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A CIDADE E SEU DUPLO

imagem, cidade e cultura

Washington Drummond
Alan Sampaio

O pintor realista
“Em tudo fiel à natureza!” – Como ele começa:
Desde quando a natureza na imagem acabou?
Infinita é a menor fração do mundo! –
Disto ele pinta, afinal, o que lhe agrada.
E o que lhe agrada? O que pode pintar!

(Nietzsche. Gaia Ciência).

livro publicado pela


EDUNEB
Salvador
2013*

SUMÁRIO

Prefácio 2
Apresentação 4
O Artifício e a Morte 7
A Cidade e seu Duplo 11
Ceci n’est pas une ville! Do estágio pictórico ao reprodutível 16
Imagens de Guerra e Massacres Midiáticos 25
A Voz do Morto: crítica ao patrimonialismo 32
A gaiola e o pássaro: o Estado e a cultura urbana 39
Pierre Verger, do Heroísmo ao Espetáculo 47
Teoria Historiográfica e a Cronologia do Pensamento Urbanístico 62
Referências 68
Anexo: Debate sobre a Estética Realista 71

* aqui, uma cópia pirata, sem corresponder à formatação e paginação da editora.

1
PREFÁCIO

O livro A cidade e seu duplo de autoria de Washington Drummond e Alan


Sampaio, que o leitor tem em mãos, se pauta por um esforço de compreensão da vida
cultural e urbana contemporânea. Revisita certo número de temas que tocam fundo na
crise política e cultural vivenciada nas grandes metrópoles contemporâneas.
De estilo cortante com frases econômicas e ideias generosas, os autores
passeiam por gêneros textuais que vão do aforismático ao ensaístico, tendo sempre
como eixo o que poderíamos chamar de “crítica histórico-filosófica”. Os temas tratados
são bastante variados, porém mantém-se sempre uma aproximação com uma crítica das
imagens, das cidades e das imagens na cidade.
Problematizam-se as mídias, em sua generalidade e, em particular, a fotografia,
o cinema, a pintura, a televisão, a internet, as técnicas de reprodutibilidade; tocam-se
nos problemas relacionados ao capitalismo globalizado, as metrópoles e suas
“mercâncias”; ao patrimonialismo e a história; ao Estado e suas políticas culturais, etc.
Tal como os temas são variados, os autores “mobilizados” (filósofos, cineastas,
pintores, fotógrafos) também o são: Benjamin, Artaud, Bataille, Flusser, assim como
cineastas como Syberberg e Debord, pintores como Bacon, Botero e Magritte,
fotógrafos como Verger, o teatro brechtiano, etc.
Em 1967 Guy Debord publica La societé du spectacle: a transformação da
política e de toda a vida social em uma fantasmagoria espetacular não havia encontrado
o estágio extremo que hoje nos parece absolutamente “normal”. A radicalização
debordeana das análises de Marx sobre o fetichismo da mercadoria acabou por mostrar
que o capitalismo tardio “apresenta-se como uma imensa acumulação de espetáculos em
que tudo o que era diretamente vivido foi expulso por uma representação”. O espetáculo
para Debord não se restringe ou não coincide com a esfera das imagens, ou com o que
simplesmente, hoje, chamamos de media: o espetáculo é “uma representação social
entre pessoas, mediatizado através das imagens”. Ou em outra fórmula: “o espetáculo é
o capital num tal grau de acumulação que se torna imagem”. Para Agamben, leitor de
Debord, trata-se da velha e conhecida “separação” “partição” que o Ocidente vem
realizando desde seus primórdios: “aí onde o mundo real se transformou numa imagem
e as imagens se tornam reais, a potência prática do homem separa-se de si própria e
apresenta-se como um mundo em si”. É nesse mundo separado e gerenciado através dos

2
media que o estado e a economia se imiscuem e que o capitalismo se torna soberano
sobre toda a vida social. Não se trata somente da expropriação e alienação da força de
trabalho, mas também e principalmente, da própria linguagem, do logos esse comum
dos homens; expropriação e alienação da própria natureza linguística e comunicativa do
homem. O espetáculo é a forma extrema dessa separação, autonomização, dessa
expropriação do comum linguageiro do homem, ou seja, é a política em que vivemos. O
que impede a linguagem é a própria “linguagibilidade” capturada e autonomizada
através dos media e agenciada pelos irmãos siameses Estado-Capital. Os homens estão
separados por aquilo mesmo que os une.
Parece-me que é a partir de ideias como essas que os autores tecem suas críticas.
Poderia adiantar algumas delas, mas deixo ao leitor o prazer de ir descobrindo-as ao
longo das linhas desse belo livro. Por fim, parece-me que os autores desses ensaios
acompanharam a chave hermenêutica da proximidade na distância, nesse caso com
Nietzsche, quando ele diz “nós, cuja tarefa é precisamente a vigília”.

Fernando Ferraz
Doutor em Filosofia pela Université de Paris I - Pantheon Sorbonne;
Prof. Adjunto IHAC-UFBA.

Salvador, outono de 2012.

3
APRESENTAÇÃO

Caso se queira falar das imagens reprodutíveis para além do sentido familiar,
como em tudo o mais, deve-se estabelecer uma distância. Sem esta, o entendimento
sucumbe ao primário e comum, e em última instância, àquele sentido determinado pelo
regime do qual fazem parte as imagens. É a distância que permite, ao discernir esse
regime, um estranhamento, sem o qual não há interpretação legítima. Deve-se evitar,
sobretudo, tomar a imagem como algo de natural, como representação fidedigna, que se
aproxima do que realmente é ou foi. Mas isso ainda não é suficiente. Precisa-se notar a
distância entre o que se diz da imagem e o uso efetivo que é feito desta, e mais ainda,
seu impacto sobre a compreensão de mundo e sobre hábitos. Não basta, portanto,
atentar-se para quem as usa, como o faz, seu propósito; é necessário notar o que elas
fazem conosco. Chamamos de “regime” a esse conjunto de coisas e aos aspectos teatrais
das imagens.
O que nos resta, porém, se essa distância é abolida, se atravessamos esse oceano
imagético que nos interroga, nos cerca, nos forma sem fronteiras – nos toca? Quando o
regime imagético se torna obsceno e sem fim? O que ainda se pode escrever? Ou será
que só podemos escrever? Aqui o lugar desse pequeno opúsculo, do nosso combate:
ensaiarmos uma teoria como ficção científica, talvez mesmo paródica, assombrada por
fantasmagorias, alegorias, dispositivos, regimes, malícias.
Para uma crítica das imagens do urbano contemporâneas é mister o
conhecimento de certas considerações, nomeadamente, as de Benjamin, Bataille e
Flusser. Mas, então, importa o procedimento não como exegese (o que importa para nós
o que disseram?), e sim o que podemos fazer com o que disseram, pois do contrário
repete-se o que eles disseram para coisas que não são de seu tempo. O sentido histórico,
tão pouco exercitado como sempre, ensina que a repetição de uma crítica feita há 30 ou
70 anos só pode ser algo simiesco ou intempestivo. O primeiro tipo repete as palavras
alheias, sem notar que o sentido dessas, na repetição, só pode ser divergente daquele de
outrora, pois seu tempo, seus interlocutores e os dragões a serem combatidos são outros;
e ei-lo condenado ao caricatural. O segundo faz um uso da máscara, deslocando as
armas do passado contra o seu presente. Há muito de intempestivo nesse livro: foram

4
utilizadas noções de filósofos e artistas diversos, sem embaraçá-los, mas sem nenhuma
filiação, tal como é permitido aqui abaixo dos Trópicos, onde não há pecado.
O informe, conceito roubado de Bataille, caracteriza o atual regime de imagens
como o marcado pelo reprodutível e pela submissão da imaginação a um imaginário –
nossa barbárie, a imaginária urbana tecnicamente reprodutível. Ela não é do tempo de
Benjamin, e Flusser pôde apenas vislumbrá-la, quando de sua gestação. Benjamin não
estava imerso em uma realidade mediada por imagens reprodutíveis. O conceito de
informe define, para nós, a confusão própria de nosso tempo, entre realidade e imagem.
Para tornar explicita essa confusão, tratou-se sempre de interpretar o uso das imagens de
uma perspectiva teatral. Daí a importância de Artaud, o único talvez que tenha levado
tão longe as reflexões nietzschianas contra o teatro aristotélico.
O livro é um conjunto de ensaios, que foram escritos sempre na última hora,
para responder ao convite de publicações, conforme indicado aqui em notas. Mas foi
nossa intenção, desde o primeiro deles, que pudessem ser publicados em conjunto.
Algumas poucas alterações foram feitas, principalmente a fim de evitar repetições
desnecessárias. O primeiro1 é uma apresentação alegre e trágica de tudo que o livro traz:
a fotografia comparada ao vodu, e não ao espelho; a relação entre patrimonialização e
turismo, estabelecida a partir da imagem reprodutível; técnica e magia, recompostas
enquanto indiferenciação. O segundo,2 que dá nome ao livro, mostra a
indiscernibilidade, a que estamos submetidos, entre imagens estéticas, jornalísticas,
publicitárias e aquilo que não é imagem; um isomorfismo, portanto, entre o duplo do
cinema e o duplo do jornalismo, que lança tudo e a todos ao campo da publicidade; é
como se a imaginária urbana fosse reduzida a esse formato técnico e comercial. O
terceiro3 explicita o caráter de manualidade de dois regimes de produção de imagens,
que estão desde o século XIX em confronto, e os seus respectivos dispositivos e
encenações representacionais. O seguinte4 aproxima a guerra contemporânea em sua

1
“O artifício e a morte” em [re]dobra, n. 7, 2010. ISSN 2236-3688. Disponível em:
<http://www.corpocidade.dan.ufba.br/redobra/r1/tumulto-r1/o-artificio-e-a-morte/>.
2
“A cidade e seu duplo” em [re]dobra, n. 8, 2010. ISSN 2236-3688. Disponível em:
<http://www.corpocidade.dan.ufba.br/redobra/r8/tumulto-8/a-cidade-e-seu-duplo/>.
3
“Ceci n'est pas une ville! Do estágio pictórico ao reprodutível”, inicialmente escrito para a Revista
{{em_rgencia}, n. 3: cultura-políticas (2011), ele foi primeiro aceito, e depois recusado, por razões que
desconhecemos.
4
“Imagens de guerra e massacres midiáticos” é um capítulo do livro: SANTOS, Cosme Batista de et al.
(Org.). Crítica cultural e educação básica: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos. São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. p. 91-101.

5
forma viral, midiática, ao massacre que os meios de comunicação submetem os
indivíduos conectados mundialmente pelas telas; analisa seus desdobramentos frente ao
terrorismo internacional em que as imagens e sua circulação importam mais que seu
caráter político, ou melhor, estão lugar desse. O quinto5 trata de maneira radical o
processo de patrimonialização generalizado da cultura, o qual evoca a memória e a
história como homogêneas, visando a um congelamento da invenção da vida material e
espiritual. O sexto6 investiga as relações espúrias entre Estado, mercado e publicidade
sob a égide do liberalismo contemporâneo, fórmula já testada na gestão do Estado
nazista alemão.
Os dois últimos textos são de autoria exclusiva de W. Drummond. O primeiro7
procura aplicar uma teoria da história que possibilite a utilização da fotografia como
documento para a história do urbanismo, priorizando rupturas e emergências em
detrimento do estudo das origens e continuidades através do conceito de dispositivo
cenográfico aplicados aos livros Retratos da Bahia e Centro Histórico de Salvador do
fotógrafo francês Pierre Verger. O segundo8 é uma análise da cronologia e historiografia
do urbanismo apoiada na teoria da história, de inspiração nietzschiana, a partir dos
conceitos benjaminianos ou foucaultianos, suspeitando da visão linear, contínua,
evolucionista e fechada, propondo descontinuidades, heterogeneidades, emergências e
acidentes.
Por último, em anexo, uma discussão epistolar, franca, sincera e sem meias
palavras, sobre a estética realista com o diretor e produtor de documentários Luis Carlos
de Alencar, a quem agradecemos a oportunidade de expressar de modo coloquial
algumas ideias.

5
“A voz do morto: crítica ao patrimonialismo” aceito para publicação em Revista Entretrópicos, n. 1,
edição 1 – Patrimônio e memória, Rede de Revista, programa Cultura e Pensamento do Ministério da
Cultura, ISSN 2236-0034.
6
“A gaiola e o pássaro: o Estado e a cultura urbana” em Cadernos PPG-AU/FAUFBA, Salvador, v. 10,
n. 1, 2011. (Número especial: Cidade e Cultura).
7
“Pierre Verger, do heroísmo ao espetáculo” no I ENANPARQ (2010). Versão PDF disponível em:
<http://www.laboratoriourbano.ufba.br/download.php?idArquivo=90>.
8
“Teoria historiográfica e a cronologia do pensamento urbanístico” em Cronologia do pensamento
urbanístico (2010). Disponível em:
<http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/leituras.php?id_leitura=2>.

6
O ARTIFÍCIO E A MORTE
W. Drummond, A. Sampaio

1.

A análise brechtiana da fotografia assemelha-se curiosamente à análise marxista


da mercadoria. Ao relacionar a circulação de mercadorias com o fetichismo, uma das
questões proeminentes é a impossibilidade de identificar as condições fabris de um
objeto – todo o processo de exploração a que estão submetidos os trabalhadores está
encoberto. Deve-se, pois, construir sobre a reprodução da realidade, algo de artificial.
Assim, os marxistas forçariam a manifestação da verdade – apesar da beleza. Para eles,
a verdade social das relações reificadas. Para os surrealistas, porém, a reprodução
fotográfica como um artifício de verdade.

2.

Assim como a pornografia torna mulheres, em condições abjetas, desejáveis, a


multiplicação de imagens que constitui a ambiência urbana contemporânea, no informe
batailliano, torna as cidades, mesmo em suas condições mais repulsivas, fascinantes. O
conceito de informe é o abandono da ideia de paisagem urbana, em que nos
colocávamos a uma distância – do olhar às coisas. O informe, ao contrário, a suprime.
Mergulhamos, pois, impunemente na indistinção entre a imaginação e a imaginária
urbana tecnicamente reprodutível.

3.

A fotografia, como já se disse, assemelha-se a uma máscara mortuária; não


porque é criada sobre uma pele da realidade, mas porque, quando a vemos, uma história
enigmática e inacessível nos é roubada. Seria preciso um trabalho de luto, para que,
finalmente, esta história surgisse? – É este o trabalho da crítica? O de legendar as fotos?
Também de morte se constitui o sex appeal do inorgânico, suscitado pelas
aparições improváveis dos manequins, povoando espectralmente, por trás das vitrines,
as ruas modernas. A moda está sob o signo da morte, fundindo o desejável, o corpo
feminino, na plasticidade mórbida dos manequins, ou superpondo ao erotismo, ainda
creditado ao desejo, as indeterminações consumistas pelas coisas. A imagem

7
reprodutível como máscara mortuária produz um efeito inverso e perverso: terá sido o
crime denunciado por Benjamin nas fotos de Atget a transformação dos passantes em
personagens? Neste sentido, não mais nos diferenciamos do inorgânico. Somos todos
manequins! – Só a fotografia pode nos mostrar a leveza do inorgânico. Através dela, da
leveza dos manequins, recuperamos a graça. Se antes a multidão era definida enquanto
massacre do que em nós é humano, o espaço urbano enquanto total estranhamento e a
própria vida, quase improvável, do indivíduo massificado, como reificada e venal,
agora, o aparelho lança o fotógrafo em um anátema: ele torna-se um Midas... O que é
chulo vira ouro; o feio, belo. Não é a uma ortopedia social que somos levados, mas a
uma kalosmorfia.

4.

Os vários animais que podem transitar – quase livremente – pela cidade são
aqueles que não comemos. Os outros, interditos, aparecem ao custo de suas próprias
vidas. Quanto mais aparecem, mais devem desaparecer nessa forma inversa de celebrar
que é o sacrifício. Esta lógica do sacrifício é a mesma da imagem reprodutível. Esta
transforma todo o movente em imagem-objeto – elidindo cheiro, temperatura e todas as
qualidades das coisas (com exceção das cores) prescritas pelo método cartesiano, mas
inclusive também seu peso. A foto, por exemplo, não é uma res extensa. O que definia a
coisa, para Descartes, era o volume. Uma foto não tem volume; não é uma coisa;
embora se avolume enquanto objeto no nosso cotidiano.
A intervenção política de hoje não é na cidade, mas na sua imagem reprodutível.
A produção incessante de imagens-objetos do espaço urbano pode tanto suscitar suas
estranhezas quanto concorrer para sua estetização. Onde almejávamos uma politização
da estética – perseguida ad infinitum pelos artistas de intervenção urbana, presos na
repetição cíclica do gesto duchampiano –, vê-se uma estetização da política, como
denunciou Benjamin. O nosso antiplatonismo é trágico: na beleza, a primeira a
sucumbir é a verdade.
Não é com o espelho que devemos comparar a fotografia, que lhe é muito
próximo e óbvio, mas com o vodu. Nesse caso, pelo afeto, tomamos o inorgânico pelo
vivo, em suas formas fotográficas, ou como no vodu, a boneca-fetiche pelo corpo
sensível, fazendo sucumbir este ao inorgânico.

8
A máxima exposição do meio urbano em imagens equivale à sua exposição ao
capital globalizado e predador. Também o espaço urbano de trocas simbólicas tenderia
ao esgotamento e à fixação especular. Estamos aqui no campo da patrimonialização e do
turismo, como reincidência do morto e do mesmo. Mas, enquanto imagem, elas não
possibilitarão uma penúltima inversão? Não ganha o morto, aí, uma sobrevida? As
imagens espetaculares das cidades submetidas ao processo técnico ainda estão prenhes
de encantamento. Pois, se a relação entre técnica e magia, enquanto diferença, só pode
ser entendida como variável histórica, a nossa tessitura histórica a recompõe enquanto
indiferenciação.

5.

Aprendemos a olhar para a cidade através do olho morto das objetivas, cegas,
que não espelham, não pintam, mas “captam”, “capturam”. O que assusta é pensarmos
isto como uma visão – o que para nós é profundamente desumano. O olho-máquina e
suas imagens-maquinais se superpõem, instaurando uma instantaneidade do “tempo
real”, sobre as janelas e as formas de olharmos o fora das cidades, deduzimos daí que
estamos nesse processo de submissão do olhar à visão cega, engajada nos programas
que carregam como destino. (Longe duma dimensão maquinal, os quadros se
instauravam no manual). As telas (TV, monitor), se não espelham, se espalham por
todos os lugares, metastasicamente, como as câmeras, visualizando a cidade,
esquadrinhando o tecido urbano. Naturalizamos essa visibilidade, e só historicamente
percebemos os regimes de verdade, quando nos atemos às instabilidades promovidas
pelos desencadeamentos técnicos, aleatórios e ininterruptos. O último meio técnico se
faz invisível pela imersão e esse encantamento só pode ser rivalizado pela teoria.
A comparação entre a alegoria da caverna e o nosso fascínio pelas imagens
reprodutíveis é velha. Sentamo-nos em frente à televisão e tomamos seus espectros de
realidade (“afinal existiu o referente”, como sempre nos lembram) como ela mesma, tal
como os prisioneiros da caverna tomavam as sombras por toda a realidade. Há um
detalhe: isto é possível, no mito platônico, pois além dos braços e das pernas, também o
pescoço estava agrilhoado. E hoje, para podermos “passear” pelas cidades escaneadas,
que mimetizam as cidades por onde passam pessoas, devemos ficar imóveis. Em que
estágio entramos ao simplesmente nos deleitarmos com as mágicas imagens do Google
Street View, em que as telas dos computadores apagam janelas e espaços, e nos trazem

9
dramaticamente o caminhar sem corpo? Deriva a contrario de Artaud e Deleuze: da
utopia delirante do corpo sem órgãos à mágica tecnicizada dos órgãos sem corpo. Seu
caráter panorâmico é alcançado graças a uma técnica não tão nova de ilusionismo: a
colagem. Na realidade vista, o horizonte nunca é reto: uma reta, cuja extensão não possa
ser abarcada por nossos olhos sem nos movermos, deverá ser curva. O programa só
alcança este caráter circular da aparição precariamente, pois não é possível apagar
totalmente a arte da colagem, enquanto, por outro lado, o olho (ou o cérebro) não cola
nada.
Será a emergência de mais uma ruptura das/nas imagens reprodutíveis, agora em
suposto tempo real e acoplada a imensos aparelhos: das redes em nuvem de
computadores aos satélites e terminais de processamento? A praticidade do uso, sua
cotidianidade nos perturba quanto ao que estamos mesmo fazendo.
“Não, não, eu não estou onde vocês me espreitam, mas aqui de onde eu vos olho,
rindo”, disse o filosófo à cidade. Essas novas imagens urbanas, então, devem servir para
nos localizarmos e não para nos localizarem.

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A CIDADE E SEU DUPLO
W. Drummond, A. Sampaio

para o menino Joel, vítima de balas e imagens.

1.

Nosso espanto: retornamos da sessão de cinema e, na tela de nossas casas,


encontrarmos as mesmas imagens; não as do filme, mas as do telejornal! O BOPE
invadia o morro. Para assombro ainda maior, no outro dia, em uma reportagem sobre as
milícias no Rio de Janeiro, usaram as imagens do filme, sem crédito.
A imagem ficcional do jornalismo se quer verdadeira, mas por que o cinema
deveria visar o mesmo? E como é possível que o jornal use imagens de cinema,
artificiais que são, como se conservassem aí um referente real? Não fazemos aqui
nenhuma crítica da narrativa. Não visamos o dito, mas o visto. O fascismo do filme não
está na história brutal, como todos reconhecem, mas nessas imagens que se querem
ficção, e se pensam discurso político e mimese direta da realidade; ao mesmo tempo,
história verdadeira e intervenção urbana. Aqui, tratamos de nossa imaginária
confusional – aquela única barbárie que é especialmente nossa.
Os únicos sistemas sobre os quais discutimos são aqueles que apontam Flusser
(o das imagens, de seu regime autonomizado, em detrimento de toda escrita) e Artaud
(do teatro, cujo duplo seria o mundo – e não o contrário, que é a verdade de todo
realismo). Por isso decepcionamos ao não criticar a narratividade. Nem toda história
passa pela escrita, pela coisa dita – logo, não se pode tratar, aqui, de uma escrita da
história ou de uma arqueologia foucaultiana do saber ensimesmada em sua própria
epistemologia. O fascismo do filme não é conceitual. Aliás, aí ele é bem grosseiro, sem
graça; não merece comentários.
Quando encontramos um isomorfismo entre o duplo do cinema e o duplo do
jornalismo, estamos todos no campo da publicidade. Esta, autonomizada e estetizada,
pois, enquanto tomávamos as reportagens como duplo da realidade, as imagens
cinematográficas tornaram-se publicidade das imagens jornalísticas. As imagens
obscenas não se distinguem mais das publicitárias; na verdade, nem mesmo as fotos de
família – tanto as digitais, das redes sociais, quanto aquelas impressas, que se mostram a

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parentes e amigos. Embora exista aí um abismo. Suas diferenças transitam em uma
perversa dialética urobórica: estetização da realidade e naturalização da estética.

2.

O cinema, o teatro – não são coisas; não devem ser definidos por alguma função
que cumpririam, ainda que de fato tenham exercido. Por ex.: Uma música serve para
vender um produto. É esta venda, ou esta relação com a venda, que a define? O
empobrecimento da estética cinematográfica é tornar-se devedora da realidade, e não
sua credora… Essas imagens não deveriam ser um comentário cotidiano – naufrágio na
banalidade – do visto. Esse é o programa do jornalismo!
Nietzsche – o herói de todos pós-modernos, aquele que divide, como se costuma
dizer, com Marx e Freud a rede de conceitos do século XX – não via aí o
empobrecimento do teatro? Na era socrática, servo do Aufklärung, em nossos dias, pior,
de um jornalismo político de segurança. Por outro lado, como os três intérpretes da
cultura podem ainda ser a conceituária do século XXI?
Mas voltemos: Por que o teatro deveria ser verossímil? Ou ainda: Por que a
fotografia deve ser definida pelo referente? E ainda: Como o cinema de ficção pode
querer ser jornalismo? Como uma imagem vale como acontecimento? E aí esbarramos
no jornalismo e em seu duplo: a publicidade.

3.

Não é óbvio o interesse de Artaud pelo teatro de Bali: que há nele de crueldade?
Não poderia ser o que acreditaram aquelas encenações da década de 1970 ou os
epígonos que se arrastam por aí. O filme repetiria, a seu modo, essa interpretação
equivocada, ao suscitar uma catarse mediata e midiática; bárbara – pois não é
propriamente cultura, a não ser no sentido amplo que possa se chamar jornalismo de
“cultura”. Para que ir ao museu, se lá encontrarmos o que já vemos na televisão ou na
internet? (É evidente que não falamos da pintura, pois esta não é uma imagem
reprodutível; a única da qual tratamos).
O encanto artaudiano por Bali – e daí sua crueza – era a independência do teatro
em relação à realidade e então sua imediaticidade. A recusa do caráter representacional
e a afirmação do artifício; em que a produção de sentidos se dá na instantaneidade do

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ato cênico, que não se deixa agrilhoar por pobres ilações moralescas, nem ao texto que
lhe antecederia e ao qual deveria re-presentar.
Artaud se situa no limiar da autonomização da imagem em detrimento da escrita.
É moralizante tomar a escrita naquele momento como definidora do cênico
(sobrepondo-se à produção imediata do sentido): o que é visto deve sempre passar pelo
dito – e o corpóreo desaparece para gozo do inteligível. Ora, Flusser nos alerta da
emergência de uma outra configuração, em que a imagem não se encontra mais
minimizada em relação ao que é dito. O que, para ele, é “imaginação confusa”, para nós
é, todavia, uma “imaginária confusional”.
Para malogro do que queria Artaud, cumpriu-se o que esperava. (Novamente:
não falamos do teatro, mas do cinema, que é o nosso teatro). A imagem torna-se apenas
teatral, mas não resta nenhuma crueldade, aquela que instituiria a cultura, forçaria a
civilidade, apenas a da fome (ou a de uma barbárie que lhe equivale, pois nesta cidade
pestilenta do filme, a morte – e a vida, portanto – é banal).

4.

A tragédia grega, como mito de origem da cultura ocidental, tinha como tema a
violência. Toda e qualquer história, que quisessem contar os tragediógrafos, deveria cair
no esquema daquelas máscaras lendárias. Mesmo a tragédia de Xerxes, Os Persas de
Ésquilo, exemplo raro em que a tragédia encenou uma história recente, corresponde
àquela estrutura. Ele é, então, uma máscara, e a guerra que se conta não é mimese do
evento. Não se deve supor um paralelismo entre o teatro grego e o acontecido em sua
época. Ele é mesmo o completo contrário do nosso melhor cinema do urbano.
A verdade de Édipo rei é da ordem do deslocamento; não mimetização da
realidade. (Glauber se gabava de ser o único cineasta que, ao filmar a África, não
mostrou nenhuma fera, pois para ele, o selvagem que aparecia em seus filmes era o
único possível, o capitalista.) O teatro assumia-se enquanto mentira, enquanto
espetáculo, e não como espetacularização da violência ou da miséria (urbana ou
política); por isso podia dizer a verdade! Essa é a tese de O nascimento da tragédia de
Nietzsche. Há uma outra, aquela que esperava pelo renascimento wagneriano. Esta, nós
queríamos poder recusar! – A cidade de Tebas está sobre o domínio da peste, mas não
há nenhuma representação de corpos pestilentos. Nem Jocasta enforca-se, nem Édipo
cega-se em cena. De todo modo, é delicado o filme não encenar o estupro.

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O que vivemos agora, a tragédia da violência brasileira, nós a entendemos hoje
em uma zona informe. A nossa tragédia dialoga com a fome pensando-se cultura. O que
sabemos da violência do morro (do Rio de Janeiro ou de Salvador) é através das
imagens jornalísticas. Estas estão nesse lugar informe, em que não há distinção entre
evento e encenação, entre o acontecido e a representação. Essa imaginária está em nós –
e não para nós. Estamos privados da distância que possibilita a cena. Somos hoje o
espectador ideal de Schlegel, que Nietzsche viu na Grécia antiga e Artaud sonhou com
seu teatro da crueldade, aquele espectador que acaba, no coro da tragédia, confundindo-
se com a cena, e sofre com o herói as dores do mundo e um êxtase báquico com a
natureza. Infelizmente, não nos enganamos como Nietzsche em relação às reações do
público. O público, como o coro, deve comentar o visto e ouvido na distância que o
forma.
De que maneira poderíamos nos contrapor a esta zona informe do escrito, visto e
acontecido? – Não defesa, nem resistência, mas que luta ainda é possível? Talvez uma
reminiscência pueril, a de nossa felicidade urbana, talvez na encenação desse lugar de
distância… querendo-a como um futuro possível longe de qualquer paraíso artificial e
sem nenhum romantismo das origens.

5.

A confusão entre estética e política é nefasta para ambas. A estetização da


política leva ao esvaziamento das questões relevantes para o presente e o futuro,
enquanto a politização da arte pelo viés do jornalismo corre o risco do próprio
apagamento da estética, assediada pela publicidade. Os artistas tomam sua própria obra
por sua funcionalidade – eis o trágico na arte de nossa época. O perigo desse “teatro”
político: sua midiatização é o discurso cotidiano e gasto da violência nossa de cada dia.
Toda realidade é fascista; ou se preferirem, gregária. O artista que a reproduz é o
primeiro a sofrê-la – como um preposto.
A despeito dos artistas que utilizam a denominação “intervenção urbana” (a
nosso ver, inadequada para o caráter aleatório e anárquico do estético, pois o
supostamente político, enquanto intervenção, se dá no âmbito do autoritarismo e da
força), o filme de que tratamos se decompõe em duas intervenções urbanas
profundamente trágicas: primeira, a ocupação de territórios citadinos por forças
policiais, seja do Estado, seja do tráfico; segunda, a ocupação de nosso imaginário por

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essas imagens pestilentas (não esqueçamos que se sonhava em preto e branco quando o
cinema ainda não era colorido). Esses dois casos excluem a atuação dos artistas
urbanos, os quais queríamos próximos de uma outra nomeação mais adequada ao
sentido de sua relação delicada com o espaço, e do risco a que se expõem. É que os
artistas, que se acreditam no âmbito da intervenção urbana enquanto prática estética,
estão obnubilados pela política, por seu autoritarismo e pelo esvaziamento da estética.
Acenam para uma antropologia quando o campo só poderia ser o da indisciplina. Fora
isso, um quiasma que se instalasse no seio do urbano. Desviando uma frase de
Benjamin, fazer do gigantesco objeto técnico de nosso tempo, para nós a cidade, o
objeto das inervações urbanas! Deixemos as intervenções urbanas para o programático,
o autoritário e o disciplinar.

6.

Se, por um lado, o filme se assemelha àqueles hollywoodianos, afinal sua


aclamação não passou por nenhum risco, por outro, a diferença entre as nossas histórias
e as hollywoodianas é que estas não aconteceram – e se aconteceram, não foram
cotidianas.
Infelizmente não nos é permitido um novo Macunaíma, este, vitimado por nossa
moral policialesca. Assim como também não veremos um Édipo em Colono, mas sim,
depois dos últimos acontecimentos “pacificadores” no Rio de Janeiro, uma Antígona.
Precisamos tentar ser artaudianos ao reverso; o do teatro de Bali, que é o
contrário do teatro da crueldade!

15
CECI N’EST PAS UNE VILLE!
DO ESTÁGIO PICTÓRICO AO REPRODUTÍVEL
W. Drummond, A. Sampaio

1.

Chamamos de “estágio pictórico” às imagens do urbano criadas por pintores. Apesar da


pletora de trabalhos de matizes distintos, aqui nos é caro o conjunto das imagens classificadas como
“impressionistas”. O conceito abriga uma miríade de pequenos combates dentro do universo
representacional. A fórceps, enquadramos esses gestos, em sua maioria isolados, singulares, na
generalidade impressionista. Mas por que eles? Ao abandonarem os estúdios em direção à luz,
reencontram a cidade, ruas, praças, transeuntes, festas, em frente dos quais erguem seus cavaletes;
pena nos restarem apenas os vestígios de luz, mas a própria história da arte que aí os alocou poderá
retirá-los num dia próximo. Provavelmente não nos chamariam a atenção, caso não nos
apercebêssemos da emergência de um outro estágio visual, o reprodutível. A convivência forçada do
regime pictórico com o regime fotográfico (e talvez só aí estivéssemos mesmo no campo da imagem)
impôs redefinições na produção de imagens do espaço urbano. O que estava sendo jogado? Para os
da época, o que era e o que não era arte. Para nós, outra coisa, que diz mais ao nosso tempo que ao
deles, aliás, como toda historiografia astuciosa.
Quando os primeiros fotógrafos decidiram se arriscar, munidos de equipamentos pesados, por
trilhas urbanas, algo mais que mobilidade e rapidez estava em jogo. Marville, Atget, Brassaï, entre
outros, impunham uma outra visualidade, do século XIX para o XX, agora fortemente técnica, que
iria desbancar a importância da pintura como imaginação urbana, e relegaria, desde então, a um
caráter secundário, cada vez mais em desuso. A argúcia teórica de Benjamin recolocou a questão
segundo interesses que lhe eram contemporâneos: reprodutibilidade e exponibilidade, já contendo em
germe a reflexão do que nos é contemporâneo, a saber, a técnica e produção de imagens, e aquilo que
apenas de nós é contemporâneo, a mercantilização e proliferação global das imagens. A manipulação
fotográfica se afastava velozmente da manualidade pictórica, e nesse momento, um mundo se
sobrepõe a outro. O estágio pictórico cedendo lugar ao reprodutível. Interpostos ao caráter manual,
um aparelho e seu programa. As cidades passariam por esse filtro enquanto o olho se mecanizava e a
criatividade se submetia (o que não lhe é pouco) ao programa. O que quer dizer, se seguirmos os
conceitos da filosofia da caixa preta flusseana, que o que vemos das cidades nas imagens
reprodutíveis obedece a um programa instaurado nos aparelhos. Mas será preciso ultrapassar essa
filosofia, ainda que contando com a ajuda do mesmo Flusser. Precisamos pensar as imagens

16
reprodutíveis na circulação incessante de mercadorias-imagens e o verdadeiro bombardeio que
exercem sobre os habitantes de uma cidade.
Paris foi a primeira cidade fotografada sem cessar por uma legião de fotógrafos vindos de
todas as partes do mundo na virada do século, sobretudo os que se engajaram ou foram simpatizantes
aos movimentos estéticos das vanguardas. Viveu-se esse choque representacional de mostrar aos
parisienses a sua própria cidade duplicada, estetizada e venal, que se sobrepunha à cidade vivida.
Seria por demais ingênuo acreditar que a cidade de Paris, cidade-musa e principal destino turístico do
mundo, tivesse chegado a isso simplesmente pelos seus encantos naturais e culturais. Mas
convenhamos que a circularidade dessas imagens era limitada, por vezes não conseguindo escapar
dos meios restritos da marginalidade estética. As imagens pictóricas já tinham proporcionado algo
parecido, mediado por outro tipo de técnica, ainda presa aos desígnios da mão e da criatividade
ancorada na tradição. O estágio reprodutível, em sua primeira aparição, como imaginário fotográfico,
ainda estava sem as conexões midiáticas para potencializar e avançar num espaço de indistinção entre
cena e público. Nesse ponto, quadros e fotografias e um incipiente audiovisual possuíam uma
característica comum aos dois estágios visuais anteriores à propagação alucinada das imagens, isto é,
obedeciam a regras representacionais que mantinham uma quarta parede e o ilusionismo cênico da
distância. Os dois, somados ao desenvolvimento do cinema, estavam ainda no âmbito de uma
paisagem, seja ela pictórica ou reprodutível. Talvez, por isso, o provincianismo platônico do conceito
de espetáculo como sintoma de uma sociedade teatralizada em que os indivíduos viam sua vida
(urbana?) na distância de uma cena. Ali, já não mais estávamos.
Os domínios do imaginário reprodutível contemporâneo vão além da midiatização e dos
atuais processos de digitalização e impregnação das imagens (fotografia ou cinema). Este, em sua
completude, implode o campo cênico, destroçando a quarta parede que nos possibilitava o
representacional. Pensando o espaço da cidade, diríamos, então, que não mais diferimos a nossa
experiência da cidade das imagens dela produzidas. A crise representacional se caracteriza pelo curto
circuito entre o vivido e o imaginado, oriundo dos aparelhos em plena circunvolução global. Essa é a
trama entre os dois estágios visuais analisados. Pensamos brechtianamente: a crítica da ilusão
representacional é a derrocada da imaginação, proveniente da pintura, em favor de um imaginário,
nesse caso reprodutível. Não o desaparecimento, mas a sua submissão. E com ela a da pintura que lhe
pertencia. Do mesmo modo é a supressão da paisagem em favor do imaginário como ambiência.
Reféns de imagens produzidas alhures, prenhes de violência, a nossa experiência urbana se
converteu em delírio de guerra, morte ou alegria química. Terrorismo imagético, midiático, que nós
habitamos e que nos habita. O que ainda significa pintar, opor imaginação ao imaginário? Resta um
heroísmo na pintura quando se apropria da fotografia para se distanciar dela, como em Bacon, ou
num gesto de indiferença quase absoluta. (Outro tipo de heroísmo seria a contrario, de dentro do

17
próprio espaço reprodutível, como o faz Jean Baudrillard, tanto na obra fotográfica, quanto na teoria
da fotografia).

2.

“Cinzas da pedra”, exposição do pintor Almaques, ocorrida entre dezembro de 2010 e janeiro
de 2011, é desconcertante. O conjunto dos quadros está na contramão das pinturas em tela de nossos
últimos tempos, ao tempo que, novo esgrimista, desafia solitariamente o estágio reprodutível. Seu
alvo são as imagens urbanas que nas telas de TV e cinema lançam véus sobre os novos territórios
urbanos das principais cidades brasileiras: os infernos artificiais do crack. O centro histórico da
cidade de Salvador, hoje expandido aos confins das zonas turísticas, que acolhera, entre os anos 1930
e 1940 do século passado,9 uma das mais belas utopias urbanas, transformou-se na “organização da
miséria”.10 A mídia local, vendendo as imagens dos viciados e de seus lugares degradados,
espetaculariza a cracolândia em gradações que vão do grotesco ao “humanitário” para deleite de seus
consumidores. Almaques fez daí o seu campo de batalha. A cidade que retrata, ela é a mesma dos
cartões postais, sem todavia poder aparecer em nenhum deles. Barra, Piedade, Praça Castro Alves,
Terreiro de Jesus, Elevador Lacerda, Cidade Baixa vista da Praça Municipal – são os mesmos pontos
turísticos que estão nos cartões postais ou nas propagandas do governo ou da Coca-Cola, com a
diferença de que a cidade de “Cinzas da pedra”, esta sim, nós vemos ao passarmos nesses locais. O
que ele representa não é nenhum último fôlego de uma forma de vida ou uma ideia inteligente. Não
há metáfora, alegoria ou duplo sentido. Um sacizeiro não pode ser herói de nenhum filme. E aí, mais
uma vez, não estamos no óbvio, pois Almaques não os representa vitimados, revoltados ou
revolucionários, humilhados por alguém ou torturados, mas sim cabisbaixos. Não são caricaturas de
drogados. Sem exageros nem apelos, seu personagem principal não se torna ícone. Ele não pode
cumprir nem o papel de Penteu, o de bode expiatório, nem o daquele que se redime e salva o
formigueiro. Ele não é nem o herói grego nem o cristão. Não há beleza, teatro, cultura, religião, não
há nada disso nessas cenas da cidade da Bahia.
Almaques não poderia ser hiper-realista, óbvio. Porque, enquanto este está mais preocupado
em alcançar ou superar a fotografia, o pintor a mostra nua, direta, uma realidade que não se quer ver.
Nisso está mais próximo dos realistas; dos quais se separa duplamente, pois o realismo é um
movimento do passado e porque a realidade de seus quadros não poderia ser figurada pelos artistas
do fim do século XIX e início do século XX, isto é, a influência da fotografia, no modo como

9
Em seus livros, Jorge Amado descreveu personagens que circulavam por ruas, ladeiras e praças do Pelourinho. Os
livros atraíram para a cidade o desenhista argentino Carybé e o fotógrafo francês Pierre Verger, que, com as canções
de Dorival Caymmi, transformaram o viver soteropolitano em utopia estética. Ver “Pierre Verger, do heroísmo ao
espetáculo” Para os territórios do crack, ver do mesmo autor uma entrevista para Muito n. 92 (Jornal A Tarde,
Salvador, 27 jan. 2010).
10
“Contra a organização da miséria”, diz um grafite, atribuído a Neruda, na cidade de Feira de Santana-BA.

18
enquadra as cenas, o separa daqueles quadros, apesar de tudo, teatrais, e, nesses quadros, agora
antigos, há famintos, mas não sacizeiros, realidade que surge, epidêmica, nos fins do século passado.
O que também pode ser dito em relação a certo cinema brasileiro contemporâneo.11
Não é näif, claro. A arte de Almaques abraça o enquadramento fotográfico que o näif recusa.
Não há nela “beleza desajeitada”, nem história, sentimento ou verdade de algum “eu”. Também
nenhum regionalismo. E ele não pinta em geral com cores primárias! Mas, acreditamos, há algo nele
de ingênuo e selvagem, um heroísmo démodé, no uso que faz da pintura. É anticomercial, investe
contra as imagens-mercadoria que nos atordoam os olhos. Elas não serão jamais imagens de alguma
propaganda. As suas pinturas são, na verdade, quase invendáveis. E apesar disso, ele organiza uma
exposição, para que vejamos aquilo de que desviamos os olhos quando passamos em frente, mas nos
locupletamos quando no enviesado das telas de TVs as consumimos. Não em memória de algum
holocausto, ou denúncia de algum massacre não presenciado, a não ser já através de imagens, a
exemplo da exposição Abu Ghrabi de Francisco Botero, sobre as torturas de Guantánamo. No caso
das pinturas de Almaques, as figuras pintadas são a parte da realidade que o cartão postal apaga ao
mostrar apenas o cenário e não seus personagens característicos, ou então estes já são mito.
Os quadros de Almaques realizam outra provocação, porque não demarcam a irreversibilidade
entre pintura e linguagem, por um lado, e por outro, entre as representações (sobretudo as
reprodutíveis) e a coisa tangível. Sua abordagem é política, e enquanto tal, serve-se do
referencialismo. Não há nesta exposição nenhuma reflexão sobre o próprio estatuto da representação.
Não há nenhuma ironia, a não ser, talvez, no quadro Ceci n’est pas une pipe (2010). Também, só
neste, encontra-se um “diálogo” com a história da pintura e especialmente com o pintor francês René
Magritte. Ceci n’est pas une pipe (Isto não é um cachimbo) é o subtítulo de um quadro seu, A traição
da imagem (1929).
Magritte pinta um cachimbo e escreve abaixo o “contrário” do que pinta, quando
esperaríamos justamente que em seu lugar estivesse escrito “Isto é um cachimbo”. Enquanto Magritte
zela pela forma, da imagem e do texto, para que o trocadilho com os cadernos escolares se dê pela
semelhança entre sua imagem e a do quadro; Almaques, ao contrário, pinta imagem e letras toscas,
descuidadas. Escreve em língua estrangeira. Seu cachimbo de crack, instrumento que os viciados do
Centro Histórico sempre levam à mão e tratam com carinho materno, lembraria mais o de Van Gogh
do que o de Magritte, porém ainda mais primitivo. O que diz, então, abaixo desse cachimbo, a
afirmação “Ceci n’est pas une pipe”? Em sua única semelhança com Magritte, Almaques desloca
nossas expectativas. Onde esperávamos encontrar uma “releitura” do surrealismo conceitual, ele nos
“diz” o contrário: “Isto não é um quadro de Magritte! – Isto é um cachimbo!”
11
Exemplar a diferença do trabalho realizado com o filme Pixote (1980) de Hector Babenco (e a nova safra de ficções e
documentários tipo “cosmética da fome”), apesar de semelhante inclusive na proximidade do filme com a realidade,
que a morte de Fernando Ramos da Silva, seu ator principal, escancara. Almaques se afasta dessa estética, pois em
suas pinturas não há morte ou ameaça.

19
O que nos faz ouvir tristemente quase como uma ameaça ao que somos: “Ceci n’est pas une
ville!” (“Isso não é uma cidade!”).

3.

O estágio reprodutível das imagens, midiatizado, digitalizado é o terrorismo em sua forma


mais sofisticada. O caso brasileiro deve ser o mais aberrante, submetidos que somos, fragilizados por
nossa imagética barroca. Em vista disso, apresentamos nossas próprias idiossincrasias: o cinema de
Glauber Rocha (que frente a uma crítica das imagens contemporânea só pode ser comparado com o
do alemão Syberberg) e a escrita em solo brasileiro dos livros de Vilém Flusser. Pena não incidirem
diretamente sobre o urbano.
O gesto leviano e frágil do artista Almaques nos possibilitou acentuarmos as intuições nesse
momento crítico pelo qual passa a cidade de Salvador, em que os territórios do crack são como
fissuras de uma catástrofe maior e já ocorrida. Para nós, que vivemos numa cidade sitiada, sob o peso
das imagens-mercadoria, onde não mais distinguimos a política da publicidade, resta-nos fabular
sobre elas. Com textos e imagens.

20
CINZAS DA PEDRA
por ALMAQUES

São Salvador, óleo sobre madeira 50x70 cm.

Ceci n'est pas une pipe, óleo sobre tela 50x70 cm

21
Piedade, óleo sobre tela 120x170 cm.

22
Cinzas da pedra, óleo sobre madeira, 50x70 cm.

23
FRICÇÃO EM
METÁSTASE
por Alan Sampaio

24
IMAGENS DE GUERRA E MASSACRES MIDIÁTICOS
W. Drummond, A. Sampaio

no mundo que sucedeu à graça, a arte foi o asilo das exceções que restaram.
(Peter Sloterdijk. O desprezo das massas).

Do regime das imagens reprodutíveis

Nesse momento, a sociedade contemporânea vivencia a experiência de uma


guerra interminável, que não mais se dá no conjunto dos países, como na 1ª e 2ª
Guerras, estágio ultrapassado do guerrear, mas na permanência da uma guerra
fragmentada e contínua, espalhada por todos os continentes. Embora alguns conflitos
bélicos ganhem destaque e conhecimento mundial, sobrevive às escuras uma miríade de
pequenos conflitos nos confins do globo e sem projeção midiática. Estes não alcançam
o status de notícia globalizada, salvo se apresentam algum massacre que sirva para a
boa-consciência dos sem-guerras.
Para a maioria dos cidadãos contemporâneos, a arte da guerra é completamente
desconhecida e mesmo as suas atualizações estratégicas e tecnológicas nos passam
despercebidas, pois este é um saber para especialistas. Sofremos, todavia, um outro tipo
de guerra: o bombardeio incessante de imagens midiatizadas e espetaculares desses
conflitos. Por mais distantes que pareçam, devido ao estágio cultural tátil em que
vivemos, suas imagens nos assediam. Segundo Benjamin (1994, p. 193), “não existe
nada na recepção tátil que corresponda ao que a contemplação representa na recepção
óptica. A recepção tátil se efetua menos pela atenção que pelo hábito”. Benjamin
também já caracterizava as imagens reprodutíveis por sua exponibilidade: o espectador
não mais se desloca para ver a obra, mas esta chega até ele. Porém, não é de sua época,
e sim da nossa, a mercantilização e proliferação global das imagens.
Nós sim temos de responder ao programa que mecaniza nosso olho e subjuga
nossa criatividade, com as determinações do aparelho fotográfico, e condiciona a
vulgaridade de nossas opiniões pela cultura de massa. Segundo o filósofo alemão Peter
Sloterdijk (2002, p. 28-32), essa vulgaridade já se encontra exemplarmente na

25
hitlermania, cuja idealização horizontal é “uma auto-adoração da mais lasciva
mediocridade”, tendo o Führer como meio público de culto:

Nele [em Hitler] o narcisismo vulgar tornou-se próprio para os palcos. O


sonho do grande sucesso sem mérito tornou-se verdadeiro nele e, através
dele, para inúmeras pessoas. Por ser capaz de reunir em si as infâmias
sonhadoras do mais variados grupos, ele provocava a atração nas mais
diversas partes. Por isso, os documentos fotográficos ainda hoje dizem mais
sobre ele do que biografias de centenas de páginas.

A hitlermania, porém, é própria de uma época em que a massa se reunia em


multidão (como descreve Elias Canetti em Massa e poder), e não da nossa, do
individualismo de massa.
A obra de Marshall McLuhan, infelizmente relegada aos cursos de comunicação,
é uma primeira e violenta reflexão sobre essa emergência. Apesar dos famosos textos
sobre a aldeia global e os processos comunicacionais, para o nosso trabalho destacamos,
principalmente, War and peace in the global village, quando o teórico canadense analisa
as relações entre guerra e cidade, refletindo no âmbito dos processos imagéticos dos
anos 1960. O próprio design do livro, concebido por Quentin Fiore, acompanha a
reflexão rápida, ao cruzar de forma inusitada texto e fotografias, alimentando a ideia de
que o enfrentamento urge novas formas expressivas, pois “[...] cada nova tecnologia
exige uma nova guerra”, como diz McLuhan (McLUHAN; FIORE, 1968, p. 98). Paul
Virilio, ensaísta francês, denomina essa nova compreensão do belicismo, apoiada numa
tecnologia renovada, de guerra pura, decorrente da supressão da política e do ingresso
numa “transpolítica” definida como “o início do desaparecimento do político na
rarefação da última provisão: a duração. Democracia, consulta, bases do político,
requerem tempo”, conforme Virilio e Lotringer (1984, p. 35-36). Virilio insiste que a
tecnologia contemporânea não mais divide “matéria e espaço geográfico” como antes,
mas o tempo, esgotando-o (sobre a guerra das imagens e a guerra do golfo, ver L'écran
du desert).
No que se refere aos estudos urbanos, Paris, a cidade-musa dos fotógrafos, e
principal destino turístico do mundo, coincidência não casual, foi a primeira em que se
sentiu o choque de representação, quando a cidade se viu duplicada, estetizada e venal.
Ainda assim, dado à limitada circulação dessas imagens, ela não nos serve como
parâmetro de nosso próprio choque. Nós sim avançamos na indistinção entre cena e

26
público.12 Aquelas fotografias, assim como as pinturas e o incipiente audiovisual,
mantinham a quarta parede e o ilusionismo cênico da distância. O teatro de Bertolt
Brecht queria quebrar a parede imaginária que divide o espetáculo teatral e o público.
Nossa época se distingue por uma estranha inversão do ato brechtiano, pois o esforço
parece ser o de erguer alguma parede. Já não mais diferenciamos o vivido e o
imaginado. E nada sabemos dos efeitos dessas imagens que agem sobre nós como uma
possessão, de como se internalizam no momento mesmo de sua internacionalização.
Que tipo de Aufhebung13 se dá entre o simbólico mundo primitivo e esse novo
imaginário como uma recaída – agora marcados pela magia da técnica? O que podemos
constatar é a subserviência da imaginação, e das formas estéticas e sociais que lhe eram
próprias, ao imaginário reprodutível.
Distante de Paris, o caso brasileiro nos remete à ambiência de uma guerra
interminável, urbana e intestina. Às imagens das guerras sem nome e indistintas, que
nos ameaçam no instante antes de desaparecerem, soma-se o impacto da visualidade do
horror cotidiano das esquinas e corpos como vias de expiação. No mais espetacular
capítulo da recente história do tráfico do Rio de Janeiro, as imagens de sublimação da
“inocente”, para não dizer hipócrita, sessão de cinema foram replicadas na tela em
nossas casas, por telejornais que cobriam a invasão do morro pelo BOPE. Mais que uma
simulação, cujo modelo se impõe à revelia da realidade produtiva das imagens, o que
nos assombra são as conexões pedagógicas do evento. O mix perverso de estética e
publicidade de um isomorfismo entre o duplo estético e o duplo jornalístico, como
apontamos no ensaio “A cidade e seu duplo”.
Reféns de imagens produzidas alhures, prenhes de violência, a nossa experiência
urbana se converteu em delírio de guerra, morte ou alegria química. Terrorismo
imagético, midiático, que nós habitamos e que nos habita. Essa é nossa única e
interminável guerra: o convívio conflituoso com essas imagens de horror que se impõe
como pão nosso de cada dia. O ambiente das imagens reprodutíveis,
descontextualizadas, circulando sem fim, de tela em tela, é o nosso front e o desafio que
se impõe será interpretá-las; interpelá-las. Do contrário, estaremos submetidos a esse
regime de imagens frias de medo e violência. Hoje, apenas alguns poucos o enfrentam.
12
No ensaio anterior (“Ceci n’est pas une ville!”), notamos a passagem do estágio pictórico (definido por
imagens desenhadas ou pintadas e expressas numa manualidade) para o das imagens reprodutíveis (em
que a manualidade se expressa tecnicamente por meio dos aparelhos, imagens fotográficas e fílmicas).
13
Aufhebung, conceito-chave da dialética hegeliana, costuma ser traduzido por “subsunção”, e significa
que algo que é abolido, é ao mesmo tempo conservado.

27
Da alma sitiada (a guerra em nós)

Ontem fomos sitiados por imagens de um massacre como nunca antes. A mídia
duplicou o massacre em nós. Essas imagens não nos pertenciam e a reflexão desse tipo
de acontecimento delas prescindia. Ao evitar o silêncio, ao trazê-las para o campo do
escrito, enfrentando-as, talvez possamos exorcizá-las.
A mídia é a instância em que se conjugam o exemplar e o repetível. O espaço de
ação dessa exemplaridade nunca é apenas o físico. Mas a sobreposição desse espaço
pelo espaço midiático, como no exemplo mais recente: um triste rapaz fez do seu corpo
o elo entre a interface da escala física e a midiático que nos é imposta pelo “tempo real”.
A conexão hedionda entre a pequena escola nos confins do Rio de Janeiro e o espaço
midiático dos confins do globo. Entre violência infligida diretamente aos corpos e
aquela mediada pelas imagens. Só nesse sentido podemos caracterizar o seu ato como
terrorista. Toda a fabulação sobre o islamismo e sua adesão, ou qualquer caráter
ideológico para o gesto, desaba na improvisação, tão pueril quanto canalha. Mas o que
definiria esse triste fato como similar ao terrorismo contemporâneo ao tempo que o
afasta de, ao menos, uma dezena de outros atos bárbaros?
É que o terrorismo é uma ação de comunicação. Os terroristas visam menos o
efeito imediato de baixas ou vítimas e mais o caráter comunicional, a instantaneidade da
disseminação do medo, da surpresa. O espaço de sua ação é o espaço midiático
globalizado. Nesse sentido, ele se comporta com uma genialidade maligna sobre a
sociedade contemporânea e o seu uso da imagem. Uma crítica a qual não podemos
fazer, nós que só temos a escrita.
Em não se tratando de nossas coisas cotidianas, mas dos fenômenos públicos,
evitemos avaliá-los por paixão ou apelando para o inefável; e ainda, evitemos primeiro
avaliá-los. Compreender não quer dizer dar um parecer. Ao contrário, exige uma visão
de conjunto que só a distância permite. Com ela, percebemos não só que não era
imprevisível o que aconteceu em Realengo, precedido por mais de vinte fatos
semelhantes, em geral nos EUA, principalmente a partir de meados dos anos noventa.
Quando os massacres em escolas começavam sua história, um quarto de século
antes, Charles Manson escolhia a vítima entre os famosos do cinema. Não à toa. A
notoriedade desejada exigia a vida de um que a tivesse de fato (e já bastou a de sua
mulher e amigos). Nisso repousa a diferença entre o crime de Manson e o dos

28
responsáveis pelos massacres: Manson é um artista fracassado. Os outros também
apostam no efeito midiático, mas como não sabem mentir, apelam para seus dramas
pessoais. Logo, mais verdadeiros. É preciso lembrar que massacres com números de
vítimas equivalentes são comuns tanto em Salvador quanto na Faixa de Gaza (dentre as
várias cidades que não só autorizam, mas também promovem, corriqueiramente,
massacres)?
O jovem carioca, tão vítima quanto as outras, visou este caráter das imagens
reprodutíveis que definem nossa sociedade. Ele quis provocar um sofrimento na
sociedade equivalente àquele que sentia em si mesmo, como vítima desta. Tem seu ato
por heroico, enquanto a mídia o expõe às avessas, pois o toma como anomalia, enquanto
no seu próprio julgamento é a sociedade que é monstruosa, a qual seu ato bárbaro
denuncia. A sociedade midiática apaga sua mensagem, evocando os fantasmas de uma
pseudociência psiquiátrica, sobrescrevendo o nome do menino no lugar dela mesma:
“Ele é um monstro!!!” E no que seus conceitos e jargões não conseguem dar conta do
acontecido, ela lança para o domínio do inefável. Ao inefável pertence aquilo que não se
pode falar. Mais uma vez: Não há nada de inefável e imprevisível em seus atos.
Há pouco assistimos a uma carnificina aplaudida publicamente, em uma
república que proíbe a pena de morte. Em Salvador, criam-se agora as Unidades de
Polícias Pacificadoras, mas ao contrário do que aconteceu no Rio de Janeiro, não
veremos aquele show nacional com imagens em “tempo real”, repetidas ad infinitum.
Agora, mais uma flagrante hipocrisia social. Pois quando todos conhecem seu nome,
ninguém é capaz de reconhecê-lo. O destino de seu corpo é o inverso daquele do nome,
e mais ainda, o do ato. Pois um ato ou um nome é lembrado ou evocado, enquanto um
corpo vive ou se decompõe. A vingança do povo midiatizado é usurpá-lo do enterro que
premeditou, mas a isso acrescenta uma crueldade. Na falta de uma ideologia, ficamos
com a má consciência televisiva...14 O julgamento da mídia é a consciência que o povo
não pode, logicamente, ter. Não queremos chamar o que em nós é povo de
“consciência”, muito menos quando a opinião dos povos é cada vez mais parecida – e
hipócrita.

Da expiação dessas imagens

14
Para o nosso atual estado de mediação midiatizada de valores, costumes, exemplaridades etc., tanto o
conceito hegeliano de “espírito” quanto o marxista de “ideologia” não dão conta de explicar a
realidade social.

29
Para o filósofo Vilém Flusser, estamos em pleno “distanciamento em relação aos
códigos lineares, como a escrita” e nos aproximando “dos códigos bidimensionais,
como fotografias, filmes e TVs”, e devemos pensar o futuro da escrita no contexto dessa
tendência. A supremacia das “tecno-imagens” estaria perigosamente estendendo a sua
expressão do mundo, superficial, em detrimento da escrita, e sua expressão linear.
Autonomizadas, reinventam um mundo como espelho e se distanciam tanto da escrita
quanto das outras imagens que a antecederam. Se, como diz Flusser (2007, p. 149-150)
“o propósito de escrever é explicar as imagens e a tarefa da razão é criticar a
imaginação”, o que nos restaria fazer na atualidade?

Hoje em dia o propósito da escrita é explicar tecno-imagens e a tarefa da


razão é criticar a tecno-imaginação. No passado a escrita explicava as
imagens do mundo. No futuro ela terá que explicar ilustrações de textos no
futuro. Escrever, no passado, significava transformar imagens opacas em
imagens transparentes para o mundo. Significará, no futuro, tornar
transparentes as tecno-imagens opacas para os textos que estão escondendo.

Retomamos, então, nosso próprio campo de batalha, fazendo da página em


branco um front privilegiado. Há outros, poucos, porém, que se expressam em diversos
meios. Bastante sintomática é a trajetória artística de dois cineastas contemporâneos, o
alemão Hans-Jürgen Syberberg, e o francês Guy Debord. Em sua obra, Syberberg
assume a tarefa de crítica ao nazismo e a Hitler, que se realiza com a filmagem de seu
Hitler, um filme da Alemanha. Seu ponto de vista é que o fenômeno nazismo só poderia
ser respondido no campo que ele mesmo explorou: o da produção de imagens. E o
cinema como a arte mais poderosa do século XX, pensado e criado numa singularidade
impressionante, sob inspiração de Brecht e Wagner, do simbolismo e do surrealismo,
atinge sua forma mais ambiciosa como missão histórica. Para Sontag (1986, p. 120),
O filme de Syberberg é uma expressão magistral das potencialidades
simbolistas do cinema e provavelmente é a mais ambiciosa obra simbolista
deste século. Ele faz o cinema como uma espécie de atividade mental ideal,
ao mesmo tempo sensual e reflexiva, que começa onde a realidade acaba: o
cinema não como construção da realidade, mas como ‘continuação da
realidade por outros meios’.

Guy Debord, o cineasta iconoclasta, que no início dos anos cinquenta realizou
um filme sem imagens, construiu sua cinematografia coletando imagens de filmes de
outros cineastas, de documentários e publicidade, praticou um détournement dessas
imagens, adicionando com a sua voz em off um comentário à sociedade do espetáculo.
O filme homônimo, entre outros do cineasta, caracteriza o esforço de reverter

30
criticamente o conjunto das imagens contemporâneas e fazer um cinema que
desestabiliza o próprio meio. Nos dois casos, o front se dá no campo de produção
imagética.
Recentemente, um trabalho de dança chamado Fricção – teatro de operações,15
da performer Isaura Tupiniquim, se inseriu de uma maneira renovada nessa peleja,
apresentando suas armas concebidas esteticamente. O que nos mostra é que esse
processo de decodificação e desafio frente a essas imagens não só está em andamento,
mas também que será impossível nos furtarmos desse embate. O campo estético em que
ele se encontra e se movimenta é o da reapropriação das imagens bélicas, flagrando-as
em associações que antes nos eram estranhas: belicismo, erotismo, corporalidade,
dança, performance... Antes de uma vitória ou do campo pacificado e triste de uma
derrota, a obra se coloca em suspensão e risco, instaurando um campo de luta ou, como
no jargão bélico, um teatro de operações, quando a performer, em sua simulação
estética, joga com nosso próprio destino, a saber, o enfrentamento solitário dessas
imagens terríveis.

15
Prêmio VIVADANÇA – Festival Internacional VIVADANÇA 2011, Salvador-BA, com 6
apresentações no Teatro do ICBA nas datas 14, 15, 16 e 28, 29, e 30 de abril. A performer Isaura
Tupiniquim é aluna da Escola de Dança da UFBA, desenvolvendo pesquisa sobre Política e
Performatividade na Dança e elaborado trabalhos nessa área como “Entrada ao preço da Razão”. Atua
nos coletivos de intervenção urbana e performance como o Coletivo TeiaMUV e Grupo GO.

31
A VOZ DO MORTO: CRÍTICA AO PATRIMONIALISMO
W. Drummond, A. Sampaio

Torna-se, de fato, cada vez mais urgente, a respeito das cidades contemporâneas, um
questionamento mais complexo e crítico da noção de patrimônio cultural e das práticas de
intervenção urbana que lhe são tributárias. O trabalho do sociólogo e ensaísta Henri-Pierre
Jeudy aponta caminhos para essa crítica, sobretudo a partir da publicação dos livros Critique
de l’estetique urbaine e La machinarie patrimoniele, ambos publicados no Brasil sob o título
Espelho das cidades (2005). Quando da sua última visita ao Brasil, Jeudy nos surpreendeu
mais uma vez pela radicalização de seu pensamento, expressa em palestras e entrevistas a
periódicos nacionais. Devido à contundência de suas declarações, mesmo sem deixar de lado
suas primeiras teorizações, optamos por dialogar com a sua mais recente produção teórica.

Museificação e cenografia

O patrimônio pode ser comparado com o museu e com o shopping center. Fiquemos
com a primeira, que é a opção de Henri-Pierre Jeudy. Para ele, a significação contemporânea
do conceito de patrimônio cultural vem de uma reduplicação museográfica do mundo. (Seria
um embelezamento segundo a máscara mortuária dos lugares?). O museu dá à cultura uma
ordem preexistente, de fato, inexistente até então... Uma ordem a priori, que aproxima obras,
coisas, objetos que não coexistiram em seu próprio tempo, ou são mesmo de tempos distintos.
Promove encontros sob a égide de datas e taxionomia de estilos. Proporciona trocas
simbólicas e estéticas que não podiam ter existido – e o inusitado passa por natural... de um
olhar onipotente, alucinado. Este encontra no espaço o novo como antigo, vivencia um tempo
completamente falso e tem a experiência de um olhar estético historicamente impossível. Não
tem história da arte que suporte o museu! Nele, as obras são confinadas perpetuamente a uma
vizinhança que lhes era estranha: nisso consiste o caráter alucinante do museu.
A museificação da cidade, na medida em que congela partes suas, seus traços
arquitetônicos, obriga essas formas a uma outra historicidade, homogênea, mistura de
espetacularização e conservação. Aqui há um confinamento espacial do tempo – que não deve
mais passar, que já passou... De um passado distante, sem nenhum gérmen de futuro. Somos
obrigados a conviver com a ausência do porvir. “Um patrimônio não deve vir a ser!” – eis o

32
lema da patrimonialização. Ou, como dizia Nietzsche (2009b, p. 27), quando romanticamente
blasfemava contra a “febre histórica”:

Eles não querem que o grande surja: seu meio é dizer: “veja, o grande já está aí”. Na
verdade, esta grandeza, a que já está aí, importa tão pouco quanto aquela que nasce:
suas vidas certificam isso. A história monumental é a veste mascarada, com a qual
seu ódio contra os poderosos e grandes de seu tempo se gasta por uma fastiada
admiração dos poderosos e grandes de tempos passados.

No sentido que Debord dá ao conceito de “estetização” do espaço urbano, a


patrimonialização da cidade é a cenografia da morte; a explosão do museu em metástase. A
cenografia dá plasticidade ao que é histórico. Essa cenografia museológica transita entre o
conceitual e o plasticamente belo, impondo ao caráter visual o impacto do tátil. Não basta ir
simplesmente ver! Há uma forma plástica, determinada, de como devemos percorrer esses
corredores de uma história artificial, mas tomada como verdadeira. A história como
experiência é o seu legado espetacular aos filhos da consciência histórica hipertrofiada. Fora
disso, só a midiatização administrada da história enquanto mercadoria da indústria de
entretenimento globalizada. Fundamentando essa espacialização do histórico, as velhas
querelas oriundas do século XIX: a origem como meta, as belas histórias, o discurso moral, a
memória como ideologia – a parte se querendo o todo.16 De uma vez por todas: o patrimônio é
a memória em seu momento plástico, entendida como experiência da origem e da edificante
história moral e coletiva: espaços de descoberta e assimilação dos valores enquanto
experiência. A origem remeteria a uma experiência comum, identitária. Como se a cidade
comportasse uma identidade, além de suas próprias estratégias efêmeras, contingentes. Talvez,
em algum momento tenhamos mesmo acreditado nisso – o que nos impele a sermos cruéis,
como Artaud, com a filosofia da diferença, coagida, agora, em política pública de editais. Mas
nunca é tarde demais. Onde querem identidade como rosto, vejamos identidade como farsa,
jogo, estratégia.
Segundo Jacques (2005, p. 11-12), Jeudy nota que a maior parte dos projetos de
revitalização urbana de caráter patrimonial repete a mesma fórmula: “patrimonialização,
estetização, espetacularização, padronização dos espaços, e o que seria mais grave,
gentrificação”. Assim nos perguntamos como poderíamos “resgatar” uma identidade se a
patrimonialização, como diz Jeudy, faz tabula rasa da região, expulsa sua população e altera a
configuração do lugar para atrair um público mais rico? A cidade só possui uma identidade na

16
Ver “Teoria historiográfica e a cronologia do pensamento urbanístico”.

33
propaganda. Acreditar que foi em nome da identidade que o programa de patrimonialização se
efetivou é uma ingenuidade, pois aí encontramos a ideologia naquele sentido clássico que
costumamos recusar. Discursos e, ao seu lado, práticas e objetos tornados kitsch, são a
estratégia daqueles grupos que fazem do público um espólio pessoal a ser vendido para o
próprio público, após a passagem dos turistas.
Que diremos de um tradutor que intenta embelezar um texto clássico, em detrimento
de seu sentido? Como julgaremos a “reordenação” de imagens em um livro de fotografias
antes publicado, quando seu autor não está mais entre nós? Como avaliar os mesmos
processos aplicados ao espaço urbano em nome de uma identidade, cujo sentido, dele, apenas
os seus novos donos podem se nutrir? Assim, a identidade associada à patrimonialização é
celebração de uma atrocidade. E a beleza que ela comercializa é uma espécie de mais valia
filha do engodo. O engodo, por sua vez, é apresentar uma identidade melhorada, mais “bela” e
mais “genial” do que aquela “originária” – e o fim se torna origem! O patrimonialismo é
monstruoso, na medida em que tudo que é corpóreo responde à lei da entropia, que ele deseja
escapar, ou nos fazer escapar. Não devemos nos espantar quando a bela história que a
acompanha não traz nada que pudesse ofender.

Hipermemória

A memória, sob o patrimônio, faz da história sua irmã. Não estaria aí, além do mito, o
nosso delírio e paranoia? Termos de pensar nessa reflexividade absoluta, mediada pela
experiência histórica herdada como consciência? Saber o que é uma coisa significa saber sua
história, sua origem, seu desenvolvimento. Não escapamos nem das críticas ao saber
histórico, pois elas nunca se fazem clandestinos, ao contrário, se arrumam num proselitismo
do “tudo é história”. Nós denunciamos esta hipermemória, excessiva, que Hegel, Marx,
Nietzsche, Benjamin e Foucault nos obrigam. Trauma ocidental e moderno. A coragem de
Henri-Pierre Jeudy está em preparar uma reflexão para o novo que arruína uma forma de vida,
neste caso, ancorada na consciência histórica como hipermemória. De fato, lembra Jeudy
(2005a), os japoneses não possuíam uma palavra para patrimônio:

O primeiro monumento a ser declarado patrimônio no Japão é a ruína de um edifício


que sobreviveu à bomba de Hiroshima. É a partir desse momento que os japoneses
começaram a pensar sobre isso. Lá, todos os templos são refeitos de 20 em 20 anos,
com outros materiais. Hoje, porém, a ideia de conservação patrimonial começa a
crescer no Japão. É muito kitsch, muito Disney World. Eles amam essas coisas,
assim como reproduzir locais e prédios de cidades europeias.

34
À memória artificializada nada deve escapar. É o patrimônio como pseudo-teatro da
memória, elevado ao nunca esquecer – hipermemória. Então, Jeudy reclama pela liberdade de
esquecer, “Na Europa – diz ele na mesma entrevista citada –, as pessoas sentem culpa se
esquecem alguma coisa, o que também é resultado das guerras. ‘Como é possível esquecer?’,
se perguntam. Há muitos memoriais em todos os lugares, porque é necessário lembrar,
lembrar, lembrar. Mas assim é impossível viver o presente.”. A lembrança total é infernal!
Entre a imagem e o espaço, há a cenografia, entendida como a plasticização do patrimônio e
da memória. O que nos impele a duas lamentáveis opções: no nosso caso, a memória
enquanto uma plasticidade expurgada de sua parte maldita; no dos judeus, o retorno ad
infinitum da memória como maldição. Em ambas, o marketing e o kitsch moldam a história a
favor daqueles que tudo tem. Afinal, quantos museus europeus não são monumento a seu
colonialismo? Sua barbárie? E os nossos, em quantas cidades, os museus não são
exclusivamente para as elites? Instalados perto de suas casas e longe, bem longe, dos bairros
populares.
É possível uma política patrimonial? Não há como reverter o processo de
patrimonialização lançando mão de uma utopia participativa, como defendeu inicialmente
Jeudy. Hoje a vemos ser usada pela sobrevivência de um discurso que se pretende à esquerda
e repete a velha prática, agora como simulação de cidadania.17 O que se tornou falso para
Jeudy, para nós foi sempre uma impossibilidade. Mas como pôde Jeudy se enganar em relação
à patrimonialização participativa? Em primeiro lugar, devido ao seu profundo respeito pela
“memória coletiva”, depois, por uma noção que lhe central, a de reflexividade enquanto um
modo determinante de preservação da ordem simbólica de uma sociedade. A reflexividade é a
luta contra o esquecimento dos gestos que perfazemos no presente, sem todavia dispormos de
um domínio consciente. Se não nos lembramos, o costume é nosso senhor! Assim como no
completo esquecimento, diante da memória pura, total, está vedado o novo. Funes, o
memorioso (personagem de Borges), era capaz de lembrar-se de um dia inteiro de sua vida,
mas isso lhe exigia um outro dia com as mesmas horas. Ciente desse risco, Jeudy alerta:
“Preservar memória, para mim, é uma aberração. A memória se preserva ela mesma. O que
passa ao esquecimento é o que passa ao esquecimento. Preservar memória traz a ideia de que
se vai gerir a memória.” Criticando a memória e sua monumentalização, ele afirma não

17
Para a crítica do Governo Wagner no Pelourinho, ver Ações do e sobre o Centro Histórico de Salvador de
Pignaton (2010). Para a crítica dos governos carlistas, Direito à Cidade na Cidade Espetáculo: simulacros e
utopias de Barreto (2008).

35
acreditar em nenhuma política governamental em relação a casas e prédios antigos nas
cidades: “Acho que os governos que geram os lugares históricos não prestam um serviço à
memória coletiva. Para mim, é uma tirania sobre a memória coletiva, esse caminho da
monumentalização. Tudo vira monumento”.18
Benjamin nos oferece outra versão do que seria essa política da memória. Se o
patrimônio agencia a memória erigida em campo mortificado e pacificado, em Benjamin se
impõe uma mnemosine agônica, que tende para o jogo infindável das lutas e das escaramuças.
Apesar de seu messianismo – com o qual não compactuamos nem com as imposições
moralistas daí advindas –, para ele, a memória herdada deve ser colocada em suspensão e sob
suspeita. O passado que nos tiraniza seria o das classes dominantes; são elas que rememoram
e transformam as lembranças em monumentos e discursos, em memória. Ao resto, o
esquecimento! As esquerdas leram Benjamin rápido demais e sob o efeito moralizante criaram
uma política: façamos as memórias das classes dominadas, dos vencidos, escutemos a sua
voz. As intensas transformações transpolíticas explodiram o conceito de “vencidos”,
multiplicando-os e os fazendo conflitar. Onde pensavam um bom uso das memórias,
redimidas pela política dos pobres, não viram a glossolalia das memórias até à
impossibilidade.

Mumificação da cultura

Eis o que ocorre com a cultura: esta ganha sentido pela patrimonialização, e não o
contrário, que seria a razão de ser do patrimônio, sua justificativa – falsa, porém. Uma
comparação com a fotografia elucidará: se esta congela o instante em cena, a
patrimonialização é o congelamento da cultura enquanto processo; este, seu verdadeiro
sentido. O patrimônio é conduzido pela ideia de tempo da imagem. Graças a essa zona
informe, na qual a indistinção passa por realidade, é possível a comparação, equivocada
porém, pois a imagem fotográfica é eterna, enquanto o suporte lhe permite. O suporte, ao
contrário, dura a vida de material que é. O falso tempo do patrimônio teatraliza o eterno. Seu
tempo, porém, é outro, marcado, tem início e fim; este muito rápido. E, então, os patrimônios
da humanidade conhecem o destino das coisas descartáveis, como convém ao kitsch. Em

18
JEUDY, Henri-Pierre. Entrevista a Zero Hora. Fonte: Jornal “Zero Hora” nº 15337 (18 ago. 2007). Este texto
está indicado a seguir apenas pelo ano. Ele e a Entrevista para Folha de São Paulo (06 jun. 2005) estão
disponíveis em: <http://gpeculturais.blogspot.com.br/2008/04/henri-pierre-jeudy.html>.

36
algum lugar, o velho Nietzsche está certo quando apela ao seu metafísico sentido plástico da
vida, aqui entendida enquanto cultura, definida como força constituinte e criadora, que se
efetiva em práticas e discursos.
A revitalização patrimonialista do passado é desvitalização do presente, pois se antes
se edificava contra o que entendíamos por vida, hoje, junto ao seu rosário de “re-”,19 se
insinua contra o presente (entendido como cultura). Ao criticar tal processo, Jeudy (2007)
vaticina: “Essa, dizem, seria a única forma de sobrevivência das culturas. Para mim, essa
patrimonialização significa a morte das culturas”.
O sentido do patrimônio, como dissemos, é a rigidez. Aí a cultura teria seu poder de
sobrevivência. Mas a mumificação é um processo de eternização do morto. O que pode
representar a patrimonialização do samba e do acarajé? Para nós, que entendemos a cultura
como somas de fracassos, enganos, atavismos, esquecimentos etc.; para nós, a própria ideia de
patrimonialização é assustadora, e o é ainda mais quando se torna quase ecumênica, pois
imagina a natureza como “patrimônio da humanidade”, ao mesmo tempo em que pretende
atingir o imaterial. Nem o espírito lhe escapa. O que é etéreo deve se materializar, e participar,
então, de uma espécie de devir-imagem, em que não há mais o risco da perda. Foi preciso que
um acidente nos assustasse com suas labaredas, para que víssemos o óbvio: a mais nova tirada
de Hélio. A voz do morto tenta inesperadamente reviver Oiticica a contrario. Quantos
parangolés precisariam queimar para abrirmos os olhos? Em Oiticica, a efemeridade do
suporte, do gesto, nos remete ao vivo, ao vívido contra o confinamento. Primeiro, investe
contra a galeria, e depois contra o museu. O trágico é o muro das lamentações em que querem
colocar a perda da “obra”, tal como entendida pelo museu, ali mesmo negando-lhe o direito de
existência, pois Oiticica estava em posição oposta.
Um triste exemplo para o que nos acontece no campo devastado da cidade. É o que
nos lembra a pesquisadora Paola Berenstein Jacques, a propósito da chamada “revitalização”
do Centro Histórico de Salvador:
literalmente ‘limpou’ o sítio histórico ao expulsar seus habitantes e suas respectivas
práticas cotidianas populares e substituí-las por simulacros culturais turísticos. O
projeto faz parte de um contexto político específico, mas se insere em uma estratégia
de marketing genérica que visa construir uma nova imagem urbana (JACQUES,
2005, p. 12).
Essa é a morte da cultura sob o espetáculo, como anatemiza Jeudy. Há, porém, algo
antes de seu estado larvar, como um estado de suspensão, no qual a espetacularição é uma
sobrevida enquanto estereótipo. Mas nunca a morte... No Pelourinho, vemos os dois
19
“Revitalização”, “Reurbanização” etc. Paola Berenstein Jacques. Disciplina de Urbanismo Contemporâneo
(FAU-UFBA).

37
caminhos: A cidade dos cabeças-de-pedra, a vida larvar do estágio zumbi, contracena com a
estereotipização do patrimônio como estratégia de sobrevivência. Capoeiristas, baianas de
acarajé e artistas näif como personagens que flertam o espetáculo, e demandam uma guerrilha
além dele, e longe do estágio larvar. O que seria a “morte da cultura” passa a ser o último
lance de um jogo, que distante de findar desestabiliza o próprio jogo. Nunca esqueçamos que
o Pelourinho (a propaganda oficial dizia “Patrimônio de todos nós”), embora tenha sido
otimizado quanto às políticas públicas de exclusão, nunca conseguiu efetivar o paraíso
artificial do consumo globalizado. O Pelourinho é um fracasso e melhor que assim tenha sido
até agora. Segundo Jeudy (2007): “[...] o fato de haver lugares e comunidades que não se
preocupam com a conservação é um signo de liberdade. É um modo de resistência à captura
das culturas, à captura museográfica das culturas”. O estereótipo e o zumbi aí estão como
resposta no campo possível das lutas frente à morte administrada pelo Estado e capital.
Se o patrimônio e o museu, como espelho perverso da cidade, desposam a morte da
cultura e a própria reação a esse estado de coisas daí provém, seja no estado larvar ou
estereotipada, nos reservamos uma terceira via: caso uma cultura ainda possa seduzir, para
mover não só o imaginário, mas corpos, se ela, longe da rigidez, é capaz de incorporar e
esquecer... então merece a vida! Pois gostaríamos de pensar a cultura como celebração; não
mais do atroz ou do morto.

38
A GAIOLA E O PÁSSARO: O ESTADO E A CULTURA URBANA
W. Drummond, A. Sampaio

Uma gaiola saiu à procura de um pássaro.


(KAFKA. Aforismos, § 16).

1.

No famoso texto sobre a indústria cultural, a tese defendida por Adorno, também
presente no pensamento estético de Benjamin dos anos vinte,20 é a eliminação dos extremos,
dada no nivelamento do estilo, o que significa para o autor a “barbárie estética”. Em Adorno,
o confronto da arte com a tradição está no estilo, e este seria o modo de ela encontrar sua
expressão. Tal confronto, porém, desaparece na diluição das singularidades nas obras da
indústria cultural. A semelhança entre todas as obras é sua vitória e “o triunfo do capital
investido”, enquanto o respeito à tradição é a obediência irrestrita a todas as formas de
hierarquização social. O que está consumado nessa estética da semelhança é uma ameaça
reiterada nas formas criativas, desde que submetidas, organizadas e neutralizadas sob o signo
de cultural. Para Adorno e Horkheimer (1985, p. 123), de maneira espantosa, “falar de cultura
foi sempre contrário à cultura”, pois a introduz no domínio da administração e em suas
taxionomias. Uma apologia da cultura será inevitavelmente uma apologia às formas reificadas
de suas manifestações.
O desaparecimento dos extremos, sua diluição no suposto universal do esquematismo,
se revela na uniformização das obras. Ele é empreendido pelas novas configurações da
produção musical, pictórica e verbal, em sua forma mercadoria sob o regime midiático
capitalista; todavia, de alguma maneira, tal desaparecimento já sempre pairou enquanto
práticas de acomodação (catalogação, classificação, neutralização) no campo cultural. O que
se pode depreender do comentário adorniano sobre cultura? A cultura, assim apropriada pelos
discursos, é a domesticação do que há de selvagem nas manifestações culturais. Selvagem no
sentido em que não respondiam de imediato a uma universalidade, isto é, à tradição, às suas
formas expressivas historicamente dadas, e por isso podiam funcionar como extremos.
Adorno reúne, assim, as críticas de Nietzsche e de Benjamin ao fascismo da Cultura. “A

20
Nas “Questões introdutórias...” de A origem do drama barroco alemão, afastando-se da estética de Croce,
Benjamin (1984) opõe a ideia ao conceito em relação aos extremos. Enquanto o conceito busca a média e,
dessa forma, permite a classificação dos gêneros de arte, a ideia reúne os extremos, mantendo-os em tensão.

39
cultura sempre contribuiu para domar os instintos revolucionários, e não apenas os bárbaros”,
dizem Adorno e Horkheimer (1985, p. 143-144), mas “a cultura industrializada faz algo a
mais”, ela é a “falsa identidade da sociedade e do sujeito”: “Mas o milagre da integração, o
permanente ato de graça da autoridade em acolher o desamparado, forçado a engolir sua
renitência, tudo isso significa o fascismo”.
Artaud, num gesto iconoclasta, que aparentemente tem algo de suicida, derrotado ou
ensandecido, pregava a destruição das obras-primas. Ambos, Adorno e Artaud partem da
crítica nietzschiana à cultura histórica nas Considerações inatuais sobre a história.
Observamos isso melhor na análise da história monumental. Esta é, para Nietzsche (2009b, p.
27), uma coleção de efeitos em si, uma série de acontecimentos tomados como efeito para
todo o sempre. Ela atuará sobre o que é desigual no sentido de generalizá-lo e equipará-lo,
pois o que se pretende é desconsiderar a diversidade, forçando a comparação a produzir um
efeito de fortalecimento do que já existe: “A história monumental ilude através de analogias”.
O exemplo particular de uma criação do passado se enquadraria assim em um devir esperado
e universal: quer dizer, tudo que lhe acentuava sua singularidade deve ser aniquilado em prol
da concordância. Tudo deve ser subsumido em uma aquiescência a priori. Contra quem os
burocratas da cultura, de natureza pouco ou nada criativa, blindados pela história monumental
dos artistas e das manifestações populares; contra quem eles vão apontar suas armas? “Contra
seus arqui-inimigos, os espíritos artísticos fortes”. Isto é, contra a espontaneidade da criação e
a das festas.
A seleção e promoção, a transmissão de suas escolhas pela via publicitária tão bem se
enquadra na denúncia benjaminiana. Uma das investidas de Benjamin, em Sobre o conceito
da história de 1940, contra a concepção corrente de cultura está na famosa tese sobre a
barbárie da cultura, quando, tendo como epígrafe uma passagem da Ópera dos três vinténs de
Brecht, denuncia o imbricamento entre cultura e barbárie, estendendo-o até o processo de
transmissão da cultura. Pois essa nunca está contra a barbárie, ou vice-versa, mas em relações
ilícitas e cruéis. E a sua transmissão articula vencedores com vencedores e não com os velhos
e novos vencidos. Isto significa que a produção cultural não pode prescindir de uma enorme
massa de trabalhadores, que a possibilitam, sem poderem, todavia, acessá-la. A continuidade
do processo é a herança que articula as gerações de dominadores. Por isso, em 1940,
Benjamin incita a fazer explodir o continuum da história, ou para nós, da cultura.

40
2.

O discurso apologético contemporâneo sobre a cultura já quase não encontra hoje


verdadeiros adversários. Ela reúne indistintamente a monumentalidade do passado e a glória
do tradicional, na forma de uma ancestralidade a ser resgatada ou encarnada em algum
moderno herói marginal. A oposição entre popular e popularesco é só mais uma a perder seu
sentido. E tudo se torna discurso ou interpretação. A estas indistinções, legitimadas pela Babel
de conceitos de nossa sociedade midiatizada, gostaríamos de dirigir o “não!” em defesa dos
criadores singulares que abrem fendas no desprevenido aparelho de captura cultural, mesmo
que seja para instantes depois cair em suas malhas. A crítica encontra sempre seu sentido
quando a criatividade singular é estrangulada, enquanto modo refratário, por uma hegemonia.
No Brasil, esta positividade é uma forma transfigurada da indústria cultural, tal como a
descreveu Adorno, mas nos modos de uma antecipação que ilustra exemplarmente a pequena
história de Kafka (2011, p. 191), que consta aqui como epígrafe: “Uma gaiola saiu à procura
de um pássaro”.
O nosso conservadorismo da cultura não se detém em uma forte indústria cultural,
senão encontra no Estado seu patrono. Este assume o seu lugar, ao não apenas patrocinar, mas
também promover, classificar, selecionar as manifestações que merecem seu selo e as
territorializa no âmbito das cidades, procurando aferir lucros políticos para si e lucros
financeiros para os já favorecidos. Que manifestações são estas? As que envolvem
personagens, enunciados e tramas em um misto de história monumental e tradicional, das
coisas grandes e próprias. Ou erigem os já consagrados em esfinges que nos dizem do tempo
e da bravura dos que espelham o mesmo ou, em máscaras de benevolência e reconhecimento,
evocam o que não podem reconhecer a não ser como fagulhas de um mundo perdido, partido
ao meio, entre a morte e a exumação. Em dois tempos, o regozijo da transmissão suntuosa de
sua própria potência, e o arremedo de elogio aos vencidos no espetáculo caridoso de seus
grilhões. A difusão não aleatória de discursos e obras tem um caráter publicitário inequívoco:
“o Estado cumpre seu papel social!”.
Mas isto é um engodo, na medida em que ele assimila o papel de uma indústria
cultural que não pode possuir nenhuma preocupação político-social – ou por acaso diríamos
que a indústria de cigarro cumpria seu papel social com o “incentivo” aos filmes
hollywoodianos e programas televisivos? A indústria de cigarros, porém, não condenava a
indústria hollywoodiana à incipiência, senão apenas os seus frutos a clichês e fumaça. Logo, o
Estado patrocina a indústria cultural da qual toma o lugar. Há decerto aí algo de nebuloso,

41
pois, o que era definido por Nietzsche e Adorno como um traço do que se convencionou
chamar de cultura, a saber, o seu conservadorismo, foi denunciado pelo segundo como um
estado de exceção: a investida fascista no campo cultural empreendida pelos nazistas21, para
constatar estupefato a outra maneira do gerenciamento da criação, agora sobre os auspícios da
economia liberal e da democracia de massa estadunidense – a indústria cultural, já não mais
como exceção mas como regra.22 O que protagoniza o Estado brasileiro com a sua política
pública de editais e gerenciamento da cultura é reinvestir o poder estatal, abandonando, então,
a excepcionalidade, travestido de indústria cultural, ou, nas palavras de Benjamin (1991, § 8),
“o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral”.
O que para nós é claro é que o dinheiro público, mobilizado pelo Estado, não deveria
servir para enquadrar (editar) a imaginação criativa. Neste sentido, é preciso cada vez mais
desconfiar de suas benesses. Sua vontade de cartografar, territorializar e promover as
manifestações culturais insinua-se no campo de seu despudorado controle. Aí, nenhum efeito
de mascaramento ideológico. Na verdade, a ideologia não é algo que fica por trás do discurso,
mas antes na frente. Ela é o óbvio. Como se não bastasse, essa trágica dramaturgia do poder
ainda suscita a “criatividade” oriunda do meio mercantil. Os corifeus das mercadorias
transformadas em sonho e desejo (não seria isso uma tautologia se pensarmos na expressão
freudiana de que sonhamos o que desejamos?) estão acolhidos no seio do Estado; o que nos
rouba toda nossa reserva em relação à publicidade.23
O exemplo mais atual é a parceria do Estado com a Fundação Roberto Marinho na
Operação Urbana Porto Maravilha, que se soma à série de filmes com o selo Globo.24 A
gentrificação das áreas de patrimônio cultural e arquitetônico se dá ao preço da
mercantilização das formas de vida, e de sua consequente transvaloração espetacular. A
cultura, encerrada no espaço urbano como uma mercadoria, torna-se como uma segunda
natureza, semelhante, porém mais profunda do que aquela esboçada para as fotografias. E esta
segunda natureza da cultura deve sobrepujar a primeira, ao menos por algum tempo, porque

21
Segundo a frase atribuída ao teatrólogo nazista Hanns Johst e repetida pelo Ministro da Aviação de Hitler,
Hermann Göring: “Quando ouço falar em cultura, eu puxo o revólver”.
22
Lembramos da frase do magnata americano no filme O Desprezo de Godard: “Quando ouço falar em cultura,
puxo meu talão de cheque”, e estampada num cartaz da artista-ativista americana Barbara Kruger.
23
A melhor definição do fazer publicitário talvez ainda seja a frase atribuída ao Ministro da Propaganda
nazista Joseph Goebbels: “uma mentira repetida cem vezes vira uma verdade incontestável”.
24
Ver <http://www.portomaravilhario.com.br/index.aspx#>: “O Porto Maravilha também realizará ações para a
valorização do patrimônio histórico da região, bem como a promoção do desenvolvimento social e econômico
para a população. A implantação de projetos de grande impacto cultural, como o Museu de Arte do Rio de
Janeiro (Mar) , na Praça Mauá, e o Museu do Amanhã, no Píer Mauá, ambos em parceria com a Fundação
Roberto Marinho, darão nova cara à entrada do porto”.

42
logo degrada. Em “A voz do morto”, dirigimos uma crítica à noção de patrimônio cultural e
das práticas de intervenção urbana que lhe são tributárias. Denunciamos a cenografia
museológica que, ao reunir o conceitual e o plasticamente belo, impõe ao caráter visual o
impacto do tátil, ou seja, ao contemplativo, o uso, e isto para encontrar no espaço urbano o
novo como antigo. Ela se apega ao falso tempo do patrimônio como teatro do eterno. Por
outro lado, não se resolve o problema com a utopia participativa. O sociólogo Henri-Pierre
Jeudy, que defendeu inicialmente tal perspectiva, acabou por reconhecer que esta utopia,
como simulação de cidadania, torna-se mais um elemento no esquematismo das produções de
sentido e práticas dos espaços reurbanizados. O que resta? O estereótipo e o zumbi aí estão
como resposta no campo possível das estratégias frente à morte administrada pelo Estado e
capital. Na Bahia, no campo devastado da cultura congelada do Pelourinho, encontram-se
harmoniosamente três trágicos personagens: a baiana de acarajé e o capoeirista que retomam o
estereótipo como estratégia de sobrevivência, e os meninos e meninas-zumbi que “caíram no
crack”. O Pelourinho depois de ser transformado num bem-vindo ao deserto da real política
urbana carlista, com sucessivas expulsões dos seus moradores, sofre nesse momento os seus
desdobramentos petistas, em que, mais uma vez, os artistas são convocados, como vanguarda
de ocupação e revitalização, a afastarem as ruínas do real.
Em texto não assinado da página eletrônica da Secretária da Cultura do Estado da
Bahia (SECULT-BA),25 encontra-se nestes termos a apresentação de um artista e seu trabalho
no famigerado Pelô: “As ruas do Centro Histórico de Salvador serão cenário para o projeto de
intervenção urbana”, o “artista vai levar suas obras para as ruas, fazendo com que o público
não precise alterar seu trajeto para vê-las.” Longe de tecer qualquer crítica ao artista e a seu
trabalho, o que queremos destacar é o paradoxo da ação governamental que parte “do
princípio de que as artes são um fator de preservação e dinamização do patrimônio histórico e
de valorização dos modos de vida da comunidade”. Além do trabalho citado, “mais de vinte
outros projetos irão dinamizar a vida cultural e artística do Pelourinho até 2011”,
selecionados pelo Edital “Tô no Pelô”, da SECULT-BA, através do Fundo de Cultura da
Bahia (FCBA) e do Programa Pelourinho Cultural, do Instituto de Patrimônio Histórico e
Cultural (IPAC). Após a ação de desertificação que se estende por anos, isto é, o
esfacelamento da dinâmica cultural urbana que ali vicejava, optou-se por uma clonagem
“editosa”. Não esqueçamos que esse processo de revitalização nos parece infindável. Esta

25
O endereço eletrônico da SECULT com o texto na íntegra: <http://www.cultura.ba.gov.br/2010/09/30/arte-e-
tecnologia-no-pelourinho-a-artista-visual-barbara-tercia-inicia-projeto-de-intervencao-urbana-nas-ruas-do-
centro-historico/>.

43
resistência do Pelourinho a “dar certo”, insistindo em sua condição de ruína urbana, tem algo
de saudável.

3.

A benevolência do Estado é, no fundo, um desprezo à dinâmica cultural e o


favorecimento de grupos empresariais, mesmo quando se solidarizam com os fenômenos mal
digeridos da cultura popular, diminuindo o abismo entre estes e o popularesco. Agindo como
um mecenas, além do mercado, o Estado incorpora o conservadorismo da dinâmica cultural,
colocando em outro nível e obnubilando o caráter visível desse conservadorismo, enquanto
administração presente na mercantilização da cultura. Ao encenar a abjuração da mercadoria
como cultura, ele nos coloca em um novo estágio de administração da criatividade e de suas
obras, retomando as regras do mercado como suas. A vitalidade cultural das metrópoles, a
dinâmica selvagem e veloz dos acontecimentos globalizados que obedecem a fluxos dispares
e não hierarquizados, aliás, seguindo o fluxo do capital, acomoda-se nesse novo contexto de
bonapartismo cultural. Nenhuma surpresa, nenhuma experimentação que não esteja a
expensas do aparelho de captura; o Estado antecipa-se ao autoritarismo da cultura. Nunca
mais uma orelha-van gogh, um mictório-duchamp!26 Havia uma espécie de delay entre a obra
e sua assimilação cultural, por exemplo, no tempo que levou para telas que forraram um
galinheiro virem a valer milhões de dólares, algo como uma espécie de suspensão e risco.
O grafite é um ótimo exemplo desse processo de captura das manifestações urbanas,
desde o seu surgimento selvagem nos metrôs de New York até a sua consagração nas galerias
e museus. Vide as seleções bancadas pela Prefeitura de Salvador para que grafiteiros
“revalorizassem” muros com a sua arte, e a grande exposição sobre grafite intitulada “Nascido
nas ruas, graffiti”, exibida na Fundação Cartier, na França em 2009. São fatos que provocam
um racha entre esses artistas-ativistas urbanos, inclusive os participantes do fenômeno único

26
Em comentário ao nosso ponto de vista, a videomaker Sophia Midian Baques escreveu “deixemos os projetos
de lado e cortemos a orelha!”. A frase é genial. Em sua dureza, ela coloca de maneira lúcida a situação do
artista entre a recusa à submissão ao mercado e o mecenato estatal. Tendo em vista que o dinheiro alocado é
sempre público (a isenção de impostos se enquadra no mesmo caso), não nos insurgimos contra os artistas e
ativistas culturais que sobrevivem melhor e produzem com mais jogo de cintura ao se submeterem aos editais,
os quais no mínimo deveriam ser menos normativos. Nossas reflexões, entretanto, atentam para o fato de que
devemos ter mais clareza quanto à produção estética e cultural contemporâneas, pois comumente se acredita
ainda estar em pleno romantismo artístico novecentista.

44
brasileiro conhecido com “pixação”27, de caráter mais agressivo e viral, demonstrando uma
reação à gaiola cultural, ao tempo mesmo de sua capitulação.
Agora, ao contrário, artistas urbanos respondem a criteriosos editais (duração, custo,
tema, demanda social, espaço etc.). O Estado se adianta ao aparecimento da própria obra, já
convertida em dividendos, e assim oferece um plus em relação à homogenização sob o signo
do cultural. Mais uma vez, delineia-se – ao contrário do discurso entusiasta contemporâneo –
uma visão extremamente negativa que define a cultura como permanência e diluição do que
possa ser radical nas diferentes manifestações. “Todo risco deve desaparecer!” – eis o lema.
Sua contrapartida para os mais diversos predadores (dos ramos imobiliário, de transporte, do
comércio). O Estado aparece, então, de um lado, como braço armado do conservadorismo
cultural, e do outro, tanto como empresário, responsável pela mercantilização cultural, quanto
mecenas desinteressado. Eis sua santíssima trindade.
Tal postura se percebe em outra máxima sua: “As festas populares não devem
morrer!”. Novamente, estamos diante de uma forma de encarar a cultura histórica como misto
de monumental e tradicional. Esta concepção encontra em manifestações espontâneas uma
essencialidade. É em nome dessa identidade que a diferença deve ser sacrificada a um
esquematismo político-publicitário. Por que a cultura e não outro departamento qualquer, por
exemplo, o de turismo? Adorno e Horkheimer (1985, p. 151) respondem: “A cultura é uma
mercadoria paradoxal. Ela está completamente submetida à lei da troca que não é mais
trocada. Ela se confunde tão cegamente com o uso que não se pode mais usá-la. É por isso
que ela se confunde com a publicidade”.
E assim, tais burocratas atuais seguem o programa das novíssimas velhas políticas.
Secretários e facilitadores de todos os tipos se passam por senhores. Não por acaso nos bairros
e ruas “reurbanizadas”, nesse palco em que se encena a Cultura, deve haver museus
projetados sobre os espaços vazios deixados por seus antigos moradores, como já aponta
Pignaton (2010). Deste modo, eles encontram a justificativa para a “intervenção” urbana,
convocadas mediante editais, seja para arquitetos ou artistas; também fazendo ver,
inversamente, a droga como o demônio das mazelas sociais.
Nesse jogo de gaiola e pássaro, entre cultura e criação, podemos desafiar os de sempre
com a defesa irônica da nossa parte maldita que inadvertidamente nos querem expurgar no
seio de nossas cidades. E, assim, assumir a tragicidade das manifestações urbanas, em sua

27
Ver trailer do documentário Pixo de João Weiner e Roberto Oliveira, que não por coincidência foi
apresentado na citada exposição francesa, disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=nzC5gtYAn6s>.

45
permanência, esgotamento e desaparecimento, entregues à própria sorte. Que viva enquanto
há vitalidade verdadeira e não seu arremedo espetacular, refém do intervencionismo de estado
de sítio.

46
PIERRE VERGER, DO HEROÍSMO AO ESPETÁCULO
W. Drummond

Entre os anos de 1946 e 1952, Pierre Verger produzirá as fotos que comporão os
livros Retratos da Bahia (1980) e Centro Histórico de Salvador (1989).28 Assim como
ele, artistas como Caribé, Dorival Caymmi e Jorge Amado já vinham redescobrindo a
cidade cultural e geograficamente, referenciada nos descendentes africanos, na sua
religiosidade, na maneira como reinventavam a vida cotidiana. Nada do modo de viver
dos negros da cidade escapa ao fotógrafo francês, incansável, desloca-se das ruas
centrais até os bairros distantes, para ele “o espetáculo da Bahia está nas ruas”. Na
primeira metade do século XX, Salvador tornava-se objeto de um dos mais poderosos
mitos urbanos no entrelaçamento das obras desses artistas responsáveis pela recriação
estética modernista à revelia da modernização da cidade – arrastando-se em
intervenções desiguais e sucessivas desde meados do século XIX – que se intensifica a
partir da primeira metade do século vinte com a gestão seabrista de 1912 a 1916.
Advogam um modernismo de vertente crítica, denunciatória, pois defendem a cultura
negra soteropolitana das perseguições e constrangimentos por parte da elite baiana,
numa aprovação irrestrita dessa tradição. Na forma são modernistas, tematicamente
recusam todo processo de modernização urbana, conciliando-se com uma cidade
arcaica, provinciana, reerguida das ruínas da cultura negra. Às intervenções sucessivas
que mexem na configuração urbana no sentido de modernizá-la, eles contrapõem a
estetização das persistências de práticas e culturas adversas ao surto renovador. Este
trabalho procura aplicar uma teoria da história que possibilite a utilização da fotografia
como documento para a história do urbanismo, priorizando rupturas e emergências em
detrimento do estudo das origens e continuidades.29 Desse modo, dividimos as imagens
de Verger em duas cenas-emergências: a primeira, quando de sua aparição, entre os
anos 40/50, e a segunda, quando da sua inserção no dispositivo espetacular, a partir dos
anos 70. Elas se revelaram diversas, estranhas entre si, mesmo inversas, o que nos levou
a buscarmos estratégias específicas para abordarmos as imagens reprodutíveis enquanto

28
Daqui em diante, os livros Retratos da Bahia 1946 a 1952 (VERGER, 1980) e Centro Histórico de
Salvador (VERGER, 1989) serão representados pelas siglas RB e CHS, respectivamente. Não
indicamos o número de páginas por estarem ausentes na edição. Este texto retoma a tese de doutorado,
Uma cidade surrealista nos trópicos (DRUMMOND, 2009).
29
Ver “Teoria Historiográfica e a Cronologia do Pensamento Urbanístico”.

47
documentos. Esse foi o nosso risco. Por outro lado, optamos por analisar os álbuns
fotográficos ao invés das imagens isoladas, tateando uma análise específica da mídia-
suporte30.
A obra que Pierre Verger nos legou sobre a cidade do Salvador nos permite
teorizar sobre as relações entre álbuns de fotografia e espaço urbano. Sabemos através
dos relatos de Nobrega e Echeverria (2002, p. 295-298) que, apesar da atual aceitação
da obra vergeana, Arlete Soares, sua editora, não conseguia, na época, convencer as
editoras a publicarem o livro, pois sendo fotos de negros “ninguém queria publicar,
porque o assunto não vendia”. Foi preciso a criação de uma pequena editora em 1979, a
Corrupio, para que o livro fosse publicado. Segundo Arlete Soares, o empenho de
Verger em reviver em livro as experiências das ruas soteropolitanas, inicia-se, com a
escolha das fotografias, que num total de 800 teve que fazer uma “seleção dolorosa”.
Arnaldo Grebler, citado por Nobrega e Echeverria (2002, p. 298), descreve a
postura de Verger, importante para entendermos o processo construtivo dos fotógrafos
que optam por álbuns de cidade:

Às vezes, aceitava uma ideia ou outra, mas acho que ele sabia muito bem o
que queria. Apesar de ter milhares de negativos, sabia especificamente os que
queria, em qual sequência, com qual casamento de página. Parece que a coisa
estava pronta na cabeça dele, e dificilmente ele acatava alguma outra solução.
Às vezes a gente dizia: ‘Verger, vamos botar esse daqui?’ Ele respondia: ‘É,
pode ser’. Mas dali a pouco ele encostava a mão sorrateiramente e tirava a
foto fora.

O que buscava Verger? O que quer um fotógrafo ao compor um livro destinado


a reproduzir “o espetáculo das ruas” de uma única cidade? Quais as relações que um
álbum de fotografia de cidade pode estabelecer com o urbanismo? O que pode no
campo estabelecido dos urbanistas? Os álbuns seriam propostas urbanas sugeridas num
lugar de diferença em relação ao exercício do urbanista, críticos e utópicos, uma
projeção selvagem em relação ao ato instaurador e disciplinar do urbanista, insinuando-
se nos interstícios, o que não quer dizer que não possa estar a serviço ou ser apropriada
por essas instâncias. Qual estratégia surda estrutura os ataques e contra-ataques, nessa
guerrilha de um homem só, sem nenhuma certeza de sucesso? Alijado dos círculos do
poder, daqueles que acumulam vitórias que se perpetuam, o fotógrafo, por vezes se
aventura em propor um cenário particular que só ele vê. Quem saberá se não espera que

30
Ver Parr e Badger (2005, p. 127, 263, 298).

48
um dia elas possam ser repotencializadas em outro combate, em condições menos
adversas?
A organização desses álbuns suscita tanto estranhezas, quanto concorrem para
uma estetização e “espetacularização das cidades” cujo processo é indissociável das
novas estratégias de marketing mundial, conforme Jacques (2005, p. 47). Os dois livros
de Pierre Verger não se encontrariam hoje nesse impasse, instrumentalizados para a
propaganda preservacionista, numa visão positivista tanto da etnografia quanto da
fotografia?
Um livro antes de ser um dentro, é um corpo exposto, antes de deter um sentido
escondido sobre as entranhas, é um campo de produção de sentidos, “regiões ainda por
vir ”, aberturas de configurações, superposições, segmentaridades. Portanto, não pode
ter uma identidade que se repetiria no continuum histórico, da mesma maneira que uma
interpretação que a revelasse, mas “uma pequena máquina”, implicando numa relação
com o fora, existindo “apenas pelo fora e no fora”, como alertam Deleuze e Guattari,
(1995, p. 11-13).
Em nossos termos, os álbuns de fotografias de rua se confundem com a
cenografia, que por sua vez é a cidade entregue ao devir de sua interpretação, enquanto
historicidade efetivada, menos pela intensidade das forças que a reconstituirão, do que
pelo impacto aos que lhe são coetâneos. O contrário, abandoná-los (com suas
cenografias) ao canto mavioso da sereia-memória é perpetuar o mesmo em sua repetição
infernal. Deveríamos desconfiar do que tomamos como passado, congelado nos
monumentos, livros, imagens e memória, ele sempre estará em perigo para um
historiador benjaminiano. As linhas de combate, os arranjos, as fugas, perdas e vitórias
que garantem no presente um passado, o estigmatizam como verdade, turvando as águas
que ainda guardam as lembranças da luta e da rapina. Benjamin nos aponta o caráter
construtivo da memória, mais que isso, o combate sem fim que aí se dá. Tudo é
movediço, e o que tomamos como rosto pode ressurgir como máscara mortuária. Por
que a memória como verdade do já acontecido e não como butim dos vencedores?
Memória e fotografia nascem de jogos de morte. A primeira, se triunfante, espoja-se
sobre os despojos dos vencidos, os que morreram e não podem legar seu passado aos
vivos; a segunda, eterniza uma cena do real, que é sua lembrança, ao tempo de seu rito
fúnebre. Persevera sendo o que foi, sem nunca assim ter sido. A rigidez cadavérica das
imagens fotográficas é assustadora. O que foi rosto, o que é máscara mortuária?

49
Nos álbuns de fotografias de cidade, o fluxo das ruas é retido em favor da
composição, do perspectivismo que reordena e re-significa as situações vividas,
congelando-as. Do evento à fotografia, o fotógrafo é esse traficante de instantes
entregues ao consumo crescente de imagens na sociedade contemporânea. Os
momentos, milésimos de segundo, plasmados durante a revelação, e agrupados numa
coleção (objeto-livro), não são janelas abertas para o real. Visão sobremaneira simplória
do complexo fenômeno da representação e figuração no suporte fotográfico, apesar da
crítica dessa corrente efetivada por analistas contemporâneos da fotografia.31 À ideia de
imagens como “janelas para o real” contrapomos a de encenação do real, presentes
como insights nas obras de Walter Benjamin (décor, théatre) e Roland Barthes
(théatre), compreendendo situações e transeuntes que as fotografias de rua figuram, sem
espelharem ou imitarem um real que sempre lhes escapa, como o resultado de uma
simulação, encenação da visibilidade.32
A palavra “theatron”, nos seus primórdios gregos, pode ser como o lugar de
onde se vê o espetáculo, como apontam Del Nero (2008, p. 14) e Pavis (2007, p. 409):
em analogia, de um lado o ponto perspectivo de onde parte o olhar do fotógrafo,
enquadrando a cena; do outro, a imagem revelada, fotografia de onde agora olhamos a
cidade. As janelas se apagam onde surgem as cenas; a transparência vacila onde a
cenografia do real se insinua. Theatron é palavra irmã do termo theoria, que vai da
organização e “caracterização de um ambiente” à “organização de um ponto de vista”,
como assevera Del Nero (2008, p. 29-30). Sob a teoria da encenação teatral (cena,
cenografia, personagem, ator, máscara, performance) evitaríamos o processo, sempre
presente na história da fotografia, de naturalização da sua imagem e efeitos.
A musa única da fotografia, a luz, nunca é analisada na proporção de sua
importância ou comumente de forma equívoca. Por longo tempo atribui-se-lhe função
de escrever a imagem, sucesso infeliz da expressão “escrita de luz” a despeito do autor,
László Moholy-Nagy (1993, p. 189), elaborar uma teoria da imagem fotográfica
considerada como “arte da representação” e perceber a sua importância na pintura,
cinema, cenografia e design. Em 1924, ele publica “Nouvelle méthodes en
photographie”, quando escreve que “fotografar significa escrever, desenhar com a luz”
(MOHOLY-NAGY, 1924 apud BAQUÉ, 1993, p. 16). Desenhar se afirmou menos que

31
Ver Flusser (2002, p. 82), Rosset (2006, p. 108) e Baudrillard (1998).
32
Benjamin (1991, 2000), Barthes (2002); Roubine (1998, p. 86).

50
escrever. Talvez daí advenha outra expressão que grassou nos estudos fotográficos, a
não menos desastrosa “leitura de imagens”. As analogias são claras: percepção e
interpretação de imagens submetidas ao modelo da linguagem escrita e sua leitura.
Entretanto, a imagem esteve sempre ao lado do teatro no sentido artaudiano. Em Le
Théatre et son double, de Antonin Artaud, o teatro é uma instância autônoma e não deve
ser submetido à ditadura das palavras desviantes da encenação que solicita os sentidos:
cor, gesto, imagem. A despeito das concepções críticas artaudianas, específicas para o
teatro e seus traços ocidentalizantes, podemos utilizar algumas ideias do capítulo “La
mise en scène et la métaphysique” e aplicá-las ao nosso objeto. As fotografias estão, da
mesma maneira que o teatro na análise artaudiana, à mercê da interferência das
palavras, como já assinalara Benjamin. As legendas, comentários, textos, as interpretam
e lhes dão sentido. Das imagens pode ser dito quase tudo, destino infeliz comum ao
teatro e à fotografia, reféns da palavra. Para Artaud, “no Ocidente, tudo que é
especificamente teatral, quer dizer, tudo que não obedece à expressão pela fala, pelas
palavras, é deixado em último plano”, advogando com veemência a linguagem física e
concreta que escapa à linguagem articulada, “tudo que ocupa a cena, em tudo que pode
se manifestar e se exprimir materialmente na cena”. Artaud (2006, p. 524-525) nomeará
essa linguagem de “uma poesia do espaço” quando seriam utlizadas em cena “música,
dança, plástica, pantomima, mímica, gesticulação, entonações, arquitetura, iluminação e
cenário”.

Retornando ao álbum de fotografia de cidade, a teoria da encenação teatral,


postulado pelos teóricos do teatro, poderia lhe ser menos agressiva, prospectando o
campo analítico em busca de caminhos inusitados e destacando da listagem artaudiana
parâmetros analíticos como plasticidade, gesto, arquitetura, iluminação e cenografia.
Deixaríamos a descoberto o caráter sempre violento do gesto interpretativo,
desnaturalizando a relação entre a aparição da imagem e sua redução interpretativa aos
modelos linguísticos, tomando a escrita como provocação à imagem. Assim, adaptamos
para a nossa análise o conceito de dispositivo cenográfico, definido como o conjunto de
procedimentos técnicos e estéticos que incide nos álbuns de fotografias, tanto na
aprovação da paisagem urbana, quanto na sua crítica, elaborando uma espécie de
hagiografia laica do homem e ambiente moderno. O processo construtivo do fotógrafo
de rua, em sua maioria, divide-se em duas etapas. Primeiro a “escolha” do lugar e do
instante de clicar o evento, depois a seleção do que publicar, entre todo o acervo

51
produzido, e sua ordenação no corpo do livro. O dispositivo cenográfico seria acionado
nos dois momentos: o primeiro, quando oportunamente cenografa o evento escolhido
através da objetiva, e posteriormente, quando da elaboração do livro, recria a cidade,
compondo cenograficamente os diversos eventos registrados. É sobre esses dois
momentos (produção das fotos/ produção dos livros) que o álbum fotográfico de cidades
se erigirá enquanto obra de arte e mesmo como uma mídia específica dentre o conjunto
dos livros de fotografia. O fotógrafo de rua, apesar de geralmente não atuar como
criador da cena que irá fotografar, como o cenógrafo, na descrição de Pavis (2007,
p.105), “dispõe as áreas de atuação, os objetos, os planos de evolução de acordo com a
ação a ser representada”. Ao determinar a perspectiva do olhar através da objetiva,
enquadra a cena urbana permitindo que ela visualize “as relações entre as personagens”
facilitando a sua gestualidade e a expressividade do entorno. Ressaltam-se espaços e
corpos como cenários e personagens ambos imprimindo a virtuosidade de suas formas.
Na imagem fotográfica a luz, como na cenografia de Appia, “[...] não é apenas aquele
instrumento funcional que se limita a assegurar a visibilidade do espaço cênico, ou no
melhor dos casos criar um ‘clima’. Ela permite esculpir e modelar as formas e os
volumes do dispositivo cênico” (ROUBINE, 1998, p. 137). Evitando a reprodução
atmosférica, a luz no espaço cênico pode “modelar, modular, esculpir, dar-lhe vida,
fazer dele aquele espaço de sonho e da poesia aspirado pelos simbolistas”.

Algumas fotos de Verger são especialmente dramáticas pelo jogo de sombras,


impondo um simbolismo latente, nelas a luz escapa das laterais da foto buscando um
fora e como um deus demiúrgico produz formas, corpos, cria espaços, zonas de mistério
e silêncio. Clareiras simbolistas onde, desviando levemente as palavras de Del Nero
(2008, p. 19), “o cenário empresta o seu corpo à liquidez da luz”, corpo este que foi
recomposto por ela, “como um instrumento” reflexivo. O estudo dos diversos álbuns
fotográficos nos leva inclusive a ponderar sobre o conceito de fluidez cenográfica,
indicando que as opções tomadas pelos autores oscilam entre manter a leveza das
mudanças de cenários ou precipitá-las buscando rupturas abruptas, deslocamentos
imprevistos, contrastes. Appia, conforme Roubine (1998, p. 136-137), preconiza que a
“fluidez representa, no caso, o grau ideal de mobilidade que permite evitar as quebras de
ritmo e as quedas de tensão habitualmente introduzidas pelas diversas modalidades da
mudança de cenários”. A história da encenação teatral relata as importantes
configurações pela quais passou a elaboração do espaço cênico de mero décor às

52
funções de expressividade, da acomodação textual ao caráter intervencionista. Ao
avaliar as inovações cenográficas de Craig, Roubine (1998, p. 89) assinala as complexas
“possibilidades expressivas do espaço cênico” desenvolvidas pelo encenador ao
“ampliar a profundidade cênica, de conferir ao espaço cênico um poder de sugestão que
ele nunca havia conhecido”. Cada vez mais, segundo Veinstein e Coucosh (2003, p.
208), “em oposição ao cenário tradicional, uma segunda direção, aquela do ‘cenário’
construído, vai ocupar um lugar. Um cenário que joga com o autor tende a substituir um
cenário-quadro”.

Nossa análise intenta diminuir o valor de autenticidade e reprodução acurada do


real para externar os procedimentos compositivos que estruturam o dispositivo
cenográfico. O propagado “efeito de real” da imagem tecnicamente reprodutível faz-se
acompanhar de um efeito de desrealização, que nos impele a perguntar, constrangidos,
mais uma vez, sobre o que fez, ou faz, olharmos e sermos surpreendidos mais pelo
efeito de realidade do que pela dessubstancialização da mesma através da cenografia
fotográfica. Esse processo de furto, de elisão de características que “constituem” a
realidade, poderia ser resumido como a supressão de algumas das suas dimensões, do
movimento, a perda do odor e de sua temperatura.
Flusser (2002, p. 21; 28) lembra-nos de que a máquina fotográfica já contém
uma programação específica que determinaria seu funcionamento quanto à captação do
“evento” (conjunto de lentes, absorção de luz, velocidade), cabendo ao usuário
simplesmente manipulá-la, a habilidade técnica do operador se limitaria a explorar as
determinantes funcionais do aparelho. Ao nos depararmos com uma bela foto de rua,
um cruzamento movimentado de uma grande cidade, não devemos esquecer que o que
vemos não se reduz ao que o fotógrafo viu, mas o que ele pôde e fez ver através de uma
máquina que, por sua vez, já contém um processo óptico pré-programado. Por fim, o
enquadramento e escolha de tons que caracterizaria a revelação, a escolha da prova
final, sem esquecermos os banalizados programas de pós-produção digital. A
sobrevivência mesma da fotografia como documento de vital importância para a história
do urbanismo dependeria dessa redefinição do seu caráter documental. E é essa visada
teórica, mais que sua historiografia ou estética, que conduziria essa potencialidade para
o campo do urbanismo e nos abriria insuspeitas vias disciplinares.

53
A cena heroica

A análise dos dois álbuns (RB/CHS) nos revela dois procedimentos do


dispositivo cenográfico. No primeiro procedimento acionado por Verger: o conluio
visual entre a herança colonial e os primeiros arroubos modernos, insinuando, sem
nunca corromper, a configuração colonial ainda existente como representação da cidade
barroca. Passado barroco que será reinterpretado visualmente por Verger ao introduzir
como vetor de sua constituição a experiência dos negros na cidade. No segundo
procedimento, Verger fotografa a natureza ainda exuberante na Salvador dos anos 40. A
arborização, a geografia acidentada e a Baía de Todos os Santos são espaços cênicos da
performance corporal da cidade e dos seus personagens. Vemos um só corpo orgânico
em que a ideia de moldura desaparece para dar lugar a uma concepção moderna de
cenografia.

Os clichés tirados de 1946 a 1952, selecionados e organizados pelo autor nos


livros CHS e RB, apresentam uma cidade bucólica, através da arquitetura colonial, do
porto e das praias distantes, com mulheres e homens negros que se deslocam com
desenvoltura pelas ruas, ladeiras e praças. O mar da Baía de Todos os Santos se deixa
entrever sobre os telhados, nesgas entre paredes ou limitando as fotos em que surge
plácido e soberano sem esconder a sua continuidade infinda. Nuvens embaçam o céu
deixando escapar a luz na maioria das vezes visíveis num chiarescuro que o urbanismo
colonial impõe por suas ruelas sinuosas, roubando sombras ao sol. Algo de um ar
pausado que dormita pairando sobre todos, transforma as situações da vida urbana em
cenas que o autor flagra durante suas caminhadas que exploram a cidade ainda
desconhecida. Embora, quanto às formas estéticas não se assemelhem ao surrealismo,
antes próximos do neorrealismo italiano,33 identificamos nos álbuns algumas apreensões
comuns aos fotógrafos da época como o deambular, a iluminação antropológica, as ruas
como teatro de encontros e acontecimentos imprevistos (hasard objetif) e o élan erótico
que por elas circulam. Os habitantes tornam-se expressivos personagens de um
espetáculo que se dá nas ruas e a herança arquitetural uma intensa cenografia a céu
aberto. As cenas dramatizam o dia-a-dia do homem comum em sua labuta permanente,
nos seus momentos de folga, nas crenças religiosas e festividades. Cercam a banalidade

33
Observação feita pelo professor Pasqualino Romano Magnavita durante a qualificação da tese. Ao
qual agradeço o comentário.

54
dos dias nos interstícios da cotidianidade e a reinvenção desta nas festas e ritos
religiosos. O impacto dessas imagens desperta para a vida das ruas e praças ocupadas
por negros em seus gestos, corpos e faces examinadas pela objetiva da Rolleiflex. São
paisagens nunca vistas da/pela cidade, campos desertos inexplorados, como, por
exemplo, o rosto negro de um estivador iluminado por um riso. Máscara eternizada que
nos olha e interroga em plenitude de vida, sensualidade, potência. Os corpos dos
habitantes e da cidade se deixam ver de novo, duplicando na fixidez o que foi
movimento e devir. Ressurgem na teatralização das situações urbanas, duplicados em
cenas, momentos que se evanesceriam do ir-e-vir das ruas. Pedestres, animais, carroças,
autos. A condenação do mundo moderno, que podemos verificar nas imagens, tanto
pelo que mostram como pelos índices de modernização que são relegados às bordas ou
simplesmente ignorados, dá-se também nos prefácios dos álbuns:

Os habitantes do Pelourinho levavam entre vizinhos uma vida de bairro,


fazendo suas compras nas modestas lojas locais. Chegada a noite, eles
permaneciam sentados nas soleiras das portas batendo papo com seus
vizinhos, sentindo-se em completa segurança. Eles não eram como hoje
atraídos por programas de diversos canais de televisão, de valor duvidoso,
que mantêm as pessoas lacradas dentro de casa olhando novelas. [...] Seria
desejável que o contato deles com o mundo exterior não estivesse restrito à
presença provocadora dos turistas que passeiam pelo bairro, devassando a
intimidade dos moradores e ostentando toda uma parafernália de objetos
valiosos e fantasiosos. (CHS)
Ao lado encontrava-se o antigo Mercado Modelo e o pequeno Porto dos
Saveiros, nesta época lugares privilegiados da Bahia que, lamentavelmente,
foram vítimas da onda invasora dos carros e da necessidade de lhes criar
grandes avenidas e espaçosos estacionamentos. [...] Esses veleiros foram
duramente atingidos pela concorrência dos caminhões, cuja utilização
cresceu com a construção de novas estradas. (RB)

Encravado como um cristal no centro da cidade, o Centro Histórico é abrigo e


expressão que se coaduna às ações exploradoras dos personagens neste cenário,
constituindo-se como um campo de atuações ao largo das grandes linhas de
modificações gerais e globalizadas. As deambulações de Verger e seus personagens por
esse sítio é a prática da exploração e adensamento da experiência das ruas em busca de
acontecimentos e encontros fortuitos, epifanias.
Tudo o que poderia representar o moderno não se afirma como signo norteador
do caráter urbano soteropolitano. As cenas vergeanas são um conjunto imagético de
experiências urbanas que reforçam formas e práticas culturais enraizadas, indiferentes
aos fluxos modernos associados às elites brancas. As tensões que delineiam a nova

55
configuração modernizante são amenizadas no sentido de, se não desaparecerem das
fotografias, ao menos serem citadas pelas bordas, em aparições controladas, sem
centralidade, pois o foco da objetiva sempre recorta, enquadra, a cidade provinciana,
enquanto arquitetura colonial apropriada pelo trajeto da tradição cultural e religiosa
negra. Os cenários de sua predileção são os bairros humildes, as extremidades da
cidade, as vilas de pescadores, ou o antigo centro, antes habitado pelas elites, e hoje
relegados aos pobres, os quais viam vantagem em morar próximos ao vigor do comércio
e das docas. Particularmente, o livro Centro Histórico de Salvador será, com seus
ambientes e personagens, um território livre, núcleo de uma utopia urbana fechada sobre
si, que desdenha jubilosamente do seu destino. Segundo Verger, a preservação do centro
histórico deve ser creditada a uma parcela ainda mais marginalizada, pois “o que
provavelmente preservou o Pelourinho de ser desfigurado pela invasão dos edifícios
modernos foi o fato dele estar cercado de um lado a outro pelos quarteirões onde
instalaram seu domicílio e o lugar de suas atividades as ‘damas de poucas virtudes’”.
Para o fotógrafo, “o Pelourinho resiste vitoriosamente à vaga de modernização dos
prédios da cidade e à proliferação dos ‘espigões’ promovida por empresários ávidos de
grandes lucros financeiros construindo edifícios de 10 a 20 andares que caracterizam,
infelizmente, a Bahia de hoje” (CHS). A precária modernização da cidade estará sempre
nas extremidades das imagens, é o que sobra, o que resta, nunca numa posição central
que pudesse ameaçar a soberania do cotidiano negro e da cidade velha e “barroca”
retratada. Nem mesmo um cartão-postal da cidade, como o Elevador Lacerda, tem lugar
garantido. Dos dois álbuns, ele só aparece no primeiro, em duas fotos: num canto
direito, na iminência de saltar para fora do enquadramento, como numa gravura
japonesa; se sobrepondo à cruz que o próprio Cristo carrega em procissão, reduzido ao
tamanho da penitência sagrada, e cedendo a atenção do olhar, à imagem religiosa.
Na Salvador das cenas vergeanas evita-se mesmo perspectivas visuais caóticas,
provocadas pela publicidade urbana, que impeçam uma paisagem urbana mais
convencional, circunscrita à leitura dos nomes de rua e reclames populares de pequenos
estabelecimentos comerciais ou mesmo de barracas de feira, em detrimento das
publicidades que correspondam às grandes empresas pertencentes ao capitalismo que se
moderniza.
De onde vemos, a partir daquilo que o olho de Verger viu pela objetiva e o
aparelho fotográfico registrou, o meio natural não é só paisagem, assume seu lugar
expressivo nas cenas fixadas. Árvores abrigam transeuntes e embelezam vias urbanas,

56
circundam praças como um grande útero enfolhado de onde se arriscam transeuntes
displicentes, suaves sobre a sombra-proteção na Praça Cayru. A um só tempo
acolhimento e estranheza. A Salvador de Verger é o útero materno de águas, vegetações
e casarios por onde se desloca o corpo negro erotizado, desnudo, esculpido em
músculos precisos, contornos arredondados. As deambulações pela cidade tropical, que
o leva a aprender a se perder em Salvador, são conduzidas por esses corpos de tez negra,
frequentemente masculinos. Bocas, peitoril, coxas, nádegas. No trabalho, descansando
nas ruas ou no transe da festa e do sacro.
Os manequins não passam despercebidos às objetivas de Verger. Espalhados
pelas cidades, ostentam um mundo entre o onirismo e as mercadorias que agenciam.
Numa das fotos, três manequins parecem trocar intimidades num clima de mistério,
expostos junto ao parapeito de uma janela. Senhores brancos, de certa elegância sóbria.
A camisa incompleta de um deles, frente ao péssimo estado do prédio onde se
encontram, parece uma crítica à decadência da vida das elites.
Nas fotos de praças, as linhas retas e as superfícies lisas dos casarões da
arquitetura colonial são tocadas, maculadas pela não uniformidade da vegetação eriçada.
Hirsuta, encravada no vazio urbano da praça, a vegetação é áspera aos olhos. Nas
imagens das encostas sugere-se o mesmo processo de estranhamento, em que os
casarios são invadidos pela vegetação, que brota sem controle, compondo um informe
urbano, que rompe a visão ordenada e funcional da natureza na cidade. Bataille (1993,
p. 33),34 em seu dicionário crítico, escreve que “informe não é somente um adjetivo,
tendo tal sentido, mas um termo servindo para desclassificar, exigindo geralmente que
cada coisa tenha sua forma. O que ele designa não tem seus direitos em nenhum sentido
e se faz esmagar em todos os lugares como uma aranha ou uma minhoca”. Verger
antevia essa última vitalidade verde no espaço da cidade, em que sua pujança preconiza
o lento extermínio finalizado nas praças lisas e inóspitas da Salvador contemporânea. O
informe procurará outras vias para nos surpreender nas imagens aquáticas, marítimas ou
fluviais, divididas em cenas de cultos religiosos, afros e católicos, cenas de trabalho e de
festa. Águas que alimentam a cidade, mas graças aos santos católicos, aos orixás e aos
peixes, se misturam ao suor dos corpos em labuta. No mar, em que sombras
amalgamam os marinheiros negros com a imagem barroca embarcada, ou na areia que
some tomada pelos fiéis e deixando um contínuo onde todos parecem estar mergulhados
34
Georges Bataille representa o lado obscuro do surrealismo. Entre livros de ensaios e romances
publicou Histoire de l’oeil e La part maudit.

57
nas águas; na Lagoa do Abaeté onde águas turvas recebem presentes e reverberam a fé
do povo do candomblé ou na Pesca do Xaréu, quando vemos os pescadores, medida
humana na desmedida do oceano ou do firmamento, e as nuvens e ondas alvas que
lambem seus corpos suados.
A zona informe entre terra e água, homens e deuses, propicia ações. Replicam-
se, tornando-se indistintas as linhas divisórias entre as expressividades paisagísticas e de
seus atores. O informe, onde o sincrético se anula para lhe dar lugar, resulta como
aquilo que não tem terreno ou conceito definido, o inclassificável que assusta as
disciplinas e que não estabelece híbridos ou misturas: nunca se trata de combinação de
formas.
Nos álbuns, além dos trabalhadores que carregam coisas, transportando e
apregoando mercadorias, são exemplares aqueles que cochilam nas ruas, nos bancos das
praças, ironia corporal dos soteropolitanos. Animais e seus condutores também
passeiam entre a insolência e a ignorância frente aos modernos meios de transportes,
carros ou bondes, impondo um ritmo lento ao fluxo citadino. No conjunto, indicam uma
recusa ao trabalho de lógica fordista, ao reordenamento funcionalista do espaço e ritmos
urbanos. De um lado, apologia do uso do tempo e da energia, do outro, o total descaso
pela submissão às redes produtivas: o corpo negro no dispositivo cenográfico vergeano
é sempre soberano. Reconhece que os investimentos de potência sobre o corpo não se
limitam às redes institucionais de controle, ou mesmo apenas mediada por redes
micropolíticas de assujeitamento ou disciplinarização corporal. Ao mesmo tempo não se
investiria como contrapoder, o que lhe remeteria ao campo reativo, mas constituição
positiva do corpo em potência criativa. Antes, são as redes de poder que reagem ao
corpo belo, gozoso e em transe. A disposição cenográfica dos corpos em Verger
favorece a tradição como potência criadora e reatualizável, de onde emergem as
intensidades que se conformam segundo as festas, as escapadas ao trabalho
disciplinado, os ritos religiosos. Podemos ir mais longe e afirmar que, no dispositivo
cenográfico, a experiência corporal, manifesta no transe, é o território comum que
alimenta as outras atividades. Mas é possível pensar essa experiência fora dos quadros
da antropologia religiosa. Ao conceituar a expérience intérieure contraposta à
experiência mística, Bataille (2006, p. 15) nos fornece uma ideia do corpo soberano em
Verger, do êxtase, alegria e emoção, menos com a “experiência confessional que com
uma experiência nua, livre de amarras, mesmo de origem, a qualquer confissão que seja.
Por isso, não gosto da palavra mística”. Possibilitada pela cultura, a experiência interior

58
rompe com ela no momento de sua realização, explodindo em mil intensidades que se
reagrupam além do imaginário ou discursivo e só reconhece a sua própria força e
expansão. É a soberania preconizada por Bataille.
A linha de ação contínua do dispositivo em relação aos corpos mantém-se
interligando as cenas como um fio elétrico imaginário, oriunda dessa experiência
interior que lhe refaz os gestos e alimenta a plasticidade dos movimentos em
visualizações dramatizadas das intensidades dispersas que lhes constituem. A série de
fotos de capoeiristas é uma sequência impressionante dessa luta em que “na base da
plasticidade dos movimentos” se estabelece “um fluxo interior de energia”, pois, para
Stanislavski (2001, p. 153), “a plasticidade exterior baseia-se em nosso senso interior do
movimento da energia”.
Em Verger, essa plasticidade intensiva se desloca por entre as cenas de festas e
transes. Nas fotos de Samba de Roda ressurgem o corpo soberano, glorioso em seus
movimentos erotizados, as mãos nas cadeiras da mulher, as pregas do vestido ao ritmo
das ancas que sambam sob os olhos desejosos dos homens que tocam. Por fim, os
corpos nas fotos de orixás, transidos, tomados, que dançam e rodopiam, a gestualidade
obedecendo a uma ordem que os organiza. Se “o gesto pelo gesto, sem significado
interior, não tem nenhuma função cênica”, como diz Stanislavski (2001, p. 98), então
“faríamos melhor se adaptássemos estas convenções, poses e gestos teatrais, à execução
de algum objetivo substancial e à expressão de alguma experiência interior”. Nessas
fotos, é importante notar a maneira como o fotógrafo francês posiciona os corpos:
riqueza de olhares, movimentos simétricos, entrecruzar de braços e pernas, acolhimento
do personagem central pelos outros corpos-coadjuvantes etc. A cenografia, segundo
Pavis (2007, p. 76), replica os personagens estabelecendo uma “relação com o espaço
circundante, principalmente com seus parceiros de atuação, com o público e com o
espaço”.
Por sua vez, a cidade deveria surgir, então, enquanto aparição única, menos
como “resistência” ao que quer que seja ou representação, e mais enquanto forma da
indiferença soberana ao processo modernizante ou à inevitável ação transformadora, e
por vezes letal, do tempo. A sua beleza está associada à sua precariedade. A
inevitabilidade do desaparecimento é a ocasião de sua aparição mais perfeita e
encantadora.
Distante de qualquer confronto político tradicional, Verger desenvolve uma
militância pautada num paradigma etnográfico. A arte de esquerda militante teria sido

59
colocada em cheque pelas reflexões de Benjamin, pois definir o artista de esquerda “ao
lado do proletariado”, apenas por suas convicções, seria situá-lo num lugar impossível.
A visada etnográfica de Verger ao afastar-se do lugar impossível teria encontrado a
impossibilidade do lugar que só poderia ser elaborado pelo dispositivo cenográfico
disposto nos seus álbuns.

A cena espetacular

Alijado de sua parte maldita, patrimonializado pelo passado recomposto em


tempo diverso daquele que combatia, o dispositivo cenográfico de Verger está
preparado para sua sobrevida, apagada a tessitura histórica de sua emergência. Assume
ares testemunhais e participa das estratégias do turismo, da cultura como mercadoria, do
espetáculo. Está no bojo de uma intervenção pública, oriunda do projeto carlista de
turistização de Salvador, que se arrasta até hoje na zona morta do pós-carlismo. A obra
de Verger ganha notoriedade com o advento da sua fundação e de uma loja no portal do
Pelourinho, passa a corresponder às intenções governamentais e econômicas de uma
imagem da cidade que se espetaculariza. Espantoso é darmos conta de que o lugar
impossível se acomodara no espaço espetacular. O dispositivo cenográfico se midiatiza
(vídeos, biografias, cds, comemorações, exposições, mini-shopping no Pelourinho)
sendo relocado e assumido como realidade cultural pelos soteropolitanos, distante dos
percalços quando de sua elaboração heroica. A máscara que para nós nada esconde além
das intensidades sem forma e nome, foi tomada como rosto próprio. A cidade torna-se o
espaço do paradigma etnográfico espetacular, confluindo consensualmente elites
intelectuais, econômicas, políticas e a enorme gama de marginalizados sociais. Funde
exclusão econômico-social e hegemonia cultural. A melancolia do desaparecimento
esvai-se com os primeiros chamados da eternização imagética urbana, espetacular e
mercantil. Esfuma-se o esforço compositivo dos álbuns no testemunho da cidade-fetiche
bucólica, apagados os rastros políticos, autonomizados e redimidos pela técnica, e não
constitutivos de um dispositivo criado a partir de opções políticas e intervenções
estéticas.
Verger, que intuiu o desaparecimento da Salvador que conhecera, sitiada por
uma modernização periférica cada vez mais agressiva, não podia imaginar que, trinta
anos depois, correlato a esse processo, se iniciasse a transposição do cotidiano da
cidade, alicerçada pela sua obra e de outros criadores, ao nível midiático espetacular.

60
Fratura de dois momentos que se miram como advindos de mundos totalmente
diferenciados, estranhos um ao outro. Querem nos convencer que se Verger soube vê-la,
a cidade, ao tempo de sua origem, dela podemos usufruir, como águas cristalinas, ainda
agora, sem nem mesmo imaginarmos seu termo.
Numa publicação recente da Fundação Pierre Verger, O Brasil de Pierre Verger,
nos deparamos com esse esforço de associar às imagens do fotógrafo um “fidelismo”
duvidoso e uma a-temporalidade marcada pelo continuísmo sobre a realidade brasileira
“revelada em preto e branco”, formada por “perfis da diversidade cultural do seu povo,
mutáveis com o tempo, é verdade, mas representativos do ontem e do agora”, nas
palavras de Baradel e Tasso (2006, p. 13). Apagando o caráter constitutivo dessas
imagens, alienando-as das concepções estéticas de seu tempo e situando-as além de
tempo e espaço, estaremos preparados para reificá-las como pontos de transmissão do
discurso cultural-turístico, onde não há mais nenhuma cultura, mas hipostasia de um
mito urbano de alegria. Realidade visual reprodutível que se impõe como verdade
atemporal, imagens que ocupam diagramaticamente as posições da ideologia. Ainda no
mesmo texto invoca-se a “liberdade total da ação de Verger com sua câmera
fotográfica” ou a visão näif:

[...] os fotogramas compõem um quadro da realidade tal qual se expressava


naquela época, sem retoques, sem maquiagens, sem a necessidade de
recompor ou adulterar cenários para que as imagens se adequassem à estética
do autor. Com Verger, tudo é muito real (BARADEL; TASSO, 2006, p. 14).

Contrapor uma continuidade das imagens é secretar que as práticas que as


inspiraram também são contínuas e, ao seu tempo, deslocarmos os estilhaços daquela
experiência urbana para uma moldura, uma tela simbólica, que apagaria todas as outras
imagens que se irradiam do presente: a cultura soteropolitana atual como sobrevivência
originária daquela primeira. Mas se já vemos os álbuns de Verger como ruínas, o que os
teria recomposto em um todo? Ou, retomando o raciocínio, o que nos faz recompor os
atuais estilhaços da cultura negra urbana nesse todo em que as imagens que nos chegam
“comprovariam” como totalidade?
Ainda não temos uma avaliação desse processo que nos parece estar assumindo
novos desdobramentos, uma terceira cena, que criaria o campo reflexivo para
comentarmos as duas anteriores. De qualquer maneira, estaríamos completamente
afastados das estratégias que os álbuns de Verger tornaram visíveis.

61
TEORIA HISTORIOGRÁFICA E A CRONOLOGIA DO
PENSAMENTO URBANÍSTICO

W. Drummond

Problematizando a Cronologia35

A teoria da história benjaminiana, de inspiração nietzschiana e surrealista,


aponta que é ao presente que reivindicamos as imagens do passado. No presente,
reelaboramos o passado reincidentemente, ele nos pertence enquanto imagem para o
futuro com a qual exorcizamos a tirania doce da nostalgia. Assim, uma cronologia
nunca seria um projeto fechado em si mesmo, reafirmando o erro de que deve conter
todos os acontecimentos, em ordenação temporal e sucessiva. Entretanto, se pensarmos
uma cronologia em sua própria historicidade, nos perguntaríamos: quais seriam os
perigos que ameaçam os eventos atuais e atuam nas escolhas dos eventos (temas,
acontecimentos, discursos) incluídos? Qual a força de sedução dessa situação de perigo
para os que a vivem?
Se em Benjamin a imagem que podemos ter do passado surge apenas como um
clarão para no instante seguinte desaparecer, é na instantaneidade do presente que o
jogo se faz. O continuum histórico, trocado pela fulguração instantânea, a qual nega
uma verdade imóvel à espera do historiador que a recolha. O passado não está em
nenhum lugar além, nem habita paragens temporalmente distantes, ele se presentifica.
É no presente que se deve reconhecê-lo como tal, na medida em que se descobre visado
por ele. Em sua imediaticidade, o clarão que o anuncia assemelha-se a flash
fotográfico, como expõe Benjamin (1991, § 5, p. 435) em suas teses da história:

A imagem autêntica do passado aparece apenas como um clarão. A imagem


surge apenas para desaparecer no instante seguinte. [...] É uma imagem única,

35
Este texto foi produzido para A Cronologia do Pensamento Urbanístico, um portal na internet dedicado
ao estudo do pensamento urbanístico de 1800 ao ano 2000, através das categorias de Projeto,
Publicação, Evento e Fato, no Brasil e no exterior, coordenado pela Profª. Paola Berenstein Jacques, no
PPG-AU/FAUFBA, (1950/2000), que integra a pesquisa Cultura Urbana e Pensamento Urbanístico no
Brasil, e pela Profª. Margareth da Silva Pereira, no PROURB/UFRJ, (1800-1950). O site da Cronologia
do Pensamento Urbanístico tem como objetivos prioritários: possibilitar uma melhor compreensão da
circulação das ideias urbanísticas, no âmbito nacional e internacional e promover um maior debate de
novas ideias sobre o tema, tornando-se um canal de divulgação de pesquisas inovadoras.

62
insubstituível do passado, à qual se esgota caso não seja reconhecida pelo
presente visado por ela.

Benjamin (1991, § 6, p. 436) nos adverte: “O conhecimento do passado


assemelha-se antes ao ato pelo qual o homem, repentinamente, num momento de perigo,
apresenta uma lembrança à qual o salva”.
A teoria da história benjaminiana suspeita radicalmente das continuidades,
atribui ao presente a tarefa de travar uma luta com o passado que não cessa. A
cronologia explodida pelo acontecimento – instante de reconhecimento pela imagem do
passado – só admite a continuidade das perdas sucessivas daqueles que agora exigem a
redenção. Esse engajamento e crítica nem sempre está presente quando pensamos a
historiografia do urbanismo. Nelas as imagens que herdamos têm um solo comum a
todos e ininterrupto se estende em cronologias e continuidades, que reforçam uma
memória oficial, entronizada num leito de Procusto. Essa visão, produtora de consensos,
estimula uma solidificação de processos, sua assepsia, e mesmo uma essencialização do
urbanismo.
Benjamin e os surrealistas procuram instaurar na facticidade do moderno a
irrupção daquilo que foi relegado como muito pequeno, antiquado, sem interesse ou
grandes perspectivas. Assim como Baudelaire, eles estavam interessados nos trabalhos
dos trapeiros, que recolhiam cotidianamente os dejetos da sociedade, aí encontrando
inspiração para a própria prática, poética ou historiográfica. Qual o poder oculto que os
surrealistas sentiam nas passagens e nos parques abandonados? Por que eles
provocavam experiências iluminadoras? Para Benjamin (1994, p. 25), a escolha dos
surrealistas não é aleatória, eles foram os primeiros a pressentir “as energias
revolucionárias que transparecem no antiquado”. A ameaça modernista que paira sobre
a arquitetura das passagens, extensível a todas as coisas, o momento de perigo que
coloca em risco sua sobrevivência, atua resignificando sua importância dentro da
cultura, revelando-se precária, acelerada em sua desconstituição, instaurando novas
apreensões do moderno:
[...] pois apenas hoje, quando a picareta os ameaça, é que eles se
transformaram efetivamente nos santuários dum culto do efêmero, na
paisagem fantasmática dos prazeres e das profissões malditas,
incompreensíveis hoje, e que o amanhã não conhecerá jamais. (ARAGON,
1926, p. 19).

O ritmo incessante do urbanismo moderno ameaça a paisagem urbana,


transformando-a num cenário de ruínas. A provisoriedade do moderno só vem à luz no

63
instante de fragilidade do que até então lhe simbolizava. Mais que isso, as ruínas
assumem novas significações e usos. Sua condenação sem sursis será seu último
depoimento mudo.
Comparando as duas citações, vemos que Aragon e os surrealistas concebem
uma apreensão da história que está também no cerne da teoria benjaminiana da história.
O desvencilhamento administrado das paisagens velhas e ultrapassadas das cidades
coloca arquiteturas, bairros, objetos em perigo, momento em que os reconhecemos
como fantasmagorias, possibilitando uma apreensão diferente da que tínhamos e que se
extinguirá, perdida para o futuro. Pensando a teoria da história, aqui solicitada para
analisarmos a historiografia do urbanismo contemporâneo, Benjamin retoma a ideia de
que o passado para ser reconhecido como tal deve ter a aprovação dos contemporâneos.
A reminiscência, entretanto, será visada sob um momento de perigo. Portanto, na forma
arquitetônica das Passagens, os surrealistas encontram abrigo para montar suas
estratégias de contra-memória e reafirmação da cidade, como havia feito o
fotógrafo Atget na Paris esquecida. Os livros surrealistas de sua época heroica se
distinguem das concepções associadas ao movimento, marcadas pela tentativa de
representá-lo apenas como uma transposição literária do inconsciente freudiano. Para
nós, é a relação tempo/espaço que define o movimento. Ao instar as forças do
desaparecimento, da transitoriedade do moderno, aponta sua fragilidade e reinterpreta as
ruínas românticas. É a duração das coisas que está em jogo, segundo Aragon (1926, p.
109). “Por exemplo, a apologia do gosto do efêmero. O efêmero é uma divindade
polimorfa tanto quanto seu nome”.
Assim, os estilhaços de outras épocas que perduram enquanto ruínas no meio
urbano assumem o caráter fantasmagórico e explosivo: acenam para a instabilidade
vivida e sua re-interpretação no centro da cultura. Os surrealistas desnaturalizam a
história. Ao explorar as passagens, símbolos arquiteturais do apogeu capitalista e agora
arquitetura passé, a elegia às ruínas empreende uma crítica ácida, mesmo irônica, ao
triunfalismo modernizante. As vitrines das galerias com seus objetos fora de tempo,
tornam-se atraentes aos surrealistas só no momento da decadência apoteótica e
irreversível. Para Aragon (1926, p. 161), “Um gosto pelo desastre estava no ar. Ele
banhava a vida: todo o moderno daquele tempo”. Ao elaborarmos um discurso
historiográfico do urbanismo contemporâneo, não poderíamos, rompendo com as
formas hegemônicas, criarmos uma historiografia crítica, inspirada nessas concepções?

64
Benjamin, não estava imbuído apenas da intuição histórica surrealista, quando
cunhou o enigmático tomo V, de seu Sur le concept d’histoire. Convertido ao
marxismo, devia ter em mãos o famoso texto de Marx, O 18 Brumário de Luis
Bonaparte. Citando Hegel, Marx, lança mão de uma metáfora teatral para definir a
história: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de
grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E
esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Para
Marx (1987-1988, p. 7), os homens são oprimidos pela tradição das “gerações mortas” e
ao tentarem criar algo novo, sucumbem aos “espíritos do passado”, dando-lhe “os
nomes, os gritos de guerra e as roupagens” de outrora.
No exposé de 1939, Paris, capitale du XIX° siècle, redigido em francês,
Benjamin (1991, p. 375) segue o raciocínio marxiano, pois “as novas formas de vida e
as novas criações econômicas e técnicas às quais devemos ao século passado entram no
universo de uma fantasmagoria”. Assim como Napoleão, não entendeu a natureza
funcional do novo estado burguês, os arquitetos também não compreenderam a natureza
funcional do ferro, senão retomando velhos usos e significações, em ambos os casos
criando fantasmagorias (BENJAMIN, 1991, p. 377). Uma historiografia crítica do
urbanismo estaria alerta para esse perigo.
Sob outra perspectiva, entretanto, mantendo a crítica radical ao discurso
histórico, Michel Foucault, filósofo-historiador francês, reduz o sujeito a uma realidade
histórica, fruto da elaboração e cruzamento de saberes. Assim, como o conceito de
verdade, ele deve ser compreendido enquanto aparição precária e circunstancial.
Enquanto o procedimento historiográfico postula os objetos históricos (seja o sujeito ou
uma cidade) enquanto uma permanência através dos tempos, dado sua obsessão pela
origem, ou como uma identidade primeira que se esconderia por trás de máscaras
devendo ao historiador desvelá-la, a genealogia entenderia que “atrás das coisas há
‘algo totalmente diferente’: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo de que
elas são sem essência ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de
figuras que lhe eram estrangeiras” (FOUCAULT, 2001, p. 1006). Longe de uma
intervenção relativista ou supra-histórica o que esse texto pode nos dizer é que se de um
lado os objetos históricos, como as coisas, não tem essência, por outro lado afirma que
tudo o que existe tem um caráter eminentemente histórico, contradizendo a visão
metafísica diluída em muitos trabalhos historiográficos.

65
No Nietzsche, la généalogie, l’histoire, texto elucidativo de sua compreensão da
história, Foucault (2001, p. 1004-1024) defende que a genealogia não se opõe ao que é
histórico mas ao metahistórico e às teleologias. Nem permanências, nem linearidades.
Ponto de fuga das finalidades em busca das singularidades, evitando o traço que se
arrasta de uma evolução, propondo em seu lugar “as diferentes cenas onde eles
encenaram diferentes papéis” ou mesmo as lacunas, o momento que não tiveram lugar.
Nunca a origem. Se nos ocorre de entender o presente como fim, que já esta na origem,
é por que esquecemos a história como devir. Foucault detecta uma recusa nietzschiana,
que também acalenta, em relação ao desejo de pesquisar a origem das coisas. Pesquisa
empenhada em procurar “a essência exata da coisa, anterior a tudo que é externo,
acidental e sucessivo”. Acredita que a genealogia trabalharia em sentido inverso do
“tirar todas as máscaras” para desvelar a identidade primeira, “essência exata da coisa”.
Contrário ao efeito metafísico, a genealogia apreende que por trás das coisas tudo é
diferente do “segredo essencial e sem data”. O que nomeamos de essência foi
constituído, acidentalmente, ao acaso, “a partir de figuras que lhe eram estrangeiras”.
O genealogista historiador sabe que no começo, longe de encontrarmos a pureza
essencial das coisas, ainda preservada da sua origem, encontraremos discórdia e
surpresa. Vemos, com ele, que nosso presente é a emergência de práticas e significados
novos, não a sua repetição modorrenta. Como não possuem “em si significação
essencial”, serão recolocadas sempre “num outro jogo”, submetidos a um outro
movimento e a outras regras, tornando-as visíveis “como os eventos no teatro de
procedimentos”. Ao aplicarmos as metáforas teatrais marxistas aos fragmentos
nietzschianos do texto de Foucault, que se alimenta de uma linguagem do campo teatral
(inopinado encontro entre Marx e Nietzsche), diríamos que a tragicomédia da origem,
com a perfeição que antecede a queda (verdade originária, erro que não se altera) seria
seguida pela emergência da farsa: a máscara que nenhum rosto encobre.
A história foucaultiana é pensada como narração daquilo que não persevera no
mesmo, lugar movente do dessemelhante num teatro de superfícies. Onde o passado
quer mostrar seu rosto resultante do desenho perfeito de sua evolução, continuidade e
cronologia, desafia com a proliferação dos erros e desvios, inversões, que gargalham
sob a máscara.
Mais uma vez, abordando a historiografia do urbanismo que nos
propusemos, não poderíamos analisá-la sem os pressupostos da origem e da
essencialização? Não seria mais interessante acompanhá-la nos seus desvios e

66
acidentes? Denunciar as fantasmagorias e sugerir a emergência de outras? Das
vicissitudes e aventura inicial, com suas continuidades, sobretudo os cortes históricos
formadores de seu discurso, às novas dramaturgias a que tem se submetido. Tomemos
então a própria historiografia do urbanismo (e sua cronologia) como um corpo, que na
definição foucaultiana é “superfície de inscrição de acontecimentos”, cabendo ao
trabalho analítico “mostrar o corpo todo marcado pela história e a história arruinando o
corpo” faz-se imprescindível.
Nos parágrafos anteriores afirmamos que passado sempre está em perigo para
um historiador benjaminiano. As linhas de combate, os arranjos, as fugas, perdas e
vitórias que garantem no presente um passado, o estigmatizam como verdade, turvando
as águas que ainda guardam as lembranças da luta e da rapina. Deveríamos desconfiar
do que tomamos como passado, repetido nos monumentos, nos livros, na memória.
Benjamin nos aponta o caráter construtivo da memória, mais que isso, o combate sem
fim que aí se dá. Tudo é movediço, e o que tomamos como rosto pode ressurgir como
máscara mortuária.
Por que a memória oficial como verdade do já acontecido e não como butim dos
vencedores? Memória oficial e historiografia nascem de jogos de morte. A primeira,
triunfante, se espoja sobre os despojos dos vencidos, os que morreram e não podem
legar seu passado aos vivos; a segunda, eterniza uma cena do real, que transforma em
lembrança ordenada, e se quer esgotando o fluxo histórico e o eternizando no
congelamento ao tempo de seu rito fúnebre. Persevera sendo o que foi, sem nunca assim
ter sido. A rigidez cadavérica de uma historiografia que assim se quer assustadora. O
que foi rosto, o que é máscara mortuária?
Romper esse ciclo seria assumir o caráter precário, emergente, crítico, como um
risco e uma aposta.

67
REFERÊNCIAS

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70
ANEXO: DEBATE SOBRE A ESTÉTICA REALISTA
Luis Carlos de Alencar, W. Drummond, A. Sampaio

A passeio no Rio de Janeiro no início de outubro de 2011, estive com Luis,36 amigo de
velhos tempos. Foi quando então li um escrito seu sobre a imagem do choque no
documentário brasileiro. Texto forte. Fala de imagens do corpo lacerado no cinema
brasileiro de um modo visceral. Reproduzo uma parte, que é testemunho de seu
processo criativo e político:
A nossa experiência direta quando da realização do documentário
Bombadeira e a necessidade de exibir a transformação do corpo travesti, por
vias de aplicação clandestina de silicone industrial, orientaram a elaboração
da narrativa pela busca primeira de um pathos, no qual a referencialidade se
desse com o espectador a partir da cotidianidade e dos anseios partilhados
entre as personagens travestis e transexuais, e ele próprio – suas dificuldades
no trabalho, nas relações amorosas, religiosidade, apreço pelo espaço
doméstico, esses aspectos constituíram a aproximação para com o público
‘comum’, geralmente pertencente a uma subjetivação heteronormativa, classe
media, branca. Posteriormente, no terço final do documentário, cenas de um
corpo perfurado por agulhas grossas, contendo líquido denso o suficiente
para rasgar a carne, sangue e silicone erupcionavam da culote transformado,
era sequência da ‘bombação’, de teor violento, doloroso tanto quanto
desestabilizador das noções de gênero e de corporidade. Na construção do
documentário, a tentativa foi de evitar o efeito de choque com exotismo e
horror do ‘mundo cão’ das travestis, como o ‘rito de passagem’ é comumente
tratado, mas de aproximá-lo (o choque) da identificação (pathos), calcada em
diversas estratégias de efeitos do real.
Entre um café e outro, lembramos que dele não foi postado o comentário aos ensaios “O
artifício e a morte” e “A cidade e seu duplo”, apesar de a revista digital [re]dobra
oferecer esta opção. Sabia de suas opiniões incisivas, e refratárias aos textos. Então,
sugeri que essa conversa fizesse parte deste livro... Enviei o texto de Luis para
Washington. E ele concordou também. Assim, segue-se um debate sobre o realismo
estético das criações de imagens reprodutíveis. Esperávamos que ele pudesse encerrar a
discussão, mas outras atividades tomaram o tempo de todos nós.
[AS]

36
Como diretor de documentários, Luis Carlos de Alencar dirigiu Bombadeira (2007), obra que hoje
circula por diversos países; e desde 2008, realiza Genocídio Negro – a necropolítica do Estado
Brasileiro. É assistente de direção dos filmes do cineasta Silvio Tendler desde 2011; produtor dos
documentários Raça (2013), de Joel Zito Araújo e Megan Mylan, e Cinderelas, Lobos e um Príncipe
Encantado (2008), também de Joel Zito.
Em finalização, o documentário Genocídio Negro aborda um grupo de atores do Rio de Janeiro, cuja
performance tem por premissa a de que o Estado, através de seu sistema penal (polícia e sistema
prisional), tem o corpo negro como alvo preferencial; no caso de Salvador, escolhida por ser símbolo de
negritude no imaginário nacional, cujo cenário de violência é flagrante, com mais de 4.000 mortes
anuais, é considerada por alguns como extermínio sistemático da juventude negra. O grupo visitou a
penitenciária Lemos de Brito, o IML e cemitérios clandestinos de desova de grupos de extermínio; e
conversou com pessoas-chave: defensores de direitos humanos; familiares e amigos de vítimas da
violência policial; detentos; policiais militares; movimentos sociais e ONGs; Secretários de Governo;
Governador da Bahia; pesquisadores. A performance é A Iminência de Destruição do Corpo Negro,
dirigida e atuada por Gustavo Mello, com pré-apresentações no Rio de Janeiro e na Bahia em 2011.

71
de Luis Carlos de Alencar
Rio de Janeiro, 8 de outubro de 2011

Prezados,
Não entendo pra que tanta raiva contra as imagens reprodutíveis e a intervenção urbana.
Também não tenho a mesma interpretação de vocês quanto ao que quis falar Benjamin
de “estetização da política”. Ele queria condenar a visão do povo enquanto objeto de
arte – domesticando-o, conformando-o, manipulando-o, instrumentalizando-o. Batia no
cinema capitalista americano e no fascista alemão, mas jamais nas imagens
reprodutíveis por si. O cinema revolucionário deveria trazer em si a denúncia das
contradições dos modos de produção no qual ele se inseria. Muito menos ele condenaria
a intervenção urbana, já que levantava aos céus os dadaístas. E era a favor da
refuncionalização como estratégia de uma arte revolucionária, portanto, tem aí algo
próximo com aquilo defendido pelas milhares de propostas de intervenção urbana – que
tampouco significa autoritarismo propriamente, mas guarda relações com uma
espacialização do agir, um conceito de se justapor, de se posicionar entre, onde
necessariamente não ocorrerá com a força, poderá vir com a argúcia, com a coragem,
com a criatividade, com o risco contra a força (do cotidiano, da alienação, da máquina,
do controle) que já está lá, atuando.
Acho que, por trás de ambas as críticas, se esconde um discurso da realidade
espetacularizada ou de desrealização do real, com o qual eu veemente discordo. Há uma
desatenção quanto à disputa pela realidade como pano de fundo de todas as fabricações
de imagens.
E a imagem é sim um objeto por si, um significante. Não é nem duplo, nem
representação no sentido de por algo no lugar do referente.
Ela se afirma como tal. Ela é referente, e seu uso é o que a potencializa, a qualifica.
Toda relação dela com o real é uma operação inerente às estratégias realistas que,
porventura, ela venha a assumir.
Porque, não se esqueça, ela pode ao contrário visar o escapamento do real, afastar de si
qualquer identificação com a realidade, como foram as propostas surrealistas.
TODO O MÉRITO DE AMBOS OS TEXTOS SE CONCENTRA NESSES 2
PARÁGRAFOS, apesar de contradizer o que vocês haviam escrito antes:
Será a emergência de mais uma ruptura das/nas imagens reprodutíveis, agora
em suposto tempo real e acoplada a imensos aparelhos: das redes em nuvem
de computadores aos satélites e terminais de processamento. A praticidade do
uso, sua cotidianidade nos perturba quanto ao que estamos mesmo fazendo.
‘Não, não, eu não estou onde vocês me espreitam, mas aqui de onde eu vos
olho, rindo’, disse o filósofo à cidade. Essas novas imagens urbanas, então,
devem servir para nos localizarmos e não para nos localizarem.

72
Sim, meu velho, o próximo texto de vocês então deveria começar com esses parágrafos,
investigando QUAL USO da imagem permitiria nos localizarmos, em vez da
condenação modorrenta de seu uso pela mídia, pela publicidade ou o que quer se valha.
Daí vem o debate das estéticas realistas extremas (psicótico, traumático, afetivo, de
choque etc.) quanto à obra de arte moderna e contemporânea.
Enfim, acho que vai render uma boa discussão sim.

73
de Washington Drummond
Salvador, 10 de outubro de 2011

Luis,
1. Benjamin nos legou suas escaramuças! O que ele pensava não pode ser pensando
aqui... então o que nosso amigo faz é responder o hoje com a resposta de ontem. Nós
estamos movendo Benjamin... mesmo que contra ele. Mas talvez até que não. Em
Benjamin, e nisso ele e Luis estão certos, os novos meios reprodutíveis são
progressistas. Agora não são nem um nem outro, apenas vivemos sobre o seu impacto e,
diferente de Benjamin, não temos nenhuma revolução para acolhê-los num sentido
positivo.
Estamos apenas nós e eles e suas imagens.
2. Talvez tenhamos pegado pesado. E é isso mesmo. Se somos radicais também os são
os amantes näif das imagens. Não estaremos nunca aí. Nem conluio nem cópula. Gostei
do tom de Luis. Queríamos isso mesmo: incomodar o conluio romântico (seja amoroso,
seja näif) entre cineastas, fotógrafos e esse ciclo (modorrento, aí sim!) das imagens que
produzem (ideologizadas, estetizadas, etc. etc.). Mas cada época merece as suas
imagens. E não estamos muito felizes com elas.
3. O realismo é baixo. É o “apequenamento” (como diz Alan) de nossa imaginação (pois
entendo que ainda é imaginação!! Apesar dos realistas...). Ainda mais nesse repetitivo e
moralista estágio documentar. Retorno: não tem realismo nenhum. Apenas uma
imaginação baixa e sem força. O mínimo de potência. Estamos do lado da ilusão e de
seu desvirtuamento do princípio de realidade. Da força da imagem fora da estética e do
moralismo contemporâneos. A imagem como denúncia é uma magia sem ilusão.
Imagem travesti: esquece de seu próprio ciclo mágico. Pois fetichismo é uma palavra
cara aos modernos (Marx e Freud aí se detiveram mais de uma vez). Quais seus
desdobramentos contemporâneos?
4. Acho que aqui não nos explicamos direito. A ideia é: não queremos ser localizados
por essas imagens, não precisamos disso! Nem que rastreiem o território que eles
querem que nos pertença. Fugimos dessa identidade. Localizar aí é capturar, identificar,
coagir a dizer a verdade de nós mesmos. Como se a tivéssemos: confundem rosto com
identidade! Outro dia pensei assim, as instituições federais e estaduais responsáveis por
implementar a cultura no país parecem uma mistura de instituições públicas
responsáveis por informações territoriais e pelo controle e identificação dos indivíduos.
Dessa maneira a bela metáfora que criamos da voz do filósofo morto assombrando a
cidade: “non, non, je ne suis pas là où vous me guettez, mais ici d’où je vous regarde en
riant”.
Sobretudo rindo!
Abraços,

74
de Alan Sampaio
Salvador, 10 de outubro de 2011

Luis,
Os textos são críticos. Não há raiva. Eles apenas são ácidos. Não vou discutir Benjamin,
mas diretamente os conceitos, do modo como usamos.
A estetização da política:
1. A primeira eleição que Lula saiu vitorioso. O programa de governo, seus princípios, a
discussão sobre a sociedade subordinam-se à publicidade. Nas primeiras propagandas
“políticas” da candidata Dilma, as imagens em movimento são trocadas entre um e dois
segundos. Como estou sempre reagindo a esse batalhão de imagens pré-fabricadas, não
tenho tempo de pensar, refletir. Além disso, essas imagens, feitas para me agradar,
visam minha adesão. E nenhum dos dois candidatos da última eleição estava
inteiramente preparado para o desafio de produzir tais imagens. Dilma fez cirurgia e
reurbanizou-se, por assim dizer. O outro provou que não se aprende a rir em tão pouco
tempo.
2. A história do menino Jean é emblemática: o mesmo menino da propaganda da
Bahiatursa morreu vítima de bala perdida quando bandidos trocaram tiros com policiais.
3. A utilização das fotografias de Verger pelos governos da Bahia (tese de Washington).
Falei um pouco dela para você: a tese denuncia o uso das imagens de Verger enquanto
imagens de uma identidade baiana dirigidas ao turismo. Hoje, creio, em vista de uma
acomodação local. De uma imagem que passou a representar a baianidade, em contraste
com a reação da época em que o próprio Verger fotografou a “Bahia”. As revistas não
queriam publicá-las. Não esqueçamos que eles fundaram uma editora para publicar as
próprias coisas. Ao mesmo tempo, enquanto Verger dizia, conforme o topos de sua
época, que estava apenas registrando, Washington mostrou que se tratava de uma
estética, com escolhas muito claras: homens negros de preferência, mas também
mulheres (o inverso se poderia dizer de Carybé), e a cidade sem suas modernizações.
Estas aparecem no canto da foto, digamos, a realidade apesar de Verger.
A politização da estética:
Neste caso, a crítica ao filme Tropa de Elite II é direta. E não se trata do conteúdo, mas
das imagens de guerra, que, ao contrário das explosões dos filmes hollywodianos, esta
guerra nos é cotidiana. Mas se temos a sorte de estar mais ou menos bem instalados na
cidade, esses acontecimentos quase só nos são próximos pela mídia. Questionamos a
estética do filme por querer coincidir com um jornalismo de propaganda, pensando em
ser um duplo do documentário. A “coincidência” do período de exibição do filme e as
imagens das instalações das UPPs no Rio. Tudo parecia apontar para uma zona informe,
na qual não se distinguem mais propaganda, jornalismo, ficção, documentário. Não há
nada de cinema revolucionário no filme. O que há de revolucionário (e não
simplesmente competente) na estética do filme? Ademais, podemos gostar dos filmes

75
revolucionários sem sermos revolucionários. – O conceito de informe é o mais
importante dos textos.
O duplo não remete à representação ou a algum referente:
Usamos em um sentido irônico, crítico, a partir do que disse Artaud em O teatro e seu
duplo – o título não é “O teatro como duplo”. A ironia está em que, enquanto Artaud
reivindica uma autonomia para o teatro – autonomia estética, autonomia em relação ao
texto e à realidade... Já a estética realista do filme se quer “duplo” do real, ou do
documentário, ou do jornalismo, como queira.
A crítica à intervenção urbana busca mostrar o vazio do gesto duchampiano quando
repetido; não o dele mesmo, é claro. Ao mesmo tempo, revela uma inquietação sobre o
nome “intervenção”, usado também para a ação política de guerra promovida pelo
Estado. Neste sentido, Washington preferiu batizar de “inervações urbanas”, as
performances, apresentações e exposições artísticas das mais diversas no espaço urbano.
Eu lhe comentei, em relação à performance de Gustavo Mello, que usa das mesmas
imagens de choque com as quais trabalha para seu documentário Genocídio Negro, que
a que mais me impressionou foi a única que você não tinha me mostrado. Apesar de já
conhecer tais imagens, a única cena que de fato me lembro e sou capaz de descrever é
aquela em que Gustavo tenta retirar uma menina da foto projetada, quando, na imagem,
dois policiais fortemente armados se aproximam dela (esta imagem não mostra nenhum
cadáver)... Falei também como julgo a cena de estupro em Irreversível – que tenho
dificuldades de chamar de estética do realismo, em sentido positivo. Por isso, também
mencionamos a delicadeza de não ser exibido o estupro no filme Tropa de Elite II.
Discutir gosto é discutir as formas de julgamento do sensível, das ações e da própria
realidade. Creio que é isto que fazemos aqui, nós três.

76
de Luis Carlos de Alencar
Rio de Janeiro, 22 de outubro de 2011

Penso que no tópico “A estetização da política”, Alan, você oferece bons exemplos para
o debate.
Mais uma vez: Benjamin se referia ao uso do povo, como um elemento de arte, mais
precisamente às coreografias nos congressos ou os filmes de Guerra, onde
celebraríamos a nossa própria desgraça. A manipulação estetizante das massas,
conformando-as, distraindo-as, alienando-as, ao não exporem as contradições dos
modos de produção nos quais o povo-espectador estava inserido. Ainda assim, mesmo
nesse cinema, ele identificava algumas funções precipuamente políticas, de caráter
liberador: a relação ator-máquina (câmera) – distinta da relação trabalhador-máquina
(da fábrica) – e o efeito terapêutico que filmes violentos teriam sobre as massas e suas
psicoses oriundas da exploração capitalista. Dito isso, o seu exemplo da campanha de
Lula e a enfatização do marketing no processo eleitoral brasileiro, sobretudo depois dos
anos 90, pode ser uma ilustração bastante provocadora: não é exatamente o povo que é
estetizado – mas a política, entendida esta como democracia representativa, da qual e na
qual o povo é mais um referencial. Não nos esqueçamos de que existem outros:
mercado financeiro, corporações e lobbys financiadores, governos estrangeiros, partidos
aliados, etc., para os quais a performance também é apresentada. Se algo aqui é
estetizado, em todos os aspectos quanto possível for, é a campanha eleitoral, ou melhor,
o jogo democrático (representativo), que tem como elementos o candidato (gesto,
maquiagem, cabelo, tom de voz, personagem encarnado, etc.), a retórica (bordão,
bandeiras de luta, frases de efeito…), o partido (em alguns casos, em pequena monta
contam a sua historicidade) e por aí vai. A democracia é a obra de arte. Será que há aqui
uma estetização da política, como a pensou Benjamin? O do engabelamento popular por
meio de estratégias de natureza estética visando o estabelecimento, a manutenção e a
atualização das relações político-econômicas, isto é, a estetização da política, ela não
seria o próprio fundamento da política (na democracia representativa)? Dizer que houve
subordinação à publicidade é fato, mas não dá conta de todo a complexidade envolvida:
a representatividade, ou melhor, a representação se arroga como imagem que se remete
ao referencial e o substitui. O presidente eleito representa e encarna a própria vontade
popular, ideia presente na casca do ovo da democracia liberal burguesa. A marketização
da política, o uso de estratégias estéticas específicas da publicidade, a ascensão do
publicitário na diretividade das táticas eleitorais (e das ações do governo, se eleito), a
generalização, superficialização e legitimação midiática do programa de governo, dentre
outros exemplos, caracterizariam um dado momento da democracia representativa; ela
seria o estágio atual da estetização da política (institucional), e não o depauperamento
da sua essência, do seu funcionamento, dos seus objetivos. Podemos estar próximos do
seu ápice – ou da sua crise – justamente nesse momento em que mais enfática tornou-se
a sua espetacularização.

77
A questão que aqui se coloca é justamente a da disputa pela realidade. É muito forte o
discurso que essa não existe mais: se tornou espetáculo ou mesmo simulacro. Que uma
estratégia de resistência seria explorar as potências do espetáculo ou as do simulacro.
Discordo. A premissa é falsa. Existe espetáculo, os simulacros aí estão, mas para a
maioria das pessoas o real bate na porta todos os dias, não por simulacros nem por
imagens televisivas. O seu exemplo de Jean é pertinente aqui: apesar da imagem
hegemônica circulante de democracia racial, de alegria oligofrênica, a bala continua a
varar. Não são somente as imagens de televisão que entram em sua casa, como já sabia
o pobre menino e qualquer morador do Nordeste de Amaralina.
O sucesso de Tropa de Elite II não se dá pelo que há de ficcional nele, de imaginativo, o
foguetório; ao contrário, é o que há de efeitos de real em suas estratégias narrativas,
mais do que propriamente o épico, a violência, a exasperação de determinadas imagens
– que convenhamos, é pouca se comparada a muito filme de ação a que essa geração
costuma ver na TV ou na net. Toda a violência do filme é, porém, potencializada com o
que se pretende de identificação da (nossa) realidade – e por isso assistimos. O filme o
faz com muita, mas muita competência mesmo. Padilha soube se valer do repertório de
estratégias da estética realista do cinema brasileiro, conjugado com todo o lastro do
cinema de ação e policial americano, do século passado. Assim também se valeu muito
do cinema político, de Costa Gravas a Ken Loach, de Pontecorvo a Bianchi.
Agora, se houve um incomodo por vossa parte do uso das imagens de Tropa de Elite II
para ilustrar as ações fascistas do Estado fluminense, porque houve um embaralhamento
dos conceitos de realidade, realismo estético e espetacularização, não é a qualidade da
obra que deve ser julgada, mas ele, o seu uso. O realismo quer exatamente isso:
reorganizar uma fatia do real e elaborá-la conforme sua narrativa deseje. Se Tropa... foi
tido como material ilustrativo da matéria, isso só ratifica que o filme conseguiu se valer
bem das estratégias estéticas do realismo para conseguir o seu intento. O problema que
nos incomoda, aí sim, é inserido em que dispositivo. O mesmo vale para qualquer filme,
ou qualquer obra de arte, que está sempre na eminência de ser ressignificada conforme o
dispositivo discursivo (artístico, jornalístico, institucional, publicitário) que lhe faz uso.
E no uso das imagens de Verger como estratégia discursiva de venda de imagens-forte
do Estado Baiano, o paralelo com as teses benjaminianas se valida: aqui é o povo, suas
expressões culturais, os passados e presentes recriados em narrativas simplórias e
reguladas, é tudo uma grande e cruel obra de arte manipulada pelo capital e pela
governamentalidade atuante, regurgitada pelas microrrelações de poder. O Álibi cultural
é chave: festeja-se, enaltece-se, fetichiza-se e festiciza-se el pueblo, enquanto o
escarifica por baixo do som alto de cada canção. A construção de um álibi cultural nos
dá por apoteose o encontro de trios na Praça Castro Alves, ante o cenário de 40 corpos
negros, todas as segundas-feiras – é o bloco sem cordas do genocídio racial passando na
avenida, com a banda sound brazilian criminal system mandando sacudir o esqueleto. O
álibi cultural só tem força de álibi porque as imagens que evoca (ou avoca?) são
representações que se querem reais e portanto afastam o real, querem desrealizá-lo.

78
Mas é possível destacar a estética da política e vice-versa? Se o desenvolvimento
tecnológico veio a propiciar a proliferação das imagens, são os usos que determinam a
politização dessas imagens circulantes, os dispositivos de que elas passam a fazer parte
é que configuram a sua política. Mas o cerne aqui ainda é outro: o cinema e a fotografia
não se tornaram arte porque possibilitou a acessibilidade da obra de arte para as massas
que ascendiam à esfera política no século XX; só se tornam arte porque as massas
passaram a ser consideradas como tema da arte – ou mais precisamente o homem
comum, anônimo, o esgoto, os objetos mudos do cotidiano, os detalhes, passam a
protagonizar, a serem fonte histórica, uma nova sensibilidade estética estava surgindo. E
isso já acontecia muito tempo antes do cinema e da fotografia – já na literatura e nas
artes dramáticas realistas, o sujeito anônimo havia florescido. Fatumbi Verger só
elabora fotograficamente (esteticamente) os negros haitianos porque antes eles haviam
se tornado tema estético – suas fotografias portanto são uma estetização daquele tema, e
sua repolitização. A política – compreendida como a competência de corpos ocuparem
lugares, e outros não, de anunciar o que é visível, dizível, e o que não é – tem, portanto,
uma base estética primeira, como defende Ranciére.
A elaboração estética da fotografia de Verger é evidente, presumo que Washington
Drummond a tenha estudado com propriedade. Mas onde está a importância do uso das
fotos nesse debate? O modo como estão sendo usadas pelo discurso dominante – as
fotos, como também as expressões afro-baianas – me parece ser fundamental para
entender a sua riqueza como obra realista – capaz de provocar diversas implicações
políticas e ressonâncias na realidade, porque arte é fazer ver (seja pelo afastamento –
surrealismo, dadaísmo – ou aproximação – realismo, naturalismo – com a realidade, a
arte quer nos mostrar algo). E em todos os casos, ela está sujeita à captura. Como o foi o
surrealismo, o dadaísmo, o concretismo também.
Por isso, não somente as fotos em si, deveria nos interessar também o dispositivo
discursivo no qual as enfiaram. Para quem se destinam? Como as pessoas estão sendo
tratadas na foto? Quais sensibilidades (sensoriais) ela afeta no observador? Ela se expõe
numa pinacoteca, ao lado de outras fotos? Está como um elemento visual em uma
instalação onde existem meios sonoros, olfativos, e a interatividade na obra de arte? Ou
está em uma propaganda institucional, como ilustração corroborativa de uma ideia
hegemônica de cidade e cultura? O observador da foto é visado como sujeito
participante ou mero contemplador? A mesma foto poderá assumir diversas valências
político-estéticas, a depender do seu uso, de como ela pode partilhar a sensibilidade na
comunidade de observadores que são atingidos por ela. Elas nos localizam, nos
empurram, nos tonteiam, nos confortam? Aqui será o campo da criação, da imaginação,
da capacidade artística de uma obra – seja ela oriunda da estética realista ou
impressionista. Nunca haveria um apequenamento apriorístico porque ela se valeria do
repertório estética dessas ou daquela corrente: mas no que ela pode possibilitar de novos
afetos, novas sensibilidades, de abertura para novas subjetivações, e somente aí haveria
chances de novas subjetivações políticas liberadoras.
No caso de Verger, naquela altura, apesar da cidade estar no canto da foto (que você
diz, Alan, que é a realidade), o que significou aqueles negros e suas religiosidades, seu

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hábitos, seu corpo estarem no centro? (Recomendo aqui assistir ao curta Ressurreição
de Arthur Omar, de 1989, todo costurado com fotografias de corpos assassinados, ao
som de dois hinos religiosos populares, cantados por Agnaldo Timóteo e Carmen Costa.
O que seria originalmente quase um produto necrófilo vendido em bancas de jornal pela
imprensa sensacionalista, transcende-se em potência extática, segundo a proposta de
Bataille – o mesmo que usou algumas fotos de Verger no seu livro “O Erotismo”, e para
quem tratava-se de um dos melhores fotógrafos do seu tempo, justamente por não fazer
a imagem subalterna a que os africanos e os diásporos estavam hegemonicamente
sujeitos nas lentes eurocêntricas).
Se me ocorre ter discordâncias com Tropa de Elite II, elas estão apontadas para o seu
conteúdo – fundamentalmente, na redenção da polícia fluminense pelo “incorruptível”
BOPE. Jamais será por princípio de que não poderia narrar na obra de arte um fato
político, valendo-se da violência ou da crueldade, ou porque esta fora usada no Jornal
Nacional. Tropa de Elite II fez algo que nunca nos anos 00 nem um documentário se
aventurou: a vinculação da milícia, do Governo, da Mídia e o avanço do Estado-máfia
no território fluminense. Sua estética, porém, não é inovadora, muito menos
revolucionária, como também não o é a maioria dos filmes dos cineastas já aqui citados
(que se registre que politicamente Padilha como ativista no cinema está há anos-luz
atrás).
Washington, você afirma que não tem realismo nenhum como se quer. Imagino que
esteja se referindo às obras de arte contemporâneas brasileiras a que você tem acesso e
que isso não seja uma condenação ampla ao realismo como proposta estética. De toda
forma, as obras realistas com potenciais liberadores seguem o mesmo caminho,
disputam os mesmos espaços, com quase as mesmas dificuldades de que qualquer obra
de qualquer corrente, com o mesmo caráter revolucionário. E olha que tenho muitos
exemplos, somente dos 10 últimos anos, de dentro e fora do país, de obras
extremamente criativas e deflagradoras, sob a ótica realista.
O realismo, em suas diversas propostas estéticas, pode contribuir nessa disputa da
realidade, reivindicando a sua repolitização (porque toda a imagem é politizada ainda
que fetichizada)? Eu acredito que sim. O realismo pode atentar contra a zona informe,
predita no texto de vocês? Acredito que sim.
Mas na realidade, a zona nunca foi informe.

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de Alan Sampaio
Salvador, 24 de outubro de 2011

Luis, querido,
Tenho sempre a impressão que nossa conversa ocorre em alguma paralaxe.
Para mim, é difícil discutir sobre democracia. Ela já está sempre carregada de valor. “É
a grande obra de arte!” – dizem. Se há relação entre arte e democracia, é para malogro
da primeira. Eu não quis falar de democracia, mas de cidadania. Na propaganda política,
nessa má aglutinação de nomes, a discussão política se subordinou à lógica da
propaganda. E quando isso se deu, não importaram mais as ideias, como antes
importavam aos partidos de esquerda. Só proporcionaram uma verdadeira discussão os
kamikazes (aqueles candidatos de partidos pequenos e em geral revolucionários que
alcançaram em média de 1 a 5% dos votos). Todos os outros se subordinaram ao
formato “civilizado” dos debates. No caso das eleições à presidência, a máscara
“civilizado” caiu no pior debate moralista – sobre o aborto, como todos tiveram o
desprazer de assistir na propaganda e nos jornais. Por que a discussão sobre cidadania
tem de partir da democracia? A cidadania é uma questão muito mais ampla.
E por que mesmo tudo tem de passar por aí? A questão que me pareceu crucial nas
últimas eleições é o fato de as imagens exigirem intervenções corpóreas: a cirurgia
facial de Dilma e a deformação da fisionomia na tentativa de rir de Serra. Que isto é um
capítulo da história da estética diferente do capítulo da eleição de Obama, negro de
nome de origem mulçumana que se elege no país da democracia usando como estratégia
publicitária uma associação de sua imagem com a imagem tão conhecida de Che
Guevara. O específico do evento brasileiro é que, digamos, o Photoshop se deu no corpo
dos candidatos. Não discuto as facilidades e potencial do programa, mas seu
empobrecimento e sua vulgaridade – torna tudo parecido – tudo plástico – tudo comum
e belo e satisfeito. O evento estético das últimas eleições para presidente é correlato da
estetização atual da cidade do Rio em nome das Olimpíadas e da Copa do Mundo. Nos
dois casos, trata-se de expurgar a parte maldita. Para finalizar, no caso da propaganda
política, o que vale para a propaganda em geral, – elas diminuem nosso espaço de
cidadania. O que faz uma criança em um comercial de Banco? Para certas coisas temos
pouca ou nenhuma defesa – algumas por causa da cultura (a criança...), outras por nosso
aparelho óptico (a velocidade na troca de imagens, sua consciente e preparada busca de
atingir-nos em um nível inconsciente).
Do mesmo modo, deprecia nossa cidadania a possibilidade de sermos localizados em
imagens de programas da Internet. Nós sabemos o que as câmeras estavam fazendo ali
na tomada do morro do Alemão pela Tropa de Elite e aliados. Todos nós assistimos na
TV a um massacre com as roupas de heroísmo. Luis, parece que nossas posições nesse
diálogo estão em paralaxe, porque enquanto você busca um conceito positivo de
“estetização da política”, nós a ironizamos, ao mostrá-la como negativa, quer dizer, um

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empobrecimento do político pela estética do comercial, correlativo ao aprisionamento
das energias criativas à moda política.
Em relação a Verger, que Washington responda por sua tese. Quanto a mim, ri da
caricatura que faz do que disse antes (“As modernizações da cidade aparecem no canto
das fotos, digamos, a realidade apesar dele”). O que quis dizer (a partir do que entendi
da tese de Washington) foi: Verger diz fazer apenas um registro, enquanto na verdade
há escolha de cenário, de personagens. Seu “realismo” se denunciava naquele pedaço de
real que escapa da cena, no canto da foto. E que seu surrealismo se mostra quando se
comparam suas fotos de jovens negros seminus, belos, poderosos, alegres, com as
taitianas de Gauguin.
Quanto à sua indicação do curta de Arthur Omar (Ressurreição), uma contraindicação:
Balada Triste de Trombeta, de Alex de la Iglesia (aqui traduzido como Balada Triste de
Amor e Ódio). De Arthur Omar eu assisti Os cavalos de Goethe, e não conseguiu me
provocar esteticamente. Ao contrário, Balada Triste... provocou no público (assisti no
cinema) uma desconcerto estético, pois começa “realista”, quando retrata a Guerra Civil
Espanhola (1937-1939), para logo se tornar um filme absurdo, como alegoria dos
absurdos do regime franquista. Não faltam lacerações. A mais forte é quando o palhaço
triste joga um produto ácido em sua face e logo depois a queima várias vezes com um
ferro quente. Logo, você está certo. Comparado a outros filmes, Tropa de Elite II não
tem tanta violência assim. O específico, como apontou, é que ele pretende representar a
realidade, e por isso sua violência ganha um efeito mais poderoso sobre o espectador.
Esse poder, porém, se coloca ao lado do vulgar e retrata a banalização da morte – da
vida. Enquanto escrevo, não consigo tirar de minha cabeça as imagens de Kadafi
exibidas por todos os telejornais. Nenhum deles teve o pudor de cobrir o morto com
alguma película ou simplesmente de não mostrar.
Você buscou deslocar nossa discussão sempre para o plano do uso: “São os usos que
determinam a politização dessas imagens”. Você supõe que há uma imagem e que nós
podemos usá-la de muitos modos. Isto acontece, mas não sei se é o essencial. Penso em
Francis Bacon. Sabe-se que ao contrário do horror, que costumavam reportar à estética
de seus quadros, ele dizia que quis pintar apenas o grito, que queria ter feito o quadro
mais perfeito do grito – e não conseguiu; ou então, no caso das telas de crucificação, ao
entrelaçar a imagística da crucificação com a imagística do açougue, ele pretendia
alcançar certas áreas do sentimento e do comportamento humanos. Ele dizia que
procurava alcançar a nitidez, fazer uma arte o mais próximo possível do fato, do fato
bruto. Para isso, usava de fotografias, mas se afastava da estética fotográfica porque a
pintura sim poderia levá-lo a certas áreas do sistema nervoso que a foto não alcança. A
fotografia, ela mesma, antes da discussão sobre seu uso, implica um campo estético.
Não uma estética simplesmente, mas um conjunto de estéticas – não apenas no que é
óbvio como objeto quadrado de fácil mobilidade etc., mas também naquilo que
determina (e aí o sentido estético é mais forte) em nós a nossa percepção do mundo.

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