Sunteți pe pagina 1din 14

1

Aquele beijo

- Senhor Lopes, há aqui uma senhora que deseja vê-lo. Eu disse que não seria
possível, pois ela não marcou hora, mas como insiste, resolvi lhe consultar. Disse que é
conhecida sua.
Já eram cinco e meia da tarde de uma ensolarada quarta-feira de maio. À noite,
encontraria alguns amigos para assistir ao futebol, num pequeno, mas aprazível
restaurante próximo de casa. Estava impaciente, jogo decisivo, e a verdade era que
queria deixar o escritório o quanto antes para poder me concentrar na partida. Pedi a
Cláudia, minha secretária, que perguntasse o nome da senhora que me aguardava.
Certamente, era alguma desconhecida que tentava ludibriá-la para conseguir uma
consulta sem agendamento prévio. Cláudia estava comigo há pouco mais de um mês,
mas já havia notado que esse tipo de expediente era bastante comum. O telefone tocou.
- Senhor Lopes, o nome dela é Juliana Menezes de Carvalho, diz que conhece o
senhor faz anos, mas há muito não o vê.
As palavras de Cláudia me fizeram tomar um susto tão grande que, sem
perceber, deixei o telefone cair das mãos tão logo ela terminou de pronunciar aquele
nome. “Juliana Menezes de Carvalho? Não é possível!”, pensei. Afobado, retomei o
telefone e, com a voz agitada, pedi que a deixasse entrar. Da sala de minha secretária até
a minha não são mais de dez passos, estando as salas separadas por um pequeno
corredor. Foi o suficiente para que pudesse recapitular, numa sequência intensa de
flashs automáticos, uma parte importante da minha vida, à qual aquela mulher estava
diretamente ligada.
Juliana e eu morávamos na mesma rua, num bairro suburbano de São Carlos.
Tínhamos a mesma idade, e todos os dias nos encontrávamos, quase sem querer, antes
de ir à escola. Eu estudava desde cedo no colégio estadual que ficava a alguns
quarteirões de nossas casas e Juliana frequentava um colégio particular – “caríssimo”,
meu pai costumava dizer – próximo à Avenida principal. Quase todas as manhãs,
quando abria o portão para sair para minha caminhada até o ginásio, via Juliana no
quarteirão da frente, em pé, próxima ao portão, na calçada de grandes e luxuosas pedras
que havia na frente de sua casa, esperando o pai tirar o carro da garagem para levá-la.
Como era meu caminho, há anos passava defronte àquela bela residência, de muros
altos, pintura cor de creme, sempre com cara de nova, e portão eletrônico de um belo
marrom, que se estendia por toda a fachada do imóvel, fazendo aquela casa se destacar
2

da simplicidade e da mesmice das vizinhas, inclusive da minha. Quando mais novo, me


encantava com aquela construção, e pensava porque não podíamos ter uma casa
daquelas. À medida que fui crescendo – e que entendi o porquê dessa privação –, meu
interesse por ela foi se modificando: não era mais o ostentoso concreto que me
interessava; agora, passar ali significava receber um belo sorriso de bom-dia de Juliana.
Aliás, não apenas belo, mas o mais belo sorriso que eu já tinha visto! Não havia dia que
não se alegrasse com aquele gesto, e eu, bem, eu não sou daqueles que costumam se
esquivar da felicidade...
Juliana era bonita, pelo menos desde quando eu tinha começado a notar isso nas
mulheres. Generosos cabelos castanhos, levemente ondulados, pele morena sempre bem
cuidada, olhos negros, vivos como duas jóias repousando em seu rosto, nariz
arredondado e pequeno, lábios ligeiramente carnudos e, claro, aquele sorriso que me
fazia voar pelas nuvens a cada manhã. Quando tínhamos 14 anos, veio a notícia de que
seus pais – e ela, por conseguinte – iriam se mudar da cidade. O senhor Carvalho era um
respeitado engenheiro civil e, pelo que me consta, havia conseguido um emprego
público, numa estatal em Brasília. A remuneração, pelo que os vizinhos diziam à época,
era três vezes maior do que a que ele conseguia na cidade – que já não era pouca. “A
Laura parece que já até arrumou emprego lá também!”, lembro-me de ouvir minha mãe
contando, naquele típico tom de fofoca interiorana, sobre a mãe de Juliana, uma
magnânima e invariavelmente bem arrumada senhora, que sempre me chamava a ir a
casa dela comer doces e outras guloseimas que de vez em quando preparava. Apenas a
menina não demonstrava muita satisfação com a mudança. Percebi que, nos últimos
dias de sua estada em São Carlos, seu sorriso tornara-se mais opaco e mais raro e seus
olhos tinham perdido aquela vivacidade típica das meninas dessa idade, que se
preparam para descobrir o mundo. Mas como a família já havia se decidido, eles se
mudariam assim que acabasse o ano escolar, dali duas ou três semanas. Quando soube,
foi como se alguém tivesse me enfiado uma faca no meio do peito. Nas semanas
anteriores à notícia bombástica, começara a sentir que a forma como Juliana me olhava
e se comportava diante de mim havia mudado. O sorriso ganhara uma coloração mais
vibrante. Não era mais só amizade (sim, várias tardes depois da aula eu costumava ir à
casa dela, não apenas interessado nos doces – o que já seria motivo de sobra –, mas, de
uns tempos para cá, principalmente em sua companhia). Previa que Juliana poderia estar
sentindo por mim o mesmo que eu há tempos sentia por ela.
3

Dois dias antes da trágica notícia, fiquei sabendo de uma festa que haveria no
colégio, próximo ao Natal, para celebrar o final de ano. Festa mesmo, com direito à
dança e tudo o mais. Além disso, todos teriam direito a chamar mais um convidado de
fora do colégio. Nem preciso dizer qual o nome que me veio à cabeça. “É minha
oportunidade”, pensei. Deveria convidá-la. Não pela festa, claro. Esta seria apenas o
pretexto para realizar meu sonho de finalmente poder dar-lhe um beijo como via nos
filmes e nas novelas. Fiquei extasiado pelos dias seguintes, fantasiando como seria,
como eu seguraria sua mão, e depois olharia firme nos seus olhos, abriria um sorriso
terno, enfim... Quis o destino que meus planos naufragassem como um barco atingido
em alto mar. Fiquei tão desolado, que no fatídico dia da mudança sequer tive forças para
despedir-me dela. Encostei-me do lado de fora do portão de casa, olhando aqueles dois
caminhões levando a enormidade de objetos e eletrodomésticos de sua casa. Queria
acreditar que se eu não fosse até lá, aqueles caminhões não partiriam. Era fé no
impossível, mas era o que me restava. Quando tudo estava quase pronto, Juliana correu
em minha direção. Tinha os olhos úmidos, mas um semblante que se pode definir como
feliz. Ou conformado. Vinha dizer que, já que eu não tinha ido dizer adeus, ela resolvera
fazê-lo. Quando ela me abraçou, fiz menção de beijá-la, num sinal de desespero juvenil,
última tentativa, quem sabe, de mudar aquela fatalidade. Ela de pronto virou o rosto,
pressentindo, e me deu um beijo na bochecha, dizendo o adeus mais triste que eu jamais
ouviria. A vibração das ondas no ar, provocada por aquela detestável expressão de
despedida, era algo que me perturbaria por anos a fio. Quando ela se foi, fiz única coisa
que um homem naquela situação poderia fazer: entrei no meu quarto e comecei a
chorar.
Desde aquele dia, muita coisa, naturalmente, havia mudado em minha vida. Há
muito custo, depois de terminar o colégio, tinha conseguido pagar uma faculdade de
direito, trabalhando meio-período como estagiário na prefeitura, e meio-período num
escritório de advocacia. Bem ou mal, além do meu esforço contínuo – sempre soube que
não era brilhante e, portanto precisaria me dedicar muito para conseguir alguma coisa na
vida –, os empregos acabaram me dando um bom conhecimento e, quando terminei meu
curso, tinha totais condições de começar a exercer minha profissão. Há dois anos, estava
naquele prédio, próximo à Catedral. O fato é que, apesar de novo, já tinha conquistado
alguma clientela e até certa reputação na cidade. Namorei duas vezes, mas em nenhuma
oportunidade por mais do que alguns meses. Sentia que não tinha sido feito para isso.
Além do mais, volta e meia, não podia negar, a lembrança de Juliana me vinha à mente.
4

“Onde estaria? O que fazia? Tinha se casado?”. Desde sua mudança, apenas uma vez,
pouco mais de um ano depois de instalada em Brasília, ela havia me mandado um cartão
de felicitações, com votos de Feliz Natal e próspero ano-novo. Dizia estar bem,
adaptada à vida na nova cidade. Embora escrito num tom mais protocolar do que eu
desejaria, eu prontamente retribuí. Tinha esperança de que poderíamos voltar a nos falar
por cartas. Quem sabe até, ela não poderia passar as próximas férias em São Carlos? Eu
sonhava. Todos os dias, olhava a caixa dos correios, a espera de uma novidade. Nada.
Passados seis meses, decidi escrever novamente, coisas simples, sem muita importância,
apenas como se quisesse dar um sinal de vida, mas a carta voltou: a família tinha se
mudado daquele endereço, não se sabia para onde. Desde então, nunca mais tive contato
com ela. Até aquele momento, 20 anos depois.
Quando Juliana entrou, foi como se o tempo tivesse voltado até aquele dezembro
de 1990. Guardava em minha mente, como não poderia deixar de ser, a imagem de uma
pré-adolescente. A Juliana que ma aparecia diante dos olhos era agora uma belíssima
mulher. Os cabelos iguais, ainda belos, embora mais curtos, seios médios, escondidos
por baixo de uma blusa azul marinho de seda com um pequeno decote em V, pernas
grossas e bem definidas, parcialmente à mostra pela saia preta que chegava um pouco
acima do joelho. Estava bem vestida. Simples, mas elegante. Quando me viu, sorriu
abertamente, relembrando aquele gesto que tanto me fez feliz na adolescência. Mas foi
apenas um instante. Logo, fechou a cara. Tinha a fisionomia circunspeta, de quem tinha
passado – ou passava – por um grande sofrimento. De fato, a cada passo que dava em
minha direção, notava-lhe no rosto marcas que não condiziam com sua idade,
especialmente para quem, até onde eu sabia, jamais tinha passado grandes provações.
- Senhor Lopes, hein? – disse voltando a sorrir, embora mais timidamente,
ironizando o uso do pronome de tratamento por parte de minha secretaria, enquanto
fazia menção de me abraçar.
Abri um largo sorriso, misto de satisfação e surpresa com aquela inusitada
presença e nos abraçamos. Sentia-me embaraçado, não sabia como agir, onde colocar as
mãos, o que dizer. Na verdade, ainda me era difícil acreditar no que via. Para minha
sorte, ela se apressou em iniciar a conversa.
- Deve estar perguntando o que estou fazendo aqui, e como o reencontrei.
- Sim, sem dúvida – respondi ainda em estado de êxtase. – Está morando aqui? –
consegui emendar.
- Não exatamente. Estou aqui para vê-lo. E porque preciso dos seus serviços.
5

Tão logo convidei-a a sentar-se, Juliana começo a me contar que há muitos anos
morava em São Paulo. Pouco depois de ter me enviado aquele cartão de Natal, o pai
havia falecido num acidente de trânsito perto de sua casa, e para evitar as inevitáveis
lembranças provocadas pela atmosfera da cidade, ela e a mãe decidiram ir embora de
Brasília. Compraram uma casa na capital paulista. Lá se estabeleceram, tentando
recomeçar a vida, como se diz, e alguns anos depois ela começou um curso de
odontologia, mas que não chegou a concluir. Ainda na faculdade, conheceu o estudante
de arquitetura que viria a ser seu marido e, muito antes de terminar a graduação, e meio
descontente com curso, decidiu abandoná-lo para se casar.
- Quer um café, uma água? – perguntei depois de muito tempo. Tinha me
esquecido do mundo, enquanto ouvia Juliana contar sua história.
- Não, obrigada. Como disse, vim aqui porque, além de vê-lo, preciso de sua
ajuda.
Enquanto Juliana falava, o telefone tocou. Era Cláudia, dizendo que já ia, pois
passava das seis. Olhei rapidamente o relógio, e dei-lhe um “até amanhã” agradecido.
Dirigi-me, então, a Juliana.
- O que acha de ir a um ambiente mais agradável? Logo ali, na esquina, há um
bom café. Podemos ir lá e conversar, e você me diz em que posso lhe ser útil.
Juliana fez um sinal afirmativo com a cabeça e correu para pegar sua bolsa, que
tinha deixado sobre o sofá que ficava num dos cantos da minha sala. Enquanto
descíamos a pequena escadaria do prédio – estávamos no primeiro andar – e, depois, em
direção ao café, conversamos sobre o tempo bastante abafado que fazia e outras coisas
sem importância. Eu permanecia um tanto quanto abobalhado, confesso, o que
indubitavelmente não passou despercebido por Juliana. Quando chegamos, a pedido de
Juliana, sentamo-nos numa mesa mais aos fundos do café.
- Pois então, me diga. Para que deseja um advogado? E logo eu?
- Eu... bem... quero dar entrada no pedido de divórcio – disse Juliana com voz
contida, engasgando em algumas palavras, como se estivesse solicitando qualquer coisa
ilegal ou pecaminosa.
Confesso que, por conta da forma como falou, olhei-a com um misto de ironia e
espanto. Já tinha perdido as contas de quantas vezes ouvira aquela frase antes. Afinal,
grande parte das pessoas que me procuravam, o faziam justamente por isso, porque
queriam se divorciar. Não entendia o motivo de todo aquele acanhamento. Menos ainda,
- daí o espanto – conseguia entender a razão de alguém vir procurar um advogado tão
6

longe para algo aparentemente tão simples. Não me parecia ser apenas pela antiga
amizade, quer dizer, como se ela quisesse apenas fazer um agrado a um velho amigo,
dar-lhe um voto de confiança. Num milésimo de segundo, passou-me pela cabeça que
ela daria continuidade àquela frase dizendo que estava se separando por minha causa,
porque, por qualquer motivo que fosse, tinha finalmente percebido que me amava, que
eu era o homem de sua vida, que jamais tinha me esquecido. Mas tão logo essa ideia
absurda veio à minha mente, ela prontamente se dissipou. A coisa parecia mais séria. E
menos romântica.
- OK, sem problemas. Seu marido está ciente? – perguntei, procurando
transmitir um ar de profissionalismo.
- Não. Este é o problema. Quer dizer, um deles.
- Como assim?
- Meu marido, bem... nos casamos há mais de dez anos, como disse. No começo,
éramos o casal mais feliz da cidade. Todo mundo dizia isso, e eu tinha orgulho. Mas
algum tempo depois do matrimônio, inexplicavelmente, as coisas começaram a mudar.
Ele passou a me tratar mal, me ofendia com frequência... eu não sabia o porquê, talvez
fosse stress, ele trabalhava muito, tinha muita pressão, sabe como é. Fui aguentando.
Mais tarde, porém, ele começou a me bater. Sabe, foi um dia... começou com um
empurrão, e a coisa foi se agravando... – Juliana dizia tudo com visível
constrangimento.
- E você não reagia? – indaguei imediatamente.
- No começo, as ofensas, aquilo sem dúvida me assustou. Mas as coisas se
passaram muito rápido, e quando me dei conta, já não tinha forças. E, além do mais, eu
o amava muito, esperava que ele voltasse a ser o mesmo de antes. Durante muito tempo,
achei que era um problema comigo, mas não sabia exatamente o quê. Fazia de tudo para
agradá-lo. Quando começaram as agressões, tinha começado a pensar em procurar um
emprego, estava cansada de ficar em casa. Talvez voltasse a estudar. Já estava há uns
quatro ou cinco anos sem fazer nada. Mas, claro, ele foi contra.
- Sei – eu disse preocupando-me com o que viria a seguir. – Mas, como ele agia
depois disso, depois das brigas?
- Quando passava esses acessos de fúria, ele me pedia desculpas. Isso, no início.
Depois, nem as desculpas vinham mais. Tinha virado hábito. Como se fosse uma parte
natural da vida de casado. No dia em que resolvi falar que estava pensando em procurar
emprego, por exemplo... sabia que ele tinha bebido, tinha um happy hour depois do
7

expediente. Imaginei que isso o deixaria mais tranquilo, mais feliz. Quando chegou, fui
correndo lhe contar que tinha visto no jornal um serviço bom para mim, e que
trabalhando poderia até pagar uma faculdade à noite. Mal terminei de contar, Rodrigo, o
mundo veio abaixo! Ele teve um acesso de raiva sem precedentes, começou a me bater
com violência, dizia para eu esquecer aquilo, que ele jamais permitiria. Foi uma surra
enorme. Fiquei toda roxa, braços e pernas machucadas, olhos inchados. Foi terrível,
você não pode imaginar! Durante vários dias não pude sair de casa, não queria que
alguém me perguntasse onde tinha me ferido daquele jeito.
Meu peito era tomado por uma sensação inexplicável, ora de assombro, ora de
pena. Eu fitava Juliana incrédulo, enquanto ela dizia cada palavra como se estivesse
arrancando uma faca cravada em sua pele. Uma mulher tão bem criada, tão bela, com
um futuro tão promissor, há tanto tempo enfrentando aquilo, era algo que não me
entrava pela cabeça. Seus olhos marejavam, mas ela fazia um notável esforço para não
deixar as lágrimas rolarem.
- Você nunca o denunciou, nunca chamou a polícia? – indaguei inquieto,
alterando o tom de voz.
- Na verdade, bem, na verdade não. Tinha medo. Mesmo depois, com a lei para
esses casos, que continuava amedrontada. Certa vez, cheguei próximo à delegacia, mas
desisti. Imaginei o que ele poderia me fazer quando descobrisse! Fui suportando,
esperando, talvez fosse uma fase, eu pensava. Mas, era uma fase que parecia não ter
fim. Até que me sucedeu uma tragédia.
-O quê? – perguntei curioso.
- Descobri que tinha engravidado.
- Engravidado?
- Sim.
- Não sabia que tinham um filho! – exclamei ingenuamente, como se esquecesse
tudo o que tinha ouvido.
- Não temos – disse secamente.
Olhei-a ressabiado. Entendi de pronto a situação. Ela também já imaginava
minha reação. Sempre que terminava as frases, baixava os olhos, num claro sinal de
embaraço e fragilidade. Daquela vez, ela continuava a me encarar, como se esperasse
algo diferente. Mas eu não sabia o que dizer e apenas continuei olhando-a, fazendo um
movimento com as mãos de quem esperava o desenlace da história.
8

- Foi um pouco depois do dia que contei há pouco. Já tinha uns meses que nada
de ruim nos acontecia. Parecia que, depois daquilo, o inferno havia terminado. Numa
noite, fomos a uma festa da empresa dele. Havia um clima ótimo entre a gente, como há
tempos não acontecia. Eu tinha esperança que as coisas voltariam a ser como antes, e...
- Entendo – interrompi-a, sem querer ouvir, talvez por ciúme, o final daquela
frase.
- Mas, poucos dias depois, o martírio ressurgiu. Primeiro xingamentos,
humilhações e depois a violência física. Era um inferno Rodrigo, um inferno! Eu não
entendia nada! E aí, quando descobri que estava grávida, me apavorei. Não podia dar à
luz naquela situação, tinha medo, muito medo!
Nesse momento, as lágrimas invadiram-lhe os olhos de tal forma que todo seu
esforço de contê-las tinha se tornado inútil, e Juliana pôs-se a chorar. Segurei suas
mãos, e tentei acalmá-la. Pedi ao garçom que trouxesse uma garrafa d’água e esperei
alguns minutos até que ela se refizesse.
- Não sabia o que aconteceria se dissesse a ele da gravidez. Não podia! – Juliana
emendou, como se quisesse se justificar.
- Mas, então, o que você fez?
- Tomei um remédio. Não sei bem o que era. Ele nunca soube. Ninguém nunca
soube. Você é o primeiro. Foi terrível. Me sentia péssima, fiquei semanas doente, e até
hoje, quando lembro, minha cabeça...
Juliana interrompeu, me olhando com profunda consternação. Eu não conseguia
reagir. Sentia os braços dormentes. A cada nova frase, me lembrava daquela menina que
conheci, dos sorrisos matinais, e quase que chorava por dentro.
- E sua mãe? – resolvi perguntar, depois de alguns instantes calado, pensando em
tudo aquilo que eu acabava de ouvir.
- Ah, mamãe, depois da morte de papai nunca mais foi a mesma. Entrou numa
grave crise depressiva. Largou o serviço tão logo nos mudamos para São Paulo.
Vivíamos da pensão dele. Era um bom dinheiro, dava tranquilamente para nós duas.
Mas sabe aquele brilho, aquela energia, você se lembra, não? Pois então, aquilo tinha
ido embora. Quando me casei, acho que as coisas pioraram para ela; a solidão, entende?
Já não podia contar com mamãe.
Ficamos alguns instantes em silêncio. Juliana terminava a água, segurando o
copo com as mãos trêmulas, enquanto eu voltava os olhos para baixo, em direção à
9

mesa, tentando medir o tamanho daquela situação. Temeroso de detalhes ainda mais
pesados, decidi mudar um pouco o rumo da conversa.
- E por que veio até mim? Quer dizer, como soube que eu era advogado?
- Um dia, lá em São Paulo, estava no supermercado e encontrei-me com o João,
lembra-se, aquele nosso antigo vizinho, que morava na frente da minha casa?
- Lembro sim. De vez em quando, ainda o vejo. Não mudou nada! – disse
esboçando um leve sorriso, como que para tentar quebrar um pouco a gravidade daquele
diálogo.
- Pois então, ele estava na cidade, não me lembro por que, e me reconheceu!
Conversamos por um bom tempo. E conversa vai, conversa vem, ele me disse de você.
Isso tem uns dois anos já. Desde esse dia, penso em vir aqui. Você deve entender,
precisava de um advogado de confiança, e tinha medo de ir atrás de algum que fosse
amigo do Mário. Ele conhece alguns, e eu não queria arriscar.
- Sim, sim, entendo. Mas, por que veio agora? Quer dizer...
- Há um mês – Juliana interrompeu-me como se tivesse pressa em acabar de
contar. – estava sozinha fazendo compras para casa no shopping que fica perto de onde
moro, quando encontrei um amigo dos tempos de faculdade. Tinha começado a chover,
eu tinha ido a pé, e esse meu amigo insistiu em me dar uma carona. Fiquei meio
receosa, como você pode imaginar, mas aceitei. A chuva estava forte, ia me molhar
inteira, e molhar as compras... Bem, quando chegamos em casa, meu marido também
retornava do serviço e nos viu no carro, conversando. Eu, apesar de tudo, nunca o traí,
te juro, mas aquilo para ele era... ele pensou mil coisas! Foi a pior noite da minha vida,
prefiro nem me lembrar dos detalhes! Ele dormiu na sala, na frente da TV, enquanto eu
mal tinha forças para sair da cama. No dia seguinte, quando veio almoçar, não nos
falamos. Eu estava com a cara toda machucada, o corpo cheio de hematomas, imagine.
Fiquei quieta, no quarto. Quando ele entrou em casa, porém, vi pela fresta da porta de
nosso quarto que ele tinha um pacote e percebi que tinha guardado num quarto que fica
nos fundos. Tão logo ele saiu, fui atrás e abri o pacote: era uma arma! Fiquei
desesperada. Minhas pernas tremiam, comecei a chorar de soluços, como na noite
anterior. Não tinha o que fazer, resolvi fugir. Peguei todo o dinheiro que tinha, entrei
num ônibus e comecei a perambular de cidade em cidade, para despistá-lo. Sei que ele
foi atrás de mim, na casa da minha mãe. Falei com ela depois de alguns dias, ela disse
que ele estava furioso, fez ameaças. Eu expliquei os últimos acontecimentos, apenas
estes, não quis contar tudo. E falei de você, ela também me incentivou a procurá-lo.
10

Toda aquela história tinha me abalado como nunca antes algum caso tinha
conseguido. Ainda era difícil de acreditar. Mas, como bom profissional, tentei
demonstrar o mínimo de emoção possível. Precisava transmitir-lhe força, confiança.
Quando olhei no relógio, já eram sete e meia, e até para me refazer um pouco, pedi a
Juliana que fôssemos embora e nos encontrássemos no dia seguinte, ali mesmo, quando
lhe passaria os procedimentos, a tramitação do processo etc. Levei-a até o hotel em que
tinha se hospedado e fui para casa. Tinha desistido de me encontrar com os amigos.
Liguei para um deles, disse que tinha passado mal, aquele tipo de desculpa que a gente
sempre dá quando desiste de um encontro. Vi o jogo em casa. Ou melhor, liguei a TV.
Não conseguia me concentrar. A história de Juliana não me saía da mente. Durante a
noite, pensei em tudo que deveria lhe dizer acerca da tramitação do processo. Não me
parecia um caso difícil, tirando o inconveniente de ter que me deslocar para São Paulo
com alguma frequência. O único – e grave – problema era se o marido pusesse
empecilhos além dos habituais nestes casos, o que, convenhamos, era quase certo. O
fato é que havia um sério risco, mas eu estava disposto a corrê-lo. No fundo, claro, além
do dever como cidadão e profissional de libertá-la daquela trágica vida – se é que se
pode chamar aquilo de vida – não posso negar que havia uma motivação a mais em
conseguir arrumar as coisas para aquela cliente tão especial. Resolvi que dedicaria
maior atenção ao caso.
Encontramo-nos no dia seguinte. De algum modo, o semblante de Juliana
parecia mais leve. Parecia que ela tinha se livrado de um fardo. Também, pudera. Há
anos não tinha vida social, amigas, ou qualquer coisa parecida. Era a primeira vez que
podia expor aquele horror. Disse-lhe, então, o que faríamos. Decidimos que, ao menos
no começo, seria prudente que Juliana ficasse em São Carlos, e fosse para São Paulo
apenas nos dias das audiências. Sempre comigo, claro. Eu me encarregaria de todo o
resto.
Por incrível que pareça, o processo não foi dos mais complicados. Contra a
minha vontade, mas para atender ao pedido de Juliana, as barbaridades cometidas por
Mário a princípio não seriam mencionadas. Ela preferia tentar uma separação amigável.
Naturalmente, ainda tinha muito receio do que lhe poderia acontecer. Na primeira vez
que vi Mário, tive vontade de esganá-lo. Retribuir de uma só vez toda a dor que tinha
causado à esposa. Mas, por decoro, tive que contentar-me com lançar olhares de ódio
em sua direção. Juliana, na maior parte do tempo, não o olhava. Devo admitir, contudo,
que Mário era um homem bonito: estatura mediana, mas com um porte físico invejável,
11

cabelos castanhos claros e lisos, caindo levemente sobre a testa, olhos azuis. Logo se
notava ser de família rica, ou quase. Apesar de ter oferecido alguma resistência no
começo, o que é bastante comum, Mário parecia mais resignado no decorrer do
processo. Tanto eu não entendia o porquê de seu comportamento com Juliana, como não
compreendia sua aparente serenidade agora. Talvez fosse medo de ela contar. Mas o
fato é que quem o via, jamais poderia imaginar...
Observei que ele também pouco olhava para Juliana, mas nas vezes em que o
fazia, demonstrava neutralidade, frieza. E nenhum sinal de arrependimento. Parecia que
estavam se separando por conta de alguma banalidade. De minha parte, não obstante, eu
mantinha os dois pés atrás. Imaginava se aquilo não seria uma tática sua. Pelo sim, pelo
não, aconselhei Juliana a se estabelecer em São Carlos por todo o tempo do processo.
Seria mais seguro. Ofereci meu apartamento que, embora pequeno, era suficiente para
duas pessoas. Até três, caso ela quisesse trazer a mãe. Ela não aceitou. Durante toda a
tramitação do caso, Juliana ficou num hotel relativamente barato, conquanto fosse bem
localizado, razoavelmente próximo ao meu escritório. Era com parte da pensão materna,
enviada religiosamente todo dia cinco, que Juliana conseguia pagar suas despesas.
Juliana passava com frequência no meu escritório, mesmo sabendo que não
havia novidades no seu processo. Por vezes, dava a entender, o que é bastante
compreensível, que sentia falta de alguém com quem conversar. Saímos juntos alguns
finais de semana. Nada de mais. Na maior parte dos dias, ela ainda preferia ficar no
hotel. Parecia que o medo de sair, de se divertir não tinha acabado. Ou melhor: tinha
perdido a noção de como fazê-lo. Ser feliz ainda era um princípio estranho ao seu
mundo. Nesses meses, nossa amizade cresceu. Quer dizer, amizade por parte dela. A
cada dia, eu me apaixonava mais. Sonhava casar-me com ela, ser o oposto de Mário.
Cuidar dela da melhor maneira que um homem poderia fazer. Mas isso eu não podia
dizer. Não ainda.
Tudo se passou em oito meses. Quando se acordou a partilha dos bens, a casa foi
posta à venda. O preço combinado era baixo, posto que a casa ficasse numa região
ótima em São Paulo, e não foi difícil achar comprador. Juliana estava finalmente livre.
De longe, era possível notar todo o seu alívio quando o processo foi concluído. O
pesadelo havia acabado, ela podia voltar a sorrir, sem alarme. Podia ser feliz. De minha
parte, sentia-me realizado por tê-la livrado de tamanho horror.
- Realmente, não sei como te agradecer – disse-me assim que chagamos ao hotel
em que estava hospedada em São Carlos.
12

- Nem precisa. Não fiz nada mais do que minha obrigação. Mas, e você, o que
vai fazer agora?
- Vou ficar no hotel mais alguns dias. Penso em procurar um lugar para morar
aqui mesmo em São Carlos. Ir atrás de emprego, essas coisas.
Quando ela disse isso, abri imediatamente um sorriso de orelha a orelha.
- Eu posso te ajudar, conheço bastante gente.
- Não precisa – apressou-se em dizer. – você já fez muito por mim. Serei
eternamente grata.
Fiquei corado com essas palavras. Dirigíamo-nos para o saguão do hotel. Havia
um pequeno jardim de inverno, que dava para a rua. A noite nos envolvia
esplendorosamente. Pensava em dizer algo, em me abrir, confessar o que sentia, o que
sempre senti. Não deu tempo. Juliana enlaçou-me e, antes que eu esboçasse qualquer
reação, deu-me um longo e caloroso beijo. Pela primeira vez, tive a sensação de que o
tempo havia parado. Mais de vinte anos depois daquele dia, daquela despedida... nunca
havia beijado alguém daquela forma, com tamanha paixão. Mas, tão logo nos afastamos,
Juliana pôs-se a chorar timidamente.
- Por que chora? – perguntei tão logo aquele momento sublime acabou.
- Nada não. É que há tempos isso não me acontecia, sabe, beijar alguém, assim –
disse enxugando as lágrimas com as mãos.
Eu estava em êxtase. Minhas mãos tremiam, e meu coração batia tão rápido que,
por um momento, pensei estar à beira de um ataque! Queria que aquele momento não
terminasse nunca mais. Olhamo-nos com uma indescritível cumplicidade. Eu me sentia
o dono do mundo. Como já fosse tarde, porém, e cansada da viagem, Juliana pediu para
subir ao quarto, para poder descansar. Combinamos de nos encontrar no dia seguinte, no
final da tarde, ali mesmo.
Embora tivesse muito a fazer, não consegui trabalhar no outro dia. Tinha toda a
atenção voltada para Juliana. E para aquele beijo. “Sim!”, eu pensava, era o dia de me
abrir, contar tudo o que sentia, o quanto desejava poder cuidar dela, tê-la ao meu lado.
Saí mais cedo do serviço, disse a Cláudia que também podia ir embora. Eu transbordava
felicidade e queria que todos ao meu redor a compartilhassem. Eram quatro e meia
quando cheguei ao hotel. Mas ela não estava.
- Olha, essa hóspede, ela foi embora hoje logo cedinho – disse a recepcionista,
enquanto mexia em alguns papéis no balcão.
- Não disse para onde ia? – perguntei, sentindo as pernas termerem.
13

- Não disse não, senhor. Ela só deixou um recado, para o um senhor... deixe-me
ver o nome dele aqui. Sim, Rodrigo Lopes.
Assim que eu me identifiquei, a recepcionista do hotel me entregou um pequeno
envelope todo branco, lacrado. Coloquei-o no bolso, e voltei para casa apressado, a fim
de abri-lo o quanto antes e descobrir o que tinha acontecido. Sentia meu mundo
novamente desmoronando, e eu junto com ele.
Abri o envelope assim que pus o primeiro pé dentro de casa. Dentro, havia uma
carta manuscrita, com alguns borrões na caligrafia que indicavam o efeito de lágrimas
caídas sobre o papel.

“Caro Rodrigo, não tenho palavras para agradecer o que você fez por
mim. Jamais me esquecerei. Sei também que me ama, como talvez nunca
ninguém tenha me amado. Percebo nos seus olhos, desde o início. E, por
isso mesmo, não poderia arriscar nossos sentimentos. Embora livre, sigo
estilhaçada por dentro. Minha vida foi marcada para sempre. Não sei se
um dia me recuperarei por completo. Espero ter forças para isso. Mas,
agora, devo partir. Tentar esquecer de tudo. Tentar começar uma nova
vida, o mais longe possível de tudo o que me faça recordar meus anos de
tormento e dor. Fique com aquele beijo, como última imagem minha, e
como prova de minha eterna gratidão. Espero que seja feliz. E lembre-se
de que nunca me esquecerei de você. Nunca!
Com amor,
Juliana”.

Juliana havia partido. Ia buscar a vida e a esperança de que tinha sido privada
durante o exílio no inferno mais cruel de que se tem notícia: aquele criado por mãos
humanas. Enquanto não conseguia conter a emoção, um sentimento estranho, inédito,
tomou conta de mim. Não era tristeza. Na verdade, sentia como se aquela nova
despedida já fosse prevista, embora jamais desejada. Despertava de um sonho que eu
jamais poderia conceber, tamanha a carga dramática que ele encerrava, e que terminava
de modo tão extraordinário como tinha começado. Lembrei-me, então, da primeira
despedida e, não posso negar, fiquei mais confortado. Cheguei quase a sorrir. Sim, pois
dessa vez havia o beijo. Aquele beijo. Para mim também, era como se experimentasse o
amanhecer de uma nova vida!
14

Logo após colocar a carta sobre a mesa da sala, ainda de pé, toquei minha boca
levemente com a ponta dos dedos, como se tentasse reproduzir a sensação arrebatadora
provocada pelo encontro de nossas bocas. Juliana havia partido, mas, agora, o encanto
daquele momento exultante permaneceria em mim para sempre. Eu era feliz!
Passaram-se alguns minutos, antes que eu esboçasse qualquer reação aos efeitos
do último ato daquela epopeia. Sentei-me então na sala e liguei a TV. Era quarta-feira à
noite, mas nem mesmo se quisesse eu conseguiria prestar atenção no futebol. Apenas
mirava a carta em cima da mesa, recordando-me da terna presença daqueles lábios
entrelaçados aos meus.

01/2011

S-ar putea să vă placă și