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A SIBILA
g u i m a r ã e s e d i to re s
lisboa
a sibila
© 2009, Agustina Bessa-Luís
edição © 2009, Guimarães Editores, SA
impresso em portugal
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Foi a partir dessa data que ficaram amigas. Porém, enquanto co-
mia o seu caldo de castanhas, tradicional do dia de finados, Quina
meditava na volubilidade insinuante da condessa, com quem con-
versara nessa manhã. Ela falara vagamente de Abel, cheia de reticên-
cias moles, distraídas; depois, entre uma enfiada de banalidades,
pedira explicações sobre o melhor sistema de corar o linho e obter
um ponto cristalizado para o doce de ginja. Quina maravilhava-se.
Aquela consulta tão familiar envaidecia-a, e foi sem custo que se
acreditou merecedora dela. Tagarela como era, não deixou que a
primeira efusão do encontro esfriasse e desse azo a uma rápida des-
pedida. Falou muito, alongando-se em circunlóquios, muito exta-
siada de agrado por aquela mulher que a olhava com um sorriso
paciente, batendo com a ponteira do guarda-chuva, insistente e
lenta, no tapete cor de caramelo da carruagem. Tinham debandan-
do os fiéis que giravam, a rezar, rodeando as campas; o vento amon-
toava nos ângulos dos muros pétalas de crisântemos sujas de terra.
A condessa disse, retirando de sob a capa um relogiozinho cuja
tampa se abriu com um tique suave:
– Vá a minha casa um dia destes, de manhã. É muito tarde
agora. – Riu-se jovialmente, rolando nos dedos a cadeia do reló-
gio, cujas arestas de oiro se lhe pegavam no plastron de tule negro.
– Preciso muito de si. Sei que é mulher de bom conselho…
Quina corou de surpresa e de deslumbramento. Diziam isso,
então? A sua qualidade estranha de virtuosa da oração não se di-
vulgara muito, em parte porque ela temia comprometer a casa da
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Abel não ficou satisfeito com as informações que Germa lhe levava.
Aquele desvario todo maternal da pobre Quina, que criava no seu
regaço um espécime perigoso de usurpador, revolucionava a fa-
mília. Chegou a procurar João, que vulgarmente considerava no
ostracismo dos parentes insignificantes, para lhe propor uma co-
ligação ardilosa ou mesmo violenta contra o que ele chamava ca-
turrice de velha. João, que vivia numa enorme casa desmantelada,
propriedade da mulher, desceu oitenta e quatro degraus para lhe
abrir a porta, porque faziam residência apenas no último andar,
e o cordel a que se prendia o fecho não funcionava.
– Olá! – disse, sem entusiasmo. Retirou-se para um lado do
pequeno vestíbulo pavimentado com azulejos dum fosco cor-de-
-rosa, e esperou que o irmão entrasse, para o conduzir pela escada
interminável, iluminada nos patamares pela claridade das habita-
ções desertas, cujas paredes, pintadas com veios negros imitando
mármore, brilhavam suavemente. Não falaram antes de chegar aci-
ma. E, depois, quando Abel se encontrou na sala, mobilada com
essa espécie de móveis que exprimem, na sua solidez modesta e no
imprescindível das suas atribuições, a honesta e grotesca resignação
das falências burguesas, não achou nada para dizer. Havia talvez
doze ou quinze anos que os dois irmãos não se cumprimentavam
de perto, tornados muito indiferentes pela oposição das suas vidas,
João respirando uma quase pobreza, essa falsa auréola de confor-
to da classe média a quem as pretensões fazem pelintra; Abel con-
tinuara sempre um aventureiro inconformado que obtivera como
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Voltou muitas vezes. A sua vida sofreu uma volta brusca; estan-
caram-se-lhe os desejos de mândria solta, não saía, os seus apetites
lambareiros, de criança, pareceu esquecê-los. A sua atitude simu-
lava reflexão, fazia-se taciturno; às vezes, Libória surpreendia-o a
reparar a pata dum móvel que o caruncho esfarelara e que cam-
bava, ou, então, falando-lhe do prejuízo, dum esteio que o vento
abalara, duma pipa cujas aduelas cediam, ele punha-se grave, qua-
se agressivo, corria a verificar o desastre, barafustava muito com
os caseiros, que se riam dele e lhe chamavam canalha, com essa
intenção, mais amigável que pejorativa, com que assim o povo
classifica as crianças. «Coisas de canalha!» – diziam, ponderando
desse modo aquele súbito zelo de administração. Mas Custódio
estava de facto possuído pela consciência da propriedade. Em
cada palmo de terra, em cada pé de videira, até nas velhas ferragens
e aprestos já inúteis, disseminados pela casa e pelos beirais, via
pertences seus. Entrava-lhe na medula uma febre de senhorio, e
era terrível aquela repentina lucidez de quem, pela primeira vez, se
acha pobre e nu, sob um tecto, entre riquezas que, dum momen-
to ao outro, podem desfazer-se em pó.
Rondava Quina, nunca mais a deixou; passava horas espreitan-
do-a pela folha encostada da porta, não se importando de Libória
e dos moços que paravam no quinteiro para olhar, surpreendidos
de o ver tão imóvel como um cão amarrado à sua caça.
– Vossemecê gosta de mim? – perguntava-lhe, brusco, depois
de longamente ter permanecido junto do seu leito, mexendo,
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16 de Janeiro de 1953.
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mvc / laf
isbn
978-972-665-567-1
depósito legal
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