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COLEÇÃO TERRAS DE NINGUÉM

Washington Drummond (org.)


ISBN 978-85-86274-10-7
TERRAS DE NINGUÉM • Vol. 1
Washington Drummond (org.)

ATRAVESSANDO AS
TERRAS DE NINGUÉM
BRENO SILVA
TERRAS DE NINGUÉM • Vol. 1
Washington Drummond (org.)

ATRAVESSANDO AS
TERRAS DE NINGUÉM
Breno Silva

Alagoinhas - BA
2018
Fábrica de Letras
Coordenação: Edil Silva Costa
Coleção Terras de Nínguém
Organizador: Washington Drummond
Título: Terras de Ninguém. Vol. 1. Atravessando as
Terras de Ninguém.
Autor: Breno Silva
Revisão: Luciana Marcelino
Editoração/Capa: Geraldo Santos
Ficha catalográfica: Samuel Gonçalves Proença
Editado conforme o novo tratado ortográfico.
Direitos reservados para essa edição. As partes podem
ser reproduzidas desde que citada a fonte.
Fábrica de Letras. UNEB (Universidade do Estado da
Bahia) Campus II, Rodovia BR-110, KM 03, 03 Zona
Rural, BA, 48000-000 Alagoinhas, Bahia, Brasil.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Silva, Breno.
S586a Atravessando as terras de ninguém/
Breno Silva. – Alagoinhas: Fábrica de Letras,
2018.
99 p.– (Terras de ninguém; 1)

Bibliografia.
ISBN 978-85-86274-15-2
ISBN digital 978-85-86274-11-4

1. Antropologia urbana. 2. Urbanismo. 3.


Cidades e vilas. I. Título. II. Universidade do
Estado da Bahia. III. Série.
CDU: 364.122.5

O que surge à imaginação só pode provir
de algum lugar lá fora, de um ar livre que
não é necessariamente um Além. Deseja-
se que as ideias não mais tombem dos
céus embaraçosos; elas deveriam brotar
da terra de ninguém dos pensamentos
precisos e sem dono.

Peter Sloterdijk, Esferas I Bolhas


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
por Edil Costa 7

DO LUGAR NENHUM AO LUGAR


INCOMUM: TERRAS DE NINGUÉM
por Washington Drummond 9

OS ESPAÇOS ACIDENTAIS 15

A LIBIDO DA PERTENÇA 19

CERCAS 31

MURALHAS 39

TRINCHEIRAS 51

ESCRITURAS BORRADAS 59

DECAPITANDO-SE 69

PULANDO AS CERCAS DO
DESAPARECIMENTO 85

FALAR DAS NUVENS, FALAR DAQUILO


QUE NÃO SE SABE 93
APRESENTAÇÃO

O Programa de Pós-Graduação em
Crítica Cultural (Pós-Crítica) promoveu, atra-
vés do Projeto Laboratórios do Pensamen-
to Crítico-Cultural, uma série de encontros
com pesquisadores nacionais e internacio-
nais, ao longo do ano de 2016 e com o apoio
FAPESB/CAPES. O resultado desses encon-
tros foram extremamente positivos para o
Pós-Crítica, uma vez que proporcionou a
integração de pesquisadores dos principais
centros acadêmicos do Brasil e do Mundo.
Em setembro de 2016, como parte da
programação do Laboratório do pensamento crí-
tico-cultural VI - George Bataille e a heterologia:
estéticas e políticas contemporâneas, coordenado
pelo Prof. Dr. Washington Drummond, foi rea-
lizado o Seminário Terras de Ninguém: foras, tor-
ções, furos, lapsos e fabulações. Realizado em Ala-
goinhas, com a participação dos pesquisadores
convidados Breno Silva (IFMG), Simone Parre-

5
la Tostes (IFMG) e Monique Sanches Marques
(UFOP), o Seminário Terras de Ninguém ampliou
territórios, abrindo caminhos para um diálogo
enriquecedor e projetos que vão se concre-
tizando com a publicação desta Coleção em
três volumes: O Volume 1, de autoria de Bre-
no Silva, é intitulado Atravessando as Terras de
Ninguém. Simone Parrela Tostes é responsável
pelo segundo Volume: Ativando desvios, deser-
tando das vigências. Encerra a Coleção o Volume
3: Dos montes e de dentro, fruto do trabalho co-
letivo de Monique Sanches Marques, Túlio Co-
lombo e Wellington Philipe Alcantara Spinola.
A publicação dos três volumes que
integram a Coleção Terras de Ninguém foi mo-
tivada pelo desejo de registrar de forma sis-
temática as discussões iniciadas no Seminário
Terras de Ninguém: foras, torções, furos, lapsos e
fabulações. No entanto, espera-se com esta pu-
blicação do Laboratório de Edição Fábrica de
Letras, poder ampliar a divulgação das ideias
trazidas por nossos convidados durante o Se-
minário e dar a elas os desdobramentos devi-
dos, em outras viagens e por outras paragens.

Edil Silva Costa
(Coordenadora da Fábrica de Letras)

Alagoinhas, novembro de 2018.

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DO LUGAR NENHUM AO LUGAR INCOMUM:
TERRAS DE NINGUÉM

Habitar uma terra que é ninguém, que do saber


nada sabe, que a cabeça lhe escape. De uma
certa maneira poderíamos ser confundidos com
uma recusa romântica (embora a expectativa de
um mundo positivo nos assombre mais como
comédia do que medo) ou um protetorado
literário ou artístico. Mas essas não são formas
contaminadas? Inventamos uma terra em que
o povo é ninguém e o lugar é nenhum: nosso
fastio ao invés de evitar a fome, a inventa. Nosso
nomadismo ao invés de percorrer o território, o
dilui. Nosso “negativo” instaura o último gesto,
ou antes, algo sempre antes do último. É dessa
emergência, nessa emergência que aí figuramos
nossas expropriações. deserdados que somos:
furos, foras, torções.

Sabemos que tudo está em risco. Que o


pensamento e a escrita estão sob ameaça, que

7
aí se insinua - como nunca antes - o modelo,
a cópia eunuca, a margem conspurcada de
citacionismo. Pensar e escrever passam por um
agressivo processo de homogeneização, que
imprime até na revolta os seus ritos viciados,
suas páginas frias, na "transgressão organizada"
(como bem nos lembrou o pesquisador
mauricio de jesus). E todas as formas correntes
de compartilhamento são também uma cilada
que erige a apatia como o ar du temps. Como
escrevi no meu "breviário dar miséria explicado
às crianças”: as redes executam uma nova forma
de sujeição em que a apatia não é mais derivada
da opressão, mas da expressão. A intensa e
nervosa conectividade expressiva é a mais
bem acabada forma de servidão voluntária.
Esse é o século do "apativismo". A expressão é
uma cilada quando prescinde do pensamento
devido a coerção e a instantaneidade técnica,
abdicando do gesto. O desafio não seria o gesto
do homem decapitado? Aquele que sonharam
masson, bataille e artaud. Que estratégia nos
legaram ao revirarem a fisiologia! Lembro de
uma fala de klossowski que destroçava o corpo
humano em intensidades. Como elas reviram
os órgãos, desaprenderam os atos e fundaram
momentaneamente um outro corpo, jamais

8
tido, jamais pensado (onde a cabeça já não tem
mais lugar. O lugar é de nenhum órgão, de um
ninguém, do neutro e qualquer de clarice).

Quando pensamos nesse seminário do


qual deriva a Coleção Terras de Ninguém,
queríamos diferir, inclusive entre nós, para
que o pensamento nos surpreendesse em sua
irregularidade, na fragilidade do que emerge
e desfigura. Não são essas nossas potências?
Como fios elétricos, um macramê elétrico em
que quase cabos se tocam, desconectam, curto-
circuitam, visam um fora. Demos sentido a
essa extimidade que aponta o fora, pois o
pensamento sem cabeça visa o que lhe é pura
exterioridade. O espaço desnudo da guerra
contemporânea, a escrita no que fere e inscreve
superfícies múltiplas, a lama que escorre sobre
a vida, o tráfico e o nomadismo do território. A
trama dos conceitos é disruptiva, embaralham,
chocam-se, retraçam. Em cada aparição uma
surpresa, um encaixe nos textos e falas e
então...o lapso. Nos encontros que antecederam
o seminário descobrimos que o pensamento - e
sua produção - pode ser delicado e feroz, frágil
e agressivo. Assim como borges nos alertou
para a ascendência da leitura em relação a

9
escrita, aprendemos que a escuta também reina
sobre o falar.

O Terras de Ninguém foi um acontecimento.


(clarice em sua visitação obsessiva nos dizia
o mesmo da epifania). Não apenas algo
que fratura o estado de coisa, o conhecido,
mas, sobretudo, aquilo que impossibilita de
continuarmos no mesmo, no próprio - esse
próprio rebaixado que ameaça o singular. Um
acontecimento não cinde o fora, mas o torna
irreconhecível; não só imagina o objeto por
um outro ângulo, ele o aniquila e o instaura
totalmente outro, como nunca antes. Durante
alguns dias - e aqui vocês terão a chance de ler
os livros da coleção e perseguir o que tento com
dificuldade descrever - nos aproximamos dos
que quiseram percorrer essas terras, contanto
que assumissem a máscara do ninguém. Para
que ainda seja possível o pensamento do fora...

salvador, 12 de novembro de 2018

Washington Drummond

10
ATRAVESSANDO AS
TERRAS DE NINGUÉM
OS ESPAÇOS ACIDENTAIS

Este livro deriva das preparações e dos


desdobramentos do intenso seminário Ter-
ras de Ninguém: foras, torções, furos, lapsos
e fabulações, promovido pelo Laboratório de
Crítica Cultural da UNEB – Alagoinhas, do
qual participei a convite do Prof. Dr. Washin-
gton Drummond. Para produzir um campo de
pensamento para o seminário, a referência da
trincheira (o no man’s land da primeira Guer-
ra Mundial) foi aderida àquelas de espaços
realizados no desejo de ter, pelos cercamen-
tos diversos, mas naquilo que lhes escapa em
movimento. Estes espaços acidentais fazem a
cidade ficar à margem mesmo quando inseri-
dos dentro da cidade. Em suas especificidades
parecem dizer de uma “habitação-mundo” que
extrapola as definições territoriais e seus limites
e se apresenta como uma forma de leitura das

13
possibilidades relacionais contemporâneas a partir
da subversão da noção fundante da organiza-
ção do modelo social ocidental: a propriedade.
Indo ao encontro da desapropriação do
saber, Terras de Ninguém soava como um cha-
mado e uma coincidência para fazer aquilo que
movimenta o próprio tema: partir do que não
se sabe bem o quê e que se encontra do lado
de fora de saberes antecedentes. Assumindo
o risco inevitável, consistindo um espaço de
pensamento condizente à inquietude diante
do virtual, do infinito imperfeito sobre o local
e o global na fragilidade descontínua da “habi-
tação-mundo” contemporânea. Onde o pen-
samento se abre para formas sem referências
legitimadoras, transitando entre os territórios
das verdades instituídas e os da criação. O des-
prendimento e o impensado resultante – aqui,
já uma terra de ninguém - no movimento duplo
de entrega e de enfrentamento das intuições
subsequentes, se rearranja numa montagem
despudorada, excretada e residual, feito esse
livro.
Um livro de intuições. Sem o impedi-
mento ao aprendizado jovial, as intuições são
sintonias de pensamentos que abrem uma

14
comunicação em vários canais. Elas oscilam
entre aquilo que a realidade fala e os sistemas
estruturantes de pensamentos. Isso quer dizer
que elas tocam a vida como as narrativas e pro-
vocam pensamentos até as categorias filosófi-
cas. Quando escritas, as intuições jogam entre
as narrativas diversas e conceitos específicos.
A sistemática da escrita acadêmica, com sua
insistência na previsibilidade, talvez não seja
a mais apropriada para expressar as intuições,
mas quando o texto não é uma cópia pobre
de monumentos instituídos parece que ele se
nutre, ao menos hipoteticamente, desse sopro
desvairado. E, as recaídas – que podem parti-
cipar do princípio de redundância da escrita
acadêmica - se transladam em recaídas no pro-
cesso experimental da escrita.
Para essas recaídas experimentais seria
necessário recorrer a outros campos como, por
aproximação imediata, o literário? A literatu-
ra está comprometida com a criação, com a
emergência de uma novidade que sucumbe e
refaz formatos. Por certo que ela faz da escrita
um meio expressivo privilegiado de um gaio
saber. Mas não é necessariamente o único. As
recaídas experimentais vêm de um movimento

15
preciso como na caminhada dos filósofos em
que nos seus pensamentos irrompem diálo-
gos com outros pensadores que são arrastados
para algum lugar interior retornando para fora
em risos e regurgitos, ao que se segue em con-
luio a revisão de seus conceitos. Em busca de
um arranjo para o pensamento das Terras de
Ninguém, entre a narrativa e a produção aca-
dêmica, as variantes são infinitas, e a questão
só se encaminharia na própria produção. Nela
a forma expressiva brota da disposição, do
movimento para bifurcações no encontro, da
dis-posição.
Terras de ninguém não deixa de ser
um espaço nomeado como campo de potência,
de possibilidades para práticas de expressão
dos pensamentos arrombantes. Irrompendo
um processo de feitura que só pode fazer des-
te livro um livro, prazerosamente inacabado.
Nele o pensamento é tomado como um fenô-
meno coletivo. Talvez esse seja um livro que
convida para ser rescrito a cada nova apropria-
ção como esforço de desterritorialização que o
anima, fazendo-o convergir para uma vitalida-
de desejante.

16
A LIBIDO DA PERTENÇA

Um beijo e um abraço de despedida, de


resistência ou de recomeço? O enlace amoroso
acontecia entre as trincheiras que separavam
dois países em disputa territorial. A cena, no
elã de Romeu e Julieta repercutia nos ícones
da história do cinema e, simultaneamente, ao
encontro corriqueiro anônimo. Cada qual che-
gava de seu lado, lado cada vez mais definido
e refratário após um fim de guerra. Ainda não
havia sido assinado qualquer tratado favore-
cendo o vencedor e delimitando que ali seria
exatamente uma daquelas zonas divisórias
entre países. Dissociados pelas identidades
que os faziam pertencer aos seus próximos e
reconhecer no outro um povo inimigo, os dois
ainda recorriam a seus nomes com suas grafias
específicas afirmando procedências. O dela,

17
porém, fora marcado no peito dele na técni-
ca dos marujos em escrita de tatuagem, feita
durante uma expedição a uma ilha distante,
resultando na grafia errada e em um leve des-
conforto para ambos. Já ao fato naturalizado
de um ser homem e a outra mulher, pareciam
cansados da caçada ancestral. Cercados de
domínios recorriam à trincheira parcialmente
desmoronada, esvaziada de combatentes e ple-
nas de restos. Talvez o único espaço habitável
reconhecido por eles no qual a pertença se tor-
nava ambígua.
Na parte desmoronada e de vão reduzi-
do era possível o gesto afetivo onde ele apoiava
os pés de cada lado da trincheira, firmava-os
sobre a terra escorregadia arqueando as pernas
como se empurrasse os limites querendo alar-
gar um novo território ocupado pelo restante de
seu corpo. Por sua vez, ela se entregava depen-
durada naquela ponte sobre a linha sepulcral
que fendia a terra fazendo do corpo dele o seu
território provisório. Um espaço de passagem
que insistiam ocupar. Com um pé lá e outro
cá, os corpos balançavam, num fino movi-
mento equilibrista de uma dança desconheci-
da. Suportavam-se desde esse órgão rasteiro,

18
desmerecido pela mão que escreve, e condição
de liberação da mesma enquanto dedão do pé
atrofiado possibilitando o homo erectus e suas
infindáveis manipulações. Na despretensão
cadenciada dos seus pés, ele religava as mar-
gens indiciando a fragilidade dos limites e de
suas crenças. Se ela não estava em nenhum dos
dois países, ela se amparava naquele que se
apoiava nos dois. Se ele não estava em nenhum
dos dois países, por estar cravado e sapateando
ao mesmo tempo nos dois, ele abraçava-a com
firmeza. E esta proteção já não seria o indício
de algum domínio, de uma cerca embaraçada
por alguma força atômica? Entre os arames
farpados à distância previam sem querer um
novo mundo, o Eletricladyland.
Onde, afinal, estavam eles? Como
situar um acontecimento simples, um encontro
que aparentemente se reproduz infinitamen-
te por aí, mas que talvez seja mais arriscado
aos limites do que corriqueiro? Para os dois
aquele encontro de poucos minutos favorecia
uma multidão agitada num espaço turbulen-
to. Cheiros recíprocos de suas peles e hálitos,
variados como tais, multiplicados pelo vento
que vinha dos lados trazendo os aromas da

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floresta misturados àqueles que vinham de bai-
xo, esquentados nas fendas da terra e fazendo
subir um odor da decomposição orgânica que
resiste e se entrega lentamente à morte. Calo-
res internos encontravam com o das roupas e
do pouco contato entre as suas peles protegi-
das do inverno que se atenuava. Um casulo
frágil e animado pelo sopro de vida restituía
uma biunivocidade esquecida. Biunivocidade
anunciada pelos seres alados que ora batiam as
asas em alvoroço, voando em velocidade sobre
os vazios entre os galhos das árvores e que
ora se rastejavam na terra se camuflando em
toupeiras produzindo sons estilhaçados sobre
gravetos secos. Parece que pouco importava
o que viam, os amantes talvez se orientassem
por sonares tão finos e precisos como os dos
morcegos na noite e das jubartes cantoras ala-
das na imensidão da noite invertida dos mares.
Orientação conduzindo-os a percorrerem com
entrega de si o fluxo do caminho do outro. O
vapor do sangue de um adentrava pelas aber-
turas porosas do outro, condensava ao mudar
de meio em seus interiores. Essa mistura de
líquidos movimentava os corpos alterando
seus volumes que se dilatavam e se disten-

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diam. A respiração de cada qual os animava
reciprocamente num pacto pneumático, numa
aliança comunal, como aquela do primeiro
homem com sua divindade criadora formando
“uma interioridade bipolar que nada pode ter
em comum com a mera disposição autoritária
de um sujeito sobre uma massa objetiva mani-
pulável”1. Amassavam-se e eram insuflados
ainda sem reconhecerem que produziam seus
ocos.
Decomposto no fora e ao mesmo tem-
po com o interior invadido em movimento e
despossuído, outro mundo num tempo muito
singular se modelava: se abria e, aos poucos,
se cerrava possuindo tudo ao redor como uma
respiração bramânica. A dimensão expandida
conduzia a uma realidade microcósmica que
arrebatava a língua que permanecia ocupada
no fluxo caudaloso. Somente após o acaba-
mento daquele mundo algo poderia ser dito
sobre ele? As mãos permaneciam igualmente
ocupadas demais para a escrita e para o piano
de uma trilha sonora de fundo, elas tocavam o

1 Ver SLODERDIJK, Peter. Esferas I. Bolhas. São


Paulo: Estação Liberdade, 2016. p.39.

21
outro e na absorção do toque previam o reco-
nhecimento de si.
O sopro que insuflava os dois era res-
pirativo, conspirativo e inspirativo2. Ele sub-
verte a dualidade, não se sabe quem é quem
ali; ele anima aqueles que tomam parte nele;
e impele à comunicação, à troca entre os dois,
mas também à troca com a exterioridade
enquanto refúgio abrigando o entre-dois. Ele
faz falar com o fora, falar daquilo que se expe-
rimenta, mas não como fato descritível mais
do que como um processo que acontece. Ele
movimenta a escrita e a música na tentativa
regressiva em busca do vestígio do acontecido
e lançada adiante como que na sua produção.
Talvez porque este mundo naturante nunca
se cerrou completamente é que ainda se possa
dizer algo sobre ele.
Uma despedida em reverberação não
consegue requerer um lugar. É assim que o
encontro – estranhamente parece que está se
falando de um último e do primeiro encontro,
de uma despedida e de um enlace inaugu-
ral - se dá com a promessa de não mais haver

2  Ibidem. p.40.

22
guerras, de não mais haver conflitos. Nesse
futuro improvável, nas terras de ninguém, na
terra da mulher elétrica, habitará algum amor
incondicional irmanado, essa prática da dádi-
va movida pela esperança na contingência e
descortinada para todos e qualquer um?
O encontro parecia secreto e o lugar
escondido demais para ser determinado e
especificado. Porém, não era secreto para os
meninos sem pais e sem pátria que os seguiam
à distância e espionavam a cena dos dois lados
da trincheira. Para aqueles olhares de primeira
vista, a multidão provocada pelo encontro se
convertia num corpo misturado de rostos fun-
didos, de casacos entrelaçados, roupas terrosas
camufladas na paisagem. Os olhares curiosos
faziam dos amantes um só prestes a se diluí-
rem no conjunto-paisagem, essa unidade que
só se apresenta à distância e prescinde de um
formato. Decerto o interesse dos meninos era
sobre algum aprendizado das condutas huma-
nas, que a guerra os privara, da especificidade
que reproduz domínios, mas dos quais ainda só
os interessava, como que seduzidos por aquilo
que não conhecem em construção, a dimensão

23
do prazer que atraía a felicidade condicionada
ao encontro. Destes olhares de abelhudos bifur-
caram lembranças caleidoscópicas do menino
apagado pelo cientista, do menino apagado
pelo soldado, do menino apagado pelo artista,
do menino apagado pelo agricultor.
Fechando o foco, a descrição da pintu-
ra borrada pelo apagamento emergindo uma
entidade amalgamada entre natureza e cultu-
ra, entre as filigranas indescritíveis e os astros
mais distantes, parece retratar o amor. Parece
mais ainda que o retrata somente no descabido
do espaço tempo por ele irrompido. Foi nesta
terra de ninguém, enquanto espaço de encontro
amoroso, talvez onde seja possível estar-com,
que pela primeira vez os meninos sentiram o
abalo sobre a propriedade e sobre o pertenci-
mento desde dentro. A expropriação de fora
já havia sido apresentada a eles pela guerra,
pela destruição de suas casas, pela morte de
familiares e de amigos e por todas as privações
da violência instituída. Mas desde dentro e de
forma compartilhada, ainda não havia aconte-
cido. Um deles ainda se lembra da poça d’água
lamacenta como sinal de catástrofe sobre o

24
sujeito auto-celebrante atual enquanto se mira
no espelho semi-desperto em algumas das
manhãs vindouras. Na poça estava cravada
um pedaço de pá usada para cavar a trinchei-
ra e na outra borda um pedaço de pano, resto
de uma capa de soldado. A imagem do menino
refletia um anti-narcísio. Era ali que a memó-
ria inventava a sua resistência se desviando do
escopo da verdade da violência que impunha
formas de egoísmos sutis.
Quem viu naquele acontecimento banal
a represa de um drama? Talvez ela, a abraçada,
talvez os meninos aprendizes desamparados,
mas ninguém “viu” mais a represa do que a
capa do soldado e a pá atoladas. Como teste-
munhas cegas, estavam ali bem antes do acon-
tecido e acumulavam narrativas em seus corpos
desobjetificados. Elas diziam inicialmente da
ocupação do limite para redefinir territórios.
Eram instrumentos para a proteção e conquis-
tas. Mas quando abandonados nas proximi-
dades por razões diversas, bem antes daquele
encontro, estes objetos se transformavam com
o tempo e preparavam o terreno para o acon-
tecido que fazia do lugar uma zona indefini-

25
da. O tecido se esgarçava em trechos cobertos
pela terra e em trechos nos quais cobria a terra
como uma segunda pele frágil de um manto
de Penélope encharcado. Na pá, as suas partes
desapareciam cada qual no tempo próprio de
suas matérias, a madeira apodrecendo e o fer-
ro carcomido enferrujando. Já não eram mais
objetos no sentido restrito que os vincularia à
utilidade, estavam livres das mãos dos homens
e impregnados de memórias exteriores de
outros contatos. Ficavam de lado, camuflados
na cena. De objetos passavam a vestígios, do
latim Vestigium como o define J-L. Nancy: “A
sola ou a planta do pé, um rastro, uma pegada
de um passo” [...] “mostra que houve movi-
mento de algum passante, mas não diz qual3”.
Como tais, elas eram aquilo que se segue a pis-
ta enquanto se lança adiante. Nesse movimen-
to se abriam para outras formas de existência
que coincidindo no além não deixavam de se
preparar para a reificação como obra de arte no
Museu da Guerra. Na captura transcendente a

3  Ver NANCY, Jean-Luc. O vestígio da arte. In: HUCHET,


S. (org.) Fragmentos de uma teoria da arte. São Paulo:
Edusp, 2012.p.301.

26
técnica dava à mostra o seu reverso.
Quem viu no acontecido uma proteção?
O abraço dava a dimensão da envoltura limi-
te dos dois corpos. Com a pretensão do lugar
aristotélico, porém, instituído a partir de dois,
ele não bastava como a linha de envoltura limi-
te exterior de cada um. Linhas emaranhadas e
cheias de rupturas se formavam e se construíam
no espaço e no tempo a habitação provisória.
Cabana frágil apoiada em dois pés e de dra-
peados ao vento. Era somente nesta fragilida-
de exposta e cheia de dobras que ele sentia que
ela era dele e em algum momento do abraço
a proteção se convertia na velocidade de uma
luz que pisca, em alguma pertença. Na mesma
velocidade ela se entregava àquele domínio
para dobrá-lo e fazê-lo em seguida oscilar no
infinito drapeado impróprio. Ambos sentiam o
abalo da situação se alastrando sem garantias
de propriedades. Os tremores que repercutiam
fendiam a terra de outro jeito. Trincheiras sem
objetivo e que se auto-produziam se soterrando
e abrindo outros caminhos, percorrendo o mun-
do como um meteoro de superfície. Seria essa
construção de outros caminhos uma resposta
histórica à guerra? “A libido do pertencimento

27
conduz à maioria dos crimes da história; uma
vez eliminada, pode a paz ser instaurada. [...]
Trata-se de inventar uma nova humanidade:
a humanidade, simplesmente”4 . Qualquer
reinvenção passa pelo não pertencimento, no
entanto, para uma humanidade esquiva à vio-
lência, o não pertencimento teria que ocupar e
se ocupar da maior parte dos processos vitais.
A coexistência, a habitação com o outro deve-
ria ocupar a maior parte dos espaços. Parece
que foi assim naquele abraço de fissura do
desejo e no campo de propagação que se suce-
deu.

4 SERRES, Michel. Ramos. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil: 2008. p.81.

28
CERCAS

Subindo pela encosta resultante de


falha geológica chega-se à sua metade quase
exata. Ali se identifica a marca numa escala
maior de um abraço entre placas de terras tre-
midas resultando em pedaços sobrepostos eri-
gindo um paredão de vinte metros de altura.
Nessa muralha natural se encontram algumas
inscrições datadas de tempos imemoriais que
repercutem dez mil anos atrás - ou quem sabe
mais? - feitas por nossos semelhantes ances-
trais. Pequenas figuras de homens, animais e
geometrizações estão espalhados por cerca de
setenta metros horizontais na rocha. São ins-
crições do lado de fora que se esquivam das
profundezas da caverna uterina para deslizar
na superfície luminosa do exterior. O paredão
rochoso era uma muralha natural, mas antes

29
de proteger de algo, ela parecia um espaço de
anúncio. O que dizia esse outdoor? Talvez, “se
vire e olhe para trás”.
Ao fazer esse movimento o que se via
era um grande vale até o limite de montanhas
longínquas. Um assombro em um duplo movi-
mento: o do corpo que se virava e do olhar
que saía da dimensão fechada do paredão de
pedra para alcançar distâncias inimagináveis
até então. Movimento regressivo, memorial,
para trás e ao mesmo tempo se lançando adian-
te até o horizonte, termo derivado do substan-
tivo horos (limite, em grego) e do verbo horizein
(separar, limitar). Imagino que a sensação de
domínio oscilava desta vez nas dobras geoló-
gicas e na vibração dos ventos. Voltando os
olhos à parede de pedra a leitura rápida do
outdoor fazia aparecer outra mensagem: “será
isso uma paisagem?”
A região abarcada pela visão, este cam-
po aos olhos funda a paisagem (talvez, deri-
vada ao mesmo tempo de um proto-francês
cantado pays aux yeux dos homens cansados da
escuridão de Lascaux e Chauvet). Pelos olhos
que alcançam longe a terra à vista, associada
à mão que inscreve o que viu e o corpo que

30
se movimenta aderindo à novidade, se efetua
a territorialização inevitável. O estranho sen-
timento de domínio se arraigava como pro-
cedimento humano na operação sinestésica:
mão-grafia que esboçava signos na parede,
olho-apreciador de tudo ao redor e à qual tão
logo seria acrescida a voz-fala que anuncia em
tom grave “isso é meu” - requerimento que as
crianças desde então logo repetem desde os
balbucios. Instaurava-se um sistema de repre-
sentação territorial: “teatro da crueldade que
implica a tripla independência da voz articu-
lada, da mão gráfica e do olho apreciador”5 .
A paisagem inventada pela voz e pelo olho é
inscrita na rocha, efetivando não só um terri-
tório, mas uma memória pela qual o homem ia
transformando a região em sua casa, seu domí-
nio, local do qual vai se lembrar para retornar
e para defender de quem quer que seja. E, por
conseguinte, “[...] trata-se de dar uma memó-
ria ao homem; e o homem, que constituiu por
uma faculdade ativa de esquecimento, por
um recalcamento da memória biológica, deve
arranjar uma outra memória, que seja coletiva,

5 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo. Lis-


boa Assírio & Alvim: 1995. p.196.

31
uma memória de palavras e já não de coisas,
uma memória de signos e já não de efeitos”6 .
Com o alfabeto terrível sobrepondo a
memória biológica, o cercamento e o cultivo
estão prestes a se instituir. Este alfabeto nos
permitirá definir as medidas, as distâncias, os
hábitos, nomear o habitat e sempre ter para
aonde ir, o que cuidar e defender. Foi nessa
coincidência que os primeiros homens num
gesto simultâneo em diversas regiões cerca-
ram pedaços de terra. A princípio era um gesto
como os que inventaram o cálculo infinitesimal
entre Leibniz e Pascal, e mais recentemente
aviões ou a câmera fotográfica, gesto criativo
que só pode ser como o pensamento, algo cole-
tivo, de dois ou mais. Mas logo se tornariam
também justificativas mais ou menos legitima-
das para chacinas.
Os cultivos partem do princípio de
imunidade e seleção baseado na proteção e
na exclusão. Os vegetais são selecionados,
agrupados e, dada a fragilidade oriunda da
homogeneidade instaurada, eles precisam ser
cercados – circunscritos e dobrados - e man-

6 Ibidem. p.196.

32
tidos artificialmente por sistemas de irriga-
ção, controle de pragas, de acesso de animais
e demais ameaça de corpos estranhos. Culti-
var é uma forma de subsistir, de manter e de
alterar a plantação, mas também de instituir a
cultura, fazer daquele que cultiva na especia-
lização social da propriedade um indivíduo
culto. Indivíduo cercado em si que celebra a
operação transcendente que vinha desta nova
relação com a terra, mas também com aquilo
que ele mirava no além dos mares, no além
das montanhas, marcando o encontro da linha
do horizonte de seu domínio com um azul do
céu infinito e com a noite despontando para
um movimento estelar, rumo ao desconhecido
apreendido em suas divindades e mitos.
Com os demais animais o processo de
homogeneização foi um tanto mais lento. Eles
atravessam os horizontes sem defini-los. Antes
do confinamento da mesma espécie em galpões
fazendo um ambiente artificial do mesmo, a
domesticação pressupõe alguma convivência
e, mesmo, alguma coexistência. Entre as cercas
dos sítios e pequenas fazendas os animais ain-
da transitam com liberdade parcial e suas áreas
de ocupações expandidas são atravessadas e

33
compartilhadas. Apesar dos instintos aderirem
lentamente às convenções humanas, as áreas
de ocupações se moviam e se interpenetravam
como linhas maleáveis de território invisíveis
aderidas aos corpos e adaptáveis às várias for-
mas de existir de cada qual com seu próximo,
com grupos, com diferentes infindáveis. São
nichos coabitados sem início e sem fim que não
coincidem com os corpos moventes. Qualquer
trecho, na escala que for, produziria grafica-
mente um mapa borrado. Nesses borrões quase
nunca é possível identificar as territorialidades
nem mesmo as suas circunscrições.
Sem previsões de domínios incitan-
do a produção de cercas, atravessam-nas, às
vezes, perigosamente. Nas áreas pacificadas
a intolerância e a violência irrompem quando
algum desavisado cruza o limite de ocupação
do outro no ponto da expansão. Nessa interse-
ção surge a ameaça seguida de vitimização e é
assim que um ganso corre atrás de um cachor-
ro. E a cozinheira torce o pescoço da galinha
que outrora chamava carinhosamente por
nome próprio. Uma convulsão gráfica se ins-
taura no movimento das asas para acelerar o
passo do ganso que ataca e no movimento das

34
asas da galinha para tentar escapar das mãos
que outrora a alimentava e do sobrevoo das
moscas nos restos jogados no quintal. Parece
ser essa uma das lições das fábulas.
Foi por alguma espécie de seleção
natural, mas também humana naquilo que ela
tem de mais natural, que animais e vegetais
precisaram e continuam precisando ser cerca-
dos. Essa necessidade talvez tenha partido do
reconhecimento da fragilidade do grupo nas
primeiras tentativas e observações sobre con-
juntos homogêneos de espécies. Em outros ter-
mos, um conjunto homogêneo resiste menos à
profusão, é assim conosco também... Mas tal
necessidade pode também ser originada da
auto-conservação de nosso próprio agrupa-
mento que conduziu a definição de domínios.
Dominar, domesticar, ambos derivam do latim
domus, casa. Dominador é o senhor (dom) da
casa aquele que estipula como se deve viver
(no direito romano: In capite alicujus dominari). E
domesticar é tornar caseiro o animal selvagem,
adequá-lo à casa e ao modelo de habitação que
ela pressupõe. A precaução e a proteção que
levam à domesticação ampliam a fragilidade
tornando necessário mais cercamentos, mais

35
defesas contra a mínima ameaça ao grupo. E o
grupo passa a ser homogêneo na domesticida-
de, assim na fazenda, assim na cidade. Então
parece que a propriedade emerge desse abraço
da domesticação, emaranhado entre a proteção
e o domínio. “O primeiro a cercar um terreno, a
anunciar ‘este me pertence’ e a defender qual-
quer espécie precária e vulnerável inventou a
propriedade sobre o ser vivo doméstico. Eu
poderia jurar que a propriedade começou ao
mesmo tempo que esta proteção”7. No entanto,
enquanto as cercas engrossam os sismógrafos
ainda deliram.

7 SERRES, Michel. Hominescências. Rio de Janei-


ro: Bertrand Brasil:2003. p.126.

36
MURALHAS

Quando em tempos remotos em uma


conversa durante a alimentação uma mulher
imaginária por Serres, tenra e engenhosa, pro-
põe cercar o cultivo com ajuda de seu par caça-
dor, se refina a aliança entre eles e com a terra
sobre a dimensão da propriedade. Este gesto
se multiplicava simultaneamente em várias
partes do mundo e veio se desdobrando ana-
cronicamente. A propriedade acontecia no des-
vio que bifurca com o amor. Se desvinculada a
uma necessidade, a princípio era a proximida-
de desinteressada, ou movimentada por inten-
sidades não capturáveis, em seguida o cuidado
com o outro, a super-proteção imunológica,
para logo depois estabelecer pertencimentos.
Esta fixação ao outro foi transladada na fixa-
ção ao solo. Antes dois agora um, e a partir

37
daqui uma multiplicidade de unidades, casas,
terrenos, bairros, cidades, países e mundos.
As cercas se adensaram em muralhas na medi-
da dos laços de pertencimento que tornaram
possíveis um casal, um grupo, uma sociedade,
uma cidade, um povo. Repercutem conjuntos
espaciais para conjuntos sociais e, no fora que
garante o dentro, uma interioridade que funda
o além, delimitando outros mundos no mes-
mo. Reforça a transcendência que legitima a
alma no oco limitador do sopro divino, ou seu
desdobramento que ainda sobrevive contem-
poraneamente, a subjetividade no oco entre o
jogo especular de cada qual.
Na ilustração do mito da criação do
homem, o Éden, essa planície acolhedora,
ambiente artificializado de fora – que se con-
funde com a divindade - para a plenitude
existencial humana, se converte em espaço
proibido, ao qual como resposta colateral, os
descendentes do primeiro homem e mulher
inventaram o homicídio, a morte do semelhan-
te humano, mais precisamente, o fratricídio,
a morte do irmão, do mais próximo. A essa

38
invenção segue outra: a construção da cidade.
Foi assim que Caim matou seu irmão Abel e
castigado acaba por fundar a cidade de Enoq,
nome de seu descendente, à leste do Éden.
Essa cidade no oriente foi erigida a partir das
chamas da Árvore do Conhecimento, aquela
do fruto proibido, que não cessavam de arder.
Em torno dela Caim erigiu a cidade pedra
por pedra e aos poucos as pessoas eram atraí-
das para dentro da muralha erguida. O mito
delimita o encontro do cercamento espacial
enquanto proteção, com o cercamento próprio
do conhecimento.
Neste encontro se indicia o princípio
religioso-jurídico de exclusão ditado pelo deus
da salvação e da lei: na salvação muitos são os
chamados, mas poucos os que entram no espa-
ço protegido e deus encarna o terminator (do
latim, “o que estabelece limites”). A partir des-
se princípio legislador é possível a organização
social complexa das cidades. Em suas delimita-
ções legais ficam enunciadas a instituição das
propriedades diversas, seja pertencimento ao
povo, posse sobre bens de naturezas variadas,

39
relações entre pessoas, e aléns mundos. A pro-
priedade é legitimada ainda pela instituição
cultural, com seus modos de saber e pelas téc-
nicas, com seus modos de fazer. Espacialmen-
te, o lado de fora se tornara ameaçador e hostil
e de dentro das muralhas – mais ou menos
visíveis e concretas - a vida acontece como se
aquele novo habitat fosse o único pretexto de
existir do homem. Inaugura-se a tentativa de
imunização, como uma blindagem feita pelo
homem e já não mais pela exterioridade divi-
na, apesar de muitas vezes se valer dela como
instância legitimadora. Neste sentido o fora é
aquilo do qual se deve proteger, mas também
aquilo que garante a necessidade de proteção.
Espacialmente, os muros são as membranas
dessa relação imunológica.
Como a imunização só acontece na
relação com o risco vindo de fora, na sequên-
cia mítica atravessante, a cidade de Enoq foi
destruída pelo Arcanjo Miguel, mensageiro de
deus, que após diversas tentativas frustradas
consegue o feito através do dilúvio. A sobre-
vivência ao dilúvio deriva do mito da cons-

40
trução da arca por Noé. Ritornelo mítico da
interioridade humana que reforça aquela que
já tinha sido alcançada na imagem da cidade.
Uma edificação lançada sobre as águas, sem
sistema de controle de navegação, abrigando
exemplares de animais outrora ferozes e que lá
dentro entraram em sintonia, em domesticida-
de com o homem que os salvam e se salva em
busca de novas ilhas de terras firmes. A natu-
reza sucumbe à propriedade entendida a partir
da proteção. “Traduzindo com certa liberda-
de, as arcas são flutuadores auto-poiéticos,
auto-impermeabilizantes, em que os aliados
enfrentam ambientes inabitáveis tirando parti-
do do seu privilégio de imunidade”8. É atra-
vés desse mito fundador que se pode pensar as
cidades enquanto metáfora do auto-abrigo de
um grupo. “A cidade é, de certa forma, a arca
que aterrissou: representa uma embarcação de
sobrevivência, que já não busca a sua sorte na
corrida livre em águas catastróficas, mas tei-
mosamente amarrada à superfície da Terra. Se

8 Ver SLODERDIJK, Peter. Esferas II. Globos. Ma-


drid: SIRUELA, 2004. S/n.   

41
poderia definir as cidades como conformações
de compromisso entre o surrealismo da auto
-referência que flutua livremente e o pragma-
tismo da fixação ao solo9 .
A interioridade dada de fora no Éden
e de suas repercussões arcaicas produzindo
uma interioridade artificial desde dentro, dada
na cidade cercada por uma muralha, reverbera
na invenção da alma, nome antigo e derivativo
para a subjetividade, como condição existen-
cial do habitante da cidade. Ela torna o corpo
próprio, como muralha de uma cidade interior,
de uma multiplicidade especular que compõe a
subjetividade individual e coletiva. Dentro das
muralhas é possível refletir e possuir. Espaço
interior de acumulação onde, como escreveu
Dostoievsky, “nem um mendigo carrega ape-
nas o essencial”.
O homem a partir de então poderia ser
definido com “animal construtor de cidades”10
. Derivada de um mundo interior artificializa-
do – talvez tomado na ilusão do único possível
- a cidade é um nicho frágil. Receptáculo para

9 Ibidem.    
10 Id.ibid.   

42
a vida humana aleijada da co-habitação com
outras espécies – que não deixam de irromper
nos subterrâneos e nos ares - ela simula uma
realidade própria e autossuficiente ao pon-
to de se tornar um atrator de salvação, uma
centralidade para agremiações humanas. A
cidade é nesse sentido uma vontade de domí-
nio que invade os modos de ver que às vezes
ainda assombram, de se inscrever na possibi-
lidade do exercício do pensamento, de habi-
tar comodamente ainda que na situação mais
precária. Na monumentalidade exposta desde
as Cidades-Estado da Mesopotâmia às metró-
poles contemporâneas, seus edifícios, torres e
arranha-céus, muralhas de limites sobrepostos,
são a imagem do lastro de uma interioridade
transcendente.
Os muros que se multiplicam nas cida-
des são como vestígios da salvação atualizada
em cada pedra que os compõe como pedras
sacrificiais de um rebanho humano. A cidade
sob esse aspecto retomando sua invenção míti-
ca é comparável a um matadouro.
No transbordar da angústia entre a
comodidade e o sacrifício, um homem olha com

43
estranhamento pela janela de seu apartamento
de vista privilegiada para a cidade em 180°.
Estranha o modelo do qual deriva, das Cida-
des-Estado mesopotâmicas às atuais. Naufraga
mesmo sobre a heterotopia do navio sem timo-
neiro enquanto condição da cidade contem-
porânea. A inundação não é mais a sua terra
firme. Reverte o postulado de Sloterdijk ao se
referir a Nietzsche: “Deixamos a terra e subi-
mos a bordo! Destruímos a ponte atrás de nós
– melhor ainda, destruímos a terra que ficou
atrás de nós!”11 Naufragando, lançado para
fora daquele domínio – e, ao mesmo tempo,
para fora de si - ele desacredita da naturaliza-
ção da condição apriorística, imune e autossu-
ficiente das cidades. Sua condição adquire a
velocidade regressiva do antepassado nômade
que se depara à primeira vista com a cidade
de Ur, mas no qual coincide a futurologia das
cidades destruídas e esvaziadas por guerras –
rememora Aleppo - por catástrofes humanas e
ou naturais – reencontra, aqui, outros dilúvios
e desastres ambientais. Imagina a cidade como

11 NIETZSCHE, F. 124- No horizonte do infinito.


In: A gaia ciência. São Paulo: Escala, 2008. p.149.

44
uma monstruosidade e aquilo que ela revela
são as habitações como máquinas de salvação
e esquecimento do medo que o mundo provo-
ca. À sua volta vê monumentos monstruosos
erigido para atualizar o não-estar-fora e conse-
guintemente o não-ser-fora. O medo sobe pela
sua espinha chegando à cabeça em câimbras,
mergulhado num ambiente fluido ele avista a
arca de Noé que rapidamente se converte no
seu apartamento com acesso à internet.
Estranhando seu apartamento apaga
as luzes, anda de costas e depois de quatro,
como que acuado por aquele espaço cercado
por paredes-muralhas. Com agorafobia da
paisagem-cidade e com claustrofobia da arca
-apartamento, acuado no limite do impulso de
sobrevivência, se arrasta até o seu quarto. Lá,
começa a destruí-lo, suja as paredes com suas
excrescências; rasga obras de arte e quebra
objetos de decoração; martela sobre as paredes,
teto e chão, esburacando-os como uma peneira;
quebra os móveis, sua escrivaninha partida for-
ma um v, rasga o colchão e tapa a janela; enfia
alguns pedaços de móveis e espuma nos bura-
cos abertos. Constrói um espaço hostil. Senta-

45
do no chão esburacado e olhando pelas gretas
da parede furada, prepara um novo habitat,
começa a escrever nas lacunas desse espaço:
“Uma teoria sobre a cidade só pode começar
ao se desacostumar com o conforto que só a
cidade tornou possível. Pensar a cidade sig-
nifica, antes de tudo, refletir sobre a vida con-
fortável nela, imaginando que se poderia estar
em casa em outra parte que nela, que poderia
ser colocado entre parênteses, em geral, todo o
esforço para criar raízes em algum lugar. Viver
nela como se não vivesse nela. Viver como se
não tivesse que retornar nem a casa nem a cida-
de.”12
Vendo a cidade pelas gretas, saiu ao
encontro das frestas de suas muralhas. Ele
recorria aquele modo antigo da manifestação
profética do povo da palavra, colocando-a em
desconstrução permanente. Caminhava para a
terra de ninguém e já não se sentia só. Entrou
pelo tapume esgarçado em uma obra abando-
nada de uma torre empresarial. Neste dentro
arruinado, escrevia no deserto de um monte
de areia prevendo o sopro de uma voz atávica:

12  SLODERDIJK, Peter. Ibidem. S/n.

46
“Quando expirar a grande maioria, a terra se
converterá em propriedade de todos. Os mais
sábios e capazes serão escolhidos para manter
a paz e a harmonia. Em seguida, os seres huma-
nos já não amarão somente a seus próximos, já
não se preocuparão apenas com seus filhos [...].
Assim, não se necessitará mais de nenhuma
obstrução e nenhum cercamento, pois não apa-
recem salteadores ou ladrões. Ficam, portanto,
sem fechar as portas exteriores: isto significa a
grande comunidade.”13
Dalí ele saiu em busca de seu povo em
uma terra distante que começava ao dobrar a
esquina.

13  MOLINS, A. Confucius. Madrid: Alianza, 1992.


p. 102 apud  SLODERDIJK, Peter. Ibidem. S/n.

47
TRINCHEIRAS

“Chegada a noite as estrelas parecem


cada vez mais desinteressantes... A habita-
ção global fora iniciada na grande guerra...
Não se parou mais de tagarelar disso até a
sua contração nos dias atuais... Alguma coisa
escapava nesta nova reterritorialização genera-
lizada… difícil de expressar... Parece algo que
vem de fora mas que faz uma passagem para
novas formas de existir por aqui... Uma nova
objetividade”. Era um pensamento semi-deli-
rante carregado de intuição enquanto aquele
homem atravessava a imensidão do deserto de
sal. Lembrava o que restou de Paolo no final do
filme Teorema de Pasolini, algo se desnudara
nele e se desprendia num grito silencioso. No
Salar de Uyuni na Bolívia o céu emenda com
a terra, não há horizonte definido nem formas
seguras de orientação. O carro havia atolado

49
há algumas horas numa região em que o GPS
não funcionava mais. Caminhava na direção
incerta. Talvez a falta de sinais e de certezas
fez com que ele subitamente fosse atravessado
por aqueles pensamentos e olhasse as linhas da
mão em busca de alguma direção. Parou para
descansar. Ao cair da noite aqueles sulcos iam
se afundando enquanto numa espécie de sonho
se agarrava num retorno às trincheiras. Tinha a
noite inteira pela frente e algumas horas para
conseguir chegar com vida em algum lugar.
Estranhamente era acometido por imagens
passadas, imagens da terra, enquanto se esfor-
çava para compreendê-las naquilo que elas lhe
predestinavam.
Escavando trincheiras de dois metros
e meio de largura por dois metros de profun-
didade o homem já havia encontrado a falta
de sentido para morrer durante a primeira
grande guerra. Na Frente Ocidental, elas pro-
duziam uma linha de ferida no território que
se estendia por cerca de mil quilômetros do
litoral do mar do Norte até a fronteira com a
Suíça. Situação espacial de um caminho para
a morte, sobretudo naquilo que o espaço tem
de mais físico, dinâmico e visceral, que atua-

50
lizava ao homem qualquer a fragilidade mes-
ma de se estar vivo. Eram longas valas de um
pouco mais que os sete palmos de profundida-
de, cerca de dois metros, instituídos no inicio
do séc. XIX europeu no intuito de não alastrar
enfermidades de massa e devido à constante
violação de túmulos para venda de cadáveres
às universidades sedentas de organismos para
dissecar. Nestas dobras da superfície os bura-
cos se mostram sem-saída na conjunção entre
o saber enquanto técnica de morte e o poder
sobre a vida do outro – talvez aqui se poderia
adiantar uma inflexão para a academia.
Entre as trincheiras dos inimigos, estas
valas comuns, o espaço que mediava o conflito
era chamado de terra de ninguém (do inglês,
no man's land, em tradução literal, “terra de
homem nenhum”). Tal espaço separava as
valas dos inimigos numa distância que varia-
va entre poucos metros à cerca de no máximo
duzentos metros. Na concepção mais encarna-
da do aforismo poético de René Char de que
“suprimir o distanciamento, mata”. Este entre-
dois era um campo aberto por árvores quei-
madas de um incêndio proposital na floresta
que deixava a terra cinza; campo minado no

51
subterrâneo que amplificava os buracos, mais
covas; campo recoberto por arames farpados
desenhando linhas de morte no ar, que na dinâ-
mica da guerra vai se preenchendo de trapos e
restos humanos, de lama, de sacos de areia e
de pedras entulhadas na disposição dada pelas
explosões. Uma terra desfigurada em suas
várias camadas, devastada e desolada que não
pertencia a nenhum homem, mas também a
nenhuma forma de vida animada que não se
alimentasse de uma natureza em putrefação.
Subsiste nas imagens fotográficas destes locais,
uma espécie de indução à agorafobia, um medo
de um espaço aberto arruinado, como naquelas
gravuras e pinturas de naturezas de Hercules
Seghers, artista do séc. XVII, vistas por Serguei
Eisenstein, cineasta do séc. XX, enquanto uma
“catástrofe podre e petrificada”.
Na catástrofe anunciada a podridão dá
o sentido da decomposição e a petrificação dá
o sentido daquilo que a acompanha, que fará
dessas terras de ninguém algo inóspito, ina-
propriado. Aquilo que não se atravessa sem o
risco eminente da morte, mesmo com o fim da
guerra, dada a infinidade de minas subterrâ-
neas que ficaram instaladas e esquecidas. Dessa

52
espécie de ruína no imediato, se produz vestí-
gios numa travessia perigosa. Assim a Terra
de Ninguém diz do procedimento violento de
decomposição, eminentemente aquele que as
vanguardas artísticas não cessaram de recorrer
ou rememorar, a saber, aquele que recai sobre a
figura humana transbordando gosmentamen-
te nas suas instituições. Diz dos fragmentos
ou vestígios que recusam qualquer totalidade,
qualquer encerramento ao passo em que cele-
bram a excreção e o resto inapropriável. E diz
da experiência lacerante enquanto experiên-
cia limite, correspondendo a sua etimologia
enquanto “travessia perigosa” destoante e,
mesmo, contestatória daquela acepção atrela-
da ao determinismo científico e suas margens
de previsibilidade controladas.
A terra de ninguém não deixa de ser
um espaço de espessura mórbida, de desmoro-
namento da cultura, diante do qual o homem
incorpora a carnificina do semelhante, que faz
de cada qual um dessemelhante. Que vomi-
ta ao sujeito reificante a sensibilidade que o
faz participar da coisificação provocando um
incômodo reflexivo, não sem o horror que tal
visão mental acompanha. Visão que assemelha

53
o homem ao monstro bestial, ao estrangeiro
desterrado, a um ninguém, assim como na sua
paridade com qualquer coisa, seja uma larva,
seja um mineral estilhaçado. Desmancha-se
também, no incomodo reflexivo provocado, a
hierarquia apriorística da definição de espaço
enquanto um estado puro e definido, instau-
rando o espaço enquanto espaço de catástro-
fe. Este espaço de desmoronamento escapa da
operação de apropriação que define, que limita
e que institui a propriedade, a axiomática da
realidade capitalista.
É da incapacidade limite de reconheci-
mento e de apropriação que tal espaço catas-
trófico não faz parte do jogo de apropriação
territorial baseado na terra nullius. Terra nul-
lius é a expressão latina decorrente do direito
romano que significa "terra que pertence a nin-
guém" e dada a sua condição de sem proprie-
tário, é passível de se aplicar a ela o princípio
geral do res nullius. Res nullius é uma expressão
latina que significa "coisa sem dono" ou "coisa
de ninguém". Nesses termos, a terra enquan-
to coisa que se encontra abandonada ou fora
de comércio pode ser apropriada seja para fins
privados ou públicos. Este princípio de apro-

54
priação do direito romano foi aplicado em suas
variantes no âmbito das conquistas colonialis-
tas, seja no Tratado de Tordesilhas, nas Sesma-
rias, na Austrália ou na partilha da África.
Febril e desidratado pelo sol e pelo sal
que lhe cortava seguindo o vento, confundindo
os desertos, aquele homem se lembrava de não
entender o que dizia um aborígene. Gesticulan-
do em Arrernte ele lhe respondia com tiros. Nas
regiões desérticas no Golfo de Carpentária ele
aplicava o princípio de terra nullius. Tal prin-
cípio vinha acompanhado de uma noção de
sujeito que variava conforme a época, mas na
sua invariante, se definia a partir dos mode-
los determinados pelos homens de poder e de
dominação sobre os seus semelhantes. Quan-
do, por exemplo, os ingleses aportaram em
1788 no continente da atual Austrália – impul-
sionados fundamentalmente por terem sido
expulsos de sua colônia principal, os EUA – a
terra era ocupada por mais de duas mil etnias.
Essas etnias eram compostas por nômades que
viviam por lá a cerca de 150.000 anos. Dada a
condição de não sedentarismo e considerados
como remanescentes do neolítico e, portanto,
não homens (no man’s) pelos ingleses, tiveram

55
seus direitos de uso sobre a terra desconsidera-
dos e o território foi considerado terra nullius.
A ocupação do território realizada inicialmen-
te por condenados e criminosos era só uma
redundância da operação que instaura diver-
sos conflitos de poder e apropriação.
O viajante do deserto atualizava, nesse
tempo, a sua própria trincheira enquanto escre-
via algo ininteligível com os dedos sobre o sal.

56
ESCRITURAS BORRADAS

No início do documentário Pixo14


jovens com dificuldade de ler placas de anún-
cios publicitários conseguem ler com fluência as
pichações nos muros e prédios da cidade. Nar-
ram sequências de nomes em grafias alteradas.
As pichações pela cidade requerem estranhas
formas de lê-las. Estranhas formas, inicialmen-
te, porque evocam uma visualidade excessiva
para aqueles que não são alfabetizados nela e
que se esforçam para dar um significado - que,
muitas vezes, se confunde com um sentido ou
falta dele - para aquelas escritas em metamor-
fose. Mas também excessiva para aqueles que
a praticam demandando uma frequente refor-
mulação dos signos, de uma plasticidade que
adere ao gesto criativo insubordinado. Parece

14  Ver: Pixo. Direção: João Wainer e Roberto


Oliveira. São Paulo: sindicatoparalelo filmes, 2009.

57
que escrevem para alterar os nomes e largá-los
na alteração.
No plano da linguagem é um afronta-
mento ao ethos que institui a escrita como ins-
trumento de regulação social, na medida em
que uma minoria excluída inventa uma forma
de escrita que exclui a maioria das pessoas alfa-
betizadas e na medida em que subverte uma
linguagem que é utilizada por outra minoria
como forma de dominação. Trata-se então de
uma conversa conflitiva nada amigável ou
conciliatória, diria mesmo, ininteligível, entre
minorias. E o plano espacial dessa conversa
bárbara é a superfície das cidades. Uma topolo-
gia rugosa dos muros, fachadas de edificações
em que são aderidas linhas negras no silêncio
da noite em uma cidade desértica e adormeci-
da. Em que o som desta conversa oscila entre o
barulho de escape do ar comprimido das latas
de spray e o da sirene das polícias. O primeiro
evoca o silêncio para ninguém acordar, assim
como o intermezzo para uma escuta focada, o
shshshsh dos culturati antes da apresentação
artística, o segundo, o alarde para uma fuga
precipitada e que acusa o delito no escândalo.
Este deserto no qual se trava um con-

58
flito não declarado faz da cidade um papel em
branco. Mas não se trata de uma tabula rasa ou
de um zero inaugural. Um aspecto regressivo
emerge nessa operação de branqueamento a la
Michael Jackson. Aspecto que faz da pichação
uma escrita bárbara, no sentido daquele que
não fala a língua dominante e que libera uma
violência de apagamento em triplo sentido, na
renomeação a-significante e expressiva das gra-
fias, sobre aqueles que picharam, cujo limite se
enuncia na re-pintura das superfícies urbanas
e na criminalização do gesto, mas também no
apagamento da hegemonia do branco, e aqui
trata-se da aderência à imagem do homem bran-
co que é o senhor da linguagem e de um povo
cujo o território é definido pela linguagem.
O “povo da palavra” tem seu retros-
pecto na fuga mítica dos judeus pelo deserto.
Fugindo da escravidão, eles erram deliberada-
mente nesse território aberto e sem dono em
busca da Terra Prometida pelo deus aos seus
descendentes diretos. Terra Prometida que não
se confunde nem com a Jerusalém, instituída
como território judeu após a segunda guerra,
nem com a ilha de Manhattan enquanto ocu-
pação dos judeus holandeses expulsos de Per-

59
nambuco em meados do século XVII. A Terra
Prometida é o leitmotiv, aquilo que movimenta
e se repete em tais ocupações. Ela é o princípio
transcendente enquanto território impossível
de se alcançar, pois remete ao plano divino,
àquele que a prometeu, e, nesse sentido, é
um território idealizado, espécie de Éden cuja
expulsão é a impossibilidade de retorno. É do
jogo entre a impossibilidade e a promessa que
eles fazem de toda a terra do mundo um deser-
to sem dono, e, como tal, no âmbito jurídico,
Terra de Ninguém e passível de ocupação.
O título de propriedade sobre o mundo fica
garantido pela escritura divina.
A ocupação se legitima pela palavra-lei
que se propaga no tempo como uma arca: “Na
medida em que se consiga contar a história
do mundo como um relato sobre uma viagem
singular, caótica e, no entanto, continuada da
arca, este pode ser apresentado como história
da salvação e a história da destruição de um
povo único, tanto exposto ao perigo como pro-
tegido”15. É este o território narrativo primor-
dial que não cessa de definir seus domínios,

15 Ver SLODERDIJK, Peter. Esferas II. Globos. Ma-


drid: SIRUELA, 2004. S/n.

60
que não cessa de alargá-los por arrombos. A
palavra enquanto uma promessa de domínio
definida pela exterioridade máxima – uma
imagem de deus que não deixa de ser a de uma
autoridade máxima – é também a comunicação
do direito da conquista que atravessa as fron-
teiras e tudo aquilo que é do mundo. Cisão da
imanência que territorializa o domínio ideoló-
gico, as formas de pensar e, consequentemente,
de se comportar ditado por uma minoria domi-
nante que encarna e espiritualiza o “povo da
palavra”. E as fronteiras não passam de linhas
negras desse domínio.
Linhas negras que engendram uma vio-
lência contra aquilo que está fora, que erigem
cercas contra os migrantes, cercas físicas legiti-
madas por decretos, por leis, por propagandas,
por propagação de um monte de papel escrito
delimitando e sedimentando o plano do domí-
nio, da apropriação, da propriedade e que se
dobra sobre a realidade esquadrinhando até o
seu deserto mais escondido e desconhecido.
O filósofo japonês Kuniichi16 lê no livro
póstumo de Jean Genet Um cativo apaixonado

16 Ver UNO, Kuniichi. A gênese de um corpo


desconhecido. São Paulo: n-1, 2017.

61
esta dobra da palavra enquanto domínio sobre
a realidade, mas enfatizando nessa dobra um
contra-poder que libera a palavra da realidade
cerceada na medida em que dá visibilidade ao
plano de imanência do poder que a constitui e
que ela serve, adquirindo tanto a sua existência
apriorística quanto a sua utilidade no decorrer
do tempo. Talvez aí, aderido nessa vidência, se
anteveja a fratura da linguagem.
Genet é entre outras atribuições um
escritor marginal, ou um marginal que escreve,
enquanto sem identidade familiar, pederasta,
ladrão, vagabundo, estrangeiro, improdutivo,
um “ninguém”. Contrariando o destino dos
letrados ele incorpora a antípoda do mesmo,
do homem branco, heterossexual, razoável em
idade produtiva, este qualquer crucificado,
endividado, dependente e crente desta ima-
gem, um “alguém”. Genet escreve Um cativo
apaixonado a pedido de Yasser Arafat, então
líder da OLP (Organização para Libertação da
Palestina). No início da década de 70, do sécu-
lo XX, ele vai para os campos de refugiados
palestinos na Jordânia e no Líbano, onde per-
manece por cerca de quatro anos, no intento
de escrever um livro sobre a causa Palestina.

62
Entrega o livro em 1985 para ser publicado
depois de vinte anos afastado da literatura e
poucos meses antes de morrer e nem mesmo
chega a revisar a obra. Livro de suas lembran-
ças com os palestinos e também com os Pante-
ras Negras nos EUA. Um livro de lembranças
que, como o apresenta o próprio Genet, “é tão
pouco verdadeiro quanto um romance”.
Antes da potência do falso, um livro
encomendado, um livro feito pelo chama-
do exterior. Estranho convite vindo de Ara-
fat se pensado sobre o prisma da tradição
muçulmana, com todos os seus preceitos. No
entanto, existe uma afinidade entre Genet e a
causa Palestina que coincide ambos no pon-
to da exclusão. A exclusão aqui, figura como
aquilo que resta, que está excretado e de difí-
cil apropriação. Nesse ponto frágil a Palestina
aparece como a pátria sem território, a própria
pátria deste anti-cidadão, e seu povo em guer-
ra, a multidão como anti-povo ao qual perten-
ce Genet, esse estrangeiro expatriado. Pátria
excretada, sem terra, sem pais, sem promessa
e cujo pertencimento se dá sobre a impossibi-
lidade de realização de um povo. Assim, ele
compreende a revolução palestina não como

63
uma luta por território, mas como um lança-
mento individual no abismo. Escreve:
“Fazer o exercício de entrega de si mesmo a
uma causa [...] constitui quase uma vertigem
que impede que o combatente se entregue – de
acordo com a expressão entrega de si - mas que
ele se jogue num precipício, não para ajudar,
mas para seguir aqueles que morrem por terem
se jogado e sobretudo quando ele vislumbra,
não através da reflexão, mas do pavor experi-
mentado, o aniquilamento futuro.17
A dimensão sacrificial do pulo no abis-
mo é a entrega ao resto, é a participação no
que resta, cuja entrega de si provoca o resíduo
humano.
Talvez, o branco do papel possa ser
uma violência maior do que aquela que o
preenche com a escrita. A folha branca pode
figurar como um pensamento hesitante e inter-
rompido. Pensamento considerado impróprio
ou mesmo errado em que se desconta num
retrospecto mágico na folha que é amassada e
jogada no lixo. Faz do papel em branco um
corpo estranho que destoa do espaço docu-

17 GENET, Jean. Um cativo apaixonado. São Pau-


lo: ARX, 2003.p.127.

64
mental de poder. As dobras da folha no lixo
aparecem como acidentes que deixam marcas,
vestígios que lançam aos que a desdobram, as
desamassam, a uma intensidade misteriosa de
um por vir impraticável. Este aniquilamento de
qualquer totalidade num gesto inconcluso por
ausência e aberto enquanto indicio da imagina-
ção. Espécie de variação infinita deste suporte
do insuportável que é a folha branca. É aí que o
poder foi eclipsado para ser visto em seu des-
nudamento. É aí que as palavras começam a
aderir às escrituras borradas, às suas variantes
pixadas.
A escrita por vir começa fraturada. Como
detecta Kuniichi nas palavras de Genet: “o sol
se torna mais visível com o eclipse”, “momen-
to em que se revela o tremor, o vai e vem entre
as idéias de escapar-me e de fazer-me desapa-
recer sob a claridade de um outro”. A escrita
eclipsa para fazer aparecer, feita sensível, visí-
vel, a sua potência. Eis o outro: referência ao
eclipse para a escrita se fender, se abrir aos ele-
mentos heterogêneos que irrompem de suas
potências, a tudo aquilo que é considerado
corpo estrangeiro. Ele vai provocando fissuras
em todo território no movimento de arfagem

65
pela turbulência do oceano da dessemelhança.
O eclipse no deserto desconhecido: o branco
aparece porque apagado, ele é rasurado e bor-
rado.
Neste deserto branco toca-se a vida e
fratura-se a linguagem, e essa operação vio-
lenta ressoa o oco de qualquer interioridade.
Escrever como uma prática de viver o fora, um
mundo sem sujeitos e objetos, de desterritoria-
lizar a linguagem, e a palavra se torna palavra
de ninguém, no sentido íntimo da excreção -
que é qualquer um o outro qualquer - e inapro-
priada pelos senhores do domínio. Desarticular
o sentido, a troca, o útil, a identidade. Saltar no
abismo sem fundo. Este jogo de bifurcação e de
fusão bestial da escrita. Jogo de apagamento de
si e de desaparição no outro, de pixação.

66
DECAPITANDO-SE

Um jovem agonizava na frente do


computador durante horas, entorpecido não
reconhecia qualquer possibilidade de ajuda
externa que não fosse um chamado cibernético.
Respondendo ao seu chamado, na tentativa de
fixar algo que valesse para uma ajuda exterior,
alguns jogadores replicavam aquela pergun-
ta dos primórdios do protocolo da telefonia
celular substitutivas do “alô”: “de onde você
está falando?” A sua memória deslocada não
permitia que ele se manifestasse de fora do hd
e os seus apelos virtuais não surtiam o efeito
necessário. Ele não conseguia mais se localizar.
Talvez estivesse em algum cyber café, numa lan
house ou mesmo em casa. A pupila dilatada
capturava um exterior luminoso demais, habi-
tava um espaço em flashes para qualquer lado

67
que olhasse. Fazia mais de 50 horas jogando
ininterruptamente no computador e quando
outros jogadores insistiam e perguntavam à
distância o que estava acontecendo, no final
das contas todos se confundiam com a reali-
dade do jogo. Pairava uma dúvida sobre eles:
seria a agonia da personagem ou do jogador?
Ele já não conseguia digitar e o acon-
tecido seguia registrado na gravação da web-
cam. Simultaneamente ao martírio, sua família
recebia ligações com mensagens eletrônicas de
serviço funerário sem entender direito aquela
insistência. O cruzamento de dados talvez per-
mitisse alguma agilidade de socorro, mas para
as autoridades, que chegaram bem depois dos
agentes funerários, esse caso seria “mais um
para a estatística”. Comentavam que, outro dia
mesmo, um coreano de 28 anos morreu pro-
vavelmente de parada cardíaca após passar
mais de 50 horas seguidas jogando um jogo
de estratégia em um cyber café. E outro mor-
reu devido à desidratação enquanto jogava o
Everquest, espécie de RPG virtual que consegue
nesse feito de sobreposição gerar ao menos três
camadas simultâneas de realidades. Fora as
inúmeras convulsões epilépticas desencadea-

68
das pelo excesso de tempo em jogos eletrônicos
simuladores de realidades. Numa delas outro
jovem de 30 anos morreu ao bater a cabeça na
tela do computador durante uma crise violen-
ta. Esse conjunto parece requerer uma comu-
nidade, lutando por ela como antigamente se
guerreava para definir domínios. Mas antes
dos exércitos se anunciam as vestais sacrificiais
cuidadoras do fogo conforme Plutarco ou, tal-
vez, os gladiadores sem opção de outra cultura
que anunciam diante da morte: “agora é minha
vez, logo será a sua”.
Antes de morrer - alguns internautas
que assistiram a cena em tempo real insistem
que foi logo depois - o jovem com olhos revi-
rados, boca engasgada por algo que veio de
dentro, a cabeça desfalecida e pendurada no
pescoço, ergueu o monitor acima dos ombros,
virava-o para os lados como se ele fosse capaz
de dar o último grito em seu lugar. Mas o que se
via eram os flashes saindo do monitor devido
ao mal contato dos fios puxados. Na sequência,
algumas fagulhas, resultantes do curto-circuito
antes do apagamento do monitor e o desfaleci-
mento total. Estranha condição sacrificial. Se o
sangue fazia repercutir o enlace entre a vida e

69
a morte nos sacrifícios humanos e animais de
outrora, o que jorra agora é uma energia elé-
trica, dessas que alimentam equipamentos e
que movimentam os impulsos nervosos. Seria
a encenação de um sacrifício cognitivo?
Um jorro menos dramático, com pouco
sangue e antevendo a passagem para a ener-
gia elétrica, já estaria enunciado na pintura de
Léon Bonnat sobre o Martírio de São Dênis de
1885. Mas antes dela uma pintura preparató-
ria, o Barbeiro de Suez de 1876. Nela o artista
pinta o barbeiro em pé e de fronte se inclinan-
do sobre o barbeado que se encontra sentado
no chão, de pernas cruzadas, e de mãos aperta-
das e levemente tensas sobre o colo. Seu pesco-
ço está reclinado e flácido como que oferecido
à lâmina da navalha de barbear que repousa
sobre o seu rosto numa conjunção erótico-
sacrificial. Cena que ganha velocidade indo de
encontro à clássica imagem cinematográfica
de “Um cão andaluz”, na qual a lâmina cega,
partindo o olho ao meio para fazer ver outras
realidades. A situação do barbeado seria um
indício de decapitação voluntária para fazer
pensar outras realidades? A posição do bar-
beiro inclinado para se aproximar do rosto do

70
barbeado, verificando seu serviço, associada a
uma luz que parece vir de cima e da parede ao
fundo, faz a cabeça do mesmo sumir nas som-
bras de seu corpo negro reclinado. Os ombros
iluminados de cima desenham uma silhueta de
contorno que se junta a uma luz dourada que
emana da parede no local onde estaria a cabe-
ça do barbeiro na posição ereta. No lugar da
cabeça um brilho como uma mancha dourada,
como uma auréola sem envoltório, como uma
faísca e, talvez, pensando mais adiante, como
uma chama autônoma do acéfalo.
Essa chama autônoma esboçada ali,
re-aparece representada de forma clara na
auréola no lugar da cabeça na pintura do Martí-
rio de São Dênis. Em seu mito, o Bispo de Paris
no séc. III é supliciado cruelmente e após ser
decapitado, Dênis pega a sua cabeça e caminha
por alguns passos antes de morrer. Na pintura
ele está agachado erguendo a cabeça que olha
para uma luz irradiante localizada logo após
o seu pescoço. Em algumas iluminuras medie-
vais como na do Mestre de Boucicaut, ou do
Mestre de Sir John Fastolf, ambas do séc. XV, o
espaço antes ocupado pela cabeça de São Dênis
é preenchido pela luz da auréola. A iluminação

71
do santo representada pela auréola é o acesso a
um conhecimento que vem de fora na suspen-
são entre a vida e morte. Conhecimento que é
acesso mesmo àquilo que está fora, seja espi-
ritualmente ou intelectualmente para se entre-
gar a esta experiência de criação cósmica. Nada
mais literal repercutindo as imagens acima do
que dizer que para esse acesso iluminado “é
preciso perder a cabeça”.
Dênis em francês também pode ser
traduzido por Dionísio. Para o outro Dionísio
mítico, mais velhaco, perder a cabeça é a con-
dição cotidiana da embriaguez, dando acesso
à criação caótica. Na embriaguez o sujeito fora
de si se lança em comunhão com a exteriori-
dade. Prescindindo da relação sujeito-objeto,
prescinde-se também de qualquer proteção
antecedente provocadora de domínios. Com a
relação (cum) absorvida na indefinição e com a
imunidade (immunitas) fragilizada, seria possí-
vel alguma comunidade no êxtase? Seguindo
as duas dimensões de plenitude, entre o caos
e o cosmos, um contorno apolar delineia outra
cabeça. Cabeça expandida e sem lugar, de
conhecimento emergencial que vai de encon-
tro a cabeças convencionais. Esse é o sentido

72
primeiro da conversão dos seus algozes pre-
tendida para o iluminado São Dênis: enquanto
erguia e caminhava com sua cabeça segurada
pelos braços, aqueles raios que saíam de seu
pescoço tinham sobre seus carrascos alguma
penetração. Na pintura de Bonnat os carrascos
estão horrorizados com o que viam, enquan-
to isso, surgia do céu o anjo trazendo em suas
mãos os louros da vitória e a pena da justiça.
Para comunicar o coroamento de qual cabeça
seriam esses louros? Talvez, mais do que para
glorificar o santo, assim como a pena da lei,
eles se destinam para os convertidos. Mas con-
vertidos naquele instante, no tempo curto dos
passos do santo feito um vestígio ambulante
fora de qualquer domínio e sem qualquer rela-
ção reificante, aqui só se poderia dizer de uma
conversão: à comunidade acéfala.
Por simples recaída na linearidade, antes
da comunidade, o devir-acéfalo. No manifesto
A conjuração sagrada, do primeiro número da
revista “Acephale” de 1936, Bataille anuncia o
acéfalo como aquele homem que “escapou de
sua cabeça como o condenado da prisão”. Do
lado de fora ele se liberta da identidade e do
servilismo de ser “cabeça e razão do universo”,

73
permitindo-o, por sua vez, “se assemelhar a
tudo aquilo que não é ele no universo”18. Assim
o acéfalo na dimensão cósmica, corresponderia
a um estado de alteração que agremia o fora de
si e os improváveis das alteridades, ou seja, lan-
ça quem quer que seja ao movimento de vir a
ser outros sem qualquer pertencimento. A con-
versão enquanto mudança brusca e fixa de um
para o outro fica matizada nesse meio volátil. E
sem a sua identidade, mesmo que seja a identi-
dade do outro, a comunidade dos acéfalos fica
comprometida. Para manter alguma comuni-
dade o Dênis logo vira santo e o jovem morto
no excesso virtual vira estatística. Mas já não se
trata da comunidade acéfala, de imediato, trata-
se da comunidade cristã, logo mais, numa re-a-
tualização estranha das ressurreições, trata-se
da comunidade dos mortos virtuais...
Uma comunidade acéfala teria no seu
comum o não pertencimento, a dessemelhança,
o heterogêneo no trânsito livre entre os pólos
do cosmos e do caos. A não ser que se quei-
ra algum choque reativo, talvez seja melhor
achar outro nome para esse conjunto acéfalo.

18 Ver BATAILLE, Georges. A conjuração sagrada.


Acephale N°1 . Desterro: Cultura e Barbárie, 2013.

74
Insistindo na correspondência, no artigo sobre
a questão do Estado19 , Bataille dobra a noção
de acéfalo sobre o panorama social e político
europeu no entre guerras mundiais no séc.
XX. Preconiza a realização de uma comunida-
de acéfala na revolução entendida a partir de
uma consciência trágica - essa que faz perder a
cabeça - produzindo e aglutinando as massas
informes no desespero. Em sua análise, Batail-
le aponta duas direções antagônicas para essa
constituição: a do totalitarismo que produz o
heterogêneo, mas de modo imperativo, como
o fascista, cuja cabeça é o ditador levando aos
êxtases coletivos - como a torcida esportiva
- a massa informe; ou de uma comunidade
universalista, aberta e sacrificial, no sentido
da produção do heterogêneo não imperativo.
Nos termos políticos, contra o totalitarismo do
heterogêneo imperativo, ele evoca uma comu-
nidade sem identidade, sem Deus, sem Estado,
e mesmo sem política nos moldes tradicionais.
Uma comunidade sacrificial, inacabada, infi-
nita, entregue a sua própria ruína, universal,
radicalmente impolítica. E na universalidade

19 Ver Le problème de l’Etat in BATAILLE, Georges.


Oeuvres completes.T.1. Paris : Gallimard, 1970.

75
produzida que a comunidade acéfala não cessa
de comunicar. Universalidade que não conver-
ge nem ao consenso e nem a instituição, onde
os elementos heterogêneos seriam liberados
das alianças com as forças imperativas que
definem e garantem o Estado enquanto insti-
tuição de unidade nacional, e de qualquer esta-
do definido na escala individual que esboçasse
o eu.
O universalismo dessa comunidade
acéfala parece convergir em alguns pontos
para a noção de globalização, termo populari-
zado em fins da década de 80 do séc. XX para
denominar o fenômeno de integração social,
cultural e, fundamentalmente, econômico do
capitalismo transnacional. Na globalização tra-
ta-se, por certo, de outra universalidade que
aquela requerida por Bataille, talvez mais pró-
xima da produção do heterogêneo imperativo,
com fascismos escamoteados ou micro-fas-
cismos pouco identificados com uma grande
causa que não seja subordinada a do capital.
Mas por sua vez a globalização vale-se de uma
revolução comunicacional telemática que per-
mite àqueles que têm acesso a ela estar em
qualquer lugar para se comunicar com qual-

76
quer outro lugar do mundo, e, quem sabe, de
se situar e de se compreender em movimento.
Essa possibilidade talvez produza um espaço
da alteração fértil à agremiação acéfala.
Voltando às imagens acima, o sacrifício
do santo do séc. III, atualizava as antigas prá-
ticas pagãs para a prática cristã, mas em seu
interstício, no vestígio de seus passos ele anun-
cia, pelo anjo coroador, a comunidade acéfala.
Bataille requer a comunidade acéfala com pro-
dução do heterogêneo não imperativo que vai
do sujeito fora de si às massas informes. Qual
seria, por sua vez, a boa nova anunciada no
auto-martírio acéfalo do jovem agônico defron-
te ao computador? Talvez alguma coincidência
derivada da globalização?
Michel Serres se vale do mito de São
Dênis para anunciar confiante uma comuni-
dade contemporânea acéfala e conciliadora
pautada na supremacia da informação e da
comunicação telemática. Nela está dada a inver-
são entre sujeito e objeto, o sujeito é desnudado,
esvaziado e sem faculdades que agora ficam a
cargo das máquinas portadoras de memórias
gigantescas e de funções incalculáveis as quais
Serres denomina de objetos-mundo.

77
“A que ou a quem comparar o terminal de
seu computador, sua memória imensa, seu monitor,
sua poderosa rapidez de cálculo, a classificação ins-
tantânea de seus dados, a que cabeça bem-cheia e
bem-feita, totalmente densa e genialmente fabrica-
da? A qual luz transparente comparar sua própria
cabeça vazia, em face destas faculdades materializa-
das sob o vidro, o plástico, em silício e fibras óticas?
Desde então, transformamo-nos todos em santos
Dênis; percebemos todos os dias que nos servimos
dessa cabeça cheia e bem-feita diante de nós, porta-
dores de uma cabeça inventiva que repousa sobre o
pescoço.”20
O esvaziamento é visto positivamente
como condição para a invenção e comunicação
via máquinas que não possuem funções limi-
tadas. Sob esse aspecto torna-se possível uma
comunidade acéfala global cuja comunicação
de qualquer lugar para qualquer outro lugar
do mundo, deixa o próprio lugar e o endereço
em segundo plano.
Na idílica habitação-mundo o saber
volta-se para a emancipação humana, num

20 SERRES, M. Hominescências. Rio de Janeiro: Ber-


trand Brasil, 2003. p.205-206.   

78
jogo em que todos ganham no seu comparti-
lhamento. O espaço caracterizado cada vez
mais pelo deslocamento relativiza a noção de
vizinhança e no limite faz de cada um dessa
comunidade acéfala o meu próximo. O eu que
diz o meu, ou seja, o lastro do sujeito reifican-
te, perde o sentido, pois é a primeira figura a
ser decapitada. Talvez, perca o sentido domi-
nante. Assim como uma espécie de heterotopia
realiza o espaço contemporâneo, pode-se estar
em qualquer lugar, mas a falta de lugar sempre
recai num lugar qualquer ainda que seja inós-
pito como as lan house’s em que nos intervalos
da habitação-mundo tem-se que lidar com um
corpo próprio desidratado. Outros topoi tam-
bém aparecem entre o incômodo agrilhoado
do mundo fixado e da liberdade da falta de
lugar. Um sintoma desses lugares híbridos
são as redes sociais e as auto-representa-
ções de si denominadas selfies. A primeira é o
papa-moscas da subjetividade, em que se cons-
trói a subjetividade no fora como extensão do
corpo, que apesar de esvaziado desde dentro
se sente cheio de si desde fora. A outra, antípo-
da do “caos de carne” da mulher carrasco mas-
carada de Leiris, recoloca o sujeito rostificado

79
no fora-dentro das redes sociais virtuais. Resta
a selfie imagem de esvaziamento de si aderida
para uma pós-subjetividade.
Diante desses usos heterotópicos,
parece que Serres se desviando das passa-
gens mergulha na positividade idealizando
uma humanidade, e talvez essa positividade
seja um daqueles recursos das antigas uto-
pias, aquilo que só se realiza no sem lugar ou
como ele denomina num “lugar de puro des-
locamento” é também aquilo que só pode se
realizar parcialmente, a caminho de, no caso,
outra humanidade. Parece uma lição de nova
ética sobre os recursos disponíveis no mundo
da informação e da comunicação generalizada.
Mas o jovem moribundo diante do computa-
dor não deve ter lido o Serres. Os entusiastas
dizem de novas possibilidades de arranjos, se
esquecendo que a internet é antes de tudo - e,
provavelmente, acima de tudo - um esforço de
guerra, no qual as pessoas não estão prepara-
das cognitivamente e existencialmente para o
excesso de conteúdo disponível estando facil-
mente sujeitas à desorientação manipulada.
Em outros termos, uma ferramenta do hetero-
gêneo imperativo de um líder de mil cabeças

80
como uma Hidra de Lerna de hálito venenoso
na atmosfera da rede comunicacional e da qual
de cada cabeça cortada brota uma infinidade
de outras.
Despreparado para o excesso de con-
teúdo, da falta de lugar, conectado ao univer-
so informacional, a comunidade acéfala do
jovem moribundo se desintegrava por falta de
algum pedaço de corpo comum. Talvez, faltas-
se o Dédalo no ventre, a caveira no sexo ou o
coração em chamas. Seguia domesticado pela
inteligência artificial dominante, que olhava
para ele como ele olhava para seu cãozinho.
Exorbitante, naquele instante em que erguia o
monitor e desfalecia cabisbaixo, ele olhava aos
céus na espera de uma explosão solar capaz de
libertá-lo. Só avistava faíscas dos fios. Talvez
sua cabeça decapitada fosse a alternativa des-
sa explosão que não via. Talvez ela devesse,
a partir de então, passar de mãos em mãos.
Ganhar a velocidade do toque e do desloca-
mento enquanto virava uma dança sinistra.
Uma dança cósmica para os Dionísios como
último lastro da distância.

81
PULANDO AS CERCAS DO
DESAPARECIMENTO

Pois, ou por desígnio da Sorte, decisão dos deuses e


decreto da Necessidade ela fez o que fez, ou foi por
força raptada, ou então por discurso persuadida,
‘ou por amor conquistada’. Se foi pelo primeiro
motivo, é digno de ser acusado o que a acusa; pois
um divino propósito com humana providência
é impossível impedir. [...] Se portanto à Sorte e
à divindade se deve atribuir a acusação, deve-se
absorver da infâmia Helena.
Górgias, Elogio de Helena.

Helena fugidia e depois sequestrada


demarca a ausência de percurso que funda um
pé do ocidente. De lá para cá ela não foi de um
lugar ao outro, pois interceptada a caminho,
desviou-se da rota de fuga para ir sabe-se lá
aonde. Esse fato mítico é ainda bastante atuali-

83
zado nas derivantes do progresso chegando à
autoajuda que paira na ideia de realização pes-
soal e de mudança de vida para atingir alguma
plenitude emocional e ou financeira.
Há pouco tempo atrás, um senhor senta-
do na praça com seu radinho de pilha escutava
na rádio AM uma história acontecida na região
metropolitana da cidade de porte mediano em
que morava. Na narrativa do repórter policial,
uma esposa que ganhava a vida fazendo adivi-
nhações no tarô, numa consulta conheceu um
homem preocupado em resolver a sua situação
financeira. Iludida pelo destino, e sem querer
prever o seu próprio futuro, fugiu com seu
cliente que a encheu de promessas. Talvez as
cartas tenham mostrado a ela alguma prosperi-
dade futura dele que a tenha seduzido. Mas o
fato é que fugira para um lugar desconhecido
que mais tarde, antes mesmo de saber em que
bairro periférico se encontrava, fora reconhe-
cido por ela como um cativeiro. Em poucos
meses estava presa e incomunicável, servindo
de escrava sexual para o antes Don Juan e,
logo depois, seu algoz. Desesperada, sem
esperar pelo seu Menelau atormentado, num
momento de distração do algoz, se embreou

84
no mato e conseguiu fugir novamente, só que
em sentido reverso. Encontrada dias depois
semiconsciente em outra trajetividade desvai-
rada, não conseguia narrar direito a situação.
Toda a reconstituição do acontecido na delega-
cia deveu-se a seu marido que acompanhava
seus passos à distância.
Condenada pela Vênus retratada por
Botticelli, desnudada com suas inúmeras
dobras: o mar espumante, o vento que revolta
os cabelos e movimenta o drapeado do manto
floral trazido pela Hora. Parece que a beleza
se liga ao desdobramento. Mas na sua genea-
logia mítica, ela também se vincula ao trágico.
Contada por Hesíodo, ela nasceu quando Cro-
nos cortou os órgãos genitais de Urano e arre-
messou-os no mar, daquela mistura de sangue e
sêmen encontrando-se com o sangue menstrual
de Clo aquecendo o mar, numa reação alquími-
ca derivando uma espuma (do grego, aphros)
nasce Afrodite, Vênus latina. Portadoras de
uma beleza próxima a da deusa, várias mulhe-
res entre elas Helena e Medusa, só poderiam
ser condenadas por todo o movimento que sus-
citam. E, por desdobramento, elas devolvem a
condenação com a guerra, a morte petrificada,

85
ou fugas sem fim de realidades, como na sín-
drome de Estocolmo em que a vítima se apai-
xona por seu sequestrador na tentativa de se
furtar da realidade mais imediata, ou talvez
abrindo uma nova rota de sacrifício insuspeita.
Com o rádio desligado, o mesmo
senhor, no banco da praça, observava a chega-
da de uma dezena de jovens debutantes, todas
vestidas de branco. Acometido por uma sisma
de recaída clássica, como aquela de Holderlin
sentindo a ausência de sua cabeça, ia ao encon-
tro da cena dos sacrifícios das virgens aos deu-
ses. Sentado em seu banco, dançava com elas
numa realidade mais forte do que a imagina-
ção. O sacrifício era reforçado pelo fotógrafo
que as conduzia como o sacerdote ou o carras-
co, colocando-as em poses para fotografias, em
gestos repetitivos em um transe para a celebra-
ção de uma glória pessoal que remeda a ficção
de uma glória social. Se no passado remoto
elas eram lançadas na boca de um vulcão em
chamas, soltas em barcos sem lemes em alto
mar, escalpeladas em templos das mais diver-
sas divindades, elas adentram atualmente em
ritos mais complexos que ao invés do sangue
pregam a conservação da “carne fresca” nos

86
quais a condição sacrificial é o congelamento
com a promessa de eterna juventude. O branco
dos vestidos sem drapeados é sucumbido na
expressão gélida do instante fotográfico pou-
sado nessa perseverança esvaziada e mórbida.
Logo mais, seu amigo sentara-se ao seu
lado no mesmo banco da praça. Não se sabe
ao certo se ele também fora tomado por aque-
la cena, mas trouxe o amigo de volta, antes do
fim daquela cerimônia de martírio imaginário,
com um gesto de mão sobre o ombro. Gesto
seguido coincidentemente por uma conver-
sa sobre a tragédia de Sófocles, Antígona. O
amigo falava sobre essa mulher mítica como a
introdutora da desobediência civil ao ser con-
denada por louvar o cadáver do irmão. Mor-
te dada no mundo das imagens, morte dada a
tudo aquilo que congela a vida. Antígona era
a mulher que venerava o cadáver do homem,
imagem da entidade abstrata, contra a proibi-
ção do governo dos Homens. Talvez seja esse o
sentido da desobediência civil observado pelo
amigo. E foi essa desobediência que quebrou
a lei que condenava até a sua terceira geração.
Significaria o fim da glória pessoal que ampa-
rava a glória social?

87
O outro pé que marca as passagens do
ocidente vinha naquela conversa contemplati-
va povoada de imagens clássicas e contempo-
râneas. Imagens cada vez mais borradas, mais
do que pela catarata dos senhores, pela encar-
nação de impensáveis que estão dadas nas
matérias insubordináveis que exigiam àqueles
dois tremores reflexivos. Os dois pés de inú-
meros vestígios são assim postos em dança por
Mondzain: “O paganismo grego, cruza-se aqui
com o monoteísmo (...). Todos partem da con-
vicção de que um certo face-a-face mata e que,
para que a figuração seja possível, é necessário
fazer um sacrifício, fazer o luto de uma presen-
ça identificatória”21. Em erupções do fora e de
si, o que Bataille no ápice poético chamou de
Jesúvio, a imagem do outro aos poucos ia se
abrindo para operar na ausência quente das
coisas.
Os dois riram quando um deles distrai-
damente errou o nome do colega. A resposta
foi, “esse já morreu faz tempo”. Ao que seguiu
ainda entre risos: “Foi comprar cigarros e nun-
ca mais voltou”. Acabavam de desfiar outra

21  MONDAZIN, Marie-Jose. A imagem pode


matar? Lisboa: Veja, 2009. p.24.  

88
imagem banal e corriqueira. Para uns de aban-
dono, logo fazendo repercutir a incorporação
da Odisséia e do Crucificado. Por essa ima-
gem era preciso forçá-lo a voltar a retomar seu
nome, sua esposa, seu filho e sua terra, como
Odisseu, do latim Ulisses, ulixe, o irritado,
talvez, porque viaja em busca de um retorno.
Nesse cenário retornável, seria preciso crucifi-
car um dos dois conversadores. Como poderia
não ter remorsos por abandonar as suas pro-
priedades? Como poderia ele ao menos não
desejá-las? Como Ulisses sua trajetividade
regressiva é povoada de monstros e provas.
Mas não insiste nisso, pois o seu duplo artifi-
cial não deixa de fazer lembrar que o herói é
o assassino do outro. Entra em cena o terceiro,
o Crucificado, anunciando que o outro é per-
meado pelo sacrifício, mas insistia que desde
que não seja o único e não se converta numa
imagem a incorporar. Era assim que a imagem
desde dentro, de um dia de decisão que o fazia
experimentar indo para adiante, encarnava o ir
além da propriedade.
Os dois permaneciam sentados no ban-
co, pareciam que não queriam mais retornar
daquela conversa e nem habitar mais espaço

89
algum. Fugiam como duas Helenas sem que-
rer saber aonde iam aportar, mas com um
rumo: para fora de qualquer reino. Qualquer
pertença, mesmo a mais provisória os abando-
nara assim com um deles havia feito outrora
com sua antiga casa. Eles apenas escorriam e
regrediam, avançando no tempo como uma
marcha ré para frente, avançando na matéria
com aquilo que viam pela frente na praça e em
seus pensamentos. Experimentando e viajando
no mesmo sítio de tábuas brancas vazadas em
que se assentavam e que figurava como tram-
polim de salto. A velhice permitia-lhes percor-
rerem grandes distâncias, num campo vasto
pleno de cercas brancas delimitando as terras
do desaparecimento. Cercas em que eles salta-
vam como crianças, para adentrarem em terras
onde não existiam nem heróis nem escritores.

90
FALAR DAS NUVENS,
FALAR DAQUILO QUE NÃO SE SABE

Avesso às redes sociais virtuais, sem


nunca ter ajoelhado num confessionário e sem
nunca ter feito análise, como alguém poderia
defender a sobrevivência no facebook - e nas
novas redes sociais virtuais por virem - dos
processos terapêuticos de subjetivação antes
concentrados nos consultórios?
Imaginando um princípio comum de
falação sem filtro aparente e da livre associa-
ção decorrente das postagens imediatas, do
reflexo de respostas e de opiniões que, se fos-
sem pausadas por meio segundo, já não fariam
mais sentido de serem submetidas à apreciação
de qualquer um. Do desenho do dedo sobre a
tela fazendo uma nova gestualidade da escrita,
tentando alcançar a velocidade do pensamen-
to maquínico. Um dedo relâmpago que insiste
em mimetizar a escrita. Do excesso de opiniões

91
emergentes nessa velocidade, surgia um novo
estatuto para a verdade que organizava a
sociedade global numa doxocracia. Quanto
mais a opinião for validada por outras, mais
ela ganharia em verdade. E toda essa verdade
carregava as nuvens (cloud computing), esses
espaços diáfanos de processamento de dados
para uma infinidade de serviços via internet.
As nuvens de dados são possíveis gra-
ças a enormes servidores pertencentes às gran-
des empresas de internet chamados de Server
Farm. Para armazenar os dados de mais de
800 milhões de usuários, a “fazenda” do Face-
book na cidade de Lulea na Suécia possui uma
área de 28 mil metros quadrados. Com elas a
máquina já não funciona tanto como memó-
ria externa imediata do que como mediado-
ra para uma memória única nos confins. A
memória mesma de toda essa falação ganha
autonomia tanto dos sujeitos quanto dos obje-
tos imediatos para se concentrar nas fazendas
de processadores, novos domínios territoriais
para a produção de qualquer lugar conectado
e aglutinador das nuvens. Mas não somente
domínios territoriais, pois abarcam também
além das produções dos serviços de internet,

92
os percursos de informações, as subjetivações
derivadas que são utilizadas para traçar perfis
de usuários e retornam para eles nas formas
de produtos para desejos coagidos. As nuvens
nesse sentido são estratégias de capturas que
arrastam a produção de informação e de dese-
jos de cada um para locais físicos de concen-
tração - apesar da concretude dessas fazendas,
nem sempre elas aparecem no google earth
- para devolver modos de pensar, de sentir e
de agir. Espécie de domínio exterior alimenta-
do pelo próprio usuário na aparente liberdade
que parte de seu movimento na multiplicida-
de.
Estranho pacto de não saber e de esque-
cimento que esquadrinha as novas formas de
relações humanas instaurando a vigilância
como condição da verdade. Na sociedade do
comentário é o excesso de opiniões o portador
do lastro da denúncia tomada enquanto ver-
dade. Condensada essa nuvem de verdades
ainda provoca quedas d’água que movimen-
tam águas paradas dominantes? A verdade
(aletheia) no mundo mítico grego antigo é uma
palavra derivada daqueles que voltam do rio
Lete, o rio do esquecimento. Rio caudaloso

93
de águas turvas e correntes subterrâneas que
arrasta a memória daquele que se banha nele
para longe de si preparando-o para viver no
além. Voltar do rio Lete sem se banhar aproxi-
ma a verdade da glória pessoal.
A verdade (alétheia) se encontra vincu-
lada à imortalidade. Por isso ainda temos certo
respeito pelos autores de livros. Talvez, mes-
mo desde as inscrições das leis nas tábuas dos
mandamentos. Os autores encarnam entidades
abstratas que propagam seus dizeres gerações
adiante enquanto suas opiniões pessoais bei-
ram as margens do Lete. Ou seja, criam uma
distância entre a realidade vivida e aquilo que
aparece como verdade inscrita. Daí provém a
crítica do intelectual engajado do entre guer-
ras mundiais à glorificação pessoal de Home-
ro, aquele poeta cego e incapaz de participar
da guerra, mas que narra com maestria aquilo
que não viveu. Já se passaram mais de sessenta
anos sem guerras no território do ocidente ven-
cedor e novas verdades emergem do Lete.
A distância proveniente da realidade
vivida e da verdade inscrita adquire novas
medidas. Na sociedade do comentário a ver-
dade se constrói pela vigilância, pela acusa-
ção e pela plasticidade da opinião que já não

94
mais precisa ser construída a partir das verda-
des inscritas, leis, teorias e pensamentos, mas
por movimentos circunstanciais que a aproxi-
mam do Lete. Na sociedade do comentário, a
verdade sempre é banhada no esquecimento.
Movimento tão intenso que é naturalizado
e despercebido, provocando uma evapora-
ção que forma a nuvem do saber. Nuvem do
saber, moldada ora por aqueles que dizem do
que não vivem, ora por simulação de realida-
des opinadas, associado a uma multidão com
despreparo técnico - do téchne , saber fazer e
comunicar aquilo que se faz - para lidar com
as ferramentas da informação. Nuvens concen-
tradas em núcleos de poder.
Um anônimo em fins do século XIV
escrevia o livro intitulado, “A nuvem do não-
saber”22 . Nele se encontra uma espécie de
método para se atingir a deus, que fora da dog-
mática religiosa pode ser tomado como repre-
sentação da exterioridade total (totalmente
outro), do fim da glória pessoal e, por conse-
guinte, do fim da verdade. Por isso a escrita só
poderia ser feita por um anônimo propondo

22  Ver Anônimo do século XIV. A nuvem do não-


saber. Petrópolis: Vozes: 2016.

95
uma via de conexão que passa pela nuvem do
esquecimento - retomada vaporosa do Lete -
pousada sobre a vida ativa e contemplativa,
chegando à nuvem do não-saber, encontro
com o desconhecido. O esquecimento nesses
termos abrange desde uma perspectiva indivi-
dual de desapego ao passado - o que invaria-
velmente põe em xeque a premissa do pecado
ou de análise psicológica - quanto de tentati-
vas que pretendem racionalizar a experiência
na nuvem. Liberado da consciência de si e do
que quer que seja, a passagem pela nuvem do
não-saber é atravessada pela seta do desejo, do
gozo e da anulação do conhecimento prévio.
Seria então na prática do amor, esse amálgama
de vida ativa e contemplativa, que se tenderia
a perpassar a nuvem rumo à alteridade radi-
cal.
Alguns pensadores contemporâneos
como Serres - por exemplo, na sua proposição
de uma ética da desconexão - e Byung-Chul
Han retomam, cada qual a seu modo, a neces-
sidade de alguma contemplação como forma
de se produzir uma interioridade-outra. Uma
outra interioridade por mudança paradigmá-
tica - assim como a partir do séc. XV europeu

96
foi sendo feita a passagem do oco da alma
insuflada por deus para o espalhamento infi-
nito da subjetividade no reconhecimento do
mundo pelo homem - resultante da passagem
de uma subjetividade reificada, pois lançada
fora dos sujeitos e tornada ela mesma coisa
nos processos atuais de produção e transmis-
são de informação. Uma interioridade per-
meada pela alteridade. Byung-Chul seguindo
Hadke diz de uma “religião imanente do can-
saço” enquanto potência negativa que nos
faria usufruir do inútil pela via contemplativa.
A premissa da sociedade do cansaço pautada
na vizinhança sem qualquer vínculo fami-
liar, funcional ou de pertencimento, que ele
apregoa, está numa nova interioridade que
“suspende uma individualização egológica,
fundando uma comunidade que não precisa
de parentesco”23. Isso não se aplica aos mode-
los das sociabilidades virtuais atuais cujo pers-
pectivismo reata a familiaridade ainda que à
força.
Que tipo de saber se esconde nas
nuvens que não cabem nas perspectivas? Na

23  HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço.


Petrópolis: Vozes: 2016. p.71.

97
pintura da cena bíblica do pagamento de tri-
butos realizada em 1427 na Capela Brancacci
por Masaccio, a arquitetura marca a separa-
ção do espaço social construído pelo homem,
simulado pela técnica da perspectiva. Ela mar-
ca o espaço comunitário onde acontece a cena
principal do pagamento do tributo por Jesus e
seus apóstolos. Fora da lei, a natureza figura ao
fundo escapando dessa regra definidora de tri-
butos e de pertencimentos, e aparece portadora
de um mistério. A natureza não se enquadra na
categoria da paisagem, essa região apazigua-
da e domesticada pelo olhar. As montanhas
enervadas se acumulam avançando lateral-
mente sobre a arquitetura e ao alto uma faixa
azul é pano de fundo para nuvens bidimensio-
nais derivadas do mesmo cinza do cume das
montanhas. Sem profundidade dimensional
à maneira da perspectiva, a natureza ganha
uma profundidade mistérica enquanto espaço
diante do qual o homem não sabe nada. Como
o apóstolo Pedro ao fundo da cena entre a
natureza e o espaço construído, que ao pescar
para retirar do peixe o estatér de pagamento
do imposto, mas que não deixa de se molhar
- novamente o Lete? - talvez, desamparado

98
da comunidade e da identificação resta-lhe a
experiência como processo atravessado pelo
não saber.
Desse atravessamento de esquecimen-
tos, de amores, de cansaços, experimentando
travessias nas nuvens do não-saber, a nova
comunicação feita pela interioridade forma-
da na alteridade poderia advir por vidên-
cias. Ainda nada de novo nessa comunicação:
quando falar daquilo que não se sabe produz
conhecimento. Aquilo que desde Laocoonte e
Cassandra, para falar dos condenados míticos
pelos deuses e heróis, irrompe dizendo desta
possibilidade contemplativa contra qualquer
forma de pertencimento. Estranhos caminhos
desconexos onde falar daquilo que não se sabe
desmoronando a semelhança, desmorona os
próprios caminhos onde os restos, meio que
soterrados, parecem coincidir com o movimen-
to que atualiza a vida.

99
ISBN 978-85-86274-11-4

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