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É isso!
Iba Mendes
CAMÕES, O MAIOR ÉPICO DOS TEMPOS MODERNOS
"Nunca desde Homero, um poeta foi tão amado pela sua nação
como Camões; de modo que tudo quanto esta nação, decaída da sua
glória logo depois da morte dele, conservou de sentimento
patriótico está ligado a este único poeta, que pode com justiça
substituir a maioria dos outros e ser considerado como uma
literatura inteira” — escreveu o eminente crítico alemão Frederico
Schlegel. E cada vez nós sentimos mais, com as afirmações da
vitalidade nacional portuguesa, o profundo sentido de continuidade
que existe entre ela e o imortal cantor dos Lusíadas. O grande poema
não é apenas a narração épica dos feitos de Vasco da Gama na sua
viagem a Índia, e, de modo geral, da formação do reino de Portugal,
mas nele se encontra, em verdade, o que de mais precioso e
característico possui a alma portuguesa, de que o poeta foi o retrato,
e símbolo.
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de gênio que veio a morrer na mais negra miséria quando a sua obra
começava a atrair o aplauso e a estima gerais.
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custa destes, logrou embarcar na nau “Santa Clara”, que chegou a
Lisboa em abril de 1570.
“Acabarei a vida, e verão todos que fui tão afeiçoado à minha Pátria, que
não só me contento de morrer nela, mas com ela”.
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Os últimos momentos do imortal cantor das glórias portuguesas,
assim os figurou Almeida Garrett no seu belo poema Camões:
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CANÇÕES E ELEGIAS
CANÇÕES
I
Formosa e gentil Dama, quando vejo
a testa de ouro e neve, o lindo aspecto,
a boca graciosa, o riso honesto,
o colo de cristal, o branco peito,
de meu não quero mais que meu desejo,
nem mais de vós que ver tão lindo gesto.
Ali me manifesto
por vosso a Deus e ao mundo; ali me inflamo
nas lágrimas que choro,
e de mim, que vos amo,
em ver que soube amar-vos, me namoro;
e fico por mim só perdido, de arte
que hei ciúmes de mim por vossa parte.
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Se, por algum acerto, amor vos erra
por parte do desejo, cometendo
algum nefando e torpe desatino,
se ainda mais que ver, enfim, pretendo,
fraquezas são do corpo, que é de terra,
mas não do pensamento, que é divino.
Se tão alto imagino que de vista
me perco (peco nisto),
desculpa-me o que vejo;
que se, enfim, resisto
contra tão atrevido e vão desejo,
faço-me forte em vossa vista pura,
e armo-me de vossa formosura.
II
A instabilidade da Fortuna,
os enganos suaves de amor cego,
(suaves, se duraram longamente),
direi, por dar à vida algum sossego;
que, pois a grave pena me importuna,
importune meu canto a toda a gente.
E se o passado bem com mal presente
me endurece a voz no peito frio,
o grande desvario
dará de minha pena sinal certo,
que um erro em tantos erros é concerto.
E, pois nesta verdade me confio
(se verdade se achar no mal que digo),
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saiba o mundo de amor o desconcerto,
que já com a razão se fez amigo,
só por não deixar culpa sem castigo.
III
Já a roxa manhã clara
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do Oriente as portas vem abrindo,
dos montes descobrindo
a negra escuridão da luz avara.
O Sol, que nunca para,
de sua alegre vista saudoso,
trás ela, pressuroso,
nos cavalos cansados do trabalho,
que respiram nas ervas fresco orvalho,
se estende, claro, alegre e luminoso.
Os pássaros, voando
de raminho em raminho modulando,
com uma suave e doce melodia
o claro dia estão manifestando.
Porém a Natureza,
que nesta vista pura se mantinha,
me falta tão asinha,
quão asinha o sol falta à redondeza.
Se houverdes que é fraqueza
morrer em tão penoso e triste estado,
Amor será culpado,
ou vós, onde ele vive tão isento,
que causastes tão longo apartamento,
porque perdesse a vida com cuidado.
Que se viver não posso
(um homem sou só, de carne e osso),
esta vida que perco, amor ma deu;
que não sou meu: se mouro, o dano é vosso.
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Canção de cisne, feita em hora extrema:
na dura pedra fria
da memória te deixo, em companhia
do letreiro de minha sepultura;
que a sombra escura já me impede o dia.
IV
Vão as serenas águas
do Mondego descendo
mansamente, que até o mar não param;
por onde minhas mágoas
pouco a pouco crescendo,
para nunca acabar se começaram.
Ali se ajuntaram neste lugar ameno,
aonde agora mouro, testa de nove e ouro,
riso brando, suave, olhar sereno,
um gesto delicado,
que sempre n'alma me estará pintado.
Canção, tu estarás
aqui acompanhando
estes campos e estas claras águas,
e por mim ficarás chorando
e suspirando,
e ao mundo mostrando tantas mágoas,
que de tão larga história
minhas lágrimas fiquem por memória.
V
Se este meu pensamento,
como é doce e suave,
de alma pudesse vir gritando fora,
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mostrando seu tormento
cruel, e grave,
diante de vós só, minha Senhora:
pudera ser que agora
o vosso peito duro
tornara manso e brando.
E eu que sempre ando
pássaro solitário, humilde, escuro,
tornado um cisne puro,
brando e sonoro pelo ar voando,
com canto manifesto
pintara meu tormento e vosso gesto.
Vira-se claramente,
ó Dama delicada,
que em vós se esmerou mais a Natureza;
e eu, de gente em gente,
trouxera trasladada
em meu tormento vossa gentileza.
Somente a aspereza
de vossa condição,
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Senhora, não dissera,
porque se não soubera
que em vós podia haver algum senão.
E se alguém, com razão,
— Por que morres? dissera, respondera:
— Mouro porque é tão bela
que inda não sou para morrer por ela.
E se porventura,
Dama, vos ofendesse,
escrevendo de vós o que não sento,
e vossa formosura
tão baixo não descesse
que a alcançasse um baixo entendimento,
seria o fundamento
daquilo que cantasse todo de puro amor,
porque vosso louvor
em figura de mágoas se mostrasse.
E onde se julgasse a causa pelo efeito,
minha dor diria ali sem medo:
quem me sentir, verá de quem procedo.
Então amostraria
os olhos saudosos,
o suspirar que a alma traz consigo;
a fingida alegria,
os passos vagarosos,
o falar, o esquecer-me do que digo;
um pelejar comigo,
e logo desculpar-me;
um recear, ousando;
andar meu bem buscando,
e de poder achá-lo acovardar-me;
enfim, averiguar-me
que o fim de tudo quanto estou falando
são lágrimas e amores;
são vossas isenções e minhas dores.
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Mas quem terá, Senhora,
palavras com que iguale
com vossa formosura minha pena;
que, em doce voz, de fora
aquela glória fale
que dentro na minh'alma amor ordena?
Não pode tão pequena
força de engenho humano
com carga tão pesada,
se não for ajudada
dum piedoso olhar, dum doce engano;
que, fazendo-me o dano
tão deleitoso, e a dor tão moderada,
que, enfim, se convertesse
nos gostos dos louvores que escrevesse.
VI
Com força desusada
aquenta o fogo eterno
uma ilha lá nas partes do Oriente,
de estranhos habitada,
aonde o duro Inverno
os campos reverdece alegremente.
A lusitana gente
por armas sanguinosas,
tem dela senhorio.
Cercada está dum rio
de marítimas águas saudosas;
das ervas que aqui nascem,
os gados juntamente e os olhos pascem.
VII
Manda-me amor que cante docemente
o que ele já em minh'alma tem impresso
com pressuposto de desabafar-me;
e porque com meu mal seja contente,
diz que ser de tão lindos olhos preso,
contá-lo bastaria a contentar-me.
Este excelente modo de enganar-me
tomara eu só de amor por interesse,
se não se arrependesse
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com a pena o engenho escurecendo.
Porém a mais me atrevo,
em virtude do gesto de que escrevo;
e se é mais o que canto que o que entendo,
invoco o lindo aspecto,
que pode mais que amor em meu defeito.
VIII
Tomei a triste pena
já de desesperado
de vos lembrar as muitas que padeço,
com ver que me condena
a ficar eu culpado
o mal que me tratais e o que mereço.
Confesso que conheço
que, em parte, a causa dei
ao mal em que me vejo,
pois sempre meu desejo
a tão largas promessas entreguei;
mas não tive suspeita
que seguísseis tenção tão imperfeita.
Se em vosso esquecimento
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tão envolto estou
como os sinais demonstram, que mostrais;
vivo neste tormento,
lembranças mais não dou
que as de razão tomar queirais:
olhai que me tratais
assim de dia em dia
com vossas esquivanças;
e as vossas esperanças,
de que, vãmente, eu me enriquecia,
renovam a memória;
pois com tê-la de vós, só tenho glória.
E se isto conhecêsseis
ser verdade pura
como ouro de Arábia reluzente,
inda que não quisésseis,
a condição tão dura
mudáreis noutra muito diferente.
E eu, como inocente
que estou neste caso,
isto em mãos pusera
de quem sentença dera
que ficasse o direito justo e raso,
se não arreceara
que a vós por mim, e a mim por vós matara.
Em vós escrita vi
vossa grande dureza,
e n'alma escrita está que de vós vive;
não que acabasse ali
sua grande firmeza
o triste desengano que então tive;
porque antes que a dor prive
de todos meus sentidos,
ao grande tormento
acode o entendimento
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com dois fortes soldados, guarnecidos
de rica pedraria,
que ficam sendo minha luz e guia.
Destes acompanhado,
estou posto sem medo
a tudo o que o fatal destino ordene;
pode ser que, cansado,
ou seja tarde, ou cedo,
com pena de penar-me, me despene.
E quando me condene
(que isto é o que espero)
inda a maiores dores,
perdidos os temores,
por mais que venha, não direi: não quero.
Contudo estou tão forte
que nem me mudará a mesma morte.
IX
Junto de um seco, fero e estéril monte,
inútil e despido, calvo, informe,
da natureza em tudo aborrecido;
onde nem ave voa, ou fera dorme,
nem rio claro corre, ou ferve fonte,
nem verde ramo faz doce ruído;
cujo nome, do vulgo introduzido
é feliz, por antífrase, infelice;
o qual a Natureza
situou junto à parte
onde um braço de mar alto reparte
Abássia, da arábica aspereza,
onde fundada já foi Berenice,
ficando a parte donde
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o sol que nele ferve se lhe esconde;
X
Vinde cá, meu tão certo secretário
dos queixumes que sempre ando fazendo,
papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
acenda-se com gritos um tormento
que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
a Deus, ao mundo, à gente e, enfim, ao vento,
a quem já muitas vezes o contei,
tanto debalde como o conto agora;
mas, já que para errores fui nascido,
vir este a ser um deles não duvido.
Que, pois já de acertar estou tão fora,
não me culpem também, se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
falar e errar sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!
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ELEGIAS
I
O poeta Simônides, falando
com capitão Temístocles, um dia,
em coisas de ciência praticando,
uma arte singular lhe prometia,
que então compunha, com que lhe ensinasse
a se lembrar de tudo o que fazia;
onde tão sutis regras lhe mostrasse
que nunca lhe passasse da memória
em nenhum tempo as coisas que passasse.
Bem merecia, certo, fama e glória
quem dava regra contra o esquecimento
que enterra em si qualquer antiga história.
Mas o capitão claro, cujo intento
bem diferente estava, porque havia
as passadas lembranças por tormento;
ilustre Simônides! (dizia)
Pois tanto em teu engenho te confias
que mostras à memória nova via,
e me desses uma arte que em meus dias
me não lembrasse nada do passado,
oh! quanto melhor obra me farias!
Se este excelente dito ponderado
fosse por quem se visse estar ausente,
em longas esperanças degradado,
ah! como bradaria justamente:
Simônides, inventa novas artes;
não meças o passado com presente!
Que, se é forçado andar por várias partes
buscando à vida algum descanso honesto,
que tu, Fortuna injusta, mal repartes;
se o duro trabalho é manifesto
que por grave que seja, há de passar-se
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com animoso espírito e ledo gesto;
de que serve às pessoas lembrar-se
do que se passou já, pois tudo passa,
senão de entristecer-se e magoar-se?
Se noutro corpo uma alma se traspassa,
não, como quis Pitágoras, na morte
mas como manda amor na vida escassa;
e se este amor no mundo está de sorte
que na virtude só dum lindo objeto
tem um corpo sem alma, vivo e forte;
onde este objeto falta, que é defecto
tamanho para a vida, que já nela
me está chamando à pena a dura Alecto;
porque me não criara minha estrela
selvático no mundo, e habitante
na dura Cítia, ou na aspereza dela,
ou no Cáucaso horrendo? Fraco infante,
criado ao peito de alguma tigre hircana,
homem fora formado de diamante,
porque a cerviz ferina e inumana
não submetera ao jugo e dura lei
daquele que dá vida quando engana.
Ou, em pago das águas que estilei,
as que do mar passei foram de Lete,
para que me esquecera o que passei.
Que o bem que a esperança vã promete,
ou a morte o estorva, ou a mudança,
que é mal que uma alma em lágrimas derrete.
Já, Senhor, cairá como a lembrança,
no mal, do bem passado é triste e dura,
pois nasce aonde morre a esperança.
E se quiser saber como se apura
nua alma saudosa, não se enfade
de ler tão longa e mísera escritura.
Soltava Eolo a rédea e liberdade
ao manso Favônio brandamente,
e eu já tinha solta a saudade.
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Netuno tinha posto o seu tridente;
a proa a branca escuma dividia,
com a gente marítima contente.
O coro das Nereidas nos seguia,
os ventos, namorada Galateia
consigo, sossegados, os movia.
Das argênteas conchinhas, Panopeia
andava pelo mar fazendo molhos,
Melanto, Dinamene, com Ligeia.
Eu, trazendo lembranças por antolhos,
trazia os olhos na água sossegada,
e a água sem sossego nos meus olhos.
A bem-aventurança já passada
diante mim tinha tão presente
como se não mudasse o tempo nada.
E com o gesto imoto e descontente,
cum suspiro profundo, e mal ouvido,
por não mostrar meu mal a toda a gente,
dizia: Ó claras ninfas! Se o sentido
em puro amor tivestes, e inda agora
da memória o não tendes esquecido;
se, porventura, fordes alguma hora
aonde entra o grão Tejo a dar tributo
a Tétis, que vós tendes por Senhora;
ou por verdes o prado verde enxuto,
ou por colherdes ouro rutilante,
das tágicas areias rico fruto;
nelas em verso heroico e elegante,
escrevei com uma concha o que em mim vistes:
pode ser que algum peito se quebrante.
E contando de mim memórias tristes,
os pastores do Tejo, que me ouviam,
ouçam de vós as mágoas que me ouvistes.
Elas, que já no gesto me entendiam,
nos meneios das ondas me mostravam
que enquanto lhe pedia consentiam.
Estas lembranças, que me acompanhavam
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pela tranquilidade da bonança,
nem na tormenta grave me deixavam.
Porque, chegado ao Cabo da Esperança,
começo da saudade que renova,
lembrando a longa e áspera mudança;
debaixo estando já da estrela nova,
que no novo Hemisfério resplandece,
dando do segundo ache certa prova;
eis a noite com nuvens escurece,
do ar subitamente foge o dia,
e o largo oceano se embravece.
A máquina do mundo parecia
que em tormenta se vinha desfazendo,
em serras todo o mar se convertia.
Lutando Bóreas fero e Noto horrendo,
sonoras tempestades levantavam,
das naus as velas côncavas rompendo.
As cordas, ao ruído, associavam,
os marinheiros, já desesperados,
com gritos para o céu o ar coalhavam.
Os raios por Vulcano fabricados
vibrava o fero e áspero Tonante,
tremendo os Polos ambos, de assombrados!
Ali amor mostrando-se possante
e que por nenhum modo não fugia,
mas quanto mais trabalho, mais constante;
vendo a morte diante, em mim dizia:
Se alguma hora, Senhora, vos lembrasse,
nada do que passei me lembraria.
Enfim, nunca houve coisa que mudasse
o firme amor do intrínseco daquele
em cujo peito uma vez de siso entrasse.
uma coisa, Senhor, por certo assele;
que nunca amor se afina, nem se apura,
enquanto está presente a causa dele.
Destarte me chegou minha ventura
a esta desejada e longa terra,
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de todo o pobre honrado sepultura.
Vi quanta vaidade em nós se encerra,
e dos próprios quão pouca; contra quem
foi logo necessário termos guerra.
Que uma ilha que o rei de Porcá tem,
que o rei da Pimenta lhe tomara,
fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem.
Com uma armada grossa, que ajuntara
o viso-rei de Goa, nos partimos
com toda a gente d'armas que se achara,
e com pouco trabalho destruímos
a gente no curvo arco exercitada;
com mortes, com incêndios, os punimos.
Era a ilha com águas alagada,
de modo que se andava em almadias;
enfim, outra Veneza trasladada.
Nela nos detivemos sós dois dias,
que foram para alguns os derradeiros,
que passaram de Estige as águas frias.
Que estes são os remédios verdadeiros
que para a vida estão aparelhados
aos que a querem ter por cavaleiros.
Oh, lavradores bem-aventurados!
Se conhecessem seu contentamento,
como vivem no campo sossegados!
Dá-lhes a justa terra o mantimento,
dá-lhes a fonte clara a água pura,
mungem suas ovelhas cento a cento.
Não vêm o mar irado, a noite escura,
por ir buscar a pedra do Oriente;
não temem o furor da guerra dura.
Vive um com suas árvores contente,
sem lhe quebrar o sono sossegado
o cuidado do ouro reluzente.
Se lhe falta o vestido perfumado,
e da formosa cor assíria tinto,
e dos torçais atálicos lavrado;
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se não tem as delícias de Corinto,
e se de Pário os mármores lhe faltam,
o piropo, a esmeralda, e o jacinto;
se suas casas d'ouro não se esmaltam,
esmalta-se-lhe o campo de mil flores,
onde os cabritos seus, comendo, saltam.
Ali amostra o campo várias cores,
vêm-se os ramos pender com fruto ameno,
ali se afina o canto dos pastores:
ali cantara Títiro e Sileno.
Enfim, por estas partes caminhou
a sã justiça para o céu sereno.
Ditoso seja aquele que alcançou
poder viver na doce companhia
das mansas ovelhinhas que criou!
Este, bem facilmente alcançaria
as causas naturais de toda a coisa:
como se gera a chuva e neve fria;
os trabalhos do Sol, que não repousa;
e porque nos dá a lua a luz alheia,
se tolher-nos de Febo os raios ousa;
e como tão depressa o céu rodeia;
e como um só, os outros traz consigo;
e se é benigna ou dura Citereia.
Bem mal pode entender isto que digo
quem há de andar seguindo o fero marte,
que traz os olhos sempre em seu perigo.
Porém seja, Senhor, de qualquer arte,
que, posto que a Fortuna possa tanto,
que tão longe de todo o bem me aparte,
não poderá apartar meu duro canto
desta obrigação sua, enquanto a morte
me não entrega ao duro Radamanto,
— se para tristes há tão leda sorte.
II
(D. Antônio de Noronha, estando o autor na Índia)
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Aquela que de amor descomedido
pelo formoso moço se perdeu
que só por si de amores foi perdido,
depois que a deusa em pedra a converteu
de seu humano gesto verdadeiro,
a última vez só lhe concedeu.
assim meu mal do próprio ser primeiro
outra coisa nenhuma me consente
que este canto que escrevo derradeiro.
E se alguma pouca vida, estando ausente,
me deixa amor, é porque o pensamento
sinta a perda do bem de estar presente.
Senhor, se vos espanta o sentimento
que tenho em tanto mal, para escrevê-lo
furto este breve tempo a meu tormento.
Porque quem tem poder para sofrê-lo,
sem se acabar a vida com cuidado,
também terá poder para dizê-lo.
Nem eu escrevo mal tão costumado,
mas n'alma minha, triste e saudosa,
a saudade escreve, e eu traslado.
Ando gastando a vida trabalhosa,
espalhando a contínua saudade
ao longo de uma praia saudoso.
Vejo do mar a instabilidade,
como com seu ruído impetuoso
retumba na maior concavidade.
E com sua branca escuma, furioso,
na terra, a seu pesar, lhe está tomando
lugar onde se estenda, cavernoso.
Ela, como mais fraca, lhe está dando
as côncavas entranhas, onde esteja
suas salgadas ondas espalhando.
A todas estas coisas tenho inveja
tamanha, que não sei determinar-me,
por mais determinado que me veja.
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Se quero em tanto mal desesperar-me,
não posso, porque amor e saudade,
nem licença me dão para matar-me.
As vezes cuido em mim se a novidade
e estranheza das coisas, com a mudança
se poderão mudar uma vontade.
E com isto afiguro na lembrança
a nova terra, o novo trato humano,
a estrangeira gente e estranha usança.
Subo-me ao monte que Hércules tebano
do altíssimo Calpe dividiu,
dando caminho ao mar Mediterrâneo.
Dali estou tenteando aonde viu
o pomar das Hespéridas, matando
a serpe que a seu passo resistiu.
Em outra parte estou afigurando
o poderoso Anteu que, derrubado,
mais força se lhe estava acrescentando;
mas do hercúleo braço subjugado,
no ar deixou a vida, não podendo
da madre terra já ser ajudado.
Nem com isto, enfim, que estou dizendo,
nem com as armas tão continuadas,
de lembranças passadas me defendo.
Todas as coisas vejo remudadas,
porque o tempo ligeiro não consente
que estejam de firmeza acompanhadas.
Vi já que a Primavera, de contente,
de mil cores alegres revestia
o monte, o rio, o campo alegremente.
Vi já das altas aves a harmonia,
que até aos montes duros convidava
a um modo suave de alegria.
Vi já que tudo, enfim, me contentava,
e que, de muito cheio de firmeza,
um mal por mil prazeres não trocava.
Tal me tem a mudança e estranheza
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que, se vou pelos campos, a verdura,
parece que se seca, de tristeza.
Mas isto é já costume da ventura;
que os olhos que vivem descontentes,
descontente o prazer se lhe afigura.
Ó graves e insofríveis acidentes
de Fortuna e de amor que a penitência
tão grave dais aos peitos inocentes!
Não basta experimentar-me a paciência,
com temores e falsas esperanças,
sem que também me atente o mel de ausência?
Trazeis um brando ânimo em mudanças,
para que nunca possa ser mudado
de lágrimas, suspiros e lembranças.
E se estiver ao mal acostumado,
também no mal não consentis firmeza,
para que nunca viva descansado.
Vivia eu sossegado na tristeza,
e ali não me faltava um brando engano,
que tirasse os desejos da fraqueza.
E vendo-me enganado estar ufano,
deu à roda Fortuna, e deu comigo
onde de novo choro o novo dano.
Já deve de bastar o que aqui digo
para dar a entender o mais que calo,
a quem já viu tão áspero perigo.
E se nos bravos peitos faz abalo
um peito magoado e descontente,
que obriga a quem o ouve a consolá-lo;
não quero mais senso que largamente,
Senhor, me mandeis novas dessa terra:
ao menos poderei viver contente.
Porque se o duro Fado me desterra,
tanto tempo do bem que o fraco espírito
desampare a prisão onde se encerra,
ao som das negras águas de Cocito,
ao pé dos carregados arvoredos
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cantarei o que na alma tenho escrito.
E, por entre esses hórridos penedos,
a quem negou Natura o claro dia,
entre tormentos ásperos e medos,
com a trêmula voz, cansada e fria,
celebrarei o gesto claro e puro
que nunca perderei da fantasia.
E o músico de Trácia, já seguro
de perder sua Eurídice, tangendo
me ajudará, ferindo o ar escuro.
As namoradas sombras, revolvendo
memórias do passado, me ouvirão;
e com seu choro, o rio irá crescendo.
Em Salmoneu as penas faltarão,
e das filhas de Belo, juntamente,
de lágrimas os vasos se encherão.
Que se o amor não se perde em vida ausente,
menos se perderá por morte escura;
porque, enfim, a alma vive eternamente,
e amor é afeito d'alma, e sempre dura.
III
O sulmonense Ovídio, desterrado
na aspereza do Ponto, imaginando
ver-se de seus parentes apartado;
sua cara mulher desamparando,
seus doces filhos, seu contentamento,
de sua pátria os olhos apartando;
não podendo encobrir o sentimento,
aos montes e às águas se queixava
de seu escuro e triste nascimento.
O curso das estrelas contemplava,
e como por sua ordem discorria
o céu, o ar e a terra aonde estava.
Os peixes pelo mar nadando via,
as feras pelo monte, procedendo
como seu natural lhes permitia.
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De suas fontes via estar nascendo
os saudosos rios de cristal,
a sua natureza obedecendo.
Assim só, de seu próprio natural
apartado, se via em terra estranha,
a cuja triste dor não acha igual.
Só sua doce Musa o acompanha,
nos versas saudosos que escrevia,
e lágrimas com que ali o campo banha.
Destarte me afigura a fantasia a vida
com que vivo, desterrado do bem
que noutro tempo possuía.
Ali contemplo o gosto já passado,
que nunca passará pela memória
de quem o tem na mente debuxado.
Ali vejo a caduca e débil glória
desenganar meu erro, com a mudança
que faz a frágil vida transitória.
Ali me representa esta lembrança
quão pouca culpa tenho; e me entristece
ver sem razão a pena que me alcança.
Que a pena que com causa se padece,
a causa tira o sentimento dela;
mas muito dói a que se não merece.
Quando a roxa manhã, formosa
e bela, abre as portas ao sol, e cai o orvalho,
e torna a seus queixumes filomela;
este cuidado que com sono atalho
em sonhos me parece; que o que a gente
para descanso tem, me dá trabalho.
E depois de acordado, cegamente
(ou, por melhor dizer, desacordado,
que pouco acordo tem um descontente)
dali me vou com passo carregado,
a um outeiro erguido, e ali me assento,
soltando a rédea toda a meu cuidado.
Depois de farto já de meu tormento,
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dali estendo os olhos saudosos
à parte aonde tenho o pensamento.
Não vejo senão montes pedregosos;
e os campos sem graça e secos vejo
que já floridos vira e graciosos.
Vejo o puro, suave e brando Tejo,
com as côncavas barcas, que, nadando,
vão pondo em doce efeito seu desejo.
as com brando vento navegando,
outras com os leves remos, brandamente
as cristalinas águas apartando.
Dali falo com a água, que não sente
com cujo sentimento a alma sai
em lágrimas desfeita claramente.
Ó fugitivas ondas, esperai!
que, pois me não levais em companhia
ao menos estas lágrimas levai,
até que venha aquele alegre dia
que eu vá onde vós is, contente e ledo.
Mas tanto tempo quem o passaria?
Não pode tanto bem chegar tão cedo,
porque primeiro a vida acabará
que se acabe tão áspero degredo.
Mas esta triste morte que virá,
se em tão contrário estado me acabasse,
a alma impaciente aonde irá?
Que, se às portas tártaras chegasse,
temo que tanto mal pela memória
nem ao passar de Lete lhe passasse.
Que, se a Tântalo e Tício for notória
a pena com que vai que a atormenta,
a pena que lá tem terão por glória.
Esta imaginação me acrescenta
mil mágoas no sentido, porque a vida
de imaginações tristes se sustenta.
Que, pois de todo vive consumido,
porque o mal que possui se resuma,
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imagina na glória possuída,
até que a noite eterna me consuma,
ou veja aquele dia desejado,
em que Fortuna faça o que costuma;
— se nela há i mudar um triste estado.
IV
Aquele mover d'olhos excelente,
aquele vivo espírito inflamado
do cristalino rosto transparente;
aquele gesto imoto e repousado,
que estando n'alma propriamente escrito,
não pode ser em verso trasladado;
aquele parecer que é infinito
para se compreender de engenho humano,
o qual ofendo enquanto tenho dito,
me inflama o coração dum doce engano,
me enleva e engrandece a fantasia,
que não vi maior glória que meu dano.
Oh bem-aventurado seja o dia
em que tomei tão doce pensamento,
que de todos os outros me desvia!
E bem-aventurado o sofrimento
que soube ser capaz de tanta pena,
vendo que o foi da causa o entendimento!
Faça-me, quem me mata, o mel que ordena;
trate-me com enganos, desamores;
que então me salva, quando me condena.
E se de tão suaves desfavores
penando vive uma alma consumida,
oh! que doce penar! que doces dores!
E se uma condição endurecida
também me nega a morte por meu dano,
oh! que doce morrer! que doce vida!
E se me mostra um gesto brando e humano,
como que de meu mal culpada se acha,
oh! que doce mentir! que doce engano!
50
E se em querer-lhe tanto ponho tacha,
mostrando refrear o pensamento,
oh! que doce fingir! que doce cacha!
Assim que ponho já no sofrimento
a parte principal de minha glória,
tomando por melhor todo o tormento.
Se sinto tanto bem só na memória
de vos ver, linda Dama, vencedora,
que quero eu mais que ser vossa a vitória?
Se tanto vossa vista mais namora
quanto eu sou menos para merecer-vos,
que quero eu mais que ter-vos por Senhora?
Se procede este bem de conhecer-vos
e consiste o vencerem ser vencido,
que quero eu mais, Senhora, que querer-vos?
Se em meu proveito faz qualquer partido,
só; na vista duns olhos tão serenos,
que quero eu mais ganhar que ser perdido?
Se meus baixos espíritos de pequenos,
ainda não merecem seu tormento,
que quero eu mais, que o mais não seja menos?
A causa, enfim, me esforça o sofrimento,
porque, apesar do mal, que me resiste,
de todos os trabalhos me contento;
que a razão faz a pena alegre ou triste.
V
Se quando contemplamos as secretas
Causas, por que o mundo se sustenta,
o revolver dos céus e dos planetas;
e se quando à memória se apresenta
este curso do Sol, que é tão medido
que um ponto só não míngua nem se aumenta;
aquele efeito, tarde conhecido,
da Lua, em ser mudável tão constante
que minguar e crescer é seu partido;
aquela natureza tão possante
51
dos céus, que tão conforme se contrários
caminham, sem parar um breve instante;
aqueles movimentos ordinários,
a que responde o tempo, que não mente,
com os efeitos da Terra necessários;
se quando, enfim, revolve sutilmente
tantas coisas a leve fantasia,
sagaz, escrutadora e diligente;
vê bem, se da razão se não desvia,
o altíssimo Ser, puro e divino,
que tudo pode, manda, move e cria;
sem fim e sem começo: um ser contino;
um Padre grande, a quem tudo é possível,
por mais árduo que seja ao homem indigno;
um saber infinito, incompreensível;
uma verdade que nas coisas anda,
que mora no visível e no invisível.
Esta Potência, enfim, que tudo manda,
esta Causa das causas, revestida
foi desta nossa carne miseranda.
Do amor e da justiça compelida,
pelos erros da gente, em mãos da gente
(como se Deus não fosse!) perde a vida.
Ó cristão descuidado e negligente
pondera isto, que digo, repousado,
não passes por aqui tão levemente.
Não, que aquele Deus alto incriado,
Senhor das coisas todas, que fundou
o céu, a Terra, o fogo e o mar irado,
não do confuso Caos, como cuidou
a falsa teologia e povo escuro,
que nesta só verdade tanto errou;
não dos átomos falsos de Epicuro;
não do largo Oceano, como Tales,
mas só do pensamento casto e puro.
Olha, animal humano, quanto vales,
que por ti este grande Deus padece,
52
novo modo de morte, novos males.
Olha que o Sol no Olimpo se escurece,
não por oposição doutro planeta,
mas só porque virtude lhe falece.
Não vês que a grande máquina inquieta
do mundo se desfaz toda em tristeza,
e não por natural causa secreta?
Não vês como se perde a natureza?
O ar se turba? o mar, batendo, geme,
desfazendo das pedras a dureza?
Não vês que os montes caem? a terra treme?
E que até na remota e grande Atenas,
o sábio Dionísio sente e teme?
O sumo Deus! tu mesmo te condenas
pelo mal em que eu só sou tão culpado,
a tamanhas afrontas, tantas penas.
Por mim, Senhor, no mundo reputado
por falso e por quebrantados da lei
a fama de ti se põe do meu pecado.
Eu, Senhor, sou ladrão; tu, justo Rei;
eu, só furtei; tu, com ladrões padeces;
a pena a ti se dá do que eu pequei.
Eu, servo sem valor; tu, sumo preço,
em preço vil te pões, por me tirares
do cativeiro eterno, que mereço.
Eu, por perder-te; e tu, por me ganhares,
te dás aos homens baixos, que te vendem,
só para os homens presos resgatares.
A ti, que as almas soltas, a ti prendem;
a ti, sumo Juiz, ante juízes te acusam,
pelo erro dos que te ofendem.
Chamem-te malfeitor, não contradizes;
sendo tu dos profetas a certeza,
dizem que quem te fere profetizes.
Riem-se de ti; tu choras a crueza
que sobre eles virá. A gente dura,
por quem tu vens ao mundo, te despreza.
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O teu rosto, de cuja formosura
se veste o céu e o Sol resplandecente,
diante de que muda está a Natura,
com cruas bofetadas da vil gente,
de precioso sangue está banhado,
cuspido, arrepelado cruelmente.
Aquele corpo tenro e delicado,
sobre todos os santos sacrossanto,
de açoutes rigorosos flagelado;
depois, coberto mal de um pobre manto,
que se pegava às carnes magoadas,
para dobrar-lhe as dores outro tanto.
Magoavam-no as chagas não curadas,
um tormento causando-lhe, excessivo,
ao despir pelas mãos cruéis e iradas.
As santíssimas barbas de Deus vivo,
de resplendor ornadas lhe arrancavam,
para desempenhar Adão cativo.
Com cordas pelas ruas o levavam,
levando sobre os ombros o troféu
das vitórias que as almas alcançavam.
O tu que passas, homem Cireneu,
ajuda um pouco este Homem verdadeiro,
que agora como humano enfraqueceu!
Olha que o corpo, aflito do martírio
e dos longos jejuns debilitado,
não pode já com peso do madeiro.
Oh não enfraqueçais, Deus encarnado!
Essas quedas, que tanto vos magoam,
suportai, cavaleiro sublimado!
Que aquelas altas vozes que lá soam,
Padres são que estão no Limbo escuro,
que já de louro e palma vos coroam.
Todos vos bradam, que subais ao muro
da cidade infernal, e que arvoreis
em cima essa bandeira, mui seguro.
Oh santos padres, não vos apresseis,
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que muito mais a Deus que a vós custaram
essas duras prisões em que jazeis!
aquelas mãos, que o mundo edificaram,
aqueles pés, que pisam as estrelas,
com duríssimos pregos se encravaram.
Mas qual será a pessoa que as querelas
da angustiada Virgem contemplasse
que não se mova à dor e à mágoa delas?
E que dos olhos seus não estilasse
tanta cópia de lágrimas ardentes
que carreiras no rosto assinalasse?
Oh quem lhe vira os olhos refulgentes
desfazendo-se em lágrimas, regando
aquelas belas faces excelentes!
Quem a vira com os gritos ir tocando
as estrelas, a quem responde o céu,
com os acentos dos Anjos retumbando!
Quem vira quando o claro rosto ergueu
a ver o Filho, que na Cruz pendia,
donde a nossa saúde descendeu!
Que mágoas tão chorosas que diria!
Que palavras tão míseras e tristes
para o céu, para a gente espalharia!
Pois que seria, Virgem, quando vistes
com fel nojoso e com vinagre amaro
matar a sede ao Filho que paristes?
Não era este o licor suave e claro
que, para o confortar, então daríeis
a quem vos era, mais que a vida, caro.
Como, Virgem Senhora, não corríeis
a dar as tetas puras ao Cordeiro
que padecer na Cruz com sede víeis?
Não só era esse, Senhora, o verdadeiro
poto, que vosso Filho desejava
morrendo polo mundo num madeiro;
mas era a salvação, que ali ganhava
para o mísero Adão, que ali bebia
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na fonte, que do peito lhe manava.
Pois, ó pura e Santíssima Maria,
que, enfim, sentistes esta mágoa, quanto
a gravidade dela o requeria;
dessa Fonte sagrada e peito santo
me alcançai uma gata, com que lave
a culpa, que me agrava e pesa tanto.
Do licor salutífero e suave
me abrangei, com que mate a sede dura
deste mundo tão cego, torpe e grave.
Assim, Senhora, toda a criatura
que vive e viverá, que não conhece
a Lei do vosso Filho, santa e pura;
o falsíssimo herege, que carece
da graça, e com danado e falso espírito
perturba a Santa Igreja, que floresce;
O povo pertinaz, no antigo rito,
que só o desterro seu, que tanto dura,
lhe diz que é pena igual ao seu delito;
o torpe ismaelita, que mistura
as leis, e com preceitos viciosos
na terra estende a seita falsa, impura;
os idólatras maus, supersticiosos,
vários de opiniões e de costume,
levados de conceitos fabulosos;
as mais remotas gentes, onde o lume
da nossa fé não chega, nem que tenham
religião alguma se presume;
assim todos, enfim, Senhora, venham
confessar um só Deus crucificado,
e por nenhum respeito se detenham.
Mas de todos o vício já passado,
o seu nome com vosso, neste dia
seja por todo mundo celebrado
E respondam os céus: JESUS, MARIA.
VI
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(À morte de d. Miguel de Meneses, filho de D. Henrique de Meneses,
Governador da Casa do Cível, que morreu na Índia)
VII
(Dom Leonis Pereira sobre o livro e Pero de Magalhães lhe ofereceu do
descobrimento da Terra de Santa Cruz)