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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO E DOUTORADO)

LÍGIA DE AMORIM NEVES

ENTRE BANDOS E BESTAS:


A literatura PANC de Ana Paula Maia

MARINGÁ – PR
2019
LÍGIA DE AMORIM NEVES

ENTRE BANDOS E BESTAS:


A literatura PANC de Ana Paula Maia

Tese apresentada à Universidade


Estadual de Maringá, como requisito
parcial para a obtenção do grau de
Doutora em Letras, área de concentração:
Estudos Literários.

Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Osana


Zolin

MARINGÁ – PR
2019
A todas as espécies.
AGRADECIMENTOS

À minha família, por todo carinho, apoio e compreensão. Agradeço


especialmente à minha mãe, Cleunice, por sempre me apoiar incondicionalmente
nos meus projetos. E ao meu pai (in memorian), que continua sendo uma luz que me
guia, me motiva e me dá forças e coragem para viver meus sonhos.
À minha orientadora e professora Dra. Lúcia Zolin, por ter acolhido minha
proposta de trabalho e respeitado meu lugar de fala, sem deixar de intervir na minha
escrita de forma pertinente e com competência. Agradeço todo o aprendizado e os
incríveis momentos que passamos juntas na alegria e, por vezes, na tristeza... Mas
lembro aqui os momentos festivos: reuniões do projeto, confraternizações com
delícias veganas, viagens a congressos e os inesquecíveis momentos nos
aeroportos! Gratidão pela parceria, amizade e quitutes.
À professora Dra. Evely Libanori, pela força e coragem de viver suas
crenças acerca dos animais e levá-las sem recortes para sala de aula, de modo a
influenciar vidas como a minha, que foi arrebatada de forma profunda e irreversível.
À professora Dra. Marisa Silva, que me fascinou com suas aulas no
mestrado, não só pelos teóricos incríveis ali estudados, mas sobretudo pela postura
e conduta em sala e orientações atenciosas para os seminários da disciplina.
À professora Dra. Wilma dos Santos, por representar para mim um
referencial de trajetória acadêmica de pesquisa construída com muita paixão e
comprometimento.
À professora Dra. Suely Leite, pela gentileza e prontidão em aceitar
participar da banca.
Ao secretário Adelino, pela assessoria técnica sempre ágil e gentilmente
oferecida.
Ao PLE, pelo quadro de professores/as competentes, que não só me
apresentaram uma pluralidade de perspectivas teóricas, mas também me deram
ferramentas para avaliá-las criticamente.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (CAPES), por
viabilizar esta pesquisa.
Aos/às meus/minhas colegas de jornada que, assim como eu, vivenciaram
(e vivenciam) a angústia da investigação acadêmica, suas agruras, incertezas, mas
também seu prazer e satisfação quando, após persistir, superamos nossos limites.
Agradeço especialmente à minha parceira de doutorado Andiara Maximiano,
por termos dividido momentos tão importantes nessa jornada de reescrita de nossas
vidas, uma tese memorável!
Aos “cãopanheiros” que convivem comigo, que me ensinam sobre a leveza
da vida e viver o presente aqui.
E o meu agradecimento especial é ao Renato, companheiro em todos os
momentos, inclusive como leitor crítico do meu texto e da minha redação. Meu amor,
meu Chi, gratidão por ter fluido na minha tese, na minha jornada, nos meus sonhos.
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”
(José Saramago)

“Esta foi a primeira descoberta do Tuc-Tuc: o


horizonte fica até onde a gente pode enxergar.”
(Paula Saldanha)
RESUMO

A violência cotidiana sofrida pelos animais e pelos personagens humanos


subalternos dos livros de Ana Paula Maia não representa um lugar-comum no
horizonte ficcional da escrita de autoria feminina contemporânea, mas, em tempos
de pós-humanismo, a discussão dessa violência é urgente. Diante disso, este
trabalho objetiva problematizar os dispositivos de poder que reduzem esses seres à
condição permanente de vidas nuas e os confinam em espaços invisíveis tanto na
literatura brasileira contemporânea de autoria feminina, quanto fora da ficção. Como
corpus de pesquisa, analisamos as seguintes obras literárias que provocam essa
discussão: Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009) – composta pela
novela com título homônimo ao do livro e pela novela intitulada O trabalho sujo dos
outros –, e os romances Carvão animal (2011), De gados e homens (2013) e Assim
na terra como embaixo da terra (2017). Os aportes teóricos e críticos desta tese
abrangem, além da crítica e dos estudos literários, perspectivas do pós-humanismo
e dos Estudos Animais, por responderem a essas questões a partir de pressupostos
não hierárquicos. O estudo revela uma literatura que busca olhar para as fissuras da
realidade e que, para tanto, opera descentramentos de gênero, espécie, classe,
ocupação profissional, papel social, espaço e temática; e o faz por meio de uma
linguagem rápida, visual, obscena e sem preciosismos, facilmente reconhecível por
qualquer leitor/a. Com isso, podemos acessar essa arena e suas técnicas
biopolíticas de sujeição da população em prol da sustentação da economia
neoliberal, cujo sucesso não ocorre sem a degradação e a desvalorização de modos
de vida. Concluímos, assim, que, por meio da naturalização da violência simbólica
que arrasta humanos e animais para o mesmo plano, no qual não há possibilidade
de cada um converter-se em sua própria natureza e desenvolver as potencialidades
e especificidades de sua espécie – pois a sua vida pertence ao Estado –, a ficção
em prosa de Ana Paula Maia amplia modos de pensar a literatura de autoria
feminina e convida o/a leitor/a a (re)pensar suas relações com essas outras
corporeidades. Por isso, então, chamamos sua literatura de PANC, seja como uma
sigla de Produção Artística Não Convencional, seja como uma alusão ao universo da
biologia e suas Plantas Alimentícias Não Convencionais.

Palavras-chave: Violência. Literatura de autoria feminina. Ana Paula Maia. Estudos


Animais. Pós-humanismo.
ABSTRACT

The daily violence suffered by the animals and the subaltern human
characters of Ana Paula Maia's books does not represent a commonplace in the
fictional horizon of contemporary women‟s writings, but, in times of posthumanism,
the discussion of this violence is urgent. On the face of it, this work aims to
problematize the devices of power that reduce these beings to the permanent
condition of naked life and confine them in invisible spaces, both in the contemporary
Brazilian literature written by women and outside of fiction. As a corpus of research,
we analyze the following literary works: Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos
(2009) - composed by the novel with homonymous title to the book and by the one
named O trabalho sujo dos outros –, and Carvão animal (2011), De gados e homens
(2013) and Assim na terra como embaixo da terra (2017). The theoretical and critical
basis of this thesis covers, in addition to both literary criticism and studies,
perspectives of posthumanism and Animal Studies, for answering these questions
from non-hierarchical presuppositions. The study reveals a literature that seeks to
look at the fissures of reality and that, in order to do, operates decentralizations of
gender, species, class, professional occupation, social role, space and thematic; and
it is done by means of a quick, visual, obscene and unpretentious language, easily
recognizable by any reader. With this, it becomes possible to access this arena and
its biopolitical techniques of subjecting the population in favor of the sustenance of
the neoliberal economy, whose success does not occur without the degradation and
the devaluation of ways of life. Thus, we conclude that by the naturalization of
symbolic violence that brings humans and animals to the same plane, in which there
is no possibility of each to convert themselves into their own nature and develop the
potentialities and specificities of their species - because their lives belongs to the
State. Therefore, Ana Paula Maia's literature broadens the ways of thinking about
women‟s writings and invites the reader to re-think their relationship with these other
corporeities. For this reason, we call her literature PANC, either as an acronym for
Non-Conventional Artistic Production, or as an allusion to the universe of biology and
its Non-Conventional Alimentary Plants.

Keywords: Violence. Women‟s Writings. Ana Paula Maia. Animal Studies.


Posthumanism.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Capa das edições de Assim na terra como embaixo da terra......... 23

Figura 2 – Capa das edições de De gados e homens...................................... 49

Figura 3 – Banquete messiânico no último dia................................................. 74

Figura 4 – Capa da edição de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos... 96

Figura 5 – O fim De gados e homens............................................................... 99


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 11

2 ENTRE O BANDO E O ABANDONO: HOMENS NO SEU (IN)DEVIDO LUGAR....... 16

2.1 “O AGLUTINADO DE ABUTRES, O CÉU ERA DELES”: PODER COMO


VIOLÊNCIA LEGÍTIMA....................................................................................... 17
2.2 “NO FIM, SOMOS TODOS LIVRES, PORQUE, NO FIM, ESTAREMOS
MORTOS”: ESTADO DE EXCEÇÃO................................................................. 20
2.3 “HABITANTE DAS FALHAS SUBTERRÂNEAS”: REFUGO HUMANO E VIDA
NUA.................................................................................................................... 25
2.4 “O CORPO AOS PORCOS”: VIOLÊNCIA OBJETIVA E SUBJETIVA............... 32
2.5 “ALGUÉM PRECISA FAZER O TRABALHO SUJO”: ANIMAL LABORANS...... 39
2.6 ATENÇÃO, HOMENS TRABALHANDO: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES...... 43

3 ENTRE OUTROS: ANIMAIS NO SEU (IN)DEVIDO LUGAR....................................... 45

3.1 ANTROPOCENTRISMO.................................................................................... 45
3.1.1 “São apenas animais”: filosofias aristotélica e cartesiana........... 46
3.1.2 “Todos são caça e caçador”: heranças do Império Romano....... 50
3.1.3 “A carne proveniente dos céus”: tradição judaica........................ 53
3.1.4 “Sua própria violência nunca permitirá que um dia veja a face
do criador”: doutrina cristã.............................................................. 57
3.2 SENCIOCENTRISMO E BIOCENTRISMO........................................................ 61
3.2.1 “Sentir o campo magnético terrestre”: teóricos iniciais............... 62
3.2.2 “Por trás de algo tão saboroso”: teóricos contemporâneos........ 64
3.3 O SANGUE DAS BESTAS: MAIS ALGUMAS CONSIDERAÇÕES................... 73

4 ANA PAULA MAIA E A LITERATURA DE AUTORIA FEMININA: MULHERES NO


SEU (IN)DEVIDO LUGAR............................................................................................ 74

4.1 “NINGUÉM ESTÁ IMPUNE”: BIOPOLÍTICA...................................................... 75


4.2 “DENTRO DELES EXISTE APENAS ESCURIDÃO”: DO REAL À ESCRITA
LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA....................................................................... 84
4.3 DAS SINGULARIDADES: ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES................................. 95

5 CONCLUSÃO............................................................................................................... 98

REFERÊNCIAS................................................................................................................... 104

ANEXO A – Questionário da pesquisa “Literatura de autoria feminina: escolhas


inclusivas?”....................................................................................................................... 111
11

1 INTRODUÇÃO

Após a Revolução Industrial, a humanidade viu-se atrelada a um modelo


basicamente hegemônico de produção e consumo à custa da natureza e do próprio
ser humano. Essa estrutura tem como lógica a racionalidade dos conhecimentos,
das práticas, das ideologias e dos modelos produtivos, tudo articulado e subordinado
à lógica produtivista de mercado, que dita os sistemas de pensamento e os valores
da sociedade.
Ana Paula Maia é uma escritora que investiga esse espaço, sobretudo o dos
homens1 e o dos animais que o sustentam. Em tempos de grande invisibilidade de
ambos os grupos, reforçada pela dinâmica capitalista do consumismo que consolida
a miséria humana e animal,2 a autora traz para a cena literária a violência que esse
contexto representa na contemporaneidade.
A partir da leitura de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009) –
composto pela novela com título homônimo ao do livro e pela novela intitulada O
trabalho sujo dos outros –, e dos romances Carvão animal (2011), De gados e
homens (2013) e Assim na terra como embaixo da terra (2017b), podemos
questionar: Que lugar há para narrativas de homens que cremam corpos, abatem
animais, quebram asfaltos, desentopem fossas e recolhem os lixos? Que espaço há
para enredos de animais confinados em casas, pastos, rinhas e matadouros? Enfim,
que lugar há na sociedade e na literatura para histórias de vencidos?
Maria Cury (2017), em seu artigo “Poéticas da precariedade”, afirma que a
pobreza e a precariedade das condições de vida dessas pessoas têm penetrado na
literatura brasileira mais contemporânea, dando lugar a diversas estéticas do dejeto.
No entanto, essa realidade ainda é pouco significativa dentro do campo literário,
segundo aponta a pesquisa “Personagens do romance brasileiro contemporâneo”,

1
O termo homem é conscientemente marcado por Ana Paula Maia em seus textos não só
para se referir ao gênero masculino, que é o responsável por executar o tipo de trabalho ali
encenado, mas também para caracterizar melhor esse universo falocêntrico em que as
tramas se passam. Diante disso, neste trabalho, esse termo aqui também será empregado
quando estivermos tratando de reflexões acerca desse cenário.
2
Neste trabalho, entendemos que o ser humano também faz parte da categoria espécie
animal, logo, o termo mais apropriado para se referir a ele seria “animal humano”. Contudo,
para fins econômicos e por essa questão não ser o cerne deste trabalho – questão que não
é só terminológia, mas política e social –, iremos usar os termos “humano” para ser referir
aos animais humanos e “animal” para se referir ao animal não humano.
12

de Regina Dalcastagnè, que mapeou quantitativamente 258 romances publicados


pelas editoras Companhia das Letras, Record e Rocco entre os anos de 1990 e
2004, e também conforme a pesquisa “Literatura brasileira contemporânea de
autoria feminina: escolhas inclusivas?”, de Lúcia Zolin, que realizou o mesmo
procedimento com as mesmas editoras, mas aplicado a 112 romances de autoria
feminina publicados entre os anos de 2001 e 2016. Em ambas as pesquisas, a
somatória de pobres e de miseráveis não chega a compor 30% dos personagens, e
empregos braçais como descrito acima não figuram entre as dez principais
ocupações dos personagens nessas narrativas.
Quanto aos animais, de acordo com Maria Maciel (2011), em seu livro
Pensar e escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica, eles até são
lembrados na literatura ocidental, como são alguns exemplos famosos: o cavalo de
Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes; a baleia de Moby Dick, de
Herman Melville; a cachorra de Vidas Secas, de Graciliano Ramos; e a fauna
alegórica de A Revolução dos Bichos, de George Orwell. Contudo, segundo a
autora, pioneira no país sobre os estudos de zoopoética, o espaço ali destinado a
eles está subscrito à tradição humanista, tanto que a abordagem do animal se reduz
a símbolos, metáforas ou alegorias da condição humana, sem consciência crítica da
categoria animal. Hoje, diante de um conjunto de preocupações de ordem ecológica
que move a sociedade contemporânea e dos problemas éticos que envolvem nossa
relação com os animais e com o próprio conceito de humano, a demanda é por
transpor esse mecanismo reducionista.
Os Estudos Animais absorvem essa necessidade e se consolidam como
uma área de estudos específica, a qual é caracterizada por um espaço híbrido de
vozes, conforme evidenciam os seguintes exemplos de referêcia teórica:

os escritos de Jacques Derrida sobre o animal, as análises de Michel


Foucault sobre loucura e animalidade, o conceito de devir-animal de
Deleuze e Guattari, os textos “pós-humanos” de Donna Haraway, os
estudos etológicos de Dominique Lestel, as abordagens bioéticas de
Peter Singer, as reflexões histórico-sociais de Harriet Ritvo, as
incursões zoontológicas de Cary Wolfe, os estudos etnológicos de
Eduardo Viveiros de Castro, além de instigantes contribuições de
Giorgio Agamben e Elizabeth de Fontenay, entre outros (MACIEL,
2011, p. 7).
13

Isso resultou em uma profusão de livros, artigos e edições especiais de


revistas acadêmicas para além das publicações sobre os animais que existiam até
então em esforços isolados. Estes eram trabalhos de ética prática, e não livros
propriamente teóricos, datados dos anos 1970 e 1980, como as importantes
publicações de Libertação animal (1975), de Peter Singer, e Jaulas vazias (1983), de
Tom Regan. O desafio dessa área de estudos é repensar, de forma interdisciplinar,
as categorias do humano e do animal a partir de questões ontológicas, morais e
éticas.
Essas discussões se inserem na agenda do pós-humanismo, que não se
restringe a análises sobre a tecnociência, mas se abre também à zoontologia,
reinserindo o ser humano no contexto da natureza. A partir desse debate, podemos
entender essas instâncias dentro de perspectivas não hierárquicas, sem
diferenciação moral entre o humano e as formas artificiais de vidas “superiores” que
ele possa inventar, ou entre ele e as formas naturais de vida que o rodeiam. Isso
contribui para a reconfiguração das fronteiras que tanto definem a categoria humano
em relação com o animal, quanto colocam em xeque o modo pelo qual objetificamos
o animal e nos colocamos como sujeitos de um conhecimento sobre ele.
Contudo, o pós-humanismo não rompe, de modo apocalíptico, com o legado
do humanismo. O “pós” de pós-humano não implica a ausência do humano ou uma
mudança biológica evolucionária para além dele, conforme as perspectivas de
Jacques Derrida e Jean-François Lyotard:

A escrita da condição pós-humana não deve buscar criar „lápides‟


para o humanismo, mas deve, antes, tomar a forma de uma práxis
crítica que ocorra dentro do humanismo, e que consista não no
velório mas na reavaliação do discurso humanista. O humanismo
aconteceu e continua a „nos acontecer‟ (isso é, de fato, o que „nos‟
faz „nós‟) (BADMINGTON, 2003, p. 22, tradução nossa).3

3
“The writing of the posthumanist condition should not seek to fashion „scriptural tombs‟ for
humanism, but must, rather, take the form of a critical practice that occurs inside humanism,
consisting not of the wake but the working-through of humanist discourse. Humanism has
happened and continues to happen to „us‟ (it is the very „Thing‟ that makes „us‟ „us‟, in fact)”.
14

O pós-humanismo4 rompe sim com o antropocentrismo, pois elabora um


novo paradigma teórico capaz de interpretar diversos aspectos, implicações e
significados envolvidos no processo de abertura radical à alteridade que reinscreve o
humano, a natureza e a tecnologia em um plano não hierárquico, sem, contudo,
ignorar as diferenças entre essas instâncias. Oriundo de um contexto de expansão
do capitalismo biotecnológico, que ganha força a partir da década de 1980, o pós-
humanismo, provoca o deslocamento do humano, que deixa de ser a origem e o fim
da história, e é por isso que aqui também temos a introdução do estado ético dos
animais em nossa sociedade.
É nesse sentido que encaminhamos este trabalho que objetiva realizar uma
leitura crítica dos romances de Ana Paula Maia aqui citados a partir de teóricos e
críticos do pós-humanismo.
O objetivo central deste estudo é investigar de que modo pressupostos
humanistas podem se converter em práticas de violência sobre animais humanos e
não humanos, de modo a reduzi-los à condição permanente de vidas biológicas
subjugadas em espaços invisíveis. A hipótese é a de que a literatura da escritora, ao
naturalizar a violência que confina homens e animais a uma zona intermediária entre
a vida e a morte, a sobrevida, questiona a nossa responsabilidade (e por que não a
do/a escritor/a?) nesse processo e problematiza nossa relação com essas
outridades, humanas ou não.
Com o intuito de discutirmos essas questões, dividimos este trabalho em três
capítulos. No primeiro, investigamos os dispositivos de poder que capturam vidas
antes de serem completamente descartadas pelo sistema para confiná-las a uma
condição permanente de invisibilidade política e social e a uma vida reduzida ao seu
mínimo biológico. Para tanto, o fio condutor percorrido é a análise da relação entre
violência e poder. Dentre os teóricos utilizados, temos Walter Benjamin com o
conceito de Gewalt; Giorgio Agamben com a teoria do estado de exceção e a
principal figura que o compõe, o homo sacer; Zygmunt Bauman com a noção de
refugo humano; Slavoj Žižek com sua diferenciação sobre as formas de violência; e
Hannah Arendt com a ideia de animal laborans.

4
De acordo com Jair Santos (2002), o termo pós-humano (Posthuman) foi cunhado por Ihab
Hassan, um norte americano de ascendêcia egípcia, no ano de 1977, em seu ensaio
Prometeus as performer: toward a posthumanist culture.
15

O segundo capítulo, por sua vez, é dedicado à categoria animal, também


reduzida à mera vida em um contínuo estado de exceção, como visto nos
personagens humanos dos romances da escritora. Por meio de um resgate sobre as
teorias éticas antropocêntricas, a partir das filosofias aristotélica e cartesiana, da
herança política romana e da tradição judaico-cristã, compreendemos os
mecanismos que encilham os animais aos interesses do capital. E, em contraponto a
toda essa tradição hierárquica, percorremos as principais ideias sobre as éticas
senciocêntrica e biocêntrica com Peter Singer, Tom Regan e Gary Francione,
juntamente com as reflexões críticas de Sônia Felipe, para entendermos o valor
intrínseco da vida dos animais e de que forma isso é problematizado nas narrativas.
No terceiro capítulo, somando ao debate até então feito, reunimos ambas as
categorias, humano e animal, para refletirmos a perspectiva crítica de Ana Paula
Maia sobre elas: afinal, esses corpos violentados em sua dignidade ontológica estão
a serviço de que em suas narrativas? E dentro da escrita ficcional de autoria
feminina, de que modo essa abertura a outras alteridades reverbera no campo
literário? Para refletir sobre isso, recorremos aos conceitos de biopolítica, de Giorgio
Agamben; à tríade Imaginário, Simbólico e Real, de Slavoj Žižek; e ao referente
ausente, de Carol Adams. Também, trazemos os resultados da pesquisa “Literatura
brasileira contemporânea de autoria feminina: escolhas inclusivas?”, de Lúcia Zolin,
para investigarmos nossa hipótese de subversão da obra de Ana Paula Maia
perante as tendências de escrita de mulheres.
Por fim, à guisa de conclusão, estabelecemos uma comparação entre as
Produções Artísticas Não Convencionais (PANCs) de Ana Paula Maia e as Plantas
Alimentícias Não Convencionais (PANCs) do universo da biologia,5 como uma
metáfora da importância de suas obras na sociedade.
É dentro dessa síntese teórica interdisciplinar, portanto, que propomos uma
leitura sobre os deslocamentos ideológico e estético que os romances aqui
escolhidos propiciam dentro da órbita das produções literárias contemporâneas.
Dessa forma, esperamos contribuir, com os limites e alcances deste estudo, para
uma reflexão crítica sobre a outridade animal humana e a não humana.

5
O termo foi cunhado recentemente por Valdely Kinupp e Harri Lorenzi e disseminado a
partir da publicação de seu livro Plantas Alimentícias Não Convencionais no Brasil (2014),
mas o conceito já existe há muito mais tempo.
16

2 ENTRE O BANDO E O ABANDONO: HOMENS NO SEU (IN)DEVIDO LUGAR

“Quando os homens descobriram que


eram criminosos, inventaram a palavra
Justiça para justificar seus crimes!” (Um
homem insignificante, Fyodor Dostoievski)

A violência cotidiana a que estão sujeitos os personagens dos livros de Ana


Paula Maia não representa um lugar-comum no horizonte ficcional das escritas de
autoria feminina contemporânea publicadas pelas grandes editoras brasileiras. À
parte do desenvolvimento econômico e social, os personagens da escritora
representam o dejeto da sociedade, conforme aponta a caracterização do lixeiro
Erasmo Wagner já desde as primeiras páginas da novela O trabalho sujo dos outros
(2009): “Não importa sua cor, seu cheiro, seu paladar. Não importa o que pensa,
deseja, planeja ou sinta. O que importa é que recolha o lixo, leve-o para bem longe e
desapareça junto dele” (MAIA, 2009, p. 103).
É a partir dessa negatividade que a dimensão da condição (des)humana
dessas vidas são afirmadas, homens brutos que também pouco sentem, pouco
falam, pouco importam para o universo dentro e fora da literatura. Mas o que explica
essa condição permanente de mera vida a que chegam esses indivíduos? É o que
importa neste capítulo, que objetiva compreender os dispositivos de poder que
confinam os subalternos em espaços invisíveis dentro da sociedade, assim como os
mecanismos que reduzem esses seres a uma vida inerte, cujas necessidades
corporais, emocionais e criativas são ignoradas para transformá-los cada um em um
ser que trabalha.
Para tanto, o fio condutor percorrido é a investigação da relação entre
violência e poder, como expressa a própria polissemia do termo alemão Gewalt,
utilizado por Walter Benjamin em seu ensaio “Zur Kritik der Gewalt”:6 originário do
verbo arcaico walten, que significa “imperar”, “reinar”, “ter poder sobre”, o uso do
substantivo remete à ideia de potestas, “poder político”, “dominação”. E como o

6
Como muitos outros trabalhos de Benjamin, o título “Zur Kritik der Gewalt” (1921) também
apresenta um problema de tradução devido à polissemia do termo Gewalt. Encontramos
referências ao título que optam pela tradução de João Barrento, “Para uma crítica do poder
como violência”; outras que usam a forma duplicadora de Willi Bolle, “Crítica da violência –
crítica do poder”; e algumas que assumem o termo violência com toda ambiguidade que isso
possa gerar: “Crítica sobre a violência”, “Crítica da violência”, “Sobre a crítica da violência” e
“Para uma crítica da violência”. Neste trabalho, adotaremos esta última versão, título do
artigo traduzido de Benjamin a que faremos referência.
17

excesso de força tende a acompanhar o exercício do poder (inclusive o plural do


termo, Gewalten, costuma ser traduzido por “forças”), Gewalt pode significar tanto
poder quanto violência (BENJAMIN, 2011).

2.1 “O AGLUTINADO DE ABUTRES, O CÉU ERA DELES”7: PODER COMO


VIOLÊNCIA LEGÍTIMA

No ensaio “Para uma crítica da violência”, que surge a partir de uma reflexão
sobre a profunda crise das instituições políticas que a Europa vivia no pós-guerra,
Benjamin (2011) reflete sobre o uso de Gewalt nas suas relações com o direito e a
justiça, as quais, por sua vez, só se estabelecem violentamente quando interferem
em relações éticas.
Os domínios nos quais Gewalt atua são definidos pelo filósofo como Gewalt
mítica e Gewalt divina. A primeira usa a violência como meio para instaurar o direito,
o qual é, por sua vez, instauração do próprio poder. E a crítica que Benjamin (2011)
faz à Gewalt mítica é que, nela, o sistema jurídico monopoliza a violência com
relação aos indivíduos não para garantir os fins de direito, mas para assegurar o
próprio direito/poder, configurando, assim, uma violência legal.
O aspecto mítico desta Gewalt, o qual deriva do conceito de destino, é
visível em duas instituições estatais nas quais a lei se apresenta tão ameaçadora
como o destino. Na pena de morte, o Estado não só faz cumprir uma punição a
quem infrigiu a lei, como também funda a lei ao tornar legal a violência que mata, e
esse poder decisório sobre a vida e a morte fortalece o próprio direito. A polícia, por
sua vez, também não funciona somente como instrumento do Estado para fazer as
leis serem obedecidas, pois ela instaura a lei quando, alegando questões de
segurança, age fora da própria lei por meio de decretos afirmados com pretensão de
direito. Em ambas as instituições, percebemos sua força como mantenedora e
instauradora do poder, o que vai gerar a violência legítima (BENJAMIN, 2011).
Do outro lado, o filósofo apresenta a Gewalt divina, que tem a função de se
opor à mítica, assim como os domínios de Deus se opõem ao mito. Trata-se de uma

7
MAIA, Ana Paula. Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. Rio de Janeiro: Record,
2009. p. 135.
18

violência que busca justiça, e não poder. E é por meio dela que Benjamin acredita
que se possa impedir a sucessão de catástrofes do poder mítico (BENJAMIN, 2011).
Um exemplo dessa violência divina é a ação da greve geral proletária ou
revolucionária. Ela busca aniquilar o poder do Estado (poder mítico) por meio de
uma transformação absoluta e sem perspectivas de volta ao trabalho após
concessões externas superficiais sobre as condições dos trabalhadores. Em outras
palavras, a retomada do trabalho só é possível se ele estiver transformado, sem
coerção do Estado – tal como seria do ponto de vista teológico, afinal os
mandamentos de um Deus divino não estão subordinados à lei coercitiva.
Essa ação se difere da greve política, pois esta se mostra ainda
comprometida com o poder enquanto sistema que se reproduz. Sindicatos e
organizações oficiais, ao paralisar o automatismo do mito, atuam, na verdade, como
instauradores do direito, e não como aniquiladores dele, uma vez que não rompem
com o continuum de uma história de opressão (BENJAMIN, 2011).
Dito dessa forma, podemos compreender melhor, então, a polissemia do
termo Gewalt, a qual pode, de um lado, representar um problema de ordem teórico-
conceitual para a compreensão do texto, como muitos autores/as apontam; mas, por
outro, pode reafirmar quão imbricadas estão essas noções de violência e poder
político – como era o objetivo de Benjamin, que não fez questão de diferenciar o uso
da palavra. Portanto, Gewalt é tanto violência que instaura e mantém o poder/o
direito, violência legítima que possui um caráter violento no sentido de atuar em
favor próprio e contra a mera vida; como também é violência que aniquila o poder/o
direito, violência ilegítima que se distancia desse poder sangrento sobre a vida.
Os personagens de Ana Paula Maia não se encontram nesse espaço de
Gewalt que aniquila o poder. Ainda que o conflito da novela O trabalho sujo dos
outros seja a greve deflagrada pelos lixeiros, trata-se ali de uma greve política, pois
a violência legítima continua vigente, aquela que o estado autoriza como direito
dos/as trabalhadores/as, visando apenas reformar a ordem existente.

Ninguém recolhe o lixo ou varre as ruas. Decidiram que não retornam


até que sejam ouvidos. Sabem que se voltarem em poucas horas ou
dias, não causarão o efeito que esperam. Pretendem fazer o que
ainda não tiveram coragem. Reivindicam melhorias para a realidade
do trabalho. Precisam de assistência médica. Precisam de filtro solar,
os casos de câncer de pele aumentaram. Precisam de lugares para
viajar no caminhão, na última semana três coletores caíram do
19

caminhão: um está morto, outro ficará paralítico e o mais sortudo


fraturou o fêmur e a bacia (MAIA, 2009, p. 127).

Nesta narrativa, é apresentada a história de Erasmo Wagner, que já


trabalhou quebrando asfalto e no aterro sanitário, mas agora recolhe o lixo parte do
dia e com escalas alternadas no turno da noite em uma cidade onde “tudo se
transforma em lixo, inclusive ele é um lixo para muitas pessoas, até para os ratos e
urubus que insistem em atacá-lo” (MAIA, 2009, p. 92). O cotidiano de seu trabalho é
trazido para o centro da história junto com o de Alandelon, que trabalha com uma
britadeira quebrando asfaltos, e de Edivardes, que, além de desentupir “latrinas,
pias, ralos, tanques, esgotos, canos, colunas de prédios e conduítes”, “também
limpa fossas sépticas, fossas negras, poço de recalque, caixa de decantação, caixa
de gordura e caixa com produtos químicos” (MAIA, 2009, p. 115).
As cenas ora mostram a plasticidade do próprio trabalho, ora denunciam as
condições precárias desses trabalhadores, as quais levam à greve dos lixeiros. É
nesse momento que esse grupo recebe atenção da sociedade e do Estado, mas não
porque eles reconhecem a sua importância, e sim porque querem se livrar do
montante de lixo que está gerando infestação de ratos e urubus, além de mau cheiro
por toda a cidade.
Erasmo Wagner, apesar de estar do lado da maioria, reconhece que “o
pessoal tá cansado de tanta desgraça no trabalho” (MAIA, 2009, p. 128), e que a
cidade vai apodrecer sem o trabalho diário dos lixeiros, sabe que, se a greve
“continuar por longos dias ou se terminar dentro de algumas horas, não fará
diferença” (MAIA, 2009, p. 128). Isso porque esse tipo de greve não produz
resultados significativos; após concessões, ela fatalmente reproduzirá a violência da
ordem anterior:

– Deu no rádio. Parece que a greve vai terminar logo – comenta


Edivardes.
Erasmo Wagner suspira. Demora um pouco para responder.
– Vamos ter trabalho dobrado – diz Erasmo Wagner. – É só nisso
que penso.
– Será que conseguiram um bom acordo?
– Bom pra quem?
[...] O impacto da greve provocou alguns ajustes em seus salários e
no adicional de insalubridade. Mas ainda era pouco, e os riscos,
muitos. A maioria não estava satisfeita, porém, todos os outros que
não recolhiam lixo pela cidade estavam muito satisfeitos (MAIA,
2009, p. 146, 155-156).
20

É nesse espaço de poder como violência legítima, portanto, que se


encontram muitos personagens de Ana Paula Maia, um espaço que nos remete
diretamente ao poder soberano, cuja atuação máxima está no estado de exceção.
Isso porque neste há uma legitimação efetiva da violência tomada como
instrumentalidade do poder, mesmo que a serviço de fins (considerados) justos.

2.2 “NO FIM, SOMOS TODOS LIVRES, PORQUE, NO FIM, ESTAREMOS


MORTOS”8: ESTADO DE EXCEÇÃO

Giorgio Agamben, no livro Estado de exceção (2004), retoma os


pensamentos de Walter Benjamin e Carl Schimtt ao explorar as estruturas internas
da relação entre violência e poder/direito, e mostra a ficção que governa a arca do
poder de nosso tempo.
Citada primeiramente de forma isolada por Schmitt na década de 1920, em
A ditadura (1921) e Teologia política (1922), a teoria do estado de exceção9 recebe
maior atenção entre 1934 e 1948, isto é, na época de desmoronamento das
democracias europeias, tanto que o Terceiro Reich, ou a Alemanha Nazista, é um
dos grandes exemplos de estado de exceção. Essa afirmação se justifica porque ali
se instaurou, por doze anos, um decreto que suspendeu artigos relativos às
liberdades individuais da constituição vigente (Constituição de Weimar), o que
representou junto aos anos seguintes da Primeira Guerra um grande laboratório de
experimentação e aperfeiçoamento dos mecanismos funcionais do estado de
exceção como paradigma de governo (AGAMBEN, 2004).
Essa suspensão de leis que protegem os direitos dos cidadãos é
promulgada pelo próprio governo por meio das leis ditas “plenos poderes” (pleins
pouvoirs): uma modalidade de ação durante o estado de exceção em que se
ampliam os poderes do executivo no âmbito legislativo para que ele possa modificar
e até anular, por decretos e disposições, as leis em vigor. Há, portanto, uma
abolição provisória das distinções entre os poderes legislativo, executivo e judiciário,

8
MAIA, Ana Paula. Assim na terra como embaixo da terra. Rio de Janeiro: Record, 2017b.
p. 7.
9
O termo estado de exceção possui terminologia variada: é conhecido como estado de
necessidade na doutrina alemã; lei marcial e poderes de emergência na anglo-saxônica;
decretos de urgência e estado de sítio nas italiana e francesa.
21

contradizendo a base das constituições democráticas, para instaurar um outro


patamar em que o poder de decisão do soberano é o que vale.
É por essa razão que Agamben considera o estado de exceção um conceito
de difícil definição, por situar-se no limite entre o político e o jurídico. Há aqueles que
tentam inserir o estado de exceção e a necessidade que o funda no âmbito do
ordenamento jurídico, e aqueles que o consideram um fenômeno essencialmente
político e, portanto, extrajurídico. Mas, para o filósofo, “o estado de exceção não é
nem exterior nem interior ao ordenamento jurídico”, ele diz respeito “a uma zona de
indiferença, em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam.” Trata-se
de um estar fora e ao mesmo tempo pertencer (AGAMBEN, 2004, p. 39).
Na política contemporânea, o estado de exceção, segundo o autor, passa de
instrumento jurídico/político usado em casos excepcionais à prática duradoura de
governo. Isso reafirma a perspectiva benjaminiana apresentada em sua oitava tese
do texto “Sobre o conceito de história” datado de 1940, em que ele já declarava que
a violência da exceção se tornaria a regra: “a tradição dos oprimidos ensina-nos que
o „estado de excepção‟ em que vivemos é a regra” (BENJAMIN, 1992, p. 161-162).
O efeito desse exercício sistemático e regular do estado de exceção, que
tem como justificativa a defesa da constituição democrática diante de uma ameaça à
segurança pública e à ordem, é a liquidação das fronteiras que diferenciam
democracia e absolutismo, conforme conclui Carl Friedrich:

Não há nenhuma salvaguarda institucional capaz de garantir que os


poderes de emergência sejam efetivamente usados com o objetivo
de salvar a constituição. Só a determinação do próprio povo em
verificar se são usados para tal fim é que pode assegurar isso [...]. As
disposições quase ditatoriais dos sistemas constitucionais modernos,
sejam elas a lei marcial, o estado de sítio ou os poderes de
emergência constitucionais, não podem exercer controles efetivos
sobre a concentração dos poderes. Conseqüentemente, todos esses
institutos correm o risco de serem transformados em sistemas
totalitários, se condições favoráveis se apresentarem (FRIEDRICH,
1941, p. 828 apud AGAMBEN, 2004, p. 20).

Por isso o campo de concentração se abre como consequência desse


estado de exceção que já deixou de ser exceção, pois, no campo, a suspensão
temporal do direito perante a existência de qualquer perigo pode ser convertida em
um estado permanente.
22

Esse espaço permanente de exceção, contudo, não se restringe à


experiência nazista da Segunda Guerra Mundial, pois há muitos campos surgindo
em todos os cantos e rincões do planeta. Campos de refugiados, zonas de
detenção, favelas, guetos, entre outros lugares topologicamente distintos do espaço
absoluto de exceção que é o campo, mas que não deixam de representar essa
mesma dinâmica em que a ordem jurídica é suspensa para dar espaço à lógica da
exclusão inclusiva, como podemos assim inferir a partir da descrição que Agamben
faz do campo:

O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção


começa a tornar-se regra [...]. Na medida em que os seus habitantes
foram despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente
à vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico
jamais realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a pura
vida sem qualquer mediação (AGAMBEN, 2008, p. 9).

Essa ideia pode ser observada nos romances de Ana Paula Maia, em
especial no livro Assim na terra como embaixo da terra, que insere os personagens
nesse espaço do estado de exceção, um locus de absoluto vazio de direito, um
vacuum jurídico nos termos de Nissen (AGAMBEN, 2004, p. 76).
Ambientado em uma colônia penal de segurança máxima, o livro narra a
história de alguns detentos que ali esperam a visita do oficial de justiça para
transferi-los a um outro espaço de detenção, já que o presídio está em vias de
desativação. Com o passar dos anos em confinamento, a sanidade mental do
diretor, Melquíades, fica comprometida e ele converte o espaço dentro dos muros
em um campo de extermínio: “Melquíades não deixará ninguém ir embora, [...] e, por
fim, acabará também com a própria vida. Ele jamais poderia viver em sociedade
novamente, foi corroído pelo sistema que defende” (MAIA, 2017b, p. 68).
Quando o diretor recebeu o comunicado de desativação da colônia penal,
ainda havia 42 homens. Foi a partir desse episódio que ele começou a caçar os
detentos, aplicando com o seu rifle tcheco CZ.22 o que ele chamou de medida
socioeducativa, “consumido por uma fúria que desestabilizou sua razão
permanentemente” (MAIA, 2017b, p. 71). Antes disso, somente eram mortos os
presos que ameaçavam a boa convivência no local e aqueles cujas ordens de
extermínio vinham por escrito.
23

É por isso que Bronco Gil e Pablo concluem que o oficial não virá e que não
foram enviados para este lugar para concluir suas penas, mas para serem
executados: “– Eles vão deixar a gente aqui. Viemos pra cá pra morrer, ainda não
perceberam isso? – diz Pablo com a voz carregada de ira” (MAIA, 2017b, p. 60).
Essa é “uma alegoria perfeita do estado de exceção”, observa Márcia Tiburi na orelha
do livro, afinal, dos 42 condenados considerados perigosos – daquele tipo que quanto
maiores os muros que os separam da sociedade, melhor –, restaram apenas Bronco
Gil, Valdênio, Pablo e Jota.
A colônia penal assim se converte em um campo de extermínio, como nos
campos nazistas, tanto que a frase inscrita no frontispício da colônia é inspirada nas
frases comuns à entrada de muitos deles, como a própria autora confirma em
entrevista: “Eu tirei justamente dessa inscrição dos portões dos campos de
concentração, que é „O Trabalho Liberta‟, ou algo assim. E no livro é „A correção nos
torna livres‟, diretamente fazendo uma menção aos campos de concentração
nazistas.” Segundo o próprio protagonista Bronco Gil, essa frase significa: “eles
corrigem a gente com uma bala na cabeça, e somos livres quando morremos. É isso
o que diz aí em cima” (MAIA, 2017b, p. 132).
Essa referência aos campos também pode ser lida desde a própria capa das
edições argentina e brasileira. Na primeira (Figura 1a), a imagem de uma cerca
farpada tingida em preto e com um detalhe em vermelho na ponta de uma das
hastes que a sustenta sugere que os limites físicos ali impostos serão testados com
a própria vida. Na segunda (Figura 1b), a imagem de uma cabeça de javali
atravessada na capa da edição em português é um prenúncio da condição de
extermínio a que os personagens ali serão lançados: sendo o javali um animal cuja
caça é legalizada pelo IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis), por se tratar de um mamífero que não tem predadores
naturais no Brasil, e também por ser considerado uma das piores pragas do mundo,
os prisioneiros da história também serão caçados, e o massacre será inevitável.
24

Figura 1 – Capa das edições de Assim na terra como embaixo da terra

a) b)

Fonte: a) Maia (2017a); b) Maia (2017b).

Essa tensão é transferida para os internos, que acreditam ser impossível


fugir dos muros daquela fortaleza, pois não só carregam presa cada um em seus
calcanhares uma tornozeleira eletrônica, que lhes foi dito que explodiria caso
ultrapassassem os muros; como também o isolamento da colônia não permitiria que
chegassem longe – nem havia mais cavalos para ajudá-los na fuga, porque
Melquíades tinha atirado em todos. E mesmo fugindo, os presos sabem que serão
caçados e mortos pelo diretor, que os alcançaria facilmente equipado com seu jipe e
sua arma. Apesar de todos esses impedimentos, os detentos planejam uma fuga
diante do perigo iminente de serem mortos ou por Melquíades ou pelo único agente
penitenciário (Taborda) que ali restou e que obedece a todas as ordens do diretor.
Nesses novos campos, como no caso dessa colônia penal, o que podemos
concluir é que a lei é válida, mas ela não se aplica, pois o ordenamento jurídico,
ainda que legal, não tem eficácia; ele foi suspenso pelo estado de exceção que
Melquíades ali instaurou. A princípio, um presídio não é um campo, pois o direito
penitenciário não se encontra para além da ordem jurídica, pelo contrário, é parte
dela. No entanto, esse não é o caso da colônia penal dessa história: ali não se trata
de “um lugar de recuperação ou coisa que o valha, é um curral para se amontoarem
os indesejados, muito semelhante aos espaços destinados às montanhas de lixo,
25

que ninguém quer lembrar que existem, ver ou sentir seus odores” (MAIA, 2017b, p.
97). Por isso a afirmação de Agamben (2004) de que no estado de exceção vige
uma força de lei sem lei e que, portanto, deveria ser escrita como “força de lei”.
Percebemos o campo, portanto, não como uma anomalia, ou um fato
histórico que pertence a um passado distante, ou mesmo uma lição “aprendida” que
não irá se repetir, mas sim como um espaço político que mantém fortes relações
com o mundo contemporâneo. O próprio romance ilustra essa questão a partir das
especulações em torno da colônia: o lugar não só representa no presente da
narrativa um campo de extermínio, como já o foi no passado, há mais de cem anos,
quando os escravos que ali viviam foram torturados e mortos.
É nesse contexto que se instaura o locus perfeito para o gerenciamento do
refugo humano onde tudo é possível, tal como o é nos campos de concentração. Ali
na colônia penal, o princípio regente do domínio totalitário é exatamente o dos
campos, pois as pessoas que estão nesse espaço de suspensão da lei adentram
uma zona em que não se distinguem a exceção e a regra, o que é lícito ou ilícito,
levando a ordem superior a agir de forma arbitrária, como reconhece o agente
Taborda ao reportar os ocorridos da colônia para o oficial de justiça, que chega no
fim na narrativa: “Fomos longe demais, senhor” (MAIA, 2017b, p. 122).

2.3 “HABITANTE DAS FALHAS SUBTERRÂNEAS”10: REFUGO HUMANO E VIDA


NUA

O estado de exceção como paradigma de governo assume a função de


assegurar o modelo econômico-social capitalista excludente, que produz uma leva
de populações que não pode mais ser incorporadas a nenhum sistema produtivo. E
para onde mandar esses indivíduos que não possuem mais utilidade para essa
dinâmica de produção e consumo? É essa a pergunta que orienta Vidas
desperdiçadas (2005), livro em que Zygmunt Bauman reflete sobre a produção e
remoção desses seres “redundantes”:

Ser “redundante” significa ser extranumérico, desnecessário, sem


uso – quaisquer que sejam os usos e necessidades responsáveis
pelo estabelecimento dos padrões de utilidade e de
indispensabilidade. Os outros não necessitam de você. Podem

10
MAIA, Ana Paula. Carvão animal. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 77.
26

passar muito bem, e até melhor, sem você. Não há uma razão auto-
evidente para você existir nem qualquer justificativa óbvia para que
você reivindique o direito à existência. Ser declarado redundante
significa ter sido dispensado pelo fato de ser dispensável – tal como
a garrafa de plástico vazia e não-retornável, ou a seringa usada, uma
mercadoria desprovida de atração e de compradores, ou um produto
abaixo do padrão, ou manchado, sem utilidade, retirado de linha de
montagem pelos inspetores de qualidade. “Redundância” compartilha
o espaço semântico de “rejeitos”, “dejetos”, “restos”, “lixo” – com
refugo (BAUMAN, 2005, p. 20).

O lixeiro protagonista de O trabalho sujo dos outros está inserido nesse


espaço semântico do refugo humano, assim como o próprio espaço físico no qual
trabalha e a materialidade com que lida diariamente: “Erasmo Wagner só conhece
uma espécie de lixo. Aquele que é jogado pra fora de casa. A imundície, o podre, o
azedo e o estragado. O que não presta pra mais ninguém. E serve apenas para os
urubus, ratos, cães, e pra gente como ele” (MAIA, 2009, p. 91). “Pra gente como ele”
é uma metáfora dessa massa de refugo humano que deve ser conduzida a lugares
distantes dos olhos de quem a produz, tal como é feito com o lixo doméstico.
A sociedade dos tempos líquidos em que vivemos, diante das constantes
transformações socioeconômicas geradas pela globalização hegemônica, é a
responsável pela produção do refugo humano, seres que não encontram mais um
lugar dentro da atual sociedade de mercado, trabalho e consumo e, por isso, são
considerados “redundantes”, seres que poderiam se juntar às mais de vinte
toneladas de lixo recolhidas no itinerário de Erasmo Wagner.
Esse direito de excluir é uma das prerrogativas essenciais da nossa
sociedade para manter a sua soberania, pois essas formas “desqualificadas de
existir” representam obstáculos para a vigência dos valores considerados mais
importantes. Por isso Bauman afirma que:

A produção de “refugo humano”, ou, mais propriamente, de seres


humanos refugados (os “excessivos” e “redundantes”, ou seja, os
que não puderam ou não quiseram ser reconhecidos ou obter
permissão para ficar), é um produto inevitável da modernização, e
um acompanhante inseparável da modernidade. É um inescapável
efeito colateral da construção da ordem (cada ordem define algumas
parcelas da população como “deslocadas”, “inaptas” ou
“indesejáveis”) e do progresso econômico (que não pode ocorrer sem
degradar e desvalorizar os modos anteriormente efetivos de “ganhar
a vida” e que, portanto, não consegue senão privar seus praticantes
dos meios de subsistência) (BAUMAN, 2005, p. 12).
27

Em Assim na terra como embaixo da terra, tem-se a expressão máxima


dentro das obras de Ana Paula Maia desse espaço do refugo humano. Melquíades
não tem o menor respeito pelos prisioneiros, considera-os a escória da sociedade, e
os muros altos só ajudam a reforçar essa ideia: “esses muros não servem apenas
para manter os condenados confinados, mas para apagar qualquer vestígio da
existência desses homens. [...] Ninguém quer ver o que se passa aqui dentro. Aquilo
que não serve, que não presta para mais ninguém” (MAIA, 2017b, p. 127).
Valdênio, ao ser questionado por Taborda, “– Como você suporta isso
velho?”, responde com firmeza: “– Deixei de me importar, senhor” (MAIA, 2017b, p.
91). A perspectiva do personagem não alcança a já refletida estrutura de poder que
se coloca no direito de excluir pessoas, restando-lhes nada

senão os muros, o arame farpado, os portões vigiados, os guardas


armados. Entre estes, eles definem sua identidade de refugiados –
ou melhor, exercem seu direito à autodefinição. Todo refugo,
incluindo pessoas refugadas, tende a ser empilhado de maneira
indiscriminada nos mesmos depósitos. O ato de destinar ao lixo põe
fim a diferenças, individualidades, idiossincrasias. O refugo não
precisa de distinções requintadas e matizes sutis, a menos que seja
marcado para a reciclagem. Mas as perspectivas dos refugiados de
serem reciclados em membros legítimos e reconhecidos da
sociedade humana são, para dizer o mínimo, reduzidas e muitíssimo
remotas. Tomaram-se todas as medidas para garantir a permanência
de sua exclusão. As pessoas destituídas de qualidades foram
depositadas num território sem denominação, enquanto todas as
estradas que levam de volta a lugares significativos e a espaços em
que significados socialmente legíveis podem e são forjados no
cotidiano foram bloqueadas para sempre (BAUMAN, 2005, p. 98-99).

Diante dessa indiferença social fortemente estabelecida e da orfandade que


atinge Valdênio (“já não há quem espere por ele do lado de fora dos muros”), que
destino teria caso pudesse ter sua liberdade restituída? Possivelmente deixaria de
ser refugo humano encarcerado e engrossaria as fileiras do refugo humano que vive
em uma suposta liberdade: “Ser jogado para fora dos muros seria para ele entrar
num outro confinamento de sobrevivência e resistência que já não pode mais
replicar” (MAIA, 2017b, p. 15).
Mas para onde vão os descartados do mundo que conseguem sobreviver,
transpor os muros e alcançar a sua “liberdade”? É possível encontrá-los entre
moradores de rua, imigrantes ilegais, trabalhadores de baixo custo ou em situação
de trabalho análoga à de escravidão, nas periferias das cidades ou entre os
28

pertencentes às categorias de minoria política. É por isso que podemos pensar


outros personagens de Ana Paula Maia como humanos refugados, pois, ainda que
inseridos na sociedade de mercado, trabalho e consumo, eles não deixam de
pertencer a essa massa de sujeitos esquecidos a partir do momento em que
passaram a ser desassistidos por grande parte das políticas de Estado.
A colônia penal de Assim na terra como embaixo da terra, além de estar
isolada no meio de lugar nenhum, não possui linha telefônica em funcionamento há
um tempo “e o correio há quatro meses não passa, nem mesmo o caminhão de lixo,”
levando os confinados a queimar o lixo a céu aberto (MAIA, 2017b, p. 110).
Já em Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, a visita dos policiais no
matadouro clandestino onde Edgar Wilson trabalha é motivo de estranhamento,
tendo em vista a ausência de proteção dispensada àquela região: “É que por esses
lados a polícia só aparece quando alguém de fato está morto. [...] Aqui, dificilmente
se salva uma vida. É longe. Ninguém sabe direito onde fica. Se perdem no caminho.
É o que dizem para justificar a demora” (MAIA, 2009, p. 72).
Água tratada e esgoto fechado por aqueles lados também não chegam, eles
“ainda precisam conviver com as merdas ao ar livre e os vermes” (MAIA, 2009, p.
62). E o que esperar dos hospitais? Essa é a preocupação de Gerson que sofre de
insuficiência renal: “Gasta muito em passagens de ônibus. Apanha dois para chegar
até o hospital e mais dois para voltar. Alimenta-se mal. Dorme mal. Sabe que
morrerá em pouco tempo”, que não conseguirá um médico que lhe faça o
transplante de rim (MAIA, 2009, p. 79). E entende que se esperar por algo dos
médicos, lamenta a Edgar Wilson, seu único amigo, morrerá sangrando no corredor
do hospital como um porco abatido: “– Eu sou só um abatedor de porcos. A gente
não tem vez” (MAIA, 2009, p. 80).
Em Carvão animal, a condição de trabalho dos carvoeiros da pequena
cidade de Abalurdes – uma região carbonífera que sofre as consequências da
extração do carvão mineral que já dura cinquenta anos, mas dela depende para
subsistir – é exemplo de regime de exploração:

A fuligem cobre os olhos, os ouvidos, a boca. Esses homens


carvoeiros são cegos, surdos e mudos pelas cinzas. Não usam luvas,
botas, filtros para respirar ou roupas adequadas. Manuseiam tudo
com o corpo exposto, a pele à mostra e os pulmões infectados.
Enquanto trabalham, são irreconhecíveis. São todos iguais durante o
trabalho que dura dez horas por dia, seis dias por semana. Passam a
29

maior parte do tempo cobertos de um negrume que não sai mais,


pois todos os dias eles voltam para o mesmo lugar. [...]
Alguns trabalhadores têm os dedos esmagados ou decepados por
alguma das ferramentas durante o manuseio nas atividades diárias.
Perde-se lá o dedo, mas isso não altera a condição de nenhum deles
(MAIA, 2011, p. 118).

Em O trabalho sujo dos outros, as condições trabalhistas também são


precárias: quando um caminhão quebra, outro termina a coleta em seu lugar sem
recebimento de hora extra pelo trabalho dobrado; e a coleta não é
semiautomatizada, o que leva os lixeiros a manusear a sujeira com as próprias
mãos, colocando-se, assim, sob grandes riscos. Além disso,

O adicional de insalubridade que [Erasmo Wagner] recebe por


trabalhar em atividade de alto risco é vergonhoso. Mas para sujeitos
como ele só resta arriscar a vida para mantê-la. Às vezes um colega
cai do caminhão, é atropelado, infecta-se com doença contagiosa,
amputa um braço ou uma mão no compactador de lixo, ganha uma
hérnia de disco devido ao peso que carrega, torna-se inválido, é
afastado do trabalho e esquecido como lixo que é recolhido nas
calçadas e depositado nos aterros sanitários (MAIA, 2009, p. 103).

A ausência de assistência que aqui observamos demonstra a indiferença da


lei com relação a essas vidas. Além de isoladas fisicamente das áreas mais
desenvolvidas da cidade, essas pessoas trabalham em regime de grandes riscos e
de pouca assistência. Quando trabalham, são exploradas; quando presas,
esquecidas; quando adoecem, continuam trabalhando sem receber o tratamento
adequado; e quando morrem, viram estatística policial.
Elas se configuram na lei somente como “ocorrências”, ocupando, assim,
uma posição ambivalente na sociedade: o da exclusão inclusiva. Ao mesmo tempo
que esses sujeitos fazem parte do corpo social, eles não se encaixam nem dentro
nem fora dos parâmetros da lei; devem obediência ao Estado, mas dele não recebe
amparo de contrapartida.
Como resultado dessa condição, essa parcela da população se torna
facilmente aliciável para atividades de baixa remuneração e/ou até ilícitas, caminhos
estes que representam os poucos que a população refugada pode acessar antes de
ser completamente descartada.
Edgar Wilson, por exemplo, em Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos,
trabalha em um matadouro clandestino improvisado “nos fundos de um mercadinho
30

cheirando a barata”. Tenta ganhar um pouco mais apostando em rinhas de cães e


aceita facilmente, por duzentos reais, ajudar um desconhecido em uma simulação
de seu próprio sequestro para testar a fidelidade de sua noiva (MAIA, 2009, p. 16).
Erasmo Wagner, em O trabalho sujo dos outros, tenta complementar a renda
revendendo o lixo aproveitável e vendendo parte do leite das duas cabras que cria;
e durante a greve, vai trabalhar de ajudante com seu primo Edivardes limpando e
desentupindo caixa de gordura e caixa d‟água.
Bronco Gil, em Assim na terra como embaixo da terra, durante sua fuga da
colônia penal, aceita a carona de Milo, que, depois de saber que o índio estava
fugindo de onde “o preso entra, mas nunca sai”, admira-se: “Não sei o que você fez,
mas se saiu de lá, bem, é porque você é bom em se manter vivo e deixar os
predadores bem longe.” Diante dessas qualificações, faz-lhe, então, a proposta de
trabalhar como capataz em sua fazenda de abate de gado: salário, casa, comida e
uma folga quinzenal. Para Bronco Gil, que não tem lugar para onde ir e que já viveu
em confinamento por anos, “um outro confinamento com folga quinzenal e salário
fixo lhe soa atraente” (MAIA, 2017b, p. 142).
Ronivon, em Carvão animal, é coagido por seu patrão a dar cabo imediato
de 87 corpos que estão superlotando o frigorífico do crematório Colina dos Anjos, o
qual está prestes a receber a visita de uns investidores: “– Nós temos um grande
problema aqui e sei que ninguém quer perder seu emprego. [...] Tenho certeza que
em pouco tempo estaremos muito melhor [...]. E os seus salários provavelmente
terão um reajuste de vinte por cento” (MAIA, 2011, p. 112). Os funcionários cogitam
abrir valas para enterrar os corpos e até queimá-los todos em uma fogueira, mas é
nos fornos de uma carvoaria a vinte quilômetros que eles serão incinerados durante
a madrugada. Depois serão misturados ao carvão vegetal ali da carvoaria e
vendidos como se assim somente fossem.
Isso tudo acontece porque estamos diante de humanos refugados, cuja
forma de existência somente se torna sustentável se a mão de obra, que é o que
lhes resta a oferecer, está pronta a aceitar e fazer o que lhe seja oferecido. Valdênio,
prisioneiro que consegue chegar aos 65 anos na colônia penal, onde trabalha como
cozinheiro, é um exemplo dessa mão de obra dócil: ele “já não questiona mais.
Obedece. Cumpre as ordens. Baixa a cabeça e se retira” (MAIA, 2017b, p. 16).
Essa noção de vida refugada encontra ressonância no conceito de vida nua
de Agamben, discutido no livro Homo sacer: o poder soberano e a vida nua (2010),
31

que reflete sobre a natureza do poder soberano na sociedade moderna e


contemporânea, e que mostra como a politização da vida nua, vida natural ou
biológica, caracteriza o poder soberano no Ocidente.
O filósofo italiano também entende, assim como Bauman, que os tempos
modernos reduziram progressivamente a vida do ser humano ao que Agamben vai
chamar de vida nua. Trata-se de uma interpretação apropriativa que ele faz do
conceito “das bloβe Leben” do ensaio benjaminiano “Para uma crítica da violência”,
cuja expressão, do ponto de vista etimológico, deveria ser traduzida em português
como “mera vida”. Os desdobramentos desses conceitos seguem caminhos
distintos, mas tanto os argumentos de Agamben a respeito da vida nua, quanto as
análises de Benjamin sobre a “mera vida” reconhecem o elo entre violência e
poder/direito (AGAMBEN, 2010).
A vida nua é uma vida que não é animal nem humana, mas desumana, uma
existência que se coloca nos limites da vida natural (zoé) e da vida imersa em
categorias éticas e políticas (bíos). Essa distinção entre zoé e bíos é retomada por
Agamben a partir das obras de Aristóteles e dos filósofos modernos Michel Foucault
e Hannah Arendt, que também a interpretaram. Para os gregos, existem dois termos
para exprimir o que queremos dizer com a palavra vida: zoé, que significa o simples
fato de viver comum a todos os seres, mera vida reprodutiva dos animais, indivíduos
ou deuses; e bíos, que indica a vida qualificada de um indivíduo ou de um grupo.
É a partir desses conceitos que Agamben introduz o de vida nua, que pode
ser descrito como uma vida biológica politizada, ou seja, o ingresso da zoé na bíos.
Sua vida não é nem somente bíos, nem apenas zoé, tal como visto separadamente
pelos gregos, mas uma zona de indistinção e trânsito contínuo entre as duas
existências, as quais se constituem mutuamente ora implicando-se, ora excluindo-se
uma a outra. No entanto, essa existência da vida natural (zoé) na esfera da pólis
(bíos) acontece em uma posição de exclusão.
Arendt, em A condição humana (2016), livro em que ela realiza uma
investigação histórico-filosófica sobre a condição de pluralidade da vida humana
ameaçada pela modernidade, também mostra a inclusão exclusiva ao tratar da vida
biológica dos homo-operários, essa vida que passa a ocupar gradualmente o centro
da cena política da modernidade, mas para sofrer exclusão. Também Foucault, em
A história da sexualidade I: a vontade de saber (1988), livro em que desconstrói a
hipótese repressiva da sexualidade ao identificar as técnicas do biopoder atuando
32

sobre a sociedade e o indivíduo, também se refere à vida natural na modernidade


como uma categoria incluída nos mecanismos e cálculos do poder estatal, mas
novamente para sofrer exclusão.
Observamos que ambos os autores percebem o problema dessa inclusão da
vida nua na pólis da mesma forma como Agamben posteriormente formula, como
algo realmente precedido por uma exclusão. Ocorre uma separação da vida (zoé) de
sua forma (bíos) e quem opera essa separação é o poder soberano, o qual, ao
realizá-la, produz a vida nua. O que podemos ver, portanto, é um modo de controle
do Estado sobre a vida de um indivíduo ou grupo, o que reafirma a relação entre
violência e poder/direito de que fala Benjamin.
A figura mais importante de vida nua que Agamben cita é o homo sacer.
Originariamente situado à margem, ele é uma figura do direito romano arcaico cuja
vida humana é capturada no bando soberano e incluída no seu ordenamento
unicamente sob a forma de uma dupla exclusão: ele “pertence ao Deus na forma da
insacrificabilidade e é incluído na comunidade na forma da matabilidade”. Em outras
palavras, sua vida sacra é insacrificável e matável, aquela que “se pode matar sem
cometer homicídio e sem celebrar sacrifício” (AGAMBEN, 2010, p. 84-85).
Os judeus aniquilados são exemplos de homo sacer, pois, apesar de
humanos, estavam excluídos da comunidade humana, razão pela qual sua morte
não era passível de punição. Seriam também hominis sacri os personagens de Ana
Paula Maia? A partir do momento em que eles se encontram desnudados de seus
direitos, já são lançados na condição de homo sacer, isto é, excluídos da ordem
(bíos), mas incluídos na vida nua (zoé), uma existência que vai experenciar o limite
entre direito e vida.
Estamos, então, diante de vidas sujeitas a um poder de morte e ao
abandono. Essas vidas banidas da ordem se convertem em vidas bandidas sobre as
quais é decretada a exclusão inclusiva, por isso o bandido é apresentado por
Agamben como outro exemplo do resultado dessa vontade de exceção do soberano
sobre a vida. Segundo a definição do filósofo, no período medieval, a figura do
bandido sofria a mesma exclusão do homo sacer e também podia ser morto sem as
formas sancionadas pelo rito ou pela lei ou já era até considerado morto.
O termo bandido, inclusive, apresenta uma ambiguidade semântica que já
aponta para o seu estado de abandono:
33

in bando, a bandono significa originalmente em italiano tanto „à


mercê de...‟ quanto „a seu talante, livremente‟ (como na expressão
correrre a bandono), e bandido significa tanto „excluído, banido‟
quanto „aberto a todos, livre‟ (como em mensa bandita e a redina
bandita) (AGAMBEN, 2010, p. 110).

A vida do bandido, portanto, assim como a do homo sacer, não se encontra


fora da lei, mas condenada ao banimento. Muitos personagens de Ana Paula Maia
se aproximam dessa figura do bandido, pois eles compõem o sentido de exclusão
que acerca um malfeitor junto à comunidade e ostentam uma violência sobretudo
contra o direito de vida do outro.

2.4 “O CORPO AOS PORCOS”11: VIOLÊNCIA OBJETIVA E SUBJETIVA

Os livros de Ana Paula Maia podem atrair os/as leitores/as pela banalização
da violência, tanto que é comum encontrar referências às suas obras como pulp
fiction. Trata-se de um gênero cuja origem deu-se no período entreguerras nos
Estados Unidos e que exerceu grande impacto no desenvolvimento da literatura
estadunidense. Sobre isso, reflete o escritor de pulp fictions Samir de Machado em
sua coletânea Ficção de polpa – volume 1, que reúne narrativas desse gênero
escritas por homens e mulheres:

Ficção de polpa? Porque o horror moderno, a ficção científica como


nós a conhecemos e (em menor grau) a literatura fantástica moderna
devem muito a um tipo de publicação tão barata quanto desprezada:
as revistas pulp, ou pulp fictions, publicadas entre as décadas de
1920 e 1950, assim chamadas por serem impressas no papel mais
barato possível, feito da polpa da madeira, e vendidas por meros dez
centavos (MACHADO, 2007, p. 9).

Muitos escritores estadunidenses, principalmente os do sexo masculino –


aliás, origem falocêntrica essa que representa uma das marcas da escrita pulp –,
iniciaram sua carreira literária escrevendo nas pulp magazines, sobretudo nos anos
dourados desse gênero, entre as décadas de 20 e 40 do século XX. Para citar
alguns nomes: Edgar Burroughs, Isaac Asimov e Ray Bradbury (ficção científica),

11
MAIA, Ana Paula. Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. Rio de Janeiro: Record,
2009. p. 66.
34

Howard Lovecraft e Robert Bloch (horror), Raymond Chandler e Dashiel Hammett


(policial), Robert Howard (fantasia).
O livro mais notável de Jerome Salinger, O apanhador no campo de centeio,
por exemplo, teve sua publicação em formato pulp, mas assim foi classificado devido
ao formato físico, que dispôs de uma qualidade inferior de papel segundo os
predicados artísticos da chamada “alta literatura”. Sobre a materialidade desse livro,
Stephen Whitfield comenta em seu artigo “Cherished and cursed: toward a social
history of The catcher in the rye”, que analisa o aspecto social dessa obra literária:
“A respeitabilidade do livro não era melhorada pela primeira aparição do romance no
formato de livro de bolso, pois ele era oferecido como pulp fiction, um gênero que
acenava com promessas de um prazer ilícito” (WHITFIELD, 2000, p. 152, tradução
nossa).12
Aliás, esse livro é citado por Ana Paula Maia, em entrevista à revista
Rascunho, como um dos grandes responsáveis por sua escrita literária:

O apanhador no campo de centeio foi um dos livros mais importantes


na minha vida. O Salinger foi um revolucionário para mim, foi
fundamental. O habitante das falhas subterrâneas (2003) faz um
paralelo direto com O apanhador. Foi a maneira como comecei a
escrever (ANA, 2011).

Da mesma forma, no Brasil, embora uma Pulp Era não tenha ocorrido tal
como nos Estados Unidos, alguns escritores canônicos, como Érico Veríssimo,
Nelson Rodrigues e Guimarães Rosa, e outros esquecidos ou desconhecidos, como
Humberto de Campos, Adelpho Monjardim e Amândio Sobral, aproximaram-se de
temas e enredos típicos das revistas de polpa, conforme Júlio Fraça (2013), em seu
artigo “Ecos da Pulp Era no Brasil: o gótico e o decadentismo em Gastão Cruls” .
Peter Haining, em seu livro seminal sobre o estudo da literatura pulp, The classic Era
of American pulp magazines, identificou seis categorias temáticas a partir de seis
revistas:

as Hot Pulps, precursoras das atuais revistas masculinas, com uma


beldade em trajes sumários desenhada na capa e narrativas eróticas
em seu interior; as Crime Pulps, especializadas em histórias policiais
e detetivescas; as Spicy Pulps, que misturavam histórias de aventura

12
“Nor was respectability enhanced by the novel‟s first appearance in paperback, for it was
offered in as pulp fiction, a genre that beckoned with promises of illicit pleasure.”
35

com doses de violência e erotismo; as Fantasy Pulps, com suas


narrativas que abrangiam o amplo escopo da fantasia, do horror e do
mistério; as Shudder Pulps, que, na tradição do teatro do medo e do
terror francês, o Grand Guignol, trazia contos com vilões sádicos,
tortura, violência e brutalidade explícitas; e as Sci-Fi Pulps,
dedicadas ao público apreciador das narrativas de ficção científica
(FRANÇA, 2013, p. 10).

Diante disso, a literatura de Ana Paula Maia corresponde de algum modo à


literatura pulp, sobretudo quando se trata da novela Entre rinhas de cachorros e
porcos abatidos, que até teve sua primeira publicação realizada em uma espécie de
folhetim pulp13 em 2006, com capítulos publicados semanalmente no antigo blog
pessoal da escritora, killingtravis.
Mas essa aproximação das pulps não se deve somente a essa origem em
um meio barato e acessível à população nos dias de hoje, tal como a celulose assim
o era na primeira metade do século XX. Nesse livro da escritora, a vida dos
personagens está imersa em manifestações de violência, chegando a episódios de
grande brutalidade, como o próprio título do livro já prenuncia, fatos estes que
apresentam grandes semelhanças com tais características também presentes em
mais de uma das categorias temátias de pulp estabelecidas por Haining, como visto.
Aqui temos a história de Edgar Wilson, que, durante o dia, abate porcos em
um matadouro clandestino do subúrbio junto com seu melhor amigo Gerson; e à
noite, nas horas vagas, ambos apostam em rinhas de cachorros assassinos. Cada
um dos cinco capítulos contabiliza mais de uma morte entre humanos e não
humanos, com descrições de imagens repugnantes que podem causar horror
através da repulsa, como veremos a seguir.
No primeiro capítulo, intitulado “Não se deve meter em porcos que não te
pertencem”, Edgar Wilson assassina Pedro quando o vê gemendo o nome de
Rosemery, noiva de Edgar, enquanto violenta sexualmente um porco já abatido:
“Suspende o machado e arrebenta a cabeça, que gira velozmente para a direita.
Pedro cai se debatendo. [...] Pedro fecha os olhos quando percebe o segundo golpe,

13
De acordo com o professor e pesquisador Júlio França (2013), em seu artigo “Ecos da
Pulp Era no Brasil: o gótico e o decadentismo em Gastão Cruls”, as pulp fictions começaram
a desaparecer das bancas no final dos anos 1950, devido a fatores como: saturação do
mercado por títulos similares, aparecimento da televisão e aumento dos preços das revistas
por conta do contexto de crise desse período entre guerras. O formato digital é o que tem
garantido a sobrevivência das pulps hoje.
36

que esmiúça seu rosto, transformando-o em uma massa disforme”. E como Edgar
Wilson precisava encontrar um jeito de compensar o porco a menos que recebeu da
carga do dia, “rasga Pedro ao meio, remove seus órgãos e fica admirado pelo seu
peso. Pedro vale tanto quanto a maioria dos porcos, e suas tripas, bucho, bofe,
compensaria a perda do outro porco”. E para terminar, ainda “moeria os restos
mortais no triturador junto com os ossos da saca e venderia para a fabricação de
ração para cães” (MAIA, 2009, p. 26-28).
O segundo capítulo, “Até cães comem os próprios donos com lágrimas nos
olhos”, mostra a morte de Marinéia. Seu irmão Gerson está com insuficiência renal e
decide, então, pegar de volta o rim que havia doado há um ano para sua irmã. Há
uma urgência nessa empreitada, pois, como Marinéia está fazendo quimioterapia, o
rim poderia ser danificado muito em breve: “Retalhar Marinéia nunca foi sua
intenção, mas era difícil conduzir precisamente o canivete [...]. Corta o tubo fino e
longo que sai do rim, seguido de um espirro, deslizando desgovernadamente o
canivete à aorta abdominal, que se rompe.” Na banheira, o pequeno chiuaua
“lambuza-se no sangue de Marinéia, permanecendo dentro da cavidade exposta. Ele
mastiga sua robusta carne com lágrimas nos olhos enquanto a devora em pequenas
dentadas” (MAIA, 2009, p. 38-40).
No terceiro capítulo, “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”, temos
dois momentos. Primeiro, a morte de uma desconhecida, que bate o carro na árvore
devido a um porco na estrada: “Edgar vê uma mulher de meia-idade, desconjuntada
entre as ferragens e com algumas fraturas expostas [...]. Tem sangue na boca,
saindo dos ouvidos, e muito mesmo escorrendo da cabeça.” Depois, o fim da saga
do resgate do rim: “– E o teu rim que tava com tua irmã? Tá onde? – Deixei no
congelador até achar a porra de um médico que o colocasse no lugar e meu pai
fritou ele com cebolas [...]. Achei melhor não dizer nada. Eles pensaram que era
fígado de boi” (MAIA, 2009, p. 48, 52, 55).
Já no quarto capítulo, “Abatedores clandestinos e porcos na caçamba”, além
de Edgar Wilson ter batido o recorde em abater porcos (33 em uma hora), ter
confessado a Gerson que matou a própria namorada Rosemery e que a deixou ser
devorada por porcos famintos, ele aceita participar do plano de sequestro de um
desconhecido e que termina em tragédia: um caminhão atinge a traseira do carro
que levava o homem no porta-malas e, para livrar-se do corpo, lança-o aos porcos,
37

“– Esses bichos comem de tudo... tudo mesmo [...] E nunca deixam vestígios”
(MAIA, 2009, p. 66).
Por fim, no quinto capítulo, “Porcos são incapazes de olhar para o céu”,
Edgar Wilson perde seu cão de rinha favorito, Chacal, e seu melhor amigo, Gerson.
Chacal morre em um duelo: “os cães saltaram um de encontro ao outro e trombaram
com fúria no ar. A fúria crescia quanto mais o cheiro de sangue dos cães se
misturava ao chão da terra. [...] Chacal é retirado quase aos pedaços.” E Gerson,
diante das dores diárias causadas pelo problema nos rins, envenena-se para
apressar sua morte inevitável: “Avança para a frente em sinal de vômito, coloca a
mão na boca e segura as entranhas de escapulir. Embaralha as pernas e cai no
chão em convulsão” (MAIA, 2009, p. 84-85).
Em cada capítulo, somos expostos a um excesso de violência a que parece
seguir a exaustão e consequente banalização dos efeitos dessa violência. Essas
imagens expostas e abjetas, imagens de morte, dor e sofrimento, podem se perder
em seu excesso e serem confundidas com produtos de consumo superficial. No
entanto, a literatura de Ana Paula Maia estaria assim reduzida a essa gratuidade de
passagens, configurando o que Roland Barthes define como texto de prazer?
Em seu livro O prazer do texto, que traz uma proposta de leitura enquanto
jogo erótico, caracterizando o texto como uma possibilidade de construção
ambivalente, o crítico literário contrapõe o texto de prazer (plaisir) ao texto de fruição
(jouissance).14 Enquanto aquele proporciona uma leitura conforme e fluente, pois
não rompe com a cultura, apenas contenta, enche, dá euforia; este desconforta, uma
vez que põe em discussão as bases históricas, culturais, psicológicas da sociedade,
levando o/a leitor/a a questionar seus gostos e valores (BARTHES, 1987).
De modo geral, a narrativa pulp, em uma leitura superficial, pode até parecer
que esteja intimamente relacionada ao texto de prazer, por oferecer, em primeiro
plano, uma experiência de entretenimento, isto é, um texto gratuito ligado a uma
prática confortável de leitura. Entretanto, retomando a própria reflexão de Barthes, a
de que a única coisa gratuita seria a própria destruição da escrita, isto é, não
escrever, devemos olhar para além do dizível, pois a fruição está interdita, isto é,

14
Barthes (1987, p. 7, 27) admite que os termos prazer e fruição podem se apresentar, por
vezes, de modo ambíguo, fato este que leva o prazer a ser ora extensivo à fruição, ora a ela
oposto, tanto que ele próprio admite: “terminologicamente isto ainda vacila, tropeço,
confundo-me”. Apesar disso, Barthes ainda acredita que é possível traçar uma distinção
entre os dois tipos de texto.
38

“ela só pode ser dita entre as linhas”, conforme ele explica remetendo a Jacques
Lacan (BARTHES, 1987, p. 30).
Slavoj Žižek, também influenciado por Lacan, alerta sobre isso em seu livro
Violência: seis reflexões laterais, que discute formas de violência a partir da
premissa de que a violência visível em nossa sociedade é produto de uma violência
oculta, estruturante do sistema político e econômico:

devemos aprender a dar um passo para trás, a desembaraçar-nos do


engodo fascinante desta violência „subjetiva‟ diretamente visível,
exercida por um agente claramente identificável. Precisamos ser
capazes de perceber os contornos dos cenários que engendram
essas explosões (ŽIŽEK, 2014, p. 17).

Segundo Žižek (2014), os sinais mais evidentes de violência, como atos de


crime e terror, é tão somente a parte mais visível dela, o que o filósofo chama de
violência subjetiva. Trata-se de uma violência percebida como algo pontual, como
uma perturbação de um estado de coisas que, em tese, estavam antes organizadas
de forma “normal”, “pacífica”. E essa desordem é provocada por um perpetrador
facilmente identificável, como são exemplos agentes sociais, indivíduos maléficos e
aparelhos estatais repressivos.
Somente o olhar por outra perspectiva para a violência subjetiva é que
permite enxergar a violência objetiva, aquela que é inerente a esse estado “normal”
de coisas. Žižek (2014, p. 17) divide esse tipo de violência em simbólica e sistêmica.
A primeira pertence à esfera da linguagem e de suas formas, isto é, àquilo que
Martin Heidegger define como a “nossa casa do ser”: ela diz respeito à imposição de
um universo de sentidos dentro das relações sociais e que as nossas formas de
discurso habituais reproduzem cotidianamente.
A violência sistêmica, por sua vez, consiste nas consequências muitas vezes
catastróficas do funcionamento normal das forças repressivas que mantêm a ordem
excludente; são elas os nossos sistemas econômico e político. Os efeitos dessa
violência são menos espetacularizados, diferentemente do que é reportado no
cotidiano ou como conclui Erasmo Wagner, protagonista de O trabalho sujo dos
outros: “Gostam de narrar tiros e mortes por bandidos. Grandes fatalidades.
Catástrofes. Escândalos” (MAIA, 2009, p. 140).
Os efeitos da violência objetiva não recebem essa atenção, mas certamente
são mais disseminados, profundos e duradouros. É como problematiza Bertolt
39

Brecht (1988, p. 103), em A Ópera de Três Vinténs, ao mostrar que a


institucionalidade e os parâmetros de ordem e legalidade impostos por ela podem
ser mais danosos que a própria transgressão à ordem: “O que é um assalto a um
banco comparado à fundação de um banco?”
A violência objetiva, portanto, é uma violência invisível, visto que ela não
rompe com a normalidade, pelo contrário, camufla-se em sua conformidade com as
regras. Ela está presente permanentemente na tessitura das relações sociais e não
pode ser atribuída a perpetradores concretos e às suas “más” intenções, ainda que a
violência objetiva atenda a interesses de beneficiários individuais. Levá-la em
consideração, então, é imprescindível para compreendermos as explosões
“irracionais” de violência subjetiva (ŽIŽEK, 2014).
Um exemplo para entendermos essa impessoalidade da violência objetiva é
quando Edgar Wilson recebe um porco em vez de dois, e sabe que “se não
encontrar uma maneira razoável de resolver essa situação, ele terá que arcar com o
prejuízo. Com o salário que ganha, não sobraria muita coisa no fim do mês” (MAIA,
2009, p. 20). Diante disso, a solução razoável que encontra é eviscerar Pedro, que
já está morto, para compensar a perda do outro porco, e ainda triturar seus restos
para oferecer às indústrias de ração. O drama de Edgar Wilson nesse episódo está
ligado à vulnerabilidade que afeta os assalariados de baixa remuneração e que pode
levá-los a episódios de grande barbárie ao aproveitar-se da lei que não está ali para
protegê-los ou sequer puni-los.
Nesses espaços onde não se vê a intervenção do Estado para melhorar as
condições de trabalho, moradia, saúde, por exemplo, a lei que prevalece é a da
justiça com as próprias mãos, e a vida se torna a moeda de troca: o peso das
vísceras de Pedro vendidas como se fossem de porcos valem mais que a vida dele,
o rim de Marinéia que Gerson precisa para sobreviver tem maior valor que a própria
vida da irmã, o celular que toca músicas e tira fotos encontrado no acidente de carro
de uma desconhecida importa mais que socorrê-la (pois, com ele, conseguem
recuperar o prejuízo do porco morto no acidente) e a geladeira nova, presente de
noivado que Edgar Wilson pega de volta depois de ter assassinado Rosemery, vale
muito mais que a venda dos restos mortais da noiva, afinal:

só quem vive nos confins do subúrbio abafado e sufocado, longe das


praias, de ares úmidos, comendo poeira, economizando água sob
40

quase 40 graus diariamente, pisando em asfaltos fumegantes sabe o


que representa uma geladeira nova e que faz gelo (MAIA, 2009, p.
61-62)

Podemos pensar, então, com relação à literatura pulp de Ana Paula Maia,
que é justamente na extenuação da violência subjetiva que se encontra a vontade
de fruição dos seus textos, pois, se olharmos para além da realidade das sensações
efêmeras de horror provocadas por essa polpa de sangue, podemos enxergar os
aspectos ideológicos fundantes da narrativa. Ou seja, é da necessidade de chocar
o/a leitor/a com a saturação de violência subjetiva que se revela as intenções do
texto, cujo destaque que aqui fazemos é para a problematização da violência
objetiva que reduz o indivíduo à vida nua, restando-lhe apenas seu corpo e sua força
de trabalho para ser oferecida em troca de sua sobrevivência.

2.5 “ALGUÉM PRECISA FAZER O TRABALHO SUJO”15: ANIMAL LABORANS

Com a consolidação do capitalismo, o ser humano foi assimilado ainda mais


pelo trabalho, como uma resposta direta aos interesses da economia política de
enredá-lo no ciclo vital de produção e consumo, atividades que estão alheias às
suas capacidades de iniciativa, opinião, deliberação e decisão, pois lhe basta o
esforço circular, repetitivo e interminável para extrair os objetos de consumo e
garantir os meios de subsistência da vida orgânica.
Esse ciclo reduz o espaço público da autonomia a um mercado de trocas
econômicas (produção e consumo). Sobre isso, reflete André Duarte, em seu artigo
Modernidade, biopolítica e violência: a crítica arendtiana ao presente:

O que resulta deste processo é a perda de espaço da liberdade para


a necessidade, a perda da ação livre e espontânea para o
comportamento repetitivo e previsível do trabalhador, a perda do
espaço público e comunitário para os lobbies e grupos de pressão
ocultos, a substituição da troca persuasiva de opiniões pela violência
cega e muda, a submissão da pluralidade de idéias políticas pelo
pensamento único, o enfraquecimento da capacidade de consentir e
dissentir em vista da obrigação de obedecer, enfim, o ofuscamento
da novidade e da criatividade pelo eterno retorno do mesmo
(DUARTE, 2004, p. 46).

15
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 16.
41

Por isso Arendt (2016, p. 400) chega à seguinte conclusão em seu livro A
condição humana, que analisa como a vida do ser humano foi reduzida às atividades
estritamente vinculadas às suas necessidades vitais com a consagração do trabalho:
“é perfeitamente concebível que a era moderna – que teve início com um surto tão
promissor e tão sem precedentes de atividade humana – venha a terminar na
passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu.”
Sob a perspectiva arendtiana, o ser humano, ao ser arremessado no mundo
moderno, chega ao último estágio da sociedade de empregados, aquele em que
seus membros são reduzidos a um funcionamento puramente automático, “como se
a vida individual realmente houvesse sido submersa no processo vital global da
espécie e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar”
(ARENDT, 2016, p. 400).
É dessa forma como se comportam os protagonistas de Ana Paula Maia:

Erasmo Wagner nunca se sente triste ou só. Não sabe o que é sofrer
por amor. Não busca um sentido para a vida. Seus pensamentos são
claros e objetivos. Ele cumpre seu dever e busca sobreviver.
[...] É um homem expurgado e permanecerá recolhendo o lixo dos
outros, como uma besta de fardo, estéril, híbrida, que não questiona
(MAIA, 2009, p. 122, 158).

Edgar Wilson também não se importa com sua rotina, nem ao menos
reclama da vida, e até “contenta-se, porque sua vida é mesmo boa”; ele “sempre
acreditou que a Providência Divina se encarrega do fardo por demais pesado”
(MAIA, 2009, p. 16, 27).
De forma semelhante, o narrador de Carvão animal também conclui,
referindo-se aos funcionários do crematório onde trabalha o protagonista Ronivon:
“são sujeitos muito simples, sem ansiedade aparente e que suportam fardos em
silêncio” (MAIA, 2011, p. 63).
Trata-se da vitória do animal laborans, uma vida permanentemente sujeita à
necessidade, e o necessário é apenas trabalhar, isto é, “garantir a continuidade da
vida de cada um e de sua família” (ARENDT, 2016, p. 399). Essa segurança, no
entanto, significou a criação de condições justificáveis à prática da violência pelo
Estado, como também reconhece Duarte, ao afirmar a ascenção do animal laborans
como o denominador comum à violência das democracias ocidentais e das
dominações totalitárias nazista e stalinista:
42

o denominador biopolítico comum à violência extraordinária do


totalitarismo, bem como à violência ordinária das modernas
sociedades despolitizadas, em que o cuidado dos cidadãos pela
coisa pública foi substituído pela administração tecnocrática dos
interesses vitais dos agentes econômicos privados, se encontra,
segundo a terminologia arendtiana, na ascensão do animal laborans
e da própria vida – consubstanciada nos interesses econômicos da
sociedade – ao centro do espaço público (DUARTE, 2004, p. 44).

Dentro dessa perspectiva, os indivíduos não se diferenciam entre si, estão


dissolvidos em uma massa humana sem identidade e sem liberdade, até porque,
para Arendt, a liberdade não pode ser vivenciada pelo animal laborans. Ela só pode
ser vivenciada se o círculo repetitivo e estagnado da necessidade for rompido,
dando espaço para atividades destinadas à transformação do seu lugar de
existência, como a construção de vivências para além do ciclo de produção e
consumo com expectativa de durabilidade.
Convém entendermos que Arendt, uma pensadora do político, e não uma
teórica sistemática da política, não desprezava o trabalho e o trabalhador. Segundo
Duarte (2004, p. 47), a questão que ela denuncia é “a redução contemporânea do
humano a um animal que trabalha para consumir e consome para trabalhar e, por
outro, a transformação da política na gestão administrativa, tecnocrática”, que
disseminou o uso da violência em suas novas formas como elemento constitutivo da
política contemporânea.
Essa condição só pode ser rompida se a condição humana for alcançada, o
que significa, para Arendt, ter uma vita activa. Esse conceito, fundamental em sua
obra, é constituído de três atividades humanas relacionadas às condições básicas
de sua vida: trabalho, obra e ação.16 E a essas três atividades, correspondem três
condições humanas: vida, pertencer-ao-mundo (mundanidade) e pluralidade.
O trabalho diz respeito ao processo biológico de sobrevivência do corpo
humano, ou seja, ao crescimento, metabolismo e declínio. Por isso Arendt (2016, p.
9) afirma que “a condição humana do trabalho é a própria vida”, pois sua única
finalidade é assegurar as necessidades básicas da vida e da espécie, isto é, do
animal laborans.

16
No Brasil, circulou por muitos anos a tradução “labor, trabalho e ação”, tríade arendtiana
que corresponde aos seguintes termos em inglês, alemão e francês: para labor, labor,
Arbeit, travail; para trabalho, work, Werk ou das Herstellen, l’oeuvre ou l’oeuvrer; e para
ação, action, das Handeln, l’action ou l’agir. Desde 2010, as traduções brasileiras passaram
a optar pela forma “trabalho, obra e ação”, versão que aqui também adotamos.
43

Já a obra não está ligada à existência humana natural, ela se refere ao


mundo artificial de coisas, pois permite a criação de objetos e a transformação da
natureza, ainda que isso não seja suficiente para individualizar o ser humano,
apenas para criar um habitat distinto ao dos outros animais. Diante disso, Arendt
(2016) compreende que a condição humana da obra é o pertencer-ao-mundo, pois o
artefato humano é o que proporciona uma medida de permanência e durabilidade à
efemeridade da vida mortal do homo faber.
A ação, atividade mais importante para a autora, é a única atividade que
independe da mediação de objetos, da matéria, pois se exerce diretamente entre os
seres humanos. Ela corresponde à condição humana da pluralidade, que possui dois
aspectos: a igualdade, senão não nos compreenderíamos em nossas necessidades
passadas, presentes e futuras; e a diferença, que abre o espaço da discussão e do
debate. É a ação que funda e preserva os corpos políticos, condição para a criação
da história (ARENDT, 2016).
A partir dessa classificação das atividades da vita activa, entendemos
melhor os personagens da escritora como animal laborans, pois sua atividade
principal é o trabalho, como conclui o narrador em O trabalho sujo dos outros:
“Quando se quebra asfalto, se recolhe lixo ou se desentope esgotos diariamente,
seu cérebro passa a ser um órgão subnutrido. É difícil entender um detalhe a mais.
Se interessar por alguma coisa fica um pouco mais difícil” (MAIA, 2009, p. 102).
Em Carvão animal, a trajetória de Rui, que trabalha com Edgar Wilson na
carvoaria onde sofrem um acidente explosivo e onde Rui decide morrer, expressa
significativamente essa condição de animal laborans:

Este trabalha há vinte anos em minas de carvão. Tem o dobro da


idade de Edgar Wilson e já não consegue executar outra tarefa a não
ser essa. Rui pretende escavar carvão mineral enquanto viver. O
fóssil negro, da cor de sua pele, já percorre o seu sangue. Sofre da
doença do pulmão negro, porém a doença ainda não o impediu de
trabalhar. Constantemente tosse e cospe uma secreção espessa de
cor negra e gosmenta. Ele pretende terminar seus dias ali mesmo,
naquela mina, pois tudo o que fez na vida foi trabalhar. Não sabe
fazer mais nada, nem filhos ele soube fazer. Assim como Edgar,
também vive no alojamento próximo à mina que abriga cerca de
cinquenta homens. A outra parte volta para suas famílias. A maioria
deles visita a família duas ou três vezes ao ano, devido à longa
distância. A jornada de trabalho dura doze horas. Edgar desce para a
mina às cinco e meia da manhã e só retorna às cinco e meia da
tarde. As refeições são feitas em uma das galerias da mina. Há três
44

anos, esse homem conhece apenas o crepúsculo da manhã e do


entardecer (MAIA, 2011, p. 75).

Essa é a realidade sufocante desses personagens que pouco se diferenciam


entre eles, e por isso podem ser substituídos por outra força produtiva que será
igualmente desgastada e assim por diante. Aqui o que importa são as histórias das
massas a que pertencem os protagonistas, histórias de exploração em que pouco
importa quem, desde que a massa continue a movimentar a engrenagem da
produção e consumo.

2.6 ATENÇÃO, HOMENS TRABALHANDO: PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES

A literatura de Ana Paula Maia traz luz à história de homens a quem coube
até então viver neste estado de exceção que reclama pelo predicado de perenidade
e no qual esses sujeitos padecem pela escassez de politização dos seus direitos. A
condição em que vivem é propícia para gerar depósitos do refugo humano, porque o
estado de exceção sustenta a economia neoliberal, cujo sucesso não ocorre sem a
degradação e a desvalorização de modos de vida.
São personagens que se apresentam virtualmente como hominis sacri, vida
nua, porque a relação de bando, isto é, a força simultaneamente atrativa e repulsiva
que liga os dois pólos, vida nua e poder, pode ser percebida na sua composição. A
partir do momento em que o estado de exceção tornou-se a regra, a vida foi captada
em seu estado mais elementar para ser transformada em um objeto de
gerenciamento do Estado conforme os cálculos de custo e benefício estabelecidos
pela dinâmica das relações de produção e consumo.
É por isso que os personagens se encontram entre o banimento da
sociedade pelo poder soberano e a exposição à violência e morte por justa causa.
O/a leitor/a é apresentado/a, assim, a essa violência objetiva, uma violência
anônima, legítima e necessária para que as engrenagens do sistema funcionem, tal
como reflete Pedro Lyra (1980, p. 34): “o que ocorre com a violência é semelhante
ao que ocorre com a inflação: se todos saíssem perdendo, ela já teria acabado”.
Nesse espaço de violência objetiva, o trabalho é exaltado como seu maior
valor, por isso esse grupo social não pode ser considerado como o “lado de fora” da
sociedade, visto que ela não pode ser definida sem os seus “marginalizados”,
45

aqueles que representam a parcela da população que vivencia a rejeição, a


exploração e a repressão da sociedade de nosso tempo.
O poder soberano depende justamente da produção dessa exceção, isto é,
da existência do homo sacer, o qual é mantido dentro de um jogo entre banir e
capturar, excluir e incluir. Essa dinâmica reproduz a própria indiscernibilidade do
estado de exceção em relação ao direito, afinal, como é possível um estado de
suspensão da ordem jurídica estar amparado juridicamente?
Diante da redução dessas vidas a esse utilitarismo, torna-se importante
discutir as engrenagens dessa relação, que levam o ser humano a desenvolver um
comportamento que age como se não possuísse nada além de sua vida nua, vida
biológica matável, tal como a dos animais que percorrem todas as narrativas de Ana
Paula Maia.
Essa vida nua que habita as fronteiras entre vida e morte é o que aproxima
esses humanos dos animais. Ambas as vidas são existências desqualificadas,
manipuladas de forma objetiva, reduzidas a uma sobrevida descartável e recortada
em pedaços conforme sua utilidade. Entender de que forma os animais presentes
em seus livros ajudam a ampliar essa reflexão e a pensar a outridade e as
hierarquias que impedem o reconhecimento do outro é o que veremos no próximo
capítulo.
46

3 ENTRE OUTROS: ANIMAIS NO SEU (IN)DEVIDO LUGAR

“Eu antes tinha querido ser os outros para


conhecer o que não era eu. Entendi então
que eu já tinha sido os outros e isso era fácil.
Minha experiência maior seria ser o âmago
dos outros: e o âmago dos outros era eu.” (A
descoberta do mundo, Clarice Lispector)

A partir do século XXI, a questão animal tem assumido uma posição mais
central em debates de diferentes áreas do conhecimento. Isso se deve ao momento
atual, que impele uma tomada de consciência mais ampla, a qual não se restrinja a
preocupações de ordem ecológica, mas alcance a dimensão dos problemas ético-
políticos que envolvem nossas relações com as demais espécies viventes.
No que tange à literatura, também é a partir desse século que as relações
entre animais humanos e não humanos começam a se delinear mais efetivamente.
Ana Paula Maia tem explorado tal discussão, como evidencia o próprio título do seu
livro mais crítico sobre o assunto: De gados e homens. A história de Edgar Wilson
no abatedouro de gado traz à baila discussões sobre o especismo, as quais
permitem refletir sobre o fato de os animais serem tratados, poderíamos dizer, como
vidas nuas em um contínuo estado de exceção, tal como visto nas personagens
humanas dos romances da escritora.
Se no capítulo anterior exploramos a condição permanente de mera vida a
que chegam aqueles homens, neste buscamos entender como se dá esse processo
em relação aos animais. Afinal, eles não deveriam ter um fim em si mesmo? Ou
seja, ter um valor que fosse independente de sua utilidade para os seres humanos?
Para refletir sobre essas questões, vamos percorrer as principais ideias sobre as
éticas antropocêntrica, senciocêntrica e biocêntrica, a fim de compreender como se
deu esse sistema ético predominante em que o valor intrínseco da vida dos animais
não humanos é desconsiderado, e como isso transparece nas narrativas da autora.

3.1 ANTROPOCENTRISMO

Benedito Nunes (2011), em seu artigo “O animal e o primitivo: os outros de


nossa cultura”, estabelece um elemento de ligação entre esses dois seres: a
condição de bárbaro. Dentro da cultura greco-latina, tanto os primitivos quanto os
47

animais estão à margem da sociedade, pois eram considerados estranhos,


adversários, instrumentos vivos para os quais não se deveria admitir igualdade na
consideração de seus interesses e necessidades específicas.
Essa separação entre humano e animal tem origem na Antiguidade, ali já se
estabelecia diferenças moralmente relevantes entre os gregos e os outros,
legitimadas simplesmente pela intelectualidade superior de uns sobre os outros.
Essa ideia de uma escala hierarquicamente ordenada entre formas de vida remonta
à filosofia aristotélica e cartesiana, à herança política romana, à tradição judaica e à
doutrina cristã.

3.1.1 “São apenas animais”17: filosofias aristotélica e cartesiana

É da Antiguidade que herdamos a filosofia alicerçada em uma ética


exclusivamente humana. Essa fórmula, que tem origem em Aristóteles (384-322
a.C.), coloca o ser humano, especificamente o do gênero masculino, nativo, livre e
possuidor de bens, no centro das relações e faz dele um senhor absoluto. Isso
porque, para o filósofo, embora o humano também seja um animal, ele é dotado de
racionalidade, justificativa suficiente para situá-lo em uma posição superior às outras
criaturas:18 os demais homens, as mulheres, as entidades naturais e os animais.
Essa perspectiva justifica a instrumentalização dos animais em função das
necessidades humanas, sejam elas básicas ou supérfluas. E essa influência do
pensamento aristotélico perdura até os dias de hoje, em tempos que ainda se vê a
ideia de que os animais são concebidos para usufruto humano, a quaisquer que
sejam seus interesses:

as plantas existem para os animais como os animais para o homem.


Dos animais, os que podem ser domesticados destinam-se ao uso
diário e à alimentação do homem, e dentre os selvagens, a maior
parte pelo menos, senão todos, lhes fornece alimentos e outros
recursos, como vestuários e uma porção de objetos de utilidade; e,
pois, se a natureza nada faz em vão e sem um objetivo, é claro que
ela deve ter feito isso para o benefício da espécie humana
(ARISTÓTELES, 2010, p. 15-19).

17
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 115.
18
Convém lembrarmos que Aristóteles reconhece um nível não desprezível de racionalidade
própria dos animais, mas não suficiente para retirar o homem de sua posição privilegiada
em relação a eles.
48

Isso não significa, contudo, que Aristóteles pregue a crueldade contra


animais, tampouco que isso se justifique porque eles sofram ou sejam conscientes
da dor. Para o filósofo, não faz sentido maltratá-los por serem propriedade
(patrimônio) do homem livre, afinal, estragar, ferir ou destruir implicaria dano ao
proprietário. Em outras palavras, a não violência contra os animais é sustentada pelo
argumento dos deveres morais indiretos: há um interesse pelo proprietário em
preservar seu patrimônio, ou seja, os animais são considerados na condição de
objetos de propriedade (FELIPE, 2003).
Essa noção de objetificação também é retomada por René Descartes (1596-
1650). Contudo, se a racionalidade é a especificidade que separa humano e animal
dentro da perspectiva de Aristóteles, a noção de alma é o que estabelece esse corte
na visão de Descartes, conforme argumenta em Discurso do método (1981), que
traz uma teoria mecanicista sobre o funcionamento do organismo animal.
Enquanto o humano é o resultado da estreita união entre uma alma e um
corpo, ou seja, uma terceira natureza obtida por meio de uma composição e
montagem; o animal é puramente corpo. Isso prova, nos termos do filósofo, não que
os animais possuem menos razão do que os humanos, mas que não possuem razão
alguma, pois sobre eles atua somente a natureza segundo a disposição dos órgãos,
assim como a mecânica envolvida no funcionamento de um relógio conforme a
disposição das rodas e molas (DESCARTES, 1981).
Temos, então, com Descartes, o surgimento e a consolidação da visão
mecanicista, a qual ainda rege de forma predominante as sociedades
contemporâneas, sobretudo no mundo da ciência experimental. A teoria mecanicista
dos organismos vivos sustenta que tudo o que consiste em matéria é governado por
princípios mecânicos, como os de um motor. Dentro dessa analogia entre animais e
máquinas, aqueles são considerados, então, meros autômatos:

[os animais] não sentem prazer nem dor, nem nada. Embora possam
guinchar quando cortados por uma faca, ou contorcer-se no esforço
de escapar do contato com um ferro quente, isso não significa,
segundo Descartes, que sintam dor nessas situações. São
governados pelos mesmos princípios de um relógio (SINGER, 2008,
p. 227).
49

Para Descartes, qualquer experiência de prazer ou dor é registrada pela


consciência,19 a qual, por sua vez, não pode ter sua origem na matéria, somente na
alma. É por isso que os animais, mesmo dotados de visão, audição e tato, não
sentem dor, pois, desprovidos de alma, não teriam como dispor de consciência.
E é em função dessa visão filosófica que Descartes praticava a vivissecção
em animais, afinal, conforme declaração dele, “quando queimados com um ferro em
brasa ou cortados com uma faca seus gemidos e gritos são mais como o atrito sobre
uma corda, nada mais...” (FELIPE, 2003, p. 54).
Em De gados e homens, Edgar Wilson representa um contraponto a esse
pensamento sólido. Conhecido como o encomendador de almas dos animais, ele
desenvolveu uma técnica para abater o gado em apenas uma marretada e evitar,
assim, segundo ele, o seu sofrimento.

Edgar apanha a marreta. O boi caminha até bem perto dele. Edgar
olha nos olhos do animal e acaricia a sua fronte. O boi bate uma das
patas, abana o rabo e bufa. Edgar cicia e o animal abranda seus
movimentos. Há algo nesse cicio que deixa o gado sonolento,
intimamente ligado a Edgar Wilson, e dessa forma estabelecem
confiança mútua. Com o polegar lambuzado de cal, faz o sinal da
cruz entre os olhos do ruminante e se afasta dois passos para trás. É
o seu ritual como atordoador. Suspende a marreta e acerta a fronte
com precisão, provocando um desmaio causado por uma hemorragia
cerebral. O boi caído no chão sofre de breves espasmos até se
aquietar. Não haverá sofrimento, ele acredita. Agora o bicho
descansa sereno, inconsciente, enquanto é levado para a etapa
seguinte por outro funcionário, que o suspenderá de cabeça para
baixo e o degolará (MAIA, 2013, p. 11-12).

Contudo, para os demais funcionários, os animais “são apenas animais.


Estão debaixo da nossa autoridade. [...] Pra nos servir” (MAIA, 2013, p. 94). E por
isso, quando Edgar precisa se ausentar do abatedouro, o cenário que se abre é bem
diferente ao deixar Zeca assumir o seu posto:

– Zeca, coloca o boi pra dormir, entendeu? Não deixa o bicho sofrer.
Zeca apanha a marreta, faz sinal para que o funcionário deixe o boi
entrar. Quando o animal fica frente a frente com ele, a marretada
propositalmente não é certeira, e o boi, gemendo, caído no chão, se
debate em espasmos agonizantes. Zeca suspende a marreta e

19
Sobre a palavra consciência, Descartes nunca a usou efetivamente, pois era
“desconhecida na língua francesa da época. Ele não diz „Somos conscientes de‟, mas
„Somos imediatamente cognoscentes de‟ [...] ou „Temos conhecimento atual de‟” (WOLFF,
2012, p. 300).
50

arrebenta a cabeça do animal com duas pancadas seguidas, fazendo


o sangue respingar em seu rosto.
– Assim, Edgar? Ele tá dormindo agora, não tá? (MAIA, 2013, p. 12).

Podemos também ler a capa do livro De gados e homens a partir dessas


perspectivas aristotélica e cartesiana. Tanto na edição brasileira (Figura 2a) quanto
na italiana (Figura 2b), as imagens partidas de uma vaca ilustram o conceito de
animal objetificado, cuja existência se resume, nesse caso, ao consumo opressor.
Na edição brasileira, a mensagem emplacada é clara: atenção, animais a
seu dispor na pista. Aqui a vaca não pede passagem, seu destino não é atravessar a
pista, mas, como sugerem as capas argentina (Figura 2c), francesa (Figura 2d) e
sérvia (Figura 2e), terminar em bandejas a serviço dos interesses humanos, depois
“da sangria e da remoção da pele”, da motosserra “para remover a cabeça e partir a
carcaça ao meio”, dos ganchos e correntes suspensos para pendurar os pedaços de
carne (MAIA, 2013, p. 24).

Figura 2 – Capa das edições de De gados e homens

a) b)

c) d) e)

Fonte: a) Maia (2013); b) Maia (2016a); c) Maia (2015a); d) Maia (2015b); e) Maia (2016b).
51

Essas teses aristotélica e cartesiana foram absorvidas por várias gerações


de filósofos/as posteriores, para as quais os animais continuam a ser considerados
meros meios para servir aos propósitos dos humanos, sobretudo aos homens que
detêm a propriedade das coisas, da natureza, das pessoas (esposas, filhos/as,
servos/as) e dos animais. É como refletem Edgar e o motorista ao final da trama: “–
[...] Como dizem por essas bandas: enquanto tiver uma vaca nesse mundo, lá estará
um sujeito disposto a matá-la. – E outro disposto a comê-la, conclui Edgar Wilson”
(MAIA, 2013, p. 125).

3.1.2 “Todos são caça e caçador”20: heranças do Império Romano

Algumas perspectivas aristotélicas e cartesianas são herdadas pelo Império


Romano, cuja conduta em relação aos animais também é a de situá-los fora do
âmbito de consideração jurídica e moral. Embora haja um grande senso de justiça
que os romanos desenvolveram, ele ainda continua sendo excludente, pois é válido
somente para seus pares, e não para a vida dos prisioneiros de guerra, criminosos,
seres humanos geneticamente imperfeitos e animais.
E é sobre essa base ética de desrespeito à vida desses antagonistas que se
dá a construção do Império Romano. Além disso, em consequência de guerras de
conquista para expansão territorial, segundo Peter Singer (2008, p. 276), “foi preciso
devotar muito de energia e recursos às forças militares [...] essas condições não
davam margem a que se acalentassem sentimentos de simpatia pelos fracos.”
Esse foi o tom dado a essa sociedade, guiada por ações bélicas
expansionistas, sustentada pelo lucro obtido com o abate dos humanos, a
escravização dos sobreviventes e o saque de seus bens – incluindo aqui os animais
e as mulheres, as quais eram forçadas a engravidar para gerar e garantir mais mão
de obra escrava.
Diante disso, não é difícil entender essa tradição dos espetáculos de abate
de homens, mulheres e animais como diversão que perduram até hoje. Inicialmente,
esses jogos ocorriam apenas entre humanos. A introdução de animais surgiu para
diversificar o entretenimento e continuar, assim, atraindo a população romana, que

20
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 136.
52

considerava o abate uma fonte normal de diversão, conforme descreve o historiador


William Lecky:

O simples combate [entre gladiadores] tornou-se, por fim, insípido, e


todo tipo de atrocidade era concebido para despertar o interesse que
diminuía. Certa feita, um urso e um touro acorrentados juntos,
rolaram nas areias, num combate feroz; outra vez, criminosos
vestidos com peles de feras selvagens foram lançados aos touros,
que eram atiçados com ferros em brasa ou com dardos dotados de
pontas em chamas. Quatrocentos ursos foram mortos num único dia
nos dias de Calígula... Com Nero, quatrocentos tigres lutaram com
touros e elefantes. Em um único dia, na inauguração do Coliseu por
Tito, quinhentos animais foram mortos. Com Trajano, os jogos
chegaram a durar cento e vinte e três dias consecutivos. Leões,
tigres, elefantes, rinocerontes, hipopótamos, girafas, touros, cervos, e
até crocodilos e serpentes eram utilizados para dar um toque de
novidade ao espetáculo (LECKY, 1869, p. 280-282, SINGER, 2008,
p. 216).

No Império Romano, os jogos de abate expressam não só o poder e a


superioridade na arena por meio da destruição física desses outros excluídos da
sociedade, mas também o desejo da multidão por sangue, tanto que “um príncipe se
tornava menos impopular se descuidasse da distribuição de milho do que se
deixasse de organizar os jogos” (SINGER, 2008, p. 216). Esse mesmo anseio por
poder e sangue observamos hoje, afinal, diante de mais de três séculos de
apreciação desses espetáculos atrozes, como desnaturalizar o gozo por tais jogos?
No romance Assim na terra como embaixo da terra, Melquíades faz o
movimento contrário: primeiro ele caça somente animais, os javalis, depois é que
passa aos homens. E em outras ocasiões, o diretor da colônia usava até um dogo
argentino nas caçadas. Embora não haja plateia, como nas arenas do Coliseu, o
sentido e o fim são o mesmo dos jogos de abate romanos: sem qualquer respeito à
vida desses indivíduos lançados para um espaço de margem e suspensão da lei, a
ordem é infligir-lhe sofrimento para divertimento próprio.

– Bem, presos, vocês foram escolhidos esta noite. Eu prefiro as


noites de lua cheia, porque assim vocês conseguem se orientar
melhor. E, particularmente, eu também. As regras são simples, e eu
imagino que dois merdas como vocês vão compreendê-las
facilmente. Os dois foram condenados por crimes semelhantes:
estupro seguido de morte.
[...] Melquíades grita para os homens correrem e aperta o
cronômetro. O mais apavorado mija nas calças antes de conseguir
força nas pernas e correr o mais rápido em toda a sua vida. [...] Ao
53

completar trinta segundos, enfia o cronômetro no bolso e corre para


a frente.
[...] Prefere pegá-los enquanto correm.
Mantém o rifle em posição de mira [...]. Atira uma só vez, e o homem
cai, debatendo-se. Caminha rapidamente até o corpo ainda vivo.
Vira-o de barriga para cima, apoia o rifle na sua testa e atira.
Pedaços do cérebro respingam na sua roupa e em seu rosto. Ele não
se importa (MAIA, 2017b, p. 56-59).

Em Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, temos as rinhas


clandestinas de cães e até de passarinhos: Edgar Wilson “lê o panfleto que anuncia
uma rinha de canários. Nunca foi a uma e tudo que sabe é que eles são estimulados
a disputarem uma fêmea, porém o vencedor não fica com ela. É preparado para a
luta seguinte” (MAIA, 2009, p. 79).
Desde o início da trama, acompanhamos Edgar consumindo seu dinheiro em
uma rinha que acontece às quintas-feiras num bairro próximo. Ele sempre aposta
em Chacal, “um cão enjeitado pelo demo, que já havia arrancado a cabeça de
Gepeto, que tinha o dobro de seu tamanho” (MAIA, 2009, p. 15). Ao final da
narrativa, ele morre após uma luta com um novo cão:

O dogo argentino era mais jovem que Chacal, tinha a força do cavalo
e a rapidez do leopardo. Edgar Wilson sabia que havia perdido todo
o seu dinheiro na aposta, sabia desde o início. O cão também sabia
que entraria na arena para morrer, mas morreria como herói. [...]
Quando olha para a arena, Chacal é retirado quase aos pedaços por
Tanganica. É levado para os fundos do ferro-velho e deixado lá até
ser enterrado por seu dono, que cravou uma cruz de madeira com
seu nome e data de nascimento, ao lado de outras cinco cruzes, de
outros cinco cães. Porém, ainda havia espaço para muitas outras
cruzes e sacrifícios (MAIA, 2009, p. 84-85).

O dilaceramento dos cães não se mostra distante das lacerações do corpo


humano, assim como o ato de apostar em rinhas e o de caçar homens. Em ambos
os casos, podemos observar que a única alternativa de divertimento encontrada por
Edgar e Melquíades está nos ritos de morte, cuja polpa de sangue derramado
aponta para uma triste paródia da mundanidade de vidas nuas: as esperanças por
dias melhores estão diluídas e mortas.
Os romances se tranformam, assim, em um Coliseu, colocando o/a leitor/a
em uma posição de espectador desses jogos de abate de animais e humanos que
se desenrolam na trama. Resta-nos apenas ver e reparar essa tradição de sangue e
abjeção, ainda presente na atualidade, para sairmos dessa arena que estabelece
54

um corte substancial entre “os de dentro” e “os de fora”, aqueles cujas vidas
merecem consideração legal e moral e, de maneira oposta, os outros.

3.1.3 “A carne proveniente dos céus”21: tradição judaica

Quanto ao judaísmo, a relação hierárquica entre humano e não humano está


presente na presunção dos sacerdotes de agradar ao ser supremo oferecendo-lhe
animais “sacrificados”. Mesmo havendo vozes dissidentes na época, elas não
tiveram força suficiente para conquistar a unanimidade entre os profetas judeus e,
assim, abalar essa tradição.
Sônia Felipe (2003) explica o motivo pelo qual os profetas judeus contrários
ao sacrifício de animais foram silenciados pelos sacerdotes. Ela o faz a partir da
leitura de The slaughter of terrified beasts: a biblical basis for the human treatment of
animals (1998) – em que Janet Hyland examina todas as passagens bíblicas com
alguma referência ao uso e abate de animais e conclui que não há fundamentos
bíblicos que justifiquem o modo como os animais têm sido tratados nesse contexto
de engenharia de produção empenhada em promover o abate em massa:

Na verdade, se os ritos do abate e da oferenda de animais para


conquistar a gratidão do ser supremo fossem abolidos, não haveria
razão alguma para que os templos – verdadeiros abatedouros – e
seus funcionários, os sacerdotes, continuassem a ser mantidos pelo
povo. Assim, o abate dos animais em nome da insaciável gula divina
por sangue derramado escondia, já em seus primórdios, um grande
interesse empresarial. Os sacerdotes dividiam com o ser supremo a
carne que os fiéis lhes traziam. Em tempos de escassez o botim
rendia fartura à mesa dos homens consagrados para o ofício do
abate ritualizado (FELIPE, 2003, p. 25).

Em contraponto a isso, poderíamos até lembrar que há leis judaicas que


regulam o “abate” dos animais, como o schechita (ou shehitah), considerado pelos
judeus o método de abate mais humanitário. Trata-se de um ritual para o preparo da
carne kasher ou kosher, definição dada aos alimentos preparados de acordo com as
leis encontradas na bíblia judaica, o Torá, que é a reunião dos cinco primeiros livros
da Biblía Sagrada. Nesse ritual, um magarefe treinado realiza uma prece especial e,
com uma faca extremamente afiada, corta rapidamente as artérias carótidas e veias

21
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 123.
55

jugulares do animal sem encostar em suas vértebras cervicais, para promover a sua
inconsciência e insensibilidade imediata.
Apesar desse empenho em não provocar dor, tais normas não são prescritas
com vistas ao bem-estar animal. De acordo com Felipe (2003, p. 26), “a tradição
judaica não funda o princípio da tza’ar ba’alei hayyim (não crueldade, não violência)
em qualquer conceito de direitos morais ou legais para os animais”. Isso porque,
para os judeus, os animais sofrem de incapacidade jurídica, tese utilizada como
artifício para não cincunscrever na esfera dos direitos e no âmbito da igualdade os
viventes indesejáveis (os negros, as mulheres, as crianças, os idosos senis, os
deficientes mentais e os animais).
As leis judaicas estão preocupadas sobretudo com a proteção da moralidade
do humano, pois acreditam que o hábito da crueldade contra animais pode levá-lo a
praticar o mesmo contra humanos. Isso explica a necessidade de escoar todo o
sangue da carne durante o abate, pois, sendo ele considerado a própria vida da
criatura, isto é, sua alma, ingeri-lo significaria um ato bárbaro. E também justifica a
exclusão da carne suína da dieta judaica, porque, sendo ela biblicamente impura, ao
comê-la, o ser humano estaria predisposto à degeneração de suas virtudes.
Essa tradição ainda permanece na atualidade, alicerçada sobretudo no
mercado internacional, que até lançou o selo Kosher para produtos industrializados
que obedecem às leis judaicas. A carne Kosher, sendo uma dessas mercadorias,
atende não só a consumidores judeus, mas a outros interessados em um produto
selecionado, já que a carne passa por uma avaliação diferenciada para verificar se o
animal estava saudável e garantir, assim, um produto de qualidade. Dessa forma,
tem-se a transmutação dos critérios religiosos para os de saúde.
Em De gados e homens (2013), a fazenda de Seu Milo recebe um
carregamento de vacas libanesas entre as quais estão misturadas acidentalmente
algumas vacas israelenses. Nesse episódio, o grande conflito é conseguir separar
ambos os grupos de vacas pertencentes a países inimigos e evitar, dessa forma,
maiores problemas, já que essas vacas vão para um frigorífico que só fornece carne
para libaneses.
É evidente aqui o peso do conflito entre Israel e Líbano, países que,
sobretudo desde a década de 1980, mantêm uma relação marcada por tensões,
conflitos e guerras, tanto que, desde 2018, Israel deu início à construção de um
muro fronteiriço entre ambos os países, exceto em regiões consideradas de disputa,
56

como os campos de exploração de petróleo e gás. A tensão nessas fronteiras


israelo-libanesas a que faz referência o romance é simbolizada pela cerca por onde
as vacas israelenses atravessam para pastar no território do Líbano:

Se esses miseráveis tivessem uma cerca grande o suficiente, eu não


estaria aqui me cagando todo com medo de mandar as vacas
israelenses pro prato dos libaneses. – A alteração de Seu Milo lhe
causa falta de ar. – Não quero que venham aqui bombardear meu
matadouro... não quero briga com essa gente (MAIA, 2013, p. 51).

Seria hiperbólica a preocupação de Seu Milo se recentemente não tivesse


ocorrido o incidente mais grave desde a Guerra do Líbano em 2006. Militares
israelitas, que estariam atuando na realização de trabalhos de manutenção e
vedação na fronteira entre os países, teriam adentrado o território libanês,
atualmente considerado uma das maiores bases militares do mundo, para arrancar
uma árvore. O resultado disso foram cinco mortos, sendo quatro deles libaneses e
um israelense.
Apesar da importância desse conflito entre os dois países, a grande questão
que emerge desse trecho citado é outra, e vem da expressão preocupada de Seu
Milo: “É gente de morte. Matam o tempo todo” (MAIA, 2013, p. 51). A partir dessa
afirmação, questionamos: não são também “gente de morte” esses homens nos
matadouros que matam o tempo todo? E se há espanto nessa comparação, ela vem
do pressuposto de que os animais não podem ser reconhecidos como sujeitos de
direito, logo, a sua morte é juridicamente irreconhecível ou não criminalizável. Diante
disso, o vivente humano não se torna “gente de morte”, ele apenas é um sujeito que
se apropria de uma mercadoria.
Um outro aspecto ainda presente nesse episódio são os ritos religiosos,
mesmo que dissolvidos para fins mercadológicos: “– Sou eu que vou abater essas
vacas? – Vão mandar um muçulmano fazer isso – responde Seu Milo. – É a tradição
deles. Precisam invocar a Deus na hora do abate. Eles têm homens especializados
para isso” (MAIA, 2013, p. 51).
A grande ironia disso tudo é que, se é dada tanta importância ao modo como
o animal será abatido, necessitando de uma entidade religiosa para fazê-lo com
vistas às leis judaicas empenhadas em produzir alimentos Kosher, o mesmo não é
feito com as outras etapas do processo, como ilustram as condições de transporte
das vacas ao chegar na fazenda:
57

O ajudante do caminhoneiro, sob as ordens de Bronco Gil, abre as


portas traseiras do primeiro caminhão-baú, onde estão as vacas,
amontoadas e muito debilitadas. Elas sapateiam sobre as próprias
fezes e urina. Algumas estão caídas, desmaiadas; outras,
enfurecidas. O espaço é pequeno para tantas cabeças de gado, e
olhando à distância não é possível distinguir absolutamente nada
dentro da escuridão. Só o cheiro e os mugidos é que determinam o
conteúdo do veículo.
Uma rampa de madeira é colocada na caçamba, e num frenesi, com
os olhos arregalados, cheios de morte e sangue, as vacas saem,
uma por uma, debaixo de chutes, gritos e pontapés.
[...] Constata-se a morte de seis vacas. Porém, ainda há quatro delas
sob observação, devido a sua grande debilidade (MAIA, 2013, p. 47-
48).

Essa cena fictícia pode nos levar a outras reais, como a polêmica do
transporte de gado vivo em navios-curral ou navios boiadeiros para a Turquia que
gerou grande polêmica no Brasil em fevereiro de 2018. Atendendo a interesses de
mercado impulsionados por uma demanda religiosa, que prevê regras mais rígidas
para o abate do animal, a mercadoria precisa ser entregue viva e, por isso, questões
referentes a condições de transporte devem ser examinadas.
Na ocasião, houve a denúncia de maus-tratos alegados por ativistas da
proteção animal e confirmados por perícia técnica, a qual levou a uma decisão
liminar proibindo a saída do navio. Segundo a vistoria da veterinária, foram
constatados nos andares inferiores dos treze pisos do navio a seguinte condição,
muito semelhante à descrição dos dejetos e do espaço lida logo acima:

“imensa quantidade de urina e excrementos produzida no período


propiciou impressionante deposição no assoalho de uma camada de
dejetos lamacenta [...]. No interior das baias é unicamente possível
ao animal prostrar-se ao chão. Tal movimento diminui espaço na
área e sujeita o animal a contato íntimo com seus dejetos e os
dejetos de outros animais”, relatou ela. Segundo a equipe do navio,
continuou a veterinária, a lavagem dos pisos ocorre a cada cinco
dias, mas esse sistema só é colocado em funcionamento após
partida da embarcação, já que o descarte é feito no próprio mar, sem
tratamento, o que não seria possível na costa. A veterinária também
relatou a existência da graxaria, setor com um equipamento para
triturar os animais que morrem no caminho – o resultado disso
também acaba lançado no mar, destacou ela (BEDINELLI, 2018).

Apesar disso tudo, a embarcação partiu após intervenção do Governo e da


bancada ruralista. O argumento utilizado foi o de que o desembarque dos bois, além
de exigir ao menos trinta dias para administrar a sua logística, traria grave risco de
58

lesão à agropecuária nacional, pois os animais já haviam sido alimentados com


rações não existentes no país, e isso poderia introduzir nele agentes patógenos,
como sementes de plantas daninhas através do esterco do gado.
O que vemos, portanto, são falácias de uma tradição que, sob o pretexto de
morte sem dor, sustenta um mercado que pouco se importa com a integridade dos
animais envolvidos, inclusive com a sustentabilidade do meio ambiente. Afinal, de
que vale seguir um protocolo de abate preocupado com a dor e o sofrimento animal,
se esse princípio não se sustenta durante toda a gestão bioeconômica que
atravessa a natureza animal? De fato, não há animal que não esteja capturado
desde sua concepção pelas inflexões diversas do cálculo capital e que, convertido
em mercadoria, tanto sua vida quanto sua morte estão inscritas dentro de uma
racionalidade econômica, que se preocupa apenas com a extração de mais-valia.

3.1.4 “Sua própria violência nunca permitirá que um dia veja a face do
criador”22: doutrina cristã

A Igreja Católica promoveu uma expansão da moral romana ao introduzir a


ideia de sacralidade da vida, herdada da tradição judaica. Isso provocou a
condenação dos jogos entre seres humanos e, a partir do século IV, todos foram
proibidos. Contudo, essa aura sacra não se estendeu aos animais.
A exemplo do que vimos na filosofia aristotélica, no domínio romano e na
tradição judaica, o cristianismo deu continuidade ao modo como os animais eram
tratados: desprovidos de status moral e quaisquer direitos, tanto que os combates
com animais selvagens continuaram na era cristã. Segundo a Enciclopédia Católica
Popular (2004), que reuniu e traduziu para uma linguagem e estilo corrente o ponto
de vista da doutrina da Igreja,

só é sujeito de direitos o homem como ser pessoal, racional e livre.


Quanto aos animais, o homem tem direito a possuí-los e a deles se
servir para alimentação, para trabalhos e para companhia. Pode
mesmo sacrificá-los em experiências científicas para benefício da
humanidade (FALCÃO, 2004).

22
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 85.
59

O cristianismo perde, assim, a oportunidade de mudar a percepção humana


a respeito do status dos animais. Suas propostas de igualdade, misericórdia e
cuidado com os fracos se estendem somente à espécie humana, mesmo com ideias
contrárias ao belicismo e sanguinarismo do Império Romano, cujo modo de ver o
outro é evidentemente excludente: a todo ser que não pertence ao seu domínio,
como criminosos, prisioneiros e animais, não lhe cabe consideração moral, logo,
infligir-lhe sofrimento é visto como puro entretenimento.
Se a crueldade contra animais é condenada, isso se deve apenas ao fato de
que não fica bem para um ser humano praticar tais atos, não significa, portanto, que
a Igreja compreenda que devemos alguma consideração a eles. Em outras palavras,
crueldade contra animais é considerado um propósito indigno e pecaminoso, um
prejuízo para a própria moralidade, pois é um abuso e perversão do desígnio divino,
que concedeu ao humano o reino animal para que o domínio sobre ele seja exercido
em conformidade com a razão e a vontade de Deus.
E para reafirmar essa posição de soberania humana e assegurar o direito de
violar a vida dos animais, a Igreja Católica disseminou uma interpretação
equivocada sobre as passagens do Gênesis destinadas a explicar o lugar dos seres
humanos na criação. Trata-se de uma leitura que coloca esse primeiro livro da Bíblia
como fonte da autorização explícita de Deus à morte de animais.

Deus abençoou Noé e seus filhos, dizendo: “Sejam fecundos,


multipliquem-se e encham a terra. Todos os animais da terra temerão
e respeitarão vocês: as aves do céu, os répteis do solo e os peixes
do mar estão no poder de vocês. Tudo o que vive e se move servirá
de alimento para vocês. E a vocês eu entrego tudo, como já lhes
havia entregue os vegetais” (GÊNESIS, 9:1-3).

Esse trecho é frequentemente reiterado até hoje no século XXI pelos


aparelhos ideológicos do Estado, como são alguns exemplos a família, a escola, as
instituições econômicas e a Igreja, para justificar o abate de animais para consumo
humano. Trata-se, no entanto, de um discurso descontextualizado, pois a
autorização para que os viventes humanos usem os animais como fonte de nutrição
está condicionada a um estado de extrema escassez, no caso, após o dilúvio. Logo,
conclui Felipe (2003, p. 31), “não há tal regalo divino em momentos de fartura”.
Antes do dilúvio e consequente escassez, as passagens do Gênesis
referentes à ordem divina é para que os humanos e todas as espécies animais se
60

utilizem das plantas, frutos, legumes e cereais para alimentar-se, ou seja, de tudo
que sai da terra, conforme Gênesis, 1: 29-30:

Vejam! Eu entrego a vocês todas as ervas que produzem semente e


estão sobre toda a terra, e todas as árvores em que há frutos que
dão semente: tudo isso será alimento para vocês. E para todas as
feras, para todas as aves do céu e para todos os seres que rastejam
sobre a terra e nos quais há respiração devida, eu dou a relva como
alimento (GÊNESIS, 1990, p. 15).

Diante disso tudo, o argumento de direito irrestrito de domínio sobre outras


espécies não pode ser sustentado em nossa cultura contemporânea, pois, na
fartura, não há a possibilidade de construir uma justificativa ética que legitime a tese
de que devemos criar, confinar e matar animais para garantir a nutrição humana.
Ainda mais em países, como o Brasil, nos quais se produz e se acumula uma
variedade de fontes alimentícias vegetais.
Mas e o que dizer de povos em condições de absoluta miséria, vivendo mais
próximo da escassez pós-diluviana? De acordo com Felipe (2003), partindo do
princípio da igual consideração de interesses em relação a todos os seres vivos, as
questões da justa distribuição de alimentos e da riqueza em âmbito global seriam
suficientes para garantir uma nutrição digna a essas pessoas sem necessidade de
matar os animais que ali também as acompanham na luta por viver.
Desde a Revolução Verde, que teve início na década de 1950, tornou-se
possível produzir nitrogênio sinteticamente, um dos elementos químicos mais
importantes para fertilizar o solo, o que significou um aceleramento na produção de
grãos, cereais e plantas. A produtividade não duplicou como a população humana,
que passou de 3,5 bilhões de seres em 1960 a 7,6 bilhões em 2017, ela
simplesmente triplicou (FELIPE, 2018).
Mas, conclui a filósofa, em vez de isso significar o encerramento do “ciclo da
fome humana, pois já havia meios químicos e tecnológicos suficientes para
assegurar o plantio, a colheita, o transporte e a distribuição de alimentos, serviu, de
fato, para aprofundar a desigualdade dietética ao redor do mundo”. Por razões
ideológicas, não era possível distribuir o excedente no auge da Guerra Fria, pois
isso equivaleria a um ato comunista. A solução encontrada, e que permanece até os
dias de hoje por mostrar-se altamente lucrativa, foi estimular “os governos a
subsidiarem a produção intensiva de animais para dar vasão às colheitas
61

abundantes, portanto, ao excesso de alimentos”, e dar início à massiva propaganda


medicinal de alimentos animalizados, com o modelo publicitário já testado com
sucesso pelas empresas do tabaco (FELIPE, 2018, p. 206-207).
Essa Revolução, em suma, foi movida exclusivamente pela demanda das
empresas por lucros fáceis de acumular, e não por um problema social de fome. Não
era mais rentável esperar a ação das bactérias para produção do nitrogênio, ritmo
lento que se assemelha à ação da natureza de polinização das plantas realizada por
abelhas, insetos, pássaros, morcegos e pelo vento.
E essa preocupação mercantil pode ser vista no próprio romance, quando
ocorre o saqueamento da carne bovina após o suicídio coletivo de 35 vacas, que se
jogaram do topo de um despenhadeiro. O episódio evidencia a preocupação do Seu
Milo com a prestação de contas com o seu fornecedor: “O prejuízo foi grande. O que
vou dizer pro Tapira?” (MAIA, 2013, p. 114). Em momento algum, nessa esteira de
processamento de vidas anímicas em produtos comerciáveis, existe interesse em
contribuir para o suprimento de vidas em situação de escassez, nem mesmo quando
parte do rebanho se lança abismo abaixo, inutilizando o aproveitamento de sua
carne para o mercado exigente a que se destinava.

Edgar Wilson sobe na retroescavadeira com Vladimir e seguem até o


ponto de recolhimento. Cerca de vinte pessoas, entre elas homens,
mulheres e crianças, esquartejam as vacas com machados. A
retroescavadeira é impedida de avançar quando alguns homens se
colocam no meio do caminho.
– Aqui vocês não entram – diz um dos homens.
– Esse gado tem dono – diz Vladimir. – Eu preciso recolher.
[...] Em pouco tempo há mais de cinquenta pessoas esquartejando o
gado morto, juntando suas partes e empilhando sobre carroças,
caminhonetes e bicicletas. Aqueles desprovidos de aparelhagem
arrastam os pedaços pelo chão em sacos de náilon ou lona (MAIA,
2013, p. 118-119).

A condição miserável de moradores que habitam os arredores do matadouro


do Seu Milo evidencia o contraste entre fartura e escassez. É por isso que o domínio
absoluto dos humanos sobre os animais é infundado, pois, mesmo frente a essa
realidade de indigência, esse poder não está interessado em resolver a questão da
sobrevivência humana, mas sim em saciar interesses econômicos de mercado.
62

Diante desse cenário, somente uma intervenção divina poderia redirecionar


esses produtos a outros fins, como assim é interpretado pelos moradores: “Nossas
preces foram ouvidas” (MAIA, 2013, p. 118); e presumido pelo próprio narrador:

O suicídio coletivo das vacas jamais poderá ser explicado. Talvez


tenha sido a Providência Divina atendendo aos pedidos dos
moradores da região que ansiavam por comida, especialmente
carne. Assim como os peregrinos do deserto foram atendidos com
uma chuva de codornas, os povos de outros desertos receberam
uma chuva de vacas: a carne proveniente dos céus; a morte que dá
vida (MAIA, 2013, p. 123).

Em suma, podemos concluir que, se há em Gênesis referência à autorização


da morte de animais por seres humanos para atender a nutrição destes quando não
há mais nada para se comer, referência igual não há em nenhuma passagem bíblica
para a produção em larga escala de animais confinados destinados à
comercialização no mercado. Tampouco há qualquer menção ao direito de grandes
empresários desse negócio de subtrair da alimentação dos seres humanos
toneladas de grãos produzidos em vastíssimas extensões de terra para alimentar
bilhões de animais destinados ao abate. E, menos ainda, o texto bíblico faz alusão
ao direito humano de não cuidar das toneladas de excrementos oriundos dessa
prática que contamina o ar, o solo e as águas, fontes de vida imprescindíveis para o
provimento humano e animal da presente e das futuras gerações:

Quando Santa Catarina aparece como primeiro ou segundo abatedor


de frangos e suínos para exportação no ranking brasileiro, os
empresários ficam com os dólares, os produtores com os prejuízos
da queda do valor da nossa moeda na compra da ração que é
calculada em dólares, os habitantes das regiões que produzem e
abatem esses bilhões de seres, com a contaminação do ar, da água
de superfície, do lençol freático e do solo, destruindo assim as bases
da vida para esta e para a geração futura, e os russos, árabes e
japoneses, com a carne, sem qualquer problema de administração
do lixo e da contaminação que todo esse abate e dejetos
representam (FELIPE, 2003, p. 37).

Assim também constata Edgar Wilson ao contornar o Rio das Moscas


tapando o nariz e especulando o motivo da agressiva mortandade de peixes e
moribundos: ela se estende por todo o rio, que virou um aglomerado fétido e
salgado, contaminado pelo derramamento diário de sangue do gado abatido, junto
63

com homens e restos de vísceras animais ali atirados indistintamente. “O rio está
morto” (MAIA, 2013, p. 101).

3.2 SENCIOCENTRISMO E BIOCENTRISMO

O antropocentrismo, como visto aqui dentro da filosofia aristotélica e


cartesiana, da política romana e das tradições judaica e cristã, conduz a
humanidade a uma atitude prepotente diante de outras espécies que habitam esse
mundo. Isso porque essa doutrina filosófica impõe uma cadeia verticalizada em que
todos aqueles que estão no degrau abaixo ao do humano devem servir à finalidade
que interessa somente ou sobretudo a ele.
A partir do século XIX, temos pensadores desafiando e desafinando essa
tradição hierárquica, dando eco às vozes dissidentes existentes desde a Antiguidade
e que tanto influenciaram as teorias críticas dos expoentes da nossa geração
contemporânea: Peter Singer, Tom Regan e Gary Francione.

3.2.1 “Sentir o campo magnético terrestre”23: teóricos iniciais

Desde quando as raízes do paradigma antropocêntrico-hierárquico estavam


consolidadas, vozes dissidentes sempre surgiram para contrapor essa hegemonia.
Na Antiguidade, enquanto o Império Romano emplacava determinantemente as
ideias aristotélicas, herdeiros da corrente filosófica de Pitágoras (570-495 a.C.), a
saber, Ovídio (43 a.C.-18 d.C.), Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), Plutarco (46-126) e Porfírio
(234-305), apregoavam respeito aos animais. E dentro da vertente judaico-cristã, o
amor aos animais já era defendido também por São Basílio (330-379), precursor de
São Crisóstomo (347-407), Francisco de Assis (1182-1226) e São Boaventura
(1221-1274); e de forma mais ampla, por Giordano Bruno (1548-1600), que teve um
importante papel ao criticar a presunção humana e sugerir que se tomasse como
parâmetro o universo, e não somente as espécies vivas (FELIPE, 2003).
Na Idade Moderna, que levou adiante a tese de que a natureza animal não é
dotada de sensibilidade, temos uma sequência de discursos divergentes a essa
tradição que acusa os animais de incapacidade jurídica e sensitiva. No século XVI,

23
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 27.
64

Michel de Montaigne (1533-1592) rompeu com a linha divisória moral que separava
seres dignos de respeito de seres não dignos de consideração moral, por entender
que os animais são capazes de sentir dor e prazer. Segundo Felipe (2003, p. 53), é
de Montaigne, inclusive, “que parte a primeira crítica dentre os filósofos modernos
contra a prática de atos cruéis contra os animais, em nome dos animais, e não no
interesse e benefício econômico e moral dos humanos.”
No século XVII, com Thomas Tryon, é apresentada a primeira crítica
explícita sobre direitos animais e sobre a necessidade de sua inclusão no âmbito da
justiça. Essa tese volta a ser sustentada no final do século XVIII, pelo teólogo
Humphry Primatt (1735-1776),24 em seu livro A Dissertação sobre o dever de
compaixão e o pecado da crueldade contra os animais brutos. A obra é um apelo ao
aperfeiçoamento moral do humano com a inclusão dos interesses dos animais em
nossa esfera de consideração moral, afinal, para o autor, eles também são
vulneráveis à dor: dor é dor, e é crueldade e injustiça quem provoca sofrimento no
ser humano ou animal, “„quando não foi cometido nenhum crime; e quando não há
finalidade alguma que o justifique, mas, simplesmente, para exibir poder ou
satisfazer à malícia‟” (LINZEY, 1995, p. 16, apud FELIPE, 2003, p. 63).
E no século XIX, essa noção é finalmente assentada na ética pelo advogado
e filósofo Jeremy Bentham (1748-1832), que é considerado o responsável por
incorporar o princípio do tratamento humanitário aos animais, isto é, o da igual
consideração de interesses como um princípio moral básico. Em outras palavras, a
ética aqui defendida em seu livro Uma introdução aos princípios da moral e da
legislação somente existe a partir do momento em que os princípios da
consideração moral são estendidos a todos os seres sensíveis.
Com Charles Darwin (1809-1882), voz proeminente sobre a teoria da
evolução, temos uma importante revolução científica quando ele escreve A origem
das espécies. O livro defende a tese da existência de um ancestral comum ao Homo
sapiens e ao chipanzé e gorila, todos pertencentes à mesma subfamília: homininae.
Ou seja, a teoria rompe com o princípio aristotélico da imutabilidade do universo ao
entender que as espécies vivas podem gerar descendentes distintos de seus

24
O livro de Primatt foi elaborado em 1776, replicado em 1892 por Henry Salt no livro Animal
Rights e reeditado somente em 1992 por Richard Ryder. A consulta a esse material só foi
possível em decorrência da obstinação e paciência da filósofa Sônia Felipe, que aguardou
ainda mais cinco anos para ter em mãos um exemplar usado dessa edição de Ryder.
65

progenitores, resultando inclusive em novas espécies com o passar das gerações.


Esse foi o caso entre humanos e o que chamamos popularmente de macacos, que,
segundo Darwin, tiveram suas histórias evolutivas separadas há aproximadamente
sete milhões de anos.
Com efeito, a narrativa bíblica que sustenta a ideia de que o ser humano
teria sido criado à imagem e semelhança de Deus é aqui contestada por Darwin, que
qualifica essa crença como arrogante, por levar o ser humano a acreditar ser uma
grande obra divina:

Do ponto de vista intelectual, a revolução darwiniana foi


genuinamente revolucionária. Os seres humanos agora sabiam que
não eram uma criação especial de Deus, feita à imagem divina e
considerada distinta dos animais; ao contrário, os seres humanos
passaram a compreender que eram, eles próprios, animais. Além
disso, em apoio à sua teoria da evolução, Darwin apontou que as
diferenças entre humanos e animais não eram tão grandes quanto
geralmente se supunha (SINGER, 2008, p. 232).

A implicação ética dessa teoria é a de que, se existe um parentesco


biológico, há também um moral, o que explica a necessidade de repensar o
tratamento ético-político dado aos animais. Ainda mais tendo em vista outros
estudos de Darwin que constatam o fato de que as condições necessárias para a
experiência de dor, consciência e linguagem, por exemplo, são compartilhadas tanto
por seres humanos, quanto por animais, mesmo que isso ocorra em diferentes graus
de sofisticação e intensidade.
De modo geral, são esses os discursos dissidentes mais importantes que
reestabeleceram a ligação entre humanos e animais em épocas de domínio
antropocêntrico exacerbado. Foi a partir dessas vozes isoladas que surgiram muitas
outras na Idade Contemporânea para retomar, instituir e expandir, com grande força,
tanto no meio acadêmico como na luta política, uma ética acerca dos animais mais
centrada nos interesses da própria espécie, e não nos benefícios para os humanos.

3.2.2 “Por trás de algo tão saboroso”25: teóricos contemporâneos

O século XX é marcado pela consolidação de propostas ético-filosóficas que


propunham outras formas de pensar o animal, sobretudo no período pós-guerra,
25
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 21.
66

quando surgem inúmeros movimentos sociais que não só lutam pela libertação de
todos os seres vulneráveis à exploração, ao abuso e à violência, mas também
reivindicam uma profunda reformulação dos códigos simbólicos e culturais
dominantes. São códigos alicerçados em divisões binárias, como homem e mulher,
heterossexual e homossexual, sagrado e profano, autonomia e heteronomia, branco
e negro, ser humano e natureza, animal racional e animal não racional.
É nesse contexto, o dos movimentos antirracistas, pacifistas, feministas e
dos direitos civis e LGBTs, que ganham força as discussões acerca dos animais,
sobretudo a partir da década de 1970, quando surge, na Inglaterra, o conhecido
Grupo de Oxford, formado por Stanley Godlowitch e Roslind Godlowitch, Richard
Ryder, Peter Singer, John Harris, Andrew Linzey e Stephen Clark. Partindo dos
referenciais de Primatt, Bentham e Salt, o Grupo defendia a liberdade e igualdade
para os animais no meio acadêmico e na luta política. E os nomes proeminentes que
continuaram esse debate teórico e crítico contra o especismo no século XX, além de
Peter Singer (1946-), são Tom Regan (1938-2017) e Gray Francione (1954-).
Singer impulsiona a filosofia moral tradicional acerca dos animais ao
apropriar-se do princípio de igual consideração de interesses, desenvolvido por
Primatt em 1776. Em seu livro Libertação animal, que se tornou o texto base para
todo movimento pela libertação dos animais na Europa e nos Estados Unidos na
década de 1980, o autor esclarece que a proposta desse princípio não se assenta
na concepção de igualdade de direitos ou do igual valor da vida a todos os seres,
mas sim na vida como um interesse a ser igualmente considerado (SINGER, 2008).
Trata-se de um princípio que exige imparcialidade, pois a característica
moral determinante sobre quem deve ser considerado igual é apenas a sua
capacidade de ter interesse, independente de sua aparência orgânica ou das
habilidades que possui. Mas o que pode assegurar que um ser possui interesses?
De acordo com o filósofo e historiador, o critério necessário e suficiente para tê-los –
ou, no mínimo, para ter o interesse de não sofrer – é a capacidade de sentir dor e
prazer. Isso pode ser medido pela observação de sinais externos, como “contorções,
contrações do rosto, gemidos, ganidos, ou outras formas de apelos, tentativas de
evitar a fonte da dor, demonstrações de medo diante da perspectiva de repetição, e
assim por diante” (SINGER, 2008, p. 13).
Além disso, o autor traz a hipótese da questão neuronal, segundo a qual o
sistema nervoso dos animais não é autômato, criado artificialmente para imitar o
67

comportamento humano diante da dor e do prazer. Eles também possuem um


sistema nervoso semelhante ao dos humanos, logo, respondem a circunstâncias de
dor com sinais clínicos, por exemplo: “elevação inicial da pressão sanguínea, pupilas
dilatadas, transpiração, aceleração do pulso e, se o estímulo continuar, queda da
pressão sanguínea” (SINGER, 2008, p. 13).
Essa questão é reafirmada em 1969 por um especialista eminente no
assunto, o neurologista Lord Brain, a partir da ideia de que não é o córtex cerebral,
ausente em animais, que percebe diretamente a dor (SINGER, 2008). No século
XXI, isso volta a ser atestado por um grupo de neurocientistas da computação,
neurocientistas da cognição, neurofarmacologistas, neurofisiologistas e
neuroanatomistas. Durante o Congresso Internacional sobre a Consciência Animal e
Humana, em 2012, na Universidade de Cambridge (Inglaterra), os cientistas ali
redigem, na presença do físico Stephen Hawking, A Declaração de Cambridge sobre
a Consciência, da qual destacamos o seguinte trecho:

Nós declaramos o seguinte: “A ausência de um neocórtex não


parece impedir que um organismo experimente estados afetivos.
Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os
substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de
estados de consciência juntamente com a capacidade de exibir
comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das
evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os
substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não
humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras
criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos
neurológicos” (DECLARAÇÃO, 2012).

Desde então, podemos justificar com argumentos científicos o dever moral


para com todos os seres sencientes proposto por Singer, quando ele defende que o
princípio ético deve ser estendido a todos os seres dotados de sensibilidade, e não
apenas àqueles com a habilidade de articular racionalmente as experiências, o
pensamento e a linguagem verbal.
Contudo, no entender de Tom Regan, essa obrigação moral para com os
animais pautada no reconhecimento da sensciência – palavra formada a partir dos
termos consciência e sensibilidade e entendida como a condição mental, afetiva,
emocional e consciente de todos os animais – não é suficiente para solucionar
conflitos quando interesses de diferentes espécies estão em jogo.
68

Primeiramente porque, se o foco está no patocentrismo, isto é, na


capacidade de sentir dor e prazer, e, portanto, a maior afronta moral que se pode
fazer a um animal consiste em infligir-lhe sofrimento, então, nada haveria de mal em
fazê-lo sob efeito de anestesia. E também porque a ética utilitarista de Singer tem
uma vertente denominada preferencialista ou de ação, segundo a qual se admite
tirar a vida de um indivíduo se isso implicar a salvação de milhares de outros
indivíduos, ou seja, “„o princípio da utilidade, por preferir maximizar o bem em
relação ao mal, permite, em certas circunstâncias, que a igualdade seja sacrificada
para que o fim seja alcançado‟” (REGAN, 1982, p. 50 apud FELIPE, 2003, p. 197).
Logo, nesse caso, uma pesquisa com animais seria aqui condenável ou não
conforme sua relevância para a minimização do sofrimento de humanos e não
humanos.
Para superar as limitações do utilitarismo preferencial de Singer, centrado na
categoria dos deveres, a qual depende mais de um interesse e reconhecimento
interno e de apelos sentimentais, Regan traz a discussão sobre os animais não
humanos para a esfera dos direitos, a qual simplifica a defesa da universalidade por
instituir coercivamente um determinado princípio.
Segundo o filósofo e professor, os animais não estão apenas vivos, são
sujeitos-de-uma-vida e, portanto, sujeitos de direitos. Desdobra-se daí o conceito de
valor inerente da vida, segundo o qual a vida dos animais é entendida como a
capacidade de vivê-la sem depender de uma valorização externa fundada na
utilidade, isto é, de um valor atribuído a ela por interesses alheios e estranhos aos
animais. É como conclui Regan em Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos
dos animais, que avança na concepção de direitos morais dirigidos aos animais:

Como sujeitos-de-uma-vida, somos todos iguais porque o que


acontece conosco (com nossos corpos, nossa liberdade ou nossas
vidas) é importante para nós, quer os outros se preocupem com isso,
quer não. Como sujeitos-de-uma-vida, não há superior nem inferior,
não há melhores nem piores. Como sujeitos-de-uma-vida, somos
todos moralmente idênticos. Como sujeitos-de-uma-vida, somos
todos moralmente iguais (REGAN, 2006, p. 62).

Partindo desse pressuposto, Regan afirma a tese de que os animais também


têm direitos, e eles precisam ser defendidos da mesma forma como os são os
direitos humanos. Para tanto, é preciso proteger moral e legalmente a liberdade de
69

movimento, ou o não confinamento, para que os animais possam buscar os meios


que garantam seu bem-estar e, pois, sua felicidade (FELIPE, 2003).
Assim, Regan, pioneiro na elaboração de uma teoria estruturada e bem
fundamentada sobre os direitos dos animais, aplica-lhes uma visão mais biocêntrica,
pois admite na comunidade moral todo e qualquer ser vivo. Porém, ele limita o
entendimento por ser vivo que tem direito à vida: trata-se daquele com indicadores
de humanidade, como autoconsciência, autocontrole, senso de futuro, senso de
passado, capacidade de relacionar-se com os outros, reconhecimento de seus
interesses e ação em buscar o próprio bem, e não a simples condição de uma coisa
viva, como o são, por exemplo, as sementes, as árvores, os frutos (SINGER, 2008).
Gary Francione, considerado um dos maiores teóricos dos direitos dos
animais e um dos abolicionistas animalistas mais incisivos, considera tanto o
princípio de igual consideração defendido por Singer, quanto a atribuição de direitos
(morais e legais) para os animais não humanos proposta por Regan. Porém, o
ativista critica não só a posição utilitarista preferencial daquele, mas também o
conceito de sujeito-de-uma-vida deste.
Para o filósofo e professor, Singer não acredita que a importância moral dos
interesses dos animais requeira a abolição da condição de propriedade deles ou das
instituições de exploração que supõem que os animais sejam nossos recursos. Ao
afirmar que os animais têm interesses moralmente significativos em não sofrer e que
nós negamos importância moral a isso ao tratá-los apenas como mercadorias, o que
Singer propõe é a libertação animal do sofrimento, e não do tratamento deles como
nossa propriedade.
Como resultado dessa visão reformista, e não abolicionista, as práticas de
comércio e exploração, desde a produção familiar até a industrial, continuam
fazendo parte do cotidiano das pessoas. É isso o que ilustra os romances de Ana
Paula Maia. Em Carvão animal, dona Zema cria galinhas, e é com o dinheiro da
venda delas e dos seus ovos que ela promove o próprio sustento: “Essas galinhas é
tudo o que eu tenho de mais valioso na vida. Nem essa casa aqui é minha, é do meu
irmão. Só tenho as galinhas pra me valer (MAIA, 2011, p. 92).
Em Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, mesmo diante de tanto
sangue e tripas dos porcos, a única realidade ali vista é das próprias necessidades,
sejam elas econômicas ou sexuais: “Edgar Wilson abre o porco do focinho até o
rabo e retira seus órgãos e tripas. Era mesmo uma maravilha olhar para aquele
70

interior. Uma barriga recheada e que valeria alguns bons reais. [...] A barriga
daquele porco é praticamente o seu salário”; “Contra o muro, Pedro encostado
alivia-se no animal que ele chama de Rosemery entre gemidos prolongados.
Enquanto ele come o porco por trás, a cada golpe, escorre um líquido amarelo do
peito rasgado (MAIA, 2009, p. 25, 27).
E mesmo diante do dilaceramento dos cachorros durante as rinhas, a única
preocupação é se ainda dá para lucrar mais um pouco com os animais: “A briga
havia terminado na pequena arena. Nenhum havia sido morto, o dono não deixou,
ainda dava para se ganhar algum dinheiro com o infeliz, mesmo todo dilacerado.
Uns curativos e ele ficaria bem para mais algumas brigas” (MAIA, 2009, p. 83).
Em O trabalho sujo dos outros, quando Divina, a cabra mais gorda, fica
doente, sofrendo de mastite, Erasmo Wagner logo se preocupa com o possível
prejuízo que isso irá lhe causar: “Ela dá em média quatro litros de leite por dia.
Cento e vinte litros de leite por mês, aproximadamente. Cada litro é vendido a dois
reais. Um prejuízo de duzentos e quarenta reais no mês. [...] Não haverá lucro este
mês (MAIA, 2009, p. 105).
Essas situações mostram como a perspectiva de Singer é meramente
reformista, pois ela não visa romper com a ideia de animal como propriedade do
humano. Dentro dessa concepção, visam-se apenas às leis do bem-estar animal,
segundo as quais: a experimentação animal é aceitável se os benefícios para
humanos e/ou animais superarem os custos a que estes são expostos; assim como
a produção de animais para consumo é conveniente se for assegurado que eles
recebam boas condições de vida, como ausência de sofrimento e de stress, e que
sejam abatidos com humanidade.
Para Francione, no entanto, a legislação bem-estarista jamais oferecerá uma
proteção adequada aos interesses dos animais, como ilustra Entre rinhas de
cachorros e porcos abatidos. Mesmo com acesso ao cartaz com os “Padrões de
Cuidados para Porcos do Humane Farm Animal Care”, os trabalhadores do
matadouro nem os praticam, tampouco se interessam em conhecê-los, e a
justificativa da falta de tempo pelo excesso de trabalho também não se aplicaria,
pois isso não os impede de ler o panfleto da rinha de canários sobreposto ao cartaz:
71

*Os porcos devem ser tratados pelos encarregados com


consideração para reduzir o medo e melhorar o bem-estar e o
gerenciamento.
*Os encarregados devem demonstrar competência em cuidar dos
animais de forma propícia e compassiva.
“Propícia e compassiva”, murmura Edgar Wilson olhando para as
instruções pregadas na parede do escritório do abatedouro. Anda
trabalhando tanto que não costuma ter tempo para ler cartazes
pendurados no mural. Este já está amarelado e não se lembra de já
tê-lo lido antes. Tapando os outros tópicos de instrução para o
cuidado com os porcos, estabelecidos pelo Humane Farm Animal
Care, ele lê o panfleto que anuncia uma rinha de canários (MAIA,
2009, p. 79).

Já em relação a Regan, uma das limitações de sua teoria apontada por


Francione reside no fato de que ele não considera todas as criaturas sencientes
sujeitos-de-uma-vida, apenas aquelas capazes de conduzir sua vida para evitar o
que lhe causa malefícios e fomentar o que lhe proporciona o bem (mamíferos e
aves26). Para Francione, não há razão para limitar a classe dos animais protegidos,
pois alguns deles e alguns humanos podem até não ter a capacidade de agir para
promover o bem-próprio, mas eles são sencientes, ou seja, têm interesse em não
sofrer e, portanto, podem ser considerados possuidores de uma vida experiencial.
Além disso, se todos esse sujeitos-de-uma-vida têm igual valor moral, não
seria moralmente permissível ao ser humano usar os animais como meio para um
fim, incluindo aqui a posse de suas vidas para fazer-nos companhia.
Em Assim na terra como embaixo da terra, a cadela vira-lata de Valdênio
representa a ele a única possibilidade de afeto na colônia penal, como ele mesmo
reconhece ao admitir que sentirá a sua falta após a morte dela: “– Acho que é isso
que acontece com a gente num lugar como este. A gente acaba assim, se apegando
a qualquer trapo” (MAIA, 2017, p. 11). E em Carvão animal, a cadela Jocasta, a
quem são atribuídas as funções de manter afastadas as galinhas da vizinha e fazer
o controle dos ratos e formigas, também assume o papel de fazer companhia a
Ernesto Wesley.
Em Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, o episódio em que Pedro
explica a Edgar Wilson o porquê de ter criado em cativeiro a rã encontrada ainda

26
“Both the best empirical data and our best explanatory theories support the judgement that
vast numbers of nonhuman animals (mammals, birds, and other vertebrates, for starters)
share the psychological characteristics in question” (REGAN, 2001, p. 102).
72

viva dentro do cachorro acontece em meio a uma cena de abate de porco que
também justificaria a salvação e o acolhimento do animal:

O animal debate-se desesperado, correndo angustiado, esbarra na


mesa com a bacia de miúdos e joga tudo no chão. Um dos ganchos
deixados sobre a mesa por Edgar cai sobre o animal e finca-se em
sua rosada carne, enterrando-se numa de suas costelas. Ainda
assim, o bicho consegue fugir pela cerca de arame farpado, ainda
que se cortando, espreme-se e, pouco antes de atravessar, o gancho
prende-se na cerca, e os grunhidos de dor e angústia ficam cada vez
mais altos. [...] Consegue libertar da cerca, quando o gancho rompe
sua carne e expõe uma costela suculenta. [...] Pedro alcança o suíno
que esperneia e o traz de volta [...].
– Pra que você guardou a rã?
– Porque Gilda é uma sobrevivente. Incrível como uma criaturinha
tão pequena tem tanta vontade de viver. Ela me dá forças –
responde Pedro, contemplativo.
A resposta lhe parece satisfatória. Novamente suspende o machado
e acerta a cabeça do animal, que tomba para o lado soltando mais
um grunhido horrível, quase definitivo (MAIA, 2009, 21-23).

A partir dessa cena, podemos entender o posicionamento radical de


Francione a favor da abolição da exploração animal, porque somente assim será
possível uma significativa transformação de paradigmas. Em sua principal obra
publicada no Brasil, Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?
(2013), o autor argumenta que, enquanto os animais forem considerados
propriedade, eles serão tratados como coisas sem status moral e sem interesses
moralmente significativos.
Desdobra-se daí o conceito de esquizofrenia moral, que Francione aplica ao
modo como os humanos estabelecem, de um lado, um relacionamento que
considera os interesses moralmente importantes do animal e, de outro, um
tratamento que os ignora:

a sociedade atual vive em um estado de esquizofrenia moral e que


este fenômeno ocasiona uma certa confusão sobre o modo de serem
tratados os animais, seja de forma social, seja de forma moral. Este
tratamento é contraditório, ilusório, pois, de um lado, pode-se
observar que às vezes os animais são cuidados e zelados, mas
outros serão servidos para satisfazerem a gula humana
(FRANCIONE, 2013, p. 12).

A partir da perspectiva abolicionista de Francione, entendemos que, para


inserir os animais no âmbito de uma ética não utilitarista e não biocêntrica, é preciso
73

ampliar o domínio da comunidade moral para contemplar os seus interesses,


proteger o seu valor e impedir a dor de todos esses seres capazes de ter a
qualidade de suas vidas diminuída em decorrência dos nossos interesses. Somente
assim podemos alcançar uma ética que seja, de fato, não especista.
A noção de especismo27 diz respeito à tradição moral na qual vivemos, que
impõe uma hierarquia entre as espécies, colocando o ser humano no topo dessa
relação, ou seja, acima e afastado de outras espécies que não nasceram na nossa.
A consequência dessa posição, que não julga a dor, a moral e os direitos pelo valor
inerente da vida, mas pela aparência física e carência de habilidades elegidas pelo
humano como parâmetros de superioridade, é a discriminação, mesmo fundamento
que justifica o racismo e o sexismo, por exemplo:

Há cem anos, os eurodescendentes também julgavam que a dor dos


negros valia menos do que a dos brancos. Há quinhentos anos, os
eurodescendentes também julgavam que a dor dos índios valia
menos do que a deles. Há milênios, os ricos julgam que a dor dos
pobres vale menos do que a deles. Fomos acostumados a fazer isso
com a dor humana, então, formamos a convicção de que temos o
direito de fazer o mesmo com a dor, o sofrimento e a vida de outros
animais (FELIPE, 2012, p. 244).

Diante dessa visão hierárquica, surgem escritores/as literários/as que


buscam recuperar o elo intrínseco entre o humano e animal ou, ao menos, dar
acesso ao outro lado dessa fronteira que separam todos nós.
Os romances de Ana Paula Maia promovem esse movimento em direção ao
que Maciel costuma chamar de “outro mais outro que qualquer outro” (MACIEL,
2011, p. 94). Ao longo das narrativas deparamo-nos, como visto, com situações de
especismo elitista (animais para utilidade humana) e eletivo (animais que merecem
consideração moral, seja para companhia ou proteção).
Quanto ao especismo elitista, a questão mais proeminente é a de objeto
comercial, como visto nessa seção. Em Carvão animal, as minhocas também
servem aos interesses humanos. O minhocário de Ernesto Wesley nos fundos de
seu quintal lhe rende três produtos para venda, a saber, o húmus para produzir solo

27
Esse termo aparece pela primeira vez em um panfleto sobre a defesa dos animais
publicado por Richard Ryder no ano de 1973, seu conceito é tratado somente anos depois
em sua obra Victims of science (1975) e ele só se consolida quando Peter Singer começa a
empregá-lo em seus livros sobre ética animal.
74

fértil, as minhocas desidratadas para fazer farinha para consumo humano e as


minhocas vivas, ou desidratadas também, para servir de isca para pesca: “Em dias
ensolarados, logo pela manhã, coloca as minhocas dentro de um saco plástico para
ficarem expostas ao sol. Uma vez expostas ao calor, elas perdem água e
desidratam. Em dias em que não há sol, ele as leva ao forno (MAIA, 2011, p. 43).
E quanto ao especismo eletivo, prevalecem os exemplos de animais que
despertam simpatia ou compaixão de tal forma que se torna importante proteger
seus interesses. Mas também temos a caça dos javalis autorizada por lei, que é uma
condição especista eletiva, afinal, a justificativa de conservação da biodiversidade
local, apoiada por ambientalistas e conservacionistas, não se interessa pelo valor
intrínseco da vida desses viventes. Aliás, esse é um ponto ridicularizado pelo próprio
narrador de Assim na terra como embaixo da terra, que ironiza o discurso bem-
estarista que pressupõe um “caçador ético” e seguidor das orientações para compor
essa integridade moral: ele “nunca abate além dos limites permitidos” e sabe que “é
preciso manter a distância necessária do alvo para dar a este a chance de escapar,
de sobreviver, mesmo que você tenha fome. Aprender a caçar é aprender a
controlar os instintos e a ser íntegro e honesto consigo” (MAIA, 2017, p. 134).

3.3 “O SANGUE DAS BESTAS”: MAIS ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Identificamos aqui três vertentes ainda presentes na ética contemporânea,


cada qual com um critério para determinar quem são os sujeitos dignos de
consideração moral: a ética antropocêntrica estabelece a razão como parâmetro; a
senciocêntrica, a sensibilidade mental; e a biocêntrica, o bem-próprio.
É somente a partir desta última que podemos compreender o animal como
fim em si mesmo, e não como mero instrumento a serviço dos interesses humanos.
O que se busca no biocentrismo é a consideração do valor inerente dado à vida, isto
é, à totalidade da expressão da vida animal e orgânica, ainda que ela não seja
dotada de razão, nem de sensibilidade.
Sem o respeito a esse princípio, que deve competir a gados e homens, os
animais continuarão, entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, servindo de
carvão animal assim na terra como embaixo da terra. É dessa forma que a literatura
de Ana Paula Maia permite refletir esses modelos antropocêntrico-hierárquico e
sencioncêntrico utilitarista ainda prevalecentes na nossa sociedade. Ao trazer à tona
75

questões especistas, seus romances ressonam o que poderíamos chamar de vozes


do silêncio, pois eles funcionam como uma via de propagação dessas ondas já
existentes, as quais só precisam de um meio físico para serem perceptíveis aos
nossos ouvidos, ainda um tanto surdos para sintonizar essas frequências.
No próximo capítulo, tratamos, para além daquilo que é dito, como isso é
escrito, isto é, pensamos algumas estratégias utilizadas pela escritora para traduzir
esse encontro do humano com a outridade animal e com a própria animalidade que
o constitui, a fim de entendermos, finalmente, os limites e alcances da obra literária
de Ana Paula Maia.
76

4 ANA PAULA MAIA E A LITERATURA DE AUTORIA FEMININA: MULHERES NO


SEU (IN)DEVIDO LUGAR

“O animal abre diante de mim uma


profundidade que me atrai e que me é
familiar. Essa profundidade em certo sentido
a conheço: é a minha.” (Teoria da religião,
Georges Bataille)

Um olhar para o século XX a partir da década de 1960 nos revela, como


visto, uma efusão de propostas ético-filosóficas e literárias voltadas para a
ampliação do paradigma humanista dicotômico, que não admite o conceito de
alteridade – conceito aqui entendido como uma forma de reconhecer que há outras
culturas além da nossa.
Assim também problematiza Agamben em sua obra O aberto: o homem e o
animal, a qual discute um dualismo radical que a tradição ocidental estabeleceu
entre a vida biológica e a vida política. Ao iniciar seu livro com a apresentação de
uma gravura da Bíblia hebraica do século XIII (Figura 3), a do banquete messiânico
no último dia segundo a visão do profeta Ezequiel, em que os justos são
representados com corpos humanos e cabeças de animal, Agamben questiona
(2017, p. 11): “Por que os representantes de toda a humanidade são retratados com
cabeças de animais?”

Figura 3 – Banquete messiânico no último dia

Fonte: Agamben (2017, p. 2).


77

Essa imagem, ao figurar uma reconciliação do humano com sua natureza


animal, dissolve uma das grandes aporias que a tradição ocidental estabeleceu ao
longo do tempo: a construção do ser humano como separado do animal. Estariam
essas mesmas instâncias, homem e animal, nos romances de Ana Paula Maia, a
serviço dessa dissolução, indicando uma abertura para a alteridade?
Para refletir sobre isso, vamos partir dos seguintes conceitos: a biopolítica,
de Giorgio Agamben; a tríade Imaginário, Simbólico e Real, de Slavoj Žižek; e o
referente ausente, de Carol Adams. E, assim, pretendemos entender melhor de que
modo essa escrita literária reverbera no campo literário de autoria feminina.

4.1 “NINGUÉM ESTÁ IMPUNE”28: BIOPOLÍTICA

Após a Revolução Industrial, a humanidade viu-se atrelada a um modelo


basicamente hegemônico de produção e consumo que coisifica o mundo de acordo
com as regras e valores de mercado e que se ergue por cima das leis da natureza e
do sentido de existência. Um olhar sobre os textos de Ana Paula Maia permite
observar essa lógica produtivista de mercado em ação, isto é, em vias de exploração
física e psíquica do humano e do animal.
No entanto, mais do que a diferença e a hierarquia entre espécies, como
visto no capítulo anterior, o que emerge ao espaço de sentido da escrita é esse
vivente capturado em sua vulnerabilidade, em sua existência precária, e inscrito
dentro de uma racionalidade econômica para ser vendido, tanto os humanos quanto
os animais, como força de trabalho e mercadoria. Ambos seres são vítimas de um
mesmo mecanismo que transforma os corpos em mercadoria e em valor, afinal,
independente de qualquer diferença de espécie, tudo é capturável ou capitalizável.
Essa generalização que as narrativas encenam ilustra um dispositivo da
biopolítica. Trata-se de um conceito desdobrado por Foucault ao longo da década de
1970 e que diz respeito ao poder concentrado nas políticas públicas
governamentais, ou seja, na figura do Estado; mas não mais para promover
simplesmente a docilização dos corpos individualizados, e sim para regulamentar o
corpo enquanto espécie e com vistas à otimização das forças produtivas da própria
vida (MURRAY; WHYTE, 2011, p. 36).

28
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 126.
78

De fato, a perspectiva biopolítica já atravessava os textos de Arendt da


década de 1950, Origens do totalitarismo e A condição humana, a partir de duas
categorias, campo de concentração e centralidade da atividade do trabalho.
Entretanto, é com Foucault que a biopolítica adquire dimensão crítica e filosófica e é
com Agamben, dentre outros, que o conceito se amplia.
Tanto Foucault quanto Arendt entendem que há um interesse em promover
a vida, que, aliás, tornou-se um lugar comum, pois nunca a se defendeu tanto: sejam
aqueles que se ocupam de manipulação genética ou que empreendem guerras
planetárias; sejam os que veem, nas formas de vida existentes e na sua diversidade,
um reservatório infinito de lucro; ou ainda aqueles que as enxergam como um
patrimônio inalienável da humanidade.
Para Agamben, entretanto, o que caracteriza especificamente a biopolítica
hoje não é apenas a defesa da vida, isto é, a inclusão da vida natural na esfera
política, mas sobretudo a inserção daquele elemento incluído através de sua
exclusão, o que o filósofo chama de vida nua e cujo paradigma distinto ele identifica
na figura romana arcaica já vista do homo sacer (MURRAY; WHYTE, 2011, p. 38).
Dessa forma, não há uma natureza que não esteja atravessada pela gestão
bioeconômica, não há um exterior que não esteja capturado desde sua própria
concepção pelo capital, pois a lógica do mercado só reconhece duas “espécies”:
proprietários e propriedade. Logo, qualquer corpo vivente pode ser apropriável em
prol de um cálculo econômico.
Nos romances de Ana Paula Maia, a biopolítica surge na reflexão sobre a
gestão da vida e da morte, em que viver e morrer podem ser apostas diferentes,
mas são contínuas na operação do capital. Dentro das narrativas, essa ideia se
concretiza de forma mais evidente a partir dos espaços ocupados pelos
personagens, os quais separam física e simbolicamente essas duas zonas, vida e
morte: o matadouro clandestino em Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, a
fazenda de criação e abate em De gados e homens, o crematório em Carvão animal
e até a própria colônia penal em Assim na terra como embaixo da terra – que foi um
cemitério há tempos e ainda enterra seus mortos nos seus arredores.
Contudo, mais do que essas duas zonas distintas, o que os romances
problematizam é o entremeio delas, onde, de fato, os homens se localizam e ali se
abismam. É aqui que podemos enxergar a reinterpretação de Agamben sobre a
ideia de biopolítica, que, segundo ele, não está na noção do poder soberano, em
79

que o Estado “faz morrer e deixa viver”: “matar, de maneira espetacular, os que
ameaçassem seu poderio, e deixar viverem os demais”; nem no conceito de
biopolítica de Foucault e Arendt, em que o Estado “faz viver e deixa morrer”: “cuidar
da população, da espécie, dos processos biológicos, otimizar a vida. Gerir a vida,
mais do que exigir a morte” (PELBART, 2007, p. 24). Para o filósofo italiano, o
Estado “faz sobreviver”, isto é, ele não investe nem na vida, nem na morte, mas na
sobrevida, gerando sobreviventes e reduzindo o homem a uma dimensão residual,
ao seu mínimo biológico.
São várias as cenas que mostram as personagens lidando com essa vida
residual, com a “falta” em todos os níveis de assistência do Estado. Como
consequência, as personagens revidam de forma insurgente, conforme conclui
Daniela Meireles, em seu artigo “Rinhas de humanos: violência e negação de
cidadania em Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos de Ana Paula Maia”, ao
analisar a violência como uma forma de agência perversa que gera maneiras abjetas
de inclusão na sociedade de consumo:

Matar cães, porcos ou homens significa, no cotidiano dessas


pessoas, uma forma de retirar obstáculos de seus caminhos e, ao
atingirem seus objetivos, alcançam um simulacro de cidadania. Eles
não esperam pela ajuda e pela justiça que nunca virão e “arregaçam
as mangas” para fazer valer sua cidadania sem se importarem com
quantas vidas terão que perecer das formas mais violentas e
grotescas como o romance nos revela (MEIRELES, 2015, p. 215).

Mas as histórias desses personagens não os obrigam a operar só com a


falta ou com o pouco, eles precisam também lidar com os restos produzidos por
quem pouco se importa com o destino deles, nem por eles quer ser responsável,
como o de uma mulher morta no lixão: “Era um fiapo que assemelhava-se a um
pedaço de carne defumada. Seca e escura. Eram despojos humanos misturados a
restos de lixo orgânico, embalagem tetra pak e latas de ervilha” (MAIA, 2009, p.
131). É dessa forma que as narrativas deflagram uma pungente estética centrada
nos restos e na ruína.
Por restos, entendemos o consumo do consumo, isto é, o consumo daquilo
que não é mais útil para a sociedade. Dentro desse viés, a novela O trabalho sujo
dos outros e o romance Carvão animal são os símbolos mais explícitos dessa
estética, pois os conflitos giram em torno do manejo dos restos. Quando os lixeiros
80

entram em greve, a cidade simplesmente sucumbe, e quando o forno do crematório


explode, é preciso dar cabo da superlotação dos 87 corpos. Ambos os conflitos só
são resolvidos no momento em que a ordem de manejo desses resíduos é
restaurada, isto é, quando a greve acaba e quando os corpos são incinerados nos
fornos de uma outra carvoaria.
Por ruína, queremos apontar para a decrepitude desse mundo, onde a
coloração da água da torneira é bege, a farinha de trigo já está com bicho, a
geladeira não dá vazão no calor, o rádio chia, a luz ou crepita ou está queimada, o
detector de metais não funciona, o liquidificador de cozinha substituiu o deteriorado
triturador de cinzas do crematório, o telhado da casa é forrado com folhas de latão e
o do alojamento permanece danificado desde o temporal, as paredes estão
descascadas e têm rachaduras enormes do teto ao chão, a placa de madeira da
entrada da fazenda de Seu Milo se mantém suspensa só por um lado, o escritório é
espremido e fica ao lado do setor de bucharia do matadouro, o rádio do carro está
quebrado, só um limpador de para-brisa funciona, os pneus do caminhão são
carecas e o para-choque é enferrujado, a caminhonete não funciona há mais de dez
anos, a retroescavadeira solta mais fumaça que uma carvoaria, a fumaça preta que
sai do escapamento da kombi é maior que a poeira da estrada, a rua é esburacada
com algum vestígio de asfalto colocado há seis anos e a ponte que só permite a
passagem de um carro por vez está quebrada.
Se os espaços são rotos, os corpos estão deteriorados. Para citar alguns
personagens: Edgar Wilson, como um cão de rinha, carrega cicatrizes e lacerações
no corpo, e quando trabalhava nas minas de carvão, tinha tom de pele amarelado e
encardido e fuligem na saliva e nos olhos; Gerson tem um quadro avançado de
doença renal crônica, assim como a sua irmã, que, inclusive, também tem câncer;
Erasmo Wagner, que já foi picado por rato e bicado por urubu, tem cheiro azedo,
unhas imundas, barba suja, dentes podres e dor na coluna que se agrava; Alandelon
é jovem, nem se aposentou e já sofre com as sequelas de seu trabalho quebrando
asfalto, toma analgésicos a cada oito horas para suportar o zumbido e as dores de
cabeça e está ficando surdo; Bronco Gil acidentalmente perdeu um testículo em um
ritual de iniciação à vida adulta e perdeu um olho em um atropelamento; Valdênio,
depois de ser jogado da laje de um pavilhão da colônia penal, caminha arrastando a
perna esquerda sequelada e com ajuda de uma bengala; Ernesto Wesley sofre de
uma analgesia congênita, que o impede de sentir dor; Ronivon tem os pulmões
81

enfraquecidos pelo constante choque entre as altas temperaturas do forno do


crematório e a água gelada que precisa tomar para suportar o calor; enquanto os
carvoeiros “são cegos, surdos e mudos pelas cinzas [...]. São todos homens e
sombras” (MAIA, 2011, p. 118).
Estaríamos aqui diante da figura do muçulmano descrita por Agamben,
designação terminal dada àqueles sobreviventes nos campos de concentração?
Embora ali se tratasse de judeus, eles assim eram chamados nos campos porque
suas vidas já estavam entregues ao destino, como em um suposto fatalismo
islâmico. O muçulmano era o cadáver ambulante, um feixe de funções físicas nos
seus últimos sobressaltos, exausto demais para compreender a morte que o
esperava, esvaziado demais para que pudesse sequer sofrer. É sobre essa vida,
reduzida ao contorno de uma mera silhueta, como diziam os nazistas ao referir-se
aos prisioneiros, que aparece a perversão de um poder que não elimina o corpo,
mas o mantém numa zona intermediária entre a vida e a morte, entre o humano e o
inumano: o sobrevivente (PELBART, 2007).
Essa condição de sobrevivente é um efeito generalizado da biopolítica
contemporânea, que não se restringe aos regimes totalitários, e sim inclui
plenamente a democracia ocidental. É por isso que aqui podemos enxergar os
personagens de Ana Paula Maia, aos quais restam apenas, como adverte a autora
na apresentação de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, trabalhar duro,
sobreviver com muito pouco, esperar o mínimo da vida e carregar seus fardos e o
dos outros (MAIA, 2009).
Apesar disso tudo, a construção dos personagens não leva à vitimização
completa deles, pois também coloca suas ações como fator de contribuição efetiva
para a situação em que se encontram, como reconhece Seu Milo: “Ninguém está
impune. Todos são homens de gado e sangue” (MAIA, 2013, p. 38). Em entrevista, a
escritora também reconhece isso:

Lido com o mal não contrariamente com o bem. Trabalho com o mal
dentro de uma realidade em que é muito difícil você ser bom. Nunca
escrevo sobre personagens bonzinhos. Às vezes, eles fazem o bem,
mas não são bonzinhos. Quem morre é bandido, e quem mata
também é bandido. É exatamente este o meu universo (ANA...,
2018).
82

As personagens, de forma consciente, explícita e sem culpa, não só mantêm


práticas ilícitas e não éticas, como também não demonstram perspectiva em mudá-
las: “Bronco Gil não é um homem bom e sabe disso” (MAIA, 2017, p. 27); e Edgar
Wilson, apesar de sua fé religiosa e de sua complacência para com os animais que
mata, “sabe que sua própria violência nunca permitirá que um dia veja a face do
Criador. Poderia se redimir, mas nunca se esforçou para isso” (MAIA, 2013, p. 85).
Um exemplo dessa práticas está em De gados e homens, quando Zeca não
segue as normas do abatimento “sem crueldade” estabelecidas por Edgar Wilson e,
então, torna-se um animal como os outros animais: abatido como um gado e morto
sem ser assassinado.

Edgar Wilson entra no banheiro do alojamento. Espera que reste


apenas o Zeca no banho. Com a marreta, sua ferramenta de
trabalho, acerta precisamente a fronte do rapaz, que cai no chão em
espamos violentos e geme baixinho. Edgar Wilson faz o sinal da cruz
antes de suspender o corpo morto de Zeca e o enrolar num cobertor.
Nenhuma gota de sangue foi derramada. Seu trabalho é limpo. No
fundo do rio, com restos de sangue e vísceras de gado, é onde deixa
o corpo de Zeca, que, com o fluxo das águas, assim como o rio,
também seguirá para o mar (MAIA, 2013, p. 21).

De forma semelhante, temos Pedro, morto, esquartejado e vendido como


porco por Edgar Wilson no abatedouro clandestino de Entre rinhas de cachorros e
porcos abatidos; e temos ainda os prisioneiros caçados como javalis pelo rifle de
Melquíades em Assim na terra como embaixo da terra.
Chama a atenção também nessas duas cenas a zoomorfização dos
personagens vítimas, uma estratégia utilizada pela escritora para lançar esses
homens na mesma esteira de tratamento dos animais. Essa aproximação do
universo comportamental e espacial entre ambos os grupos é recorrente em todos
os seus romances.
Seu Milo rosna e berra; Melquíades fareja e é daltônico como os javalis;
Helmuth tem olhos de peixe morto; Seu Gervásio rumina; J. G. é comparado a um
bom cachorro, com quem se pode permanecer horas ao lado em silêncio e satisfeito;
Seu Cristóvão cresceu alimentando-se tanto de porco que se reconhece como parte
do animal; a irmã de Gerson é comparada a uma porca, assim como Rosemery;
Valtair se sente como um cão por toda a vida; Erasmo Wagner tem a pele com
textura de torresmo de porco e é estéril feito uma besta; Bronco Gil se sente uma
83

besta na maior parte do tempo e mija feito um jumento; Pablo se sente o próprio
jumento; e Edgar Wilson cicia, tem visão de morcego e foi criado feito cão de rinha.
Além das especificidades de cada personagem, temos as de grupo: as
brigas territoriais entre os homens tal como ocorre com os cães; a astúcia e a
violência dos homens comparadas a dos javalis; os presos da ala de segurança
máxima vistos como cães perigosos que precisam de isolamento; os peões
assemelhados aos arredios jumentos; e a colônia penal que, assim como o
alojamento da fazenda de Seu Milo, é vista como um curral: “Ambos os
confinamentos, de gado e de homens, estão lado a lado, e o cheiro, por vezes, os
assemelham. Somente as vozes de um lado e os mugidos do outro é que distinguem
homens e ruminantes” (MAIA, 2013, p. 20).
Contudo, a presença dos animais nos romances não está simplesmente a
serviço do homem, no sentido de funcionar como uma forma de acentuar a sua
desumanização ao colocar sua vida no mesmo patamar de igualdade à dos animais.
Podemos perceber também um manifesto que poderia se aproximar do
abolicionismo animalista, tal como faz de forma bem declarada o romance brasileiro
Humana festa (2008), de Regina Rheda.29
O livro da autora é considerado o primeiro romance brasileiro a tratar o
veganismo como tema central, e não como paisagem. Isso se observa desde a
caracterização das protagonistas dos dois núcleos que compõem o enredo: Megan,
norte-americana, branca e com elevado padrão socioeconômico, estuda literatura
inglesa animalista e faz ativismo pelo feminismo e pelos direitos dos animais não
humanos; Orquídea, brasileira, não branca, analfabeta, pobre e empregada

29
Regina Rheda (1957), brasileira, mas residente nos Estados Unidos desde 1999, é
formada no curso de Cinema (1984), pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo. Antes de tornar-se escritora, trabalhou com cinema, vídeo e televisão, tendo
contribuído para inaugurar o boom do curta-metragem brasileiro. Seus romances e contos
abrangem temas urbanos, migração transnacional e direitos dos animais. Ganhou
um prêmio Jabuti (1995) com sua primeira antologia de contos, intitulada Arca sem Noé -
Histórias do Edifício Copan (Record, 1994; Record, 2000), traduzida para o inglês
como Stories From the Copan Building e publicada no volume First World Third Class and
Other Tales of the Global Mix (University of Texas Press, 2005). Esse volume também inclui
a tradução de seu primeiro romance, Pau-de-arara classe turística (Record, 1996), e a de
outros contos, além de um escrito originalmente em inglês. Dentre outras publicações, pode-
se citar seu livro de contos Amor sem-vergonha (Record, 1997), o romance Livro que vende
(Altana, 2003) e outros contos que integram coletâneas. Rheda também traduziu Jaulas
vazias: encarando o desafio dos direitos animais, de Tom Regan (Lugano, 2006) e, desde
2007, faz traduções autorizadas para o português do site “Abolitionist Approach”, de Gary L.
Francione (RHEDA, 2015a; RHEDA, 2015b).
84

doméstica da fazenda dos Bezerra Leitão no interior de São Paulo, é a grande


responsável pela ação direta pela libertação das suínas prenhas e contra a
transformação da fazenda em uma usina de criação intensiva com o financiamento
da Holy Hill, um conglomerado agropecuário dos Estados Unidos.
A obra é assumidamente militante, inserindo-se em uma agenda de práticas
de respeito aos animais, tanto que, em entrevista à editora Record, Rheda afirma
que Humana Festa seria impossível em filme: “a menos que pudessem filmá-lo
somente com imagens de animais criadas em computador, ou criadas de uma
maneira que não usasse animais de verdade, eu nunca faria o filme Humana Festa”
(RHEDA, 2018b). Essa postura panfletária também está carimbada na materialidade
linguística do romance, que demonstra preocupação evidente com o uso de termos
desvinciliados de pressupostos especistas, como “animal não humano” e “seres
sencientes” para se referir a animal.
Nas obras de Ana Paula Maia aqui analisadas, há somente um único
momento em que podemos perceber uma faísca abolicionista. Isso acontece em O
trabalho sujo dos outros, quando Erasmo Wagner vai até o bar do Cristóvão para
saborear o sarrabulho, um prato típico português preparado com sangue e miúdos
de um ou mais animais (porco, boi, cabrito, bode etc.). Aqui o/a leitor/a tem
conhecimento da história de uma família que pouco figura na narrativa, cujos fillhos,
apenas citados, são os únicos personagens de todas as obras aqui estudadas da
autora que sugerem uma postura mais aproximada do abolicionismo, pois o texto
sugere que os filhos irão romper com essa tradição culinária especista:

Sua mãe era especialista no prato e ajudou a difundir a iguaria por


todo o norte de Portugal. Orgulha-se disso. Mas a tradição, em sua
família, morrerá com ele [Cristóvão]. Nenhum de seus filhos suporta
o cheiro do sarrabulho. Não concordam com tanto sangue em uma
refeição (MAIA, 2009, p. 129-130).

De fato, não encontramos “jaulas vazias” em Ana Paula Maia, sua literatura
se restringe em expor e problematizar um especismo elitista e eletivo, sem alçar os
voos libertários de Francione. Mas suas obras talvez não tenham esse alcance
porque o grande impasse estaria no fato de a libertação dos animais só ser possível
se a dos homens também fosse, porque as formas de dominação estão sempre
inter-relacionadas, como é o caso das lutas feministas e abolicionistas animalistas
defendidas por Sybil, mãe da protagonista Megan em Humana festa:
85

Explicou que o desrespeito às fêmeas da espécie humana tem a


mesma fonte que a exploração das fêmeas das outras espécies. [...]
– Lembrou que a maioria dos animais abusados e mortos na
indústria de exploração animal são fêmeas: vacas leiteiras, galinhas
poedeiras, porcas reprodutoras. E disse que o movimento feminista
nunca vai atingir seus principais objetivos enquanto não admitir que
as fêmeas não-humanas também têm direitos (RHEDA, 2008, p. 44).

Essa visão de animais como propriedade, seja para fins de consumo ou


diversão, sustenta não somente a ordem antropofalocêntrica, mas também as
desigualdades socioeconômicas. Peggy Sanday, em uma pesquisa sobre mais de
cem culturas não tecnológicas, conclui que as economias de base agrícola têm
mais probabilidade de serem igualitárias, enquanto que aquelas alicerçadas à
produção de carne estão assentadas nas desigualdades de classe e de sexo: uma
das “características das economias dependentes sobretudo do processamento de
animais para alimento incluem: segregação sexual nas atividades de trabalho, com
as mulheres trabalhando mais do que os homens” e, ainda, em uma “ocupação
menos valorizada” (ADAMS, 2012, p. 97).
Podemos identificar essas características na Fazenda dos Bezerra Leitão:
uma propriedade operada por trabalhadores mal pagos, por mulheres confinadas a
serviços domésticos e submetidas a ordens dos patrões em tempo quase integral,
sobretudo quando há festas, como o almoço de recepção de Megan e Diogo, cujo
evento leva à compra de uniformes que seriam pagos pelas próprias empregadas.
Aos homens, que também contraem dívidas até o fim de suas vidas por utilizar as
ferramentas de trabalho que pertencem à Fazenda, a subjugação também é
evidente. Conforme acredita Bezerra Leitão,

eles estavam acostumados à servidão. Pertenciam a uma longa


linhagem de vassalos. Não trazia o gene da independência nem o da
dignidade. Assim como as longas linhagens de criação de gaiola,
chiqueiro e curral não trazem o gene da vontade de ser livre
(RHEDA, 2008, p. 166).

Na Fazenda de Seu Milo, a condição dos trabalhadores (longas jornadas de


trabalho, péssimas condições do alojamento e salário insuficiente) somada a dos
moradores dos arredores, que disputam as sobras das carnes fornecidas para a
fábrica de hambúrguer, também é desoladora: “Tonho despeja um saco com
86

pedaços gordos da vaca aos pés das mulheres, que precisam disputar com uma
matilha de cães famintos que rodeiam o matadouro” (MAIA, 2013, p. 58).
Em suma, esse tipo de economia global absorve práticas que estabelecem
desigualdades de classe e sustentam a exploração dos grupos mais fracos, o que
inclui não só as mulheres, mas os/as trabalhadores/as e a própria natureza.
Porém, se o romance de Rheda mostra que as frentes de lutas políticas,
sociais, econômicas, feministas e ecológicas de forma isolada são insuficientes para
romper com as estruturas de opressão especista, sexista e classista; nas obras de
Ana Paula Maia, defrontamo-nos com o testemunho de um gesto reiterado na
cultura contemporânea, a saber: a alteridade animal e a humana usurpadas pelas
tecnologias biopolíticas de separação, contenção e capitalização.
Diante disso tudo, os romances de Ana Paula Maia rompem com a leitura
mais fácil, que seria pensar que se trata de homens animalizados, afinal, será que
não estamos diante das falhas dessa lógica biopolítica com vantagens para poucos
e que reduzem os animais e humanos a um mesmo plano, o do mero
sobrevivencialismo imposto e que sufoca a individualidade de cada um?

4.2 “DENTRO DELES EXISTE APENAS ESCURIDÃO”30: DO REAL À ESCRITA


LITERÁRIA CONTEMPORÂNEA

No livro Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), que reflete sobre o confronto


com o Real a partir dos acontecimentos e consequências do 11 de setembro, Žižek
nos mostra que não experimentamos a realidade como uma ordem estática, plena e
sem fissuras, ela é sempre uma instância incompleta, que camufla o que a ela
pertence e não pode ser expressa, apenas sentida. Os personagens de Ana Paula
Maia percorrem essas fissuras, levando o/a leitor/a a ter contato também com as
dimensões foracluídas de sua realidade, isto é, com significantes que foram
rejeitados e excluídos para fora do universo do sujeito. Sobre isso, podemos trazer
aqui a reflexão do narrador em O trabalho sujo dos outros:

Após um certo tempo rasgando asfaltos, sente que tudo em sua vida
caminha para baixo. Tem costume de abrir pequenos buracos no
quintal, cavar a comida, afundar o dedo em bolos confeitados e
retirar o miolo do pão. Alandelon gosta mesmo de cavar. Desde

30
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 35.
87

pequeno, lembra-se disso. Quando olha para alguém, ele também


cava. Seus olhos são um par de cavadeiras, ele olha para alguém e
imediatamente começa a cavar. A maioria das pessoas querem
seguir adiante, subir na vida. Ele deseja descer, afundar-se num
buraco, pois tem a impressão, que numa fenda subterrânea
encontrará algo que lhe pertence, mas não sabe o que exatamente
(MAIA, 2009, p. 137).

Nessa novela, temos um episódio muito ilustrativo do retorno do foracluído,


quando Erasmo Wagner está pronto com o facão amolado para matar o bode
Tonhão, mas paraliza diante da lembrança ali suscitada, a do assassinato do “velho
miserento” Mendes, molestador e assassino. Anos depois do crime cometido por ele
próprio, descobre que a vítima era seu pai:

Erasmo Wagner segura o bode pelos chifres. Olha-o nos olhos.


Lembra-se do velho Mendes. Então para. Não consegue continuar.
[...]. Diante de Tonhão, olha-o novamente nos olhos e lá está o velho
Mendes outra vez. Erasmo Wagner apoia-se na árvore e deixa o
corpo afrouxar. Acreditava que havia terminado aquela história ao ter
sacrificado alguns anos de sua vida em troca de pagamento por seu
crime. Ter matado o velho com uma lasca de ferro no pescoço lhe
parecia bem justo aos olhos de sua própria justiça, mas havia algo
mais. Que retornou envolto ao hirco de um bode premiado.
– O que foi? – aproxima-se Edivardes.
– Não tô conseguindo matar esse bode – responde Erasmo Wagner,
ofegante.
– O que tá acontecendo com você?
– Não sei (MAIA, 2009, p. 124).

“Não sei” é o único modo como Erasmo Wagner conseguiu expressar a sua
experiência de ter trespassado a sua realidade sustentada pela fantasia e, então, ter
entrado em contato com o Real. De acordo com Žižek (2003), o Real faz parte da
tríade Imaginário (fantasia), Simbólico (realidade) e Real, que são conceitos
psicanalíticos de Lacan atualizados pelo filósofo para compreender os campos
social, político, econômico e cultural, ou seja, a relação entre sujeito e mundo. Trata-
se de três instâncias interdependentes, como três anéis de um nó borromeano, cujos
três círculos tem mesma importância e cujo entrelaçamento se dissolve caso um
deles seja removido.
Para explicar essas instâncias, Žižek (2010, p. 16-17), em Como ler Lacan,
que apresenta a psicanálise como método de leitura pertinente dos fenômenos da
atualidade, recorre ao exemplo do jogo de xadrez. As peças, isto é, a forma como
elas são modeladas e o nome que recebem é do domínio do Imaginário, tanto que “é
88

fácil imaginar um jogo com as mesmas regras, mas com um imaginário diferente”. As
regras do jogo, como a função atribuída a cada peça, “definida apenas pelos
movimentos que essa figura pode fazer”, pertencem à dimensão do Simbólico. E ao
Real compete “toda a série complexa de circunstâncias contingentes que afetam o
curso do jogo: a inteligência dos jogadores, os acontecimentos imprevisíveis que
podem confundir um jogador ou encerrar imediatamente o jogo”.
O Imaginário, portanto, corresponde à criação de imagens que um indivíduo
faz sobre pessoas e situações e que vai se manifestar no Simbólico. Este, por sua
vez, diferentemente do Imaginário, não é uma esfera abstrata, mas essencialmente
prática, pois é o lugar onde o sujeito socializa, cria e pertence a códigos e regras
que devem ser seguidos, conscientemente ou não, para que a vida em sociedade
seja compreensível. Já o Real não tem uma estrutura discursiva de manifestação,
nem pode ser traduzido por uma lógica, ele apenas tem uma presença
inconscientemente sentida (ŽIŽEK, 2010).
Assim, podemos entender melhor a experiência com o Real de Erasmo
Wagner, que se sente “redimido pelo sofrimento que já passou, pela pena que
cumpriu. Mas existem camadas profundas da alma, que não são atingidas por açoite
humano, nem por desgraças terrenas” (MAIA, 2009, p. 141). Essas camadas são as
fissuras dentro da sua própria rede simbólica, um espectro intraduzível pelas outras
camadas, mas que persiste inerente a elas, enviando sintomas de sua resistência.
Tanto que, mesmo já tendo cumprido a pena do seu crime, ele ali diante do olhar do
bode em carne e osso, surpreende-se ao enxergar seus confins.
Importante entender que, a partir do momento em que o indivíduo busca nas
coordenadas simbólicas que ele já possui elementos que expliquem a experiência
da esfera do Real vivenciada, já não estamos diante dela, mas sim de uma
experiência de ressimbolização. Entretanto, é justamente dessa forma que o Real se
torna possível, quando se volta ao Simbólico e o ressignifica. Assim conclui a filósofa
eslovena lacaniana Alenka Zupančič, em seu livro Ethics of the Real (2011), que
discute a ética a partir do diálogo divergente entre a filosofia de Kant e a psicanálise
de Lacan:

De acordo com Lacan, o Real é impossível, e o fato que „ele


acontece (a nós)‟ não refuta sua „impossibilidade‟ básica: o Real nos
ocorre (nós o encontramos) como impossível, como „a coisa
impossível‟ que transforma nosso universo simbólico do avesso e
nos leva à reconfiguração desse universo. Daí a impossibilidade do
89

Real não impede que ele tenha efeito no reino do possível. É quando
a ética entra em jogo, na questão que nos é imposta pelo encontro
com o Real: irei agir em conformidade com o que me deixou
„deslocado‟, estarei pronto para reformular o que até agora tem sido
o alicerce da minha existência?31 (ZUPANČIČ, 2011, p. 235,
tradução nossa).

É por isso que o contato com o Real é sempre traumático, porque, estando
ele para além do que pode ser representado na esfera simbólica, rompe com a
lógica da realidade do indivíduo. Segundo Pedro Laureano (2015, p. 178-179), em
seu artigo “Uma breve introdução ao pensamento de Slavoj Žižek”, “uma questão
mínima como pedir pela redução das tarifas de ônibus já coloca em cheque todo
nosso sistema político e social, já significa esta fissura na teia das aparências que
Žižek apresenta como sendo o real (sic).” Portanto, tudo aquilo que desestabiliza os
parâmetros e discursos basilares do sistema vigente, tudo que racha no âmbito do
Simbólico empenhado em mostrar-se coeso já é o Real irrompendo.
Como resultado dessa perturbação, o sujeito pode tomar dois caminhos: a
fuga do Real ou a paixão por ele. A fuga do Real é o desejo de amenizar a
existência dessa instância excessiva: “Jacques Lacan afirma que a atitude
espontânea do ser humano é a de que „não quero saber disso‟ – uma resistência
fundamental contra saber demais” (ŽIŽEK, 2003, p. 83). Já a paixão pelo real –
termo cunhado por Alain Badiou – é quando “a busca pelo evento traumático não é
mais evitada, e sim explorada [...] – uma tentativa de atingir o „núcleo duro‟ e
autêntico dos acontecimentos” (FABRETI, 2013, p. 51).
Nos romances de Ana Paula Maia, podemos identificar melhor a paixão pelo
Real. Diante de um contexto biopolítico que não promove a vida, de um Estado que
não assiste, de um trabalho que pouco assegura condições básicas, de uma prisão
que não cumpre a pena, mas a morte, os personagens insurgem de duas maneiras:
em atos que mostram as falhas da ordem simbólica, exibindo, assim, sua
inconsistência, como é o caso da greve dos lixeiros e a fuga da colônia penal; mas

31
According to Lacan, the Real is impossible, and the fact that 'it happens (to us)' does not
refute its basic 'impossibility': the Real happens to us (we encounter it) as impossible, as 'the
impossible thing' that turns our symbolic universe upside down and leads to the
reconfiguration of this universe. Hence the impossibility of the Real does not prevent it from
having effect in the realm of the possible. This is when ethics comes into play, in the question
forced upon us by an encounter with the Real: will I act in conformity to what threw me 'out of
joint', will I be ready to reformulate what has hitherto been the foundation of my existence?
(ZUPANČIČ, 2011, p. 235).
90

sobretudo em atos de destruição, que revelam uma vontade do indivíduo em


escapar dessa realidade inerte, repetitiva e sufocante na qual ele pouco sente ou
pouco existe.
Em ambos os casos, temos uma experiência de encontro com o Real – ou
somente com o seu efeito –, pois a transgressão, como Žižek afirma em entrevista,
potencialmente significa a experiência limite que nos coloca face ao Real, seja na
figura da violência política ou da sexualidade sadomasoquista (SAFATLE, 2003).
Por isso as personagens pouco falam de si, pouco sabem o que sentem,
porque estão em constante contato com o Real, que é difícil de simbolizar, ainda
mais “para homens como eles”, “criados em silêncio” e cujas “palavras compõem um
vocabulário escasso”; e também difícil de digerir, sobretudo quando se têm dentes
podres ou ausentes na boca:

Enfia os dois dedos na boca e, gemendo abafado, arranca o molar


podre. O dente fede e está escuro. Enfia um punhado de papel
higiênico para conter o sangue desmedido. Volta para a mesa. Sua
cerveja está quente. Sua boca cheia de papel. Erasmo Wagner retira
o punhado de papel da boca. Está empapado de sangue. Toma um
gole de cerveja, faz um bochecho e engole (MAIA, 2009, p. 79).

Isso explica a necessidade de um narrador predominantemente onisciente,


para que ele possa ressimbolizar as experiências traumáticas vivenciadas pelos
personagens e torná-las deglutíveis, ainda que parcialmente. Diante do Real que
irrompe metaforicamente no ato desesperado e solitário do personagem em enfiar
os dois dentes na boca e arrancar o próprio dente, só o narrador para estancar esse
sangue, e o faz preenchendo com o papel, a escrita.
Mas, para que isso resguarde um pouco do efeito do Real, afinal, a tradução
das experiências em palavras já o deixa escapar, a atenção dada a algumas
estratégias da linguagem cumpre um importante papel. A escrita de Ana Paula Maia
flerta com a velocidade advinda da literatura virtual, a qual faz parte da trajetória
inicial da escritora, que escrevia e publicava folhetins em seu blog; com a
visualidade cinematográfica, decorrente também de sua passagem como roteirista; e
com a narrativa bruta e crua característica da vertente realista/naturalista, que não
oferece a polpa sem o desconforto de uma casca dura, como o feijão mal cozido de
Penha: “Zé ouve tudo enquanto tira uma casca de feijão do dente, levando o dedo
91

até o fundo da boca. Constata que a casca está dura e que sua mulher não o
cozinhou por tempo suficiente” (MAIA, 2009, p. 51).
Além dessas estratégias que contribuem para a retirada das camadas
ilusórias da realidade, facilitando o descortinamento das fissuras do Simbólico e o
encontro com o Real, podemos citar ainda um outro recurso muito presente. Trata-
se de trazer luz ao “referente ausente”, conceito-chave utilizado pela ecofeminista
Adams (2012), em A política sexual da carne.
No livro, a autora utiliza o conceito para explicar o entrelaçamento da
opressão das mulheres e dos animais. Segundo Adams (2012), da mesma forma
que os termos referentes à carne (bife, hambúrguer, bacon, salsicha etc.) os
mantêm distantes de qualquer ideia de que eles se referem a um animal em sua
integralidade (vaca, boi, porco etc.); as mulheres também são transformadas em
referentes ausentes após terem seus corpos retalhados em partes sexualizadas
consumíveis (bundas, seios, pernas etc.). De modo geral, explica Adams:

o referente ausente pode ser qualquer coisa cujo significado original


é solapado, ao ser absorvido numa hierarquia de significado
diferente; nesse caso, o significado original do destino dos animais é
absorvido numa hierarquia centrada no homem (ADAMS, 2012, s. p.,
ePub).

Nos romances de Ana Paula Maia, essa mesma operação se processa com
relação aos homens e aos animais, e a tudo a sua volta, como as profissões e os
espaços. São inúmeras as estratégias criadas na sociedade para que a existência
dessas categorias jamais seja percebida, ainda que saibamos que existem aterros
sanitários, matadouros, prisões, carvoarias, bem como os humanos e animais que
ali trabalham e vivem – senão o lixo não seria recolhido, a carne não chegaria
embalada em cortes na bandeja e haveria mais dificuldades no funcionamento do
sistema penal e das indústrias termoelétrica e siderúrgica.
Uma dessas estratégias, além da distância física a que já estamos desses
viventes e espaços, é a linguagem, que tende a converter a realidade material em
metáforas controladas. É por isso que os romances de Ana Paula Maia rompem com
o sobrecarregamento de metáforas, para justamente iluminar o referente ausente e
nos colocar a par dos seus processos de objetificação, retalhamento/fragmentação,
consumo e descarte.
92

Podemos afirmar que o referente ausente em suas narrativas domina a


metáfora, oferecendo, assim, ao/à leitor/a, nos termos de Žižek, uma dose de
obscenidade para promover uma experiência com o Real. E nos termos de Karl
Schollhammer (2013, p. 122-123), em seu livro Cena do crime: violência e realismo
no Brasil contemporâneo, estamos aqui diante de uma literatura pornográfica, por
revelar “temas e objetos ligados a tudo o que é excluído e proibido em nossa cultura
– não só o sexo, que hoje já não recebe o mesmo estigma cultural, mas a miséria, a
violência, a loucura e a morte”.
Isso tudo retoma, por sua vez, elementos do realismo ou do “realismo
refratado”, segundo Tânia Pellegrini (2007), já que o real32 nunca é apreensível, ele
é sempre uma realidade traduzida, deglutida, modificada por depender de um meio
para se tornar cognoscível. São diversas as facetas do realismo na
contemporaneidade, conforme explica a professora em seu artigo “Realismo:
postura e método”:

Na primeira categoria [a da crueldade propriamente dita, dolorosa e


sem escapatória], por exemplo, Paulo Lins, Ferréz, Patrícia Melo,
Marçal Aquino e outros semelhantes inserem seu „realismo
naturalista‟, até etnográfico; na segunda [a do exotismo, distante e
estetizada] e terceira [a da melancolia, indiferente e narcísica],
podemos citar Sérgio Sant‟Anna, com a estética do simulacro
mimetizando o universo contemporâneo de imagens e mercadorias,
por onde deambula alheio, e Luiz Ruffato, que reutiliza a
fragmentação, colando, indiferentes uns aos outros, estilhaços de
uma realidade urbana dura e sem fronteiras, ao mesmo tempo quase
exótica em sua desagregação. Ao lado destes, o „regionalismo
revisitado‟ de Milton Hatoum oferece um bálsamo para a crueldade
corrosiva dessa ânsia documental, com o toque de lírica delicadeza
impressa no realismo quase onírico da memória de seus
personagens; ou os pequenos e delicados cortes na realidade de um
quotidiano banal, nos contos de Adriana Lisboa; o realismo
perturbador da História nos romances de Carlos Nascimento Silva;
ou ainda o fundo falso, „papéis dobrados‟, sobre o qual se constrói a
representação do real nas narrativas de Bernardo Carvalho ou Chico
Buarque de Holanda. São exemplos, entre muitos outros, das
múltiplas refrações que o realismo contemporâneo apresenta
(PELLEGRINI, 2007, p. 153).

A prosa de Ana Paula Maia, se aqui quiséssemos classificar sua produção


literária, exemplificaria certamente a primeira categoria, a da prosa realista

32
Os termos real, realidade e realismo utilizados por Tânia Pellegrini não se referem ao Real
de Žižek, mas sim à esfera literária de modelo de representação.
93

naturalista, dolorosa e sem escapatória, afinal, que saída têm esses homens se
alguém precisa fazer o trabalho sujo dos outros, que saída têm esses animais se,
“enquanto tiver uma vaca neste mundo, lá estará um sujeito disposto a matá-la e
outro a comê-la?” (MAIA, 2013, p. 33).
A reflexão sobre essas questões pode dar uma impressão claustrofóbica
para aqueles que anseiam por dicotomias fáceis, inimigos visíveis, resoluções
definitivas. Mas esse é o efeito provocado por seus romances no/a leitor/a ao
promover essa aproximação maior da relação entre a realidade e as suas fissuras.
Nem mesmo a cena mais fabulosa de seus romances, a do suicídio coletivo
das vacas,33 resiste à realidade bruta e miserável da narrativa e, em pouco tempo, o
gado morto é saqueado por esfomeados. É como explica Žižek, retomando os
atentados em Nova York em 2001:

antes do colapso do WTC, vivíamos nossa realidade vendo os


horrores do Terceiro Mundo como algo que na verdade não fazia
parte de nossa realidade social, como algo que (para nós) só existia
como um fantasma espectral na tela do televisor –, o que aconteceu
foi que, no dia 11 de setembro, esse fantasma da TV entrou na
nossa realidade. Não foi a realidade que invadiu a nossa imagem: foi
a imagem que invadiu e destruiu a nossa realidade (ou seja, as
coordenadas simbólicas que determinam o que sentimos como
realidade) (ŽIŽEK, 2003, p. 33).

É dessa forma que podemos entender os romances da escritora, eles


também lançam para a realidade dos personagens possibilidades de expansão do
horizonte antes apresentado apenas pela conjunção entre Simbólico e Imaginário.
Daí a importância do encontro com o Real, pois, ainda que essa experiência seja
traumática, ela permite olhar para o escuro de seu tempo de que fala Agamben
(2009), em seu livro O que é o contemporâneo, que desvincula a ideia tradicional de
contemporaneidade da noção de tempo linear. Segundo o filósofo:

Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo,


para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos
são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros.

33
É verdade que a cena seria mais fantástica se não tive ocorrido situação similar em 2009,
na vila de Lauterbrunnen, nos Alpes suíços, quando 28 vacas caíram ou se atiraram em um
penhasco. A hipótese é a de que uma tempestade possa ter confundido os animais e
ocasionado o fatídico incidente. Contudo, diferentemente do que ocorre na narrativa de Ana
Paula Maia, as vacas foram retiradas de helicóptero, pois não havia animais e nem pessoas
para consumirem-nas (SUÍCA..., 2009).
94

Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa


obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas
trevas do presente. Mas o que significa “ver as trevas”, “perceber o
escuro”?

Olhar para o escuro na literatura, segundo Agamben (2009, p. 63), é como


ocorre na neurofisiologia dos olhos: “a ausência de luz desinibe uma série de células
periféricas da retina, ditas precisamente off-cells, que entram em atividade e
produzem aquela espécie particular de visão que chamamos o escuro”. Produzir o
escuro, portanto, não é mero resultado da ausência de luz, como se fosse uma
atividade passiva ou inerte, trata-se de um produto da ação sensível dessas células.
Ana Paula Maia assim também se coloca em ação, sem se deixar cegar
pelas luzes de seu tempo, percebe o obscuro do presente, as vértebras quebradas,
o dorso fraturado, como no trecho do poema de Osip Mandel‟štam, que se intitula “O
século”: “Meu século, minha fera, quem poderá / olhar-te dentro dos olhos / e soldar
com seu sangue / as vértebras de dois séculos? / Enquanto vive a criatura / deve
levar as próprias vértebras, / os vagalhões brincam / com a invisível coluna vertebral”
(AGAMBEN, 2009, p. 60).
Em todas as narrativas da escritora, percebemos um traço distintivo, a
saber, a preferência por temas subterrâneos, ou seja, aqueles que, embora
presentes no cotidiano, são ocultados de rodas de conversa, são ignorados pela
sociedade em geral e pelo poder público, algo a que a própria escritora já fez
referência em entrevista ao ser questionada sobre os enfoques de suas histórias:

Escrevo sobre assuntos que me causam repulsa, indignação, medo e


até horror. Dois aspectos são fundamentais quando escrevo. O
primeiro é a relação difícil que tenho com o assunto e a outra é a
visão mais política da sociedade sobre tal tema, e suas possíveis
implicações (BELON; FERREIRA, 2012, p. 152).

Aliás, essa abordagem é pouco comum dentro da literatura de autoria


feminina, como mostra a pesquisa “Literatura brasileira contemporânea de autoria
feminina: escolhas inclusivas?”, coordenada por Lúcia Zolin, da Universidade
Estadual de Maringá. A partir de um questionário (Anexo A), o projeto analisou
romances publicados entre os anos 2001 e 2016 pelas três grandes editoras
Companhia das Letras, Record e Rocco. De posse dessas informações estatísticas
referentes a aparência e condições físicas, trabalho e condição socioeconômica,
95

educação, sexualidade, relações sociais, espaço, maternidade/paternidade,


temática, foi possível montar, com ajuda do software Sphinx Survey, um banco de
dados sobre as preferências das autoras nesses romances.
O objetivo central dessa pesquisa,34 que teve como foco a construção de
cada um dos 461 personagens considerados fundamentais para o desenrolar da
trama dos 112 romances, “foi perscrutar se as escolhas dessas escritoras quando do
desempenho da tarefa de representar o outro são inclusivas, no sentido de trazerem
para a cena literária práticas e discursos vedados a seguimentos sociais
marginalizados e/ou de minorias” (ZOLIN, 2018, p. 3).
Dentre os resultados35 que importam aqui destacar, percebemos a tendência
das autoras em se autorrepresentarem nas narrativas por meio da presença
predominante de mulheres (aproximadamente 60%) – sobretudo na posição de
protagonista (aproximadamente 70%). Ana Paula Maia, não obstante, faz o inverso,
investe em personagens masculinos, o que a afasta dessa trajetória de escrita que
busca não só tornar visível a mulher autora e a mulher personagem, mas também
agenciar representações vindicativas de mulheres. Aliás, elas pouco figuram em
seus textos e, quando o fazem, restringem-se a personagens tipo, como a mãe, a
babá, a namorada, a amante, a prostituta, a faxineira, a secretária, a cozinheira ou
as miseráveis famintas que habitam os arredores do matadouro.
Mesmo pouco presentes, elas não escapam da violência que ronda as
narrativas, como um animal à espreita do predador: a mãe de Bronco Gil foi
estuprada pelo pai, a vizinha Dona Zema morreu envenenada pela própria armadilha
criminosa que armou, a irmã de Gerson morreu ao ter-lhe o rim retirado a canivete
por Edgar Wilson, Rosemery foi esquartejada pelo namorado e a filha de Ernesto
Wesley morre em um acidente de carro possivelmente influenciado pela embriaguez
do motorista que é seu irmão. Mas essa não é a realidade em cerca de 85% dos
personagens nos romances do projeto, seja em qualquer um destes papéis: vítima,
criminoso/a, cúmplice, familiar ou parente, parceiro/a amoroso/a ou só amigo/a.
Essa presença quase nula das mulheres na literatura de Ana Paula Maia,
não obstante, tem uma função na narrativa. Trata-se de uma estratégia para compor

34
Os dados aqui disponibilizados se referem à versão do projeto atualizada em 18 de
fevereiro de 2019.
35
Para efeitos comparativos, os dados das personagens dos romances de Ana Paula Maia
neste momento foram excluídos da base de dados.
96

um universo falocêntrico tradicional em suas histórias, no qual quem habita os


espaços e movimenta as engrenagens dos matadouros, dos crematórios, das
carvoarias, dos destinos do lixo e habitam as prisões são os homens
predominantemente, e não as mulheres. Contudo, convém ressaltarmos que isso
não significa dizer que elas não possam ocupar tais espaços, como, de fato, já o
fazem; trata-se apenas de uma estratégia literária para acentuar o androcentrismo
em suas obras.
E aqui já estamos diante de outro elemento distinto que configura seus
romances, a saber, o espaço: em vez do ordinário mundo urbano, que compõe cerca
de 85% das narrativas escritas por mulheres, é o isolamento do espaço rural não
idílico que prevalece, mas sem configurar um universo caipira e sem uma localidade
fixa. À semelhança dos prisioneiros da colônia penal, os personagens “estão no meio
de lugar nenhum” e “do lado de fora, além da vastidão e dos espaços vazios, existe
o silêncio empurrando-os para o nada” (MAIA, 2017b, p. 77). São topografias pouco
literalizadas, literalmente obscenas, no sentido de excluídas das representações
literárias convencionais. Diante dessa escassez, deixa-se de emergir uma dimensão
social, política e ética problemática associada a esses espaços em que a exceção é
o elemento constitutivo fundador. Aliás, é justamente por meio da topografia que se
materializa o exercício paradoxal da soberania, pois é ela que circunscreve o espaço
que inclui e exclui.
Mas, se as mulheres são escassas nos romances da autora, os animais são
abundantes. Sua presença permanente, e não episódica, e cuja existência é tratada
enquanto tema, e não meramente como metáfora ou alegoria, promove uma
abertura a discussões proeminentes da contemporaneidade que tendem a
permanecer limitadas ou frequentemente silenciadas nos discursos teórico-críticos
suscitados e desestabilizados pela e na literatura de autoria feminina. Dentro dos
112 romances da pesquisa, somente os de Ana Paula Maia e o de Regina Rheda
alcançam essa abordagem crítica acerca dos animais, ou seja, trata-se ainda de um
tema pouco explorado na seara literária das mulheres.
Nessa mesma esteira de ausências, podemos citar a marca de
aproximadamente 20% de personagens pobres e miseráveis, em contraposição a
quase 80% de personagens da classe média e da elite, o que nos permite reiterar a
conclusão de Regina Dalcastagnè (2002) em seu artigo “Uma voz ao sol:
representação e legitimidade na narrativa brasileira contemporânea”, o qual parte da
97

inquietação diante da ausência quase absoluta de representantes de classes


populares na narrativa brasileira contemporânea:

De maneira um tanto simplista e cometendo alguma (mas não muita)


injustiça, é possível descrever nossa literatura como sendo a classe
média olhando para a classe média. O que não significa que não
possa haver aí boa literatura, como de fato há – mas com uma
notável limitação de perspectiva (DALCASTAGNÈ, 2002, p. 35).

Diante dessa realidade, não é espanto chegarmos a um rol de profissões


que muitos se distanciam do trabalho sujo dos outros que os personagens de Ana
Paula Maia realizam, são elas: professor/a, empresário/a e estudante, para citar as
três maiores ocorrências. Nem causa estranheza o fato de aproximadamente 25%
dos personagens não apresentarem indícios de ocupação profissional.
Isso influi diretamente nas temáticas, que pouco problematizam a questão
profissional, já que o conflito não está emaranhado nessa esfera ou, ao menos, não
de forma incisiva, como assim podemos ver nos romances de Ana Paula Maia. A
autora traz à baila a violência e questões sociopolíticas de classe, que juntos estão
presentes em apenas 10% dos romances analisados do projeto. A ordem são os
conflitos mais restritos à familia, ao amor e à sexualidade, que representam as
maiores frações das temáticas nessas narrativas, totalizando juntos
aproximadamente 40% das ocorrências.
Convém ressaltar que, apesar dessas recorrências dentro da literatura de
autoria feminina, elas não impedem que perspectivas sociais plurais sejam
apresentadas, pois há também uma diversidade de experiências cotidianas dentro
dessas realidades que permitem realizar leituras potencial ou efetivamente
transgressoras em relação a modelos hegemônicos tradicionais. Contudo, é a partir
desses dados que podemos justificar os deslocamentos de Ana Paula Maia em
relação a essa órbita literária que pouco se arrisca pelos caminhos da violência e a
adentrar universos para além do teto todo seu.

4.3 DAS SINGULARIDADES: ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES

Se Agamben traz a gravura do banquete messiânico com os representantes


da humanidade retratados com corpos humanos e cabeça de animais, em Ana
Paula Maia, na capa de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (Figura 4),
98

temos um crânio humano e o corpo formado pelas imagens da cabeça de um


cachorro e de um porco.

Figura 4 – Capa da edição Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos

Fonte: Maia (2009).

Diante de todas as discussões vistas nesse trabalho, podemos entender


essa imagem não como uma reconciliação entre o humano e o animal, nem como
uma animalização do homem ou uma humanização do animal, mas como vidas
reduzidas, e recortadas como na figura, a um mesmo plano, que não é nem a de
um, nem a de outro, pois ambos tiveram sua alteridade solapada.
Estamos aqui diante de viventes reduzidos a uma matéria inerte, a uma
polpa de carne, músculos e ossos à mercê do sobrevivencialismo biológico que a
gestão biopolítica promove. Corpos violentados em sua dignidade ontológica e
99

reduzidos à noção exótica da besta, da fera ou da besta-fera, que são termos que
sinalizam uma afetividade negativa, por ser atribuído a animais com uma potência
voraz e altamente destrutiva, movidos pela pulsão.
E para problematizar essas questões que representam na literatura escrita
por mulheres o escuro de Agamben, a estratégia em trazer à tona o referente
ausente tem um grande efeito, pois consegue iluminar as fissuras desse contexto
biopolítico e propiciar, assim, o encontro com o Real. Esse é, possivelmente, o maior
alcance de suas obras para a hipótese de subversão da escrita de autoria feminina,
a qual, conforme revelam os dados do projeto de Zolin, pouco enredam a realidade
desses humanos e a desses animais, que muito se assemelham, mas em outro
plano, o do gado laborans.
100

5 CONCLUSÃO

A literatura escrita por Ana Paula Maia reflete sobre a violência presente na
sociedade contemporânea: desde a violência subjetiva (perpetrador individual
identificável), passando pela simbólica (linguagem) até chegar à violência
objetiva/sistêmica (biopolítica). A naturalização desta última é o cerne da crítica de
seus romances aqui analisados, pois é a partir dela que podemos entender que essa
violência opera de maneira imanente, não só de fora ou por cima, mas por dentro.
No primeiro capítulo, investigamos os dispositivos de poder do estado de
exceção que não é imposto por vias subversivas, golpistas ou revolucionárias, mas
de modo rasteiro no dorso da democracia do estado de direito para assegurar não a
constituição, mas o capitalismo. Esse estado captura a vida humana para incluí-la
como animal laborans e, assim, sustentar os cálculos econômicos do sistema, ao
mesmo tempo em que a exclui na forma de homo sacer, portador da vida nua: uma
vida reduzida às necessidades mínimas de sobrevivência e constantemente exposta
à morte sem que nenhuma expiação ou ritual possa resgatá-la dessa condição.
O livro Carvão animal resume esse jogo entre exclusão e inclusão discutido
no primeiro capítulo. Na pequena cidade de Abalurdes, a energia elétrica é gerada
pelo calor dos fornos crematórios da Colina dos Anjos, ou seja, o que alimenta o
conversor termoelétrico que transforma o calor em parte da energia usada no
crematório, no hospital e em alguns estabelecimentos comerciais da redondeza são
os mortos. É a morte gerando a vida, vidas entre o bando soberano e o abandono,
vidas em seu (in)devido lugar.
Já no segundo capítulo, é a figura do animal que foi interrogada, tanto a
partir dos principais argumentos filosóficos da antiguidade e da modernidade, que
sintetizam ideias hierárquicas de superioridade dos seres humanos em relação ao
seres das demais espécies vivas; quanto por meio dos pressupostos basilares da
contemporaneidade a partir do século XX, que introduzem a noção de valor
intrínseco das vidas desses outros viventes. Observamos que uma visão crítica
acerca da dimensão dos problemas ético-políticos sobre as noções e práticas
hierárquicas em relação aos animais está subjacente à postura do narrador dos
romances aqui analisados. E é por isso que não só as perspectivas mais
tradicionais, mas também as mais atuais sobre a categoria animal estão dissolvidas
nas narrativas. Apesar desse olhar do narrador, isso não é suficiente para que os
101

romances de Maia encenem a virada ética tão idealizada por Gary Francione, por
exemplo. Isso porque as formas de dominação estão interligadas, logo, seria preciso
desconstruir a matriz cognitiva moral que retira desses homens o direito à vida e a
torna pura vida nua, afinal, ela é a mesma matriz que nos adestram a ser
indiferentes ao outro animal, sobretudo ao direito de matá-los sem cometer crime.
Diante disso, retomamos questionamentos feitos nesse trabalho: Que saída
tem esses homens se alguém precisa fazer o trabalho sujo dos outros? Que saída
tem esses animais se, “enquanto tiver uma vaca neste mundo, lá estará um sujeito
disposto a matá-la e outro a comê-la?” (MAIA, 2013, p. 33). Esse impasse não é
resolvido na trama, mas não podemos deixar de notar que o suicídio das vacas em
De gados e homens indica uma solução desesperada para romper esse ciclo. De
fato, essa coragem dos ruminantes não é suficiente para dissolver esse impasse, é
preciso coragem sim para olhar para esse outro que se abisma diante de nós, como
ilustra a imagem que encerra o livro.

Figura 5 – O fim De gados e homens

Fonte: Maia (2013, p. 128).


102

Não há uma saída epifânica e redentora para esses impasses dos


romances, mas a autora, conforme postula Jean-Paul Sartre (2004, p. 21) sobre a
função do/a escritor/a, age de tal maneira “que ninguém possa ignorar o mundo e
considerar-se inocente diante dele” e, assim, oferece ao/à leitor/a uma possibilidade
de virada ética, cujo novo paradigma se fundamenta na responsabilidade.
Ana Paula Maia nos convida a pegar a marreta, assim como Edgar Wilson o
faz em relação à estudante que o qualifica indiretamente de assassino ainda em De
gados e homens:

– Como é matar boi o dia inteiro? O senhor não acha que isso é
assassinato? O senhor não acha que sacrificar esses animais é
crime? [...]
– A senhora já comeu um hambúrguer?
A mulher responde que sim com a cabeça.
– E como a senhora acha que ele foi parar lá? [...]
Ele entrega a marreta para a mulher. Ela não entende. Olha
desorientada para ele. Ele insiste e ela a segura. Ele abre a porta do
boxe de atordoamento e a manda entrar.
– A senhora pode descobrir se quiser. Desde o início. Conhecer todo
o processo, não foi pra isso que vocês vieram? (MAIA, 2013, p. 70-
72).

Essa imagem nos remete a Arendt em Eichmann em Jerusalém: um relato


sobre a banalidade do mal. A filósofa chega à seguinte conclusão ao analisar o caso
de Adolf Eichmann, funcionário dos campos de concentração considerado um dos
perpetradores do Holocausto e que se defendeu da acusação de crimes contra a
humanidade alegando que apenas cumpria ordens: “Moralmente falando, não é
menos errado sentir culpa sem ter feito alguma coisa específica do que sentir-se
livre de culpa tendo feito efetivamente alguma coisa” (ARENDT, 1999, p. 321-322).
Ou seja, essa situação nos atravessa e, ainda que não façamos efetivamente algo,
não nos redimimos, pois somos todos cúmplices, em outras palavras, deixamos
acontecer. Assim percebeu Edgar Wilson: Todos são matadores, cada um de uma
espécie, executando sua função na linha de abate” (MAIA, 2013, p. 45).
É dessa maneira que seu romance consegue ser político sem ser militante
ou panfletário, pois, ao lançar luz sobre esses habitantes subterrâneos e sobre os
dispositivos de poder que os confinam nesses espaços invisíveis, suas narrativas
oferecem meios para que o/a leitor/a amplie o modo de (re)pensar suas relações
com outras corporeidades.
103

No terceiro capítulo, discutimos, finalmente, as engrenagens biopolíticas


dessa naturalização da violência simbólica que arrastam humanos e animais para o
solo do mesmo, no qual não há possibilidade de cada um converter-se em sua
própria natureza e desenvolver as potencialidades e especificidades de sua espécie,
pois a vida não lhes pertence. Daí a metáfora do título De gados e homens, que faz
referência ao gado que se tornaram: abatidos diária e indistintamente pelo trabalho
bruto e sujo e induzido pela máquina do capital, que os conduzem em linha reta ao
piquete, isto é, a uma vida sem um horizonte promissor.
De modo semelhante, também discutimos o cenário comum da literatura de
autoria feminina, que se esbarra em algumas tendências, assim como a literatura
brasileira contemporânea: ambas revelam, de forma predominante, um insulamento
dos personagens no mundo urbano e doméstico das classes médias brancas,
heterossexuais, e que podemos resumir com as palavras conclusivas de
Dalcastagnè sobre a sua pesquisa: “nossos romances mal espiam para o lado de
fora, recusando-se a uma interpretação mais ampla dos fenômenos que nos cercam,
como a violência urbana, a exclusão social ou a inserção periférica na globalização
capitalista” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 196).
É claro que existem vozes dissonantes na literatura contemporânea que dão
visibilidade à diferença, assim como a autorrepresentação das mulheres na literatura
de autoria feminina também tem uma importância a ser considerada, a saber:
permitir a construção de personagens femininos subversivos em relação àqueles
erigidos pelo imaginário patriarcal e tornados legítimos pelas práticas de poder, pois,
ao assumir o lugar de fala, pode “deixar de ser objeto de uma produção discursiva
muito consistente, a partir da qual foi sendo estabelecida a verdade sobre sua
„natureza‟” (KEHL, 1998, p. 15).
Contudo, a tendência à autorrepresentação na literatura de autoria feminina
limita o acesso a outridades diversas, pois, se isso é recorrente e a maioria das
escritoras se encaixam em um perfil elitista (branco, classe média, letrado, escritor,
pertencentes a grandes centros capitais etc.), como seria possível representar uma
pluralidade de perspectivas sociais?
É por isso que entendo aqui a escrita literária de Ana Paula Maia como uma
questão de coragem, conforme Agamben assim define o contemporâneo. Isso
porque a autora ousa olhar para o facho de trevas que provém de seu tempo e,
assim, rumo a uma experiência com outras fissuras da realidade, mira, de forma
104

obscena para se aproximar das faíscas do efeito do Real, nos descentramentos do


gênero feminino para o masculino, da espécie animal humana para a animal não
humana, das profissões elitistas para as braçais, da classe média para a pobre, do
papel social familiar para o do trabalhador, do espaço urbano para o rural e de
temáticas sobre família, amor e sexualidade para as de violência e questões
sociopolíticas de classe.
Ainda que os personagens estejam encilhados no estereótipo do homem
bruto – tanto que Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, O trabalho sujo dos
outros e Carvão animal são normalmente referidos como a trilogia dos brutos –, eles
não deixam de significar uma possibilidade de representação desse outro a que
pouco temos acesso na literatura. E esse outro não é o homem urbano de classe
média funcionário público, nem o miserável da periferia desempregado e
marginalizado, mas o pobre trabalhador bruto do subúrbio mais rural, esse
entrelugar, como é o espaço da fazenda do Seu Milo, com os miseráveis famintos de
um lado e a fábrica de hambúrgueres do outro: “Edgar Wilson pensa nos
hambúrgueres enquanto trabalha, enquanto afasta as moscas e limpa os respingos
de sangue do rosto. Lá na fábrica de hambúrgueres a brancura reflete uma paz que
não existe, um clarão que cega a morte” (MAIA, 2013, p. 49).
Por isso chamo aqui a sua Produção Artística Não Convencional de PANC,
em uma comparação com o universo da biologia e suas Plantas Alimentícias Não
Convencionais, pejorativamente conhecidas como “ervas daninhas”. Ambas
irrompem no terreno do que se cultiva tradicionalmente e daquilo que se estabelece
como adequado ao consumo humano.
Pouco encontradas no mercado convencional, sobretudo devido à destruição
de vários biomas e o avanço das monoculturas, as quais, por interesses
econômicos, foram selecionadas para se tornarem mais produtivas, as PANCs são
desprezadas ou mesmo desconhecidas pelo grande público. O resultado disso é a
falta de diversidade nos hábitos de produção e consumo.
No entanto, as PANCs são de grande importância para o seu meio, pois
cumprem uma função peculiar: tendem a brotar nos espaços vazios, conforme as
carências daquele terreno, e resistem às intempéries naturais. Portanto, mais do que
espécies espontâneas, brutas e selvagens, elas revelam um projeto profundo, vital e
urgente que responde a uma necessidade de seu tempo, ainda que esta seja
desconhecida ou ignorada pelas pessoas que nele vivem.
105

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112

ANEXO A

Questionário da pesquisa “Literatura de autoria feminina:


escolhas inclusivas?”
113
114
115
116
117
118
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