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Recife: Observatório da
Realidade Organizacional : PROPAD/UFPE : ANPAD, 2002. 1 CD.
Resumo
A gestão das organizações, em busca de agilidade e flexibilidade, vem procurando
estabelecer relações do tipo transacional, em que as trocas entre o indivíduo e organização
compreendem apenas o trabalho executado e a remuneração correspondente e onde a
identificação do indivíduo estaria mais relacionada à profissão e ao trabalho executado do que
à organização. Esse trabalho se propõe analisar um dos elementos constituintes desse tipo de
relação – o processo de identificação – e responder à questão: a não-identificação com a
organização é possível? Para tanto, é feita uma exploração (a) da relação Homem-Trabalho
que emerge da condição ontológica do ser humano e (b) do processo de identificação, tal
como apresentado pela Psicologia Social. Dessa investigação são extraídos os elementos
utilizados para a avaliação das possibilidades da relação Homem-Trabalho e dos processos de
identificação na organização capitalista industrial; da mesma forma, são avaliadas as políticas
e práticas do paradigma emergente – que tem sido denominado de flexível – e os tipos de
relação indivíduo-organização que daí resultam. Como resultado da discussão, o trabalho
ressalta alguns pontos que merecem reflexão no estabelecimento das relações entre as pessoas
e a organização.
Abstract
In the search for agility and flexibility, management has been trying to establish
transactional relationships – in which the relationship between the individual and the
organization is limited to the exchange of the work performed for a fair financial
compensation and in which the individual’s identification is encouraged to be towards the
work itself or the profession, rather than the organization. This work intends to analyze one of
the elements that constitute this new contract – the identification process – and to try to
answer the question: is it possible for the individual not to identify with the organization? In
order to do so, this paper explores (a) the Man-Work relationship that emerges from Man’s
ontological condition and (b) the identification process, as presented by Social Psychology
theorists. This investigation provides the elements that are used for the evaluation of the Man-
Work relationship and the identification process in the industrial capitalistic organization; in
the same way, it is possible to evaluate the policies and practices of the present management
model, which has been called flexible, and the kinds of relationships that may derive from
them. This investigation points to some aspects that deserve careful attention in the
development of these relationships.
Introdução
O reconhecimento da importância do compartilhamento de valores e objetivos entre
indivíduo e organização, como meio de se obter lealdade, cooperação e esforço das pessoas,
data de muitos anos atrás (Jucius, 1955), mas é na década de 80 que o conceito se torna mais
saliente, em especial com Peters e Waterman (1982), quando a cultura organizacional ganha
força como agente da competitividade. De acordo com essa linha de argumentação, alguns
autores propõem que a maior identificação das pessoas com a organização e uma cultura
organizacional forte e coesa são fatores que promovem o desempenho e a competitividade
(Schein, 1985; Peters e Waterman, 1982 ). Sendo assim, pode-se dizer que os esforços da
gestão são direcionados para que o know-why - os interesses, motivações e aspirações do
indivíduo em relação ao trabalho – corresponda aos objetivos e aos valores adotados pela
organização.
Nas duas últimas décadas, no entanto, em busca de agilidade e competitividade, a
gestão das organizações vem reformulando políticas e práticas que afetam diretamente os
contratos estabelecidos com as pessoas que nelas trabalham. Os contratos anteriormente
estabelecidos entre os trabalhadores e a organização contemplavam, ainda que de maneira
implícita, sentimentos como lealdade e dedicação à organização por parte do trabalhador e a
garantia do emprego e de aumentos salariais contínuos, por parte da empresa. Esse tipo de
relação que inclui aspectos de ordem pessoal e emocional corresponde ao que Mirvis e Hall
(1994) definem como o contrato relacional. O paradigma emergente de gestão, que tem sido
denominado de flexível, pressupõe que a relação entre indivíduo e organização se limite à
uma relação transacional, onde ocorre a troca do trabalho por uma remuneração adequada,
onde as carreiras se tornam sem fronteiras, o conceito de sucesso profissional está mais
associado a critérios pessoais (e não mais à ascensão na escala hierárquica e aumentos de
salários) e onde o indivíduo é encorajado a se identificar mais com o próprio trabalho e com a
sua profissão e menos com uma organização específica (Defillipi e Arhtur, 1994).
Essa gestão se caracteriza pela adoção de estruturas fluidas, caracterizadas pela
ausência de determinação das tarefas a serem realizadas e pela composição também mutável
das pessoas que compõem as equipes de trabalho. Os vínculos estabelecidos entre as pessoas e
a organização são de naturezas diversas – empregados, contratados, temporários, autônomos,
terceirizados, e assim por diante, o que confere flexibilidade e agilidade de resposta às
demandas encontradas. No entanto, embora possa haver uma diferenciação contratual das
pessoas em termos de núcleo e periferia, muitas das políticas e demandas acabam sendo
aplicadas a todos indiscriminadamente – a necessidade de comprometimento, por exemplo
(Legge, 1995). Essas condições colocam a organização em uma situação que é descrita por
Morhman e Lawler III (1997) como um dilema pois, de um lado, a necessidade de
flexibilidade e adaptação a mudanças impõe a construção de relações transacionais,
caracterizadas pela autonomia dos indivíduos em relação ao vínculo de emprego; por outro
lado, são as pessoas, detentoras da capacidade de criação de conhecimento e aprendizado, a
fonte da vantagem competitiva mais duradoura - o conhecimento intangível e específico da
organização (Spender, 1996) - e, portanto, o seu envolvimento com o trabalho e a
identificação com a organização parecem ser elementos desejáveis. Como consequência, essa
gestão coloca as pessoas em uma situação onde são chamadas a se comprometer com o
trabalho e a inovar em termos das soluções encontradas - o que demanda investimento
contínuo no conhecimento e na requalificação – e onde, ao mesmo tempo, precisam gerir suas
carreiras de forma a não depender da organização em que trabalham.
Esse tipo de gestão tem sido alvo de críticas, uma vez que a contradição (necessidade
de comprometimento e flexibilidade) parece ser administrada por meio da manipulação de
símbolos e do discurso que buscam a identificação do indivíduo com os valores e objetivos da
organização (Legge, 1995; Wood, 2000) e onde a distribuição de recompensas – que não se
limitam às recompensas monetárias – representa um papel central pois, conforme coloca
Pagès (1987, p. 27), “...os privilégios funcionam como um terceiro termo que vem ocultar a
contradição entre os objetivos da empresa, os do sistema capitalista (o lucro e a dominação) e
os objetivos dos trabalhadores”. Dessa maneira, se a gestão se utiliza de argumentação e de
sistemas de recompensas de natureza pessoal e emocional, pode-se dizer que a relação que
vem sendo estabelecida entre indivíduo e organização não é transacional; além disso, os
apelos à identificação com os valores e objetivos e ao comprometimento com a organização
vêm contradizer a proposta de identificação com o próprio trabalho e com a profissão.
Sendo assim, se tanto a organização como as pessoas se encontram em posições que
exigem atitudes contraditórias, é preciso investigar a validade da possibilidade do
estabelecimento de uma relação transacional entre indivíduo e organização e as condições em
que pode ocorrer. Esse trabalho se propõe explorar um dos elementos constituintes dessa
relação – o processo de identificação em relação ao trabalho – e busca responder às questões
colocada pelas novas formas de gestão: é possível o indivíduo identificar-se com o trabalho e
a profissão, ao invés da organização? Em que condições isso pode ocorrer? Que políticas e
práticas estimulam a não-identificação com a organização?
Para essa avaliação é feita, após esta introdução, uma análise da relação Homem-
Trabalho que emerge da condição ontológica do ser humano a fim de buscar melhor
compreender a construção do know-why e uma investigação do processo de identificação; em
seguida, é feita uma exploração das condições de desenvolvimento dessa relação e de seus
elementos no modo de produção capitalista - na organização taylorista/fordista e no
paradigma emergente de gestão. Estas análises mostram pontos que precisam ser melhor
pensados e discutidos pela gestão, a fim de que políticas apropriadas possam ser
implementadas.
Considerações finais
O processo de identificação se configura como um dos elementos centrais da relação
indivíduo-organização estabelecida pelo contrato do tipo transacional, que vem sendo buscado
para uma gestão mais ágil e flexível das organizações. No entanto, dizer que a identificação
deve ser transferida da organização para a profissão e para o trabalho simplifica uma questão
que envolve o indivíduo, as escolhas que ele faz em relação ao seu trabalho e os processos
que ocorrem na interação entre o indivíduo e os grupos com os quais trabalha. Essa
simplificação pode levar à implementação de políticas que conduzem a resultados não
desejados.
Após a discussão apresentada, pode-se tentar responder à questão colocada no início
do trabalho – “é possível a não-identificação com a organização?”. A princípio, a resposta
parece ser sim, é possível a identificação com uma profissão, como é o caso de um artista, por
exemplo, e como pode ser o caso de um consultor autônomo. No entanto, as condições
oferecidas pela organização capitalista para o exercício do trabalho tornam mais complexos os
processos de identificação que podem ocorrer com as pessoas. Conforme observado, o
trabalho realizado nas organizações nem sempre configura o exercício de um ofício ou uma
profissão, definida de acordo com o modo de produção artesanal, onde o indivíduo não apenas
concebe e executa a obra, mas também negocia o pagamento, aprende e desenvolve a sua
técnica e tem o seu trabalho integrado a um plano de vida. Ademais, contrariando as
proposições de autores como Defillipi e Arthur (1994) e Rousseau (1998) de que as políticas
deveriam ser aplicadas de maneira diferenciada para os diversos tipos de trabalhadores –
empregados, contratados, autônomos, do núcleo ou periferia, e assim por diante – o discurso e
as ações da gestão podem atuar de maneira a exigir das pessoas – mesmo aquelas que não têm
vínculo de emprego ou que não pertencem ao núcleo, por exemplo – um maior grau de
identificação com a organização – a identificação profunda. Por fim, é preciso considerar que,
ainda que possa haver uma identificação com a profissão, outros fatores podem levar à maior
identificação com a organização, como o tempo de trabalho dedicado à organização ou as
vantagens auferidas de se ter o nome ligado à determinadas instituições. Esse era o caso de
muitos artesãos, por exemplo, onde a fama da qualidade dos produtos de uma oficina
estendia-se ao mestre, seus oficiais e aprendizes, o que lhes trazia mais negócios e os
tornavam mais procurados pelos clientes com maior poder aquisitivo, como os reis e a Igreja
(Pahl, 1989). Portanto, trabalhar para a empresa X ou Y pode significar muito mais do que a
obtenção de uma remuneração adequada.
Concluindo, a exploração da relação Homem-Trabalho e dos processos de
identificação que ocorrem na vida profissional do indivíduo desenvolvida no contexto
organizacional questiona a validade da possibilidade do estabelecimento de relações
transacionais entre indivíduo e organização e sugere diversos temas que demandam esforços
de pesquisa. Entre eles pode-se ressaltar, em primeiro lugar, a validade – em termos de
contribuição para os resultados – e a possibilidade de aplicação da classificação das pessoas
em empregados e não-empregados, do núcleo ou periferia. O grau de identificação com
valores e objetivos, ou o comprometimento que, conforme mostra Bastos (1996) é um tema
bastante complexo e que está longe de estar esgotado, e a sua relação com o desempenho e os
resultados para a organização. Por fim, mostra a necessidade de não apenas implementar
políticas, mas se aprofundar a pesquisa sobre os resultados que as diversas políticas e práticas
possam ter na relação do indivíduo com o seu trabalho e com a organização.
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