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Poético habita
o homem...”
Martin Heidegger
O tom fundamental dos versos vibra na palavra “poético”. Esta se acentua de acordo
com duas perspectivas: através da que a antecede e da que a segue.
As palavras que a antecedem: “Cheio de mérito, contudo...” Isto soa quase como se a
palavra seguinte “poético” refletisse uma limitação no habitar cheio de mérito do homem.
Entretanto, é o inverso o que se dá. A limitação é denominada através da volta ao “Cheio de
mérito”, rumo ao qual devemos pensar um “na verdade”. O homem, na verdade, se faz
amplamente merecedor com o seu habitar. Pois o homem assiste ao crescimento das coisas
da Terra e cuida do que foi incrementado a ela. Assistir e cuidar (colere, cultura) é uma forma
do construir. Contudo, o homem constrói não apenas o que se desdobra a partir de si em um
crescimento, mas constrói também no sentido do aedificare, na medida em que ele erige o
que não pode germinar nem vingar através do crescimento. As construções, neste sentido,
não são apenas os edifícios e as estruturas, mas todas as obras aviadas pela mão e pela
execução do homem. Contudo, os méritos desse múltiplo construir não preenchem nunca a
essência do habitar. Ao contrário, eles até mesmo apagam ao habitar a sua essência, pelo
tempo que eles sejam adquiridos e alcançados pura e simplesmente em vista a eles mesmos.
Pois, com efeito, os méritos, por sua abundância, fazem força precisamente para se fazer
passar por inteiro pelo habitar nos limites do construir acima nomeado. Mas este obedece ao
cumprimento das necessidades do habitar. O construir, no sentido do construtor assistir do
crescimento e do erigir de estruturas e obras e do preparo de utensílios é já uma
conseqüência essencial do habitar, mas de modo algum o seu fundamento ou a sua
fundamentação. Este deve se dar em um outro construir. O construir habitual e com
freqüência exclusivamente posto em movimento e, por isto mesmo, o único conhecido traz, na
verdade, a abundância dos méritos ao habitar. Contudo, o homem só consegue o habitar uma
vez que haja construído já em um outro modo e construa e permaneça tencionando construir.
“...Cheio de mérito (na verdade), contudo poético, habita o homem...” A seguir no texto
as palavras: “sobre esta Terra”. Poder-se-ia tomar por supérfluo este aditamento; pois habitar
significa já: o residir do homem sobre a Terra, sobre “esta” que todo mortal se sabe confiado e
exposto.
Entretanto, quando Hölderlin ousa dizer que o habitar dos mortais é poético, isto mal é
dito e já desperta a aparência que precisamente o habitar “poético” arranca os homens da
Terra. Pois, não obstante, o “poético” [dichterische] concerne, quando ele se faz valer
enquanto Poética [Poetiche], ao reino da fantasia. O habitar poético sobrevoa, fantástico, o
real. O poeta confronta-se com este receio, na medida em que ele diz propositalmente que o
habitar poético é o habitar “sobre esta Terra”. Assim, Hölderlin preserva o “poético” não só de
uma previsível incompreensão, mas ainda, através do suplemento das palavras “sobre esta
Terra”, aclara expressamente a essência do poetar. Este não sobrevoa nem ultrapassa a
Terra para abandoná-la e pairar sobre ela. O poetar traz o homem sobre esta Terra, a ela,
trazendo-o, assim, ao habitar.
Sabemos agora em que medida o homem habita poético? Ainda não o sabemos.
Caímos até mesmo no perigo de nos pormos alheios à palavra poética de Hölderlin. Pois
Hölderlin, na verdade, nomeia o habitar do homem e o seu mérito, mas ele não implica,
contudo, o habitar numa conexão com o construir, como se deu há pouco. Ele não fala do
construir nem no sentido do cuidar, do assistir e do erigir, nem fala que concebe o poetar
como uma forma própria do construir. Por conseguinte, Hölderlin fala do habitar poético não o
igual que o nosso pensar. Não obstante isso, nós pensamos o Mesmo que Hölderlin poeta.
Certamente, trata-se aqui de reparar no essencial. Um breve parêntese faz-se
necessário. O poetar e o pensar encontram-se no mesmo tão-só e enquanto permaneçam
firmes na distinção de sua essência. O mesmo não se recobre com um igual, nem com a
vazia indiferença do mero idêntico. O igual se extravia sempre no indiferente, para que tudo
se ajuste neste. Em contrapartida, o mesmo é a co-pertença do distinto a partir da reunião
pela diferença. O mesmo só se deixa dizer quando a diferença é pensada. No ajuste do
diferente, a essência conjuntiva do mesmo vem à luz. O mesmo extirpa todo afã em nivelar o
distinto ao igual. O mesmo conjuga o diferente numa união originária. Em contrapartida, o
igual se dispersa na insípida unidade do Um meramente uniforme. Hölderlin, ao seu modo,
sabia dessas relações. Ele diz em um epigrama, que traz o título: “A raiz de todo mal”, o
seguinte:
Meditemos um pouco a partir destes versos, e, na verdade, com o único intuito de ouvir
claramente o que Hölderlin pensa quando nomeia o habitar do homem um habitar poético. Os
primeiros versos lidos (24 a 26) nos dão um aceno. Eles figuram na forma de uma pergunta
respondida afirmativamente com toda certeza. Esta circunscreve, já quase imediatamente, o
que pronunciam os esclarecedores versos:
Porque o homem é na medida em que suporta a dimensão, sua essência deve ser
continuamente mensurada. Para esse fim, ele precisa de uma medida que atinja ao mesmo
tempo toda a dimensão. Vislumbrar esta medida, estimá-la enquanto medida e tomá-la
enquanto medida, significa para o poeta: poetar. O poetar é esta medida-tomada e, na
verdade, em prol do habitar do homem. Com efeito, imediatamente após a palavra “Essa é a
medida do homem” seguem no poema os versos: “Cheio de mérito, contudo poético, habita o
homem sobre esta Terra...”.
Sabemos agora o que é para Hölderlin o “poético”? Sim e não. Sim, porquanto
recebemos uma instrução, por respeito a qual é para pensar o poetar, a saber, enquanto um
insigne medir. Não, porquanto o poetar, enquanto o estimar é sempre aquela estranha medida
misteriosa. Assim ele deve se manter também, desde que estejamos dispostos a nos demorar
no âmbito essencial da poesia.
Contudo, estranha-se quando Hölderlin pensa o poetar enquanto medir. E isto com
direito, enquanto representarmos o medir apenas em nosso sentido usual. Com o auxílio do
conhecido, a saber, escalas e numeradores, um desconhecido é examinado passo a passo;
com isto, é tornado conhecido e, assim, sempre confinado em uma quantidade e uma ordem
abarcáveis. Este medir pode variar segundo a forma da aparelhagem preparada. Contudo,
quem garante que esta forma habitual de medir, só porque ela é corrente, toque já a essência
do medir? Quando ouvimos falar de medida, pensamos imediatamente em número, e
representamos a ambos, número e medida, enquanto algo quantitativo. Entretanto, a essência
da medida é tampouco quanto a essência do número um quantum. É certo que com números
podemos calcular, mas não com a essência do número. Se Hölderlin vê o poetar enquanto um
medir, e mesmo o realiza de antemão, sobretudo como uma medida-tomada, então, para
pensar o poetar devemos, antes de tudo, considerar sempre ainda a medida, que foi tomada
no poetar, devemos reparar na forma desse tomar, o qual não se baseia em um apossar-se,
nem, sobretudo, em um agarrar, mas antes em um deixar-vir do extremo-comedido [in einem
Kommen-lassen des Zu-Gemessenen]. O que é a medida para o poetar? A Divindade; por
conseguinte, Deus? Quem é Deus? Talvez esta questão seja muito difícil e precipitada para o
homem. Por isto perguntamos primeiramente, o que há a dizer acerca de Deus? Perguntamos
em princípio apenas: o que é Deus?
Por sorte e como auxílio nos foram conservados versos de Hölderlin que pertencem,
em termos de matéria e de época, ao âmbito do poema “No plácido azul floresce...”. Eles
começam assim:6
“...A sombra da noite” – a noite ela mesma é a sombra daquele escuro que não pode
jamais se tornar uma mera treva, porque ele enquanto sombra atribuída à luz, permanece
lançado por ela. A medida, a qual o poeta toma, conforma-se enquanto o estrangeiro, no qual
o invisível protege sua essência, ao que é familiar dos espetáculos do Céu. Por isso a medida
se dá a partir da forma essencial do Céu. Mas o Céu não é luz vã. O esplendor de sua altura
é em si o escuro de sua amplidão toda albergueira. O azul do plácido azul do Céu é a cor da
profundidade. O esplendor do Céu é a subida e o declínio do crepúsculo que alberga tudo a
anunciar. Este Céu é a medida. Por isso o poeta precisa perguntar:
E ele tem que responder: “Nenhuma há”. Por que? Porque o que nomeamos, quando
dizemos “na Terra”, só subsiste na medida em que o homem habita a Terra e, ao habitar,
deixa a Terra ser enquanto Terra.
Mas o habitar só acontece quando o poetar se torna próprio e essencial, e isso, na
verdade, no modo em que agora pressentimos sua essência, a saber, enquanto a medida-
tomada para todo medir. Esta mesma é o mensurar próprio, não o mero calcular com
metragens determinadas para fabricação de planos. Por isto, o poetar não é também nenhum
construir no sentido do instalar e do erigir de construções. Mas o poetar é, enquanto o estimar
próprio da dimensão do habitar, o construir inicial. O poetar, antes de tudo, admite o homem
em sua essência. O poetar é o deixar-habitar originário.
A frase: o homem habita, na medida em que constrói obtém agora o seu sentido
próprio. O homem não habita apenas na medida em que ele erige em sua estadia sobre a
Terra sob o Céu, quando ele enquanto agricultor fomenta o plantio e ao mesmo tempo instala
construções. Este construir, o homem só é capaz se ele já constrói no sentido da poética
medida-tomada. O construir próprio ocorre, desde que os poetas sejam tais que eles tomem a
medida para o arquitetônico, para o construir-organizado do habitar.
Hölderlin escreve, em 12 de Março de 1803, de Nürtingen, a seu amigo Leo von
Seckendorf: “A fábula, modo de ver poético da história e arquitetônica do Céu, ocupa-me
especialmente no presente, particularmente a nacional, uma vez que é diferente da Grega.” 7.
O poetar constrói a essência do habitar. Poetar e habitar não só não se excluem, mas,
muito antes, se concernem mutuamente fomentando um ao outro no modo da alternância.
“Poético habita o homem.” Habitamos nós poéticos? Provavelmente, habitamos inteiramente
de modo não poético. Se assim o for, a palavra do poeta se torna por isso mentiras
imperdoáveis e inverdade? Não. A verdade de sua palavra se confirma do modo mais
inquietante. Pois um habitar só pode ser não poético, porque o habitar em essência é poético.
Para que um homem possa ser cego, ele deve em sua essência permanecer conforme um
vidente. Um pedaço de pau jamais pode vir a ficar cego. Mas quando um homem se torna
cego, então é sempre ainda questão de saber se a cegueira advém de um defeito e de uma
perda ou se ela parte de uma abundância e um excesso. Hölderlin diz no mesmo poema em
que cogita sobre a medida para todo medir (versos 75/76): “O Rei Édipo tem um olho a mais,
talvez”. Poderia bem ser que o nosso habitar não poético, a sua incapacidade para tomar a
medida, viesse de um estranho excesso de um medir e calcular desenfreado.
Em todo caso, só podemos fazer a experiência de que habitamos e até que ponto nós
habitamos não poético, quando sabemos o que é o poético. Se e quando nos ocorrerá uma
viravolta do nosso habitar não poético, só podemos prever se fixarmos a atenção no poético.
Como e em que extensão o nosso fazer e o nosso deixar podem ter uma parte nessa
viravolta, nós mesmos só o experimentaremos quando tomarmos a sério o poético.
O poetar é o bem fundamental do habitar humano. Mas o homem só é capaz do
respectivo poetar segundo a medida como a qual sua essência é apropriada àquilo mesmo ao
que o homem pode e por motivo do que a emprega. Conforme a medida dessa apropriação o
poetar é próprio ou impróprio.
Eis porque o poetar próprio também não se dá em qualquer tempo. Quando e enquanto
o poetar é próprio? Hölderlin o diz nos versos já lidos (26-29). Seu esclarecimento foi
intencionalmente adiado até agora. Os versos rezam:
“A amabilidade”, o que é isto? Uma palavra inofensiva, mas com o epíteto, “a pureza”,
nomeado por Hölderlin com letra maiúscula. “A amabilidade” – esta palavra, quando a
tomamos literalmente, é a esplêndida tradução de Hölderlin para a palavra grega χάρις. Em
sua tragédia “Aias” (v. 522), Sófocles diz o seguinte sobre a χάρις:
A vista
8
(Stuttgart, 2ª ed, 1, p. 312)