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Memória

Era um gélido domingo de outono. Um vento contínuo soprava desde o início da


noite, derrubando as folhas secas ainda restantes nos galhos das poucas, mas volumosas
árvores que adornavam aquela região da cidade. Ao caírem, as folhas despedaçadas se
misturavam aos punhados de flores brancas e murchas que jaziam no asfalto, ou às
embalagens e aos papéis que se acumulavam, pela força da ventania, nas sarjetas e nas
entradas de alguns bueiros, conferindo às ruas uma paisagem descuidada. Passava das
onze e meia da noite, e poucas pessoas ainda se aventuravam a circular, por conta do
frio e da segunda-feira que se aproximava, quando Daniel avistou um bar pequeno,
porta de ferro daquelas tradicionais, no meio de um quarteirão que, embora
geograficamente bem localizado, era formado em sua maioria por prédios que
demonstravam abandono. Na frente do bar, no meio das paredes de tom azul celeste já
desbotado, e com uma pequena pichação no canto superior direito, quedava suspenso
um luminoso retangular antigo, cuja sujeira evidente ofuscava a luz de tal maneira que
impedia alguém de lê-lo a mais de cinco passos. A impressão que se tinha do lado de
fora definitivamente não era das melhores. Posto, porém, que parecesse o único lugar
ainda aberto àquela hora da noite, e sem querer se estender na procura de um botequim
mais aprazível, decidiu arriscar. Dentro, a impressão exterior era reforçada. Dois
homens guardavam um silêncio sepulcral que, combinado às taciturnas expressões que
estampavam na face, tornavam o ambiente mais sinistro do que se poderia esperar. O
primeiro deles, o dono, um senhor alto e esbelto, de cabelos negros cacheados, e olhos
miúdos, que parecia contar aproximadamente com a idade de Daniel, embora se notasse
nele um semblante mais conservado. Tinha um jeito indiferente, e sem dar grande
importância à entrada do novo freguês, começava o trabalho de limpar, com um pano
úmido e com algum sinal de encardido, as mesas desocupadas daquele espaço pequeno
e de pouca ventilação, como que se preparando para fechá-lo. Na mesa mais ao fundo,
com olhar distante, um homem de costas largas e fortes, embora levemente corcunda,
rosto ovalado, e traços que denunciavam idade avançada, bebia lentamente, mas com ar
de satisfação, expressa pela forma como enxugava os lábios com a própria língua, um
copo cheio de um líquido amarelado, de odor tão forte que feriu o olfato de Daniel tão
logo ele adentrara aquele recinto pouco convidativo.
Há poucos meses, aquele seria o último lugar onde se poderia encontrar um
empresário bem sucedido como ele. Oriundo de uma família de classe média suburbana,
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naturalmente devota de valores tradicionais, Daniel começara a trabalhar logo aos 18


anos, a princípio como ajudante de escritório numa firma pequena, a fim de pagar os
próprios estudos e, assim, cumprir aquele destino traçado para gente de sua origem
social: tratar de “subir na vida”. Logo, demonstrou talento para o comércio, e aos 25
anos já era dono de um próprio e de imediato bem-sucedido negócio. Desejoso, desde a
juventude, de compartilhar o modo de vida da high society que tanto admirava, o fato é
que tinha se ambientado de tal maneira à vida ostentosa conseguida pelo êxito
profissional, que os amigos feitos já depois de adulto não conseguiam conceber que
aquele homem algum dia tivesse pertencido a outro estrato social que não a elite. Tudo,
porém, começou a mudar quando uma crise sem precedentes atingiu suas atividades
profissionais. De uma hora para outra, os clientes mais importantes – alguns dos quais
compunham inclusive seu círculo mais íntimo de amizades – o deixaram a ver navios,
como é de praxe nesses casos. Após algumas tentativas frustradas de ampliação de
mercado, cujo único resultado prático foi o aumento nas dívidas, e sem conseguir
recuperar o espaço perdido para concorrentes, sobretudo os estrangeiros (“Ah, esses
malditos chineses!”, costumava lamentar-se quando as notícias indicavam nova invasão
de produtos daquele país em sua área), Daniel viu pouco a pouco seu patrimônio fazer
água. Em quatro anos, estava praticamente arruinado. Para piorar de vez sua situação,
há um mês a esposa dera entrada no pedido de divórcio, deixando o lar após inúmeras
brigas motivadas pela constante queda no orçamento familiar e, por conseguinte, em seu
outrora invejável padrão de vida. A fantasia da vida tipicamente burguesa desmanchava-
se diante de seus olhos, atônitos e incrédulos, pela própria dinâmica do mundo do qual
sempre sonhara ser parte. Sozinho, sem solução aparente, e com o orgulho ferido como
jamais tinha imaginado possível, decidira-se na última semana a se desfazer do que
ainda restava de sua empresa. Na verdade, porém, encerrar as atividades às quais
dedicara a maior parte dos últimos 20 anos, mesmo naquele momento de crise, era um
prelúdio para a execução de uma ideia maior que há alguns dias povoava sua mente.
- Um conhaque, por favor – Daniel pediu assim que se acomodou numa das
mesas recém esfregadas, mas com a voz embargada que denunciava certo incômodo por
estar num ambiente estranho a seus costumes.
Pegou o copo americano quase cheio, posto sobre a mesa de madeira bem
trabalhada, embora já gasta, e olhou-o com ar um tanto quanto enojado. Apesar de
consciente de sua situação, o fato é que ainda não tinha conseguido se acostumar ao
novo modelo de vida imposto pelos últimos fracassos. Descansou o copo sobre a mesa e
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fitou o líquido com tristeza. A luz amarelada do bar, que ficava bem à frente da mesa
onde se sentara, atravessava o copo de tal maneira que dava à bebida um brilho muito
diferente de sua opacidade comum. Ficou a olhar o copo por longos minutos, durante o
qual lhe passava, como numa película autobiográfica, alguns daqueles momentos que
nos definem a vida. Durante essa recapitulação forçada, não podia deixar de se indagar,
antes de cada nova cena vir à sua mente, como tinha chegado naquele ponto. Logo ele...
- Dinheiro, mulheres... pouquíssimas coisas são capazes de deixar um homem
nesse estado.
A voz firme ecoara no ouvido de Daniel, fazendo-o despertar de seu devaneio.
Olhou para o lado de sobressalto, como alguém que, ainda sonolento, acorda pela
manhã sem saber exatamente onde se encontra. O velho senhor, que há algum tempo
passara a observar atentamente a cena dramática da mesa ao lado, interpelava-o como se
pensasse em voz alta.
- Ahn? – disse Daniel de maneira fria, ainda meio aturdido pela recente
divagação.
- Dizem que só há dois assuntos capazes de fazer incendiar o coração de um
homem: o dinheiro e as mulheres.
- Não sei do que fala! – replicou Daniel de maneira seca, enrugando a face e
olhando o interlocutor de soslaio.
- Digo que só há dois motivos para que um homem em plena forma, bem
vestido, aparentando classe, embora com o olhar carregado de amargura, adentre um
local como esse, a essa hora da noite, e permaneça longos minutos fitando sem
esperança um copo de conhaque sobre a mesa.
Daniel olhou-o com ar de reprovação, franzindo levemente a testa, incomodado
com o fato de um estranho intrometer-se de tal modo em sua vida. Ainda mais, um
pobre diabo como aquele. O velho, porém, fingindo não perceber o descontentamento,
insistiu, após ameaçar e desistir de mais um gole em sua bebida:
- Estou errado, senhor...?
- Daniel.
- Então, estou errado, senhor Daniel?
Não, acho que não – respondeu lacônico depois de alguns segundos, enquanto
apanhava o copo entre as mãos.
A conversa se desenrolava entrecortada pelo barulho do dono do bar, que lavava
as louças na pia atrás do balcão e, de frente para as mesas, mas sem levantar a cabeça,
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tentava ouvir o que diziam os clientes, como que para se distrair daquele serviço
enfadonho. O velho trouxe seu copo novamente à boca, e tomou o resto da cachaça
numa só golada, como se quisesse compensar o tempo que ficara sem saboreá-la por
conta da tentativa de diálogo. Daniel, por sua vez, retornou a cabeça para frente, e
finalmente começou a tragar o conhaque. O gosto amargo da bebida, certamente de
qualidade inferior a que seu paladar se acostumara, fez seu rosto enrubescer de chofre, e
seus olhos lacrimejarem timidamente. Numa espécie de ritual de auto-flagelo, deu ainda
mais um grande hausto, antes que fosse novamente interpelado pela voz que vinha da
outra mesa.
- Sabe, quando se está assim, como o senhor, pode ser útil externar os
pensamentos. Dizem aqueles especialistas que volta e meia aparecem na televisão, que o
primeiro passo para resolver um problema é enunciá-lo em voz alta. Eu, ao menos...
Desistira de completar a frase. Daniel mostrava-se inquieto com a curiosidade
daquele senhor, embora soubesse da consistência do que acabara de ouvir. Era um
homem cultivado, já tinha lido muito e, por força dos negócios, também bastante
viajado. Mas, por alguns instantes, sucedidos de um outro sorvo no conhaque, decidiu-
se por perder o olhar pelo ambiente. Só então resolveu responder. Parecia a melhor
opção. Ou a única, dada a situação em que se encontrava.
- Vinte anos dediquei-me aos negócios. Agora, estou falido, a esposa me deixou,
enfim... motivos suficientes para estar aqui.
- Compreendo – disse o outro freguês com satisfação, ao ver sua teoria
confirmada. – Mas ainda é um homem novo, logo as coisas hão de melhorar –
prosseguiu, tentando transmitir confiança no que acabava de dizer.
- Não creio.
- Por quê?
Daniel lançou um olhar ameaçador à mesa ao lado. “Não te interessa!” pensou
em responder, mas desistiu a tempo de dizer as palavras em voz alta. Como se o velho,
porém, não demonstrasse nenhuma reação, viu que seria obrigado a continuar, não sem
alguma impaciência, ainda incomodado que estava de ver-se impelido a contar sua
história para um desconhecido.
- Veja bem, tenho 45 anos – disse em tom sério e um pouco áspero. – Mais da
metade da minha vida foi consumida por negócios que naufragaram... e, para piorar,
agora estou sozinho e...
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- Mas sempre é tempo de recomeçar! – redarguiu o velho, atravessando o


pensamento do outro enquanto acenava para o dono do bar.
Daniel fez um sinal negativo com a cabeça, soltou as mãos junto à mesa e
desobrigou-se a continuar. Jamais aquele homem poderia compreendê-lo, jamais
alguém poderia penetrar o íntimo de sua alma e perceber a extensão da tragédia que se
passara em sua vida. Não era um fracasso qualquer, não era apenas o dinheiro ou a
separação, esta apenas o coroamento de seu malogro. Era todo o mundo que deixava de
fazer sentido. O seu mundo, que num abrir e fechar de olhos desmoronava, como um
prédio em ruínas, com os alicerces definitivamente comprometidos, destinado a vir
abaixo no primeiro sopro do vento mais suave.
Mirou então a rua pela pequena porta do bar. Uma garoinha fina começava a
cair, o que nessas horas, como se sabe, sempre aumenta o sentimento de solidão e
desamparo. Nesse momento, percebeu que o dono se dirigia à mesa do outro freguês,
com mais uma dose do líquido mal-cheiroso na mão. Sem poder ignorar o odor da
bebida, Daniel voltou seus olhos novamente para lá, gesto interpretado pelo outro
cliente como um sinal de interesse em reatar a conversa. De posse de uma nova dose de
seu elixir, o inquieto senhor deu-se a permissão de prosseguir.
- Venho de uma família muito pobre e trabalho desde meus 13 anos. Faça chuva
ou sol, bem ou mal de saúde, não importa. Todos os dias estou lá, pontualmente no
horário acordado com meus patrões. Foi o que a vida me impôs. Durante esse tempo
todo, tive apenas três grandes períodos de descanso. Os três porque estava
desempregado. Não porque tivesse sido um mau funcionário, hein? Jamais me
mandaram embora por não fazer meu serviço direito! Era culpa da tal da economia, me
diziam. Apesar de precisar de folga, como todo mundo, posso garantir-lhe que foram os
dias mais desesperadores da minha vida, pois mais do que repouso, carecia de alguma
forma de garantir meu sustento, e não havia onde pudesse conseguir, quem pudesse me
ofertar. É assim que funciona, não é? O senhor deve saber, a gente que não tem meios
quer trabalhar, e muitas vezes não consegue... Além disso, o governo também não
ajudava, imagine...
Daniel ouvia essas palavras com os olhos direcionados para os pés do homem,
que calçavam um sapato preto muito batido, e um pouco empoeirado, mas de aparente
bom gosto. Conhecia aquele discurso lamurioso de cor. Inúmeras vezes, fora obrigado a
demitir funcionários por conta do que se acostumara a chamar de “flutuações
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econômicas”, e, por tantas vezes, ouvira – com a mesma atenção de agora – aquele tipo
de lamento.
- Toda minha vida tem sido uma prova de resistência – continuou o velho. –
Muitos em meu lugar já teriam desistido. Aliás, vi muitos desistirem, se enveredarem
pela vida fácil ou simplesmente darem um fim covarde à própria vida. Eu não. Eu posso
dizer com orgulho que, mesmo com muita dificuldade, venci. Melhor dizendo,
sobrevivi. Quem nasce como eu não vive, sobrevive. Essa é a lei. Apesar de tudo, um
dia serei levado por ela, mas não me incomodo. Minha vida está feita e posso dormir em
paz.
- Por ela quem? – indagou Daniel sem demonstrar grande interesse, apenas com
a intenção de confirmar uma resposta já sabida.
- Ora, por quem mais? Pela morte, oras! Tudo nessa vida é passageiro, como se
diz. Só há uma coisa que dura para sempre: a morte.
Daniel fez um gesto com a sobrancelha, e esboçou um irônico sorriso de
superioridade. O velho, contudo, não se fez de rogado, e curvando um pouco as costas,
estendendo o braço esquerdo sobre a mesa, continuou no tom de quem está prestes a
contar um segredo.
- Olha só que curioso: embora todo mundo saiba que apenas a morte é para
sempre, essa banalidade segue incompreensível para a maioria da gente. Por exemplo,
conheço o senhor há poucos minutos. Mas me pareceram suficientes para perceber sua
aflição. Dedicou grande parte da vida a acumular bens e fortuna. Agora, isso está
perdido, e então se sente desorientado. Padece do mal de muitos homens nesses tempos:
crêem na eternidade de suas posses, de seu poder. Veem aí o único sentido de sua
existência. E se esquecem de que nada neste mundo dura para sempre. Quer dizer, nada,
exceto a morte. Essa, depois que vem, não volta mais. Mas, para aqueles homens que
vivem sem compreender esse dado simples, basta que alguém lhes tire seus bens, que se
vejam sem seu dinheiro, para se sentirem como se na verdade alguém lhes tivesse tirado
a própria vida!
- Sim, pode ser – limitou-se dizer Daniel, cabisbaixo, como se preparasse um
contra-argumento para defender-se. Quando fez menção de avançar, porém, foi
antecipado.
- Tua mulher, se te abandonou por isso, como imagino, é porque padecia do
mesmo mal. Ou se preferir, da mesma ilusão, não?
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- Não, não se trata de ilusão – tentou corrigir Daniel rapidamente, meio


embaraçado –, e sim de todo o esforço de uma vida que...
- Ilusão sim, meu rapaz! – interrompeu o velho de maneira terna, mas decidida. –
Tudo um dia acaba. Só não sabemos quando. Eu, você, este bar, a chuva que cai lá
fora... podemos apostar que, dessas coisas, a chuva é que deverá terminar primeiro, mas
quem pode garantir, hein? Nosso fim é algo de que todo mundo tem ciência, mas
poucos conseguem realmente compreender. Desde cedo, as pessoas perdem sua vida em
busca de riqueza, de poder, desse monte de bobagens, enfim. Mas, como somos gente,
não importa, mais cedo ou mais tarde, estamos fadados ao mesmo destino: a morte. E
depois que morrermos, sabe o que restará?
- O quê? – perguntou Daniel com um semblante desconfiado.
- A memória.
- A memória?
- Sim, a memória.
- Eu... eu não entendi.
- Pois, veja. Os homens destroem-se uns aos outros, buscando acumular dinheiro
e poder, e dominar os outros, ou conquistar terras e esse tipo de coisas. Mas se
esquecem que...
- Nada disso dura para sempre – apressou-se em completar Daniel, como se
aquele discurso fosse por demais previsível e repetitivo.
- A única coisa que restará, quando nossos corpos tiverem sido tragados pela
terra, é a marca que deixaremos na mente e no coração de outras pessoas. É como
seremos lembrados. Ou se seremos... – disse baixando os olhos, mas com tal ênfase na
partícula condicional, que acabou chamando a atenção de Daniel.
Enquanto o velho momentaneamente interrompia seus pensamentos, como se
quisesse dar tempo para o ouvinte digerir suas palavras, Daniel tornava a fitá-lo com
suspeição, conquanto agora mais receptivo.
- Há homens – continuou o velho – que, embora não estejam fisicamente entre
nós há tempos, jazem mais vivos do que outros, cujos corpos vemos cruzar com os
nossos todos os dias pelas ruas. Estes parecem vivos, mas já estão mortos.
Definitivamente mortos, porque basta que alguém lhes feche o caixão para que sejam
lançados de uma só vez ao abismo do esquecimento. Outros, contudo, permanecerão
vivos por muitos e muitos anos. Um homem pode viver para sempre se estiver vivo na
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memória dos outros. Ou pode já estar morto, mesmo de corpo presente, se não for capaz
de ter lugar na memória, no coração de alguém.
Indubitavelmente mais afetado pelo que estava ouvindo, e talvez desarmado do
preconceito inicial por conta do efeito da forte bebida, que ele voltara a tomar, Daniel
começava a sentir pouco a pouco as palavras do homem invadirem seus pensamentos.
Ao mesmo tempo em que o desconcertava, aquele discurso tão direto, e ao mesmo
tempo tão improvável, absorvia-o pouco a pouco, num conflito intermitente, uma
mistura angustiante de curiosidade e pavor.
- A única coisa que deixamos de nossa vida – emendou o velho, percebendo ter
conquistado definitivamente a atenção de Daniel – é a impressão que conseguiremos
deixar no espírito daqueles que ficarem após a nossa morte. A morte... depois que ela
chega, nosso destino está selado. O que será definitivo é a maneira pela qual se
lembrarão de nós. Isso, claro, para aqueles que tiverem a sorte de sê-lo. Muitos homens
não se dão conta de que a morte verdadeira não é a da carne, mas a da memória. Uma
vez esquecidos, e estamos mortos para sempre. Veja bem: o que move a humanidade é
nosso desejo de sermos imortais. Mas a maioria dos homens não consegue perceber o
que isso significa, não consegue perceber que a duração da vida de uma pessoa não se
mede pela extensão de sua existência física, mas pelo tempo que ela habita o coração
das outras; pelo tempo que povoa as lembranças daqueles que a conheceram. Aqueles
que permanecem vivos, mesmo depois de suas carnes virarem alimento para os vermes,
são estes que podemos definir como os grandes homens, as grandes mulheres. Para ser
grande, pouco importa quanto dinheiro ou poder alguém tenha possuído, nem mesmo
quantos anos viveu, mas o que fez, e como fez, e para quem fez... este é o segredo,
entende? este é o segredo.
O velho fez nova pausa, agora para beber, enquanto Daniel o mirava espantado.
Sem floreios, aquela fala ressoava em sua cabeça de maneira atormentadora, mas
certeira, como talvez nenhum filósofo ou poeta conseguisse. De fato, aplicara a maior
parte de seu tempo a procurar riquezas, conforto, poder. E agora que tudo isso lhe
escorria por entre os dedos, sentia como se a própria vida lhe tivesse sido arrancada.
Sentia-se abandonado. Morto. Era vítima de si mesmo, de seu próprio mundo!
Como se procurasse uma forma de desviar sua atenção, depressa dirigiu sua
cabeça ao dono do bar, e pediu então uma nova dose. Entrementes, o velho voltava a
saborear sua bebida barata com visível e, aos olhos de Daniel, inexplicável prazer, antes
de deitar novamente o copo sobre a mesa. Sem demonstrar qualquer pressa, o homem
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então respirou fundo, pôs a mão no queixo enquanto descansava o cotovelo direito
sobre a madeira, e deixou o olhar perder-se pelo bar, como se buscasse inspiração para
continuar sua reflexão. Após alguns instantes em silêncio, que a Daniel pareciam
eternos – se sentia como a criança que espera o pai terminar de contar uma história – o
velho deu uma leve tossida e pôs-se a continuar.
- Olhe o meu caso, por exemplo – disse com o rosto corado pela bebida e pela
empolgação com que passara a pronunciar suas palavras, enquanto o dono servia um
novo conhaque a Daniel. – Nunca tive bens, nem dinheiro, nem nada disso pelo qual a
maioria dos homens inutilmente perde sua vida. Mas hoje, ao deitar-me, sei que se algo
vier a me acontecer, permanecerei bem vivo em sua lembrança, e na de muitas outras
pessoas com as quais pude conviver, no coração das mulheres que tive a oportunidade
de amar... ao fim e ao cabo, é só isso o que importa, pois é só o que fica, percebe? Já no
seu caso, crê que alguém se recordará do senhor, quando não estiver mais aqui? Alguém
lamentará sua ausência, sentirá saudades, desejará que ainda estivesse vivo? Alguém
olhará uma fotografia sua e dirá “este foi um grande homem”?
Daniel não respondeu. Aquelas perguntas, lançadas como flechas embebidas em
veneno, atingiram de tal maneira o seu peito que o fizeram perder o pouco do chão que
ainda lhe restava. Sentia-se imundo. De fato, nunca se preocupara verdadeiramente com
nada além de suas obrigações profissionais, com seu sucesso, o dinheiro... A mulher,
pensava agora, certamente se recordaria dele, não mais com o afeto e o carinho do
tempo das bodas, contudo, e sim com desgosto, arrependimento. Prontamente percebia
seu débito. Não tinha dúvidas de que a amava, mas também sabia que jamais conseguira
dedicar a ela o tempo e a atenção devida. “Trabalho muito para que tenhamos conforto,
um bom padrão de vida, para que você não passe necessidades. Isso não basta?”, era a
réplica habitual às reclamações da esposa por conta de sua ausência física ou
sentimental. E se não fosse a esposa, quem mais? Aqueles a quem considerava como
amigos foram abandonando-o à medida que seu capital diminuía, e certamente já o
tinham esquecido por completo. Como, era preciso reconhecer, ele também os
esqueceria, se sua sorte fosse inversa. Desolado, chegava sem dificuldade à conclusão
de que havia desperdiçado grande parte de seus anos a troco de nada. Passava pela vida
sem vivê-la. “Alguém se lembrará de mim, quando eu não estiver mais aqui? alguém
terá saudades?”, perguntava-se irrequieto. E a resposta inevitável que vinha à sua cabeça
o atormentava ainda mais: “não, ninguém. Até aqui, foi tudo em vão. Se eu morrer,
ninguém lamentará, ninguém... Será que...?”. Não conseguia completar. Seu estômago
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revirava-se numa angústia crescente, como se quisesse saltar para fora da prisão de sua
carne. Seu coração inflamava o peito, palpitando freneticamente, movido pela gravidade
do que acabava de descobrir. Percebia seu fracasso. Não nos negócios, não no
casamento, como imaginava até então. Na vida.
O velho, notando pelo semblante de Daniel o impacto que causara, e com os
braços estendidos sobre a mesa, baixou os olhos timidamente em direção ao relógio
dourado que trazia no pulso esquerdo, logo após lançar um rápido olhar ao dono do bar,
que permanecia de pé, atrás do balcão, e mirava a cena um tanto quanto ressabiado,
fazendo movimentos com os lábios para um lado e para o outro. Em meio ao turbilhão
de pensamentos que se apoderavam de seu espírito, uma vontade de sair correndo e
gritar desesperadamente logo tomou conta de Daniel. Levantou-se então num salto e,
apressado, pagou o que devia, sem preocupar-se com o troco, mas não sem antes
enroscar tragicomicamente os pés em uma das mesas que apareceram em seu caminho.
A nova dose de conhaque permanecia quase intacta no copo, o que chamou a atenção e
despertou o paladar do velho, tão logo ele percebeu o caso. Daniel apertou os passos
para sair, enrijecendo de tal modo a cabeça que nem mesmo se quisesse poderia tornar a
ver seu contundente interlocutor, que agora o acompanhava com peculiar atenção,
jubiloso por ter a certeza de que suas palavras haviam penetrado aquela alma miserável,
e sem dar importância ao fato de que o outro sequer havia se dado ao trabalho de
perguntar o seu nome. Ao deixar o local, assustado, Daniel sentiu que a chuva havia
aumentado, e insultou os céus em voz alta, como se com isso buscasse se ofender a si
próprio. Seu brado, embora abafado pelo barulho ininterrupto da água, foi alto o
suficiente para ser percebido dentro do bar, tanto pelo inusitado conselheiro que, depois
de também acabar com a bebida deixada para trás pelo outro cliente, já se preparava
para ir embora, quanto pelo dono, que tendo escutado quase todo o diálogo, também se
punha a refletir nas palavras que acabara de ouvir, conquanto buscasse disfarçar seu
propósito.
Daniel entrou no carro com as roupas molhadas, e ainda vagueou algum tempo
pela noite, refletindo cuidadosamente sobre as palavras que tinha ouvido no bar, até
finalmente voltar para casa. Já passava das três. Ao deitar-se na cama desarrumada,
lembrou-se do revólver que tinha deixado no porta-luvas do automóvel mais cedo ao
sair. “Amanhã preciso tirá-lo de lá, antes que alguém o veja”, pensou rapidamente.
Virou-se então para o lado, esboçando um sorriso tímido com o canto da boca, antes de
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fechar os olhos exaustos. A chuva cessara há pouco, mas uma leve brisa persistia nas
ruas há muito adormecidas.

12/2010

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