Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
MARINGÁ – PR
2019
LÍGIA DE AMORIM NEVES
MARINGÁ – PR
2019
A todas as espécies.
AGRADECIMENTOS
The daily violence suffered by the animals and the subaltern human
characters of Ana Paula Maia's books does not represent a commonplace in the
fictional horizon of contemporary women‟s writings, but, in times of posthumanism,
the discussion of this violence is urgent. On the face of it, this work aims to
problematize the devices of power that reduce these beings to the permanent
condition of naked life and confine them in invisible spaces, both in the contemporary
Brazilian literature written by women and outside of fiction. As a corpus of research,
we analyze the following literary works: Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos
(2009) - composed by the novel with homonymous title to the book and by the one
named O trabalho sujo dos outros –, and Carvão animal (2011), De gados e homens
(2013) and Assim na terra como embaixo da terra (2017). The theoretical and critical
basis of this thesis covers, in addition to both literary criticism and studies,
perspectives of posthumanism and Animal Studies, for answering these questions
from non-hierarchical presuppositions. The study reveals a literature that seeks to
look at the fissures of reality and that, in order to do, operates decentralizations of
gender, species, class, professional occupation, social role, space and thematic; and
it is done by means of a quick, visual, obscene and unpretentious language, easily
recognizable by any reader. With this, it becomes possible to access this arena and
its biopolitical techniques of subjecting the population in favor of the sustenance of
the neoliberal economy, whose success does not occur without the degradation and
the devaluation of ways of life. Thus, we conclude that by the naturalization of
symbolic violence that brings humans and animals to the same plane, in which there
is no possibility of each to convert themselves into their own nature and develop the
potentialities and specificities of their species - because their lives belongs to the
State. Therefore, Ana Paula Maia's literature broadens the ways of thinking about
women‟s writings and invites the reader to re-think their relationship with these other
corporeities. For this reason, we call her literature PANC, either as an acronym for
Non-Conventional Artistic Production, or as an allusion to the universe of biology and
its Non-Conventional Alimentary Plants.
1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 11
3.1 ANTROPOCENTRISMO.................................................................................... 45
3.1.1 “São apenas animais”: filosofias aristotélica e cartesiana........... 46
3.1.2 “Todos são caça e caçador”: heranças do Império Romano....... 50
3.1.3 “A carne proveniente dos céus”: tradição judaica........................ 53
3.1.4 “Sua própria violência nunca permitirá que um dia veja a face
do criador”: doutrina cristã.............................................................. 57
3.2 SENCIOCENTRISMO E BIOCENTRISMO........................................................ 61
3.2.1 “Sentir o campo magnético terrestre”: teóricos iniciais............... 62
3.2.2 “Por trás de algo tão saboroso”: teóricos contemporâneos........ 64
3.3 O SANGUE DAS BESTAS: MAIS ALGUMAS CONSIDERAÇÕES................... 73
5 CONCLUSÃO............................................................................................................... 98
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 104
1 INTRODUÇÃO
1
O termo homem é conscientemente marcado por Ana Paula Maia em seus textos não só
para se referir ao gênero masculino, que é o responsável por executar o tipo de trabalho ali
encenado, mas também para caracterizar melhor esse universo falocêntrico em que as
tramas se passam. Diante disso, neste trabalho, esse termo aqui também será empregado
quando estivermos tratando de reflexões acerca desse cenário.
2
Neste trabalho, entendemos que o ser humano também faz parte da categoria espécie
animal, logo, o termo mais apropriado para se referir a ele seria “animal humano”. Contudo,
para fins econômicos e por essa questão não ser o cerne deste trabalho – questão que não
é só terminológia, mas política e social –, iremos usar os termos “humano” para ser referir
aos animais humanos e “animal” para se referir ao animal não humano.
12
3
“The writing of the posthumanist condition should not seek to fashion „scriptural tombs‟ for
humanism, but must, rather, take the form of a critical practice that occurs inside humanism,
consisting not of the wake but the working-through of humanist discourse. Humanism has
happened and continues to happen to „us‟ (it is the very „Thing‟ that makes „us‟ „us‟, in fact)”.
14
4
De acordo com Jair Santos (2002), o termo pós-humano (Posthuman) foi cunhado por Ihab
Hassan, um norte americano de ascendêcia egípcia, no ano de 1977, em seu ensaio
Prometeus as performer: toward a posthumanist culture.
15
5
O termo foi cunhado recentemente por Valdely Kinupp e Harri Lorenzi e disseminado a
partir da publicação de seu livro Plantas Alimentícias Não Convencionais no Brasil (2014),
mas o conceito já existe há muito mais tempo.
16
6
Como muitos outros trabalhos de Benjamin, o título “Zur Kritik der Gewalt” (1921) também
apresenta um problema de tradução devido à polissemia do termo Gewalt. Encontramos
referências ao título que optam pela tradução de João Barrento, “Para uma crítica do poder
como violência”; outras que usam a forma duplicadora de Willi Bolle, “Crítica da violência –
crítica do poder”; e algumas que assumem o termo violência com toda ambiguidade que isso
possa gerar: “Crítica sobre a violência”, “Crítica da violência”, “Sobre a crítica da violência” e
“Para uma crítica da violência”. Neste trabalho, adotaremos esta última versão, título do
artigo traduzido de Benjamin a que faremos referência.
17
No ensaio “Para uma crítica da violência”, que surge a partir de uma reflexão
sobre a profunda crise das instituições políticas que a Europa vivia no pós-guerra,
Benjamin (2011) reflete sobre o uso de Gewalt nas suas relações com o direito e a
justiça, as quais, por sua vez, só se estabelecem violentamente quando interferem
em relações éticas.
Os domínios nos quais Gewalt atua são definidos pelo filósofo como Gewalt
mítica e Gewalt divina. A primeira usa a violência como meio para instaurar o direito,
o qual é, por sua vez, instauração do próprio poder. E a crítica que Benjamin (2011)
faz à Gewalt mítica é que, nela, o sistema jurídico monopoliza a violência com
relação aos indivíduos não para garantir os fins de direito, mas para assegurar o
próprio direito/poder, configurando, assim, uma violência legal.
O aspecto mítico desta Gewalt, o qual deriva do conceito de destino, é
visível em duas instituições estatais nas quais a lei se apresenta tão ameaçadora
como o destino. Na pena de morte, o Estado não só faz cumprir uma punição a
quem infrigiu a lei, como também funda a lei ao tornar legal a violência que mata, e
esse poder decisório sobre a vida e a morte fortalece o próprio direito. A polícia, por
sua vez, também não funciona somente como instrumento do Estado para fazer as
leis serem obedecidas, pois ela instaura a lei quando, alegando questões de
segurança, age fora da própria lei por meio de decretos afirmados com pretensão de
direito. Em ambas as instituições, percebemos sua força como mantenedora e
instauradora do poder, o que vai gerar a violência legítima (BENJAMIN, 2011).
Do outro lado, o filósofo apresenta a Gewalt divina, que tem a função de se
opor à mítica, assim como os domínios de Deus se opõem ao mito. Trata-se de uma
7
MAIA, Ana Paula. Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. Rio de Janeiro: Record,
2009. p. 135.
18
violência que busca justiça, e não poder. E é por meio dela que Benjamin acredita
que se possa impedir a sucessão de catástrofes do poder mítico (BENJAMIN, 2011).
Um exemplo dessa violência divina é a ação da greve geral proletária ou
revolucionária. Ela busca aniquilar o poder do Estado (poder mítico) por meio de
uma transformação absoluta e sem perspectivas de volta ao trabalho após
concessões externas superficiais sobre as condições dos trabalhadores. Em outras
palavras, a retomada do trabalho só é possível se ele estiver transformado, sem
coerção do Estado – tal como seria do ponto de vista teológico, afinal os
mandamentos de um Deus divino não estão subordinados à lei coercitiva.
Essa ação se difere da greve política, pois esta se mostra ainda
comprometida com o poder enquanto sistema que se reproduz. Sindicatos e
organizações oficiais, ao paralisar o automatismo do mito, atuam, na verdade, como
instauradores do direito, e não como aniquiladores dele, uma vez que não rompem
com o continuum de uma história de opressão (BENJAMIN, 2011).
Dito dessa forma, podemos compreender melhor, então, a polissemia do
termo Gewalt, a qual pode, de um lado, representar um problema de ordem teórico-
conceitual para a compreensão do texto, como muitos autores/as apontam; mas, por
outro, pode reafirmar quão imbricadas estão essas noções de violência e poder
político – como era o objetivo de Benjamin, que não fez questão de diferenciar o uso
da palavra. Portanto, Gewalt é tanto violência que instaura e mantém o poder/o
direito, violência legítima que possui um caráter violento no sentido de atuar em
favor próprio e contra a mera vida; como também é violência que aniquila o poder/o
direito, violência ilegítima que se distancia desse poder sangrento sobre a vida.
Os personagens de Ana Paula Maia não se encontram nesse espaço de
Gewalt que aniquila o poder. Ainda que o conflito da novela O trabalho sujo dos
outros seja a greve deflagrada pelos lixeiros, trata-se ali de uma greve política, pois
a violência legítima continua vigente, aquela que o estado autoriza como direito
dos/as trabalhadores/as, visando apenas reformar a ordem existente.
8
MAIA, Ana Paula. Assim na terra como embaixo da terra. Rio de Janeiro: Record, 2017b.
p. 7.
9
O termo estado de exceção possui terminologia variada: é conhecido como estado de
necessidade na doutrina alemã; lei marcial e poderes de emergência na anglo-saxônica;
decretos de urgência e estado de sítio nas italiana e francesa.
21
Essa ideia pode ser observada nos romances de Ana Paula Maia, em
especial no livro Assim na terra como embaixo da terra, que insere os personagens
nesse espaço do estado de exceção, um locus de absoluto vazio de direito, um
vacuum jurídico nos termos de Nissen (AGAMBEN, 2004, p. 76).
Ambientado em uma colônia penal de segurança máxima, o livro narra a
história de alguns detentos que ali esperam a visita do oficial de justiça para
transferi-los a um outro espaço de detenção, já que o presídio está em vias de
desativação. Com o passar dos anos em confinamento, a sanidade mental do
diretor, Melquíades, fica comprometida e ele converte o espaço dentro dos muros
em um campo de extermínio: “Melquíades não deixará ninguém ir embora, [...] e, por
fim, acabará também com a própria vida. Ele jamais poderia viver em sociedade
novamente, foi corroído pelo sistema que defende” (MAIA, 2017b, p. 68).
Quando o diretor recebeu o comunicado de desativação da colônia penal,
ainda havia 42 homens. Foi a partir desse episódio que ele começou a caçar os
detentos, aplicando com o seu rifle tcheco CZ.22 o que ele chamou de medida
socioeducativa, “consumido por uma fúria que desestabilizou sua razão
permanentemente” (MAIA, 2017b, p. 71). Antes disso, somente eram mortos os
presos que ameaçavam a boa convivência no local e aqueles cujas ordens de
extermínio vinham por escrito.
23
É por isso que Bronco Gil e Pablo concluem que o oficial não virá e que não
foram enviados para este lugar para concluir suas penas, mas para serem
executados: “– Eles vão deixar a gente aqui. Viemos pra cá pra morrer, ainda não
perceberam isso? – diz Pablo com a voz carregada de ira” (MAIA, 2017b, p. 60).
Essa é “uma alegoria perfeita do estado de exceção”, observa Márcia Tiburi na orelha
do livro, afinal, dos 42 condenados considerados perigosos – daquele tipo que quanto
maiores os muros que os separam da sociedade, melhor –, restaram apenas Bronco
Gil, Valdênio, Pablo e Jota.
A colônia penal assim se converte em um campo de extermínio, como nos
campos nazistas, tanto que a frase inscrita no frontispício da colônia é inspirada nas
frases comuns à entrada de muitos deles, como a própria autora confirma em
entrevista: “Eu tirei justamente dessa inscrição dos portões dos campos de
concentração, que é „O Trabalho Liberta‟, ou algo assim. E no livro é „A correção nos
torna livres‟, diretamente fazendo uma menção aos campos de concentração
nazistas.” Segundo o próprio protagonista Bronco Gil, essa frase significa: “eles
corrigem a gente com uma bala na cabeça, e somos livres quando morremos. É isso
o que diz aí em cima” (MAIA, 2017b, p. 132).
Essa referência aos campos também pode ser lida desde a própria capa das
edições argentina e brasileira. Na primeira (Figura 1a), a imagem de uma cerca
farpada tingida em preto e com um detalhe em vermelho na ponta de uma das
hastes que a sustenta sugere que os limites físicos ali impostos serão testados com
a própria vida. Na segunda (Figura 1b), a imagem de uma cabeça de javali
atravessada na capa da edição em português é um prenúncio da condição de
extermínio a que os personagens ali serão lançados: sendo o javali um animal cuja
caça é legalizada pelo IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis), por se tratar de um mamífero que não tem predadores
naturais no Brasil, e também por ser considerado uma das piores pragas do mundo,
os prisioneiros da história também serão caçados, e o massacre será inevitável.
24
a) b)
que ninguém quer lembrar que existem, ver ou sentir seus odores” (MAIA, 2017b, p.
97). Por isso a afirmação de Agamben (2004) de que no estado de exceção vige
uma força de lei sem lei e que, portanto, deveria ser escrita como “força de lei”.
Percebemos o campo, portanto, não como uma anomalia, ou um fato
histórico que pertence a um passado distante, ou mesmo uma lição “aprendida” que
não irá se repetir, mas sim como um espaço político que mantém fortes relações
com o mundo contemporâneo. O próprio romance ilustra essa questão a partir das
especulações em torno da colônia: o lugar não só representa no presente da
narrativa um campo de extermínio, como já o foi no passado, há mais de cem anos,
quando os escravos que ali viviam foram torturados e mortos.
É nesse contexto que se instaura o locus perfeito para o gerenciamento do
refugo humano onde tudo é possível, tal como o é nos campos de concentração. Ali
na colônia penal, o princípio regente do domínio totalitário é exatamente o dos
campos, pois as pessoas que estão nesse espaço de suspensão da lei adentram
uma zona em que não se distinguem a exceção e a regra, o que é lícito ou ilícito,
levando a ordem superior a agir de forma arbitrária, como reconhece o agente
Taborda ao reportar os ocorridos da colônia para o oficial de justiça, que chega no
fim na narrativa: “Fomos longe demais, senhor” (MAIA, 2017b, p. 122).
10
MAIA, Ana Paula. Carvão animal. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 77.
26
passar muito bem, e até melhor, sem você. Não há uma razão auto-
evidente para você existir nem qualquer justificativa óbvia para que
você reivindique o direito à existência. Ser declarado redundante
significa ter sido dispensado pelo fato de ser dispensável – tal como
a garrafa de plástico vazia e não-retornável, ou a seringa usada, uma
mercadoria desprovida de atração e de compradores, ou um produto
abaixo do padrão, ou manchado, sem utilidade, retirado de linha de
montagem pelos inspetores de qualidade. “Redundância” compartilha
o espaço semântico de “rejeitos”, “dejetos”, “restos”, “lixo” – com
refugo (BAUMAN, 2005, p. 20).
Os livros de Ana Paula Maia podem atrair os/as leitores/as pela banalização
da violência, tanto que é comum encontrar referências às suas obras como pulp
fiction. Trata-se de um gênero cuja origem deu-se no período entreguerras nos
Estados Unidos e que exerceu grande impacto no desenvolvimento da literatura
estadunidense. Sobre isso, reflete o escritor de pulp fictions Samir de Machado em
sua coletânea Ficção de polpa – volume 1, que reúne narrativas desse gênero
escritas por homens e mulheres:
11
MAIA, Ana Paula. Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos. Rio de Janeiro: Record,
2009. p. 66.
34
Da mesma forma, no Brasil, embora uma Pulp Era não tenha ocorrido tal
como nos Estados Unidos, alguns escritores canônicos, como Érico Veríssimo,
Nelson Rodrigues e Guimarães Rosa, e outros esquecidos ou desconhecidos, como
Humberto de Campos, Adelpho Monjardim e Amândio Sobral, aproximaram-se de
temas e enredos típicos das revistas de polpa, conforme Júlio Fraça (2013), em seu
artigo “Ecos da Pulp Era no Brasil: o gótico e o decadentismo em Gastão Cruls” .
Peter Haining, em seu livro seminal sobre o estudo da literatura pulp, The classic Era
of American pulp magazines, identificou seis categorias temáticas a partir de seis
revistas:
12
“Nor was respectability enhanced by the novel‟s first appearance in paperback, for it was
offered in as pulp fiction, a genre that beckoned with promises of illicit pleasure.”
35
13
De acordo com o professor e pesquisador Júlio França (2013), em seu artigo “Ecos da
Pulp Era no Brasil: o gótico e o decadentismo em Gastão Cruls”, as pulp fictions começaram
a desaparecer das bancas no final dos anos 1950, devido a fatores como: saturação do
mercado por títulos similares, aparecimento da televisão e aumento dos preços das revistas
por conta do contexto de crise desse período entre guerras. O formato digital é o que tem
garantido a sobrevivência das pulps hoje.
36
que esmiúça seu rosto, transformando-o em uma massa disforme”. E como Edgar
Wilson precisava encontrar um jeito de compensar o porco a menos que recebeu da
carga do dia, “rasga Pedro ao meio, remove seus órgãos e fica admirado pelo seu
peso. Pedro vale tanto quanto a maioria dos porcos, e suas tripas, bucho, bofe,
compensaria a perda do outro porco”. E para terminar, ainda “moeria os restos
mortais no triturador junto com os ossos da saca e venderia para a fabricação de
ração para cães” (MAIA, 2009, p. 26-28).
O segundo capítulo, “Até cães comem os próprios donos com lágrimas nos
olhos”, mostra a morte de Marinéia. Seu irmão Gerson está com insuficiência renal e
decide, então, pegar de volta o rim que havia doado há um ano para sua irmã. Há
uma urgência nessa empreitada, pois, como Marinéia está fazendo quimioterapia, o
rim poderia ser danificado muito em breve: “Retalhar Marinéia nunca foi sua
intenção, mas era difícil conduzir precisamente o canivete [...]. Corta o tubo fino e
longo que sai do rim, seguido de um espirro, deslizando desgovernadamente o
canivete à aorta abdominal, que se rompe.” Na banheira, o pequeno chiuaua
“lambuza-se no sangue de Marinéia, permanecendo dentro da cavidade exposta. Ele
mastiga sua robusta carne com lágrimas nos olhos enquanto a devora em pequenas
dentadas” (MAIA, 2009, p. 38-40).
No terceiro capítulo, “Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos”, temos
dois momentos. Primeiro, a morte de uma desconhecida, que bate o carro na árvore
devido a um porco na estrada: “Edgar vê uma mulher de meia-idade, desconjuntada
entre as ferragens e com algumas fraturas expostas [...]. Tem sangue na boca,
saindo dos ouvidos, e muito mesmo escorrendo da cabeça.” Depois, o fim da saga
do resgate do rim: “– E o teu rim que tava com tua irmã? Tá onde? – Deixei no
congelador até achar a porra de um médico que o colocasse no lugar e meu pai
fritou ele com cebolas [...]. Achei melhor não dizer nada. Eles pensaram que era
fígado de boi” (MAIA, 2009, p. 48, 52, 55).
Já no quarto capítulo, “Abatedores clandestinos e porcos na caçamba”, além
de Edgar Wilson ter batido o recorde em abater porcos (33 em uma hora), ter
confessado a Gerson que matou a própria namorada Rosemery e que a deixou ser
devorada por porcos famintos, ele aceita participar do plano de sequestro de um
desconhecido e que termina em tragédia: um caminhão atinge a traseira do carro
que levava o homem no porta-malas e, para livrar-se do corpo, lança-o aos porcos,
37
“– Esses bichos comem de tudo... tudo mesmo [...] E nunca deixam vestígios”
(MAIA, 2009, p. 66).
Por fim, no quinto capítulo, “Porcos são incapazes de olhar para o céu”,
Edgar Wilson perde seu cão de rinha favorito, Chacal, e seu melhor amigo, Gerson.
Chacal morre em um duelo: “os cães saltaram um de encontro ao outro e trombaram
com fúria no ar. A fúria crescia quanto mais o cheiro de sangue dos cães se
misturava ao chão da terra. [...] Chacal é retirado quase aos pedaços.” E Gerson,
diante das dores diárias causadas pelo problema nos rins, envenena-se para
apressar sua morte inevitável: “Avança para a frente em sinal de vômito, coloca a
mão na boca e segura as entranhas de escapulir. Embaralha as pernas e cai no
chão em convulsão” (MAIA, 2009, p. 84-85).
Em cada capítulo, somos expostos a um excesso de violência a que parece
seguir a exaustão e consequente banalização dos efeitos dessa violência. Essas
imagens expostas e abjetas, imagens de morte, dor e sofrimento, podem se perder
em seu excesso e serem confundidas com produtos de consumo superficial. No
entanto, a literatura de Ana Paula Maia estaria assim reduzida a essa gratuidade de
passagens, configurando o que Roland Barthes define como texto de prazer?
Em seu livro O prazer do texto, que traz uma proposta de leitura enquanto
jogo erótico, caracterizando o texto como uma possibilidade de construção
ambivalente, o crítico literário contrapõe o texto de prazer (plaisir) ao texto de fruição
(jouissance).14 Enquanto aquele proporciona uma leitura conforme e fluente, pois
não rompe com a cultura, apenas contenta, enche, dá euforia; este desconforta, uma
vez que põe em discussão as bases históricas, culturais, psicológicas da sociedade,
levando o/a leitor/a a questionar seus gostos e valores (BARTHES, 1987).
De modo geral, a narrativa pulp, em uma leitura superficial, pode até parecer
que esteja intimamente relacionada ao texto de prazer, por oferecer, em primeiro
plano, uma experiência de entretenimento, isto é, um texto gratuito ligado a uma
prática confortável de leitura. Entretanto, retomando a própria reflexão de Barthes, a
de que a única coisa gratuita seria a própria destruição da escrita, isto é, não
escrever, devemos olhar para além do dizível, pois a fruição está interdita, isto é,
14
Barthes (1987, p. 7, 27) admite que os termos prazer e fruição podem se apresentar, por
vezes, de modo ambíguo, fato este que leva o prazer a ser ora extensivo à fruição, ora a ela
oposto, tanto que ele próprio admite: “terminologicamente isto ainda vacila, tropeço,
confundo-me”. Apesar disso, Barthes ainda acredita que é possível traçar uma distinção
entre os dois tipos de texto.
38
“ela só pode ser dita entre as linhas”, conforme ele explica remetendo a Jacques
Lacan (BARTHES, 1987, p. 30).
Slavoj Žižek, também influenciado por Lacan, alerta sobre isso em seu livro
Violência: seis reflexões laterais, que discute formas de violência a partir da
premissa de que a violência visível em nossa sociedade é produto de uma violência
oculta, estruturante do sistema político e econômico:
Podemos pensar, então, com relação à literatura pulp de Ana Paula Maia,
que é justamente na extenuação da violência subjetiva que se encontra a vontade
de fruição dos seus textos, pois, se olharmos para além da realidade das sensações
efêmeras de horror provocadas por essa polpa de sangue, podemos enxergar os
aspectos ideológicos fundantes da narrativa. Ou seja, é da necessidade de chocar
o/a leitor/a com a saturação de violência subjetiva que se revela as intenções do
texto, cujo destaque que aqui fazemos é para a problematização da violência
objetiva que reduz o indivíduo à vida nua, restando-lhe apenas seu corpo e sua força
de trabalho para ser oferecida em troca de sua sobrevivência.
15
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 16.
41
Por isso Arendt (2016, p. 400) chega à seguinte conclusão em seu livro A
condição humana, que analisa como a vida do ser humano foi reduzida às atividades
estritamente vinculadas às suas necessidades vitais com a consagração do trabalho:
“é perfeitamente concebível que a era moderna – que teve início com um surto tão
promissor e tão sem precedentes de atividade humana – venha a terminar na
passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu.”
Sob a perspectiva arendtiana, o ser humano, ao ser arremessado no mundo
moderno, chega ao último estágio da sociedade de empregados, aquele em que
seus membros são reduzidos a um funcionamento puramente automático, “como se
a vida individual realmente houvesse sido submersa no processo vital global da
espécie e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar”
(ARENDT, 2016, p. 400).
É dessa forma como se comportam os protagonistas de Ana Paula Maia:
Erasmo Wagner nunca se sente triste ou só. Não sabe o que é sofrer
por amor. Não busca um sentido para a vida. Seus pensamentos são
claros e objetivos. Ele cumpre seu dever e busca sobreviver.
[...] É um homem expurgado e permanecerá recolhendo o lixo dos
outros, como uma besta de fardo, estéril, híbrida, que não questiona
(MAIA, 2009, p. 122, 158).
Edgar Wilson também não se importa com sua rotina, nem ao menos
reclama da vida, e até “contenta-se, porque sua vida é mesmo boa”; ele “sempre
acreditou que a Providência Divina se encarrega do fardo por demais pesado”
(MAIA, 2009, p. 16, 27).
De forma semelhante, o narrador de Carvão animal também conclui,
referindo-se aos funcionários do crematório onde trabalha o protagonista Ronivon:
“são sujeitos muito simples, sem ansiedade aparente e que suportam fardos em
silêncio” (MAIA, 2011, p. 63).
Trata-se da vitória do animal laborans, uma vida permanentemente sujeita à
necessidade, e o necessário é apenas trabalhar, isto é, “garantir a continuidade da
vida de cada um e de sua família” (ARENDT, 2016, p. 399). Essa segurança, no
entanto, significou a criação de condições justificáveis à prática da violência pelo
Estado, como também reconhece Duarte, ao afirmar a ascenção do animal laborans
como o denominador comum à violência das democracias ocidentais e das
dominações totalitárias nazista e stalinista:
42
16
No Brasil, circulou por muitos anos a tradução “labor, trabalho e ação”, tríade arendtiana
que corresponde aos seguintes termos em inglês, alemão e francês: para labor, labor,
Arbeit, travail; para trabalho, work, Werk ou das Herstellen, l’oeuvre ou l’oeuvrer; e para
ação, action, das Handeln, l’action ou l’agir. Desde 2010, as traduções brasileiras passaram
a optar pela forma “trabalho, obra e ação”, versão que aqui também adotamos.
43
A literatura de Ana Paula Maia traz luz à história de homens a quem coube
até então viver neste estado de exceção que reclama pelo predicado de perenidade
e no qual esses sujeitos padecem pela escassez de politização dos seus direitos. A
condição em que vivem é propícia para gerar depósitos do refugo humano, porque o
estado de exceção sustenta a economia neoliberal, cujo sucesso não ocorre sem a
degradação e a desvalorização de modos de vida.
São personagens que se apresentam virtualmente como hominis sacri, vida
nua, porque a relação de bando, isto é, a força simultaneamente atrativa e repulsiva
que liga os dois pólos, vida nua e poder, pode ser percebida na sua composição. A
partir do momento em que o estado de exceção tornou-se a regra, a vida foi captada
em seu estado mais elementar para ser transformada em um objeto de
gerenciamento do Estado conforme os cálculos de custo e benefício estabelecidos
pela dinâmica das relações de produção e consumo.
É por isso que os personagens se encontram entre o banimento da
sociedade pelo poder soberano e a exposição à violência e morte por justa causa.
O/a leitor/a é apresentado/a, assim, a essa violência objetiva, uma violência
anônima, legítima e necessária para que as engrenagens do sistema funcionem, tal
como reflete Pedro Lyra (1980, p. 34): “o que ocorre com a violência é semelhante
ao que ocorre com a inflação: se todos saíssem perdendo, ela já teria acabado”.
Nesse espaço de violência objetiva, o trabalho é exaltado como seu maior
valor, por isso esse grupo social não pode ser considerado como o “lado de fora” da
sociedade, visto que ela não pode ser definida sem os seus “marginalizados”,
45
A partir do século XXI, a questão animal tem assumido uma posição mais
central em debates de diferentes áreas do conhecimento. Isso se deve ao momento
atual, que impele uma tomada de consciência mais ampla, a qual não se restrinja a
preocupações de ordem ecológica, mas alcance a dimensão dos problemas ético-
políticos que envolvem nossas relações com as demais espécies viventes.
No que tange à literatura, também é a partir desse século que as relações
entre animais humanos e não humanos começam a se delinear mais efetivamente.
Ana Paula Maia tem explorado tal discussão, como evidencia o próprio título do seu
livro mais crítico sobre o assunto: De gados e homens. A história de Edgar Wilson
no abatedouro de gado traz à baila discussões sobre o especismo, as quais
permitem refletir sobre o fato de os animais serem tratados, poderíamos dizer, como
vidas nuas em um contínuo estado de exceção, tal como visto nas personagens
humanas dos romances da escritora.
Se no capítulo anterior exploramos a condição permanente de mera vida a
que chegam aqueles homens, neste buscamos entender como se dá esse processo
em relação aos animais. Afinal, eles não deveriam ter um fim em si mesmo? Ou
seja, ter um valor que fosse independente de sua utilidade para os seres humanos?
Para refletir sobre essas questões, vamos percorrer as principais ideias sobre as
éticas antropocêntrica, senciocêntrica e biocêntrica, a fim de compreender como se
deu esse sistema ético predominante em que o valor intrínseco da vida dos animais
não humanos é desconsiderado, e como isso transparece nas narrativas da autora.
3.1 ANTROPOCENTRISMO
17
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 115.
18
Convém lembrarmos que Aristóteles reconhece um nível não desprezível de racionalidade
própria dos animais, mas não suficiente para retirar o homem de sua posição privilegiada
em relação a eles.
48
[os animais] não sentem prazer nem dor, nem nada. Embora possam
guinchar quando cortados por uma faca, ou contorcer-se no esforço
de escapar do contato com um ferro quente, isso não significa,
segundo Descartes, que sintam dor nessas situações. São
governados pelos mesmos princípios de um relógio (SINGER, 2008,
p. 227).
49
Edgar apanha a marreta. O boi caminha até bem perto dele. Edgar
olha nos olhos do animal e acaricia a sua fronte. O boi bate uma das
patas, abana o rabo e bufa. Edgar cicia e o animal abranda seus
movimentos. Há algo nesse cicio que deixa o gado sonolento,
intimamente ligado a Edgar Wilson, e dessa forma estabelecem
confiança mútua. Com o polegar lambuzado de cal, faz o sinal da
cruz entre os olhos do ruminante e se afasta dois passos para trás. É
o seu ritual como atordoador. Suspende a marreta e acerta a fronte
com precisão, provocando um desmaio causado por uma hemorragia
cerebral. O boi caído no chão sofre de breves espasmos até se
aquietar. Não haverá sofrimento, ele acredita. Agora o bicho
descansa sereno, inconsciente, enquanto é levado para a etapa
seguinte por outro funcionário, que o suspenderá de cabeça para
baixo e o degolará (MAIA, 2013, p. 11-12).
– Zeca, coloca o boi pra dormir, entendeu? Não deixa o bicho sofrer.
Zeca apanha a marreta, faz sinal para que o funcionário deixe o boi
entrar. Quando o animal fica frente a frente com ele, a marretada
propositalmente não é certeira, e o boi, gemendo, caído no chão, se
debate em espasmos agonizantes. Zeca suspende a marreta e
19
Sobre a palavra consciência, Descartes nunca a usou efetivamente, pois era
“desconhecida na língua francesa da época. Ele não diz „Somos conscientes de‟, mas
„Somos imediatamente cognoscentes de‟ [...] ou „Temos conhecimento atual de‟” (WOLFF,
2012, p. 300).
50
a) b)
c) d) e)
Fonte: a) Maia (2013); b) Maia (2016a); c) Maia (2015a); d) Maia (2015b); e) Maia (2016b).
51
20
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 136.
52
O dogo argentino era mais jovem que Chacal, tinha a força do cavalo
e a rapidez do leopardo. Edgar Wilson sabia que havia perdido todo
o seu dinheiro na aposta, sabia desde o início. O cão também sabia
que entraria na arena para morrer, mas morreria como herói. [...]
Quando olha para a arena, Chacal é retirado quase aos pedaços por
Tanganica. É levado para os fundos do ferro-velho e deixado lá até
ser enterrado por seu dono, que cravou uma cruz de madeira com
seu nome e data de nascimento, ao lado de outras cinco cruzes, de
outros cinco cães. Porém, ainda havia espaço para muitas outras
cruzes e sacrifícios (MAIA, 2009, p. 84-85).
um corte substancial entre “os de dentro” e “os de fora”, aqueles cujas vidas
merecem consideração legal e moral e, de maneira oposta, os outros.
21
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 123.
55
jugulares do animal sem encostar em suas vértebras cervicais, para promover a sua
inconsciência e insensibilidade imediata.
Apesar desse empenho em não provocar dor, tais normas não são prescritas
com vistas ao bem-estar animal. De acordo com Felipe (2003, p. 26), “a tradição
judaica não funda o princípio da tza’ar ba’alei hayyim (não crueldade, não violência)
em qualquer conceito de direitos morais ou legais para os animais”. Isso porque,
para os judeus, os animais sofrem de incapacidade jurídica, tese utilizada como
artifício para não cincunscrever na esfera dos direitos e no âmbito da igualdade os
viventes indesejáveis (os negros, as mulheres, as crianças, os idosos senis, os
deficientes mentais e os animais).
As leis judaicas estão preocupadas sobretudo com a proteção da moralidade
do humano, pois acreditam que o hábito da crueldade contra animais pode levá-lo a
praticar o mesmo contra humanos. Isso explica a necessidade de escoar todo o
sangue da carne durante o abate, pois, sendo ele considerado a própria vida da
criatura, isto é, sua alma, ingeri-lo significaria um ato bárbaro. E também justifica a
exclusão da carne suína da dieta judaica, porque, sendo ela biblicamente impura, ao
comê-la, o ser humano estaria predisposto à degeneração de suas virtudes.
Essa tradição ainda permanece na atualidade, alicerçada sobretudo no
mercado internacional, que até lançou o selo Kosher para produtos industrializados
que obedecem às leis judaicas. A carne Kosher, sendo uma dessas mercadorias,
atende não só a consumidores judeus, mas a outros interessados em um produto
selecionado, já que a carne passa por uma avaliação diferenciada para verificar se o
animal estava saudável e garantir, assim, um produto de qualidade. Dessa forma,
tem-se a transmutação dos critérios religiosos para os de saúde.
Em De gados e homens (2013), a fazenda de Seu Milo recebe um
carregamento de vacas libanesas entre as quais estão misturadas acidentalmente
algumas vacas israelenses. Nesse episódio, o grande conflito é conseguir separar
ambos os grupos de vacas pertencentes a países inimigos e evitar, dessa forma,
maiores problemas, já que essas vacas vão para um frigorífico que só fornece carne
para libaneses.
É evidente aqui o peso do conflito entre Israel e Líbano, países que,
sobretudo desde a década de 1980, mantêm uma relação marcada por tensões,
conflitos e guerras, tanto que, desde 2018, Israel deu início à construção de um
muro fronteiriço entre ambos os países, exceto em regiões consideradas de disputa,
56
Essa cena fictícia pode nos levar a outras reais, como a polêmica do
transporte de gado vivo em navios-curral ou navios boiadeiros para a Turquia que
gerou grande polêmica no Brasil em fevereiro de 2018. Atendendo a interesses de
mercado impulsionados por uma demanda religiosa, que prevê regras mais rígidas
para o abate do animal, a mercadoria precisa ser entregue viva e, por isso, questões
referentes a condições de transporte devem ser examinadas.
Na ocasião, houve a denúncia de maus-tratos alegados por ativistas da
proteção animal e confirmados por perícia técnica, a qual levou a uma decisão
liminar proibindo a saída do navio. Segundo a vistoria da veterinária, foram
constatados nos andares inferiores dos treze pisos do navio a seguinte condição,
muito semelhante à descrição dos dejetos e do espaço lida logo acima:
3.1.4 “Sua própria violência nunca permitirá que um dia veja a face do
criador”22: doutrina cristã
22
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 85.
59
utilizem das plantas, frutos, legumes e cereais para alimentar-se, ou seja, de tudo
que sai da terra, conforme Gênesis, 1: 29-30:
com homens e restos de vísceras animais ali atirados indistintamente. “O rio está
morto” (MAIA, 2013, p. 101).
23
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 27.
64
Michel de Montaigne (1533-1592) rompeu com a linha divisória moral que separava
seres dignos de respeito de seres não dignos de consideração moral, por entender
que os animais são capazes de sentir dor e prazer. Segundo Felipe (2003, p. 53), é
de Montaigne, inclusive, “que parte a primeira crítica dentre os filósofos modernos
contra a prática de atos cruéis contra os animais, em nome dos animais, e não no
interesse e benefício econômico e moral dos humanos.”
No século XVII, com Thomas Tryon, é apresentada a primeira crítica
explícita sobre direitos animais e sobre a necessidade de sua inclusão no âmbito da
justiça. Essa tese volta a ser sustentada no final do século XVIII, pelo teólogo
Humphry Primatt (1735-1776),24 em seu livro A Dissertação sobre o dever de
compaixão e o pecado da crueldade contra os animais brutos. A obra é um apelo ao
aperfeiçoamento moral do humano com a inclusão dos interesses dos animais em
nossa esfera de consideração moral, afinal, para o autor, eles também são
vulneráveis à dor: dor é dor, e é crueldade e injustiça quem provoca sofrimento no
ser humano ou animal, “„quando não foi cometido nenhum crime; e quando não há
finalidade alguma que o justifique, mas, simplesmente, para exibir poder ou
satisfazer à malícia‟” (LINZEY, 1995, p. 16, apud FELIPE, 2003, p. 63).
E no século XIX, essa noção é finalmente assentada na ética pelo advogado
e filósofo Jeremy Bentham (1748-1832), que é considerado o responsável por
incorporar o princípio do tratamento humanitário aos animais, isto é, o da igual
consideração de interesses como um princípio moral básico. Em outras palavras, a
ética aqui defendida em seu livro Uma introdução aos princípios da moral e da
legislação somente existe a partir do momento em que os princípios da
consideração moral são estendidos a todos os seres sensíveis.
Com Charles Darwin (1809-1882), voz proeminente sobre a teoria da
evolução, temos uma importante revolução científica quando ele escreve A origem
das espécies. O livro defende a tese da existência de um ancestral comum ao Homo
sapiens e ao chipanzé e gorila, todos pertencentes à mesma subfamília: homininae.
Ou seja, a teoria rompe com o princípio aristotélico da imutabilidade do universo ao
entender que as espécies vivas podem gerar descendentes distintos de seus
24
O livro de Primatt foi elaborado em 1776, replicado em 1892 por Henry Salt no livro Animal
Rights e reeditado somente em 1992 por Richard Ryder. A consulta a esse material só foi
possível em decorrência da obstinação e paciência da filósofa Sônia Felipe, que aguardou
ainda mais cinco anos para ter em mãos um exemplar usado dessa edição de Ryder.
65
quando surgem inúmeros movimentos sociais que não só lutam pela libertação de
todos os seres vulneráveis à exploração, ao abuso e à violência, mas também
reivindicam uma profunda reformulação dos códigos simbólicos e culturais
dominantes. São códigos alicerçados em divisões binárias, como homem e mulher,
heterossexual e homossexual, sagrado e profano, autonomia e heteronomia, branco
e negro, ser humano e natureza, animal racional e animal não racional.
É nesse contexto, o dos movimentos antirracistas, pacifistas, feministas e
dos direitos civis e LGBTs, que ganham força as discussões acerca dos animais,
sobretudo a partir da década de 1970, quando surge, na Inglaterra, o conhecido
Grupo de Oxford, formado por Stanley Godlowitch e Roslind Godlowitch, Richard
Ryder, Peter Singer, John Harris, Andrew Linzey e Stephen Clark. Partindo dos
referenciais de Primatt, Bentham e Salt, o Grupo defendia a liberdade e igualdade
para os animais no meio acadêmico e na luta política. E os nomes proeminentes que
continuaram esse debate teórico e crítico contra o especismo no século XX, além de
Peter Singer (1946-), são Tom Regan (1938-2017) e Gray Francione (1954-).
Singer impulsiona a filosofia moral tradicional acerca dos animais ao
apropriar-se do princípio de igual consideração de interesses, desenvolvido por
Primatt em 1776. Em seu livro Libertação animal, que se tornou o texto base para
todo movimento pela libertação dos animais na Europa e nos Estados Unidos na
década de 1980, o autor esclarece que a proposta desse princípio não se assenta
na concepção de igualdade de direitos ou do igual valor da vida a todos os seres,
mas sim na vida como um interesse a ser igualmente considerado (SINGER, 2008).
Trata-se de um princípio que exige imparcialidade, pois a característica
moral determinante sobre quem deve ser considerado igual é apenas a sua
capacidade de ter interesse, independente de sua aparência orgânica ou das
habilidades que possui. Mas o que pode assegurar que um ser possui interesses?
De acordo com o filósofo e historiador, o critério necessário e suficiente para tê-los –
ou, no mínimo, para ter o interesse de não sofrer – é a capacidade de sentir dor e
prazer. Isso pode ser medido pela observação de sinais externos, como “contorções,
contrações do rosto, gemidos, ganidos, ou outras formas de apelos, tentativas de
evitar a fonte da dor, demonstrações de medo diante da perspectiva de repetição, e
assim por diante” (SINGER, 2008, p. 13).
Além disso, o autor traz a hipótese da questão neuronal, segundo a qual o
sistema nervoso dos animais não é autômato, criado artificialmente para imitar o
67
interior. Uma barriga recheada e que valeria alguns bons reais. [...] A barriga
daquele porco é praticamente o seu salário”; “Contra o muro, Pedro encostado
alivia-se no animal que ele chama de Rosemery entre gemidos prolongados.
Enquanto ele come o porco por trás, a cada golpe, escorre um líquido amarelo do
peito rasgado (MAIA, 2009, p. 25, 27).
E mesmo diante do dilaceramento dos cachorros durante as rinhas, a única
preocupação é se ainda dá para lucrar mais um pouco com os animais: “A briga
havia terminado na pequena arena. Nenhum havia sido morto, o dono não deixou,
ainda dava para se ganhar algum dinheiro com o infeliz, mesmo todo dilacerado.
Uns curativos e ele ficaria bem para mais algumas brigas” (MAIA, 2009, p. 83).
Em O trabalho sujo dos outros, quando Divina, a cabra mais gorda, fica
doente, sofrendo de mastite, Erasmo Wagner logo se preocupa com o possível
prejuízo que isso irá lhe causar: “Ela dá em média quatro litros de leite por dia.
Cento e vinte litros de leite por mês, aproximadamente. Cada litro é vendido a dois
reais. Um prejuízo de duzentos e quarenta reais no mês. [...] Não haverá lucro este
mês (MAIA, 2009, p. 105).
Essas situações mostram como a perspectiva de Singer é meramente
reformista, pois ela não visa romper com a ideia de animal como propriedade do
humano. Dentro dessa concepção, visam-se apenas às leis do bem-estar animal,
segundo as quais: a experimentação animal é aceitável se os benefícios para
humanos e/ou animais superarem os custos a que estes são expostos; assim como
a produção de animais para consumo é conveniente se for assegurado que eles
recebam boas condições de vida, como ausência de sofrimento e de stress, e que
sejam abatidos com humanidade.
Para Francione, no entanto, a legislação bem-estarista jamais oferecerá uma
proteção adequada aos interesses dos animais, como ilustra Entre rinhas de
cachorros e porcos abatidos. Mesmo com acesso ao cartaz com os “Padrões de
Cuidados para Porcos do Humane Farm Animal Care”, os trabalhadores do
matadouro nem os praticam, tampouco se interessam em conhecê-los, e a
justificativa da falta de tempo pelo excesso de trabalho também não se aplicaria,
pois isso não os impede de ler o panfleto da rinha de canários sobreposto ao cartaz:
71
26
“Both the best empirical data and our best explanatory theories support the judgement that
vast numbers of nonhuman animals (mammals, birds, and other vertebrates, for starters)
share the psychological characteristics in question” (REGAN, 2001, p. 102).
72
viva dentro do cachorro acontece em meio a uma cena de abate de porco que
também justificaria a salvação e o acolhimento do animal:
27
Esse termo aparece pela primeira vez em um panfleto sobre a defesa dos animais
publicado por Richard Ryder no ano de 1973, seu conceito é tratado somente anos depois
em sua obra Victims of science (1975) e ele só se consolida quando Peter Singer começa a
empregá-lo em seus livros sobre ética animal.
74
28
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 126.
78
que o Estado “faz morrer e deixa viver”: “matar, de maneira espetacular, os que
ameaçassem seu poderio, e deixar viverem os demais”; nem no conceito de
biopolítica de Foucault e Arendt, em que o Estado “faz viver e deixa morrer”: “cuidar
da população, da espécie, dos processos biológicos, otimizar a vida. Gerir a vida,
mais do que exigir a morte” (PELBART, 2007, p. 24). Para o filósofo italiano, o
Estado “faz sobreviver”, isto é, ele não investe nem na vida, nem na morte, mas na
sobrevida, gerando sobreviventes e reduzindo o homem a uma dimensão residual,
ao seu mínimo biológico.
São várias as cenas que mostram as personagens lidando com essa vida
residual, com a “falta” em todos os níveis de assistência do Estado. Como
consequência, as personagens revidam de forma insurgente, conforme conclui
Daniela Meireles, em seu artigo “Rinhas de humanos: violência e negação de
cidadania em Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos de Ana Paula Maia”, ao
analisar a violência como uma forma de agência perversa que gera maneiras abjetas
de inclusão na sociedade de consumo:
Lido com o mal não contrariamente com o bem. Trabalho com o mal
dentro de uma realidade em que é muito difícil você ser bom. Nunca
escrevo sobre personagens bonzinhos. Às vezes, eles fazem o bem,
mas não são bonzinhos. Quem morre é bandido, e quem mata
também é bandido. É exatamente este o meu universo (ANA...,
2018).
82
besta na maior parte do tempo e mija feito um jumento; Pablo se sente o próprio
jumento; e Edgar Wilson cicia, tem visão de morcego e foi criado feito cão de rinha.
Além das especificidades de cada personagem, temos as de grupo: as
brigas territoriais entre os homens tal como ocorre com os cães; a astúcia e a
violência dos homens comparadas a dos javalis; os presos da ala de segurança
máxima vistos como cães perigosos que precisam de isolamento; os peões
assemelhados aos arredios jumentos; e a colônia penal que, assim como o
alojamento da fazenda de Seu Milo, é vista como um curral: “Ambos os
confinamentos, de gado e de homens, estão lado a lado, e o cheiro, por vezes, os
assemelham. Somente as vozes de um lado e os mugidos do outro é que distinguem
homens e ruminantes” (MAIA, 2013, p. 20).
Contudo, a presença dos animais nos romances não está simplesmente a
serviço do homem, no sentido de funcionar como uma forma de acentuar a sua
desumanização ao colocar sua vida no mesmo patamar de igualdade à dos animais.
Podemos perceber também um manifesto que poderia se aproximar do
abolicionismo animalista, tal como faz de forma bem declarada o romance brasileiro
Humana festa (2008), de Regina Rheda.29
O livro da autora é considerado o primeiro romance brasileiro a tratar o
veganismo como tema central, e não como paisagem. Isso se observa desde a
caracterização das protagonistas dos dois núcleos que compõem o enredo: Megan,
norte-americana, branca e com elevado padrão socioeconômico, estuda literatura
inglesa animalista e faz ativismo pelo feminismo e pelos direitos dos animais não
humanos; Orquídea, brasileira, não branca, analfabeta, pobre e empregada
29
Regina Rheda (1957), brasileira, mas residente nos Estados Unidos desde 1999, é
formada no curso de Cinema (1984), pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo. Antes de tornar-se escritora, trabalhou com cinema, vídeo e televisão, tendo
contribuído para inaugurar o boom do curta-metragem brasileiro. Seus romances e contos
abrangem temas urbanos, migração transnacional e direitos dos animais. Ganhou
um prêmio Jabuti (1995) com sua primeira antologia de contos, intitulada Arca sem Noé -
Histórias do Edifício Copan (Record, 1994; Record, 2000), traduzida para o inglês
como Stories From the Copan Building e publicada no volume First World Third Class and
Other Tales of the Global Mix (University of Texas Press, 2005). Esse volume também inclui
a tradução de seu primeiro romance, Pau-de-arara classe turística (Record, 1996), e a de
outros contos, além de um escrito originalmente em inglês. Dentre outras publicações, pode-
se citar seu livro de contos Amor sem-vergonha (Record, 1997), o romance Livro que vende
(Altana, 2003) e outros contos que integram coletâneas. Rheda também traduziu Jaulas
vazias: encarando o desafio dos direitos animais, de Tom Regan (Lugano, 2006) e, desde
2007, faz traduções autorizadas para o português do site “Abolitionist Approach”, de Gary L.
Francione (RHEDA, 2015a; RHEDA, 2015b).
84
De fato, não encontramos “jaulas vazias” em Ana Paula Maia, sua literatura
se restringe em expor e problematizar um especismo elitista e eletivo, sem alçar os
voos libertários de Francione. Mas suas obras talvez não tenham esse alcance
porque o grande impasse estaria no fato de a libertação dos animais só ser possível
se a dos homens também fosse, porque as formas de dominação estão sempre
inter-relacionadas, como é o caso das lutas feministas e abolicionistas animalistas
defendidas por Sybil, mãe da protagonista Megan em Humana festa:
85
pedaços gordos da vaca aos pés das mulheres, que precisam disputar com uma
matilha de cães famintos que rodeiam o matadouro” (MAIA, 2013, p. 58).
Em suma, esse tipo de economia global absorve práticas que estabelecem
desigualdades de classe e sustentam a exploração dos grupos mais fracos, o que
inclui não só as mulheres, mas os/as trabalhadores/as e a própria natureza.
Porém, se o romance de Rheda mostra que as frentes de lutas políticas,
sociais, econômicas, feministas e ecológicas de forma isolada são insuficientes para
romper com as estruturas de opressão especista, sexista e classista; nas obras de
Ana Paula Maia, defrontamo-nos com o testemunho de um gesto reiterado na
cultura contemporânea, a saber: a alteridade animal e a humana usurpadas pelas
tecnologias biopolíticas de separação, contenção e capitalização.
Diante disso tudo, os romances de Ana Paula Maia rompem com a leitura
mais fácil, que seria pensar que se trata de homens animalizados, afinal, será que
não estamos diante das falhas dessa lógica biopolítica com vantagens para poucos
e que reduzem os animais e humanos a um mesmo plano, o do mero
sobrevivencialismo imposto e que sufoca a individualidade de cada um?
Após um certo tempo rasgando asfaltos, sente que tudo em sua vida
caminha para baixo. Tem costume de abrir pequenos buracos no
quintal, cavar a comida, afundar o dedo em bolos confeitados e
retirar o miolo do pão. Alandelon gosta mesmo de cavar. Desde
30
MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. p. 35.
87
“Não sei” é o único modo como Erasmo Wagner conseguiu expressar a sua
experiência de ter trespassado a sua realidade sustentada pela fantasia e, então, ter
entrado em contato com o Real. De acordo com Žižek (2003), o Real faz parte da
tríade Imaginário (fantasia), Simbólico (realidade) e Real, que são conceitos
psicanalíticos de Lacan atualizados pelo filósofo para compreender os campos
social, político, econômico e cultural, ou seja, a relação entre sujeito e mundo. Trata-
se de três instâncias interdependentes, como três anéis de um nó borromeano, cujos
três círculos tem mesma importância e cujo entrelaçamento se dissolve caso um
deles seja removido.
Para explicar essas instâncias, Žižek (2010, p. 16-17), em Como ler Lacan,
que apresenta a psicanálise como método de leitura pertinente dos fenômenos da
atualidade, recorre ao exemplo do jogo de xadrez. As peças, isto é, a forma como
elas são modeladas e o nome que recebem é do domínio do Imaginário, tanto que “é
88
fácil imaginar um jogo com as mesmas regras, mas com um imaginário diferente”. As
regras do jogo, como a função atribuída a cada peça, “definida apenas pelos
movimentos que essa figura pode fazer”, pertencem à dimensão do Simbólico. E ao
Real compete “toda a série complexa de circunstâncias contingentes que afetam o
curso do jogo: a inteligência dos jogadores, os acontecimentos imprevisíveis que
podem confundir um jogador ou encerrar imediatamente o jogo”.
O Imaginário, portanto, corresponde à criação de imagens que um indivíduo
faz sobre pessoas e situações e que vai se manifestar no Simbólico. Este, por sua
vez, diferentemente do Imaginário, não é uma esfera abstrata, mas essencialmente
prática, pois é o lugar onde o sujeito socializa, cria e pertence a códigos e regras
que devem ser seguidos, conscientemente ou não, para que a vida em sociedade
seja compreensível. Já o Real não tem uma estrutura discursiva de manifestação,
nem pode ser traduzido por uma lógica, ele apenas tem uma presença
inconscientemente sentida (ŽIŽEK, 2010).
Assim, podemos entender melhor a experiência com o Real de Erasmo
Wagner, que se sente “redimido pelo sofrimento que já passou, pela pena que
cumpriu. Mas existem camadas profundas da alma, que não são atingidas por açoite
humano, nem por desgraças terrenas” (MAIA, 2009, p. 141). Essas camadas são as
fissuras dentro da sua própria rede simbólica, um espectro intraduzível pelas outras
camadas, mas que persiste inerente a elas, enviando sintomas de sua resistência.
Tanto que, mesmo já tendo cumprido a pena do seu crime, ele ali diante do olhar do
bode em carne e osso, surpreende-se ao enxergar seus confins.
Importante entender que, a partir do momento em que o indivíduo busca nas
coordenadas simbólicas que ele já possui elementos que expliquem a experiência
da esfera do Real vivenciada, já não estamos diante dela, mas sim de uma
experiência de ressimbolização. Entretanto, é justamente dessa forma que o Real se
torna possível, quando se volta ao Simbólico e o ressignifica. Assim conclui a filósofa
eslovena lacaniana Alenka Zupančič, em seu livro Ethics of the Real (2011), que
discute a ética a partir do diálogo divergente entre a filosofia de Kant e a psicanálise
de Lacan:
Real não impede que ele tenha efeito no reino do possível. É quando
a ética entra em jogo, na questão que nos é imposta pelo encontro
com o Real: irei agir em conformidade com o que me deixou
„deslocado‟, estarei pronto para reformular o que até agora tem sido
o alicerce da minha existência?31 (ZUPANČIČ, 2011, p. 235,
tradução nossa).
É por isso que o contato com o Real é sempre traumático, porque, estando
ele para além do que pode ser representado na esfera simbólica, rompe com a
lógica da realidade do indivíduo. Segundo Pedro Laureano (2015, p. 178-179), em
seu artigo “Uma breve introdução ao pensamento de Slavoj Žižek”, “uma questão
mínima como pedir pela redução das tarifas de ônibus já coloca em cheque todo
nosso sistema político e social, já significa esta fissura na teia das aparências que
Žižek apresenta como sendo o real (sic).” Portanto, tudo aquilo que desestabiliza os
parâmetros e discursos basilares do sistema vigente, tudo que racha no âmbito do
Simbólico empenhado em mostrar-se coeso já é o Real irrompendo.
Como resultado dessa perturbação, o sujeito pode tomar dois caminhos: a
fuga do Real ou a paixão por ele. A fuga do Real é o desejo de amenizar a
existência dessa instância excessiva: “Jacques Lacan afirma que a atitude
espontânea do ser humano é a de que „não quero saber disso‟ – uma resistência
fundamental contra saber demais” (ŽIŽEK, 2003, p. 83). Já a paixão pelo real –
termo cunhado por Alain Badiou – é quando “a busca pelo evento traumático não é
mais evitada, e sim explorada [...] – uma tentativa de atingir o „núcleo duro‟ e
autêntico dos acontecimentos” (FABRETI, 2013, p. 51).
Nos romances de Ana Paula Maia, podemos identificar melhor a paixão pelo
Real. Diante de um contexto biopolítico que não promove a vida, de um Estado que
não assiste, de um trabalho que pouco assegura condições básicas, de uma prisão
que não cumpre a pena, mas a morte, os personagens insurgem de duas maneiras:
em atos que mostram as falhas da ordem simbólica, exibindo, assim, sua
inconsistência, como é o caso da greve dos lixeiros e a fuga da colônia penal; mas
31
According to Lacan, the Real is impossible, and the fact that 'it happens (to us)' does not
refute its basic 'impossibility': the Real happens to us (we encounter it) as impossible, as 'the
impossible thing' that turns our symbolic universe upside down and leads to the
reconfiguration of this universe. Hence the impossibility of the Real does not prevent it from
having effect in the realm of the possible. This is when ethics comes into play, in the question
forced upon us by an encounter with the Real: will I act in conformity to what threw me 'out of
joint', will I be ready to reformulate what has hitherto been the foundation of my existence?
(ZUPANČIČ, 2011, p. 235).
90
até o fundo da boca. Constata que a casca está dura e que sua mulher não o
cozinhou por tempo suficiente” (MAIA, 2009, p. 51).
Além dessas estratégias que contribuem para a retirada das camadas
ilusórias da realidade, facilitando o descortinamento das fissuras do Simbólico e o
encontro com o Real, podemos citar ainda um outro recurso muito presente. Trata-
se de trazer luz ao “referente ausente”, conceito-chave utilizado pela ecofeminista
Adams (2012), em A política sexual da carne.
No livro, a autora utiliza o conceito para explicar o entrelaçamento da
opressão das mulheres e dos animais. Segundo Adams (2012), da mesma forma
que os termos referentes à carne (bife, hambúrguer, bacon, salsicha etc.) os
mantêm distantes de qualquer ideia de que eles se referem a um animal em sua
integralidade (vaca, boi, porco etc.); as mulheres também são transformadas em
referentes ausentes após terem seus corpos retalhados em partes sexualizadas
consumíveis (bundas, seios, pernas etc.). De modo geral, explica Adams:
Nos romances de Ana Paula Maia, essa mesma operação se processa com
relação aos homens e aos animais, e a tudo a sua volta, como as profissões e os
espaços. São inúmeras as estratégias criadas na sociedade para que a existência
dessas categorias jamais seja percebida, ainda que saibamos que existem aterros
sanitários, matadouros, prisões, carvoarias, bem como os humanos e animais que
ali trabalham e vivem – senão o lixo não seria recolhido, a carne não chegaria
embalada em cortes na bandeja e haveria mais dificuldades no funcionamento do
sistema penal e das indústrias termoelétrica e siderúrgica.
Uma dessas estratégias, além da distância física a que já estamos desses
viventes e espaços, é a linguagem, que tende a converter a realidade material em
metáforas controladas. É por isso que os romances de Ana Paula Maia rompem com
o sobrecarregamento de metáforas, para justamente iluminar o referente ausente e
nos colocar a par dos seus processos de objetificação, retalhamento/fragmentação,
consumo e descarte.
92
32
Os termos real, realidade e realismo utilizados por Tânia Pellegrini não se referem ao Real
de Žižek, mas sim à esfera literária de modelo de representação.
93
naturalista, dolorosa e sem escapatória, afinal, que saída têm esses homens se
alguém precisa fazer o trabalho sujo dos outros, que saída têm esses animais se,
“enquanto tiver uma vaca neste mundo, lá estará um sujeito disposto a matá-la e
outro a comê-la?” (MAIA, 2013, p. 33).
A reflexão sobre essas questões pode dar uma impressão claustrofóbica
para aqueles que anseiam por dicotomias fáceis, inimigos visíveis, resoluções
definitivas. Mas esse é o efeito provocado por seus romances no/a leitor/a ao
promover essa aproximação maior da relação entre a realidade e as suas fissuras.
Nem mesmo a cena mais fabulosa de seus romances, a do suicídio coletivo
das vacas,33 resiste à realidade bruta e miserável da narrativa e, em pouco tempo, o
gado morto é saqueado por esfomeados. É como explica Žižek, retomando os
atentados em Nova York em 2001:
33
É verdade que a cena seria mais fantástica se não tive ocorrido situação similar em 2009,
na vila de Lauterbrunnen, nos Alpes suíços, quando 28 vacas caíram ou se atiraram em um
penhasco. A hipótese é a de que uma tempestade possa ter confundido os animais e
ocasionado o fatídico incidente. Contudo, diferentemente do que ocorre na narrativa de Ana
Paula Maia, as vacas foram retiradas de helicóptero, pois não havia animais e nem pessoas
para consumirem-nas (SUÍCA..., 2009).
94
34
Os dados aqui disponibilizados se referem à versão do projeto atualizada em 18 de
fevereiro de 2019.
35
Para efeitos comparativos, os dados das personagens dos romances de Ana Paula Maia
neste momento foram excluídos da base de dados.
96
reduzidos à noção exótica da besta, da fera ou da besta-fera, que são termos que
sinalizam uma afetividade negativa, por ser atribuído a animais com uma potência
voraz e altamente destrutiva, movidos pela pulsão.
E para problematizar essas questões que representam na literatura escrita
por mulheres o escuro de Agamben, a estratégia em trazer à tona o referente
ausente tem um grande efeito, pois consegue iluminar as fissuras desse contexto
biopolítico e propiciar, assim, o encontro com o Real. Esse é, possivelmente, o maior
alcance de suas obras para a hipótese de subversão da escrita de autoria feminina,
a qual, conforme revelam os dados do projeto de Zolin, pouco enredam a realidade
desses humanos e a desses animais, que muito se assemelham, mas em outro
plano, o do gado laborans.
100
5 CONCLUSÃO
A literatura escrita por Ana Paula Maia reflete sobre a violência presente na
sociedade contemporânea: desde a violência subjetiva (perpetrador individual
identificável), passando pela simbólica (linguagem) até chegar à violência
objetiva/sistêmica (biopolítica). A naturalização desta última é o cerne da crítica de
seus romances aqui analisados, pois é a partir dela que podemos entender que essa
violência opera de maneira imanente, não só de fora ou por cima, mas por dentro.
No primeiro capítulo, investigamos os dispositivos de poder do estado de
exceção que não é imposto por vias subversivas, golpistas ou revolucionárias, mas
de modo rasteiro no dorso da democracia do estado de direito para assegurar não a
constituição, mas o capitalismo. Esse estado captura a vida humana para incluí-la
como animal laborans e, assim, sustentar os cálculos econômicos do sistema, ao
mesmo tempo em que a exclui na forma de homo sacer, portador da vida nua: uma
vida reduzida às necessidades mínimas de sobrevivência e constantemente exposta
à morte sem que nenhuma expiação ou ritual possa resgatá-la dessa condição.
O livro Carvão animal resume esse jogo entre exclusão e inclusão discutido
no primeiro capítulo. Na pequena cidade de Abalurdes, a energia elétrica é gerada
pelo calor dos fornos crematórios da Colina dos Anjos, ou seja, o que alimenta o
conversor termoelétrico que transforma o calor em parte da energia usada no
crematório, no hospital e em alguns estabelecimentos comerciais da redondeza são
os mortos. É a morte gerando a vida, vidas entre o bando soberano e o abandono,
vidas em seu (in)devido lugar.
Já no segundo capítulo, é a figura do animal que foi interrogada, tanto a
partir dos principais argumentos filosóficos da antiguidade e da modernidade, que
sintetizam ideias hierárquicas de superioridade dos seres humanos em relação ao
seres das demais espécies vivas; quanto por meio dos pressupostos basilares da
contemporaneidade a partir do século XX, que introduzem a noção de valor
intrínseco das vidas desses outros viventes. Observamos que uma visão crítica
acerca da dimensão dos problemas ético-políticos sobre as noções e práticas
hierárquicas em relação aos animais está subjacente à postura do narrador dos
romances aqui analisados. E é por isso que não só as perspectivas mais
tradicionais, mas também as mais atuais sobre a categoria animal estão dissolvidas
nas narrativas. Apesar desse olhar do narrador, isso não é suficiente para que os
101
romances de Maia encenem a virada ética tão idealizada por Gary Francione, por
exemplo. Isso porque as formas de dominação estão interligadas, logo, seria preciso
desconstruir a matriz cognitiva moral que retira desses homens o direito à vida e a
torna pura vida nua, afinal, ela é a mesma matriz que nos adestram a ser
indiferentes ao outro animal, sobretudo ao direito de matá-los sem cometer crime.
Diante disso, retomamos questionamentos feitos nesse trabalho: Que saída
tem esses homens se alguém precisa fazer o trabalho sujo dos outros? Que saída
tem esses animais se, “enquanto tiver uma vaca neste mundo, lá estará um sujeito
disposto a matá-la e outro a comê-la?” (MAIA, 2013, p. 33). Esse impasse não é
resolvido na trama, mas não podemos deixar de notar que o suicídio das vacas em
De gados e homens indica uma solução desesperada para romper esse ciclo. De
fato, essa coragem dos ruminantes não é suficiente para dissolver esse impasse, é
preciso coragem sim para olhar para esse outro que se abisma diante de nós, como
ilustra a imagem que encerra o livro.
– Como é matar boi o dia inteiro? O senhor não acha que isso é
assassinato? O senhor não acha que sacrificar esses animais é
crime? [...]
– A senhora já comeu um hambúrguer?
A mulher responde que sim com a cabeça.
– E como a senhora acha que ele foi parar lá? [...]
Ele entrega a marreta para a mulher. Ela não entende. Olha
desorientada para ele. Ele insiste e ela a segura. Ele abre a porta do
boxe de atordoamento e a manda entrar.
– A senhora pode descobrir se quiser. Desde o início. Conhecer todo
o processo, não foi pra isso que vocês vieram? (MAIA, 2013, p. 70-
72).
REFERÊNCIAS
______. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução Henrique Burigo.
2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2010.
ANA Paula Maia fala sobre influência do western e diz: “minha militância é escrever
uma boa história. Uai, Minas Gerais, 2 fev. 2018. Disponível em:
<https://www.uai.com.br/app/noticia/artes-e-livros/2018/12/02/noticias-artes-e-
livros,238148/escritora-ana-paula-maia-fala-sobre-influencia-do-western-e-questoes-
r.shtml>. Acesso em: 13 fev. 2019.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução Roberto Raposo. 13. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2016.
BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência. In: ______. Escritos sobre mito
e linguagem. Tradução Ernani Chaves. São Paulo: Editora 34; Duas Cidades, 2011.
p. 121-156.
______. Teses sobre a filosofia da história. In: ______. Sobre arte, técnica,
linguagem e política. Tradução Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel
Alberto. Lisboa: Relógio d‟água, 1992. p. 161-162.
BRECHT, Bertolt. A ópera de três vinténs. v. 3. In: ______. Teatro completo. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988.
FELIPE, Sônia. Carnelatria: escolha omnis vorax mortal: implicações éticas animais
e ambientais da produção, extração e do consumo de carnes. São José: Ecoânima,
2018.
______. Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer
em defesa dos animais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003.
108
FRANCIONE, Gary. Introdução aos direitos dos animais: seu filho ou o cachorro?
Tradução Regina Rheda. Campinas: Unicamp, 2013.
MACHADO, Samir Machado de. Ficção de polpa – volume 1. Porto Alegre: Não
editora, 2007.
MAIA, Ana Paula. Así em la tierra como debajo de la tierra. Tradução Cristian de
Nápoli. Honduras: Eterna Cadencia, 2017a.
______. Assim na terra como embaixo da terra. Rio de Janeiro: Record, 2017b.
PELBART, Peter Pál. A vida desnudada. In: GREINER, Christine; AMORIM, Claudia
(Orgs). Leituras da morte. São Paulo: Annablume, 2007. p. 21-36.
______. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos dos animais. Porto Alegre:
Lugano, 2006.
SAFATLE, Vladimir. A paixão pelo real. Folha de S. Paulo – Mais!, São Paulo, nov.
2003. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3011200304.htm>.
Acesso em: 11 fev. 2019.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura. Tradução Carlos Felipe Moisés. São Paulo:
Ática, 2004.
SINGER, Peter. Libertação animal. Tradução Marly Winckler. Porto Alegre; São
Paulo: Lugano, 2008.
SUÍÇA investiga caso das vacas que “cometeram suicídio”. Terra, São Paulo, 29
ago. 2009. Disponível em: <
https://www.terra.com.br/noticias/mundo/suica-investiga-caso-das-vacas-que-
cometeram-suicidio,252c43e78784b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>.
Acesso em: 24 ago. 2018.
______. Como ler Lacan. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro:
Zahar, 2010.
______. Violência: seis reflexões laterais. Tradução Miguel Serras Pereira. São
Paulo: Boitempo, 2014.
ZUPANČIČ, Alenka. Ethics of the Real: Kant and Lacan. 2. ed. Brooklyn, New York:
Verso Books, 2011.
112
ANEXO A