceitação e a
antecipação da morte é a aceitação da culpabilidade original,
a qual impiica que o Dasein se assuma tal como foi sempre,
tal como j á era quando foi arremessado-no-mundo (87)- A vida
autêntica é, portanto, um «passado-futuiro» (88): simultânea
e solidàriamente regresso ao passado e pro-jecção para o
futuro, isto é, para a morte e para o nada. O Dasein é simul~
tâneamente futuro e passado, e só por isso a resolução pode
tornar presente a situação, isto é, possuir o sentido autên
tico do presente, que se define propriamente pelo instante,
ou seja, o presente estabelecido e mantido na temporalidade
autêntica (8B), na qual o passado e o futuro são ambos pre
sentes (eo).
sado?», tal como Nietzsche, com o seu eterno retomo, pretende estabelecer
um equivalente' da eternidade? (A existência resoluta permitiria, segundo
Heidegger, constituir a eternidade com o auxilio do tempo). Mas, se a teo
ria da existência resoluta não comporta, fundamentalmente, qualquer «fuga
diante do tempo», visto que concebe o nascimento e a morte não como
acontecimentos determinados mas como modos essenciais do Dasein, como
poderemos nós ter ainda em conta esse mesmo tempo que Heidegger
parece admitir como essência da realidade humana? Morte e nascimento,
nascimento e morte tornam-se de certo modo intemporais: o tempo não
é mais do que uma ilusão do Dasein; a única realidade, se assim r.os
podemos exprimir, será a eternidade do nada.
(" ) SZ, pág. 310.
(” ) Aqui, a dificuldade é precisamente a mesma que assinalámos
ao começo. A passagem da experiência singular e concreta à afirmação
ontológica (e universal) corresponde ao que há de mais arbitrário e gra
tuito. O que a análise mostrou é que, para Heidegger, não há instância
HEIDEGGER E SARTRE 141
(**) SZ, pág. 365. — Heidegger estabelece (SZ, pág. 366) que,
pelo próprio facto de o Dasein ser fundamentalmente extático, o mundo
já existe «ali de fora», como nunca pode existir um objecto. O problema
da transcendência (ou da realidade objectiva do mundo exterior) não
deve formular-se assim. «Como é que um sujeito poderá mostrar qual
quer comportamento para oom um objecto fora de si», se a totalidade dos
objectos se encontra identificada com a ideia de mundo? A questão como
deve ser posta é assim: «como é ontològicamente possível que o existente
possa ser tomado como intramundano e, como tal, ser objectivado?». Só
recorrendo à transcendência extática horizontal do mundo se poderá
encontrar resposta para esta pergunta. Se se apreende ontològicamente o
«sujeito» como um Dasein existente, cujo ser é fundado na temporalidade,
dir-se-á: o mundo é «subjectivo». Mas este mundo «subjectivo» passa
então a ser, desde que é temporalmente transcendente, mais «objectivo»
que qualquer objecto. — Estas explicações dificilmente poderão satisfazer.
Conduzem-nos, efectivamente e com toda a evidência, a uma concepção
HEIDEGGER E SARTRE 143
A finitude do tempo resulta da preocupação como ser-
-para-a-morte. O Dasein existe como finito. O futuro, que
temporaliza em primeiro lugar a existência e dá sentido à
existência resoluta, revela-se, desta forma, como finito. Mas,
não é verdade que o tempo continua apesar do desmorona
mento do meu Dasein no nada? Certamente. Isso, porém,
não se opõe à finitude da temporalidade original, que não é
interessada pelos acontecimentos do mundo. A finitude do
tempo original não significa uma cessação (como na concepção
quotidiana), mas constitui o carácter essencial da têmpora-
lização, da mesma forma que o futuro autêntico só pode
existir como possibilidade insuperável de aniquilação (B5).
VII
Temporalidade e historicidade
D SZ , págs. 375-377.
(“”) Cf. a definição dê J.-P. Sartre (Z/êíre et le nèant, pág. 581):
«Se as sociedades humanas são históricas, não é só porque têm um pas
sado, mas sim porque o retomam a título de monumentos,
10 '
146 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
(104) SZ, págs. 387-3 92.— Cf. P a s c a l , Pensées, n.° 406. «Não
tendo podido desfazer-se da morte, da miséria e da ignorância, os homens,
na mira de se tomarem felizes, determinaram não pensar em nenhuma
dessas coisas».
150 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
VIII
A transcendência do Dasein
(íog) W gr, pág. 64. — A. de Waelhens (loc. cit., pág. 253) não vê
contradição entre esta asserção e a anteriormente formulada (SZ, pág. 323)
que dava a preocupação como fundamento da ipsidade do Dasein. A preo
cupação é o ser do Dasein, mas esse set constitui-se na transcendência.
D SZ. págs. 57, 99, 102.
(U1) W gr, pág. 65.
154 AS DOUTRINAS EXISTENCIALISTAS
y.-P. SARTRE
A Náusea