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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

FAMÍLIA E ASCENSÃO SOCIAL DE NEGROS

EM PORTO ALEGRE

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional da UFRJ, como um dos requisitos
para a obtenção do título de doutor em
Antropologia Social.

ALUNA: DAISY MACEDO DE BARCELLOS

ORIENTADORA: GIRALDA SEYFERTH

RIO DE JANEIRO, 1996


AGRADECIMENTOS

A realização deste trabalho de Doutoramento deve muito

ao Departamento de Antropologia da Universidade Federal do

Rio Grande do Sul. Fazer parte dele é a razão de ser do

esforço empreendido.

Alguns colegas de modo especial contribuíram para os

resultados alcançados. Claudia Fonseca, acompanhou meu

percurso na Antropologia. Sérgio Teixeira, responsável

primeiro pela minha chegada à área de Antropologia, merece

meu reconhecimento. Maria Noemi Brito, que dividiu comigo

um longo processo de inserção no departamento,

compartilhando experiências de ensino e de administração.

Graças a ela pude sempre encaminhar a tempo as "burocracias

acadêmicas". Aos alunos e ex-alunos-amigos a cobrança e a

esperança que sempre me transmitiram em especial Denise

Jardim (aluna-colega-amiga), Josiane e Miriam com quem

sempre dialoguei.

O programa de bolsas PICD, através da PROPESP/UFRGS

propiciou as condições materiais para meu deslocamento para

cumprir os créditos e realizar a pesquisa de campo.

Sem o auxílio de minha família teria sido difícil,

senão impossível, levar a bom termo o período de

afastamento. Minha mãe, Jessie, que continuou a fazer

minha comida e a me cuidar. Tanya, minha irmã, sempre por

2
perto auxiliando nas coisas práticas. A meu pai, Astor, que

me abriu o caminho do saber.

Betinha, amiga do sul no Rio, auxiliou-me em vários

momentos, recebendo-me como hóspede, transcrevendo

gravações, ouvindo meus desabafos. Sua amizade significou

um reforço a mais na disposição para realizar o trabalho.

Giralda Seyferth, mais que orientadora, transmitiu a

segurança necessária ao desenvolvimento das diversas etapas

do curso.

Ao PPGAS/Museu Nacional por me ter acolhido em seu

corpo discente, pela qualidade acadêmica, e pela sua

eficiência administrativa, em especial na pessoa de sua

secretária. O convívio com seus professores e alunos foi

extremamente rico.

Outras pessoas estiveram presentes ao longo do

desenvolvimento do curso compartilhando as horas livres e

propiciando apoio. Carlos, Izabel, Esdras, Fátima, Themis,

Regina, Denise P.M., são alguns dos que me auxiliaram a

carregar o tempo no Rio.

3
RESUMO

Este estudo trata de um segmento das classes médias

negras de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Analisa

trajetórias de ascensão social ponto de vista da

constituição e representação da memória familiar, da

composição da família, dos arranjos domésticos e chefia

familiar. Aborda o problema da identidade tendo como

referência o pertencimento de classe e étnico-racial,

considerando além das redes sociais familiares, os espaços

de sociabilidade onde ela se atualiza. Problematiza as

definições de família negra, classes médias, raça e

etnicidade através de uma perspectiva relacional, buscando

perceber os processos de identificação internos do segmento

negro frente aos estereótipos que lhes são atribuídos

externamente.

4
ABSTRACT

The present study concerns a group of middle-class blacks

in Porto Alegre, Brazil. We analyze the trajectories of the

upwardly mobile from the point of view of the constitution

and their social representations of family memory, family

composition, domestic organization and family leadership.

We approach the problem of social identity based on their

class, ethnic and racial belonging, considering both

family-social networks and places of sociability. We

discuss the definitions of black family, middle classes,

race and ethnicity through a relational perspective in

order to comprehend the processes of inner group

identification facing imputed stereotypes.

5
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................

.... 1

1. A QUESTÃO RACIAL BRASILEIRA. O CASO DO RIO GRANDE DO

SUL... 34

1.1 O Negro no Rio Grande do Sul:Perfil Sócio-econômico

Demográfico............................................ 68

2. REFERENCIAL

TEÓRICO........................................ 84

2.1. Negros e Brancos: Um Contexto

Relacional.............. 84

2.2. Classe Social e Posição

Social....................... 102

2.3. Família Negra: Uma Discussão

Necessária.............. 114

3. FAMÍLIA: REPRESENTAÇÃO E LAÇOS

FAMILIARES................. 125

3.1. Reelaborando o Passado

Familiar...................... 127

6
3.2. Família: Fidelidade, Honestidade e

Trabalho.......... 149

3.3. O Universo

Familiar.................................. 156

3.4. O

Casamento.......................................... 179

3.5. Arranjos Domésticos e Família. A Questão da Chefia

Familiar............................................. 192

4. FAMÍLIAS NEGRAS NAS CAMADAS MÉDIAS: ASPIRAÇÕES E

LIMITES.. 206

4.1. Pertencimento de

Classe.............................. 207

4.2. Mudar é

Preciso...................................... 238

4.3. Uma Trajetória

Clássica.............................. 245

4.4. O Gosto da

Festa..................................... 260

4.5. Ser Negro nas Classes

Médias......................... 286

CONCLUSÃO..................................................
.. 317

BIBLIOGRAFIA...............................................
.. 328

7
“A minha mãe, ela teve convivência,
ela foi criada por uma tia que era
muito bem de vida. É aquela
coisa: Pegar uma sobrinha, um
parente, para fazer de empregada”
(Silvia,30 anos)

8
INTRODUÇÃO

Este estudo trata de famílias negras de camadas médias

em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, examinando suas

características e processo de constituição através da

análise de trajetórias de ascensão social.

Toma como pressuposto a ideologia racial dominante na

sociedade brasileira. Parte da crença na democracia

racial que no caso brasileiro aposta na miscigenação como

elemento decisivo na integração do negro na sociedade sendo

um de seus emblemas.

O fato da sociedade brasileira possuir a democracia

racial como ideal afirmado e desejado, conduziu ao

encobrimento da realidade das relações entre brancos e

negros. O sentido discriminador e indiretamente segregador

que essas relações apresentam tendeu a ficar encoberto pelo

discurso da ideologia dominante, dada a dualidade do padrão

que ordena os contatos interraciais.

9
Este discurso, de um lado afirma a igualdade e

investe na negação do racismo (muito embora existam leis

para a proteção de discriminados); de outro mantém a

continuidade de profundas desigualdades sociais e

econômicas só explicáveis através da discriminação e do

preconceito, cuja conseqüência mais imediata é a segregação

social.

O Brasil é uma sociedade multirracial e multiétnica.

Possui um código de incorporação individual, e os

instrumentos legais de proteção à discriminação estão aptos

a atuar também apenas no plano individual.

A língua nacional oficial e, atualmente com mais

flexibilidade, uma religião oficial, constituíram o decreto

homogeneizador das diferenças e respaldaram o desejo de

construir uma identidade nacional passando por sobre as

especificidades e investindo na assimilação.

O Rio Grande do Sul também é palco desses processos.

Este estado apresenta um ideário de modo especial concebido

como branco, tanto em decorrência de sua formação histórica

que, baseada numa atividade econômica periférica aos

processos hegemônicos nacionais, absorveu menos

intensivamente a mão-de-obra escrava e por um período

menor, quanto do engrossamento de seu contingente branco

mediante a incorporação do elemento europeu através da

colonização alemã e italiana principalmente. A

participação do colonato (como forma de ocupação do

território) na formação do estado propiciou a constituição

10
de uma camada social intermediária branca entre os grandes

proprietários e os escravos.1

A partir dessa realidade o sul do país apresentou

algumas especificidades frente a outras regiões; essas

particularidades também ocorreram no plano das relações

sociais estabelecidas entre os negros e os brancos, já que

a única mão-de-obra disponível não era a dos negros (livres

ou cativos), pois sendo os imigrantes fundamentalmente

agricultores, preenchiam as necessidades de produção de

alimentos, além de participarem como artífices e outras

formas de trabalho.

Não se minimiza de modo nenhum a contribuição e a

participação do negro na sociedade gaúcha. Pelo contrário,

consideramos que o segmento negro desse estado foi

omitido e até negado pela historiografia riograndense

produzida no início do século. O que desejamos com essas

considerações é marcar o fato da diversidade étnica do Rio

Grande do Sul e as suas conseqüências sobre as formas de

incorporação da força de trabalho negra e imigrante na

sociedade gaúcha.

Como tema central de trabalho escolhemos por objeto o

negro na cidade de Porto Alegre na sua atualidade.

A escolha de Porto Alegre como espaço se deve tanto à

força da presença do negro nessa cidade, quanto ao fato de

ser um município que historicamente absorveu esse grupo de

modo privilegiado. Atualmente Porto Alegre contém 16,7% do

1
Num primeiro momento indígenas e após predominantemente
negros africanos e crioulos.

11
total de pretos e pardos do estado. Limitando a informação

aos pretos, esse percentual sobe para 22,7%.2

Acrescente-se a isso o fato de Porto Alegre ter sido,

dada a sua condição de capital e por sua industrialização,

local de destino de fluxos migratórios ao longo de muitas

décadas.3 Esses processos atraíram também negros migrantes

oriundos de regiões do estado.

Porto Alegre contém 13,8% da população total do

estado. Destes, 7,1% são pretos e 8,25% pardos4. Possui

portanto, uma maior concentração da população de cor do que

a média do estado (4% e 8% respectivamente), especialmente

do grupo preto.

No Rio Grande do Sul a concentração da população preta

e parda é mais concentrada no meio urbano. O meio rural

gaúcho é significativamente mais branco do que outras

regiões do país.5

Considerando as peculiaridades do comportamento

demográfico deste estado em relação ao Brasil,

desenvolvemos algumas reflexões sobre isto no capítulo 1,

pois pensamos que sua compreensão contribui para situar a

questão da ascensão social do negro cuja trajetória tomamos

com objeto de estudo.

Em Porto Alegre há dois redutos primordiais onde os

negros eram a maioria: a "Colônia Africana" (atuais

2
IBGE, Censo demográfico, 1991, n. 24. Características
gerais da população e instrução.
3
Na última década Porto Alegre parece ter perdido o lugar
de centro privilegiado de atração de migrantes, além de
apresentar uma tendência de estabilização da população
mediante a periferização de parte de seus habitantes. Sobre
isso ver BARCELLOS, 1995.
4
IBGE, Censo Demográfico 1991, tabela 24.
5
Sobre isso ver Hasenbalg, 1988)

12
bairros Bom Fim e Rio Branco, típicos de classes médias),

área da cidade onde residiam famílias negras livres ainda

no período escravista e que serviu também como local de

refúgio para negros que fugiam; e o Arraial da Baronesa (ou

como era e ainda é conhecido o "areal da Baronesa" ou ainda

"Ilhota") numa área que correspondia à chácara da Baronesa

do Gravataí, que após um incêndio em sua casa, loteou e

vendeu os terrenos.6

As áreas da cidade antigamente ocupadas pelos negros

até hoje são percebidas e identificadas como territórios

negros, havendo ainda remanescentes dessas ocupações

especialmente no "areal" que guarda a marca de ser o lugar

onde se originou o carnaval popular de Porto Alegre.7

Um outro reduto negro era conhecido. A Bacia Africana,

hoje bairro Mont'Serrat (de classe alta) que também guarda

marcas dessa antiga ocupação - casas de Nação e chalés de

madeira ainda ocupados por negros.

Posteriormente a Vila Jardim e a Chácara das Pedras

foram áreas negras em Porto Alegre (bairros que se

localizam nos altos de Petrópolis, zona oeste da cidade,

contém classes médias e baixas e ainda se encontram em

fase de renovação) - e ainda o são em grande medida, embora

sejam mistos como o são hoje a maioria dos bairros da

cidade.8

6
Sobre isso ver BITTENCOURT, 1995 e SILVA, 1993.
7
Esses redutos eram uma espécie de "continuação da
senzala" (SILVA, 1993).
8
Não há um bairro exclusivamente negro em Porto Alegre,
mas há certa preferência na localização das suas
residências na Cidade Baixa, no Menino Deus, Restinga (este
um bairro popular para onde foram deslocados os moradores
da antiga Ilhota) e em qualquer outro segundo a seleção
efetuada segundo a disponibilidade de recursos financeiros.

13
Em 1888 em Porto Alegre, havia em torno de 34 817

habitantes. Destes, 31% eram ex-escravos sendo 43,1% pretos

e 56,9% pardos (PESAVENTO, 1989). Entre 1888 e 1910

verificou-se uma redução relativa da participação de negros

na cidade (da mesma forma que no estado como um todo), em

decorrência da ocupação do território através da

colonização européia.

Segundo Sandra Pesavento (PESAVENTO,1989) o

crescimento de Porto Alegre naquele período, deve ser

atribuído também a fluxos internos de certo modo mais

relacionados ao crescimento do setor terciário decorrente

da economia urbano-industrial do que do "êxodo rural dos

despossuídos no sentido campo-cidade" (PESAVENTO, 1989). A

busca da cidade estaria relacionada à busca da melhoria das

condições de vida.

De acordo ainda com esta autora, a Porto Alegre do

início do século parecia ser, do ponto de vista de seus

trabalhadores, "uma verdadeira Babel". As agremiações

operárias necessitavam se organizar por idiomas, caso

contrário precisariam de intérpretes.9

Os negros não são identificados nos registros de

trabalhadores. Eles estão contidos na categoria

"brasileiros". Apenas a iconografia da época permite

visualizar o fato da presença negra nas fábricas. Havia

elementos negros e mulatos entre os operários em fábricas

9
Pesavento recolheu a seguinte passagem de um jornal de
1895: "Preferível seria que os operários se reunissem em
clubes conforme o idioma que falam, isto é, os brasileiros
e os portugueses em um clube brasileiro, e os alemães e os
austríacos em outro alemão, e assim os italianos."
(PESAVENTO, 1989:73)

14
de fumo e café (Fabricante Tertuliano Borges), de vestuário

(Pabst), mulheres negras trabalhavam na indústria moveleira

como lustradoras e homens negros no envergamento (Gerdau).

Operários negros trabalhavam ainda em cervejarias, na

Viação Férrea e entre os operários de olarias (PESAVENTO,

1989).

As áreas de negros e pobres em Porto Alegre eram

relacionadas na imprensa da época como áreas de desordem. O

"Campo da Redenção" (hoje Parque Farroupilha localizado no

bairro Bom Fim), as ruas do Arroio e da Margem na Cidade

Baixa, o arraial da Baronesa, a Santana (antigamente

conhecida como a "rua dos pretos forros"), a Colônia

Africana, eram citadas freqüentemente nas crônicas

policiais. Os protagonistas dos distúrbios eram

principalmente as "pessoas de cor" referidas como

agressores, apesar dos jornais não-oficiais (especialmente

os socialistas) os incluírem também como vítimas. Além dos

distúrbios e prostituição, a mendicância também é associada

à gente de cor.10

Os negros do Rio Grande do Sul estiveram presentes de

modo muito significativo nas regiões de Pelotas, Rio Grande

(esta região além de ser parte do complexo do charque é

portuária), Santa Maria, região missioneira em geral (Rio

Pardo), Cruz Alta, Cachoeira do Sul, Bagé, Livramento,

Alegrete, Cacequi, Quaraí e demais regiões fronteiriças ao

Uruguai e Argentina (antigas zonas de charqueadas e de

criação de gado) além dos campos de cima da serra (as

"vacarias"). Tanto as fazendas quanto as vilas e cidades

10
Sobre isso ver PESAVENTO, 1989:75-80.

15
absorviam negros à força de trabalho (não só como

empregados mas como pequenos agricultores articulados a

elas).

A localização dos negros estava naturalmente associada

às atividades econômicas e os principais redutos negros do

estado são os antigos polos econômicos do sul do Brasil. A

charqueada é a atividade que mais aglutinou negros no

estado. Outra forma de se localizar redutos negros mais

remotos são os quilombos, cuja maioria agregava um número

muito pequeno de elementos. Não há quase registros

históricos desses agregados, mas a toponímia permite

localizar espaços onde eles se organizaram. Já vimos que os

redutos negros de Porto Alegre, como a Ilhota (areal da

baronesa) e Campo da Redenção cumpriram esta função

agregadora e protetora. O "paço dos negros" em Pelotas, a

"ilha dos ladinos" em Rio Grande são possivelmente

territórios negros livres. Os municípios de Jaguarão,

Pelotas, Santa Maria, Candelária, Viamão e Osório possuem

acidentes geográficos designados com o nome de "quilombo".

Isso para Maestri é significativo da existência anterior

desse fenômeno naquelas localidades. (MAESTRI, 1984)

A população negra localizou-se ao longo das vias

férreas, setor esse que incorporou significativamente como

mão-de-obra o contingente negro do estado. As milícias

estaduais, das quais deriva a Brigada Militar (corporação

policial-militar do estado) constituem também uma instância

de absorção dos negros, assim como o serviço público de

modo geral.

16
Delimitamos como espaço da pesquisa a cidade de Porto

Alegre, por considerá-la representativa da realidade do

negro no meio urbano do estado.

A escolha de um segmento das classes médias negras se

deveu a fato de não haver estudos sobre esse grupo no Rio

Grande do Sul atual, além de serem poucos os trabalhos

publicados sobre o tema no Brasil de modo geral.11

Os estudos sobre grupos populares são mais abundantes

(e fecundos). Aí os trabalhos de Claudia Fonseca em Porto

Alegre (FONSECA, 1986) e Klaas Woortman sobre Salvador

(WOORTMAN, 1987) ofereceram materiais importantes para

estabelecer comparações relativizadoras para os nossos

dados.

Sobre família nas camadas médias urbanas, destacamos o

trabalho de Gilberto Velho cuja contribuição nesse campo de

estudo é referência básica (VELHO, 1981). Apesar de não

contemplar o recorte racial que optamos por realizar, não

há como negar que a opção por camadas médias inspira-se em

grande parte no reconhecimento da importância de suas

contribuições para produzir uma reflexão sobre as famílias

negras urbanas que elegemos como objeto de estudo.

Destacamos também, para ascensão social de negros os

trabalhos clássicos de Thales de Azevedo para a Bahia

(AZEVEDO, 1955) e Florestan Fernandes sobre São Paulo

(FERNANDES, 1965), embora sobre um período anterior.

11
Os estudos de SOUZA, 1990 no Rio de Janeiro e de BARBOSA,
1983 sobre negros das classes médias realizado em Campinas
são os que de modo mais direto abordam o tema, embora de um
modo distinto do que realizamos.

17
Tomamos como hipótese a existência de especificidades

nas classes médias negras derivadas das características da

forma de sua inserção na sociedade brasileira.12

Consideramos que em termos históricos, pouco mais de um

século é um tempo escasso para a sociedade desfazer-se de

valores construídos ao longo de três.

Recusamos entretanto buscar "sobrevivências", pois

entendemos que os processos culturais são dinâmicos e que

os valores persistem sempre que as condições objetivas de

sua atualização sejam dadas. Desse modo, as desigualdades

raciais no Brasil são produto da discriminação do negro ao

mesmo tempo que a reproduzem.

A opção por trajetórias de ascensão social está

relacionada à necessidade de conhecer os processos sociais

e culturais envolvidos na mudança de status do ponto de

vista da identidade e da família e do modo como são

representadas.

Tendo como pressuposto que a desigualdade racial é um

fato na sociedade brasileira e sulista, construímos como

questão a busca do entendimento do jogo que se realiza nos

processos de transposição das barreiras de classe e de

raça, vendo aí um duplo movimento que aciona mecanismos

culturais e sociais importantes de serem desvendados.

Assentamos a investigação em dados primários obtidos

mediante entrevistas aplicadas a pessoas identificadas como

12
A inserção do negro na sociedade brasileira, numa
perspectiva histórica, guarda as marcas do sistema
escravista e da sua desagregação, bem como contém as bases
históricas da construção das identidades que se forjaram
articuladas contrastivamente a outras, negras, pardas e
brancas, cuja referência é o sistema multirracial e
multiétnico que se constituiu. (CARNEIRO DA CUNHA, 1985)

18
parte daquele segmento, além de utilizarmos alguns dados

secundários para recobrir a realidade de modo mais amplo.

Tomar a família como preocupação na reconstrução dos

processos vividos ao longo das trajetórias de ascensão

investigadas se deveu à estreita relação que se estabelece

entre esses dois focos do ponto de vista do grupo estudado.

Observações não-sistemáticas realizadas quando da

construção do objeto de estudo demonstraram que a família

surge como questão de modo espontâneo em relatos sobre

ascensão, da mesma forma que falar na família para quem

sofreu um processo de ascensão recente remetia à

trajetória de ascensão a partir de parentes cujo papel

tivesse sido destacado no salto que conduziu à "melhoria

de vida" e à inserção nas classes médias urbanas. Sem

dúvida a preocupação com o tema da família negra se

relaciona à tradição de estudos sobre o negro, tanto na

escravidão quanto após esse período, especialmente nas ex-

colônias escravistas, sociedades essas multiétnicas e

multirraciais por excelência.

Desse modo, a pesquisa buscou abranger a constituição

do segmento negro nas classes médias de Porto Alegre do

ponto de vista da família, do espaço social que construiu

para si, de suas expectativas profissionais, projeto de

ascensão e estratégias de preservação das posições

conquistadas, dos laços sociais e afetivos que estabelecem

entre si e ainda como pensam e praticam suas relações com o

segmento branco. Isso porque consideramos que através

desses contextos estaremos tratando dos mecanismos de

atualização das fronteiras grupais de base racial e étnica

19
aqui pensadas como um processo que se redefine

continuamente a medida em que se reproduzem as condições de


13
afirmação de uma identidade grupal (societária) .

Os estudos sobre famílias negras apontam esta

instância de organização social como um dos aspectos sobre

os quais incidiria a especificidade do contingente negro

enquanto grupo culturalmente diferenciado, em especial a

questão da matrifocalidade14. A verificação dessa

especificidade vai ser buscada através da investigação de

famílias, de lares e, através de trajetórias, o modo com

que ela interviu no processo de mobilidade social e a ele

se adequou ou se ela é produto de contingências relativas

às trajetórias em si mesmas, deixando de configurar tanto

um modelo próprio de um grupo étnico quanto de uma classe

social em um centro urbano.

Consideramos como referência a tendência a nucleação

da família nas sociedades modernas, tendência essa já

observada nas famílias negras norte-americanos estudadas

por Franklin Frazier nos Estados Unidos (FRAZIER,1973), o

estudo clássico de Elisabeth Bott (BOTT, 1976) para classes

trabalhadoras inglesas, além dos estudos sobre famílias das

camadas médias urbanas brasileiras já referidos.15

Os espaços de sociabilidade que os segmentos negros

portalegrenses construíram para si, impuseram-se como

objeto de observação. Isso porque eles apontam para a

13
No sentido de Weber.(WEBER, 1944;V.II)
14
Tal como é definida por SMITH, 1973
15
Além dos trabalhos de Gilberto Velho, merece referência o
de Tania Dauster (DAUSTER, 1987).

20
hipótese da existência de uma segregação racial nas classes

médias da cidade.

Existem pelo menos dois clubes sociais negros, festas

organizadas por e para negros e mulatos das classes médias,

bares e boates aos quais comparecem quase exclusivamente

negros dessas classes. Esse é um fato irrecusável e que foi

incorporado de modo privilegiado ao conjunto de questões

abordadas como significativas da constituição das camadas

médias negras de Porto Alegre.16

Nosso estudo tem um caráter exploratório, uma vez que

não dispusemos de trabalhos compostos pelos aspectos que

buscamos investigar - ascensão social, classe, raça e

família. O reconhecimento desses planos de constituição da

realidade que pesquisamos ampliou o seu nível de

complexidade.

Na ausência de estudos que contemplassem o nosso

recorte e que com isso nos oferecessem bases para

referenciar nossas hipóteses, estas foram construídas

mediante aproximações extraídas de um amplo campo de

estudos frutos de diversas tradições.

Recorremos à literatura sobre família negra nos

Estados Unidos, em especial Frazier (FRAZIER, 1975 E 1973)

e Gutman (GUTMAN, 1976); sobre família e parentesco na

Guiana Inglesa, de modo especial os trabalhos de Smith

(SMITH, 1973 e 1976) dado o grande volume de trabalhos

realizados sobre esse campo; sobre família em grupos

populares, privilegiamos aqueles de Fonseca (FONSECA, 1986

16
Consideramos para fins de análise aqueles lugares que
frequentamos no período de realização das entrevistas.

21
e 1988) Woortmann (WORTMANN, 1986), Eunice Durhan (DURHAN,

1973 e 1983) entre outros; o estudo de Elisabeth Bott

(BOTT, 1976) sobre família e redes sociais nas classes

trabalhadoras inglesas.

Optamos por uma abordagem panorâmica dos resultados da

pesquisa. Esta opção limitou o aprofundamento da reflexão

sobre questões que consideramos fundamentais, tais como o

delineamento mais preciso das identidades negras nas

classes médias da cidade. Recortamos, através dos espaços

de sociabilidade alguns padrões (esse aspecto é trabalhado

no capítulo IV, item 4). Porém a questão das identidades em

grupos mais atomizados e que estavam fora daquele circuito,

no nosso entendimento, não foi trabalhada

satisfatoriamente.

Após explicitarmos os procedimentos adotados na

realização da coleta de dados ( apresentados na

Introdução), desenvolvemos no capítulo 1 uma reflexão sobre

a questão racial brasileira e o caso específico do estado

do Rio Grande do Sul numa perspectiva histórica. Buscamos

com isso circunscrever a constituição da ideologia racial

que preside as relações entre negros e brancos em nossa

sociedade, além de configurar o modo como o estado se

identifica com o resto do país e dele se diferencia.

Procuramos mostrar que o negro e o significado que ele

assume no imaginário nacional e local está no centro das

vias de diferenciação construídas pelo sul.

No capítulo 2 apresentamos uma abordagem teórica sobre

as principais questões envolvidas pelo estudo que

realizamos. Relações raciais e étnicas, classe social e

22
família são discutidas e problematizadas. Procuramos

mostrar nossa opção para o tratamento analítico do material

empírico.

O capítulo 3 analisa a memória familiar do grupo

pesquisado e através dela as bases constitutivas das

representações sobre família que o grupo elaborou, além de

abranger as ideologias que presidem essas construções (item

1). Reconstrui genealogias e através delas identifica o

padrão de composição da família segundo as gerações, ao

mesmo tempo que percebe as transformações verificadas ao

longo do tempo e em vista da mudança de posição social

(item 2 e retomado no item 5).

Fornece uma visão sincrônica dos arranjos familiares,

privilegiando os aspectos de inclusão e exclusão de

parentes no conjunto definido como família. Através disso

discute a noção de família bem como aborda os fundamentos

do parentesco para o grupo.

Dedicamos um sub-capítulo para abordar o casamento e

em especial o casamento misto. Através dele trabalhamos os

princípios de solidariedade, a permeabilidade do grupo, a

incorporação do estranho e a reação dos pais frente aos

parceiros extra-grupais de seus filhos. Procuramos também

perceber qual o papel das alianças para o processo de

ascensão social.

O item 5 discute a chefia familiar. Retoma a

historicidade da constituição da família e acompanha os

deslocamentos da chefia doméstica e familiar ao longo do

tempo e do processo de ascensão.

23
O capítulo 4 toma o pertencimento de classe como eixo.

Analisa a constituição da identidade de classe no grupo e

aborda o próprio processo de ascensão no plano das

representações (item 1). Trabalha as trajetórias de

ascensão bem como os deslocamentos espaciais realizados

nesse percurso social (item 2).

Visando fornecer elementos contrastivos às trajetórias

de ascensão que estudamos e que são assentadas

prioritariamente na educação, no item 3 tomamos a

trajetória de Deise Nunes a qual ascendeu socialmente a

partir de sua eleição sucessivamente como Rainha das

Piscinas, Miss Rio Grande do Sul e Miss Brasil.

O item 4 do capítulo 4 analisa alguns espaços de

sociabilidade das classes médias negras de Porto Alegre.

Através deles procuramos mostrar o estilo de vida, as

expectativas e símbolos que essa fração negra construi para

si, marcando ao mesmo tempo suas diferenças internas.

O item 5 analisa as experiências de relacionamento do

grupo estudado com o meio branco e o meio negro e o modo

como ele se percebe frente aos mesmos. São contempladas as

experiências de discriminação, mas a religiosidade, as

expectativas em relação aos filhos e frente ao passado

familiar, entre outros aspectos, são objeto de

interpretação.

Finalmente, na conclusão procuramos destacar os

aspectos que privilegiamos em termos teóricos analíticos e

levantamos questões que consideramos importantes para

futuros estudos

24
A estrutura que tomou o texto decorreu dos temas

privilegiados pelo grupo nas suas histórias de vida. Esses

temas foram os mais recorrentes e e pautaram a estrutura

mesma das suas narrativas, inspirarando a denominação dos

itens que compuseram os sub-capítulos da versão final da

tese. Consideramos importante ainda destacar que a

importância do tema geral de nosso estudo também se

relaciona ao vazio existente no conhecimento sobre o negro

no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre na sua atualidade.

Acreditamos haver um débito com esse segmento que está

muito longe de ser saldado, além de ser fundamental

conhece-lo para ser possível conhecer a sociedade sulista.

Tomá-lo como objeto nas classes médias permitiu vê-lo

na sua atualidade e sua historicidade, já que através de

suas histórias familiares reconstruídas, recupera-se um

pouco dos caminhos e descaminhos do negro no processo de

sua inserção no meio urbano. Junto com elas aproximamo-nos

de suas contradições, conflitos, de sua dignidade e

orgulho.

A verificação da heterogeneidade do meio negro, da sua

constituição enquanto grupo, captada mediante análise de

suas trajetórias, contribui para romper com o estereótipo

que ideologicamente lhe é atribuído.

25
A Pesquisa: Algumas Considerações

A definição de um objeto de pesquisa passa por

critérios de escolha definidos pelo investigador o qual

conta com o suporte teórico adquirido ao longo de sua

formação para o estabelecer.

Entretanto, motivações de várias ordens estão

necessariamente presentes, sejam elas pessoais, sociais,

institucionais - decorrentes da forma com que se integra na

sociedade, da posição em sua estrutura , etc. Enfim,

dependem de sua própria trajetória.

A tradição antropológica tem como objeto privilegiado

de seu campo de estudo - a cultura e sua interpretação - a

diversidade humana. Dessa forma, o antropólogo aponta suas

preocupações teóricas para grupos sociais por ele

percebidos como um "outro" a ser conhecido e desvendado. No

estudo de sociedades complexas, o terreno fértil está na

busca dos processos culturais em toda a sua dinâmica, na

tentativa de dar conta da diversidade interna a uma dada

sociedade.

26
Essa questão se faz presente então, mesmo quando o

antropólogo se dedica ao estudo de membros de sua própria

sociedade. Quanto maior é a familiaridade que se tem com um

grupo, mais difícil pode ser o caminho para formular o

objeto, em que pese a facilidade oferecida pelo

conhecimento da língua, costumes e da posse de uma base

cultural comum.

Critérios sociais, definições e classificações da

própria cultura necessitam ser levados em conta para se

atingir a indicação de uma instância grupal da sociedade.

Desse modo o processo de definição de um objeto é

também basicamente um processo cultural. Ou seja, o que a

sociedade identifica como sendo particular ou diferente em

relação a algo que é tomado como "normal" ou dominante.

Aí entra em jogo a constatação empírica da existência

de um determinado grupo cuja especificidade é buscada

através do instrumental teórico e analítico disponível

Ao elegermos como tema de estudo famílias negras das

classes médias, evidências históricas, entre outras,

serviram de base para justificar a sua pertinência como

objeto.

27
Existem aspectos da realidade que por suas

características, permitem penetrar de modo mais abrangente

nas estruturas da sociedade. O campo das relações

interraciais e da inserção do segmento negro na sociedade

brasileira constitui um deles. Isso é devido ao modo como

esse campo se relaciona com os níveis mais estruturais da

formação histórica do país e das ideologias que compõem a

sua construção como nação e como povo.

Também os problemas decorrentes do tipo de inserção do

negro na sociedade que emergem sob a forma de preconceito

aberto ou velado, discriminação e segregação, mesmo que não

institucional, nos mostram que as relações raciais na

sociedade brasileira são problemáticas.

Ao tratarmos desse tema nos colocamos diante de um

grupo que se auto-proclama e é definido socialmente como

uma unidade portadora de especificidades e nesse sentido

distinta dos demais grupos na sociedade. Esse fato nos

situou frente a um processo relacional.

A interpretação dos modos com que essa diversidade se

articulava e se relacionava, precisou levar em conta ainda

o fato de estaramos lidando com fronteiras fluidas,

demarcadas social e ideologicamente.

28
Tendo como alvo o estudo de um segmento negro de

camadas médias, situado em Porto Alegre, Rio Grande do Sul,

nos embrenhamos a um tempo na delimitação de um objeto e

num jogo de identidades.

Partimos da consciência do viés contido na sua

escolha: se há critérios objetivos nos quais respaldar a

sua construção - evidências históricas, fatos,

estatísticas, etc. -, há de qualquer forma um a priori

relacionado ao campo das próprias relações interraciais que

é o da atribuição de identidade.

Nele estão em jogo os estereótipos construídos e

conseqüentemente expectativas mútuas associadas ao

comportamento, ao estilo de vida.

Raça-cor e classe são elementos que orientaram nossa

busca por informantes, sem saber de antemão se eles se

percebiam como parte desse conjunto. Desconhecíamos se os

informantes se auto-identificavam a partir de um critério

racial (biológico) ou se o elemento cor era significativo

para eles, ou ainda que outros fatores e critérios estavam

em jogo situando-os ou não, identitariamente, no recorte

formulado. O estudo aborda um segmento reconstruído a

partir de características identificadas mediante

materiais recolhidos na realidade empírica. Esse processo,

mesmo considerando a consciência que dele possuimos, é um

processo de atribuição de identidade.

Ao utilizarmos o recorte de classe, especialmente em

se tratando do segmento negro, alguns problemas também

tiveram que ser considerados.

29
Apesar de existirem critérios objetivos para situar um

indivíduo numa determinada posição no espaço social do

ponto de vista sócio-econômico ( renda, educação,

ocupação), outros fatores afetavam as opções quanto ao

estilo de vida e aos referenciais utilizados pelo grupo

para se perceber nesse universo.

Como decorrência, a percepção que possuíam sobre sua

posição social por vezes não coincidia com aquela que lhes

atribuíamos. Tomamos como referência para a composição da

amostra, além da escolaridade e da profissão, o status

exibido a partir de itens significativos de posição social

compatível com as classes médias como automóveis, bairro de

residência e qualidade da moradia. Entretanto, sendo a

ascensão social um processo no qual o indivíduo se move a

partir de um projeto, muitas vezes eles não consideravam

haver "atingido" a ascensão ou ter "chegado lá".

No confronto de identidades, especialmente por

lidarmos com os fatores classe e cor-raça, a auto-

definição estava influenciada pela atribuição-

classificação que o informante realizava acerca de nós,

tanto do ponto de vista racial quanto de classe.

30
De modo geral éramos vistos como pertencentes ao grupo

branco. Embora o cabelo crespo constituísse uma hipótese de

ligação com o negro, julgavam muitas vezes que o cabelo era

"encrespado"17 artificialmente. Informados do caráter

"natural" do crespo, intrigavam-se e examinavam com cuidado

o seu aspecto.

Por certo o cabelo crespo constituiu uma vantagem para

nós. Entretanto, alguns achavam que o crespo do cabelo não

era "exatamente" como o deles. Ele não "nascia" crespo.

Fomos freqüentemente questionados sobre a razão da

escolha do negro como tema de estudo. Nossa identidade

racial constituiu um fator de interesse e as indagações

sobre nossa origem estavam vinculadas à relação que

estabeleciam entre ser negro e interessar-se por negros.

Concluir por nos situar no grupo branco aumentava o

interesse em desvendar e entender as razões da nossa

escolha. Nossos ancestrais foram vasculhados. Descendermos

de espanhóis da Andaluzia solucionou para muitos o nosso

interesse pelos negros. Lá estiveram os "mouros" e a

proximidade com a África justificava uma descendência negra

mesmo que remota.

17
As expressões entre aspas são termos êmicos, extraídos
das entrevistas e de contatos informais com o grupo negro
investigado.

31
Para alguns que decididamente nos situavam como

branca, a explicação para nosso envolvimento com os negros

estava em "outras vidas", ocasião em que teríamos sido

negros; outra explicação de caráter religioso também foi

utilizada: éramos enviadas por orixás para registrar a

história dos seus filhos.

Se um laço de confiança estava sendo construído

através dessas vias, no sentido de nos situarem no seu

próprio grupo e com isso poderem estar com "um dos nossos",

isso também significa que a solidariedade e a confiança

repousa principalmente no seio do próprio grupo. Para

narrarem suas histórias e de suas famílias era necessário

nos tornarem mais próximos, mais familiares.

O pertencimento grupal e ancestralidade negra

presumida, quer pela via fria da hipótese construída com

base em evidências possíveis, quer pela via da

religiosidade - esta última reconstruindo num caso um

vínculo baseado numa espécie de ancestralidade negra

"espiritual" e noutro, um vínculo fundado na nossa

incorporação por desígnio dos "santos" -, fundaram as bases

da nossa relação com a maioria daqueles com quem

aprofundamos laços.

32
O resultado dessas aproximações, além da afetividade

que se desenvolveu em certos casos, foi passarmos a ser

percebidas como uma espécie de aliada. Encontros ocasionais

no espaço público passaram a ser marcados por uma forma

especial de cumprimentar e por códigos de expressão

denotadores de "cumplicidade", além da alegria própria de

quem se conhece e tem prazer em se encontrar.

Sabe-se que no jogo de identidades há um espaço que é

flexível e permite uma certa variabilidade situacional. Do

ponto de vista racial, a fluidez do critério de

classificação pela aparência vigente no Brasil - onde a cor

ocupa um lugar importante (embora no Rio Grande do Sul ele

seja muito mais polarizado) - favoreceu a interveniência

da nossa imagem na identificação racial através da cor e

da textura dos cabelos dos indivíduos pesquisados e de

seus parentes. Estes eram por vezes clareados e às vezes

escurecidos, dependendo de como nos consideravam.

Os entrevistados ao caracterizarem seus parentes do

ponto de vista da aparência, utilizavam a nós e a si mesmos

como referência. O parente podia ser "tão branco como tu"

ou tinha uma "corzinha assim, ó, um pouco mais escura que

tu, mas mais clara do que eu". Algum objeto também podia

ser tomado como referência para situar o aspecto de pessoas

ausentes na ocasião e que necessitavam ser caracterizadas

segundo o ponto de vista do entrevistado ou por

questionamento realizado por nós.

33
O segmento negro das classes médias é uma fração que

se distingue por um atributo étnico-racial numa sociedade

que não pratica institucionalmente a segregação. Isso

tornou difícil encontrar o segmento agregado

residencialmente.

Tendo escolhido a cidade como campo de observação, a

fluidez das relações sociais própria do meio urbano, o grau

de dispersão espacial das classes médias, as diferenças

internas dentro delas, nos remeteram à busca de outras

formas de abordagem devido às dificuldades encontradas para

obter a delimitação a partir do espaço.

Os negros das classes médias, como já dissemos,

constituem uma fração que se diferencia do total por um

atributo definido como racial. Desse modo, eles se

distribuem residencialmente por vários dos bairros de

classe média. Sendo pouco expressivo em termos numéricos

sua presença não é significativamente marcada. Eleger um

bairro não propiciaria resultados positivos para

desenvolver a pesquisa, pois dificultaria ainda mais a

localização de informantes, limitando demasiadamente as

possibilidades de inclusão de pessoas à amostra.

Sendo a família um dos focos centrais do estudo,

estavámos interessados em observar como viviam. Nesse

sentido, os espaços de lazer nos quais encontraríamos um

grande número de pessoas reunidas, não seriam suficientes

pois não proporcionariam condições de observação desta

instância de organização social.

34
Além disso, o conhecimento prévio de alguns

indivíduos, identificados como parte do grupo negro

indicavam ser inadequado buscar um local específico onde

assentar a pesquisa de dados, pois ele não seria

representativo de todas as possibilidades do ser negro nas

classes médias.

Então, foi necessário utilizar estratégias de

investigação capazes de preencher a lacuna deixada pela

impossibilidade do convívio e da inserção num espaço fixo.

A dificuldade que a dispersão geográfica criou foi

resolvida pelo percurso de redes de relações sociais18, às

quais tivemos acesso a partir de quatro indivíduos que

foram tomados como ponto de partida: Rogério, um advogado

com 48 anos na ocasião, divorciado (de uma mulher branca),

pai de um menino adolescente; Ivo, professor universitário

aposentado, com pouco mais de 60 anos, casado dentro do

grupo negro, pai de três filhas, todas casadas com brancos,

sem ligação com nenhum grupo do movimento negro; Arnaldo,

um promotor público aposentado (advogando ainda em seu

próprio escritório), com um pouco mais de 70 anos, casado

dentro do grupo, pai de tres filhas (duas casadas, sendo

que uma com um branco) e um filho (também casado), membro

18
Gilberto Velho utilizou-se dessa estratégia (VELHO,1986)
para compor sua amostra. Parte das pessoas que
entrevisteisão
relacionadas entre si, mas lidei com alguns que eram mais
atomizados, ou participavam apenas de redes de parentes.

35
do Rotary Club e da Irmandade do Divino Espírito Santo; e

Geraldo, um professor de História do segundo grau, com 45

anos, militante, na ocasião ainda relacionado ao Partido

dos Trabalhadores, casado dentro do grupo, com duas filhas

adolescentes. Todos situavam-se nas classes médias e

percebiam-se como negros.

Após abordá-los, conhecê-los e entrevistá-los,

solicitávamos a indicação e recomendação para próximos

entrevistados. Cuidamos para não incluir militantes

desproporcionalmente em relação aos não militantes, assim

como não serem os militantes todos do mesmo grupo e partido

político. Também os níveis de envolvimento deles eram

distintos. Do total, quatro eram bastante engajados: dois

no PT, um no PDT, um na Associação Negra de Cultura; um com

uma aproximação com a Pastoral do Negro. Os demais, um

apenas "acompanhava" através de um parente e os restantes

não eram ativistas mas, com exeção de quatro, "sabiam por

cima" sobre pelo menos parte das organizações existentes.

A variável renda foi um operador de controle

utilizado a posteriori não constituindo critério de seleção

dos informantes e não sendo item solicitado nas

entrevistas.. Não se definiu uma faixa de renda para

efetuar eventuais expurgos e sim manifestações exteriores

da condição de vida, principalmente o bairro de residência

e hábitos de lazer. Trabalhadores manuais, mesmo que bem

remunerados, não foram considerados.

Embora conhecessem outros a quem entrevistáramos, não


faziam parte do mesmo circuito social.

36
Através desse procedimento, recolhemos, num primeiro

momento (entre fins de 1992 e ao longo de 1993) um total de

18 histórias de vida, complementadas em 1996 com mais três.

Fizeram parte do grupo entrevistado, professores

universitários (três), de segundo grau (dois) e um de

academia de ginástica, um médico, três advogados, um

arquiteto, dois sociólogos, um bancário, um comerciário,

duas donas-de-casa e um pequeno empresário, com idades

variando de 28 a 80 anos, sendo metade homens e metade

mulheres.

Optamos por não trabalhar com os modelos clássicos de

ascensão social para o meio negro, tais como esporte,

política e música. Consideramos importante conhecer o negro

de camada média cujo percurso de ascensão não estivesse já

"dado" através de mecanismo relacionados exclusivamente a

oportunidades individuais ocasionais. Entretanto tomamos

como elemento de comparação a trajetória de Deise Nunes,

Miss Brasil gaúcha sobre a qual elaboramos um estudo tendo

como fonte de dados o noticiário dos jornais de Porto

Alegre e que foi apresentado como conclusão de disciplina

ao PPGAS.19 À esse estudo, somamos as entrevistas que

realizamos com ela, as quais registraram em parte a sua

história de vida e seu universo social e familiar.

Salientamos que as pessoas entrevistadas cujas

histórias de vida nos foram confiadas tem seus nomes

preservados. Atribuímos a elas nomes criados por nós.

19
Disciplina sobre Relações étnicas ministrada pelo Prof.
João Pacheco no ano de 1992 no PPGAS, Museu Nacional.

37
Certas informações que evidenciariam sua identidade pessoal

também não são utilizadas de modo direto. Isso porque o

segmento estudado é numericamente pequeno e mais ainda nas

classes médias, o que os desvendaria de modo indesejável.

Procuramos ampliar a investigação de modo a atingir um

número maior de pessoas através de uma entrevista com

roteiro, abordando a composição da família, do universo de

parentes, solicitando deles as profissões, lugar de

nascimento, além dos dados sociais básicos.

Atingimos com esse procedimento, um total de 10

indivíduos. Procurou-se obter deles o grau de conhecimento

dos ascendentes e dos colaterais, e dados sobre a sua

trajetória de ascensão social.

Consideramos possuir informações suficientes quando o

resultado das histórias de vida, entrevistas e observações

pareciam repetir-se. O resultado obtido com as entrevistas,

do ponto de vista dos aspectos nela abordados não refutou

ou contraditou as informações obtidas mediante as

histórias de vida coletadas.

Utilizamos ainda os fichários de novos sócios de um

clube de negros da cidade ( os inscritos no último ano), o

que nos permitiu verificar a composição aproximada das

famílias através dos parentes declarados como dependentes.

As fichas com essas informações eram num total de 54.20

Esses dados construíram um perfil da família negra que se

20
As entrevistas complementares às histórias de vida foram
realizadas em 1996, foram aplicadas pelas bolsistas de
iniciação científica (PROPESQ e PROREXT/UFRGS) Mariana
Fernandes, Rita de Cássia e Carla Galinatti e pela bolsista
de aperfeiçoamento (FAPERGS) Maria Emília, todas vinculadas
a projeto de minha autoria e sob minha coordenação.

38
assemelhou ao obtido através das histórias de vida e

entrevistas realizadas.

A partir da coleta de algumas das histórias de vida

passamos buscar o convívio com o grupo em ocasiões

sociais, de trabalho, visitas de cortesia e festas.

Frequentamos dois bares e um restaurante, comparecemos a

dois bailes21, e a uma festa em um dos clubes sociais de

negros da cidade - o Floresta Aurora -, além de termos

podido participar do funeral da mãe de um dos nossos

informantes. Participamos ainda de um jantar festivo em

casa de um deles e a mais tres jantares domésticos

rotineiros.

Alguns desses eventos, pelas suas características

peculiares - o bar Kizomba, o Baile da Tereza e o Floresta

Aurora -, foram tornados focos de análise como casos

exemplares. Selecionou-se aqueles que melhor expressariam

de forma sintética, os modos de ser negro nas classes

médias em Porto Alegre e que funcionariam como

referenciais para as identidades que lá se atualizavam.

Esses espaços compunham estereótipos bastante definidos.

Algumas estatísticas oficiais (Censos Demográficos,

Pesquisa Nacional de Amostras Domiciliares) foram um

importante auxílio, permitindo um tratamento do conjunto do

segmento negro como uma totalidade, situando-o no universo

mais amplo em que se inscreve. Isso nos protegeu de

21
Baile da Tereza. Esses bailes foram muito famosos e a
eles acorriam uma grande quantidade de pessoas do grupo
negro de classe média e aspirantes a ela.

39
inferências equivocadas sobre a sua realidade material e

organizativa.

Os dados de PNAD que utilizamos são referentes a 1987,

para Rio Grande do Sul e 1989, para Região Metropolitana de

Porto Alegre.22 Consideramos desnecessário atualizar essas

informações devido a sua contemporaneidade frente ao

período mais intensivo de observação - 1992 a 1993.

Os dados gerais da população, para verificar a

participação da população preta e parda no total, foram

tomados dos censos demográficos de 1980 e 1991.

A identificação da situação sócio-econômica dos

segmentos raciais do estado vistas comparativamente através

de estatísticas, foi um meio importante para trabalhar a

questão interracial e entender as bases sobre as quais elas

estão se estabelecendo, além de fornecer um acréscimo na

compreensão da relevância do segmento social de onde o

conjunto de informantes é extraído. Não nos referimos aqui

ao peso numérico do grupo investigado e sim aos aspectos

da composição étnico-racial da sociedade, em relação à

significância da sua participação na cultura e à força de

suas manifestações.

Entretanto, apesar de considerarmos positivo o uso de

estatísticas, na pesquisa elas não possuíram um papel

definidor por si mesmo do fenômeno investigado, o qual de

modo nenhum é quantificável. Dados e números foram um

recurso de controle de alguns fatos de exceção que puderam,

a partir daí, ser analisados exatamente a partir desta

condição.

40
A familiaridade que obtivemos mediante a participação

em ocasiões sociais e o conhecimento das histórias

familiares que nos foram relatadas proporcionaram a

aproximação compreensiva da relação do negro das camadas

médias de Porto Alegre com a sua família e seu grupo, com o

branco, com a cidade. Além disso conseguimos ainda nos

aproximar de seu imaginário sobre a questão racial e sobre

o Rio Grande do Sul frente ao país.

22
PNAD, Plano Cor. IBGE

41
1. A QUESTÃO RACIAL BRASILEIRA. O CASO DO RIO GRANDE DO SUL

Estudar negros de camadas médias em Porto Alegre a

partir de trajetórias de ascensão social envolve a sua

definição a partir da cor e/ou raça enquanto atributo

social, ou seja, como emblema de identidade portador de

significado e valor, constituindo uma marca social capaz de

estabelecer os limites, as fronteiras entre negros e

brancos.

Para analisar tal temática é necessário antes de mais

nada, tratar da construção do padrão brasileiro de

relacionamento interracial, desde a sua gênese histórica

até à ideologia que dá suporte às concepções de uma

sociedade supostamente aberta e permeável, que apostou mais

na fusão que na diferença.

42
Reconhecer a desigualdade, o preconceito existente

(embora negado)23 para com os negros e as formas de

distância social estabelecidas na sociedade brasileira e

gaúcha são fatos a serem levados em conta para retratar a

as características das famílias negras envolvidas em

processos de ascensão social tal como se deram no meio

urbano de Porto Alegre, capital de um Estado cuja formação

histórica parece apresentar peculiaridades em relação ao

restante do país, especialmente quanto a seu papel

econômico e estilo de ocupação de seu território, além de

sua diversificação social e étnica (CARDOSO, 1962).

A democracia racial é crença difundida na sociedade.

Acredita-se que brancos e negros são destituídos de

preconceitos e usa-se freqüentemente a miscigenação como

argumento em sua defesa. A ausência de formas legais de

segregação e a reduzida presença de conflitos raciais

abertos ou flagrantemente violentos na história brasileira

após a abolição da escravatura, terminaram por tornar as

relações raciais brasileiras objeto de interesse, o que

gerou uma multiplicidade de estudos, muitos deles

comparativos, em especial com a sociedade norte-americana.

Oracy Nogueira é responsável por importante

contribuição nessa discussão acerca das relações raciais na

sociedade brasileira (NOGUEIRA, 1985). Vendo a democracia

racial como ideologia, compara a realidade do Brasil com os

23
Segundo Florestan Fernandes em O Negro no Mundo dos
Brancos, primeira parte, "Do ponto de vista e em termos da
posição sócio-cultural do branco, o que ganha o centro do
palco não é o preconceito de cor. Mas, uma realidade moral
reativa, que bem poderia ser designada como o preconceito
de não ter preconceito".(FERNANDES, 1972:24-25)

43
Estados Unidos e identifica as diferenças entre elas a

partir de formas de preconceito distintos que decorrem de

diferentes definições de raça socialmente construídas

nesses países.

Essas diferenças apontariam para a existência no

Brasil de um preconceito de cor que vai designar como

"preconceito de marca", ao contrário do norte-americano e

de outras regiões de colonização inglesa, que teriam um

tipo de preconceito racial baseado numa definição assentada

da descendência e que ele chamou de "preconceito de

origem".

O fato de características físicas constituírem a

"marca" que identifica o pertencimento racial de alguém,

admite a possibilidade de indivíduos descendentes de

africanos branqueados pela miscigenação, deixarem de

pertencer ao grupo negro e serem incorporados ao grupo

branco, desde que seu status social o admita. Ao contrário,

na sociedade norte-americana, a origem é o critério

definidor do pertencimento racial, independentemente da

aparência que o indivíduo possa ter. Ter um ascendente

negro o aloca no grupo negro. Um cidadão é negro sempre que

assim for considerado pelo meio onde vive.

Essas diferenças produzem conseqüências para o grupo

negro nas relações com os brancos. Em sociedades onde

prevalece o preconceito de marca a decorrência é a

"preterição", enquanto o de origem produz a "exclusão

incondicional" do grupo branco (NOGUEIRA, 1985).

Roberto da Matta se utiliza da análise do que chama

"a fábula das três raças" para refletir sobre o quadro

44
ideológico que se formou nos processos que engendraram a

"criação" do Brasil" e do "povo brasileiro". Ela teria sido

o modo de elaborar o "racismo à brasileira" e ordenaria, no

campo cultural, os elementos de diferenciação social

hierárquica à partir de um triângulo racial: brancos,

negros e índios. A idéia de "raças formadoras" do país

contém e engloba características culturais naturalizadas

mediante a elaboração de uma totalidade engendrada pelas

contribuições dos elementos raciais (com seus atributos

"intrínsecos") dela constitutivos. Essa crença está na base

do pensamento social brasileiro, fazendo parte da ideologia

racial que se formou (MATTA, 1981).

O uso ideológico da presença dos elementos formadores

do país enfatiza as gradações derivadas desta "triangulação

étnica" :o mulato, o cafuzo, o mameluco (MATTA, 1981:63) .24

Essa dissolução dos polos numa ordenação supostamente

mais harmoniosa foi possível em decorrência das regras

profundamente hierarquizadas transpostas para o país a

partir da tradição do colonizador português, cujo sistema -

englobador do tipo de exploração colonial que praticou -

mantém as hierarquias tradicionais, fazendo prevalecer o

"todo sobre as partes". A categorização que se forma é,

então abrangente e inclui grupos étnicos diferentes( MATTA,

1981:67).

A persistência da desigualdade que permeou todo o

sistema social brasileiro (no qual ninguém era igual entre

si ou perante a lei, nem mesmo no plano de uma mesma

24
Acrescidas as muitas outras categorias que foram
possibilitadas por esta alternativa.

45
classe) permitiu a formação de um "racismo disfarçado" no

qual as diferenças de classe e de raça ficaram escalonadas

e envoltas em critérios hierárquicos. Forjaram-se muitos

critérios de classificação social, assim como múltiplas

posições sociais e de prestígio. Assim, "nesse sistema, não

há necessidade de segregar o mestiço, o mulato, o índio e o

negro, porque as hierarquias asseguram a superioridade do

branco como grupo dominante." ( MATTA, 1981:75)25

O caráter não-segregacionista (no sentido

institucional e jurídico) do padrão de relações raciais

está relacionado à patronagem, cujas características

instauram um modo de relação de tipo pessoal, íntimo26, onde

graças à hierarquia cada um tem um lugar definido numa

totalidade social, sem comprometer o espaço do grupo

branco, superior na hierarquia.

Desse modo, o racismo brasileiro - tendo em vista o

tom hierárquico do sistema social em que se inscreve -

orientado mais para as categorias intermediárias, enfatizou

a figura do mulato e suas gradações. Isso teria evitado o

confronto entre os polos extremos e opostos do sistema.

Constituiu-se num racismo que nega a si mesmo, apesar de

ser oriundo do racismo europeu e quase tão extenso quanto o

norte-americano.27

25
Van der Berghe (VAN DER BERGHE, 1971) vê o padrão de
relações raciais brasileiro como de tipo paternalista e
Florestan Fernandes identifica aí a "persistência do
passado no presente" no sentido de haver a permanência de
relações tradicionais de tipo patrimonialista permeando a
sociedade de classes (FERNANDES, 1965).
26
Sobre isso ver FREYRE, 1992.
27
Sobre isso ver SEYFERTH,1993.

46
A situação racial no Brasil, ao contrário dos Estados

Unidos, provocou controvérsias, uma vez que o próprio

reconhecimento do preconceito foi alvo de debates. A

democracia racial foi a ideologia que respaldou a crença do

paraíso racial brasileiro.

A democracia racial tem operado como marca

diferenciadora do Brasil em relação ao exterior.

Internamente o que se verifica é a marca racial se

constituindo num diferencial social importante.28 As marcas


raciais são distanciadoras e atuam como marcas sociais. Não

se pode afirmar que o poder dessa marca no Brasil seja

homogêneo. É variável regionalmente, historicamente e

situacionalmente.

O papel da ênfase na mistura seria o de atuar na

relação com o exterior de modo a afirmar o caráter não

racista da sociedade brasileira (como um sinal diacrítico

em relação a outros países). A mulata, por exemplo, é posta

como "artigo de exportação" e simbolicamente respalda a

crença na igualdade racial no Brasil e representa a


"brasilidade".

A marca racial constitui o estereótipo básico sobre o


qual se assenta o conjunto de expectativas de comportamento

e desempenho social. Desse modo, as características a ela

28
Thales de Azevedo ao analisar a questão racial na Bahia,
percebeu que a posição social seria redefinidora da cor,
fazendo que um indivíduo pudesse branquear ao ascender
economicamente; apesar disso, também observou que os mais
claros possuíam melhores chances de se tornarem socialmente
brancos. Isso mostra a ambigüidade das atitudes raciais
naquela sociedade e ao mesmo tempo a dificuldade do autor
em lidar com a questão, envolto que está na crença na
democracia racial (AZEVEDO, 1955).

47
vinculadas demarcam as fronteiras entre os grupos étnica e

racialmente distintos.

Ao longo da história das relações entre negros e

brancos no Brasil construíram-se estereótipos definidores

do ser negro nesta sociedade. Roger Bastide foi buscar na

literatura brasileira a evolução da formação desses

estereótipos , através das qualificações efetuadas acerca

dos negros. Percebeu que a tônica assimilacionista que

permeia a introjeção do estilo de vida branco pelo negro

gerava outra forma de discriminação e acusação. Ele deixava

de ser grotesco, feio, incapaz para ser petulante,

pernóstico e preconceituoso em relação ao seu grupo de

origem, sendo atributos como inteligência, beleza e polidez

meros elementos compensadores da marca de cor ou de raça

(BASTIDE, 1983).

A democracia racial emoldura as relações entre os

grupos. Estes podem justificar ideologicamente suas

diferenças a partir de critérios outros que não as idéias

racistas de superioridade e inferioridade racial.

Entretanto, sentimentos de superioridade e inferioridade

relacionados ao pertencimento étnico e/ou racial estão

presentes e orientam atitudes tanto discriminadoras quanto

manifestações reivindicadoras de igualdade, configurando

uma distância nítida entre o discurso e as práticas, estas,

em grande medida segregadoras.

Para Florestan, a democracia racial "constitui uma

distorção criada no mundo colonial, como contraparte da

inclusão de mestiços no núcleo legal das "grandes famílias"

48
- ou seja, como reação a mecanismos efetivos de ascensão

social do "mulato". (FERNANDES, 1972:26)

A estrutura paternalista da sociedade brasileira com

suas estratégias de dominação, conseguiu manter a elite

impermeável às camadas baixas da população mediante a

manipulação de mecanismos pessoais a afetivos, permitindo a

absorção de novos contingentes a seu escalão de modo

controlado e seletivo. Favoreceu com isso o desenvolvimento

da aceitação e da acomodação de todos aqueles que tenham

sido preteridos nesse processo, a eles atribuindo a

responsabilidade pelo seu insucesso. Também os ex-escravos

e seus descendentes, especialmente os mestiços, em algumas

oportunidades tiveram membros de seu grupo penetrando nos

canais de ascensão, favorecendo o encobrimento das reais

barreiras com as quais se defrontava a grande maioria

pertencente aos segmentos pobres.

A modificação nas relações de produção engendradas

pela abolição do regime escravista, alterou

significativamente a posição dos negros na sociedade

brasileira, inclusive aquela já adquirida pelos libertos e

alforriados (apesar de não ter havido a reconstrução da

sociedade que se manteve baseada nos valores e na ideologia

da antiga classe senhorial). Constituindo uma massa de

trabalhadores não especializados, terminaram por ser

jogados em economias de subsistência ou em trabalhos pouco

valorizados nas cidades, freqüentemente recusados por

estarem associados à antiga condição servil.

Dados históricos demonstram que as condições de

trabalho pós-abolição não se alteraram e que o negro livre

49
precisava escolher entre continuar trabalhando nas mesmas

condições de antes apesar de seu novo status formal -

cidadão -, ou "reagir a tudo o que o trabalho

desqualificado pela escravidão significava, passando a

viver na ociosidade e no desregramento. Foi essa a

alternativa que os brancos criaram para os negros."

( CARDOSO, 1962:279)

Algumas parcelas do contingente de ex-escravos

conseguiram estabilizar-se na nova ordem, embora em

posições pouco rentáveis, mantendo suas funções. Tal teria

ocorrido com os empregados domésticos, especialmente as

mulheres, que passaram a constituir o suporte dos grupos e

famílias. Tais atividades eram especialmente propícias à

manutenção do padrão senhorial de relacionamento e permitia

que o patrão jogasse com a "familiaridade" como forma de

escamotear a persistência da dominação servil. Entretanto,

parece ter saído também daí uma quota de negros e mestiços

favorecidos pelo apadrinhamento e que puderam ultrapassar

as fronteiras do trabalho braçal não especializado, obtendo

relativa vantagem sobre a maioria negra desempregada.

A literatura sobre o tema revela a construção de

distanciamento social entre os negros a partir da distância

ideológica provocada por socializações diferentes e

pautadas nos valores brancos em oposição à ausência de

valores negros considerados como tais.

Já se tinha, desde o período escravista, a

diferenciação social interna da população negra, além

daquela de origem , ou seja, diversidade de procedência

50
desde a África.29 As relações entre brancos e pretos,

senhores e escravos variavam segundo o tipo de atividade e

aí se estabelecia uma diferença de tratamento de acordo com

o grau de participação na vida das famílias brancas, o que

suporia atitudes dos negros em relação aos senhores também

diversas.

No Rio Grande do Sul "é possível estabelecer um

gradient que vai desde a situação do negro na charqueada

até o pólo oposto do negro artesão, passando pela atividade

dos escravos nas estâncias e nos serviços domésticos."

(CARDOSO, 1962:242) O negro artesão, segundo Cardoso, é

visto numa sociedade escravocrata como o "anti-escravo",

pois é humanizado mediante um talento especializado

(CARDOSO,1962: 270).

Especialmente em relação à escravidão no Rio Grande do

Sul, construiu-se a crença da amenidade do trabalho escravo

nas fazendas de gado e casas senhoriais. Na medida em que

fosse possível imaginar trabalho escravo não espoliativo e

violento teríamos elementos extraídos de obras como Casa

Grande e Senzala de Gilberto Freyre (FREYRE, 1992),

Populações Meridionais do Brasil de Oliveira Vianna

(VIANNA, 1952), relatos de Saint'Hilaire e outros para

afirmar que os escravos domésticos seriam privilegiados em

relação aos do eito de um modo geral no Brasil.

No Rio Grande do Sul, mais fortemente essa idéia se

desenvolve, omitindo tanto a violência básica da escravidão

quanto aquela adicional decorrente da crueldade dos

29
Sobre isso ver CARNEIRO DA CUNHA, 1985:17-61.

51
castigos aplicados como forma de manter sujeito ao trabalho

um contingente nada desprezível de pessoas. Se o trabalho

nas fazendas de gado poderia ser pensado como mais leve e

aprazível - mística da liberdade implícita na forma de

pastoreio que se realizava na região do pampa gaúcho -, o

mesmo não pode ser cogitado para o tipo de organização do

trabalho nas charqueadas, atividade essa que concentrou uma

massa escrava extremamente significativa.

De qualquer forma, as relações dos escravos nas

famílias e, inclusive o uso sexual das escravas, introduz

uma contradição na relação, rompendo com a desumanização

enquanto fator de justificativa do próprio sistema.

O peso político dos criadores de gado e o papel

restrito da mão-de-obra escrava na economia pastoril

gaúcha, propiciou um tipo de participação das classes

dominantes na Abolição, cuja ideologia correspondia a uma

"forma de compromisso entre interesses e ideais divergentes

e, até certo ponto contraditórios." (CARDOSO, 1962:236) A

parcela hegemônica da elite riograndense engaja-se nas

controvérsias em termos mais estritamente políticos, sendo

a tônica dos discursos muito mais no plano ideológico do

que no jogo puro e simples de interesses econômicos, muito

embora houvesse setores nitidamente interessados na

permanência do regime servil (os charqueadores).

O emancipacionismo (1884) constituiu o resultado das

disputas30, não prevalecendo portanto a libertação geral dos

30
A Abolição, enquanto movimento que expressava oposição
entre brancos, assentada em posições político filosóficas
mais do que em interesses objetivos, encontra a

52
escravos. As cláusulas de prestação de serviços forneceram

o meio de realizar a Abolição na Província de São Pedro do

Rio Grande do Sul, que, aliás já havia, nas charqueadas

experimentado fórmula mista de trabalho escravo e

remunerado (espécie de "premiação" por quotas produzidas

além de um número fixado pelo Senhor, como meio de

estimular a produtividade). No Rio Grande do Sul, "nenhuma

grande ruína seria provocada pela Abolição imediata"

(CARDOSO, 1962:239). Numericamente, diz este autor, o setor

mais atingido pela Abolição, seria o dos serviços

domésticos, o que não produziria efeitos econômicos

significativos. Apenas as charqueadas sofreriam com ela.

Isso não significa que o aspecto simbólico da posse de

escravos, enquanto fator de prestígio e poder não tenha

constituído um obstáculo à aceitação da Abolição.

A valorização da Pátria e a inserção do país no mundo

civilizado, passam a ser os mecanismos substitutivos de

valorização do branco, que passou a perceber-se como pouco

desenvolvido, também ele subjugado pelo sistema que estava

sendo redefinido como demasiadamente primitivo.

Após 1884, no Rio Grande do Sul houve uma debandada

maciça de escravos, gerando efetivamente problemas de mão

de obra em diversos setores, com manifestação dos antigos

senhores que, indignados protestam pelo descumprimento, de

parte dos negros, das cláusulas de prestação de serviço e

pela ausência de trabalhadores para substituí-los.

possibilidade do acordo com os defensores da escravidão


mediante a emancipação, a partir de 1884.

53
No meio rural gaúcho aparentemente não houve

competição dos imigrantes com o ex-escravo, pois a

imigração propiciou a ocupação de terras ainda não

exploradas economicamente e vai implantar um tipo de

atividade que não conflita com a dos grandes pecuaristas.

Ao contrário, ela vai operar complementarmente à atividade

pastoril, numa organização do trabalho onde era impedido o

uso da mão-de-obra escrava. Nas cidades, poucos

enfrentamentos ocorreram, pois Pelotas, maior centro

escravista não recebeu contingentes de imigrantes.

Porto Alegre seria o espaço em que esse confronto pode

ter acontecido, sem entretanto ter ela recebido levas

maciças de imigrantes em curto espaço de tempo de modo a

propicia-los de forma significativa. A relação com os

nacionais livres e brancos, provavelmente constituíra a

base da construção do padrão que irá originar o racismo do

Sul.

No Rio Grande do Sul, foi com a charqueada que o

escravismo teve significado como modo de exploração da

força de trabalho. Este ciclo avolumou a entrada de

africanos e crioulos no estado. Entretanto, o escravismo,

com estas características foi um fenômeno localizado, não

sendo geral à economia sulista. A imigração européia

contrapôs um polo econômico baseado em trabalho livre e

alterou, em termos relativos, o peso da população negra no

estado.

Brasileiros/não-brasileiros como oposição, se

introduziu na divisão clássica negros-escravos/brancos-

senhores. O reflexo ideológico dessa realidade multiétnica,

54
de certa maneira reforçou a mística do sul branco, ao mesmo

tempo que gerou novos antagonismos que jogaram os

trabalhadores, negros e brancos em oposição ao

estrangeiro. Negros e mestiços brasileiros estão em

oposição ao estrangeiro enquanto mão-de-obra. Foi a partir

do trabalho que o valor dado ao imigrante se afirmou,

construindo a oposição imigrante-bom-trabalhador /

brasileiro-mau-trabalhador31.

O "trabalho" e sua relação com ele será aspecto de

muita força na constituição dos estereótipos que serão

construídos para estabelecer os limites grupais entre

imigrantes e nacionais, e mais genericamente entre brancos

e negros.

Os imigrantes fizeram-se incorporar à sociedade

através do seu pertencimento étnico, ao contrário do negro,

que quando conquistava melhores condições o fazia

individualmente. A dinâmica deste confronto fez-se notar

fundamentalmente na situação urbana, na disputa pelas

oportunidades no mercado de trabalho.

O negro era a mão-de-obra por excelência no sistema

produtivo então hegemônico (a charqueada - articuladora do

sul à economia nacional). A economia das colônias de

imigrantes não entrou em competição com a dominante, mas

foi complementar a ela (TARGA, 1994).

A cidade apareceu como palco do confronto racial.

Nela as identidades se redefiniram e atualizaram. A

31
Conforme vimos em PESAVENTO,1989, a categoria
"brasileiro" engloba os nacionais brancos e pretos.

55
presença do imigrante como trabalhador é que engendrou a

identidade do negro como "mau trabalhador".

Negros e imigrantes entretanto, desenvolveram suas

identidades tendo como referência o grupo branco dominante

- o luso-brasileiro. O imigrante, enquanto pequeno

proprietário rural, trabalhador especializado e branco,

apesar de cidadão de segunda classe pode situar-se mais

favoravelmente, sendo-lhe possível desenvolver uma

identidade auto-valorizada positivamente; isso também

graças a presença do negro, que passou a representar o lado

negativo da brasilidade.32

Apesar de não se verificar de modo flagrante como em

São Paulo a disputa pelo mercado de trabalho com o

imigrante e a derrota dos pretos, com toda certeza as

representações acerca do valor do trabalho europeu em

contraste com aquelas já existentes sobre a qualidade do

trabalho escravo, mesmo com toda uma especialização da mão-

de-obra negra que já havia se desenvolvido (como

decorrência da carência de braços em ofícios para cujo

exercício a condição escrava não era a mais adequada),

exerceram um peso importante para dimensionar o grau de

abertura que aquela sociedade oferecia ao negro livre. De

alguma forma o trabalho como valor foi projetado no

imigrante europeu branco, desqualificando o negro que

supostamente teria associado à liberdade o não-trabalho.33

32
Sobre essa questão ver SEYFERTH,1983.
33
O trabalho como valor, parece ser inaugurado com a
imigração. A tradição brasileira situava o trabalho como
coisa de escravo, coisa de negro. Nem negros nem brancos
nacionais possuíam a tradição do trabalho como um valor. O

56
A visão do viajante Joseph Hörmeyer acerca da Porto

Alegre de 1850 (ELMIR, 1990) é ilustrativa da "invenção do

paraíso no sul do Brasil". A leitura que faz da escravidão

passa pela valorização da imigração européia, especialmente

a alemã, esta o foco privilegiado do seu interesse. Percebe

que o imigrante é posto em oposição aos nativos a partir de

seus atributos. O estrangeiro é definido por um "ethos

ativo, empreendedor, racional e habilidoso." Já o nativo é

definido pela sua pouca vontade de trabalhar, pela sua

inércia, letargia, preguiça, displicência e indolência

(ELMIR. 1990:96).

É fundamental lembrar que não foi dado aos negros o

acesso à propriedade da terra. Aí reside o papel da

imigração no banimento do ex-escravo do sistema agrário

gaúcho. Esse fato é crucial para o entendimento das

dificuldades encontradas pela população negra de superar o

nível mínimo de sobrevivência que conseguiu lograr. O

negro, enquanto bem, mercadoria apropriada pelo branco, ser

transformado em proprietário, constituiria uma revolução

que a sociedade brasileira não pôde conceber. De sua parte

o negro não dispunha de ideologia alternativa para

enfrentar sua vida de liberto fora dos cânones da classe

dominante branca, que sempre viu o trabalho como algo a ser

feito em última análise pelos outros. Trabalhar para si,

não para os outros talvez tenha sido a fórmula buscada pelo

negro ex-escravo, que na ausências de condições de tornar-

se um empreendedor nos moldes capitalistas, confinou-se às

discurso imigrantista sobre o trabalho livre traz essa


ideologia, ainda ausente na mentalidade dos nacionais.

57
atividades de prestação eventual de serviços, num caráter

de instabilidade.

A moral católica forneceu parte da sustentação

ideológica da humanização do negro no sistema escravista,

orientando parte do discurso de sua valorização. Ele era um

"ser humano". A nova racionalidade econômica se definia

também através da humanitarização dos discursos sobre o ex-

escravo, no qual a liberdade era associada à eficiência.

Entretanto este humanitarismo não revalorizou o negro em

sua inteireza. A desumanização feita pelo regime escravo

foi substituída pela desqualificação moral.

O significado do trabalho escravo, segundo o que

afirma Fernando Henrique Cardoso , teria sido contaminador

da consciência do negro de modo a levá-lo a negar seu

engajamento nas oportunidades existentes, valorizando o

ócio como forma de manifestação da liberdade

(CARDOSO,1962). A partir disso, para ele, os brancos teriam

redefinido suas representações sobre os negros. A

ociosidade passou a ser um dos atributos na composição do

estereótipos do negro livre, associado a outros mais

diretamente ligados à raça e cor. Vê na ausência de um

movimento de luta de classes com a vitória do oprimido e

sua ascensão ao poder, os descaminhos do negro que passa a

agir como lumpen.

O escravo era o negro e o negro era escravo. Ausente

um dos termos de referência, restou a cor como elemento

58
diferencial e organizativo da sociedade, sob a forma de

preconceito de cor ou de raça.34

Dessa forma tem sido pensada a gênese das práticas

discriminatórias sobre os negros: mediante estereótipo

construído com base real na desagregação do regime

escravista, que teria propiciado um desordenamento e

desregramento da vida do negro, sem que tivesse havido a

criação de uma estrutura protetora desses novos cidadãos

despreparados e sem espaço no meio social para viver em

liberdade.35

Essas explicações, em que pese seu poder elucidativo

de certas facetas da problemática, pecam por reduzir o

papel do negro a um plano de passividade incompatível com o

grau de participação de sua contribuição na formação do

Brasil e do Rio Grande do Sul.

Paralelamente aos processos de acomodação tão

enfatizados tanto por Florestan Fernandes, Roger Bastide

34
" A cor foi, portanto selecionada como marca racial que
serviria para identificar socialmente os negros e os
mestiços. Ela passou a ser um símbolo de posição social, um
ponto de referência imediatamente visível e inelutável,
através do qual se poderia presumir a situação de
indivíduos isolados, como socius e como pessoa, tanto
quanto definir o destino de uma raça." (BASTIDE e
FERNANDES, 1971:86)
35
"A discriminação existente é um produto do que chamei
"persistência do passado" em todas as esferas das relações
humanas - na mentalidade do branco e do negro, nos seus
ajustamentos à vida prática e na organização das
instituições e dos grupos sociais". ( BASTIDE e FERNANDES,
1971:43)

59
quanto por Fernando Henrique Cardoso36, desenvolveu-se uma

imprensa negra,

clubes negros, centros de culto, enfim, práticas sociais

relevantes e exemplares do rumo que a fração negra tomou

como caminho de sua inserção na sociedade brasileira. Esses

mesmos autores referem esses fatos, mas vêem no destino

pobre do negro a sua degradação, sem levar em conta as

construções culturais da fração negra como móveis de sua

autonomia e da positivação de sua identidade, por certo

não tão deteriorada assim.37

Florestan Fernandes, tendo como base a pesquisa

realizada com Bastide e acrescida de dados suplementares,

verificou que "a maior miscigenação e a maior visibilidade

do negro e do mulato em condições de suposta tolerância

humana ideal, não se associam a transformações estruturais

significativas na participação racial (e, portanto, na

estratificação racial) (FERNANDES, 1972: 10).

A crença na democracia racial então, não alterou de

modo significativo as posições sociais objetivas ocupadas

por brancos e pretos, demonstrando o seu caráter de mito.

Entretanto, essa crença interfere no contexto das relações,

pois gera mitos paralelos, que embora sem base objetiva,

remetem o ideal da harmonia racial a outros espaços sociais

- outra classe social, outra cidade, etc. - mesmo por parte

dos próprios negros. "A perpetuação indefinida do status

36
Conforme as obras consultadas e arroladas na
Bibliografia.
37
Para exemplificar, em 1893, no Rio Grande do Sul já
existia o Clube Floresta Aurora, ainda hoje ativo na
sociedade portalegrense, além da hoje denominada Associação

60
quo racial brasileiro, possui dois polos. Os efeitos

estáticos das orientações de comportamento dos brancos; e

uma modalidade de acomodação racial, por parte dos negros e

dos mulatos - capitulação passiva." (FERNANDES, 1972:10)

A participação do negro e do mulato na sociedade

brasileira se deu mediante seu branqueamento psicossocial e

moral. "Tiveram que sair de sua pele, simulando a condição

humana-padrão do mundo dos brancos".(FERNANDES, 1971:10)

Florestan nega a democracia racial da sociedade brasileira

como realidade. Para atingi-la como meta, implica a

padronização e a uniformização, supondo com isso os negros

se perderem como raça e como raça portadora de cultura,

pois vê no "abrasileiramento", condição para transpor as

barreiras, um processo de branqueamento social.

Esse branqueamento social envolve uma série de

mecanismos acomodatícios e de ruptura com o meio negro de

origem e se caracteriza sempre como uma forma de penetração

no meio branco (como fruto da crença na permeabilidade da

sociedade brasileira), segundo as concepções deste autor.

Além disso, pode conter outro tipo de reação por parte do

negro, tais como mecanismo de ostentação de status e

absorção de novos padrões de vida, além de ter na família o

meio de consolidação do status adquirido.

A introjeção da ideologia do branco pelo negro (que

traz em si a internalização da inferioridade do negro),

construiu como uma das respostas o puritanismo,

especialmente naquela parcela do contingente negro que

Recreativa Satélite Prontidão, cuja fundação remonta a


1902.

61
conseguiu ascender socialmente. Diz Bastide que a "aparição

de semelhante mentalidade é um fato sociológico que se

relaciona com a formação da família burguesa. Compreende-se

pois, que a ascensão social do preto trilhará forçosamente

este caminho: o Puritanismo será o sinal aparente, a

manifestação exterior de tal ascensão..." (BASTIDE,

1983:108).

Este autor considera que a ascensão implica a adoção

da moral burguesa, daí que no Brasil, a "luta racial

assumiu o aspecto de uma oposição entre duas morais, ou

entre a moral e a imoralidade." (BASTIDE, 1983:109)

A identidade depreciada do negro tornou-se clara na

ideologia do movimento negro da década de trinta. Esta

surge influenciado pela idéia da democracia racial e do

assimilacionismo. Hoje, os intelectuais dos movimentos

negros adotaram "uma etnicidade afro-brasileira como

estratégia de mobilização. A etnicidade aparece como

princípio organizador do movimento; a cultura e a raça são

tomadas como base possível dessa mesma etnicidade,

simbolicamente ou não. O 'retorno à África' não propõe uma

recuperação integral dos valores culturais africanos em si;

significa antes o reconhecimento de uma cultura negra

desenvolvida no Brasil, a despeito dos brancos, e que

'branqueou' apenas como estratégia de sobrevivência."

(SEYFERTH, 1983:11)

Florestan Fernandes parte da concepção de ciência

engajada e crítica, capaz de fazer frente aos problemas

sociais (FERNANDES, 1965). Essa perspectiva dá ao seu

trabalho um tom de denúncia dos padrões de relações

62
raciais, para ele, "persistência do passado no presente".

Questiona a idéia de democracia racial e situa a ausência

dela de modo geral na sociedade brasileira. Acredita que a

ciência deve ter o papel de demonstrar o quanto o

"problema" é decorrente das formas de inserção do negro na

sociedade brasileira no período pós-abolição, quando se

desagrega o sistema de castas que caracterizaria a

escravidão e cujo padrão persistiria na nova sociedade de

classes. A abolição teria promovido uma mudança semântica

apenas.

Para ele e Bastide são questões não resolvidas em seu

trabalho, a elaboração por parte de negros e mestiços de

uma nova auto-concepção de status e papéis sociais, frente

à formação, entre os mestiços principalmente, de ideais de

personalidade e de vida que enalteciam e valorizavam a cor,

a pessoa e a cultura dos brancos. Levantam as seguintes

hipóteses: a) é possível que o preconceito de cor encontre

na sociedade de classes condições estruturais favoráveis à

sua perpetuação; b) é provável que se desenvolvam, na

população negra e mestiça, preconceitos de classe

aplicáveis às relações dos indivíduos de cor entre si.

(BASTIDE E FERNANDES, 1972)

A posição social ocupada pelo segmento negro na

sociedade brasileira tem sido tratada então, numa

perspectiva histórica a partir da escravidão. Envolve tanto

os aspectos estruturais da formação econômico-social

brasileira, quanto aqueles em que a sociedade escravocrata

é pensada nos seus interstícios, permitindo a visualização

da diversidade interna das relações escravo-senhor,

63
associada às formas de exploração diferenciadas que o

regime admitia.

Essa diversidade interna estaria relacionada ao tipo

de uso que se fazia daquela mão-de-obra associado às

peculiaridades regionais, decorrentes das características

econômicas e políticas da região enquanto entidade

produtiva e estratégica para o sistema.

A presença do negro-escravo deu-se em todos os ciclos

econômicos no sistema colonial. Adequando-se a eles,

forneceu além da mão-de-obra essencial ao seu

desenvolvimento, o lucro do próprio comércio negreiro, que

para muitos constituía negócio bastante mais lucrativo que

a própria exploração do negro enquanto força-de-trabalho, e

o aluguel de escravos, forma de exploração bastante

frequente e muitas vezes o único meio de vida do

proprietário de escravos.

A diversidade do uso da mão-de-obra escrava construiu

uma diferenciação interna hierárquica que se associou à

diversidade de origem do africano, suas variantes

culturais, incluindo língua, costumes, valores. O tempo de

permanência no país agregou à configuração interna do grupo

o domínio do idioma do colonizador e eventualmente até a

alfabetização e cristianização. As alforrias e as leis

restritivas ao tráfego de escravos, a lei dos sexagenários

e do ventre livre, o comércio interno do cativo, são também

produtores de diferenciação, além dos laços de parentesco

com brancos.

Estas distintas condições ou suas várias possíveis

combinações se atualizariam nas práticas sociais no

64
cotidiano das fazendas, nas residências, nas cidades e nos

campos.

Ideologicamente, toda essa diferença foi homogeneizada

a partir da posição estrutural do negro no bojo do sistema

escravista. A posição subalterna e oprimida do escravo,

entidade subsumida ao seu potencial laborativo e valor de

mercado, igualou os indivíduos e grupos. Ser negro era ser

escravo e não ser cidadão, não ser pessoa. Era designado

por atributos relacionados a traços físicos,

comportamentais, origem e talentos laborais, além da

referência ao seu proprietário.

Conforme já apontamos a imagem do Rio Grande do Sul,

tal como foi construída pelos historiógrafos gaúchos,

excluiu o negro de sua formação. A escravidão foi percebida

neste estado como menos significativa e mais branda do que

no resto do país, apesar das referências à crueldade e

dureza no trato com os cativos presentes já nos relatos de

Auguste de Saint'Hilaire (referidos por GUTFRIEND,1990)

embora sem deixar de afirmar a brandura dos senhores.

Contraditoriamente, este viajante conferiu pouca

importância ao contingente negro na população

comparativamente a grande quantidade de dados sobre

indígenas que registrou. Marcou a ausência da "populaça"

decorrente da extrema distância social mantida pelos

brancos em relação aos negros, dos livres em relação aos

escravos. Desconsiderou o negro enquanto parte da

população. O seu olhar racista e crítico da miscigenação

temeu que "essas misturas farão a capitania do Rio Grande

perder a sua grande vantagem, - a de possuir uma população

65
sem mescla." ( citado em GUTFRIEND,1990:179).Os

historiógrafos clássicos seguirão o modelo daquele

viajante.

São muitas as referências de Saint'Hilaire à crimes

cometidos por negros, o que era explicado por ele como

decorrente da má qualidade daqueles que vinham para o Rio

Grande, em geral de má índole e imprestáveis, enviados do

Rio de Janeiro como castigo. Ser mandado para o Rio Grande

era uma ameaça usada como intimidação ao negro rebelde.

Entretanto Saint'Hilaire afirma que "não há, creio, em todo

o Brasil, lugar onde os escravos sejam mais felizes que

nesta capitania."(conforme citado por GUTFRIEND,1990:180)

Diz Mário Maestri que "o silêncio e o desprezo votado

à historiografia do escravismo é um fenômeno...histórico no

Rio Grande do Sul." (MAESTRI, 1984:12) Justifica esta

ausência a partir da ênfase exclusiva na história das

elites e a uma leitura ideológica do passado riograndense:

"A própria existência de um escravismo gaúcho ... era já

uma contradição com o mito da sociedade democrática sulina,

construída no contexto da fazenda, em torno da rodada de

chimarrão. Nossa historiografia tradicional não podia

referir-se ao escravo sem se referir ao senhor de escravos

e este, simplesmente 'não existia' no quadro idílico

delineado por ela." (MAESTRI, 1984:13)

O Rio Grande do Sul é uma região assentada numa

formação multiétnica e numa ideologia que enfatiza o valor

da imigração européia e da mística campeira livre e branca.

Diferencia-se do restante do país quanto ao processo que o

formou bem como pela ideologia que o reconstrói. Assim, a

66
"fábula" da formação do povo gaúcho inicia de modo distinto

da que prevaleceu na ideologia da constituição do "povo

brasileiro" (nos termos de Da Matta que abordamos

anteriormente (MATTA, 1981)) mas que é resgatada também aí

nas situações em que se torna impossível negar a presença

negra.

Os elementos documentais que embasaram a

historiografia clássica do Rio Grande do Sul constituíram

os alicerces do ideário democrático e branco do estado.

Enfatizando a formação luso-brasileira do Rio Grande

do Sul e omitindo a presença do negro, elaborou-se o

imaginário gaúcho sobre si mesmo que exclui o negro não só

dos estudos históricos mas da própria sociedade.

A presença do negro no Rio Grande do Sul só

recentemente vem ocupando o interesse dos historiadores do

sul. O centro das preocupações tem sido a reconstrução da

sua história no estado centrada no período escravista.

A crítica da historiografia riograndense, a análise

voltada para a inserção do negro na força-de-trabalho e os

estudos sobre os cultos afro-brasileiros38 dominam a

literatura sobre o negro no Rio Grande do Sul. Algumas

análises demográficas podem ser encontradas, sem que no

entanto se construa um perfil desse grupo na sociedade.

Diz Gutfriend que:

"O resgate da história do negro no Rio Grande


do Sul é recente, permitindo afirmar que a
identidade criada pelos historiadores para o

38
Sobre cultos afro no Rio Grande do Sul ver ORO, 1994

67
gaúcho e o Rio Grande do Sul não apresenta
correspondência in totum com a realidade
objetiva do processo histórico em
si."(GUTFRIEND,1990:176)

A mão-de-obra do negro se fez presente em todas as

atividades braçais, no transporte de água e outras cargas,

no trabalho nas estâncias, nos pomares, no corte e

transporte de lenha, como guias, etc.

Atos de rebelião individuais e coletivos praticados

pelos negros no Rio Grande do Sul tem sido bastante

estudados, sendo em geral percebidos como práticas de

resistência cultural e social39. Rebelavam-se à escravidão

tanto através de fugas e organização de quilombos, quanto

por suicídio, infanticídio, assassinatos de senhores,

roubos e várias outras formas. São exemplares os trabalhos

de Mário Maestri, este último localizando no estado os

sítios onde se haviam estabelecido quilombos, e entre eles

estava a região de Porto Alegre. (MAESTRI, 1984)

Os novos estudos sobre o Rio Grande do Sul desfazem as

bases daquele imaginário. A idéia de uma escravidão mais

branda é substituída pelo fato do negro ter sido visto como

besta de carga e objeto de lucro. A da submissão e

passividade pela inconformidade do negro, sua rebeldia,

resistindo de diversas formas à escravidão40.

Um exemplo da capacidade organizativa dos negros foi a

construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Porto

Alegre.Partindo da criação da Irmandade de Nossa Senhora do

39
Ver PICCOLO, 1990:241-251

68
Rosário41 o povo negro construiu um espaço para si na

cidade simbolizado materialmente pela edificação de um

templo católico, a igreja do Rosário, entre 1817 e 1827 (a

qual foi demolida em 1950 e substituída pela que hoje ocupa

o mesmo local no centro da cidade) ( MACHADO,1990:189).

A construção da igreja se deveu a iniciativa dos

negros, escravos e libertos, participando na execução da

obra com recursos e trabalho.

Esse exemplo ilustra a luta do negro para manter suas

bases culturais, redefinindo a Irmandade católica como

espaço de celebração de suas danças, de sua tradição e

também como lugar de convivência e instância de

solidariedade étnica, marcada pelos referenciais

hierárquicos da sociedade em que se inseriam.

O escravismo no sul, da mesma forma que no resto do

país foi marcado por iniciativas que buscavam a integração

e a assimilação do contingente negro. A igreja católica

teve aí um importante papel. O controle sobre a massa

escrava era buscado não só pela violência, mas também por

ações que visavam manter o negro no seu lugar mediante

concessões, entre as quais situa-se a sua participação nas

Irmandades.

40
São importantes os estudos de PESAVENTO, 1989 e
PICCOLO,1990.
41
No Rio Grande do Sul a Irmandade se forma em 1786,
composta quase exclusivamente por negros, na sua maior
parte escravos. Congregava no seu início 220 membros (100
livres, 16 forros e 104 escravos), o que para Porto Alegre,
cuja população total era de 3000 pessoas aproximadamente,
demonstra a sua capacidade de congregar os pretos da
cidade. A Irmandade do Rosário não foi a única
constituída por pretos. Outras, como a de Nossa Senhora da
Conceição acolhia somente pardos, tendo também a
participação dos brancos.

69
O papel do negro como força-de-trabalho é outra

dimensão priorizada pelos estudiosos tanto da escravidão

quanto do período pós-escravista. A Abolição foi muito

analisada a partir do dilema das classes dirigentes quanto

ao destino a ser dado ao negro e ao modo com que ele

deveria ser integrado à nova ordem.

Em decorrência da desagregação da ordem

escravocrata,durante a segunda metade do século XIX

(período de transição capitalista), as elites buscaram

soluções para a carência de mão-de-obra e sua

reorganização. Nesse momento diferenças internas no

equacionamento das soluções e sua elaboração ideológica se

estabeleceram.

Pesavento formula esta questão sob a ótica das

estratégias utilizadas pela elites brasileiras na busca de

novas formas de subordinação do trabalhador. Dois problemas

necessitavam solução: o volume de mão-de-obra e a

conformação do trabalho livre. O abolicionismo (formulado

de modo a protelar a libertação dos escravos), e o

imigrantismo contemplam a primeira questão e instrumentos

jurídicos e outras formas de coerção ideológica a segunda

(PESAVENTO,1989) .

Saliente-se que abolicionismo e imigrantismo eram

"forças paralelas e não necessariamente interligadas em

termos de seus agentes sociais." (PESAVENTO,1989:11). Eram

opções relacionadas ao montante de capital possuído pelos

segmentos interessados. Seus discursos diferem quanto às

possibilidades de incorporação dos ex-escravos na nova

70
ordem econômica. As dificuldades de grupos destituídos de

capital para financiar a importação de mão-de-obra e ao

mesmo tempo sofrendo as dificuldades que o regime

escravista vinha apresentando (importação de escravos,

rebeliões, fugas, etc.) adotam um abolicionismo com

libertação gradual acompanhado de projetos de incorporação

do liberto como trabalhador livre. Este seria o caso das

elites riograndense. Os imigrantistas não referiam a

incorporação do liberto, formulando um discurso que difunde

ideologicamente a idéia da superioridade do trabalhador

europeu.

Desse modo, a imigração européia voltada para a

solução da carência de mão-de-obra nas lavouras cafeeiras

obedeceu a objetivos distintos daqueles que presidiram as

correntes imigratórias para o extremos sul do país. Aqui se

objetivou a ocupação do território e o colonato foi a

estratégia eleita. Com isso não só se ocuparam espaços

nacionais estratégicos como se manteve o liberto afastado

do direito de acesso à terra, cuja posse só poderia se

efetuar por venda uma vez que leis restritivas à ocupação

da terra foram promulgadas.

A restrição do acesso à terra foi prática corrente em

quase todas as ex-colônias42 . A restrição à posse da terra

foi determinante na manutenção dos sistemas que se

sustentaram com a força de trabalho escrava e que deveriam

42
Sobre essa questão ver FONER,1988

71
continuar com o assalariamento em baixos níveis de

remuneração.43

Uma questão interessante colocada por Foner é que,

mais do que propiciar melhores condições de vida ao negro,

a posse da terra altera o estatuto das relações sociais,

colocando o negro em melhor posição frente ao branco. Isso

foi o que se quis impedir: a igualdade política e social

nas relações entre negros e brancos.

No Rio Grande do Sul o acesso à terra foi impedido por

leis restritivas e pela colonização com imigrantes

europeus. O esgotamento das atividades que ocupavam os

negros, levou-os às cidades, às fábricas, aos serviços nas

ferrovias, no setor público, na construção civil.44

Segundo Fernando Henrique Cardoso:

"Condições histórico-sociais peculiares fizeram


com que em Porto Alegre os negros encontrassem,
depois da Abolição, possibilidades
relativamente amplas de ajustamento à estrutura
ocupacional da economia livre da cidade. Nela,
a escravidão foi preponderantemente doméstica,
e não foi raro também, por outro lado, a
exploração dos "negros de ganho", isto é,
daqueles que possuíam um ofício, incipiente ou
indiferenciado inicialmente, e que pouco a
pouco se adestravam nas lides artesanais. Com a
Abolição estes negros se inseriram na estrutura
ocupacional da cidade como artífices, escapando
assim à sorte que esteve reservada para os
negros das regiões de exploração escravocrata
em grande escala, que quando abandonaram as

43
No Caribe onde havia escassez de mão-de-obra negra
disponível, os trabalhadores "coolies" foram trazidos e os
camponeses conviveram com a plantation lhe oferecendo a
mão-de-obra complementar sazonalmente (FONER,1988). Nos
Estados Unidos os impostos, taxas e as dificuldades para a
aquisição da terra, levou muitos negros do sul ao
assalariamento e à emigração para as cidades do norte.
44
Em relação a isso ver PESAVENTO, 1989.

72
lides do campo para dirigirem-se às cidades não
possuíam qualquer capacitação profissional que
os habilitasse à vida urbana, tendo sido, por
isto, condenados à vida de ociosidade e
privações. O branco em Porto Alegre esteve
portanto acostumado desde logo a encontrar
negros exercendo profissões. Isto deveria ter
influído na avaliação social do negro como e
enquanto trabalhador." (CARDOSO,1960:586)

Entretanto, a heterogeneidade já existente no interior

do grupo negro durante a escravidão ofereceu bases

desiguais para respaldar a inserção do negro no meio

social. Essas diferenças são significativas para entender o

recrutamento seletivo de negros e pardos para ocupar as

posições mais vantajosas, além de constituírem o meio

através do qual se pode compreender a complexidade

existente na constituição das identidades negras que se

forjam.

Às diferenças entre os grupos provenientes da África,

somaram-se aquelas decorrentes da própria reprodução

biológica do contingente escravo. A categoria "crioulo"

emerge desse processo e as informações históricas parecem

demonstrar que essa diferença não era neutra quanto a

atribuição de identidade e ao valor que lhe era conferido.

A miscigenação também produziu diferenças, engendrando

personalidades sociais com posições hierárquicas distintas

e expostas a condições de inserção também diferentes.45

45
Manuela Carneiro da Cunha expõe de modo claro as
implicações dessas diferenças para a constituição da
identidade negra como identidade étnica, especialmente para
o grupo designado como "pessoas livres de cor" (CARNEIRO DA
CUNHA, 1985).

73
O tipo de trabalho, as condições de convívio com o

grupo branco, o sexo, entre outras questões propiciaram

pré-condições diferenciadas, o que não impediu que no

conjunto os descendentes de escravos levassem em si a marca

do preconceito.

1.1 O Negro no Rio Grande do Sul: Perfil Sócio-Econômico e

Demográfico

Historicamente o Rio Grande do Sul incorporou grupos

populacionais de diferentes procedências. Entretanto esse

processo não foi acompanhado da inclusão desses grupos na

construção da identidade do gaúcho. Vimos em Seyferth que

os imigrantes alemães foram incorporados no sul como

cidadãos de segunda classe (SEYFERTH,1986). No Rio Grande

do Sul eles foram excluídos da figura emblemática do

gaúcho.

Segundo Ruben Oliven:

"Apesar do enfraquecimento da região sul do


estado, da notável projeção econômica e
política dos descendentes dos colonos de origem
alemã e italiana que desenvolveram a região
norte, da urbanização e da industrialização, o
tipo representativo do Rio Grande do Sul
continua a ser a figura do gaúcho da Campanha

74
como teria existido no passado."
(OLIVEN,1996:25)

Diz ainda Oliven que se os descendentes de alemães e

italianos são excluídos, mais ainda o são os negros e os

índios.

Vimos anteriormente o modo como a ausência do negro,

escravo ou livre, é uma marca na historiografia do Rio

Grande do Sul e de que forma o escravismo no estado foi

recuperado como preocupação, dada a sua importância como

mão-de-obra nos setores econômicos do estado responsáveis

pela articulação da economia sulista com o resto do país.

Apontamos ainda para as formas de sua incorporação

como mão-de-obra livre em múltiplas atividades urbanas e o

quanto sua presença marcou espaços na cidade de Porto

Alegre e no estado de modo geral.

O Rio Grande do Sul é o segundo estado mais branco do

país. Possui aproximadamente 12,5% de pretos e pardos na

sua população. Isso é bastante diverso do comportamento do

país em termos médios.

Entretanto consideramos que 12% não é uma participação

relativa na população desprezível, especialmente se

considerarmos que ela é localizada. Em Porto Alegre 15% de

sua população é preta e parda, significando isso 16% do

total dos pretos e pardos do estado.46

46
Conforme expusemos anteriormente.

75
Tomamos aqui a situação do negro no Rio Grande do Sul,

tal qual é refletida nos dados da PNAD (IBGE, 1987)47, como

forma de propiciar uma visão global das relações

interraciais, situando o contexto de nosso estudo para

discutir o significado das trajetórias de ascensão social

da parcela do segmento negro investigada através de

observação e entrevistas. Isso porque consideramos que a

quantificação do perfil dos grupos por cor permite

desconstruir as idéias sobre as relações interraciais no

Rio Grande do Sul que o situa como branco e democrático.

O dado mais recente disponível no momento da

realização da coleta de dados era a PNAD de 1987

(IBGE,1987). O Censo de 1991 para o Rio Grande do Sul não

havia sido publicado e os dados de cor, que são dados de

amostra, não tinham previsão de processamento. Atualmente

está parcialmente publicado. Mas consideramos

desnecessário atualizar as informações e a fonte porque, de

um lado aqueles da PNAD são compatíveis com o período em

que realizamos a maior parte da pesquisa de campo, e de

outro, porque a distribuição por cor da população não

sofreu alterações dignas de nota segundo os dados da PNAD

para períodos posteriores e do próprio Censo Demográfico de

1991.

No Rio Grande do Sul, segundo as estimativas do IBGE

através da PNAD, 4,4% da população era classificada como

preta e 8,1% como parda. É um estado predominantemente

47
Os dados do Censo de 1991 mantém esse percentual bem como
a participação relativa dos pretos, 4,5% aproximadamente e
dos pardos, 82%.

76
branco, uma vez que os amarelos somados à categoria sem

informação constituem 0,06% do total.

A população de cor - pretos somados a pardos - está

mais concentrada no meio urbano (83,9%) do que a branca

(63%). Isso contrasta com o encontrado na situação do país

visto no seu todo. Nelson do Valle Silva demonstra que

pretos e pardos habitam mais do que os brancos as áreas

rurais e as regiões mais pobres. Considera o Rio de Janeiro

uma exceção ao que se verifica no geral (HASENBALG e VALLE

SILVA, 1988). O Rio Grande do Sul, nesse sentido também. A

explicação para este fato está na estrutura fundiária

riograndense, que em virtude da colonização européia

baseada na pequena propriedade definiu um perfil

predominantemente branco para o homem do campo

(trabalhadores rurais e pequenos agricultores).

As condições de inserção do ex-escravo na sociedade

sulista o levou a buscar no meio urbano suas oportunidades

de trabalho de forma mais acelerada do que no caso dos

descendentes de imigrantes europeus. Estes últimos,

enquanto proprietários, emigraram paulatinamente ao longo

do desenvolvimento urbano industrial e das transformações

sociais e econômicas do campo. Já o esgotamento das

charqueadas muito cedo expulsou o negro para as cidades, já

que a grande propriedade era dedicada a pecuária extensiva,

o que não permitia a absorção do contingente negro, a não

ser no serviço doméstico e lides campeiras nas estâncias.

A população do Rio Grande do Sul é, atualmente,

predominantemente urbana e a parcela de cor de modo mais

marcado.

77
Apenas 16% dos pretos e 23,3% dos pardos residem no

meio rural, em contraste com os 31,9% dos brancos.

Considerando o baixo peso da população de cor no total do

estado, tem-se o meio rural constituído de 91,4% de

brancos.

As diferenças na pirâmide social entre brancos, pretos

e pardos no Rio Grande do Sul são importantes. Se 31,9% dos

brancos percebem até 2 salários mínimos, 48,5% dos pretos e

43,3% dos pardos situam-se nesta faixa de rendimento.

Apenas 1,7% dos pretos e 1,4% dos pardos recebem mais de 10

salários mínimos. Em que pese a vantagem clara do grupo

branco em relação ao preto e pardo, as distâncias que os

separam são menores do que as verificadas por Valle Silva

para o país (HASENBALG e VALLE SILVA,1988:153).

São os pretos que menor percentual apresentam na

categoria "sem rendimento": 29,8% aí está situado. Levando

em conta que os dados se referem a pessoas com 10 anos e

mais, tem-se que os pretos trabalham proporcionalmente

mais. Os pardos apresentam nessa categoria um desempenho

quase igual à média da população geral, 36,7%, sendo

comparável ao índice da população branca (37%).

Apenas 0,23% da população preta ocupada situa-se na

categoria empregador e nenhum preto o é se o setor é

agrícola. A distância de participação dos grupos branco e

de cor (pretos + pardos) na categoria empregador no setor

agrícola é de mais de 300%.

O montante de não remunerados é bastante superior

entre os brancos do que entre pretos e pardos também no

setor agrícola. O trabalho familiar de pequenos

78
proprietários deve explicar a diferença, já que os de cor

tem reduzida participação nessa modalidade de trabalho.

Nenhum preto emprega mão-de-obra e 79,5% deles é empregado.

Os pardos tem quase três vezes mais pessoas em atividade

agrícola por conta própria do que os pretos, mas apenas

0,9% deles tem empregados; 48% é empregado. A maioria dos

brancos (37,9%) trabalha por conta própria e 13% é

empregado rural.

Brancos e pardos tem o mesmo percentual de

trabalhadores por conta própria em atividades não agrícolas

(em torno de 20%). Os pretos tem 17% nesse grupo e 82,6% de

empregados. Sua participação como empregador é quase nula,

totalizando 421 pessoas.

Quanto a anos de estudo, todos os grupos por cor

concentram-se mais na faixa 4 a 6 anos de estudo, com

vantagem também para o grupo branco (41,7%). Os pretos com

36,8% e os pardos 34,1%.

O peso maior dos pretos do que dos pardos na faixa

mais alta de salário é contrariada pela sua reduzida

participação na categoria na faixa 12 anos e mais de

estudo, na qual os pardos tem uma participação relativa

quase 100% superior à dos pretos. Os pretos superam a

participação dos pardos na faixa 7 a 11 anos, que

corresponde aproximadamente ao segundo grau. Algum tipo de

especialização profissional pode explicar essa diferença.

De resto, os pardos tem o mais alto índice de pessoas sem

instrução, seguidos pelos pretos.

Os dados mostram que 15% da população riograndense de

5 anos e mais é analfabeta. Entre os pretos este índice

79
sobe para 23% e entre os pardos para 25%. A diferença é

muito importante e aponta para a discriminação. O acesso à

educação é muito desigual. Lembre-se que os escuros

trabalham mais cedo, fato que interfere na escolaridade.

As condições de habitação urbana assinalam a

segregação social. Os pretos habitam lares rústicos 7 vezes

mais do que os brancos e os pardos 3 vezes mais. As

habitações rústicas se distribuem entre os grupos por cor

da seguinte forma: 58% para os brancos, que são mais de 85%

da população urbana; 21,8% para os pretos - e eles são 5,3%

do total da população e 19% para os pardos. Pretos e pardos

detém 41% dos lares rústicos apesar de juntos perfazerem

14,3% da população urbana total do estado.

A ocupação de quartos e cômodos espelha também as

maiores dificuldades de moradia dos pretos e pardos: 19,4%

dos pretos e 34,7% dos pardos residem nesse tipo de

domicílio, índices extremamente mais altos que sua

participação relativa no meio urbano do sul. Pretos e

pardos, mesmo sendo apenas 14% da população urbana, ocupam

54% dos quartos e cômodos.

De modo geral, aproximadamente 71% dos moradores

residem em domicílios próprios. A diferença vai se

verificar na categoria alugados, que exige um rendimento

estável (brancos, 19%; pretos, 17%; pardos, 13%), cedidos

(brancos, 7,4%; pretos, 9,5%; pardos 7,6%) e outras, onde

pretos e pardos tem o dobro de presença.

A distribuição das pessoas ocupadas por cor obedece

aproximadamente a distribuição por cor da população,

havendo na categoria pardos uma menor participação relativa

80
no mercado de trabalho (os pardos são 8,14% da população e

7,9% da população ocupada) e pretos (4,4% da população e

4,3% das pessoas ocupadas) em pequeno benefício dos brancos

(87,3% da população e 87,8% dos ocupados).

Esses dados são confirmados pela PED/FEE (INFORME

PED,1993): a taxa de desemprego na Região Metropolitana de

Porto Alegre no período 1992 - 1993, aponta

sistematicamente um maior prejuízo dos não brancos (entre

30% a 50% mais). O significado deste dado, considerando o

menor número absoluto de não brancos na região, torna-se

mais dramático ainda, significando mais dificuldades de

manutenção do emprego para eles do que para os brancos.

Mulheres pretas e pardas trabalham proporcionalmente

mais: 51% das pretas e 48% das pardas são economicamente

ativas, o que corresponde a um menor volume de homens de

cor nesta condição em comparação com homens e mulheres

brancos. Ou seja, as mulheres de cor necessitam trabalhar

mais do que as brancas, cuja participação no conjunto de

pessoas ocupadas é de 46,8%.

As informações selecionadas denotam a existência de um

padrão discriminador no estado, identificando-o com o

restante da sociedade brasileira, o que permite inserir o

estudo, nesse aspecto, no conjunto das teorias que analisam

a realidade multirracial brasileira. As condições mais

favoráveis do negro nesse estado está relacionada com as

características da distribuição de renda e dos níveis de

qualidade de vida melhores aí do que na média do país.

Entretanto cabe destacar que o padrão de distribuição

por cor no Rio Grande do Sul difere do observado no país de

81
modo geral, já que o volume de pardos em relação aos pretos

parece ser proporcionalmente menor nesse estado do que no

resto do país. De acordo com a tabela 2 do já referido

trabalho de Valle Silva (HASENBALG e VALLE SILVA, 1988:149)

o Brasil se distribui por cor da seguinte forma: brancos,

56,4%; pardos, 31,2%; pretos, 8,4% (percentuais calculados

por nós sobre os dados apresentados pelos autores).

Segundo o Censo de 80 (IBGE, 1980), o Brasil possuía

55% de brancos, 39% de pardos e 6% de pretos. O Rio Grande

do Sul nesse mesmo Censo era constituído de 87% de brancos,

4% de pretos e 8% de pardos. Essa distribuição se repete no

levantamento da PNAD e também no Censo de 1991 com

diferenças muito pequenas. Essa distribuição por cor mostra

a distinção da composição da população do sul em relação ao

Brasil e apresenta em relação à média nacional uma

proporção muito pequena de pardos. Isso tanto pode estar

relacionado aos critérios de classificação nos quais as

fronteiras de cor estejam mais demarcadas ou que haja, no

Rio Grande um padrão de casamento no grupo, configurando

uma endogamia mais rígida, o que reduziria a miscigenação.

Max Weber já apontara o "connubium" como um dos meios

de se medir a tendência a monopolização do poder e do

prestígio de uma "raça", já que a repulsão racial decorre

de disposições culturais que atribuem valor à diferenças

culturais ou físicas (WEBER, 1974). Para ele a endogamia

de uma comunidade depende ou da proibição expressa do

casamento fora da comunidade ou do desenvolvimento de

práticas que inviabilizem a aceitação de descendentes

gerados fora da comunidade. A cor do cônjuge segundo a cor

82
do chefe - medida do grau de cruzamentos entre os grupos de

cor - no Rio Grande do Sul apontam para um relativo

fechamento dos grupos. As uniões mistas apresentam

(PNAD, IBGE, 1987) um peso relativo bastante baixo. Tomando

como primeiro termo o Chefe, a união no grupo representa

98,9% dos casos para o grupo branco; para o preto, 75,7% e

para os pardos, 66,8%. Chefes pretos com cônjuges brancas

são 11% e pardos com brancas, 31%. Chefes brancos casados

com pretas são 0,38% e com pardas 1,47%. Temos 24% dos

chefes de cor (pardos e pretos) com cônjuge branco. No meio

urbano esse índice é de 20,3% e no rural 37,8%.

Os dados se assemelham aos do país em geral do ponto

de vista da tendência a preferir o casamento no grupo,

porém com uma concentração mais alta. As diferenças devem

estar relacionadas ao padrão diferenciado da composição da

população do estado comparativamente ao padrão do Brasil em

geral.

Elza Berquó apresenta os dados da distribuição dos

homens casados segundo a cor das esposas segundo o Censo de

1980. Encontrou uma taxa de 88% de casamentos entre

brancos, 73% entre pardos e 58% entre pretos. Somando

pretos e pardos (o que homogeneíza um pouco mais a

classificação por cor), 11,9% dos brancos casam com

parceiras de cor e 36% dos negros o fazem com brancas

(BERQUÓ, 1988:10).48

48
Embora os dados não sejam comparáveis estatisticamente de
modo exato dada a diferença no tempo e no tipo de
informação, acreditamos ser possível inferir um
comportamento diverso das relações interraciais no Rio
Grande do Sul em comparação com o país.

83
A composição das unidades domésticas no Rio Grande do

Sul mostra também a diferença de conformação na população

segundo a cor do Chefe.

A categoria "mulher chefe sem cônjuge" mostra que

esta forma predomina no grupo pardo (14,5%) no caso

riograndense.

O padrão da composição familiar para os grupos de cor

é distinto do grupo branco. Os de cor residem

proporcionalmente mais com parentes do que os brancos; as

mulheres chefe com filhos com e sem parentes também são em

maior número. Deve-se levar em conta para a análise dessas

diferenças a maior concentração do grupo de cor nos níveis

salariais mais baixos.

O modelo conjugal nuclear expresso pela categoria

casal com filhos representa 57,8% do total de arranjos

familiares. Para o grupo branco esse número corresponde a

58,6% do total, para os pretos, 50% e para os pardos, 53%.

Cabe discutir tanto o modelo universalizado pela

ideologia - o nuclear - cuja incidência no total da

população está em torno de 57%, quanto o matriarcado negro,

a matrifocalidade ou dissolução da família negra,

levantados pela literatura clássica, em especial a norte-

americana, uma vez que apenas 15% das famílias do cor

apresentam conformação possivelmente compatível com essas

definições.49

O padrão geral, 91,6%, indica a articulação familiar

de parentes (cônjuges, filhos e outros parentes). Destes,

57% apresenta-se segundo o modelo nuclear (casal com

84
filhos). Os demais 43% se distribuem predominantemente

entre casal filhos e parentes, e mulher e filhos.

A PNAD de 1989 (PNAD, Plano Cor, IBGE,1989) para a

Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), foi a

referência mais próxima para examinar a situação relativa

da população preta e parda no meio urbano.

Os dados gerais de distribuição por cor da população

da RMPA mostram que, há uma maior concentração de negros aí

do que no total do estado. De uma população total de 2

972 924 habitantes, 85,7% situa-se na categoria branca;

6,7% na preta e 7,4% na parda. Somando-se pretos e pardos

temos 14,1%, o que significa 2% a mais. O estado mostrou

pouco mais de 4% de pretos e 8% de pardos. O corte que

classifica os grupos de cor é mais radical na RMPA.

Vimos anteriormente, quando tratamos da cor do cônjuge

segundo a cor do chefe da família que no meio urbano as

uniões dentro do grupo tinham percentagens mais altas no

meio urbano que no rural. O baixo percentual de pardos pode

ter uma hipótese explicativa nesse fato: ênfase nas uniões

dentro do grupo.

A alfabetização de pretos e pardos (com 5 anos ou mais

de idade), mostra que 82% dos pretos são alfabetizados e

79% dos pardos o são; os brancos alfabetizados perfazem 89%

do deu grupo.50

Em termos gerais, na RMPA 12% da população com 5 anos

e mais é analfabeta. Os desníveis entre os grupos de cor

são importantes. Se 11% dos brancos tem 12 anos e mais de

49
Sobre isso ver PACHECO, 1987.

85
estudos, apenas 4,4% dos pretos e 3,5% dos pardos atingem

esse patamar de escolaridade.51

Os brancos participam dos cursos superiores

significativamente mais do que os pretos e pardos: 12% dos

estudantes brancos concentram-se nesse nível, enquanto que

somente 3,6% dos pretos e 3,8% dos pardos cursam nível

superior (juntos perfazem 7,4%, o que é um pouco mais do

que a metade do escore dos brancos).

O rendimento mensal dos grupos de cor mostra

diferenciais. Apresentaremos apenas aqueles das faixas de

rendimento extremos - mais de 10 salários mínimos e até 2

salários mínimos: 5,4% dos pretos e 3,7% dos pardos

recebem até 10 mínimos, contra 13,8% dos brancos.

Confirmando a desigualdade, 38,7% dos brancos percebem até

dois salários mínimos e 54,5% dos pretos e 60,5% dos pardos

estão nessa faixa de rendimento.

Os ramos de atividade que mais ocupam os pretos da

RMPA são: prestação de serviços (21739); indústria de

transformação (18000); social (14711) e comércio de

mercadorias (10758). Os pardos situam-se principalmente nos

setores: prestação de serviços (23937); indústria de

transformação (21521); comércio de mercadorias (12957) e

indústria da construção civil (11408).52 Apenas 0,5% dos

pretos e 0,7% dos pardos são empregadores.

50
Esses diferenciais assemelham-se ao desempenho do estado
quanto a alfabetização.
51
Mulheres pretas e pardas são significativamente mais
numerosas aí do que os homens desses grupos de cor.
52
O total de pessoas ocupadas na categoria preta é igual a
93323 e na parda, 97056)

86
Os arranjos familiares e domésticos também apresentam

diferenças entre os grupos de cor: 50% das famílias do

grupo de cor preta e 50,2% do pardo são constituídas pelo

casal e os filhos; no branco, 53,2% se situa nesse tipo de

arranjo.

Mulher-chefe sem cônjuge com filhos são 11,9% dos

casos na categoria de cor branca; 15,3% na preta e 16,1% na

parda. Somando-se a isso mulher-chefe sem cônjuge com

filhos e parentes temos 21% dos casos na categoria de cor

preta, concentrado principalmente nas faixas de rendimento

mais baixas (até três salários mínimos, na qual se

concentram 64,7% dos casos desse formato familiar) e 17,6%

da parda. Entre os brancos esse arranjo contém 14% dos

casos.53

A articulação de casal com filhos e parentes é também

predominante nos grupos preto e pardo (6,6% e 7,4%

respectivamente para 5,8% dos brancos).

Os chefes pretos em 74,5% dos casos possuem cônjuge

preta, e 8,6% parda; os pardos com cônjuge de cor parda são

52,5% do total, e 4,5% tem cônjuge de cor preta. É muito

díspar o comportamento de pretos e pardos nesse aspecto.

Esses dados para o total do estado mostraram uma maior

freqüência de uniões mistas no grupo pardo. Porém, na RMPA

isso aumenta bastante. Somando cônjuges pretas e pardas

tem-se 57% no que estamos chamando como união no grupo.

Porém a cifra de 42% de uniões fora do grupo é expressiva

da permeabilidade desse grupo de cor. O grupo preto é mais

53
Mulher-chefe sem cônjuge mas com parentes abrange 2,1%
dos brancos, 5,8% dos pretos e 1,6% dos pardos.

87
fechado. Brancos e pardos tendem a uniões entre si quando a

opção é a aliança fora do grupo. Entretanto a união

preferencial continua sendo o próprio grupo.

A primeira questão que se pode apontar a partir das

informações apresentadas, é que a distinção entre pardos e

pretos, para fins de análise, é relevante para os casos do

Rio Grande do Sul e Região Metropolitana. O tratamento

agregado dessas categorias de cor encobriria aspectos muito

importantes dos diferenciais existentes entre os dois

grupos.

Além disso, dimensionaram as diferenças entre brancos

e não brancos que, embora sabidas, necessitavam ser

fundamentadas.

A análise exaustiva das estatísticas demográficas

disponíveis poderia levantar questões outras além daquelas

possíveis com os dados apresentados. Entretanto, para

mapear a realidade riograndense, e particularmente o meio

urbano metropolitano consideramos suficientes, uma vez que

levantam elementos capazes de fornecer uma visão global das

questões raciais no Rio Grande do Sul.

88
2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1. Negros e Brancos: Um Contexto Relacional

O contexto ideológico da sociedade, seus diversos

recortes e leituras segundo os grupos sociais, as

contradições presentes na articulação desses níveis de

representação e aspirações, é o campo privilegiado em

relação ao qual as atitudes e os meios de afirmação dos

grupos raciais e/ou étnicos devem ser tratados.

A reflexão acerca das relações interraciais tem

construído alternativas teóricas que oscilam desde um ponto

inicial em que as teorias raciais dominaram o campo, até o

momento atual onde os estoques raciais são percebidos como

construídos a partir de fenômenos típicos da constituição

89
de grupos étnicos (BARTH, 1970) ou de minorias (WIRTH,

1945).

Desde WEBER (WEBER, 1974) a questão racial aponta

para a idéia de comunidades étnicas. O pertencimento a uma

"raça" é fonte frequente de "ação comunitária", sempre que

a posse de "disposições herdadas e transmissíveis" que

"repousam numa origem comum" sejam sentidas subjetivamente

como algo possuído em comum com outros iguais com quem se

atua coletivamente, em geral no sentido político, ou que

ocorra uma oposição clara frente a outros que afete o seu

destino." (WEBER, 1974: 315)

A concepção de uma sociedade plural (multi ou

plurirracial ou étnica) contém como pressuposto (implícito

ou explícito) o encontro de grupos distintos em situações

capazes de os terem configurado de modo diferenciado. Uma

vai privilegiar o contato e os mecanismos de identificação

e atribuição numa perspectiva relacional ou interativa

(simétrico ou assimétrico), quer enfatizando as fronteiras

sociais ou as culturais, quer destacando os aspectos

políticos constitutivos da dinâmica relacional.

Nesse contexto, atributos reais ou fictícios são

engendrados como emblemas, sendo frequente a construção de

estereótipos que atuam como sinalizadores de identidade a

partir da qual os grupos passam a se perceber e a serem

percebidos. Esses elementos são ativos e efetivos na

interação social.

Essa construção vai se complexificar no momento em que

o recorte étnico e/ou racial está imbricado no recorte de

classes - o que é o caso das sociedades industriais

90
modernas ocidentais, especialmente nas ex-colônias. Nelas a

preexistência de uma situação de desigualdade, exploração e

opressão nas diversas modalidades ocorridas historicamente,

faz convergir o recorte étnico e/ou racial ao de classe.

O grau de abertura dos sistemas sociais, econômicos e

políticos, a existência ou não de meios legais

institucionalizados reguladores das relações intergrupais,

a presença ou a ausência de uma ideologia racista

segregacionista ou não, estabelecem o campo de confronto

(político por excelência) dos grupos e as instâncias em que

se definirá a distância entre eles , bem como as formas de

individualização encontradas.

Com Van der Berghe , o fenômeno étnico deve ser

situado analiticamente no conjunto das teorias de

estratificação social. Em sua abordagem as relações

interraciais em países com passado escravista seriam

herdeiras de relações de castas, tomando aí as

características deste padrão de relacionamento social. Duas

formas históricas são identificadas e demonstradas pelos

casos que analisa: formações competitivas - Estados Unidos

e África do Sul - e paternalistas - México e Brasil (VAN

DER BERGUE,1967).

Ele se insere numa posição intermediária entre o

subjetivismo e o primordialismo1 , os quais critica,

considerando que essas abordagens, tomadas em absoluto

podem levar a conclusões absurdas no caso dos fatos raciais

1
O subjetivismo consiste na aceitação da premissa de que
nada é objetivamente dado, nem em raça nem em etnicidade. O
primordialismo, ao contrário, considera que há algo
fundamental e dado na natureza da etnicidade e da raça.

91
e étnicos. De um lado o primordialismo conduz ao racismo, e

o subjetivismo ao extremo da arbitrariedade na definição

dos atributos culturais possíveis de serem tomados como

sinal demarcador de fronteiras entre grupos; aí pode-se

chegar a conceber, na via da atribuição, a possibilidade de

qualquer traço diferencial ser capaz de constituir emblema

grupal. No primordialismo, além do aspecto já referido, há

ainda o risco de substantivar as diferenças obscurecendo os

aspectos efetivamente construídos pelo processo interativo.

A presença de fatores objetivos e subjetivos é

necessária para que exista um grupo étnico ou racial. Não

há etnicidade ou raça sem uma concepção e uma consciência

da diferença entre nós e eles. As percepções subjetivas não

se desenvolvem ao acaso. Elas se cristalizam em grupos de

características objetivas que passam a atuar como emblemas,

sinais de inclusão e exclusão.

As características que operam emblematicamente não são

selecionadas de modo totalmente arbitrário. Umas servem,

outras não. Umas tem o poder de demarcar fronteiras, outras

não. Recorrer à origem comum (seja ou não essa construção

baseada em fatos objetivos) é elemento básico para a

constituição de grupos que devem necessariamente ser

distintos de simples agregados étnicos ou raciais.

É frequente que atributos de caráter cultural sejam

adotados por grupos percebidos como racialmente distintos

como elementos de auto-identificação. Van der Berghe

considera este processo como uma tentativa de superar a

base racista de diferenciação, mais visível e atrelada a

92
crenças mais difíceis de serem desfeitas.(VAN DER

BERGUER,1976)

Desse modo, a eleição dos aspectos que serão tomados

como demarcadores das diferenças está estreitamente

relacionada à ideologia dominante da sociedade em questão.

A existência ou não de uma ideologia racista e a ênfase que

ela dá a elementos físicos ou culturais como fatores

básicos de diferenciação ou de estratificação, é de

fundamental importância na reelaboração dessa diferença

pelos grupos em interação.

Considera-se que há racismo quando as diferenças são

percebidas como próprias da natureza física dos indivíduos.

As características morais, intelectuais e comportamentais

são associadas a fatores de ordem biológica numa relação de

causalidade, podendo ou não haver a existência de sinais

distintivos físicos externos e visíveis. Assim, indivíduos

de aspecto físico semelhante podem ser percebidos como

racialmente distintos e aqueles que apresentam diferenças

físicas associadas à raça podem ser demarcados através de

fronteiras étnicas e não raciais. Então, a existência de

uma ideologia racial é central para o tipo de identidade

que se desenvolverá, quer seja de caráter racial, étnico ou

a combinação desses dois elementos.

Outra perspectiva que abarca o viés da atribuição é a

de minoria ou grupos minoritários. Aqui os fatores de

atribuição e auto-identificação são atuantes no processo

que regula a formação de minorias raciais (além de outros

grupos passíveis deste tipo de tratamento). Baseia-se numa

visão da sociedade e do problema racial como um fenômeno

93
associado a assimilação e integração de minorias, tendo

como pressuposto a idéia de sociedade de consenso.

Louis Wirth define minoria como um grupo de pessoas

que, em decorrência de suas características físicas ou

culturais, são tratadas de modo diferenciado ou desigual e

que se percebem como objeto de discriminação coletiva. A

sua existência vai depender da presença de um grupo

dominante com status e privilégios superiores. Necessita

ser distinguível do grupo dominante por marcas físicas ou

culturais, sem o que acabaria por mesclar-se aos demais

(WIRTH, 1945).

Nesse aspecto a diferença em relação à abordagem

anteriormente referida é marcante, pois não detecta o

processo de delimitação das fronteiras grupais nem as

condições de sua persistência. Toma como dadas as

diferenças que, uma vez conscientizadas, passam a

possibilitar a atuação política.

Para ele, o quanto a minoria difere do grupo dominante

condiciona as relações entre eles. Onde os grupos diferirem

de modo marcado fortemente em raça e cultura, sendo fácil

visualizar as diferenças na aparência e no comportamento,

as linhas que os separam terão maior persistência. O que

conta na questão das minorias não é apenas a sua posição

objetiva, mas também os padrões de comportamento

correspondentes e as imagens que constroem de si e dos

outros.

Glazer mostra que, modernamente, os grupos étnicos tem

se definido como "grupo de interesse". A etnicidade seria

um fenômeno no qual as diferenças sociais, traduzidas em

94
diferenças étnicas são utilizadas para fins de mobilização

grupal por demandas sociais, políticas e econômicas (GLAZER

& MOYNIHAN, 1976:1-26).

Charles Keyes encontra no fator "descendência" a

constante na definição dos grupos étnicos, mesmo quando não

haja a sua comprovação nas conexões genealógicas. Além da

descendência (cuja construção remete a "origem" a um plano

biológico), outro fator biológico é tomado como base de

classificação das pessoas: a raça. Para ele, as raças são

mutuamente exclusivas e não podem ser estruturadas numa

hierarquia de segmentos. Por essa razão, as diferenças

raciais servem para dividir a sociedade em relativamente

grandes segmentos. Essas diferenciações por vezes

atravessam e / ou obscurecem as distinções feitas com base

na descendência ou localidade (KEYES, 1976).

Outra questão que deve ser considerada é a relativa ao

uso da categoria raça e da noção de relações raciais. Uma

vez que se recuse a base biológica para explicar diferenças

culturais entre grupos humanos ou para apenas tipificá-las,

há que situar o significado que seu emprego assume. Raça

adquire sentido somente através de sua definição social

numa sociedade, devendo portanto ser qualificada em função

do conteúdo que aí apresenta. Entretanto as diferenças

fenotípicas (geneticamente herdadas) são base de

classificação social e freqüentemente emblema de

pertencimento étnico.

Van der Berghe considera que raça não exige uma

formulação teórica autônoma, pois as sociedades

multirraciais articulam diferenças raciais a outras de

95
outra natureza. Então, raça pode ser tratada como um caso

especial de diferenciação social e classificação. Quando há

a existência de grupos na sociedade que são classificados

racialmente, tende a ocorrer uma maior impermeabilidade no

sistema.( VANDER BERGUE, 1976)

Yinger vai se referir a grupos raciais apenas enquanto

grupos étnicos com um aspecto racial socialmente definido,

entre os de caráter lingüístico, religioso e outros de

ordem cultural. (YINGER,1981) As etnias só existirão em

sistemas onde grupos se diferenciem uns em relação a

outros. Destaca o quanto divergem as construções de

etnicidade, podendo elas convergirem ou não em

nacionalismos através de movimentos separatistas.

Para ele, o sentimento numa descendência comum, mesmo

que contenha elementos largamente míticos, está subjacente

à crença em interesses compartilhados. E isto deve ser

encontrado para se poder falar em fator étnico.

Portanto, alguns fatores necessitam ser articulados

ou combinados no plano teórico mais geral: sentimentos de

uma unidade cultural, ancestralidade e interesses.

No plano dos interesses destaca a importância de se

saber quem se beneficia do fato da etnicidade ocupar papel

predominante na disputa. Deve haver razões para que a

diferença racial ou étnica seja priorizada em relação a

outros fatores de diferenciação. Essas questões são

fundamentais para qualificar fenômenos tão diversificados

quanto os de tipo étnico ou racial.( YINGER,1981).

Os aspectos internos dos laços e lideranças dos grupos

étnicos não devem ser separados daqueles interativos

96
intergrupais e das influências da sociedade envolvente. Os

aspectos demográficos, econômicos, políticos e culturais

constituem forças mescladas em muitas situações. Elas

interferirão no grau de permeabilidade das fronteiras

grupais e na sua interpenetração com a sociedade

envolvente.

Uma teoria de relações raciais e/ou étnicas é, o mais

das vezes, simultaneamente uma teoria da desigualdade, da

discriminação e opressão. Os sistemas estratificados onde

se inserem essas relações conduzem a relações raciais e

étnicas imbricadas com a hierarquia, sendo isso fundamental

para a análise dos problema.

As sociedades multiétnicas apresentam-se muito longe

de configurar modelos bi-polares de articulação interracial

e étnica, devendo melhor serem vistas num contínuo onde

várias combinações são possíveis e em graus diversos de

intensidade.

A abordagem de Barth sobre a persistência de

fronteiras étnicas, a dinâmica da interação entre grupos,

as condições de reprodução e transformação dos sinais

demarcadores, permite perceber que o campo das relações

iterétnicas e raciais está longe de ser esgotado


2
teoricamente pois a variabilidade das situações históricas

, a especificidade de cada situação, são capazes de

2
Glazer & Moynihan mostram quanto são variadas as
situações históricas nas quais contemporaneamente a
etnicidade surge como base para mobilização e princípio
classificador para fins de aplicação de políticas sociais
pelos governos. Mostra também que essa etnicidade não está
relacionada a processos históricos e políticos e que
atributos diferentes são tomados como marca de
pertencimento e diferenciação.

97
fornecer materiais capazes de ampliar a sua reflexão. Para

ele, os grupos étnicos têm as características da interação

organizada entre os grupos . Enfatiza o fato de que os

grupos étnicos se definem por categorias de "atribuição" e

"identificação" pelos próprios atores. Desvia o foco da

análise dos "traços culturais" para o plano interacional.

Nessa perspectiva, a cultura comum a um grupo não é uma

característica primária constituidora do grupo étnico

(BARTH, 1970).

Abner Cohen define etnicidade como a forma de

interação entre grupos culturais atuantes no seio de um

contexto social comum (COHEN, 1974:XI). As cidades são um

espaço privilegiado para a observação desse fenômeno.

O exame das relações interraciais e iterétnicas exige

então que planos analíticos distintos sejam considerados.

Envolve, de um lado, a constituição dos traços que

respaldam o estereótipo construído acerca de si e do outro,

a formação histórica do grupo, seu modo de incorporação e

inserção na sociedade enquanto um produto histórico. De

outro, a conjuntura econômico-político/ideológica, social e

cultural em que se dá o confronto no plano interativo

(SEYFERTH, 1983:1). Uma das dimensões é situacional e

oscilante e contém condições para o livre jogo e a

manipulação da etnicidade e dos estereótipos.

Uma das formas de tratar as relações raciais é a que

enfatiza o aspecto da identidade étnica. Essa

possibilidade se abre no momento em que se culturalizam os

aspectos construtores dos estereótipos deixando de lhes

conferir uma origem biológica. Esse processo pode usar

98
fenótipos raciais como sinalizadores de atributos

identitários sem os reduzir à dimensão biológica.

Os grupos separam-se e ordenam-se no campo social,

definindo os limites grupais em termos de categorias

capazes de marcar as diferenças entre um nós e um eles. A

etnicidade surge como "produto da interação e da percepção

interna e resposta externa a forças que atuam no grupo e as

que são impostas de fora." (SEYFERTH, 1983:2)

As identidades podem ser negativas e significar a

adoção e internalização do estereótipo negativo formulado

pela avaliação desqualificadora elaborada por um "outro"


3
dominante.

A etnicidade opera como afirmação do grupo perante

outro grupo e a sociedade envolvente. Existem aspectos

ideológicos e políticos envolvidos nesse jogo. Os

contingentes etnicamente diferenciados podem ou não

organizar-se como grupo politicamente mobilizado para a

competição. Eles não só se diferenciam entre si como

ocupam, na maioria dos casos, lugares ou posições desiguais

na sociedade na qual estão inseridos. Isso faz com que a

classificação étnica seja interpenetrada pela desigualdade

social. Assim é que a etnicidade pode operar como

estratégia política servindo tanto para justificar

3
Comparando a situação do imigrante europeu no sul do
Brasil e a do negro no Brasil, Seyferth percebe que ambos
os grupos foram incorporados à sociedade como minorias e
cidadãos de segunda classe (embora por formas históricas
diferentes) e desenvolveram reivindicações políticas com
base em etnicidade. Demonstra como os imigrantes europeus,
ao contrário dos negros, desenvolveram internamente uma
identidade que se auto-valorizava positivamente, ao
contrário dos negros que internalizaram uma auto-
valorização negativa (SEYFERTH, 1983).

99
ideologicamente a dominação, como para promover a

solidariedade dos grupos dominados, construindo a base para

a disputa política.

A questão étnica envolve um aspecto emocional ativo.

Seu poder como princípio organizador é forte, além de serem

as diferenças étnicas diferenças reais. Ou seja, a

etnicidade é muito mais do que um "idioma de organização

política" (SEYFERTH, 1983).

Diz Manuela Carneiro da Cunha que:

"O que se ganhou com os estudos de etnicidade


foi a noção clara de que a identidade é
construída de forma situacional e contrastiva,
ou seja, que ela constitui resposta política a
uma conjuntura, resposta articulada com as
outras identidades em jogo, com as quais forma
um sistema. É uma estratégia de diferenças.
(...) A outra face do mesmo processo é a que
faz das diferenças reais algo mais do que são,
ou seja, sinais diacríticos." (CARNEIRO DA
CUNHA:1985:206)

Afirma ainda que a consciência da diferença mais do

que a própria diferença é o que constroem a identidade

étnica, "...mas esse acesso das diferenças a uma

significação que as ultrapassa advém-lhes de sua colocação

dentro de um sistema." (CARNEIRO DA CUNHA, 1985:206)E que :

"... a identidade étnica refere-se a algo


específico, uma origem histórica. É uma
afirmação sobre essa origem putativa, através
de sinais tangíveis: a 'cultura'." Essa
história "não é necessariamente desfiada: basta
que esteja implícita. Ela é na verdade, uma

100
caução para o que realmente, no dia-a-dia,
marca a identidade étnica, ou seja, a
'tradição', a 'cultura', modo imediato de
manifestação da origem do grupo, caução que a
ancestralidade confere." (CARNEIRO DA CUNHA,
1985:206)

O caso brasileiro de modo particular parece

interessante para o questionamento das vias teóricas de

interpretação. De certa forma, o fato racial no Brasil

apresenta uma complexidade incapaz de ser entendida sem

levar em conta vários aspectos.

Entre eles destacamos a existência de uma ideologia

racista na base histórica do estabelecimento das relações

entre brancos e negros. A inserção forçada do estoque negro

numa terra estranha e num contexto escravista, onde foi

lotado na posição de escravo necessitou daquela ideologia

para se manter naturalizada a desigualdade. A reelaboração

da ideologia racial no período pós-abolição além das

próprias características do processo abolicionista

produziram os mecanismos preservadores da hierarquia entre

brancos e pretos.

A noção de raça historicamente foi definida de modos


4
distintos. Eles contém em comum o grau de arbítrio com

que as populações foram classificadas. Raça possuiu

múltiplos conteúdos, indo da ciência à ideologia num

continuum.

A busca por características capazes de classificar a

espécie humana incluiu traços físicos exteriores (a cor da

pele sendo a característica classificatória que mais se

101
impos) aos quais foram agregados, pela via ideológica da

crença na superioridade dos brancos, aspectos culturais.

Isso promoveu a tradução das diferenças em desigualdade. O

racismo se torna a ideologia que passa a reger as relações

entre os grupos humanos, eles mesmos classificados em

níveis de superioridade e inferioridade, tendo os brancos

no seu topo e os negros na base.5

O racismo chegou ao Brasil nos fins do século XIX na

condição de ciência. Incorporou-se ao discurso político

voltado ao "planejamento da nação". Nele a imigração

européia, arma da mestiçagem seletiva como estratégia de

"branqueamento" seria o meio de modernizar o país, mediante

a eliminação progressiva das raças inferiores.

Essas idéias, apresentadas como científicas, tinham

familiaridade com as crenças populares sobre raça e

mestiçagem. Extraem-se do "popular" os estereótipos que vão

respaldar as teses do branqueamento, agregando-se às

características físicas, outras de caráter moral que

passarão a compor os meios demarcadores dos diferentes

grupos. Nesse contexto, o mestiço é posto numa posição

"instável"6 o uma gradação na qual quanto mais claro mais

alta a sua posição na hierarquia.

Paralelo a isso, desenvolvia-se a crença na ausência

de preconceito racial como característica do brasileiro.

4
Sobre isso ver SEYFERTH, 1995:175-204.
5
O pressuposto da desigualdade biológica da humanidade
atingia, além das raças inferiores, o sexo inferior, os
grupos étnicos inferiores e as classes inferiores.
6
.Conforme SEYFRTH, 1995.

102
Ela decorreria da plasticidade do luso derivada da sua

condição de produto eugênico da mestiçagem (FREYRE, 1992).

A mestiçagem foi o argumento fundamental para

respaldar essa crença e os mestiços percebidos como

amortecedores das possibilidades de polarização racial das

quais derivariam conflitos e violência raciais.7

Oracy Nogueira) vai buscar o entendimento para as

características das relações raciais na sociedade

brasileira, através da comparação com o fato racial nos

Estados Unidos. (NOGUEIRA, 1985 Vê que no Brasil o

preconceito é de marca e nos Estados Unidos de origem. Essa

diferença produz no Brasil a possibilidade de incorporação

de mestiços ao grupo branco o que não seria possível nos

Estados Unidos.

Giralda Seyferth vai criticar essa interpretação

quanto à sociedade brasileira, vendo nela limites

(SEYFERTH,1995). Demonstra o conteúdo racista da atribuição

de identidade nos estereótipos criados para classificar os

negros. Vê a persistência da idéia de origem racial na

forma indireta da marca racial, o que a expressão "ter o

pé" perfeitamente ilustra, e as idéias de "apurar a raça"

ou "melhorar a raça igualmente atestam". Questiona também a

idéia do "branqueamento social". Para ela ele seria

"afetado pelo constrangimento que as identidades raciais

presumíveis e a cegueira fenotípica consensual

características das atitudes de polidez podem ter no curso

das relações sociais." (SEYFERTH,1995:195)

7
Sobre isso ver Thales de Azevedo (AZEVEDO, 1975).

103
O desenvolvimento da crença na democracia racial

encobriu mas não eliminou as formas de persistência da

ideologia racista no contexto da democracia racial e seu

papel na demarcação de fronteiras grupais.

A estratificação em classes no meio urbano-industrial,

a ideologia que preside o código individualista de

incorporação dos cidadãos à sociedade nacional que não

reconhece a sua própria segmentação étnico-racial termina

por reforçar os mecanismos não formais de delimitação das

fronteiras entre as suas diferentes comunidades. A

mestiçagem, parte importante na ideologia racial

brasileira, é tomada como seu símbolo. É posta como escalão

intermediário e mediador das relações sociais entre os

grupos branco e negro.

Entretanto, os estereótipos raciais no Brasil mostram

o quanto as teorias racistas foram tomadas como base para a

sua construção.8

Acreditamos que raça e etnicidade e classe constituem

instâncias de alocação dos grupos no bojo de um sistema

social diferenciado e desigual.

As diferenças grupais quando são marcadas

fenotipicamente, dificilmente removem daí os sinais

demarcadores da diferença e em especial quando associada à

desigualdade. O aspecto físico opera como um sinal

diacrítico fundamental ao qual serão associados os

estereótipos, mesmo que fora de uma relação de

8
O que é analisado por SEYFERTH, 1995.

104
9
causalidade . Não há casos históricos conhecidos

neutralidade neste campo.

Outras características, de ordem cultural, manipuladas

pelo grupo para sua auto-definição enquanto tal no contexto

relacional em que se forjam as identidades, serão

associadas à aparência.

Raça como categoria de classificação social existe

sempre que socialmente se reconhece sua existência. Seu

conteúdo é relativo às definições socialmente construídas e

situam-se no campo ideológico. É desse modo que usamos o

termo raça para falar do pertencimento social das famílias

negras e das suas relações com os brancos nas classes

médias de Porto Alegre.

A raça, quando expressão de diferenças culturais, é um

sinalizador Quando recorta grupos desiguais no sentido

hierárquico - marca a desigualdade e se converte num


10
estigma .

As sociedades com passado escravista como o Brasil,

elaboraram códigos de relacionamento mantenedores da

distância social. A transformação dessas sociedades em

moldes democráticos e abertos não produziu o banimento da

marca racial como marca de subordinação.

9
Goffman trabalha com a noção de estigma para abordar essa
questão. A marca indicaria uma identidade social virtual
que seria atribuída aos seus portadores. Os estigmas de
raça são definidos por ele como parte dos "estigmas
tribais". Esse estigma é transmitido aos indivíduos por
"linhagem" e funda expectativas assentadas nos estereótipos
que são atribuídos aos seus portadores. Enfatiza a
perspectiva relacional na qual o "diferente" vai ser
definido em relação a outro dado socialmente como
"normal". (GOFFMAN,1978)
10
No sentido de GOFFMAN.

105
A resposta étnica produzida pelo grupo negro

restabelece o diálogo entre as categorias raça e


11
etnicidade visando enfrentar o racismo através de sua

afirmação enquanto grupo culturalmente distinto.

Se raça marca a desigualdade social e sinaliza a

condição subalterna (o diferente é o outro, o dominado), a

etnicidade introduz, mesmo sem eliminar os atributos

fenotípicos como sinais diacríticos, a diferença cultural

associada à demanda por igualdade social.

O preconceito e a discriminação contra o negro

atualiza-se em grande medida na segregação social, forma

de segregação étnica e racial. Eles são as bases

constitutivas das diferenças fundamentais sobre as quais se

assentam os confrontos entre os grupos e o eixo

privilegiado nos estudos sobre o negro no Brasil.

2.2. Classe Social e Posição Social.

Situar um conjunto de indivíduos numa determinada

posição social, exige que certos aspectos sejam

considerados. Sendo a sociedade em que se inserem uma

sociedade de classes, urbana, diversificada, torna-se

necessário refletir, do ponto de vista teórico, sobre as

bases conceituais adequadas a essa realidade.

O conceito de classe social no sentido definido por

Marx, situa os indivíduos frente a uma estrutura social que

11
A etnicidade é vista como um processo. Ela se reconstrui
e redefine internamente e sob pressão externa. É
fundamental no delineamento das fronteiras grupais.

106
se assenta na apropriação dos meios de produção por parte

de um grupo, que por isso detém o poder no âmbito das

relações sociais, econômicas e políticas. (MARX, 1973) A

isso corresponde a capacidade de tornar dominante na

sociedade a sua própria ideologia. Esta empresta ao

conjunto das relações sociais o sentido das práticas

sociais, sob a forma de crenças, aspirações. Decorre do

referencial marxista uma noção de cultura que a identifica

como ideologia - representações forjadas no âmbito da

prática e das relações, elas mesmas determinadas pelas

condições objetivas de existência (MARX & ENGELS, 1971).

Aí a divisão do trabalho opera recortes interessantes,

especialmente aquele decorrente da divisão entre trabalho

manual e intelectual. As implicações disso sobre a

ideologia são consideradas essenciais por Marx, pois situam

diferentemente os trabalhadores no processo produtivo e no

campo ideológico.

Em que pese a contribuição dessa abordagem para a

percepção global da estrutura social - vista como uma

estrutura concreta, real e dinâmica historicamente - os

seus limites para dar conta da realidade empírica numa

perspectiva sincrônica são claros. Promovem uma

homogeneização incapaz de contemplar toda a riqueza

disponível para reflexão na realidade social e cultural.

Outras referências e mesmo alguns desenvolvimentos do

próprio aporte marxista precisam ser buscados para permitir

uma maior compreensão do nosso objeto.

Weber situa as classes sociais num mercado,

privilegiando o aspecto da circulação de bens e as posições

107
frente a ele. Isso define "situação de classe"(WEBER,

1944). A propriedade de bens - sejam meios de produção,

sejam de consumo - é um dos fatores determinantes da

situação de classe, embora não seja o único. Uma hierarquia

de status e prestígio, cuja base se assenta em valores

simbólicos conferidores de poder e privilégios, dispõe os

indivíduos na estrutura social. De modo que, as condições

objetivas de inserção de grupos sociais numa dada sociedade

são decisivas na determinação de sua posição. Não ser

proprietário de meios de produção não impede que um

indivíduo obtenha poder e prestígio e a decorrente vantagem

econômica. A situação de classe (que se distingue de

posição de classe) é dependente de um certo montante de

renda e da fonte dessa renda.

A inserção social obedece também a princípios e

valores que se situam na cultura, instância que atribui


12
sentido e norteia as práticas e representações.

Identificar "a" classe média é tarefa árdua, dada a

sua grande diferenciação interna. Wright Mills aponta para

o fato de que "as novas classes médias"13 não constituem

uma camada social, pois seus membros - predominantemente

"colarinhos brancos" - formam uma "espécie de pirâmide e

12
Do ponto de vista empírico, consideramos suficiente para
fins de seleção das unidades de investigação, os
indicadores sócio-econômicos clássicos - escolaridade e
ocupação e padrão de vida exibido, e estilo de vida que
possuíam.
13
O crescimento das novas classes médias deriva do aumento
da participação da força de trabalho na prestação de
serviços, distribuição, etc., decorrente de transformações
do sistema produtivo (aumento da produtividade,
tecnologia), o que reduz em termos relativos o volume das
classes trabalhadoras (proletários). Tanto o Estado, quanto

108
não uma camada horizontal". (WRIGHT MILLS, 1969) As classes

médias se situam, na sua base, próximas das rendas mais

baixas e alcançam os que estão no topo da pirâmide social.

A nova classe média se distingue da antiga (pequenos

proprietários) em sua composição. Elas são constituídas

predominantemente por professores, vendedores e os vários

tipos de empregados de escritório.

A natureza da distinção que aponta reside na "passagem

de uma estratificação baseada na propriedade para uma

estrutura baseada na ocupação." (WRIGHT MILLS, 1969:85)

Entretanto com isso não abdica da propriedade como fator de

atribuição de posição social e tampouco do tipo de trabalho

e do seu lugar numa divisão industrial do trabalho, da

função e do poder que ele confere.

No caso norte-americano analisado pelo autor, o

prestígio das classes médias decorreu de sua semelhança com

a antiga - que era pequena proprietária -, do grau de

escolaridade exigido para determinadas ocupações, de

fatores étnicos (restrições ao emprego de negros em cargos

públicos), do fato de representarem o poder de outros -

"auxiliares da autoridade" - que levou-os a desfrutar de

parcela desse poder.

Esse aporte de Wriht Mills foi importante na

fundamentação do recorte que realizamos, dadas as

características ocupacionais e étnicas que, conjugadas,

compõem o perfil do segmento analisado.

Diz Gilberto Velho que :

o setor privado necessitaram aumentar seus staffs


burocráticos. (WRIGHT MILLS, 1969)

109
"As próprias noções de classe média e
trabalhadora são excessivamente vagas e podem
escamotear diferenças internas consideráveis
como, por exemplo, o tipo de trajetória social
(BOURDIEU, 1974) ou a natureza da rede de
relações sociais (network) em que se movem os
indivíduos, mais ou menos abertas (BOTT, 1971).
Ora, a experiência de mobilidade social, a
ascensão ou o descenso, introduz variáveis
significativas na experiência exixtencial seja
de pessoas oriundas da classe trabalhadora ou
da classe média que são forçosamente diferentes
de uma situação de estabilidade e permanência.
Por outro lado, o convívio com outros grupos ou
círculos pode afetar vigorosamente a visão de
mundo e estilo de vida de indivíduos situados
em uma classe sócio-econômica particular,
estabelecendo diferenças internas." (VELHO,
1981:20)

Gilberto Velho, partindo do conceito de cultura de


14
Geertz do qual assume a "idéia de que existe uma produção

simbólica e um sistema de símbolos que dão as indicações e

contornos de grupos sociais e sociedades específicas

(...)", embasa a sua reflexão sobre a constituição das

"fronteiras culturais entre grupos de indivíduos que

segundo critérios sócio-econômicos (...) pertenceriam à

mesma categoria." (VELHO, 1981:105-106)

As diferenças entre os grupos são equacionadas por ele

a partir dos conceitos de ethos (aspectos morais e

14
"...o conceito de cultura ao qual me atenho não possui
referentes múltiplos nem qualquer ambigüidade fora do
comum, segundo me parece: ele denota um padrão de
significados transmitidos historicamente, incorporados em
símbolos, um sistema de concepções herdadas expressa em
formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam,
perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades
em relação à vida." (GEERTZ, 1978: 103)

110
valorativos) e visão de mundo (aspectos cognitivos,
15
existenciais).

Ele sugere que a compreensão dessas diferenças deve

ser buscada na "trajetória" e não apenas na "posição do

indivíduo, família ou grupo." (VELHO, 1981)

Entretanto, aponta a "dimensão consciente da ação"

como interferência forte nas motivações e nas realizações


16
práticas. Essa dimensão - o "projeto" - permite entender e

situar no plano da cultura, a margem relativa de escolha

dos indivíduos em determinadas condições históricas e

sociais (conjunturais).

O grupo observado para fins de estudo pode ser

definido enquanto pertencente às classes médias e possui em

comum um fator étnico-racial. São pertencentes a diferentes

gradações de renda e prestígio, compondo um conjunto

representativo da heterogeneidade própria dessas classes e

além disso configurando um grupo em processo de ascensão

social.

As diferenças que apresentam estão relacionadas às

especificidades de suas trajetórias e projetos, além das

situação e posição sociais que ocupam.

Em artigo sobre ascensão social de negros em Porto

Alegre Fernando Henrique Cardoso viu que o significado da

ascensão social para o negro é distinto, envolvendo uma

maior complexidade:

15
Também no sentido de Geertz. (GEERTZ, 1978)
16
Tal como foi proposto por Schutz (SCHUTZ, 1979)

111
"o ideal de subir na vida, isto é, de obter uma
ocupação capaz de produzir melhores rendas,
(...), ganha uma nova dimensão e se apóia numa
motivação mais complexa no grupo negro. A par
do êxito em termos de maior consideração
social, respeitabilidade, admiração social,
garantia econômica e todos os demais
componentes normais da obtenção de um status
mais alto, a ascensão social do negro
significa, ao mesmo tempo, aos seus olhos, a
perda da condição de ser alienado imposta pela
avaliação social desfavorável da cor."
(CARDOSO, 1960:584)

Quando surgem condições favoráveis à ascensão, dadas

pela própria ordem econômica e social geral, o grupo negro

encontra estímulo para competir por posições melhores.

Entretanto depende de alguns fatores:

"Em primeiro lugar, para que haja um impulso


para a ascensão social regulado por condições
e fatores internos no grupo negro é preciso que
este já tenha alcançado algum grau de
diferenciação interna e uma posição mais ou
menos definida na estrutura ocupacional
inclusiva, (...). Em segundo lugar, os
estímulos favoráveis não atingem o grupo negro
como um todo. A própria diferenciação interna
do grupo negro, condição suposta como
necessária para que o processo em discussão se
desencadeie, implica na existência de formas
desiguais de participação nos ideais e nas
possibilidades de ascensão. Além disso, em
tais processos, fatores como o tipo de
personalidade, o grau de inteligência e até
beleza física dos indivíduos, interferem na
seleção dos que têm mais chances para ascender
ou que são mais sensíveis ao ideal de
ascensão, e, por isto mesmo, aproveitam melhor
as motivações que as condições sociais
específicas engendram." (CARDOSO, 1960:584)

112
Cardoso está falando do duplo significado contido na

ascensão social para os negros, percebendo nos processos

envolvidos as suas expectativas do fim do preconceito e da

sua relativa marginalização. Além disso, condiciona a

ascensão às pré-condições internas do próprio grupo negro,

que é a própria diferenciação e sua inclusão no sistema.

Lembra ainda que os processos de ascensão atingem parcelas

do grupo portadoras de atributos valorizados pela cultura

dominante.

Florestan Fernandes aponta para alguns dos processos

através dos quais as pré-condições para o acesso aos meios

de ascensão social teriam sido propiciados (FERNANDES,

1965).

O "favoritismo paternalista" teria sido um deles. Isso

seria um ajuste que teria incentivado o "negro bom" a

ingressar em empregos e obter melhorias na sua inserção

social. Especialmente a educação teria sido favorecida

através desses incentivos. Ser criado numa família melhor

situada, branca, também produziu efeitos socializadores

capazes de criar aspirações e pré-condições que geravam

diferenças em relação aos ajustamentos "normais" do negro e

também do branco pobre. (FERNANDES, 1965, vol.II).

O meio negro vai condenar esses favoritismos e apostar

na idéia de que o negro deve fazer-se por si mesmo. Isso,

entretanto não impediu que parcelas das classes médias

negras tenham obtido, num passado recente, ganhos sociais

através desse tipo de ajuste, em si mesmo não exclusivo das

relações entre negros e brancos.

113
Para Florestan, aqueles incentivos correspondem "à

persistência de velhos padrões de comportamento nas

relações raciais." Isso confere um caráter esporádico aos

processos de acesso às condições de ascensão, fazendo com

que eles não correspondam mais às atuais exigências

(FERNANDES, 1965, vol.II:138).

As formas mais tradicionais de inserção, ainda para

esse autor, engendraram o que ele chama de "impulsão

psicossocial" à ascensão, que por sua vez teria produzido

um puritanismo peculiar:

” a associação entre a dignidade da pessoa e a


maneira mais ou menos íntegra de por em prática
os valores sociais da ordem estabelecida. ...
os valores e instituições absorvidos
socialmente, por constituírem um mecanismo de
redenção social, são compartilhados com
fidelidade e integridade morais a toda prova.
Não aparecem como meios para atingir fins
suplementares; porém como mecanismos legítimos
de auto-afirmação." (FERNANDES, 1965,
vol.II:145).

Na conjuntura, - nacional e em especial paulista -,

que ele analisa (1930 - 1960), outros tipos de incentivos

"psicossociais" estariam presentes. Eles fluiriam das

condições de vida do grupo negro e mulato. Inicialmente

haveria aqueles que "resultam, como condição ou como efeito

da modernização do horizonte cultural do "negro". Em

segundo lugar, os que emanam da própria dinâmica estrutural

da sociedade de massas. As transformações sofridas pelas

estruturas, tais como a economia

114
de mercado, começam a :

"abarcar a totalidade da população da cidade.


Portanto, independentemente de qualquer esforço
deliberado, procedente dos estoques raciais
"branco" ou "negro", ocorreu uma tendência
marcante de nivelação dos estilos de vida, dos
comportamentos e aspirações sociais, de
conseqüências específicas quanto a situação
social da população de cor." (FERNANDES, 1965,
vol.II: 138)

Thales de Azevedo considera que a urbanização e

modernização da sociedade e o aumento da classe média

favoreceu a ascensão de pessoas de cor, favorecidas

principalmente pelos empregos públicos e as estruturas de

representação política popular, especialmente nos estados

do país nos quais elas compõem a maioria da população. Vê

na educação o canal mais acessível de ascensão e no

casamento "heterogâmico" outro meio favorecedor da

mobilidade social. Entretanto, a esses mecanismos não

correspondem a incorporação ao meio social da classe

dominante branca, ocorrendo a agudização da fronteira

racial (AZEVEDO, 1975).

Este autor nos chama atenção para os fatores "tempo e

percurso" no processo de ascensão social: "a fixação de um

status global persistente não é, na maioria dos casos, uma

ocorrência imediata", ... e "envolve, não raro, uma e duas

gerações." Também a mudança de ocupação (no sentido de

ascensão) não constitui logo um novo status." Sobre o

"percurso" diz ele que "a distância percorrida na

115
mobilidade é limitada e pré-determinada, por assim dizer,

pelo ponto de partida." (AZEVEDO, 1975:80)

No caso dos negros, segundo ele, esse fato tem duplo

peso: de um lado o grupo negro é historicamente muito baixo

e além disso "traz uma marca indelével, a cor, que é um

peso negativo em todo o movimento ascensorinal quer de

indivíduos, quer principalmente do grupo." (AZEVEDO,

1975:81)

Essas contribuições nos remetem aos aspectos

históricos e sociológicos dos processos sociais e

econômicos envolvidos na ascensão social dos negros. Do

ponto de vista global eles oferecem uma leitura necessária

das condições históricas e sociais propiciadoras das

oportunidades de mudança de classe, sem o que o

entendimento da relação do grupo com sua história

particular, tal como é reconstruída por ele, perde parte do

significado.

Nossas reflexões levam em conta a distinção weberiana

entre situação de classe e posição de classe, a qual

acrescentamos as contribuições de Wright Mills no que

concerne às variações de posição e situação possível nas

classes médias. A isso necessitamos ainda integrar a

reflexão de Gilberto Velho no que concerne às fronteiras

culturais entre grupos, assentadas em diferenças quanto ao

ethos e estilo de vida, associadas à trajetórias e projeto.

Consideramos que o fator racial e a etnicidade são

demarcadores radicais das fronteiras que particularizam o

significado da experiência social do grupo que analisamos.

Internamente, entretanto, o grupo está sujeito a realizar

116
redefinições e ressignificações da cultura da qual fazem

parte, não só por suas diferenças internas decorrentes das

gradações de posição, mas por suas trajetórias, estas em

grande medida construtoras de um ethos e de um estilo de

vida que propicia a formulação de um projeto capaz de

individualizá-los de modo distintos.

2.3. Família Negra: Uma Discussão Necessária

A discussão sobre família negra é ampla. São muitos os

estudos feitos, principalmente sobre o Caribe, onde a


17
matricentralidade constitui o foco fundamental.

Tem-se atribuído à família negra, especialmente a

norte-americana, características diversas da branca. Nem

sempre considerando suficientemente o recorte de classe

como instância de relativização dessas diferenças, o

matriarcado tem sido enfatizado como peculiaridade do grupo

negro, quer afirmando a preeminência feminina como derivada

da cultura africana, quer vendo-a como decorrente da

desagregação da família que formou ou pôde formar nos

períodos escravista e pós-emancipação.

O trabalho de Franklin Frazier , em estudo sobre a

sociedade norte-americana, na década de 30, considerou a

população negra como um segmento que tem sua configuração

decorrente da desagregação da base cultural africana e da

117
sua incapacidade de absorver o modelo fornecido pela

sociedade onde se integrou (FRAZIER, 1973).

Frazier trata da evolução da família negra desde a

escravidão, passando pela emancipação, reconstrução e a

migração para os centros industriais do norte numa

perspectiva histórica. Identificou na família negra uma

orientação matriarcal, onde a instabilidade conjugal e a

permissividade sexual eram traços oriundos do processo de

sua formação histórica. Viu no que considerou

desorganização da família negra, um caráter desfuncional.

Tece comparações entre grupos negros, analisando

diferentes regiões do país em diversos momentos históricos,

e demonstra que, onde foi possível, a família conjugal-

patriarcal se estabeleceu. Universalizando o modelo

familiar ocidental atual, tomou-o como parâmetro para

avaliar as composições familiares e domésticas do grupo

negro.

Gutman, também para os Estados Unidos, com base em

correspondências e documentos de postos de atendimento

social no período da Guerra Civil e pós-emancipação ,

percebeu que a escravidão não eliminou os sentimentos

relativos aos laços familiares, os quais se mantiveram

mesmo considerando a guerra civil, as vendas e as

migrações, além de outras formas de separação dos membros

de uma família, pois havia o reconhecimento dos pais,

irmãos, além de parentes como primos, tios e outros

(GUTMAN, 1976).

17
Sobre isso ver SMITH, 1973.

118
Frazier investe mais nos processos engendrados pela

escravidão e pelas perdas culturais sofridas pela população

negra. Nessa base é que se assentaria o "matriarcado

negro".

O eixo incapacidade-falta de oportunidade como o

fator explicativo básico para a configuração da família

negra, conduz a hipóteses explicativas para as

características apresentadas pela família negra,

especialmente a chefia feminina, que levam à idéia de que

na pobreza residiria a maior pureza africana, a menor

penetração da cultura branca hegemônica (esta também

homogeneizada) e de que nos estratos mais altos estaria


18
sendo substituída pelo padrão família nuclear.

Raymond Smith vai trabalhar o conceito de

matrifocalidade, que para ele é uma propriedade de grupos

domésticos com ou sem a presença do homem. Seria uma

propriedade das relações internas dos grupos domésticos

independentemente da chefia. A matrifocalidade não se

define por altas taxas de ilegitimidade, chefia feminina

(matriarcado) e instabilidade conjugal. Ela está também

relacionada à classificação de gênero na sociedade (SMITH,

1973).

Seu estudo se realizou nas Guianas e percebeu ali uma

forte segregação de papéis sexuais. A divisão do trabalho

marca o domínio doméstico como uma órbita feminina, havendo

aí a preeminência da mulher (SMITH, 1973).

Já Bastide identificou na família do Candomblé, na

sua organização social, tal como ocorreu na Bahia, traços

119
19
africanos. Explica a força da mulher negra a partir de uma

base africana matricêntrica, ocorrendo, portanto, mesmo

onde o homem se faz presente (BASTIDE, 1974).

O estreitamento das relações matrilaterais operado por

mulheres parentes, fato encontrado por Elisabeth Bott nas

classes trabalhadoras inglesas (BOTT,1976), não é

obrigatoriamente matrifocalidade. Esse estreitamento pode

ou não representar um padrão que apresente um papel

estrutural no sistema.

A matrifocalidade ocorre no domínio doméstico onde a

relação mãe-filho constitui o elemento básico e em

sociedades com marcada diferenciação nos papéis sexuais.

Ela seria função mais do tipo de inserção do grupo na

sociedade e em especial do status do homem e sua

participação econômica no grupo doméstico do que de uma

construção cultural que enfatize parentesco matrilateral.

Para Bott, os sistemas de parentesco bilaterais

permitem o desenvolvimento do estreitamento matrilateral

gerando grupos de solidariedade e ajuda formados pela

esposa-mãe, tias maternas e avó materna. Entretanto esse

tipo de grupo, segundo ela, não tem continuidade

estrutural, não perduram por gerações, não são nomeados e

tendem a romper-se quando a avó morre. Essa ausência de

continuidade estrutural se deve ao fato de que os laços

tiveram origem no domínio doméstico ligados à identidade de

papéis de gênero.

18
Sobre isso ver ALLEN, 1978.
19
Também Ruth Landes fez estudos mulheres e Candomblé e
percebeu a preeminência das mulheres, o que chamou de
"matriarcado de culto" (LANDES, 1967).

120
Considerando os limites impostos à inserção do negro

nas ex-colônias e as condições objetivas que enfrentou no

processo de abolição da escravidão e que conduziram à

necessidade da mulher se tornar a provedora principal das

famílias, a relação mãe-filho assumiu uma maior

centralidade e não seria impossível a criação de um sistema

matrifocal, se aquelas condições objetivas não se

alterassem. As evidências empíricas mostram que a ausência

do pai-marido tem sido um fato bastante frequente, o que é,

então um dado a ser considerado. Retomar a tese de

Frazier, para quem a família negra, mais que matricêntrica,

é matriarcal, não é entretanto a única opção teórica

possível.

Considerar outros fatores intervenientes na

constituição da família e da unidade doméstica tem sido o

meio de ponderar a tendência a generalizações por vezes

precipitadas. Cabe refletir então sobre a possibilidade de

se trabalhar uma noção de família flexível, capaz de

englobar os arranjos possíveis em oposição a um conceito

de família uno, fechado, que como tal só pode existir

abstratamente.

O predomínio dos estudos sobre negros e sobre família

em sociedades ocidentais são realizados em grupos pobres -

favelados, trabalhadores, e outros segmentos - o que pode

estar criando um viés, pois a população negra concentra-se

nas camadas mais baixas de modo mais marcante do que a

branca.

Conforme Agier em estudo sobre lares pobres em

Salvador, a unidade operante nas estratégias de

121
sobrevivência é mais abrangente do que a família doméstica.

Esse fato contraria a ênfase na díade mãe-filho como

unidade central. Mais do que a díade materna, um conjunto

de relações que envolvem principalmente pais e filhos com

ênfase no circuito de parentesco da mulher constituem a

unidade, na qual se enfatiza também os filhos de mesmos pai

e mãe (AGIER, 1989) .

A matricentralidade, ainda segundo Agier, está

relacionada à honra e à estabilidade financeira do homem na

unidade doméstica. Esta se localiza preferencialmente perto

da parentela da mulher. A pobreza afeta mais o status do

homem do que da mulher e numa situação de instabilidade

financeira, o homem deixa o lar e a mulher, abandonada,

pode ser ajudada pela sua rede de parentes.

A noção de ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico

tal como foi formulada por Meyer Fortes , é útil para a

reflexão quando se pensa em trabalhar com trajetórias. Essa

noção contém em si o princípio de temporalidade e quando

aplicada a grupos concretos, no caso famílias, é um

operador interessante (FORTES, 1974).

Definido como tempo de existência de uma unidade do

sistema social, ele está relacionado ao tempo de vida

biológico de seus membros. A continuidade do sistema

depende da substituição de seus membros e a evolução de um

grupo obedece ao ritmo do desenvolvimento biológico dos

mesmos. Determinadas fases da vida, definidas pela cultura,

marcam o tempo no processo de vida, assinalando posições às

quais os indivíduos estão aptos a galgar. Isso implica

certa continuidade estrutural que se dá através da

122
substituição física dos membros do grupo. Esse processo é

assegurado pela socialização e Fortes vai denominá-lo

processo de reprodução social, cujas bases são o capital

humano (reprodução biológica) e capital social (bagagem

cultural).

Fortes está mais preocupado com os fatores de

reprodução e manutenção das estruturas, não questionando as

forças de transformação presentes no processo. Mudança de

status num processo de ascensão produz alterações

significativas nos arranjos familiares e na organização dos

papéis na unidade doméstica e na família.

Para o caso em análise, perceber e problematizar este

aspecto é básico. De um lado, para manter clara a distinção

entre família (como uma unidade social) e grupo doméstico,

as quais podem ou não coincidir enquanto totalidade. De

outro, para relativizar o modelo atual de família no plano

das representações e práticas dos grupos pesquisados,

pensar as diversas configurações assumidas por ela e pelos

grupos domésticos ao longo de trajetórias sociais. É útil

então para se repensar a questão da família negra enquanto

uma formação específica possuidora de peculiaridades

capazes de marcar uma fronteira entre negros e outro grupo

racial e/ou étnico.

Woortmann salienta que o termo parentesco aparece, no

Brasil, como sinônimo da instituição família, situação

essa, segundo ele, também encontrada por Schneider

(SCHNEIDER,1968) na sociedade norte-americana. É a família

uma "unidade cultural genuína". (WOORTMANN, 1987: 14) Nas

sociedades ocidentais o parentesco existe enquanto

123
construção ideológica. Nas metrópoles ele não perde a

importância, mas torna-se mais "livre". Destacamos, ainda

nos utilizando dos termos de Woortmann, o fato da ideologia

do parentesco ser a mesma em todas as classes na sociedade

brasileira. "Mas, o parentesco não se realiza ao nível

puro; ele se realiza nos termos de uma situação de classe,

e neste segundo nível existem diversas ideologias de

parentesco...". Mas não há vários tipos de família e de

parentesco. O que se tem é um modelo flexível que admite

arranjos práticos relativos a estilos de vida e momentos do

ciclo do desenvolvimento do grupo doméstico.

(WOORTMANN,1987: 17-18)

Os estudos de família e parentesco em sociedades

ocidentais mostram que as noções de família e de parentesco

não delimitam o circuito que forma o que é cada um deles

com exclusividade. Há um amplo campo de inclusão e exclusão

de indivíduos a partir de elementos outros que não as

definições ideológicas do que seja família e do que seja

parente. Os parentes por afinidade são mais eletivos embora

também parentes consangüíneos sejam passíveis de exclusão

das obrigações morais que caracterizam os laços de

parentesco. Tendemos a preferir utilizar a noção de "redes

sociais" para entender o campo das relações que

caracterizam a família e o parentesco. (BOTT, 1976)

Além disso, a organização familiar não se reduz ao

conjunto formado pela unidade doméstica. Ela transpõe suas

fronteiras, ampliando os laços de modo coerente com a

extensão da ideologia formulada. Daí a noção de rede ser a

mais adequada para tratar a questão. Na cultura brasileira,

124
como salienta Woortmann a família pode designar a "família

doméstica", seja de socialização ou de procriação, parte do

kindred ou rede de parentesco, ou ainda a "árvore

genealógica". Este último é mais encontrado nas elites

sociais e em certos setores das classes médias. Nestas,

grupos em ascensão tenderiam a minimizar o seu

significado, ao contrário dos que tem ameaça de perda de

status. Os pobres não teriam consciente esta noção. "O

pobre nunca diz que pertence à família tal, como fazem as

elites tradicionais." (WOORTMANN, 1987:60)

As definições de parente e de família em termos

conceituais são noções que estão presentes enquanto modelo

e fornecem o instrumento a partir do qual se designa alguém

como tal. Esse modelo não é o único dado presente na

inclusão ou exclusão de indivíduos no conjunto de relações

admitidas nas redes de convivência e de dever de ajuda.

Há uma diferença entre o que se sabe da noção de

família e de parentesco e o modo como se define alguém

enquanto membro da minha família e como meu parente. Vários

fatores interferem nesses processos, não sendo os termos

família e parente definidos de modo absoluto e homogêneo

até para a mesma classe social residente em um mesmo

bairro. (BOTT, 1976) A distância afetiva, geográfica,

social (classe), além de aspectos de ordem moral e

comportamental, intervém no reconhecimento do parente

enquanto tal.

A diferença estabelecida entre familiares e parentes,

pode operar na prática como definidora do grau de

proximidade afetiva e de obrigação moral, conduzindo ao uso

125
do termo família num sentido mais amplo e englobador de

parentes consangüíneos ou afins que não habitam uma mesma

unidade doméstica, bem como aplicar à unidade doméstica,

que pode incluir não-parentes, o conceito englobador de

família. Ou seja, o modelo família nuclear não abarca

todas as possibilidades operacionais da categoria cuja

aplicação denota as variações possíveis nas diversas

leituras que admite, adequando-se às condições objetivas

onde atua como classificador de relações sociais. Isso

expressa o quanto o parentesco é uma construção

ideológica.

O sentido que assume a família enquanto categoria da

cultura, conduz à estruturação de relações sociais em que

determinado tipo de vínculo afetivo e de obrigação moral se

faz presente. A consangüinidade - o sangue - constitui

simbolicamente o laço básico para a sua determinação.

(SCHNEIDER, 1968)

126
Nossa hipótese é de que a família negra, tal como foi

definida pelos estudos clássicos - como desagregada, como

"parcial" -, constituiu uma atributo de identidade aplicado sobre

o grupo negro. Para ele isso constituiu um estigma. O mito da "mãe

negra" e da mulher negra, deriva desta "incompletude" da família

negra que ela traduz em termos positivos. O que era

"desregramento" e "ausência" foi preenchido pela hipertrofia do

feminino materno (mulher-mãe) no plano das representações do

próprio grupo.

Consideramos que a família, para o negro, constituiu uma

instância de afirmação de seu pertencimento ao universo das

regras. Ela é uma meta e um aval de dignidade. No campo das

práticas ela é a rede prioritária na qual a solidariedade étnica e

de classe viabiliza os projetos de ascensão social.

127
3. FAMíLIA: REPRESENTAÇÃO E LAÇOS FAMILIARES

Os dados coletados admitem vários recortes classificatórios.

O que de modo mais evidente se destaca é o corte por geração

num processo de ascensão social que marca diferenças fortes no

âmbito da memória familiar, modo de estruturar as lembranças e uma

forma de elaborar o discurso sobre a posição social, a questão

racial, e a identidade.1

Esses aspectos são também grandemente influenciados pela

condição de militante, além de outro recorte ainda possível que é

128
o do grau de inserção no meio branco - o que pode ser dito também

como o grau de participação no meio negro ( que por sua vez é

afetado pela posição em relação ao movimento negro). O recorte de

gênero também apresenta aspectos importantes de serem

considerados, uma vez que homens e mulheres parecem privilegiar

diferentemente lembranças relativas às figuras materna e paterna.

Tudo isso pode ser submetido a uma relativização com base da

posição sócio-econômica, cuja gradação é perceptível no conjunto

pesquisado.

A posição social adquirida não está relacionada inteiramente

com a geração no processo de ascensão, mesmo quando se considera

a trajetória familiar como uma totalidade. A profissão e o

matrimônio influenciam no nível alcançado quando se considera um

indivíduo como referência de análise.

Outro aspecto interveniente no grau de elevação social é a

abrangência familiar da ascensão. A socialização dos ganhos de um

indivíduo pelo conjunto da família reduz o efeito do esforço em

termos de elevação do padrão de vida.

A maioria dos entrevistados tem sua origem familiar em outros

municípios, tanto em zonas rurais quanto urbanas. Aqueles cuja

memória vai mais longe no tempo tem na zona rural sua referência

familiar mais remota. Os próprios informantes passaram por

processos migratórios, podendo-se observar que as mudanças

geográficas significavam a busca por melhores condições de vida

por parte das famílias envolvidas, resultando em mudança de

profissão e de articulações familiares num sentido mais amplo.

1
Thales de Azevedo, como vimos anteriormente, destacou o fator
"tempo" e a distância entre o ponto de partida e o patamar

129
3.1. Reelaborando o Passado Familiar

As trajetórias de ascensão social são relatadas como

histórias de famílias. As diferenças nesses relatos merecem ser

descritas, pois acenam para questões fundamentais no que se

refere à definição de família, categoria sobre a qual se

estabelece o referencial básico do processo que engendrou a

ascensão do grupo investigado.

Algumas regularidades apontam para um padrão:

independentemente da geração e posição social há o desconhecimento

de uma fração dos ascendentes, ou melhor dizendo, há uma ausência

na geração dos avós, constituindo um padrão de tronco falhado.

As rememorações mesclam-se por vezes a hipóteses, revelando

uma pressuposta ou sabida (e por vezes omitida-negada) origem

branca inferida pela cor da pele (ser mais clara), ou indígena

(essa mais freqüentemente assumida) pela textura do cabelo (ser

liso) de algum dos ascendentes diretos.

Nesse aspecto pretos e brancos coincidem. É mais fácil

assumir descendência indígena do que outra - branca ou preta

dependendo se trate de um branco ou um preto. A relação mais

problemática está no eixo pretos versus brancos em decorrência da

desigualdade estrutural prevalecente desde a escravidão, fato

percebido pelo preto como humilhante. Já os brancos negam origem

negra em decorrência do preconceito estruturado sobre os

estereótipos negativos construídos acerca dos pretos. O índio

atingido nos processos de ascensão (AZEVEDO, 1975).

130
parece posto como campo neutro em torno do qual a mestiçagem ganha

legitimidade. É como se ele possuísse uma pureza capaz de ser

incorporada de modo não problemático pela identidade mestiça,

muito embora haja a tendência a auto-definição de cor pelas

categorias extremas - branco e negro - que dizem muito mais sobre

raça e etnia do que sobre cor propriamente dita.

"Eu diria que ali começa a história da miscigenação na


nossa família, pelo que eu posso perceber. ... a minha
avó por parte de pai era preta e o meu pai era um
sujeito mais claro que eu. Então, evidentemente..."
(Rogério)

"Porque meu pai era Felinto. E Felinto era um nome


germânico. Então é possível que o primeiro marido da
minha avó tenha sido estrangeiro. Ele é Manoel Felinto;
ele é Manoel, filho do Felinto, ou neto do Felinto.
Porque meu pai não era preto que nem eu. ... o meu pai
tinha essa corzinha assim, ó ..., nariz fininho, mãos
educadas, mãos de piano. Minhas mãos são grossas prás
mãos de meu pai."
"A avó da minha mulher é uruguaia. Negra do
Uruguai. E por parte da mãe dela, era uma bugra, era
uma cruza de negro com índio, que segundo contam tinha
os cabelos nos calcanhares." (Arnaldo)

"A mamãe, por origem índia, ela tem o cabelo liso,


ondulado, e o papai já puxou mais às raízes africanas.
... a mamãe tem uma pele que é uma seda; o índio tem
aquela pele que é uma loucura, além dessa cor de cuia,
uma pele que é uma seda..." (Marta)

"Ele tem um jeito de índio. Ele tem a pele morena,


cabelo liso." (Vânia)

"Ele não tem cabelo crespo. Não se pode dizer que o


seu João é um preto, a rigor, não. Não dá prá dizer.

131
Ele é judiado, a pele dele. Ele é judiado porque o tipo
de trabalho dele, e a vida, sempre ao sol, no solaço,
isso liquida, né?" (Ivo)

Observa-se que na ausência do cabelo crespo, a pele morena

remete a uma ascendência indígena. Entre os mestiços, o cabelo e o

nariz são os indícios da ascendência negra. A cor da pele do

mestiço é um campo aberto a especulações resolvidas mediante a

combinação desses elementos em que até o tom do moreno admite

inferências sobre a composição racial do indivíduo, e na ausência

de elementos elucidativos, o tipo de trabalho, a exposição do

corpo à condições agressivas podem justificar a cor da pele, que

retirando o indivíduo do grupo negro não o situa no branco.

O estudo que Frazier realizou sobre famílias negras nos

Estados Unidos (FRAZIER, 1973) mostrou que as famílias da classe

média são compostas largamente de homens e mulheres mestiços ou

com ancestrais mestiços. Não trabalhou com o modo como esse dado

aparecia nas reconstruções do passado que realizaram. Tomou como

base principalmente as características físicas que apresentavam e

a memória no que ela informava objetivamente sobre a condição

racial do ancestral conhecido mediante dois tipos de estudo que

tomou como apoio: um, de Reuter2, que estudou líderes negros em

várias esferas e que verificou que a grande maioria era "mixed

blood". Outro dado que tomou por referência foi um questionário

aplicado aos listados no "Who's who in colored America: 1928-

1921".

Obteve que grande proporção dos avós conhecidos eram mestiços

e livres. Sempre que eram escravos eram pretos; um grande número

132
de avôs era branco, mas de 311 questionários 36 respondedores

tinham avó branca.

A presença de não brancos nas histórias que recolhemos é

bastante significativa e apresenta nesse aspecto, semelhanças com

o padrão de mestiçagem apresentado pelo grupo que Frazier

pesquisou. Entretanto a presença indígena, tão marcada nos relatos

que obtivemos, não encontra correspondência no exposto pelo autor.

O padrão de reconstrução da origem familiar, se de um lado

preenche os vazios com hipóteses cujos indícios são vinculados à

aparência, de outro lado, relega a um segundo plano o vazio de

origem, passando a contar a história a partir daquilo que reproduz

de modo mais aproximado o modelo genealógico, percebido por eles

como uma sucessão de grupos nucleares que desemboca no seu próprio

núcleo - como famílias que geram famílias.

Quando não há essa possibilidade, marcam o início da

trajetória com um personagem que ocupa o lugar de "herói

familiar", aquele que deu origem à família - aquela família que

deu certo, aquela da qual faz parte o narrador e que é capaz de

engendrar sua continuidade através do seu desdobramento nas

famílias bem sucedidas de seus filhos.

Algumas pessoas remetem sua origem familiar à escravidão.

Arnaldo objetivamente refere a avó escrava. João Carlos lembra a

avó - filha de africanos - e Marina lembra ancestrais africanos -

bisavó.

"Os avós paternos eu não conheci e maternos eu


conheci a minha avó. ... Então, eu não teria condições

2
REUTER, E. B., T Mulatto in the United States, citado por
FRAZIER, 1973:319

133
de falar... Só o que ela nos contava em termos dos
negros. Ela gostava muito, ela tinha rezas, da África.
Ela gostava muito de falar em Xapanã, ... Então, às
vezes, músicas que falassem nisso, a gente dizia: olha
vó. E ela ria, gostava muito. E também ela nos ensinava
uma dança que anos depois eu vim a saber que era o
jongo. Ela não nos ensinou como jongo talvez porque,
sei eu se ela soubesse que era esse o nome. [Era] filha
de africano. Então ela falava como é que a mãe dela
falava. É pena que eu não guardei essa imagem de nossa
senhora, tipo chumbo, de mais ou menos 12 centímetros
de altura e o pedaço de marfim que ela mostrava. E ela
lia muito, ela com 90 anos, lia sobre política, sobre
tudo." (João Carlos)

"A minha avó era uma africana que vou te contar.


Africana mesmo. Os pais dela e ela tinha toda aquela
cor, tudo, incrível ... O meu avô também, era filho de
escravos. Ele falava que a avó dele tinha vindo [da
África]. A minha avó, a mãe e o pai que tinham vindo
realmente." (Marina)

No caso de João Carlos, a descendência africana é lembrada

pela cultura, da qual a religiosidade, a música e a dança, o

marfim "verdadeiro" marcam a origem na África e o pertencimento

étnico. No outro, a descendência africana é marcada pela cor.

Marina tem origem numa família do interior, constituída de

agricultores proprietários da terra em que trabalhavam. João

Carlos viveu muito próximo de sua avó - "era tudo junto no mesmo

pátio".

Zilá refere a escravidão enquanto origem do povo negro, vendo

aí sua unidade. Silvia lembra da avó que conhecia chás, ervas e

vincula essa bagagem cultural à sua origem indígena - bugre - e

negra. Também Marta associa o conhecimento de ervas à ascendência

indígena. Essas referências são tanto mais precisas quanto

mais recentemente rural seja a procedência da família do

134
informante, além da idade e do convívio que eventualmente tenha

tido com os seus ascendentes mais velhos.

Predominam as referências à pobreza sobre a cor, raça ou

etnia. Ser negro constitui um dado a mais e em geral é um aposto

ou um parêntese na frase. Fala-se das dificuldades e se acrescenta

"ainda mais para o negro" ou "para nós". A pobreza quando é

evocada, vem associada à origem pobre do povo negro em geral. A

vida rústica vivida é vinculada à precariedade da "vida de

antigamente", ou do "interior", onde as "coisas eram muito

difíceis".

A história familiar ou individual começa num ponto em que a

pobreza da família começou a ser superada. Desse modo, a pobreza é

sempre evocada enquanto passado do qual se tem gratas e difíceis

lembranças, sejam de vivências pessoais, sejam transmitidas pelos

pais ou avós, e incorporadas pelo informante às suas próprias

experiências.

A vida como pobre é referida como uma luta dos pais ou avós

para vencê-la, superá-la através da educação dos filhos, do

investimento para uma casa melhor, um bairro melhor, uma escola

melhor.

São feitas poucas referências quanto à busca de alianças

matrimoniais adequadas ao projeto de ascensão. Em geral elas

apontam para a possibilidade - ou risco - de alianças fora do

grupo negro, o que em alguns casos é mal visto. Voltaremos a

tratar desta questão em outro momento.

Omitir informações constitui uma das formas de excluir o

vazio ou o desprezível e mesmo o não significativo para a

reconstrução da história da ascensão social da família. Um eixo

coerente numa lógica de eventos bem sucedidos pode ser escolhido,

135
especialmente se ele aponta para a criação de uma "tradição

familiar".

Ivo, professor universitário aposentado, casado e com mais de

sessenta anos, elabora sua narrativa centralizando a história nos

ascendentes do pai, tronco familiar do qual se originou a elevação

do patamar de inserção social do grupo.

Geraldo, professor de segundo grau, casado, com mais de

quarenta e cinco anos, não refere a família da sua mãe (segundo o

conceito que formula) quando relata a história da família. Reduz

a história da família à história da família do pai, a partir do

avô paterno. Essa omissão tem o significado de seletividade, pois

não menciona sequer o desconhecimento daquele segmento - o que de

alguma forma significaria reconhece-lo como parte da sua própria

história.

Rogério, advogado e professor universitário, conhece a

história dos avós maternos e relata o que sabe sem dificuldades,

sem rodeio ou justificativas.

Uma questão que merece ser salientada, embora não constitua

para nós nenhuma novidade, é que quanto mais alta e sólida a

posição social adquirida, mais facilmente são referidos os vazios

nas origens familiares e a condição de vida dos ancestrais.

Daqueles com alta e sólida posição, não houve dificuldades para

obter relatos do passado familiar. Prontamente emergiram

informações relativas ao "começo de tudo" com personagens

nomeados. Entretanto isso não significa que a escolha dos eventos

significativos deixe de obedecer ao critério seletivo que norteia

o relato. O princípio ordenador é o desfecho da trajetória. Essa é

reconstruída através de fatos e de personagens eleitos como

136
expressivos de um processo de vida de gerações que se sucedem no

tempo e se deslocam no espaço.

Rogério diz sobre os avós maternos:

"Vamos falar dos maternos primeiro que eles são... [faz


uma expressão de quem diz serem eles mais
significativos]. Por exemplo, era o Vítor Carroceiro,
tá. O Vítor Carroceiro, ele morava lá em Santa Vitória.
Tinha uma chacrinha de 3 ou 4 ha. perto da cidade e
dali ele tirava o sustento, seja pelo leite, pelas
coisas que plantava e seja pelo fato de que ele
trabalhava no carreto, por isso Vítor Carroceiro, né. O
avô teve 10 filhos. Um morreu aos dois anos. A avó era
a vó Nena. Era uma pessoa adorável. Ela era a única
pessoa em toda a família que eu chamava de senhora."

Sobre os parentes paternos, relata a diferença social e

cultural que havia entre eles e o seu envolvimento apenas com a

avó pelo fato dela ter ido viver com seus pais. Relacionou-se

com a irmã do pai apenas quando ela freqüentou a casa deles em

decorrência de uma relação de dependência que tinha em relação ao

irmão. Lembra referências sobre o companheiro da avó e marca, como

complemento, a sua relação afetiva para com ela.

"Dos avós paternos existe o seguinte: existe um


personagem chamado Seu Chico, que eu acho que não era o
pai do meu pai, mas era uma pessoa que a minha avó
viveu durante algum tempo. Eu estou te falando de
coisas da minha infância, eu sei que depois, não sei se
ele morreu ou foi embora e a minha avó foi morar com
meu pai, e esta sim se tornou uma avó... Então, ela fez
parte da família. Morou com meus pais. Depois que meu
pai... [faleceu] e a minha mãe ficou viúva e ela também
sobreviveu a ele; e ficou lá até morrer."

137
Com isso, sua parentela patrilinear fica reduzida à mãe e à

irmã do pai, e desta nada informa.

A história de seu pai fica falhada pela ausência de um pai

legítimo:

"Eu sei que na certidão de nascimento do meu pai


constava..., não constava o nome do pai. E isso eu sei
porque recentemente vi. Não constava, né. É isso. Tudo
o que eu sei é que ele era um sujeito que trabalhava
como guri de rua, como os nossos daqui hoje, que com
sete anos já estava entregando pão do armazém da
esquina no bairro pobre da cidade".

As referências a situações irregulares - o companheiro da

avó, a ausência do nome do pai - são compensadas num caso com a

inserção na família - como purificação, pois ali se tornou uma avó

- e no outro com o trabalho infantil ( moralmente cumpria o papel

de homem provedor).

É significativo que o narrador tenha freqüentado a casa dos

parentes maternos (de melhor posição social) e obtido o convívio

com os mais pobres através das visitas deles à casa de seus pais -

caso da avó e da tia paternas. A incorporação dos mais pobres se

dá numa ação de ajuda - a tia dependente e a avó que foi morar com

o pai de Rogério, que era melhor situado economicamente. Outros

eventuais parentes paternos são desprezados e não aparecem no

relato, constando apenas aqueles com quem possuíam dever de ajuda.

A história familiar de Ivo contém a síntese dos processos que

atingiam as famílias negras.

Existem duas avós que geram filhos de pais ausentes/evadidos.

Uma encerra sua família com um único filho e não realiza mais

138
nenhuma união. A outra, forma nova família, outro parceiro,

outros filhos. Ivo não refere o pai desses outros filhos (seus

tios maternos). Dos tios tem lembranças de infância. Refere uma na

qual um deles, C. que era funcionário de banco o conduzia a

escola. Do outro, J. sabe que morreu cedo (bebia muito) e que

deixou filhos que também "estão bem".

Teve vínculos com Joana, avó paterna e sua madrinha. A

história familiar é contada a partir dela, cuja origem conhece

bem. De A. avó materna, nada relata. Diz apenas que não conheceu

seu marido.

"Eu não sei de fatos anteriores, mas na verdade, a


[avó] Joana, eu nunca comentei isso com ela, nem com
meu pai nem com minha mãe; ela disse que tinha... o pai
do meu pai, o meu avô, chamava-se I. V. A. e na união
com Joana teve o M. [pai]. Mas, segundo ela me falou, e
acho que ela falava aquilo, era a maneira de mascarar,
porque a gente era menor, ela nunca realmente, não
interessava provavelmente para ela, nunca revelou as
verdades da vida. Eu tenho a impressão que ela conheceu
o I. que era militar, tava fazendo campanha pelo Mato
Grosso, e de lá ela nunca mais teve notícias dele. Era
aquele tipo dos provisórios, aquele negócio assim. Eu
acho que ela era mãe solteira." (Ivo)

A ênfase na avó paterna está relacionada ao convívio - morou

junto, se criou com ela - e com o fato dela ter sido o "início de

tudo":

"mas eu acho que o fator desencadeador dentro da minha


concepção foi a [avó] Joana...ela era muito viva."
(Ivo)

139
Embora sua referência do passado seja a mãe do pai, os irmãos

da mãe e os primos do lado materno são aqueles que menciona

conhecer. Com os demais parentes de Joana - irmãs, irmão - ele não

teve convívio. Todos permaneceram muito pobres.

Joana mudou do Alegrete (cidade onde nasceu) para Santa Maria

e após para Porto Alegre - este último movimento já sob a

influência do filho, na oportunidade já trabalhando como

funcionário na Rede Ferroviária. Essas mudanças influenciam na

manutenção dos laços, além das diferenças sociais.

"- A Joana tinha uma irmã chamada Maria. Morreu


poucos anos atrás. Pobre. Passou a vida pobre e morreu
pobre. (Ivo)
"- ... os filhos também não deram em nada." (Vânia)
"- A rigor, não sei muito..." (Ivo)

Esse diálogo entre Ivo e sua esposa, mostra a tentativa de

reconstruir, entre os dois o destino dos parentes paternos. Maria

é de quem sabem mais. Dos outros - Maurícia (gêmea de Joana) e

Menezes não sabem nada mais além do que foi dito. Sabem dos nomes

e da pobreza. Os vínculos de Joana com eles parecem claros, até

pela escolha do nome do filho - M., como a sua irmã gêmea.

Entretanto os laços se desfizeram.

Outro fator que existe em comum em grande parte das histórias

relatadas é haver alguma mulher entre os ascendentes que foi

criada por brancos. Ser criada por uma família, em geral dita

como "de posses" e freqüentemente designada como "família da

madrinha".

140
"A minha mãe, ela teve convivência, ela foi
criada por uma tia que era muito bem de vida. É aquela
coisa, pegar uma sobrinha, um parente, para fazer de
empregada. Mas a mãe não estudou. A mãe estudou até a
quarta série. Mas ela teve uma experiência. A tia
levava ela ao teatro, cinema. ... a minha avó foi
criada por patrões brancos, e o meu avô mesmo é branco,
de origem portuguesa..." (Silvia)

Segundo relata, sua mãe perdeu o pai (português) e a avó

ficou com três filhos para criar. Ela era lavadeira e não

conseguiu manter os filhos. Ficou com os mais velhos e entregou a

caçula para a irmã criar.

Também Vânia3 possui na sua história familiar, mulheres

criadas por famílias brancas:

"[a avó] foi criada por essa família de Erval do


Sul, a família dos Silveiras, que eram pessoas que
tinham cartório, tinham farmácia. ... Uma família
branca, de recursos. Em Erval eles tinham casas, eram
praticamente donos da cidade."

A mãe de Rogério foi interna num colégio de freiras onde

pagava os estudos com trabalho.

Zilá também tem esse dado em sua história familiar:

"A minha mãe foi criada por "madrinha". Não teve mãe,
eu não tive avó materna." (Zilá)

141
"Eu só conheci minha vó, mãe do pai. Os outros eu não
conheci ninguém. Provavelmente devem ter ficado na
própria zona de origem. Os pais da mãe em São Pedro, eu
acho que eles faleceram em São Pedro. E a mãe veio com
uma família, aquela coisa da família tradicional, a
afilhada, aquela coisa. Ainda tem muito disso. É a
madrinha que cria, terminou de criar, aí trabalhou um
pouco com eles, casou..." (Luiz Filipe)

Outros referem o trabalho como doméstica "desde menina" de

mulheres da família, significando que a socialização era

continuada já como empregadas, em condição quase escrava, já que

praticamente por casa e comida, como relatou Zilá.4

Joana (avó de Ivo) trabalhou num hotel como empregada e

camareira dos donos de um hotel e teve boas relações com seus

patrões, pois lembrava como algo bom. Aprendeu a trabalhar aí.

Permaneceu analfabeta, mas fez o filho estudar, além de ajudar no

trabalho do restaurante do hotel.

Essas lembranças são sentidas com emoção, pois o narrador

consegue imaginar o sofrimento de uma menina de oito anos, às

vezes menos, entregue para ser educada em troca de trabalho para

pessoas tidas como "madrinhas", mas que na realidade eram patroas

que não pagavam salário e não ofereciam nenhuma condição para a

independências de suas "afilhadas".

A mulher parece ter sido a que mais facilmente foi confiscada

para convívio com brancos em decorrência do serviço doméstico,

3
Vania é esposa de Ivo. Tem segundo grau incompleto e depois de
casada não exerceu nenhum trabalho remunerado.
4
Sobre socialização de crianças, ver ARIÉS, 1981:225-226. Este
autor mostra como na Inglaterra do século XV os ingleses usam
prática semelhante, entregando filhos a famílias para que fossem
treinados (aprendizes) ao mesmo tempo que prestavam serviços. O
status dessas crianças era ambíguo entre aprendizes, adotados e

142
vendo-se aí a continuidade do modelo escravista após a abolição.

Isso vai situá-la no papel de mediadora entre as classes e as

raças como mãe de mestiços (BASTIDE), mas como elo de ligação, de

trânsito entre o mundo dos pretos (pobres) e o dos brancos

(ricos).

A situação anterior da família, ao ser lembrada é contrastada

com a atual, tanto no tempo e espaço, quanto na distância social

que as separa. Ivo expressa seu estranhamento quanto à vida da

bisavó, quando acompanhou sua avó numa visita a Alegrete onde

vivia aquela:

"Quando eu cheguei lá para conhecer a avó L., [ela]


tinha 93 ou 94 anos. ... Eu me lembro muito, eu
estranhei, eu, em Porto Alegre, morando na pensão, eu
chego lá, eu olhava, eu pisava, eu me lembro que era,
era terra batida, era chão batido, ela morava perto da
linha. A casa dela era uma casinha de madeira perto da
via férrea. ... Tu vês como morava a minha bisavó, na
miséria, rapaz! Na miséria, fumando palheiro... era a
mãe da [avó] Joana. Agora, de todo o ambiente aí que tu
estás vendo, disso tudo, floresceu a Joana." (Ivo)

Relacionar família à nome é um modo de defini-la. É também um

modo de marcar a fundação de uma família. O pertencimento familiar

associa-se ao nome que por sua vez pode estar ligado a um lugar de

origem.

Arnaldo é advogado, procurador aposentado, casado. Tem três

filhas e um filho. Pertence à Irmandade do Divino Espírito Santo,

Rotary Club e é sócio dos clubes negros da cidade. Tem mais de

setenta anos (não declarou a idade), reside com a esposa no Bairro

criados. Com isso queremos mostrar que historicamente o lugar das


crianças nem sempre foi aquele que atualmente definimos.

143
Menino Deus onde também se localiza seu escritório de advocacia no

qual também trabalha uma de suas filhas que como ele é advogada.

Arnaldo se utiliza do nome como forma de abordar a história

de sua família, essa uma tradução da história do próprio negro. O

nome e sua origem são a família e sua formação:

"O meu pai é da família dos M. do Rosário [Rosário


do Sul]. Minha mãe, pertence à família R., pertence aos
R. de Santa Maria. Por parte de pai, R., mas por parte
de mãe eu não me lembro o sobrenome da minha avó.
Porque sempre usou R., Maria Teresa da R.. Depois que
se casou com meu pai passou a ser M.". (Arnaldo)

Marca o pertencimento familiar a partir do nome, com todo o

significado que o nome possa ter no caso do ex-escravo. A

localidade de origem do nome ajuda a situar o pertencimento

social, situa o indivíduo numa rede cuja origem demarca seu lugar

social.

No caso de descendentes de escravos essa rede pode levar ao

pertencimento a uma família branca, quer como fato objetivamente

conhecido e presente na memória familiar, quer como hipótese

construída com base em informações históricas ou com histórias

imaginadas.

"Meu pai dizia que ele é M., nós somos M., porque
minha avó foi criada pela família dos M. de Rosário...
- Quem são esses negrinho aí?
- São dos M.
- Mas os M. de onde?
- Lá de Rosário" (Arnaldo)

144
O narrador reconstrói através de um diálogo encenado, a

origem do nome que ao mesmo tempo tem o significado de origem da

família, que sem um nome não teria o estatuto pleno de família, já

que o nome marca a descendência, o pertencimento social, o capital

moral. Fica implícito que o pai de Arnaldo não tem pai conhecido.

"A minha família são homens e mulheres preocupados


em ter um núcleo social, dirigido por pessoas de
liderança, vindos de um nível pobre, com raízes na
escravidão diretamente, e que não se assustavam em ter
que vencer com todas as dificuldades os obstáculos que
lhe foram passados. Os meus bisavós eram escravos. O
meu pai é de 1888 e ele era o do meio... A minha avó,
conseqüentemente, ao ter o meu pai, você põe aí vinte
anos prá baixo, dá 1860, dá 1868. ... Quer dizer então,
dos 15 até os 20 que ela não caiu na mão de negro.
Então é possível que essa mãe do meu pai tivesse tido
algum mulatinho. ... Então você nota que meu pai...,
minha avó já tinha 25 anos quando começou a ganhar os
filhos, quando ela passou prá mão de um negro..."
(Arnaldo)

O passado escravo e a pobreza são utilizados como elementos

enfáticos da força moral da família negra, forjada na escravidão,

com nomes tomados de seus ofícios ou de seus senhores, com

parentes perdidos pelo caminho nas migrações que realizaram no

período pós-abolição, genitores desconhecidos ou contando apenas

com a mãe.

Arnaldo define a família negra como inexistente devido às

contingências da escravidão.

Para ele, a família é construída recentemente "pela liderança

de homens e mulheres" que aspiram ter um "núcleo social". Temos aí

família como um núcleo social no sentido moral. Daí a importância

do nome e da sua construção enquanto emblema da vitória moral da

família negra.

145
Outro aspecto importante e que é recorrentemente analisado em

estudos sobre família em sociedades urbanas modernas referente à

memória familiar - que passa pelo conhecimento que um indivíduo

dispõe sobre seus familiares ou parentes - é que via de regra essa

memória abrange um determinado circuito que dificilmente

extravasar a geração dos avós - no plano das relações verticais -

e os colaterais até segundo grau - nas relações horizontais.

Eventualmente se pode encontrar um conhecimento genealógico mais

amplo e isso no caso de famílias mais antigas e tradicionais.

Camadas médias urbanas não são predominantemente típicas desse

tipo de comportamento. O meio rural é mais rico em histórias

familiares, especialmente nas camadas dominantes locais em que o

poder local é um poder exercido por famílias.5

O que se percebe na estrutura das narrativas é a adequação

da informação disponível ao modelo genealógico.

A geração dos pais faz a mediação entre avós e netos,

favorecendo o contato-convívio ou fornecendo informações que

permitem pelo menos saber dos avós enquanto personagens

significativos na história de vida de alguém ou da família de

alguém.

No contato-convívio e tomada de informações, as mulheres

costumam ocupar o lugar de, além de mediadoras, de depositárias da

memória familiar, falando freqüentemente em nome da parentela

referida como um "nós". Essa entidade - "nós" ou "lá em casa" ou

"na casa de mamãe" - se define pelos costumes e hábitos domésticos

aprendidos em seu processo de socialização. A preeminência

feminina no universo doméstico imprime uma certa dominância da

5
Woortman também destaca este aspecto, mostrando que na pobreza a
genealogia perde a importância (WOORTMAN, 1987).

146
parentela matrilateral sobre o conjunto de parentes selecionados

para o convívio, gerando uma tendência a enfatizar parentes

maternos nas narrativas sobre a história familiar.

As histórias de vida recolhidas são de homens e mulheres de

gerações diferentes. Abordaram suas experiências familiares,

lembranças e informações recebidas dos mais velhos, privilegiando

suas relações específicas com esse universo bem como suas opiniões

acerca dos laços, deveres e obrigações nele implicadas.

Entretanto, no conjunto pesquisado nada indicou uma maior

amplitude do conhecimento familiar de parte das mulheres quando

comparadas aos homens. Há sim diferenças, mas diferenças muito

mais relacionadas à ênfases em fatos a partir dos quais a memória

é construída.

Homens e mulheres privilegiam diferentemente o peso da mãe e

do pai nas narrativas. Os homens marcam com mais força do que as

mulheres o papel do pai na família, na luta pela vida. As

mulheres enfatizam a mãe, dando-lhe mais centralidade na

organização da família e nas ações básicas que engendraram as

condições de ascensão social.

Há que ressaltar que o peso atribuído ao pai ou à mãe é

dependente também da presença de um e outro na vida familiar. A

morte precoce de um gera a concentração dos interesses no

remanescente. O mesmo pode ser dito sobre os avós, cuja

experiência transmitida é dependente tanto da origem do relato -

informação - quanto do convívio com um ou outro - se avô ou avó e

se matri ou patrilateral.

Mas, considerando as famílias completas, que não passaram

pela perda prematura de nenhum dos genitores, a tendência de

enfatizar diferentemente o pai e a mãe pode ser verificada.

147
Entretanto, a ênfase se localiza nos parentes pelo lado

materno nas relações cotidianas. Esse é um dado importante em

muitos casos, mesmo quando homens foram o centro do núcleo

familiar estudado.

Quando há o relato da trajetória como processo de ascensão

social, as mulheres marcam a luta da mulheres; os homens, mesmo

referindo a luta de ambos, destacam a figura paterna através do

trabalho, da profissão, da autoridade e do temperamento, o que não

é considerado pelas mulheres da mesma forma quando elas constituem

o centro da narrativa. Se o pai ou o avô são ausentes, a avó e a

mãe ocupam o mesmo lugar para os homens e as mulheres.

A memória familiar está estreitamente vinculada-associada ao

trabalho.6

Quando se aborda trajetórias de ascensão social, ambos as

categorias - família e trabalho - emergem no discurso em

associação. O trabalho tem uma ênfase maior, sendo em muitos

momentos um dos elementos constitutivos da família quando definida

como entidade moral.7

A ênfase na melhoria de vida não impede que sejam destacadas

as dificuldades, os obstáculos. Aí é que a questão étnica ou

racial aparece, embora superposta à pobreza e como agravante das

dificuldades, pois a pobreza constitui a tônica da narrativa.

3.2. Família : Fidelidade, Honestidade e Trabalho

6
As histórias de operários negros recolhidas por Petronilia G.
Silva, mostram que eles, ao relatarem suas memórias de trabalho
eles o fazem através de fatos relativos à família, aos pais, avós,
etc.(GONÇALVES E SILVA, 1987).

148
É possível extrair do discurso sobre a família um conteúdo de

valor moral, podendo-se afirmar que a categoria família é um

operador equivalente à ordem moral.

Enquanto referencial de conduta a família é manipulada como

meio de garantia de princípios morais e de confiabilidade. Repousa

na família a base sobre a qual se assenta a "lealdade-fidelidade",

a "disciplina-obediência", a "honestidade":

"Meu pai era de uma casta de funcionários públicos


subalternos. Então tinha aquela coisa ..., do
apadrinhamento. Se for um negrinho bom tu consegue um
bom trabalho, etc. ... então, essas relações de
obediência, elas foram muito fortes na minha família."
(Geraldo)

"O pai achava que tinha que fazer certinho. Que


tinha que agradecer, achando sempre que alguém tinha
feito favor. ... Ele cobrava muito : tu passaste porque
o Sr. fulano ajudou. Se sentia dignificado por prestar
serviço para o Coronel, para o doutor [deu a filha para
o coronel batizar]". (Anita)

Arnaldo, através da história da família, narrada através do

nome, afirma nele o conteúdo moral da família negra. Seus relatos

sobre a origem da família negra e seu nome, apontam a "fidelidade"

para com o patrão, e a transmissão desses valores para os filhos,

como um dos fatores geradores da possibilidade de criação da

família negra, da criação de um nome para ela, inaugurando com

7
O trabalho vem acompanhado de garra, persistência, luta,
disciplina, fidelidade, entre outros atributos explicativos do
sucesso na empresa de saltar as fronteiras de classe.

149
isso um "núcleo social" moral definidor central da categoria

família.

O conteúdo desse depoimento aponta para um perfil de "negro

de alma branca". Há uma ênfase num comportamento puritano, no

"fazer certinho" no "ser fiel ao patrão", ser "reconhecido" -

grato - com um alto conteúdo de humildade. São valores

transmitidos pelas famílias da maioria dos informantes. Eles

teriam a força de uma estratégia racional de obter ganhos sociais,

sem o que o preto perderia a capacidade de competir com o branco

pelo espaço profissional, pelo favor do chefe, pela segurança de

sua posição arduamente conseguida.

Ser de família, e ter uma família constituem um ganho social

importante para quem é pobre e aspira "melhorar de vida".

A correlação existente entre moral e família na sociedade

brasileira e que valoriza o ser de família, refere-se a inserção

social dos indivíduos. A família e o nome de família identifica o

lugar social e moral de alguém. No caso das famílias negras

analisadas, essa correlação é traduzida no "ter uma família" (ao

contrário de ser de uma determinada família) e nos valores capazes

de lhe conferir dignidade e confiabilidade: lealdade, fidelidade e

trabalho passam a ser as exigências comportamentais essenciais

para obter uma inserção mais favorável na sociedade, mesmo que às

custas do isolamento em relação à massa negra.

A filha de Arnaldo, advogada, falando sobre crime, negros e

brancos na sua experiência de trabalho afirma:

"A maioria dos negros ... Tu tens lesões corporais,


agressividade, violência, chegando ao homicídio, mas
pela briga, pela bebida, pelo "não vou levar desafora

150
para casa". Mas poucos os negros assaltantes,
estupradores, isso tudo é muito poco no meio negro.
Porque ele mantém a situação familiar. Isso, na área da
10a Delegacia a gente viu, pela criação, estrutura, tu
tens que trabalhar direitinho, cumprir horário, tu tem
que ser bom, tem que te comportar, tu não pode isso,
não pode aquilo. Porque tem uma série de pessoas que se
tu não fizeres isso vão te expurgar, e tu perde o teu
salário, perde o teu espaço."
... "E nós conversando, chegamos à conclusão de que o
negro ainda traz toda uma situação de família, de
honestidade. Quer dizer, de cumprirem seus
compromissos, do trabalho fiel. Porque ele traz essa
coisa da escravidão: eu tenho que agir certinho para
garantir o meu espaço. E essa coisa do negro, a
submissão vem por aí." (Ana)

Hebe de Castro no seu trabalho sobre libertos no sul-

sudeste, demonstra que o negro, mesmo enquanto cativo, obtinha

alguma margem de mobilidade. Ter uma família, significava para ele

ter acesso a uma roça, mesmo que na propriedade do senhor. Os

libertos com família obtinham através do colonato e da parceria,

na maioria dos casos, a sua sobrevivência enquanto lavradores, o

que os identificava com os livres (brancos por definição) (CASTRO,

1995).

Desse modo, vemos que ações claramente voltadas para a

conquista de espaço são pautadas em valores que são associados à

família. Para os negros a conquista de uma família significava

possibilidades de outros ganhos.

Florestan Fernandes já havia percebido que o puritanismo, a

moral, constituía uma atitude muito presente nos processos de

ascensão social de negros em São Paulo (FERNANDES,vol.2, 1965)

Esses princípios são atrelados a uma base de obediência e

lealdade ao branco superior, sem o que a obtenção de vantagens ou

benefícios que em outras circunstâncias seriam normais, seria

151
impossível considerando a ideologia paternalista da sociedade

brasileira.

Sobre isso Frazier , ao identificar o puritanismo nas

classes médias negras nos Estados Unidos, associou o fato à perda

de identidade decorrente da escravidão. A religião, que situava a

esperança de valorização do negro num outro mundo, reforçou a

tendência ao moralismo (FRAZIER, 1975).

Tanto Geraldo quanto Anita tem um tom de crítica a essa

crença na fidelidade ao branco superior por acreditarem que ela

desvaloriza o esforço e a competência do negro, embora considerem

o "esforço dobrado" como imprescindível para o negro encontrar um

espaço. Não acreditam que a fidelidade ao patrão seja um ganho

para o negro. Situam-se contrários aos padrões de aliança que

estiveram presentes na história dos negros em geral e de suas

famílias em particular.

Arnaldo usa as categorias "humildade" e "atrevimento" para

estabelecer a diferença entre o negro e o branco e o negro antigo

e o atual. Falando de sua filha, diz que ela é "atrevida" e que

ele, quando mocinho não teria o atrevimento de Ana. Reconhece como

básico o papel jogado pelas alianças com brancos, estabelecidas

para a construção das famílias negras apesar de ver que uma

mudança está ocorrendo nas relações entre brancos e negros que

parte da mudança de atitude dos negros que subiram na vida. Desse

modo a "humildade" é associada à "pobreza". Assim a equação se

desdobra em "negro-pobre-humilde" / "branco-rico-atrevido".

"Fé" e "garra" são elementos fortes na formulação do discurso

sobre família, instância construtora dos valores e princípios

morais que compõem a personalidade do indivíduo bem sucedido

152
econômica e socialmente, sendo remetidos dessa forma, de modo

direto à ascensão social.

"Mas o grande elo que eu te diria é isso.


Principalmente do que eu herdei da minha família é a
questão da fé. É aquela história da fé que move
montanhas. ... Então eu tenho essa marca de fé, essa
marca de garra. Porque a mamãe é uma autodidata e o
papai também. ... A fé, certamente, na minha origem,
sempre foi colocada e funciona como um grande reforço.
É dali que a gente parte denovo, é tipo realimentação."
(Marta)

O que essa fala mostra é que a "garra" é alimentada pela fé

num circuito que constroem a pertinácia, a capacidade de

enfrentar as dificuldades sem desistir.

Mas nem sempre a "garra" está associada à "fé". Ela pode

estar ligada à consciência negra : perceber-se como negro e saber

da sua condição de discriminado e objeto de preconceito.

"Empatar é perder" aprendeu Rogério em casa, através do seu

pai.

Desse modo, no bojo do sentido que a categoria família assume

para o segmento pesquisado, contém valores relacionados à

ascensão ou aos meios através dos quais o indivíduo obteve ganhos

que são percebidos como "melhoria de vida", "conquista de um

lugar" na sociedade, sucesso profissional, etc.

Família é definida como berço de onde se extrai valores que

credenciam o indivíduo à conquista de espaço, o que é percebido

como uma "batalha", considerando não ter havido "herança" que

fornecesse um ponto de partida.

153
Os desprovidos de "herança" constroem na família a riqueza

moral e de caráter que, modeladas pela disciplina constituem a

bagagem familiar e o legado que possuem. Com os filhos já é "tudo

mais fácil", "eles já podem escolher". Eles já partem de onde os

pais chegaram. Para os filhos, os valores familiares, dos avós que

construíram o sucesso dos pais, não faz sentido, pois "a vida está

tão diferente" e "muda tão rápido", "a TV, os amigos influem

tanto" que os pais tem dificuldade de controlar ou saber como

será.

A família como categoria moral está, no discurso do segmento

pesquisado, relacionada aos valores que fundamentaram a luta pela

ascensão. Esses valores se expressam como capacidade de luta

("batalha"), "fidelidade", "trabalho", "humildade". O valor dos

pais está em terem lutado para educar os filhos e não terem

esmorecido graças à força de personalidades fortes e à fé, que

associadas à consciência das dificuldades que para os negros são

dobradas configuram um ethos puritano. Nele, a obediência, o

cumprimento dos deveres - "fazer tudo direitinho" - e o esforço

em ser "melhor do que o melhor" permitiu a saída da pobreza,

muitas vezes auxiliados por patrões (que "jamais recusaram

auxílio" por reconhecerem o "valor" que possuíam) tanto

materialmente quanto por empréstimo de prestígio.

Esses valores são herdados e circunscrevem o "espírito de

família" que possuem.

3.3. O Universo Familiar

154
As falas são dominadas pelo circuito de consangüíneos

próximos - aqueles "com quem se convive", "com quem se foi

criado", que freqüentavam a casa ou nela moravam. Os parentes

"parceiros" com quem se afina.

Na realidade pode-se afirmar que a consangüinidade é mais

importante que a aliança e a afinidade. Um casal não pertence à

mesma família. Cada um tem a sua, "a família de casa" ou família

de origem, além de ambos terem constituído a sua própria. Isso,

entretanto não confere parentesco entre eles, e ao falar em

família, imediatamente passam a falar dos pais, irmãos, algum tio

ou tia, avós, quando conhecidos. A família de origem e a

constituída podem ser englobadas numa mesma categoria:

"A minha família, quem faz parte da minha família, é a


minha mulher, as minhas filhas, a minha mãe e os meus
irmãos. Esta é a minha família. Os parentes seriam os
outros ramos, sogro, sogra, cunhados..." (Geraldo)

Entretanto, é possível que se possa ter duas famílias (mesmo

que não se tenha ainda constituído a família de procriação8. Uma

que liga o sujeito à família da mãe e outra à família do pai:

"A minha filha diz que eu sou da família dela, mas ela
pertence à outra família: o sogro diz que ela é da
família dele. Ela tem duas famílias; é da família do
meu sogro e da minha mulher, a qual eu não pertenço. A
minha filha é da família da minha mãe à qual eu
pertenço." (Geraldo)

155
"Bom, de minha parte eu tenho duas famílias. Eu tenho a
família que é minha mãe, que eu considero, né, minha
família, minha mãe e minha irmã. Essa é minha família
e eu, constituímos uma família. E, na minha concepção,
na minha idéia, naquilo que eu sinto, a outra família
que eu tenho é minha mulher e minhas filhas" (Ivo)

Ambos omitem os falecidos, o que não é generalizável, pois

eles podem ser incluídos, como o faz Zilá.9

O caso de Zilá parece ser explicável pelo tamanho, pequeno,

do conjunto que consegue englobar. Afirma de modo claro que sua

família é muito pequena. Inclui o pai e o irmão falecidos, além da

sogra e uma jovem (espécie de babá - agregada) que residem com

ela. Não conheceu as avós, não sabe dos avôs e se ressente dessa

ausência na história de sua infância.

A referência a falecidos, quando ocorre, obedece um critério

de relevância no processo de ascensão a não ser quando o

indivíduo opera com o modelo genealógico. Zilá é uma exceção que

não deixa de confirmar a regra. Ela e o marido pertencem à

primeira geração no processo de ascensão social de suas

respectivas famílias. Possui poucas informações sobre os seus

ascendentes (a mãe foi criada por madrinha). Acima da geração dos

pais não há personagens significativas cuja memória merecesse

registro, o mesmo podendo ser dito acerca da geração dos pais.

8
Nos termos de PARSONS, 19
9
Zilá é professora de segundo grau na rede pública estadual.
Cursava mestrado em literatura e estava preparando sua
dissertação. É especialista em literatura africana. É casada com
P., engenheiro agrônomo conhecido e muito bem situado. Zilá
lecionava também em uma universidade privada. Participa de
organizações internacionais, viajando freqüentemente como
observadora de questões da África Negra, tendo visitado também a
Índia, sempre financiada por organismos internacionais. Fez parte
do Conselho do Desenvolvimento e Participação da Comunidade Negra,
órgão do governo do estado, representando o seu órgão de origem.

156
Rogério é exemplar para observar um caso de segunda geração

na trajetória de ascensão social, alta posição social, alta

inserção no meio branco e baixa relação com o meio negro. É

advogado e atua em seu próprio escritório, além de ser professor

universitário. É profissionalmente muito prestigiado, ocupando na

ocasião da pesquisa importante posto eletivo na OAB regional.

Além do irmão, sobrinho e poucos primos matrilaterais

selecionados por critérios que expõe de modo claro, não freqüenta

atualmente o meio negro, seus clubes, bares, enfim, espaços nos

quais a "comunidade" vive a sua sociabilidade. Casou com branca.

Não fala na ex-mulher a não ser para referir a ação de divórcio

que estava em curso apesar da separação de fato haver ocorrido

seis anos antes. Tem um filho com quem passa os fins-de-semana.

Possui amplo conhecimento da parentela pelo lado materno,

especialmente as tias com quem conviveu devido ao estreitamento

dos laços delas com a mãe de Rogério. Declina todos os parentes

matrilaterais (desprezando os afins) seguindo uma ordem

genealógica: parte da mãe e dos irmãos dela referindo o estado

civil, o número de filhos, profissão, se é vivo ou falecido,

desejável ou indesejável, incluindo-os todos como parentes, até

chegar nele mesmo passando após aos avós maternos. Seleciona quais

destes compõem sua família, ou, nas suas palavras "seu universo

familiar": duas tias maternas solteiras , o irmão e o filho deste,

seu próprio filho, um primo e uma prima (que também é sua

afilhada).

O lado paterno é truncado, não havendo muita informação sobre

o avô. Apenas a avó era conhecida de Rogério, além de um

companheiro dela (que ele presumia não ser pai de seu pai) acerca

de quem mais ouviu falar do que conheceu propriamente. Conheceu

157
ainda uma irmã de seu pai, a qual era de uma "classe mais humilde"

e que "tinha uma relação de dependência" [com o pai], mas "como

vivia muito o clima, o ambiente disso tudo", mostra o grupo

materno, foi "distanciando muito".

"Então, eu convivia com eles quando eles iam na


minha casa. Porque logo depois eu saí de Rio Grande e
eles ficaram lá em Rio Grande. Então eu não tive com
eles convivência. Agora, com as minhas tias por parte
de mãe, sim. Porque essa [mostra o desenho ], essa
viúva morou em Porto Alegre, essa, casada com quatro
filhos mora em Santa Vitória, essas duas solteiras
moram em Rio Grande. A casada sem filhos faleceu. ...
Dos três irmãos, um falecido e dois vivos, né. Um sem
filho e um com filho. Um com um filho odontólogo. Dos
quatro filhos dessa aqui, um é enfermeiro, um é,
serviço social, como é que chama? Assistente Social.
Outro é técnico em refrigeração e o outro não faz nada,
mas está com dinheiro [ri]. Bom, como é que se dá a
minha convivência aqui... dentro desse contexto. São os
parentes. Com quem é que eu me relaciono... em primeiro
lugar com o Rafael [filho], dois, com R. [irmão], com o
J. V. [primo ] que é o faz nada, quatro, as duas tias
solteiras [irmãs da mãe] Eu diria que a minha família é
essa aqui [mostra os citados no gráfico que desenhou].
Aliás, tem mais uma pessoa, que é essa aqui, a
assistente social que é minha afilhada. M. L.. Essas
pessoas aqui são..., compõem o meu universo familiar."

Define como parentes os consangüíneos e seleciona aqueles que

compõem a família. Pessoas com mesmo grau de parentesco são

separadas em categorias distintas. Algumas tias e primos são

incluídos na família, outros são excluídos dela.

"Um dos tios, um deles, eu jamais visito. O outro, eu


às vezes falo com ele porque eu não tenho como chegar
em casa dessa minha tia (da que tem quatro filhos) sem
passar pela casa dele. É vizinha. Não tenho como
escapar, então aí às vezes eu falo com ele; mas se

158
depender de mim não tenho nenhuma iniciativa para
cumprimentar." (Rogério)

A regra é o convívio com a fração da família que "deu certo"

ou que originou-construiu as bases da ascensão, fração essa

definida como "a família" por excelência.

O convívio e o relacionamento estabelecem laços que incluem,

na categoria família, indivíduos com graus de parentesco

distintos. Rogério é ilustrativo dessa possibilidade.

Também Zilá opera inclusões e exclusões, embora por uma forma

de seletividade distinta de Rogério, já que dispõe de um universo

muito mais limitado para operar a escolha.

Zilá inclui na família pessoas sem parentesco consangüíneo

desde que residam na mesma casa. A "casa", a residência comum,

aparece como um dos fatores que associa pessoas, incluindo-as numa

noção de família que se confunde com unidade doméstica. Apesar

disso a noção de "duas famílias" está presente na fala de Zilá e

se define através da categoria "casa".

"Bom, primeiro a família de casa, de nascimento: mãe,


pai já faleceu; eu tinha um irmão, já falecido. Casando
com meu marido, [tem] meus três filhos, meninos, e a
minha sogra que mora comigo desde que eu me casei. E
tem uma menina que mora comigo desde que... criou os
meus filhos, desde que eu tive o pequeno, ela veio de
Curitiba comigo. Eu tenho uma família muito pequena.
Tios e tias moram no interior, tem alguns que moram
aqui, mas eles tem o grupo deles muito...[afastado]"
(Zilá)

A família e o circuito de parentes próximos podem ser

designados indiferentemente como membros da família ou como

159
parentes, assim como pessoas com o mesmo grau de parentesco podem

ser classificadas umas como parentes e outras não.

"... no caso de nossa família, o meu pai (e a minha


mãe) reservou a nós uma vida muito independente, muito
segura e muito fechada ao mesmo tempo. A nossa
convivência era assim: pai, mãe, um tio (irmão dele),
minha tia que era cunhada dele, depois a irmã dele - a
tia Mulata - e os primos. O resto era perfumaria.
Depois eu já tava com meus 3, 4 anos, me lembro da
minha madrinha. Então era a nossa família e os
compadres." (Arnaldo)

Vê-se que a família não se relaciona, para Arnaldo, à idéia

de família nuclear. Ele inclui na sua família tios, tias, primos,

parentes afins, desde que convivam.

O convívio, neste caso, é o convívio passado, da infância,

num discurso que visa identificar a origem familiar com

personagens já quase todos desaparecidos. São da família aqueles

parentes com quem se conviveu na infância.

Gilberto é músico (percurssionista), universitário (estudava

informática), solteiro. Vivia com os pais, namorava uma moça

branca também universitária.

Ao falar sobre a família, a define como sendo composta por

ele, seus pais e irmãos, reconhecendo neles os seus parentes. Já

os tios, tias, ele considera como sendo da família da mãe e do pai

segundo o caso.

Se a categoria parente não fosse evocada por mim, a categoria

família seria a única utilizada. Referiu a categoria de parente

ao relatar sua relação com primos ou tios indesejáveis. Relatou

que ele e um primo "parceiro" ironizam a rejeição a algum membro

160
da parentela atribuindo um ao outro o parentesco com "aquele

morrinha": "-ó o teu parente ali, ó!" "- Meu não. Ele é teu

parente". O tom que utilizou demonstrou que ele conhece a

definição de parente dominante na cultura, porém engloba na

categoria família os membros que residem juntos, inclui seus

primos como parentes da sua mãe ou do seu pai, segundo o caso, de

modo idêntico ao verbalizado sobre pertencimento familiar.

Reduz o parentesco aos descendentes do mesmo pai e da mesma

mãe. Convive com alguns primos mas não os reconhece como parentes

seus. Considera-os amigos, parceiros. Esses são na verdade "da

família" embora não façam parte dela "porque tem alguns que

considerando a árvore são [parentes] mas...". "Ser da família" não

é o mesmo que a ela pertencer. É um sinônimo de "ser de casa", uma

metáfora da intimidade decorrente da amizade que vem da infância,

de se ter "criado junto", de afinar. A categoria família possui

múltiplos sentidos, servindo também para expressar relações de

amizade, lealdade, afeto e intimidade.

A trajetória de Gilberto é diferenciada dos demais por

configurar um processo de recuo, de retorno ao estilo de vida das

camadas populares, por desistência.

Escolheu as parcerias, o jogo de futebol na vila onde reside

com seus pais e a música. Abandonou o emprego estável que possuía

num banco, onde sentiu-se discriminado não vendo ali nenhuma

chance de avançar na carreira, por trabalhos eventuais como

programador, associado a um grupo constituídos por outros negros

que segundo informou "terminava não dando certo". Cancelou o curso

por dificuldades financeiras e por não conseguir viver de modo

diferente daquele dos seus "parceiros". Para estudar necessitava

trabalhar e portanto não lhe sobrava tempo para a música, para o

161
futebol, para o convívio social. A namorada procurava incentivá-lo

a continuar o curso e ele parecia estar comprometendo-se com esse

projeto.

No caso de Gilberto, parente é uma categoria ambígua. Conhece

o significado de genealogia, pois referiu "a árvore" e utiliza uma

noção de parente a partir de uma espécie de consangüinidade

parcial diria eu, mas opera uma classificação em que cada genitor

fica vinculados aos seus parentes - pais e irmãos -, transformando

os primos com quem convive e com quem se criou em "parceiros",

fazendo o mesmo com irmão que por ser casado já não pertence à

família, pois a família é a que mora junto. Temos então família,

parentes e casa como categorias que nomeiam um conjunto único e

pertencer à família significa incluir-se nas demais. A idéia de

família nuclear, encontra correspondência na concepção que

Gilberto apresenta. Entretanto não significa que cada categoria

tenha em si, na acepção de Gilberto, um único sentido.

É comum no grupo pesquisado ouvir a afirmação de alguém ser

ou não "dos nossos", e isso freqüentemente significa pertencer a

uma rede da qual fazem parte parentes e "parentes de parentes"

principalmente. Vínculos religiosos e compadrio também são elos

que vinculam pessoas a uma rede, além da identificação ideológica

e política.

Família é a um tempo a categoria mais englobadora dos laços

de pertencimento e é também a mais restrita, pois integra num

conjunto os parentes que vivem na mesma casa. Casa e parentesco

delimitam o universo familiar. O irmão casado saiu da família

embora continue sendo parente; um não-parente que viva na casa

não pertence à família. A família se define pela consangüinidade e

pela residência.

162
Helena é médica, divorciada de um homem negro, também médico,

tem um filho adolescente (adotado antes do casamento).

Ela tem uma família singular: ela, uma irmã solteira, uma

irmã casada, as sobrinhas, e a mãe constituem "a família" por

excelência. Os homens - um irmão adotivo, o cunhado, o filho

adotivo - são postos quase à margem. Subjaz uma idéia de que

pertencer à família significa participar das coisas da família, da

vida da família. A vida da família é, para Helena, a vida dessas

mulheres:

"Então, nós fizemos, nós três somos muito unidas, e nós


fizemos uma coisa que uma amiga minha falou uma vez,
que nós construímos uma cooperativa familiar. Cada uma
com sua área, cada uma buscando alguma coisa, nós
ficamos um grupo muito coeso. Tanto que, como diz uma
amiga minha, "vocês são muito forte, vocês até afastam
os homens, os homens tem muito medo de vocês por essa
coisa de coesão. É uma característica das quatro
mulheres da família. Eu tenho um irmão que é médico,
que é irmão de criação, e ele não entra muito nessa
coesão..." (Helena)

Helena, sua mãe e suas irmãs fizeram um arranjo residencial

singular:

"Nós construímos uma casa grande, e cada uma com


sua individualidade: juntos, mas cada um com sua
individualidade. A gente não consegue muito se separar.
Mas realmente, ela tem a casa dela, eu tenho a minha e
a outra tem a dela; com três entradas diferentes, mas
nós entramos sempre pela entrada comum [que acessa a
parte da casa que é da mãe]."

163
Esse arranjo residencial, lido por Helena como familiar,

organiza o cotidiano e distribui atribuições às mulheres da

família, numa complementaridade tal que as necessidades do

conjunto terminam por ser satisfeitas coletivamente, inclusive a

socialização das crianças:

"A avó [mãe de Helena] ocupa o espaço de satisfazer as


necessidades gastronômicas deles [do filho e das
sobrinhas]. E essa minha irmã [que trabalha com ela
como secretária no consultório] é, digamos apoio... Mas
tu vês bem, ela não tem filhos, só que os quatro chamam
ela de mãe. Os quatro, quando tem problemas vão prá
ela." (Helena)

Esse caso é interessante por conjugar a individualidade de

famílias nucleares modernas com a coletivização parcial do

cotidiano, permitindo que cada unidade possa ter a vida a um tempo

independente e "junto", solução para quem "não consegue muito se

separar".

A independência garante a possibilidade de que os amigos de

cada unidade possam ali ser recebidos, sem necessidade de

transitar por todo o conjunto. Helena ilustra a individualidade

possível nesse arranjo através da forma com que os amigos são

recebidos na casa de cada uma:

"os meus amigos entram pela minha entrada, os dela pela


entrada dela e nós entramos sempre pela entrada comum".

164
Helena e sua "família" parecem ter solucionado desse modo a

tensão entre individualizar-se e ser englobado pelo conjunto

(VELHO, 1981). Articula essas demandas num mesmo espaço,

preservando a "individualidade" e "estando junto".

O filho de Helena é "parceiro" do cunhado que é músico e,

segundo ela "frágil, sabe como é artista"; a sobrinha mais velha

se criou praticamente com Helena, chama a outra tia de mãe, indo

com esta resolver seus problemas quando os tem; prefere sair para

passear com Helena, mora na parte da casa de seus pais e devora os

pitéus da avó.

Esse arranjo nos aproxima do conceito de matrifocalidade,

apontada por Smith (SMITH, 1973) Bastide também aí percebe a

ênfase na mulher-mãe na organização da família no Candomblé ,

atribuindo o fato a uma base cultural africana (BASTIDE,1971).

Entretanto, a singularidade da alternativa encontrada pelas

mulheres em questão, pode também ser vista como releitura do

modelo encontrado em camadas populares urbanas.

Os arranjos familiares que incluem mais de uma geração, com a

preeminência da presença feminina constituem estratégias capazes

de favorecer a maximização dos recursos obtidos com o trabalho,

facilitando o cuidado das crianças e permitindo que alguns dos

membros do grupo possam manter-se num emprego estável.10

No caso de Helena e sua família, a morte do pai foi o ponto

de partida para a solidariedade que se formou fortemente e que foi

capaz de permanecer. A luta pela vida, o trabalho da mãe, as

relações que esta possuía com seus patrões permitiram que seus

filhos conseguissem estudar e "crescer".

10
Sobre isso ver FONSECA, 1986 e 1988.

165
Percebe-se nas entrelinhas uma certa desigualdade econômica

entre as irmãs (Ilda, jornalista e coreógrafa, possui uma creche e

a outra, estuda e trabalha com a irmã no consultório). A mãe,

idosa, sem condições de continuar trabalhando. Elas (as duas

melhor situadas provavelmente) garantiram essa alternativa de

moradia, coletivizando os custos e os ganhos, homogeneizando o

padrão de vida familiar doméstico.

A residência articulada e semi-individualizada, socializa a

posição adquirida pelo conjunto familiar de origem.

Parece ser essa interpretação atribuidora de uma excessiva

racionalidade econômica ao grupo, que afinal "está junto porque

não consegue se separar". Entretanto, essas mulheres padecem de

infortúnios com seus parceiros semelhantes aos das mulheres de

camadas populares: o pai de Helena falece deixando os filhos

pequenos, Helena se separa, uma não casa, a outra casa com um

homem "frágil", músico. Elas são fortes, os homens, com exceção de

seu falecido pai, são fracos. Elas fazem a família. Elas

solucionam desse modo os problemas do cotidiano, garantindo o

cuidado das crianças pela avó (que por sua vez tem sua velhice

protegida), possibilitando o envolvimento profissional das irmãs.

De qualquer forma, esse grupo vem de uma situação de pobreza.

Helena e suas irmãs são da primeira geração no processo de

ascensão social, cuja arrancada foi dada pela mãe através de seu

trabalho como cozinheira - "banqueteira". Os laços criados no

esforço comum de obter o diploma de Helena, de formar Ilda,

forjaram as bases que foram capazes de articular um arranjo

inesperado dado seu caráter de modelo extremo para a sua situação

e posição de classe.

166
Esse tipo de arranjo é ainda encontrável em Porto Alegre em

negros (e não negros) das camadas populares. Também os brancos

possuem a prática de fazer um "puxado" quando os filhos casam e há

espaço no terreno para construção de mais um lar. Obtivemos

relatos de uma família branca das classes médias que reside dessa

forma - um terreno onde muitas unidades foram sendo construídas de

acordo com as necessidades da família.

Zilá relata a articulação das residências de uma tia com seus

filhos num mesmo terreno onde cada um tem sua casa (unidade

doméstica):

"Eu tenho uma tia que ela tem um terreno, e cada filho
que vai casando vai morando. Agora, cada um tá fazendo
as suas coisas. Mas é um cortiço vamos dizer, cada um
tem a sua casinha lá dentro. ..." (Zilá)

João Carlos relata a sua infância numa situação desse tipo,

com a parentela de sua mãe (mãe e irmãs) "tudo junto no mesmo

pátio":

"Nosso quintal era grande, ..., nós tínhamos várias


casas, uma atrás da outra... tudo junto no mesmo
pátio..."

Essas articulações não configuram uma unidade doméstica, uma

vez que o pátio é comum mas cada um tem sua própria casa, da mesma

forma que Helena. Porém, no caso dela, o modelo foi relido e a

casa foi construída como uma totalidade planejada para reproduzir

a lógica do "puxado", preservando a casa materna ou paterna como

foco da sociabilidade familiar. O traço em comum nos casos

167
relatados, é o fato desse arranjo se dar sempre entre parentes

mulheres, mesmo quando o homem está presente. A centralidade da

mulher no espaço doméstico justifica que seja possível apenas para

mulheres parentes essa vizinhança tão próxima.

Klaas Woortmann afirmou que o que ele chama de "proletariado

brasileiro", "nas circunstâncias se sua posição face à formação

social que o engloba", necessita ajustar-se. Aí o parentesco o

provê de "uma rede estratégica crucial de suporte recíproco"

(WOORTMANN, 1987:19). Acrescentamos que essa "rede estratégica"

não se limita, na verdade às camadas populares ou aos

trabalhadores (proletários nos termos de Woortmann). E isso é

marcante no grupo pesquisado.

Sabe-se que os novos casais tendem a residir próximos às

famílias das esposas (a não ser quando há uma distância social

marcante). Isso ocorre no caso de Mariana, Geraldo, Nívea. A ajuda

para cuidado dos filhos é uma justificativa frequente.

Vários dos informantes mantém ou mantiveram residência comum

com genitores em algum momento da vida. Ivo e Vânia residiram com

os pais e avó de Ivo, que por sua vez sempre moraram juntos. A

sogra de Zilá reside com ela desde que se casou e não está livre

de ter de trazer também a sua mãe para a sua casa. A mãe de Vânia

reside com outra filha.

As sociedades modernas enfatizam a residência neo-local e o

individualismo. Quando uma nova família elementar tem início - e o

casamento marca esse começo - um novo grupo doméstico se

constitui. Este é o princípio básico da organização dos lares

urbanos contemporâneos. Outras articulações decorrem de situações

específicas, cuja solução depende das condições que a rede de

parentes com dever de ajuda tem de assumir.

168
Nas classes populares os velhos ficam dependentes dos filhos.

Nas classes mais altas, segundo afirmou Woortamann isso não

ocorreria. Mas quando estamos diante de classes médias

recentemente estabelecidas nessa situação de classe esse padrão se

mantém, sendo comum os velhos residirem ou receberem ajuda dos

filhos para seu sustento.

Enfim, várias situações exigem essa solução. Mas construir

uma casa que na verdade é muitas casas constitui um fato que foge

ao padrão de camadas médias urbanas, tal como tem sido verificado.

Buscar raízes africanas não parece ser adequado, como também

o passado escravo e uma cultura escrava é difícil de ser

identificado dada a diversidade de arranjos domésticos possíveis

de serem encontrados no grupo investigado que, mesmo assim, aponta

para o predomínio da unidade doméstica composta de uma família

conjugal nuclear.

Os laços que unem o grupo "familiar" são atualizados através

de redes de ajuda e grupo de convivência sem a fixação num único

espaço. Nessas redes as mulheres ocupam um papel central. Cabe a

elas articularem as relações dentro do conjunto, especialmente no

que refere a ajuda. Bott percebeu essa característica quando

estudou famílias de trabalhadores urbanos ingleses. Morar perto

favorece as práticas de solidariedade mas morar longe não as

eliminam (BOTT, 1976). Conforme os termos de Woortmann "Muito

claramente, os limites da organização 'familiar' ultrapassam as

fronteiras da unidade 'doméstica' e esta extensão dos aspectos

organizacionais é coerente com a extensão ideológica equivalente

do próprio termo 'família'. (WOORTMANN,1987:64)

Desse modo, o arranjo residencial, entendido como familiar

por Helena, organiza unidades independentes numa totalidade que é

169
centrada na mãe. Esta, mesmo não exercendo autoridade, preserva

seu papel de articuladora fundamental das relações entre os

membros da família residentes no conjunto.

Conjuga um modelo tradicional, que como vimos era comum nos

meios populares negros e ainda o é, a um moderno, urbano, através

da preservação de um canal de individualização expresso em rotas

autônomas de inserção no universo das relações sociais extra-

familiares de amizade. Essa categoria, nas camadas médias

intelectuais é afirmada como fundamental e em certo sentido

equivalendo às de parentesco quanto à ênfase que lhe é dada tanto

no discurso quanto no privilégio do tempo que lhe é dedicado

(VELHO, 1981 e 1987).

No grupo pesquisado, em todos os casos, os informantes

dedicam o tempo livre prioritariamente à família. Os amigos são

definidos mais como "parceiros" e são incluídos no campo de

sociabilidade definido como "vida social", a não ser nos casos de

amigos adotados como parte da "família" por serem "de casa".

A amizade se impõe em certas situações como categoria

sobreposta ao parentesco, atuando como operador da seleção de

parentes para o convívio e ajuda. A afinidade, junto com ter "se

criado junto" são os fatores principais na construção da amizade.

De certa forma a amizade no grupo pesquisado é familiarizada.

Zilá aponta sua relação, especial, com um afim - esposa do

irmão da mãe - através da amizade. Gilberto explica sua relação

com um filho da irmã da mãe através dela. Também Silvia privilegia

o uso da amizade como meio de justificar vínculos com parentes.

170
"Porque eu considero a relação de parentesco, em
relação ao parentesco sangüíneo. Mas eu tenho uma tia,
cunhada do pai, que é uma figura mais do que... não tem
a questão do parentesco, é uma grande amiga. É uma
pessoa que eu gosto muito." (Silvia)

Dessas pessoas, duas são mais jovens - menos de 30 anos. Zilá

tem "uma família pequena" (já que despreza uma boa parcela de

parentes, excluindo-os do seu conceito de família, que apesar de

amplo é marcadamente seletivo).

Helena separa os dois universos, reservando os amigos para o

espaço que ocupa individualmente (apesar dos seus amigos

conhecerem sua família e seu estilo de vida). constroem um mundo

familiar (doméstico) em que os papéis masculinos e femininos são

diluídos em talentos maternos e paternos, possuídos principalmente

pelas quatro mulheres, já que os "homens são fracos" e o único

forte foi o pai (que faleceu cedo) o qual, como as mulheres da

família, era um "batalhador".

O duplo padrão existente nas definições de parentes que

Schneider aponta (SCHNEIDER, 1968), de que fatos de sangue são

acompanhados por escolhas conscientes de amizade, moral ou

simplesmente idiossincrasias pessoais, encontra-se portanto, nos

casos analisados. Assim, um afim pode ser incorporado ao circuito

doméstico enquanto amigo, como também um consangüíneo pode ser

excluído por não preencher os requisitos da amizade.

Da mesma forma a "adoção" de amigos como parte de uma família

pode ocorrer. Esse processo, relatado por duas informantes, não

obedece à fronteiras raciais. As escolhas podem ser por brancos,

que quando são incorporados o são através do uso de uma estratégia

171
que os situa como parte da "família" - definida aqui como circuito
11
doméstico de convivência íntima, representado pela "casa".

De modo geral predomina a ênfase nas relações verticais sobre

as horizontais. Apenas Helena enfatiza as irmãs, e isso

provavelmente é decorrência (e causa) do fato da residência comum.

Os parentes consangüíneos predominam sobre os afins, esses sempre

excluídos do universo familiar, embora em alguns casos possam ser

incluídos no conjunto de parentes. A família se compões de

consangüíneos e os parentes são os afins. A consangüinidade também

se sobrepõe à aliança.

Família é uma categoria que, no conjunto pesquisado inclui os

parentes consangüíneos selecionados para o convívio em casa -

havendo exceções que promovem não-parentes à categoria de "da

família" ou "de casa" e transformam afins em amigos que como tais

são incorporados a "família" e à "casa".

"Casa" aparece como uma categoria que inclui em sua definição

o próprio processo de socialização, da mesma forma que "família",

no sentido que os entrevistados as utilizam. Daí o "ser criado

junto" abrir a possibilidade de incorporar alguém como da família

sem ser parente.

Assim, estabelecer um perfil de família não parece ser

possível diante da multiplicidade de padrões encontrados e

possíveis na trajetória familiar de um mesmo indivíduo.

São muitos os padrões de família, embora ela englobe sempre

um conjunto de parentes consangüíneos que coabitam uma mesma

unidade doméstica. A ocorrência de arranjos domésticos que

11
Nos dois casos de adoção de crianças que se encontrou, os
adotados eram do grupo negro. A filiação exige semelhança de
origem, ao contrário da adoção simbólica de amigos.

172
obedecem a situações particulares, embora com limites de

possibilidades dada a universalidade do reconhecimento das

relações pais-filhos-irmãos como fundamentais, flexibiliza os

critérios definidores da categoria parente. Isso aponta para a

tendência atual na Antropologia de ver os sistemas de parentesco

ocidentais modernos como sistemas flexíveis e cambiáveis no tempo.

(LEDGERWOOD, 1995)

Isso, entretanto não impede que exista um modelo, no plano

ideológico, reconhecido por todos como sendo a família e que

significa o modelo conjugal nuclear. As possibilidades de

manipulação que esse conceito oferece em decorrência das

características das suas funções sociais, abrem espaço para

arranjos domésticos e redes de relações lidas e classificadas com

base nas leituras que ela admite.

Casa, família e parentesco são categorias que se definem umas

em relação às outras embora não de modo completo. Mas juntas, de

acordo com várias combinações possibilitadas pela flexibilidade

que possuem na sociedade urbana moderna, compõem uma rede na qual

predominam duas categorias: ter o sangue e ser criado junto, essa

última mais do que morar junto. Essa entidade na maioria dos

casos, é definida como "família", ressemantizada pelas práticas e

pelas trajetórias.

Dauster, investigando um grupo de camadas populares urbanas

encontrou como "categorias nativas" definidoras de família e

parente, as categorias "sangue" e "amor" como "metáforas

instituintes da família" (DAUSTER, 1992:100). Elas fundamentariam

a especificidade das relações familiares e lhe dariam significado.

Diz a autora que a "categoria 'sangue' significa caracteres

físicos observáveis e é vista como veículo de transmissão de

173
características morais, até por isso biologizadas." (DAUSTER,

1992:100).

No caso do grupo observado sangue e amor são traduzidos em

"ser da raça" e em solidariedade. A família e o amor familiar se

traduzem em luta solidária e é ela que articula os membros do

grupo. O amor não centraliza o discurso sobre os laços familiares,

o esforço para vencer sim. O laço sangüíneo subjaz às relações

familiares. Mas a moral se sobrepõe reforçando o sangue ou o

diluindo. A "responsabilidade" se sobrepõe e modula o amor que

pode se perder com as distâncias (espacial e social). Vemos a

preeminência dos valores morais sobre os afetivos nas narrativas

das trajetórias familiares de ascensão, nas quais o laço de

sangue, pré condição para o vínculo familiar, pode ser desfeito.

3.4 O Casamento.

Tendo como referência a teoria da aliança (LÉVI-STRAUSS,

1976), na qual o casamento é definido como meio de estabelecer

relações entre grupos através da união de seus membros,

instaurando um parentesco entre eles, o casamento constituiu um

dos aspectos privilegiados na abordagem que realizamos do segmento

que estudamos.

Apesar disso, o casamento não ocupou uma parte muito

importante nos relatos. Ele é referido pela maioria como um

detalhe quando falam na família, na sua composição.

174
Poucos preocupam-se em narrar a circunstância do encontro que

deu início ao relacionamento que culminou no casamento.

De modo geral os casamentos se realizam dentro do próprio

segmento negro. Os circuitos de relações específicos dos quais

fazem parte o indivíduo é o campo preferencial de recrutamento de

parceiros. No grupo estudado há uma recorrência no circuito de

amigos que envolve as famílias. Amigos de primos por exemplo, são

em vários casos parceiros possíveis. Aniversários, festas de

formatura, entre outras ocasiões sociais são espaços propiciadores

de alianças.

Para os mais jovens, a faculdade e, quando é o caso, a

militância política são alternativas importantes, embora apenas

uma pessoa declarou ter conhecido seu cônjuge nesta circunstância.

Colegas de curso mais freqüentemente "namoram" do que casam.

As famílias incentivam a aproximação dos jovens. Uma das

formas, além das já referidas, é "convidar para a casa de praia"

ou para o "fim-de-semana" no sítio.

A noção de família que se atualiza no grupo pesquisado

enquanto um campo amplo e flexível que se define em grande medida

quase como sinônimo de redes de parentesco, enfatiza os

ascendentes de modo marcante. O modelo genealógico prevalece e

nele o informante é o desfecho. Fala-se mais dos velhos do que dos

descendentes.

O casamento introduz o cônjuge na família, mas ele não é o

único não-consangüíneo que pode ser incorporado a ela.

Talvez o fato ascensão social, realmente retire o cônjuge do

foco discursivo quando se trata de trajetória familiar. Esta é

decorrente de um processo familiar que antecede o casamento que é

também conseqüência da ascensão.

175
Mesmo que a ascensão seja derivada também de alianças

matrimoniais bem sucedidas com parceiros de melhor posição social,

os informantes relatam a "luta" dos pais e a sua própria, entrando

o cônjuge como um fato menor nesse contexto. Cada um é o trunfo de

si mesmo, o resultado feliz da luta e da garra de um grupo de

consangüíneos organizados numa família.

Os casamentos só foram tema mediante a formulação de pergunta

específica. Assim, a circunstância do casamento é revivida por

alguns e essa rememoração traz informações interessantes para

pensar o padrão de alianças nas classes médias negras.

Daqueles que não propiciaram maior aproximação que permitisse

conhecer a história do cônjuge, as informações obtidas apesar de

vagas, mostraram que a maioria casou mesmo dentro do grupo, até

aqueles que estavam inseridos no meio branco (Universidade,

clubes, bairro, etc.) e se consideravam "afastados" do meio negro.

Esses casamentos às vezes se fizeram com parceiros de um

nível social mais baixo.

Ivo, que conviveu no meio branco, casou-se com Vânia, que ao

contrário dele sempre viveu "no meio da raça". Ele, mulato como

ela, diz que pouco sofreu com o preconceito. Entretanto foi

buscar esposa numa festa, num clube negro de classe média baixa

mas puritano e moralista, conforme seus relatos (Satélite

Prontidão). A família de Vânia era de nível mais baixo do que a de

Ivo.

Marta, professora universitária, encontrou o marido - oficial

da Brigada Militar, mais escuro do que ela - num baile formatura

de oficiais daquela corporação, a que comparecera para acompanhar

uma sobrinha. A Brigada é um espaço privilegiado de ascensão

176
social de muitos negros e mulatos do estado. Do ponto de vista

cultural eles tinham posições desiguais.

A discussão sobre casamento oferece questões mais importantes

quando se trata de casamento misto.

Uma delas é decorrente do que chamamos aqui policromia

familiar. As diferenças de aparência acentuadas dentro de uma

mesma família criam problemas difíceis de serem abordadas pelo

casal.

Nívea, socióloga, de pele muito escura, casou com um branco

analista de sistemas. A imagem que compõem como casal, fere a

expectativa social e cria situações constrangedoras. Nívea é

tomada por empregada doméstica do marido. Seus filhos, quando

estão com o pai, são vistos como adotivos. Quando estão com ela

também suscitam dúvidas, já que são muito mais claros do que ela.

O pai de Nívea é tomado por motorista do genro quando estão juntos

no automóvel e assim por diante.

A família de Sérgio - marido de Nívea - em especial a sogra -

a rejeita. Após dez anos de casamento, filhos e vida regular,

ainda persistem os problemas. Sérgio entrou para o grupo negro,

mas não se adapta com o seu estilo de vida. Considera a família da

esposa "barulhenta". Despreza o seu gosto musical pois criou-se

com música erudita, estudou piano e se sente desconfortável com a

má qualidade da música que entretém a família.

Nívea sempre recusou namorados pretos, preferindo os

brancos. Sente-se melhor com o estilo de vida dos brancos, que vê

como mais educados, discretos. Já o marido queixa-se do hábito de


12
Nívea ligar o rádio em volume muito alto (na rádio Princesa ,

12
Rádio AM, muito popular no meio negro. Há comunicadores negros e
programas musicais destinados ao grupo negro, embora a audiência

177
tipicamente popular e segundo ele "rádio de negão") fazendo com

que seja audível por toda a casa. Residem numa rua (Barão de

Gravataí) que foi um reduto negro no passado e que se mantém como

emblema desse grupo ("a baronesa"), próxima a casa dos pais de

Nívea.

Ao falar do seu casamento, eles falam dos estereótipos do

negro e do branco.

Ela vê o branco como "mais fino, educado" e "mais delicado"

com a mulher. Ele vê os negros como maravilhosos, e a família de

Nívea "é uma família incrível", mas ela é "barulhenta" e de "mau-

gosto". Esses atributos são relacionados ao fato deles serem

negros.

Os estereótipos que estão em jogo situam negros e brancos em

polos opostos. E eles, vivendo juntos devem administrar suas

diferenças pessoais lidas por eles como relativas ao seu

pertencimento étnico. Nívea aderiu ao que considera o estilo

branco de ser: discrição, uma vida mais individualizada, falar

baixo, não saber sambar (embora os brancos sempre esperem dela que
13
saiba fazê-lo) . Segundo o marido ela não consegue deixar o seu

modo negro de ser.

Azevedo mostra14 que o predomínio do homem mais escuro do que

a mulher nas uniões mistas está relacionados à "ênfase na família

materna", que apesar da regra de parentesco ser bipolar,

"predomina na transmissão da cultura". Então, alinha materna

não se limite a esse grupo dado o seu caráter popular. A vida


social do grupo é divulgada através dela. Veicula informações de
interesse para o grupo, especialmente festas, novos conjuntos
musicais, pontos de encontro, etc. Eventos culturais relacionados
ao meio negro também se utilizam desse veículo para divulgação.
13
Sobre a ambigüidade da identidade do negro nas classes médias e
altas ver SOUZA, 1990.
14
A partir de MURDOCK, 1949.

178
incorpora o marido da filha, vinculando a ela os descendentes.

Desse modo, "o branco que casa com uma escura 'desce' de

classificação porque, de acordo com um refrão muito conhecido,

"quando uma moça se casa, sua família ganha um filho." (AZEVEDO,

1975:66)

Silvia, socióloga, teve experiência de namoro com branco. O

rapaz era separado, tinha duas filhas a quem conheceu. Foi aceita

até o momento em que ele declarou a natureza de sua relação com

ela. O rapaz não enfrentou as filhas e começaram a ter mais

problemas a enfrentar em sua relação.

Já tinham aqueles decorrentes de serem alvo de observação em

público, de sentirem-se sempre "examinados". As famílias não

apoiavam. Para a avó de Silvia, um rapaz branco que casa com negra

é para "fazê-la de empregada". E se é uma branca que pega um negro

para casar, é porque já está "passada" e "branco nenhum quer

mais"; está pegando o negro para "bucha de canhão".

Antônio, ginasta e coreógrafo de prestígio na cidade, é

mulato e casou no primeiro casamento com negra e no segundo com

branca. Sabe que a branca que namora negro é vista como

"vagabunda", pelo menos ele foi advertido disso por um amigo

branco ainda na sua adolescência.

Já a sua avó achava que era bom dar uma "melhorada na raça".

Rogério (quando da entrevista que realizamos com ele ainda

não havia casado novamente) casou duas vezes com branca. Sentiu-se

patrulhado pelo "meio" (negro), sendo este um dos fatores que o

afastou mais ainda dos amigos negros que possuía, especialmente

daqueles ligados ao movimento negro.

179
Isso configura três ordens de atitude: o casamento dentro do

grupo é visto como desinteressado, igualitário e desejável, desde

que no mesmo patamar social e, principalmente, moral.

O casamento fora do grupo joga o negro em relações dúbias:

mulheres são usadas como criadas e homens se tornam "buchas de

canhão". Desse modo é indesejável.

A idéia de que o casamento misto "melhora a raça" não existe

entre os mais jovens. Pode-se encontrar a aceitação de alianças

mistas, mas baseadas em outro tipo de argumentação, como

simplesmente "por não ver problema nenhum". Critérios morais

prevalecem nas definições dos parceiros desejados para seus

filhos.

Ivo tem suas três filhas casadas com brancos. Aceita

perfeitamente, pois "todos são bons rapazes, de boas famílias,

trabalhadores, formados. Está muito bem. Não há problemas". A irmã

de Ivo casou duas vezes e em ambos com brancos.

Zilá, professora, esposa de um agrônomo, tem três filhos

homens, ainda adolescentes. Fala do afastamento do meio negro que

a ascensão promove e diz: "eu não estou livre deles virem a casar

com branca".

Helena, médica, atenta para a vida social da sobrinha, chama

atenção do cunhado, que segundo ela "cuida muito do lado preto da

família", sobre a possibilidade dela vir a casar-se com branco:

"tu controla bem, porque eu não sei se... não é uma


coisa que tem que ser imposta, eu acho que o casamento
entre brancos ou entre negros, não é uma coisa que tem
que ser imposta. Mas eu digo prá ele: pelo tipo da
coisa que tá evoluindo, tu não estranha se daqui há
muito pouco tempo a Patrícia não estiver casada e

180
casada com branco. Até pela ascensão social dela. É
uma coisa que a gente conversa bastante com ela".

O casamento, dado seu significado de aliança entre famílias,

constitui elemento crucial na afirmação da solidariedade étnica,

na continuidade do grupo.

Em situação de ascensão, o casamento misto pode significar

também a diluição dos ganhos sociais do negro no meio branco

mediante o branqueamento dos descendentes que poderão terminar por

se incorporar ao segmento branco. Isso é o que Helena teme e Zilá

imagina como possível. O casamento misto deixa de realizar a

função da aliança dentro do grupo, e de conseqüente reforço da sua

solidariedade para ser um meio de recrutamento de indivíduos, pois

os brancos terminam por se incorporar à família negra (definição

êmica), enquanto rede privilegiada de relações, conforme se

observou no caso de Nívea.

Entretanto, a autonomização do casal misto termina sendo

ainda o caminho preferido. A adesão a um padrão conjugal

nuclear, que abrindo concessão apenas aos pais, descola da

parentela. Isso está ocorrendo com as filhas de Ivo, que abrem

exceção de convívio e de solidariedade apenas com seus pais e avó

e mesmo assim, com essa última apenas em datas e situações

especiais. Ivo diz de suas filhas que são "muito amigas da mãe",

fato que percebe como virtude.

Os filhos são fator decisivo na preservação de laços com os

ascendentes. O apoio no cuidado de crianças reaproxima as mulheres

de suas mães, reinstaurando a "família" (sentido êmico) antes

"suspensa" pela ênfase conjugal inaugurada como decorrência da

aliança fora do grupo. É no seio da "família negra" que os laços

181
de solidariedade serão reatualizados sem, entretanto expandirem-se

para além dessas fronteiras.


15
O casamento misto em geral é predominante nas classes baixas

. Predominam também casais de aparência não muito distante, com o

homem mais escuro do que a mulher (AZEVEDO, 1975).

Thales de Azevedo percebe que devido à ascensão social de

negros, há a tendência do aumento de alianças "heterocrômicas" nas


16
classes médias, e deixando deconfigurarem "uniões assimétricas" .

Os casos de alianças mistas encontradas no grupo,

considerando o informante como centro da narrativa) foram Rogério,

Nívea, as três filhas de Ivo, e Deise (Miss Brasil).

No caso de Rogério se cumpre, em seu segundo casamento, o

perfil do casamento misto padrão: ele, negro, ela, loira de classe

mais baixa, embora com escolaridade alta mas muito mais jovem do

que ele.

Com Nívea, a distância de cor é muito grande. Ela é muito

escuro e o marido muito claro. Ambos tem nível universitário e

procedem de famílias com status aparentemente semelhante.

Os demais envolvem moças mulatas , claras e muito bonitas. Os

maridos das filhas de Ivo são do mesmo estrato social que elas e

como elas formados em curso superior. O marido de Mariana, a mais

velha, descende de italianos. Possui as marcas de uma poliomielite

na infância, o que entretanto não limita sua independência. É bem

situado profissionalmente.

15
Os dados estatísticos apontam para isso.
16
A assimetria das uniões mistas reflete-se não apenas na
desigualdade de status entre branco e negro, mas pelo fator
econômico. Nas classes altas da Bahia ele viu que os homens mais
escuros só eram aceitos quando eram muito bem situados
financeiramente.

182
O marido de Deise pertence à classe empresarial (setor

coureiro-calçadista) e provém de uma família de posição já

consolidada, ao contrário dela que descende de trabalhadores.

Desse modo são alianças que fogem ao padrão verificado por

Azevedo, constituindo alianças que são casos de exceção. Diz ele

que o casamento é "um dos meios de acesso e de integração dos

indivíduos não brancos nas classes e nas camadas superiores da

sociedade" (AZEVEDO, 1975:61). Especialmente em se tratando dos

mais claros, os quais tem maior chance de se tornarem "socialmente

brancos".

Os casos que encontramos apontam mais para igualdade, se

pensarmos em troca de atributos valorizados socialmente.

Rogério é parte de uma aliança que pode ser lida como uma

situação de homem mais velho e mais rico com mulher mais jovem e

mais pobre. Considerando que ser negro é uma desvantagem, nesse

caso são múltiplas as desigualdades que se compensam e dependendo

do foco, apontam para vantagens diferenciadas. No cômputo final, a

mulher ascende (socialmente) através da aliança, reafirmando a

hipergamia beneficiando a mulher que em contrapartida oferece sua

juventude.

Deise muda efetivamente de classe e ingressa no meio branco

dominante. Porém isso não é devido apenas ao casamento. Seu status

de Miss e manequim de prestígio contam para o trânsito que


17
realizou da "ala do Roxo" para o "Gasparotto". Por certo que

houve benefícios para o marido, que antes dela não aparecia na

17
A "ala do Roxo" era uma coluna social para o carnaval. Incluía
Deise além da Rainha do Carnaval. Era o espaço de divulgação dos
carnavalescos. O "Gasparotto" é o colunista social da burguesia, a
"alta sociedade", portalegrense. Ambos colunistas eram do jornal
Zero Hora (praticamente o único da cidade).

183
coluna social. Mas um marido completamente estranho à classe

"colunável" por certo seria um prejuízo para ela.

Deise incorpora como sua a família do marido e é também

incorporada por ela.

Comparando as situações de Nívea-Sérgio e Deise-Lair, vemos

como atributos especiais podem inverter as regras de incorporação

familiar (tendencialmente num padrão matripolar).

Já Nívea e Sérgio mostram a regra - incorporação à família da

mulher - porém com o descenso do homem nos termos que Azevedo

sugeriu (AZEVEDO, 1975). O homem absorveu com o casamento alguns

dos limites próprios dos negros e seus descendentes serão membros

desse grupo através da tradição que lhes será transmitida pela sua

parentela materna.

Os demais três casos, apontam para a individualização do par


18
conjugal-nuclear com as tensões decorrentes das pressões

englobadoras da família e que se expressam no fato das mulheres

"serem muito amigas da mãe", residirem próximo à sua própria

família, constituindo com ela a sua própria rede de solidariedade

e ajuda, sem ruptura dos vínculos com a parentela do marido. Esses

casos possuem a particularidade decorrente do fato das mulheres

pertencerem a uma família atualmente bastante individualizada em

decorrência do falecimento dos seus ascendentes. É uma família já

sem avós. Esse fato reduz a interpenetração da parentela em sua

família de origem, reduzindo o campo de pressões englobantes.

Se a tendência a individualização dos novos casais de modo

geral se encontra em tensão com as pressões englobadoras da

família, os casais mistos embrenham-se numa radicalização dessas

pressões, tendendo ao alinhamento com uma das redes de parentesco

184
- o que significa opção de pertencimento racial e étnico para os

descendentes -, ou a atomização na família no modelo conjugal

nuclear quase absoluto.

3.5. Arranjos Domésticos e Família. A Questão da Chefia

Familiar

As trajetórias, relatadas enquanto histórias de família, nos

remetem a questões de caráter histórico e a aspectos cujo

interesse teórico aponta para a tradição dos estudos sobre família

negra no pós-abolição.

A "incompletude" da família negra e a chefia feminina,

hipóteses muitas vezes discutidas, aparecem no passado mais ou

menos remoto, dependendo da geração do informante.

A eventual ausência de homens e a decorrente liderança de

mulheres não é percebida pelos informantes como uma característica

própria do grupo negro nem é relacionada ao passado escravo do

povo negro a não ser em um caso.

A pobreza, associada a algo que é situado vagamente como

próprio de um tempo em que as "coisas eram assim" ou que

"acontece", no mais das vezes é vinculada ao fato. A mulher que

cria sozinha os filhos e que é "o homem e a mulher da casa" assume

esse papel contingencialmente. O que é dito é que "teve que ser o

homem e a mulher da casa", significando o fato de ter acumulado as

funções femininas maternas e masculinas paternas.

18
Nos termos de Gilberto Velho (VELHO,1981).

185
Não saber as razões para o desconhecimento de um certo

ascendente, muitas vezes sequer o nome, instiga-os então a buscar

na cor algum indício do membro ausente na memória familiar.

Os arranjos familiares não são permanentes e variam no tempo

segundo circunstâncias próprias do processo de vida, mas

obedecendo a uma lógica que se assenta em algo que se poderia

chamar de lógica do parentesco e lógica de gênero. Essas

articulações não são baseadas apenas no que se poderia chamar de

ciclo do desenvolvimento da unidade doméstica de acordo com o

definido por Meyer-Fortes (FORTES, 1974), embora se relacione com

as fases de evolução da vida.

A história familiar de Ivo reflete bem a variabilidade de

arranjos domésticos, lidos por ele como composição familiar. Ivo

nasceu numa família composta pela avó - então chefe da família -

seus pais e irmã (conjunto esse que ele define, com exceção dos

falecidos, como sendo uma de suas famílias). A maturidade do pai

transferiu a ele a chefia da família, embora a casa tenha

continuado "governada" pela avó. Ivo, ao casar, vai viver com a

esposa junto a sua própria família e após reside próximo dos pais

da esposa numa casa cedida por eles. Permanecem nucleados, mas

semi-dependentes, até o falecimento do pai de Ivo, quando vão

residir novamente na casa de origem, assumindo então a chefia da

"família", até aquele momento papel de seu pai. Segundo informou,

"precisava de um homem na casa". Esse arranjo perdura até a

aquisição de um apartamento por Ivo e o retorno da sua irmã à

cidade, quando então a mãe de Ivo vai viver com ela e o marido.

Ivo retorna assim a um arranjo nuclear, até o casamento das

filhas, estando na ocasião residindo com sua esposa.

186
Joana, avó de Ivo e sua madrinha, teve um único filho de um

pai ausente/desconhecido. É a heroína da trajetória, sendo

depositado nela o símbolo da família a que deu início e que seu

filho consolidou. Até a afirmação econômica e financeira de seu

filho, chefiou a família, sendo a autoridade que se sobrepunha a

todos, inclusive sobre a nora e os netos. A idade avançada e a

perda do papel de provedora principal da família transfere a

chefia a M. seu filho (cujo papel na concretização da ascensão da

família é destacado por Ivo).

A divisão das atribuições de autoridade e gestão da vida

familiar e doméstica é uma constante nos relatos obtidos:

"O sistema de educação nosso sempre foi assim. O pai,


muito fechado. ... Bater em nós, jamais. Xingar,
jamais. Então tu tinhas que deduzir para não fazer.
Enquanto que a minha mãe era o contrário... então o
laço, o banho, não sei quê, era por conta dela. Toda a
questão de opiniões, ele não externava opiniões. Minha
mãe que externava opiniões, roupa, não sei o quê. Ele
não. Notas no colégio, nada. Só que aí, a todas essas
tu deves estar dizendo: pôxa, que figura apagadíssima.
Não. Porque bastava olhar que terminou. Eu, solteiro,
não fumava, comecei a fumar depois de casado. Mas eu
não fumava na frente dele, de jeito nenhum..." (João
Carlos)

Esta articulação familiar é reproduzida por João Carlos que

também incorpora às suas atribuições o exercício de autoridade

sobre as famílias de suas irmãs as quais se mantém como chefes de

suas casas.

A família de Rogério incorporou irmãs e irmãos da mãe dele

por sucessivos períodos. Também a mãe do pai, sem marido e sem

recursos residiu com eles, fazendo parte da casa na ocasião.

187
Zilá organizou sua família com a inclusão da sogra, sem

recursos para se manter só. Também Silvia e Luiz Filipe criaram-se

em unidades domésticas assim compostas.

Nos casos de Zilá e do pai de Rogério, a chefia é do filho-

pai-marido em decorrência do papel de provedores principais que

cumpriam. M. se torna o chefe quando casa e mantém sua família e

mais tarde Joana, já mais idosa, transfere também o "governo da

casa".

Em todos os casos, a origem social na pobreza constitui um

fator explicativo associado à ausência de um homem ao lado dessas

mulheres capazes de garantir seu sustento digno. O investimento na

ascensão social conduz à maximização dos recursos através da

residência comum que de outra forma necessitariam ser desviados

para a manutenção de outra unidade doméstica ou família. A

incorporação do progenitor remanescente à família, é um de um

dever de ajuda irrecusável, tanto afetiva quanto socialmente.

Esses arranjos domésticos estão relacionados aos laços de

parentesco de uma rede cujo contorno é dado pela seletividade

efetivada mediante critérios morais.

Todos os avós presentes nas famílias pesquisadas são

mulheres, viúvas, sem recursos próprios. A exceção foi Joana, que

durante um certo tempo deteve a chefia da casa e da família,

porém, segundo os relatos, muito pelo seu temperamento forte,

capaz de submeter até a nora.

O caráter de mito familiar que Joana ocupa nas narrativas de

Ivo e de sua esposa, a centralidade de sua figura na história

familiar se sobrepõe a história da sua própria mãe, cuja

trajetória é menos contemplada no relato.

188
As características apresentadas por essa história são

extremamente significativas para demonstrar a excepcionalidade

dessas situações, que tem sido excessivamente generalizadas para a

família negra. Como vimos anteriormente, Joana, pelo sua moral é o

referencial para narrar a história da ascensão social da família.

Seu descendente é um homem, cujo nome é legado aos seus

descendentes, instaurando o "nome de família".

A posição social dos membros de uma família define também seu

papel enquanto chefe. Silvia refere de modo claro, o quanto a

ascensão de um dos membros da família, especialmente quando

desempenha uma atividade intelectual ou um cargo de mando, pode

transferir o foco da liderança familiar:

"O que é interessante na ascensão, é que esse


negro, ou a família negra que está ascendendo, ele
geralmente, no seu grupo, passa a ser o único ser, na
posição de destaque que ele ocupou. Então, todo o resto
gravita em torno dele. De repente não existe mais a
hierarquia por faixa etária. Por exemplo, geralmente
era o pai que era o chefe, ou a mãe. Eles que reuniam a
família, todo mundo confraternizava e tal. A partir do
momento que um tem uma ascensão social, esse tem o
poder de solidariedade, de resgatar isso..." (Silvia)

Da mesma forma que Silvia, João Carlos, advogado, é

"referência" de autoridade para a sua família e seus parentes mais

pobres. Cumpre papel de pai para os sobrinhos, sendo chamado a

intervir quando sua autoridade se faz necessária. Esse papel teve

o pai de Rogério em relação a irmã.

A chefia familiar passa não só pela preeminência econômica

dentro dela, mas também pelo saber. Ser consultado para tudo,

solucionar problemas, são atribuições que se deslocam para o

membro da família melhor posicionado, para aquele que tem

"destaque".

189
O tipo de trabalho desenvolvido situa o membro da família num

foco capaz de transforma-lo em mediador entre o parente e o

Estado. Silvia e João Carlos são constantes alvos de pressão,

exercida em geral através da mãe, para obtenção de facilidades


19
junto aos órgãos em que desempenham seus trabalhos.

As decisões sobre questões domésticas também passam a ser

dependentes da opinião daquele membro melhor situado, que detém

autoridade moral por sua condição percebida como superior.

Isso deriva de um processo que é desigual no seu desenrolar.

Os filhos não "sobem" ao mesmo tempo, nem atingem os mesmos

patamares. São muitos os exemplos desse fato. Rogério e R.

(irmãos) tem desigualdade de renda, Silvia e seu irmão também. O

mesmo pode ser dito de Zilá e o irmão falecido, Helena e as irmãs

- essas últimas com menor distância. Vânia também descolou da base

familiar assim como Luiz Filipe - arquiteto - tem seus irmãos e o

pai trabalhando em construção civil como autônomos.

De certa forma as famílias investem na formação dos filhos,

porém nem todos conseguem superar as dificuldades. O esforço

termina por se concentrar naquele que responde melhor, que é mais

bem sucedido na escola, colocando os demais no mercado de trabalho

mais cedo. Então, o papel de líder lhe é atribuído como retorno

devido à família, fonte e depositária da "luta" e do "trabalho".

Mesmo quando novas unidades se formam (novas famílias), no âmbito

da parentela a família com melhores condições será a aquela

incumbida do poder de informar, aconselhar, orientar nas

dificuldades e socorrer quando necessário.

19
Silvia, na ocasião da pesquisa era assessora direta da primeira
dama do Município e João Carlos era advogado do DEMHAB - órgão de
planejamento e financiamento de habitações populares.

190
A quem prestar esse serviço fica a cargo da seletividade,

cujo critério de definição se assenta, como vimos anteriormente no

"valor", no "trabalho", na "honestidade" e na "garra".

A discussão sobre a chefia em estudos sobre família, quando

se introduz a perspectiva temporal, a mudança de status e a

existência de distância social no seio da parentela e mesmo da

família, fica bastante mais complexa.

Percebe-se que ela não é monopólio de um sexo em especial

pois necessita ser acompanhada de certos atributos que lhe

garantam o lugar. A mudança de status de um dos membros da família

pode transferir a chefia de fato, independentemente da idade ou do

sexo.

Numa perspectiva temporal isso pôde ser percebido na história

da família de Ivo. Numa perspectiva atual, Silvia aponta essa

tendência como em processo de atualização no caso de sua família

em decorrência de sua situação social.

Assim como a composição da família e da unidade doméstica e o

conjunto abrangido pela categoria parente é passível de mudar,

tanto no tempo como em função de um campo de possibilidades, a

chefia da família e a chefia da "casa" está sujeita às mudanças no

processo de vida e à mudanças de status de seus membros. É

possível verificar que num conceito amplo de família - como o da

maioria dos informantes - a liderança tende a se localizar no

núcleo mais bem situado ou na distribuição dos campos de liderança

por cada membro do grupo. No limite de uma unidade doméstica a

ausência de um dos genitores ou a redução de seu poder de provedor

(pela idade ou pelo infortúnio), pode deslocar a chefia para o

membro remanescente, ou para um parente próximo.

191
No grupo pesquisado é comum que os descendentes de famílias

onde se verificou a perda prematura do pai digam "a mãe foi o

homem e a mulher da casa" no sentido de ter sido a mãe, a dona da

casa e a chefe da família. O valor da mãe-chefe é ter suprido a

ausência do "cabeça da família", do homem a quem culturalmente

cabe o papel de provedor e conseqüentemente a chefia da família.

João Carlos (advogado, casado) substituiu os pais falecidos

de seus sobrinhos. No caso de uma das irmãs, ajudou materialmente,

além da liderança que exercia. No de outra, não havia muitas

necessidades materiais, mas exerceu autoridade moral de modo

claro. O compadrio reforçou os laços consangüíneos em ambos os

casos, ampliando os vínculos e as obrigações. João Carlos é o mais

jovem entre três irmãos (um homem e duas mulheres). Coube a ele

desempenhar a liderança da "família" após o falecimento de seu

pai.

"Então, minha irmã mais velha me ajudou muito nos


estudos. E atualmente eu tenho ajudado, mais assim,
profissionalmente, uma coisa ou outra eu opino. ... com
a adolescência, a escola, a gente ia lá prá ver as
notas, dia dos pais, sempre um cartão prá mim. Hoje já
é um rapaz de 26 anos, casado. Quando veio o pai da
noiva prá conhecer os pais, fui eu que chamaram."

Os desdobramentos dessas constatações nos conduzem a

comparação, tanto com outros estudos sobre camadas médias negras

quanto com camadas populares. O caso norte-americano é

interessante de ser tomado como referência desde que se relativize

a cultura que está por trás da construção do estilo de vida da

burguesia negra.

192
A família negra, via de regra percebida como desagregada, com

a predominância da mulher na chefia ou com ênfase no seu papel

mesmo quando não é a chefe, nas classes médias assume outro

caráter, mais próximo do padrão conjugal moderno (FRAZIER, 1975).

Isto deixa duas questões para discussão.

De um lado, a forma com que o padrão negro se readapta a nova

conformação. De outro, se o que tem sido considerado como padrão

negro, não é de fato o padrão da pobreza. Frazier considera que o

padrão negro se redefine, mantendo a predominância da mulher, só

que ela deixa de ser o arrimo para ser a "patroa" do homem, cuja

função passa a se de provedor de seus luxos e exigências. O filho

assume um lugar central, passando a ser o objeto das atenções e

alvo de mimos. Os homens seguem compensando seu lugar secundário

com relações extra-conjugais, valorizando-se cada vez mais pela

sua capacidade de sedução sexual e sua eficiência neste campo.

O autor reconhece que a cultura americana está por trás

destes comportamentos, e não busca no seu estudo estabelecer o que

é negro e o que não é no estilo de vida e visão de mundo das

classes médias negras nos Estados Unidos. Limita a pesquisa à

dimensão de um estudo de caso sobre um grupo, ou segmento de

classe média na sociedade americana. Mas não deixa de destacar o

fato do exagero de ostentação de status das novas classes médias,

a distorção de valores que atribui à segregação, ao isolamento

(das massas negras e do branco) e à rejeição dos brancos.

Nos casos estudados por nós, o que se verificou claramente, é

algo que também ocorre na pobreza (embora aí os valores sejam

distintos e articulem outras estratégias), onde as mulheres sem

marido são apoiadas pela sua parentela, por compadres. A busca

por um novo marido e aí a produção de novos filhos para selar a

193
união marcam a importância do homem na unidade doméstica, é o que

Fonseca encontrou em grupos que vivem na pobreza (grupos sub-

proletários em Porto Alegre) (FONSECA,1988).

Diferentemente de Woortmann (WOORTMANN, 1987) para quem, no

grupo estudado por ele, a díade mãe-filho constitui a definição

cultural de família, o que observamos se aproxima do achado por

Agier (AGIER, 1989) em bairros pobres de Salvador.

Também segundo Agier, a saída da pobreza depende em grande

medida dos homens, das oportunidades de trabalho que obtém

através das redes de relações de parentesco e vizinhança (nas

quais as mulheres ocupam papel fundamental), pois delas são

extraídas as informações que podem levar ao emprego estável capaz

de garantir seu lugar de provedor e com isso manter sua honra e

autoridade; exige também outra mentalidade, além do emprego

estável. Vai exigir dos homens que resignem-se ás regras do

trabalho. O que Agier verificou, é que as histórias de indivíduos

saídos da pobreza são na verdade trajetórias masculinas pautadas

por duas regras: "resignar-se" e "lutar". Com isso ele relaciona a

chefia feminina com a pobreza e as trajetórias de saída dela como

decorrente da necessidade do homem, para preservar sua honra

garantir seu papel de provedor fundamental das necessidades da

família que constituiu (AGIER, 1989).

O que difere no caso que estudamos daquilo que Fonseca

encontrou é que a moral sexual de grupos já saídos da miséria se

aproxima da encontrada nas classes médias. O puritanismo

favorece as mulheres que se preservam de novas uniões (Joana) e

geram um número pequeno de filhos, concentrando neles os seus

esforços para sair da pobreza. Caberá à geração de seus filhos,

especialmente se for um homem a continuação da trajetória.

194
Os dados sobre negros nas camadas médias nos apontam para a

possibilidade de afirmar a existência de diferença entre chefia

familiar e chefia doméstica, uma vez que todos os depoimentos

demonstram que as mulheres tomam a si tudo o que é afeito ao

cotidiano da casa e dos filhos e aos homens uma liderança que se

estende para além do universo familiar doméstico. João Carlos

deixou isso muito claro com relação a seus pais e também com a

própria família, o que não é exclusividade do seu caso, conforme

pudemos perceber.

Numa situação de desigualdade social no âmbito de uma família

(no sentido amplo que a maioria dos informantes utiliza) o papel

de "chefe da família" pode se deslocar ou ser compartilhado por um

membro mais bem situado, seja homem ou mulher, revestido de um

caráter de autoridade competente para solucionar e opinar acerca

das questões mais importantes do grupo.

Assim, concordamos com Woortmann para quem "a chefia como

categoria formal deve ser diferenciada da autoridade real ... nem

sempre é o chefe do grupo doméstico quem efetivamente dá as

ordens. Tal distinção vincula-se a outra - à diferença entre chefe

do grupo doméstico e chefe da família." (WOORTMANN, 1987:67)

No grupo de classes médias negras estudado, a família e o

grupo doméstico são unidades distintas, dada a acepção ampla que a

maioria confere ao termo família. A autoridade ou chefia familiar

pode abranger um campo mais amplo do que o abrangido pela unidade

doméstica. A casa materna permanece incluída na noção de "casa"

enquanto sinônimo de grupo de parentes próximos (consangüíneos

prioritariamente) articulados numa rede de solidariedade. A

situação de classe influi na delegação de autoridade ou no seu

reconhecimento, pois a ajuda material implica em vínculos que

195
freqüentemente são reforçados por compadrio. A solidariedade

familiar no processo de ascensão e a desigualdade nos resultados

produz desdobramentos capazes de manter os laços afetivos e o

dever de ajuda às gerações que a sucedem.

196
4. FAMÍLIAS NEGRAS NAS CAMADAS MÉDIAS. ASPIRAÇÕES E

LIMITES

O grupo pesquisado mostrou-se diferenciado internamente do

ponto de vista do sua posição social, padrão e estilo de vida. À

posição numa hierarquia de status, não correspondia um estilo de

vida determinado, mesmo considerando a geração no processo de

ascensão.

A opção por viver no meio negro encontrava diferentes

alternativas, além daqueles cuja escolha recaía numa maior

atomização em relação aos "meios" negros e individualização ou

nucleação frente à parentela.

4.1. Pertencimento de Classes

197
Em que pese a diferenciação interna observada no grupo

pesquisado, ele distingue-se do conjunto da população negra, cuja

maioria está localizada nas camadas mais baixas, predominantemente

nas ocupações manuais e serviços não especializados.

Alguns informantes, em geral aqueles portadores de um status

mais ambíguo, não raro recusavam ser identificados como "classe

média". Questionavam o significado da classe média para o grupo

negro:

"Alguém comentou a respeito da [tua] pesquisa,


mencionou o teu nome, a questão dos negros de classe
média. Até a gente riu: quem são os negros de classe
média? O que é classe média prá nós?" (Silvia)

Reconheciam estar "acima" da maioria dos negros e achavam que

eram "média" se tomássemos aqueles como referência. Consideravam-

se pobres tendo em vista o que percebiam que eram as classes

médias brancas.

A sua perspectiva de inserção nas camadas médias tem como

referência, duas imagens: a massa negra - pobre e subalterna e a

elite branca.11

Compõe a imagem que fazem de si esse duplo referencial no

qual se apresenta, revestida pelas categorias rico e pobre, a

11
Não consideram a possibilidade de identificar-se com frações das
classes médias cujo padrão de vida se assemelhem ao seu. Para eles
as classes médias estão sempre num patamar acima do seu e são
brancas.

198
velha imagem do senhor e do escravo, do branco e do preto em

oposição.12

Os dados sobre cor no Brasil espelham esse antagonismo e

reforçam as bases da auto-identificação de classe apesar de

tratar-se do Rio Grande do Sul onde o negro é minoritário

inclusive nos extratos mais baixos da pirâmide social (embora

proporcionalmente o negro em maior medida aí esteja situado).

Tomar como referência o topo, significa não satisfazer-se com

o status obtido. Resta o sentimento de que "ainda falta muito para

chegar lá". Isso denota a existência de um projeto de ascensão em

processo de realização.

Gilberto Velho afirmou que a par do fato das noções de classe

média e classe trabalhadora serem vagas, há diferenças internas

não desprezíveis relacionadas à "trajetória social"13 e às redes de

relações. Além disso, a situação de ascensão social também

produziria diferenciações quando comparada à condição de

estabilidade de frações mais consolidadas (VELHO, 1981:20).

As referências objetivas feitas pelo grupo a esse projeto de

ascensão, são relativas a obtenção de diplomas, promoção na

carreira, escolha de bairros compatíveis com o status obtido ou

pretendido, trocar de carro, etc. A busca por prestígio se realiza

basicamente pela educação, meio para obtenção dos fins almejados.

Esses informantes evitam enquadrar-se como parte das camadas

médias, porque apesar de se saberem acima das massas negras,

aspiram "chegar lá".

Outros parecem satisfazer-se com o status obtido, priorizando

o referencial da massa negra pobre e tomando eventualmente

12
Sobre as implicações psicológicas desse processo identitário ver
SOUZA, 1990.

199
parentes como comparação. Nesses casos remetem ao futuro dos

filhos a continuação da ascensão.

Entendendo projeto como "conduta organizada para fins

específicos" (SCHUTZ, 1979), é possível ver nas trajetórias

recolhidas um componente de investimento dos pais na educação dos

filhos como uma escolha que se tornou possível por serem já

portadores de determinadas pré-condições materiais e ideológicas.

Entretanto os projetos formulados não se expressam de modo

idêntico no conjunto pesquisado: renda e diploma superior não se

situam sempre numa ordem de prioridade ou de seqüência causal

inevitável. A condição de militante não desempenha, aparentemente,

nenhuma determinação nessa diferença.

Geraldo, professor de história no segundo grau da rede

pública, militante, casado com uma pedagoga, ressente-se do baixo

retorno financeiro de sua profissão, porém percebe-se em "outro

patamar" relativamente a parentes cuja renda não difere muito da

sua, os quais não valorizam a atividade intelectual. Valoriza a

renda, mas a cultura tem um grande peso, sendo o diferencial

qualitativo nas expectativas em relação aos filhos. O mesmo pode

ser dito no tempo, já que compara seu projeto com o de seu pai:

"Aí tem o seguinte. Nós, pelo menos a nossa família


aqui, nós fizemos o máximo empenho, porque nós temos a
plena consciência de que nós estamos encaminhando um
processo de ascensão social de nossos filhos. A
minha mulher, nós somos um caso típico. Aliás, um caso
típico de 99% de famílias negras. Os nossos avós eram
analfabetos. A minha mulher tem curso superior. Na
nossa casa tu podes ver livros, tem mais outra
biblioteca lá nos fundos. Na casa do meu sogro não tem
livro nenhum; encontrar uma caneta lá é a coisa mais
difícil, porque eles não tem a tradição disso. Então a

13
No sentido de BOURDIEU, 1982:7.

200
gente sente que a gente deve ser a mola propulsora pra
fazer com que os nossos filhos saiam da condição
cultural dos nossos avós e avancem pra uma condição
econômica acompanhada de nível cultural também. As
nossas exigências em relação aos filhos são bem
diferenciadas das expectativas dos nossos avós em
relação a nós. O sonho do meu pai era que eu fosse
garçom; e depois que eu fosse brigadiano. Pra ele tava
bom. Garçom ganha bem, tem um nível de sobrevivência, a
Brigada é segura, não vai ter problema, etc e tal. Os
irmãos da minha mulher, um é polícia civil e o outro é
funcionário público, classe intermediária e tal. A
expectativa do pai deles em relação a eles tá bem, os
guris tão bem colocados. Mas o que se vê, a expectativa
deles em relação aos filhos deles: o mínimo possível de
exigência. E aí vem uma outra coisinha, os primos, do
lado dos irmãos da minha mulher, os primos das minhas
filhas, chamam as minhas filhas de cheias e disso e
disso. Porque o nível de exigência que nós colocamos
prás nossas gurias, seguramente é bem maior. A maioria
deles já não estuda mais, já estão no mercado de
trabalho, ou já tão desempregados. Mas nós não. Nós, a
nossa exigência que nós colocamos prás nossas filhas, a
única coisa, a única coisa que elas tem que fazer, é
tirar um curso superior, é o mínimo que elas tem que
fazer. Escolha o que quiser, mas tem que ter um
diploma. Porque? Porque eu passei horrores prá fazer
isso, a minha mulher, a mãe delas passou horrores prá
fazer isso; e agora é o patamar mínimo que elas tem que
sair." (Geraldo)

O mesmo nível de exigência Ivo aplicou em relação a suas

filhas, sentindo-se realizado com o sucesso obtido pelo seu

projeto:

"Na hora da mesa eu falava muito sobre essas


coisas e até dava um exemplo. ... somos cinco pessoas
e nesta família aqui, esta família vai dar certo, eu
dizia para elas [as filhas]. Todas as famílias fazem
uma viagem na vida, uma viagem no seu barco. Cada
família é um barco e quando ela é constituída começa a
viagem. Essa viagem, o destino da viagem é até os
filhos atingirem a maturidade. Lá terminou a viagem,
... e o nosso barco, somos cinco pessoas remando
igual. Cinco remadores. Vamos fazer essa viagem com
inúmeros, milhões de barcos. Só um detalhe, que é muito
importante. Entre os barcos que chegarão no porto
seguro, este barco vai chegar. Outros vão chegar.

201
Muitos não chegarão, vão naufragar. Porque pode até
chover canivete, faça o que fizer, a tempestade que
houver, o [nosso] barco não vai virar, ele vai chegar
no porto seguro. Quando vocês atingirem, ... a última
atingir a maioridade, tiverem 21 anos, chegou a viagem.
Aí, vocês vão olhar e , pô, pai, chegamos! ... Isso,
era isso. Era essa a visão que a gente tinha, que eu
tinha. De que a minha família fosse assim. Eu queria
que as minhas filhas fossem pessoas destacadas. Não
destacadas em dinheiro, eu não estava muito preocupado
com isso, mas eu queria que elas fossem, tivessem seu
curso, pudessem se qualificar profissionalmente e
pudessem enfrentar as dificuldades, as agruras da vida.
Qualificadas porque eu sempre chamava atenção de que se
não se qualificar vai passar trabalho." (Ivo)

Seu pai aspirava para ele e sua irmã um crescimento social

modesto em relação ao ponto em que ele mesmo já havia conseguido

chegar:

"Não precisa ser no terceiro ou no quarto patamar;


bastará estar no segundo patamar. Nós já crescemos em
relação ao que nós fomos. Era essa a idéia que ele
tinha." (Ivo)

Zilá, militante, professora, esposa de um agrônomo muito bem

situado profissionalmente, não tem expectativas tão bem definidas.

É mais flexível, deixando de ver num título superior a garantia de

sucesso, fazendo a crítica dos novos padrões que regem o mercado

de trabalho em que qualquer eletricista recebe mais pelo trabalho

que um profissional de nível superior.

Zilá privilegia a renda e Geraldo e Ivo o título superior

(este, garantia de renda e segurança), a cultura, o saber. Ela

pertence a primeira geração da família que chegou às classes

médias, ao contrário de Ivo que advém de uma família já saída das

202
classes baixas na geração da avó. Possivelmente ter seu passado

ainda num contexto de "dificuldades" leva-a a enfatizar a renda,

mas isso pode também decorrer do seu nível intelectual e da

posição social que atingiu o que lhe permite ver, aparentemente

com menos cuidado as perspectivas da formação universitária de

seus filhos, até porque eles freqüentam boas escolas, ando-lhe

maior segurança quanto a sua formação. Ao contrário, as filhas de

Ivo e Geraldo estudaram em colégios públicos que embora de boa

qualidade, não garantem o estímulo do ambiente para prosseguir

rumo a uma universidade.

Zilá marca a sua relação mais frouxa com o futuro dos filhos

mediante uma comparação com o significado de um título superior

para a geração acima da sua:

"Meu marido, por exemplo, [a mãe dele] ... lavava roupa


para fora, prá manter o filho. Ela só teve este filho,
porque ela não quis ter mais. Ela sabia que ela... Ela
é analfabeta também... Quer dizer, este vai ser doutor.
E foi realmente, meu marido é agrônomo, engenheiro
agrônomo, muito bem posto e tal. Imagina a alegria
dessa mãe, de ver o filho formado na Universidade. Como
foi a minha mãe. E não acontece mais comigo, por
exemplo. ... Mas eu, hoje, dentro dessa visão que eu
tenho, minha, eu não quero que eles... Bom, eu gostaria
que eles fizessem uma faculdade, mas e o curso técnico,
porque não? Quer dizer, eu não deposito a mesma
esperança, aquele mesmo grau de expectativa que elas
depositavam em nós..." (Zilá)

Renda e diploma superior são valores próprios de camadas

médias e entre eles se oscila. Entretanto a educação, a

escolaridade, segue sendo um valor perseguido como meio de

preparar a vida adulta com independência e respeitabilidade.

203
A postura verificada em Geraldo (o valor à educação e a

"cobrança" sobre os filhos), é a mesma de Ivo. Essa exigência,

também Rogério sentiu em seu pai e sua mãe: o incentivo e a

cobrança. Ivo teve isso de seu pai. Geraldo, não. Optou por sair

da tradição da família - brigadiana - e voltou-se para outra área.

Quis estudar, fazer faculdade e exige no mínimo isso das filhas:

concluir um curso superior.

Rogério, apesar do alto padrão de vida que possui, do

patrimônio que conseguiu alcançar, mantém essa exigência com o

filho. Tudo é muito controlado, muito cobrado. Às vezes ele até

acha que é muito duro e lembra do que sentia quando seu pai

impunha disciplina, das férias que perdeu tendo que estudar por

ter obtido uma média 6, suficiente para aprová-lo, mas não para as

expectativas do pai. "Empatar é perder", era a frase decisiva de

seu para alerta-lo sobre o tipo de competição que teria que

enfrentar.

Silvia, que também teve seu processo educacional impulsionado

pelos pais, sentiu a cobrança sobre ela como distinta daquela

exercida sobre o irmão. Apesar do resultado esperado ter sido

alcançado através dela, o irmão era o objeto principal da

expectativa. Esperavam dela que fosse professora primária, com

condições de ajudar o marido e preparada, com independência para

garantir seu futuro no caso do casamento fracassar. O projeto do

irmão foi frustrado por um casamento precoce, um grande número de

filhos cujo sustento precisa garantir com o trabalho. Silvia

auxilia o irmão, investindo seus recursos na educação dos

sobrinhos.

"Ajudar nos estudos" é o item mais referido como elo entre a

família que ascendeu e os parentes que permaneceram na base (ou

204
próximos dela). Isso denota a existência de um esforço pela

socialização dos ganhos em direção à "família" (parentes

selecionados segundo critérios morais, especialmente honestidade e

trabalho).

Desse modo, o projeto de ascensão através da educação é

passível de se expandir pela rede de parentes próximos, nos

limites dados pelo montante possível de ser desviado da unidade

doméstica. Na possibilidade de um excedente, ele pode ser

investido na extensão do projeto à "família". Essa prática limita

a acumulação de bens. Mas "puxar" os que ficaram para trás, desde

que por razões plenamente justificáveis, faz parte do projeto,

pois a continuação das relações familiares depende também de um

mínimo de igualdade no estilo de vida e nas expectativas de

realização econômica e cultural.

"Não tenho cunhado, já faleceu, só irmã e sobrinhos.


Ajudo, e como minha mãe não tem esposo, ajudo em alguma
coisa, materialmente, dou opinião... Agora, uma outra
irmã, quando enviuvou, deixou uma filha de sete anos da
qual sou o padrinho; então padrinho é o segundo pai,
não é. E deixou um filho de três anos, que eu assumi a
paternidade. No sentido não de levar pra minha casa, eu
já era casado, mas de ajudar a criar."
"A outra [sobrinha], que já tinha sete anos foi estudar
no colégio Glória, colégio particular. Lá vai eu
ajudar, eu e minha irmã mais velha, cada um dava a
metade da mensalidade. A filha da minha irmã foi prá
Bahia. Como é que nós vamos deixar a outra? Então vamos
financiar a viagem à Bahia. ... Então, a gente sempre
cuidando. ..." (João Carlos)

Outra possibilidade, nessa prática de socialização dos ganhos

é trazer para morar em casa um sobrinho, a mãe, a sogra, o

afilhado, que serão incorporados à "casa"

205
Disso resulta que o padrão de vida alcançado nunca atinge o

limite possibilitado pelos ganhos:

"Sou uma exceção. Tanto do ponto de vista


intelectual, quanto até das condições de vida. Eu
consigo ter uma vida, relativamente com um certo
conforto, um bem-estar. Mas dentro da minha própria
família não é assim. Aí, de acordo com a minha
concepção, o que se tem é tudo socializado com aqueles
que não tem. Então o meu padrão de vida nunca é muito
extremado com relação à minha família. ..." (Silvia)

Entretanto a socialização dos ganhos não é generalizável.

Vânia tem relações preferenciais com uma irmã, do mesmo nível

dela. As filhas não tem relação com as primas que não estudaram e

estão num nível mais baixo - "são tudo cabeção" (pobres e

desinteressados na melhoria de vida). As filhas de Geraldo são

consideradas "cheias"14 pelos primos maternos. Relacionam-se mais

com os do lado paterno que tem as mesmas expectativas, gosto e

estilo de vida. Os filhos de Zilá relacionam-se mais com amigos,

muitos deles brancos, o que a leva a imaginar o risco deles

casarem com brancas.

A perspectiva dos que estão num nível mais baixo, mesmo que

posicionados no ponto da "arrancada"15, demonstra o distanciamento

possível numa situação de desigualdade no circuito de parentes:

"Alguns moram fora do estado. Eles são um pessoal


diferente. São uns negros de classe média e tal. Eles
separam muito isso, então eles não tem muito acesso.

14
Significa snob, pretensioso, cheio de si.
15
Na base das classes médias (WRIGHT MILLS, 1969).

206
Então, já evitei, porque eu não gosto desse tipo de
coisa." (Gilberto)

Os que se distanciaram dos parentes, manipulam um padrão

individualizante como argumento:

"Tios e tias moram no interior, tem alguns que moram


aqui, mas eles tem o grupo deles também muito... Tu
sabes que eu, depois que me casei, eu mantenho muito a
minha família. A minha família que eu digo é meu
marido, os meus três filhos, a minha sogra, e a minha
mãe, e meu pai era antes. ... Eu não tenho esse
tradição de intercâmbio com os familiares."(Zilá)

Além da educação, a escolha do local de residência é um item

constante, sempre referido. Faz parte do investimento a busca por

um bairro melhor, o que só não será feito quando o dever de ajuda

se impuser como imprescindível, ou residir próximo à família seja

uma vantagem.16

Silvia atribui à "socialização dos ganhos" sua

impossibilidade de escolha de local de residência mais favorável:

"Porque prá mim, eu poderia evidentemente residir aqui


no centro... Mas claro que aí a minha renda ia se
concentrar mais no meu bem-estar pessoal. Eu não ia ter
condições de ajudar ninguém. Como opção eu prefiro, e
até é uma concepção de mundo, eu vou morar num local
onde possa estar mais inserida, não destoe muito, que
eu não saia tanto."

16
Residir próximo à família pode consistir numa estratégia
maximizadora dos recursos no sentido de significar obtenção de
ajuda no cuidado das crianças.

207
Geraldo reside num bairro de classe média, próximo ao centro,

por ter sido favorecido pela ajuda do sogro que adquiriu ali os

imóveis que possui, num tempo em que eles não eram muito

valorizados. O salário de Geraldo não seria suficiente para

residir naquele local.

De modos distintos, Silvia e Geraldo dizem de sua expectativa

de residência, de suas aspirações.

A idéia do que seja um bairro melhor está muito relacionada

ao tipo de morador existente no bairro.

A escolha do local de residência favorece o acesso a

serviços urbanos melhor qualificados (escola, hospital,

instituições culturais, etc.). Isso favorece o processo de

ascensão. Pode também ser objetivamente considerado um ponto

crucial na conquista de uma melhor posição social.

M., pai de Ivo, preocupou-se em escolher um bairro em que

seus filhos estivessem próximos de pessoas de um nível social mais

alto do que o deles. Desse modo, acreditava, eles teriam quem os

"puxasse para cima".

O local de residência - "um bairro bom" - além de um "bom

colégio", é um espaço privilegiado de conquista de "boas

relações". Um "bairro bom" é também um bairro longe da pobreza:

"... sempre o meu pai procurou deixar a mim e a


minha irmã, ele sempre fez questão disso até para a
vida dele, de que nós tivéssemos sempre usufruindo de
relações,... se possível com aquela camada, que
estivesse acima da gente... Em caso de algum insucesso
na vida, por força das relações de amizade, aquela
camada de cima dá uma mão prá aquele por causa da
amizade de muitos anos, e puxa e trás e bota no mesmo
patamar. ... Tanto que quando chegou a hora ... de ele
resolver construir casa, dele, prá nós, ... [ele disse]

208
olha, no Partenon eu não vou morar. Eu vou então
comprar o terreno, já que a caixa está oferecendo essa
oportunidade [caixa dos ferroviários], ela tá
oferecendo onde eu quiser... Eu vou comprar um terreno
e vou receber o financiamento da caixa para fazer na
rua Faria Santos em Petrópolis, que é um bairro novo e
lá, nesse bairro novo, vai florescer uma classe média
que me interessa. ... Lá no Partenon é pobreza." (Ivo)

A maioria tem a memória do passado dos pais na pobreza.

Outros lembram a pobreza dos avós e outros a sua própria infância

num contexto de dificuldades. São três gerações num processo de

ascensão que tomamos como base para compreender esse processo.

O pai de Rogério foi muito pobre na infância. Morava num

bairro pobre. Aos 6 anos trabalhava com entregador de pão de um

panifício próximo. Empregou-se na Prefeitura de Rio Grande onde

trabalhava na "zorra" (máquina utilizada para rebocar os bondes

enguiçados) sendo portanto um trabalhador braçal. Estudou depois

de casado. Sua esposa já era professora quando casou, ficando

clara sua possível influência na formação do pai de Rogério,

embora em seu relato isso não seja enfatizado. Seu pai formou-se

em Direito e aposentou-se pela Prefeitura de Rio Grande como

Procurador do município, tendo ainda advogado e lecionado.

Zilá, teve pais trabalhadores, não tendo sido fácil manter o

projeto de "ver os filhos formados".

"A minha mãe trabalhou fora, sempre com muito


sacrifício, como toda a família negra, porque nunca
teve berço de dinheiro ou herança. A minha mãe era
doméstica. O meu pai, operário metalúrgico. Um tipo de
gente trabalhadora, mas que queria que os filhos
estudassem. Mas era aquela coisa! Depositavam tudo na
formação dos filhos." (Zilá)

209
Ivo já se criou em melhores condições. Relata a experiência

da avó e do pai que juntos promoveram um salto na escalada social:

"Ela era empregada [a avó]. Ela era camareira de um


hotel [em Santa Maria]. Nesse meio tempo ela já tinha o
M. [pai do informante]. Já era crescido e estava
estudando em um colégio de irmãos maristas. E aí meu
pai trabalhava. Meu pai estudava até chegar a uma idade
de 12, 13 anos, que ele tinha que ajudar alguma coisa,
não dava prá ficar só assim. Ele também tinha que
buscar um dinheirinho, qualquer coisa assim prá ajudar.
Então ele ajudava nas horas vagas e servia a mesa. Ele
era o garção do Hotel Leon. Porque naquela época as
escolas tinham aula de manhã e de tarde. Então,
pequeninhinho, ele ia prá casa na hora do almoço e
ajudava a servir; avental, essa coisa toda, trocava de
roupa, servia e depois ia para o colégio. Almoçava e
depois ia pro colégio. De noite, fazia a mesma coisa.
Ele era muito bom aluno. Até chegar nos 17, 18 anos
dele... Mas nesse meio tempo ele já estava trabalhando,
ele fez concurso na Viação Férrea do Rio Grande do Sul,
onde foi funcionário até morrer." (Ivo)

"O meu pai era operário. Ele era calceteiro, ele


trabalhava em calçamento. Eu andei nas calçadas que o
meu pai trabalhou. Eu levei comida pro meu pai. Ele
trabalhava na Botafogo, numa época, e a gente morava na
Vinte de Setembro. Eu me lembro que eu cuidava no
relógio, eu caminhava entre 15 e 20 minutos, perto do
meio dia prá levar comida prá ele. E ele sentava no
banquinho de madeira, que eles faziam, bem pequeno, e
ele comia ali, numa vianda. ... Me lembro também, a
minha mãe era costureira, e muita roupa eu levava. ...
A minha mãe fazia mocotó, aí eu levava. Aí, claro, eu
já tava mocinho, 15 anos, andar com a panela na mão...
mas, paciência, vou ajudar a vender mocotó." (João
Carlos)

O trabalho das mulheres freqüentemente as colocam em posições

privilegiadas do ponto de vista das "relações" que conquistam. Seu

210
trabalho e "valor" que possuem como lutadoras, batalhadoras,

promovem as bases que autorizam os patrões a "ajudar".

Woortmann, estudando bairros populares na Bahia encontrou nos

grupos observados, a vinculação de mulheres a relações de

patronagem17, especialmente quando são lavadeiras, empregadas

domésticas. Elas são "instrumentais no acesso a patronos

potenciais", segundo os termos do autor (WOORTMANN, 1987:53).

Arnaldo (advogado, tem aproximadamente 70 anos), atribui a

essas relações de brancos poderosos com "negros bons" as condições

que propiciaram, não só a emergência das famílias negras mas o

próprio processo de ascensão.

Marta é professora universitária. Na ocasião da pesquisa

cursava doutorado. Provem de família pobre. O trabalho duro, as

horas extras que seu pai fazia, não seriam suficientes para manter

os filhos estudando. "Pedir" seria o que, acompanhado do "caráter"

e do "valor" da mãe de Marta, acionou os mecanismos que

propiciaram a ascensão social de seus filhos:

"Porque a mamãe é uma auto-didata e o papai


também... Nós aprendemos que a gente vinha de uma
situação humilde, mas o papai fazia serão, ele era
tipógrafo..., para poder ter dinheiro extra para poder
construir a nossa casa. A mamãe começou como lavadeira.
De lavadeira ela foi preparada pela minha irmã e fez
concurso [servente de escola] para a Secretaria da
Educação... Então, eu sempre aprendi a pedir, porque a
minha mãe sempre pediu. Quando ela precisou, ela sempre
pediu. Mas ela teve grandes amigos que nunca negaram
nada. ... Todos aqueles médicos, advogados, que a mamãe
lavou prá fora, tudo o que ela pediu prá eles, um exame
médico que ela precisou, jamais negaram nada. E sempre
se empenharam; por ver o valor dela enquanto pessoa, o
caráter dela, e ser uma pessoa batalhadora e exigente.
E foi assim que ela cresceu, foi assim também que eu
cresci. E hoje eu digo pros meus alunos como eu digo

17
No sentido dado por WOORTMAN, 1987:49.

211
pros meus filhos: é melhor não ter um centavo no bolso,
mas ter excelentes contatos. E eu sou uma pessoa muito
bem relacionada."
"Mamãe pediu roupa prá nós nas casas que ela lavava
roupa prá fora. Ganhávamos muita roupa boa".
"Eu fui pro Aplicação e eu tinha ajuda do Aplicação prá
comprar material. Eu fiquei envergonhada na época: ai
que vergonha! Eu era uma das únicas que tinha esse tipo
de auxílio no Aplicação..." (Marta)

Helena é médica. Cursou Medicina em faculdade particular.

"Pedir" foi a estratégia utilizada por sua mãe para conseguir

mantê-la no curso:

"Eu fui privilegiada, até isso é fruto da batalha


da minha mãe... ela vinha aqui na Assembléia pedir pros
deputados que ela precisava de uma bolsa prá filha
dela. E eles davam aquelas verbas que tinham e tal; mas
ela ia lá e batalhava, ia lá e pedia... " (Helena)

Helena conseguiu uma bolsa da faculdade particular na qual

cursava medicina. Com isso "livrou" as mensalidades. A mãe só

precisava pedir para a manutenção da filha, pois a faculdade se

localizava em Pelotas, no interior do estado. Além disso, ela

morou num apartamento com mais duas colegas. O pai de uma delas,

de muitos recursos, relacionado à sua mãe, não permitia que Helena

pagasse sua parte no aluguel. Com essa colega ela também "vinha de

carona" para Porto Alegre. Com isso, Helena diz que as coisas

foram mais fáceis. Coube a ela estudar, tirar boas notas e "fazer

o melhor possível":

"Então, livrava as minhas passagens, livrava o


apartamento e tinha a faculdade paga. Claro que a coisa
foi mais tranqüila para mim. ... Quando vim prá

212
residência aqui, muito bem classificada. Tu tem que
tentar, não precisa ser o melhor, mas tenta ser. Eu
sempre tentei realmente. ... e isso foi recompensado
agora, com meus pacientes,..., com o trabalho que
consegui. Também os trabalhos, graças a ajuda da minha
mãe, que conhecia, porque fazia comida prá não sei
quem, não sei quem. Ah, a minha filha se formou - tava
na hora das cobranças, cobrou e conseguiu. Lá fui eu
pro INPS porque ela fazia comida não sei prá quem e
conseguiu. Fui lá prá Secretaria da Saúde - e mantenho
os empregos até hoje - porque ela foi lá e batalhou."
(Helena)

A mãe de Helena ficou viúva quando Helena tinha 14 anos. Seu

pai era pedreiro. Segundo ela, "excelente profissional". A busca

pela ascensão havia começado com ele. Quando faleceu, estava

cursando o primeiro ano de arquitetura. A mãe era lavadeira. Sem o

marido, viu que com os lavados não conseguiria sustentar os filhos

e menos ainda continuar a trajetória que ele havia começado.

Então, "partiu para o campo da culinária":

"Minha tia era uma quituteira muito famosa e minha


mãe foi aprender essas coisa com ela. E aprendeu tão
maravilhosamente bem, que eu sempre digo: minha mãe é
uma doutora em culinária. Bastante famosa, sai nas
colunas sociais. Agora está aposentada, felizmente. ...
Nunca aprendeu muita coisa em termos de ir à escola.
Mas em termos culturais é uma mulher fantástica,
extremamente batalhadora."

O valor das mulheres batalhadoras, que sem terem estudado

"conseguem" o que precisam, as transforma em objeto de admiração e

respeito na fala de seus filhos. Quase sempre aqueles que deram

origem à ascensão são definidos como "auto-didatas", metáfora que

os filhos e/ou netos utilizam para descrevê-los como alguém que se

fez sozinho. As mulheres, mais do que os homens são assim

213
referidos, até porque os contatos delas no trabalho as

instrumentam com os valores e o conhecimento dos meios de obter

vantagens na luta pela melhoria de vida, além de lhes alimentar a

ambição.

Helena sempre quis estudar algo relacionado a crianças. Desde

pequena queria ser pediatra. Na vida adulta, sua escolha por

medicina deveu-se a possibilidade que esta profissão oferece de

obter uma real ascensão:

"E eu comecei a crescer e eu comecei a entender


realmente: tu precisa estudar. Prá mim sair um pouco
daquela coisa de ser mulher negra e pobre, teria que
estudar. Que era a única coisa, já que eu não tinha uma
família com condições financeira elevadas, eu tinha que
estudar.... eu queria o trato com a criança - eu
poderia fazer isso em outra área... - mas a medicina
também proporcionaria melhores coisas pra mim. Dentro
da minha ambição, eu não vou dizer que não sou
ambiciosa e acho que sou bastante até, eu acho que a
medicina me proporcionaria melhores coisas. Realmente
melhor ascensão social, melhor remuneração."

A determinação faz parte do pensamento racional que aliado ao

pragmatismo constituem um importante atributo para a saída da

pobreza. Esses valores são a pré-condição da ascensão em si

mesma.

A "ambição" leva os beneficiários da ajuda dos poderosos a

não se sentirem humilhados com os benefícios, embora não em todos

os casos. Helena, e de certo modo Marta, relatam sua história como

algo possível graças a essas duas ordens de fatores: determinação

- a "garra" - e "ajuda". Esta última é em grande medida percebida

como um direito correspondente ao "valor" de quem luta

honestamente e que presta serviços de qualidade a "patrões" que

214
nem sempre os remunera bem. A "cobrança" vem sob a forma de

"pistolão" e a resposta devida à obtenção de um canal de ingresso

em um emprego, é a competência e a honestidade. Para além do

salário há algo que deve ser pago a quem serve. Isso é o que essas

mulheres cobram e que seus filhos devem corresponder "cumprindo"

corretamente suas funções.

É um circuito de troca que se extingue com o fato de alguém

ter bem aproveitado a dádiva18. Esse último movimento não precisa

outra contrapartida além do fazer bom uso da oportunidade. Ser

agradecido, reconhecer o favor, é o dever do intermediário , no

caso a mãe, como contra-prestação à dádiva. O beneficiário está

fora do circuito. A autonomia é conquistada e os deveres ficam

cumpridos.

As gerações mais novas, nas quais Silvia se enquadra, já não

tem essas bases.

A família de Silvia não dispunha de meios de residir num

"bairro bom". A escola mais próxima, pública, foi o que pode ser

oferecido aos filhos, até que tivessem idade para irem estudar

numa escola melhor num bairro mais distante.

"Eu estudei num grupo escolar, uma escola pública.


Na época era até a quinta série, aí depois fiz exame de
admissão, aí fiz o ginásio no Irmão Pedro, aqui na
Félix da Cunha, que já era um status, porque a maioria
das crianças não chegava a esse nível. Então a minha
mãe fez questão que eu e o meu irmão saíssemos daquele
ambiente e fôssemos estudar, mesmo na escola pública,
mas que pegasse o ônibus... outro bairro, ter contato
com outras crianças, de outros locais e tal. A minha
mãe já teve uma outra formação, mesmo sendo de família
bem pobre, mas ela teve uma outra formação".

18
Sobre reciprocidade ver MAUSS, 1974, v.II.

215
Silvia precisou trabalhar, assim como João Carlos e Gilberto,

para poder continuar estudando. Filha de "operário com faxineira",

conquistou através da educação a possibilidade de ascender.

"Fiz o segundo grau lá também. E depois, quase no


final, (eu comecei a trabalhar com 17 anos) e aí a
coisa foi apertando, apertando mais. Não tinha nem
dinheiro prá passagem. ... Fui ser office boy. E deu
uma experiência legal, porque aí eu juntei dinheiro.
Durante três meses eu juntei dinheiro, e daí, botar
aquele dinheiro na poupança prá ter dinheiro durante o
ano prá não ter problema. Mas quando eu fui pedir
demissão, o dono da loja... perguntou se eu não queria
trabalhar meio turno. A minha escola era à tarde e eu
trabalhava de manhã. E ele pagaria prá mim em vez do
salário inteiro, meio e pagaria as passagens. Aí
comecei a trabalhar e não parei mais."

Passou depois a trabalhar em dois turnos para economizar e

poder estudar. Assim concluiu o curso de Serviço Social na PUC,

mantendo-se com sua própria renda e se auto-determinando.

A partir do estágio do curso, através de um projeto que foi

bem sucedido, conseguiu outro emprego já relacionado à área de sua

formação. Após, fez um concurso para o estado, passou e seguiu sua

carreira profissional. Paralelamente engajou-se no movimento

negro, sendo ligada ao PT. No momento da pesquisa cursava Ciências

Sociais também na PUC e aspirava ingressar na UFRGS.

Essa trajetória é exemplar das estratégias modernas e

racionais de conquista profissional e decorrente ascensão social.

Da mesma forma que as trajetórias "tradicionais", essas novas

gerações passam pelos pressupostos do emprego estável e

216
socialização nas classes médias mesmo que através do trabalho

estável embora não qualificado.

Agier diz que é "num segundo tempo, em geral na segunda

geração, que outras práticas aparecem: formação escolar e

profissional mais enfatizada (em que as meninas (filhas) começam a

se beneficiar também) e, a partir daí a passagem da descendência a

empregos formais, salários regulares... e outras reivindicações."

(AGIER, 1989:109)

Desse modo, a geração dos pais de nossos informantes, eles

mesmos já constituíram a segunda geração, pois situavam-se em

empregos estáveis, pré-condição para desencadear para de seus

filhos a mudança de status ou o trânsito para classe média, sempre

que tenha havido o "aproveitamento da oportunidade". Na ausência

da figura masculina, as mulheres fazendo as vezes de homem e

mulher da casa realizam as condições de construção da família para

seus filhos e através deles ver concretizada a ascensão social.

No discurso sobre ascensão social, a luta, as dificuldades,

são referidas enquanto esforço para vencer a pobreza. Esse esforço

é maior devido à condição de "negro".

Se ao falarem da história familiar falam da trajetória de

ascensão social, não é menos verdade que a condição de "negro" é

referida em algumas situações informantes como um dado que acentua

o esforço, a "luta" e a "garra" para vencer as dificuldades que na

pobreza já são muitas. Em certos casos, dizer família negra é

dizer família pobre.

Cada etapa da caminhada é apresentada como uma real vitória,

pois não é apenas o emprego ou o diploma que conquistam e sim, e

fundamentalmente, a vitória sobre o peso da pobreza e da cor:

217
"O ressentimento surgiu como uma das dimensões
fundamentais do ethos e da ética da pequena burguesia
(ou de modo geral, da burguesia em sua fase
ascendente), sem dúvida porque ele autoriza os membros
das classes médias - conscientes de que sua ascensão
resulta de privações e sacrifícios de que estão livres,
ao menos em sua ótica, os membros das classes populares
e os membros das classes superiores - a fazerem, como
se costuma dizer, da necessidade virtude, e a
condenarem o laxismo dos que não tiveram que pagar
preço da ascensão..." (BOURDIEU, 1982:11).

As muitas vezes que o indivíduo pensa em desistir, e a

ênfase no estímulo da família para que não o fizesse, fazem parte

das digressões que realizam nos relatos.

O caso de Silvia que relatamos anteriormente, é um exemplo de

determinação pessoal. Quando as dificuldades apareceram ainda no

segundo grau ela não esmoreceu e buscou as formas dela continuar

estudando. Na faculdade, sentiu dificuldade não só com o custo do

material, transporte, alimentação, mas principalmente com a

distância social existente entre ela e as demais alunas, pois "

padrão era altíssimo. Tinha meninas que iam com motorista."

Isso que Bourdieu chamou de "ressentimento" vai, no casos dos

negros, projetar essa consciência do preço pago para a ascensão na

diferença racial e, segundo ela "despertar" para a questão racial.

"... eu senti um impacto violento... Aí se constituíam


os guetos dentro da sala de aula. ... Isso ai foi um
despertar para mim. Foi meio brusco e chocante, mas deu
para eu me posicionar, de que lado, como é que eram as
relações. Não eram tão coloridas como se sonha, como se
pensa.". (Silvia)

218
Além da percepção das dificuldades e das privações próprias

do processo de ascensão em que estava engajada, se acrescentam

aquelas decorrentes do pertenciemnto racial.

Silvia atrasou um semestre do curso em decorrência de um

episódio de discriminação racial provocado por um colega. Como a

instituição nada fez, entrou na justiça, mas perdeu o semestre por

causa dos efeitos do ocorrido sobre ela. Na escola foi ofendida

muitas vezes, o que dificultava a sua permanência ali.

Marta quase foi derrotada na escola, em função da agressão

que sofria de colegas:

"Fatos que eu vivenciei na minha fase do Aplicação, de


jogar livro pela janela,... apelidos, eu era 'cisne
branco em negativo'... nos primeiros dois anos eu sofri
muito. Eu ia à coordenação e reclamava. Então eles
jogavam pela janela, eu corria e pegava. Criaram esse
apelido. ... Eu dizia [em casa]: eu vou parar de
estudar. Eu quero sair dessa escola."

Sua mãe e sua irmã a impediram de desistir. Esses

enfrentamentos tornaram sua vida escolar mais penosa. Eles estavam

relacionados não só à desigualdade social existente entre Marta e

a maioria dos colegas, mas à racial.

Ivo preocupou-se em chamar atenção de suas filhas para o tipo

de sociedade que teriam que enfrentar e portanto deveriam

qualificar-se para conseguir subir na vida:

"É muito difícil a vida em nosso país, no tipo de


vida que a gente tem, além de não se ser branco. Então
nós temos que lutar provavelmente mais do que aquilo

219
que a gente é capaz que é para poder chegar na condição
deles, para ficar numa classe média." (Ivo)

"Tu tens que te mostrar duas vezes mais competente.


Te exigem muito mais competência. ... Isso é um ônus
que tu paga, porque tu ousaste ser inteligente, ousaste
competir num mundo branco. ... Numa sociedade mista,
... é mista, mas nega isso." (Zilá)

João Carlos desistiu de advogar em escritório próprio.

Preferiu investir na carreira dentro de um órgão público:

"acho que é muito dispendioso, a não ser que a


pessoa tenha uma tradição de pai para filho, etc. E o
próprio relacionamento, eu comecei a me conscientizar
que as pessoas de classe A e B dificilmente me
procurariam. ... Eu cheguei a trabalhar num escritório
muito bem montado na Andradas. E, interessante. Uns
negros, dois, três que tinham, um não me abriu as
portas; o outro, me abriu as portas mas eu teria que
ajudar a pagar o escritório. Ora, eu, recém formado,
com família, isso e aquilo, já entrar com despesas, não
havia condições. Quem me ajudou foi um judeu." (João
Carlos)

João Carlos ao falar da sua profissionalização, fala de algo

que afeta a maioria dos negros que conseguem diplomar-se: a falta

de tradição nos diversos campos profissionais, que

fundamentalmente é dada ainda, em grande medida pela família e

pelas relações sociais. Daí Marta e Ivo enfatizarem tanto as

"relações". Na ausência de "capital social"19 acumulado na família,

19
No sentido que lhe dá Bourdieu: "relações de força entre posições
que garantem aos seus ocupantes um quantuum suficiente de força
social - ou de capital - de modo a que estes tenham a
possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder...".
(BOURDIEU, 1989:29).

220
as alianças, mesmo que de caráter paternalista suprem em certa

medida a ausência de referências sociais no campo profissional.

Fala também da seleção racial que a clientela realiza, o que

prejudica o negro. Mas fala também da falta de solidariedade

étnica do grupo negro de classe média.

A história profissional do pai de Rogério mostra a transição

de uma situação de pobreza absoluta para a classe média. Do mesmo

modo como no caso de João Carlos, ele se encaminhou através do

serviço público. Já referimos noutro momento que ele foi menino

pobre que com sete anos "já tava entregando pão do armazém da

esquina no bairro pobre da cidade".

"Meu pai era um cara que, quando ele morreu, ele morreu
aposentado como Procurador-Chefe da Procuradoria do
Município de Rio Grande. Foi professor da Universidade
- diretor administrativo -, tinha sido professor de
português no Ginásio. ... Então, o pai era operário e
trabalhou em todas as coisas e foi depois, fez
concurso, ... ele se dedicou ao estudo e fez um
concurso para a Prefeitura e foi onde ele entrou, como
operário e foi trabalhar naqueles negócios tipo
fábrica... foi trabalhar na zorra, entende? ... e ele,
na prefeitura, nunca teve cargos políticos, sempre teve
cargos aos quais ele chegou por concurso. Então, assim,
ele foi operário, depois ele foi escriturário, ...
acabou sendo advogado." (Rogério)

A trajetória do pai de Rogério interfere na sua própria. De

um lado significou uma base mais propícia e promoveu uma distância

menor a percorrer. De outro, a "rigidez de princípios" do pai

(herdada da avó), noutros termos reconstruiu as "dificuldades" que

ele havia passado.

Embora advogado como o pai, ele não quis integrar-se no

escritório dele. Rogério veio para Porto Alegre para estudar. Sua

221
mãe, mais que seu pai o incentivou. Era duro, pois o dinheiro era

curto, mas dava para se manter. Depois de formado Rogério não quis

voltar para Rio Grande, embora fosse o que seu pai esperava.

"Meu pai era advogado de marginal. Eu ia terminar


meu curso e voltar a Rio Grande. E eu não fui. Quando
ele soube, e tinha certeza que eu não iria, nossas
relações se alteraram .... Então, tudo o que ele tinha
feito de apoio por mim, tá, de sustentação, ele
retirou. Aí entrei numa dificuldade extrema. Tanto que
voltei a morar numa pensão, aí já como advogado... Essa
dificuldade terminou quando eu tive emprego no
sindicato dos bancários. Então aí mudou, e mudou de uma
forma radical a coisa."

A expectativa do pai como resposta ao investimento feito na

educação do filho era de obter a sua incorporação ao escritório de

advocacia que mantinha. Rogério resistiu a essa "pressão

englobadora" da família que, vemos agora, também atua nesse campo,

e através de outras estratégias consegue uma boa inserção

profissional.

Ingressou num sindicato como advogado. Com isso, pegou muitas

causas trabalhistas, (em especial de bancários quando da fusão de

bancos que dispensou muitos funcionários). Com isso ganhou muito

dinheiro e prestígio decolando assim a sua carreira.

Sua relação com o pai só foi ser recuperada quando auxiliou a

família a manter o irmão num curso que faria fora do estado.

Temos uma trajetória em que pai e filho na mesma profissão

aspiram níveis diferentes de sucesso profissional. Mudar de cidade

era fundamental para Rogério sair do nível a que havia chegado seu

pai: "advogado de marginal". Sua mãe teria sido quem lhe permitiu

a mudança, pois ela mesma já havia mudado de cidade:

222
"Ela tinha saído. De repente ela foi e foi passando
muito trabalho. Ela foi estudar num internato, né. Em
que ela se mantinha, porque ela pagava os estudos com
trabalho, entende? Aqueles colégios de freira..."

O pai de Rogério tentava inaugurar uma tradição profissional,

tentando legar aos filhos o espaço que conquistara na sua cidade.

Queria oferecer aquilo que João Carlos ressentia-se de não ter. A

recusa de Rogério atingiu seu projeto. Rogério rompeu e iniciou

sozinho seu próprio caminhada, seguramente em condições muito

superiores.

Rogério se percebe como herdeiro da família através de sua

relação com o magistério, e com o ensino. Ele é professor como

seus pais, embora não necessite disso para viver. A mãe de Rogério

quando morreu tinha 50 anos de magistério. Suas tias eram

professoras. Seu pai também foi professor. É a partir do

magistério que ele se percebe na tradição familiar.

Seguir o caminho do pai através da advocacia seria

inconveniente para Rogério, pois seu pai, apesar de ter mudado de

status, nunca deixou as relações que tinha do tempo em que era

operário. Rogério mudou de cidade para mudar de vida.

Sair da pobreza é, em certo sentido sair de perto dela.

Afastar-se dos limites de um ambiente pobre tem o significado de

conquistar para si uma nova história, uma nova vida.

A ênfase na educação é a característica que o grupo

pesquisado apresenta em comum. Estudar é, antes de mais nada o

modo de garantir que o negro vai conquistar o "respeito". Através

dela se obtém um afastamento simbólico da pobreza, esta também

223
definida como uma condição de "ignorância". Muitas vezes os

pais dos informantes eram pobres, mas honestos, trabalhadores e

com "conhecimentos" apesar de terem "pouco estudo".

Ser formado é também um pré-requisito para fazer parte das

classes médias20, mesmo quando a profissão escolhida e as

possibilidades encontradas junto ao mercado de trabalho não

confiram o correspondente diferencial financeiro que esperariam.

Entretanto constitui ainda o meio preferido para sair da pobreza e

aspirar a continuidade da ascensão através da educação dos filhos

em melhores condições.

4.2. Mudar é Preciso

A maior parte das histórias familiares transcorre ao longo de

um fluxo migratório, sendo as trajetórias em certo sentido também

uma trajetória migratória.

"Segundo minha mãe, o meu pai teria vindo prá Santa


Maria lá pelos 7, 8 anos. Vinha do Rosário. Vieram de
uma fazenda. Segundo minha mãe, eles vieram numa
carreta, trazidos da fazenda do Rosário para uma
fazenda em Santa Maria. Mas ficou no Rosário uma irmã,

20
Sobre isso Frazier percebeu que além da educação, também o
sucesso econômico eram pré-condições para entrar nas classes
médias. Considerando o padrão de vida médio que nos dois países é
bastante diverso, não há contradição quando se afirma que em Porto
Alegre não se necessita muito mais do que um diploma superior para
ingressar nas camadas médias ou pelo menos para sair da pobreza. O
senso comum não deixa de considerar a classe média como um resíduo
que engloba qualquer um que não seja muito "pobre" e nem muito
"rico". Entretanto a conquista de um diploma envolve mudanças de
socialização que afetam grandemente o estilo de vida e a visão de
mundo daqueles que o possuem. Inserem o indivíduo em outro
circuito de sociabilidade e geram outras expectativas de vida.

224
porque veio o meu pai, o tio Luiz, Luiz Adamácio, e a
tia França ficou numa fazenda em São Gabriel. ... E daí
chegaram em Porto Alegre por volta de 1908." (Arnaldo)

Os deslocamentos espaciais são uma constante nas descrições

de trajetória de ascensão. Elas são enfocadas de modo a marcar

tanto o tempo como pontos na escalada social. Podem constituir

estágios quase preparatórios para novos saltos, muitas vezes

pequenos mas decisivos para as conquistas profissionais

realizadas.

Joana, avó de Ivo era natural de Alegrete. Foi trabalhar em

Santa Maria, onde criou o filho M. (pai de Ivo).

"Depois ele veio para Porto Alegre. Quando chegou,


porque ele precisava ir. Ele dizia para a minha
madrinha (avó) que era importante sair de Santa Maria,
para uma cidade maior que era Porto Alegre, uma cidade
grande, onde era possível até, quem sabe ter um negócio
dela, e ele podia crescer no serviço, mais do que em
Santa Maria. Então, ele veio prá cá e aí, com as boas
economias e tal, botaram, fizeram, fizeram, pediram
empréstimos, passaram noites sem dormir preocupados em
pagar. E terminaram comprando uma pensão." (Ivo)

A mãe de Rogério nasce em Santa Vitória do Palmar, extremo

sul do estado numa família de pequenos proprietários rurais. Muda


para Rio Grande (cidade vizinha porém mais desenvolvida) para

estudar pagando seu sustento com o trabalho. Forma-se, casa-se e


aí tem seus filhos (dois). Seus irmãos seguem seus passos,

ocupando a casa da irmã como residência enquanto estudam ou

cumprem serviço militar. Um de seus filhos, Rogério de Rio Grande

225
para Porto Alegre, também para estudar. Aí permanece e conquista

sucesso profissional.

A noção de trajetória que utilizamos se define como um

processo que se orienta por um projeto.

Os meios utilizados, as alternativas escolhidas revelam a

existência não apenas de um alvo, um objetivo. Os meios denotam

valores que apresentam-se como os principais móveis das ações que

constituem referências necessárias nas trajetórias.

Tomadas em conjunto, as trajetórias espelham processos de

"mudança de vida" ao longo de mudanças de lugar. Os informantes

são migrantes ou descendem de migrantes. A origem mais remota, em

geral é o meio rural, onde agricultores ou trabalhadores rurais

fazem parte da origem da família.

Alguns, mais idosos, conhecem os processos migratórios de

avós já falecidos que remontam ao período imediatamente pós-

abolição. Exemplar desta possibilidade é o depoimento de Arnaldo

anteriormente exposto.

Sair para procurar algo melhor ou sair "porque lá não dava

mais" são os móveis fundamentais das trajetórias migratórias, elas

mesmas trajetórias de ascensão social.

As mulheres freqüentemente saíram de seus lares rurais como

meninas que vão terminar sua "criação" em famílias brancas

abastadas. Em geral não retornam a seus lares, casando-se na

cidade e em vários casos migrando para outro lugar já com uma

família constituída.

A mãe de Zilá foi criada por uma "madrinha" para quem

trabalhou até casar-se. Migrou inicialmente para Cachoeira do Sul,

cidade próxima a São Sepé de onde era originária. Casa-se em

Cachoeira e migra com o marido para Porto Alegre.

226
Esses casos geram em muitas vezes, rupturas familiares, como

no caso da mãe de Zilá. O mesmo vimos no caso de Joana e do pai de

Arnaldo (cuja família se dispersou ao longo do percurso).

Vânia tem origem numa família de pequenos proprietários

rurais de Erval do Sul. A morte de seu avô produziu uma crise que

levou a família para a cidade de Rio Grande. Inicialmente havia

ido a irmã mais velha. Após seguiram-se as demais. Trabalharam

como domésticas e bordadeiras. Muda uma vez mais, desta vez para

Pelotas, estando a mãe de Vânia já casada na ocasião, acompanhada

da sogra e das cunhadas. Após vêm todos para Porto Alegre.

Alguns municípios são a procedência predominante dessas

famílias. A região de Pelotas e Rio Grande, Santa Maria, a de

Cachoeira do Sul e dos hoje municípios periféricos de Porto

Alegre, Gravataí e Viamão. Com exceção desses últimos, as regiões

de procedência correspondem aos eixos principais da estrada de

ferro. Mais remotamente, a região das charqueadas (Alegrete, Bagé,

Pelotas) constituem o ponto de partida, incluindo dois casos de

ascendentes procedentes de solo uruguaio.

Evidentemente a desagregação do complexo das charqueadas e a

persistência das grandes propriedades criadoras de gado - pecuária

extensiva - originaram esses fluxos de saída. Num primeiro momento

para as cidades do próprio eixo econômico - incluindo aí a

presença do porto de Rio Grande - e num segundo para núcleos

urbanos mais diversificados (caso de Porto Alegre).

Enquanto processo migratório em si, obedece a sua lógica:

esgotamento de um ciclo econômico, urbanização, etc. Mas enquanto

movimento de famílias negras, expressivo da relação específica que

elas possuíam com a terra, sendo raras aquelas realmente

proprietárias da terra que cultivavam (caso da família de Vânia,

227
de Marlene (esposa de Luiz Filipe) e de Rogério). A maior parte

ocupava a terra enquanto trabalhadores rurais livres ou escravos

(caso da família de Arnaldo).

Mudar de ofício é um movimento que não decorre exclusivamente

da mudança de lugar. A cidade, entretanto, oferece os meios

capazes de absorver trabalhadores numa maior gama de

possibilidades. Especialmente no caso de mulheres, para as quais o

serviço doméstico pode ser decomposto em especialidades e ser

aplicado aos "serviços". Os informantes manipulam essa

possibilidade de modo racional, aproveitando os campos onde podem

obter maiores vantagens.

A mãe de Vânia vai de doméstica à bordadeira. Joana, avó de

Ivo era doméstica, passa a camareira, após, ecônoma e finalmente

"dona" de uma pensão.

Alguns dos movimentos migratórios acompanham as oportunidades

de transferências de cidade como promoção na própria carreira. É o

caso do pai de Ivo. Como este, muitos outros funcionários da

Viação Férrea movimentaram-se rumo à capital, lugar mais propício

a oportunizar promoções, dada a maior amplitude dos seus escalões

burocráticos.

O processo migratório dá-se ao longo de mais de uma geração.

O caso de Arnaldo, já relatado, é exemplo dessa situação. Também a

história familiar de Vânia o demonstra.

A avó de Vânia foi criada por uma família branca "de posses".

Casou com José Maria, que trabalhava no cemitério da vila de

Erval. Ele fazia caixão de defunto. Tiveram 7 filhos. A família

possuía, em parceria com os irmãos do avô alguma terra, onde

criavam gado. O avô falece e a avó fica morando na casa que haviam

construído fora da cidade:

228
"Lá ela ficou criando os filhos todos. As maiores
vieram prá cidade, prá vila que chamavam na época, prá
vila de Erval, trabalhar em casa de família; as mais
velhas, e os mais moços ficaram com a vovó. E a vovó
lavava roupa prá fora prá ajudar, prá criar a turma,
não é."

A terra e o gado que possuíam foi apropriada pelos irmãos do

marido da avó após o seu falecimento:

"Mas acontece que como a minha avó ficou viúva e era


dessas pessoas muito ignorantes, então eles diziam que
todos os animais que morriam eram do meu avô. Passaram
ela prá trás completamente. No fim ela ficou sem nada,
a minha avó. Aí, que ela fez? Juntou a filharada toda e
disse: aqui nós não temos mais nada prá fazer. Porque,
aqui, interior do interior... o que que ela ia fazer?
Juntou tudo e levou prá Pelotas. Foi morar em Pelotas
com todas as filhas. Que as filhas continuaram
trabalhando em casa de família, as mais velhas, e a
minha mãe foi trabalhar em casa de costura, ajudar a
fazer vestido, essas coisas, bordados. Minha mãe
trabalhou numa senhora que fazia esse tipo de coisa,
mas minha mãe quando era criança também foi empregada
doméstica. Depois conheceu o meu pai em Pelotas, casou
e foi morar em Rio Grande, porque meu pai trabalhava
num cassino em Rio Grande. Depois esse cassino fechou e
ele foi trabalhar no porto, como estivador, carregar
saco na cabeça mesmo, que foi a profissão dele toda a
vida. Aí, nós moramos em Rio Grande, uns dois anos,
três anos, mais ou menos, e a minha mãe morava com a
sogra e a cunhada. Como a minha tia queria vir para
Porto Alegre, porque achava também que em Rio Grande
não estava dando pro tipo de trabalho no porto - o
marido dela também trabalhava na estiva. E vieram prá
Porto Alegre. Ela veio primeiro, arrumou casa; e a
minha mãe veio com nós prá cá."

Esses processos, como já chamamos atenção antes, envolvem

perda de laços com parentes que permanecem no local de origem.

229
Engendram também descompassos sócio-econômicos e culturais no seio

de uma mesma família, o que reforça a ruptura. Os contatos

persistem enquanto sobrevive aquele membro da família que

representa o elo de ligação. Nos casos analisados, as avós

representavam esse papel. Em geral não são substituídas por seus

descendentes na articulação da parentela (descendentes de um

casal). Até irmãos podem afastar-se e dificilmente persistem laços

na terceira geração. Eles só continuarão se a convivência, e nesse

sentido a proximidade geográfica, e a posição social forem

compatíveis.

Da mesma forma que a ascensão social, a migração opera uma

seletividade fundamental para entender as articulações familiares

que estão por trás das estratégias que resultam em autonomização

de uma fração de uma família e a inauguração de uma nova

"linhagem" que só engloba os excluídos na memória remota da origem

pobre que possuem.

4.3. Uma Trajetória Clássica

A eleição de Deise Nunes como Miss Rio Grande do Sul e Miss

Brasil, é um exemplo de trajetória de ascensão social realizada

numa geração, valendo-se dos atributos valorizados socialmente

que podem favorecer a incorporação de indivíduos de uma posição

social baixa às classes altas. Em termos da manipulação dos

estereótipos do negro e da mulata, o caso de Deise é rico, nas

formas com que na conjuntura dos anos 80 a cor foi reinterpretada,

revista e valorizada de forma cambiante.

230
Deise afirmou-se enquanto indivíduo e como negra, nos

concursos de beleza dos quais participou apesar de não ter surgido

como representante do grupo negro. Não foi uma candidata negra em

nome das negras. Foi uma candidata saída de um clube e de

articulações estranhas a qualquer organização do grupo negro.

Tratou-se de uma situação em que um indivíduo, valendo-se de

talentos e atributos valorizados socialmente, soube obter ganhos

almejados mediante a positivação de características

estigmatizantes, distanciando-se culturalmente de seu grupo de

origem, penetrando no grupo branco sem abdicar de sua negritude.

O puritanismo foi um dos meios encontrados para fugir do

estigma. E isso pode ser percebido no seu discurso sobre

profissionalismo, seu bom comportamento desde menina, a presença

constante da mãe, a dedicação e o trabalho aplicados à conquista

da vitória, que significaria nada mais do que um meio para chegar

ao seu objetivo final que era ser manequim internacional.

Deise havia tido algumas experiências como manequim em

desfiles de confecções pequenas, antes ainda de ser Rainha das

Piscinas, concurso que promoveu a alavancagem de seu sucesso

profissional.

"Eu comecei a trabalhar cedo. Eu comecei com 14 anos de


idade, já como manequim, e foi uma coisa que aconteceu
assim, de repente. Eu estava num salão de beleza, aí
surgiu uma pessoa que hoje é muito ligada à moda,...E
aí ela me convidou para fazer uns desfiles; e eu disse
que nunca tinha desfilado, que eu nunca tinha feito
curso de manequim..." (Deise)

Filha de eletricista com dona-de-casa, era estudante de

segundo grau (numa escola católica). Como secundarista, inscreveu-

231
se para o concurso de Miss UMESPA21 Durante o concurso foi abordada

por pessoa do meio profissional da moda que a encaminhou para uma

seleção de manequins. Ela, apesar de não ter as fotografias

exigidas para a inscrição, levou fotos comuns e se apresentou. Foi

selecionada:

"E aí eu cheguei lá, tinham não sei quantas, eram 50,


60 meninas. Aí ele selecionou e eu fiquei num dos
grupos, né. Bom, eu saí super contente e tal, imagina!
Eu estudava e cheguei em casa, falei com o meu pai, com
os meus avós, porque eu morava junto com os meus avós;
e no colégio eu contei que ia fazer o desfile e tal,
então eu fiz o desfile, no dia seguinte saiu uma foto.
... Eu lá desfilando, fazendo um desfile grande para
toda a imprensa, onde tinha várias pessoas influentes
do meio da moda e de repente no jornal a minha foto
ali."

A sua ascensão inicia antes de 1984 quando vence o Concurso

de Rainha das Piscinas. Tinha então 15 anos e era representante do

Sport Club Internacional. Não foi a preferida das torcidas e foi

vaiada. É referida na manchete como "a bela morena". (ZH,19/03/84)

"Concorreram 78 (mas 80 estavam inscritas). E aí eu


ganhei o Rainha das Piscinas. E em função desse título
é que eu não quis mais concorrer. Porque daí comecei,
até então eu não tinha sentido nenhum problema racial
né, na minha vida. A partir deste concurso... eu passei
a sentir na pele o que as outras pessoas me diziam e
que eu não acreditava."

Sentiu o impacto de ser uma negra que ocupava o lugar

monopolizado pelos brancos: representante da beleza. As mulheres

21
União dos Estudantes Secundaristas de Porto Alegre.

232
negras podem ser "mulatas", mas Miss era prerrogativa das moças

brancas.

Verbaliza de modo interessante a experiência, que segundo ela

se prolongou com "piadinhas" quando ela passava na rua, indo e

vindo do colégio:

"Aí eu disse: meu Deus, (que coisa mais absurda, né)


até parece que cor pega, que ser negro é ser
defeituoso, é ter algum problema horrível. Aí eu tinha
dito para minha mãe que eu nunca mais ia querer saber
de concurso, porque eu não queria mais passar por
aquilo...eu não tinha que passar pela discriminação,
pelos falatórios. E isto eu escutava na rua, muitas
vezes caminhando no centro, eu era estudante, indo pro
centro, ia na Biblioteca Pública fazer pesquisa, ...
então eu ouvia assim, algumas piadinhas, algumas
coisinhas..."

Fica ausente do noticiário até abril de 1986, quando aparece

como candidata a Miss Rio Grande do Sul representando a cidade de

Canela. Vence o Concurso com a unanimidade do juri. A manchete de

sua vitória anunciou a nova Miss Rio Grande do Sul também como "a

bela morena". (ZH,21/04/86).

É como se a unanimidade legitimasse uma escolha dúbia. Ser

referida como "a bela morena" espelha essa ambiguidade e a

incerteza acerca da sua figura.

Sua participação nesse concurso decorreu da intervenção de

sua mãe que a inscreveu sem seu consentimento. Ela não queria mas

sua mãe a convenceu com o argumento de que, como não era no

estado, era de âmbito nacional, "tu vais ver que é outra coisa".

"Foi uma luta conseguir roupa" para enfrentar as exigências

do concurso. Mas como já estava no meio da moda e já conhecia

233
muita gente, prá ela não foi “tão difícil" conseguir as roupas

necessárias aos compromissos sociais:

"Na época eu não tinha condições. Então o quê que a


minha mãe fez... ela ia nas empresas, nas fábricas, nas
lojas e pedia um apoio, um apoio assim, em roupa."

Em maio é publicada uma entrevista com Deise. Ela expõe os

propósitos que justificam a sua participação em concursos de

beleza:

"Meu sonho é chegar ao Miss Universo e vencer, é


claro. Só depois meu ego estará satisfeito e poderei
encerrar meu envolvimento com este tipo de certame de
beleza e partir definitivamente para uma carreira de
modelo profissional internacional."

Os objetivos pragmáticos de Deise se assemelham aos definidos

pela maioria das mulheres que ingressam nesse tipo de carreira. O

alvo é a fama, um lugar privilegiado no espaço profissional da

moda, da fotografia. Ser conhecida, identificada, ter um

curriculum que a favoreça na competição.

Vale-se de sua condição, usa o estereótipo e o redefine em

termos profissionais. Da mulata bonita e sensual (implicitamente

imoral), ela extrai a característica que possa favorece-la.: a

beleza afirma-se negra formulando um discurso sobre as relações

raciais e o preconceito. Enfatiza a perspectiva profissional que

se relaciona ao trabalho e se opõem à “mulatice”(GONZALES, 1982)

Suas dificuldades são atribuídas por ela ao fato de ser negra.

234
Considerando as dificuldades no negro, seu sucesso decorre da

"garra", e da "força".

O campo profissional que Deise escolheu é em si muito

disputado e que produz mais derrotas que vitórias. Suas

dificuldades são atribuídas ao fato de ser negra (o que na verdade

lhe trouxe vantagens, pois manequins negras passaram num

determinado período a ser valorizadas na Europa).

A questão do preconceito racial é levantada por ela que

afirma já ter vencido muitas batalhas para se impor e "ser

respeitada num mundo preconceituoso contra a raça negra". Ela diz:

"desde cedo eu convivi com a discriminação racial pelo


fato de ser mulata. Mas isso nunca me abateu. Pelo
contrário, me deu mais garra para vencer. Foi assim
quando venci o Rainha das Piscinas em 1984; é assim
quando sou boicotada num desfile de modas; e será
sempre assim quando perceber qualquer manifestação
nesse sentido."

Para ela, no Rio Grande do Sul o preconceito é mais forte do

que fora do estado.22 Por isso confiava na vitória pois "afinal num

país povoado de índios, negros e portugueses, onde a miscigenação

é a maior característica, eu sou a melhor representante"

22
Deise falou sobre a questão do preconceito na entrevista
realizada em 1996. Para ela "no Brasil" ela não teve problemas (ao
contrário do Rio Grande do Sul que a discriminou). Diz que "o que
eles achavam estranho quando eu cheguei em São Paulo como Miss
Brasil, é que eu vinha do Rio Grande do Sul e era negra. Isso eles
achavam muito estranho. ... sempre mandaram loiras, de olho verde,
loiras de olhos azuis. Eles achavam estranho: - mas tu não nasceu
lá. Tu deve ter nascido noutro lugar. - Não, eu sou de Porto
Alegre, sou gaúcha. Lá também tem negro! Viviam dizendo que eu
nasci na Bahia: - ah! Mas tu é baiana e mora lá. Tu é carioca e
mora lá. Tu é Pernambucana e mora lá. ... Eu acho que é assim que
eles dividem o Brasil. Eles ficaram impressionados com isso. O Rio
Grande do Sul mandar uma negra representando o estado." (Deise)

235
(ZH,04/05/86). Elabora portanto, a sua condição de "mulata

representante da beleza gaúcha" recorrendo à miscigenação que

caracteriza o Brasil com base na "fábula das três raças" (MATTA,

1981), vendo-se como a mais fiel expressão da brasilidade. Ela é a

mistura.

Em 19/05, ZH pela primeira vez dá uma primeira página à

Deise. A manchete "MULATA GAÚCHA É A MISS BRASIL" anuncia a sua

vitória. O restante da matéria, no segundo caderno, enfatiza o

lado gaúcho de Deise, associado à sua "beleza morena". Destaca a

quase unanimidade do juri que a elegeu.

O sucesso de Deise, além da sua beleza, é atribuído à sua

experiência como manequim profissional, carreira que seguia antes

de 1984, ainda menina.

A partir do momento em que a "bela morena" é eleita Miss

Brasil, ela passa a ser a "mulata gaúcha", e a ênfase vai

progressivamente passando ao seu lado gaúcho, ao seu

profissionalismo (afinal ela tem experiência como manequim). Ou

seja, ela é competente além de gaúcha, é claro!

Concurso de beleza é assunto de mulheres. As notícias

enfatizam o papel da mãe da Miss. Ela é considerada como "o melhor

cabo eleitoral da filha".

Uma "avó adotiva" de Deise (que se recusa a fornecer o nome

completo ao jornal) é entrevistada e avalia a neta que "Sempre

foi menina pontual e aplicada nos estudos". Lembra que em 1984 as

manifestações racistas foram fortes. Acredita que o resultado do

Concurso e a vitória de Deise revelam que "caíram os preconceitos"

e que "quem tem valor acaba valorizado". (ZH,20/05/86)

Nesse momento é que uma vez mais o puritanismo aparece como

legitimador dos ganhos. Na voz da avó, que atesta as qualidades da

236
"índole" da neta adotiva cuja educação foi cuidada - o Colégio em

que estudou é citado e se trata de uma escola de classe média - e

acolhida por Deise que sempre portou-se bem. A "garra" que Deise

referiu, sua capacidade de persistência, seu “valor”, constituem a

bandeira de sua vitória, recusando com isso os estereótipos

desqualificadores do negro.

Na mesma matéria, novamente Deise é questionada sobre a

questão do preconceito racial. Ela diz: "Não me abalo com o

preconceito racial. Sou persistente e sei que estou abrindo

caminho para muita negra que fica em casa com medo".

Não deixa de afirmar-se negra e de ser um exemplo para as

demais negras. Pelo contrário. Na medida em que seu sucesso

aumenta, sua negritude é reforçada, reafirmada e revalorizada em

seu discurso para a imprensa. O ser negra para ela, passou a ser

uma vantagem. O atributo que constituía um estigma, uma marca

depreciadora, passou a ser positivado.

Foi noticiada a festa em homenagem à Deise. Aí destacam que

houve um atraso de uma hora e meia na chegada da

homenageada.(ZH,22/05/86) Ieda Vargas (ex-Miss Universo) manifesta

uma forte crítica ao comportamento de Deise afirmando que "nos

Estados Unidos isto não seria suportado", pois lá "meia hora de

atraso fazia com que ninguém tomasse conhecimento de uma Miss".

Essas críticas contrastam com o discurso da avó adotiva (que

afirmou entre outras qualidades a responsabilidade e a

pontualidade da neta) e com o de Deise, que enfatizou seu

profissionalismo.

Uma tentativa de desqualificação de Deise foi feita, tendo

como mensagem velada a sua incapacidade de ser adequada para uma

experiência internacional, no primeiro mundo.

237
Experiências de discriminação sofridas por Deise são

lembradas, e Ieda salienta que ela é a primeira Miss Brasil negra.

Foi lembrada Vera Lúcia Ribeiro23 que conquistou em 1964 um segundo

lugar. Desse modo, a "mulata gaúcha" é a primeira Miss Brasil.

A tônica das avaliações do sucesso da gaúcha Miss Brasil

oscilam em dois polos, mesmo no discurso de um mesmo ator. Sérgio

da Costa Franco (ZH,22/05/86), cronista político com coluna em ZH,

formulou um discurso ilustrativo da forma com que a ideologia

dominante se apropria do evento:

"Salve a Deise. A nova Miss Brasil saiu de Porto Alegre


e da raça. Ou melhor dizendo, dessa refinada mistura de
raças que terminou produzindo a mulata brasileira."

Porto Alegre é posta como a "capital mestiça". Salienta os

espaços mais tipicamente negros em oposição aos bairros brancos e

chiques:

"Brilhou a Deise nas passarelas, mas com ela


brilhou a capital mestiça, que talvez não seja a do
Moinhos de Vento e da Bela Vista, mas é a que finca
raízes fortes na Santana e na Bacia da Glória, na
Colônia Africana e no Mont'Serrat, no Partenon e no
Areal da Baronesa. Brilhou a Capital que elegeu
Collares Prefeito, e que demonstra por expressiva
maioria, repelir e hostilizar o preconceito de raça."
(Franco)

Ao mesmo tempo em que denomina Porto Alegre de "capital

mestiça", separa o domínio branco do negro. Localiza os espaços

23
Sobre a eleição de Vera Lúcia Ribeiro, ver COSTA CHAVES, Luiz
Antônio, PPGAS, Museu Nacional,1983 (mimeo)

238
negros e os distancia do "Moinhos de Vento e Bela Vista", bairros

brancos e de classe alta. Cita os bairros mais populares onde

reinaria a "mistura". Enobrece a vitória de Deise e a de Collares24

como a vitória contra o preconceito. Aliás este aspecto já havia

sido destacado pela avó adotiva (talvez branca) de Deise. Os

ganhos com o sucesso de Deise são "daquela Porto Alegre", que

surge e a quem demos o direito de nos representar.

No restante da coluna ressalta ser a eleição da Miss mulata

um passo a mais na superação do preconceito:

"Sobretudo para as nossas negras e mulatas, que uma


forte parcela do empresariado rejeita, com ou sem
disfarces, no recrutamento de empregados." (Franco)

Diz ele que o critério de "boa aparência" que elimina as

negras fica desqualificado pela vitória de Deise.

E conclui:

“É certo que a moça negra, em geral, se sentirá mais


forte, mais prestigiada e mais desinibida! Nas escolas,
nos clubes, nos locais de trabalho. E isso é bom para
eles, que tanto precisam de estímulo e de apoio. É bom
para a integração racial de nosso país, ao qual jamais
poderão interessar as práticas discriminatórias, a
hostilidade racista e o maldito 'apartheid'". (Franco)

24
Alceu Collares é negro e elegeu-se Prefeito de Porto Alegre em
1984. Em 1990 é eleito Governador do estado.

239
A eleição de Deise é apropriada como estandarte da democracia

racial (apesar de ter dado a oportunidade para a denúncia do

preconceito), e da integração racial (via miscigenação).

No "Espaço Livre" (ZH,22/05/86,p.6) uma leitora manifesta-se

acerca da eleição de Deise, denunciando o caráter racista de Porto

Alegre. Acusa Porto Alegre de haver "torcido o nariz" quando Deise

foi Rainha das Piscinas: "É um antro de racistas dissimulados que

não dão o mínimo valor ao que o negro faz ou tenta fazer."

É interessante o que ela afirma ter ouvido sobre o fato e que

reproduz com um tom indignado:

- "com tantas morenas bonitas, elegeram uma negra


para Miss Brasil. Também, com o Sargentelli e o
Juruna...
- Mas ela é bonita e o Brasil é uma mistura de
brancos, negros e índios.
- Ela pode ser bonita, mas para a raça dela e na
África."

Diz ainda a leitora:

"Eu sei o que é ser negra nesta cidade. São portas


batendo na cara da gente o tempo todo, seja em bares,
restaurantes e em firmas onde vamos procurar emprego.
Agora, se formos parar para pensar um pouco, vasculhar
nossa árvore genealógica, são poucos os que poderão
dizer: sou branco, não tenho nenhum pingo de sangue
negro ou índio nas veias."

Essa manifestação, vinda de uma leitora negra, contrasta com

o otimismo do colunista anteriormente citado. A "capital mestiça"

240
é racista e discriminadora; desqualifica o negro e suas

conquistas; repudiou Deise e agora é obrigada a enaltecê-la.

O racismo é a questão contra a qual ela se insurge e sua

defesa retoma a tese da mistura, da fábula das três raças e de

seus interstícios (espaço ambíguo e definidor daquilo que é o

Brasil) como acusação: eu sou mas todos são.

Mais tarde divulga-se que Deise é uma das favoritas no

concurso de Miss Universo. Apesar disso, ela é derrotada. Não

chega à finalista.

A sua derrota foi atribuída à força de outras candidatas,

mais velhas e experientes como as representantes da Colômbia e dos

Estados Unidos (ZH,23/07/86, Segundo caderno).

"Nossa Deise saiu-se bem porque 67 Misses ficaram fora


da semifinal e ela teve seu destaque. O que se notou
foi a sua juventude em meio às mulheres mais
experientes, ainda que tenha desfilado muito bem: tem
tudo para ser uma excelente manequim internacional..."
(Célia Ribeiro)

A formação intelectual e profissional das candidatas

classificadas nos cinco primeiros lugares foi enfatizada,

significando por oposição, a desqualificação intelectual de Deise.

Se antes, sua experiência justificou a vitória, agora é a

inexperiência que explica a derrota. Era muito jovem.

Após a derrota Deise não apareceu mais nos noticiários.

Fotografias sim, como manequim em desfiles de moda. Mas em Porto

Alegre, na "capital mestiça" onde, após romper com a mãe casou com

um empresário (branco) com quem tem dois filhos.

241
Deise possui um alto padrão de vida, tanto pela sua situação

profissional quanto pela posição social do marido.

Essa ascensão, antes mesmo de ter chegado ao seu ápice,

produziu rupturas familiares importantes.

A mãe com quem dividiu a "luta" na busca de condições para

participar dos concursos e que foi responsável pelos contratos que

cumpriu exaustivamente (relata que ao término de uma viagem

desmaiou de cansaço) foi muito exigente:

"Porque ela é quem fazia os contratos, aquelas


coisinhas todas. ... Nos eventos que eu fiz no
Brasil ela sempre viajou comigo. Foi uma pessoa que me
apoiou muito, mas também ela não admitia... como é que
vou dizer... "eu estou cansada". Sempre prá cima."
(Deise)

Em meio ao percurso dos concursos, a mãe se separa do pai de

Deise, daí ter ido morar com ela em São Paulo e também no Rio de

Janeiro onde viveu por algum tempo. Além disso ela não aceitou a

relação da filha com o atual marido. Os jornais noticiaram o

conflito aberto entre as duas.

Após conquistar sua independência, Deise se volta para sua

carreira e para seu marido. Foi uma ruptura individualizante,

pragmática, compatível com a mudança de classe que realizou.

A consolidação de seu novo status - manequim profissional,

empresária (lançou uma griffe de bolsas), esposa de empresário

(industrial do setor coureiro-calçadista) exigiu essas rupturas,

bem como a sua incorporação à família do marido.25

25
Ao ser perguntado a ela quem era a sua família, ela incluiu sua
família de procriação. Dos parentes, ela inclui os irmãos do

242
4.4. O Gosto da Festa

O espaço da festa constituiu um campo de observação que

forneceu dados importantes para perceber os modos de atualização

das identidades negras vividas pelos informantes.

Da mesma forma que os entrevistados puderam ser classificados

segundo tipos de negritude, os espaços de lazer também admitem

uma classificação.

O clube negro Floresta Aurora, os bares Naval, Black and

White e Kizomba, os bailes da Teresa, jantares em casas de

informantes foram observados e serviram de apoio para conhecer

seus estilos de vida.26

Em algumas dessas situações viu-se a convivência de diversos

níveis sócio-econômicos das classes médias negras da cidade.

Também se pôde observar essas diferenças no seio de uma mesma

família (no sentido englobador manipulado pela maioria do grupo

investigado), tanto em espaços públicos quanto nas festividades

domésticas.

A tipologia que os dados permitiram construir foi capaz de

conter uma parcela das opções de estilo de vida e de negritude

observadas através das falas dos entrevistados. Ela vai de um

marido e a sogra como parte de sua família. Com eles convive por
"afinidade e intimidade". Parentes do marido são padrinhos do
filho mais velho. Amigos o são da mais moça. Sente-se com dever de
ajuda apenas em relação a avó, mas esta já faleceu.
26
Sobre habitus e estilo de vida ver Bourdieu (ORTIZ, 1983:82-121).

243
máximo de africanidade, até um máximo de "mistura", definida como

brasilidade, e ainda uma negritude político-sindical.

A via da africanidade manipula a ascendência africana e

enfatiza o estereótipo através do uso de roupas27 e complementos

afro, segundo as tendências difundidas pelos movimentos políticos

e artísticos internacionais. Utilizam esses materiais como marca

de pertencimento étnico, apesar do seu uso não se limitar a essa

intenção política. Ficar bonito pode ser a razão da escolha do

penteado, do colar, do chapéu, como se observou no caso de alguns

informantes. Aderir à moda étnica distingue o negro intelectual

daquele que não o é.

O Kizomba expressava esta opção que designamos como

africanidade, do modo com que ela foi elaborada na intenção de

criar um espaço afro-brasileiro sofisticado.

A ênfase no afro retira a ênfase do passado escravo.

Sofisticando o ambiente torna exótica a tradição, desvestindo-a do

estigma a que foi sujeita pelo valor negativo que lhe foi

atribuído.

O bar Kizomba foi inaugurado em 1993, em época pré-

carnavalesca com ampla divulgação nos meios de comunicação. O

jornal local (Zero Hora) o anunciou como um ponto de cultura

negra, visando apresentá-la nas suas várias manifestações. Era

propriedade de brancos e contava com a participação de negros de

classe média na sua concepção. A decoração foi realizada por

Djalma do Alegrete, artista plástico negro muito conhecido e

valorizado no meio negro (já falecido).

27
Sobre gosto e classe ver Bourdieu (ORTIZ, 1983:82-121).

244
O bar situava-se na avenida Plínio Brasil Milano num dos

bairros nobres de Porto Alegre. A casa se compunha de três

espaços: bar-galeria de arte, bar-danceteria (swing) e bar-pagode.

Um ano depois o Jornal do CECUNE28 noticia seu aniversário e

sucesso, divulgando e atualizando sua proposta. Diz que o sucesso

da casa demonstrou que a cultura afro-brasileira estava realmente

carente de um lugar "que a qualificasse ao nível que merece" , com

"um bom ambiente, com segurança, bom atendimento, ar-condicionado

e uma boa música".

Ou seja: foi um bar criado para negros de classe média numa

proposta de valorização da tradição africana - através da

decoração, discurso -, e do swing e do samba como meio de

agregação dos afro-brasileiros, com condições financeiras para

freqüenta-lo.

Ouvimos de alguns presentes, comentários de que a comunidade

não teria condições de freqüentar o Kizomba pelo preço muito alto

que cobrava tanto pelos ingressos quanto pelas bebidas e comidas.

A idéia era de que os negros com poder aquisitivo na cidade não

teriam condições de manter a casa aberta dado o seu pequeno

número. Achavam que a casa acabaria por falir ou ser desfrutada

por brancos ricos.

No Kizomba persistia o gosto pelo samba, pelo pagode, pelo

Carnaval, mas o ambiente foi pensado para oferecer características

e qualidade capazes de o tornarem um "bom ambiente" para as

classes médias. A opção africana como motivo, cumpre a função de

marcar a etnicidade - no sentido cultural - com a sofisticação

28
O Jornal é dirigido à comunidade negra, é periódico e é produzido
por grupo ecumênico. Noticia questões de ordem política, cultural
e mundaneidades do meio negro, além de contar com patrocínios de

245
necessária para o gosto mais exigente. Motivos emprestados do

Caribe, África do Sul, Senegal, Nigéria, eram envolvidos pelo

samba e pela estética carnavalesca de inspiração carioca, além das

pinturas de Djalma em grandes painéis nas paredes e garçonetes que

vestiam pareô e turbante e que em lugar de bandeja levavam uma

espécie de cesto de palha (o que dificultava o equilibrar de copos

e garrafas).

Na ocasião da inauguração o movimento de negros era muito

grande. As pessoas bem vestidas demonstravam possuir um gosto em

comum para certos tipos de roupas, usando opções marcadamente

diferentes daquelas que costumávamos ver em lugares semelhantes do

meio branco, especialmente entre os homens.

O toque africano se fazia presente apenas no staff da

danceteria. Roupas étnicas não eram ostentados pelos

frequentadores, que optavam pelo jeito de ser afro-brasileiro

urbano29 com toda a diversidade que esse contexto possibilita e que

mostra uma estética própria. Especialmente entre os homens a

diferença era marcada. Eles aderiam ao uso de roupas vistosas,

conjugando o terno convencional com cores vivas, preferindo de

modo especial o branco para calças e paletós e as cores nas

camisas (na época, a preferência por camisas pretas associadas a

paletós coloridos competia com o terno branco). As mulheres jovens

mostravam-se mais ecléticas. Tanto se utilizavam da moda sem

reinvenção quanto a seguiam associada a leituras personalizadas da

mesma. Nesse sentido os homens eram bastante mais estereotipados e

homogêneos no modo de vestir-se.

estabelecimentos prestadores de serviço aos negros da cidade


(CECUNE,1995:12).

246
Famílias completas compareceram àquela noite, o que foi

surpreendente para nós, considerando o tipo de casa noturna que

era o Kizomba. Havia moças acompanhadas de seus pais, e até alguns

poucos avós. É lógico que essas pessoas saíram mais cedo.

Predominavam casais. Havia rapazes desacompanhados, mas poucas

moças chegaram desacompanhadas ou de suas famílias ou de seus

parceiros.

O fato de ser a noite da inauguração, para a qual foram

expedidos convites, pode explicar essa composição do público, pois

era um evento social importante. De qualquer forma se constituía

num espaço privilegiado de sociabilidade seleta, propício para

arranjos matrimoniais homogâmicos. Nesse aspecto se

assemelhava ao Baile da Teresa e ao pagode no Floresta Aurora a

que comparecemos em ocasião na qual se elegia o samba-enredo da

Escola de Samba Imperadores do Samba, organizada por uma de suas

alas, ela mesma formada por grande quantidade de parentes.

Podemos dizer do Kizomba, na sua inauguração, que era uma

festa quase familiar. Quase todos dançavam, e os que o faziam o

faziam muito bem. Saber dançar era um importante requisito, pois

houve quem se recusasse à dança por não saber fazê-lo bem. Um

amigo (mulato) era recusado por sua esposa (também mulata) como

parceiro de dança por considerar que ele não "sabia dançar".

O show foi carnavalesco. Foram apresentadas as Rainhas do

Carnaval de 91 e 92, Princesas, porta-estandartes da Vila do IAPI

(todas mulatas). Além delas, também se apresentaram pandeiristas

que fizeram malabarismos com o instrumento, passistas e cantores.

29
Sobre isso ver BITTENCOURT, 1995.

247
O ponto alto do show foi aquele em que os passistas chamavam

o público para dançar. Cada convidado fazia um show à parte.

Quando algum não era bom de samba, o público ria muito, vaiava

dizendo-lhe para ir para casa.

Atualmente o Kizomba está fechado. Conforme ouvi comentários

naquela noite, era difícil "a comunidade" manter uma casa com

aquele padrão. Provavelmente estavam certos.

Os bailes da Teresa representavam a celebração da mistura, da

miscigenação. Atraindo um grande público, congregava uma parcela

significativa das classes médias negras nas suas diversas

gradações sócio-econômicas. O estilo que imprimia mesclava o gosto

popular com aspectos típicos de frações mais elitizadas - a

seletividade feita mediante controle na venda de ingressos, a

moral e o decoro na postura, a exigência quanto ao traje -, embora

distinto daquele próprio de camadas médias intelectuais.

Marcava positivamente a condição do negro, que também é

educado, bonito e se veste bem. Mostrava e destacava o fato do

negro ser capaz de fazer uma festa "fina".

O Baile da Teresa acontecia regularmente, nos meses de maio e

novembro. Trata-se de um baile organizado por Teresa Kohlrausch

dos Santos (recentemente falecida) e que era procurado por parte

da elite negra e que os menos "afortunados" economizavam e

eventualmente podiam vender alguma coisa para a ele comparecer.

Apesar disso, a informação que corria sobre o baile era de que se

tratava de um festa seleta e limitada à "elite".

Conforme a tradição desses bailes, os ingressos eram vendidos

antecipadamente por Teresa ou alguém ligado a sua organização e na

sua casa. Esses bailes eram divulgados exclusivamente através

dos canais próprios do meio negro, nos quais o boca-a-boca é o

248
meio fundamental, mas que podia ser um radialista ou jornalista de

veículos ligados ao meio negro e carnavalesco (para isso a Rádio

Princesa é um meio preferencial).

Segundo Teresa as pessoas já sabiam da época e antes disso

telefonavam perguntando o dia e já iam reservando as mesas. O que

funcionava de fato eram as redes de relações, o boca a boca - meio

através do qual o colega que nos passou a informação a obteve.

O Baile da Teresa se originou de uma banda de nome Caras e

Coroas da qual Teresa era a líder, a "rainha da banda". Essa

banda saía da casa de Teresa no dia 31 de dezembro e era muito

prestigiada no meio negro, sendo apoiada por Roxo, carnavalesco e

divulgador do carnaval da cidade.30

As festas de Teresa começaram, por volta de 1978, como

extensão da banda. Elas eram o meio de obter recursos para

adquirir instrumentos, entre outras coisas, para a manutenção da

tradição da banda.

"Já fiz baile até em porão e sempre quis que fosse bem

arrumadinho.", disse Teresa. Aos poucos, ela foi sofisticando a

festa e foi obtendo prestígio como organizadora por ser exigente

na qualidade, por estimular a apresentação desde o início, quando

as festas ainda eram feitas para obter fundos para a banda de ano

novo. Dizia Teresa:

"Vamos botar uma roupinha que vocês botam no domingo


aí, uma domingueira aí! Aí, então, a gente fez, fazia
aquela festa, bem gostosa, todo mundo se divertindo
bem, dava... deu certo. E aí, dali a gente foi para um

30
Roxo tinha um programa de rádio e uma coluna no jornal local -
Zero Hora - no qual noticiava o carnaval, as festas e
acontecimentos do meio negro. Assim a Banda da Teresa foi
divulgada.

249
salão maior e eu tinha o apoio de uma pessoa
maravilhosa que era o Roxo; ele me dava muita força,
né, então o Roxo sempre me incentivava, na meia-noite
ele tava na rádio gritando : agora a banda da Teresa da
Chácara das Pedras tá saindo..."

O tipo de festa que ela passou a organizar diferia daquelas

que costumavam ser organizadas como forma de conseguir recursos

para o carnaval, as bandas, etc.:

"eu tava entrando num espaço assim que o pessoal usava


a 'reviria'[sic] né, todo mundo vai a vontade às festas
né, aí não quer dizer nada, mas eu tava criando um
outro estilo de festa, sabe. Esta de fazer convites
antecipados, fui eu que criei. Por exemplo, fazer
convites todo mundo fazia; fazia a festa e ficava
esperando o pessoal ir comprar o convite na hora. Às
vezes dava... Mas eu não. Sabe, quando vou para uma
festa eu já tô com a despesa toda ela tirada, sabe,
nunca fiquei devendo nada para ninguém. Aí então eu já
criei aquele meu estilo não é, não entra de jeans, não
entra de tênis, isto era fundamental, voltava da porta
fosse quem fosse." (Teresa)

A partir dessas promoções, Teresa adquiriu o "Know how" de

festas e progressivamente foi transitando para atuar nesse campo

empresarialmente, partindo cada vez mais para seletividade e a boa

apresentação. Passou de "festeira" à "promotora de festas", com

registro formal de empresária (CGC).

Participamos de dois bailes, o de maio cuja chamada era Festa

Baile "Meu nome é amor, sobrenome, paixão" que elegeu a "Garota

Cravo e Canela" de 199331 e o de novembro de 1993 que se chamou

Festa Baile "Solidão nunca mais" e que elegeu o primeiro "Homem

31
O primeiro baile Garota Cravo e Canela foi em 17 de novembro de
1984 e ocorreu no Clube dos Metalúrgicos.

250
nota 10". Ambos se realizaram no Sport Clube Farrapos, sociedade

pertencente aos oficiais da Brigada Militar do Rio Grande do Sul e

que se localiza no bairro Alto Petrópolis.

O salão desse clube tem capacidade para aproximadamente mil e

quinhentas pessoas e estava praticamente lotado no baile de maio.

A quantidade de carros era grande, e também muitas pessoas vinham

de ônibus e taxi de vários pontos da cidade. O de novembro teve

uma frequência menor, pois um clube negro, o Satélite Prontidão,

fazia também um baile nesse dia.

A composição dos bailes era bastante heterogênea, contendo

pequenos funcionários, profissionais liberais, jogadores de

futebol, personalidades no mundo do carnaval, artistas negros,

atletas, etc.

O baile do Garota Cravo e Canela foi especialmente bem

sucedido. Quando chegamos o salão já estava quase cheio. Todos

vestidos com esmero, mesmo que alguns desvelassem sua condição

mais pobre.32 As mulheres estavam vestidas com mais cuidado e embora

o traje oficial exigido nos convites fosse "alto esporte", as

rendas e brilhos luziam acompanhadas de maquilagem e cabelos

alisados e penteados segundo a moda. Especialmente as jovens

ostentavam enfeites vistosos.

O início deste baile se deu com atraso. A abertura foi feita

por um animador que logo anunciou Teresa. Em seguida chamou a

garota cravo e canela de 1992 que desfilou para os aplausos do

público. Após, chamou o juri do concurso que era composto por um

conhecido ginasta, a garota de 92, um jogador de futebol,

32
Segundo as pessoas frequentadoras habituais desses bailes, a
"comunidade" espera por eles, investindo suas economias em roupas
para apresentarem-se em condições.

251
carnavalescos, representantes do clube que sediava o baile. Só

então começou a apresentação das candidatas ao título.

O desfile iniciou com Graziela (garota 92) que entrou

dançando um bolero com um rapaz, em coreografia ensaiada.

Seguindo-os vieram as candidatas dançando acompanhadas de

rapazes, sempre ao som do bolero; pares em fila, com passo

marcado, fizeram evoluções até estarem diante do juri onde os

pares se separaram postando-se em linha, moças na frente, rapazes

atrás. Após ocorreu o desfile individual enquanto o apresentador

divulgava as características da candidata - idade, o que estuda, o

que gosta, o que lê, medidas, o que sonha, etc.

Vestiam trajes de gala. Havia o predomínio de vestidos

cortados na saia de modo a deixar à mostra uma das pernas. O

branco era a cor mais usada. Tinham entre 15 e 20 anos, eram na

maioria estudantes.33

O baile de novembro que elegeu o Homem nota 10, possuiu o

mesmo tipo de abertura. Os bailes nunca iniciam sem o apresentador

que faz o anúncio de Teresa e dos membros do juri. Desta vez a

apresentação foi feita por uma mulher. A composição do juri era

semelhante a do baile anterior, havendo também a presença de

brancos. Faziam parte dele a Garota Cravo e Canela 93 ( Luciane,

eleita no baile de maio - mulata), um advogado (branco), Denise,

rainha da Escola de Samba Imperadores do Samba de 93 e a Garota

Cravo e Canela 92 (mulata), um capitão da Brigada (branco), um

ginasta também presente no juri anterior (mulato), representantes

de firmas patrocinadoras (dois brancos e uma mulata) que doaram os

33
Segundo Teresa, essas moças podem conseguir oportunidades na
carreira de modelo fotográfico, participar de comerciais, dada a
visibilidade que adquirem com a participação nesse tipo de
concurso.

252
prêmios dos vencedores dos concursos, Marina, rainha da sociedade

Primeiro de maio (mulata), um professor de pré-vestibular

(mulato), um artista plástico e poeta (mulato), um coreógrafo e um

representante da Sociedade Gondoleiros (branco).

Em ambos os bailes as pessoas de prestígio na comunidade

foram destacadas. Airton, ex-jogador do Grêmio, foi um dos

nomeados. Essas "personalidades" foram entrevistadas e filmadas.

Tivemos a oportunidade de ser destacados por Teresa como

"personalidades" presentes ao baile de maio. Fomos referidos como

o "pessoal da universidade". Além de nós, o Comandante da Brigada

Militar (branco), o presidente do clube que sediava o baile, o Rei

Momo Miudinho, e outros designados como "doutores".

Miudinho fez uma pequena saudação. Nela o baile foi referido

como "a festa da Teresa, que é a festa da elite da raça negra de

Porto Alegre".

Para Teresa naqueles concursos o que se celebrava era a

mistura:

"Eu queria fazer uma coisa diferente. Um concurso


diferente. Então eu botei cravo e canela, a garota
cravo e canela. Mas é como eu digo, cravo e canela é
uma coisa assim. Eu sempre idealizei uma Sônia Braga
assim, sabe, a Gabriela, assim, eu quero umas
mulatas..."

A mistura não significava a convivência de negros, brancos e

mulatos. Significava sim o produto da miscigenação: o mulato. E

mais especificamente a mulata. Entretanto, vimos que a festa era

o lugar da "elite da raça negra" segundo expressou Miudinho em seu

discurso, mostrando que pretos e mulatos eram englobados pela

253
categoria negro, pelo menos quando quem discursa é, apesar de

carnavalesco, um branco.

Outro aspecto que pôde ser vislumbrado na concepção de festa

que Teresa construiu e no tipo de seleção que realizava é a

delimitação das fronteiras de classe no seio do próprio grupo

negro realizada mediante sinais exteriores de condição de vida e

opção por um modo "direito" de se portar. Não entrar de tênis ou

jeans joga os estereótipos para um conceito de estar arrumado

compatível com as regras de comportamento puritano que a festa

exige.

Teresa, ao vender com antecedência os convites em sua própria

casa, já inicia uma seletividade que transcende a exigência da

roupa adequada. Ela mesma pode operar a exclusão através da recusa

de convites e pela exigência que faz do interessado ter sido

indicado por alguém. Pode ser um atendente de enfermagem, mas tem

que ter uma referência. Tem que portar-se bem e vestir-se

adequadamente. Não pode ser, portanto um rapper, ou funkeiro. E se

o for, deve desvestir-se de seu estereótipo e assumir o modo

puritano de ser exigido pela promotora e pelos frequentadores

habituais das suas festas.

Para Teresa a seletividade que ela utiliza não tem

significado de preconceito racial ou social. Tudo gira em torno da

"idoneidade". Sendo ela portadora de idoneidade, credibilidade,

seleciona segundo critérios que não as comprometam.

"Mas isto aí tu tem que, isto aí não é só no negro.


...; isto aí tem que ter idoneidade. Porque eu..., não
é que ao dar uma festa eu tenho preconceito, nem
social nem racial. Digo social porque lá na Cardiologia
vão quase todas as atendentes, ... , e os médicos. Ali,

254
naquele dia, eles são nivelados, iguais, entendeu..."
(Teresa)

A roupa e o modo de se portar supostamente os igualam em

termos sociais. O padrão de vestuário e a etiqueta própria das

classes médias - com a imitação que fazem das classes altas -,

constituem o termo de nivelamento.

Já referimos a afirmação de Frazier sobre as "brown middle

classes" para quem há no meio negro de classe média (em grande

parte mulato) uma considerável confusão de ideais e de padrões de

comportamento, pois ela é herdeira das tradições das famílias

mulatas e da cultura das massas. Não houve, segundo ele, tempo

histórico para a construção de uma tradição e, na falta de uma

tradição de classe, o exagero e a imitação jogam importante papel

na determinação do comportamento (FRAZIER, 1973:322). O que Tereza

faz quando estabelece limites através da aparência é de certa

maneira realizar no âmbito da festa o modelo de sociedade negra

compatível com o modelo das classes altas. Entretanto a cultura

das massas se integra à festa através da música e da dança.

Ao ser questionada sobre a presença dos negros nas festas,

Teresa concorda que eles são predominantes. Diz:

"Sim. São pouquíssimos os brancos. Não, agora tem


bastante..., não... a maioria, sim, porque não temos,
praticamente não temos, praticamente a gente não tem um
espaço, um lugar que dê todo mundo, como... é um clube
com piscina, quer dizer, agente não tem nada disso.
Então a minha festa é esperada por causa disso aí."

255
Teme ser acusada de preconceituosa e faz questão de afirmar-

se como aberta. Assume sua identidade negra, apesar de ser muito

clara de pele, ao dizer sobre os negros "nós", "a gente",

incluindo-se no conjunto.

Todo esse discurso sobre não discriminar social e racialmente

é contraditado pelo que ela diz em seguida, que a faz concordar

com o que Miudinho havia afirmado em seu discurso no baile.

"Nesta festa aí [Homem nota 10] vai se reunir a nata


negra, do tipo a nata. Só vai dar Dr. A, Dr. B., tu não
sabe que tem tanto negro assim "bem" [de vida, de
dinheiro] ... eu vejo aqui quando eles vêm comprar
convite, quando eles vêm, sabe...".

Ou seja, é de fato uma proposta elitizadora, negra (ou

mulata), que admite absorver das camadas mais baixas apenas

aqueles que conseguem compor uma aparência compatível com a

proposta. Aspectos exteriores são os elementos manipulados para

marcar o pertencimento à "nata", pois ela "vê" quando eles vão

comprar os convites.34

Brancos são admitidos, desde que relacionados com pretos por

relações pessoais ou "notáveis", que dignifiquem a festa,

signifiquem algum ganho simbólico ou material e mostrem aos outros

negros que o espaço é digno até para brancos importantes. Esta foi

a razão da entrevista que nos fez no baile, quando a iluminação

foi dirigida a nós que não apenas fomos filmados como constituímos

um "brilho a mais" na sua festa e um ponto a mais no seu

prestigio.

256
A "Festa Baile Solidão Jamais" que elegeu o primeiro Homem

Nota 10, desvendou a importância da festa para o estabelecimento

de alianças matrimoniais.

Teresa introduziu um cartão para ser usado em recados, tanto

pelos rapazes quanto pelas moças. Ao se comprar o convite recebia-

se alguns deles nos quais constavam espaços para serem preenchido

pelos interessados em acertar uma dança. Com isso ela esperava que

os rapazes deixassem de ficar parados sem coragem de tirar as

moças que também poderiam tomar a iniciativa sem constrangimentos.

Teresa afirmou que estava "em guerra com a solidão" e que

passaria a organizar eventos menores, como jantares românticos,

visando aproximar os solteiros. Casamento como intenção explícita

Teresa não assume, mas namorar é um objetivo claro.

É lógico que o espaço das festas, especialmente os bailes,

são próprios para encontros entre os sexos. Nas festas da Teresa,

esses encontros são facilitados com a vantagem da pré-seleção que

ela mesma faz.

A presença de famílias é marcante, o que favorece arranjos

responsáveis, públicos.

Quando Teresa diz que os negros não tem bons espaços de

encontro, fala da seletividade e fala das dificuldades que os

jovens (e os nem tão jovens) encontram para se conhecerem e se

namorarem. Com o "Solidão Jamais" ela assume esse papel de

propiciadora de um espaço seleto, bem comportado, onde as famílias

podem comparecer e encontrar famílias do mesmo nível, ampliando

assim o mercado matrimonial do grupo.

34
"Marcas de distinção" seria um conceito aplicável a essa questão.
Sobre isso ver BOURDIEU, 1982:14.

257
"E agora eu tô fazendo este negócio assim, e como eu tô
em guerra com a solidão, eu já te disse né, eu..., e o
material humano homem tá muito escasso, tá assim,
difícil, então eu tô fazendo a escolha do homem nota
10..."(Teresa)

Os concursos - atrativo da festa - são promovidos também

para dar visibilidade aos candidatos, proporcionando-lhes não só

melhores oportunidades em carreiras de modelo35 e em outros

concursos, mas também prestígio no mercado matrimonial, já que os

prêmios oferecidos aos vencedores não compensam o investimento que

fazem para se apresentarem como candidatos.

O Floresta Aurora foi fundado em 1873 (ou 1870, pois não há

certeza na data de sua fundação) por negros alforriados.36 Situa-

se atualmente na zona sul de Porto Alegre, no Bairro Cristal.

Possuía um bloco de carnaval, "Os Intocáveis". Era

considerado um clube de "elite", sendo acusado de ser

discriminador com os negros pobres. O

clube Floresta Aurora, "o Floresta", na sua agenda social, também

sediava - na ocasião da pesquisa - festejos preparativos para o

carnaval. A ala "Sufoco" da Escola de Samba

35
A carreira de modelo fotográfico e de manequim são escolhas
características de segmentos aspirantes às classes médias,
especialmente no meio negro. O caso de Deise Nunes é exemplar das
possibilidades que oferecem.
36
Segundo a Revista Tição (TIÇÃO, 1979) há controvérsias quanto a
data de sua fundação. Floresta Boca 18 foi uma das formas com que
foi designado por uma geração. Denomina-se Sociedade Beneficiente
e Cultural Floresta Aurora. É o mais antigo Clube de negros da
cidade. Sua sede esteve mais antigamente na rua Lima e Silva,
cidade Baixa, bairro próximo ao centro da cidade e espaço de
residência de grande parte dos negros. Na década de 70 o Floresta
era designado pelo público jovem como Mansão Black em decorrência
da "soul music" que dominava suas noites. Esse fato, em oposição à
antiga ênfase no carnaval, é motivo de polêmica na revista citada.

258
Imperadores do Samba, "os Imperadores", utilizou o espaço do

Floresta para realizar um evento social (um pagode). Este, ao

mesmo tempo recolhia fundos para a ala e realizava mais uma etapa

do processo de escolha do samba-enredo da escola para o carnaval

de 1994. O tema era "Ghandi, o guerreiro da paz".37

A ala era organizada por vinte e oito pessoas (entre as quais

uma advogada informante da pesquisa). Estes contribuíam

permanentemente para a ala, tanto com seus recursos quanto com

promoções que angariassem fundos para ela.

Naquela noite o público era formado, além dos sambistas,

jurados e dirigentes da escola e do clube, por participantes da

ala e seus amigos e parentes. As mesas eram ocupadas por famílias,

podendo-se encontrar ali até quatro gerações. Idosos e crianças

cochilavam nelas e eventualmente retiravam comidas de suas bolsas

distribuindo-as entre si. O carnaval centralizava os

interesses dos participantes, mas o Floresta não deixava de ser um

campo de sociabilidade impregnado nas rotinas de muitos deles.

As atividades carnavalescas, especialmente as escolas de

samba, ocupam uma parte muito grande na sociabilidade dos negros

da cidade, inclusive dos de camadas médias. Constituem ocasiões

importantes de convívio, atualizam as relações sociais e propiciam

meios para o estabelecimento de trocas matrimoniais.38

No momento da pesquisa a "velha guarda" dominava novamente o


clube, caracterizando-se por uma programação mais conservadora.
37
A sistemática de escolha dos sambas-enredo obedecia um calendário
no qual aos domingos havia etapas que eram organizadas por cada
uma das alas da escola sucessivamente.
38
Josiane A. da Silva analisou a Escola de Samba Bambas da Orgia
como território negro (definido como espaço social simbolicamente
delimitado, que permite mostrar a exclusão social e o repertório
cultural comum do grupo) e o espaço carnavalesco como um espaço de
demarcação de fronteiras étnicas. Salientou que nas escolas de
Porto Alegre a presença de brancos é pouco significativa e que a

259
Era um espaço negro no qual coexistiam, naquela oportunidade,

distintas posições sociais, muitas vezes dentro da mesma família.

A homogeneidade racial convivia com a diferença de classe de um

modo diferente daquele convívio disfarçado e limitado dos bailes

da Teresa e com distância social mais clara. Não ocorria apelo a

outros emblemas de identidade. Não se faziam necessários outros

elementos além daqueles que o próprio carnaval atualiza.

Participar das festas é um modo de integração ao grupo,

significando assim "aproximar-se dos valores e comportamentos

compartilhados pelo grupo..." (SILVA, 1993:129) Tinha-se no

espaço daquele evento específico a presença marcada das famílias,

elas mesmas carnavalescas ou apenas solidárias com os parentes

carnavalescos. Nossa informante (advogada) relatou que havia antes

organizado um galeto para obter recursos para a ala. Vendeu 27

ingressos só na família (conceito amplo da maioria dos

informantes). Apresentou-nos primos, indicou-nos a presença de

tios, parentes de parentes. Enfim, a ala era em grande medida

formada por redes de pessoas "aparentadas" e no plano do grupo que

a organizava, parentes compunham a sua liderança.

Também Josiane A. da Silva em seu estudo (anteriormente

citado) sobre uma escola de samba em Porto Alegre - Bambas da

Orgia - percebeu que muitas vezes uma família compunha uma ala

da escola. Diz a autora: "As relações com as famílias que integram

e compõem a escola... reforçam a representação da escola como uma

grande família. Entre as vinte alas existentes na escola, a metade

era organizada por famílias e a maioria dos participantes de uma

mesma ala mantinham alguma relação de parentesco, tanto que

escola desenvolve um código familiar de relacionamento no sentido


de utilizar a família como metáfora de pertencimento à escola.

260
inclusive, denominavam as alas com o nome da própria família..."

(SILVA,1993:145).

O peso da família como rede privilegiada de relações sociais

percebido ao longo da pesquisa que realizamos nos lugares de lazer

e sociabilidade públicos reforça a importância que atribuímos a

ela como objeto de estudo. No caso do grupo negro ela parece

possuir um significado mais forte ainda como decorrência do seu

papel de instância de construção das bases étnicas da sua

identidade.

Família fornece o sentido da aglutinação e da tradição do

grupo. O parentesco é também um idioma através do qual se

expressam outras esferas da sociabilidade, além de ser

efetivamente um elo de pertencimento e canal de inserção em

diversas esferas sociais.

Josiane A. da Silva não usa a idéia de família como idioma de

classificação do mundo social e das relações. Mas percebe que a

identificação da escola como "família" e a sede como "casa", opera

como demarcação de fronteiras entre nós e os outros, além da

conotação moral que família assume para adjetivar o ambiente da

escola. Além disso, a escola de samba não está apoiada numa base

geográfica embora, na sua origem, esse fator tenha sido importante

na sua fundação. Identificar a escola através de um idioma de

parentesco contribui para marcar a coesão do grupo. Mostra também

a cidade demarcada etnicamente. Cada grupo tem seu espaço

obedecendo critérios étnicos e de classe.

O Baile da Teresa com toda a seletividade realizada contém

famílias mas não se organiza com base em famílias. Constitui um

espaço menos comunitário na sua forma. Utiliza-se de redes sociais

mas não se fecha nelas. Preserva o sentido moral, "familiar", mas

261
privilegia atributos de classe preferindo identificar-se como a

"nata" da raça negra. Essa "nata", entretanto não é una. Ela

contém os "notáveis", aqueles que tem "destaque" e que se

sobressaem por atributos relacionados à posição de classe, à

visibilidade no meio branco - esporte e arte - e no meio negro -

carnaval e música de modo especial.

O Black and White situava-se na Cidade Baixa e se destacava

por ser um bar com música ao vivo (pagode e samba), tocada por

músicos predominantemente negros. Na ocasião era de propriedade de

um conhecido membro de uma escola de samba importante da cidade.

Ele recebia os frequentadores na porta. Parecia conhecer muitos

deles, inclusive os primos de Ana, nossa informante, que nos

acompanhavam, provavelmente através das atividades carnavalescas.

Várias pessoas que estavam no Floresta Aurora na noite da ala

Sufoco eram frequentadoras do bar. Alem desses havia alguns casais

mistos, pessoas de meia-idade ( a maioria casais) sentiam-se à

vontade e comportavam-se como conhecedores do espaço. Aparentavam

ser de classe média e nossa informante confirmou essa impressão,

pois os conhecia. Havia também pista para dançar.

O Naval, situado no Mercado Público no centro da cidade,

expressava a negritude do trabalhador politicamente engajado.

Possuía as características de um "boteco". Não se definia como um

bar para negros, mas era "onde o pessoal se reunia" nos fins-de-

tarde, segundo informou Geraldo.

Não era então um boteco de negros e sim de trabalhadores,

dentre os quais, muitos eram negros. Um grupo deles, ligados aos

movimentos negros com ideologia socialista, sendo em parte

intlectuais costumava freqüentar o lugar. Ali bebiam uma cachaça,

262
trocavam informações, combinavam publicações (jornais locais e do

interior) e as divulgavam.

Na ocasião da observação havia pouquíssimas mulheres. Era um

espaço masculino com identidade de trabalhador predominante. Não

possuía música e não apelava para nenhum emblema étnico consagrado

pelos movimentos negros.

A dança foi um elemento presente nos diferentes espaços

observados39 (com exceção do Naval, que congregava as pessoas nos

fins de tarde). O estilo musical é o mesmo, embora com vestimentas

distintas. Os códigos se igualam mesmo que através de etiquetas

diferentes. Quem sabe dançar dança. Quem não sabe observa e se

diverte mesmo assim. Os maus dançarinos são criticados.

Silva, em seu estudo sobre carnavalescos em Porto Alegre,

viu também o quanto a dança - "saber sambar" - constitui um valor,

marcando inclusive um recorte entre "nós" e os "outros", sendo

usada para estabelecer fronteiras entre as escolas de samba

(SILVA,1993).

Os espaços frequentados pelas classes médias negras tem no

samba e no pagode a unidade, em que pese as possíveis diferenças

que seus participantes lhes atribuam. São níveis de qualidade

diversos, mecanismos de censura distintos aos possíveis

comportamentos indesejáveis, mas o gosto e as práticas lúdicas não

diferem. Saber sambar também é valorizado, intimidando aquele que

39
Lembre-se que as danças dos negros escravos eram de modo especial
controladas. A sua ocorrência nas festas católicas foi proibida.
Elas eram tratadas de uma perspectiva moral e religiosa,
constituindo foco nas acusações de licenciosidade e primitivismo
dos escravos. Os acontecimentos que levaram à proibição da
participação dos negros nas festas da Igreja Matriz Madre de Deus
de Porto Alegre, dos quais derivaram a construção da Igreja do
Rosário pela Irmandade de mesmo nome durante o século passado,
demonstram o que as danças dos negros significavam para as

263
não o faz segundo o padrão do grupo. Com isso podemos perceber

certa unidade no campo dos valores e dos comportamentos entre os

espaços carnavalescos e os não-carnavalescos aqui analisados e

que tomam o carnaval como show.

O saber dançar é utilizado nos espaços observados - Baile da

Teresa e Kizomba - como elemento de valorização de homens e

mulheres na conquista de posições favoráveis na competição no

mercado amoroso, na conquista e no destaque pessoal. Demarca

fronteiras entre os que sabem e os que não sabem, valorizando uns

e desqualificando outros. Jovens demonstram sua sensualidade e os

mais velhos são estimulados a demonstrar que ainda a possuem.

Um informante disse que o negro vai onde "tem música de

negrão". Isso parecia ser a regra também para certas parcelas das

classes médias.

Não participar dessa sociabilidade pode ser a escolha,

conforme pudemos observar em grande parte do grupo pesquisado mais

intensivamente. Jantar fora, passar fins-de-semana na praia ou

num sítio é a alternativa preferida, assim como assistir a um

concerto, cinema ou desfrutar do lazer em família, o que na

realidade é feito pela maioria.

Comparando-se o Baile da Teresa (centro da análise que

realizamos) e em certo sentido o Kizomba (embora este fosse aberto

e por ser um espaço público selecionava apenas pelo poder

aquisitivo), com o espaço carnavalesco, percebe-se que o que

aqueles faziam era estabelecer uma fronteira de classe no seio do

mundo negro ao mesmo tempo em que atualizavam a fronteira racial

no seio das classes médias da cidade.

autoridades e para os próprios negros. Sobre isso ver MACHADO,


1990:189-196.

264
O Kizomba teve o papel de atrair os segmentos mais

intelectualizados e engajados do meio negro. O Black and White

situava-se numa posição distinta. Era mais diretamente vinculado

ao Carnaval e às pessoas do seu meio na sua parcela melhor situada

financeiramente, ao contrário do Kizomba que usava o tema carnaval

como "show".

Esses espaços criados pelos negros da cidade ritualizam, com

a festa, uma celebração de sua identidade e atualizam assim as

fronteiras que os separam dos brancos.

Kizomba e o Baile da Teresa mais que isso promovem uma

segregação de classe, estabelecendo fronteiras dentro do grupo

negro e relendo o gosto e a música através de códigos de classe

média, realocando o lugar do carnaval e enfatizando etiquetas

próprias de seu estilo de vida.

4.5. Ser Negro nas Classes Médias

Os confrontos raciais nas camadas médias ocorrem com

frequência. As fronteiras raciais se atualizam a através desses

contatos. Eles são em grande medida fatores ativos no despertar da

consciência e no desenvolvimento da negritude.40 Entretanto ela não

é o único resultado desses confrontos.

40
Negritude aqui é vista como expressão ideológica da etnicidade
negra. A etnicidade pode ser definda como um fenômeno no qual as
diferenças sociais, traduzidas em diferenças étnicas, são
utilizadas para fins de mobilização grupal por demandas sociais,
políticas e econômicas. (SEYFERTH, 1983)

265
Poucas vezes a identidade negra marcada ideologicamente é

adquirida na família. Quando isso ocorre é em decorrência de

experiências de discriminação elaboradas mediante referenciais

ideológicos adquiridos no próprio processo de ascensão social.

A incorporação de uma visão sociológica, histórica e

antropológica impregna parte dos discursos sobre discriminação e

também sobre a família. Ser vítima de discriminação racial não

produz de modo imediato e autonomamente a negritude.

Participar "dos movimentos", relacionar-se a alguém que

participe ou que "seja do meio" é uma forma de incorporar um

discurso "sociologizante" da relação do negro com a vida.

Uma professora universitária, falando dos seus filhos e das

estratégias adotadas por ela para ensiná-los a enfrentar o

preconceito, psicologiza o problema e busca soluções

compreensivas. Para ela se a auto-estima estiver em dia a

discriminação não impedirá uma inserção social favorável para

eles.

A solidariedade étnica ou racial se produz internamente sem

que isso implique, portanto a politização das práticas e das

relações entre os grupos no sentido da organização política em

bases étnicas. Essa organização obedece a uma historicidade e

depende também da emergência de lideranças que canalizem a

identidade grupal no sentido da etnicidade como estratégia de

mobilização para a conquista de direitos (COHEN, 1974).

Esta organização política das demandas grupais em bases

étnicas, obedece também a uma trajetória, que definimos como de

ascensão do grupo no processo de conquista de direitos ao longo do

próprio processo de democratização da sociedade e a conseqüente

abertura da competição por espaços econômicos, políticos e

266
sociais, especialmente no meio urbano que de modo especial

propicia a emergência da etnicidade (COHEN, 1974).

No grupo entrevistado, grande parte não recebeu da família

nenhuma orientação acerca da realidade das relações raciais, do

preconceito e da discriminação.

"E nós nunca fomos educados para ser negros. Eu fui


descobrir que era negro quando tinha uns 12, 13 anos de
idade, quando o pessoal na rua começou a me chamar de
"negão". Porque até na escola eu não senti - na escola
primária, que eu estudei em pública - não senti este
peso. Eu tinha até uma namoradinha branca. Então, a
partir da minha adolescência é que eu fui perceber o
peso da cor que eu tinha, que não me foi ensinado em
termos de família... Eu me tornei negro de repente."
(Geraldo)

Geraldo sentiu-se revoltado, sem entender porque era

rejeitado pelo fato de ser negro. A isso atribui a construção de

uma identidade de resistência, política (daí ser militante), já

que sua socialização teve por base valores mais condizentes com a

acomodação do que com a resistência.41

A base "ordeira", "fiel", "humilde", observada em todos os

casos recolhidos, evoluiu em parte deles para a recusa ao

confronto e ao redobramento de esforços para vencer associado a

alianças com aqueles que se dispusessem a "ajudar".

Nesses casos, ser negro passa a ser uma condição individual.

É como indivíduo que ele vai vivenciar a "luta" e como tal munir-

se de suas credenciais de cidadão para solucionar os confrontos.

Em muitos casos, violentar-se fazendo que não vê, é parte da luta.

267
Não foram incomuns relatos que denotavam de modo claro o uso

consciente daqueles atributos tradicionais como estratégia de

conquista de oportunidades com vistas a "melhoria de vida".

Aqueles que não escamotearam essas estratégias, ainda assim

tornaram possível perceber a existência dessas alianças.

Essas atitudes eram as dominantes na geração dos pais e avós

dos informantes e foram tratadas em outro capítulo. Entre os mais

jovens essas práticas já não são tão presentes, demonstrando o

quanto as mudanças nas relações de trabalho no meio urbano e os

padrões que caracterizam as relações sociais neste meio influem

nos mecanismos de estruturação das relações raciais.

Entre os informantes, havia alguns que tinham incorporado

essa ideologia. Mas sua posição social os levou a enfrentar de

modo mais consciente a realidade do preconceito racial existente,

mesmo não sendo um ativista político. Atuar num campo que poderia

ser designado como "política do quotiano", no qual "não se pode

deixar passar nada" constitui um caminho possível.

Não há padrão no modo de atuar nesses confrontos. São muitas

as formas e elas ainda variam para um mesmo indivíduo, segundo as

circunstâncias e a disposição que ele tem de reagir, de protestar.

Ser pego "desprevenido" pode levar alguém a não reagir.

Zilá foi discriminada na disputa por um cargo numa empresa

apesar de ter sido a primeira colocada na seleção. Os diretores

que deveriam entrevistá-la, ao se depararem com ela na sala de

espera, passaram como se não a vissem. Após esperar mais de meia

hora, um subalterno informou que ela não poderia ser recebida por

haver uma reunião a que os diretores deveriam estar presentes:

41
Não privilegiamos nesse estudo as organizações negras, mas temos
de considerar sua existência devido a sua relevância no meio negro

268
"Eu vi que era uma grande mentira. Eu saí de lá tão
furiosa, mas na hora eu não tive reação. Quando eu
cheguei no escritório onde eu trabalhava, e contei prás
minhas colegas: mas isso é racismo! Liga prá lá, vai lá
e xinga eles... Até hoje eu fico tão indignada. Como é
que eu não tive, na ocasião... Então, ... é uma
situação de raiva. De constrangimento mas de raiva,
pela hipocrisia, por tudo. A gente sente aquela
loucura, de ver que tu és discriminada pela tua cor.
Isso é muito sério". (Zilá)

Como regra, a ofensa racial é vivida como ofensa pessoal. Ser

agredido por ser negro ou mulato, pode produzir uma reação em

cadeia que culmina na consciência política ou nas várias outras

formas de identidade negra que se podem forjar. O primeiro plano,

imediato, é evidentemente pessoal e como tal é sofrido. Entretanto

o sentimento de "honra étnica"42 (WEBER, 1944) atua como forma de

perceber a ofensa como injusta.

Relatos de ofensa racial podem vir acompanhados de espírito

de humor, ironia e acusações sobre o ofensor. Arnaldo e Rogério

foram tomados por motoristas por estarem dirigindo carros de luxo.

Ambos reagiram com humor desconcertando seus interlocutores. Nas

duas situações eram pessoas de nível social mais baixo e

considerados pelos informantes como "ignorantes".

Ostentar a posição social preserva de certo tipo de ofensa

racial. Mas ela preserva a pessoa ofendida apenas. Não politiza o

fato no sentido de não definí-lo pelo que ele é: um enfrentamento

intelectual que é parte importante das classes médias negras.


42
Honra étnica como a convicção da "excelência dos próprios
costumes e a inferioridade dos demais" (WEBER, 1944, v.II:69)

269
racial. Por não remetê-lo a esfera grupal, não cria as condições

para a produção de um confronto propriamente dito.43

Esse mecanismo é usado como contrapartida à ofensa. Nele, a

posição de classe é sobreposta à racial como meio de impor um

código de comunicação a outro. O resultado obtido realoca o status

dos interlocutores, restaurando em parte a honra ofendida. Esse

resultado é menos significativo para os informantes do que aquele

que rebaixa a posição do ofensor e o expõe à vergonha. Vergonha de

ser racista e ter preconceitos, de se equivocar sobre a

honorabilidade de alguém. É como "dar o troco", e isso pode

aplacar a indignação pela ofensa sofrida.

Ana, advogada, foi destratada numa delegacia. Solicitou o

processo de um cliente e teve como resposta que "não se dá

documento prá mulher de preso". Evidentemente a carteira da OAB

solucionou o impasse.

Também precisou exibir sua condição em um atendimento médico

de urgência. Foi mal atendida e remetida, após um curativo que

considerou inadequado, ao ambulatório mais próximo de sua casa.

Referiu então ser cliente "particular" do Dr. X - possuidor de

ampla respeitabilidade no meio médico - e teve seu curativo

refeito e a disposição do médico em acompanhar o quadro ali mesmo

naquele hospital. Considerou os "equívocos" conseqüência do

preconceito e essa sua forma de reagir é a que ela adota nessas

circunstâncias, para ela mais leves. Em outro tipo de ofensa ela

usaria os meios legais.

43
Thales de Azevedo mostra como, desde Pierson (PIERSON, 1967), o
caráter de mito da democracia racial já havia sido reconhecido.
Concorda com a idéia de que no Brasil há uma certa "confusão entre
discriminação racial e social" uma vez que é nesse nível que a
discriminação racial age mais fortemente (AZEVEDO, 1975:37).

270
O mecanismo de exibição de status é mais bem sucedido quando

há assimetria de posição social entre os indivíduos.

Nos casos referidos pela advogada, a ofensa foi de fato

rebaixamento de status. Porém, o negro é presumidamente de status

baixo. Essa é a forma mais comum de ofensa sofrida pelos

informantes. As mulheres são convidadas para trabalhar como

domésticas sendo abordadas em supermercados, portarias de prédios,

etc.

Oracy Nogueira refere que "a aparência negróide numa pessoa

com outros fatores favoráveis é sempre um fator de incongruência

de status - e um fator eliminável somente em três ou quatro

gerações, pelo branqueamento físico." (NOGUEIRA, 1985:22) A

pobreza presumida e a decorrente subordinação do negro orientam a

maior parte das manifestações de preconceito sofridas pelo grupo

investigado, já que do ponto de vista comportamental o

pertencimento de classe confere o domínio de uma etiqueta

compatível com a sociabilidade nesse meio. A cor, marca social

estigmatizada, associada a uma alta posição social constroem a

situação de "incongruência de status".

Diva, professora universitária, procurava informar-se do

número do apartamento de uma colega com quem iria reunir-se.

Perguntou a uma moradora que saía dali no momento. A moradora

indagou se ela não teria uma amiga para lhe indicar como

empregada, e que fosse como ela, tão limpa, tão distinta. Diva

replicou que também estava precisando de uma e se ela tivesse

também uma amiga que lhe indicasse. Relatou o fato muito irritada.

Era como dissesse: mais uma vez! Depois se comprazeu com a "cara

com que ela ficou".

271
Esses episódios, vividos como ofensa pessoal de caráter

racial fazem parte do cotidiano das pessoas. Mas não são apenas

raciais. São situações de rebaixamento social, em que o status do

indivíduo é posto em questão em decorrência de sua aparência

física. O "você sabe com quem está falando" (nos termos de Da

Matta, 1981:144) é o meio de tentar recolocar as coisas no seu

lugar.

A assimetria presumida com base nos estereótipos raciais

busca ser invertida a partir do referencial de status. Isso denota

haver o poder de sobreposição do código de status e de classe

sobre o racial, embora num primeiro momento o racial tenda a ser

aplicado. Com isso temos claro o quanto é conflitante o duplo

código de relações raciais vigente na sociedade brasileira. O

"preconceito de não ter preconceito" conduz à possibilidade de

sobrepor um código de status ao racial. Entretanto a "marca

racial" que denota a origem racial constitui o signo básico de

relacionamento entre brancos, negros e mestiços.

Se as posições sociais dos contendores são equivalentes, o

trunfo perde parte da sua dimensão, passando a ser nada além de um

"fora", um vexame nem sempre solucionável mediante desculpas.

O sentimento do ofendido tende a ser, nesses casos de mais

difícil elaboração. Afinal não é um "ignorante" e sim um "racista

mesmo". Em relação ao subalterno pode-se dizer: "coitado, é um

ignorante". Em relação a um igual, a única possibilidade é a

raiva. Para evitar escândalos, silencia-se o impulso e simula-se

uma atitude de indiferença. O receio do "escândalo" é muito

referido. Certas situações sociais parecem ser incompatíveis com o

conflito, com o litígio, mesmo que apenas no nível da agressão

verbal. "Eu não fiz nada porque estava ema casa de uma amiga", "Eu

272
não ia dar escândalo ali, com toda aquela gente" são exemplos do

que é dito para explicar o fato de não ter reagido "como deveria".

São os confrontos raciais e as ofensas sofridas que conduzem

à busca da compreensão, das explicações para o preconceito e a

discriminação que vão orientar seu papel na educação dos filhos.

Para alguns, a participação em grupos de discussão (que são

muitos no meio negro intelectual) cumpre esse papel. Ser um lugar

no qual suas experiências são traduzidas em termos sociológicos e

políticos, servindo de meio para a formulação de ações grupais em

defesa do negro e pela conquista de sua cidadania plena. Para

outros, a resposta jurídica deve ser acionada sempre que as

evidências apontem para a discriminação.

Preparar os filhos, cuidar da sua auto-identificação é uma

das formas de prevenir o choque de "tornar-se negro de repente".

Esse choque os mulatos sofrem mais do que os negros e os de melhor

posição social estão expostos a ele de modo mais radical, dado seu

relativo isolamento das massas negras e do meio cultural negro.

Além disso, e principalmente, em decorrência da sua auto-afirmação

em termos de status, das funções sociais que assumem às quais

correspondem expectativas de deferência e direitos de prioridade

(PITT-RIVERS, 1979), a honra pessoal, presumida pelo status, é

ferida com o rebaixamento que sofrem.

Buscar a compreensão das razões para as ofensas a que estão

expostos pode se dar através da dedicação ao estudo das questões

raciais do ponto de vista histórico, sociológico, psicológico.

"Com o passar dos anos é que eu fui assimilando


qual a razão do problema. Eu fui estudando, fui me
aprofundando etc e tal. E percebi a importância que

273
tinha a família negra e a educação negra, justamente
para preparar meus filhos, as minhas filhas, prá que
não acontecesse com elas o que aconteceu comigo."
(Geraldo)

A mobilização política em bases étnicas e a construção da

"consciência negra" - negritude - encontra obstáculos no momento

de unificar a luta negra a nível regional, nacional e

internacional. A heterogeneidade é marcada por níveis culturais

diferentes, origens sociais diferentes. Essas diferenças impedem a

união.

Luiz Filipe (arquiteto) diz que os movimentos são como

tribos. Logo começam a brigar entre si. Geraldo, além de perceber

as diferenças ideológicas, vê diferenças regionais como questão

complicadora, especialmente quando o objetivo é a construção de um

partido negro, por exemplo.

Vê descompassos no "avanço" dos movimentos relacionados às

próprias condições dos negros que são diferentes "por esse país

afora". Então, a unificação dos movimentos não passa da unificação

de um grupo, pois as diferenças acabam tendo prioridade sobre as

semelhanças, no caso ser negro.

Na verdade, o que ele aponta é o fato que percebemos como

crucial: a diversidade do negro e as identidades possíveis de

serem atualizadas. Vimos em Gilberto Velho e Bourdieu os modos de

diferenciação quanto ao ethos e estilo de vida em frações das

classes médias. As classes médias negras também contém essa

possibilidade de diferenciação.

Quando isso se traduz em disputa por liderança conseguimos

perceber as dificuldades de unificação apontadas por Geraldo.

274
Se o indivíduo, "sempre viveu no meio da raça" (Vania), ou

seja, sempre teve sua identidade voltada para o meio negro,

frequentando seus clubes, participando do carnaval ou mantendo-se

na tradição religiosa afro-brasileira (ou tudo isso junto), as

questões se colocam de modo diferente. Passam a apresentar menos

contradições, aderindo a um modo de ser negro que se adequa ao

lugar que a ideologia dominante lhe atribuiu. Mas se o indivíduo

descola da "raça", mesmo sem deixar de perceber-se como parte

dela, vai tender a reivindicar outra identidade, concernente com

sua posição de classe, seu gosto e seu estilo de vida.

As diferenças religiosas, além daquelas culturais, de origem

rural ou urbana e de classe, introduzem recortes que conflituam a

criação de um modo de ser negro passível de ser incorporado num

novo estereótipo que unifique o negro enquanto uma identidade.

Se o batuque pode ser uma forma de, através da recuperação de

uma noção de ancestralidade, marcar a identidade grupal (conforme

Zilá e Geraldo entendem), ele não é a única forma de religiosidade

do negro. Ele pode até se opor às religiões afrobrasileiras em

função do seu caráter "materialista" (Zilá). Esse é um dilema

muito comum nas camadas médias negras. O batuque tem a

contraprestação material às dádivas dos santos como lógica

comunicacional. Zilá trocou de "casa" muitas vêzes em função disso

e de outros aspectos dos quais discordava, tais como o sacrifício

de animais além do "nivel" cultural dos pais de santo. Gilberto

definitivamente não gosta de batuque e tem batuqueiros sob

suspeição, pois o batuque até agora só teria benefiado os pais de

santo. Apesar de toda a sua família ser batizada no catolicismo

ninguém pratica. A sua mãe é espírita (kardecista) e ele gosta

275
desse tipo de espiritualismo, costumando ir "tomar passes" num

centro espírita localizado no centro de Porto Alegre.

Manter um elo de ligação com alguma forma de culto afro-

brasileiro pode estar relacionado a tradição familiar. O caso de

Célia (esposa de Geraldo) é um deles. Sua mãe biológica é mãe-de-

santo. Também Helena possui uma base religiosa familiar:

"Por ter as duas avós, dos dois lados, de umbanda, a


coisa fica... Claro que ela vem mais forte. Porque
tinha as avós, que protegiam, principalmente a do lado
materno, que protegiam, e que te benziam. Tu ias na
casa delas, tinha congazinho, batia cabeça. Então tua
relação com a religião vai sendo realmente uma coisa
mais forte. É uma coisa familiar. Porque por menos que
tu queiras, é uma coisa familiar que a gente não
conseguiu fugir."

Helena mantém um vínculo com o Batuque, embora com certo

distanciamento (permitido devido ao fato de sua irmã ser adepta e

"garantir" o cuidado da família na casa que frequenta), pois não

gosta "do batuque em si, daquelas festas", isso a "cansa um

pouco". Não gosta "daquelas histórias de matança". Mesmo assim

eventualmente vai, especialmente nos rituais de fim-de-ano. Sua

irmã mais moça é batuqueira "pronta". Ela cuida das "obrigações"

de Helena junto à mãe-de-santo.

Suas duas avós eram chefes de terreiros de Umbanda - de

"caboclo". Prefere entretanto o Kardecismo. Não adere a nenhuma

dessas religiões por não gostar de "mistura". A Umbanda é

"misturada" e no espiritismo os médiuns incorporam espíritos de

médicos, e ela mesma é médica. Acredita que isso é problemático,

276
pois envolve cuidados de saúde dos quais os médicos detém o

monopólio.

Se o batuque constitui um elemento de identidade grupal, ele

passa antes pela família. Ela fornece a tradição da qual "não se

consegue fugir". Entretanto nas camadas médias essa tradição tem a

possibilidade de ser rompida. Os sobrinhos de Helena "conseguem

discernir, conseguem se posicionar: eu quero, eu não quero. Sua

sobrinha mais velha "se posiciona perfeitamente: eu não quero",

apesar de sua mãe "ser pronta".

As diferenças religiosas aparecem dentro de uma mesma

família, como já tivemos oportunidade de referir. Marta percebe

sua família como ecumênica. Geraldo diz de sua família:

"é absolutamente eclética. Tem de tudo. A minha mãe é


espírita. Meu pai era católico. A minha irmã é
católica, o outro irmão é espírita; eu sou ateu, a
minha mulher é mãe-de-santo e as minhas filhas são
batuqueiras...".

Contudo, para ele ser batuqueiro é que condiz com o negro.

"Tem mais a ver, por questões históricas". Isso no caso do negro

não ser ateu.

Se ser batuqueiro é mais condizente com a identidade negra, o

batuque é também uma das estratégias de aproximação entre brancos

e negros, também nas classes médias44. O caso que Geraldo nos

contou, mostra a religião aproximando vizinhos, brancos e negros.

44
Sobre batuques ver ORO, 1988 e 1994; CORREIA, 1992.

277
"Aqui na frente desse apartamento, aqui, ...,
vieram para cá... uma família alemã, de Santa Cruz. Nós
já estávamos aqui. Eles saíram de uma comunidade
essencialmente alemã, igreja protestante, e vieram para
cá. ... Nós aqui não temos absolutamente, nós não
fazemos racismo às avessas. ... Fazíamos o que os
vizinhos fazem em apartamento: no máximo se
cumprimentam. Agora, fazem quatro anos isso. A mãe e as
três filhas são filhas de santo da minha mulher. Elas
foram cooptadas. ... Foi um processo lento. Elas foram
se aproximando, se aproximando. Elas é que se
aproximaram. Se aproximando, se aproximando, dali a
pouco tavam [sic] no terreiro."

O movimento que Geraldo descreve, é um trânsito de

referenciais brancos para os negros através da religião. Do

protestantismo para o batuque. Esta parece ser a forma

privilegiada de alianças entre grupos raciais. A "mistura" ocorre

enquanto aproximação do branco para aderir ao que consiste num

traço negro. A "democracia racial" só ocorre no bojo da

assimilação pelo branco dos valores negros. Esse fato apareceu de

modo claro nos casamentos mistos, nos quais se verifica a

incorporação do branco à "família negra" como forma predominante.

É interessante o quanto ele frisa o fato das brancas terem

buscado a aproximação, significando ter sido, para ele, no mínimo

desnecessária. Além dos limites próprios de uma relação de

vizinhança típica de prédios de apartamentos em cidades, outra

fronteira se sobrepunha: étnico-racial. A religião promove a

diluição dessas fronteiras, trazendo o branco para o culto afro.

O alemão, visto como protestante, é o branco extremo. Ocupa o

lugar de demarcador da diferença, do contraste mais perfeito

quando comparado ao negro, tanto do ponto de vista da aparência

quanto da cultura. Geraldo não é o único a se utilizar de um

exemplo de contatos interraciais através do alemão.

278
Também Ivo relatou sua educação no mundo branco através do

convívio com alemães, pois estudou no "colégio alemão" (hoje

Colégio Farroupilha). Se ali ele era um "estranho no ninho", de

qualquer forma ele fez parte. Com isso ele mostrava pertencer ao

mundo branco.

Vimos que a identidade é construída contrastivamente e

situacionalmente como "resposta articulada a outras identidades em

jogo com as quais forma um sistema" (CARNEIRO DA CUNHA, 1985:206).

Nesse sentido o alemão ocupa esse lugar emblemático, pois o

seu estereótipo é o que se opõe mais perfeitamente ao do negro, já

que as características físicas constituem importantes marcas de

pertencimento grupal no caso brasileiro.

Arnaldo atuou como promotor no interior do estado, numa

região de colonização alemã. Ali foi respeitado em função da

posição que ocupava. Sua filha nunca se sentiu discriminada,

sempre foi bem tratada, "mas também, era filha do promotor".

Embora os exemplos levem a discussão noutro sentido que não o

utilizado por Geraldo, o fato do branco em contato ser um "alemão"

parece ser significativo, dado o caráter de emblema de

"branquidade" que possui. O alemão é branco, mas mais do que

branco. É alemão e é visto como tal pelos informantes. Constitui

um grupo étnico e como tal é considerado.

João Carlos é advogado, casado, tem aproximadamente 55 anos,

situa-se frente ao branco através das múltiplas formas em que o vê

aparecer. Falando da questão do preconceito diz:

"Graças a Deus deu certo comigo, porque eu fui nascido


e criado na Azenha. A Azenha [bairro de Porto Alegre] é
uma mistura de cores e raças, porque tem judeu,

279
palestino, libaneses, negros, brancos, alemães,
enfim... Então ali é uma mistura... então em questão de
cor, nunca houve problema para mim."

Isso o estimulou a ir em busca da sua origem:

A minha avó falava muito em Adis Abeba. ... Eu


procurei saber onde era Adis Abeba e descobri que era
na Etiópia. ... é uma curiosidade que se tinha em
determinada época da vida. Todo mundo: eu sou judeu, eu
sou palestino, eu sou isso, eu sou aquilo.... Eu queria
saber de onde eu era. Mas é difícil, não há condições
de saber. ... Também, hoje, não tenho nada que ver com
o mundo da África. Vou até chegar lá e não vou me dar
bem."

O branco é visto através das muitas formas com que aparece e

é designado enquanto "raças" e "cores". Lembremos que o negro é

negro mas também em suas gradações de tons, os quais são

nomeados, o que denota uma diferenciação arbitrada pela cultura.

A elaboração da identidade também se dá na busca de raízes,

na busca de ancestrais, na identificação de uma descendência. Essa

descendência, como origem busca um "lugar". Descendência e lugar

de origem são usados freqüentemente como fatores de construção da

identidade étnica, sendo a descendência, ao que tudo indica, a

mais universal (KEYES, 1976).

Isso pode se dar também a partir da religião.

Em Zilá, a "coisa da África" lhe toca pela via da religião.

Através dos Orixás recupera essa dimensão, que do ponto de vista

da família ela não teve:

280
"A minha mãe foi criada por uma madrinha. Não teve
mãe, eu não tive avó. ... Eu não tenho essa
história...."

Gostaria de recuperar a história da família. Isto consiste

num projeto seu com vistas a oferecer aos filhos essa base

identitária que na sua infância não recebeu.

Percebe que o negro brasileiro tem uma especificidade e que

essa identidade deve ser procurada nas raízes do negro brasileiro:

"Voltar à África é impossível. Então que raízes nós


temos. Nós temos uma raiz de descendência africana mas
que tem uma formação brasileira, com características
locais muito próprias. E essa característica é que a
gente tem que reportar. Nós temos o europeu, nós temos
o indígena e temos o africano... Então, tudo isso dá
uma característica própria pro negro brasileiro. Ele
não é africano, ele não é europeu, ele não é indígena.
Ele é uma mistura disso tudo."

A definição de negro brasileiro dada por Zilá é idêntica à de

brasileiro segundo a idéia de "cadinho de raças". Reivindica para

o grupo negro o perfil de brasilidade difundido pela ideologia

dominante. Vê no negro brasileiro essas múltiplas influências, sem

entretanto negar a sua especificidade enquanto grupo na sociedade

brasileira. Define a si mesma como "parte da etnia negra".

Perguntada sobre as características do "ser negro" ela diz:

"Descendente de escravos. ... A primeira raiz... é


uma descendência de escravos. ... E aí tu me
perguntarias: e os mestiços, como é que se identificam?
Nós não temos como determinar isso. Claro que tem um
destaque, tem uma raiz, mas por exemplo, tu olha para a

281
minha mãe, ela é clara como você. Agora, essa mistura
cria problemas"

Os problemas que Zilá refere são derivados do fato do mestiço

não ser negro nem branco, mas mestiço que para ela devem se auto-

definir como negros. Recusa ser "morena" e aceita que se refiram a

ela como negra, desde que o "tom" não seja ofensivo, o que ela

sempre é capaz de perceber.

A ambigüidade da identidade do mestiço se manifesta na mãe de

Zilá que faz a crítica dessa atitude.

"E a minha mãe diz assim: o 'branco', a Verinha


[neta que namora um branco] tá lá com o 'branco'.
Quando ela diz o 'branco' ela tá recriminando que...
Ela diz: ... tu não viste aquela 'negrinha'? Ela diz
isso, 'negrinha', ou então 'o branco'. Ela não é nem
uma coisa nem outra. Incrível, né. E o meu pai era
negro."

O brasileiro é "essa mistura" e o negro está dentro disso.

Para ela "o que vai acontecer daqui mais um tempo, não vai mais

haver nem o negro nem o branco. Um terceiro elemento vai surgir

dentro disso tudo aí". Com isso soluciona os impasses identitários

que vislumbra no meio mulato ao bom estilo da ideologia do

branqueamento.

Gilberto distingue o saber-se negro do saber da

discriminação. Sempre soube que era negro, e nunca teve problema

com isso. Descobriu a discriminação no colégio, através da que

sofreu por parte de uma professora. Sua reação, além de "não se

282
relacionar mais" com aquela professora foi lutar através dos meios

que dispunha para se impor, para encontrar um lugar:

"Aí eu disse: já que eu não posso me colocar na


altura deles pela cor, então eu vou fazer alguma coisa
boa, que chame atenção deles, que eles sintam a minha
falta. Aí eu comecei a pensar - na época eu era atleta
do Internacional - eu jogo futebol... Então começou a
mudar um pouco a história. Através disso aí, eu
consegui modificar alguma coisa. Prá não sentir tanto.
E eles pararam de colocar esse negócio de negro,
separar, como era separado ali. Porque, claro, sem
dinheiro... É uma coisa que eu me pergunto até hoje. Se
eu tivesse dinheiro naquela época, não sei se teria
acontecido isso que aconteceu comigo..."

Ao falar da sua experiência e das soluções que encontrou,

Gilberto fala da ideologia, fala da manipulação do estereótipo em

seu favor e fala da vontade de integrar-se. Fala do sofrimento, da

mágoa. A forma de enfrentar tudo isso foi positiva em termos de

sua integração ao grupo, pois recorreu ao esporte, meio

privilegiado de inserção do negro no mundo do branco.

Abandonou a carreira no banco em que trabalhava por não ter

futuro, já que sempre era preterido nas promoções. Em grande

medida abdicou da trajetória que vinha percorrendo em função da

divisão que tinha entre prosseguir ou continuar no meio negro, com

o "povo", palavra que ele usa para referir os negros.

Entretanto distingue-se do "povo" pela forma de fazer festa,

embora ela seja o atributo negro (segundo sua definição) que ele

incorpora a sua identidade. Para ele o "povo" não tem limite,

"começa a se passar, aí vira bebedeira, e já fica... Então eu não

vou muito...".

283
Identifica-se com a música, valor que herdou do avô, mas não

com o estilo de "fazer festa". A fronteira de classe e a

incorporação de outro estilo de vida impede que ele se integre

plenamente no grupo negro (apesar de "festeiro", ele impões

"limites". Ao mesmo tempo não pertence plenamente ao branco, tanto

pelo preconceito quanto pelo seu viés cultural, a um tempo negro e

popular e relativamente elitista45. Expressa sua dúvida quanto a

razão do preconceito, o que mostra o quanto a negação do racismo

constitui um dado que permeia as relações entre brancos e negros,

sendo incorporado igualmente pelo negro.

O tradicionalismo gaúcho é recusado como forma de identidade

regional. Tanto Gilberto como Geraldo desprezam essa tradição,

muito embora essa atitude não seja própria do grupo negro na sua

totalidade.46

Gilberto foi obrigado a usar a pilcha47 quando trabalhava no

Banco em função das comemorações da Semana Farroupilha48.

Conseguiram para ele um pala e ele vestiu. Sentiu-se mal com

aquela roupa:

45
Frazier mostra que nas classes médias negras há uma considerável
confusão de ideais e padrões de comportamento. Vê, inclusive a
emergência de uma classe média mulata herdeira das tradições das
famílias mulatas e da cultura das massas ("folk"). (FRAZIER,
1973:322)
46
Esse fato é demonstrado pela existência de Centro de Tradições
Gaúchas (CTG) de Negros e pela adesão do negro ao mate (chimarrão)
e a uma auto-identificação como gaúcho. A ideologia de frações do
movimento negro banem o tradicionalismo pelo fato da maioria dos
CTG não terem pretos e pelo fato dele ser um movimento nascido a
margem da negritude urbana que aspiram desenvolver na cidade de
Porto Alegre.
47
Traje típico do gaúcho no folclore do sul, composto por bombacha,
bota, guaiaca, xiripá, etc.
48
A Semana Farroupilha é a que antecede o "20 de setembro", data
comemorativa da Revolução Farroupilha.

284
"Mas eu me senti ridículo. ... Eu disse: Tu já viu
algum outro negrão usando isso aqui? Acho bonito em
vocês, faz parte da cultura de vocês. Mas prá mim não,
pô. Não combina."

Há ainda outra forma de se opor ao "gauchismo":

"Eu, como sou um sujeito de formação, essa dita


formação ideológica de esquerda, prá mim o
tradicionalismo gaúcho, ele deve ser preservado...
pelos filhos de latifundiários"

Nenhum negro se enquadra nessa possibilidade. Portanto, não

havendo negros descendentes de latifundiários, o tradicionalismo

não faz sentido para o negro. Sua identidade vai ser marcada pela

"música de negão", pela "festa". Essa é uma forma recorrente de

definir o negro, feita tanto pelo branco quanto por ele mesmo.

O negro gaúcho estudado se identifica mais com os emblemas

nacionais relacionados ao carnaval, ao samba. A oposição Rio

Grande do Sul/Brasil é marcada através do racismo. O estado é

percebido como mais racista em oposição ao resto do país, o mais

das vezes identificado através do Rio de Janeiro e da Bahia, que

não é "tanto". Outra oposição é marcada através da

"responsabilidade" (ou "compromisso") que no sul é percebida como

maior.

Luiz Filipe possuía uma identidade não politizada, não

percebia a existência de uma "cultura negra"; considerava que

negro era carnaval e só. Pouco participava do carnaval e mesmo

assim apenas como espectador, pois sua vida era "a escola, o

trabalho e a casa, estudando".

285
"Prá te falar a verdade, ser negro, prá mim, começou em
88...Eu digo assim, de sentir e querer a identidade...
em 88, no Centenário da Abolição..."

Uma amiga de sua esposa, da Pastoral do Negro, influiu no seu

envolvimento com o trabalho junto às escolas de Venâncio Aires

(município de origem de sua esposa), em que era incluída a cultura

negra (as danças, a comida, a religião, etc) nos currículos

escolares, juntamente com as das demais etnias presentes na região

(italiana, alemã, espanhola, etc.).

Passou também a participar de uma escola de samba de Porto

Alegre que tem como tema sempre a cultura afro, embora em grande

medida por causa da filha que havia sido convidada para a comissão

de frente. Sair na escola foi a única maneira de ficar perto dela,

para cuidar. Concordaram em sair porque essa escola só tem

atividade durante "aquele período", só no carnaval, não

comprometendo a vida da família, embora Luiz Felipe atribua também

à "consciência". Ele e a esposa mantém atividades no meio negro:

"mas sem aquele vínculo 'eu sou do movimento negro',


porque prá nós, os movimentos, é como tribos, acabam
brigando entre si, ou bota uma a policiar a outra; eu
acho que não pode ser assim, não é por aí." (Luiz
Filipe)

Apesar de se considerar "consciente" e de saber da "cultura

negra", para ele ser negro, ter uma identidade negra, é "se

conhecer. Se olhar no espelho e se achar bonito".

286
A escravidão ocupa, na construção da identidade dos negros um

papel ambíguo, difícil de ser manipulado como referência, como

marca da sua inserção na sociedade brasileira. Zilá pensa que ela

deve ser considerada a base a partir da qual o "negro" deve

entender o negro brasileiro.

Mas o estigma que ela representa atinge a população negra, o

que complexifica as formas de integrá-la a auto-identificação,

quando se trata de pessoas, consideradas individualmente.

Especialmente os homens sentiram-se muito mal quando, na

escola lhe apresentavam as "imagens da escravidão" na forma com

que eram difundidas na sua infância. Luiz Filipe lembra a sua

experiência:

"Eu me sentia completamente, eu ficava inibido, mais do


que eu era, quando ouvia falar na tal escravidão. ...
Como é que eles tinham coragem de fazer isso... os
dois lados: um monte de negão e um cara só, com o
chicote. Porra, mas vai em cima desse cara. Era isso
que eu pensava."

Essa mesma forma de reagir à imagem da escravidão que lhe foi

passada na escola, principalmente através da imagem foi sentida

por Rogério, para quem os negros deviam ser muito covardes, ou o

feitor branco muito poderoso. Também pensava como é que aqueles

homens, fortes, não conseguiam dar conta daquele outro.

Desse modo, utilizar a escravidão como referência para o

grupo negro fica comprometida em função do tipo de imagem que lhes

foi passada através dos bancos escolares.

A memória familiar não preservou muitos elementos para a

maioria dos entrevistados. Muitos deles foram criados longe de

287
suas famílias por madrinhas ou famílias abastadas. Os mulatos

descendem, o mais das vezes, de negros livres tendo uma memória

restrita do fato da escravidão.

O convívio com o branco nas camadas médias põe em risco a

identidade negra. Já atentamos para a ambigüidade do mulato

através da reflexão de Zilá. A ascensão social insere o indivíduo

no mundo branco, expondo-o inclusive ao casamento com brancos, o

que tratamos em outro momento.

Helena expressa esse conflito que se torna razão de preocupações

na família, pois é aí que essa identidade é forjada e preservada:

"Ela [sobrinha] vai pro cultural, é branco. Ela não


tem nenhuma colega negra. Ela vai pro colégio, são
poucos os colegas. Ela faz uma academia de ginástica e
ela não vê [negro]. Ela vai pra praia,... e ela passa
os três meses na praia, e não tem amigos negros. ... eu
disse [para outra tia da menina]: eu acho que a P. tá
perdendo um pouco a identidade negra dela. E isto me
preocupa muito, a perda dessa identidade. ... A
pequeninha teve uma época, que não sabia que era negra.
De repente não se dão conta. E os coleguinhas de
creche, eu acho que não se davam conta. E ela, o outro
dia, falando: eu sou branca. Eu digo: não. Como tu és
branca? Não, tu és igual a mim, tu és negra"

Como em todos os depoimentos, a questão do "ser negro"

fundamentalmente passa pela cor. A partir dela se é identificado

como tal e também a partir dela se dá a auto-identificação.

Sobrepõe-se a essa identidade primária, outra, mais elaborada e

que pode ser ou não "de resistência". De qualquer forma são

características culturais que se sobrepõem a cor, esta mesma o

estigma e o emblema da "raça".

288
Arnaldo diz que vive como branco e com isso quer dizer que

vive como burguês. Resta nele a cor marcando seu pertencimento

racial. O negro é "humilde" e o branco não. O novo negro nas

camadas médias é "atrevido", pois as coisas estão mudando.

A consciência da atribuição de identidade que lhes é feita

leva a que necessitem pensar-se como negros:

"Eu não penso todo o tempo que sou negra. ... Mas
existe algumas situações em que sou obrigada a pensar.
Sou obrigada a pensar, agir como tal, e tomar atitudes
e posturas como tal. ... No confronto dos preconceitos,
no confronto com as coisas." (Helena)

A identidade reativa que os negros de camadas médias forjaram

deriva então do confronto do preconceito e da discriminação. Ela é

a forma dele se relacionar no meio branco. Isso não significa que

esta seja a única forma de modelar sua identidade. A família é o

espaço fundamental para exercitarem sua identidade plena, de pais,

irmãos, tios, etc. Dela se extrai o conforto de estar no mundo

entre iguais, o que pode ser estendido à escola de samba, ao

clube. A partir dela se constrói o pertencimento grupal.

Via de regra os informantes se declararam com não- racistas.

Em princípio nenhum se considera racista nem tem antagonismo com o

branco em geral. O branco qualificado como racista é o alvo do

ataque. O branco não-racista entra no meio negro, gosta do gosto

dos negros, da música, se identifica culturalmente com eles. Quem

não gosta dessas características "não é dos nossos", "fica fora".

A ideologia racista é negada então também pelo negro, embora

a valorização dos aspectos que manipulam para auto-identificarem-

289
se constitua a exigência para incorporar um branco ao seu meio. Os

mecanismos endógenos de auto-atribuição constituem os limites que

são impostos ao relacionamento mais estreito com o grupo negro.

Ser racista é o atributo do branco que marca de modo radical

a oposição a ele.

A elaboração dessas oposições é bastante conflituada. A

experiência afetiva individual com brancos gera grandes

dificuldades na construção de uma linha de conduta auto-segregada.

Daí serem os brancos subdivididos através daquele critério.

Com ele são resolvidas questões como a presença branca na

família, entre os ancestrais, além de abrir um espaço para

incorporação de brancos no circuito de amigos, o que no meio negro

de classe média é praticamente impossível de evitar. É também o

meio que promove a flexibilidade das fronteiras raciais no limite

exigido para pressionar as barreiras de classe com vistas à

ascensão social.

290
CONCLUSÃO

Em vista dos dados analisados, percebemos que a família,

enquanto construção ideológica, possui conteúdos distintos para os

indivíduos no grupo pesquisado. Com isso, o modelo conjugal-

nuclear não corresponde a suas práticas e representações. Estas

são elaboradas pelos indivíduos como atributo de identidade étnica

e como peculiaridade do núcleo familiar específico ao qual se

integram.

Esse segundo aspecto aproxima-se de uma definição da família

como uma entidade construída a partir das suas relações internas

como "uma tradição familiar" que a distinguirá de todas as outras,

brancas ou negras (cultura familiar).

O fato de ser uma família negra altera o resultado dessa

elaboração, pois a tradição familiar abriga a "luta" do negro.

De modo especial a família é "construída" pelo próprio negro.

Ela é construída no plano simbólico e se atualiza plano prático. A

noção de família no grupo deve preencher o vazio de origem que se

expressou nas ausências de ascendentes na geração dos avós (o que

foi a regra no grupo estudado), e reler a base pobre da qual

deriva. A introjeção do modelo de família existente na sociedade é

tomado como referência e como parte do projeto de ascensão.

Entretanto a sua realização prática, sua concretização não funda a

"família negra". Esta é construída por oposição ao estereótipo

atribuído ao negro, pelo confronto deste com uma identidade

endogenamente elaborada.

291
Se Dauster apontou em seu trabalho (Dauster, 1992) "sangue" e

"amor" como metáforas instituintes da família, o nosso campo

apontou "garra, trabalho" e "honestidade" fundando os laços que

vinculam parentes numa rede convivência e solidariedade,

revestindo o elo de consangüinidade e afeto. Essas categorias

atuam como critérios de seletividade que orientam os expurgos que

as famílias realizam na formulação de um circuito familiar, o qual

pode extrapolar os limites da unidade doméstica.

A "casa" é uma metáfora do conjunto ligado por "ter se criado

junto". Quem se "criou junto" é "de casa" mas só será da família

se for parente consangüíneo, caso contrário será, segundo o caso,

"adotado" como parte da família, será "dos nossos" mas sem a ela

pertencer.

Nossa hipótese explicativa para a eleição das categorias

"luta" (batalha), "garra" (fé), "trabalho", aponta então para duas

ordens de fenômenos.

O primeiro deles é o fato do grupo analisado estar em

ascensão e ter como referencial os processos vividos e elaborados

nesse percurso. O segundo remete à ideologia que preside a

construção do estereótipo do negro que o definiu como oposto ao

trabalho e associado ao desregramento e à passividade.

O grupo de negros das classes médias que estudamos afirma sua

identidade nos valores que respaldaram ideologicamente a sua

ascensão.

A família que daí resulta é representada através dos mesmos

fatores que fundaram a superação da pobreza.

Essas categorias, tal como aparecem nas histórias de vida,

articularam, no passado familiar, redes de reciprocidade tanto com

parentes como com o grupo branco de posição social superior.

292
Nesse circuito, a "garra", a "honestidade" e o "trabalho" se

expressam num veículo que comunica dignidade e respeitabilidade: o

"valor". Ter "valor" é ser trabalhador, honesto e lutador. Esse

atributo articula a família, através de um de seus membros - em

geral a mulher-mãe - à rede de solidariedade seletiva dos parentes

e às relações com o grupo branco de posição superior.

O "valor" é a categoria que negocia com a ajuda" na produção

da solidariedade entre os grupos raciais e as posições sociais

diferentes e desiguais.

Por trás do valor estão, além da garra, da honestidade e do

trabalho, a "humildade" a "fidelidade" e o "reconhecimento" como

vestimentas do "valor" exigidas para enfrentar os superiores com

seus pleitos.

Essas últimas categorias são aquelas que marcam um corte

entre as gerações. Na geração dos avós elas tinham um significado

que nas atuais já não tem, sendo em muitos casos repudiadas.

Entretanto elas podem ser relidas a luz da nova posição social e

da nova conjuntura ideológica. "Pedir" é uma estratégia cuja

leitura na atualidade é carregada de novos sentidos: não se pediam

"favores", se pedia aquilo a que se tinha "direito" por ser pessoa

de "valor".

Os ganhos sociais facilitados pela "ajuda", na reciprocidade

entre subalternos e patrões, compensaram a assimetria da troca

efetuada: o "valor" somado à "fidelidade" e "humildade" foram as

moedas hipotecadas ao aliado que emprestou seu prestígio.

Luta, honestidade e trabalho, expressos no "valor",

transitam no universo familiar e fundam laços entre seus membros

mobilizando-os para projetos comuns. Assim, o espírito de família,

293
veículo los laços de parentesco, é impregnado pelo seu sentido.

Ele comunica parentes sintonizados com esses princípios.

Essas características, como vimos (BOURDIEU, 1974), são

próprias de classes não consolidadas em suas posições sociais, sem

tradição e capital social acumulado. Sendo o grupo estudado

pertencente a essas classes médias, ele necessita fundar essa

tradição reafirmando o "valor" nos planos grupal e intergrupal,

como meio de instaurar a permanência dos canais abertos com a

"garra" e a "fé" das quais a "luta" se nutre.

O puritanismo, ethos do grupo, envolve um estilo de vida

pautado na ênfase na vida familiar. Esta por sua vez envolve, além

do convívio, o "dever de ajuda". A lógica da inclusão e exclusão

de parentes repousa nessa necessidade de selecionar dentre os

"sangüíneos" aqueles a quem se deve e de quem se espera ajuda.

Do ponto de vista das definições de família, vimos que há uma

grande variabilidade de situações. A consangüinidade é o fator

básico na definição de parentes e constitui o ponto em comum.

Entretanto, o modo como a família engloba os parentes sangüíneos é

relativa à distância social e geográfica e à critérios morais

(BOTT, 1976). A residência em comum não delimita a família, a não

ser em dois casos.

Família de orientação e de procriação também são concebidas

por alguns, que nesse sentido possuem "duas famílias". A

formulação de um discurso individualizante da família decorre da

sua autonomização enquanto unidade conjugal nuclear frente às

pressões englobantes da família (VELHO, 1981) de orientação do

casal. Nesse caso há a distinção de duas famílias (PARSONS: 1979).

294
Mas o dominante no grupo é a família conter mais membros do

que o modelo conjugal nuclear abarca. Nessa ampliação da família

as relações verticais são priorizadas sobre as horizontais. Os

parentes por aliança são excluídos quando se define o parentesco.

Eles são parentes ou parte da família do cônjuge segundo o caso.

Podem e são freqüentemente incluídos nas redes de convívio e de

solidariedade, porém através do cônjuge. A "afinidade"49 estabelece

ou não a "amizade" entre os afins.

O fato de descender de migrantes ou de ser migrante promove

o afastamento dos parentes e favorece a sua exclusão da família,

embora vimos que quando é possível e que os laços sejam baseados

no convívio intenso na infância, a permanência da inclusão

acontece.

O "convívio" e a "afinidade" são decisivos para a inclusão de

parentes na família. A distância geográfica dificulta ou impede o

"convívio" e a distância social inviabiliza a "afinidade".

O peso da distância social aumenta quando a ascensão de um

membro de uma família se dá em apenas uma geração, como no caso de

Deise.

O que esse caso mostrou é que a ruptura familiar ocorrida com

sua ascensão no curto espaço de aproximadamente cinco anos, foi

autorizada pela quase exclusividade do seu "mérito". A sua

independência em relação à família não tem paralelo nas demais

trajetórias.

Isso marca uma diferença radical, uma vez que essas

trajetórias de ascensão envolveram processos familiares,

transcorridos ao longo de três gerações de investimento no projeto

49
No sentido êmico de identidade de interesses.

295
de "melhoria de vida", na promoção da educação dos filhos e

assentado no trabalho.

Uma carreira rápida não produz a percepção do trabalho e

honestidade e da garra do mesmo modo.

A garra aparece como persistência no confronto do

preconceito, deixando de referir também à pobreza. O trabalho

também ganha novo sentido. Ele é traduzido como "profissionalismo"

cujo conteúdo aponta para a disciplina e pragmatismo (VELHO,

1981). Esses são princípios modernos50 que sintonizam com a opção

individualizadora que Deise realiza.

A família é a unidade mobilizada para a ascensão dos filhos

os quais se manterão atrelados a ela como contraprestação. Cuidar

dos pais velhos, assistir à educação do filho do irmão são algumas

das formas de socializar os ganhos.

Esses laços reduzem as possibilidades de acumular patrimônio

e de adquirir bens expressivos do status conquistado. Mas isso

permite a continuação das relações entre os membros da família,

reduzindo a distância social entre eles, o que é essencial para

garantir a "afinidade" que impulsiona o convívio.

A seletividade na escolha de parentes para fazerem parte da

família e para o convívio é mais rigorosa quando se trata da

inclusão na rede de ajuda e de "socialização dos ganhos". Pais,

irmãos e seus filhos tem a prioridade e quase exclusividade. Mesmo

assim os critérios morais são acionados para avaliação da

necessidade e do mérito.

A chefia feminina, seja da família seja da unidade doméstica,

nas histórias de família do grupo de negros que estudamos mostrou

ser uma situação contingente relacionada à perda de laços com as

50
Em oposição a tradicional.

296
famílias de origem. Sempre que foi possível, a chefia foi

transferida para um homem da família respeitando principalmente um

critério de status dentro dela, o que por sua vez relacionava-se

com a idade e participação na manutenção da casa. Não se percebeu

continuidade nesse modelo que é percebido pelo grupo como uma

duplicidade de papéis de gênero e como um duplo encargo.

Os negros construíram um modelo de família que, longe de

passar por uma determinada composição, repousa num "espírito de

família" definido a partir da solidariedade e do convívio, do

estar "junto", do "não poder muito se separar".

A família é também uma referência para o indivíduo se situar

enquanto classe. Além dela, no caso estudado, o grupo branco

("rico") e o grupo negro ("pobre") delimitam sua posição social. A

renda e o saber são os itens a partir dos quais eles se avaliam em

relação a estas fronteiras.

A insatisfação, produzida pelo referente branco de classe

alta, projeta nos filhos a continuidade da trajetória de ascensão,

pois ela é um projeto familiar.

A pobreza dos negros continua contagiando as classes médias

negras. Embora saídos dela, permanecem a ela ligados pelos laços

de parentesco e pelo sentimento de solidariedade e identificação

étnicos. Isso altera a relação que desenvolvem com a sua própria

realidade. Percebem-se privilegiados e emprestam solidariedade à

família. Entretanto, aqueles que já se encontram na terceira

geração do processo de ascensão, estão distanciados dessas amarras

que os ligam à base pobre e já operaram a exclusão (mediante

seletividade progressiva) dos que ficaram para trás e marcham para

a consolidação de sua posição.

297
O afastamento da pobreza implica mudar de lugar, sair para

onde se consiga relacionamentos favoráveis, que elevem o padrão do

meio no qual o indivíduo vai exercitar a sua sociabilidade.

O meio branco não é o mais buscado, embora o eixo

profissional passe obrigatoriamente por ele.

A elevação do padrão de qualidade dos meios de sociabilidade

dos negros tem sido constantemente buscado. Isso é o que os clubes

negros, as danceterias, bares e as festas promovidas por Teresa

demonstraram. Com isso conseguem se manter no meio negro sem se

aproximar da pobreza.

A partir desses elementos estão sendo reelaborados pelo grupo

um modo de fundar a identidade negra, extraindo da cultura negra

popular os aspectos que emblematicamente qualificarão suas

diferenças frente ao grupo branco e marcando, com a sofisticação

dos signos, a distância de classe em relação aos negros pobres.

Essas questões nos permitiram pensar sobre a relação entre

identidade de classe, identidade étnica e racial.

A oposição negros/brancos é marcada pela raça. A relação dos

negros com os brancos é elaborada de modo a resguardar brancos

aliados (amigos, membros da família, etc.). O antagonismo racial

se dá perante o "branco racista", embora vejam que Porto Alegre e

o estado sejam racistas. Os brancos não racistas serão absorvidos

pelo grupo negro sempre que se identificarem com seu estilo de

vida, com seu gosto, com sua música, com seu modo de ser.

Do mesmo modo como os brancos, o discurso sobre o racismo

converge para o preconceito do branco para com o negro. Do mesmo

modo como os brancos, afirmam não serem racistas. A ideologia

racial dominante também envolve o negro. O que muda é a posição na

relação. Isso transparece no modo como a mistura racial, vista

298
como traço da sociedade brasileira, pode ser formulada como

acusação sobre o branco racista.

No grupo estudado, o mestiço se transforma em negro, tanto

pelo quê de negro ele guarda na sua aparência (ele é portador do

estigma tanto quanto o preto), quanto pela sua socialização no seu

meio. Os casais mistos vivem sua sociabilidade no meio negro e são

incorporados pelas famílias negras.

Identidade de classe, identidade étnica e de raça são

alternadas em função das identidade dos interlocutores da

negociação e da situação que a envolve.

Vimos que a ofensa racial, no grupo estudado, afeta pelo

rebaixamento de status, atingindo a sua identidade de classe. Esta

é representada principalmente pelo status profissional. Ser

ofendido pela raça impõe uma resposta pela classe, vínculo que

favorece sua posição na relação.

Ser da raça mas com um estilo de vida distante dos códigos

étnicos, exclui a possibilidade de pertencer a um grupo, de tê-lo

como referência de identidade.51 Isso é mais dramático quando se

trata de um grupo minoritário demograficamente52 e desigual em

termos sociais.

Reler nos termos de classe os atributos étnicos, bem como

reler em termos étnicos os atributos de classe, são as formas de

estruturar o modo de ser negro nas classes médias negras de Porto

Alegre, produzindo uma alternância de identidades nas quais se

acionam alternadamente os códigos de classe e de etnia (culturais)

como estratégia de inserção nos domínios branco e negro da cidade.

51
Devido ao fator raça ser definido a partir de características
externas, não há a possibilidade de recusar esse pertencimento em
função do preconceito racial.
52
O que é o caso de Porto Alegre, cuja população negra (preta mais
parda) perfaz aproximadamente 15% do total.

299
Através da família é que esses códigos ganham espaço de

integração. A família negra, definida enquanto tal53, articula os

códigos de classe e étnicos, mobilizando seus membros para a

elevação do negro enquanto raça e etnia.

53
Enquanto especificidade do negro e nesse sentido como um duplo
referencial de identidade.

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