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ESTADO DE DIREITO E ESTADO LEGAL

MANOEL GoNÇALVES FERREIRA FILHO

1. Questões preliminares; 2. A limitação do poder pelo direito; 3. Os


princípios do estado de direito; 4. O estado legal; 5. A renovação do estado
de direito.

1. Questões preliminares

1.1 A Constituição: garantia ou programa?

Não há Estado sem constituição. No século passado, quando o direito consti-


tucional assumiu postura científica, distinguindo-se da apaixonada pregação polí-
tica, esta observação simplesmente chamava a atenção para um fato. O fato de
que, sendo a constituição a organização fundamental de um Estado, obviamente
não poderia existir Estado que não tivesse constituição. Ainda que esta consti-
tuição não fosse formalizada num documento solene, ainda que suas normas
não se pusessem como superiores às demais leis.
Este reconhecimento do óbvio era tanto necessário que somente ele permitia
integrar, no campo da disciplina, a constituição inglesa, fonte e modelo das
instituições representativas, que não era, como não é, inscrita num documento
especial - a constituição - mas compreende leis, costumes, pactos, jurispru-
dência, que encerram a organização básica do Estado.
Hoje, esta mesma observação poderia ser entendida num outro sentido. Pode-
ria ser lida: não há Estado sem constituição. Com efeito, os Estados contempo-
râneos, salvo a exceção inglesa, a israelense e mais uma ou outra, todos têm
constituição, formal, escrita.
Se em (quase) todos os Estados há constituição escrita, nem todas procedem,
hoje, da intenção que no século XVIII levou ao seu estabelecimento. O Século
das Luzes viu na constituição escrita caminho para o controle do poder. Con-

R. Dir. Adm., Rio \de Janeiro, 157:14-44, jul./set. 1984


siderou a definição, num documento solene, da organização fundamental que
devia assumir o poder político o modo por excelência de controlar esse poder,
a fim de, contra ele e apesar dele, salvaguardar a liberdade individual. Este era
o objetivo que se visava, em última instância, com a edição da constituição:
proteger a liberdade contra o seu maior inimigo, o poder político.
Este posicionamento, dito liberal, é bem claro no célebre art. 16 da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: "Toda sociedade na qual não
for assegurada a garantia dos direitos, nem determinada a separação de poderes,
não tem constituição." E o exame da Declaração, nesse artigo e nos demais,
aponta a previsão de duas formas de controle, voltadas para o poder político,
em benefício da liberdade. Há na Declaração o controle por limitação. Está nas
disposições que assinalam até onde pode ir o poder político, por exemplo no
art. 10: "Ninguém deve ser inquietado por suas opiniões, mesmo religiosas, desde
que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei." O con-
trole por contraste se expressa bem ostensivamente no próprio art. 16, que põe
como critério da existência de uma constituição a separação de poderes, que
implica um sistema de freios e contrapesos, segundo a lição clássica. E até cabe
apontar que já se insinua o controle por dominação, na medida em que a lei há
de ser "a expressão de vontade geral". E, como aduz o art. 69: "Todos os cida-
dãos têm direito de concorrer, pessoalmente, ou por seus representantes, à sua
formação."
:e verdade que este posicionamento liberal se combina nas constituições pos-
teriores à I Guerra Mundial ao desiderato de transformar a sociedade, por
uma ação no plano econômico e "social". Entra nisto a defesa contra o poder
econômico, mas sobretudo o delineamento de generoso plano de renovação, mais
que isso, de reestruturação da sociedade inteira. Assim, na linha que por primeiro
foi fixada na Constituição alemã de 11 de agosto de 1919, a Constituição de
Weimar, as constituições, mesmo de derivação liberal, não mais são apenas
constituições-garantia (voltadas tão-somente para o controle do poder político e,
num desdobramento natural, econômico) como também constituições-programa
(pondo metas e traçando planos para uma "nova" sociedade). E não se pode
dizer que este caráter de programa imposto à constituição seja aberrante. Numa
certa medida, toda constituição, mesmo garantista, é programa, programa de
mudança na ordem política. l
Coexistem atualmente com as constituições de derivação liberal, fundamen-
talmente constituições-garantia mas também constituições-programa, outras que
se resumem ao programa amesquinhando de fato o aspecto garantia. :E", o caso das
constituições de inspiração marxista. 2 Nestas, na letra há certamente limitação

1 Cf. Vergottini, Giuseppe de. Diritto costituzionale comparatto. Pádua, Cedam" 1981.
p.69.
% Id. ibid., p. 441.

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do poder. Entretanto, o reconhecimento da supremacia do "fim revolucionário"
esvazia tais garantias, que são postas de lado toda vez que o poder político invoca
a preeminência do interesse revolucionário sobre toda limitação ou procedimento
formal. E, por outro lado, inspiradas na concepção lassaliana da constituição-
reflexo, da constituição ser e não dever-ser, o aspecto normativo cede lugar ao
balanço dos avanços conseguidos (ou supostamente conseguidos). Tais consti-
tuições assim são programa, primeiro, balanço, em segundo lugar, e apenas for-
malisticamente limitação. Nelas, porém, não há efetivamente a instrumentação
do controle do poder.
As constituições marxistas, neste último ponto, coincidem com as constitui-
ções meramente nominais com que tantos Estados se enfeitam. Estas são adota-
das para seguir a moda, para cumprir um rito, para aderir a um padrão, o padrão
"evoluído", "civilização", pois os Estados "evoluídos" e "civilizados" têm consti-
tuição. O modelo, porém, é copiado pro forma, "para inglês ver", como diz a
expressão popular que neste assunto é profunda, já que, malgrado a sua existên-
cia, o poder político atua sem peias, absoluto, ilimitado.

1.2 A liberdade: contra o poder ou pelo poder?

A sociedade "ocidental" contemporânea, nascida no século XVIII, tem como


inspiração original a idéia de liberdade. Entre as idéias-força que vieram a predo-
minar no "mundo civilizado", ou seja, a Europa Ocidental, em meados dos anos
700, indubitavelmente tem primazia a de liberdade. Mas a liberdade, vista como
Hutonomia da conduta individual - a "liberdade dos modernos" na famosa
fórmula de Constant e não a liberdade encarada como participação nas decisões
políticas, a "liberdade dos antigos".3 A idéia de direito que se generaliza então,
e que inspira as revoluções norte-americana e francesa, é tão marcada pela preo-
cupação com a liberdade, que se tornou conhecida como "liberal".
Arraigada nesta concepção do justo, é a idéia de que o homem é um ser livre,
que esta é a verdade primeira a ser considerada por todo aquele que procure
a razão de ser da sociedade, do Estado, das instituições em suma. Tal lição foi
posta por um sem-número de pensadores, desde o século XVII pelo menos,
como Hobbes e, sobretudo, Locke, e repetida por todo o século XVIII, inclusive
no celebrado Contrato social de Rousseau. Para todos eles, feita abstração das
instituições existentes, abstração que é o cerne da hipótese chamada de "estado
de natureza", o homem é livre. :e, ademais, bom para uns, mau para outros, mas

3 Constant, Benjamin. De l'esprit de conquête et de l'usurpation. 3. ed. Paris, 1814. p. 101


e segs. Apud Imbert, Jean, et alii. La pensée politique. Paris, PUF, 1969. p. 389-91.

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para todos, sem exceção, é livre. E livre por natureza. O que quer dizer que, de
acordo com as leis que regem o mundo independentemente da vontade dos
homens, o ser humano, por ter a natureza humana, é livre.
O homem, pois, é por natureza livre. Todavia, o convívio com outros homens,
a vida em sociedade importa em limitar essa liberdade, já que, de outra forma,
a liberdade de uns significaria a não-liberdade de outros. A vida social, portanto,
exige uma coordenação da liberdade dos indivíduos em interação recíproca,
para que todos permaneçam livres, no máximo possível. Delimita-se o campo
da liberdade de todos, restringindo-a no mínimo, a fim de que cada um perma-
neça livre no máximo compatível com a vida social. Esta tese, que não é a de
Hobbes nem a de Rousseau, e sim, basicamente, a de Locke, é seguramente a
que prevaleceu na média do pensamento europeu "esclarecido", o da intelligentsia
moldada pela filosofia iluminista.
Esta cosmovisão predominante reconhece que o homem necessita dos outros
homens. f: ele um "indivíduo" e como tal possui um valor absoluto, mas precisa
viver em sociedade com outros indivíduos, para, como exprime Locke, "a con-
servação mútua de suas vidas, de suas liberdades e de seus bens".4 Mas se o
homem vive em sociedade, se aceita viver em sociedade, não renuncia à sua
liberdade, anui nas limitações e restrições desta, que são imprescindíveis para
a vida em comum. Fora destas restrições, que formam o cerne do "contrato
social", ele não tolera outras. Continua livre como o era "antes" do contrato,
segundo é próprio de sua natureza.
Mas se para a idéia de direito "esclarecida" o homem é por natureza livre,
se, na fórmula de Rousseau, ele "nasce livre", em toda a parte ele está "a fer-
ros".5 Em outras palavras, as instituições sociais e políticas vigentes (obviamente
antes das revoluções liberais), decorrentes da evolução histórica, são opressivas,
são aberrantes, são escravizantes, são intoleráveis. f: preciso refazer as institui-
ções, depois de esclarecer o homem de seus direitos, estabelecendo um novo,
ou um verdadeiro e reto "contrato social".

1.3 O Estado: inimigo ou amigo?

A afirmação da liberdade do homem tem, pois, como reverso necessário, a


afirmação da opressividade das instituições. E particularmente do Estado e do
poder nele estabelecido. O Estado é, pois, inimigo da liberdade. Inimigo porque
está nas mãos dos adversários da liberdade, mas inimigo também porque, pela

4 Locke, John. Segundo tratado do governo civil. capo VII, § 87.


! Rousseau, Jean-Jacques. Contrato social. livro 1. capo 1.

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natureza das coisas - cumpre não esquecer - "o poder vai até que encontre
limites" .6
Nesse raciocínio, a lógica levaria ao anarquismo. Entretanto, essa intelligentsia,
socialmente burguesa, não pretendia abrir mão das instituições que mantêm a
ordem, resguardam a segurança. Mesmo porque, e cite-se de novo a lição de
Locke, para contar com essa ordem, expressa em leis claramente definidas, im-
posta por uma força armada, arbitrada por juízes imparciais, é que aceita o
homem a vida em sociedade e os conseqüentes empecilhos à liberdade. 7 Por isso,
na proposta de refazer a sociedade, as instituições, o Estado, inclui-se a trans-
formação deste, de inimigo em garante da liberdade. O Estado justamente orga-
nizado seria o defensor da liberdade. E o Estado retamente estruturado seria
aquele cujo poder fosse limitado, dividido e exercido, se não pelo próprio povo
(pela vontade geral, na versão de Rousseau), por "representantes", um Estado,
portanto, controlado por limitação, por contraste e por dominação, em suma.

2. A limitação do poder pelo direito

2.1 A supremacia do direito

No cerne da cosmovisão liberal, que se toma a idéia de direito da sociedade


ocidental no século XVIII, está a convicção de que existe um direito, anterior
ao Estado, quer dizer, anterior ao direito positivo e superior a este, que contr~
ele não pode prevalecer. Este direito inerente à natureza, é o justo intemporaI.
Recorra-se a Montesquieu, no primeiro capítulo de seu mais célebre livro,
para exprimir esse pensar: "As leis são, na significação mais larga, as relações
necessárias que derivam da naturea das coisas." E aduz: "Neste sentido, todos
os seres têm suas leis; a divindade tem suas leis; o mundo material tem suas leis;
as inteligências superiores ao homem têm suas leis; os animais têm suas leis;
o homem tem suas leis."8
Este trecho é bem conhecido, mas não deve ser menos um outro que de pouco
o segue: "Os seres particulares inteligentes podem ter leis que eles fizeram; mas
eles as têm outrossim que não fizeram. Antes que houvesse seres inteligentes,
eram eles possíveis, tinham, pois, relações possíveis, e, por conseguinte, leis
possíveis." Ao que se sucede: "Antes que houvesse leis possíveis, havia relações
de justiça possíveis. Dizer que não há nada justo ou injusto, exceto o que orde-

6 Montesquieu, Charles de Secondat, Barão de la Brede e de. Espírito das leis. livro XI.
capo IV.
7 Locke, John. op. cit. loco cito
8 Montesquieu. op. cit. livro I. capo 1.

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nam ou proíbem as leis positivas, é dizer que antes que se tivesse traçado um
círculo, todos os raios não eram iguais."1I
Esse direito intemporal, próprio à natureza, é um direito eminentemente racio·
na!. O homem, pela razão, o descobre, não o cria. O direito é o justo, o que
equivale a dizer conhecido e demonstrado pela razão, de modo algum é o que
o homem quer. Longe se está do jusnaturalismo à moda de um Tomás de Aquino,
contudo não se está mais perto do positivismo do jus quia jussum que prepon·
dera hoje.
É fácil a crítica que mostre que esse direito, natural, intemporal, racional,
é uma versão historicamente marcada, como outras que o tempo viu e como
aquela a que se apegavam no passado os inimigos do liberalismo. Pode-se apo-
dá-la de burguesa, anunciar a sua superação, ou mais moderadamente apontar
a sua própria evolução nos Estados e sociedades que a consagraram de corpo
e alma. Isto não infirma, porém, um ponto fundamental, que seguramente con-
tinua ancorado na idéia de direito mais difundida: a existência de um direitol
de um justo objetivo, que limita o poder, que limita todo e qualquer poder, o
qual a ele deve submissão. Apenas os marxistas, os marxistas-doutrinários em
razão da ortodoxia, os marxistas-pragmáticos enquanto governo, é que não o
subscrevem. E estes últimos, quando oposição, quando ameaçados pela repressão,
nunca se esquecem de invocar a superioridade desse direito-justo, que principia
por afirmar a liberdade de todo e qualquer homem.
Com efeito, desse direito - como se pretendia no século XVIII e ainda hoje
se pretende - resulta que o homem tem algumas prerrogativas que lhe são pró-
prias e conaturais. A primeira e primordial é que o homem é livre, ou seja, "tem
o direito natural e intangível de pensar e exteriorizar o seu pensamento, isto é,
de desenvolver sua atividade física, intelectual e moral."lO E como todos os
homens têm a mesma natureza, obviamente todos os homens são livres, todos
os homens são igualmente livres, numa palavra, todos os homens são iguais em
direitos (subjetivos).
A existência desse direito, e portanto, destes direitos, constitui a limitação
natural do Estado. Este não pode contra estes direitos, este só pode na medida
em que estes direitos são restringidos para que todos os homens concomitante-
mente gozem de igual liberdade. O primeiro controle sobre o Estado assim é
a fronteira que traça para a sua atuação a existência da liberdade, das liberdades
humanas. Ou, na fórmula lapidar de um grande jurista, "a conseqüência disso
é que o Estado é limitado por esses direitos individuais anteriores e superiores
a ele".l1

9 Id. ibid.
1~ Cf. Duguit, Léon. Traité de droit constitutionnel. 3. ed. Paris, Boccard, 1930. t. lII.
p. 611.
11 Id. ibid. p. 612.

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2.2 As declarações de direitos

orefazimento da sociedade e em conseqüência do Estado e das instituições


e leis envolve na cosmovisão liberal três passos. O primeiro é declarar os direitos
fundamentais.
Estes direitos são as prerrogativas que, por emanarem diretamente da natureza
humana, são intangíveis, inalienáveis, imprescritíveis. Constituem o cerne irredu-
tível de liberdade de que o homem individualmente considerado, os homens
coletivamente considerados não abrem mão, de forma alguma, para viver em
sociedade e, como é contingência desta, sujeitarem-se ao poder social. São a
cláusula essencial do pacto ou contrato social.
Tais direitos - insista-se - são próprios ao homem em razão de sua natureza.
São anteriores a toda sociedade e a todo poder, já que sem que primeiro haja
homens inexistem sociedade e poder. São intemporais, visto que a natureza huma-
na é a mesma sempre. Deles, ninguém pode, validamente, abrir mão, porque
a nenhum homem é dado renunciar à própria natureza. Toda alienação desses
direitos é, pois, nula. O seu desuso não importa em sua perda. O poder nada
pode contra eles sem se destruir a si próprio, já que ele resulta do consentimento,
de um consentimento dado sob a condição de que sirva para proteger a liberdade.
Assim, toda violação que o poder pratique destrói o seu fundamento legítimo,
porque o poder provém do pacto social e o pacto social tem por finalidade asse-
gurar a liberdade.
Estes direitos são, como afirma a Declaração de Independência de 1776,
"verdades evidentes" por si próprias. Prescindem de demonstração. Mas não dis-
pensam uma declaração. Declaração que não os criará mas - o termo o diz
claramente - os constatará. E isto porque "a ignorância, o esquecimento", bem
como o desrespeito por eles são as "causas" - únicas - "das desgraças públi-
cas e da corrupção dos governos", segundo está no conhecido Preâmbulo da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789.
Ao enunciar esse superdireito, os revolucionários, seja da França, seja da
América do Norte, visavam estabelecer o ponto de referência, o padrão, em fun-
ção do qual todas as instituições e leis fossem medidas quanto à sua justeza,
todos os homens soubessem quais eram os seus direitos e até onde iam.
A leitura do mencionado Preâmbulo é a esse propósito elucidativo. Os direitos
do homem são enunciados de modo solene, "a fim de que esta declaração, cons-
tantemente presente para todos os membros do corpo social, lhes recorde, sem
interrupção, os seus direitos e os seus deveres". "A fim de que, podendo ser a
cada instante comparados com a finalidade da instituição política, os atos do
poder legislativo e os do poder executivo sejam por isso mais respeitados."
"A fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas ademais sobre princípios

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BiBLIOTECA MARiO HENRIGUE SIMONSttI


FUNDACÃO GETULIO VARRAS
simples e incontestáveis, visem à manutenção da Constituição e à felicidade de
todos."
Assim, é bem claro que, para os autores da Declaração, esta constituiria o
crivo pelo qual se aferiria a validade dos atos de governo. O poder estatal, por-
tanto, havia de ficar dentro dos limites fixados pela Declaração ao enunciar os
direitos fundamentais. Tais direitos, em suma, seriam, como aponta o art. 29
desta: "a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão". Ou
se se preferir a fórmula norte-americana, "a vida, a liberdade e a busca da
felicidade" .
Tais limites se impunham ao próprio constituinte. Com efeito, cumpre não
esquecer que o referido art. 29 , antes de enumerar direitos, aponta que "a fina-
lidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e im-
prescritíveis do homem". E isto reproduz bem de perto o que já constava da
Declaração redigida por Jefferson: "Os governos são estabelecidos pelos homens
para garantir os direitos" naturais.
Neste século XX, apesar de todas as críticas que denunciaram o caráter "bur-
guês" e "abstrato" desses direitos, não se abandonou o propósito de declarar
os direitos fundamentais de todos os homens, nem se fugiu muito ao padrão
setecentista.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia
Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, começa por afirmar que
"o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana
e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da
paz do mundo". Registra que "o desprezo e o desrespeito pelos direitos do
homem resultaram em atos bárbaros". Põe que a Declaração e, portanto, os
direitos nela enunciados são "o ideal comum a ser atingido por todos os povos
e todas as nações e como o objetivo de cada indivíduo e cada órgão da socie-
dade". E repete que, em suma, esses direitos são "a vida, a liberdade e segurança
pessoal" (art. 39 ), sem deixar de, mais adiante, reconhecer o direito de proprie-
dade (art. 17).

2.3 A constituição

O segundo passo é o estabelecimento da constituição. Esta é, na verdade, o


pacto social propriamente dito, pois a Declaração de Direitos que a precede,
visa apenas a definir as prerrogativas que esse pacto há de salvaguardar. Na his-
tória política dos EUA e da França setecentistas, portanto, há uma lógica. Pri-
meiro, declaram-se os direitos fundamentais. Assim se fez na América do Norte,
na Declaração de Direitos da Virgínia, de 12 de junho de 1776, que precede
a Constituição do Estado, como se passou nas demais antigas colônias inglesas.

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Na Declaração de Independência, de 4 de julho do mesmo ano, que precedeu
os artigos de Confederação, de 1Q de março de 1781 (embora estes não sejam
verdadeiramente uma constituição). Depois, sim, vem a Constituição elaborada
na Convenção de Filadélfia, promulgada em 17 de setembro de 1787. Na França,
a Declaração é de 26 de agosto de 1789, a Constituição de 3 de setembro
de 1791.
No esquema liberal, a constituição é acima de tudo a garantia dos direitos fun-
damentais do homem. f:, numa construção imaginosa e hábil, a garantia desses
direitos contra o Estado ao mesmo tempo que é a lei desse Estado, o estabeleci-
mento em linhas nítidas e inflexíveis de sua organização básica. Dois aspectos,
portanto, se entrelaçam na constituição. Por um lado, esta imprime ao Estado
a reta organização, reta organização que impedirá o abuso, isto é, a violação
pelos órgãos estatais dos direitos do homem. Por outro lado, esta reta organiza-
ção põe o Estado a serviço da finalidade que o legitima, a defesa desses direitos
na vida social cotidiana.
Como bem analisa Duguit, sendo difícil senão impossível assegurar uma san-
ção repressiva contra o Estado, por meio da constituição se erige uma sanção
preventiva. Tomam-se "medidas de natureza a reduzir ao mínimo o perigo de
uma violação ao direito por parte do Estado"P Conseqüentemente, dá-se
uma sanção preventiva ao direito que se impõe ao Estado e limita a sua ação.
Nesse contexto, o termo constituição deixa de designar qualquer organização
básica do Estado. Passa a designar uma determinada organização do Estado, a
que visa a resguardar os direitos naturais, a que impede a opressão e o arbitrário
por parte dos que detêm o poder, tendo em mãos a máquina estatal. f: o que
exprime o art. 16 da Declaração de 1789, como já se viu.
Pacto fundamental, constituição institui o Estado. Ou reinstitui o Estado. No
pensamento de um Sieyes, por exemplo, é ao estabelecer-se a constituição que
nasce, ou renasce, o Estado. Ela é o fundamento do Estado, fonte de suas insti-
tuições. Logicamente, portanto, não pode ser obra do Estado, ou de seu poder.
f: fruto de um poder pré-estatal, o poder constituinte. Poder este que canaliza
a vontade de todos os homens no estabelecimento das instituições. 13 Das insti-
tuições que vão regê-los - insista-se - para a proteção dos direitos naturais.
Este poder constituinte, expressão por excelência da liberdade de todos os ho-
mens, não é detido pelas instituições existentes, pelo direito positivo. Não é ilimi-
tado, porém. Por sua própria natureza, e destinação, tem sua atuação circunscrita
pelos direitos fundamentais. Assim, na dinâmica prevista, é limitado pelas decla-
rações de direitos.

12 Duguit, Léon. oh. cito p 593.


13 Sieyes. Emmanuel-Joseph. Qu'est-ce que le Tiers ttat? capo V.

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Constituindo o Estado, este poder estabelece os órgãos superiores do Estado
(e na visão setecentista tinha de fazê-lo de acordo com a célebre lição de Mon-
tesquieu). Fixa-lhes a estrutura, define-lhes a competência, impõe-lhes o proce-
dimento. Em suma, cria-os ao mesmo tempo que os limita. E assim condiciona
a validade de seus atos, do ângulo formal, porquanto do ângulo material essa
validade pressupõe o respeito aos direitos fundamentais declarados.
Nisso está a condição de constitucionalidade (material e formal) de todo ato
estatal, inclusive de toda lei que o Estado edite. Este último aspecto teve a Cons-
tituição francesa de 1791 o cuidado de salientar. "O poder legislativo" - está
no seu Título - "não poderá fazer leis que violem ou ponham obstáculo aos
direitos naturais e civis consignados no presente título e garantidos pela cons-
tituição" .
A constituição - é certo - não é posta como imutável. Mas é rígida, na
terminologia que Bryce e Dicey consagraram. Ou seja, somente pode ser mudada
por um órgão especial, poder constituinte também, segundo um procedimento
definido na própria constituição. A mudança nas regras da constituição, assim,
tem de ser feita de acordo com a constituição, está sujeita à condição de consti-
tucionalidade. E obra de um poder constituinte, conquanto de um poder consti-
tuinte derivado do verdadeiro, "originário", que dá origem à constituição. Salvo
nova manifestação deste, que leve de roldão as regras estabelecidas, exprimindo
de novo a vontade da nação, que, sendo livre porque são livres todos os homens
que a integram, pode sempre exercer esta liberdade, inalienável e imprescritível.
Por tudo isso, a existência da constituição tem por inelutável corolário a recusa
dos atos, e inclusive das leis, inconstitucionais. Sieyes, o pai da teoria do poder
constituinte, bem o viu, que propôs a criação de um tribunal, a jurie constitu-
tionnaire, exatamente com a finalidade de examinar os atos governamentais do
ângulo da constitucionalidade, para fulminar de nulidade as que contradissessem
a constituição. H
Foi, todavia, nos EUA que o controle de constitucionalidade se firmou, por
via jurisprudencial e por conta dos tribunais judiciários, a partir da magistral
lição de Marshall no caso Marbury versus Madison. E, sem dúvida, ninguém
expôs com maior clareza do que esse famoso juiz a doutrina que iria ser a clás-
sica. Como argumenta: "Ou a constituição é a lei suprema, insuscetível de modi-
ficação por meios ordinários, ou está no mesmo nível dos atos legislativos ordi-
nários e, como outros atos, será alterável todas as vezes que à legislatura aprou-
ver alterá-la. Se a primeira parte da alternativa é verdadeira, então um ato legis-
lativo contrário à constituição não é lei; se a última parte é verdadeira, então
as constituições escritas são tentativas absurdas, por parte do povo, de limitar

14 Ver Bastid, Paul. Sieyes et sa pensée. 2. ed. Paris, Hachette, 1970. p. 393 e segs.

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o poder, por sua própria natureza ilimitável." E justamente preferindo a primeira,
que se coaduna com o sistema, conclui que o ato inconstitucional é nulo e de
nenhum efeito.
Hoje ainda, no "Ocidente", em pleno final do século XX, a idéia de consti-
tuição não perdeu inteiramente o caráter garantista. Sem dúvida, ela não é mais
exclusivamente um instrumento de garantia; entretanto, raramente aparece com-
pletamente despida dessa feição, como já se apontou.

2.4 A lei

O terceiro passo é a definição das leis. Se as declarações limitam o constituinte,


se as constituições limitam os "poderes" do Estado, as leis limitam a liberdade
dos indivíduos (conquanto também, na fórmula da "separação", limitem os
poderes executivo e judiciário, servindo de pauta para a sua atuação). A lei,
destarte, tem por função precípua fixar os limites da liberdade individual segundo
as exigências da vida em sociedade.
Na cosmovisão liberal, a lei é o meio por excelência de articulação entre a
liberdade e a sociedade política, entre a liberdade natural do indivíduo e a liber-
dade de cada um e de todos os indivíduos, integrados na vida social. Este frio
registro, entretanto, não basta para situar o papel da lei nessa idéia de direito.
É preciso acrescentar um outro elemento, o amor que lhe devotam os pensadores
dessa escola, que sobre ela não se pronunciam sem acrescentar um toque de
veneração.
A importância da lei nessa concepção se patenteia quando se considera que
na Declaração de 1789 não há artigo ou quase em que ela não esteja, direta ou
indiretamente, presente. Na metade deles ela é expressamente mencionada.
E o culto à lei tem raízes que se perdem no passado. É o eco da "liberdade dos
antigos", pois para os gregos era livre quem estava sujeito às mesmas leis que
todos. Como lembra Duguit, "a cidade ( ... ) é livre quando a autoridade não
intervém senão em virtude de lei, concedida como regra geral formulada anteci-
padamente para todos, governantes e governados".15 Ao contrário, não o seria
se fosse regida por decisões casuísticas, arbitrárias, típicas do tirano. E a mesma
visão tinham os romanos, como faz a célebre afirmação de Cícero, na Pro Cluen-
tio, "legum servi sumus ut liberi possimus".
Muito se insiste, na linha apontada por Benjamin Constant, em ser a liberdade
"dos modernos" caracterizada pela autonomia da conduta individual em face
do Estado, acentuando a sua oposição relativamente à "dos antigos" que se

15 Duguit, Léon. op. cito t. 11. p. 175.

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contentava com a isonomia, sem pôr limites à ação do Estado, por via legislativa.
A oposição exprime uma verdade, todavia, não uma exclusão. Os "modernos"
entendem ser livres se o Estado não pode intrometer-se num vasto espaço "pri-
vado", "particular", mas não dispensam que, no plano social, no campo de
interação dos indivíduos, as interferências só ocorram por meio de lei.
Encarada no plano social, a liberdade consiste em não estar sujeito a outrem
e sim, e tão-somente, à lei. :E: a lição conhecida de Locke: "A liberdade dos
homens submetidos a um governo consiste em ter uma regra fixa a que se con-
formar, regra comum a todos os membros da sociedade e posta pela autoridade
legislativa que ali se encontre estabelecida. :E: também a liberdade de seguir a
própria vontade em tudo o que não é ordenado por essa regra; e de não ser sub-
metido à vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária dum outro ho-
mem."16 Daí o ideal, que a Declaração do Massachusetts iria consagrar, no
art. XXX, do "governo de leis e não de homens".
Assim, a liberdade social é limitada, mas somente pode ser limitada pela lei.
"O exercício dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites exceto
os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo destes mesmos direi-
tos. Estes limites não podem ser determinados senão pela lei", como está no
art. 4Q, in fine, da Declaração de 1789.
Esta lei, porém, que legitimamente limita a liberdade, não tem um conteúdo
qualquer. Há de ser expressão do justo. Ela é o "registro de um princípio supe-
rior", segundo aponta Burdeau.17 Ela "não tem direito de proibir senão as ações
nocivas à sociedade" (Declaração de 1789, art. 5Q), e o nocivo é o que preju-
dica a outrem, impedindo-o de gozar da própria liberdade (cf. art. 4Q).
O conteúdo da lei para que esta mereça ser lei há de ser justo e justo conforme
a razão o reconheça. A razão é o critério do justo. Melhor, o racional é o justo,
pois "a lei, em geral, é a razão humana, na medida em que ela governa todos
os povos da terra". Não é fruto da "volonté momentanée et capricieuse" dos
homens; é expressão permanente e imutável daquelas "relações necessárias que
decorrem da natureza das coisas".18 A supremacia da lei coincide com o primado
da razão, submeter-se à lei é sujeitar-se à razão.
Como bem mostram as citações anteriores, para Montesquieu é bem claro que
a vontade do legislador, o poder legislativo na "separação dos poderes", não faz
a lei. Revela-a, adaptando-a às condições de cada povo, de cada Estado, eis que
somente por uma "grande" coincidência (hasard) ( ... ) as leis de uma nação
podem convir a outra" .19

16 Locke, John. op. cito capo VII.


17 Burdeau, Georges. Essai sur l'évolution de la notion de Ioi en droit français. Archives
de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, Paris, D.O 1, 1939.
12 Montesquieu. op. cito livro I, Capo I.
I~ Id. ibid. capo III.

25
A posição de Rousseau não é outra. A fórmula que cunhou: "a lei, expressão
da vontade geral", adotada no art. 69 da Declaração de 1789, soa voluntarista.
Parece afirmar que o povo cria a lei, que a vontade faz a lei. E nesse sentido
foi interpretada e deturpaaa mais tarde. Todavia, no Contrato geral, existe ine-
quívoca a distinção entre a "vontade geral" e a "vontade de todos". Ambas sur-
gem da manifestação da vontade de todos os homens, mas a primeira manifesta
a razão, que identüica o justo, o bem comum. A segunda é um desvio, motivado
pelo egoísmo, pela influência de interesses particulares, que prevalecem sobre
a razão. 20
Enfim, somente é lei a regra geral. Para a norma ser qualificada como lei,
€: essencial que ela disponha in abstracto para reger todos os casos da mesm~
natureza, concebida sem acepção de pessoas, destinada, pois, a se aplicar a todos
os indivíduos que se achem nas condições que preveja. Assim, ao limitar a liber-
dade em vista das exigências sociais, a lei necessariamente irá impor em todos
os casos os mesmos limites para todos homens, e nisto já está uma garantia de
que ela servirá à justiça. Sim, porque isto fará com que o legislador, o poder
legislativo, homem sujeito à lei como todos os demais não quererá estabelecer
restrições desnecessárias, inúteis, lesivas, abusivas, porque será ele próprio colhi-
do por suas malhas.
Da generalidade da lei, pois, deflui a igualdade. Sendo regra geral, a lei é
regra igual para todos. E isto recomenda expressamente a Declaração de 1789:
"Ela (a lei) deve ser a mesma para todos, seja quando protege, seja quando
pune" (art. 6<:».
Em função desta concepção de lei é que se torna cristalina a fórmula famosa
de Montesquieu: "A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem;
e se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem, ele não teria mais liberdade,
porque os outros teriam o mesmo poder.''!!1 Sim, na vida em sociedade, o homem
é livre, porque pode fazer tudo o que leis gerais, leis abstratas, leis iguais para
todos não vedam. Ele, aí, estará sujeito apenas à razão, portanto ao que o faz
humano.

2.5 O estado de direito

O êxito das revoluções liberais imprimiu no Estado contemporâneo o modelo


do estado de direito.
Este, em sua forma típica e original, se caracteriza, em primeiro lugar, pelo
reconhecimento de que o poder é limitado por um direito superior, que está fora

2() Rousseau. Jean-Jacques. op. cito livro 11. capo 111.


21 Montesquieu. op. cit. livro XI. capo 111.

26
de seu alcance mudar. Tal direito, natural porque inerente à natureza do homem,
constitui a fronteira que sua atuação legítima não pode ultrapassar. Visto do
ângulo dos sujeitos (passivos) do poder, esse direito é um feixe de liberdades,
que preexistem à sua declaração solene e recobrem o campo da autonomia da
conduta individual. Autonomia que é a regra, a qual apenas sofre as restrições
estritamente necessárias ao convívio social.
Esse direito superior, e mormente as liberdades que o explicitam, é garantido
pelas constituições. Estas, definidas por um poder logicamente pré-estatal - o
poder constituinte - pelo poder dos homens que se põem em sociedade para
melhor defesa de suas liberdades, constituem o estatuto do poder estatal. Assim,
nenhum órgão do Estado, por mais alta que seja a sua hierarquia, tem compe-
tência senão a que vem dessa constituição e a deve exercer pelo modo nesta
definido, como dela recebe a sua estruturação. Como estatuto do poder e garan-
tia das liberdades, esta constituição é, por sua própria natureza, superior e con-
dicionante da validade de todo e qualquer ato que os órgãos estatais emitam,
não pode ser por estes alterada e sim por um poder também constituinte, embora
dela derivado, que o faça pela forma e nos limites que ela própria traçar. E disto
decorre, inexorável, a conseqüência: a invalidade de todo ato praticado ao arre-
pio da constituição.
Em terceiro lugar, esse Estado constituído para garantir o direito e os direitos
procede pela forma do direito. Isto é, por meio de leis, gerais, impessoais, iguais
para todos, às quais os seus próprios órgãos se submetem, que fundamentam
todos os seus atos, excluindo-se assim todo arbítrio.
E como se constitui para o direito e atua pelo direito, esse Estado se organiza
em função do direito. Por isso, obedece ao paradigma da "separação de pode-
res", decorrente das lições de Montesquieu. Tem um "poder legislativo" que
declara (jamais cria) a lei, um "poder executivo" que a serve, pela força inclu-
sive - é o "gládio a serviço da lei" - um "poder judiciário" que dirime os
litígios acerca do alcance da lei e sua aplicação. Nesta estruturação - adiante-se
- o controle por meio do contraste vem em socorro do controle por limitação.
A fórmula de Montesquieu, na verdade, aguça e intensifica o controle por
limitação - o controle pelo direito. Não só procura fazer com que a definição
da lei seja o testemunho do justo tal qual a comunidade o entende - e nisto
o legislador, como representante, é uma testemunha qualificada da idéia de direi-
te - como também maximiza esse controle, concentrando-o sobre o poder que,
por exercer a polícia (no sentido geral e no específico), mais precisa ser limitado
para não oprimir a liberdade individual. Sem dúvida, a submissão do Executivo
à lei que ele não faz nem declara é peça fundamental nesse esquema. Este se
quebra, ou pelo menos se enfraquece, toda vez que o Executivo assume papel
determinante na definição da lei.
Por meio de fórmulas racionalistas, o estado de direito visa a implantar na
vida social a ordem jurídica, que Dicey denominou de rule of law, obtida na

27
Inglaterra em decorrência de uma longa, e lenta, evolução histórica. O mestre bri-
tânico aponta que o rule of law, cerne da constituição inglesa, importa, primeiro,
na ausência de poder arbitrário por parte do governo, segundo, na igualdade
perante a lei, terceiro, em que as regras da constituição são a conseqüência e não
a fonte dos direitos individuais, pois "os princípios gerais da constituição são o
resultado de decisões judiciais que determinam os direitos dos particulares (pri-
vale persons) em casos trazidos perante as cortes". Portanto, "a constituição é o
resultado da lei comum da terra" ("ordinary law the land"). 22

3. Os princípios do estado de direito

3.1 A legalidade

O estado de direito, analisado pelo prisma estritamente jurídico, se desdobra


em três princípios. O de legalidade, o de igualdade e o de judiciariedade.
O primeiro, e básico, é o princípio de legalidade. Está ele enunciado no Espí-
rito das leis (e duas vezes) e recebeu sua forma definitiva no art. 59 da Decla-
ração de 1789: "Tudo o que não é proibido pela lei não pode ser impedido e
ninguém pode ser constrangido a fazer o que esta não ordena."23
Não se olvide que, no Estado realmente de direito, a lei é lei pelo seu conteúdo
de justiça e necessariamente há de dispor de modo geral e impessoal. Se injusta,
se estabelece adrede para certos e determinados casos específicos, se editada
ad hominem, não é verdadeiramente lei. Não proíbe nem comanda válida e efi-
cazmente. Por outro lado, o próprio legislador somente pode editar leis de acordo
com a constituição, que por natureza há de garantir os direitos fundamentais
do homem. Em conseqüência, a exigência de que a norma seja justa para ser lei
se explicita no imperativo de que respeite os direitos naturais, declarados ou não,
de que tenha seguido o procedimento traçado na constituição. Há, pois, uma
superlegalidade que limita e condiciona o legislador. E cuja violação torna sem
efeito os atos legislativos "inconstitucionais".
Também não se esqueça que a lei, no estado realmente de direito, não se
declara a não ser por intermédio do poder legislativo. São as câmaras, com a
sanção, sem dúvida, do cbefe do Executivo, segundo o procedimento esquema-
tizado por Montesquieu, que definem a norma legal, precisando-lhe o conteúdo
e o a1cance. 24 "A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm

22 Dicev. Albert Venn. lntroduction to the study 01 the lalV 01 the constitution. 14. ed.
London: MacrnilIan, 1961. p. 202-3.
23 Montesquieu. op. cit. livro XI. capo IH e IV.
2. Montesquieu. op. cito livro XI. capo VI.

28
o direito de concorrer, pessoalmente ou por seus representantes, à sua forma-
ção", segundo se lê no art. 6<'> da Declaração que faz eco, por um lado, à pos-
tulação de Rousseau (conquanto de modo herético, visto que o mestre genebrino
rejeitava radicalmente a representação), e por outro, e sobretudo, ao ensinamen-
to do Espírito das leis.
Encarado do ângulo do indivíduo, contém o princípio de legalidade a afirma-
ção da liberdade corno regra geral. Equivale a dizer que cada homem é livre
de fazer tudo o que a lei não lhe proíbe. Esta é, sem dúvida, a face teorica-
mente principal: põe corno regra a liberdade, corno exceção a restrição. Mesmo
porque, corno está ainda no art. 5<'> da Declaração: "A lei não tem o direito
de proibir senão as ações prejudiciais à sociedade."
Decorre, por outro, deste princípio que o homem está obrigado a fazer tão-
somente o que a lei lhe determina. Apenas o que esta lhe comanda. Insista-se
na importância deste aspecto, sobretudo nas relações entre o indivíduo e o
Estado. Com efeito, se o homem está obrigado exclusivamente a fazer o que
a lei lhe impõe, se ele não está obrigado a fazer o que ela não lhe impõe, se
todas as suas obrigações hão de ter como fonte a lei, o próprio Estado não lhe
pode reclamar o que não é previsto em lei. O Executivo não lhe pode exigir
urna conduta que já não esteja definida em lei, o Judiciário não lhe pode impor
urna sanção que já não esteja definida em lei, o próprio Legislativo (que não
declara sozinho a lei) não lhe pode nada prescrever senão por meio de urna
lei (que apenas se tomará tal caso conte com a anuência do Executivo).
Este aspecto é praticamente o mais importante para a liberdade dos homens
na vida em sociedade. Dele resulta, em termos rigorosos, urna limitação para a
atuação do Estado, pois esta há de ser condicionada por lei preexistente, já
que cada ato seu deve estar fundamentado em lei anterior. Corno salienta Carré
de Malberg, em razão do princípio de legalidade os órgãos estatais não só
devem "abster-se de atuar contra legem mas estão adstritos a não agir senão
secundum legem."25 Não cabe decisão individual que não seja conforme a urna
prescrição legal (e corno a lei, por natureza, é geral, nisto já se insinua o prin-
cípio de igualdade).
O rigor do princípio de legalidade, posto corno fonte única de todas as obri-
gações, na doutrina clássica é abrandado por urna única exceção: a dos regula-
mentos praeter legem. Para tal doutrina, o regulamento que é materialmente
lei, por editar normas gerais e impessoais, em princípio não cabe senão para
desdobrar a lei, preparando e facilitando a sua execução. 26 Compete, por isso,

25 Carré de Malberg, Raymond. Contribution à la théorie générale de l'~tat. Paris, Sirey,


1920. t. I, p. 489.
26 Ver Leal, Victor Nunes. Lei e regulamento. In: Problemas de direito público. Rio
de Janeiro, Forense. 1960. p. 57 e segs., sobretudo p. 85, onde se discutem as opiniões de
Rui Barbosa e de Gneist.

29
ao Executivo editá-los, mas no domínio fixado pela lei que os arrima e de
acordo com os preceitos que apenas esta pode traçar. Em conseqüência, o regu-
lamento que obviamente não é válido se contra legem deveria ser necessaria-
mente secundum legem. De fato se o regulamento, conquanto não dispusesse
contra legem, fosse praeter legem, estaria criando obrigações não-estipuladas em
lei. Ora, ninguém está obrigado a fazer o que quer que seja a não ser em decor-
rência de lei ...
Admitem-se, todavia, os regulamentos praeter legem, por entender-se que
nas lacunas da lei o poder de polícia, que constitucionalmente cabe ao Executi-
vo, os fundamentaria. Destarte, o regulamento praeter legem não se poria como
uma quebra do princípio de legalidade, mas se situaria num campo a par deste
e de certo modo desprezado pela lei. Mas jamais poderiam estes regulamentos
tratar de matérias reservadas à lei pela constituição. E estariam sempre à mercê
da lei, pois a qualquer momento a lei poderia dispor sobre a matéria por eles
regulada, prevalecendo suas normas sobre as que eles editaram.
Acrescente-se que, neste século, e sob o império de fatos gravíssimos e impe-
riosos, se veio a admitir que, em hipóteses excepcionais, o Executivo "legisle",
isto é, edite normas com força de lei. 27 Com isto, abre-se passagem para a
transformação do Estado de direito em Estado legal.
A I Guerra Mundial deu ocasião ao aparecimento dos "regulamentos de
necessidade". Na França, alegando necessidade absoluta e urgente, o Executivo
em várias oportunidades editou regulamentos com força de lei, depois aprovados
pelo Parlamento. Grande foi a polêmica sobre sua validade ou invalidade.
Duguit, numa lição ponderada, admite esses regulamentos como válidos, desde
que três condições cumulativas sejam preenchidas: a) haver guerra, insurreição
à mão armada ou greve geral de funcionários; b) ocorrer impossibilidade mate-
rial de reunir o parlamento ou "uma tal urgência que não se possa esperar a
expiração do prazo mínimo indispensável para convocá-lo e reuni-lo"; c) existir
a intenção, que se efetiva na primeira oportunidade, de submetê-lo à apreciação
do Legislativo. 28
Hoje, nessa linha, a Constituição italiana prevê, no art. 77, as ordinanze di
necessità. Estas, editadas pelo governo sem autorização do parlamento, se des-
tinam a atender a "exigências imprevistas e imprevisíveis, cuja satisfação é im-
posta como condição da própria conservação do Estado", no dizer de Mortati. 211
Pressupõem, como está na letra da Constituição, "casos extraordinários de
necessidade e de urgência". Têm eficácia desde a sua publicação e devem ser

TI Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 2. ed. São Paulo, Saraiva,
1984. n.O 95.
28 Duguit, Léon. op. cito t. IH. p. 753.
29 Mortati, Costantino. Istituzioni di diritto pubblico. 7. ed. Pádua, Cedam, 1967. t. 11.
p. 591.

30
aprovadas pelo Parlamento, que para tanto se reunirá dentro em cinco dias,
mesmo se as câmaras houverem sido anteriormente dissolvidas. A sua rejeição
tem efeito ex tune.
Solução mais discutível adotou a Constituição francesa em vigor. Nesta, o
governo possui um poder normativo autônomo, decorrente de modo direto da
Constituição. Por força do que está nos arts. 34 e 35 desta, a lei (votada pelo
Parlamento) tem um campo definido e reservado ratione materiae. Neste se
incluem, sem dúvida, as questões fundamentais: direitos e garantias das liber-
dades públicas, determinação de crimes e penas, nacionalidade, estado e capa-
cidade das pessoas, princípios fundamentais sobre o regime da propriedade, o
direito do trabalho, etc. Fora desse elenco, não cabe a lei. São as matérias
outras disciplinadas por intermédio de regulamento. Como está no art. 37,
caput: "Revestem caráter regulamentar todas as matérias que não sejam do
domínio da lei. "80
Não há dúvida de que a Constituição francesa, ao admitir essa normação
primária por meio de regulamento, abandona a formulação clássica do princípio
de legalidade. Abre porta para uma relativa ilimitação do Executivo, já que
o Legislativo não pode intervir no terreno regulamentar por definição constitu-
cional. E exatamente nisto, por fechar o domínio disciplinado pelo regulamento,
à intervenção da lei, discrepa profundamente do que classicamente se tolera a
propósito do praeter legem. Entretanto, dada a necessidade e urgência da im-
pulsão que compete ao Estado-providência, isto ainda é um mal menor.
Também controversa em face do autêntico estado de direito é a delegação
legislativa. A doutrina clássica sempre entendeu, e rigorosamente, que nenhum
poder tem o direito de abrir mão de sua função constitucional, ainda que par-
cial e temporariamente, passando-lhe o exercício a outro. f: o que exprime a
lição de Locke, consagrada no brocardo "delegata potestas delegari non potest".
f:, no entanto, prática generalizada e aparentemente irreversível a "lei delega-
da". Ou seja, o ato normativo, com força de lei, editado pelo Executivo com
base numa autorização (obviamente prévia) por parte do Legislativo. Ela enseja,
sem dúvida alguma, que o Executivo faça a lei e a faça cumprir, o que é indese-
jável e não condiz com o estado de direito. Mas se a delegação derivada de
pleins pouvoirs, a delegação que é "carta branca", é intolerável, a que se situa
dentro dos parâmetros da Suprema Corte norte-americana é também um mal
menor.

30 Ver Waline, MareeI. Les rapports entre la loi et le reglement avant et apres la Cons-
titution de 1958. Revue du Droit Public et de la Science Politique en France et à l'Etranger,
75(4):699 e segs.; de Soto, Jean. La loi et le reglement dans la Constitution du 4 oetobre
1958. Revue du Droit Public et de la Science Politique en France et à l'Etranger, (2):240 e
segs.; Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. A autonomia do poder regulamentar na Consti-
tuição francesa de 1958. Revista de Direito Administrativo, V. 84.

31
Esta veio em sua jurisprudência distinguir entre a delegação pura e simples,
que considera "abdicação" por parte do Legislativo, e a que é orientada por
standards e demarcada no tempo, que aceita. Nesta última, as normas editadas
pelo Executivo de certa forma "regulamentam" os padrões fixados pelo legis-
lador. 31
Não se deve e~quecer - é certo - que o Estado intervencionista necessita
de instrumentos normativos mais ágeis e flexíveis do que a lei estabelecida pelo
procedimento tradicional. As normas destinadas a estimular a economia, atenuar
os problemas conjunturais ou cíclicos, etc., são regras naturalmente destinadas
à breve duração, pois devem ser mudadas com facilidade e presteza, para
produzirem os frutos esperados e desejados. Estabelecê-las pelo procedimento
legislativo ordinário é inviável, mas deixá-las à mercê do Executivo é romper
o esquema de limitação do poder. Em face de tal quadro, a delegação, com
standards predefinidos, parece a solução mais adequada. Ou a fórmula francesa
de previsão de "regulamentos" em matéria constitucionalmente circunscrita,
desde que esta seja a condução da economia, seguindo de princípios fundamen~
tais intocáveis, postos pela própria lei magna.

3.2 A isonomia

O segundo princípio é o de igualdade. De certa forma, como assinala Carl


Schmitt, ele "é imanente ao conceito de lei próprio do estado de direito", a
ponto de que "o conceito bem entendido de igualdade está inseparavelmente
ligado ao conceito bem entendido de lei."32 Com efeito, ele está implícito nos
caracteres de generalidade e abstração que a doutrina clássica vê como inerentes
à lei.
Nos documentos liberais a afirmação desse princípio, exatamente pela razão
apontada, acompanha de pronto a referência à legalidade. Assim, no art. 69 da
Declaração de 1789, logo após o registro de que "a lei é a expressão da vontade
geral" e do reconhecimento de que "todos os cidadãos têm o direito de concor-
rer pessoalmente, ou por seus representantes, à sua formação", vem a consa-
gração da isonomia: "Ela (a lei) deve ser a mesma para todos, seja quando
protege, seja quando pune." E mais: "Sendo os cidadãos iguais a seus olhos,
têm eles igualmente acesso a todas as dignidades, lugares e empregos públicos,
segundo sua capacidade e sem outra distinção que a de suas virtudes e de seus
talentos" .

31 Cf. Corwin, Edward S. The president: ol!ice and powers. 4. ed. New York University
Press, 1957. p. 130; Schwartz, Bernard. Direito constitucional americano. Rio de Janeiro,
Forense, 1966. p.350; Ferreira Filho. Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. cito n.O 96.
32 Schmitt, Carl. Teoria de la constitucion. Trad. esp. México, Nacional, 1966. p. 179.

32
Na verdade, na Europa ocidental e especialmente na França revolucionária,
a inspiração igualitária era bastante forte no século XVIII pela razão simples
de que a estrutura jurídico-social era ressentida como injusta. Ou seja, a diferen-
ciação de três classes em termos de estatuto - jurídico-clero, nobreza, povo
(Tiers État) - diferenciados quanto a direitos e obrigações, não se justificava
em termos de utilidade social, a ponto de convencer de seu acerto os setores
mais conscientes do povo. Tal diferenciação, pois, que privilegiava o clero e a
I10breza em relação ao "terceiro estado", não mais era admitida pelo consensus.
Contra ela se insurgia com todas as forças a burguesia, como registra, de forma
célebre, o livro de Sieyes, Qu'est-ce que le Tiers Élal? Neste, a pergunta do
título é respondida: tudo, na medida em que os "trabalhos particulares" (as
atividades produtivas) e as funções públicas são desempenhados pelos membros
do terceiro estado. Nada, porque os que não gozam de privilégios são espezi-
nhados pelos que os detêm. 33
A reivindicação de igualdade conduzia diretamente à existência de um só
direito para todos os homens, independentemente de seu nascimento ou condi-
ção. Esta a primeira face do princípio jurídico de igualdade, que, em razão de
desafios peculiares, se explicitou depois em favor das mulheres, contra as dis-
tinções de raça, religião, etc. Em suma, todos são iguais perante a lei, é unifor-
midade do direito. 34
Esta igualdade perante o direito pressupõe que as leis tratem igualmente os
casos iguais e desigualmente os casos desiguais. 35 Está nisto o princípio da
uniformidade de tratamento que se desdobra do princípio geral de isonomia.
A uniformidade de tratamento se confunde com a chamada generalidade da
lei. Exige que a mesma lei seja aplicada a todos os casos que se enquadrem na
sua hipótese e sem que se faça acepção das pessoas que a norma atinja. Proíbe,
em conseqüência, que a lei exprima comandos que direta ou indiretamente favo-
reçam ou desfavoreçam pessoa, ou pessoas determinadas.
Igualdade perante o direito, generalidade da lei, não dispensam, ao contrário
até reclamam, que, em face da diversidade de situações, as normas divirjam,
exatamente para salvaguardar a igualdade. Não se esqueça jamais que a igual-
dade pede o tratamento igual dos casos iguais, desigual, dos casos desiguais.
A lei na aparência tem de desigual ar os homens, para poder igualá-los no fundo,
levando em conta a diversidade de situações.
Sem fugir à observância da regra de generalidade (para casos iguais), a lei
tem de levar em conta a diversidade de condições e circunstâncias, a fim de
realizar a justiça.

33 Sieyes, Emmanuel-Toseph. op. cit. Preâmbulo e especialmente capo I a IH.


34 Ver Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. O princípio da igualdade e o acesso aos cargos
públicos. Rev. da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n.· 13/15, p. 53 e segs.
3; A fórmula é de Rui Barbosa, na conhecida e famosa Oração aos moços.

33
Há, porém, que distinguir entre diferenciação e discriminação. A diferenciação
visa exatamente a assegurar, além das aparências, a igualdade. A discriminação,
a favorecer, a pretexto de diferenças, a desigualdade. A diferenciação é racio-
nal. Busca, no dizer de San Tiago Dantas, o "reajustamento proporcional de
situações desiguais".36 A discriminação é arbitrária.
Na hipótese de diferenciação, que não fere o princípio de igualdade, há uma
distinção que racionalmente se justifica, há uma relação de meio e fim. A dife-
renciação contém meio para que o fim, a igualdade, se alcance. Opõe-se à
discriminação, isto é, à distinção arbitrária, em que o critério de diferenciação
é inadequado, não se ajusta à finalidade colimada. Desse modo, para aferir se
ín casu ocorre uma diferenciação ou uma discriminação, há que cogitar do crité-
rio (e em geral as constituições contemporâneas proíbem que raça, sexo, nasci-
mento sejam aceitos como adequados) e da finalidade a que ela visa, que não
pode ser outra que a de estabelecer substancialmente a igualdade, pelo trata-
mento desigual de casos desiguais.
O jurista alemão Stein, numa página claríssima, mostra que a igualdade recla-
ma "relação entre o critério de diferenciação e a finalidade perseguida com a
diferenciação". E aduz que "o Tribunal Constitucional Federal invoca a neces-
sidade desta adequação entre o critério de diferenciação e a finalidade por ele
perseguida, para deduzir do princípio de igualdade uma proibição da arbitra-
riedade" .37
Em última instância, como sublinha Corwin, a igualdade (que no direito norte-
americano refulge na cláusula "e qual protection of the laws" da 14;:t Emenda
à Constituição - 1868) importa na "razoabilidade". E essa é a jurisprudência
da Suprema Corte estadunidense que fulmina, por inconstitucionais, leis e atos
desarrazoados, com este fundamento e também com a invocação do due process
of law. 38
Tudo isto já está de há muito na doutrina brasileira. O já citado San Tiago
Dantas ensinava que o princípio da igualdade perante a lei vedava "as leis em
que se fazem distinções arbitrárias com o fim de modificar, em relação a algu-
mas pessoas ou coisas, o tratamento comum".39
Na teoria, a separação entre diferenciação e discriminação é nítida. Ela o
é bem menos na prática, onde a determinação do razoável é sujeita a contro-
vérsia, onde a adequação de critério (meio) à finalidade é não raro discutível.
Ela abre campo para a particularização dos estatutos jurídicos, em tese neces-

36 San Tiago Dantas, Francisco Clementino de. A igualdade perante a lei e due process of
law. In: Problemas de direito positivo. Rio de Janeiro, Forense, 1953. p. 56.
37 Stein, Ekkehart. Derecho político. Trad. esp. Madrid, Aguilar, 1973. p. 223.
38 Corwin, Edward S. A Constituição norte-americana e seu significado atual. Rio de Ja-
neiro, Zahar, s. d. p. 267 e segs.
3~ San Tiago Dantas. op. cito p. 62.

34
sária ao tratamento desigual dos desiguais, a ponto de se perder de vista a
básica uniformidade do direito. Tal fenômeno é particularmente visível no Estado
intervencionista, que, para proteger o economicamente fraco (ou a pretexto
disto), para assegurar remuneração mínima a certos grupos de produtores, etc.,
multiplica as normas especiais.

3.3 A judiciariedade

o terceiro princípio do estado de direito nem sempre recebe o destaque


merecido. Não raro a doutrina passa por ele como se não o visse. E quando
o enxerga não lhe dá a devida importância. Entretanto, é ele a garantia do
sistema, sem a qual o estado de direito seria letra morta, impotente para limitar
efetivamente o poder.
Exceção nesta cegueira é Carl Schmitt. O jurista alemão encarece a signifi-
cação do princípio de judiciariedade. Cumpre citá-lo textualmente: "O ideal
pleno do estado burguês de direito culmina numa conformação judicial geral
de toda a vida do Estado."40 Isto quer dizer que, no estado de direito, deve
haver, sempre, um procedimento contencioso para decidir "toda espécie de lití-
gios", sejam estes - sublinha - "entre as autoridades superiores do Estado,
seja entre autoridades e particulares, seja, num Estado federal, entre a federação
e um estado-membro, seja entre estados-membros, etc."
Na verdade, mostra o jurista alemão que esse princípio é decorrência da
"mensurabilidade de todas as manifestações de poder do Estado", a qual se
deduz do pressuposto típico do estado de direito. Com efeito, este presume
que "a liberdade do indivíduo é ilimitada em princípio e toda faculdade do
Estado, ao invés, limitada em princípio, portanto mensurável".41
O campo de preferência da judiciariedade é a aferição de legalidade. Toda
questão de legalidade deve ser resolvida segundo um procedimento litigioso e
perante um "juiz". Isto é, de alguém que há de dizer o direito. A função do
magistrado que julga é exatamente essa: dizer o direito. Daí o termo que a
designa: jurisdição, do latim jurisdictio, ação de dizer o direito. Sempre o juiz
diz o direito, mesmo quando aprecia fatos, porque o faz para verificar se a
hipótese de uma norma ocorre, ou não, tirando disso a conclusão, o mandamento
que da norma resulta.
No sentido exposto, há apreciação de legalidade quando o juiz compara ~
ação, ou omissão individual, ao padrão definido numa hipótese legal, a fim de
impor uma pena a um eventual delinqüente. Ela existe também toda vez que, para

40 Schmitt, Carl. ob. cito p. 154.


'1 Id. ibid. p. 152.

35
dirimir um litígio entre particulares, ou entre estes e o Estado, examina atos e
fatos para, segundo preencham ou não os requisitos de uma hipótese normativa,
reconhecer ou denegar um direito pleiteado.
Também se inclui no âmbito da judiciariedade o exame do respeito ao prin-
cípio de igualdade. De fato, a verificação de legalidade já por si importa na
tutela da generalidade da lei, o que bem entendido já compreende a igualdade.
Mas - insista-se - sendo a isonomia um dos elementos básicos do estado de
direito, merece tanta garantia quanto a legalidade. Em conseqüência o juiz deve
aferir se a lei atende à exigência de justiça de tratar igualmente os casos iguais,
desigualmente os desiguais. E isto, como se viu, reclama aferir-se a razoabili-
dade das diferenciações (e logicamente fulminar as discriminações).
Por outro lado, é conseqüência igualmente lógica a invalidade do ato que
contradiga princípios de legalidade e de isonomia. Ou seja, a sua "nulidade".
Assim o ato que viola esses princípios há de ser "nulificado", quer dizer, há
de ser tido como de nenhum efeito, apagando-se-Ihe em toda a extensão pos-
sível os que já tiver, eventualmente, produzido, desde o momento de sua edição.
A sua desconstituição, e de seus efeitos, deve remontar a este instante, para
que tudo seja como se ele jamais houvesse existido (na medida em que é pos-
sível tal ficção). Deve ser tal desconstituição, segundo se diz no jargão jurídico,
"retroativa" ou ex fune.
E é conseqüência lógica da supremacia da constituição a invalidade dos atos
que a contrariam. Assim, o ato inconstitucional deve ser nulificado, para que
a superlegalidade constitucional prevaleça.
A nulidade do ato que desobedece à lei, que, portanto, fere o princípio de
legalidade, é de há muito e unanimemente reconhecida. Ninguém nega que o
ato que viola a lei não pode subsistir, deve ser nulificado.
A nulidade do ato que desobedece à constituição, embora na lógica deva
sofrer a mesma apreciação, nem sempre é admitida. A recusa em admiti-lo
não vem escorada em razões jurídicas, de fundo lógico. Apóia-se em argumentos
políticos, sobretudo no prestígio do Legislativo. Mas, na própria França, onde
tanto se resistiu, inclusive com argumentos especiosos, ao controle de constitu-
cionalidade, este já conquistou lugar, embora reduzido.
Na verdade, a argumentação de MarshaIl, no célebre caso Marbury versus
Madison, é irrespondível. Ou a constituição é a norma suprema do direito e,
portanto, os atos que a contrariam não valem, são nulos, ou ela não o é, não
passa de uma lei como outra qualquer e, em conseqüência, nada limita o poder
que faz a lei, o Legislativo. Este, pois, seria ilimitado e superior aos demais
que, jungidos ao respeito da legalidade, devem seguir as normas que ele traça.
Igualmente, é irretorquível o raciocínio com que nesse famoso aresto se de-
monstra que a aferição de constitucionalidade cai naturalmente no campo de
ação dos juízes. Para julgar, aplicando o direito, o magistrado deve identificar

36
a lei, a lei aplicável. Mas somente é aplicável a lei válida, ou seja, a lei que
se coaduna com a norma superior, constitucional. Destarte, para determinar o
direito a aplicar, o juiz tem de examinar, como questão preliminar, a constitu-
cionalidade. E repelir a lei que incidir em violação da constituição.
A judiciariedade pressupõe a separação absoluta entre quem diz o direito e
quem o edita ou executa. Ou pelo menos, se o ideal é inatingível, a maior
separação ou especialização possível entre jurisdição, legislação e administração.
Assim, é inegável existir um vínculo entre a fórmula clássica que é a separação
de poderes e o estado de direito. Com efeito, inexiste limitação do poder pelo
direito quando a mesma pessoa pode fazer a lei e executá-la (tem legislação e
administração) e mais se agrava a situação se contar com jurisdição para apreciar
litígios ou punir infrações.
No passado, é certo, antes de o voluntarismo impor a tese do jus quia jussum,
quando se entendia que o direito preexistia e independia da vontade de quem o
declarava, isto coibia o abuso, na medida em que o poder que explicitava
c direito não podia "fazer", o que na prática significava ter de respeitar os
costumes. Nesse quadro, a confusão entre magistrado-legislador e magistrado-
administrador, e mesmo quando ela se cumulava com a figura do magistrado-
julgador, embora danosa para a liberdade, não chegava às raias do arbítrio.
Apesar disto, a lição famosa de Montesquieu é sempre verdadeira: "Não há
liberdade se o poder de julgar não é separado do poder legislativo e do execu-
tivo. Se ele fosse reunido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liber-
dade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se ele fosse
reunido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor."42
É verdade que a história constitucional inglesa contraria essa generalização,
feita exatamente no capítulo do Espírito das leis dedicado à Constituição da
Inglaterra. Com efeito, o direito comum, a common law, fonte da maior parte
das franquias liberais, se desvenda no seguimento e na sucessão das decisões
judiciais. A jurisdição e a legiferação assim se confundiam nos mesmos órgãos.
Ora, é exatamente no sistema da common law, no direito inglês, que se firma
a idéia de que o rule 01 law implica que todos os homens sem exceção se sujei-
tam aos mesmos juízes, ou tribunais, que lhes aplicam a mesma lei. Dicey bem
o aponta na sua famosa síntese a respeito do rule 01 law e sua oposição ao que
chama de droit administratil, próprio ao sistema "continental", particularmente
ao francês. 43
O princípio de judiciariedade, ou seja, que toda questão que envolva apre-
ciação de legalidade deva ser submetida a um juiz, se consagrou e arraigou no
direito inglês. Encarado pelo prisma criminal, ele está presente na Magna

42 Montesquieu. oh. cito livro XI. capo VI.


43 Dicey, Alhert Venn. op. cit. p. 328 e segs.

37
Charta Libertatum, de 1215, assinada por João sem Terra por imposição dos
seus súditos revoltados, no art. 39. Neste está que "no free man shall be taken
or imprisoned, or disseised, or outlawed, or exiled, or in any way destroyed,
nor will we go upon him, nor will we sen dupon him except by the legal
judgement of his peers or by the law of the land".44
A expressão "by the law of the land" designa, por um lado, o corpo de nor-
mas objetivas, costumeiras ou jurisprudenciais, que consubstanciam o direito
tal o concebe determinada comunidade. Por outro, significa que esse direito há
de ser aplicado pelo julgador, juiz ou júri, que a comunidade reconhece ou
investe. Assim, na referência à "lei da terra", está contida a judiciriariedade.
Essa expressão veio a ser substituída, mais tarde, no direito inglês, pela fa-
mosa cláusula due process of law. Esta aparece já em l354, numa lei do reinado
de Eduardo IH. A ela se dá sentido equivalente. Quer dizer, compreende não
só as normas objetivas por que se pauta a comunidade e igualmente o condi-
cionamento da validade de sua aplicação ao exercício da jurisdição por tribunal
competente, segundo o direito da comunidade.
Na Declaração de Direitos da Virgínia de 1776, ainda se fala em "law of
the land" mas num sentido mais restrito. Com efeito, na seção 8 dispõe que
"nenhum homem pode ser privado de sua liberdade, exceto pela lei da terra
ou pelo julgamento de seus pares". Significa o corpo de normas substantivas.
Entretanto, como se vê, tem ela o cuidado de consagrar o julgamento pelo
júri (que noutro ponto da mesma seção explicita dever ser "um júri imparcial
de 12 homens" como garantia inidividual). 4li
A 5~ Emenda à Constituição norte-americana prefere a expressão dl/e process
of law. Nesse texto, promulgado em 1791, está que ninguém "será privado da
vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal". f. clara, portanto,
ao definir como âmbito da judiciariedade tanto as questões criminais como as
patrimonias. E acrescente-se que a 6~ e a 7'\ ambas do mesmo ano, prevêem,
aquela, o julgamento por Júri, em matéria patrimonial, nas questões fundadas
na common law.
O princípio de judiciaridade já está, aí, plenamente definido. E as constitui-
ções e declarações liberais que daí em diante se sucedem pelo mundo, o consa-
gram, explícita ou implicitamente. Em matéria criminal, vem ele expresso de
modo geral. Assim, por exemplo, na Carta de 25 de março de 1824, em cujo
art. 179, nl? 11, se estabelece que "ninguém será sentenciado senão pela autori-
dade competente".

41 Ver Grinover, Ada PelIegrini. As garantias constitucionais do direito de ação. São Paulo,
Rev. Tribunais. p. 23 e segs.
45 Ver Schwartz, Bernard. The great rights 01 mankind. New York, New York University
Press, 1977. p. 67 e segs.

38
Em matéria civil, de tão óbvio que parece, não é explicitado. Todos o vêem
como inerente ao sistema. E quando o exprimem, isto se dá nos códigos que
reconhecem que "a todo direito corresponde uma ação que assegura", "ubi jus
ibi remedium". Se dúvida existiu, o foi somente em relação ao direito de acionar
o Estado por lesão de direito individual. Este direito cedo foi reconhecido, como
transparece da Constituição do Wurttemberg de 1819. Está em seu § 95 que
"o recurso dos juízes não pode ser fechado aos cidadãos que se crêem lesados
em direito privado, assente em título particular, por ato do poder público". Em
nosso direito, apenas na Constituição de 1946 é que se cuidou de expressá-lo.
Na fórmula do art. 141, "a lei não poderá excluir da apreciação do poder judi-
ciário qualquer lesão de direito individual".
O direito francês, contudo, oferece um sistema diferente, no tocante a todos
os litígios em que o poder público se envolve. Consiste no sistema do contentieux
administratif.46 Este, na verdade, nasceu antes da Constituição de 1791. Resulta
ele da lei de 16 e 24 de outubro de 1790, e é mais tarde reiterado no decreto de
16 Frutidor do ano lU. Nestes atos, proíbe-se o Judiciário de intervir em ques-
tões administrativas. Para apreciar estas questões e os litígios delas decorrentes,
é competente, desde a Constituição napoleônica do ano VIII, o Conselho de
Estado. Este se integra no Executivo e atua tanto na preparação de leis e regu-
lamentos como no julgamento do contencioso relativos aos atos administrativos.
Desde a reorganização de 1872 é "juge à part entiere". É verdade que este órgão,
apesar de sua vinculação, soube marcar sua independência e imparcialidade, de
modo a cumprir adequadamente a sua função de juiz em litígios entre o indiví-
duo e o poder público. E enseja, como a própria designação do sistema indica,
um contencioso. Ora, o contencioso é o modo típico do procedimento inerente
à judiciariedade. Lembre-se a lição de Pedro Lessa, segundo a qual a função
judiciária consiste em "aplicar contenciosamente a lei a casos particulares".47

4. O estado legal

4.1 O advento do estado legal

O estado de direito, neste século XX, se transformou, em boa parte do mundo,


para usar a expressão que Carré de Malberg cunhou, num mero estado lega1. 48
Este, em última análise, recusa a subordinação do Estado a um direito a ele
superior. Mais, identifica direito com o comando do Estado, de tal sorte que os
direitos do homem são os direitos que o Estado lhes quiser reconhecer, que as

Ver VedeI, Georges. Droit administratif. 2. ed. Paris, PU F, 1961. p. 331 e segs.; Kessler,
41'.
Marie·Christine Le conseil aFotat. Paris, Colin, 1968.
47 Lessa, Pedro. Do poder judiciário. s. d. § 1.0.
"" Carré de Malberg, Raymond. op. cito t. I. p. 293.

39
leis são feitas pelo Estado, sendo irrelevante cogitar de seu conteúdo de justiça
ou injustiça. E que a constituição não passa de uma lei, mais alta do que as
cutras, que se estabelece por um procedimento mais complexo do que o ordi-
nário. O estado legal guarda o princípio de que, por meio de lei, é ditada a
conduta dos particulares, que a lei é condição e limite da atuação dos órgãos
públicos; todavia, a encara como um instrumento para a realização de objetivos
politicamente definidos.
A transformação do estado de direito em estado legal é uma das conseqüências
da mudança no conceber a missão do Estado que se consagrou em meados deste
século XX. O estado de direito é coetâneo da concepção segundo a qual cada
um, cada indivíduo de per si, e em competição com os demais, havia de con-
quistar o próprio bem-estar. Restringia-se, pois, a fixar o quadro jurídico e a
garanti-lo, dentro do qual os indivíduos fariam valer a sua liberdade. Manter
a ordem jurídica, e uma ordem jurídica que restringisse o mínimo a liberdade
individual, era a sua tarefa. Daí a denominação État-gendarme que lhe é dada,
encarando-o de outro ângulo.
Quando, por influência dos socialistas e cristãos-sociais, se veio a entender
o Estado como a providência dos malsucedidos, começou-se a abandonar a fór-
mula setecentista do estado de direito. O Estado social, preocupado em dar a
todos o bem-estar, intervém no domínio econômico e social. Tende, por isso,
a reduzir a autonomia individual e, tomado de racionalismo (no que é digno
herdeiro do pensamento setecentista), quer planejar, ordenar os mais diferentes
setores da vida social. Continua a agir por meio de lei, mas a concebe como um
meio, tão-somente. O seu conteúdo é o que convém, ou parece convir, em dado
momento, ao alcançar determinado objetivo.
A lei, assim, é a vontade da maioria política. 49 Vontade política que se põe
como vontade geral, numa interpretação formalista da lição famosa de Roussean.'
E como mudam as maiorias e conseqüentemente as políticas, ela também muda
com freqüência. Assim, a politização da lei conduz à sua proliferação, e ambas
a seu desprestígio. Com efeito, a constante mudança da ordem jurídica, especial-
mente quando isto não resulta de modo algum de uma alteração na idéia de
direito profunda, retira da lei a aura que envolve os padrões duradouros da vida
em sociedade. Desvaloriza-a, pois. E, por cima, vista a lei como uma "vantagem"
que na luta política põe uma maioria transitória para beneficiar o seu eleitorado
específico, ou para lograr um fim mesquinho qualquer, essa desvalorização pro-
voca o desprezo e o inconformismo. A lei desmoralizada é uma lei que de menos
em menos se cumpre, que apenas se arrima na coerção, que a todo instante e por
todos os meios é contornada e violada.

49 Ferreira Filho. Manoel Gonçalves. Do' processo legislativo. cito n.O 170 e segs.; Terré,
François. La crise de Ia loi. In: La loi. Archives de Philosophie du Droit, t. 25, p. 17 e segs.

40
Mas o estado legal não só representa no que tange à limitação do poder uma
regressão relativamente ao estado de direito. Pior do que isso é ensejar ele o
"despotismo legal". Contentando-se em impor que o Estado atue pela forma do
direito, fazendo abstração de seu conteúdo de justiça, tende a autorizar quem
faz a lei a impor aos homens o que bem lhe apetecer (em nome de elevados
ideais e sempre da "vontade popular" ... ). Enfraquece, quando elimina por
completo a garantia da liberdade individual contra a opressão do poder estatal
que o estado de direito objetivava. De fato, o poder, no estado legal, tudo pode,
desde que guarde as aparências, desde que mantenha as formalidades legais ...
A lei não pode ser encarada por um prisma apenas formal, ignorando-se a sua
vinculação com a justiça. Do contrário, como aponta Carl Schmitt, "toda a luta
do estado de direito contra o absolutismo do monarca teria terminado por intro-
duzir, em lugar do absolutismo monárquico, o absolutismo de mil cabeças dos
partidos políticos que em cada momento se encontrassem em maioria".50
O "despotismo legal" é bem visível no plano econômico. Sob o fundamento
(verdadeiro) de que a orientação da economia não se ajusta ao ritmo da lei
votada pelo Legislativo, não raro o Executivo assume quase que por completo
(ou por completo) a normação em matéria econômica. Ele faz a norma (e em
geral a muda com grande freqüência) e a aplica. Freqüentemente a estabelece
sem a observância de qualquer procedimento formal, que ao menos dê oportu-
nidade aos que vão ser por ela tocados, de fazer ver sua opinião, de fazer ouvir
seus argumentos. E a executa sem qualquer controle, eis que os juízes não
estão preparados para avaliar os reflexos de tais imperativos.

4.2 A legalidade no estado legal

O princípio de legalidade no estado legal, como se depreende do assinalado,


se reduz a um parâmetro, ou ponto de referência formalístico. Traduz um rumo
político. E em conseqüência é interpretada e aplicada de modo extremamente
flexível, levando-se em conta as circunstâncias do momento. Com muita acuida-
de, Bertrand de Jouvenel registra que "não há mais distinção do lícito e do
ilícito segundo a conformidade ou a não-conformidade com a regra, mas somente
distinção do que se crê ou não se crê (e sem dúvida o homem pode enganar-se)
bem ou mal visado em relação ao fim".51 A "legalidade socialista" que subor-
dina o respeito à lei ao "fim revolucionário", isto é, ao objetivo político, é
apenas uma exageração dessa tendência que avulta em muitos Estados de deri-
vação liberal.

50 Schmitt. Carl. op. dt. p. 175.


51 Jouvenel, Bertrand de. Du principat. Paris. Hachette, 1972. p. 79.

41
E a degeneração da legalidade atinge grau extremamente elevado quando ao
Executivo é dado, sem controle do Legislativo, ou sob controle ineficiente deste
(o que vem a dar no mesmo), estabelecer "atos com força de lei". As técnicas
de "legislação governamental" há pouco examinadas criam esse perigo; todavia,
nos exemplos considerados existe o controle necessário. Situação diversa ocorre
quando o Executivo tem o poder de editar normas com força de lei, sobre a ma-
téria que quiser, quando o desejar, normas essas imediatamente eficazes que,
se não rejeitadas num determinado prazo, se aperfeiçoam definitivamente. E,
muito pior, quando, se rejeitadas, são desconstituídas para o futuro, ex llunc,
pois, permanecendo válidos os efeitos já produzidos.
Esta situação, lamentavelmente, é a brasileira, em face do recurso indiscrimi-
nado ao decreto-lei - uso tolerado pelo Judiciário - na prática atual. O de-
creto-lei, na Constituição vigente fielmente interpretada, é instrumento excepcio-
nal de normação. Pressupõe "urgência", "interesse público relevante". Não cabe-
ria em qualquer campo e somente no enunciado nos três itens do art. 55: "segu-
rança nacional", "finanças públicas, inclusive normas tributárias", "criação de
cargos públicos e fixação de vencimentos". Mas uma interpretação latíssima do
que seja "segurança nacional" ou do que são "finanças públicas" resultou na
verdadeira ilimitação de seu alcance material. E de qualquer forma, o § 29 desse
artigo - "A rejeição do decreto-lei não implicará a nulidade dos atos praticados
durante a sua vigência" - não se coaduna com o estado de direito. E é exata-
mente o oposto do que está no direito italiano, que é sua fonte.

4.3 A igualdade no estado legal

O ideal de justiça, tantas vezes já se sublinhou, exige que se tratem igualmente


as situações iguais, desigualmente as desiguais. Assim, o direito não repele, ao
contrário reclama as diferenciações.
Entretanto, a politização da lei gera não esta legítima diferenciação e sim uma
discriminação odiosa em favor de certos grupos favorecidos por sua posição
estratégica no processo político. De fato, quando a lei é uma vantagem alcançada
pela manipulação da maioria parlamentar, quando esta ao concedê-la paga o
preço do apoio eleitoral, ou visa a aliciar o voto de grupos, estes podem (e não
raro o conseguem) obter disto a conquista de privilégios.
Quando isto vem à baila, muitos só pensam no favorecimento de grupos eco-
nômicos. Estes, sem dúvida, sabem tirar proveito disto. Entretanto, muitos outros
adquirem "vantagens" nessa situação, em detrimento da maioria. São em geral
beneficiados os grupos que, por uma ou outra razão, ocupam posição-chave no
processo produtivo, ou no sistema de comunicação social, ou são por este acari-
nhados, de tal forma que fazem prevalecer os seus interesses particulares sobre

42
o interesse comum, sobre o qual a maioria não cura, ou sobre interesses gerais,
mas difusos, que ninguém leva em conta. É o que os mestres franceses, em espe-
cial, apontam, como Aron e Ripert, talvez pelo fato de que, em terra gaulesa,
esses novos privilegiados pululam.1>2 A tendência, porém, é o aparecimento desses
grupos privilegiados, de trabalhadores de determinadas atividades, de grupos so-
ciais coesos (como certos grupos radicais), em toda parte em que o Estado, para
fazer justiça, multiplica as distinções. E sobretudo no Wel/are state que as
justifica invocando as costas largas da política econômica. Todos os vícios do
corporativismo assim ressurgem, sem qualquer das vantagens do corporativismo.

4.4 A judiciariedade no estado legal

o controle judicial, em face do caráter formalístico do estado legal, reduz-se


aos aspectos exteriores. Indaga meramente se há lei ou ato normativo com força
de lei regularmente editado para aferir a validade de qualquer ato, mormente de
governo. Não chegando ao conteúdo da norma, pondo fora do seu alcance a
justiça, evidentemente não encara de ordinário a questão da igualdade. O respei-
to à lei tende a confundir-se com a subserviência ao legislador, ainda que este
seja manifestamente violador da justiça.
O peso das tradições ainda faz com que esse controle se exerça em favor do~
direitos fundamentais tradicionalmente consagrados. Raramente enfrenta as con-
seqüências, hoje infinitamente mais perigosas para o indivíduo, do intervencio-
cismo econômico. Assim, a expropriação, mediante indenização, sofre o crivo
judicial, mas a fixação de preços (que pode enriquecer ou arruinar o produtor)
jamais é aferida.
E, apesar deste conformismo judicial, o controle que os juízes ainda exercem,
embora pouco, incomoda. Daí a criação de "contenciosos administrativos", a
exclusão do controle judicial em relação a determinados atos, ou a fórmula sutil
de condicionar o recurso judicial a tais e quais preliminares, que não só lhe difi-
cultam o acesso mas efetivamente o excluem.

5. A renovação do estado de direito

5.1 A lei como expressão da justiça

A restauração do estado de direito reclama em primeiro lugar que a lei seja


necessariamente expressão da justiça. Para isso, é preciso que no procedimento

~ Ver Aron, Raymond. Démocratie et totalitarisme. Paris, Gallimard, 1965. p. 200; Ripert.
Georges. Les forces créatrices du droit. Paris, 1965. p. 102 e 318.

43
de sua edição haja um órgão que afira o conteúdo da norma proposta em função
da concepção de justiça que prevalece na comunidade. Este órgão deve obvia-
mente ser formado, não por aqueles que se preocupam com a política e sim por
aqueles que se dedicam ao direito. São estes que guardam, identificam, apreen-
dem o sentido de justiça que cada povo necessariamente tem. E como pela expe-
riência se comprova que o mais ilustrado dos legisladores se equivoca, deve exis-
tir uma garantia contra o erro, erro que consagra a injustiça, prevendo-se um
controle judicial de justiça sobre todos os atos normativos. Mesmo porque é na
aplicação que ressaltam as injustiças, que a priori não poderiam ser vistas, nem
percebidas. E somente assim se poderá fazer com que, mudadas as circunstâncias,
ainda não se imponham normas desatualizadas. A existência de um conselho que
no processo legislativo opine sobre a justiça de uma norma não significa que o
Judiciário não possa recusá-la exatamente por injustiça. Cumpre até prever no
ordenamento processual, expressamente, uma "exceção de injustiça". Ambos os
caminhos devem ser assegurados para que esse duplo crivo garanta o conteúdo
de justiça das normas. 5S

5.2 A normação econômica

Em segundo lugar, é mister que se distinga a elaboração das leis de arbitragem


das normas de impulsão que regem a economia. Aquelas regulam interesses per-
manentes, estas sofrem naturalmente as conseqüências da evolução da conjun-
tura. É impossível submeter a elaboração destas ao procedimento previsto para
aquelas, sem que umas ou outras não sofram da inadequação do método. E, se
aquelas não comportam uma "legislação governamental", estas, numa certa me-
dida, o reclamam.
As normas de impulsão, contudo, não podem ser estabelecidas arbitrariamente.
Devem sofrer um controle adequado, seja do ângulo técnico (o propriamente
econômico, para o qual uma câmara especializada seria forçosamente útil), seja
do ângulo da justiça. E este controle de justiça, como se salientou, deve ser tanto
prévio à sua edição, como posterior a ela, relativamente à sua aplicação. Não
deve escapar, conseqüentemente, do crivo judicial.
Estas linhas mereceriam um desdobramento maior. E quem sabe sua completa
reformulação. Mas, aqui e agora, basta levantar o problema e o desafio.

53 Sobre isto o autor discorreu mais longamente no livro A reconstrução da democracia


(São Paulo, Saraiva, 1979. n.· 152 e segs.).

44

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